<<

GT- Artes visuais Eixo Temático- 6 Cultura visual e ensino/aprendizagem em artes visuais

OS ARTISTAS MACCHIAIOLI COMO EXERCÍCIO PARA UMA LEITURA DA OBRA DE ARTE

Maria Cristina Blanco1 Universidade de São Paulo – São Paulo-Brasil

Resumo Este trabalho teve como objetivo elaborar reflexões que colaborem com estudos sobre um tema de importância para o ensino da arte: a leitura da obra de arte. Nesses estudos, bastante abordados por teóricos da História da Arte e da Arte-educação, encontra-se vasta bibliografia tanto nacional como estrangeira. Para elaborar tal estudo, pensamos em analisar uma obra de um artista italiano pertencente ao denominado grupo Macchiaioli, que foi importante na representação do chamado Movimento Impressionista e tão esquecidos pela História da Arte. Pensou-se em estudos da leitura da obra baseados em teorias da Retórica (Aristóteles) como também conceitos semióticos que nortearam essas atividades

Palavras chave: Leitura da obra, História da Arte, Artistas Macchiaioli.

THE MACCHIAIOLI ARTISTS AS EXERCISE FOR ART WORK READING

Abstract

This work has the goal of elaborating reflections which can collaborate with an important topic in art teaching: the artwork reading or analysis. In these studies, greatly approached by and art education theorists, there is a vast bibliography both national and international. To elaborate such a study, we thought of analysing a work by an Italian artist belonging to a group called Macchiaioli, which was important in representing the and which is also neglected by . It was

1 Estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação da Escola de Com. e Artes da Universidade de São Paulo.

837 also thought of reading studies based on the theory of rhetoric Aristóteles, as well as of semiotic concepts which could guide these activities.

Keywords: artwork reading, History of Art, Macchiaioli artists.

1.1 Introdução Sobre os estudos leitura da obra de arte e suas diversas naturezas

A leitura da obra de arte é produzida em uma situação de encontro, quando é possível o desdobramento em situações de encantamento, de dúvidas, de aflições compartilhadas; quando é possível descobrir, conhecer e criar. Esse encontro pede sujeitos presentes, abertos e disponíveis a transformações.

Maria Christina Rizzi

A leitura da obra de arte é abordada de diversas formas por seus mais variados autores que as compõe. Cada autor estabelece seus critérios de escolhas teóricas para compor seus estudos sobre o tema. No campo da arte-educação, por exemplo, nota-se a presença de diversos autores estrangeiros trazidos pela professora e pesquisadora Ana Mae T. Bastos Barbosa, (BARBOSA, 1999), que colabora de forma significativa com propostas educativas no ensino da arte, tanto em escolas como museus. A pesquisadora buscou nos arte-educadores norte- americanos, assim como em outros estudiosos dessa área, a presença de estudos sobre a aprendizagem da arte dentro de um aspecto social e antropológico. Descobriu assim a presença de estudiosos que entrelaçam suas atividades de leitura da obra com antropologia, caso de Edmund Burke Feldman (1970). O pesquisador Robert W. Ott, em seu trabalho de educação em museus, destaca a importância da leitura da obra, Com atividades em conjunto com as visitas aos museus e o desdobramento dessas ações em direção ao fazer artístico em ateliê. David Thistewood destaca a relevância social na aprendizagem da arte dentro da escola. Nessa obra2 a preocupação com o ensino da arte e a leitura das obras está ligada prioritariamente à arte na educação escolar.

2 Livro referido: Arte-educação: uma leitura no subsolo. BARBOSA, Ana Mae. Ed. Cortez. São Paulo. 1999.

838 Consultando-se a bibliografia relativa à área verificou-se que há vários termos que fazem parte do universo da leitura da obra como, por exemplo: “definição de imagem”, “interpretação da imagem”, “maneiras de ver”. Os estudos com bases nessas leituras apontam a contribuição nas áreas de história da arte/ estética, filosofia, ciências sociais (na qual dois dos campos abrangentes são a sociologia e a antropologia social), psicologia, assim como a forte contribuição da física no campo específico da óptica, destinada à percepção das imagens.

1.2 Sobre tempo e os escritores de análise de obras

A análise da obra de arte constitui uma tarefa árdua, sabendo-se que para tanto é necessário levar em conta diversos fatores, como por exemplo: quem as produziu, quando, como, em que local, a que sociedade pertenceu, que tipos de valores e hábitos essa sociedade possuía. Enfim, não constitui uma boa leitura de obra o exercício que não levar em consideração esses aspectos. Um fato bastante recorrente nas análises de obra de arte é a leitura destes objetos artísticos a partir de um “lugar comum” (HANSEN, 2012, p 159). Porém, ressalva o autor que os conceitos retóricos se manteve com muitas diferenças desde os gregos do tempo de Platão e Aristóteles, até a revolução romântica na segunda metade do século XVII, “lugar-comum” tinha outro significado:

Antes de tudo, como disse Cícero no século I A.C., repetido por Erasmo de Roterdã no século XVI, o lugar era como um molde definido como “sede do argumento”, que memorizava e que se aplicava para falar e escrever bem. O uso do lugar como molde era comum, como repetição partilhada coletivamente; mas a repetição não era mecânica como a do clichê na impressão, mas uma variação elocutiva feita como emulação de discursos que já tinham usado os lugares que eram repetidos na nova situação. (HANSEN, 2012, p 160).

Portanto, como menciona o autor, é necessário examinar a expressão, de acordo com o período a que se refere o termo específico, entre os dos séculos XVI e XVII, e esse o significado dos termos pode variar de forma considerável. Analisar as obras de determinados pontos de vista “particulares” acarreta erros crassos na interpretação das mesmas. É importante sempre levar em consideração o conjunto

839 de informações necessárias para que não haja distorções nessa atividade tão importante no campo da história da arte e crítica.

Quando se fala, por exemplo, dos trabalhos de artes das academias de Belas Artes brasileiras, sabe-se que grande parte desses artistas desenhava os modelos baseados em outros artistas que deixaram seus escritos pela história. Um exemplo é o livro Epitome de anatomia relativa às Bellas Artes seguido de hum compêndio de phycologia das paixões, organizado por Félix-Émile Taunay, de 1837, oferecido aos alunos da Imperial Academia das Bellas Artes do Rio de Janeiro (DIAS, 2006). Segundo a autora, o livro:

Era um compêndio de teorias artísticas relativa à anatomia, organizado e traduzido por Taunay, publicado em 1837. O Epitome era um complemento fundamental às aulas de modelo vivo e de anatomia implantadas e desenvolvidas neste período. Baseavam- se nos principais tratados artísticos utilizados na academia francesa desde o século XVII. Era composto apenas de textos referentes às obras citadas e não apresentava imagens; os alunos deviam recorrer aos originais para a análise das pranchas. (DIAS, 2006, p. 84) 3

O livro Epitome, divide-se em duas partes, a primeira referia-se à osteologia e a segunda à mitologia. Os textos originais vinham da obra Abregé d’anatomie, accommodée aux arts de peinture et de sculture, cuja autoria era de François Tortebat e Roger de Piles, publicado em 1668. A segunda parte correspondia aos estudos da fisiologia das paixões de Charles Le Brun, presente em L’Expression Génerale et Particuliere. E a parte final do livro refere-se a verbetes sobre as proporções gerais de autoria de Aubin-Louis Millin, presente em seu Dictionnaire des Beaux-Arts, publicado em 1806 (DIAS, 2006, p. 84). Nessa mesma parte do livro Epitome, de Félix-Élime Taunay, é composta pela “Physiologia das paixões”, de Charles Lebrun. Esses desenhos referem-se às expressões humanas provenientes das paixões da alma. No que diz respeito à Physiologia das paixões, explica, DIAS, 2006:

Como a própria obra cita, a tradução provém dos escritos de Charles Le Brun contidos em sua Conférence sur l’expression

3 DIAS, Elaine. O Epitome de Anatomia de Félix-Émile Taunay, 1837. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 1, p. 83-96, 2006.

840 génerale et particulière, de 1668. A conferência fazia parte, outros- sim de um programa didático e não menos intelectual promovido pelo diretor da Academie Royale de Peinture et de Sculture, Charles Le Brun, responsável pela organização didática da instituição recém formada sob o domínio de Luís XIV. Era, portanto, mais uma expressão de poder real, o qual se estendia a uma série de outras instituições também criadas sob a investidura do ministro Colbert [...]. (DIAS, 2006, p. 86).

Além dessas questões relacionadas ao surgimento dos tratados deste período, a autora Elaine C. Dias, relata em sua publicação, O Epitome de anatomia de Félix-Émile Taunay, 1837, de onde provêm as ideias deste livro. Segundo a autora, a principal fonte de leitura na qual Taunay baseou -se foi Traité dês passions de René Descartes. Escrito no ano de 1649, e também a obra Charactères des passions, do médico Cureau de La Chambre, publicada em 1640.

A questão que se coloca agora é analisar estas imagens, a partir de ensinamentos retóricos dentro das perspectivas do século XVII, estudadas e desenhadas para fins de ensinamentos nas Academias de Belas Artes Brasileiras. No entanto, é explicado através da publicação de Eliane C. Dias, que a própria obra Epitome, de Taunay, sofre adaptações quanto às formas de expressão como, por exemplo, o desdobramento de algumas delas. A prancha Compassion (Figura 1) sendo nesse caso a “compaixão”, não existia na edição original com este nome (na versão de Audran consta como “paixão”). Esta figura foi incorporada por Taunay na versão do Epítome de 1837.

Fig. 1 – Compassion, (paixão) da série Physiologia

das paixões

841 Há uma leitura interessante, feita por DIAS, (2006), sobre algumas destas feições desenhadas para compor o livro: “A contração dos músculos da testa e o movimento do nariz, a abertura da boca e dos olhos, a posição da pupila e, principalmente, a elevação das sobrancelhas constituem as características principais da “construção” da paixão nas figuras”. (DIAS, 2006, p. 88). Essas figuras serviram de base para os ensinamentos dos pintores da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Dessa forma, quando se analisa hoje uma pintura na qual foi feita por um artista dessa escola, não seria correta (ou mesmo não se aplicaria) a análise da imagem com bases nas compreensões contemporâneas das feições humanas. Durante o século XVIII, as escolas de Belas francesas e inglesas baseavam-se seus estudos nesses conceitos de construção e interpretação das imagens.

Os estudos a respeito de leitura de obras de arte é um assunto vasto e precisa de pesquisas mais aprofundadas nesta área. Trata-se de uma pesquisa que exige uma “imersão” no tema, sendo estes estudos apenas um recorte desse tipo de pesquisa na vastidão das investigações nacionais. E o presente artigo versa estudos que irá colaborar no espoco da minha pesquisa de doutorado.

2.0 Sobre os Macchiaioli e algumas leituras de obra

Na tentativa de romper os laços do academicismo das Escolas de Belas Artes francesas, as escolas europeias de pintura dos séculos XVI e XVII reinventam a pintura no século XIX. Com isso diversos grupos como, por exemplo, os artistas do conhecido movimento Impressionista, tentam de certa forma mudar o destino do estilo de pintura europeu, pois não desejavam somente a mudança de estilo, mas também toda uma concepção temática da pintura.

Um dos motes estudados foi o grupo de artistas que são conhecidos como a geração dos Macchiaioli, (Itália), que de certa forma questionou e colocou em “cheque” os padrões da pintura acadêmica. Assim, traz-se o assunto à tona, elaborando uma breve contextualização deste grupo de artistas e intera-se a isso uma proposta de estudo inicial sobre leitura de obra de um dos pintores desse grupo. A história da arte italiana no século XIX, segundo Boime (1986, p. 33) pode

842 ser pensada como uma espécie de diálogo entre a sociedade e a natureza4. Completa o autor afirmando que esse diálogo artístico foi feito pelos pintores, através de uma série de escolhas dentro dos limites impostos pela natureza e os contrastes sociais da época, ou seja, o período que foi denominado pelos historiadores como o Risorgimento Italiano. Segundo Smith (1986, p. 28), o termo risorgimento, provém da palavra “renascimento”, ou mesmo “ressurreição”, e foi adotado pelo povo italiano durante a reestruturação de uma Itália dividida, por volta dos anos quarenta do século XIX, Tinha como esperança maior a unificação nacional que iria recuperar o lugar de uma vanguarda na civilização ocidental. Palavras essas um tanto enganosas, pois se a Itália foi vanguardista no passado, a pergunta que se faz é: porque esse fator em especial a tornaria novamente “vanguardista”? Completa Boime (1986) sobre a relação entre Resorgimento e a formação do grupo Macchiaioli:

The Macchiaioli painter, who emerge from the political and cultural background know as the Risorgimento, reveal in their work a rich succession of layers of this landscape and portray the ways Italians of that time tried to shape and meaningfully inhabit their emerging national space (BOIME, 1986, p.33).

Ainda sobre o papel cultural destaca:

The designation of the painters in this exhibition as “Macchiaioli” is a concept inseparable from the evolution of the Risorgimento. I maintain that the group label carried a progressive political signification no less critical to its program than its aesthetic and cultural meanings (Idem, p. 36).

Além dessas questões políticas e sociais que envolvem os Macchiaioli, há as questões estéticas de uma nova representação calcada em estilos próprios de cada pintor. O significado de “macchia” pode ser entendido de diversas formas, como por exemplo: a própria palavra “mancha”, “esboço” ou mesmo “denso”. De certa forma existe, em algumas disponibilidades via meio eletrônico, aqueles que nomeiam o grupo de pintores italianos como possuidores de um estilo “naturalista”

4 O autor, nesse caso, reporta-se à “natureza” como as atitudes “naturais” das escolhas temáticas das obras dos Macchiaioli. E, de certa forma, considera somente estes dois fatores (natureza e transformações sociais) nesse texto.

843 5, ou seja, subentendem a pintura desses artistas sob um único ponto de vista do senso comum, isso é na verdade afirmar que eles escolhiam seus temas baseados nas ações naturais da vida.

O que se percebe é o fato de que o conjunto da obra realizada em toda a extensão do território italiano proporciona uma riqueza de estilos e temáticas de suas pinturas, tendo assim uma grande variedade de assuntos por retratar em forma de pintura. Os fatores que colaboraram para que esses grupos tivessem estilos diferentes são devidos, também, às diferentes formas que cada região adquiriu seus conhecimentos. Em Nápoles, por exemplo, existia um grande grupo de aristocratas franceses e ingleses, que se incumbia de selecionar alguns pintores italianos e simplesmente patrocinavam um “tour” por parte da Europa, e isso incluía a Itália, onde era promovida a pintura de paisagem e a aprendizagem dos diferentes espaços físicos e sociais desse país. Um desses passeios pelo conhecimento da pintura ocorreu na Escola de Posillipo, na França. O pintor Giovanni Signorini desenvolveu uma série de pinturas urbanas na região da Toscana, essas pinturas eram geralmente encomendadas pela aristocracia da região. Uma delas é a Corsa dei cocchi, feita no ano de 1840, que retrata uma corrida de carruagens, para os festejos do dia de Santa Maria Novella, que se passou na Praça Santa Croce.

O que torna tão especial estas imagens, feitas pelos artistas italianos do século XIX, não é somente a riqueza estética que se apresenta, de maneira a enriquecer os olhos e emoções do espectador, mas a obra dos pintores Macchiaioli possui uma carga rica de informações, com o poder de disseminar imaginação e conhecimento e, em especial, o universo da arte-educação, tão preocupada no campo da leitura das imagens.

2.1 Sobre leitura de imagens

A leitura e interpretação de imagens de diferentes naturezas devem ser respeitadas dentro de seus ideiais e objetivos em que foram criados. Penso que os

5 Vídeo gravado e publicado no Youtube, no ano de 2009, por ocasião da Exposição “Il Nuovo dopo La Macchia”, dito por Tiziano Panconi (curador). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zAypaI5t-1Q. Acesso em: 08/03/2013.

844 diferentes tipos de imagens da arte que nos são apresentados pedem diferentes formas de leituras. Citam-se aqui as fotos de produção denominadas “artísticas”, ou seja, feitas com propósitos estéticos diferentes das obras de arte. Essas imagens não podem ser interpretadas da mesma maneira que as pinturas ou esculturas. A imagem publicitária, por exemplo, que por mais “artística” que possa parecer, possui uma linguagem de comunicação específica.

As questões que se colocam agora são: De quais imagens estamos falando? Que sistema de leitura de imagens adotar? Deve-se criar sistemas diferentes de leituras para objetos de artes de naturezas diferentes? Acredito, neste estudo inicial que cada objeto pede uma leitura específica. Por exemplo, a pintura, a gravura, o desenho, um objeto etnológico, precisam de seus sistemas próprios de leitura. E nesses termos não há uma verdade absoluta, um critério ou sistema único para ler as imagens no universo da arte.

Trazemos aqui uma das formas que possibilita a leitura e interpretação das imagens, seria esta a teoria da semiótica, aplicada em seu ensino ou mesmo na interpretação das imagens. Umberto Eco, (1979) inicia seu livro A Theory of Semiotics dizendo que seu estudo sobre o tema explora a possibilidade teórica e a função social que aproxima uma unidade a todo fenômeno de significação ou de comunicação, o autor justifica que tentou elaborar a Teoria Geral da Semiótica, e que estes estudos talvez sejam suficientes para compreender alguns casos que ele chamou sign-function, em alguns termos de sinais que se apresentam ocultos para elementos correlacionados por um ou mais códigos. Umberto Eco divide sua Teoria Geral da Semiótica em dois subgrupos de estudo: Teoria dos códigos e teoria de produção de sinais. O autor conclui:

A large range of phenomena such as the common use of languages, the evolution of codes aesthetic communication, different types of interactional communicative behavior, the use of signs in order to mention things or states of the word and so on. (ECO, 1979, p 3).

Essa teoria do pensamento semiótico instiga a pensar que o desvelamento dos signos depende de uma série de fatores como, por exemplo, sociais, comunicacionais e culturais, que podem colocar em jogo as práticas de

845 interpretação dos símbolos. Acredita-se que um sistema de leituras de imagens pode ser estabelecido a partir de diversas análises de estudos neste campo, mas se faz necessário criar critérios para aproveitar ‘o que’ e ‘como’ cada sistema pode colaborar na leitura e interpretação das imagens.

Já o pressuposto retórico calcado nos estudos iniciais de Aristóteles também possui uma gama rica de objetivos que orientam aquele que ensina arte, a guiar o pensamento de forma concisa e organizada. O estudo analisa os aspectos concernentes do discurso que devem ser tratados. Desta forma, criam-se três grupos para organizar o discurso: 1º- Natureza do assunto - de onde provêm as provas, 2º- Disposição dos elementos- relativo à expressão enunciativa e o 3º- Aspectos respeitantes da enunciação - diz respeito à forma como convém forçosamente organizar as partes do discurso.

Os estudos originais de Aristóteles parecem tratar da Teoria Retórica, aplicada às artes da literatura e às artes teatrais. No caso do presente estudo ler- se-á obras de arte. Os três tópicos citados acima, de fato ajudam a direcionar melhor o discurso para aquele que explana sobre a arte. Esse sistema permite a categorização e ordenação das ideias de modo que possibilita àquele que “ouve”, compreender com clareza suas explanações. Existem diversas categorias subdivididas na poética de Aristóteles, que elucidam todo um sistema de interpretação de obras de arte.

O tópico que mais atenção chamou a esta pesquisa, foi a qualidade do enunciado: a clareza, presente no segundo item, chamado disposição dos elementos. Sendo este item, a clareza a principal norteadora das explanações na mais simples forma de leitura de obra. Segue o trecho enunciado por Aristóteles em sua obra Poética:

Se o discurso não comunicar algo com clareza, não perfará a sua função própria. E ele nem deve ser rasteiro, nem acima do seu valor, mas sim adequado. É verdade que o estilo poético não será porventura rasteiro, mas nem por isso é apropriado a um discurso de prosa. Por seu turno, entre os nomes e os verbos, produzem clareza os que são “próprios” ao passo que outros tipos de palavras, que

846 foram discutidos na Poética, produzem não um estilo corrente, mas ornamento. (ARISTÓTELES, 2006, p. 244-245).

Foi organizado um enunciado em forma de leitura de obra, da pintura: Il 26 aprile, realizada em 1859, pelo pintor Macchiaioli, . Essa leitura tentou elucidar o pensamento de uma pintura que diz respeito à preparação de um símbolo nacional, uma bandeira italiana, que surge como representante de um momento de mudanças sociais e políticas para a época, pois é neste momento que a Itália correspondeu à unificação, ou o período conhecido como Risorgimento italiano. E dentro o bojo das questões da arte italiana em transformação no século dezenove, levou a uma sociedade de informações artísticas, estas que foram parcialmente esquecidas pelos historiadores da Europa Central.

3.0 Modo de ler obra - Macchiaioli

A pintura apresenta uma jovem, sentada em um quarto, no qual foi escolhido para realizar seu trabalho de costura (fig.4). Esta jovem sentada em uma cadeira próxima à janela, que se encontra aberta por completo, trabalha muito concentradamente. Ela aproveita a luz que banha o interior do quarto, permitida pela janela aberta posicionando-se lateralmente em relação à iluminação propiciada pelo feixe.

Fig. 4 - Obra: Il 26 aprile, 1859, Odoardo Borrani6

6 BOIME, Albert. The Art of the Macchia and the Risorgimento- Representing Culture and Nationalism in Nineteenth-Century . Chicago and London . The University of Chicago Press. 1993.

847 Apesar de existir um nicho na arquitetura, onde se encontra a janela, talvez pelo fato de ser a parede de larga espessura; este “nicho” parece conduzir a luz sobre o rosto e as mãos da costureira. No interior do cômodo a luz que adentra o local, parece estar a 57 graus, segundo a dica que é pela divisória de luz e sombra colocada pelo pintor na parede, de um azul da Prússia, bem acrescido de preto, salmão, brancos e toques de marrom siena. Essa mesma luz que aparece no chão da pintura revela a refração da imagem presente no vidro da folha da janela, que nos parece ser o conjunto de telhas da casa externa ao ambiente retratado pelo pintor. Nas bordas desse piso, existe a presença de reflexos de “azul” da parede (ou será as marcas do tempo de um piso rústico, desgastado por um “excessivo passar” ou mesmo a falta de restauro dele?).

A cadeira na qual a costureira está sentada (em sua beirada, devido às vestimentas do saiote da época) recebe o mesmo feixe de luz que banha a jovem. A luz organizada pelo pintor na superfície da madeira de entalhe, presente no encosto, permite a revelação da riqueza do trabalho artesão, tanto nas ripas laterais, quanto nas duas ripas centrais responsáveis pela junção das outras duas. A costureira parece bem concentrada em seu trabalho. A sua lateral direita aparece em seu rosto um reflexo vermelho proveniente do tecido vermelho que se encontra em seu colo. O momento exato da representação da jovem provavelmente é aquele trabalho árduo de colocar a linha no olho (ou mais comumente conhecido como buraco) da agulha. A luz que entra pela janela ilumina os objetos do ofício de costureira, como a tesoura, o dedal, o carretel de linha vermelha e a almofada de alfinetes, que se encontram sobre uma pequena mesa de apoio. A mulher, segundo o texto de Durbé (ET al. 1986), costura a bandeira da Itália, formada por três cores apresentadas no tecido que se encontra na pintura: vermelho, branco e verde. Ao ser encomendada a costurar os tecidos para formar a bandeira italiana, certamente lhe deram o mastro que se encontra apoiado na parede ao fundo do cômodo, quase ao lado da janela. A bandeira que a mulher costura provavelmente faz menção ao dia após 26 de abril, data em que o Duke Leopoldo II pressionou o povo toscano em decorrência de interesses políticos e que teve nessas ações um movimento contrário a ele que provocou sua queda do poder. Certamente a comemoração sob este fato de luta popular está por vir. Segundo Durbé, (1986), o

848 pintor neste caso recorda a tradição da pintura histórica, como a representação monumental dos ambientes de interioranos. Entretanto, a obra 26 de abril (1859), diverge da tradição não retórica e não idealizada da forma de que cada opinião política é expressa, a força do desenho provém da autenticidade da vida cotidiana.

A janela, responsável pela entrada de luz natural, divide os ambientes interno e externo da tela, que possibilita a iluminação parcial do espaço. As duas folhas do artefato de entrada de iluminação do projeto arquitetônico são formadas por uma peça de madeira em tábuas cheias e uma segunda em moldura de madeira e vidros. Percebe-se nesse vidro a ideia de paisagem externa refletida neles em forma de mancha, ou seja, a “macchia”. Um cilindro de madeira faz o papel de parapeito de segurança na janela. Na fresta da janela que resta ao olhar do observador sobra-lhe a imagem de um telhado, provavelmente efeito de telhas cerâmicas ao qual a mancha faz o trabalho de nublar os tons de marrom da superfície para dar uma ideia de profundidade, a mesma imagem que é refletida no chão do quarto.

Se pensarmos de maneira a interpretar a técnica nesta obra, como poder-se- ia elaborar essas questões? Talvez as perguntas a fazer seriam: Qual é o papel da “macchia” nessa pintura? Como o artista representou os espaços e objetos da pintura com esta técnica? Coisas para supor: O pintor elaborou o desenho, ou não, antes de realizar esta pintura? Coisas que o olho não vê: O pintor preparou algum tipo de fundo nesta tela? Quais as questões sociais e políticas que as explanações desta obra podem suscitar? E pensar também: Como explicar ou mesmo ajudar as crianças e adolescentes a lerem esta obra?

4.0 Considerações finais

Todo sistema de interpretação de obras exige, daquele que é orador, uma gama enorme de conhecimento em história, sociologia e estilística da arte. Não se faz tarefa fácil ler obras de arte, tanto da arte contemporânea, como a chamada por alguns escritores como: “arte da tradição”. Sendo essas as que talvez exijam uma dedicação e estudo maior nas responsabilidades sobre sua compreensão e elucidação dessas imagens. Faz-se necessário analisar a sociedade que a

849 produziu, onde, como e em quais circunstâncias, quais eram os conceitos e termos utilizados na época específica em que elas foram produzidas. É preciso estar atento para contribuir com informações verdadeiras para aquele a quem se explana, tornando assim, a leitura de obras uma atividade séria, competente e que possa colaborar na compreensão das obras.

Referências

ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 2006.

BARBOSA, Ana M. Arte-Educação: leitura no subsolo. São Paulo: Ed. Cortez. 1999.

BOIME, Albert. The Macchiaioli and the Risorgimento. IN: DURBÉ, Dario, Et AL., The Macchiaioli, painters of Italian Life. Edith Tonelli Hart and Katherine Hart. Los Angeles. University of California. 1986.

DIAS, Elaine. O Epítome de Anatomia de Félix-Émile Taunay- 1837. v-1. Rio de Janeiro. Revista de História da Arte e Arqueologia. p. 83-96.

ECO, Umberto. A Theory of Semiotics-Advanced in Semiotics. Indiana. University Press. 1979.

DURBÉ, Dario, Et AL., The Macchiaioli, painters of Italian Life. Los Angeles. Edith Tonelli Hart and Katherine Hart. University of California. 1986.

FELDMAN, Edmund Burke. Becoming human throught Art. New Jersey. Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1970. 389 p.

HANSEN, João Adolfo. Lugar comum. IN: MUHANA, Adma; LAUDANNA, Mayra; BAGOLIN, L. Armando. Retórica. São Paulo. Annablume; IEB, 2012.

HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. Versão 1.0 5ª Ed. . Instituto Antonio Houaiss. Ed. Objetiva. 2002.

OTT, Robert W. Ensinando crítica nos museus. In: BARBOSA, A. M. Arte- Educação: leitura no subsolo. São Paulo: Ed. Cortez. 1999. p. 113-141.

850 RIZZI, Maria Christina de Souza L.; Leitura de obras de arte: compartilhando alguns conceitos e reflexões. IN: TOZZI, Devanil; COSTA, Marta Marques; HONÓRIO, Thiago. Educação com arte. São Paulo: FDE – Diretoria de Projetos Especiais. 2004. p. 15-29.

SMITH, Denis M., and the Italian Risorgimento. IN: DURBÉ, Dario, Et AL., The Macchiaioli, painters of Italian Life. Edith Tonelli Hart and Katherine Hart. Los Angeles. University of California. 1986.

TAUNAY, Félix-Émile. Epitome de anatomia relativa as Bellas Artes. Rio de Janeiro .Tipographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Comp., 1837.

THISTEWOOD, David. Estudos críticos: O museu de arte contemporânea e a relevância social. IN: BARBOSA, A. M. Arte-Educação: leitura no subsolo. São Paulo: Ed. Cortez. 1999. p. 143-158.

Currículo do autor

Maria Cristina Blanco – Mestre e Doutoranda em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Sua área de investigação consiste em Arte-educação, educação em museus, história da gravura e formação de professores. Investiga na sua pesquisa de doutorado aprofundamentos da Leitura da obra de arte e estruturação de material didático para formação de professores online, para o museu Casa da Xilogravura de Campos do Jordão. A pesquisadora faz parte do projeto. Atualmente leciona a disciplina de Artes na Rede Estadual de São Paulo e no ensino superior na Faculdade Anhanguera.

851