UNIVERSIDADE DE LISBOA LIÇÕES & TESTEMUNHOS 

UNIVERSIDADE DE LISBOA LIÇÕES & TESTEMUNHOS

Catarina Constantino Silva (org.)

Adriano Moreira • António Lobo Antunes Filipe Duarte Santos • Francisco Pinto Balsemão Guilherme d’Oliveira Martins • José Manuel Durão Barroso José Mário Branco • Odette Santos Ferreira • Teresa Patrício Gouveia

Prefácio: António Sampaio da Nóvoa

lisboa tinta­‑da­‑china mmxiii 

ÍNDICE

António Sampaio da Nóvoa Transformar o passado em futuro 9 Guilherme d’Oliveira Martins É para diante que olhamos 11 Catarina Constantino Silva neste edição foi respeitada Introdução 13 a opção ortográfica de cada autor, Anos de desafios na educação 15 Francisco Pinto Balsemão

© 2013, Universidade de Lisboa Relações entre a liberdade e a segurança 29 e Edições tinta­‑da­‑china, Lda. José Mário Branco

Edições tinta­‑da­‑china A oficina da canção 45 Rua Francisco Ferrer, 6-A, António Lobo Antunes 1500­‑461 Lisboa Tels: 21 726 90 28/29/30 Se eu me separasse de ti 59 E­‑mail: [email protected] Odette Santos Ferreira www.tintadachina.pt Um detalhe, uma grande descoberta 85 Título: Universidade de Lisboa – Lições & Testemunhos Filipe Duarte Santos Organização: Catarina Constantino Silva Amar as pessoas, a natureza e a arte 101 Autores: Adriano Moreira, António Lobo Antunes, Filipe Duarte Santos, Francisco Pinto Balsemão, Teresa Patrício Gouveia Guilherme d’Oliveira Martins, José Manuel Durão Barroso, Estar vivo é mudar 121 José Mário Branco, Leonor Beleza, Odette Santos Ferreira, Teresa Patrício Gouveia. Leonor Beleza Prefácio: António Sampaio da Nóvoa Um tempo extraordinário 133 Revisão: Tinta‑da­ ­‑china Composição e capa: Tinta­‑da­‑china José Manuel Durão Barroso A Europa somos nós 145 1.ª edição: Dezembro de 2013 isbn 978­‑989‑671‑195-5 Depósito Legal n.º 367573/13 Notas biográficas 161 

TRANSFORMAR O PASSADO EM FUTURO António Sampaio da Nóvoa 1

As universidades têm uma longa existência, iniciada nos finais da Idade Média. Ao longo dos séculos, cumpriram distin‑ tas missões sociais, culturais e políticas, contribuindo, como afirma Ortega y Gasset, para promover a história europeia. A responsabilidade primeira da instituição universitária é a educação superior, uma educação que se faz em ambiente de investigação e de criação, através das artes, das humanidades e das ciências. A nossa maior distinção é sempre a vida futura dos estu‑ dantes, por isso, quando elaborámos o programa de comemo‑ rações do centenário da Universidade de Lisboa, logo ficou decidido que a abertura e o encerramento seriam dedicados aos antigos alunos. O primeiro acto dessas comemorações, no dia 11 de Outubro de 2010, foi uma cerimónia de grande significado, a atribuição do doutoramento Honoris Causa aos três primeiros presidentes da República da democracia, anti‑ gos alunos da Universidade de Lisboa: António Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio. Com a publicação do presente livro, coordenado por Cata‑ rina Silva, aluna da nossa universidade, conclui­‑se um período particularmente intenso da nossa história, durante o qual

1 Reitor da Universidade de Lisboa, 2006­‑2013.

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fomos honrando o passado através da invenção do futuro. É PARA DIANTE QUE OLHAMOS Nele, transcrevem­‑se quatro lições proferidas durante as 1 Guilherme d’Oliveira Martins comemorações — Adriano Moreira, Francisco Pinto Balse‑ mão, José Mário Branco e António Lobo Antunes — e cinco depoimentos de antigos alunos — Odette Santos Ferreira, Filipe Duarte Santos, Teresa Patrício Gouveia, Leonor Beleza e José Manuel Durão Barroso. O programa de comemorações do centenário foi organi‑ zado em torno de quatro eixos: 100 Pessoas, 100 Locais, 100 Lições e 100 + 1 Ideias para o Futuro. Muitas foram as pessoas que nos fizeram chegar as suas Ser antigo aluno da Universidade de Lisboa obriga a pensar a «ideias para o futuro», depois integradas em livros, filmes e nossa Alma Mater de um modo especial. Não importa recordar outras iniciativas2. A acompanhar as ideias veio quase sempre a uma antiga querela sobre a matriz da Universidade Portuguesa, pergunta: porquê 100 + 1? sempre pensei nela como uma herança comum, estabilizada na A resposta é simples: + 1 foi a maneira que encontrámos de cidade de Coimbra e depois prolongada para Lisboa e para o mencionar o desígnio que inspirou a vida da Universidade de restante país. A verdade é que o continente em miniatura, de Lisboa nestes últimos anos: a fusão com a Universidade Téc‑ que falou Orlando Ribeiro, também se projetou na evolução do nica de Lisboa. Foi esta a realização maior do centenário da nosso estudo geral. No ano do centenário da Universidade de Universidade de Lisboa, pois com ela se concretizou o pro‑ Lisboa, pudemos pôr em primeiro lugar essa herança comum, jecto republicano de 1911 e se abriu uma fase nova do ensino que, a par dos nossos maiores valores, tem as suas raízes iden‑ universitário em Lisboa e no país. titárias em . Afinal, a língua portuguesa que difundi‑ A universidade é depositária da herança do passado não mos pelo mundo foi resultado da origem galaico­‑portuguesa, para nela se fechar, mas para com ela se renovar e se projectar continuada nas terras de Portugal, em Entre­‑Douro­‑e­‑Minho, no futuro. Foi isso que procurámos fazer na Universidade de prosseguida na erudição de Santa Cruz de Coimbra e depois Lisboa. É isso também que fazem diariamente os nossos anti‑ consolidada no prestígio da Universidade de Coimbra e no gos alunos: transformar o passado em futuro. eixo académico de Coimbra, Lisboa e Évora. E como não lem‑ brar também o Brasil e o mundo? 25 de Julho de 2013 Nós, antigos alunos da Universidade de Lisboa, sentimos que a Universidade Portuguesa é um conjunto de diferenças

2 Do conjunto das iniciativas realizadas durante o Centenário, destaque‑se­ a e complementaridades, hoje prolongado nas novas institui‑ publicação das duas obras sobre a história da Universidade de Lisboa, coordena‑ ções de ensino superior, nas novas cidades e nos novos polos das por Hermenegildo Fernandes (A Universidade Medieval em Lisboa — Séculos XIII­‑XVI) e por Sérgio Campos Matos e Jorge Ramos do Ó (A Universidade de Lisboa — Séculos XIX­‑XX). 1 Presidente da Associação dos Antigos Alunos da Universidade de Lisboa.

—10— —11—  universidade de lisboa | lições & testemunhos universitários. Não esquecemos os nossos mestres. Lembra‑ INTRODUÇÃO mos a força da comunidade académica, recordando as crises Catarina Constantino Silva e a vitalidade que deram à democracia. A Universidade de Lisboa, hoje reunindo a Universidade Técnica, não alimenta saudosismos. A identidade que constituímos é feita de história e de um poderoso desafio do futuro. A história fez­‑se de uma vontade emancipadora e moderna, o desafio do futuro vai­‑se construindo pela aprendizagem, pelo desenvolvimento, pela cooperação científica, pela exigência educativa, pela interna‑ cionalização. É para diante que olhamos! Não, o mundo não cabe na palma da nossa mão. Mas encaixa perfeitamente na razão dos nossos sonhos, que são estra‑ nhas peças de arte, mutáveis e, por vezes, pouco razoáveis. Permitem­‑nos a ambição, deturpam­‑nos a concentração, condicionam­‑nos a ousadia. A pequena esfera, azul e verde, vai girando devagar, distribuindo aleatoriamente a sorte de sonhar os sonhos ou de vivê‑los­ acordados. Não existe uma fórmula, nem tão­‑pouco a hipótese de fazer parar o tempo; há que tentar e falhar até descobrirmos a nossa vocação e, por fim, conciliá­ ‑la com a nossa intenção de criar algo diferente. O caminho é sinuoso, o olhar nem sempre é o mesmo, equilibrando no presente o passado até se definir, com todas as incertezas que dele derivam, o futuro. Paira sempre uma espécie de receio, muito semelhante ao caos provocado pelo medo. E é aí que o mundo estagna, indeciso quanto ao seu propósito, seja ele qual for, necessitando de uma nova força motriz, de novas teias de inteligência, de novas formas de aprendizagem e de aprender ensinando. Tomam lugar os mestres de letras e os sabedores de música, acordam­‑se prodígios de artes e treinam‑se­ novos des‑ portistas. Ensinam­‑se aprendizes de artesanato, reinventam­ ‑se os mares, plantam‑se­ novos campos. Escrevem‑se­ páginas diferentes na medicina, prosseguem­‑se os avanços tecno‑ lógicos, criam­‑se novas e fantásticas necessidades que nem

—12— —13— universidade de lisboa | lições & testemunhos sabíamos que viríamos a ter. Os professores, quais avós, pais e filhos, vão continuar a acertar e a errar, congratulando‑se­ pela sensação de dever cumprido. Ou não. E o ensino florescerá: dividido pela sua pluralidade, unido pela sua (necessária) curio‑ sidade. Pauta‑se­ a humildade nas partituras destes mestres, Adriano Moreira detentores de uma sabedoria única, de um amor tão próprio às suas raízes. Pousada sobre a secretária de mogno paira uma maravilhosa incógnita: uma simples folha branca. Observando ANOS DE DESAFIOS de perto será possível assistir ao aparecimento de linhas ténues NA EDUCAÇÃO e de letras a surgir vagarosamente, multiplicando­‑se livre‑ mente no espaço que lhes é permitido. São os contornos pre‑ cisos desenhados pela mão dos que sonham uma universidade que se reinvente de e para o mundo.

—14— Esta meditação a que procedeu inicialmente a Universidade de Lisboa, chamando os seus antigos alunos a contribuírem com a experiência vivida da relação entre a aprendizagem académica e o ensino imposto pela realidade enfrentada, ganha sentido com a recordação dos grandes mestres. Recordo o padre Manuel Antunes, que nos advertiu para o facto de a filosofia da cultura, no tempo que foi o nosso, se impor como reflexão imperativa sobre múltiplos aspectos, níveis e estruturas de correntes e tendências que levam aos nomes de «desmitização», «refrontalização», «confrontação» e «funda‑ mentação». Correntes e tendências em que a história humana — feita, pela primeira vez, realmente mundo — nos oferece um altíssimo grau de generalidade, de intensidade, de complexidade. Em Portugal, muito recentemente, em 1974, o paradigma da vida habitual afastou­‑se do «modo desse tempo», passando a estar dominado por um paradigma de repetição: sem rup‑ turas previsíveis, num globo submisso ao poder dos ociden‑ tais (sobretudo atlânticos) e mais discutidor da distância e das diferenças entre o liberalismo, a democracia, o autoritarismo e o totalitarismo. Este é um tempo que ignora o que Foucault chamava paternalmente «o resto do mundo», composto de áreas cultu‑ rais sem voz própria no âmbito do que o autor, comentando o

—17— universidade de lisboa | lições & testemunhos adriano moreira texto «O que são as luzes?», de Kant, identificou do seguinte A fórmula foi reproduzida com a industrialização crescente: modo: «Estes conjuntos práticos decorrem de três grandes o operário aprendia a ler e a contar para entender as breves domínios: o das relações de poder sobre as coisas, o das rela‑ instruções, as peças e os gestos; os contramestres percebiam ções de acção sobre os outros, o das relações consigo mesmo. como liderar pequenos grupos; e, finalmente, a minoria ins‑ Trata­‑se de três eixos dos quais é necessário analisar a especi‑ truída para a alta direcção seguia caminho sob a responsabili‑ ficidade e o enredamento: o eixo do saber, o eixo do poder e dade das universidades e das grandes escolas. o eixo da ética.» O mundo político procurou encontrar estabilidade, embora Para avaliarmos a mudança que resultou do facto de todas sempre a pensar num mundo dividido entre ocidentais (sobre‑ as áreas culturais do mundo terem — até ao século xx e com tudo por então europeus) e «o resto do mundo». Os regimes excepções contadas — começado a falar com voz própria ao políticos mudaram e o liberalismo foi refazendo as estrutu‑ globalismo que entretanto se desenvolvia, podemos partir das ras — com a visão de Filadélfia a servir de referência, mas não reflexões, nem sempre concordantes, sobre o que é a moderni‑ de prospectiva do futuro dos ocidentais —, a modernidade, dade — atitude de pensar e agir, que tem por desafio a descon‑ contudo, parecia não mudar substancialmente as estruturas tinuidade do tempo, a ruptura da tradição, o sentimento de profundas do mundo em que se vivia. A escravatura marcava novidade, a vertigem do que pensar. a continuidade das diferenças entre as etnias; os direitos uni‑ A geração que é hoje chamada a documentar a modernidade versais do homem, proclamando a igualdade entre todos e o que enfrentamos, tendo a experiência e formação da universi‑ direito à felicidade, excluíram negros, indígenas, trabalhado‑ dade como ponto de referência, talvez possa começar por ano‑ res, mulheres; a libertação colonial era uma questão princi‑ tar que o seu tempo de formação correspondeu a um tempo de palmente de europeus emigrados, e não de nativos, como nos glorificação da modernidade — entendida aqui como enqua‑ demonstra o exemplo do Brasil. dramento do mundo, do país e da comunidade nacional, mar‑ Entretanto, duas guerras mundiais, assim chamadas pelos cado pela vida habitual. efeitos, mas na realidade nada mais do que guerras civis de Havia no ensino uma visão — que hoje certamente deverá ocidentais movidos pelos seus demónios interiores, dinamiza‑ ser avaliada por historiadores e filósofos com diferentes crité‑ ram um mundo não previsto pelas instituições desse mundo rios e paradigmas —, que me pareceu sobretudo napoleónica, ocidental, e, durante meio século, a ordem mundial viria a ser cuja versão se manteve após a falhada experiência de organizar definida pela Ordem dos Pactos Militares. uma governança europeia que custou a Portugal três invasões: A 11 de Setembro de 2001, o ataque às torres gémeas de um ensino primário, que deveria habilitar os soldados dos vastos Nova Iorque mostrou que os ocidentais não tinham ganho exércitos com o saber ler, escrever e contar (para entenderem as a Guerra Fria: apenas não a tinham perdido. Os cidadãos dos ordens, contarem os projécteis e as armas); um ensino médio, que EUA, hoje também inquietos pela distância entre as promessas capacitava a dirigir pequenos grupos (e o importante corpo dos de Barack Obama e os passos efectivamente dados, não desis‑ sargentos); um ensino superior, destinado a formar os respon‑ tem de se afirmarem como nação indispensável, detentora de sáveis pela alta direcção (os detentores do saber — estrategas). um interesse nacional permanente, deste modo começando

—18— —19— universidade de lisboa | lições & testemunhos adriano moreira a demonstrar que a erosão dos metais também é uma doença tecnologia, sem valores, produziu no globo. O nacionalismo dos impérios. defensivo cresce contra a sonhada democracia mundializada, O mundo habitual voltou a desaparecer. E ainda que os a informação global produz opiniões públicas frequentemente rituais (como de costume) permaneçam, as balanças de poder sem relação com os factos, provocando conflitos, e as igrejas, — económico, financeiro, científico, militar — individualizam­ institucionalizadas, vêem diminuir o que afirmavam pertencer­ ‑se, tornando difícil a qualquer Estado aceder­‑lhes. ‑lhes. Aumenta, todavia, um apelo descontrolado às transcen‑ A modernidade é, portanto, outra. Os estados, esses, são dências. A confiança entre governantes e governados é abalada coisa diferente da sua invenção, e muitos dão mostras de ten‑ num número excessivo de países. derem para a situação de Estado exíguo, no caso provável de Temos por comprovada a indispensabilidade das universi‑ não encontrarem formas novas de governança. dades para um entendimento da nova e caótica modernidade, As maiores contribuições da ciência para a mudança a que vivemos de forma inquieta. É inquestionável, e é um dever começar, infelizmente, pelo domínio do poder nuclear, encer‑ do Estado, considerar que, seja qual for a evolução da soberania ram uma ameaça final com corolários extremamente inquie‑ na actualidade em que se vive, é um dever garantir­‑lhes a capa‑ tantes. A população mundial cresce, o fosso entre pobres e cidade necessária para darem resposta a esta problemática, ricos aumenta, a fome e a má nutrição inquietam, e o acesso começando por entendê­‑la, tão novo e complexo é o desafio. à educação permite traçar uma fronteira entre o sul e o norte Deve ficar claro que o Estado português sempre precisou do mundo. As megalópoles caminham para 25 (com popula‑ de recorrer a apoio externo (que pode ser uma ordem mundial ções entre 7 e 25 milhões de habitantes), poucos são os países justa e consolidada) para desenvolver os seus projectos estraté‑ que acedem aos resultados de investigações científicas, e a life« gicos. E isto desde a independência. industry» apodera‑se­ do património genético da humanidade. Ter uma parte no Império Euromundista foi conseguido Mais de 50 milhões de pessoas vivem penosamente em campos a duras penas do orgulho nacional, depois da Conferência de de refugiados sem condições. Berlim de 1885. Mas o fim desse Império, que para Portugal O poder da chamada «cultura mundial» afecta o singular e aconteceu em 1974, apenas lhe deixou de amparo a Europa em o universal, os ocidentais dividem‑se­ quanto ao tipo de ordem formação, cujas parcelas abandonou na sua totalidade, ficando que deve imperar no mundo — europeísmo versus america‑ hoje numa situação de dependência crescente. nismo —, a disseminação de armamentos cresce, em muito Os sinais de inquietação evidentes sobre a marcha dessa potenciada pela privatização da segurança e da guerra. nova Europa para a unidade — com uma forma final não defi‑ As finanças e a economia (livres de poderes reguladores) nida — não são tranquilizadores para o pequeno país que somos. conduziram ao desastre económico e financeiro que todo o Partilhamos nesta data os sérios efeitos da crise mundial eco‑ globo enfrenta, sem responsáveis assumidos. Invoca‑se­ uma nómica e financeira, com o valor da confiança atingido, o des‑ ciência que culpa o sistema, mas não a falta de ética — uma povoamento a evidenciar­‑se, nacionalismos a renascerem, por espécie de caos mundial. A natureza manifesta a inquietante vezes sem clara definição, e o assalto desencadeado (e sofrido) ira dos deuses: parece vingar­‑se das agressões que o abuso da na área da dívida — chamada de soberana — a enfraquecer os

—20— —21— universidade de lisboa | lições & testemunhos adriano moreira nossos escassos recursos. O movimento de unidade europeia a implica que a sociedade civil não seja afrontada pela multidão. que assistimos é oposto aos interesses que remetem para a paz Falo de grupos de imigrantes atraídos por uma falsa imagem de e a ordem global. Sem um modelo final (ainda) definido, encon‑ afluência, consumismo e riqueza, a que não foi prestada uma tramos a unidade europeia afectada por derivas nacionalistas, adequada política de acolhimento, de integração e até de assi‑ sobretudo de ordem financeira. milação e de justiça social. A formação científica e técnica é um O primeiro facto a considerar é que a fronteira da pobreza, dever da soberania para reorganizar e integrar a nova moder‑ que apenas no século passado era sempre definida ao sul do nidade. A soberania funcional e cooperativa do século xxi não Sara, ultrapassou o Mediterrâneo e atingiu alguns dos países da consente, em relação à pobreza crescente, que o Estado Social União Europeia, designadamente Portugal. ignore ou diminua a dimensão de tal dever, apoiando projec‑ Não posso evitar recordar que a Alemanha foi por duas tos nos quais nem a iniciativa privada pode ser encorajada. vezes responsável pelas guerras mundiais que liquidaram o A rede pública, que abrange mais do que as universidades e Império Euromundista e que a Europa é hoje uma região politécnicos — porque inclui a valiosa rede militar de ensino dependente de matérias­‑primas, de energias não renováveis e —, existe para ultrapassar a economia da geografia da pobreza de autonomia estratégica alimentar. Seria de esperar que não que se encontra atacada pela ganância mundial, devendo pro‑ retomasse a função perturbadora. Não obstante o recente Tra‑ curar respostas da soberania funcional e cooperativa. Tais res‑ tado de Lisboa ser de leitura difícil e a solidariedade, essa, uma postas têm de residir na nova modernidade que enfrentamos. virtude politicamente variável. Para tanto, é fundamental que a rede nacional seja de uma vez A desordem mundial vem exigir a reforma da Organização por todas racionalizada, libertada dos erros decorrentes da das Nações Unidas (ONU), organismo que não podemos dis‑ espécie de licença sabática a que os governos se entregaram pensar, pois é o único lugar do mundo onde todos falam com durante anos, com suficientes sinais de aviso para que o des‑ todos, mas no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral, cuido seja justificável. ao lado dos grandes países sobrantes e emergentes (China, Esta obrigação deve ser completada pela atenção minu‑ União Indiana, Brasil, Angola), estarão necessariamente orga‑ ciosa e cuidada a uma definição de política que enfrente as hie‑ nizações regionais que procuram suprir as capacidades indivi‑ rarquias internacionais dos estabelecimentos de investigação e dualmente perdidas: a União Europeia é, por agora, o exemplo ensino. Não é uma política de multiplicação descuidada de ins‑ mais adiantado. Mas certamente haverá outros. tituições, nem de incitamento a cisões ou a fundações sem fins Depois disto, Portugal — como todos os países atlânticos lucrativos que poderá responder a esse desafio mundial. Tenha‑ que partilharam o Império Euromundista — precisa de ter, mos como exemplo o resultado das universidades fortalecidas alegar e defender janelas de liberdade. A primeira delas é qua‑ pela unidade e multiplicidade de valências, no que respeita a lificar a sua população, científica e tecnicamente, para intervir tais hierarquizações, para evidenciar qual é a exigência de um numa governança mundial, que terá inevitavelmente de pro‑ país a entrar na geografia da pobreza, para conseguir derivar curar um paradigma comum, de modo a pôr um ponto final para a área da excelência. A aplicação do Acordo de Bolonha, no relativismo destruidor que atinge o Ocidente em geral. Isto a que já vão chamando tratado, precisa de maior rigor, porque

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NOTAS BIOGRÁFICAS

Adriano José Alves Moreira Nasceu a 6 de Setembro de 1922, em Macedo de Cavaleiros. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1944. Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa.

António Lobo Antunes Nasceu a 1 de Setembro de 1942, em Lisboa. Licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em 1968. Escritor.

Filipe Duarte Branco da Silva Santos Nasceu a 15 de Março de 1942, em Lisboa. Licenciado em Ciências Geofísicas pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1963. Professor Jubilado da Universidade de Lisboa.

Francisco José Pereira Pinto de Balsemão Nasceu a 1 de Setembro de 1937, em Lisboa. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1960. Presidente do Conselho de Administração do grupo Impresa. Guilherme Waldemar Pereira d’Oliveira Martins Maria Odette Santos Ferreira Nasceu a 23 de Setembro de 1952, em Lisboa. Nasceu a 4 de Junho de 1925, em Lisboa. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito Licenciada em Ciências Farmacêuticas pela Faculdade da Universidade de Lisboa, em 1974. de Farmácia da Universidade de Lisboa, em 1947. Presidente do Tribunal de Contas. Professora Jubilada da Universidade de Lisboa.

José Manuel Durão Barroso Maria Teresa Pinto Basto Patrício Gouveia Nasceu a 23 de Março de 1956, em Lisboa. Nasceu a 18 de Junho de 1946, em Lisboa. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1978. da Universidade de Lisboa, em 1974. Presidente da Comissão Europeia. Administradora da Fundação Calouste Gulbenkian.

José Mário Monteiro Guedes Branco Nasceu a 25 de Maio de 1942, no . Estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desde 2006. Músico e compositor.

Maria Leonor Couceiro Pizarro Beleza Nasceu a 23 de Novembro de 1948, no Porto. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1972. Presidente da Fundação Champalimaud. UNIVERSIDADE DE LISBOA LIÇÕES & TESTEMUNHOS Foi composto em caracteres Hoefler Text e Goudy Bookletter 1911, e impresso na Guide, Artes Gráficas, sobre papel Coral Book de 90 gramas, em Dezembro de 2013.