Ao Redor Do Futebol Entrevista Com Nuno Ramos
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AO REDOR DO FUTEBOL ENTREVISTA COM NUNO RAMOS Victor da Rosa* * [email protected] Gustavo Cerqueira Doutorando e mestre em Teoria Literária pela UFSC. Guimarães** ** [email protected] Pós-doutorando (Pós-Lit/PNPD/CAPES) em Teoria da Literatura e Literatura Comparada e mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Nuno Ramos (1960), além de artista plástico e ficcionista, Quando sugeri ao Nuno uma entrevista sobre futebol, ele é também um ensaísta que vem despertando grande interesse aceitou de pronto. Recebeu-me em seu ateliê em São Paulo, no Brasil. Em Ensaio geral (Ed. Globo, 2007), livro que reúne um galpão cheio de pinturas de grandes dimensões e até pe- seus ensaios e “um pouco mais”, conforme o próprio autor daços de um avião embalados em plástico, de sua instalação escreve na apresentação, temos uma prova contundente disso. Fruto estranho, para um papo sobre o assunto que devia du- Sua gama de assuntos, além de arte, literatura e canção, cam- rar “quarenta e cinco minutos e mais uns acréscimos”, mas pos em que Nuno atua também como criador, inclui ainda acabou chegando a mais de uma hora. A ideia era começar a o futebol. No livro, há uma série especialmente dedicada ao conversa falando sobre o que considero ser a teoria de Nuno assunto, intitulada “Os suplicantes”, com reflexões sobre “as- sobre futebol, que inspirou inclusive José Miguel Wisnik pectos trágicos do futebol”, o esporte amador no Brasil, belos em outro livro relativamente recente e fundamental sobre o textos sobre Reinaldo, Tostão, Ademir da Guia, entre outros assunto, Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008), e foi assim jogadores, além de uma série fotográfica republicada também que começamos a conversa. nesta revista, por ocasião da Copa do Mundo 2014. 178 Depois, Nuno falou sobre questões que todo mundo que aquilo que ele desperta nas pessoas. Eu sei que há outros jo- acompanha futebol acaba pensando: o futebol brasileiro, gos com placar baixo, como o beisebol, mas são jogos pouco a Copa, a sua própria infância, o Barcelona de Guardiola, propensos a formas de acaso. O beisebol, por exemplo, é um Neymar, a falta de imaginação dos comentaristas esportivos jogo especialmente modorrento, diferente do futebol, que e finalmente seu time de coração, o Santos. No fim, acaba- produz coisas inacreditáveis sem qualquer conexão com o mos falando também de arte, literatura e até de política. ponto, o gol. Resolvemos publicar a entrevista praticamente na íntegra, por considerar um documento de interesse a todos aque- A FALTA DE GOL MUITAS VEZES É ASSUNTO MAIOR DO QUE O PRÓ- PRIO GOL... les que pensam o futebol hoje e, claro, também para quem acompanha a trajetória artística de Nuno. Por isso procura- Sim, às vezes um zero a zero é maravilhoso. Mas tam- mos intervir o menos possível em suas falas e mesmo no tom bém não é legal diminuir o gol, pois o gol reordena tudo, e coloquial que predomina na maneira como trata o assunto. isso é algo que o meu texto não capta. A existência do gol De resto, agradecemos a disponibilidade e gentileza de Nuno, propõe um novo jogo. Quem sofre gol, por exemplo, sofre assim como a liberação dos direitos de sua série fotográfica, contra-ataque o resto do tempo. Em geral, há uma espécie Placar final, que acompanha a entrevista, além de compor a de knockdown quando um time leva gol. E tem coisas muito capa da edição, mas continuamos duvidando, por outro lado, curiosas, como acontece quando um time sofre gol e empata que o artista tenha feito mil embaixadinhas quando era garoto. na jogada seguinte, justamente porque o outro time relaxa, não concentra. É também muito comum na saída de bola GOSTARIA DE PARTIR DO QUE EU VEJO COMO SENDO SUA TEORIA haver já uma jogada de perigo, que é como se o princípio de SOBRE FUTEBOL, DESENVOLVIDA NO SEU LIVRO ENSAIO GERAL, prazer de fazer um gol desse uma baqueada no outro time. OU SEJA, A DISSOCIAÇÃO ENTRE O PLACAR E O QUE ACONTECE Então o gol tem uma potência de imantação do jogo. EFETIVAMENTE DURANTE UMA PARTIDA. GOSTARIA QUE VOCÊ EX- PLICASSE ISSO E DISSESSE COMO A IDEIA SURGIU. Também acho que atacantes que tem pouca finalização são confusos, como o Robinho, que é um grande jogador, Talvez seja uma teoria mesmo. Como você disse, é a ideia um cara que joga nas duas pontas, tem passe, sabe ver o de uma discrepância entre placar e o significado do jogo, jogo, diferente de um Denílson, que só olha pra baixo, quer EM TESE BELO HORIZONTE V. 20 N. 1 JAN.-ABR. 2014 RAMOS. Ao redor do futebol P. 177-189 Entrevistas 179 dizer, o Robinho não é só um virtuose do drible, embora EM UM TEXTO SOBRE O TOSTÃO, VOCÊ AFIRMA QUE ELE, DIFEREN- tenha muito drible, só que ele tem uma finalização quase TE DE OUTROS COMENTARISTAS, ENXERGA O FUTEBOL COMO UM amadora. PROBLEMA. NESSE SENTIDO, ELE SERIA UMA EXCEÇÃO À REGRA? Acho que sim. Ele consegue acessar este aspecto do jogo Enfim, o gol é uma chave de leitura imprescindível, é até com naturalidade, nível de conhecimento e precisão muito um pouco ridículo dizer que não. De todo modo, o futebol maiores que o meu. A obra prima dele é recente. Ele vem preserva uma diferença entre um grande jogo e um grande falando que contra a Inglaterra, em 1970, ele olhou para o placar. Dizendo de outra forma, uma goleada na maioria das banco e viu o Roberto, um centroavante reserva dele, um vezes é resultado de um jogo um pouco chato. jogador meio como o Casagrande, Roberto Dinamite, que fazia gol mas era pouco técnico, enfim, o Tostão viu o cara E COMO VOCÊ CHEGOU A ESSA IDEIA? se aquecendo e isso causou um negócio nele. Depois ele fez Bom, eu sempre tive uma profunda irritação com comen- aquela jogada extraordinária, que passou pra Pelé, depois pra tário de jogo, especialmente pela transformação do jogo em Jairzinho e gol. Ele diz que se não tivesse visto aquilo, talvez uma espécie de fatalidade, como se fosse óbvio que o time ele não tivesse feito aquela jogada. que ganhou de 2 a 1 só pudesse ganhar de 2 a 1, como se todo O Tostão é o cara que não vê o jogo dessa forma mecânica, sentido do jogo estivesse exclusivamente no placar, quer di- a partir do resultado. O futebol para mim é um pouco o acesso zer, como se o comentarista não estivesse perdendo todo o ao que poderia ter sido diferente. Ele tem algo dessa riqueza. resto que aconteceu naquele jogo. Isso é uma coisa que sem- Apesar disso, eu também não me amarro muito na “viuvagem” pre me irritou muito em programa esportivo. Então eu acho de 1982. Eu acho que a Itália jogou melhor. O time brasileiro que eu escrevi um pouco em homenagem a essa raiva que eu tinha deficiências óbvias também. Eu também acho que em tinha dessa espécie de história dos vitoriosos, que é a história 1994, que foi uma seleção mais careta, ensinou pra gente umas do placar. Bom, ainda tenho. Mas eu também não quero ser coisas, que não precisa arrebentar sempre, que tem jogos mais ingênuo a ponto de não saber que o ponto é imprescindível. no mano a mano, e isto é bonito também. Claro que se você ganha o jogo muda. Mas acho que é pre- ciso entender isso de um modo mais complexo, com mais Mas voltando à questão inicial, eu acho que essa disjunção mediação, ou melhor, mais meio tom. entre placar e jogada, ela existe. Quem vê muitos jogos sabe EM TESE BELO HORIZONTE V. 20 N. 1 JAN.-ABR. 2014 RAMOS. Ao redor do futebol P. 177-189 Entrevistas 180 disso. É impossível você não perceber uma flutuação no jogo dificuldade, especialmente conteúdos meio trágicos, injus- que o placar não dá conta, ou se empolgar com uma coisa do tos. Futebol é um esporte muito injusto. É um jogo onde o jogo quando o placar não vem. O torcedor fala muito isso, fato de haver injustiça está o tempo todo presente. Por isso que o futebol é injusto, aquele clássico quem não faz toma, o juiz tem um papel supervalorizado. Quando na verdade isso tudo são acessos a essa teoria que eu acho muito própria eu acho que os juízes erram pouquíssimo. A gente comenta do futebol. Eu não saberia dizer outro jogo onde o efetivo e erros de centímetros, mas os juízes acertam seis lances segui- o possível se deixem ver com tanta facilidade. dos e todo mundo acha normal. A gente guarda o juiz para o escape desse sentimento de injustiça que o futebol causa a O ZÉ MIGUEL WISNIK ASSOCIA ESTE CARÁTER CONTINGENCIAL DI- todo instante. Todo grande jogo de certo modo é um jogo GAMOS DO FUTEBOL COM A TEORIA DO PASOLINI SOBRE FUTEBOL que não foi totalmente justo. DE POESIA. VOCÊ ACHA INTERESSANTE PENSAR ESTA DISSOCIA- ÇÃO COMO UMA ESPÉCIE DE POÉTICA DO FUTEBOL? RECENTEMENTE EU LI UMA CRÔNICA DO NELSON RODRIGUES EM Por um lado, sim. Mas tenho a impressão também que QUE ELE RECLAMA DA FALTA DE DESONESTIDADE DOS JUÍZES. NA isso incluiria uma seleção como a Alemanha, por exemplo. IDEIA DELE, OS JUÍZES ESTAVAM HONESTOS DEMAIS. Eu acho que o Barcelona, aquele grande time que não existe Eu sou um pouco simplório nisso, apesar de ter aconte- mais, ao ficar com a bola o tempo todo, diminuiu muito a cido aquele caso famoso de roubo mesmo, que os juízes fa- agressão sofrida. É uma tentativa de controlar mais o aca- bricavam resultado.