O Veludo Selvagem De David Lynch: Recriações Da Estética Surrealista No Cinema E Na Televisão
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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes Mestrado em Multimeios O veludo selvagem de David Lynch: recriações da estética surrealista no cinema e na televisão. Rogério Ferraraz Orientador: Prof. Dr. Ivan Santo Barbosa Órgão financiador: CNPq Campinas – SP 1998 Introdução A escolha da obra do norte-americano David Lynch recai sobre o fato de que nela podemos observar a revalorização das características surrealistas, além de tratar-se de um artista contemporâneo pelo qual ainda não formulamos conceitos históricos estabelecidos. Analisar as práticas de citação, paródia ou pastiche, levando-se em consideração o contexto em que ocorrem essas transposições, permitirá ao trabalho apontar para as inspirações e para as novas significações propostas pelas obras de David Lynch. Com base nas comparações críticas de determinados elementos por nós destacados, buscaremos expor como Lynch atualiza as características surrealistas no cinema e na televisão, tendo em vista paradigmas detectados nos filmes das décadas de 20 e de 30, relacionados com a arte surrealista. Alguns pontos chaves são de extrema importância para elucidarmos as relações existentes entre as obras de David Lynch e dos cineastas surrealistas. Estudaremos como ocorrem essas transposições, tanto na temática quanto na própria estruturação das imagens, na construção do espaço fílmico. Vamos verificar em que medida existem semelhanças em relação ao uso das diferentes figuras de linguagem na construção de determinadas seqüências, ao desenvolvimento de um cinema metafórico por excelência e às conotações e às relações simbólicas trabalhadas pelos surrealistas e provavelmente re-trabalhadas por Lynch no que chamamos de cinema neo-surrealista e em seus trabalhos para a televisão, especialmente a série Twin Peaks. Algumas características surrealistas revistas e atualizadas por Lynch que tentaremos explicitar nesse trabalho são: - A beleza convulsiva, decorrente do encontro de realidades distintas (e muitas vezes conflitantes, conforme o pensamento tradicional) num mesmo espaço; - O amor louco, em que a mulher representa o objeto do desejo (obscuro, para lembrarmos de Luis Buñuel) indecifrável e imprevisível; - O humor negro, com o qual buscava-se criticar e destruir as bases institucionalizadas da sociedade burguesa, como a Igreja, a Família e o Estado. No caso de Lynch, vale ressaltar que ele também promove o ataque aos mitos e aos clichês do cinema hollywoodiano, trabalhando um processo de metalinguagem, ou no mínimo, realizando um cinema repleto de citações, paródias e pastiche. Aliás, fatores típicos da cena cultural em que vivemos atualmente; - O acaso objetivo, tanto na concepção filosófica e temática das obras, como interferindo no próprio decorrer da elaboração dos filmes, o que lhes possibilita novos rumos estéticos; - Junto com o acaso, e até um pouco como decorrência disso, uma valorização muito grande do mistério, mola propulsora das descobertas surrealistas e que em Lynch tende-se mais para o suspense e para uma ambientação de caráter noir e, em certos momentos, até próxima do expressionismo; - Aliado ao acaso e ao mistério, o mundo onírico, em que os sonhos fazem parte do real, acabando assim com os limites e com as barreiras que separam sonho e realidade, afinal nada é mais real que o onírico e nada é mais onírico que o real nos filmes de Lynch (como acontecia também nas obras surrealistas); - A descontinuidade do espaço e do tempo, a não-linearidade, marcas do cinema surrealista que se tornaram recorrentes nos filmes de David Lynch; - A recorrência de elementos bizarros, que tendem ao grotesco, como partes decepadas do corpo humano, insetos, pessoas com deformações (cegos, anões e outros), enfim, elementos que escapam do padrão tradicional e até mesmo o enfrentam. O movimento e a (anti)estética surrealistas O Surrealismo surgiu como um movimento que pretendia negar a estética, os valores estabelecidos de uma sociedade burguesa e burocrática. Primeiramente, as pesquisas plásticas realizadas por pintores desde o início dos anos 20 procuraram uma ruptura completa com as tradições aceitas da expressão artística. Faz-se necessário aqui, ressaltar que o surrealismo teve um movimento precendente que muito o influenciou: o Dadaísmo, que teve início em 1916. Os artistas dadaístas protestavam contra a doutrinação e a favor da negação e da destruição de tudo que era estabelecido: a ordem, as instituições, a estética sedimentada. Os principais nomes ligados ao Dadá foram Tristan Tzara, André Breton, Francis Picabia, Marcel Duchamp e Max Ernst, sendo que Tzara e Breton disputavam a “chefia” do grupo. Da arte dadaísta, vale ressaltar os ready-mades works of art, ou apenas, ready-mades, desenvolvidos por Duchamp, a collage praticada por Max Ernst e a escrita automática, base da produção literária de Tzara, Breton, Picabia, entre outros. Em 1922, porém, começaram os desentendimentos e as desavenças no grupo Dadá. Os insultos tornaram-se constantes entre Tzara e Breton. O Dadá se autodestruía. A fundação do Surrealismo como movimento - na verdade, hoje considera-se que a primeira obra surrealista foi Les Champs Magnétiques, desenvolvida em escrita automática por André Breton e Phillipe Soulpalt, em 1919 - ocorreu nesse mesmo ano, 1924, através da publicação do Manifesto do Surrealismo, escrito por Breton. No Manifesto, Breton afirmava o surrealismo como uma entidade natural, não induzida, renegando, assim, as pesquisas feitas com o uso do hipnotismo e de drogas. Ele elegia, então, o maravilhoso, o inconsciente, o automatismo como características e fundamentos surrealistas. Descrevia o surrealismo como “automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.” Num primeiro momento, influenciados pelas pesquisas de Sigmund Freud, os surrealistas buscaram em suas obras revelar os mistérios do inconsciente humano. Voltados a um processo de descobertas da subjetividade, procuraram expor as faces do eu individual. Encaravam os desejos humanos como determinantes na configuração do mundo. Eles sentiram, porém, a necessidade de situar esse subjetivismo no social, de transformar objetivamente o mundo. Assim, num segundo momento, encontraram nos estudos de Karl Marx um campo vasto para se aprofundarem na questão política do indivíduo inserido em seu meio e superarem o subjetivismo anterior, buscando no materialismo as respostas para as questões sociais do eu. Mesmo com o afastamento de vários artistas, a partir de 1930, por não concordarem com a estreita ligação entre Breton e Trotski e o conseqüente envolvimento político, o Movimento Surrealista, por intermédio de Breton, sobreviveu até dezembro de 1965, quando aconteceu a 11º (e última) Exposição Internacional do Surrealismo, na Galeria L’Oeil, em Paris. Com a morte de André Breton no ano seguinte, o surrealismo se desfez enquanto movimento organizado. No entanto, a arte, a estética surrealista não morreu. Ela continuou viva, influenciando artistas em todo o mundo, afinal os valores estabelecidos pelos surrealistas em suas tentativas de compreender o homem e a realidade ainda estão presentes. Na busca da “objetivação do desejo” no mundo, a arte surrealista foi muito além de sua época. Segundo Sarane Alexandrian, a arte surrealista nasceu da tripla influência das artes visionária, primitiva e psicopatológica. Da arte visionária do século XVI, os maiores nomes foram Hieronymus Bosch (domínio do fantasmagórico) e Giuseppe Arcimboldo (técnica da imagem dupla). Da arte primitiva (oceânica), os surrealistas elegeram a necessidade, observada na maioria das obras, de se pintar aquilo que se crê e não apenas aquilo que se vê. Da arte psicopatológica (a qual os surrealistas foram os primeiros a recorrer), a principal característica era deixar aparecer as mensagens do inconsciente humano. Podemos eleger como valores maiores da arte surrealista a beleza convulsiva, o humor negro, o amor louco e o acaso objetivo. A beleza convulsiva significava aquela que era resultante da oposição de duas realidades distintas na busca da surrealidade. O humor negro objetivava uma espécie de terrorismo contra os valores da sociedade burguesa. O amor louco, pelo qual os surrealistas elegiam a mulher como o objeto do desejo. E o acaso objetivo, que se dava através das relações de coincidências recorrentes na vida. Na pintura, o surrealistas impressionaram por retratarem os estados de alucinação, o encontro de realidades distintas e as imagens oníricas. Entre os maiores nomes da pintura surrealista estão Salvador Dalí, René Magritte, André Masson, Joan Miró, Yves Tanguy, Max Ernst. Os quadros surrealistas exprimiam, de forma marcante, as revelações sobre o desconhecido do universo humano. O Surrealismo e o cinema A relação entre o surrealismo e o cinema foi de atração imediata. O cinema se mostrava aos surrealistas como um meio perfeito de expressar todos os valores aceitos como fundamentais à sua estética, afinal era um meio novo sem o peso da tradição estética das artes antigas. O discurso cinematográfico possibilitava ainda imitar a articulação dos sonhos, a lógica de uma experiência que, retomando Freud, é o “preenchimento do desejo” por excelência. O material cinematográfico (imagens visuais e sonoras) apresentava exclusiva afinidade com o material trabalhado pelo inconsciente. Justamente o que o surrealismo queria expressar. Nessa afinidade encontra-se a via