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| 56 | Esportes > ZERO HORA > DOMINGO | 21 | MAIO | 2006

O sofrimento arrastado da decisão por pênaltis em 94 foi precedido de 24 anos de frustrações e arrancos de angústia a cada Copa. Professor Ruy viajou pelas longas extensões dos Estados Unidos e captou flagrantes desses dias agitados

O pênalti de Baggio Parreira e a desilusão Lugar de nascimento largou a Seleção, não foi Mauro jogou pouco no Brasil, mas jogou outra coisa que fez depois de conseguir o muito, e até demais, na Espanha. E na Seleção de era reconhecidamente em dois tetracampeonato. A Seleção foi criticada até o último Carlos Alberto Parreira, em 94. Foi um jogador jogo, ridicularizada desde as sofridas Eliminatórias, tático, articulação entre defesa e meio- campo, às continentes o melhor jogador de futebol do mundo. acusada de jogar defensivamente. Parreira assumiu vezes mais da defesa, poucas vezes além disso. Sabia jogar, fazia gols e era budista. O mundo das porque Telê Santana se negou a sair do São Paulo. E Aparentemente um jogador redefinido para que uma peça essencial para a maioridade técnica do Jorginho e , os alas, pudessem avançar necessidades se resolvia por meditação e chutes. time fracassou por afundamento emocional, por mais livremente e com consciência menos depressão, por desencontros de pernas. Raí era um pesada. Havia nele, por certo, uma resignação diante das craque mas revelou-se um craque irresolvido. A Agora, não faz um ano, estive conversando com limitações humanas, seus erros e sua ilusões. Baggio Seleção jogaria para favorecê-lo: um guardião das Parreira e falei-lhe da admiração que tinha por costas, o imperturbável , um assessor . foi o último executante dos pênaltis da final. imediato para todas as pequenas causas, . E – E no lugar em que você o colocou – adverti. Buda ensina o silêncio e a harmonia. Baggio dois à frente, o velocista e o rastreador Parreira gostou da observação e fez a última Romário. Além de dois alas constantes e solidários, justiça a Mauro Silva, o terceiro zagueiro móvel. estava à frente da bola e de Taffarel. Homem Jorginho e Branco, até às oitavas-de-final – Ele nasceu para jogar ali. elegante, senhor dos pés. E então chutou, verdade Leonardo, que deu uma cotovelada e foi expulso no jogo contra o Estados Unidos. que na direção do céu, o que poderia ser uma Mas nada fez com que Raí jogasse. mensagem, e praguejou como todo jogador de futebol: Campo mofado – Che merda! Che sfortuna! Detroit era uma marina colorida de barcos e mar azul, e um estádio sem sol, cheirando a DIVULGAÇÃO, BD – 3/7/2001 mofado, escuro e envidraçado, de

FOTOS BANCO DE DADOS nome pomposo, Silver Dome. Foi o empate com a Suécia. Na véspera, Dunga me mostrava a grama úmida e retorcida e já se queixava de que a sensação de campo pequeno (não era e nem podia ser, pela lei, mas a tela ficava em cima) acabaria atrapalhando. Talvez tenha sido essa a razão de tantos problemas no jogo.

Os renegados A Califórnia absolveu os renegados de 90. Taffarel foi impecável, defendeu pênalti decisivo, fez defesas ágeis e precisas, estava completando a mais longa trajetória de um goleiro na Seleção Brasileira. Jorginho e Branco puderam jogar como alas, e Branco fez duas coisas entre muitas inesquecíveis: forçou uma falta holandesa na intermediária e de lá chutou a falta com uma potência e trajetória aberta como nunca ninguém mais faria, e foi o gol da vitória sobre a Holanda, jogo complicadíssimo, até com erro da arbitragem a favor da Seleção. Dunga, mais do que nunca, foi a garantia física, técnica e moral do meio-campo, mas não se falava mais da Era Dunga, ela servira só como deboche em 90.

Edição: Mauro Toralles – Diagramação: Vanessa Cardoso ZERO HORA > DOMINGO | 21 | MAIO | 2006 Esportes > | 57 |

8Ruy Carlos Ostermann

A bicicleta Chapéu de feltro La Piemontese A loja de discos ficava do outro lado da Tenho até hoje o chapéu de feltro que comprei em Tínhamos programado jantar cidade mas estava altamente San Francisco. O sol da Califórnia é intenso, naquela noite numa cantina, La recomendada. Tinha uma lista de CDs de irredutível e longo. Imaginei que um chapéu me Piemontese, em , reputada, jazz e uma boa ansiedade. Convidei mas protegeria e nem por isso me confinaria ao só com reserva de mesa, a cozinha do não encontrei companheiro, fui sozinho anonimato. O meu chapéu não era muito comum, norte da Itália é preciosa. Nem nos dirigindo a caminhonete que tínhamos percebi que servia para distinguir as pessoas. demos conta de que tudo pareceria uma alugado para as travessias até a Na escadinha do Brasília, da Embraer, que era o grosseira provocação, se o Brasil Universidade de Stanford, local dos treinos avião preferido das pequenas companhias que vencesse a Itália na final. Ficou e da estréia. O semáforo era grande e faziam os pequenos trechos aéreos, fui saudado pela combinado que nem em caso de derrota ostensivo e tinha fechado. Andava devagar, moça do escritório de turismo. a cantina seria lembrada. Fizemos bem: parei ao lado de mais três carros. Abriu o – Are you american? soube, depois, que recolheram todos os sinal, o carro do lado se moveu, acelerei – Oh, no – respondi, imitando a negativa clássica. vinhos na adega e congelaram todas as suavemente. E deu-se a batida. Era o chapéu de feltro. massas na certeza de que ninguém Um negro de cabelos brancos saberia se comportar numa noite atravessara com a sua bicicleta. O primeiro daquelas. carro deve ter visto, a mim, não. Fui eu que bati, levemente, mas a bicicleta virou e o homem estava ajoelhado. Desliguei o O chope A cerimônia Bahai motor, queria descer. O motorista do lado fez sinal que não. O ciclista se levantou, Na alfândega do Galeão houve bugigangas demais, Não foi e foi invenção do Ranzolin. Ficamos em San ajeitou a bicicleta e atravessou a avenida de só justificadas pela euforia consumista da delegação José, na Califórnia, num albergue administrado por cabeça baixa, sem olhar para trás, sem do Tetra e a sensação de impunidade que a todos sisudos cavalheiros e discretas senhoras da seita Bahai. dizer nada. Estava com frio e assomou. O presidente Ricardo Teixeira, que estava Era um prédio baixo, com pudico jardim na frente envergonhado, me comportei como um inaugurando uma choperia, Le Turf, porque junto ao aberto por um caminho de pedras. Os quartos eram No próximo norte-americano, mas com a insegurança prado, embarcou todos os apetrechos em muitas limpos, a roupa de cama limpíssima, café da manhã sábado, a Copa de e o medo do estrangeiro. Na loja de discos caixas e foi barrado pelas autoridades. Explicou-se com donuts, e o silêncio a partir do início da noite era 1998, na França fiquei sentado um bom tempo sem fazer depois, deve ter pago alguma taxa de importação. O quase reverencial. E tinha a cerimônia religiosa que não nada. Ou por outra: me roendo por dentro. Le Turf funciona com chope privativo nas mesas. se podia negligenciar. Pelo contrário: purgados, cabeça baixa e pés juntos, numa imobilidade cúmplice, assistimos a várias cerimônias. E fomos cumprimentados. JEFFERSON GONZALES, DIVULGAÇÃO, BD – 5/6/2001