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Universidade Estadual De Campinas Instituto De Filosofia E Ciências Humanas

Universidade Estadual De Campinas Instituto De Filosofia E Ciências Humanas

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA LUIZA MORAES PATRÃO

PELO DIREITO AO CAMINHAR NÃO ESTRANHADO

CAMPINAS 2015

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Patrão, Ana Luiza Moraes, 1979- P274p PatPelo direito ao caminhar não estranhado / Ana Luiza Moraes Patrão. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

PatOrientador: Arlete Moysés Rodrigues. PatTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Pat1. Sociologia urbana. 2. Capitalismo. 3. Espaços públicos. 4. Caminhada. 5. Alienação (Filosofia). I. Rodrigues, Arlete Moysés,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: For the no estrangement right Palavras-chave em inglês: Urban sociology Capitalism Urban space Walking Alienation (Philosophy) Área de concentração: Sociologia Titulação: Doutora em Sociologia Banca examinadora: Arlete Moysés Rodrigues [Orientador] Amelia Luisa Damiani Ana Paula Casassolo Gonçalves Jesus José Ranieri Ricardo Luis Coltro Antunes Data de defesa: 11-12-2015 Programa de Pós-Graduação: Sociologia

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos Trabalhos de Defesa de Tese composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 11 de dezembro de 2015, considerou a candidata Ana Luiza Moraes Patrão aprovada.

Profª Drª Arlete Moysés Rodrigues ______

Profª Drª Amelia Luisa Damiani ______

Profª Drª Ana Paula Casassolo Gonçalves ______

Prof. Dr. Jesus José Ranieri ______

Prof. Dr. Ricardo Luis Coltro Antunes ______

A Ata de Defesa, assinada pelos Membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

Dedico este trabalho à Isa e ao João, meu esteio nessa longa caminhada.

AGRADECIMENTOS

A uma sociedade onde o caminhar seja a expressão da omnilateralidade humana.

Como transmitir em poucas palavras um agradecimento sincero e caloroso aos que estiveram ao nosso lado, ou mesmo aos que passaram brevemente por nossas vidas, nessa longa, árdua, mas também instigante jornada “doutorática”? Creio que seja impossível. Por isso, me resta apenas rememorar alguns nomes de pessoas e lugares importantes em minha vida, que me fizeram, apesar de inúmeros vacilos, amadurecer e não desistir, com o risco de me esquecer de citar nomes, que certamente me apoiaram com generosidade, transmissão de conhecimento, paciência, comprometimento político, cuidado e carinho. Agradeço profundamente à minha orientadora, professora Doutora Arlete Rodrigues, por todo o acima exposto. Que orgulho de ter tido a oportunidade de aprender e trocar, em todos os níveis, com você. Agradeço, também, com todo o meu coração, à minha família, por seu amor incondicional. Isa, João, Nilda, Mauro e Rafael, vocês são meu Norte! Sem o apoio e o “empurrãozinho” de vocês, nenhuma das linhas do texto abaixo seria possível. Um agradecimento, também especial, ao meu companheiro Omar Escamilla. Se a vida fosse tão previsível, seguramente não estaríamos hoje juntos! Quantos desencontros para nosso belo reencontro! Você foi imprescindível para a conclusão desse projeto. Ao Rodrigo Araújo Magalhães, com quem tanto aprendi. Aos queridos amigos que tanto me acolheram: Aldeci, Dona Antônia, Bené, Eduardo, Thiago, Rosane, Sônia, Priscilla, Patrícia e família, Berti, Leni, Antônio Carlos, Luciana, Antônio Balbino, Nivaldo, Marli, Walkyne, Telmo, Ivone, João, Alexandre, Telma, Regina, Ofélia, Ana Teresa, Jean, Sabrina, George, Sabrina, Emerson, Edson, Edvair, Perla. À sangha da Casazen, especialmente à monja Magda Gyoko-Em, por toda a dedicação e ensinamentos. Aos companheiros da Uruma-kan. Ao Cineclube Espaço Aberto. Ao Eugênio e à cerâmica, arte milenar e alquímica. Ao Antônio Rabelo, por me ensinar a experimentar! Ao México e aos amigos mexicanos, em especial a Irma, Felipe, Ulises, Deborah, Luca e Ingrid, pela afetuosa acolhida. À Fela, por tantas alegrias e amor que trouxe a nossas vidas! A Miguel Angel, David, Marlen e Adrian, pelo apoio imprescindível! Ao Rodrigo Dantas, pela leitura atenta e comentários preciosos sobre a tese. Ao Vinícius Oliveira Santos, o Xegado, pelo diálogo qualificado. Quantas coisas aprendi! À Margot Gaebler, pela revisão do texto. Aos companheiros do Laboratório da Casa da Arlete Moysés – LACAM – carinhosamente apelidado por Mariana Fernandes, onde podemos nos fortalecer e trocar tanto. A todos os que passaram por lá, especialmente aos com quem pude manter algum tipo de contato e troca: Rodrigo, Vânia, Rafaela, Desiree, John, Leda, Milene, Eliane, Mariana, Fernanda, Leianne, Renata, André, Arthur, Fábio, Alessandra e Leandro. À Lurdes, por sempre nos acolher com tanto carinho na casa da Arlete e com quem, em breves conversas, pude aprender um pouco mais sobre a São Paulo real. Aos colegas, especialmente, Franck, Mikaela, Sheyla, Vinícius, Igor, Diego, Luciana, Giorlando e aos funcionários e professores da UNICAMP. Aos membros da banca de qualificação: Amelia Damiani e Luciana Tatagiba. Aos membros da banca da defesa!

La utopía está en el horizonte. Camino dos pasos, ella se aleja dos pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. ¿Entonces para qué sirve la utopía? Para eso, sirve para caminar. Eduardo Galeano

(...) um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos. Milton Santos RESUMO

Os processos de neoliberalismo e globalização contribuem fortemente para a privatização de espaços públicos, por meio de uma urbanização cada vez mais responsável por transpor barreiras espaço-temporais e valorizar o ciclo do capital. As ruas, que materializam e simbolizam historicamente a diversidade e o dissenso, vêm sendo radicalmente esvaziadas da presença/interação mais constante das diferentes classes sociais, comprometendo, assim, as múltiplas dimensões da sociabilidade humana. No capitalismo, os trabalhadores circulam, sobretudo, como mercadoria, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa, e/ou para adquirirem mercadorias, dentre elas, as relacionadas ao lazer. Soma-se a tudo isso a crescente produção de uma ideologia do medo das ruas, dos espaços públicos coletivos, que contribui ainda mais para que as pessoas não ocupem e permaneçam nos mais variados pontos da cidade. Analisar o processo pelo qual a forma e o conteúdo das cidades transformam o caminhar, práxis humana por excelência, em atividade estranhada, tornando-se, inclusive, mercadoria no capitalismo contemporâneo é o objetivo principal desta Tese. Em decorrência desse processo, também será analisado, dentro de uma perspectiva do direito à cidade, como a problemática do caminhar, como atividade fundamental que contribui para se “criar uma vitalidade urbana alternativa que [seja] menos alienada, mais significativa e divertida”, como salienta Harvey (2014a, p. 11), é compreendida politicamente e transformada em ponto de reivindicação dos movimentos sociais urbanos contemporâneos. Investigar os avanços e os limites de tais ações políticas que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades, muitas vezes ancoradas no discurso do desenvolvimento sustentável e da cidade para pessoas, dentre outros, também se constitui objetivo central a ser desenvolvido. A análise crítica a essas mobilizações se dará a partir de uma concepção marxiana das condições necessárias para a efetivação da omnilateralidade humana.

Palavras Chave: Sociologia urbana; Capitalismo; Espaços Públicos; Caminhada; Alienação (Filosofia).

ABSTRACT

The processes of neoliberalism and strongly contribute to public space privatization, by means of an urbanization that is increasingly responsible to overcome space- time barriers and valorize the capital cycle. The streets, which historically materialize and symbolize diversity and dissent, have been radically emptied of the constant presence/interaction of different social classes, compromising, therefore, the multiple dimensions of human sociability. Under capitalism, workers circulate mainly as commodities, from home towards work, from work towards home, or they circulate to acquire goods, among them those related to leisure. Added to all this, the growing production of an ideology of fear of the streets and collective public spaces, which contributes even more so they do not occupy and remain in various parts of the city. The main objective of this thesis is to analyze the processes by which the form and content of the cities transform the act of walking (considered as an eminently human praxis) as an estranged activity, even becoming a commodity under contemporary capitalism. As a result of this process, it will also be analyzed, within a perspective of the right to the city, how the problematic of walking, understood as a fundamental human activity that contributes to “create an alternative urban way of life which is less alienated, more significant and amusing” (HARVEY, 2014a, p. 11), is politically comprehended and transformed into a point of claim for contemporary social movements. A central objective to this research is also to investigate the advances and limits of political actions that struggle for the right to walk in cities. The critical analysis of these mobilizations will occur from a Marxian conception of the conditions necessary for the realization of human omnilaterality. Keywords: Urban sociology; Capitalism; Public space; Walking; Alienation (Philosophy).

RESUMEN

Los procesos que acompañan al neoliberalismo y la globalización han contribuido fuertemente a privatizar los espacios públicos por medio de una urbanización cada vez más responsable de superar las barreras espacio temporales y revalorizar el ciclo del capital. Las calles, que materializan y simbolizan históricamente la diversidad y el disenso, vienen siendo radicalmente vaciadas de la representación/interacción entre las diferentes clases sociales, comprometiendo, así, las múltiples dimensiones de la sociabilidad humana. En el capitalismo los trabajadores circulan, sobre todo como una mercancía, de la casa al trabajo, del trabajo a la casa y/o para adquirir mercancías, entre ellas algunas relacionadas con el ocio. A todo esto se suma una creciente producción de la ideología del miedo en las calles y en los espacios públicos colectivos que contribuyen aún más a que las personas no ocupen y permanezcan en los diversos puntos de la ciudad. Analizar el proceso por el cual la forma y el contenido de las ciudades transforman el caminar, como praxis humana por excelencia, en una actividad extraña, volviéndose una mercancía en el capitalismo contemporáneo es el objetivo principal de esta Tesis. En el transcurso de este proceso también será analizado, dentro de una perspectiva del derecho a la ciudad, cómo la problemática del caminar como actividad fundamental que contribuye para “crear una vitalidad urbana alternativa [sea] menos alienada, más significativa y divertida”, como destaca Harvey (2014a, p.11), es comprendida políticamente y transformada en puntos de reivindicación de los movimientos sociales urbanos contemporáneos. Investigar los avances y los límites de tales acciones políticas que luchan por el derecho a caminar en las ciudades, muchas veces adheridas en los discursos del desarrollo sustentable y de la ciudad para personas, de entre otros muchos, también constituye el objetivo central a ser desarrollado. Al analizar críticamente las movilizaciones se dará a partir de una concepción marxista de las condiciones necesarias para la efectivización de la omnilateralidad humana.

Palabras Clave: Sociologia urbana; Capitalismo; Espacios Publicos; Caminata; Alienación (Filosofia).

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – Quadro de Heitor dos Prazeres representando a vitalidade das ruas da periferia da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX ... 54 Figura 02 – Placa indicando “rua particular” ...... 62 Figura 03 – Banco “antimendigo” do lado de fora de um prédio residencial de Londres, Inglaterra ...... 79 Figura 04 – Caminhada huichole rumo a Wirikuta ...... 94 Figura 05 – Refugiados de uma etnia albaneses se deslocando a pé – Guerra do Kosovo (1998-1999) ...... 100 Figura 06 – Sapatos de refugiados que realizam longos percursos a pé para fugir da guerra no Sudão – Série de fotografias intitulada, The Long Walk, de Shannon Jensen ...... 102 Figura 07 – Crianças centro-americanas cruzando a fronteira México – EUA a pé e sozinhas ...... 104 Figura 08 – Sapato anti-pegadas – confeccionado especialmente para não deixar marcas na travessia dos migrantes na fronteira México – Estados Unidos 108 Figura 09 – Cena real de migrantes irregulares atravessando a pé a fronteira desértica entre México e Estados Unidos ...... 109 Figura 10 – Trecheiro, carregando seu “gogó da ema”, caminha por rodovia ...... 112 Figura 11 – José, trecheiro há 19 anos ...... 117 Figura 12 – Caminhada do vendedor ambulante na praia ...... 120 Figura 13 – Caminhada do catador de lixo reciclável ...... 124 Figura 14 – Jovens em “rolezinho” pelo Shopping Center ...... 131 Figura 15 – Jovens que davam “rolezinho” sendo reprimidos por segurança privada em Shopping Center ...... 132 Figura 16 – Pessoas com carrinho de bebê tentando atravessar rodovia ...... 135 Figura 17 – Pessoas com deficiência visual, caminhando em uma calçada sem qualquer tipo de sinalização específica para a sua orientação ...... 138 Figura 18 – Cadeirante vencendo o obstáculo da guia não rebaixada ...... 139 Figura 19 – Idoso atravessando a faixa de pedestre ...... 140 Figura 20 – Jovem peregrino, em ato de penitência, carregando uma pedra nas costas, adentrando o pequeno portão aberto por “Boa Vontade” ...... 144 Figura 21 – Monges zen-budistas praticando Kinhin – meditação andando – no campo ...... 147 Figura 22 – Cena do filme , onde um monge, em sua vestimenta vermelha, caminha de forma performática pelas ruas de Hong Kong ...... 148 Figura 23 – Protesto, em forma de holograma, contra a lei da “Mordaça” na Espanha 176 Figura 24 – Atrizes em Passeata dos 100 Mil contra a Ditadura Civil-Militar – 1968 .. 178 Figura 25 – Marcha da Família com Deus pela Liberdade – 1964 ...... 178 Figura 26 – Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST marchando em rodovia ...... 179 Figura 27 – Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares – 1995, Brasília-DF ...... 179 Figura 28 – Marcha das Vadias ...... 179 Figura 29 – Parada do Orgulho LGBT – São Paulo-SP ...... 179 Figura 30 – Protesto de Junho de 2013, contra o aumento das tarifas de ônibus ...... 179 Figura 31 – Protestos anti-corrupção, anti-governo federal, anti-Lula, anti-Dilma, anti-PT – 2015, São Paulo-SP ...... 179 Figura 32 – Aparelho de locomoção motorizada urbana – walkcar ...... 200 Figura 33 – Publicidade da empresa Walking México: um dia de caminhada na montanha – Nevado de Toluca, México – ao custo de 1600,00 pesos mexicanos. Data do passeio: 18 de outubro de 2015 ...... 210 Figura 34 – Exemplos de equipamentos para a realização de caminhada na “natureza” 211 Figura 35 – Parte de um panfleto promocional oferecendo “férias de caminhadas em Portugal” – realizado pela agência de turismo portuguesa Pomarinho ...... 218 Figura 36 – Peregrinos no Caminho de Santiago de Compostela – Espanha ...... 220 Figura 37 – Pessoas caminhando e correndo nas esteiras de uma academia de ginástica ...... 223 Figura 38 – Panfleto de divulgação de serviços de atividade física, incluindo “alongamento, caminhada nutrição e bem-estar” ...... 224 Figura 39 – Parte de um panfleto da empresa São Paulo Free , que oferece diferentes tipos de passeios caminhando pela cidade de São Paulo 226 Figura 40 – Campanha publicitária de um mall walkers club, evidenciando-se pela imagem seu público alvo, terceira idade, e a finalidade do clube, fazer 227 compras ...... Figura 41 – Passeador(a) de cachorros ...... 228 Figura 42 – Piso tátil danificado com um “curativo urbano” ...... 251 Figura 43 - Intervenção urbana realizada pelo grupo mexicano, Peatones Primero, consistindo em uma caminhada coletiva pelas ruas da Cidade do México, onde cada participante, de posse dos seguintes materiais: adesivos com os seguintes dizeres – “Sanção cidadã por invadir um espaço pedestre” e filipetas, contendo os artigos do regramento de trânsito metropolitano, que amparam tal sansão; prega-os nos automóveis e obstáculos do mobiliário urbano que impedem ou dificultam o caminhar do pedestre sobre as calçadas ...... 252

Figura 44 - Caminhada coletiva realizada pela Galeria Itinerante – Walking Gallery

Brasil ...... 255 Figura 45 - Pintura de Jean-Baptiste Debret, Voyages au Brésil: Retour d’un proprietaire (Viagens ao Brasil: Regresso de um proprietário) ...... 280

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Percentual de domicílios particulares permanentes urbanos, segundo as características do entorno dos domicílios – Brasil, 2010 ...... 59 Gráfico 2 – Percentual de domicílios particulares permanentes urbanos, por classe de rendimento nominal mensal domiciliar, segundo as características do entorno dos domicílios – Brasil, 2010 ...... 60

Gráfico 3 – Distribuição dos deslocamentos por modo de transporte, Brasil, 2012 ...... 248

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Expressões do caminhar ...... 98

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 18 AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E O CAMINHAR ESTRANHADO ...... 18 O CAMINHAR COMO ATIVIDADE SINGULAR DO SER HUMANO – UMA BREVE DIGRESSÃO ...... 20 ALGUMAS NARRATIVAS SOBRE O CAMINHAR – À GUISA DE INTRODUÇÃO ...... 2 3 O CAMINHAR NO URBANO: DE MERCADORIA À LUTA PELO DIREITO A CAMINHAR ...... 28 1 A CIDADE COMO ESPAÇO DE ACUMULAÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO ...... 32 1.1 O ESPAÇO DAS RUAS COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DE CIRCULAÇÃO DAS MERCADORIAS E DOS VELOZES ...... 34 1.1.1 O planejamento urbano e a sociedade do automóvel – conflitos e reações ...... 43 1.2 O ABANDONO DAS CALÇADAS AOS PROPRIETÁRIOS PARTICULARES 53 2 O PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS E A CRIAÇÃO E MATERIALIZAÇÃO DA IDEOLOGIA DO MEDO NO/DO URBANO ...... 62 2.1 AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA NA MODERNIDADE ...... 63 2.2 A INTENSIFICAÇÃO DO PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS ...... 70 2.3 A CRIAÇÃO E A MATERIALIZAÇÃO DA IDEOLOGIA DO MEDO NO/DO URBANO ...... 80 3 MUITO ALÉM DO “DOMÍNIO DA CARÊNCIA FÍSICA IMEDIATA” DA NECESSIDADE DE LOCOMOÇÃO – A PLURALIDADE E A COMPLEXIDADE DO CAMINHAR ...... 90 3.1 EXPRESSÕES DO CAMINHAR ...... 96 3.1.1 Caminhadas involuntárias ...... 99 3.1.2 Caminhadas voluntárias ...... 142 4 DO INVOLUNTÁRIO AO VOLUNTÁRIO: O CAMINHAR SE TORNA MERCADORIA ...... 180 4.1 AS ESPECIFICIDADES DO CAMINHAR ENQUANTO MERCADORIA ...... 183 4.2 CONCEITUANDO O CAMINHAR COMO MERCADORIA-SERVIÇO ...... 186 4.3 O OLHAR DA MEDUSA E O CAMINHAR SE TRANSFORMA EM MERCADORIA ...... 193 4.3.1 Algumas expressões do caminhar como mercadoria onde tudo se transforma em pedra (mercadoria) ...... 201 5 MOBILIZAÇÕES SOCIAIS URBANOS CONTEMPORÂNEOS E A LUTA PELO DIREITO A SE CAMINHAR NAS CIDADES ...... 230 5.1 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS CONTEMPORÂNEOS – UMA BREVE HISTORIZAÇÃO ...... 233 5.1.1 Movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pela mobilidade urbana – privilegiando o transporte público e o não motorizado – e a reapropriação coletiva do espaço público ...... 239 5.1.1.1 Movimentos sociais urbanos contemporâneos e a luta pelo direito a se caminhar nas cidades ...... 246 5.1.2 O discurso das cidades sustentáveis para pessoas: desenho, planejamento e gestão - breve análise crítica à luz do direito à cidade ...... 259 5.1.2.1 Cidades sustentáveis para pessoas ...... 262 CONCLUSÕES ...... 272 REFERÊNCIAS ...... 284

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INTRODUÇÃO

Esta Tese objetiva analisar, por meio de pesquisa bibliográfica e de investigação nas plataformas/mídias digitais (sites, blogs, redes sociais), o processo pelo qual a forma e o conteúdo das cidades transformam, historicamente, o caminhar em atividade estranhada1 (Entfremdung), tornando-se, inclusive, mercadoria no capitalismo contemporâneo. Objetiva, também, investigar alguns tipos de movimentos sociais urbanos contemporâneos que têm como bandeira a luta pelo direito a se caminhar nas cidades, como contraposição a essa realidade urbana estranhada. Para isso, utiliza-se como método de análise o materialismo histórico-geográfico, onde as relações sociais de produção determinam o sistema metabólico das relações entre homem e natureza, sejam elas, sociais, políticas, econômicas, espaciais ou espirituais (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000; ANTUNES, 2009; BOTTOMORE, 2012; ENGELS, 2004, 2010; HARVEY, 2005, 2009a, 2011; LEFEBVRE, 1969; MARX, 1985, 2004; OLIVEIRA, 1999; RANIERI, 2001; ZIZEK, 2009).

AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E O CAMINHAR ESTRANHADO

Partindo-se da concepção da totalidade histórico-social, é possível afirmar o caminhar como: expressão da vida cotidiana, atividade realizada, sobretudo, na “vida fora do trabalho”; ou seja, na “esfera de reprodução societal” é, seguramente, influenciado pelas relações sociais estabelecidas no mundo do trabalho.

1 Segundo Ranieri (2001, p. 132), “temos aqui, então, (...), a definição do fenômeno estranhamento derivado da concentração de três elementos: primeiro, a transformação do produto da atividade humana em uma potência alheia, contraposta ao homem e que o subjuga; segundo, a transformação do produto da atividade humana em um poder objetivo que atua sobre o homem e, terceiro, em um poder que escapou ao controle humano e, como inimigo, torna impossível as expectativas e intenções do ser humano. Enfim, a situação do estranhamento é um fenômeno que aparece como uma condição ao mesmo tempo subjetiva e objetiva (...)”. Ainda de acordo com Ranieri (2001), o conceito de estranhamento (Entfremdung) se diferencia do conceito de alienação (Entäusserung), nos escritos de Marx, embora façam parte de uma mesma unidade articulada pelo elemento fundante da sociabilidade humana, o trabalho. “A consideração das formas históricas que a organização do trabalho assume na sociedade – assim como das formas correspondentes de estruturação da propriedade e, portanto, da apropriação dos meios e processos de trabalho – parece ter permitido a Marx [...] perceber o grau de determinação plasmador da problemática do estranhamento e da alienação [...]. Nesse sentido, Entäusserung carrega o significado de exteriorização, um dos momentos da objetivação do homem que se realiza através do trabalho num produto de sua criação. Por outro lado, Entfremdung tem o significado de real objeção social à realização humana, na medida em que historicamente veio a determinar o conteúdo das exteriorizações (Entäusserunge) por meio tanto da apropriação do trabalho como da determinação desta apropriação pelo surgimento da propriedade privada [...]. Enfim, a unidade existente entre alienação e estranhamento no interior da teoria de Marx está associada, a nosso ver, não exatamente a uma mesma significação, mas à determinação de uma pelo outro [...]” (RANIERI, 2001, p. 23-24, grifos do autor).

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Guiado pela necessidade de expandir-se constantemente (reprodução ampliada do capital), o “sistema de metabolismo societal do capital” (ANTUNES, 2009)2 trava uma luta intensa ao longo de sua história, a fim de obter o controle sobre o tempo de produção e reprodução da vida social. O violento e contínuo processo de transformação da medição do tempo em “uso-econômico-do-tempo” para exploração da força de trabalho, impõem, como relata Thompson, por meio da “divisão de trabalho, supervisão do trabalho, multas, sinos, relógios, incentivos em dinheiro, pregação e ensino, supressão das feiras e dos esportes –, novos hábitos de trabalho e de disciplina de tempo” (THOMPSON, 1998, p. 297):

Se o preguiçoso esconde as mãos no colo, em vez de aplicá-las ao trabalho; se ele gasta o seu tempo em passeios, prejudica a sua constituição pela preguiça, e entorpece o seu espírito pela indolência [...]”, então ele só pode esperar a pobreza como recompensa. O trabalhador não deve flanar na praça do mercado, nem perder tempo fazendo compras. Clayton reclama que “as igrejas e as ruas [estão] apinhadas de inúmeros espectadores” nos casamentos e funerais, “os quais apesar da miséria de sua condição faminta [...] não têm escrúpulos em desperdiçar as melhores horas do dia só para admirar o espetáculo [...]”. (Rev. J. CLAYTON apud THOMPSON, 1998, p. 291-292, grifo nosso).

Assim, o modo de produção capitalista, com sua incessante necessidade em revolucionar seus próprios meios de produção, não converteu a utilização dos benefícios tecnológicos em diminuição da exploração humana (ENGELS, 2010). Ao contrário, o homem perdeu o posto de produtor direto para sentinela da maquinaria. Como diz Marx (1985), a modernidade conseguiu fragmentar a unidade entre cabeça e mão. Em termos gerais, o fenômeno do estranhamento no capitalismo fez com que o ser humano perdesse não só sua consciência, mas também a capacidade de perceber seus sentidos, como se não tivesse mais controle sobre eles:

A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. O sentido constrangido à carência prática rude também tem apenas um sentido tacanho. Para o homem faminto não existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência abstrata como alimento; (...), e não há como dizer em que esta atividade de se alimentar se distingue da atividade animal de alimentar-se. O homem carente, cheio de preocupações, não tem sentido para o mais belo espetáculo (...). (MARX, 2004, p. 110, grifo nosso).

2 Cabe registrar que Antunes (2009) utiliza a concepção de “sistema de metabolismo societal do capital” em diálogo com o filósofo István Mézsáros, sobretudo em sua obra Para além do capital.

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O ser humano se tornou alienado3 dos seus sentidos: “ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim, todos os órgãos de sua individualidade” (MARX, 2004, p. 108) se tornaram alheios. A divisão do trabalho material e intelectual e a concorrência imposta pelo capital criaram obstáculos para que a classe destituída dos meios de produção pensasse suas condições de existência, assimilando o espírito “universal” da classe dominante. Dessa forma, o caminhar, como uma das atividades primevas, primordiais do ser humano, sendo um dos elementos que o diferencia dos outros animais, é reduzido a sua dimensão instrumental, cumprindo, na maioria das vezes, sua função mais elementar, biológica, porque não dizer, animal, que é o mero deslocamento em busca da sobrevivência corpórea da força de trabalho. Assim, como poderá ser visto no desenvolvimento do texto, a potencialidade do caminhar, em termos de uma atividade liberta/libertadora do indivíduo e do gênero humano, que pode estimular o desenvolvimento do ser genérico4, onde o ser humano passa a “se relaciona[r] consigo mesmo como um ser universal, por isso, livre” (MARX, 2004, p. 84), é submetida a uma rotina de relações reificadas5.

O CAMINHAR COMO ATIVIDADE SINGULAR DO SER HUMANO – UMA BREVE DIGRESSÃO

O caminhar é uma das atividades vitais que constituem o ser humano. Mugiatti (2006), na apresentação do famoso livro de H. D. Thoreau (2006), Caminhando, afirma

3 Bottomore recupera as quatro formas de alienação observadas por E. Schachtel; “a alienação do homem em relação à natureza, em relação a seus semelhantes, em relação ao trabalho de suas mãos e espírito, e em relação a si mesmo” (BOTTOMORE, 2012, p. 11). 4 Para Barros, “[...] nos Manuscritos de 44, Marx define o homem enquanto ser genérico para destacar, como contraponto, o estranhamento do homem consigo mesmo. Na esfera geral da alienação das relações humanas, este conceito designa também o estranhamento da sociedade civil autocindida em virtude do modo pelo qual os indivíduos produzem e reproduzem sua existência no sistema capitalista” (BARROS, 2006, p. 29). Já Ranieri afirma que, “[...] para Marx, a reposição do ser genérico (...) só pode efetivar-se a partir do gênero humano que, por sua vez, não se põe como elemento emancipado sem a concorrência do indivíduo autodeterminado) só pode acontecer a partir da suplantação da divisão do trabalho, da propriedade privada e da troca, ou seja, somente por meio da superação da divisão social do trabalho é que se pode concebê-lo a partir do seu caráter social genérico” (RANIERI, 2001, p. 17). 5 Foi pensando na materialidade das relações sociais baseadas na troca de mercadoria que Marx procurou mostrar o caráter fetichista do modo de produção capitalista. As relações entre os seres humanos tornam-se reificadas: os produtos humanos se objetificam, passam a ser vistos e experienciados como separados do seu produtor, assumindo um curso independente e autônomo. Nessas condições o próprio produtor assume a forma de mercadoria ao se tornar alheio dos meios de produção e expropriado de uma parte significativa do produto de sua força de trabalho. Esses fatores levam o ser humano a separar-se de si enquanto gênero ao ressaltar como meta a vida individual, perde seu caráter universal que não está apenas preso às necessidades imediatas (MARX, 2004).

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inclusive que o “ando, logo existo” veio antes do cartesiano “penso, logo existo”. Porém, pode-se afirmar que, por sua aparente simplicidade e cotidianidade, o caminhar foi, por muito tempo, naturalizado, tornando-se invisível enquanto objeto de pesquisa, de investigação mais pormenorizada. Balzac (2009), em sua Teoria do Mover-se, acreditava que, por meio da intuição e da observação acerca do mover-se humano, era possível traçar um diagnóstico do estado mental dos indivíduos e da sociedade de sua época. Chamava a atenção, em tom jocoso e irônico, para o fato de que, em seu tempo, ninguém se interessava pelos elementos psicológicos, filosóficos e políticos desse mover-se humano:

Não é mesmo extraordinário ver que, desde que o homem se move, ninguém se tenha perguntado porque ele se move, como se move, se o faz, se pode se mover melhor, o que faz ao se mover, se não há meio de impor, de mudar, de analisar seu mover-se: não são questões que dizem respeito a todos os sistemas filosóficos, psicológicos e políticos com os quais se preocupou o mundo? (BALZAC, 2009, p. 92-93).

Num misto de crítica à ciência moderna, que tudo quer simplificar e traduzir em fórmulas, e à sociedade burguesa, que corrompe e adultera o pensamento, o caráter, os hábitos e os costumes cotidianos, Balzac (2009) se vale de teses antagônicas para, de um lado, atacar o mover-se dito civilizado, bem como o excesso e a própria moderação desse mover-se, que estão permeados por vícios e artificialidades advindos da má educação burguesa. Sintetizando seu pensamento, o escritor exasperado afirma: “A civilização corrompe tudo! Adulterou tudo, mesmo o movimento!” (BALZAC, 2009, 149). Considerado por muitos um verdadeiro mistério, Stallybrass (2008) retoma a mitologia grega, mais precisamente o enigma da Esfinge, para tratar do mais profundo significado do caminhar. Édipo, filho de Laio e Jocasta, derrotaria a Esfinge ao responder o seguinte enigma: “qual é a criatura que caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite?”. A resposta certeira de Édipo, o ser humano, traz à luz a singularidade do caminhar, enquanto atividade eminentemente humana. Porém, Stallybrass (2008, p. 86-87) chama a atenção de que este “não se trata de um elemento constante de nossas vidas (...) aprendemos com dificuldade (...). [...] Quando se caminha é fácil achar isso natural”. Ainda que seja uma atividade vital, caminhar exige um processo inicial de aprendizado. Para se dar os primeiros passos, necessita-se de “três pés” que darão apoio, sustentação à formação do ser caminhante. Geralmente, os adultos cumprem essa função de

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terceiro pé externo e, aos poucos, ainda bebê, o ser humano vai internalizando esse terceiro a tal ponto que já não necessita dele mais externamente, até atingir a velhice, carecendo outra vez de um apoio externo. Stallybrass (2008) também recorda que Édipo significa pés inchados6, ou seja, provavelmente, o herói tebano justamente consiga decifrar o enigma porque, para ele, o caminhar não era tarefa simples, “natural”. Vivia com constantes dificuldades em locomover- se. Tampouco, quem lhe propôs o enigma podia caminhar. A Esfinge, por sua vez, era uma criatura que se movia sobre quatro patas e que também podia voar. Nesse sentido, “o enigma do pé deve sua eficácia ao fato de que o pé é algo que normalmente não merece atenção” (STALLYBRASS, 2008, p. 91). “[...] Ele nos faz lembrar que um dos aspectos centrais do ser humano é a possibilidade de caminhar” (STALLYBRASS, 2008, p. 99). Ainda, Stallybrass (2008) recupera os trabalhos de Primo Levi, E isto um homem?, e, A trégua, para meditar sobre as invisíveis, mas necessárias, precondições do caminhar. Segundo o autor, o químico e escritor italiano relata que, como tática sutil de eliminação em massa, os nazistas frequentemente trocavam os sapatos dos prisioneiros nos campos de concentração. Aqueles prisioneiros que não conseguiam sapatos que coubessem em seus pés descobriam, rapidamente, que não poderiam caminhar por muito tempo, já que os sapatos machucariam seus pés. “Incapazes de caminhar e, portanto, de trabalhar, [seriam] imediatamente dispensáveis” (STALLYBRASS, 2008, p. 98). Se por um lado, como denuncia Balzac (2009), houve um negligenciamento histórico, por parte de diversos ramos do conhecimento mais sistematizados, em se debruçar sobre o assunto do mover-se, por outro, contraditoriamente, o tema do caminhar vem exercendo fascínio e admiração, sendo objeto de inúmeras reflexões e escritos por parte de viajantes, andarilhos, peregrinos, filósofos, artistas, etc., ao longo dos tempos. Porém, talvez, vale a pena arriscar-se em dizer que foi somente com Walter Benjamin, e sua formulação conceitual do flanêur no espaço urbano capitalista, por meio da poesia de Charles Baudelaire que o tema do caminhar ganhou relevo e atenção mais sistematizada das diversas áreas do conhecimento científico.

6 Para mais informações sobre o mito de Édipo, ver: Édipo Rei, de Sófocles. Rio de Janeiro: Ed. Abril, 1976.

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ALGUMAS NARRATIVAS SOBRE O CAMINHAR – À GUISA DE INTRODUÇÃO

De maneira resumida, alguns elementos históricos devem, inicialmente, ser elencados para ilustrar a perda de centralidade do caminhar nas sociedades urbanas modernas: o advento das descobertas técnico-científico-informacionais, como por exemplo, com a criação do motor, otimizando radicalmente a velocidade humana ao longo da história, inclusive, criando-se um ritmo de vida “superexcitado” (BENJAMIN, 1989; HARVEY, 2005; SANTOS, 2008; VIRILIO, 1998); o processo de sedentarização e previsibilidade impostas pelo capitalismo (ENGELS, 2010; MAFFESOLI, 2002; THOMPSON, 1998), consequentemente, a prevalência de uma razão instrumental e a construção de uma ética do trabalho (protestante) (HABERMAS, 1984; WEBER, 2004), que cria definitivamente a dualidade trabalho/lazer e ataca os homens lentos e “vagabundos” (SANTOS, 2008; THOMPSON, 1998); a criação de instituições de controle soberano e docilização dos corpos em um projeto, autodenominado, civilizador (AGAMBEN, 2007; ELIAS, 1990; FOUCAULT, 2013); e, a gradual expulsão dos indivíduos dos espaços públicos de interação urbana, logo, o crescente isolamento em seus interesses privados (BAUMAN, 1999, 2001, 2003; HARVEY, 1992), podem ser algumas pistas iniciais para se pensar a constante perda de centralidade do caminhar nas sociedades urbanas modernas. Parafraseando Wright Mills (2009), mesmo diante desse cenário é possível encontrar, ao longo da história, inúmeras narrativas de experiências relacionadas ao caminhar, que se acercaram à concretização de um “caminhar artesanal”. Fascínio e encantamento são alguns dos sentimentos gerados, tanto para quem vivenciou diretamente tais experiências, como para quem as “saboreou”, pelas vias do compartilhamento oral e/ou escrito7. Mills (2009), ao elaborar a metáfora bastante inventiva sobre o tipo ideal do “artesão intelectual” destacou, dentre outros elementos, que “no padrão do artesão não há ruptura entre trabalho e diversão, entre trabalho e cultura”, devendo, assim, ser, também, o padrão do intelectual em seu “ofício”. O “caminhar artesanal” seria, assim, este caminhar não estranhado, onde a tríade lefebvriana “necessidade, trabalho e fruição” estaria contida no próprio ato de caminhar.

7 No Capítulo 3 serão analisadas, de forma mais detida, narrativas e sínteses de diversos autores sobre o caminhar.

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Realizando, aqui, um breve exercício de livre imaginação, é bastante estimulante observar como o termo “artesanal” pode conter alguns elementos que iluminam a compreensão da potencialidade desse caminhar não estranhado8. Por mais evidente que pareça, vale relembrar que, para se caminhar, o ser humano não necessita da mediação de qualquer espécie de maquinário externo, apenas seu próprio corpo. Independentemente de estranhado ou não, o caminhar contém, assim, esse aspecto artesanal, rudimentar, primeiro, na sua própria constituição. O movimento do caminhar advém, assim, da dinâmica originária intrínseca ao próprio corpo. Porém, para caminhar de forma artesanal, o caminhante deve, como qualquer outro artesão, estar de posse dos meios de produção que satisfaçam a sua condição de existência e que, assim, o libertam dos grilhões que o impedem de realizar tal caminhar. Só assim, por meio dessa emancipação individual e coletiva, o “caminhar artesanal” pode produzir um alto grau de satisfação ao ser universal, podendo o caminhante se identificar com o produto “caminhar” que ele realiza, adequando a velocidade dos seus passos e da sua reflexão à sua condição de lentidão. Cabe destacar, ainda, que o caminhante em seu “caminhar artesanal”, pelo menos em um primeiro momento, não considera a produtividade de seus quilômetros percorridos como elemento central e definidor da sua atividade. Cada caminhada e experiências derivadas desse caminhar possuem uma qualidade única, distinta das demais, e, por isso, valorizadas em si mesmas. Longe da experiência do caminhar da mercadoria força de trabalho, onde se marcha em série, nunca há um “caminhar artesanal” igual a outro, o que contribui para a riqueza dessa experiência. É dentro desse cenário que as visões poéticas dos autores a seguir, de momentos históricos e espaciais diferentes, convidam a se refletir sobre as potencialidades deste “caminhar artesanal”. Um dos maiores poetas japoneses, Matsuô Bashô, no século XVII, abandonou a casta dos samurais e passou o resto de sua vida caminhando, em uma espécie de busca fenomenológica por meio da retomada das experiências sensoriais para produção de suas poesias:

8 Cabe chamar a atenção para o fato de que a ideia do “caminhar artesanal” aqui compreendida não significa um rechaço ao desenvolvimento das forças produtivas, diferentemente do que pregava o movimento romântico do final do século XVIII em diante.

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Tudo o que via me convidava a viajar e estava tão possuído pelos deuses que não podia dominar meus pensamentos. Os espíritos do caminho me faziam sinais e descobri que não podia continuar trabalhando. Remendei minhas calças rasgadas e troquei as tiras do meu chapéu de palha. A fim de fortalecer as pernas para a viagem, untei-me de moka queimada. Logo a ideia da lua na ilha de Matsushima começou a apoderar-se de meus pensamentos. Quando vendi minha cabana e me mudei para o sítio de Sampu para esperar ali o dia da partida, pendurei este poema numa viga de minha choça: “A cabana de ervas secas/ (o mundo tudo muda) / vira casa de bonecas”. (MUGIATTI, 2006, p. 17, grifo nosso).

O segundo exemplo, a seguir, ilustra o papel do caminhar como expressão de resistência na tentativa de reconstituição de uma moralidade e de um comportamento humano que pretendem retomar o vínculo natureza/ser rompido por meio do processo de alienação9 oriundo da divisão do trabalho na modernidade – e é narrado pelo diretor de cinema expressionista alemão, Werner Herzog. Ao saber que sua grande amiga e crítica de cinema, Lotte Eisner, estava muito doente, prestes a morrer em Paris, Herzog se empenha em uma longa jornada a pé, de Munique, na Alemanha, à capital francesa, na crença de que tal ato poderia salvar a amiga. Em um inverno rigoroso, com muita neve e chuvas torrenciais, Herzog se priva de qualquer tipo de conforto que pudesse facilitar seu caminho. Por meio do processo de uma solidão profunda e de encontros inusitados com pessoas e situações diferentes ao longo do seu percurso, o cineasta imprime em sua biografia uma verdadeira miscelânea de experiências que vão deixar marcas profundas em sua vida:

O que resta a acrescentar: Fui ver a Eisnerin, que ainda estava cansada e marcada pela doença. Na certa, alguém lhe dissera por telefone que eu vinha a pé, eu não queria contar. Fiquei embaraçado e estiquei minhas pernas doloridas sobre uma segunda cadeira que ela me empurrou. Naquele embaraço, uma palavra me atravessou o espírito, e como a situação por si já era estranha, eu a disse. Juntos, falei, vamos cozinhar um fogo, e deter os peixes. Então ela me olhou com um fino sorriso e, como sabia que eu era um homem a pé e, portanto, sem defesa, me compreendeu. Por um instante fino e breve, algo suave atravessou meu corpo exausto. Eu disse: abra a janela, há alguns dias aprendi a voar. (HERZOG, 1982, p. 76-77, grifo nosso).

9 Segundo Mészáros, o conceito marxiano de alienação “caracteriza-se, portanto, pela extensão universal da ‘vendabilidade’ (isto é, a transformação de tudo em mercadoria); pela conversão dos seres humanos em ‘coisas’, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado (em outras palavras: a ‘reificação’ das relações humanas); e pela fragmentação do corpo social em ‘indivíduo isolado’ (vereinzelte Einzelnen). Que perseguem seus próprios objetivos limitados, particularistas, ‘em servidão à necessidade egoísta, fazendo de seu egoísmo uma virtude em seu culto de privacidade” (MÉSZÁROS, 2006, p. 39).

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Dentro desse contexto, para Toniol (2011, p. 30), o caminhar deve ser analisado “como prática capaz de produzir sentidos sobre o corpo e a paisagem. Isto é, trata-se de percebê-l[o] não apenas como efeito de modos de ‘experimentar-o-mundo’ já instituído, mas como ação produtora de sentido sobre o mundo”. Assim, o caminhar, além de deslocamento do próprio corpo que caminha, é também um “deslocamento de subjetividade do caminhante” e engajamento “no mundo em que caminha”, produzindo trocas de experiências corporificadas, “intercorporeidades” (TONIOL, 2011, p. 31). Partindo para o âmbito do urbano, propriamente dito, também são inúmeras as experiências e narrativas elaboradas, ao longo da constituição das cidades modernas, que privilegiam o “elogio aos errantes” (JACQUES, 2012), como forma de resistência ao estranhamento, domesticação, anestesiamento e espetacularização das relações urbanas. O errante urbano estaria em busca, por meio de experiências não planejadas, sem objetivos precisos, de uma alteridade radical, dispondo-se a se arriscar nesse encontro imprevisto com o Outro. Esse “homem lento voluntário”10 (JACQUES, 2012) constrói a sua própria cartografia e nela se move com o objetivo de experimentar o percurso, as interações, as situações. A funcionalidade do ato de andar para se deslocar de um local a outro em uma cidade (não) planejada é abandonada (crítica ao urbanismo moderno), optando-se, ao contrário, pela experiência de se perder na multidão e investigar os espaços antes não percorridos. Nesse sentido, Jacques (2012) recupera o belo trecho do relato de Mário de Andrade, quando esteve em Salvador, período em que realizou uma série de expedições etnográficas a diversas regiões do Brasil na década de 1920, reunidas em seu livro O turista aprendiz: viagens etnográficas, sendo essas experiências fundamentais para a elaboração do seu pensamento antropofágico:

Gosto de banzar ao andar pelas ruas das cidades ignoradas... aqui tive a impressão de estardalhaço contínuo. Parece incrível que se tivesse construído uma cidade assim... Ruas que tombam, que trepam, casas apinhadas e com tanto enfeite que parecem estar cheias de gente nas janelas, o barulho nem é tamanho assim, porém dá a impressão de enorme, um enorme grito. A sensação de simultaneidade é feroz, lembra cinema alemão. Os bondes para desembarcar num plano, tombam de banda e passam pela cabeça da gente. Vêm cheios de moços de branco dependurados até nas torres curtas das igrejas. Torcem por cantos inconcebíveis como pontes-dos- suspiros, fachadas paradas na porta da rua, atravancando o trânsito. Um

10 Segundo Jacques (2012, p. 286), o “errante urbano seria como um homem lento voluntário, intencional, consciente de sua lentidão, que assim, de forma crítica, se nega a entrar no ritmo mais acelerado, um movimento do tipo rápido, ao afirmar claramente sua lentidão voluntária”.

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largo e três igrejas de repente. Para chegar na cidade alta, a gente dá de cara com mais outra igreja de teatro, num trânsito vivo de gente irregular, todos os matizes, gente de enfeite, gente posta ali pra gente ver. S. Salvador me atordoa vivida assim a pé num isolamento de inadaptação que dá vontade de chorar, é uma gostosura. É uma cidade justamente o contrário do Rio de Janeiro que se goza mais de automóvel. S. Salvador não. E nem é tanto a questão de apreciar os detalhes churriguerescos dela, é questão do sabor físico que dá a passeada a pé. O automóvel isola o observador do estardalhaço ambiente. Passear a pé em S. Salvador é fazer parte dum quitute magnificamente e ser devorado por um gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica, até. (ANDRADE, 2002, diário de 1927 publicado em 1943, apud JACQUES, 2012, p. 109-110, grifos no original).

Partindo de uma perspectiva fenomenológica merleau-pontyana (NOBREGA, 2008), observa-se que o caminhar urbano propicia experiências intersubjetivas, lideradas pela interação face a face cotidiana. Para Schutz, “tal intersubjetividade só se dá na esfera da vida prática” (apud COLTRO, 2000, p. 41). Assim, o conhecimento advindo da experiência do caminhar é mediado pela “percepção como atitude corpórea”, onde “a apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo” (NOBREGA, 2008, p. 142). Segundo o método fenomenológico, a consagração do Iluminismo, ao elevar a razão como medida absoluta do acesso a realidade, relegou “o sujeito encarnado”, como produtor privilegiado de conhecimento. A Fenomenologia busca romper com a dualidade mente e corpo, sobretudo, a supremacia da primeira pela segunda, e resgata nos movimentos corpóreos, correlacionados “com [o espaço], o tempo, o Outro, a afetividade, o mundo da cultura e das relações sociais”, fonte de aprendizagem do mundo social vivido (NOBREGA, 2008). Assim, segundo Jacques (2012), as experiências corpóreas lúdicas e reflexivas urbanas, por exemplo, produziram narrativas erráticas importantes, que podem ser divididas em três momentos históricos: i) flanâncias, de meados e final do século XIX até o início do século XX; ii) deambulações, dos anos 1910-30; e iii) derivas, dos anos 1950-7011:

O primeiro momento, flanâncias, corresponde principalmente à recriação da figura do flâneur em Baudelaire, no Spleen de Paris ou no Les fleurs du mal, tão bem analisada por Walter Benjamin nos anos 1930. Benjamin também praticou a flânerie, principalmente em Paris e em suas passagens cobertas, ou seja, as flanâncias urbanas, a investigação do espaço urbano pelo flâneur. O segundo momento, deambulações, corresponde às ações dos dadaístas e surrealistas, às excursões urbanas por lugares banais, às deambulações

11 As flanâncias serão brevemente analisadas, a seguir, no próximo item. Já as deambulações e derivas, por sua vez, serão analisadas no Capítulo 3, respectivamente.

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aleatórias organizadas por Aragon, Breton, Picabia e Tzara, entre outros. [...]. Já o terceiro e último momento, derivas, corresponde ao pensamento urbano dos situacionistas, uma crítica radical ao urbanismo moderno, que também desenvolveu a noção de deriva urbana, de errância voluntária pelas ruas, principalmente nos textos e ações de Debord, Vaneiguem, Jorn ou Constant. (JACQUES, 2012, p. 33, grifos no original).

Como se pode observar, há muitas narrativas que destacam a centralidade do caminhar, do estar livre, liberto das amarras sociais, de uma sociedade que se encontra em crise com a sua própria sociabilidade (BRYSON, 1999; CARERI, 2013; COVERLEY, 2014; GROS, 2010; JACQUES, 2012; KEROUAC, 2004; LABBUCCI, 2013; LE BRETON, 2011; LONDON, 2008; SCHELLE, 2001; SOLNIT, 2001; THOREAU, 2006; VERANI, 2013). Essas narrativas sintetizam, por exemplo, as aventuras de um conjunto de indivíduos, embora em sua maioria ligados a uma fração da classe média trabalhadora ou da classe capitalista, que conseguiram, de alguma forma, materializar a expressão (SOLNIT, 2001), ou seja, o desejo de viajar, em toda sua extensão física e filosófica. Desejo esse de caminhar sem destino ou finalidade, de estar aberto para experimentar o novo pela reconciliação do corpo, da mente e das relações, cindidos pelos processos históricos de reificação humana. Hippies, bossiaks, squatters, beatniks, flâneurs, clochards, todos eles rebeldes da estrutura burguesa de dominação, por meio de suas experiências vividas como “nômades sociais”, se rebelaram contra o racionalismo e o individualismo triunfantes da modernidade.

O CAMINHAR NO URBANO: DE MERCADORIA À LUTA PELO DIREITO A CAMINHAR

Para além das experiências andarilhas individuais, Walter Benjamin, analisando entre o final do século XVII e o início do século XIX, testemunha a emergência de um tipo social cujo caminhar é central na constituição de sua moralidade – o flâneur: andarilho tipicamente urbano, produto de uma sociedade capitalista individualizada e com vínculos coletivos comprometidos, cujo caminhar desinteressado simbolizou sua arma política para se contrapor à divisão do trabalho e à demanda crescente por produtividade impostas por este sistema:

[O flâneur] ocioso, caminha com uma personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas. Protesta igualmente contra a sua industriosidade. Por algum tempo, em torno

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de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas a passear pelas galerias. De bom grado, o flâneur deixa que elas lhe prescrevessem o ritmo de caminhar. Se o tivessem seguido, o progresso deveria ter aprendido esse passo. Não foi ele, contudo, a dar a última palavra, mas sim Taylor, ao transformar em lema: ‘Abaixo a flânerie!’ (BENJAMIN, 1989, p. 50-51).

A emergência dessa reação individual, propositalmente lenta, preguiçosa, improdutiva, foi sistematicamente perseguida por um sistema que tudo necessita controlar e transformar em valor de troca, inclusive, a própria cidade (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). O efeito de tudo isso é que o caminhar, como um dos elementos definidores da condição humana, foi expropriado do ser humano a tal ponto que reaparece, sobretudo no final do século XX e início do XXI, como luta pelo direito a se caminhar12:

Entretanto, assim como a literatura se vê ameaçada pela proliferação da imprensa e a pintura pela produção industrial da fotografia, o flâneur encontra seu lado obscuro no mundo da fábrica. (...) O ritmo do mundo da indústria, para falarmos como Georges Friedmann, promove o trabalho em migalhas, anônimo, intercambiável. O fordismo pressupõe a anulação do indivíduo, sua subordinação a uma engrenagem que o envolve e o ultrapassa. Caminhar, olhar, descrever, torna-se atos improdutivos. (ORTIZ, 2000, p. 25, grifo nosso).

Refletir sobre a luta por esse direito no urbano torna-se, portanto, interessante forma de se reconstituir a extensão da violência sistêmica própria do capitalismo (ZIZEK, 2009). Ao contrário do caminhar espetacularizado13 contemporâneo, quando se toma o exemplo do flanêur do século XIX, é possível notar em seu comportamento social um ato de ousadia, de rebeldia, e, mesmo, de uma certa radicalidade, por mais que esse fosse o resultado de uma contestação individual. Já o caminhar de hoje se concretiza, muitas vezes, na forma mercadoria, onde o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso (MARX, 1985). De maneira sucinta, como será

12 Para um conhecimento mais detido sobre algumas mobilizações urbanas contemporâneas que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades, vide, por exemplo, Walk 21, com especial ênfase na Carta Internacional do Caminhar, , bem como, a Federação Internacional dos Pedestres, onde é possível encontrar um conjunto links de sites dessas mobilizações, em diversos países, http://www.pedestrians-int.org/>. Mais adiante, no Capítulo 5, trabalhar-se-á mais profundamente sobre o tema. 13 Segundo Debord, o espetáculo constitui-se em “(...) ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, “a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem”. A “nova força do embuste” que nele se concentrou tem por base essa produção, pela qual “com a massa de objetos cresce... o novo domínio dos seres estranhos a quem o homem fica sujeito”. É o estágio supremo de uma expansão que fez com que a necessidade se oponha à vida. “A necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz” (Manuscritos econômico- filosóficos). O espetáculo estende a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro: é “a vida do que está morto se movendo em si mesma” (DEBORD, 1997, p. 138- 139, grifo nosso).

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analisado aqui, pode-se afirmar que, por mais que existam grupos não comerciais de prática de caminhada, seja no rural ou urbano, sejam longas caminhas ou de curta distância, a possibilidade de concretização desse caminhar está submetida a uma série de condicionantes que determinam a quem é permitido ou não praticar tal atividade, como, por exemplo: possuir tempo para o lazer; se distante, dispor de um meio de transporte que leve o caminhante ao local da caminhada, de preferência transporte individual motorizado, como o carro, já que o transporte público muitas vezes não percorre itinerários distantes, isolados, de difícil acesso, afastados dos centros de produção; também é necessário, às vezes, pagar ingresso para se entrar no local das caminhada, como parques de preservação ambiental, por exemplo; e, dentro da lógica prevalente do consumo, possuir equipamentos cada vez com mais alta tecnologia para que essas caminhadas se deem de forma “segura”, “confortável”, sejam na “natureza” ou nas cidades. É certo que, para se entender a extensão do caminhar estranhado como mercadoria, bem como a emergência da luta pelo direito a se caminhar nas cidades, deve-se compreender o espaço urbano como espaço privilegiado do capitalismo contemporâneo para se resolver as crises cíclicas do capital e as tensões e contradições provocadas pela apropriação, controle e ordenamento do uso do solo e o problema da questão fundiária (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000; HARVEY, 2005, 2009A, 2011; LEFEBVRE, 1969). Diante desse contexto geral, a Tese se encontra estruturada em cinco capítulos. No primeiro capítulo, intitulado A cidade como espaço de acumulação no capitalismo contemporâneo, procurar-se-á analisar o processo contemporâneo de transformação da cidade em chão da fábrica, onde o espaço de circulação no urbano passa a ter grande importância para a fluidez dos fluxos do capital e do trabalho, em um processo de anulação do espaço pelo tempo, onde os trabalhadores circulam, sobretudo, como mercadoria, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa, e/ou para adquirirem mercadorias. Já no segundo capítulo, O processo de privatização dos espaços públicos urbanos e a criação e materialização da ideologia do medo no/do urbano, pretende-se analisar como a estruturação do espaço urbano, dentro da ordem social neoliberal, contribui fortemente para a privatização de espaços públicos no capitalismo. As ruas, que historicamente materializam e simbolizam a diversidade e o dissenso, vêm sendo radicalmente esvaziadas da presença/interação mais constante das diferentes classes sociais, comprometendo, assim, as múltiplas dimensões da sociabilidade humana. Soma-se a tudo isso a crescente produção de uma ideologia do medo das ruas, dos espaços coletivos, que contribui ainda mais para que as

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pessoas não estejam presentes, por exemplo, em algumas regiões dos centros urbanos. Despolitização e agorafobia se tornam palavras-chave para se compreender os efeitos sociais causados pelo declínio dos que caminham nos diferentes horários e espaços das cidades. Já no terceiro capítulo, Muito além do “domínio da carência física imediata” da necessidade de locomoção – a pluralidade e a complexidade do caminhar, será abordado como o caminhar se materializa, ao longo da história, das mais diversas formas: desde as experiências mais estranhadas às que mais se aproximam da realização genérica do ser social. Diante da miríade de manifestações do caminhar, aventurar-se-á em propor a sistematização de algumas expressões do caminhar na contemporaneidade, com o objetivo principal de ilustrar a complexidade de tipos de caminhar existentes, ligados a distintas finalidades e circunstâncias. Por sua vez, no quarto capítulo, Do involuntário ao voluntário: o caminhar se torna mercadoria, será possível observar como o tempo fora do trabalho, o tempo do lazer, o tempo da diversão, se tornam um prolongamento do processo de acumulação no capitalismo tardio, onde os shopping centers, por exemplo, definidos como as “catedrais das mercadorias” (PADILHA, 2008), passam a ser os modelos ideais de divertimento e interação social. Dentro dessa lógica do lazer pela via do consumo, o caminhar também se transforma em mercadoria, exacerbando a passagem de condição de atividade primordial e constituidora da condição humana para privilégio de classe. Por fim, no quinto capítulo, Movimentos sociais urbanos contemporâneos e a luta pelo direito a se caminhar nas cidades, procurar-se-á investigar a (re)ação política organizada de alguns movimentos sociais à problemática urbana contemporânea apresentada nos quatro primeiros capítulos. A luta em torno do caminhar como direito será analisada a partir da mobilização em torno da mobilidade urbana a pé e da recuperação coletiva dos espaços públicos urbanos. A partir da Crítica da Economia Política, investigar-se-á os avanços e os limites de tais ações políticas no sentido de sua compreensão frente às causas do processo de estranhamento do caminhar e suas propostas de intervenção na realidade para tornar o caminhar um direito, dentro de uma perspectiva mais ampla da concretização da emancipação humana14.

14 “Na teoria marxiana, alienação e estranhamento teriam um sentido oposto ao de emancipação humana. O sujeito emancipado seria aquele que volta a encontrar-se consigo mesmo. Independente de se ter uma solução diante das controvérsias de haver ou não a possibilidade de emancipação humana (via socialismo ou comunismo), vale mencionar que emancipação é um conceito marxista muito próximo de liberdade, no sentido da eliminação dos obstáculos que impedem o múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas. Esses

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1 A CIDADE COMO ESPAÇO DE ACUMULAÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Como bem adverte Hillman (1993), o ser humano, além de andar muito menos que seus antepassados, nos dias de hoje, quase que eliminou por completo a necessidade de caminhar. Seguramente, as pessoas seguem caminhando, principalmente, as frações mais empobrecidas da classe trabalhadora15, mas é inegável admitir que a locomoção se tornou hegemonicamente motorizada e veloz, tendo em vista que, em termos estruturais, o aumento da velocidade de circulação (tempo de circulação16) nas sociedades capitalistas está diretamente relacionado ao “aumento da velocidade de circulação do [próprio] capital [,] contribuindo para o processo de acumulação” (HARVEY, 2005, p. 50). A lógica do sistema capitalista impõe, como condição necessária à sua sobrevivência, a expansão sucessiva do capital a fim de se evitar, ao menos de tempos em tempo, a emergência de crises econômicas provocadas pela tendência histórica de queda da taxa de lucro. Para que se dê essa expansão, o excedente de capital precisa ser reinvestido por meio de “escoadouros lucrativos”, ou seja, investimentos que assegurem a geração ampliada de mais valia, embora as tendências de crise no capitalismo nunca sejam resolvidas, e, sim, deslocadas. Dessa forma, uma das preocupações constantes deste sistema é que o fluxo de capital evite e/ou ultrapasse os obstáculos existentes para a sua livre circulação e ampliação. Ao longo dos últimos cinco séculos, particularmente, a acumulação por espoliação (HARVEY, 2004) foi frequentemente acionada para se equilibrar as crises no modo de produção capitalista. Invasões, saques, fraudes, guerras, enfim, o uso contínuo e ampliado da força para expandir o domínio de alguns povos sobre outros, foram fundamentais no processo de reprodução ampliada do capital.

obstáculos são variados e se complexificam com o desenvolvimento do capitalismo. O trabalho assalariado e a propriedade privada são exemplos clássicos desses obstáculos, mas hoje também se pode falar na “cultura do consumo” como um impeditivo para a emancipação” (PADILHA, 2008, p. 107). 15 “Segundo estudo de Luiz Kohara (USP), 50% dos moradores de cortiços no centro de São Paulo vão ao trabalho a pé. Do total de trabalhadores moradores de cortiços, 80% gastam menos de 30 minutos no deslocamento, não importando o modo utilizado. A moradia em cortiços constitui estratégia individual de sobrevivência e expressa a lógica de proximidade subjacente ao ‘não-transporte’” (BALBIM; PEREIRA, 2009, s/p). 16 Segundo Ferrari, “[t]empo de circulação aqui entendido não como tempo de transporte, mas sim como tempo gasto pelo capital para realizar metamorfoses entre a forma dinheiro e a forma mercadoria. Este processo de valorização só está completo quando a mais-valia gerada no tempo de produção transforma-se em lucro. Esta transformação só se dá no tempo de circulação. Apenas no mercado, realizando-a na venda, os capitalistas podem verificar quanto da mais-valia produzida pode ser realmente apropriada, quanto da mais-valia pode ser transmutada em lucro. O processo pode, então, recomeçar. Podem reiniciar as atividades que caracterizam o tempo de produção” (FERRARI, 2008, p. 101).

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Soma-se a isso a emergência de um mundo globalizado inundado de excedente de capital fictício, onde cada vez menos capital tem sido absorvido na esfera da produção, gerando-se déficit nas relações econômicas globais (FIX, 2011; HARVEY, 2011):

O sistema de crédito possibilita a expansão geográfica do mercado por meio do estabelecimento da continuidade onde antes não existia continuidade alguma. A necessidade de anular o espaço pelo tempo pode, em parte, ser compensada pelo surgimento de um sistema de crédito. (HARVEY, 2005, p. 51).

Nesse contexto, a cidade se tornou espaço privilegiado de acumulação no capitalismo. De acordo com Davis (2009), existe uma “nova guerra de classe (...) no nível do ambiente construído”. E é com o sistemático aumento da expansão e especulação imobiliária, do movimento de destruição e reconstrução de ambientes construídos – acumulação por despossessão ou expropriação (HARVEY, 2004) – e da consolidação de uma “cultura” da securitização do urbano, que se criam alternativas histórias para a superação das crises cíclicas do capital, mesmo que provisoriamente (FIX, 2011; HARVEY, 2004, 2011, 2012):

Capitalism needs urbanization to absorbs the surplus products it perpetually produces. In this way an inner connection emerges between the development of capitalism and urbanization. Hardly surprisingly, therefore, the logistical curves of growth of capitalist output over time are broadly paralleled by the logistical curves of urbanization of the world’s population. (HARVEY, 2012, p. 05).17

A organização do processo de urbanização se tornou, por isso, absolutamente central à dinâmica do capitalismo global (produção/destruição criativa). As cidades passaram a ser projetadas cada vez mais para absorver o excedente de capital, e, por consequência, cada vez menos a ser um direito de quem a produz e a mantém (HARVEY, 2012; LEFEBVRE, 2008). Deste modo, a realização de novas geografias urbanas implica, inevitavelmente, o deslocamento e a despossessão da classe trabalhadora, onde o direito à cidade acaba por cair nas mãos dos interesses privados ou quase-privados, como diria Harvey (2012a, p. 22):

Urbanization (...) has played a crucial role in the absorption of capital surpluses and has done so at ever-increasing geographical scales, but at the

17 Em livre tradução: “O capitalismo necessita da urbanização para absorver os produtos excedentes que ele perpetuamente produz. Dessa forma, uma conexão interna emerge entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização. Não surpreende, portanto, as curvas logísticas de crescimento da produção capitalista ao longo do tempo sejam amplamente paralelas com as curvas logísticas de urbanização da população mundial”. (HARVEY, 2012, p. 05, tradução nossa).

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price of burgeoning processes of creative destruction that entail the dispossession of the urban masses of any right to the city whatsoever.18

1.1 O ESPAÇO DAS RUAS COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DE CIRCULAÇÃO DAS MERCADORIAS E DOS VELOZES

No âmbito do capitalismo contemporâneo, a cidade, de acordo com Ferrari (2008), passa a ser “fabricalizada”19, inundando, assim, cada rincão do espaço urbano com o processo de produção, para além dos muros das unidades produtivas. Consequentemente, a “fabricalização da cidade” acelera e uniformiza os ritmos sociais da vida urbana, na busca de um “perpétuo movimento sincronizado” das diversas unidades produtivas e fornecedoras espalhadas por uma rede complexa de territórios econômicos pulverizados:

(...) [com] a expulsão de inúmeras atividades do interior das unidades fabris tem provocado seu espalhamento por extensas áreas e continentes, proporcionando uma ampliação da teia cooperativa entre diferentes atividades. Cooperação organizada e submetida ao modo capitalista de produzir, cujo significado é o aprofundamento da apropriação gratuita pelo capital das forças produtivas humanas assim geradas. (FERRARI, 2008, p. 23).

Com isso, em um mercado mundial extremamente competitivo e globalizado, as cidades contemporâneas, organizadas como empresas privadas, passam a ser concebidas pelos “neoplanejadores” como mercadoria de luxo que competem entre si para atraírem o interesse dos “investidores solventes”, de preferência, internacionais (VAINER, 2000). Essas cidades, sob o ponto de vista de uma perspectiva crítica, se tornam “de pensamento único”, onde o fator determinante para o acesso, a circulação, a permanência e a

18 Em livre tradução: “A urbanização (...) tem desempenhado um papel crucial na absorção dos excedentes de capital e tem realizado isso em escalas geográficas cada vez maiores, ao preço de crescentes processos de destruição criativa que implicam a despossessão das massas urbanas de qualquer direito à cidade”. (Harvey, 2012a, p. 22, tradução nossa). 19 Almendra, introduzindo o livro de Ferrari (2008), ressalta que: “[o] termo fabricalização utilizado pela autora expressa uma característica contemporânea do capital: a transformação das vias públicas de circulação das cidades em esteiras rolantes estendidas entre as fábricas. Trata-se da expulsão dos estoques e seus custos de manutenção para fora dos limites das unidades fabris com a decorrente ocupação das ruas como depósitos, almoxarifados, verdadeiros “estoques em trânsito” (FERRARI, 2008, p. 09, grifos nossos).

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intervenção política dos cidadãos nos espaços públicos20 e coletivos está diretamente relacionado à sua capacidade de solvência:

O fechamento das fronteiras urbanas a visitantes e usuários insolventes certamente se funda no mesmo tipo de visão da cidade e do mundo: o direito à cidade, neste caso, passa a ser diretamente proporcional ao índice de solvência dos estrangeiros e visitantes. Aquilo que, de certa maneira, já é uma realidade, transforma-se agora em projetos, em estratégia de promoção da cidade. (VAINER, 2000, p. 80).

Respeitando a lógica neoliberal, o consenso na “cidade empresa”21 é forjado por meio da expulsão dos insolventes22 dos espaços mais valorizados e do estímulo ao investimento em projetos de “destruição e reconstrução criativa da terra”, sob o manto do discurso da valorização da qualidade de vida, onde “a cidade tem que parecer um lugar inovador, estimulante, criativo, seguro para se viver ou visitar, para divertir-se e consumir” (HARVEY, 2005, p. 176), não importando que seja para poucos:

Esses investimentos enfocam, cada vez mais, a qualidade de vida. A valorização de regiões urbanas degradadas, a inovação cultural e a melhoria física do meio ambiente urbano (incluindo a mudança para estilos pós- modernistas de arquitetura e design urbano), atrações para consumo (estádios esportivos, centros de convenções, shoppings centers, marinas, praças de alimentação exóticas) e entretenimento (a organização de espetáculos urbanos em base temporária ou permanente) se tornaram facetas proeminentes das estratégias para regeneração urbana. (HARVEY, 2005, p. 176).

Quando o espaço urbano passa a se constituir como espaço privilegiado de acumulação no sistema capitalista contemporâneo e a cidade se transforma em mercadoria, em “chão da fábrica”, os espaços de circulação tendem a adquirir maior importância na

20 Mais adiante, no Capítulo 2, será aprofundada a discussão sobre o processo de privatização dos espaços públicos e a criação e materialização da ideologia do medo no/do urbano que tem por objetivo manter os insolventes, os lentos, os trabalhadores apartados dos espaços de poder no urbano. 21 Na “cidade empresa” “não se elegem dirigentes, nem se discutem objetivos; tão pouco há tempo e condições de refletir sobre valores, filosofia ou utopia” (VAINER, 2000, p. 91). 22Acerca da “solvência dos cidadãos-empreendedores”, Ferrari argumenta que “portadores apenas de força de trabalho, restam aos cidadãos-empreendedores – unidades financeiras solventes – conectar-se e executar as operações básicas para o sistema: comprar e vender no mercado as condições para reprodução desta força de trabalho. Ser unidade financeira solvente significa gerar renda para reproduzir – de forma aparentemente autônoma – sua força de trabalho no mercado, isto é, reproduzir sua energia prática laborativa, sua potência para gerar mais valor. Para obter renda há que atender a um rol de habilidades adequadas ao mercado, preferencialmente ser possuidor de alguns equipamentos para transformar velozmente sua energia laborativa- prática em valor, em qualquer atividade do mercado, desde que conectada aos fluxos de mais-valia” (FERRARI, 2008, p. 27).

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concretização do processo de acumulação. Logo, a necessidade de se eliminar os obstáculos existentes para a livre circulação das mercadorias se torna consequência inevitável, onde a rua perde seu posto de espaço privilegiado de encontro e permanência social para se tornar, cada vez mais, espaço hegemônico de passagem e escoamento de produção:

Uma rua verdadeiramente moderna precisa ser “bem equipada como uma fábrica”. Nessa rua, como na fábrica moderna, o modelo mais bem equipado é o mais altamente automatizado: nada de pessoas, exceto as que operam as máquinas; nada de pedestres desprotegidos e desmotorizados para retardar o fluxo. “Cafés e pontos de recreação deixarão de ser os fungos que sugam a pavimentação de Paris”. Na cidade do futuro, o macadame pertencerá somente ao tráfego. (BERMAN, 1986, p. 165, grifo nosso).

A transição das formas de acumulação fordista/taylorista, na primeira metade do século XX, para o toyotismo ou acumulação flexível, iniciado nos anos 1970 do século passado e ainda em curso (ANTUNES, 2009; FERRARI, 2008; HARVEY, 1992), foi necessária para a realização de uma “nova forma de organização industrial”: a busca pela sincronização da circulação das mercadorias no espaço urbano, a fim de se otimizar a lógica do circuito capitalista – produção, circulação e consumo:

O atendimento das necessidades atuais da dinâmica do capital extrapola o interior dos locais de trabalho, diversificando e expandindo as atividades e os tempos do fazer, impondo-se assim não só uma fábrica com trabalhadores (regulares ou não), mas também, uma sociedade com indivíduos (empregados ou não) condicionados a permanecer em sincronia constante com ritmos externos de trabalho. (FERRARI, 2008, p. 19).

Para isso, contou-se com o sistema just in time23, como modus operandi das novas relações de produção no mundo do trabalho, bem como para a reorganização das cidades com o objetivo de racionalizar o escoamento e circulação das mercadorias até chegar ao seu destino final, o consumidor. Cabe destacar, também, que a intensificação desta “ideologia da circulação”, por meio do “controle logístico administrativo do tempo e espaço urbano”, impregna as relações societais mais amplas (não só as oriundas do local de trabalho) de um ritmo de

23 Ferrari considera o “just in time um conjunto de meios técnicos de racionalização matematizada, sincronização de tempos de trabalho e fluxos de mercadorias entre trabalhadores distribuídos por diversas unidades produtivas e por extensos territórios. (...) Fruto de mediações sociais contemporâneas, o conjunto de procedimentos objetivados no just in time implanta interesses e necessidades particulares das atuais classes hegemônicas. Como tal possui força de organização material da produção e atua como condicionante ideológica, pois interfere nas consciências e no modo de vida cotidiano em geral, participando ativamente da reprodução das relações sociais dominantes” (FERRARI, 2008, p. 19).

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“desenvolvimento humano-societal” extremamente acelerado, “ritmo [este] que, [segundo Ferrari,] uma vez interiorizado, passa a ser o ritmo normal e natural da decantada sociedade informacional”. Do ponto de vista psíquico-subjetivo de controle e de exploração externos do tempo, como tempo de produção capitalista, Kehl (2009) argumenta que:

A experiência perdida para nós, de viver e trabalhar em um ritmo não ordenado pela produtividade permitia que o abandono dos sujeitos à temporalidade guarda-se uma proximidade grande com o tempo do sonho, embalado por outra experiência que também se perdeu: a experiência do ócio ou do tédio vivido sem angústia, como puro tempo vazio a ser preenchido pela fantasia. De todas a s experiências subjetivas que a história deixou para trás, talvez a mais perdida, para o sujeito contemporâneo, seja a do abandono da mente à lenta passagem das horas: tempo de devaneio, do ócio prazeroso, dedicado a contar e rememorar histórias. (KEHL, 2009, p. 164, grifo nosso).

Nesse cenário, a circulação, apesar de se constituir como uma das esferas que compõem o circuito de acumulação do capital, foi eleita, ideologicamente, na contemporaneidade, como a fase primordial para a criação de valor, escamoteando, assim, a esfera da produção e suas relações sociais estranhadas, como o espaço relacional original, por excelência, da geração de valor (teoria do valor-trabalho) e de mais valia, por meio da “apropriação privada do tempo de trabalho social”:

É próprio do período atual de acumulação capitalista, de intensa produtividade e financeirização, atribuir à esfera estrita da circulação a capacidade de criar e agregar valor superando nisto a esfera da produção. Tal atribuição só pode ocorrer se desfigurada e fetichizada a esfera da circulação, na qual ocorrem as metamorfoses do capital. Tomam-se atividades de transporte, marketing, comunicação, propaganda, logística, desenho industrial, técnicas de venda, lobbies, como sendo responsáveis demiúrgicos pela valorização do capital. Ao fim e ao cabo, esta desfiguração acaba por gerar um ideário que escamoteia a produção e a apropriação de tempo de trabalho excedente nos processos produtivos, enaltecendo-se qualidades presumivelmente intrínsecas do capital e de um específico setor de serviços, entendidos como sustentáculos do valor. (FERRARI, 2008, p. 99, grifo nosso).

Ainda em relação ao ritmo acelerado imposto pelo capitalismo contemporâneo, vale destacar que, segundo Virilio (1998, p. 137), “para [se] ir rápido é preciso tornar liso o espaço como se nele não houvesse mais a natureza”. Por isso, as transformações provocadas pelo desenvolvimento dos “motores da história” revolucionaram as formas de conhecimento e a velocidade da interação do ser humano com o mundo.

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Como visto anteriormente, esse processo de “alisamento” do espaço vem eliminando massivamente os obstáculos existentes à expansão do capital, a tal ponto que a acumulação por despossessão ou expropriação se tornou a forma privilegiada de reprodução ampliada do capital, já que “[...] depois que se forma a paisagem física e social da urbanização de acordo com critérios caracteristicamente capitalistas, certos limites se interpõem nas vias futuras do desenvolvimento capitalista” (HARVEY, 2011, p. 165). Agrega-se a essa lógica a materialização do processo de eliminação dos espaços públicos de convivência e/ou seu deslocamento para locais privados que, além de contribuírem para a maior efetivação do consumo, liberam as vias públicas para a circulação das mercadorias e a construção de estacionamentos para veículos motorizados, em sua maioria, privados24. Virilio (1998) elenca, por exemplo, cinco tipos de motores como símbolos de um processo histórico que permitiu a redução das distâncias, sendo o “motor informático” o mais recente e o mais veloz, em termos tecnológicos. Na visão do autor, o tempo mundial e o tempo local passam com esse motor a se equivalerem em uma realidade virtual, constituindo- se cada vez menos em obstáculos para a co-presença. Vale destacar ainda que, para Virilio (1998, p. 135), “em proveito da redução das distâncias, os espaços são eliminados e a lentidão é conjurada aos mais desmunidos”. Logo, o tempo veloz estaria ligado aos que detêm os meios de produção, o próprio motor, e o tempo da lentidão, daqueles que caminham, por exemplo, estaria associado aos despossuídos, àqueles que só possuem a sua força de trabalho para sobreviver. Com isso, cabe notar que tal desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista altera constante e profundamente as relações sociais de produção, consequentemente, também os ambientes construídos, como as cidades, por exemplo. Porém, como destaca Rodrigues:

Cada um destes motores e suas poderosas máquinas alteraram o conteúdo, a forma das cidades, as relações das cidades entre si, mas não alteraram substancialmente as condições de vida dos citadinos. Introduziram-se novos produtos, novas técnicas, mas o acesso aos bens, serviços, riquezas não são obtidos pela maioria. (RODRIGUES, 2005b, s/p).

24 Rolnik (2014), por exemplo, em entrevista ao jornal espanhol, El País, afirma que há “em São Paulo meia cidade no subsolo, formada só por garagens”. Disponível em: . Acessado em: 15 jul. 2014.

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Nesse sentido, Ferrari (2008) ressalta que o avanço tecnológico contemporâneo, a serviço do princípio da acumulação do capital, influencia a idealização de modelos extremos de planejamento urbano, onde o concreto, o fixo, devem ser absolutamente substituídos pelo móvel, abstrato, corroborando, assim, com a lógica da “anulação do espaço pelo tempo” (HARVEY, 2005) para o livre fluxo do capital:

A partir de idealizações, teorias urbanísticas contrapõem velhas cidades comerciais e industriais às cidades toyotizadas típicas da acumulação contemporânea. As primeiras exigiriam uma contiguidade espacial dos polos produtivos com as vias de escoamento. Aparentemente, esta contiguidade física nas cidades just in time seria subvertida pela predominância de fluxos simultâneos de informação on-line com a abstração de espaços concretos. (FERRARI, 2008, p. 33).

Porém, Harvey (2005) apresenta um paradoxo inerente à condição espacial no capitalismo, que pode levá-lo a sucessivas crises de acumulação. Para que ocorra a livre circulação da mercadoria e a fluidez na circulação do capital e do trabalho é necessário que uma estrutura espacial fixa e imóvel seja criada. A construção de meios de produção, circulação e consumo, como ferrovias, rodovias, indústrias, pontes, túneis, metrôs, centros comerciais, shopping centers, inevitavelmente, fixam e imobilizam o capital, e tornam-se “impossíveis de serem movidos sem serem destruídos”:

(...) A paisagem geográfica, abrangida pelo capital fixo e imobilizado, é tanto uma glória coroada do desenvolvimento do capital passado, como uma prisão inibidora do progresso adicional da acumulação, pois a própria construção dessa paisagem é antitética em relação à “derrubada das barreiras espaciais” e, no fim, até à “anulação do espaço pelo tempo”. (HARVEY, 2005, p. 53, grifo nosso).

O paradoxo da dimensão espaço-temporal do capital reside justamente em que, se por um lado, o ambiente construído e a infraestrutura são condições indispensáveis para a sua realização, por outro, tornam-se obstáculos à fluidez do capital, logo, à sua ampliação:

(...) A capacidade tanto do capital como da força de trabalho de se moverem, rapidamente e a baixo custo, de lugar para lugar, depende da criação de infraestruturas físicas e sociais fixas, seguras e, em grande medida, inalteráveis. A capacidade de dominar o espaço implica na produção de espaço. No entanto, as infraestruturas necessárias absorvem capital e força de trabalho na sua produção e manutenção. Aqui, aproximamo-nos da essência do paradoxo. Parte da totalidade do capital e da força de trabalho tem de ser imobilizada no espaço, congelada no espaço, para proporcionar maior liberdade de movimento ao capital e à força de trabalho

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remanescentes. No entanto, o argumento, nesse momento, volta ao começo, pois a viabilidade do capital e do trabalho comprometidos com a produção e a manutenção de tais infraestruturas apenas fica assegurada se o capital remanescente circular por vias espaciais e num período de tempo compatíveis com o padrão geográfico e a duração de tais compromissos. Se essa condição não for satisfeita – por exemplo, se não for gerado movimento suficiente para tornar rentável a ferrovia, ou o aumento da produção não seguir o investimento maciço na educação – então o capital e o trabalho comprometidos ficarão sujeitos à desvalorização. (HARVEY, 2005, p. 149- 150).

Dessa forma, pensar a dimensão da circulação na dinâmica do capitalismo é fundamental para se compreender que “o imperativo da acumulação implica a anulação do espaço pelo tempo”. Para esse sistema, em tese, não importam as distâncias espaciais do mercado, desde que se tenha aliado a esse movimento a velocidade e a fluidez da circulação das mercadorias, por meio de constantes revoluções tecnológicas. Por tudo até aqui exposto, vale destacar que a lógica que impera nas cidades, como espaço de produção, é a da circulação dos velozes:

Através do uso de técnicas de processamento de informações, o capital impõe a todos um ritmo médio de viver – local, regional e mundial. Um tempo tido como real, instantâneo. Uma sincronização alienante é imposta a diferentes territórios, setores e regiões produtivas que concretamente vivem ritmos e espaços próprios. Em uma economia mundializada, ao recorrente pensamento único dominante corre paralela a medida de um assistemático tempo único. Tempo irreal, pois o tempo real proposto nas técnicas do just in time é tentativa de sincronização absoluta de ritmos e espaços diferentes. Ao transbordar, de uma forma historicamente inédita, o processo de produção para além dos limites físicos das unidades produtivas, passa a ser perceptível a relação entre a organização just in time do trabalho, as consciências e o que, nas subjetividades singulares, ocorre nas ruas das cidades onde a produção assim organizada acontece. (FERRARI, 2008, p. 19).

Por sua vez, em um exemplo extremo, a aceleração potencializada pelo “motor informático” gera, segundo Virilio, um “problema ontológico grave” para a própria constituição do ser humano e sua interação com a realidade, onde “[a]través da sociedade de multimídia e da ‘imediatidade’ generalizada, nós entramos na era da cibernética social. Ou seja, do condicionamento a domicílio das populações” (VIRILIO, 1998, p. 140). Em termos tecnológicos, o “motor informático” cumpriria, assim, a máxima da “anulação do espaço pelo tempo”. Porém, contrariando a argumentação de Virilio, que traça um cenário fatalista de “derrota dos fatos” pelo triunfo da “transmissão instantânea” que gera um “ritmo de vida do homem superexcitado”, Santos (2008) inverte radicalmente sua mirada e chama a atenção

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para a importância do papel dos “homens lentos” no processo de resistência e transformação das relações sociais no espaço urbano”, onde o “esforço deve ser o de buscar entender os mecanismos dessa nova solidariedade fundada nos tempos lentos da metrópole, que desafia a perversidade difundida pelos tempos rápidos da competitividade” (SANTOS, 2008, p. 82). Em um breve, mas potente texto ensaístico, intitulado Metrópole: A força dos fracos é seu tempo lento, Santos (2008) trabalha com ideias bastante originais, mas pouco desenvolvidas, onde procura recuperar os “pobres”, “homens comuns”, “migrantes”, enfim, a classe trabalhadora, como motor das possíveis transformações históricas no espaço urbano das grandes cidades, exatamente por sua condição de “homens lentos”. Santos (2008) propõe uma crítica ao discurso, inclusive do próprio Virilio, que ressalta o poder e a hegemonia dos ricos por sua extrema mobilidade globalizada. Segundo o entendimento do geógrafo, a força, a possibilidade de compreensão e de transformação do mundo estaria, ao contrário, com os “homens lentos”. Por sua lentidão, os “homens lentos” seriam os únicos capazes de olhar, compreender e transformar a realidade concreta das cidades e suas contradições:

Creio, porém, que na cidade, na grande cidade atual, tudo se dá ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detêm a velocidade (...). Os que, na cidade, têm mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acabam por ver pouco da Cidade e do Mundo. Sua comunhão com as imagens, pré- fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não deseja perder, vem exatamente do convívio com essas imagens. Os homens "lentos", por seu turno, para quem essas imagens são miragens, não pode, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações. A lentidão dos corpos contrastaria então com a celeridade dos espíritos? (SANTOS, 2008, p. 80).

Seguindo a construção argumentativa de Santos (2001), vale destacar que “a velocidade utilizada é um dado da política, e não da técnica” e, por isso, o tempo veloz não é uma condição inexorável do processo evolutivo tecnológico da história. O desenvolvimento das forças produtivas gera a possibilidade de tornar mais velozes os processos sociais. Porém, a decisão de se utilizar a técnica a serviço da aceleração desses processos é uma decisão política que, no caso do capitalismo, está completamente atrelada à esfera econômica:

É possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz. Numa situação em que se combinam técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um deles obrigatoriamente arraste os demais, se impõem forçosamente soluções políticas que não

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passem obrigatoriamente pela economia e suas conhecidas paixões inferiores. (SANTOS, 2001, s/p).

Valendo-se de uma perspectiva utópica, Santos (2001, s/p) projeta a possibilidade histórica de um outro mundo, onde o tempo (e o espaço) não sejam fatores de exclusão social, mas sim, “um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos”. Diferentemente dos “agentes hegemônicos da economia, da política e da cultura, da sociedade”, que só percebem a realidade por meio da sua posição veloz, nada mais do que miragens pré-fabricadas, simulacro da realidade artificialmente concebida como homogênea; os “homens lentos", para Santos (2001, 2008), seriam capazes, no espaço urbano, de entrarem em contato com as contradições da realidade por meio de um “processo intelectual contraditório e criativo”:

Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço "inorgânico" é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar; enquanto a classe média e os ricos são envolvidos pelas próprias teias que, para seu conforto, ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidade invasora de todos os arcanos da vida, essas regulamentações, esses caminhos marcados que empobreceram e eliminam a orientação para o futuro. Por isso os "espaços luminosos" da metrópole, espaço da racionalidade, é que são, de fato, os espaços opacos. (SANTOS, 2008, p. 81, grifo nosso).

Em síntese, cabe ressaltar que a categoria “homem lento”, como utilizada aqui, assim como a categoria de “caminhar artesanal”, como analisada anteriormente, se torna uma interessante ferramenta para a compreensão da potencialidade que o caminhar pode desempenhar no processo de emancipação humana nas cidades capitalistas contemporâneas. O ser humano lento pode ser interpretado como uma reatualização ou, quem sabe, até mesmo a superação do flanêur da metrópole do mundo europeu, onde o migrante, o pobre, a mulher, o negro, o indígena, o despossuído, o sem teto, o mendigo, enfim, o “estrangeiro”, indivíduos estranhos à cidade mercadoria, à cidade empresa, experimentam e explicitam cotidianamente, por meio do seu caminhar lento, as contradições de uma cidade excludente, onde o direito a usufruir da produção coletiva urbana pertence aos poucos velozes. Ainda dentro da análise sobre o espaço das ruas como espaço privilegiado de circulação das mercadorias e dos velozes nas cidades capitalistas contemporâneas, a seguir, será investigado o processo de formação da “sociedade do automóvel” e a expansão da infraestrutura de circulação urbana, bem como, suas implicações para a gradual e constante expulsão dos lentos das ruas e espaços públicos.

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1.1.1 O planejamento urbano e a sociedade do automóvel – conflitos e reações

Como visto acima, as cidades, como berço do modo de produção capitalista e símbolo da modernidade industrializada, vêm sendo constantemente (re)organizadas para facilitar, principalmente, a redução do tempo de rotação das mercadorias, sejam elas produtos para o consumo, sejam força de trabalho. Santos (2013) retoma Marx para salientar a importância da esfera da circulação na diminuição dos “poros improdutivos do processo” de reprodução ampliada do capital: “o principal meio de abreviar o tempo de circulação é o progresso dos transportes e comunicação” (MARX, 2008 apud, SANTOS, 2013, p. 128). Dentro desse contexto, Debord, integrante da Internacional Situacionista – organização intelectual e política que tinha como um dos focos centrais a crítica radical ao urbanismo moderno –, lança um manifesto em 1959, intitulado Posições Situacionistas a Respeito do Trânsito, defendendo que, dentre as posições a serem adotadas pelos “urbanistas revolucionários”, encontra-se o rompimento com as concepções que tornam centrais a circulação das coisas e a paralisia dos homens em um mundo de coisas, onde:

O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento fundamenta a técnica; reciprocamente, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias” (...). (DEBORD, 1997, p. 23, grifo nosso).

Nessa perspectiva, o urbanismo moderno pretende “racionalizar”, “disciplinar”, “desobstruir” os espaços urbanos, com o intuito de controlar e limitar a circulação e a permanência dos seres humanos como “seres genéricos” e facilitar a fluidez e o escoamento dos seres humanos, como coisas, mercadoria força de trabalho. O urbanismo, nessas condições, seria, enfim, “a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário” (DEBORD, 1997, p. 112). Virilio, por exemplo, relembra as ações políticas dos nazistas para conter a ameaça de aglomerações e revoltas nas ruas:

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Desde a tomada de poder, o governo nazista oferece ao proletariado alemão esporte e transporte. Acabam-se as revoltas, não há necessidade de muita repressão; basta esvaziar a rua prometendo a todos as estradas: é o objetivo “político” do Volkswagen, verdadeiro plebiscito já que Hitler convenceu 170.000 cidadãos a adquiri-lo apesar de não haver um disponível. (VIRILIO, 1996, p. 37, grifo nosso).

Jacobs (2009), por sua vez, escreveu seu clássico, Morte e vida nas grandes cidades, no início da década de 1960, em um momento onde alterações profundas no processo de configuração das grandes cidades ocorriam nos Estados Unidos. O livro é uma crítica direta aos urbanistas e arquitetos modernistas, bem como aos setores do poder público ligados à gestão e ao planejamento do espaço urbano. Ao privilegiarem a suposta racionalização, higienização e revitalização das funções espaciais do urbano, tais urbanistas cooperaram, segundo Jacobs (2009), para a consolidação da “grande praga da monotonia”, eliminando toda a vitalidade, espontaneidade e, sobretudo, a presença da diversidade social das ruas. Contribuíram, assim, segundo a autora, para a expansão de um sentimento de insegurança generalizada nas cidades. Nesse momento histórico, aponta Jacobs (2009), é possível observar com nitidez o surgimento das mazelas causadas pelo processo de suburbanização das grandes metrópoles estadunidenses e da adoção de um planejamento urbano e arquitetônico que virava as costas para o tecido social presente nas ruas. De acordo com Jacobs (2009), segregação espacial e racial, prevalência do uso do transporte privado em detrimento do transporte público e esterilização das ruas como espaço privilegiado da convivência estão intrinsecamente vinculadas a essa política urbana “modernizadora”, onde “o mundo da via expressa, o meio ambiente moderno que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, atingiria o pináculo de poder e autoconfiança nos anos 60” (BERMAN, 1986, p. 312). Se, por um lado, as cidades estadunidenses são consideradas modelos de urbanização metropolitana já no final do século XIX, e, do ponto de vista da locomoção, um paradigma no desenvolvimento do transporte coletivo urbano – em 1860 já existiam “bondes, elevateau, railways”; no início do século XX, já existiam metrôs em Boston e em Nova York e o sistema de ônibus coletivos se encontrava consolidado no país; por outro, contraditoriamente, como já foi apontado, os Estados Unidos também foram pioneiros no processo de suburbanização de suas cidades, com o deslocamento do local de moradia de parcelas significativas das frações de classe média e alta para espaços afastados dos centros

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urbanos, obstacularizando, assim, a manutenção dos espaços característicos da constituição das cidades, como circulação, permanência e mistura nas ruas. Esse novo fenômeno, denominado por Caiafa (2007) de “anticidade privatizada”, e replicado posteriormente em várias partes do mundo, levou ao ocaso de várias cidades estadunidenses, com a centralidade do uso do automóvel particular, esvaziamento da convivência pública, controle permanente dos usos do espaço público, criação de espaços vazios e prevalência do processo de gentrification25 dos centros urbanos. A revolução automobilística, especificamente, permitiu, enfim, tanto um adensamento das cidades, com o incremento do transporte urbano coletivo, quanto acelerou o processo de suburbanização, com a oferta dos veículos privados, culminando em maior mobilidade das classes médias urbanas. Em decorrência desse paradoxo, “a experiência da caminhada se tornou a primeira vítima da cidade privatizada, orientada para a família e para a propriedade” (CAIAFA, 2007, p. 57). Essa nova forma de se conceber as cidades teve em suas raízes ideológicas alguns exemplos materializados nas reformas empreendidas por Georges-Èugene Haussmann, em Paris, no século XIX e Robert Moses, em Nova York, no século XX, bem como da criação de projetos arquitetônicos e urbanísticos elaborados pelo francês Le Corbusier, também no século XX. Berman (1986) sintetiza bem o espírito belicoso dos urbanistas da primeira metade do século XX que, ao defenderem os interesses da classe dominante, se esforçavam por manter, por meio da supressão do espaço da rua, a atomização e fragmentação da classe trabalhadora, que, segundo Debord (1997, p. 114), “as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido”:

Nas ruas da cidade pós-haussmanniana, as contradições sociais e psíquicas fundamentais da vida moderna continuam atuantes, em permanente ameaça de erupção. Contudo, se essas ruas puderem simplesmente ser riscadas do mapa — Le Corbusier o disse, bastante claro, em 1929: “Precisamos matar a rua!’’ —, talvez essas contradições nunca venham a nos molestar. (BERMAN, 1986, p. 165, grifo nosso).

25 Sobre o tema da gentrification, vale a pena destacar um exemplo dado por Davis para ilustrar esse processo histórico sistemático de expulsão das “multidões misturadas” dos centros das cidades estadunidenses: “Fotografias do velho Centro em seus primórdios mostram multidões misturadas de pedestres anglo-saxões, negros e latinos de diferentes idades e classes. O ‘renascimento’ contemporâneo do Centro é projetado para tornar tal heterogeneidade virtualmente impossível. Está dirigido não somente para “matar a rua”, como teme Kaplan, mas para “matar a multidão”, para eliminar essa mistura democrática nas calçadas e nos parques que Olmsted acreditava ser o antídoto norte-americano para a polarização classista europeia” (DAVIS, 2009, p. 243).

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Dessa forma, o “urbanismo dos canos”, enquanto ideologia, foi reduzido ao estudo dos “problemas de circulação, de transmissão das ordens e das informações na grande cidade moderna”, levando, em nome da ciência, “a conhecimentos reais e a técnicas de aplicação” (LEFEBVRE, 1969, p. 44). As cidades passaram a ser definidas como “rede de circulação e de consumo, como centro de informações e de decisões” (LEFEBVRE, 1969, p. 44) e as ruas forma reduzidas, sobretudo, à sua função de passagem:

Preso a inúmeras coações que se compõem de repetições mecânicas no trabalho e dias sempre iguais a rua acaba reduzindo-se à função de passagem, de ligação entre lugares desta forma organizada para o consumo do lugar: regularização da velocidade de proibição/liberação de estacionamento, liberação ao tráfico quando se torna necessário “olhar as vitrines” e comprar produtos expostos, e não a apropriação para o uso. Nesse caso a rua, para Lefebvre, regula o tempo além do tempo de trabalho; ela submete ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela é apenas transição obrigatória entre o trabalho forçado, os lazeres programados e a habitação como lugar de consumo”. (CARLOS, 2007, p. 56, grifo nosso).

Nesse sentido, vale destacar, mais uma vez, o papel do urbanismo e sua “ciência” (MARICATO, 2000), no sistema capitalista, com a missão de ordenar o tempo e o espaço para a realização da acumulação da mais valia. Para isso, há que se suprimir a rua, em seu sentido inaugural, tradicional, como espaço caótico, heterogêneo e dinâmico de encontro das diferenças, da convivência entre os desiguais, da possibilidade de se criar dissensos, de se organizar transformações políticas:

O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua culmina com a supressão da rua. “Com os meios de comunicação de massa a longa distância, o isolamento da população revelou-se um meio de controle bem mais eficaz”, constata Lewis Mumford em La Cité à travers l’histoire, ao descrever um “mundo doravante de mão única”. Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve recuperar os indivíduos isolados como indivíduos isolados em conjunto: as fábricas e os centros culturais, os clubes de férias e os “condomínios residenciais” são organizados de propósito para os fins da pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado de aparelhos receptores da mensagem espetacular faz com que esse isolamento seja povoado pelas imagens dominantes, imagens que adquirem sua plena força por causa desse isolamento. (DEBORD, 1997, p. 114, grifo nosso).

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No que tange ao tema da prevalência dos automóveis nas ruas, em detrimento das pessoas, contribuindo, assim, para a erosão do caminhar nas grandes cidades, Jacobs (2009) tece uma interessante e desnaturalizante análise sobre a desvalorização histórica da presença das pessoas nas ruas, sendo este espaço desde muito tempo privilégio dos veículos movidos, no caso, à tração animal:

(...) Sem dúvida, as ruas das cidades dos séculos XVIII e XIX eram adequadas, como ruas, às atividades das pessoas a pé e à sustentação mútua dos usos diferenciados que as circundavam. Mas eram muito inadequadas, como ruas, para o trânsito de cavalos, e isso, por sua vez, as tornava inadequadas em vários aspectos para o trânsito de pedestres. (JACOBS, 2009, p. 379).

Além das ruas, historicamente, serem espaços privilegiados de veículos em detrimento das pessoas, cabe acrescentar o esforço sistemático, nas cidades capitalistas, “para manter a classe operária afastada das ruas principais”. Engels, em brilhante etnografia sobre a consolidação da vida urbana da classe trabalhadora nas cidades inglesas do século XIX, descreve, de forma naturalista, a segregação da classe trabalhadora em bairros periféricos, o processo de especulação imobiliária das zonas mais abastadas dos centros urbanos, além, especificamente, da podridão que era andar pelas ruas das periferias londrinas:

Todas as grandes cidades têm um ou vários “bairros de má fama” onde se concentra a classe operária. É certo ser frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é- lhes designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha. [...]. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar roupa. (ENGELS, 2010, p. 70, grifo nosso).

Assim, cabe o questionamento se o discurso e a admiração pelo espaço da rua como o espaço de encontros de alteridades não vem sendo reatualizado ideologicamente, pois está descolado da realidade empírica espacial e histórica, que não contempla a permanência da classe trabalhadora nas ruas, muito pelo contrário, contabiliza milhares de exemplos de expulsão dos pobres desse espaço.

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A seguir, Engels exemplifica, por meio de carta publicada no jornal Manchester Guardian, de 20 de dezembro de 1843, o sentimento e a mobilização da burguesia inglesa da época com a presença da “classe perigosa” nas ruas:

Senhor diretor: já há algum tempo, nas ruas principais da nossa cidade se encontra uma multidão de mendigos que, ou vestindo farrapos e aparentando aspecto doentio ou expondo chagas e deformações repugnantes, procuram despertar a compaixão dos transeuntes de um modo desagradável e até indecoroso. Penso que, não só quando se paga o imposto para os pobres, mas ainda quando se contribui generosamente para as instituições de beneficência, tem-se o suficiente direito de ser poupado de cenas tão molestas e impertinentes. E mais: indaga-se para que serve o pesado imposto pago para manter a polícia municipal, se ela não garante o direito do público de caminhar pela cidade sem ser perturbado. (...) (ENGELS, 2010, p. 310, grifo nosso).

Dando continuidade à análise do projeto sistemático de apartamento e expulsão sistemática da “classe perigosa” das ruas, Berman (1986), em uma de suas poucas críticas ao pensamento de Jacobs (2009), destaca que, embora a autora tenha contribuído de forma histórica e decisiva para a elaboração de um diagnóstico e de proposições alternativas para o resgate da vida cotidiana nas ruas, sua visão bucólica de bairro está baseada em uma realidade espacial ancorada na segregação racial, onde os negros não residiam nesses bairros, espaços hegemonicamente brancos, ainda que pertencentes à classe trabalhadora:

É isso o que faz parecer bucólica a sua visão do bairro: é a cidade antes da chegada dos negros. Seu mundo abrange desde sólidos trabalhadores brancos, na base, a profissionais liberais brancos de classe média, no topo. Não existe nada ou ninguém acima; no entanto, o que é mais importante aqui, não há nada ou ninguém abaixo - a família de Jacobs não tem enteados. (BERMAN, 1986, p. 325).

Retomando a problemática da prevalência dos veículos motorizados em detrimento das pessoas a pé, cabe destacar que, corroborando a perspectiva de Santos (2001, 2008), Illich (2004, p. 38) argumenta que “a energia [motorizada], passado certo limite, torna- se inevitavelmente corruptora do ambiente social”. Segundo sua visão, a criação de novas energias externas para o deslocamento do ser humano o levou a tal nível de alienação que, “[i]ntoxicado pelo transporte, perdeu a consciência dos poderes físicos, sociais e psíquicos de que dispõe o ser humano, graças a seus pés” (ILLICH, 2004, p. 48). Para Illich, partindo de um ponto de vista crítico ao sistema de locomoção capitalista, onde a indústria do transporte motorizado exerce grande influência na

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configuração do espaço social, a demanda política do usuário por mais transporte, por mais velocidade, por mais fluidez, compromete a equidade de acesso aos equipamentos coletivos urbanos e corrompe progressivamente o pouco que resta de tempo livre e autonomia pessoal:

A relação do usuário de transportes com o espaço é determinada por uma potência física alheia a seu ser biológico. O motor mediatiza sua relação com o meio ambiente e logo o aliena de tal maneira que passa a depender do motor para definir o seu poder político. O usuário está condicionado a crer que o motor aumenta a capacidade dos membros de uma sociedade de participar do processo político. Ele perdeu a fé no poder político de caminhar. (ILLICH, 2004, p. 48, grifo nosso).

Ainda segundo Illich (2004), em artigo escrito no início da década de 1970:

Diga-me a que velocidade te moves e te direi quem és. Se não podes contar mais do que com teus próprios pés para deslocar-te, és um excluído, porque desde meio século atrás, o veículo se converteu em símbolo de seleção social e em condição para a participação na vida nacional. Onde quer que a indústria de transporte tenha possibilitado a seus passageiros ultrapassar uma barreira crítica de velocidade, inevitavelmente ela estabelece novos privilégios para a minoria e agonia à maioria. (ILLICH, 2004, p. 52, grifo nosso).

Nesse contexto, os automóveis reinam no imaginário de muitos planejadores urbanos (BERMAN, 1986; DEBORD, 1997; ILLICH, 2004; JACOBS, 2009; JACQUES, 2003; LAGONEGRO, 2008; LUDD, 2004; MARICATO, 2008). Avenidas, rodovias, túneis, pontes se tornam sinônimos de progresso de cidade moderna. O espaço público vai sendo invadido por essas monumentais construções que têm como uma de suas finalidades a tentativa de se coordenar o tráfego dos grandes centros urbanos. Porém, essa tentativa de coordenação vai se tornando cada vez mais difícil nas grandes cidades. No Brasil, por exemplo, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), há pouco mais de uma década, a frota nacional passou de 24 milhões para 56 milhões de veículos26. Além de contribuírem para expulsão das pessoas dos espaços públicos, os automóveis, sobretudo os particulares, estão entre os principais emissores de poluentes, constituindo-se em um verdadeiro “apocalipse motorizado” (LUDD, 2004). Segundo Berman (1986, p. 163):

26 Entre alguns fatores que contribuíram para esse aumento impressionante da frota veicular brasileira podem-se destacar: o aquecimento da economia, o aumento da taxa de empregos, o acesso ao crédito, os incentivos fiscais ao setor automobilístico, a precarização do transporte público, o crescente medo da violência urbana e os investimentos públicos prioritários no sistema viário (BALBIM; PEREIRA, 2009). Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2012.

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O signo distintivo do urbanismo oitocentista foi o bulevar, uma maneira de reunir explosivas forças materiais e humanas; o traço marcante do urbanismo do século XX tem sido a rodovia, uma forma de manter separadas essas mesmas forças.

O trânsito, cada vez mais caótico, é pensado pela sociedade espetacular como externalidade negativa econômica (MORTARI; EUZÉBIO, 2009) e deve ser eliminado a qualquer custo, sobretudo, se este custo estiver relacionado à mobilização e organização política popular. Esta concepção de externalidades negativas à livre circulação dos automóveis motorizados se tornou tão reificada, a tal ponto que, por exemplo, nos casos de realização de atos políticos, como marchas e manifestações, que reúnem milhares de pessoas nas ruas, logo, são analisadas e comentadas, na maioria das vezes, pelas parcelas conservadoras da sociedade, em sua negatividade e, em seguida, contabilizadas como “perdas” (econômicas) para a dinâmica das cidades. Um exemplo bem ilustrativo desse tipo de visão pode ser encontrado na seguinte manchete de uma reportagem do sítio eletrônico da Agencia Informativa de la Izquierda Mexicana, acerca de uma das grandes marchas ocorridas nos anos de 2014 e 2015, no Distrito Federal mexicano, por ocasião do desaparecimento de 43 estudantes de uma escola normal rural de Ayotzinapa, no estado de Guerreiro: “Marchas de lunes dejaron perdidas por 91 millones de pesos”. Ainda, segundo a reportagem: “significaron un “lunes negro” para la movilidad y el comercio (…) de la capital del país (...) en las avenidas y calles por donde pasaron las diferentes manifestaciones que partieron de los cuatro puntos cardinales del Distrito Federal” (PAEZ, 2015)27. Dentro desse contexto, cabe registrar que, segundo Caiafa (2007), o Estado modernizante vem sendo protagonista no processo de privatização paulatino do espaço das ruas e do seu imaginário, ao priorizar, por exemplo, a destinação de boa parte dos recursos públicos ao subsidio e financiamento do mercado automobilístico mundial28.

27 Reportagem de Alejandro Paez (2015), Marchas de lunes dejaron perdidas por 91 milliones de pesos. Disponível em: . Acessado em: 02 fev. 2015. 28 Especificamente, sobre desoneração fiscal e financiamento governamental brasileiro às indústrias automobilísticas, bem como o valor de investimento e remessa das filiais, que se localizam em território nacional, às suas respectivas matrizes, de 2008 a 2010, cabe registrar que: “(...) a arrecadação federal com o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] automotivo reduziu de 6 bilhões de reais, em 2008, para pouco mais de 2 bilhões de reais, em 2009. Nesse ano foram comercializados 3,1 milhões de veículos ante 2,8 milhões, em 2008. Em 2010, a arrecadação recuperou-se com o final das reduções tarifárias e o forte aumento das vendas (3,5 milhões de unidades vendidas), atingindo 5,7 bilhões de reais. Ao mesmo tempo que as remessas ao exterior [das

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Ao estimular a construção de rodovias, estacionamentos, viadutos, autoestradas para os veículos, prioritariamente privados, trafegarem, em detrimento do investimento em melhorias do transporte coletivo, atenção ao pedestre, construção de ciclovias, espaços públicos de uso coletivo do solo urbano, habitações populares não segregadas, etc., o Estado capitalista, sobretudo nos países periféricos, contribui para o solapamento do debate e da organização social voltada às lutas pelo direito à cidade29. No Brasil, especificamente, a ideia de gestão compartilhada do transporte público, por exemplo, pouco vingou nas cidades. As diversas administrações assumiram, na maioria das vezes, uma posição não democrática e de não transparência em relação ao planejamento e aplicação dos recursos públicos, concedendo à iniciativa privada a exploração do serviço do transporte coletivo. Um claro exemplo da baixa incidência de experiências em gestão compartilhada do transporte coletivo no país é o pequeno poder de pressão que o grupo dos portadores de deficiência e mobilidade reduzida, um dos mais afetados e fadados, muitas vezes, à imobilidade, possuem para influenciar a formulação e implementação de políticas públicas de mobilidade urbana mais acessível30. Assim, o oferecimento de um serviço de má qualidade que concorre com a crescente frota de veículos particulares, aliado à resistência por parte das empresas e dos órgãos governamentais na formação de fóruns públicos de debates com a participação permanente dos usuários, enquanto protagonistas desse serviço, acaba por não favorecer “uma relação desejante [do usuário] com o transporte” (CAIAFA, 2007, p. 65). Apesar de todos esses fatores que concorrem para o enfraquecimento da luta pelo transporte público acessível e de qualidade no país, é notória a resistência histórica, por parte de seus usuários, em meio a uma sociedade do automóvel. Assim, vale destacar que a luta pelo direito ao transporte público é uma pauta histórica das demandas populares no Brasil, filiais às matrizes] se elevaram, as empresas do setor automotivo tomaram financiamentos de 8,7 bilhões de dólares (aproximadamente, 16,3 bilhões de reais) ao BNDES no período 2008-2010. Por outro lado, a média anual de investimentos produtivos foi da ordem de 2 bilhões de dólares para as montadoras e de 1,3 bilhão de dólares para as autopeças nos últimos anos. Isso significa que quase a totalidade dos recursos necessários para financiar seus investimentos saiu dos cofres públicos, enquanto parcela expressiva dos lucros foi transferida para as matrizes". (SARTI; HIRATUKA, Carta Capital, 2011). Disponível em: . Acessado em: 25 set. 2013. 29 Vale destacar que “a luta pela Cidade como direito aponta a desigualdade sócio espacial, caracteriza a utopia do tempo presente – encontrar soluções e/ou melhorias hoje. Parte da premissa segundo a qual a cidade é produzida por todos e, como tal, deve ser usufruída por todos. Entre seus princípios considera-se que a cidade como direito é um direito coletivo; assim valoriza-se o uso em detrimento do valor de troca. Direito de usufruir e não o de ter a propriedade sagrada e sacralizada. Trata-se também de entender a cidade como espaço e de ter o direito ao uso universal do espaço público” (RODRIGUES, 2008, s/p). 30 O tema sobre a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência e mobilidade reduzida será analisado no Capítulo 3.

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vide, por exemplo, as revoltas ocorridas no Rio de Janeiro, conhecidas como do Vintém e das Barcas (de 1879 e 1959, respectivamente); do Quebra-quebra, em 1947, na cidade de São Paulo; a Revoltas do Buzú, ocorrida em Salvador, em 2003; a Revolta da Catraca, realizada em Florianópolis nos dois anos seguintes; a constituição, a partir dessas mobilizações anteriores, em 2005, do Movimento Passe Livre, como um movimento nacional unificado, de caráter horizontal, autônomo e apartidarista31, em uma plenária realizada paralelamente ao Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre – RS; bem como as Manifestações de Junho de 2013, contra o aumento das tarifas do transporte público em São Paulo, que se espalharam em diversas cidades do país, apenas para citar algumas32. A conjunção das mobilizações em torno da universalização e qualidade do transporte público e da ampliação, integração e democratização de outros modais de transporte urbano, seguramente, está relacionada à reivindicação do espaço público urbano como um espaço que deve ser priorizado aos indivíduos não motorizados. Se, por um lado, em 2008, Maricato se questionava “por que movimentos sociais de ciclistas, pedestres, urbanistas, ambientalistas não ganha[vam] repercussão?”, hoje, essa indagação vem sendo respondida com a presença crescente das demandas de alguns desses movimentos nas ruas das cidades brasileiras33.

31 Segundo Scarcelli (2014), é notório observar uma tensão existente entre os defensores de uma perspectiva mais descentralizada e apartidarista de como devem ser conduzidos os rumos do Movimento e os filiados de partidos políticos de esquerda que, segundo os primeiros, tentam encapsular a pauta, aparelhando o Movimento. Cabe salientar que essa tensão foi explicitamente observada nas Manifestações de Junho de 2013. Scarcelli (2014) relembra, no entanto, que segundo fala de lideranças e documentos produzidos pelo MPL, o Movimento se definiu como apartidarista, o que não impede, no entanto, que partidos políticos, sindicados e outros movimentos sociais se juntem à luta, desde que respeitados os princípios deste Coletivo. 32Apesar das incontáveis manifestações contra o aumento de passagens e a má qualidade do transporte público em diversas cidades brasileiras, a regra histórica é a de que elas se realizem de forma mais espontânea, logo, muitas vezes, mais explosiva, de alcance localizado e com pequeno fôlego de permanência da mobilização. Por isso, geralmente, são denominadas de “revoltas” e suas táticas de pressão vão desde o bloqueio de importantes vias de circulação, congestionando o trânsito da região, até mesmo, em casos extremos, a queima de unidades do transporte público, como os ônibus, por exemplo. Seguramente, essas manifestações alteram a rotina carrocêntrica das cidades, sendo muito comum se escutar, como grito de guerra, a seguinte frase: “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar!” (Scarcelli, 2014). Para um debate mais profundo sobre o tema, vide livro organizado por Maricato et al., Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, de 2013. 33 Recentemente, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação civil pública no Tribunal de Justiça também do estado de São Paulo, solicitando a paralização das obras de todas as novas ciclovias da cidade, alegando, dentre outros itens, que estudos de impactos viários deveriam ter sido feitos antes do início da realização das obras, como “projeto básico e projeto executivo”. Em caráter liminar as obras foram suspensas, sendo que poucos dias depois a liminar caiu e as obras foram retomadas. Cabe ressaltar, para além do imbróglio jurídico em si, as mobilizações nacionais e internacionais em favor da continuidade das obras das ciclovias. No dia 27 de março, dia em que caiu a liminar, foi realizado um grande “bicicletaço” na Avenida Paulista, além de vários outros terem sido marcados em diversas cidades do Brasil e do mundo em solidariedade com a luta paulistana. Em breve análise realizada pelo ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, argumenta que manifestações como o “bicicletaço” “representa[m] uma nova forma de participação política, que transcende[m] os limites da atuação partidária”. Embora, para o analista, os partidos políticos sejam imprescindíveis para o processo

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Porém, ainda assim, cabe destacar que a resposta a essa pergunta é extremamente complexa, multifatorial e plural, a depender do espaço geográfico analisado. As cidades europeias, por exemplo, possuem uma antiga tradição de mobilização e luta política de reivindicação do espaço público como espaço de prevalência dos não motorizados. Nos países capitalistas periféricos, mais especificamente no Brasil, é possível encontrar, sobretudo a partir do século XXI, diversas experiências políticas mais estruturadas desse tipo. Essa problemática em torno desses movimentos sociais urbanos contemporâneos voltará a ser discutida com mais profundidade no Capítulo 5, onde o caminhar como direito será investigado como ponto de pauta dessas agendas coletivas.

1.2 O ABANDONO DAS CALÇADAS AOS PROPRIETÁRIOS PARTICULARES

Pesquisa, ainda inédita, realizada no final de 2013 pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) confirma: a população brasileira está muito descontente com o transporte público oferecido no país. O resultado parece óbvio, mas os dados colhidos nas entrevistas revelam que a pior parte das viagens diárias não está nos ônibus e trens superlotados, mas no caminho – a pé – até chegar ao ponto de embarque, geralmente um poste ou um abrigo sujo e deteriorado. Enfim, apesar dos congestionamentos que travam as ruas, o pior problema de mobilidade reside nas calçadas das cidades brasileiras. (SOUZA, 2014, s/p).

Da casa para o trabalho, do trabalho para casa, passando brevemente em um supermercado ou um shopping center. Essa é a síntese, talvez um pouco exagerada, de uma cidade que há muito vem eliminando a pulsão de vida de suas relações cotidianas. Segundo Hillman (1993), inúmeros problemas nas calçadas e nas relações urbanas surgem quando se “ignora os pés” na estruturação das cidades, contribuindo, assim, para uma espécie de ciclo vicioso onde, cada vez, se caminha menos:

É claro que as cidades mais modernas têm problemas nas calçadas, uma vez que os pés são ignorados. As ruas rapidamente se tornaram regiões de crimes: feche as janelas, tranque as portas, rápido. O crime nas ruas psicologicamente começa com um mundo onde não se caminha; começa na prancheta do urbanista, que vê as cidades como um amontoado de arranha- céus e de shopping centers com ruas que servem meramente de acesso entre eles. (HILLMAN, 1993, p. 55-56, grifo nosso).

democrático, esse tipo de atuação coletiva inova e transcende concepções estabelecidas da ação política (MOBILIZE, 26 mar. 2015; REDE BRASIL ATUAL, 30 mar. 2015).

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É dentro deste contexto, mediado por uma ideologia rodoviarista/carrocêntrica, (JACOBS, 2009; LUDD, 2004; LAGONEGRO, 2008; MARICATO, 2008), como visto no subitem 1.1.1., que surge a figura jurídica e sociológica do pedestre, o transeunte que caminha em seu local delimitado de atuação nos espaços públicos, a calçada. Por muito tempo, ao longo da história, as pessoas que se deslocavam a pé conviviam, ainda que de forma caótica, como visto anteriormente, no relato de Jacobs (2009), no mesmo espaço com veículos movidos a tração animal, inclusive humana. É uma realidade relativamente recente no ordenamento jurídico urbano das cidades a separação entre vias carroçáveis para a circulação dos automóveis (e, mais recentemente, das bicicletas) e calçadas destinadas aos pedestres. Segundo Malatesta (2007, p. 36), “[a] primeira experiência de área exclusiva para pedestres surge na Alemanha, em Essen nos anos vinte, sendo estendida após o final da 2ª Guerra”.

Figura 01 - Quadro de Heitor dos Prazeres representando a vitalidade das ruas da periferia da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX

Heitor dos Prazeres, sem título, óleo sobre tela. Fonte: Site – Arte Popular Brasil (2014)34.

Fundada na argumentação de que o aumento da potência dos motores e da quantidade dos automóveis nas cidades implicaria no crescimento de colisões no tráfego, a normatização das regras de trânsito foi sendo desenvolvida. Porém, em termos práticos, o que

34 Disponível em: . Acessado em: 07 out. 2015.

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ainda prevalece em muitos países é a “lei do mais forte”, onde o transporte motorizado reina sobre as pessoas a pé. Prova disso são os números alarmantes de mortos e feridos por acidente de trânsito registrados, ano a ano, nas diversas cidades do mundo35. Discorrendo ainda sobre o tema da segurança ou da falta dela, quando o assunto é a qualidade das calçadas no Brasil, não é necessária uma investigação muito profunda para afirmar que grande parte delas se encontra em condições precárias para se caminhar36. Segundo Jacobs (2009, p. 29), “[...] quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela, é perigosa ou selvagem, o que querem dizer basicamente é que não se sentem seguras nas calçadas”. A autora ainda salienta que:

Calçadas com nove ou dez metros de largura são capazes de comportar praticamente qualquer recreação informal – além de árvores para dar sombra e espaço suficiente para a circulação de pedestres e para a vida em público e o ócio dos adultos. Há poucas calçadas com largura tão farta. Invariavelmente, a largura delas é sacrificada em favor da largura da rua para os veículos, em parte porque as calçadas são tradicionalmente consideradas um espaço destinado ao trânsito de pedestres e ao acesso a prédios e continuam a ser desconsideradas e desprezadas na condição de únicos elementos vitais e imprescindíveis da segurança, da vida pública e da criação de crianças nas cidades. (JACOBS, 2009, p. 95, grifo nosso).

O tema da falta de prioridade das calçadas no urbano está diretamente relacionado à lógica da cidade como espaço de produção e, particularmente, à rua como espaço privilegiado de circulação das mercadorias, pois, como visto anteriormente, a dinâmica das “cidades empresas” pressupõe a regulação do espaço público, por meio do poder público, a fim de maximizar a fluidez da acumulação capitalista. Rodrigues (2008, p. 416), por exemplo, afirma que “na modernidade, a definição de normas e usos do espaço público, nas áreas urbanas, é uma decorrência da propriedade privada, da produção do e no espaço”. Essa reflexão é fundamental para se pensar o

35 O Brasil, particularmente, segundo estudo elaborado pela Organização Mundial da Saúde – OMS, no ano de 2009, para subsidiar a resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas que decretou o período de 2011 a 2020 como a “Década de ações para a segurança no trânsito”, ocupa a 5ª posição, em mortes no trânsito, em um ranking com 178 países. Ainda, segundo a OMS, os acidentes de trânsito estão entre as 10 maiores causas de morte em todo o mundo, sendo os jovens de 15 a 29 anos suas maiores vítimas. Disponível em: . Acessado em: 10 abr. 2015. Cabe registrar, por fim, que, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Alberto Luiza Coimbra de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Coppe/UFRJ, acidentes de trânsito deixaram, de 2003 a 2012, cerca de 536 mil mortos nas cidades brasileiras. Disponível em: . Acessado em: 10 abr. 2015. 36 No site da organização não governamental Mobilize: Mobilidade Sustentável é possível encontrar uma série de reportagens e comentários de leitores sobre os problemas cotidianos encontrados nas calçadas de inúmeras cidades brasileiras. Disponível em: www.mobilize.org.br.

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significado das calçadas para a dinâmica da vida pública urbana e, mais particularmente, para a viabilidade do caminhar nas cidades, onde “desde o final do século XIX, é o Estado capitalista que define as formas pelas quais o espaço privado “doa” as áreas públicas” (RODRIGUES, 2008, s/p). Ainda Rodrigues (2008), em diálogo com o sociólogo e historiador Christian Topalov (1979), ressalta que a “socialização capitalista dos meios de produção” é quem delimita e configura os espaços públicos, como “os espaços de circulação, de praças, de equipamentos públicos”: “um dos exemplos é o de que se as estradas fossem propriedades privadas, se as vias não fossem coletivizadas, criar-se-iam entraves para a circulação de mercadorias e de pessoas, de interesse da economia capitalista” (RODRIGUES, 2008, s/p). Nesse sentido, cabe ressaltar que não só as normas e usos do espaço público são decorrentes da propriedade privada, como a própria propriedade privada e, logo, os espaços públicos são oriundos da expropriação histórica da propriedade coletiva da terra. A origem e a finalidade de criação dos parques37 na Inglaterra, a partir do século X, por exemplo, estariam diretamente relacionadas às demarcações da propriedade privada do campo, ou melhor, à usurpação das terras comunais para servir de bens coletivos a um público privado, como exemplifica Williams (1989, p. 169):

Os parques que originalmente eram bosques cercados para a formação de reservas de caça, foram criados a partir do século X, não antes, e houve um aumento significativo de número de parques, diretamente proporcional ao número de novos palácios rurais, no século XVI. Boa parte dos cercamentos e das construções de casas se deu às custas de aldeias e plantações inteiramente arrasadas. Os proprietários rurais ingleses do século XVIII, adotando esses mesmos procedimentos, tiveram gerações de antecessores que praticavam a imposição e o roubo.

Dentro desse contexto histórico, se, por um lado, há uma clareza jurídica, no Brasil, sobre de quem é a responsabilidade pela construção e manutenção das vias de

37 Serpa, por sua vez, desenvolve o argumento de como, nas cidades contemporâneas, os parques públicos se converteram, de forma progressiva, em instrumentos de valorização imobiliária, mediado por um “mercado da paisagem e do paisagismo”, apontando para as tensões e contradições advindas dessa seletiva apropriação do espaço público coletivo: “A soma de processos de apropriação de um coletivo de indivíduos não é suficiente para legitimar a noção de espaço público. O parque público é um espaço aberto à população, acessível a todos, posto à disposição dos usuários, mas todas essas características não são suficientes para defini-lo como espaço público. Esse processo é, por um lado, o resultado de uma concepção (e da promoção) do parque público como cenário, destinado à fascinação dos futuros usuários, transformando-o em uma espécie de imagem publicitária das administrações locais, sem nenhuma continuidade com práticas sócias que pudessem dar-lhe algum conteúdo e significado (ARANTES, 1998). Com a instauração e consolidação de um mercado da paisagem e do paisagismo, os novos parques, são, hoje, mediadores da cultura oficial, nivelando as diferenças e fazendo emergir uma representação estática, teatralizada e simplificada da “Natureza” no contexto urbano” (SERPA, 2007, p. 37).

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circulação motorizada, justamente devido a sua importância para a realização do ciclo da acumulação privado do capital; por outro, há um completo obscurecimento sobre a quem cabe edificar e conservar as calçadas no país. Na literatura jurídica existente, por exemplo, encontram-se duas interpretações vigentes: de um lado, o entendimento de que a calçada é de responsabilidade dos particulares que possuem propriedades adjacentes às vias “peatonais”; e, de outro, a interpretação de que, constitucionalmente, as calçadas devem ser responsabilidade dos Municípios (BEZERRA, 2012; CUNHA; HELVECIO, 2013; MALATESTA, 2007, 2014; MOBILIZE, 2013; SOUZA, 2014). Ao longo do tempo, há vigorado o primeiro juízo no Brasil, ainda que existam posições consistentes em desacordo. Bezerra (2012), por exemplo, defende que as calçadas urbanas, como consta no Código de Trânsito Brasileiro, pertencem ao conjunto de bens públicos38 municipais e que, por isso, seria inconstitucional “a legislação que imputa a responsabilidade precípua pela sua feitura, manutenção e adaptação aos particulares proprietários de imóveis urbanos”39. Esse autor também salienta que “o artigo 23, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o qual, ao tratar da competência administrativa [...] atribui aos entes federados, de maneira expressa, a competência quanto à conservação do patrimônio público” (BEZERRA, 2012, s/p). Essa falta de clareza jurídica, norteada por uma compreensão política governamental que desvaloriza o andar a pé como modalidade de transporte urbano, contribui para o pouco avanço em medidas efetivas de responsabilização, fiscalização, padronização e acessibilidade das calçadas nas cidades brasileiras. Ainda, segundo Bezerra (2012, s/p), essa “ausência de acessibilidade acarreta [...] ofensa à Constituição, uma vez que impede o exercício da liberdade individual de ir e vir das pessoas com deficiência ou com dificuldade locomoção”. Segundo estudo realizado pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP), calcula-se que 171 mil pessoas são vítimas de quedas nas calçadas na Grande São Paulo por ano, gerando um custo de R$ 2,9 bilhões ao Estado com resgate,

38 Também, segundo Bezerra (2012, s/p), “[...] nesse contexto, vale relembrar que, nos termos do art. 98 do Código Civil, bens públicos são aqueles pertencentes as pessoas jurídicas de direito público interno, id est, União, Estados, Distrito Federal e Município, além dos respectivos entes integrantes da Administração Indireta”. Disponível em: . Acessado em: 02 jul. 2014. 39 Um exemplo de imputação da responsabilidade das calçadas aos particulares pode ser encontrado na legislação de Natal – RN, onde, segundo Bezerra (2012, s/p), “(...) o artigo II da própria Lei Municipal n. 275/2009 atribui ao particular que detenha imóvel contíguo a calçada a responsabilidade precípua pela sua execução e manutenção”.

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tratamento e reabilitação: “[o] valor é 45% maior que o custo social causado por acidentes com veículos motorizados na região metropolitana de São Paulo” (CASTRO, 2012, s/p)40. Dentre as recomendações apresentadas pelo estudo, encontra-se a defesa da criação de registro das quedas nas calçadas como acidentes de trânsito, pois, pela inexistência de registros, não existe uma estimativa concreta de quantas quedas acarretariam vítimas fatais. Além disso, o estudo recomenda que seja de responsabilidade das prefeituras a padronização e a acessibilidade na construção, bem como a fiscalização da manutenção das calçadas, com o objetivo de reduzir tais acidentes (CASTRO, 2012, s/p). Embora o deslocamento a pé seja uma das modalidades de transporte mais utilizadas nos meios urbanos brasileiros, onde, segundo dados produzidos pela pesquisa do IBGE, Características Urbanas do Entorno das Habitações41, com dados do Censo 2010, “cerca de 30% das viagens cotidianas são realizadas a pé, principalmente em função do alto custo do transporte público” (MOBILIZE, 2013, p. 05), as calçadas se encontram, muitas vezes, em completo abandono, sobretudo se localizadas nas periferias urbanas. Segundo o Gráfico 1, abaixo, em termos absolutos, se por um lado, 96,3% do entorno dos domicílios brasileiros apresentam iluminação pública, por outro, apenas 4,7% apresentam rampas para cadeirantes, o que demonstra a enorme dificuldade de circulação de idosos, pessoas com alguma deficiência de locomoção e até mesmo carrinhos de bebê. Ainda em termos absolutos, vale destacar que cerca de 30% do entorno dos domicílios brasileiros não possuem calçadas. Esse dado poderia ser ainda maior se, conforme nota de rodapé 41, fossem considerados os “setores rurais como aqueles urbanos de aglomerado subnormal (assentamentos informais), que não dispunham de quadras e faces identificáveis”.

40 A CET-SP baseou-se em uma pesquisa de 2003, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, fazendo uma projeção dos dados para 2012 (CASTRO, 2012, s/p). 41 Na pesquisa, Características Urbanas do Entorno das Habitações, cabe destacar que, em termos metodológicos, “devido à necessidade de coletar informações por face de quadra, assim como as dificuldades logísticas e o alto custo, foram excluídos da pré-coleta os setores onde não se dispunha de um arruamento regular. Assim sendo, tanto os setores rurais como aqueles urbanos de aglomerado subnormal (assentamentos informais), que não dispunham de quadras e faces identificáveis, não foram objeto da pré-coleta” (IBGE, 2012, p. 21).

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Gráfico 1 - Percentual de domicílios particulares permanentes urbanos, segundo as características do entorno dos domicílios – Brasil, 2010

Fonte: Mobilize42

Como o Brasil ainda é um país extremamente desigual, a simples análise de dados estatísticos absolutos pode comprometer a real compreensão da situação das características do entorno dos domicílios brasileiros, sendo necessário destrinchá-los, por exemplo, em termos do “perfil demográfico e econômico dos moradores residentes em domicílios em distintas áreas urbanas do País”, além do geográfico (IBGE, 2012, p. 42). Assim, segundo o Gráfico 2, abaixo (IBGE, 2012), é possível identificar uma discrepância significativa nos indicadores, por classes de rendimento nominal mensal domiciliar. Vale destacar que o agrupamento dos dados foi realizado em uma escala que varia de até ¼ de salário mínimo a mais de 2 salários mínimos. Isso significa que, se houvesse uma segmentação dos dados estatísticos concentrados na categoria mais de 2 salários mínimos, as desigualdades das características do entorno domiciliar brasileiro seriam ainda mais gritantes. Mas uma vez, enquanto a iluminação pública se encontra presente no entorno dos domicílios brasileiros de forma massiva, o mesmo não se pode dizer das calçadas públicas.

42 Disponível em: . Acessado em: 18 jun. 2014.

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No caso do entorno dos domicílios com até ¼ de salário mínimo, as calçadas estão presentes em apenas 45%, já no entorno dos domicílios com mais de 2 salários mínimos, o entorno se encontra quase que completamente calçado, com 87,4%. Por outro lado, o esgoto a céu aberto está presente em 24,9%, no segundo grupo (até ¼ do salário mínimo), e apenas 3,8% no primeiro (maior que 2 salários mínimos). Por fim, vale destacar que, se em termos absolutos a acessibilidade dos cadeirantes é extremamente baixa, a desigualdade de acesso entre o entorno dos domicílios com até ¼ de salário mínimo e o entorno dos domicílios com mais de 2 salários mínimos é ainda mais explícita, sendo de apenas 1% para o primeiro grupo e de 12,2% para o segundo.

Gráfico 2 - Percentual de domicílios particulares permanentes urbanos, por classe de rendimento nominal mensal domiciliar, segundo as características do entorno dos domicílios – Brasil, 2010

Fonte: Mobilize43

43 Disponível em: . Acessado em: 18 jun. 2014.

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Esses dados revelam que a dificuldade de mobilidade nas calçadas das cidades brasileiras é universal, porém a magnitude dos obstáculos encontrados para os que caminham nas cidades varia de acordo com “as condições de moradia, os serviços de saneamento, o perfil demográfico e econômico dos moradores residentes em domicílios em distintas áreas urbanas do País” (IBGE, 2012, p. 42). Rolnik alerta, por fim, que a sistemática adoção de “um modelo de gestão privada e individual das calçadas” nunca será capaz de enfrentar o problema da mobilidade urbana peatonal integrado a um sistema de circulação urbana mais amplo:

Dificilmente um modelo de gestão privada e individual das calçadas dará conta de enfrentar o problema. Uma calçada segura e confortável para os pedestres tem que ser parte integrante de um sistema geral de circulação da cidade, que historicamente cuida do chamado leito carroçável, onde andam os veículos, mas nunca cuidou dos pedestres e dos ciclistas. E não é a soma de pedacinhos picados de trechos de rua – interrompido aqui e ali, entrecortados por guias rebaixadas, nada uniformizados do ponto de vista do revestimento, desenho e implantação – que vai resolver o problema. Mesmo que o proprietário cansado de pagar multas resolva reformar o “seu” pedaço de rua. (ROLNIK, 2012, s/p).

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2 O PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS E A CRIAÇÃO E MATERIALIZAÇÃO DA IDEOLOGIA DO MEDO NO/DO URBANO

Figura 02 - Placa indicando “rua particular”

Fonte: foto registrada pela autora – Barão Geraldo, Campinas-SP (2010).

Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, associada a todas as outras ideias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! [....]. Sair só é a única preocupação das crianças até uma certa idade. Depois continuar a sair só. E quando já para nós esse prazer se usou, a rua é a nossa própria existência. Nela se fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as ideias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção. (RIO, s/d, p. 09)

A disputa pelo controle da dinâmica espacial das cidades capitalistas contribui para que o debate sobre a organização e a centralidade do espaço público na contemporaneidade encontre-se extremamente atual. Segundo Rabotnikof (2005), “todo el mundo invoca el espacio público” e, dependendo da abordagem teórico-metodológica de que se parta, pode-se observar tal problemática das mais variadas formas. Em termos de constituição e representação do espaço público no debate moderno, Rabotnikof aponta que:

Hace ya muchos años, algunos teóricos de la política diagnosticaron su eclipse. Hoy están los que dicen que ya no es lo que era y quienes afirman que nunca fue. Otros (los más confiados) auspician su fortalecimiento. Algunos lo consideran sinónimo de vida pública; otros, condición de civilidad. Casi todos lo reivindican como un concepto central de cualquier aspiración democrática. (RABOTNIKOF, 2005, p. 09).

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Assim, antes de abordar propriamente o processo de intensificação das privatizações dos espaços públicos urbanos nas cidades contemporâneas, cabe realizar uma sumária digressão conceitual acerca das esferas pública e privada, tendo em vista que as categorias analíticas espaciais “público” e “privado” se encontram inseridas na dinâmica da vida societal mais ampla, constituída por ambas as esferas supracitadas, representadas por processos de busca coletiva do bem comum e busca individual do bem privado, respectivamente.

2.1 AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA NA MODERNIDADE

O debate sobre a constituição e a prevalência das dimensões das esferas pública e privada ao longo da história ocidental é amplamente desenvolvido na literatura mundial, tendo em Hanna Arendt e Jürgen Habermas grandes expoentes, senão os mais importantes do século XX44. Outros pensadores contemporâneos, como Norbert Elias e Richard Sennett, por exemplo, também foram de suma importância para aclarar, por meio de inúmeros exemplos históricos, a emergência e a centralidade das concepções de indivíduo, individualidade, individualismo e intimidade em um processo de transição para a modernidade (com o surgimento dos estados-nação e do capitalismo), que transformaram radicalmente a relação entre as esferas pública e privada. Tecendo uma crítica profunda à eminente suplantação do privado em relação à moderna concepção de esfera social, Arendt ressalta, em A Condição Humana, que “a polis era para os gregos, como a res publica para os romanos, em primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade dos mortais” (ARENDT, 1991, p. 66). A filósofa alemã reestabelece, então, um diálogo positivo sobre a organização política clássica grega e romana, onde “[o] surgimento da cidade-estado significa que o homem recebera, ‘além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos (...)’” (ARENDT, 1991, p. 33). O espaço público, para Arendt (1991), assim, é o espaço da pluralidade, do aparecer, do ser visto e ouvido pelos demais, além de ser o espaço da continuidade temporal, que transcende gerações, inclusive a própria finitude humana. Rabotnikof afirma que, para

44 Não se pretende aqui tecer uma análise exaustiva sobre as esferas público e privado na obra de Hanna Arendt e Jürgen Habermas. Procurar-se-á, ao invés disso, centrar uma análise pontual no debate proposto nas obras A Condição Humana, de Arendt, e A Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas, e dialogar com a interpretação de Rabotnikof (2005) sobre a injunção esfera pública/privada para esses dois filósofos.

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Arendt, “[…] la ausencia de marco de referencia común, que se da en situaciones de aislamiento y privatización radical, está íntimamente relacionada con la ausencia de pluralidad, con una visión del mundo sustancialmente común” (RABOTNIKOF, 2005, p. 117). Com isso, a filósofa política alemã procura reconstruir o significado, o papel e as delimitações precisas das esferas pública45 e privada sobre o ser político na antiguidade clássica46. Essa análise histórica é utilizada, segundo Arendt (1991), para se compreender o declínio da esfera pública na modernidade, que levou inclusive, segundo a autora, à emergência de experiências coletivas nunca antes existentes na história: como a violência absoluta, guiada exclusivamente pela força, excluída da mediação humana das palavras e da persuasão. Arendt, ainda em A Condição Humana, afirma que, entre os gregos, a propriedade privada, longe de estar associada a um processo de acumulação, só era importante porque liberava os seres políticos do reino das necessidades, levando-os a ingressarem, assim, no reino da liberdade, ou seja, no universo da polis:

Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma vida política, era como se ele espontaneamente sacrificasse a sua liberdade e voluntariamente se tornasse aquilo que o escravo era contra a vontade, ou seja, um servo da necessidade. (ARENDT, 1991, p. 75).

A propriedade privada, encarnada no lar, na família e nos escravos cumpriria as seguintes funções, segundo Arendt (1991): a) manutenção da subsistência do “homem público” (“domínio [...] das próprias necessidades vitais”); b) lugar de resguardo contra as intempéries do mundo; e, c) local privilegiado para a “mais severa desigualdade” social, qual seja: lugar específico onde o “homem público” poderia agir de maneira privada e arbitrária, muitas vezes de forma violenta e despótica, liberando a esfera pública para a expressão plural entre cidadãos iguais.

45 Ainda segundo Arendt, “[…] la esfera pública, como mundo-en-común, nos junta y, no obstante, impide que caigamos uno sobre otro, por decirlo así” (ARENDT apud RABOTNIKOF, 2005, p. 117). 46 Ainda sobre a distinção entre público e privado na antiguidade clássica, Rabotnikof, em diálogo com Arendt, argumenta que “[...] la polis griega, en efecto, parecia articular estos tres sentidos de lo público. La politeia incluía el tratamiento de los asuntos comunes por los ciudadanos libres, la participación activa en la construcción y la defensa de la comunidad política. En el segundo sentido, la actividad pública, en contraste con la oscuridad del ámbito doméstico, se desenvolvía a la luz del día y en presencia de otros. Por último, la polis hacía referencia a un espacio potencialmente abierto a todo el demos, a la ampliación progresiva del círculo de los iguales ante la ley. Lo colectivo, lo manifiesto y lo abierto se aunarían en una imagen paradigmática de lo público que, desde entonces, no cesa de ejercer su influencia sobre la reflexión occidental. En la modernidad, esta imagen resurgirá en casi todas las concepciones normativas del espacio público” (RABOTNIKOF, 2005, p. 31, grifos da autora).

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Segundo Arendt (1991), a esfera econômica e social não existia autonomamente, estando, sim, subordinada à esfera do privado. Foi na modernidade que a sociedade47 não só se tornou categoria primordial, como passou a abarcar a categoria da política, antes relacionada à esfera pública. Em suas palavras:

A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública. (ARENDT, 1991, p. 56).

Arendt (1991) enxergou nesse emaranhado de supressão, criação e inversão dos conteúdos das esferas, o declínio da vida pública moderna por meio dos processos de massificação da sociedade, mercantilização da esfera pública e centralização burocrática do Estado, onde a política acabou, por fim, por se identificar exclusivamente com as atividades do Estado. Segundo a filósofa republicana, a esfera pública, como espaço político igualitário e isonômico, ocupado tanto por governantes quanto por governados, sucumbiu na modernidade. A dinâmica inerente à esfera privada teria invadido e suplantado, assim, a lógica da esfera pública, abrindo-se espaço, com isso, para que o exercício despótico familiar do chefe da casa se expandisse e se tornasse hegemônico nesta esfera de poder. Rabotnikof, em diálogo com Arendt, ressalta que:

El nítido modelo de diferenciación entre lo público y lo privado en la Antigüedad clásica garantizó su complementariedad. El supuesto de Arendt (presente a lo largo de toda su obra) es que allí donde los principios de un ámbito irrumpen en el otro, ambos terminan viciados. Si bien esto ha ocurrido históricamente por diferentes causas, el resultado parece ser el mismo: privatización del ciudadano, imposición en la polis de formas despóticas, desiguales y coercitivas características del oikos, el asalto a la privacidad por parte de una forma espuria de lo público. (RABOTNIKOF, 2005, p. 122).

Seguindo um pouco mais adiante com o debate, cabe destacar, ainda que de forma igualmente breve, o enfoque dado pelo também filósofo alemão, Jürgen Habermas. Diferentemente de Arendt (1991), Habermas (1984) se concentra na análise da modernidade,

47 Rabotnikof relembra que, para Arendt, “[…] lo social se caracteriza como lo privado ampliado y coincide aquí con que los asuntos domésticos se vuelven públicos y con el desarrollo del aparato administrativo estatal para la planeación y resolución de las necesidades globales. (...). En La Condición Humana, el ascenso de lo social se refiere entonces a la organización del Estado como empresa y a la mercantilización de la esfera pública, que la trasforma en una esfera administrativa” (RABOTNIKOF, 2005, p. 123-124).

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onde a prevalência das razões instrumental e comunicativa corresponde aos mecanismos de interação social existentes nas esferas econômica e cultural respectivamente. Para Habermas (1984), nos processos de modernização que permitem assegurar a reprodução material e institucional da sociedade através da economia e do Estado, a razão que impera é a instrumental, tendo o dinheiro e o poder como mecanismos autoregulatórios, deixando para segundo plano a utilização da linguagem como mecanismo de interação social nas barganhas e competição dentro desses dois subsistemas. Esse processo de racionalização é duramente criticado por Habermas (1984), pois exclui a possibilidade do uso da razão comunicativa48, onde apenas a pequena parcela da sociedade que atua nesses dois subsistemas está autorizada e legitimada a definir os rumos dessas instituições, sem haver uma consulta, um diálogo, com o restante da sociedade. Habermas (1984) observa que a razão instrumental passou a invadir, a colonizar os demais subsistemas culturais, minando cada vez mais as potencialidades da razão comunicativa na modernidade:

la penetración de las formas de racionalidad administrativa y económica en ámbitos de acción que, por ser ámbitos especializados en la tradición cultural, en la integración social en la educación, y por necesitar incondicionalmente el entendimiento como mecanismo coordinador de las acciones, se resisten a quedar asentados sobre los medios dinero y poder. (HABERMAS apud RABOTNIKOF, 2005, p. 191).

Também, diferentemente de Arendt (1991), Habermas não enxerga na dicotomia público e privado duas esferas antagônicas e, sim, propõe uma mediação dialética entre esses dois polos com o objetivo de uma maior integração social, tendo como parâmetro o projeto emancipatório burguês clássico de esfera pública, onde o público e os próprios temas que serão tratados no espaço público advém da esfera privada do mundo da vida. Rabotnikof sintetiza a seguir a importância da constituição do Estado burguês de direito no pensamento de Habermas:

La constitución del Estado burgués de derecho será el momento en que este retorno del mundo de la vida se exprese en el reconocimiento constitucional de normas y garantías moralmente justificadas que representan límites al

48 Ainda sobre o conceito de racionalidade comunicativa em Habermas, este “posee connotaciones que en última instancia se remontan a la experiencia central de la capacidad de aunar sin coacciones, y de generar consenso, que tiene un habla argumentativa en la que diversos participantes superan la subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y, merced a una comunidad de convicciones racionalmente motivada, se aseguran a la vez de la unidad del mundo objetivo y de la intersubjetividad del contexto en que desarrollan sus vidas” (HABERMAS apud RABOTNIKOF, 2005, p. 184).

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ejercicio de la dominación: el Estado moderno adquiere una legitimidad asentada en el mundo de la vida y el mundo de la vida logra protección y reconocimiento. El estado democrático de derecho significará una ampliación de esta reivindicación del mundo de la vida; el derecho formal burgués se interpretará kantianamente como garante de la libertad, como freno consecuente a la omnipotencia del Estado. (RABOTNIKOF, 2005, p. 194-195).

É, então, em um Estado democrático de direito49, por meio de “la racionalización del poder público a través de la discusión informada y el consenso razonado” (HABERMAS apud RABOTNIKOF, 2005, p. 166), juntamente com a influência da atuação autônoma e secularizada da sociedade civil, composta por cidadãos livres e iguais, “frente aos imperativos sistêmicos” do mercado e do mundo administrado, que a esfera pública informal50 e formal pode se fortalecer. Em diálogo com Habermas, Rabotnikof (2005, p. 205) afirma, assim, que “[l]os procesos de entendimiento intersubjetivo tienen lugar tanto em la red comunicativa de las esferas públicas informales, como en los procedimentos democráticos institucionalizados”. Segundo o filósofo, é no “mundo vivido” que as experiências culturais, os costumes e as heranças sociais são “perpetuados”. Porém, é nele também que as transformações e os questionamentos da ação e do pensamento são realizados. Essa relação dialética entre continuidade e transformação só é possível, segundo Habermas (1984), graças ao processo de ação comunicativa que, através da razão dialógica, com um alto grau de reflexividade e diferenciação, os diversos grupos e atores sociais podem apresentar seus argumentos nos diversos subsistemas, onde os mais persuasivos e bem fundamentados são respeitados e incorporados nos processos coletivos de aprendizagem, dando ênfase a “la resolución consensuada y la posibilidad de normas universalmente vinculantes” (RABOTNIKOF, 2005, p. 204-205). Portanto, segundo Habermas (1984), o cultivo da razão comunicativa seria uma ferramenta poderosa no processo de interação social na esfera pública. E o poder dessa razão só seria possível na modernidade, onde essa interação e a interpretação dos processos societais encontram-se cada vez mais distantes de explicações dogmáticas e absolutas podendo-se questionar, permanentemente, a “validade” das ações e pensamentos humanos,

49 Rabotnikof (2005, p. 210) sintetiza, a seguir, os princípios norteadores para se “aprofundar a autocompreensão normativa do Estado democrático de direito”, segundo a concepção de Habermas: “(...) tratar de articular, en términos adecuados a la complejidad, autonomia moral individual y soberania popular, moralidade y democracia, derechos humanos moralmente fundados y autonomía ciudadana, autonomía privada y autonomía política, liberalismo y republicanismo”. 50 Segundo Rabotnikof (2005, p. 210), Habermas entende por esfera pública informal os “circuitos informales pero efectivos de circulación del poder factico”.

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livres de coação. Ainda, segundo Habermas (1984), a democracia se encontra, assim, ameaçada com o não cultivo de espaços onde o confronto de ideias e valores entre os diferentes e desiguais deveria acontecer:

El asociacionismo de la sociedad civil, los espacios públicos informales y la instancia legislativa ligada a esas prefiguraciones del mundo de la vida serán ahora, en condiciones modificadas, las sedes de esas resistencias y se encarnarán en la idea de soberanía popular sin sujeto. (RABOTNIKOF, 2005, p. 1999).

Tanto Arendt (1991), como Habermas (1984), procuram resgatar a esfera pública como a possibilidade de constituição de um espaço privilegiado, habitado por iguais, onde a política, ou seja, o trato público da coisa coletiva seria debatido racionalmente, tanto pelo seu afastamento de interesses privados (esfera privada e socioeconômica), como pela diversidade dos “homens políticos” que habitariam essa arena. “Racionalizar el poder: tal parece ser la consigna que alienta la génesis histórica de la esferal ilustrada de lo público” (RABOTNIKOF, 2005, p. 2014). Nas palavras de Arendt (1991, p. 67), portanto, “somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem que veem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de maneira real e fidedigna”. Embora Arendt (1991) e Habermas (1984) tragam contribuições teóricas e históricas fundamentais para se pensar os temas da ação e dos limites do espaço da política na esfera pública moderna, alguns questionamentos aqui podem ser levantados. Influenciados pela tradição kantiana, encontra-se na base do pensamento de Arendt, Habermas e vários outros teóricos políticos a compreensão de que, por meio da racionalização do poder, se pode construir uma esfera pública livre e liberta de interferências sistêmicas e de disputas de classes. A eleição do princípio da razão como mediador emblemático de previsibilidade e legalidade do controle público e das disputas coletivas na esfera pública carrega em si uma concepção idealista da história, “[...] en cuanto discusión desinteresada, las urgencias del entorno no la pertuban. En cuanto ciudadanos, hay igualdad de acceso” (RABOTNIKOF, 2005, p. 214), embora ambos filósofos admitam que historicamente o acesso livre e igualitário à arena pública de discussão e deliberação nunca tenha se concretizado para todos da mesma forma. Assim, Rabotnikof (2005), por sua vez, tece algumas críticas interessantes ao pensamento republicano arendtiano e sua concepção clássica de esfera pública. Segundo

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Rabotnikof (2005), embora Arendt afirme reiteradamente que o espaço público é o espaço da pluralidade de juízos e dos cidadãos iguais, exclui, de forma assertiva, temas ou questões que não deveriam ser debatidos nesse espaço como, “ni la cuestíon social, ni las cuestiones técnicas, ni lo que refiere a la vida biológica, ni la producción ni ciertos sentimentos pueden ser cuestiones públicas” (RABOTNIKOF, 2005, p. 163). Dessa forma, Rabotnikof (2005) conclui que no modelo de reconstituição de esfera pública moderna para Arendt, como espaço da liberdade, não “hay apertura a todos los temas y las cuestiones, ni, en principio a todos los individuos”, já que muitas das questões relacionadas à sociedade e ao Estado, rechaçadas por Arendt, para comporem o debate na esfera pública pertencem a extratos sociais específicos, que marcam as diferenciações históricas assimétricas da “condição humana”. Em relação a Habermas, embora Rabotnikof chame a atenção para a preocupação do filósofo, ao longo de sua obra, em não criar categorias e explicações abstratas totalizantes, vacila em relação a sua concepção de “soberania popular”, e, acaba por fazer com que tal categoria perca “su carne y su sangre, su contenido substantivo” (RABOTNIKOF, 2005, p. 216), ao mirar rumo a uma “moralidade universalizante”. A soberania popular encontra seu refúgio, assim, na sociedade civil e esta, por sua vez, por meio da racionalidade argumentativa ilustrada, deve buscar conhecer e influenciar, mas nunca competir ou desestabilizar o Estado democrático de direito instituído. Diante desse breve panorama sobre as esferas público e privado no pensamento de Hanna Arendt e Jürgen Habermas e sua relação com o Estado, a sociedade e o mercado, travar-se-á a seguir um debate sobre a intensificação do processo de privatização dos espaços públicos urbanos na contemporaneidade que, de forma bastante direta, influencia a dinâmica política da organização espacial das cidades. Os processos de especulação imobiliária com a crescente supervalorização e apropriação privada do solo urbano, e, consequentemente, a seletividade de acesso e permanência nos espaços públicos e coletivos privados, especificamente; bem como a intensificação desses espaços como espaços espetacularizados, transformando, por exemplo, “as festas e manifestações populares em ‘festas-mercadoria’ para o consumo cultural de massa” (SERPA, 2007; LINHARES, 2007), “a valorização do consumo como atividade de lazer” (SERPA, 2007, p. 25), reverberam de forma precisa e sintomática na possibilidade de organização da ação política nas cidades que, dentro de uma perspectiva republicana, contribui para o enfraquecimento da esfera pública como um todo.

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2.2 A INTENSIFICAÇÃO DO PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS

Diante da tripla tendência exacerbada pela globalização – o primado dos fluxos e da circulação, a reviravolta da relação privado-público, uma dinâmica de separação -, diante dos engodos da cidade virtual, pergunta-se como uma experiência urbana pode contrariar os processos em curso reestabelecendo uma cultura dos limites e da proximidade, que vem a ser o ponto nevrálgico da cultura urbana, é a primeira tarefa. (MONGIN, 2009, p. 240, grifo nosso).

As cidades se constituem, ao longo da história, espaços privilegiados de interações sociais heterogêneas e diversas. Criadas inicialmente como espaço de realização da troca, as cidades, definidas por Lefebvre (1969) como “a mediação entre as mediações”, tornaram-se espaços de copresença, caracterizando-se pela vocação em receber e abrigar diuturnamente um sem-número de indivíduos advindos de diversas partes, sobretudo, os expulsos do campo, que tiveram por objetivo reconstruir nesse novo espaço heterogêneo seus vínculos e interações sociais, enfim, suas vidas:

(...) A chegada incessante de migrantes à cidade aumenta a variedade dos sujeitos comuns e das interpretações mais próximas do "real". (...) A temporalidade introjetada que acompanha o migrante contrapõe-se à temporalidade que, no lugar novo, quer abrigar-se no sujeito. Instala-se assim um choque de orientações, obrigando a uma nova busca de interpretações. (SANTOS, 2008, p. 81).

Segundo Caiafa, uma cidade que reúne, por exemplo, densidade de: população, comunicação, circulação, transporte público, alteridade, produção de espaço público, heterogeneidade, dessegregação, horizontalidade, mistura, ocupação coletiva, permite situações de criação subjetiva por intermédio da interação com o Outro, onde “[...] estar entre estranhos é livrar-se em algum grau de sua identidade ou sua definição” (CAIAFA, 2007, p. 94). A cidade, por sua natureza, é o lugar do estrangeiro e, nesse sentido, esperar que a categoria familiar prevaleça é impedir a multiplicação desse espaço de contágio e de partilha. Por sua vez, uma cidade esvaziada de espaços públicos gera uma sociedade “estéril ética e esteticamente” (GUATTARI apud CAIAFA, 2007, p. 58):

Só existe a rigor cidade quando esse espaço de contágio se produz, quando se priorizam o pedestre – e aí ele é mais flâneur que transeunte – e o

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transporte coletivo, quando o ritmo urbano favorece a ocupação coletiva. (grifo nosso).

Isto posto, procurar-se-á desenvolver, a seguir, como que a intensificação da privatização dos espaços públicos51 urbanos faz parte da lógica do “sistema metabólico societal do capital”, cujo “problema do capital excedente [encontra-se] em sua raiz” (HARVEY, 2009b), contribuindo, assim, para a progressiva expulsão da presença e interação mais permanente das diferentes frações de classe do espaço das ruas:

O método da privatização é simples e eficaz: em primeiro lugar, a cidade é declarada nociva e perigosa, seus espaços públicos tradicionais devem ser, portanto, evitados e demolidos. Surgem assim novos espaços públicos seguros, os shoppings centers, onde o público não corre o mínimo risco de agressão. Ao vender a segurança gratuitamente, as indústrias privadas, que controlam os novos espaços públicos, aproveitam para vender produtos agregados, inclusive novas atividades consumistas, o consolo contemporâneo coletivo diante da violência da cidade. Finalmente, ao excluir dessa comunhão egoísta determinados indivíduos, os proprietários dos “espaços públicos seguros” apontam o inimigo púbico, cuja violência obrigou os cidadãos a se refugiarem nesses locais generosamente construídos pelos promotores imobiliários, em parceria com as multinacionais do comércio. Ao jovem da periferia, cuja pobreza já estava excluída da sociedade da abundância, são reservadas ruas abandonadas pelas pessoas de bem. O círculo está fechado, os espaços trancados e a opinião pública condenada a repetir as ordens de segurança dos patrões. A violência dos pobres está sob proteção da indústria privadas. (PEDRAZZINI, 2006, p. 118, grifos nossos).

Tais processos provocam modificações na forma e no conteúdo das cidades, que, ao eliminarem sistematicamente os espaços públicos de permanência, circulação e interação social no urbano, contribuem para a fragilização da ação política das lutas populares urbanas, ampliando, por sua vez, espaços de produção, circulação e consumo “na tentativa desesperada de absorver os excedentes que [o capital] mesmo cria. (...) As cidades têm cada vez mais se tornado cidades de “fragmentos fortificados” (HARVEY, 2009b, p. 16). Partindo para um plano histórico nacional, aproveita-se a oportunidade para se perguntar: como se dá o processo negociado de interação social em um país como o Brasil,

51 Segundo Rabotnikof (2005), a conceituação de espaço público é bastante complexa, variando entre as diferentes correntes teóricas. Apoiando-se em três distinções básicas em torno do sentido da expressão público: i) geral, comum, em contraposição ao particular, individual; ii) público em contraposição ao oculto; e, iii) aberto em contraposição ao fechado, Rabotnikof chega à seguinte caracterização do espaço público: “El espacio público, o espacio de lo público, parece hacer referencia tanto a los lugares comunes, compartidos o compartibles (plazas, calles, foros), como a aquellos donde aparecen, se dramatizan o se ventila, entre todos y para todos, cuestiones de interés común” (RABOTNIKOF, 2005, p. 10-11, grifo da autora).

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onde os espaços de disputa entre os diversos segmentos sociais encontram-se historicamente obstruídos? Para Santos (2006), por exemplo, a expressiva ausência de participação de extratos sociais subalternos na arena de negociação política brasileira é fruto de uma série de mecanismos de repressão elaborados pelas elites econômicas e pelos interesses que representam grande parcela dos políticos profissionais nacionais, indo: desde arrochos salariais, passando pelas constantes ameaças de desemprego, precarização das relações trabalhistas, necessidades de requalificação profissional, criminalização dos movimentos sociais, violência policial cotidiana nas periferias urbanas e áreas rurais (regadas a torturas e execuções sumárias), oligopólio dos meios de comunicação, dentre as mais diversas violências materiais e simbólicas exercidas contra grupos historicamente excluídos, como as mulheres, a comunidade LGBT e os negros, por exemplo. Oliveira concorda com a tese de que a formação da sociedade brasileira é pautada historicamente pelo “processo complexo de violência, proibição da fala, mais modernamente privatização do público” (OLIVEIRA, 1999, p. 58). Valendo-se do conceito de dissenso, elaborado pelo filósofo francês Rancière, Oliveira (1999) aponta para o esforço sistemático das elites nacionais em solapar os espaços públicos, enquanto espaços privilegiados de construção do dissenso, do desentendimento e da verdadeira prática política. Diferentemente de Santos (2006), porém, Oliveira (1999) aposta na tese de que, se existiu qualquer avanço democrático no Brasil, foi por causa “da ação das classes dominadas” que, mesmo a custos altíssimos, se empenharam em ser protagonistas da história, ou seja, em lutar para que um conjunto de direitos fosse conquistado coletivamente. Ainda Oliveira (1999), de forma muito direta, é assertivo ao afirmar que os processos de neoliberalismo e globalização, ancorados na formação de uma base social e subjetiva centradas no “homem privado contemporâneo”, correspondem ao processo de privatização do público, que dificultam a organização da luta coletiva. Nas últimas décadas, o cenário econômico e político global vem se transformando com grande vigor, alterando radicalmente a configuração dos espaços urbanos, onde, “os bons cidadãos” passam a ser encontrados “fora das ruas, fechados em suas esferas de consumo de alta segurança” e os “maus cidadãos” permanecem “nas ruas (e, portanto, não trabalhando em negócios “legítimos”), presos na terrível vigilância [do ‘superpanóptico’]” que se instaura no urbano, como ressalta ironicamente Davis (2009, p. 261). Com o processo da reestruturação produtiva, marcado pelo duplo movimento de desindustrialização e reindustrialização, as indústrias/empresas, por exemplo, vêm migrando

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dos grandes centros urbanos e gerando espaços vazios no interior das grandes cidades, graças a inovações tecnológicas que reconfiguraram a organização espacial, como os automóveis, por exemplo, objeto de investigação do Capítulo 1. As frações de espaço urbano, disputadas como um grande negócio, têm na exploração da renda da terra (monopólio, absoluta e diferencial ou de localização), uma das grandes fontes das desigualdades sociais produzidas. Como bem lembra Maricato (2013, p. 20), a especulação imobiliária, assim como “a disputa pelos fundos públicos e sua distribuição (localização) no espaço” fazem parte do embate permanente da luta de classes, que amplia o processo de expulsão dos estratos mais baixos da classe trabalhadora das áreas mais valorizadas da cidade, expandindo, assim, o fosso entre a cidade formal/legal e a informal/ilegal. Em termos históricos:

No transcorrer do século XIX, a democracia de origem camponesa, cuja ideologia animou os revolucionários, poderia ter se transformado em democracia urbana. Esse foi e é ainda para a história um dos sentidos da Comuna. Como a democracia urbana ameaçava os privilégios da nova classe dominante, esta impediu que essa democracia nascesse. Como? Expulsando do centro urbano e da própria cidade o proletariado, destruindo a “urbanidade”. (LEFEBVRE, 1969, p. 20).

A lógica especulativa contemporânea, encabeçada principalmente pelo capital financeiro internacional, pressiona os estados nacionais a se distanciarem cada vez mais da sua tarefa republicana de idealmente governar para todos, abrindo mão de sua prerrogativa política de priorizar e fortalecer os serviços e espaços públicos de qualidade, enfim, a própria vida urbana, com seus “encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos “padrões” que coexistem na cidade” (LEFEBVRE, 1969, p. 20). Analisando as recentes manifestações ocorridas em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, Zizek lembra que:

A tendência geral do capitalismo global atual é direcionada à expansão do reino do mercado, combinada ao enclausuramento dos espaços públicos, à diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento do funcionamento autoritário do poder político. É dentro desse contexto que os gregos protestam contra o reinado do capital financeiro internacional e contra seu próprio Estado clientelista, ineficiente e corrupto, cada vez menos capaz de fornecer serviços sociais básicos. (ZIZEK, 2013, p. 104).

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Por isso, a lógica expansionista e excludente de organização social do espaço urbano no capitalismo é o resultado também de massiva privatização dos lugares e patrimônios públicos. A urbanização das desigualdades se torna rapidamente disseminada em uma sociedade globalizada a partir da “organização e fragmentação da ordem espacial da produção” e da estratificação do acesso aos bens e às riquezas produzidos coletivamente. Harvey (2004) sintetiza os resultados perversos advindos do processo neoliberal das privatizações e corporativizações dos bens coletivos:

A corporativização e a privatização dos bens até agora públicos (como as universidades), para não mencionar a onda de privatizações (de água e de utilidades públicas de todo gênero) que tem varrido o mundo, indicam uma nova onda de expropriação das terras comuns. Tal como no passado, o poder do Estado é com frequência usado para impor esses processos mesmo contrariando a vontade popular. (HARVEY, 2004, p. 123, grifo nosso).

A sociedade de classes, enfim, intensifica o estímulo rumo a uma absoluta sociedade de consumo, onde, “o seu conjunto, resulta do compromisso entre princípios democráticos igualitários, que conseguem aguentar-se com o mito da abundância e do bem- estar, e o imperativo fundamental de manutenção de uma ordem de privilégio e de domínio” (BAUDRILLARD, 2007, p. 52). As classes dominantes, cada vez mais globais, optam por um duplo isolamento, amparadas por um grau de mobilidade inédito na história: por um lado, levam consigo as arenas públicas para espaços transnacionais, o “nomadismo das elites globalizadas” (MONGIN, 2009, p. 235); e, por outro, optam por se retirar dos centros urbanos, refugiando- se em enclaves habitacionais fortificados, ou em “aventuras na natureza”, como será possível observar no Capítulo 3 (BAUMAN, 1999; CALDEIRA, 2000; HARVEY, 2004, 2012; OLIVEIRA, 1999). Damiani (2000) ressalta que, tendo a cidade se tornado lócus central da reprodução ampliada do capital, o trabalho se tornou pura negatividade em sua dimensão de exploração, de não realização do trabalhador, como já visto anteriormente. O urbano, afirma a autora, não pode ser para todos, por isso, ela denomina “esta radicalidade (...) na história” de “urbanização crítica”, dentro da lógica da reprodução ampliada do capital. “Crítica” em sua mais completa negatividade. A “urbanização crítica”, na medida em que desestrutura, exclui, de forma violenta a classe trabalhadora e fragmenta, por consequência, os movimentos sociais:

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Esta percepção ainda não é unânime nos movimentos urbanos. Assim, estão divididos, numa divisão que pode impedir a leitura da radicalidade do processo: a urbanização é crítica. Se existe urbanização para uns, deixa, por isso, de existir para outros, a menos que se coloque como necessidade radical; isto é, nesta forma de produzir o mundo, não é possível a urbanização para todos: é preciso enfrentar a propriedade privada e sua capitalização, com a produção do espaço. Os movimentos que o fazem podem conter a radicalidade do processo. Os movimentos dos sem terra urbanos, por exemplo, dependem de uma compreensão ampla da questão da propriedade da terra, incluindo as questões no campo. Portanto, a urbanização e os sem terra, o meio ambiente e a questão social etc. são os termos da impossibilidade nesta e desta sociedade, que propõem a necessidade de sua transformação. Não há como administrar esses termos e mantê-los, senão em crise. Ao dividirem os movimentos, segundo essas necessidades, se mutila a leitura da totalidade do processo, se vulnerabiliza a lógica popular, invadida pela lógica estática e de mercado. O urbano tem abrangência histórica complexa se se assumir a radicalidade dos processos que desvenda. (DAMIANI, 2000, p. 31, grifo nosso).

Diante desta “urbanização crítica”, Rodrigues (2008, p. 02) relembra que, “tomar o espaço público significa conquistar o espaço social, o político e participar da esfera pública”. Debord salienta que “[...] até agora, a cidade só pôde ser o terreno da batalha da liberdade histórica. (...) A atual tendência de liquidação da cidade é outra forma de expressar o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação em que a sociedade recupere os poderes que se destacaram dela” (Aforismo 176. DEBORD, 1997, p. 116). Dentro desse contexto, Rodrigues (2008) se indaga como é possível tal conquista do espaço público em uma sociedade capitalista, cujo Estado é a instância mediadora e responsável pela definição e delimitação desses espaços, sempre a partir da “doação” de áreas públicas pela propriedade privada? E, concomitante a isso, como é possível estimular participação política, por meio da ocupação dos espaços públicos, que “estrapo[lem] a propriedade privada e a riqueza” definidas pelo Estado capitalista? (RODRIGUES, 2008, s/p). Certamente não há uma resposta única a esse questionamento, mas há de se levar em conta o papel do Estado capitalista quando se discute a intensificação do processo de privatização dos espaços públicos no urbano no contexto do capitalismo global:

O Estado define se deve haver, ou não, acesso universal ao espaço público, definindo seu uso. Em geral, impede manifestações que comprometem o fluxo regular do trânsito e que provocam “desgaste” ao poder público. Aliás, cada vez mais o acesso universal aos espaços públicos está sendo “fechado” com cercas, muros, horários para funcionamento e circulação para evitar a “violência”. (RODRIGUES, 2008, s/p).

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Cabe salientar que, historicamente, no caso brasileiro, para se compreender as contradições oriundas da propriedade urbana é necessário ter em mente a sua origem no latifúndio rural. Whitaker (2005) relembra, em diálogo com Ermínia Maricato, que décadas antes da instauração da Lei de Terras, de 1850, ou seja, antes que a terra se tornasse formalmente mercadoria, em meio ao longo período de transição que colocava fim à sociedade escravagista, houve um processo sistemático de ocupação e apropriação das terras pertencentes à Coroa por grandes proprietários rurais, expulsando, assim, uma infinidade de pequenos posseiros das diversas regiões rurais do país. “Com a Lei de Terras, a terra passou a ser indicativo de poder e riqueza, substituindo o número de escravos” (WHITAKER, 2005, s/p). Já no final do século, com o Brasil se consolidando como um mercado agroexportador e em um processo incipiente de industrialização, suas principais cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, passaram cada vez mais a ganhar relevância política, econômica e cultural, o que contribuiu, por fim, para que o Estado passasse a adotar medidas modernizantes de reformas urbanísticas para melhor acomodar as elites nacionais, sob forte influência do modelo de “revitalização” urbano europeu. No caso da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo:

Para atrair o capital estrangeiro para o país, era necessário “sanear” a cidade: novas avenidas foram abertas – notadamente a Avenida central, hoje Rio Branco –, o porto foi modernizado, e novos e “modernos” edifícios foram construídos, substituindo casarões e prédios antigos. Nesse processo, e nas demais intervenções de urbanização no Rio do início do século passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construção da capital, não havia sequer possibilidade de contestação por parte da população atingida, e os propósitos de uma “higienização social” estavam muito pouco escondidos. A população pobre foi sistematicamente expulsa dos cortiços e dos morros centrais, deslocando- se invariavelmente para locais distantes – menos valorizados – ou mesmo para outros morros. (WHITAKER, 2005, s/p).

O Estado, assim, segundo Whitaker (2005), vem representando, ao longo da história nacional, os interesses imobiliários da classe dominante na “implementação de políticas púbicas de urbanização” que promovem o acesso desigual à valorização fundiária, por meio de expulsões sistemáticas e massivas da classe trabalhadora de locais valorizados da cidade52.

52 Segundo Whitaker (2005, s/p), “o solo urbano tem seu valor determinado por sua localização. Esta se caracteriza pelo trabalho social necessário para tornar o solo edificável (a infraestrutura urbana), as próprias construções que eventualmente nele existam, a facilidade de acessá-lo (sua “acessibilidade”) e, enfim, a

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Diante dessas contradições históricas resultantes da dinâmica da propriedade capitalista, retoma-se a discussão sobre a privatização dos espaços públicos contemporâneos, enfatizando que este processo estimula, também, o isolamento, a fragmentação das relações sociais, o enfraquecimento da ação histórica por meio da ação política. As “tecnologias políticas” de controle do corpo, como enunciou Foucault (2013), estão intimamente relacionadas às disciplinas impostas sobre esse corpo em relação ao espaço e ao tempo do capital, que contribuem para o enfraquecimento das forças antagônicas políticas e fertilização das forças canalizadas à produção da mais valia. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2013, p. 134). Segundo Debord:

O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento fundamenta a técnica; reciprocamente, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias” (...). (Aforismo 28. DEBORD, 1997, p. 23).

A intensificação do processo de privatização dos espaços públicos recai de forma avassaladora, assim, na dinâmica dos que caminham no urbano. A disseminação cada vez mais frequente de uma “arquitetura hostil”, refratária às “heterotopias”, “aos espaços particulares de resistência e liberdade”, compromete o direito a se caminhar nas cidades. Dentre os múltiplos exemplos de arquitetura hostil, destaca-se os shopping centers que, segundo as palavras de Padilha (2006b), se transformaram em verdadeiras “catedrais de mercadorias”, substituindo inclusive a flânerie às lojas de departamento nas ruas de Paris, do século XIX, pela circulação estranhada de um lazer igualmente reificado dentro de um espaço privado, “o templo do consumo”, que, exatamente, por isso, exclui os que não podem ali consumir:

O shopping center é, assim, o lócus do estranhamento, do sujeito semiformado, da reificação do prazer e do lazer. É o lugar em que pessoas são reduzidas ao estado de coisas. O homem não está alienado e estranhado apenas do e no trabalho que realiza (tanto em relação ao produto do trabalho quanto em relação à atividade mesma da produção), mas também do e no homem, em seu trabalho, a sua própria natureza, ou seja, aliena o gênero humano, não cessa de agir quando o homem está fora do trabalho. “O tempo demanda. Esse conjunto de fatores é que distinguem qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relação à aglomeração na qual se insere”.

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livre é acorrentado ao seu oposto”. (PADILHA, 2008, p. 112, grifo do autor).

Nota-se, assim, que a privatização dos espaços públicos contribui, de forma decisiva, para o estranhamento do caminhar como atividade do ser genérico. Realizado dentro dos shopping centers, por exemplo, é reduzido a uma restrita função, a de locomoção para a efetivação do consumo:

Dentre as possibilidades de ocupação do tempo disponível do homem (principalmente os das classes burguesas) está a busca por segurança, beleza, distração, alegria e lazer em shopping centers. No entanto, nestes templos de consumo e de lazer reificado, os homens continuam sob as condições de alienação e de estranhamento nas quais se encontram no “mundo de fora”. Em outras palavras, nos shopping centers, os seres sociais estão alienados de si mesmos, continuam alheios ao seu ser genérico, o que se agrava ainda mais quando se percebe que seu comportamento e suas relações com o mundo são mediatizados prioritariamente por objetos. Nos shopping centers, até mesmo o lazer torna-se algo a possuir, a consumir, a usar e a gastar. Não há nem espaço nem tempo para a espontânea e desinteressada criação/fruição do lazer. (PADILHA, 2008, p. 113, grifo nosso).

Veríssimo (2015), em uma breve crônica intitulada, Calçada, publicada em sua coluna do jornal O Globo, chama a atenção para o fato de que, historicamente, em países anglo-saxões, o uso da calçada é considerado espaço exclusivamente de passagem. Nos Estados Unidos, por exemplo, seriam considerados contraventores, os indivíduos que ficam a esmo, vagando, zanzando, perambulando pelas calçadas. Em contraposição, o escritor relembra que nos países de matriz latina se estabeleceu um outro tipo de relação com a ocupação, permanência e interação social nas calçadas. Porém, o autor alerta para o fato de que este tipo de socialização mais comunicativa e de longa duração, vivenciada nos passeios públicos, vem sendo drasticamente alterada por uma espécie de “cultura do shopping center”. Nesse contexto, então, passa a prevalecer a figura do “transeunte”, sujeito social que apenas transita no espaço público, perdendo-se, assim, “o prazer da calçada como ponto de encontro e de papo ocioso”:

Não tenho nada contra shopping centers. Acho mesmo que são o lado positivo da americanização do mundo. Mas as grandes cidades brasileiras que perderam seus centros com a proliferação dos “xopis” perderam também o prazer da calçada como ponto de encontro e de papo ocioso. Sem falar na falta de segurança que nos transformou em bichos assustados que hesitam em sair da toca. O resultado é que, nas nossas calçadas, não somos mais latinos folgados nem americanos apressados. Somos no máximo transeuntes (horrível palavra). (VERISSIMO, 2015, s/p, grifo nosso).

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Assim, a “dinâmica antipedestre” elaborada a partir da construção de enclaves fortificados de habitação, de comércio e empresas, por exemplo, bem como equipamentos públicos, como bancos “antimendigos” e “os chamados dispositivos mosquitos, que emitem sons irritantes de alta frequência que só os adolescentes conseguem ouvir”53, expulsa a presença dos diferentes estratos de classe de uma interação social cotidiana corpo a corpo. Zizek provoca e aponta responsabilidade política aos que decidem segregarem-se:

Que aconteceria se o verdadeiro mal das nossas sociedades não fosse a sua dinâmica capitalista enquanto tal, mas as nossas tentativas de nos arrancarmos a ela – sem dela deixarmos de beneficiar – construindo espaços comunitários protegidos, que vão dos “condomínios residenciais fechados” aos grupos raciais ou religiosos exclusivos? (...). As figuras exemplares do mal não são hoje os consumidores comuns que poluem o ambiente e vivem num mundo violento em que os laços sociais se desagregam, mas os que, embora plenamente implicados na criação das condições de devastação e de poluição universais, compram uma via de saída que os afasta da sua própria atividade, vivendo em condomínios fechados, comendo alimentos biológicos, fazendo férias em reservas naturais, etc. (ZIZEK, 2009, p. 32, grifo nosso).

Figura 03 - Banco “antimendigo” do lado de fora de um prédio residencial de Londres, Inglaterra

Fonte: Foto de Lisa Nylind, em matéria no jornal eletrônico, The Guardian54.

53 A reportagem, Arquitetura hostil: as cidades contra os seres humanos, publicada originalmente no jornal britânico, The Guardian, exemplifica bem como a arquitetura pública contemporânea vem se especializando em expulsar a presença e a aglomeração de determinados grupos sociais, como mendigos e jovens, de locais considerados indevidos para a preservação da segurança, como próximo a bancos, e, embelezamento, como centros empresariais e comerciais. Disponível em: . Acessado em: 20 jul. 2014. 54 Disponível no Blog Carta Maior:

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Como será possível observar, a seguir, a privatização dos espaços públicos aliada à construção de uma ideologia do medo no/do urbano, além de gerar obstáculos do ponto de vista objetivo para o aprimoramento da esfera pública, cria, também, obstáculos, do ponto de vista subjetivo, afetando, inclusive, os próprios enclausurados que se protegem da “violência” das ruas, às custas de um crescente estado de neurose e de depressão:

Prisioneiro de um espaço fechado ou limitado, o corpo reage, nervosamente ou pelo modo da depressão a essa falta de espaço, a essa falta de um lugar circunscrito que se abra a outros lugares. A depressão vital é a consequência a uma falta de abertura espacial. (MONGIN, 2009, p. 244).

2.3 A CRIAÇÃO E MATERIALIZAÇÃO DA IDEOLOGIA DO MEDO NO/DO URBANO

A violência55 gerada pela construção da ameaça de violência faz parte da violência sistêmica, metodicamente encoberta pelo que Zizek (2009) chamou de ideologia da “coincidência dos contrários”56. A sistemática tentativa da burguesia em se esquivar das ameaças de violência causadas por essa mesma classe dominante, também faz parte da violência sistêmica, mas que é percebida como uma “defesa natural” ante ao medo presente em uma sociedade “caótica”. Segundo Davis (2009, p. 236):

(...) a provisão de “segurança” de mercado gera sua própria demanda paranoica. A “segurança” se torna um bem posicional que se define por um nível de renda que permite o acesso a “serviços de proteção” privados, tornando o cliente membro de um enclave residencial rígido ou de um subúrbio restrito. Como símbolo de prestígio – e, algumas vezes, como limite decisivo entre os que estão meramente bem e os “verdadeiramente ricos” – a segurança tem menos a ver com a proteção de cada um do que com o grau de isolamento pessoal, em ambientes residenciais, do trabalho, consumo e viagem, em relação grupos e indivíduos “desagradáveis”, ou mesmo à multidão em geral. (grifos nossos).

. Acessado em: 20 jul. 2014. 55 Para Zizek (2009, p. 11), “[...] deve-se desvelar (...) os três modos de violência tipologizados: subjetiva (a mais visível das três), simbólica, e, sistêmica (a mais encoberta), sobretudo, pela disseminação da mistificação da ideologia do “comunismo liberal”, que penetra todas as esferas sociais. Entender, por exemplo, que “(...) o sentido humanitário do que é urgente e relevante é mediado, e sem dúvida sobredeterminado, por considerações claramente de ordem política”. 56 Segundo Zizek (2009, p. 39): “Vivemos numa sociedade em que existe uma espécie de identidade especulativa dos contrários. Certos traços, atitudes e normas de vida deixaram de ser percebidas como ideologicamente marcadas. Parecem ser neutras, não-ideológicas, naturais, questões de senso comum”.

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Assim, a construção de práticas e sentimentos mixofóbicos (BAUMANN, 2009) e agorafóbicos (CARVALHO, 2000), alimentadas a partir da “ideologia do medo”, contribuem para a “colonização do imaginário coletivo” pautada no horror ao estranho. É interessante notar, porém, como, no Brasil do século XIX, ou seja, em uma sociedade todavia eminentemente rural, a presença dos considerados párias sociais nos centros urbanos, como os “loucos”, por exemplo, ainda era “tolerada” nas ruas, conforme os relatos existentes da época (GONÇALVES, 2013). Esse processo, por sua vez, se inicia anteriormente, no século XVII, na Europa, segundo relata Foucault (2013). No Brasil, é na medida em que as classes dominantes começam a habitar mais permanentemente as cidades que o discurso e as práticas moralizadoras, disciplinadoras e higienistas, balizados pelas ciências psiquiátrica e urbanísticas, sobre quem deve permanecer e transitar nas ruas, passa a vigorar. Surge, nesse momento, o início das instituições psiquiátricas brasileiras, “espacializando [e segregando] a loucura” no país e, com isso, inaugurando a “sociedade disciplinar”:

Fica claro, portanto, que o nascimento do Hospício tem um fundamento urbano muito forte. (...) A rua deixou então de ser o espaço do “espetáculo” do louco para ser disputada enfim pelos novos “donos da cidade”, higienistas, urbanistas e para Pechman, também a polícia. (GONÇALVES, 2013, p. 99, grifo nosso).

A figura do “vadio”, que era muitas vezes o “andarilho”, também surge desse contexto de urbanização, onde a divagação, o não “fazer nada”, passa a ser valorado como algo negativo, que deve ser combatido pelas autoridades médicas, juristas e policiais, com o encarceramento dos “vagabundos e miseráveis”, como observa Gonçalves (2013, p. 92):

Nesse período surgiu também a figura do “vadio” que em algumas situações se confundiu com o andarilho do início do século XIX nas ruas da cidade do Rio. O ato de vagar sem “fazer nada” passou a ser visto com desconfiança tanto pela polícia como pelos médicos. O andarilho em algumas situações atravessava esses limites do “vagar” e do que era tido como “vadiar”, o que foi alvo de disputa entre juristas e médicos, segundo Engel, sobre as definições de quem seria “vadio” ou “louco” e, nesse último caso, a poética do caminhar pela cidade sem objetivo vai dando espaço para espaços cada vez mais controlados e para corpos cada vez mais submissos à nova ordem. (grifo nosso).

Talvez tenha sido nesse período de formação do urbanismo nacional, com sua insipiente e ainda tímida introdução dos valores capitalistas de valorização do trabalho por meio da disciplina e da economia do tempo, que o caminhar começou a ser, no imaginário

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social, reduzido a sua condição de estranhado, cumprindo, assim, preponderantemente, a sua função biológica de deslocamento. A “biopolítica” implicou o adestramento de corpos domesticados, docilizados, disciplinados, enfim, verdadeiras máquinas de produzir em série57. Na medida em que o corpo se tornava máquina, experiências de um possível “caminhar artesanal” se tornavam cada vez mais escassas no espaço urbano. Assim, segundo Foucault (2013, p. 206), “fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de antinomadismo”. Maffesoli (2001) vai além e anuncia a consequência dramática de um processo disciplinar e de controle extremos: “o que se move escapa, por definição, à câmera sofisticada do ‘pan-óptico’. Desde então o ideal do poder é a imobilidade absoluta, da qual a morte é, com toda a segurança, o exemplo acabado” (MAFFESOLI, 2001, p. 25). Refletir como o caminhar se torna mercadoria (objeto do Capítulo 4) passa, necessariamente, também, por esse processo histórico de disciplinamento do corpo, da mente e das interações do ser humano no capitalismo primitivo, a tal ponto, que o caminhar mais espontâneo passou a ser praticado em lugares pré-determinados, específicos (vide o surgimento dos parques nesse período), com horários, regras e propósitos bastante claros, no caso da classe trabalhadora, quais sejam: o de recuperar o corpo da jornada de trabalho para seguir trabalhando. A análise de Foucault sobre a emergência e consolidação de uma sociedade disciplinar onde “o corpo se constitui como peça de uma máquina multisegmentar” (FOUCAULT, 2013, p. 158) é fundamental para entender o processo histórico-espacial aqui analisado. Como visto, o lema da sociedade capitalista que emergia era o de se aumentar a utilidade da célula corpo/indivíduo/máquina na engrenagem da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2013). Por isso, caminhadas espontâneas, lentas, sem propósito, foram sistematicamente perseguidas, contribuindo para resultar no caminhar estranhado da contemporaneidade, adequado dentro da lógica da ideologia da produtividade e da utilidade econômica. Dentro desse contexto, muitas críticas e denúncias de diversos segmentos vêm sendo realizadas, na contemporaneidade, ao que Davis (2009) chamará de “dinâmica

57 Na modernidade, inúmeras instituições de controle, cada vez mais refinadas, vão, paulatinamente, inculcando e reproduzindo, nos próprios indivíduos, as noções de autocontrole, pacificação e “abrandamento” das pulsões humanas, características do ser “civilizado” (ELIAS, 1990). A tarefa do refinamento dos costumes e comportamentos corporais se realiza por completo quando tais valores são internalizados pelo próprio corpo/mente do indivíduo, e as instituições de controle social passam a não mais exigir o uso da força para conter os “excessos” humanos, por meio da “supressão do grande espetáculo da punição física” pois as regras normativas de conduta já se encontram naturalizadas internamente (FOUCAULT, 2013).

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antipedestre da nova cidade empresarial”, experimentada, por exemplo, por Los Angeles, nas últimas décadas. Porém, segundo esse autor, tais denúncias, na maioria das vezes, se encontram calcadas em “queixas liberais triviais”, como por exemplo, ao “desenho insonso” e “descuidos do planejamento urbano”, “sem reconhecer[em] sua dimensão planejada de intenção repressiva explícita (...)” de segregar espacialmente, “sejam famílias latinas pobres, jovens rapazes negros ou velhas senhoras brancas sem-teto” (DAVIS, 2009, p. 237, 241). Como exemplo, cabe destacar, a seguir, uma das soluções propostas por um consultor urbano estadunidense, N. David Milder, para se revitalizar os centros urbanos com segurança, assegurando, assim, a presença de “pedestres respeitáveis e cumpridores da lei” nesses espaços:

Criar um núcleo denso, compacto, multifuncional. Um centro de cidade pode ser projetado e construído de modo a fazer com que os visitantes sintam que a área – ou uma parte significativa dela – é atraente e o tipo de lugar que “pessoas respeitáveis” como eles próprios tendem a frequentar. [...]. Uma área nuclear do Centro que é compacta, densamente construída e multifuncional reunirá pessoas, proporcionando-lhes mais atividades. [...] As atividades oferecidas nesse núcleo determinarão o “tipo” de pessoa que estará caminhando nas calçadas; alocar escritórios e habitações para residentes de renda média e superior na área nuclear e adjacências pode assegurar uma alta percentagem de pedestres “respeitáveis” e cumpridores da lei. Essa área nuclear atraente e revitalizada também seria ampla o suficiente para afetar a imagem global do centro. (MILDER apud DAVIS, 2009, p. 243-244, grifos nossos).

As inúmeras estratégias de arquitetura e de urbanismo utilizadas historicamente para reprimir e expulsar a classe trabalhadora dos diversos espaços da cidade, sobretudo, os mais valorizados, também podem ser encontradas no exemplo emblemático da construção e acomodação dos diversos estratos sociais na capital federal da República, Brasília. Para explicitar a questão, cabe aqui destacar dois longas metragens, do jovem diretor Adirley Queirós, que retratam, de forma provocativa, indo no cerne de tais contradições, os mecanismos de segregação espacial implementados histórica e sistematicamente no Distrito Federal, apartando a população trabalhadora, sobretudo negra e de origem nordestina, de viver no tão idealizado projeto do Plano Piloto. Sempre mesclando os gêneros documentário e ficção, Queirós expõe, como caso paradigmático de exclusão, violência e segregação, em A cidade é uma só? (2011), o conflito fundiário urbano ocorrido na capital federal, no final da década de 1960 e início de 1970, que resultou na expulsão, por parte do governo local, de um conjunto de moradores trabalhadores

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(em sua maioria originários da construção de Brasília), de uma ocupação na Asa Norte do Plano Piloto, área nobre da cidade. Essas famílias foram removidas, depois de muito resistirem, com a alegação de que a cidade se encontrava extremamente “favelizada” e que, por isso, para o “bem dos favelados”, esses seriam removidos para a periferia da cidade, onde receberiam toda a infraestrutura necessária para viverem com dignidade. Mediada pela violência policial e por uma campanha midiática que encobria os reais interesses de tais remoções, foi criada, para “acolher” tais trabalhadores, o que hoje é considerada a maior cidade do Distrito Federal: Ceilândia – nome inspirado na, então, Comissão de Erradicação de Favelas – CEI, que organizou inúmeras remoções forçadas durante, sobretudo, a década de 1970, “limpando” o cenário de “beleza”, “organização” e “amplidão” da capital federal do país. Em, Branco sai, preto fica (2014), Queirós prossegue com a denúncia da exclusão e violência urbanas provocadas pela segregação do Plano Piloto, sempre através da ótica e da estética dos “favelados”. É interessante notar que, além de retratar a realidade da “tradicional” violência policial, “ordenando”, limitando e “disciplinando” o espaço da periferia e suas relações de lazer, como os bailes da juventude (preta e pobre, em sua maioria), por exemplo; o filme também remete a uma Brasília fictícia – mas não tão fictícia assim –, com cancelas e postos policiais da “Polícia de Bem Estar Social” em todo o seu perímetro, limitando o acesso ao Plano Piloto, por meio da obrigatoriedade da apresentação de um “passaporte” que, supostamente, apenas os moradores locais e trabalhadores da mesma localidade possuem. Sem dúvida, ainda que em diferentes escalas, essa realidade está cada vez mais presente nas cidades mundiais. O geógrafo Harvey traz uma experiência pessoal em Guayaquil, no Equador, semelhante à do “passaporte” de Brasília, e suas consequências nocivas aos princípios básicos do que deveria ser uma cidade:

Ahí hay un área de la ciudad donde, a los costados de un gran camino principal, solo existen comunidades privadas. No puedes salir del camino principal para entrar a esas comunidades sin un permiso residencial. Entonces te preguntas qué tipo de mundo se construye allí, en que la experiencia urbana de las personas queda secuestrada tras estos muros, tienen un contacto casi nulo con personas de otras clases sociales. Por lo tanto es un hecho que la concentración de capital se transforma en una barrera para el desarrollo urbano, es decir, se opone a lo que debería ser una ciudad. No necesitamos ciudades que generen dinero, sino ciudades que sean buenas para vivir. Y ese objetivo no es necesariamente compatible con la acumulación de capital. (HARVEY, 2014b, s/p, grifos nossos).

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Branco sai, preto fica, de forma brilhante, “exagera”, portanto, na “ficção” para denunciar o cúmulo da segregação espacial urbana no Planalto Central e sua violência simbólica, onde o Outro, o estrangeiro, é sumariamente excluído do processo de interação mais permanente da cidade, desvelando, assim, o discurso presente nas democracias liberais, de que todos possuem o direito de ir e vir (em território nacional). Em uma sociedade hermeticamente fechada como esta, há o recrudescimento de uma política do ódio, e somente por meio da falsificação do “passaporte”, do suborno e da fraude se consegue penetrar, de forma “ilegal”, em seus espaços segregados, constituindo-se a antítese dos espaços efetivamente públicos:

Um espaço é “público” à medida que permite o acesso de homens e mulheres sem que precisem ser previamente selecionados. Nenhum passe é exigido, e não se registram entradas e saídas. Por isso, a presença num espaço público é anônima, e os que nele se encontram são estranhos uns aos outros, assim, como são desconhecidos para os empregados da manutenção. Os espaços públicos são lugares nos quais os estrangeiros se encontram. De certa forma eles se condensam – e, por assim dizer, encerram – traços distintivos da vida urbana. É nos locais públicos que a vida urbana e tudo aquilo que a distingue das outras formas de convivência humana atingem sua mais completa expressão, com alegrias, dores, esperanças e pressentimentos que lhes são característicos. (BAUMAN, 2009, p. 70, grifos nossos).

Seguindo a discussão sobre a ideologia do medo nas cidades contemporâneas, vale ressaltar que, ao longo da história, diversos pensadores sociais se debruçaram sobre a importância do tipo social do estrangeiro, do estranho, para oxigenar a vitalidade da sociabilidade urbana, sobretudo em uma sociedade onde as relações sociais passam a ser mediadas pelo fetiche do dinheiro. Maffesoli (2001) faz um apanhado geral das reflexões assentadas na ideia de nomadismo como orientador da práxis do estrangeiro, do não pertencente ao grupo estabelecido, do outsider. Simmel, com a forma social do estrangeiro, Schutz, com o tipo social do estranho, os integrantes da Escola de Chicago, com o vagabundo, o andarilho, e Weber, com o tipo social do judeu, também, estariam todos, de certa forma, empenhados em compreender esses sujeitos sociais que, por sua própria condição de errantes, carregariam em si a capacidade de arejar as dinâmicas sociais, seja pela via do conflito ou não. Nesse sentido, ao se estudar a dinâmica da produção/organização urbana das grandes cidades, é perceptível a forte tendência das diversas instituições hegemônicas

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contemporâneas para sufocar o nomadismo social e o desejo de errância, incutindo, para isso, o medo do “Outro”:

A pulsão por controle e por segurança é uma metáfora exata do capital que ameaça destruir a humanidade: sua voracidade é infinita e não aceitará um só centímetro quadrado de espaço livre. E esse capital aborrece a participação civil e a mobilização reivindicadora de contingentes humanos. Refazer a paranoia da segurança é questionar a ideologia da inexorabilidade de nossa rendição ao capital e reclusão forçada ao espaço privado. (CARVALHO, 2000, p. 6-7, grifo nosso).

As indústrias da tecnologia da segurança, por exemplo, rendem cifras espetaculares mundo afora. Davis (2007) relata como a sociedade estadunidense vem construindo sua vida pautada na insegurança. De forma provocativa, Davis (2007) ainda afirma que “o novo terror proporciona um poderoso multiplicador keynesiano”. Segundo o autor, só o setor privado previa, para o ano de 2009, gastar mais de 150 bilhões de dólares em segurança interna com seguros, segurança no trabalho, logística e tecnologia da informação. A “ideologia do medo”, certamente, vem atrelada à constituição de um “capital do medo” (BAUMAN, 2009), uma simbiose perfeita para o capitalismo. Segundo Foucault (2013, p. 169), “a vigilância se torna um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem especifica do poder disciplinar”. Com isso, as câmeras dos reality shows, por exemplo, “ajudam” a nos familiarizarmos e a aceitarmos com “naturalidade” o sistema de vigilância urbano contemporâneo. Um exemplo bastante ilustrativo dos lucros astronômicos obtidos graças à insegurança e ao medo, explorados por notícias e propagandas midiáticas espetaculares, é fornecido por Bauman (2009): também nos Estados Unidos, é possível identificar a presença de praticamente 50% da frota veicular composta pelos Sport Utility Vehicle, mais conhecidos como SUV. Os “veículos esportivos utilitários”, apesar de consumirem quantidade extraordinária de gasolina por quilômetros rodados, se tornaram os campeões em vendas, por seu porte imponente e reforçado. Se, por um lado, transmitem a sensação de segurança aos motoristas; por outro, acirram a competição por espaço nas vias/estradas, onde o medo do outro acaba se confundindo com o ódio do outro, com a vontade de ser superior ao outro na disputa cotidiana de “quem é que manda no pedaço”. A criação e a perpetuação da ideologia do medo nas cidades contribuem, assim, para se incrementar a lógica da “securitização do urbano”, como uma forma inovadora de se

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reinvestir o capital excedente no urbano. Essa ideologia acaba perpassando todas as classes sociais, como destaca Caldeira (2000). A securitização dos bens privados no meio urbano (vida, automóvel, casa, saúde etc.) faz, cada vez mais, parte da rotina da população mundial e está ligada a uma indústria de seguros e segurança privada que rende cifras anuais estratosféricas nos principais centros urbanos do mundo58. Inúmeras são as consequências sociais, psíquicas e econômicas para esse tipo de sociabilidade tão difundida nas cidades contemporâneas (WACQUANT, 2010). Diante de um contexto histórico global de tantas perdas para a classe trabalhadora, a difusão da ideologia do medo só contribui para o afastamento e a desmobilização social, que encontra tradicionalmente no espaço público o lócus privilegiado da construção do desentendimento, do dissenso. Fazendo uma analogia com a “utopia da cidade pestilenta do século XVII”, elaborada por Foucault (2013), o papel da ideologia do medo na sociedade contemporânea tem uma função semelhante a ser cumprida: a de tornar a cidade “perfeitamente governável”, favorecendo determinadas frações de classe e aberta para a acumulação do capital:

Houve em torno da peste uma ficção literária da festa: as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam suas identidades estatutárias e a figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa. Mas houve também um sonho político da peste, que era exatamente o contrário: não a festa coletiva, mas as divisões estritas; não as leis transgredidas, mas as penetrações do regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento capilar do poder; não as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu “verdadeiro” nome, de seu “verdadeiro” lugar, de seu “verdadeiro” corpo e da “verdadeira” doença. A peste como forma real e, ao mesmo tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos “contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. (FOUCAULT, 2013, p. 188, grifo nosso).

Ainda nas pegadas arqueológicas de Foucault (2013), é extremamente rico e ilustrativo, para a análise das relações urbanas contemporâneas, recuperar a figura do “leproso”, personagem real e simbólico, vivido entre os séculos XVII e XIX, que foi

58 Para mais informações e dados sobre a indústria da segurança privada no Brasil, por exemplo, vide a matéria no site do Sindicato das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança do Estado do Paraná, Área de segurança privada deve crescer 16% até 2016. Disponível em: . Acessado em: 05 jun. 2014.

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violentamente submetido ao sistema panóptico de encarceramento e vigilância constante para protegerem a livre circulação dos “não-leprosos” nos espaços públicos. Inversamente, nos dias de hoje, são os “não-leprosos” que se instalam, por “livre e espontânea vontade” no panóptico, tendo como símbolo máximo e massificado, os shopping centers, com o mesmo intuito de se protegerem dos “leprosos”, os excluídos urbanos, que agora frequentam e habitam os espaços públicos degradados das cidades59. “De fato já vivemos uma nova colonização do imaginário que funciona por um mecanismo de inversão: o que parece sufocar as pessoas já não são mais as grades, mas os espaços abertos” (CARVALHO, 2000, s/p). Como bem ressaltou Zizek, “a tarefa da crítica da ideologia é justamente discernir a necessidade oculta, naquilo que se manifesta como mera contingencia”. (ZIZEK, 1996:08). Por isso, cabe ainda destacar que, juntamente com a “indústria de securitização do urbano” há o fortalecimento e a ampliação da indústria da medicalização dos sofrimentos urbanos, como forma de se “enfrentar” os sintomas provocados pela disseminação da ideologia do medo. Segundo Kehl (2007, p. 105):

Nos Estados Unidos, a cada ano da última década, 2,4 milhões de pessoas são “abatidas” pelo pânico, com medo intenso da morte iminente e sintomas físicos que simulam um ataque cardíaco. Em contrapartida, o mercado farmacêutico no final do século XX movimentou entre 300 bilhões e 500 bilhões de dólares, cifra que testemunha por si só a favor da expansão da concepção fisicalista da subjetividade. Analistas econômicos preveem que em vinte anos o mercado farmacêutico dará um salto da ordem de 3,2 trilhões de dólares. Ao contrário dos neuróticos freudianos, que ainda buscam um analista para se indagar a respeito do significado daquilo que lhes escapa nas manifestações do inconsciente, os pacientes psiquiátricos puros (isto é, que substituem todas as formas de terapia da palavra pela medicalização) não querem interrogar seus sintomas, mas simplesmente fazê-los calar. Com isso, amortecem a vitalidade do trabalho psíquico e predispõem-se a um estado depressivo, resultante da falta de vida interior.

O mal-estar na contemporaneidade passa a ser tratado pelas “políticas conservadoras de medicalização dos comportamentos tidos como desviantes”, como um sintoma pontual, individual, desprovido de qualquer conexão com a realidade social urbana. Por sua vez, a despolitização na busca da compreensão das raízes de tal sofrimento, além de estar ligada ao que Fontenelle (2010) chamou de “fetiche do eu-autônomo”, ou seja, a ideologia contemporânea do capitalismo em responsabilizar o indivíduo por seu estado de contradições subjetivas e pelo estado das contradições objetivas contribui, ainda, para a manutenção de uma esfera pública enfraquecida, onde os seres humanos, cheios de medos,

59 No Capítulo 3 será analisado o “caminhar da exclusão urbana”.

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abdicam da convivência do espaço público e da crença de que este convívio na diferença é um valor a ser cultivado. Por isso, para Certeau (1994, p. 180), a “gesta ambulatória”, as posturas e posições (“gestos”) dos que perambulam, é tão importante para a vitalidade cotidiana, ela “joga com as organizações espaciais, por mais panóptica que sejam”. A caminhada, como “operações enunciadoras”, teria, nas palavras do autor, o papel de incentivar, no espaço urbano, o “arriscar-se”, a “transgressão”, enfim, a ruptura com o “espaço coerente e totalizador”. Para Gonçalves (2013, p. 162), “o ato de caminhar é pouco refletido, entretanto ele tem uma importância fundamental, pois, através dele, o habitante tem sensações muito imediatas e ações improvisadas”. Ainda Gonçalves (2013), norteada por um diálogo com os integrantes da Internacional Situacionista e o filósofo Henri Lefebvre, vai reivindicar para a cidade o espaço do lúdico, do jogo e da improvisação, “como instrumento de se viver com mais alteridade”, e dentro deste contexto, o caminhar se constituiria em ferramenta poderosa. Segundo a autora: “Caminhar significa estar pronto para correr riscos e nossa sociedade, deveria estar mais aberta para isso. Essa questão tem um forte vínculo com a construção do jogo na cidade como instrumento de se viver com mais alteridade” (GONÇALVES, 2013, p. 166). De forma vibrante, a autora conclui que “um convite à ‘vagabundagem’” poderia modificar algumas visões mais tradicionais sobre o urbano (GONÇALVES, 2013, p. 169) e que, por tudo isso, residiria “algo de fundamental na caminhada como constituinte de uma esfera pública renovada” (GONÇALVES, 2013, p. 184).

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3 MUITO ALÉM DO “DOMÍNIO DA CARÊNCIA FÍSICA IMEDIATA” DA NECESSIDADE DE LOCOMOÇÃO - A PLURALIDADE E A COMPLEXIDADE DO CAMINHAR

Desse modo a caminhada nos lembra a todo momento nossa finitude: corpo pesado com necessidades grosseiras, pregado ao chão definitivo. Caminhar não é elevar-se, não é enganar a gravidade, não é iludir-se pela velocidade ou a elevação acerca de sua condição mortal, é, na verdade, preenche-la por essa exposição à solidez do solo, à fragilidade do corpo, a esse movimento lento de afundamento. (...). Nosso corpo de chumbo a cada passo cai de novo na terra, como para lá criar novas raízes. A caminhada é um convite a morrer em pé. (GROS, 2010, p. 186-187, grifo nosso).

A singular atividade humana do caminhar varia, assim, de acordo com o objetivo, a forma, o espaço, o tempo e, também, em relação aos seus significados e formas culturais. Estendendo a reflexão de Lefebvre, a seguir, para o caminhar, pode-se afirmar que este também varia segundo as classes sociais: “Os mesmos atos sociais (comer, trabalhar, sair, vestir-se, etc.) não têm o mesmo sentido nas diversas camadas, frações de classe e classes da sociedade. Basta evocar um ato simples, a refeição, para compreender isso” (LEFEBVRE, 2005, p. 22). Por isso, como aqui proposto, investigar o caminhar na vida cotidiana se insere em um contexto mais amplo de análise das relações metabólicas do capitalismo contemporâneo. Vários dos diferentes tipos de caminhar, observados na atualidade, se apresentam como um “sintoma” das relações estranhadas vigentes. Marcel Mauss, em seu célebre ensaio, As técnicas do corpo, apresentado na Societé de Psycologie, em 1934, valendo-se do método da Antropologia Cultural, defendia que o caminhar, dentre outras técnicas corporais, não era algo natural mas, sim, uma técnica60 aprendida culturalmente, logo, variando de sociedade a sociedade. Como observou Mauss (2003, p. 407), “[...] antes das técnicas de instrumentos, há o conjunto das técnicas do corpo” e, por isso, “[...] é preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição” (MAUSS, 2003, p. 404). As técnicas corporais possuem, assim, elementos “fisio- psico-sociológicos”, muitas vezes negligenciados pelos estudiosos, que informam muito sobre as especificidades e o próprio processo de constituição e relação dos diversos grupos sociais.

60 As técnicas do corpo, para Mauss (2003, p. 401), são “maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo”. “Toda técnica propriamente dita tem sua forma. Mas o mesmo vale para toda atitude do corpo. Cada sociedade tem seus hábitos próprios” (MAUSS, 2003, p. 403).

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Fornecendo breves exemplos sobre a diversidade cultural das técnicas corporais e seu processo de transformação espaço-temporal, como, por exemplo, a especificidade do andar das mulheres maorio, da Nova Zelândia, o antropólogo francês compartilha a experiência que teve em um hospital dos Estados Unidos, quando visitava este país e precisou ser hospitalizado. Segundo o autor, essa “revelação” demonstra que as diversas técnicas corporais são aprendidas socialmente e que, no caso específico descrito a seguir, foi influenciada pela emergente indústria cultural do cinema estadunidense. Influencia essa, sem precedentes na história, que chega a sugestionar a forma de se caminhar das “mocinhas francesas”:

Uma espécie de revelação me veio no hospital. Eu estava doente em Nova York e me perguntava onde tinha visto moças andando como minhas enfermeiras. [...]. Descobri, por fim, que fora no cinema. De volta à França, passei a observar, sobretudo em Paris, a frequência desse andar; as jovens eram francesas e caminhavam também dessa maneira. De fato, os modos de andar americanos, graças ao cinema, começavam a se disseminar entre nós. Era uma ideia que eu podia generalizar. A posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos puramente individuais, quase sempre inteiramente psíquicos. (MAUSS, 2003, p. 404).

Essas transformações das técnicas corporais podem ser observadas, segundo Mauss (2003), também, nas técnicas de mergulho, de corrida, dentre outras, impactando fortemente a performance dessas atividades. Os esportes de alto rendimento, por exemplo, são exemplos cabais de como as alterações nas técnicas corporais, além dos equipamentos de suporte a essas práticas permitidos em cada modalidade, aumentam a “eficiência” de desempenho dos atletas. Todos esses processos de (re)educação da própria dinâmica corporal, bem como dos instrumentos que auxiliam a performance desse corpo, podem alterar a constituição da ergonomia e até mesmo, em um período alargado, da fisiologia do corpo humano, onde por exemplo, como ressalta Mauss (2003), o “andar calçado transforma a posição dos pés”. E para Engels, por exemplo: “O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exerceram indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certa influência sobre outras partes do organismo” (ENGELS, 2004, s/p). Cabe ressaltar, como visto na Introdução, que, ainda para Engels, o trabalho se constitui em mediador central da evolução humana pela qual as mãos e os pés não devem ser apenas considerados órgãos de trabalho, mas também produtos dele. Por meio dessa mediação histórica, toda “corporalidade” humana se constitui e também se transforma. Dentro desse

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contexto, como visto até aqui, pode-se depreender que o caminhar também é mediado pelas relações de trabalho e, dessa forma, se essas relações de trabalho são estranhadas, logo o caminhar também se torna estranhado. Embora Engels dê mais importância à atividade das mãos do que à dos pés no processo de evolução humana, crava, na interação acima citada, o desenvolvimento das forças produtivas, nos diferentes períodos da história, e acrescenta:

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. A caça e a pesca vieram juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião. (ENGELS, 2004, s/p).

Dentro dessa perspectiva, o caminhar não deve ser visto só como produto, mas também como atividade produtiva, criadora, humana. A práxis do caminhar vai muito além do “domínio da carência física imediata” da necessidade de locomoção. Se, por muito tempo, ao longo do processo civilizador, o caminhar correspondeu, sobretudo, à sua função elementar de deslocamento, paulatinamente ganhou outros contornos mais simbólicos, enfim, “um grau de significação cultural surpreendente”. Segundo Coverley (2014, p. 12):

Para uma atividade inócua e que costuma ser realizada por um participante totalmente desatento de seu funcionamento, o ato de caminhar adquiriu um grau de significação cultural surpreendente. Como pôde algo tão óbvio, tão instintivo, ter chegado a esse papel? A resposta, evidentemente, está não tanto no movimento das pernas de alguém quanto no que esse movimento simboliza e aonde ele pode levar. Pois, como sempre, caminhar é um meio para se chegar a um fim, raramente um fim em si. Durante grande parte da história humana e na maior parte do mundo atual, esse fim é, como sempre foi, simplesmente locomoção, um modo de passar de A para B. No entanto a história do caminhar viu esse fim evoluir gradualmente, pois, à medida que o caminhar foi substituído por outras formas de transporte, assumiu ou recebeu outras designações.

Longe de ser uma premissa axiomática, porém, a ideia de Coverley (2014) de que a prática do caminhar foi se diversificando de sua função de mero deslocamento, à medida que outros modais de transporte foram surgindo, é bastante sugestiva para se pensar o papel

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do caminhar na modernidade, e, mais especificamente, sua reivindicação e demanda na contemporaneidade. Porém, é possível identificar, ao longo da história da humanidade, por exemplo, práticas ritualísticas, antes da existência de outros modais de deslocamento, onde o caminhar supera sua função elementar, como no caso do rito de iniciação dos jovens (rapazes) aborígenes australianos, conhecido como walkabout61, onde se submetem a um período de vida errante e solitária, durante seis meses, entrando em contato com o território ancestral, seu simbolismo e sua espiritualidade, por meio de uma aventura pelo deserto, em busca das “origens da humanidade”:

El walkabout – palabra intraducible, solo comprensible en el sentido literario de “andar sobre” o “andar alrededor” – es el sistema de recorridos a través del cual los pueblos de Australia han cartografiado la totalidad del continente. Cada montaña, cada río y cada pozo pertenecen a un conjunto de historias/recorridos – las vías de los cánticos – que, entrelazándose constantemente, forman una única “historia del tiempo del Sueño”, que es la historia de los orígenes de la humanidad. Cada recorrido va ligado a un cántico, y cada cántico va ligado a una o más historias mitológicas ambientadas en el territorio. Toda la cultura de los aborígenes australianos – transmitida de generación en generación a través de una tradición oral todavía activa – se basa en una compleja epopeya mitológica formada por unas historias y unas geografías que ponen el énfasis en el propio espacio. A cada vía le corresponde su propio cántico, y el conjunto de las vías de los cánticos forma una red de recorridos erráticos simbólico que atraviesan y describen el espacio como si se tratase de una guía cantada. Es como si el Tiempo y la Historia fuesen reactualizados una y otra vez “al andarlos”, al recorrer una y otra vez los lugares y los mitos ligados a ellos, en una deambulación musical que es a la vez religiosa y geográfica. (CARERI, 2013, p. 38, grifo nosso).

Outro exemplo é a caminhada de aproximadamente quatrocentos quilômetros de ida e quatrocentos quilômetros de regresso que, todo ano, “a partir do mês de outubro, depois da colheita do milho”, o povo Huichole, localizado nos estados de Nayarit e Jalisco, no México, fazem para colher o peyotl, “um pequeno cacto sem espinhos que conjuga virtudes medicinais e poderes alucinógenos”, que só é encontrado em Wirikuta, morada dos deuses e antepassados, em uma zona montanhosa, desértica e isolada nessa região:

Se os huicholes realizam essa viagem, é sem dúvida para recolher um cacto que serve para os indígenas de remédio universal, de estimulante, mas é também para fazer o mundo segurar-se. O peiote representa uma divindade

61 O tema do walkabout foi abordado, por meio da literatura, em obra homônima de James Vance Marshall, lançada em 1959. Posteriormente, em 1971, foi adaptada para o cinema, pelo diretor Nicolas Roeg, levando o mesmo título.

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do Fogo; ele forma, com o milho e o cervo, uma trindade sagrada. A mitologia registra que a primeira expedição foi organizada por um deus primordial (aquele que triunfou das trevas e da morte) a fim de impor a alternância da estação seca e da estação das chuvas, o equilibro das potências do Fogo e da Água. É dessa partilha que depende a vida: o milho exige água e sol. Repetir essa expedição é garantir o equilíbrio cósmico, é garantir a estabilidade do universo. É preciso caminhar para fazer o mundo segurar-se. Mito, pois, de renascimento, pessoal e cósmico. (GROS, 2010, p. 128, grifos do autor).

Figura 04 – Caminhada huichole rumo a Wirikuta

Fonte: Site - Desinformemonos62.

Assim, através da interação de sistemas históricos, sociais e culturais bastante complexos, o ser humano transformou o ato de caminhar (bem como todas as atividades que realiza), de atividade pré-programada, não-voluntária, em atividade eivada de potencialidade criadora, uma “ruptura com a mera reprodução biológica”, quando praticada de forma liberta. Vale a pena retomar aqui a famosa passagem de Marx sobre a diferença da capacidade de produzir do “animal” e do “homem”, onde o primeiro “só produz a si mesmo”, já o segundo, “reproduz a natureza inteira”:

É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente]; o animal produz apenas sob o domínio da carência física

62 Vale destacar nessa imagem a vestimenta característica do povo Huichol, em sua mítica caminhada rumo a Wirikuta. Disponível em: . Acessado em: 13 jun. 2015.

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imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza. (MARX, 2004, p. 85).

Porém, o que, por um lado, representa o grande diferencial humano de se produzir para além da mera necessidade de sobrevivência, por outro, sobretudo dentro do sistema capitalista, essa capacidade de objetivação humana é transformada em atividade estranhada, “que bloqueia a realização humana”. E, no caso específico do caminhar, é reduzido, na maioria das vezes, a sua função biológica de locomoção, função esta realizada pela mercadoria força de trabalho, que, ironicamente, é “auto-ativa e consciente-de-si”. Se por um lado, como ressalta Coverley (2014, p. 16), ao citar Morris Marples: “[...] de modo geral a humanidade raramente viu o caminhar como prazer”, exatamente por estar atada a sua função elementar de deslocamento; por outro, justamente quando os meios de locomoção se encontram altamente desenvolvidos, o caminhar deveria ter mais chances de transcender sua função biológica, transformando-se em prática corrente de prazer, criação, fonte de conhecimento, enfim, realização humana emancipada. A realização de um caminhar em suas dimensões: social, corporal, espiritual, estética, ou seja, em “sua efetiva objetivação genérica” (wirkliche Gattungsgegenständlichkeit), é solapada, muitas vezes, como um mero meio de manutenção da existência física, contribuindo-se, assim, com o “embrutecimento do ser social e o empobrecimento dos sentidos humanos” (RAMALHO, 2010, p. 177). Nas palavras de Marx:

Igualmente, quando o trabalho estranhado reduz a auto-atividade, a atividade livre, à um meio, ele faz da vida genérica do homem um meio de sua existência física. (MARX, 2004, p. 85).

(...) comer, beber e procriar etc. são também funções genuinamente humanas e sociais. Porém, na abstração que as separa das demais esferas da atividade humana, ao convertê-las em finalidades últimas e exclusivas, age como os animais. (MARX, apud, ANTUNES, 2011, p. 83).

Diante desse panorama geral sobre a relação entre trabalho, corpo (orgânico e inorgânico), produtos e atividades produtivas oriundas desse trabalho em uma sociedade estranhada, pode-se afirmar que, ainda assim, o caminhar se materializa, ao longo da história,

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das mais diversas formas: desde as experiências mais estranhadas às que mais se aproximam da realização genérica do ser social.

3.1 EXPRESSÕES DO CAMINHAR63

Diante da miríade de manifestações do caminhar, vale a pena aventurar-se aqui em apresentar uma diversidade de expressões do caminhar na contemporaneidade, com o objetivo principal de ilustrar a complexidade de tipos de caminhar existentes, ligados a distintas finalidades e circunstâncias. Nesse sentido, seguindo os passos de Jacques (2012), a apresentação das expressões do caminhar a seguir estará dividida em duas categorias: i) o caminhar involuntário; e, ii) o caminhar voluntário. A autora, em seu Elogio aos Errantes, elabora a categoria “homem lento voluntário”, em diálogo com Milton Santos e Ana Clara Torres Ribeiro, como condição necessária para a constituição da experiência errática no urbano:

Os errantes, diferentemente daqueles que vivem nas ruas por falta de alternativa, erram por vontade própria, mas se deixam contaminar pelas diferentes formas de apropriação do espaço dos mais pobres, por sua maneira de reinventar – por necessidade e como forma de sobrevivência – formas próprias e criativas de vivenciar e experimentar corporalmente a cidade. (JACQUES, 2012, p. 288-289, grifo nosso).

Por isso, ainda que o “homem lento voluntário” de Jacques (2012) esteja ética e politicamente comprometido com as “diferentes formas de apropriação do espaço dos mais pobres”, ele o faz de forma deliberada, crítica, proposital, resistindo a participar do circuito acelerado das relações de troca no capitalismo. Enfim, afirma, de forma propositiva, geralmente, estética, sua “lentidão voluntária”. De forma mais ampla, trazendo tal reflexão para o campo do caminhar, cabe a seguir analisar alguns dos diversos tipos de caminhar, sob a luz da diferenciação dicotômica voluntário/involuntário, pois se, por um lado, há o objetivo aqui de se refletir sobre a força do ato de caminhar como “ferramenta” e “ação urbana”, como bem ressalta Jacques (2012), para a transformação de cidades pautadas por relações estranhadas, daí a importância de se ilustrar o caminhar voluntário; por outro, no entanto, há de se levar em consideração sua vertente

63 Não se pretende aqui dar conta, de forma exaustiva, de todas as modalidades existentes do caminhar, mas, sim, construir um panorama que expresse a complexidade de suas manifestações.

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involuntária, tendo em vista que tais formas, em uma sociedade de classes e com diversas hierarquias de poder, todavia, seguem reinantes. Assim, cabe registrar, de antemão, os limites das categorias “voluntário” e “involuntário”, aqui adotadas, para se apresentar algumas manifestações do caminhar. Em um primeiro momento, a alusão a essas categorias remete a uma perspectiva analítica tradicionalmente ancorada no indivíduo. De forma estanque, de um lado, a concepção de que o indivíduo teria autonomia e liberdade para tomar suas decisões de forma voluntária, livre de qualquer determinação social; e, do outro, de que o indivíduo agiria de forma completamente involuntária, constrangido exteriormente, contra a sua vontade. Porém, ainda assim, justifica-se a adoção das categorias “voluntário” e “involuntário”, se se levar em consideração que se entende por “voluntário” a ideia ancorada na noção de uma autonomia relativa do indivíduo em relação ao coletivo, a partir de determinadas condições sociais de existência. Assim, o caminhar realizado de forma “voluntária” é aquele concretizado de forma “deliberada”, “espontânea”, advinda de “vontade própria”, eleita dentre outras formas de locomoção, que mais se aproximaria da omnilateralidade humana, da realização do ser genérico, do caminhar não estranhado. Porém, é importante destacar que, todavia, esse ato de caminhar se encontra imerso em um contexto material e histórico de hierarquias de poder e desigualdades de classe, gênero, raça, idade, deficiência, etc., que permeiam as relações sociais. Já a caminhada “involuntária” se insere no grupo onde a sua realização é eivada de obstáculos dentro de um cenário, para o caminhante, de falta de autonomia, segurança, conforto, acessibilidade, liberdade e a possibilidade de escolha de qualquer outra modalidade de deslocamento, locomoção, mobilidade é pequena ou inexistente. Assim, a realização de tal caminhada se dá de forma imperiosa, necessária, muitas vezes sob coação exterior, aproximando-se da perspectiva até aqui desenvolvida do caminhar como atividade humana estranhada, já que se resume, geralmente, a um “mero meio de subsistência”, no capitalismo contemporâneo. Convencionou-se aqui iniciar pela análise de alguns tipos de caminhada não voluntária para, então, adentrar na exposição das caminhadas voluntárias. Essa opção é deliberada, procurando primeiro explorar o caminhar em sua negatividade, para, na sequência, trabalhar sua exemplificação em sua positividade, como elemento potencial transformador da realidade.

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Além disso, procurou-se partir das motivações individuais de tal atividade, culminando com sua realização político-coletiva. Não significa dizer que, para as demais modalidades, a dimensão coletiva e política não esteja presente, mas quando, aqui, se elege tratar por último das “caminhadas coletivas de reinvindicação política”, essa eleição está eivada de uma significação que permeia toda a Tese, ao resgatar a importância da organização coletiva para reorganizar a cidade, a fim de se enfrentar as desigualdades e distinções sociais (HARVEY, 2014b). As expressões do caminhar a serem trabalhadas a seguir está organizada da seguinte maneira, como demonstra o quadro abaixo:

Quadro 01 – Expressões do caminhar

Expressões do Caminhar

Caminhar Involuntário

Travessias migratórias e deslocamentos por situações de guerras e A) conflitos humanitários no contexto atual.

B) Caminhadas da exclusão urbana.

Obstáculos para a circulação de pessoas com deficiência e C) mobilidade reduzida - acerca da acessibilidade urbana.

Caminhar Voluntário

A) “Espiritualidades do caminhar”.

B) Caminhadas erráticas.

C) Caminhadas coletivas de reivindicação política.

Elab.: Ana Luiza Moraes Patrão (2015).

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3.1.1 Caminhadas involuntárias

A) Travessias migratórias e deslocamentos a pé por situações de guerras e conflitos humanitários no contexto atual

O povoamento humano da Terra se iniciou há milhares de anos. Partindo da África, essas migrações, por muito tempo, tiveram como modal básico de deslocamento o caminhar. Até hoje, a mobilidade humana se vale expressivamente da locomoção a pé, apesar dos avanços tecnológicos expressivos dos meios de deslocamento. Quando se trata especificamente de caminhadas involuntárias, cabe registrar, assim, o alto índice de populações que se utilizam do deslocamento a pé para migrarem ou se deslocarem forçadamente por situações de guerra e conflitos humanitários64. Seguramente, a eleição dessa modalidade, como será possível observar, está associada a dois fatores principais: i) as condições econômicas desiguais de acesso a diferentes meios de locomoção; ii) e, as políticas migratórias cada vez mais restritivas que dificultam a entrada de migrantes indesejados e deslocados forçados por meio dos postos oficiais de migração, por exemplo.

64 É importante salientar que quando se trata de migração e de deslocamento forçado, estes se realizam tanto dentro das fronteiras de um Estado-Nação, quanto fora delas. Pelos limites impostos a confecção deste texto, opta-se aqui por tratar desses fluxos humanos em sua vertente internacional. Cabe registrar que, em se tratando de deslocamento forçado, segundo o relatório anual de 2015 do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR – Tendencias Globales, um total de 59,5 milhões de pessoas tiveram que fugir dos seus lares, “entre 2013 y 2014 se ha producido el mayor incremento anual jamás registrado” (ACNUR, 2015).

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Figura 05 - Refugiados de uma etnia albaneses se deslocando a pé – Guerra do Kosovo (1998-1999)

Fonte: Site – Agência Reuters65.

Resultado de um mundo desigualmente globalizado, “la erosión parcial de la escala nacional em términos económicos” faz com que o “sonho” de todo país que importe mão de obra estrangeira, por exemplo, seja de que exista um exército de reserva imigrante, oriundo dos países periféricos, que entre e saia de suas fronteiras sempre que solicitado a cumprir alguma demanda da reprodução ampliada do capital, sem criar vínculos de permanência com o país de destino. Segundo Smith (2005, p. 65-66):

(...) debido a los flujos de emigración de mano de obra que han tenido lugar durante el último cuarto del siglo XX – sin precedentes en la historia – las economías locales se han liberado cada vez más de su dependencia automática de mano de obra nativa. Es posible que todavía no exista un único mercado laboral global, pero existen numerosos mercados laborales internacionales, todos ellos interdependientes a escala global. En su conjunto, estos contraponen el estado nacional, que tiene autoridad sobre los medios de producción y consumo de ámbito nacional, y él ámbito internacional ampliado de la producción social.

O “desejo”, enfim, de que a mercadoria força de trabalho se comporte como qualquer outra mercadoria leva os diferentes governos desses Estados-Nação a criarem

65 Disponível em: . Acessado em: 16 jan. 2015.

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políticas migratórias extremamente severas de entrada e permanência, que frequentemente violam os direitos humanos dos migrantes:

As fronteiras no mundo contemporâneo são apropriadas e atravessadas de diferentes maneiras pelo capital, pelos viajantes, turistas e migrantes. Ao mesmo tempo em que comerciais de TV e propagandas anunciam seu fim - "um mundo sem fronteiras" -, estas são reafirmadas no sentido mais estreito nas tentativas de controle do policiamento do território e da população. Dessa forma, as fronteiras permanecem espaços de disputa, de litígio; os migrantes entram nesse território e, ao enfrentar o rígido esquema de controle e vigilância com seus corpos sexualizados, racializados e generificados, se submetem aos riscos e à violência da travessia. (ASSIS, 2008, p. 231).

É, seguramente, dentro desse contexto migratório assaz violento que as formas mais variadas de deslocamentos inseguros surgem. Na maioria das vezes, essas travessias são guiadas por atravessadores – “coiotes” – ou traficantes de pessoas, e, muitas vezes, interceptadas por funcionários corruptos do Estado, narcotraficantes e gangues que assumem o monopólio da força em vastas áreas, todos eles explorando sempre a condição de vulnerabilidade desses migrantes. Sejam as travessias em barcos improvisados no Mediterrâneo e nos mares do Pacífico, ou as longas caminhadas na fronteira entre México e Estados Unidos, e, também, entre países africanos ou do sudeste asiático; sejam por questões econômicas, afetivas- familiares, guerras, perseguição políticas e religiosas, etc., o fato é que existe um contingente pauperizado cada vez maior disposto a arriscar-se cotidianamente nessas longas viagens rumo a concretização do sonho de se viver com mais segurança e dignidade. “Expulsos de nós mesmos, desterrados da natureza e da cultura, flutuamos, sem raízes, no vazio” (JIMÉNEZ apud JUSTO; NASCIMENTO, 2005, s/p).

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Figura 06 – Sapatos de refugiados que realizam longos percursos a pé para fugir da guerra no Sudão – Série de fotografias intitulada, The Long Walk, de Shannon Jensen

Fonte: Site – Hyppnes – inovação e criatividade para todos66.

Ao contrário do que se pode imaginar, segundo o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Tendencias Globales – Desplazamiento Forzado en 2014, a maioria do fluxo de deslocamento forçado, por exemplo, ocorre entre regiões consideradas menos desenvolvidas ou em desenvolvimento. Essa desigualdade de acolhimento de refugiados está intimamente associada à recusa dos países mais desenvolvidos em amparar tal população. Os dados do relatório, para 2014, apontavam que “las regiones en desarrollo acogían al 86% de los refugiados del mundo: 12,4 millones de personas, el valor más elevado desde hace más de dos decenios. Los Países Menos Desarrollados daban asilo a 3,6 millones de refugiados: el 25% del total mundial” (ACNUR, 2015, p. 02). Como já observado, o processo sistemático de criminalização dos migrantes, na maioria dos países de entrada, faz com que milhares de pessoas, geralmente as mais pobres, se arrisquem cruzando as fronteiras nacionais de maneira irregular e sob constante perigo. A vulnerabilidade é ainda maior para crianças, adolescentes, mulheres, sobretudo, desacompanhados, indígenas, LGBT, idosos e pessoas com deficiência. Esse tipo de migração é considerado até hoje “uma forma masculina de migrar, pois os riscos da travessia”, como por exemplo,– “cruzar um rio a nado, caminhar pelo deserto seguindo coiotes − são considerados muito perigosos (...)” (ASSIS, 2008, p. 235). Segundo Flórez (s/d, s/p):

66 Disponível em: . Acessado em: 16 jan. 2015.

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Para las mujeres, gays, lesbianas y transexuales el viaje en “La Bestia” además del constante peligro de que los arrolle viene acompañado del acoso sexual de algunos migrantes machistas, además de la violencia homófoba hacia gays, lesbianas y transexuales.67

Nos últimos anos, por exemplo, vieram à tona notícias de que muitas crianças e adolescentes, sobretudo sul e centro-americanos, estão atravessando sozinhos, a pé, a fronteira do México com os Estados Unidos68 com vários objetivos, dentre os quais: i) reencontrarem suas famílias que se viram impelidas a migrarem primeiro, com a expectativa de em um futuro poder reunirem novamente seus entes familiares; ii) ou mesmo para fugirem da violência familiar, da violência do narcotráfico e da pobreza extrema; iii) e, por fim, contra o seu consentimento, forçadas a ingressarem em uma rede de tráfico de pessoas69, por exemplo.

67 Disponível em: . Acessado em: 16 jan. 2015. 68 Cabe salientar que, “en la frontera México-Estados Unidos existen dos grandes rutas del migrante: la del Océano Pacífico, reconocida por el tráfico casi exclusivo de estupefacientes; y la del Océano Atlántico, temida por el control territorial de traficantes de órganos, extorsión y esclavización de personas”. Disponível em: . Acessado em: 18 jul. 2015. Além disso, vale lembrar os inúmeros obstáculos que existem para se cruzar irregularmente essa fronteira. Além de possuir uma militarização fronteiriça cada vez mais presente, conta também com valas ao longo do percurso e um sistema de monitoramento altamente sofisticado. Dificuldades naturais também estão presentes ao longo do caminho: a presença de um deserto extremamente árido e um rio bastante caudaloso, como seu próprio nome indica, “Bravo” (denominação mexicana), localizado na fronteira entre os estados do Texas, nos Estados Unidos, e Chihuahua – México, tornam a experiência da travessia a pé ainda mais insuportável. Em 2007, iniciou-se a construção unilateral de um muro, com mais de 3 metros de altura, que separa os Estados Unidos do México, na gestão do então presidente George W. Bush. Hoje, o muro possui mais de mil quilômetros de extensão, cobrindo cerca de um terço de toda a zona fronteiriça entre os dois países. Estende-se de El Paso, no Texas, até San Diego, na Califórnia, do lado estadunidense, e Cidade Juarez, em Chihuahua, e Tijuana, no estado de Baixa Califórnia, na porção mexicana. 69 Essa rede de tráfico de crianças e adolescentes inclui, exploração sexual, tráfico de órgãos, adoções irregulares e seu uso como “mulas” de contrabando de entorpecentes. Disponível em: . Acessado em: 18 jul. 2015.

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Figura 07 – Crianças centro-americanas cruzando a fronteira México – EUA a pé e sozinhas

Fonte: Notimex apud Blog Bajo del Fuego. 70

Tomando ainda como exemplo de travessia migratória irregular a pé o cruzamento da fronteira México – Estados Unidos71, tendo em vista sua importância histórico-global, é fundamental analisar o contingente cada vez maior de centro-americanos que cruzam a fronteira sul do México, sobretudo, com a Guatemala, com o objetivo de atravessar o país rumo à “América”. Essa migração em trânsito tem preocupado fortemente o governo estadunidense que vem detectando a intensificação da migração centro-americana na fronteira norte do México com o objetivo de ingressar “clandestinamente” em seu território. Segundo estatísticas da Unidade de Política Migratória da Secretaria de Governo do México, no ano de 2013 foram detidos em território mexicano 86.298 estrangeiros irregulares, sendo a maioria de centro-americanos (ISACSON; MEYER; MORALES, 2014). “En 2013, por primera vez, más de un tercio de los migrantes detenidos por la Patrulla Fronteriza de los Estados Unidos no eran mexicanos. La gran mayoría de estos 153.055 migrantes ‘no mexicanos’ detenidos

70 Disponível em: . Acessado em: 20 jul. 2015. 71 É importante também destacar que, desde 1990, calcula-se que já morreram no deserto tentando atravessar a fronteira México-Estados Unidos mais de 6.000 pessoas. Nesse sentido, em 2013, um grupo de ativistas realizou uma caminhada de 120 quilômetros, durante uma semana, desde Sasebe, em Sonora - México, até Tucson, no Arizona – Estados Unidos, cruzando o deserto do Arizona, a fim de protestar contra as políticas migratórias cada vez mais restritivas do governo estadunidense que levam os migrantes irregulares a buscarem cada vez mais “rotas remotas e perigosas”. Esse tipo de caminhada, denominada aqui de “caminhadas coletivas de reivindicação política”, será objeto de análise do item 3.1.2-C, p. 170. Disponível em: . Acessado em: 10 jun. 2015.

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provenían de Centroamérica, principalmente El Salvador, Guatemala y Honduras” (ISACSON; MEYER; MORALES, 2014, p. 04). Embora quase inexistam informações a respeito, alguns jornalistas (Periodistas de a Pie72) e defensores de direitos humanos (Las Patronas73) vêm denunciando que, nos últimos anos, devido aos programas e iniciativas encabeçados, sobretudo, pelos governos dos Estados Unidos, México e Guatemala para controlar os fluxos migratórios na fronteira sul do México, muitos migrantes centro-americanos estão se vendo obrigados a recorrerem aos duros e perigosos deslocamentos a pé para cruzarem as terras mexicanas rumo aos Estados Unidos, contradizendo, assim, o discurso de atenção e ajuda humanitária contido nessas políticas governamentais. Plan de Modernización de Aduanas, de 2007 a 2012; Iniciativa Merida de 2009; Programa de Apoyo a la Zona Fronteriza de 2013; Programa Frontera Sur de 2014; Programa Paso Seguro, também de 2014, são algumas das ações do “trabalho regional coordenado”74 que “brindanle atención y ayuda humanitária al migrante, y garantiza el estricto respecto a sus derechos humanos”, como assim declarou a presidência do México, particularmente sobre o Programa Frontera Sur, de 201475. Esses programas incluem as seguintes ações, principalmente, em território mexicano: incremento de tecnologias de segurança fronteiriça, como lanchas, helicópteros, modernização dos postos de migração e alfândega; construção em curso de um sistema de registro biométrico para que se obtenha uma “mejor idea de quienes están cruzando la frontera”; formalização e ordenamento dos fluxos migratórios com a “distribuição” de Tarjetas de Trabajador Fronterizo y de Visitantes Regionales; fechamento de vários cruzamentos fronteiriços oficiais na Guatemala; construção de infraestrutura adequada para receber em abrigos oficiais os migrantes irregulares interceptados, dentre outras atuações (ISACSON; MEYER; MORALES, 2014, p. 04).

72 Para mais informações sobre a Red de Periodistas de a Pie, consultar: . Acessado em: 21 jul. 2015. 73 Para mais informações sobre Las Patronas consultar: . Acessado em: 21 jul. 2015. 74 Segundo Camilo Pérez Bustillo, integrante da equipe de trabalho do Tribunal Permanente dos Povos e professor-pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México, “não há um país que seja o único responsável pela violência contra os migrantes. Se trata, explica o pesquisador, de uma cumplicidade estrutural transnacional entre os países de origem, trânsito e destino implicados, na qual o México é responsável por ‘fazer o trabalho sujo e ampliar a política migratória dos Estados Unidos no seu próprio território’. A militarização da fronteira oferece às companhias estadunidenses um negócio de cerca de 46 bilhões de dólares” (Desinformémonos, 2014). 75 Disponível em: . Acessado em: 21 jul. 2015.

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É inegável que essas políticas de controle ostensivo das fronteiras obrigam os migrantes irregulares a recorrerem a rotas cada vez mais perigosas e precárias. Muitos dos migrantes centro-americanos recorrem a “La Bestia”. Assim é chamado o trem que percorre o México na ferrovia que liga o sul ao norte do país. Esses migrantes se transportam de maneira irregular na parte superior dos vagões de carga e estão sujeitos às intempéries climáticas, assim como os constantes acidentes que ocorrem ao longo do trajeto. Além disso, frequentemente são parados por policiais, funcionários, narcotraficantes e gangues que os extorquem, roubam, torturam, estupram, sequestram, deportam e muitas vezes os matam. Porém, sem querer diminuir a dramaticidade da travessia em “La Bestia”, segundo o Colegio de la Frontera Sur, o número de indocumentados que se valem desse meio de transporte para ingressar em território mexicano representa apenas 17% dos migrantes76. Além disso, com todas as políticas de controle migratório empreendida nos últimos anos, obter êxito transportando-se pela ferrovia tornou-se mais improvável. Assim, frequentemente são criadas alternativas para se contornar os obstáculos à circulação dos migrantes “clandestinos” como, por exemplo, “en balsas que bordean la costa del Océano Pacífico. A pie por brechas entre cerros, en caminatas que a veces superan 100 kilómetros. Escondidos en camiones de carga, en taxis o autobuses de pasajeros” (NÁJAR, 2015)77. Como a travessia por meio de “La Bestia” está sendo cada vez mais vigiada pelas ações implementadas pelo Programa Frontera Sur, além de terem que caminhar mais, os migrantes em situação irregular já não podem mais contar com uma rede de apoio construída ao longo de muitos anos no caminho da ferrovia. São albergues, casas de acolhimento, onde o migrante tem a rara chance de comer uma refeição completa, tomar banho, descansar, se curar de alguma enfermidade adquirida ao longo do caminho, trocar experiências com outros migrantes, enfim, recuperar suas energias para seguir sua dura viagem. Alberto Xicoténcatl, da organização Belén, Posada del Migrante de Saltillo, Coahuila, no norte do país, denuncia em entrevista à BBC Mundo: “Lejos de ser un [programa] para potencializar el desarrollo de la frontera sur y la seguridad, es un [programa] meramente de contención migratoria” (NÁJAR, 2015)78. Segundo entrevista à

76 Essa informação se encontra disponível em: . Acessado em: 20 jul. 2015. 77Disponível em: . Acessado em: 08 maio 2015. 78 Disponível em: . Acessado em: 16 jun. 2015.

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jornalista Emma Hernández, integrantes de “Las Patronas” observam o incremento da travessia a pé dos migrantes “sem papeis”, devido ao aumento do controle fronteiriço:

El flujo de migrantes a pie va en incremento (…), pues cada vez son más los centroamericanos que llegan caminando al buscar nuevas rutas para llegar a Estados Unidos, ante el incremento en la vigilancia de distintas corporaciones. En entrevista, aseguró que el fin de semana pasaron cerca de 100 indocumentados a bordo del tren, pero han ido llegando más personas caminando a pedir alimento, en algunos casos se alojan por un día y posteriormente siguen su camino. Pero avanzar a pie implica que se haga un viaje más largo, toda vez que deben ir buscando nuevas rutas tratando de evitar a las corporaciones de seguridad que vigilan la frontera sur y las estaciones del tren en distintas entidades. (HERNÁNDEZ, 2015, s/p).79

Para fugir dos postos migratórios, os indocumentados centro-americanos muitas vezes optam por caminhar em torno de trezentos quilômetros, atravessando a fronteira da Guatemala rumo à cidade de Arriaga, em Chiapas, no México, onde, depois de vários dias sem qualquer tipo de ajuda humanitária, encontram um albergue que os acolham por até três dias para, em seguida, continuarem sua via-crúcis sem qualquer garantia de chegar ao seu destino final, a tão sonhada “América”:

Al llegar a Arriaga, luego de caminar casi una semana, los migrantes encuentran un albergue que les dará hospedaje y alimentación hasta tres días, además de orientación migratoria y la posibilidad de denunciar los constantes atropellos que han tenido que vivir en solo una décima parte del largo camino que les espera hasta la frontera de Estados Unidos; por ello mucha razón tenía el padre Rigoni al afirmar que la verdadera frontera de Estados Unidos está en Chiapas. (FLÓREZ, s/d, s/p, grifo nosso).80

Rumo à fronteira norte, México - Estados Unidos, vale ressaltar que a economia de muitas cidades e pequenos povoados dessa região gira em torno do trânsito migratório entre os dois países, movimentando milhões de dólares ao ano. Os migrantes, por sua vez, acabam se tornando o motor de pequenos negócios familiares, até de grandes empresas. Em se tratando da travessia clandestina a pé na fronteira, existe todo um mercado de produtos e serviços especializados para tais empreitadas. Desde mochilas, camisetas, calças, gorros e casacos camuflados, passando por galões de água negros para evitarem o reflexo da luz solar, rosários e até um tipo especial de sapato confeccionado na região chamado de pantuflas, para

79 Disponível em: . Acessado em: 16 jun. 2015. 80 Disponível em: . Acessado em: 16 jan. 2015.

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despistarem a patrulha migratória, evitando-se deixar pegadas dos sapatos, comuns pelo caminho:

A su inventor nadie lo conoce. Tampoco hay certeza sobre cuándo comenzaron a venderse en los pueblos y ciudades de la frontera norte de México. De lo siguiente no hay duda: los únicos compradores de estas pantuflas son los migrantes que están a un paso de recorrer el último tramo de su camino hacia lo que miran como su tierra prometida. El anónimo creador de tan singular invención tuvo ingenio: la suela de las pantuflas son de alfombra, para que las huellas de los caminantes no queden grabadas en la tierra del desierto de Arizona. (DURÁN, s/d, s/p). 81

Figura 08 – Sapato anti-pegadas – confeccionado especialmente para não deixar marcas na travessia dos migrantes na fronteira México – Estados Unidos

Fonte: Site – En el Camino – Periodistas de a pie.82

Se, por um lado, muitas cidades e povoados movimentam suas economias com o “negócio da migração de indocumentados”, por outro, várias outras se veem em situação dramática quando sua população local começa a migrar em massa em direção aos Estados Unidos. A coesão social e familiar, assim como a economia dessas localidades muitas vezes entram em crise, levando inclusive ao extremo, ao se tornarem povoados fantasmas. Foi o caso do povoado de Alberto, localizado no município de Ixmiquilpan, no estado de Hidalgo, no México, com pouco mais de 800 habitantes, de origem e tradições indígenas, que viu sua

81Disponível em: . Acessado em: 07 mar. 2015. 82Disponível em: . Acessado em: 07 mar. 2015.

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rotina completamente transformada quando um contingente impreciso de 70% a 90% da sua pequena população começou a migrar em direção aos Estados Unidos83.

Figura 09 – Cena real de migrantes irregulares atravessando a pé a fronteira desértica entre México e Estados Unidos

Fonte: Site – Jehozadak Pereira84

Como forma de gerar uma fonte de renda que incentivasse seus habitantes a permanecerem em Alberto, foi criado na região um complexo ecoturístico, conhecido como Parque EcoAlberto, em que, dentre suas diversas atrações, se destaca a inusitada “Caminata Nocturna”, um simulacro de uma típica travessia clandestina pelo deserto do Arizona85. O que, inicialmente, foi concebido para conscientizar seus habitantes em 2004, hoje vem se consolidando como uma atração turística nacional, atraindo pessoas de diversos estados, inclusive estrangeiros. Todo um cenário é montado, para que os “migrantes por um dia” “desfrutem” de uma experiência aproximada do que passa um migrante indocumentado ao tentar atravessar a fronteira no deserto86.

83Disponíveis em: e . Acessado em: 08 mar. 2015. 84 Disponível em: . Acessado em: 20 jul. 2015. 85 Para mais informações sobre a “Caminata Nocturna”, consultar o site do Parque Ecoalberto: . Há também um curta metragem homônimo, de Fernando S. López Flores, que contextualiza a origem da caminhada, além de trazer cenas de uma das simulações: . 86 Para que o “reality tour” ocorra de maneira ideal, conta com o auxílio ou o abandono de “coyotes”, e são perseguidos também pela “migra”, como a patrulha de migração é “carinhosamente” chamada, com direito a passarem sede e fome por algumas horas, terem que se mover no escuro e enfrentarem um frio de arrepiar, além de muita adrenalina e emoção. Tudo para simular uma situação real. Todos os “atores” da “Caminata Nocturna” são moradores de Alberto e ex-migrantes que viveram na pele a travessia real.

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Apesar do complexo fenômeno migratório que motivou a comunidade de Alberto em criar a “Caminata Nocturna”, ainda assim, é possível classifica-la dentro da lógica do “caminhar como mercadoria”, que será analisado com mais profundidade no Capítulo 487.

B) Caminhadas da exclusão urbana

A seguir, um conjunto de caminhadas involuntárias denominadas aqui de “caminhadas da exclusão urbana” serão analisadas88. Porém, quando considerados casos concretos, seguramente, alguns dos exemplos dessas caminhadas não deveriam ser introduzidos na categoria involuntário, já que são predominantemente “deliberadas”, eleitas dentre outras formas de locomoção, por mais se acercarem da omnilateralidade humana, da realização do ser genérico. É o caso, por exemplo, dos “malucos de estrada” 89. O que justifica, então, a aglutinação dessas modalidades de caminhar sob a designação involuntária reside nos seguintes argumentos: i) todas, de alguma forma, são produtos da exclusão urbana, seja ela espacial, social, simbólica, econômica, etc., convertendo-se, muitas vezes, em formas do caminhar estranhado; ii) todas, de alguma forma, encontram sua expressão eivada de estigma social; e, iii) algumas acabam por se converterem em expressão de resistência, consciente e/ou inconsciente, a tais estigmas e exclusões. A seguir serão analisadas as seguintes “caminhadas da exclusão urbana”: 1) dos trecheiros e andarilhos de estrada; 2) dos que moram e trabalham nas ruas; e 3) da juventude das periferias.

87 A Caminata Nocturna, de Alberto, enquanto mercadoria-serviço, insere-se na categoria de atividade improdutiva. Esse debate será retomado no Capítulo 4, de forma pormenorizada, à luz da teoria do valor em Marx. 88 Relembrando que, ao se analisar as caminhadas involuntárias e voluntárias, não se está afirmando que o caminhar seja um sujeito da história, tendo como pressuposto que estas são realizadas por sujeitos sociais concretos. 89 Dentre os tipos sociais andarilhos que não serão analisados nesta seção, mas que merecem, ao menos, uma breve menção, encontram-se os “malucos de estrada” ou “malucos de BR”. Os “malucos de estrada” são indivíduos que também “optaram” por uma vida errante, de cidade em cidade, e que fazem uso de diversas modalidades de transporte para as suas perambulações: a pé, carona, bicicleta, ônibus, etc. Geralmente confundidos com os hippies, os “malucos de BR”, porém, não se veem como tal. Apesar de se identificarem com a referida contracultura estadunidense dos anos 1960, seguramente inspiração para a constituição de sua identidade, se reconhecem como trabalhadores artesanais artísticos que romperam, de alguma forma, com a lógica de exploração do mundo do trabalho e suas implicações ao adotarem seu estilo nômade de vida. Um dos entrevistados do documentário, Malucos de Estrada II, Cultura de BR, explica, em sua opinião, porque são chamados de “malucos”: “ – Todo e qualquer homem que ousa a desafiar os valores estabelecido pelo sistema é considerado louco”. Sua relação social é ambivalente, sendo geralmente vistos, nos espaços urbanos, como excluídos, párias sociais, porém, outras vezes, como indivíduos livres, libertos de uma série de amarras sociais, fonte de motivação para a busca romântica de um modo alternativo de vida. Para maiores informações, ver o filme, Malucos de Estrada II, Cultura de BR, do Coletivo Beleza da Margem. Disponível em: . Acessado em: 19 jun. 2015.

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1) O caminhar no “Trecho do Mundo”: trecheiros e andarilhos de estrada

Ainda dentro da categoria das caminhadas involuntárias destacam-se: os trecheiros90 – indivíduos que “circula[m] pelas rodovias, de cidade em cidade a pé, sobrevivendo de trabalhos temporários e de eventuais ajudas filantrópicas”; e, os andarilhos de estrada – indivíduos que “vive[m] perambulando exclusivamente pelos acostamentos das estradas, sem destino, isolados e distantes de qualquer contato com as redes de assistência social” (NASCIMENTO, 2004:14-5). Tal distinção entre esses dois tipos sociais errantes nômades91 é importante, apesar de sua utilização indistinta, muitas vezes, na literatura especializada, tendo em vista que, apesar de se movimentarem igualmente no âmbito geográfico, guardam especificidades, que serão abordadas adiante, em suas movimentações psicossociais (JUSTO; NASCIMENTO, 2005). Invisíveis nas estatísticas nacionais, a dinâmica desses errantes nômades não se restringe ao espaço urbano, tendo a rodovia como espaço de ligação entre as cidades, sua morada, e seus pés, como bússola de orientação para seus deslocamentos. Ainda assim, as hipóteses possíveis para a “escolha” desse tipo de vida estão diretamente relacionadas ao processo de exclusão urbana cada vez mais intensificado nas cidades capitalistas. Dessa forma, o caminhar desses andarilhos, apesar de não terem as cidades como cenário principal de suas perambulações, insere-se na categoria das “caminhadas da exclusão urbana”. Majoritariamente de origem popular, os trecheiros e andarilhos de estrada possuem um histórico socioeconômico muito semelhante entre si (NASCIMENTO, 2004; JUSTO; NASCIMENTO, 2005; GOMES, 2010). É comum em suas narrativas elencarem alguns dos elementos a seguir, como contribuição “para a ruptura dos vínculos sociais em que a crescente marginalidade e a miséria [foram] sinônimas de [sua] dessocialização” (NASCIMENTO, 2004, p. 20): perda e permanência prolongada sem emprego; exploração laboral; dificuldades para se ter e manter uma moradia; diversos tipos de violências sociais e

90 Segundo Gomes (2010, p. 93), “[...] eles mesmos se autodenominam trecheiros, aqueles que estão caminhando no Trecho do Mundo”. Ainda sobre os trecheiros, Justo e Nascimento (2005) acrescentam: “Eles se autodenominam “trecheiros” e se reconhecem e são reconhecidos fundamentalmente por habitarem esse espaço de trânsito. “Trecho” e “Trecheiro”, portanto se confundem. O trecheiro se constitui no “trecho”, isto é, na andança, no movimento, no trânsito, no espaço relativamente ilimitado e desprovido de pontos de fixação. As constantes referências que faz às distâncias percorridas denotam a importância para o errante desse espaço vazio que interliga as cidades” (JUSTO; NASCIMENTO, 2005, p. 178). 91 Tanto os trecheiros quanto os andarilhos de estrada “não cabem nas categorias de peregrino, (...) de romeiro, de viajante, de mochileiro, de trabalhadores que vivem viajando para cumprir seus compromissos” (GOMES, 2010, p. 93), pois, dentro da complexidade de elementos que constituem a identidade de tais sujeitos destacam-se sua condição permanente de errantes e marginais.

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simbólicas ao longo da vida, advindas da sua posição de classe e raça92; problemas familiares e desilusões amorosas sem qualquer tipo de mediação adequada por parte das diferentes instâncias sociais; e, por fim, sentimento de falta de liberdade e de alienação psicossocial originados pelos contexto anteriormente exposto:

O gesto de partir, abandonando o sedentarismo, soa como um grito de libertação de todas as sedimentações que cercam estes sujeitos. Para alguns, a errância nas estradas significa não só a conquista da liberdade diante de um sedentarismo aprisionante, mas a libertação das obrigações sociais, da intolerância com o patrão, das dívidas a pagar, da opressão da vida estabelecida, etc. (NASCIMENTO, 2004, p. 71).

Figura 10 – Trecheiro, carregando seu “gogó da ema”93, caminha por rodovia

Fonte: Site – CRUESP.94

A instabilidade advinda da precarização do mundo do trabalho e da constante aceleração e compressão espaço-temporal, mediada, como visto no Capítulo 1, por uma ideologia da circulação, contribui para que:

O mundo contemporâneo, comprimindo cada vez mais o tempo e o espaço, tende a mergulhar o sujeito numa situação de constantes movimentações psicossociais e geográficas, expondo-o a uma experiência bem próxima da psicose. Tanto os considerados “loucos”, como os “não loucos”, são todos desalojados dos “lugares” para os “não-lugares”, vivendo a errância como

92 Utiliza-se o termo “raça” aqui em sua acepção social. 93 Segundo Justo e Nascimento (2005, p. 178), “[o] ‘gogó de ema’- saco que carrega às costas - é única coisa fixa em seu cotidiano e que o acompanha diuturnamente. Gogó de ema é uma gíria utilizada pelos andarilhos para designar o saco que carregam. Segundo eles, tal como o papo da ema o saco também comporta qualquer coisa e está sempre sujo”. 94 Disponível em: . Acessado em: 26 ago. 2015.

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um trânsito constante de um lugar a outro. (JUSTO; NASCIMENTO, 2005, p. 186).

Paradoxalmente, essa errância contemporânea, imposta também aos sedentários, é vivida, como frisaram Justo e Nascimento (2005), “como um trânsito constante de um lugar a outro”, e, sua mediação se dá por inovações tecnológicas comandadas pela imposição de um ritmo cada vez mais acelerado de produtividade, como parâmetro absoluto da medida do tempo. O aprisionamento do ritmo de vida cada vez mais ordenado pelas demandas do mundo do trabalho elimina progressivamente a vivência de um tempo que se aproxima do tempo dos sonhos, do ócio, do “tédio sem culpa, como puro vazio a ser preenchido pela fantasia” (KEHL, 2009). O fluxo incessante de acesso a informação e movimentação, exigido na contemporaneidade, demanda atenção e disponibilidade constante do indivíduo no tempo presente, o que contribui para o seu afastamento, cada vez mais constante, de memórias e recordações do passado. Essa imposição de estar completamente disponível, invadida pela hegemonia do tempo de produtividade, rompe com a possibilidade histórica pré-moderna de manter “o psiquismo disponível para o devaneio, as rememorações e mesmo as magníficas e inquietantes invasões da consciência pelas reminiscências” (KEHL, 2009, p. 164). Nesse sentido, destaca Kehl o seguinte paradoxo:

(...) as mesmas inovações tecnológicas destinadas a poupar o tempo de certas tarefas manuais e aumentar o tempo ocioso vêm produzindo um sentimento crescente de encurtamento da temporalidade. Tal sentimento talvez tenha a ver com o encolhimento da duração. A vivência contemporânea da temporalidade é denominada por um subproduto das ideologias da produtividade, as quais rezam que cada momento da vida deve ser aproveitado ao máximo. O mandamento “aproveite bem sua vida”, que poderia produzir alguns efeitos subjetivos interessantes e criativos, torna-se estéril quando a ideia de “aproveitamento” alia-se à lógica da produção, da acumulação e do consumo. A obsolescência programada do passado e da memória produz um sujeito permanentemente disponível, pronto a se desfazer de suas referências em troca das novidades em oferta. Desligado do frágil fio que ata o presente à experiência passada, voltado sofregamente para o futuro com medo de ser deixado para trás, o dito “consumidor” sofre com o encurtamento da duração. Assim se desvalorizam o tempo vivido e o saber que sustenta os atos significativos da existência. (KEHL, 2009, p. 168).

Assim, são os trecheiros e andarilhos da estrada que tomam a decisão extrema de “deixar para trás”, antecipando-se, dessa forma, ao medo permanente de “ser deixado para trás”. A “opção” por seguir a pé, perambulando pelas rodovias, de cidade em cidade, pode ser

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compreendida como uma resposta dramática e derradeira que visa a liberação da alma dos traumas sofridos pela imposição contemporânea do “encurtamento do tempo”:

A alma humana é essencialmente errante. A vida linear, planejada e organizada parece estar muito mais perto de uma realização de compromissos egoicos do que dos anseios da alma. A alma humana se busca nesse mundo. (GOMES, 2010, p. 98).

O rompimento com o circuito temporal da “produção, acumulação e consumo”, reivindicado e praticado por esses andarilhos, é uma tentativa, muitas vezes desesperada, de recuperar o que lhes foi roubado, “sua dimensão mais íntima”, enfim, sua própria vida, que vinha sendo vendida “como objeto de gozo para o Outro” (KEHL, 2009). Em um tipo de sociedade que há séculos trava batalhas hercúleas para sufocar qualquer tipo de expressão positiva do nomadismo (MAFESSOLI, 2001), e que, como substitutivo, promete o direito à propriedade privada e a garantia das leis como limite, refúgio e proteção sedentário-burguês, não se sustenta, sem enfrentar periodicamente colisões, o desejo de errâncias mais profundas, como a da alma, por exemplo. Nesse contexto, Gomes se indaga acerca da “opção” de vida dos andarilhos: “Seria a sua marginalidade à beira das rodovias um contraponto simbólico para a normalidade alienada da maioria dos cidadãos atrelados à Pólis?” (GOMES, 2010, p. 96). Segundo Gonçalves:

(...) falta afeto na cidade e este mesmo deveria ser potencializado ao nível da política no sentido de não ser encarado pejorativamente como uma questão “subjetiva”, mas como um elemento fundamental para que o andarilho, ou qualquer andante, se enraíze na cidade. (GONÇALVES, 2013, p. 159).

Os relatos dos que “optaram” por viver na estrada, caminhando sem destino certo, de cidade em cidade, estão imbuídos de sentimentos de dor e sofrimento. Apesar de que, para muitos, essa “opção” não tenha sido instantânea e, sim, um processo complexo e penoso de desvinculação e dessocialização gradual dos laços sociais permanentes que, em alguns casos, subsistem de forma esporádica, os trecheiros e andarilhos de estrada expressam, em seus depoimentos, a tensão em se abandonar o mundo sedentário e seus vínculos do passado para se viver as incertezas, instabilidades e vulnerabilidades de sua nova vida nômade. Segundo as palavras dos trecheiros a seguir, denominados pelas iniciais dos seus nomes, A. S. e L. M. N., respectivamente, observa-se seu desalento e sentimento de abandono no cotidiano da estrada:

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A. S.: Não tenho família. A vida do andarilho é muito ruim. Tem hora que você dorme num lugar, num come. Vai pedir na rua e eles não dão comida. Tem hora que toma banho, hora não tem, fica de roupa suja, não tem onde escovar dente. Entra numa cidade e eles tira a gente imbora. A vida é sofrida demais”. P. J. V. B. relata: “Olha, como andarilho, nenhuma (vantagem), porque isso não é vida. (GOMES, 2010, p. 94).

L. M. N.: “(...) O andarilho nunca tem nada que presta. Cansado, ele não tem valor... Vivo na rua, dependeno dos imãos, comida, pouso... de tudo. Até hoje, estou vivendo, ou não sei se morri e esqueci de cair...”. (GOMES, 2010, p. 100, grifo nosso).

Por outro lado, apesar de inúmeras dificuldades experimentadas nas interações sociais, no corpo e na alma, os trecheiros e andarilhos de estrada reconhecem em sua “opção” de vida um ato heroico de extrema coragem, em um mundo dominado pelo extremo individualismo. Abandonar tudo e colocar o pé na estrada, sem perspectiva de regresso, significa, dentre outras coisas, abdicar de uma identidade psicossocial que, apesar de forjada a ferro e a fogo por experiências traumáticas de vida, fornece algum suporte de equilíbrio ao ego. Assim, quando o andarilho consegue, de alguma forma, transcender a dor e o sofrimento, percebe em seu ato heroico qualidades próprias que, de outra forma, não alcançaria:

L. M. N.: “Todo andarilho conhece o mundo mais que piloto de avião. Por isso o andarilho não para. Quem não é trecheiro não conhece o mundo!” O povo fala de coragem, mas o mais corajoso que tem é o andarilho. Ele enfrenta onça. Lá no Mato Groso mesmo, eu vi onça pertinho de mim; lobo pertinho de mim. O andarilho tem que ter coragem, senão ele não anda no mundo. Tem que saber o lugar onde ele vai. É, não é fácil, não, moço”. (GOMES, 2010, p. 95).

Diante da “coragem” de se colocar literalmente o pé na estrada e “abandonar tudo”, o caminhar andarilho cumpre, de alguma forma, com um papel mediador restaurativo entre o corpo e a alma, contribuindo, assim, ainda que de forma inconsciente, para a realização de uma certa “terapia meditativa” sobre os traumas do passado e o fortalecimento subjetivo ante os riscos do presente e do futuro, vivenciados no “trecho”. Como poderá ser visto no item 3.1.2., existe uma vasta literatura que argumenta a favor das implicações positivas do caminhar na psique humana. Hillman, por exemplo, afirma que “[...] andar acalma. Prisioneiros circulam no pátio, animais andam de um lado para o outro em suas jaulas, a pessoa ansiosa mede o chão com seus passos: esperando o bebê nascer ou as notícias da sala da diretoria” (HILLMAN, 1993, p. 53). Ainda, Hillman destaca, a partir de sua experiência com a clínica terapêutica, a escolha natural e voluntária de seus pacientes em caminhar “em períodos de intensa desordem

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psicológica”, promovendo, assim, a restauração e o contato com o ritmo orgânico das passadas, que “vai ganhando significado simbólico ao colocarmos um pé depois do outro, direito-esquerdo, direito-esquerdo, num compasso ritmado” (HILLMAN, 1993, p. 53). Por sua vez, Le Breton afirma que “[...] el caminar es un remedio contra la ansiedad o la melancolía” e acrescenta:

El caminar fabrica lentamente el sentido que permitirá reencontrar la evidencia del mundo; a menudo se camina para reencontrar un centro de gravedad, perdido al haber sido alejado de uno mismo. El camino recorrido es un laberinto que provoca el descorazonamiento y el cansancio; pero su salida, radicalmente interior, es a veces un reencuentro con el sentido y con el gozo de saber que hemos invertido, a nuestro favor, todas las dificultades con las que nos hemos cruzado. Muchas rutas son travesías del sufrimiento, que nos acercan lentamente a la reconciliación con el mundo. La suerte del caminante, dentro de su angustia, es la oportunidad que se le ofrece de un cuerpo a cuerpo con su existencia, de conservar un contacto físico con las cosas. Embriagándose de fatiga, planteándose objetivos minúsculos pero eficaces, como ir allí en lugar de allá, controla todavía su relación con el mundo. Está desorientado, cierto, pero busca una solución, si bien aún no lo sabe. El camino deviene entonces camino iniciático, transformando la dificultad en oportunidad; la alquimia de la ruta lleva a cabo su eterna tarea de transformar al hombre, de volver a encauzarlo en el camino de su vida. (LE BRETON, 2011, p. 158-159).

Conhecer e estar no “mundo” por intermédio do próprio corpo, dos próprios pés, propiciam em muitos andarilhos experiências místico-religiosas similares às experimentadas pelos peregrinos (objeto de análise no item 3.1.2.). É como se o “despojamento de quaisquer seguranças na vida” permitisse ao andarilho transcender o mundo natural e entrar em contato com um universo além-do- humano. Em meio a tanta dor e sofrimento, a espiritualidade desses errantes nômades os ajuda, de alguma forma, a reacomodarem sua psique cindida, dilacerada.

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Figura 11 – José, trecheiro há 19 anos

Fonte: Site – CRUESP.95

Tecendo uma breve diferenciação entre os tipos sociais do trecheiro e do andarilho de estrada, destaca-se que, para o primeiro, a opção pelo deslocamento a pé pelas estradas se dá “por não possuir recursos para outro tipo de deslocamento”, segundo destaca Nascimento (2004, p. 21). A errância, para esses vira-mundos (BURSZTYN, 2003), é vista, muitas vezes, como sua única possibilidade para se construir uma vida nova. De cidade em cidade, de campo em campo, em busca de trabalhos temporários e sazonais, o trecheiro sonha com um recomeço, que pode abrigar, inclusive: família, trabalho, amigos. E conta, para isso, muitas vezes, com o auxílio da assistência social de cada localidade:

Liberados do confinamento forçado e sem a possibilidade de um reassentamento social mínimo, mediante o resgate de uma moradia, trabalho, dos vínculos familiares, acabaram encontrando na perambulação pelas estradas ou na itinerância de cidade em cidade, a única forma de sobrevivência. (JUSTO Apud JUSTO; NASCIMENTO, 2005, p. 178).

Porém, em casos extremos:

95 Disponível em: . Acessado em: 26 ago. 2015.

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Migram de um lugar a outro, não mais em busca de uma nova vida, como aqueles que se dirigiam a São Paulo atraídos pelo mito do emprego industrial. Agora, mais do que qualquer atrativo, o que motiva a perambulação é a próxima refeição. (BURSZTYN, 2003, p. 255).

Já o andarilho de estrada96 “opta deliberadamente” por viver e transitar a pé pelas rodovias em busca do isolamento, da solidão, da ruptura com os vínculos afetivos-sociais. Cravados por um desalento em fixar-se, seja na busca laboral, seja na reconstituição de um lar e de uma família, os andarilhos de estrada podem ser considerados os “verdadeiros dromomanes97 da atualidade” (JUSTO; NASCIMENTO, 2005). Com tamanha desvinculação geográfica, mas sobretudo, psicossocial, é bastante comum, entre eles, a existência de psicopatologias severas, como sofrimentos de paranoia e persecutoreidade, transtornos maníaco-depressivos, delírios, sentimentos narcisistas e megalomaníacos, dentre outros, “superinvestidos afetivamente” (NASCIMENTO, 2004; JUSTO; NASCIMENTO, 2005). No caso específico do delírio, por exemplo:

(...) pode ser compreendido como expressão de um movimento do pensamento ou da percepção que escapa de um eixo central de referência da subjetividade, um significante central em torno do qual se organizariam as demais significações. Analogamente, os andarilhos também escapam de um lugar identitário – um círculo psicossocial e geográfico no qual se encerra a subjetividade sedentária - para vagar no amplo horizonte de uma subjetividade sem raízes, sem fronteiras, em pleno movimento e sem fixações: uma subjetividade errante, nômade. (JUSTO; NASCIMENTO, 2005, p. 186, grifo nosso).

Diante desse cenário psico-geográfico-social complexo de extrema mobilidade, impermanência e efemeridade, portanto, o caminhar assume papel central, tanto para os trecheiros, quanto para os andarilhos de estrada, como mecanismo corporal que permite ao indivíduo entrar em contato, de alguma forma, com a melancolia (da Antiguidade) e o devaneio, solapados, reprimidos pela “urgência da vida contemporânea” (KEHL, 2009). Esses sujeitos, que escancaram a falácia da “soberania da razão” e da vida sedentária, “decidem”

96 Para mais informações sobre os andarilhos de estrada ver, por exemplo, o documentário, Andarilho, de Cao Guimarães (2006). Nas palavras do próprio diretor, “Andarilho é um filme sobre a relação entre o caminhar e o pensar. Lugar do deslocamento constante das coisas que não se fixam, dos pensamentos transitórios, das imagens e dos sons efêmeros, da vida como uma mera passagem”. Disponível em:

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viver, por meio dos seus pés, um tempo lento, que nega no corpo e na alma as relações de “produção, acumulação e consumo” e os automatismos da sociedade contemporânea.

2) O caminhar dos que vivem nas/das ruas

Voltando-se para o âmbito propriamente urbano, destaca-se que viver (morar e/ou trabalhar) nas/das ruas talvez seja tão antigo quanto as próprias ruas. Porém, por todo o aqui exposto é, provavelmente, no capitalismo que tais atividades humanas se desenvolveram de forma mais intensa e degradante. A relação entre a errância e a exclusão urbana devido a: falta de acesso a moradia; distância da moradia ao local de trabalho; desemprego; migração em busca de melhores condições de vida; falta de assistência psicossocial aos indivíduos, sobretudo, pobres, que sofrem psicopatologias severas, dentre outras; revela alguns dos mecanismos sociais excludentes e contraditórios que contribuem para a caminhada involuntária dos que moram ou trabalham nas ruas. Dentre esses perambulantes urbanos, é possível encontrar uma infinidade de tipos sociais, destacando-se os trecheiros e os andarilhos de estrada, como visto anteriormente, que realizam suas paradas de cidade em cidade, muitas vezes valendo-se das ruas para dormirem, ou mesmo para realizarem algum tipo de “bico” temporário. Também invisíveis para as estatísticas oficiais, mendigos, desempregados, migrantes, andarilhos, vagabundos, “loucos” de rua, “pivetes”, foras da lei, usuários de drogas, vendedores ambulantes, catadores de lixo reciclável, vigias de carros, etc., compõem o universo dos que moram e/ou trabalham nas ruas, possuindo em comum, a “itinerância pedestre”. “[...] Em qualquer [dessas] condições (...) [,] ser errante implica estar condenado a uma permanente situação limiar, sujeito a um número infinito de desaprovações e sanções, concretizadas, na maioria das vezes, em leis de repressão à sua circulação” (FRANGELLA, 2005, p. 40).

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Figura 12 – Caminhada do vendedor ambulante na praia

Fonte: Site – Panoramio.98

A trajetória desses perambulantes urbanos, assim, é “eminentemente corporal”, sendo a do morador de rua99 a que carrega o irredutível peso material e simbólico da exclusão e do estigma social. Tendo seu corpo a sua última morada, o morador de rua, “[...] desprovido de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práticas de consumo, envelhecendo na rua, corpo sujo e fétido que os mimetiza no asfalto, (...) aparece como uma ameaça às definições normativas do espaço urbano e às projeções corporais idealizadas” (FRANGELLA, 2005, p. 62). A errância desses perambulantes é intensificada na medida em que as intervenções urbanas da “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”100 se exacerbam, reprimindo contundentemente esses moradores e trabalhadores de rua, “indesejáveis à paisagem oficial”. No caso, particularmente, dos vendedores ambulantes, é exatamente nas zonas que concentram um fluxo econômico mais ativo que projetos de revitalização e

98 Disponível em: . Acessado em: 31 ago. 2015. 99 Cabe destacar que “a condição de morador de rua pode corresponder a um momento em um processo e não a um estado definitivo (TOSTA, 2003, p. 205). Por isso, muitas vezes, opta-se por utilizar a expressão “população em situação de rua”. Ainda sobre a exclusão social dos moradores de rua, este “transformou-se em sujeito emblemático da categoria exclusão social. Reúne uma série de características significativas, como a ausência de um domicílio fixo, afastamento do mercado de trabalho e – intensamente imbricado aos fatores anteriores – um certo distanciamento social e uma imagem negativa de si” (TOSTA, 2003, p. 224). 100 Segundo Telles, “a gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco é acompanhada por uma crescente e expansiva policialização de condutas e práticas “indesejáveis”, condenáveis não por indicarem alguma infração legal, mas pelo potencial de risco e ameaça à ordem urbana e ao bem-estar de suas populações, de que parecem ser portadoras. Os exemplos se multiplicam: da chamada lei seca aos episódios recentes de “operação policial de combate à evasão escolar”, passando pela prática e projetos de toque de recolher para os menores de 18 anos e a internação compulsória dos viciados em crack, além do fechamento e repressão a bailes, pontos de encontro e convivência nas periferias da cidade” (TELLES, 2013, p. 04).

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desenvolvimento dessas áreas são implementados, com certa frequência, para se reprimir a presença desses trabalhadores (TELLES, 2013). Telles (2013), assim, chama a atenção para o sistemático empenho do poder público em tentar confinar os inúmeros comércios ambulantes em ambientes fechados, por exemplo. Também é possível observar o esforço incansável das administrações municipais, por meio da “gestão das populações, de seus fluxos, de seus movimentos”, balizada pelo aparato policial e a assistência social, em expulsar os moradores de rua, onde quer que se estabeleçam, sobretudo, se for em áreas valorizadas das cidades. Nesse contexto, Tosta relembra o depoimento de Joelma, moradora de rua do Distrito Federal:

Como a maioria dos que se estabelecem nas ruas, afirma ter-se mudado umas 20 vezes somente dentro do DF, muitas vezes sendo removida pelo poder público e, outras, em busca de áreas de trabalho e residência melhor. (TOSTA, 2003, p. 209).

A expulsão e a repressão constante dos moradores e trabalhadores de ruas fazem parte, como visto no Capítulo 2, de uma dinâmica global de gestão urbana das cidades para manter o fluxo das riquezas, da circulação das mercadorias (dentre elas, a força de trabalho), “liberados [cada vez mais] dos constrangimentos dos Estados e nações” (TELLES, 2003, p. 11). Por outro lado, além da contumaz perseguição institucionalizada por parte do Estado, o que também leva esses perambulantes urbanos a circularem constantemente pelas ruas da cidade é a possibilidade de “ganhá-la a pé”, pela formação de “redes de circulação” (FRANGELLA, 2005). “Tais redes pautadas pela itinerância constroem e reconstroem territorialidades e interferem nos espaços urbanos” (FRANGELLA, 2005, p. 143). Quanto mais se circula, mais se conhece e se faz conhecer. Dominar a geografia da cidade e a dinâmica dos moradores e comerciantes das localidades frequentadas, por meio dos próprios pés, permite aos moradores e trabalhadores de rua “domesticar” seu universo nômade, estabelecendo uma certa rotina e previsibilidade ao seu cotidiano. Soma-se a tudo isso a dificuldade de acesso a outras formas de locomoção urbana. Dificuldade essa, tanto material, devido ao preço das passagens do transporte público, quanto subjetiva. A violência simbólica e, muitas vezes, física, sofrida pelos perambulantes urbanos, que “ousam” usar os sistemas de trem, ônibus e metrô, dentre outros, por parte de motoristas, cobradores, funcionários e usuários, é narrada com frequência como fator “estimulante” para que “os pés, [sejam] o meio de locomoção por excelência desse segmento” (FRANGELLA,

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2005, p. 141). Assim, caminhar passa a se tornar hábito e parte constitutiva da identidade desses moradores e/ou trabalhadores de rua:

Moacir, o jovem vendedor da Ocas que me levou para conhecer os circuitos dos moradores de rua no Brás, disse-me, quando lhe perguntei se ele não se cansaria em me conduzir e depois vender a revista: “Ihhh, não, que me cansar do quê? Eu ando o dia inteiro na cidade, tô acostumado, ô. Teve um tempo que eu ganhava do otro trabalho os passe de metrô pro mês inteiro. Sabe o que eu fazia? Eu vendia os passe e ficava com o dinheiro e fazia o trampo a pé. Qui, ô, a gente que ta na rua ta acostumado já. Dá pra anda o centro todo a pé, o pé agüenta sim. Esse Brás aqui eu conheci ele todo a pé. É muito fácil anda assim. É melhor que pega ônibus e metrô”. (FRANGELLA, 2005, p. 142).101

Apesar das diferentes formas de circular e de estar nas ruas das cidades, para “ganhá-la a pé”, os perambulantes urbanos demandam um esforço contínuo do próprio corpo, sobretudo, dos pés. As frequentes caminhadas, aliadas a falta de proteção e cuidados adequados com os pés, fazem com que moradores e trabalhadores ambulantes desenvolvam técnicas próprias para evitar lesões, machucados e o desgaste excessivo dos pés. Muitas vezes, é nos albergues das prefeituras que os perambulantes urbanos encontram algum tipo de alívio para suas dores corporais. Frangella sintetiza bem a importância dos pés para o cumprimento da condição errante dos moradores de rua, como por exemplo:

As condições físicas e higiênicas dos pés, suas situações de insalubridade, a importância daquilo que os cobre são simultaneamente efeito e prática da dinâmica de circulação particular do universo dos moradores de rua, enunciando a diversidade de trajetos geográficos e sociais possíveis em meio à restrição de lugares que lhes é imposta. (FRANGELLA, 2005, p. 140).

Os pés, além de motores da locomoção, “revelam mecanismos de distinção social neste universo da rua. (...) Na dinâmica da rua, poderíamos colocar uma distinção entre ter pés limpos e pés sujos, e outra entre usar sapatos fechados e usar chinelos ou estar descalço” (FRANGELLA, 2005, p. 135). Afirmar a identidade trabalhadora e não mendiga ou

101 “Ocas”, a que se refere a citação, é uma revista vendida nas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo, por pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade social e visa, dentre outros objetivos, a geração de renda e inclusão social desses grupos (disponível em: ). Esse tipo de publicação, orientada a pessoas em situação de rua, existe em diversas partes do mundo. Ainda no Brasil, encontra-se também a revista O Trecheiro, cujo conteúdo, inclusive, é destinado às populações de rua (disponível em: ). Internacionalmente, destaca-se a revista pioneira, The Big Issue, da Inglaterra (disponível em: ), e a revista Hecho en B.S. A.S, da Argentina (disponível em: ). Todas fazem parte da Rede Internacional de Publicações de Rua, INSP na sigla em inglês (disponível em: ). .

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“vagabunda” é utilizado por muitos perambulantes urbanos como distintivo de sua identidade social e referência para sua dignidade, bem como, o uso de sapatos também contribui para minimizar estigmas sociais, possibilitando, inclusive, maiores chances na hora de se procurar trabalho:

Os frequentadores mais assíduos de albergue que circulavam pelo refeitório, por exemplo, vinham, na sua maioria, com sapatos ou tênis. Segundo eles, sapatos eram importantes para facilitar o pedido de emprego, já que os empregadores tinham preconceito com quem usava chinelo. Nesse sentido, atenuava o estigma imposto sobre sua condição, porque os sapatos relativizavam a imagem que lhes era associada – de “vagabundos”. (FRANGELLA, 2005, p. 139).

A lida diária e lenta desses errantes urbanos contrasta com o acelerado vai e vem dos automóveis e dos pedestres nas cidades. Muitas vezes, o corpo fatigado que caminha conta com o auxílio de carrinhos puxados a pé. Esses carrinhos, muitas vezes, facilitam o transporte da “casa itinerante” dos moradores de rua, ou o armazenamento das “mercadorias” dos catadores de lixo recicláveis, por exemplo:

A cena ecoa como um gap temporal no interior da metrópole. A movimentação lenta e difícil dos carrinheiros recorda continuamente uma outra disposição dos corpos na dinâmica urbana, colocada no avesso de características como velocidade e conforto, as “tecnologias da comodidade” as quais marcaram as revoluções urbanas feitas a partir do século XIX e já completamente difundidas nas configurações urbanas contemporâneas. (FRANGELLA, 2005, p. 153).

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Figura 13 – Caminhada do catador de lixo reciclável

Fonte: Site – Econexões.102

Como é possível observar, a errância urbana dos moradores e trabalhadores de rua é complexa e plural. Por isso, assim como ocorre com os trecheiros e andarilhos de estrada, além dos fatores provocados pela exclusão urbana, elementos de ordem subjetiva mobilizam, muitas vezes, a perambulação desses grupos sociais. Dentro desse contexto, a precariedade das políticas públicas para acolher esses andarilhos é notória. Inclusive, as mais sensíveis e progressistas acabam homogeneizando as necessidades de cada grupo, propondo, na maioria das vezes, o recolhimento e a sedentarização, muitas vezes forçados, desses indivíduos: seja em albergues, seja em “shoppings populares”, seja de volta para os seus Estados natais. Tais políticas não levam em conta, na maioria das vezes, ao menos dois fatores: as razões estruturais da relação entre errância e exclusão urbana; e o desejo ou a condição de errante presente em muitos desses andarilhos, que encontram no movimento lento do caminhar, algum sentido para a própria existência.

102 Disponível em: . Acessado em: 31 ago. 2015.

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3) O passeio controlado da juventude nas periferias do Brasil103

Diversos estudos apontam o Brasil como sendo uma sociedade altamente estratificada e desigual (espacial, racial, cultural, social, economicamente, etc.), onde o conjunto dessas desigualdades “ao longo da vida” determina a posição social de cada indivíduo na sociedade (HASENBALG; SILVA, 2003). Essas disparidades estruturais desafiam a integração e a sociabilidade, particularmente, da juventude104, sobretudo nas grandes cidades. A construção da subjetividade desses jovens de diferentes classes sociais, que pouco ou nada se comunicam, é motivo de preocupação para muitos cientistas sociais. Como visto no Capítulo 2, os efeitos da degradação dos espaços públicos e segregação dos espaços coletivos de convivência são perversos, pois, dificultam que os diferentes sujeitos sociais se entreguem ao desafio da comunicação, abrindo-se, assim, caminho para duas alternativas de “interação” social: a indiferença, e/ou o aniquilamento do outro (BAUMAN,1999). Ribeiro (2000) cita um exemplo do que ocorreu em cidades norte-americanas quando a classe média baixa branca abandonou os espaços habitados pelos pobres e negros, intensificando-se, a partir daí, “o processo de isolamento e estigmatização dos guetos, transformados posteriormente, pela ideologia dominante, na razão dos males da cidade, levando seus habitantes ao estado de anomia e incentivando a adoção do individualismo negativo [R. Castells (1995)] como norma de comportamento social” (RIBEIRO, 2000, p. 96). Nesse contexto, apesar de avanços nos indicadores sociais brasileiros em pouco mais de uma década, grande parte da juventude das periferias, composta majoritariamente por negros, encontra, de antemão, o seu futuro traçado, assim como o seu passado o foi, justamente por fazer parte de uma fração de classe social que possui chances substancialmente

103 Aqui, cabe traçar uma breve distinção entre as categorias caminhada e passeio. Para Gros, “[...] a caminhada é uniforme, repetitiva, monótona. (...). Nesse aspecto a caminhada não é entediante. Simplesmente monótona. Quando se caminha, vai-se a algum lugar, está-se em movimento, o passo é uniforme. Há demasiada regularidade, demasiada mobilidade ritmada na caminhada para suscitar o tédio, que se sustenta de agitação vazia (a alma em volteios num corpo imóvel) (GROS, 2010, p. 208). Por sua vez, o passeio, em sua origem, “[...] é uma caminhada ligeira, feita de idas e vindas, de pausas incessantes, cortada pelos colóquios requintados, gracejos e galanteios sofisticados, confidências. O passeio é o lugar mais indicado para dar largas à arte de seduzir. É, sobretudo, um contraponto perfeito às andanças dos diaristas rurais que vão pelos campos vendendo sua força de trabalho ou do vadio sem-teto que arrasta sua miséria e sua fortuna pelas sendas vagas. Nos pequenos caminhos do jardim mal se caminha: dança-se” (GROS, 2010 p. 210). 104 Um dos segmentos que se encontra à margem dos benefícios gerados em sociedade é o do grupo social composto por jovens, na sua maioria negros, de periferia (HASENBALG, 1979, 1987; HASENBALG; SILVA, 1988, 1990, 2003; OLIVEIRA 2000, 2003; ZALUAR, 2004; DAYRELL, 2002; CARMO, 2002).

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menores de mobilidade social105. A falta de perspectiva106 de toda essa geração gera frustração e, não raras vezes, revolta, onde: a escola que não acolhe; a rotina precoce de trabalho realizada de forma exaustiva e monótona; a violência (torturas, extermínio, encarceramento e chacinas) sofrida cotidianamente; a falta de acesso a bens materiais e simbólicos; a segregação espacial; e as posições subalternas, de anonimato e o marasmo existencial são experiências concretas e simbólicas experimentadas cotidianamente por essa juventude (OLIVEIRA, 2000). O alto grau de vulnerabilidade dos moradores da periferia, mais especificamente dos jovens, se traduz, entre outros assuntos, na sua relação com o mercado de trabalho onde, por exemplo: entram mais cedo e saem mais tarde do mercado de trabalho; ficam mais desempregados e por mais tempo; ganham menos; possuem baixa experiência profissional; baixo nível de escolarização; a própria condição de moradores da favela, por exemplo, também interfere em sua posição no mercado de trabalho; são chefes de família mais cedo; a gravidez na adolescência, com mais frequência, entre as jovens de periferia também interfere na sua relação com o mercado de trabalho, etc. Dentro desse contexto, Telles (2013) levanta a hipótese da existência de mecanismos de controle adotados na contemporaneidade, a “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”, como visto anteriormente, para conter as “incivilidades” da juventude da periferia nos espaços urbanos, dentro de um contexto neoliberal:

A chamada reestruturação produtiva, com a eliminação de milhares de postos de trabalho, a precarização generalizada do trabalho e a proliferação de economias ilegais no cenário econômico contemporâneo redesenharam em grande parte as trajetórias de inserção dos jovens no mercado de trabalho. Os fluxos de adolescentes e jovens nos circuitos do mundo do trabalho não seguem mais as vias disciplinares “clássicas”, da família para a escola e desta para a fábrica. Os percursos erráticos de adolescentes por esses aparelhos disciplinares reconfigurados vêm sendo acompanhados por novos mecanismos de controle voltados tanto para a sua inserção no

105 Para mais informações sobre a juventude brasileira, de uma maneira geral, estão disponíveis no documento, A Agenda Juventude Brasil: Pesquisa Nacional Sobre Perfil e Opinião dos Jovens Brasileiros 2013, organizado pela Secretaria Nacional da Juventude, “blocos temáticos referentes à condição juvenil, educação, trabalho, saúde (envolvendo os temas de drogas e de sexualidade), cultura e lazer, participação política e violência, (...) em todo o território nacional” (Agenda Juventude Brasil, 2013, p. 07). Disponível em: . Acessado em: 31 jul. 2015. 106 A expectativa de que a vida vai melhorar faz com que o sentimento de injustiça diminua para aqueles que se encontram numa situação social desfavorável. Essa sensação contribui para a manutenção da sociabilidade nas relações, mesmo que estas sejam desiguais. Eliminando-se essa possibilidade de expectativa, elimina-se também a existência de qualquer pacto social para a manutenção do ordenamento social, gerando-se muitas vezes o que Zaluar (2004) denominou de “revoltas sem causa”.

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mercado de trabalho como para as formas de sociabilidade e relação com o espaço urbano. Na sociedade contemporânea, sobre o adolescente recaem expectativas de autogoverno, de sujeição, de internalização de regras que conflitam com a fase "experimental" de sua vida. As chamadas incivilidades urbanas, como as pichações, depredações, se praticadas por adolescentes, acabam por receber tratamento repressivo e punitivo cada vez mais severo. As festas, bailes ou outras manifestações culturais que tenham participação de adolescentes só são consideradas aceitáveis se as formas de expressão se apresentam como domesticadas, como rebeldia bem comportada, normalizada. (TELLES, 2013, p. 29, grifos nossos).

Diante do descompasso entre os sonhos de futuro dessa juventude e as suas reais chances de realização cria-se um fosso, onde a possibilidade de superação dessas barreiras sociais praticamente só se vislumbra, muitas vezes, por meio de “transgressões”. Esse descompasso é caracterizado, por Dayrell (2002), como o “paradoxo brasileiro”, onde, por um lado, aumenta-se os sonhos de consumo, inclusive consumo de espaço, estimulados pelos meios de comunicação hegemônicos, e, simultaneamente, por outro, mantem-se a distância social e simbólica entre os que podem e não podem realizá-los. Ao vivenciarem uma realidade precária quanto a opções de “espaços de circulação”, “redes de sociabilidade”, “alternativas de lazer”, dentre outros, muitos desses jovens, que foram excluídos da escola através de uma trajetória marcada por repetências, evasões, expulsões, discriminações, encontram no mundo da cultura algum protagonismo juvenil. É nesse espaço que constroem suas identidades, seus estilos e seus comportamentos específicos. Manifestações culturais, como o hip-hop107 e o funk, por exemplo, acabam, cada qual à sua maneira, por cumprirem com o objetivo de estabelecer vínculos sociais entre essa juventude e fornecer sentido para suas vidas. Por meio dessas manifestações criam-se, muitas vezes, as alternativas de lazer negadas pelo Estado e pela sociedade capitalista. Muitas dessas expressões culturais ocorrem em espaços públicos ou coletivos privados, como nas ruas, praças, locais de eventos de festas e bailes, shopping centers, etc. Através de ações pontuais e concretas, com ou sem “alarde”, com ou sem “palavras de ordens políticas”, os jovens das periferias cada vez mais procuram ocupar tais espaços e, por isso, na maioria das vezes, recebem “tratamento repressivo e punitivo cada vez mais severos”.

107 No caso do hip-hop, especificamente, “[...] as narrativas clássicas do grupo de rap Racionais MC’s – Homem na Estrada, Pânico na Zona Sul, Mano na Porta do Bar, Fim de Semana no Parque, Fórmula Mágica da Paz – registraram em sonoridades, musicais e ambientais da periferia (tiros, buzinas, sirenes), o drama da segregação urbana experimentada do outro lado dos muros e dos condomínios fechados. O rótulo utilizado em dado momento pelos rappers, “holocausto urbano”, exprimia fielmente a realidade” (SILVA; SILVA, 2014, p. 20).

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Perseguidos pelas instancias municipais e corpos policiais que inibem a realização de inúmeras manifestações culturais como os bailes funk, particularmente a sua vertente “ostentação”108, os “pancadões”109, esses jovens da periferia vivenciam cotidianamente o controle da circulação e uso dos espaços públicos e coletivos privados das cidades. Assim, o fluxo urbano e a ocupação indesejável de tais espaços pelos jovens das periferias são combatidos por uma “mecânica jurídico-institucional” de “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”, que geralmente é imposta ilegalmente, por meio de “gambiarras jurídicas”, instituídas pelo poder judiciário e aplicadas pelos poderes municipal, policial; pela segurança privada de estabelecimentos comerciais; bem como, por narcotraficantes e milícias organizadas instalados, como diria Telles (2010), “nas franjas da ‘cidade global’”, em nome da segurança urbana, em um estado de exceção permanente. Dessa maneira, é possível identificar uma mudança no modus operandi de controle espacial das populações consideradas de “risco”110, dentre elas a juventude da periferia. No entendimento das “gambiarras jurídicas”, “o que é visto como ‘desvio’ é cada vez mais desconectado de ideia de infração (o crime supõe o sistema de direito) e associado à ameaça” (TELLES, 2013, p. 10) e é com base nessa ameaça que a “mecânica jurídico- institucional” atua, triando, filtrando, gerindo, “as populações e seus tipos (...) [,] as pessoas e comportamentos que respondem (ou não) aos credenciais aceitos nesses lugares” (TELLES, 2013, p. 09), criando “perímetros de segurança”. Dois exemplos, a seguir, ilustram bem a dinâmica urbana de contenção preventiva da circulação e ocupação dos espaços públicos e coletivos privados pelos jovens das periferias, onde “essas formas de intervenção podem ser vistas como dispositivos de gestão

108 O funk ostentação adota, intensamente, em suas letras de música a valorização da temática do consumo e das marcas como símbolos a serem alcançados de distinção social. 109 Em relação a “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”, no caso específico, envolvendo o controle e a repressão aos “pancadões”, Pereira chama a atenção para o surgimento da “Operação Pancadão, uma ação policial cuja proposta principal era coibir a realização dessas festas de ruas, com dois objetivos principais de combate: o barulho e a presença de menores consumindo bebidas alcoólicas em tais eventos. Nesse ano de 2013, um vereador da cidade de São Paulo, ex-policial, integrante da bancada da bala, apresentou projeto de lei proibindo a realização de festas funk ou qualquer outro tipo de festa nos espaços públicos da cidade. (...) Com isso, tornou-se muito mais difícil encontrar os pancadões, seja porque eles não aconteciam devido à repressão policial – que dispersava, com bombas de gás lacrimogêneo e sprays de pimenta, a multidão que se aglomerava para dançar em torno dos carros que tocavam o som – seja também porque as poucas festas que aconteciam passaram a não ter a mesma periodicidade de antes, nem a divulgar datas, horários e locais de suas realizações (PEREIRA, s/d, p. 03). 110 Assim, criam-se instrumentos normativos como “o chamado Programa de Proteção a Pessoas em Situação de Risco (Portaria SMSU 105/2010) que, em nome da chamada segurança uurbana, agenciam uma especial composição entre ação policial-repressiva e assistência social, abrindo o espaço para toda forma de discricionariedade na gestão das ditas situações de risco, com o objetivo expresso de ‘contribuir para diminuir e evitar a presença de pessoas em situação de risco nas vias e áreas públicas da cidade e locais impróprios para a permanência saudável das pessoas [...], objetivando a abordagem e encaminhando adequado para cada caso e situação de vulnerabilidade encontrada’” (TELLES, 2013, p. 06).

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das populações e dos fluxos urbanos, de modo a tornar esses espaços seguros e confiáveis na ótica dos mercados” (TELLES, 2013:07). O primeiro exemplo é um mecanismo jurídico-institucional que começou a ser empregado em diversos municípios brasileiros, a partir de 2005, denominado coloquialmente de “toque de recolher”111, que, ao final, o que propõe é um “tratamento moralizador e saneador” da circulação e uso do espaço urbano por crianças e adolescentes “não bem- nascidos”112:

Em vários municípios brasileiros, a partir de experiência inaugurada em cidade do interior paulista (Fernandópolis, em 2005), medidas de “toque de recolher” de jovens em espaços públicos, depois das 22 horas, passaram a ser adotadas em vários municípios paulistas e em outros estados do país. Tal como vem sendo noticiado, por vezes trata-se de portaria judicial (o exemplo de Fernandópolis) ou, em outros casos, de leis municipais, mas em todos os casos coloca-se em ação, sob o discurso de proteção e tutela, algo próximo a um vigilantismo, mobilizando “patrulhas” compostas por membros do Conselho Tutelar da Infância e Adolescência, acompanhados por agentes da Polícia Civil e da Polícia Militar. (TELLES, 2013, p. 06).

Os que defendem o “toque de recolher” alegam que a restrição à circulação pública de crianças e adolescentes contribui para prevenir e ajuda a resguardá-los da violência das ruas e do contato prematuro com drogas lícitas e ilícitas. Além disso, afirmam que esse tipo de medida não fere o direito constitucional de ir e vir, com a “privação indevida da liberdade de locomoção”, tendo em vista que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conta com a restrição da entrada de crianças e adolescentes em determinados estabelecimentos sem a companhia dos responsáveis (MARCHI; SOUZA, 2012). Travou-se, assim, uma batalha jurídica sobre o tema, onde os contrários a tais medidas jurídicas institucionais asseguram, dentre outros argumentos, que:

(...) mesmo que fosse confeccionada e publicada uma Lei Municipal, cujo escopo seja a limitação de horário para a circulação nas ruas de crianças e adolescentes, esta seria inconstitucional, porquanto somente a Constituição

111 Segundo, Bitencourt (2011, p. 36), até o ano de 2011, “[n]o Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 41 (quarenta e um) municípios de 16 (dezesseis) Estados aderiram a essa prática, como estratégia para tentar prevenir e proteger a população infanto-juvenil dos diversos riscos que o cercam”, dentre eles os municípios de Fernandópolis, SP, Ipecaetá, BA e Blumenau, SC. 112 Segundo Marchi e Souza, “[o] movimento higienista direcionado à infância – o ‘higienismo infantil’ foi abraçado por médicos brasileiros no final do século XIX e, nesse contexto, o médico era o ‘salvador encarnado’ da sociedade e, de certa maneira, o substituto do padre nas relações cada vez menos cunhadas pela religião no contexto do século XIX (RIZZINI, 1997; MACHADO, 2001). O higienismo infantil atuou mais diretamente através das escolas reformatórias e das casas de preservação, já que a Lei nº 947, de 29/12/1901, autorizava o governo a reorganizar a polícia e a criar colônias correcionais para a reabilitação profissional dos meninos “vadios” e “viciosos” (MARCHI; SOUZA, 2012, p. 90).

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da República Federativa do Brasil, e não uma lei infraconstitucional poderia fazer restrições a direitos individuais e fundamentais, dentre os quais, a liberdade de locomoção. (BITENCOURT, 2011, p. 47).

Assim, é possível observar que o histórico de práticas higienistas, paternalistas e segregadoras por parte do Estado, para conter as camadas pobres da população, particularmente, os jovens, – “infância pobre um perigo para a sociedade e a nação” –, contribui para que as práticas e convivências heterogêneas urbanas, em meio à ideologia do medo, segregação espacial e desigualdades sociais, fortalecendo cada vez mais as barreiras materiais e simbólicas de interação dos diferentes extratos de classe social. O segundo exemplo a ser analisado sobre a dinâmica urbana de contenção da circulação e ocupação dos espaços públicos e coletivos privados pelos jovens das periferias são os “rolezinhos”113 – atividades coletivas juvenis, organizadas na cidade de São Paulo, entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014, por meio das redes sociais114, que tinham por objetivo o passeio, o encontro, o divertimento desses jovens, geralmente, nos shopping centers da periferia da capital paulista115.

113 Segundo Silva e Silva, “[...] os quantitativos dos participantes variavam entre dezenas, centenas a milhares. O primeiro ‘rolezinho’ ocorreu em 07 de dezembro de 2013 no Shopping Metrô Itaquera, os registros obtidos em jornais indicam que nesse dia 6000 jovens se fizeram presentes. A cifra é espetacular quando consideramos as manifestações juvenis. A finalidade do encontro era apenas o divertimento, o contato entre pares, o desfrutar de momentos de lazer, ‘conhecer os ídolos’, trocar cumprimentos e “alguns beijinhos”. Os ‘ídolos’ são jovens cujo perfil nas redes sociais os tornaram “famosinho”, sendo capazes de reunir um número elevado de “fãs”. Os números são, nesse caso, também impressionantes, podendo-se atingir até 50 mil “seguidores” (SILVA; SILVA, 2014, p. 19). 114 Interessante notar como as tecnologias da informação e da comunicação, agora muito mais acessíveis, articulam e influenciam o comportamento e a imaginação desses jovens, dentro de uma dinâmica de globalização periférica. 115 Segundo Silva e Silva (2014, p. 29), “[...] os ‘rolezeiros’, embora inscritos socioespacialmente na periferia, não tomam este local como referência para suas manifestações. Deslocam os sentidos de espaços e classificações sociais previamente atribuídos. O que elegem como instância privilegiada é o shopping center, um dos emblemas centrais do consumo na sociedade capitalista”.

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Figura 14 – Jovens dando um “rolezinho” pelo shopping Center

Fonte: Site – UOL Notícias.116

Uma das interpretações possíveis para os “rolezinhos” é a tentativa da juventude da periferia em romper o cerco da segregação urbana, ao ocupar espaços até então vedados, interditados a ela. Antes, esse jovem não entrava no shopping center porque não possuía dinheiro e, também, porque trazia em seu corpo e gestual o estigma da periferia preta e pobre. Agora, com uma condição financeira melhor, ainda que por intermédio de um crescente sistema de crédito que cada vez mais endivida117, esse jovem busca romper com a violência simbólica que sempre o impediu de entrar em tais espaços. Também, seus “níveis hoje relativamente elevados de educação tornam essa juventude mais apta a abordar os espaços de sociabilidade e trabalho da classe média” (TELLES, 2010, p. 07). “Não nos importa se nos querem ou não. Temos o direito de estarmos aqui”:

Em tese os espaços comerciais encontram-se abertos a todos porém, o “ritos de suspeição”, olhares persecutórios dos seguranças, os bens comercializados, introduzem barreiras que inibem, discriminam e impedem o acesso Os aparatos de controle de entrada dão conta de quem frequentará aquele lugar e também emitirá uma mensagem simbólica para aqueles que não são bem vindos. (SILVA; SILVA, 2014, p. 33).

Batalhas judiciais, com liminares a favor dos shoppings para proibir os “rolezinhos” e repressão policial e da segurança privada, bem como os meios de comunicação corroborando uma visão racista dos “rolezinhos”, associando à criminalidade, vandalismo e

116 Disponível em: . Acessado em: 28 jul. 2015. 117 Para mais informações sobre o processo de “financeirização do capital no mundo popular” brasileiro, acessar: Consumo Popular, Fluxos Globais: práticas e artefatos na interface entre a riqueza e a pobreza, de Claudia Sciré, São Paulo: Annablume, 2012.

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violência – estigma social, formaram um conjunto repressivo a esse segmento social. Suspeitos sempre. “O argumento para a repressão era que os “rolezinhos” iriam descambar para uma espécie de ‘arrastão’” (SILVA; SILVA, 2014, p. 30). Individualmente, esses jovens são “bem vindos” a frequentar os shopping centers ao consumirem, mas em grupo tornam-se “perigosos”118:

Os jovens pobres e negros da periferia ao decidirem tomar os shoppings, locais segregados para consumo e lazer, inscreveram nesses espaços práticas culturais específicas da periferia. O funk, a dança, as reuniões coletivas, estes elementos logo passaram a ser vistos como uma ameaça. A perseguição não foi dirigida aos jovens consumidores de “marcas famosas”, mas a um segmento social específico, que desloca os sentidos das “marcas famosas” e afirma-se como expressão de uma cultura insurgente, perigosa, conforme o imaginário social construído sobre a periferia. (SILVA; SILVA, 2014, p. 34).

Figura 15 – Jovens que davam “rolezinho” sendo reprimidos por segurança privada em shopping center

Fonte: Site – PSTU.119

Os “rolezinhos”, por fim, sucumbiram à “gestão militarizada dos espaços e territórios de risco”, foram levados ao seu completo ocaso, por meio da mediação da

118 Interessante notar que, na mesma época, estudantes da USP realizaram evento similar, organizado tradicionalmente uma vez ao ano, e não foram reprimidos por corpos policiais, nem mesmo a imprensa hegemônica alardeou em seus meios de comunicação um possível vandalismo ou arrastão por parte desses estudantes. Cabe destacar que em sua maioria esses estudantes são compostos por jovens brancos de classe média e alta. Informação disponível em: . Acessado em: 22 ago. 2015. 119 Disponível em: . Acessado em: 28 jul. 2015.

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prefeitura municipal de São Paulo ao propor uma “solução pacífica” para a continuidade de tais eventos, mas, necessariamente fora dos “enclaves fortificados” dos shopping centers:

Contra estes jovens utilizou-se controles simbólicos e práticas violentas em nome da segurança. Uma das maneiras encontradas para a disciplinarização do evento foi a institucionalização. Segundo essa perspectiva “os rolezinhos” poderiam ser realizados, desde que em locais "adequados". A realização dos encontros precisaria, nessa ótica, de autorização oficial. O esvaziamento dos “rolezinhos” seria a partir de então, apenas uma questão de tempo. Destituídos do local que conferia visibilidade ao segmento juvenil, a prática perdeu o sentido original. (SILVA; SILVA, 2014, p. 31).

Muitos outros exemplos120 poderiam ser dados sobre a dinâmica de controle e contenção dos passeios da juventude das periferias nas cidades brasileiras, porém, dentre os objetivos aqui propostos, de análise de alguns tipos de caminhadas involuntárias, destaca-se que o controle e a contenção desses passeios são, na maioria das vezes, praticados ou mediados por ações de cunho ilegal por parte de instituições do Estado, mediante a “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”, onde a realização de tal tipo de caminhada se dá, muitas vezes, sob forte coação exterior, aproximando-se da perspectiva até aqui desenvolvida do caminhar como atividade humana estranhada, já que toda a possibilidade da livre fruição do passeio é constrangida externamente.

120 Outro exemplo, historicamente recorrente, questiona o imaginário ideologicamente propagado de que “a praia é um território democrático” no contexto segregador das cidades. Nem a praia, nem o acesso a ela o são. Em incidente recente, os meios de comunicação registraram, por exemplo, a ação arbitrária e desprovida de qualquer amparo legal da polícia militar do Rio de Janeiro ao abordar e reter um ônibus, impedindo que jovens da periferia chegassem ao seu destino, as praias da Zona Sul. Segundo depoimento ao jornal Extra, um dos jovens “barrados” argumentou: “— Tiraram ‘nós’ do ônibus pra sentar no chão sujo e entrar na Kombi. Acham que ‘nós’ é ladrão só porque ‘nós’ é preto — disse X., de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte”. Não houve flagrante de nenhum ato infracional, segundo reportou o Extra. Assim, vale também registrar o argumento utilizado pela Polícia Militar ao jornal Extra para a retenção dos jovens em questão: “a Polícia Militar afirmou, por meio de nota, que ‘as ações ocorreram visando a proteger menores em situação de risco ou em flagrante de ato infracional’”. Disponível em: . Acessado em: 24 ago. 2015.

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C) Obstáculos para a circulação de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida - acerca da acessibilidade urbana121

Seguramente, o caminhar do pedestre como modal de transporte na mobilidade urbana será o item menos elaborado desta seção, tendo em vista que vem sendo objeto de análise ao longo do texto. Além disso, no Capítulo 5, debruçar-se-á mais detidamente sobre o tema, ao analisar as demandas dos movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades. Porém, é importante registrá-lo na categoria “caminhadas involuntárias”, dentro do contexto do deslocamento da mercadoria força de trabalho, onde, por exemplo:

(...) [o] acesso do trabalhador à riqueza do espaço urbano, que é o produto do seu próprio trabalho, está invariavelmente condicionado ao uso do transporte coletivo. As catracas do transporte são uma barreira física que discrimina, segundo o critério de concentração de renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana. Para a maior parte da população explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho. (Movimento Passe Livre – São Paulo, 2013, p. 15, grifo nosso).

Como visto anteriormente, nas cidades capitalistas, a preocupação implacável com a velocidade e o fluxo para a concretização do circuito da produção de mais valia, contribui, dentre outros aspectos, para que os deslocamentos e os espaços de circulação e permanência dos pedestres, particularmente, pessoas com algum tipo de deficiência122 e com mobilidade reduzida123, “incluindo idoso, gestante, pessoa com criança de colo e obeso”, dentre outros grupos vulneráveis, tornem-se extremamente comprometidos.

121 O presente item - Obstáculos para a circulação de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida: acerca da acessibilidade urbana – poderia estar inserido na subcategoria “caminhadas da exclusão urbana”, analisada no item B, deste Capítulo. Porém, optou-se por investigá-lo em separado, tendo em vista que, em regra, tais grupos sociais, apesar de historicamente negligenciados, não são objetos sistemáticos de repressão à circulação por conta da sua condição de deficiência ou mobilidade reduzida. O que não quer dizer que não sofram represálias no seu caminhar por outros motivos vinculados à sua posição de classe, relações de poder e hierarquia social. Ao contrário, trecheiros, andarilhos de estrada, moradores e trabalhadores de rua e juventude das periferias são, invariavelmente, alvos das intervenções urbanas da “gestão militarizada dos espaços e territórios ditos de risco”. 122 Segundo a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Disponível em: . Acessado em: 01 set. 2015. 123 A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 define a categoria “pessoa com mobilidade reduzida” como “aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução

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Figura 16 – Pessoas com carrinho de bebê tentando atravessar rodovia

Fonte: Site - Hora de Santa Catarina.124

O planejamento urbano, que prioriza o fluxo acelerado de veículos motorizados, cria inúmeras barreiras que dificultam, dentre outros aspectos, o deslocamento desses indivíduos que possuem, geralmente, uma condição de lentidão involuntária. “Impedidos da livre mobilidade, estruturam comportamentos dependentes, não só na locomoção, como no aspecto emocional, com sérios prejuízos à vida de relação e à construção da cidadania” (CANZIANI, 2006, s/p)125. Assim, o ir e vir dessas populações se dá, frequentemente, como um caminhar126 involuntário, já que não encontram condições mínimas de segurança, acessibilidade, autonomia, liberdade e conforto para tal deslocamento, mesmo buscando outras modalidades de deslocamento, locomoção, circulação que não sejam o caminhar.

efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso”. Disponível em: . Acessado em: 01 set. 2015. 124 Disponível em: . Acessado em: 07 set. 2015. 125 Texto da autora Maria de Lurdes Canziani: Acessibilidade: exercício do direito/participação e cidadania. In: CADERNO DE TEXTOS - SUBSIDIO PARA OS CONFERENCISTAS - I CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIENCIA, 2006. Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015. 126 Opta-se por se utilizar nesta sessão a expressão ‘caminhar’, ainda que dentre os grupos portadores de deficiência e mobilidade reduzida encontram-se também os cadeirantes. Por isso, a referência ao ‘caminhar’ está relacionada ao ato de circulação e mobilidade pedestre, independente se se caminha sobre as próprias pernas ou conta com o auxílio da cadeira de rodas.

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Opta-se aqui, portanto, analisar, brevemente, o caminhar das pessoas com algum tipo de deficiência127 e mobilidade reduzida, como grupos sociais historicamente preteridos pelas políticas públicas128 de acessibilidade urbana129, sobretudo, nos países capitalistas periféricos, apesar de sua expressividade numérica130. O baixo empenho dos diversos sujeitos sociais em tornar os espaços urbanos acessíveis às pessoas com deficiência e mobilidade reduzida faz com que sua presença pública seja menos frequente do que seguramente deveria ser. Assim, a “presença ambivalente” desses grupos no espaço urbano reforça um sentimento de incomodo no imaginário social “em relação a [esse] outro que apresenta uma desordem ou uma falha social para ser integrado”,

127 Vale lembrar que o grupo social formado por pessoas portadoras de algum tipo de deficiência é extremamente heterogêneo: “[...] são crianças, jovens, adultos e idosos, homens ou mulheres, negros, brancos ou índios, pertencentes a famílias posicionadas em segmentos sociais e econômicos diversos, possuem valores culturais distintos e habitam as várias regiões geográficas do país, em municípios de porte e potencialidades diferentes quanto às oportunidades de oferta de serviços e outros morando no meio rural, com mais dificuldades de acesso a estes bens e serviços” (CADERNO DE TEXTOS - SUBSÍDIO PARA OS CONFERENCISTAS - I CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIENCIA, 2006). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Deficientes/texto_base_1_conferencia_direitos_p essoa_com_deficiencia.doc. Acessado em: 05 set. 2015. Além disso, os tipos de deficiências são bastante variados, necessitando atenções e cuidados específicos para cada tipo de demanda. 128 O Brasil possui uma legislação bastante completa em relação aos direitos das pessoas com deficiência. Desde a Constituição Federal de 1988, um conjunto de leis e regulamentações que criam políticas, conselhos e conferências, nos âmbitos municipais, estaduais e federal vem sendo elaborada, dentro do processo democrático, com o objetivo de se cumprir o princípio constitucional da inclusão social, dentre outros. A participação não- governamental também vem sendo estimulada. Porém, apesar desse esforço histórico, é notória, todavia, a falta de prioridade e, muitas vezes sensibilidade, em relação aos aportes orçamentários e a mobilização das administrações públicas em elaborar, implementar e fiscalizar a continuidade de políticas públicas que garantam os direitos de tais populações. No âmbito federal, “[a] Secretaria Especial dos Direitos Humanos por meio da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência é a responsável pela articulação e coordenação das políticas públicas na área que lhe compete. O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência-CONADE, cuja secretaria executiva é de responsabilidade da CORDE, tem a competência de acompanhar a sua execução, recebendo as demandas por meio dos conselheiros representativos de todas as áreas da deficiência, deliberando sobre as medidas preventivas e corretivas quando necessárias” Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015. Dentre as legislações nacionais existentes sobre o tema, cabe destacar o recente sancionamento, por parte do governo federal, da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), de 06 jul. 2015. Disponível em: . Acessado em: 01 set. 2015. 129 A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 define a categoria ‘acessibilidade’ como “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida”. Disponível em: . Acessado em: 01 set. 2015. 130 Segundo dados do Censo de 2010, “[c]onsiderando a população residente no país, 23,9% possuíam pelo menos uma das deficiências investigadas: visual, auditiva, motora e mental ou intelectual. A prevalência da deficiência variou de acordo com a natureza delas. A deficiência visual apresentou a maior ocorrência, afetando 18,6% da população brasileira. Em segundo lugar está a deficiência motora, ocorrendo em 7% da população, seguida da deficiência auditiva, em 5,10% e da deficiência mental ou intelectual, em 1,40%”. Disponível em: . Acessado em: 07 set. 2015.

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instaurando-se, assim, a “prática humana mais comum em relação ao ambivalente [:] a segregação” (OLIVEIRA, 2006, s/p)131. Oliveira enfatiza que:

As calçadas seriam assim uma forma de deslegitimação do outro. Uma nova máscara social que apresenta o recado, principalmente para os deficientes físicos, de que a igualdade universal não existe e não seria bem-vinda. (...). (OLIVEIRA, 2006, s/p).

Os diferentes obstáculos à acessibilidade urbana das pessoas com deficiência e mobilidade reduzida se encontram, assim, inseridos em um debate mais amplo sobre o acesso igualitário aos direitos humanos e cidadania, inclusão social e direito a cidade. A “possibilidade e condição de alcance” à circulação e permanência nos espaços públicos, entrada e locomoção nas edificações, acesso à rede de transporte público e equipamentos/mobiliário urbanos, a “utilização de meios inclusivos de sinalização e de comunicação para orientação de todas as pessoas”, dentre outros, é entendida não apenas como a concretização do direito primário de ir e vir, mas também como direito intermediário, que viabiliza a realização de outros direitos como: acesso ao trabalho, saúde, educação, lazer, moradia, participação ativa e cidadã, afirmação e garantia da igualdade na diversidade, etc. A sua negação é compreendida, assim, como violação aos direitos fundamentais, por meio de processos discriminatórios e de exclusão social.

131 Texto de Flávio Valentim de Oliveira: As calçadas não são para todos: a acessibilidade como conflito social. In: CADERNO DE TEXTOS - SUBSIDIO PARA OS CONFERENCISTAS - I CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIENCIA, 2006). Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015.

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Figura 17 – Pessoas com deficiência visual, caminhando em uma calçada sem qualquer tipo de sinalização específica para a sua orientação

Fonte: Site – Seu Planeta.132

Diante desse cenário crônico de progressiva expulsão dos pedestres e pessoas em veículos não motorizados das áreas de circulação urbana, um novo discurso vem ganhando destaque nos países de capitalismo periférico, onde planejadores, gestores e movimentos sociais que lutam pela mobilidade urbana defendem a ideia da construção de uma cidade mais humana, para pessoas133 (GEHL, 2013). Ancoram-se, então, na dupla visão de que para se garantir o acesso universal e democrático, que atenda à diversidade humana, aos espaços urbanos de circulação e permanência deve-se priorizar a concepção de “desenho universal”134, “interrompe[ndo] o processo de criação de novas barreiras na construção das cidades” e eliminando os obstáculos já existentes.

132 Disponível em: http://seuplaneta.com.br/Araraquara/2012/09/deficiente-visual-sofre-em-ruas-de- americana.html. Acessado em: 05 set. 2015. 133 Uma análise crítica sobre o discurso da “cidade humana”, da “cidade para pessoas” será realizada no Capítulo 5. Esse discurso, no entanto, já vigora a décadas nos países capitalistas centrais, que passaram por um processo de urbanização anterior aos periféricos. 134O conceito de “desenho universal”, “preconiza que uma cidade deve ser acessível a qualquer pessoa desde o seu nascimento até sua velhice, ou seja, as cidades devem ser acessíveis a todos. Deve-se ainda assegurar a existência de sinalização visual, tátil e sonora, simultaneamente e com redundância, para que as mensagens e informações seja compreendidas não somente pelas pessoas com deficiência auditiva e visual, mas também por pessoas idosas ou que tenham comprometido os aspectos cognitivos” (M. B. Barbosa. In: CADERNO DE TEXTOS - SUBSIDIO PARA OS CONFERENCISTAS - I CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIENCIA, 2006). Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015.

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Figura 18 - Cadeirante vencendo o obstáculo da guia não rebaixada

Fonte: Site – Movimento Conviva.135

Dessa forma, o estimula à acessibilidade urbana, à “vida pedestre do homem comum”, seria, então, uma das formas mais eficazes em se combater tal segregação e a “indiferença mortífera, que ignora o sofrimento do outro, repel[indo] tanto a semelhança quanto alteridade” (KEHL, 2015, p. 24). O foco da acessibilidade estaria, assim, “nas pessoas e no suprimento de suas necessidades de deslocamento e locomoção, privilegiando o transporte público e as oportunidades de acesso seguro e não motorizado às diversas áreas da cidade, em associação com o planejamento do uso e ocupação do solo” (PRADO; MORAES, 2006, s/p)136. Dentro dessa perspectiva de mobilidade urbana, para se pensar a democratização de acesso e permanência aos espaços públicos há que se levar em consideração as demandas, necessidades e os tempos específicos de cada grupo social137. É assim que no Brasil, um país

135 Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015. 136 Texto de Adriana R. de A. Prado e Ricardo Moraes: Acessibilidade e o planejamento das cidades. In: CADERNO DE TEXTOS - SUBSIDIO PARA OS CONFERENCISTAS - I CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIENCIA, 2006). Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015. 137 Segundo Boareto (2006), a visão incorporada na administração pública federal sobre mobilidade urbana e, mais especificamente, acessibilidade, a pouco mais de uma década, estaria: “(...) baseada na superação da análise fragmentada entre transporte público e trânsito, destacando o planejamento urbano, o uso do solo e o desenho urbano como fatores determinantes da mobilidade das pessoas e da escolha dos modos de transporte utilizados. Considera também a necessidade de democratização do espaço público, o desenvolvimento dos meios não motorizados de transporte (bicicleta e deslocamento a pé) e a priorização efetiva dos transportes públicos. A

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que possui um contingente cada vez maior de idosos e que também vem inserindo cada vez mais pessoas com deficiência e mobilidade reduzida no mercado de trabalho138, as políticas públicas voltadas à acessibilidade devem possuir orçamento assegurando, bem como um corpo técnico dedicado a sensibilizar os diversos sujeitos sociais que atuam sobre o ambiente urbano para o tema. As disputas em relação ao planejamento urbano, ao uso e ocupação do solo e ao desenho urbano devem ser perseguidas, de acordo com essa concepção, por meio da garantia da acessibilidade urbana aos indivíduos que possuem a condição de lento involuntário.

Figura 19 – Idoso atravessando a faixa de pedestre

Fonte: Site – Acessibilidade na Prática.139

É inegável que o debate sobre mobilidade urbana e acessibilidade vem ganhando espaço no debate público atual. Porém, cabe registrar que geralmente esse debate vem atrelado à ideia de facilitar o fluxo do deslocamento da força de trabalho, melhorando-se o

acessibilidade é vista como parte de uma política de mobilidade urbana que promove a inclusão social, a equiparação de oportunidades e o exercício da cidadania das pessoas com deficiência, idosos e pedestres com o respeito de seus direitos fundamentais” (BOARETO, 2006, s/p). 138 Segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, “[e]ntre 2011 e 2014, que mais de 153 mil pessoas com deficiência chegassem ao mercado de trabalho”. O MTE destaca ainda a intensificação das fiscalizações para o cumprimento da Lei de Cotas para pessoas com deficiência. “As ações de fiscalização visam cumprir o que estabelece a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, conhecida como a Lei de Cotas. Segundo a legislação, empresas com mais de 100 empregados são obrigadas a preencher entre dois a cinco por cento de seus quadros de empregados com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência”. Disponível em: . Acessado em: 08 set. 2015. 139 Disponível em: . Acessado em: 08 set. 2015

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desenho urbano universal, sem aprofundar a reflexão sobre a exploração da classe trabalhadora, que se materializa na usurpação do seu tempo de produção e reprodução, inclusive no seu deslocamento cotidiano. O debate sobre a luta pela reapropriação dos espaços urbanos e “organização da própria experiência cotidiana”, desde uma perspectiva de classe, nas cidades também é frequentemente negligenciado. Do ponto de vista do direito à cidade, Harvey sintetiza que:

A criação de novos espaços urbanos comuns [commons], de uma esfera pública de participação democrática, exige desfazer a enorme onda privatizante que tem servido de mantra ao neoliberalismo destrutivo dos últimos anos. Temos de imaginar uma cidade mais inclusiva, mesmo se continuamente fracionada, baseada não apenas em uma ordenação diferente de direitos, mas em práticas político-econômicas. Direitos individualizados, tais como ser tratado com a dignidade devida a todo ser humano e as liberdades de expressão, são por demais preciosos para serem postos de lado, mas a estes devemos adicionar o direito de todos a adequadas chances de vida, direito ao suporte elementar, à inclusão e à diferença. A tarefa, como sugeriu Polanyi, é expandir as esferas da liberdade e dos direitos além do confinamento estreito ao qual o neoliberalismo o reduz. O direito à cidade, como comecei a dizer, não é apenas um direito condicional de acesso àquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas (por assim dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano. Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito. (HARVEY, 2013, p. 33, grifos nossos).

Assim, preocupar-se com a qualidade das calçadas, criação de leis de segurança viária, “transporte urbano acessível, semáforo sinalizado, rampas nas ruas e edifícios, elevadores sinalizados”, travessia de pedestres ao nível das ruas, são importantes para se assegurar o acesso e a presença de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, e os pedestres de uma forma geral, nos espaços públicos com condições mínimas de segurança, acessibilidade, autonomia, liberdade e conforto para tal deslocamento, porém, ainda que fundamentais, não asseguram, necessariamente, a transformação das relações urbanas na sua dinâmica espaço-temporal.

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3.1.2 Caminhadas voluntárias

A) “Espiritualidades do caminhar”140

Tradicionalmente presentes em inúmeras doutrinas filosófico-religiosas, as “marchas espirituais” simbolizam a materialização da árdua jornada mundana em busca do sagrado, do divino. Peregrinação, romaria, procissão, kinhin141, lung-gom-pa142, dentre outros, são práticas/rituais espirituais eivadas de simbologias e significados morais que remetem aos estados de pobreza e/ou simplicidade (COVERLEY, 2014). Embora, historicamente, as “marchas espirituais” estejam inseridas em um contexto religioso, muitas vezes institucionalizado, e, certamente, por isso, passíveis de inúmeros preceitos, coerções e imposições externas, optou-se por inseri-las nas “caminhadas voluntárias”, analisando-as a partir da perspectiva daqueles que “aceitaram” tais regramentos doutrinários como princípios balizadores da sua crença e depositam nas “marchas espirituais” a forma adequada, por excelência, para a realização de sua jornada em busca de uma aproximação com a espiritualidade divina. Assim, as “marchas espirituais”, independentemente da tradição a que se vinculam e da distância a ser percorrida, possuem alguns elementos que as aproximam. A eleição do caminhar como meio privilegiado de liberação do ego, reduzindo “la utilización del mundo a lo essencial” (LE BRETON, 2011), é uma forma de desnudar-se por meio da ascese do corpo e do espírito, optando-se por nunca tomar o caminho mais fácil, o atalho, enfrentando com o corpo as agruras da alma:

En el agotamiento propio de las caminatas hay a veces tanta fuerza y tanta belleza que el sufrimiento del caminante prácticamente se disuelve. Desgastado por el contacto con el camino, erosionado por la necesidad de avanzar, el caminar se hace menos incisivo, más llevadero. A medida que pasa para dar paso a la metamorfosis de sí mismo, al despojamiento, a una renovada entrega al mundo, entrega que requiere de la alquimia de la ruta y de un cuerpo que se funda en ella – una alianza afortunada y exigente del hombre con el camino. (LE BRETON, 2011, p. 157).

140 A expressão “espiritualidades do caminhar”, bem como “marchas espirituais”, são utilizadas por Le Breton (2011), em Elogio del caminar. 141 O kinhin, a ser analisado a seguir, é a meditação andando, na tradição zen budista. 142 Os lung-go-pam são monges, da tradição budista tibetana, que realizam um treinamento, por meio de técnicas de respiração, exercícios de yoga, meditação sentada, que os permite cruzar as áridas paisagens montanhosas do Tibete, caminhando em alta velocidade, ou mesmo correndo por vários dias, sem parar (ou parando muito pouco), em um estado alterado da consciência, um verdadeiro transe (LE BRETON, 2011).

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Algumas dessas “marchas espirituais” são verdadeiras provações “a ser[em] suportada[s] na esperança do perdão” (COVERLEY, 2014). A partida do peregrino é “uma espécie de pequena morte” (GROS, 2010), onde, ao “abandonar-se” e renunciar ao mundo, o caminhante se libera em seu penitente percurso, “a fin de acceder al poder de un lugar santo y regenerarse en él” (LE BRETON, 2011, p. 144). Se a partida é “uma espécie de pequena morte”, é a cada passo galgado que o caminhante “[...] vai se perdendo aos poucos, ao longo do caminho, sua identidade e suas lembranças, para não se tornar nada mais do que um corpo que não para de andar” (GROS, 2011, p. 124). Em resumo:

A exigência de terminar andando com as próprias pernas comporta várias lições. É primeiramente um lembrete da pobreza crística. O pobre tem exclusivamente o corpo por única riqueza. O caminhante é filho da terra. Cada passo é uma confissão de gravidade, cada passo prova que há uma ligação e martela a terra como uma sepultura definitiva, prometida. Mas é também que a caminhada é árdua, ela requer um esforço repetido. Não se aborda corretamente um lugar sagrado sem ter sido purificado pelo sofrimento, e caminhar exige um esforço indefinidamente reiterado. (GROS, 2010, p. 118).

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Figura 20 – Jovem peregrino, em ato de penitência, carregando uma pedra nas costas, “adentrando o pequeno portão aberto por ‘Boa Vontade’”

Fonte: Site – Wikipedia – verbete - O Peregrino143

Uma das expressões mais recorrentes na história das “marchas espirituais”, no Ocidente cristão, é a peregrinação. Etimologicamente, a origem da palavra peregrino estaria associada ao termo peregrinus, que em grego significa estrangeiro, exilado. O peregrino, assim, não possui morada enquanto caminha. Diferentemente do errante, o peregrino parte de um lugar para chegar a outro e a peregrinação para ele, na maioria das vezes, está associada a um rito de passagem e não a uma condição identitária permanente. Ainda assim, dentro de uma perspectiva cristã, o próprio planeta terra, para o peregrino, é visto como local de passagem, onde a longa e árdua caminhada lhe permite entrar em contato, em vida, com “alguma força sagrada”. Carneiro também chama a atenção para uma outra derivação para o termo peregrino, que estaria ancorada na palavra peragrum, que “sugere uma alma curiosa, que atravessa campos (...) para alcançar o centro sagrado do seu mundo” (CARNEIRO, 2004, p.

143 Gravura de autor desconhecido presente no livro de Jonh Bunyan, O Peregrino, de 1678 (primeira parte), e 1684 (segunda parte). Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015.

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76). Essa “alma curiosa” elege o próprio corpo que caminha para perseguir, por meio de um território muitas vezes árduo e um tempo lento, a devoção e a entrega ao reino imaterial da fé a ser consagrada. “Pilgrimage unites belief with action, thinking with doing, and it makes sense that these harmony is achieved when the sacred has material presence and location” (SOLNIT, 2001, p. 50)144. Na tradição cristã, a narrativa inaugural da espiritualidade do caminhar como penitência encontra sua origem na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Vale lembrar, no entanto, que o primeiro casal criado por Deus caminhava leve e despreocupadamente nos jardins do Paraíso (HILLMAN, 1993). Porém, é Jesus Cristo quem fornece o modelo da peregrinação amplamente difundido na Idade Média, como um calvário ou uma via crucis, “com seu período de três anos de caminhares e peregrinações intensivas pela Judeia, uma área que se estende por cerca de 220 quilômetros de Sidón e Tiro, no norte, até Jerusalém, no sul” (COVERLEY, 2014, p. 36). A história do cristianismo em relação à peregrinação é ambivalente. Martinho Lutero, uma das figuras centrais da Reforma Protestante, desconfiava dessas “marchas espirituais” e dizia que “essas peregrinações eram feitas por muitas razões, mas raríssimas por razões justas”. Para Lutero, se o objetivo do fiel era a busca de indulgência, misericórdia, perdão, este deveria buscá-la em casa e, não, vagando o mundo guiado por curiosidades “de ver e ouvir coisas estranhas e ignotas”145. Anteriormente, a própria Igreja Católica Romana condenou especificamente o comportamento dos monges giróvagos (hoje pertencentes à Igreja Ortodoxa grega), que viviam no monte Athos, na Grécia, por sua condição de “nômades perpétuos”. Entre os séculos V e VI d.C., Bento de Núrsia – São Bento –, pregando a sedentarização do corpo da Igreja, em suas famosas Regras, reprovou seu comportamento, sendo:

(...) bem depressa tratados de aproveitadores, de vagabundo e esse modo de vida errante sofrerá uma condenação. São Bento, sobretudo, impõe a “estabilidade monástica” e a firma que a condição de eterna peregrinação (peregrinatio perpetua) do crente é uma simples metáfora, metáfora que não se deve esgotar nas estradas, mas aprofundar no desprendimento da prece e da contemplação monástica. (GROS, 2010, p. 112).

144 Em livre tradução: “A peregrinação une a crença e a ação, o pensamento e o fazer, e esta harmonia alcançada faz sentido quando o sagrado se materializa física e espacialmente” (SOLNIT, 2001, p. 50, tradução nossa). 145 Martinho Lutero: Obras Selecionadas. Os primórdios: escritos de 1517-a-1519, Volume 1. Disponível em: . Acessado em: 09 set. 2015.

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Coverley, em diálogo com o escritor e ilustrador David Macauley, observa que, por sua vez, na tradição filosófica oriental “caminhar sempre fez parte do processo filosófico, como no taoísmo e no zen-budismo, em que os sábios e os monges perambulavam no campo da busca da imaginação146. O caminhar recebeu até mesmo um lugar especial como uma das quatro “dignidades” (modos de ser no mundo) chinesas, junto com estar de pé, estar sentado e estar deitado” (COVERLEY, 2014, p. 21). Assim, na tradição do budismo sōtō-zen147, encontra-se o kinhin – prática meditativa que se faz caminhando. Geralmente realizada entre dois períodos de zazen148, é percebido pelos leigos e iniciantes, geralmente, como uma técnica ritualística de movimentação do corpo que permanece inerte por tanto tempo durante o zazen. No entanto, o monge Wajun Souza, do templo Busshinji, de São Paulo, explica que a importância do kinhin para a prática do zen budismo estaria no fato de levar o estado zen para o cotidiano dinâmico do dia a dia, ou seja, praticar o zazen em movimento:

Com o tempo e o aprofundamento da prática, contudo, o kinhin se torna a primeira atividade, em que buscamos manter a mesma atitude interior do zazen, não mais voltado para a parede, mas com o corpo em movimento. O que é dificílimo, pois basta movermos o corpo para sermos atacados por toda sorte de distrações habituais. Assim, à medida que é praticado, o kinhin se torna a porta para o que virá depois, que é ‘fazer zazen’ enquanto agimos no mundo. (...) Como “caminhar sem caminhar”? Como mover sem se mover? Nesse caminhar, abre-se mão de tudo que é “humano”: não escolhemos o caminho, a postura, a velocidade e o destino. Assim, tudo o que resta é a ação de andar, sem sujeito. Nesse processo, a mente se apazigua e fica disponível para perceber os fenômenos com maior clareza. O princípio é o mesmo do zazen (“apenas sentar”): no kinhin, o praticante entrega-se a “apenas andar”. (NAMU, 2015, grifo nosso).149

146 Segundo Bollnow, “o caminho como alegoria da vida humana é (...) um dos símbolos ancestrais da humanidade, que no tao dos chineses se transformou em palavra ancestral, metafísica” (2008:12). 147 Sōtō-zen é uma linhagem do budismo da tradição japonesa, levado da China para o Japão pelo mestre Dogen Zenji (1200-1253). 148 Zazen é a prática meditativa por excelência do zen-budismo, de tradição Sōtō. Sua principal característica é a meditação sentada, com o objetivo de se esvaziar da mente. Própria da filosofia zen, no entanto, essa busca deve se dar sem busca: “shikantaza – apenas sentar”! A postura do zazen “consiste basicamente em sentar-se em uma posição confortável, [preferencialmente em posição de lótus ou semi-lótus], com a coluna ereta, [com os olhos semicerrados, voltado para a parede], em períodos de até 40 minutos, intercalados com meditação andando (Kinhin). É tradicional o uso de zafu e zabuton como almofadas, na qual o praticante fica sentado”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Zazen. Acessado em: 09 set. 2015. 149 Disponível em: . Acessado em: 07 mai. 2015.

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Figura 21 – Monges zen-budistas praticando Kinhin – meditação andando – no campo

Fonte: Blog - Emptysqua.re.150

Vale fazer referência, por fim, ao filme Walker151, do diretor malaio Tsai Ming- liang, que propõe, em vídeo, uma performance de um monge caminhando, ritualística e lentamente, pelas frenéticas ruas de Hong Kong. A proposta dessa narrativa que aborda a relação entre o sagrado e o profano, mediada pelo caminhar, traça uma crítica delicada, mas, ao mesmo tempo, ácida ao tempo veloz e alienante das relações estabelecidas nas cidades modernas.

150 Disponível em: . Acessado em: 05 set. 2015. 151 Disponível em: . Acessado em: 13 jun. 2015.

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Figura 22 – Cena do filme Walker, onde um monge, em sua vestimenta vermelha, caminha de forma performática pelas ruas de Hong Kong

Fonte: Site – Empty Kingdom.152

Nas ruas, em um frenesi angustiante de transeuntes que se deslocam a passos largos, anestesiados, sem observar seu entorno, o monge, com sua vestimenta característica vermelha, descalço, caminha lentamente, com a cabeça baixa, olhando deliberadamente para o chão, contrastando seu comportamento, sua atitude, sua expressão corporal, com a desses pedestres urbanos. Ainda que atuando de forma exageradamente diferente, para muitos viandantes o monge passa completamente despercebido. Nessa perspectiva, segundo Andrade (2013), uma das propostas de Walker é transmitir a ideia de que “desacelerar é da esfera do sagrado", sendo que, para isso, o caminhar, como “marcha espiritual”, é utilizado como veículo privilegiado para se alcançar tal estado. Andrade arremata em sua interpretação, chamando atenção para a função estética e transformadora da “arte de caminhar”:

Aos poucos, alguns grupos de transeuntes se acumulam à margem da rua fechada e param para observar a performance. Naquele breve ínterim, a política do sagrado se efetiva diretamente no mundo e Tsai Ming-liang reafirma o caráter político da própria fruição artística: enquanto assistem aos lentos passos de Lee Kang-sheng, todos aqueles estáticos transeuntes

152 Disponível em: . Acessado em: 09 set. 2015.

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aprendem, sem se dar conta, a caminhar ainda mais lentamente que o monge. (ANDRADE, 2013, s/p)153

B) Caminhadas erráticas

Há uma economia do imaginário, do desejo, do prazer, de tudo aquilo que é “não útil”, não racional. A caminhada como constituição de uma esfera pública tem como hipótese passar por uma imersão nesse imaginário e nesse desejo, onde o corpo dissesse: “eu sinto, eu caminho, eu existo”. (GONÇALVES, 2013, p. 185, grifos do autor).

Como visto na Introdução, a prática e a narrativa sobre o caminhar não instrumentalizado, voluntário, é vasta e, geralmente, eivada de extrema beleza. Tais narrativas buscam, geralmente, resgatar dimensões poéticas, filosóficas, corpóreas, sensoriais, afetivas e relacionais. É comum encontrar na literatura, por exemplo, a compreensão de que a caminhada na natureza possibilita a expansão dos sentidos, a sensação corporificada de se estar no mundo e desenvolve uma sensibilidade poética e lúdica ao se entrar em contato com diversas paisagens ao longo do percurso. Aristóteles, Rousseau, Heidegger, Nietzsche, para citar apenas alguns pensadores, adotaram e/ou recomendaram a caminhada como prática especialmente propícia para se recompor a integralidade do “ser no mundo”, funcionando, dentre outras coisas, como um “expansor da consciência”. A caminhada na “natureza” seria uma oportunidade, assim, de se restabelecer o vínculo cindido do ser humano com o todo, o seu lugar dentro da complexa relação com os outros seres, não acima deles, pois, quando se caminha longas distâncias na “natureza”, se tem a real dimensão de quão pequeno é o ser humano, e quão imenso é o universo, onde o indivíduo, por mais que se esforce para se deslocar por longas e longas horas, nunca será suficiente para dar conta da “infinitude” da terra. Dentro dessa perspectiva, Bruhns (2004) elege o corpo que caminha como fonte de reflexão sobre o “ser no mundo”, o caminhar como concretização da liberdade do movimento e do exercício das ideias por excelência, onde as mudanças na estrutura da sociedade estão intimamente ligadas a mudanças nas estruturas corporais e psíquicas. Por ser o “vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída”, o corpo, portanto, expressa a condição social do ser humano (LE BRETON, 2009).

153 Disponível em: . Acessado em: 09 jun. 2015.

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Retomando a reflexão de Bruhns (2004) sobre o ato de caminhar, enquanto experiência sensível, é possível pensar em suas múltiplas dimensões como atividade que imprime no corpo, na mente e nas interações sociais uma série de situações desestabilizadoras das tradicionais formas de conhecimento e de estar no mundo, além de possibilitar a quebra da anestesia dos sentidos, decorrente do processo histórico de reificação humana: Na caminhada a experiência sensível mostra-se pessoal, revelando uma forma mais pausada, onde é possível a combinação entre prazer estético e desejo de conhecimento. A estimulação provocada na atividade, provoca um aguçar dos sentidos num meio ambiente que pode romper com regras formais de eufonia e estéticas, conduzindo a uma experiência de contemplação, filtrada por valores e concepções de vida. (BRUHNS, 2004, p. 02).

O caminhar exerce um tal fascínio, quando realizado de forma não estranhada, não sendo à toa que as histórias e narrativas sobre o caminhar encantam aos que se debruçam sobre o tema. A dimensão arquetípica do caminhar como ato libertador do ser humano, em uma sociedade historicamente alienada, contribui para explicar esse fascínio pelo caminhar, sobretudo, se forem longas caminhadas, justamente aquelas que poucos indivíduos dos estratos mais baixos da classe trabalhadora ou os presos aos padrões sociais de “civilidade” de uma sociedade sedentarizada pela lógica do capital, podem ou estão dispostos a “arriscarem- se” a praticar. Também, como visto anteriormente, o desejo de errância, de evadir-se ganha amplitude quando a sociedade se encontra cada vez mais coercitiva, castradora, estática e sedentária. Talvez, por isso, esse desejo seja sublimado para o plano das ideias, materializando-se em livros, filmes, etc., as práticas que a maioria “não pode” realizar concretamente:

(...) o desejo de errância é um dos polos essenciais de qualquer estrutura social. É o desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a divisão do trabalho, contra uma descomunal especialização a transformar todo mundo numa simples peça de engrenagem na mecânica industriosa que seria a sociedade. Assim se exprimem o necessário ócio, a importância da vacuidade e do não-agir na deambulação humana. (MAFFESOLI, 2001, p. 33).

Muitos são os autores, dos mais diferentes campos de conhecimento, que se debruçaram a narrar e a sistematizar uma reflexão sobre as diversas expressões e significados do caminhar, para além de sua função elementar de locomoção (CARERI, 2013; COVERLEY, 2014; GROS, 2010; JACQUES, 2012; LABBUCCI, 2013; LE BRETON,

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2011; SCHELLE, 2001; SOLNIT, 2001; THOREAU, 2006; VERANI, 2013). Para isso, diante da complexidade aqui observada, optaram por eleger aspectos, abordagens, elementos particulares da relação do caminhante com o caminhar, que variam de acordo com o interesse de cada pensador. A seguir, será possível observar uma plêiade dessas narrativas que, de forma apaixonada e apaixonante, aprofundaram a reflexão sobre o papel e a importância do caminhar como atividade, muitas vezes lúdica, de resistência ao projeto de modernidade urbana no Ocidente. Narrativas que transmitem, de forma poeticamente hipnotizante, a potencialidade do caminhar, como atividade humana praticada em sua dimensão omnilateral. Jean Jacques Rousseau (1712-1778), um dos principais filósofos iluministas e precursor do pensamento romântico, deixou profundas marcas no debate sobre a importância e a beleza do caminhar para a constituição do ser. É possível, inclusive, atrever-se a afirmar que suas ideias, elaboradas em Confissões154 e em Os devaneios do caminhante solitário, obras autobiográficas publicadas postumamente em 1782, influenciaram de alguma forma, definitivamente, todas as reflexões críticas posteriores sobre a prática do caminhar na modernidade:

(...) um registro fiel de minhas caminhadas solitárias e dos devaneios que as preenchem quando deixo minha mente livre por inteiro e minhas ideias seguirem suas inclinações, sem resistência e sem dificuldade. Essas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que sou eu mesmo por inteiro e pertenço a mim sem distração, sem obstáculo, e em que posso dizer de verdade que sou o que a natureza quis. (ROUSSEAU, 2011, p. 16).

Rousseau não registrou em diários suas viagens a pé, mas deixou preciosos relatos, conduzidos por uma lembrança viva dos cenários agradáveis pelos quais percorreu de maneira solitária. Estreou a reflexão sobre os benefícios do vagar com displicência, da meditação ambulante que libera a mente, enfim, da experiência libertária de se devanear. A sociedade de corte europeia, mais especificamente a francesa, com suas supostas conquistas civilizatórias, foi alvo das denúncias de Rousseau por criar, segundo ele, valores e comportamentos coletivos baseados no individualismo, na aparência e na dissimulação, afastando os indivíduos de seu “estado natural”. Perseguido por suas posições

154 O livro Las Confesiones (s/d), de Rousseau, foi escrito entre os anos de 1764 a 1770 e é considerado por muitos estudiosos a obra de inauguração da forma autobiográfica moderna. Importante registrar também que em, Confissões, o filósofo faz todo um relato de como, por meio de uma caminhada, surgiram suas principais ideias para uma de suas obras primas, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens.

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políticas, o filósofo procurou, ao longo da vida, uma reaproximação, tanto prática quanto reflexiva, com os “prazeres naturais em comparação com aqueles que nascem da opulência”:

Escalo rochedos, montanhas, me embriago nos vales dos bosques, para me furtar o máximo possível da lembrança dos homens e do alcance dos maus. Parece-me que sob as sombras de uma floresta sou esquecido, livre e tranquilo como se não tivesse mais inimigos. (ROUSSEAU, 2011, p. 98).

Assim, suas caminhadas solitárias na natureza o afastavam desses infortúnios. Porém, em seus tempos de prosperidade, “por mais que fugisse para dentro dos bosques, uma multidão inoportuna [o] seguia por todos os lados e encobria toda a natureza. Apenas depois de ter [se] desligado das paixões sociais e de seu triste cortejo é que a reencontr[ou] com todos os seus encantos” (ROUSSEAU, 2011, p. 114). De inveterado caminhante na juventude, Rousseau relata como as obrigações sociais o afastaram progressivamente dessa prática, por muitos anos de sua vida:

No he viajado a pie más que en mis días hermosos y siempre agradablemente. Pronto los deberes, los negocios, tener que llevar un equipaje, me obligaron a echármelas de caballero y tomar un coche, donde subían conmigo el roedor desasosiego, el engorro y la molestia, y desde entonces, en lugar del placer de andar que antes sentía en mis viajes, sólo he sentido el anhelo de llegar pronto. (ROUSSEAU, 1997, p. 36).

O filósofo francês encontrou em suas “caminhadas botânicas” o entretenimento ideal para se aproximar do mundo sensível, por meio da interação entre corpo e a produção de um conhecimento desinteressado sobre o reino vegetal. Sua busca nessas caminhadas não era por mais ilustração, “mas [, sim,] encontrar passatempos doces e simples”, aproveitando-se para posicionar-se, dessa forma, “contra a botânica de gabinete”, e todos os métodos e formas de conhecimento que solapam a liberdade e as qualidades naturais do ser humano. Por sua vez, Karl Gottlob Schelle (1777-1825), no início do século XIX, escreveu uma pequena, mas pedagógica obra sobre “a arte de passear”, como a “arte de viver plena”. O filósofo alemão viveu em um período onde o passeio, todavia, apenas podia ser desfrutado pelos estratos mais abastados da sociedade. Ao defender a arte de passear, Schelle o faz dentro de uma perspectiva de classe:

Um indivíduo comum que não tenha cultivado seu espírito não sente necessidade de passear e teria dificuldade em se habituar ao passeio. A razão é muito simples. Para ser tocado pelos encantos do passeio e sentir sua necessidade intelectual, é necessário ter um certo nível de cultura, uma

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bagagem intelectual que nem todo mundo possui; e, consequentemente, é totalmente natural que um simples jornaleiro não possa sentir o prazer agradável de um passeio. (SCHELLE, 2001, p. 19).

Buscou, por outro lado, romper com a tradição especulativa da época, propondo temas para uma filosofia do cotidiano, sendo um dos expoentes de uma geração bastante influenciada por Rousseau. Assim, Schelle via no passear, seja no campo, nas montanhas ou nas alamedas e jardins, uma forma prática e prazerosa de se desenvolver o espírito, por meio da “ação de influências recíprocas entre o corpo e o espírito”, de forma leve e livre: “Passear é um prazer livre, que não coexiste com coerção alguma” (SCHELLE, 2001, p. 33). Dessa forma, Schelle sai em defesa do passeio como atividade física fundamental que propicia o engrandecimento intelectual e espiritual. Aqueles que condenam o passeio como horas perdidas de vida não compreenderam, segundo o autor, a importância da mediação da arte de passear para a vitalidade do corpo e da alma. É muito interessante ainda observar que, ao tratar dos passeios urbanos, especificamente, Schelle (2001, p. 49) tenha tido a compreensão de que esses deveriam “ser incluídos no rol das necessidades essenciais da vida social”. O filósofo alemão chega, inclusive, a correlacionar o nível cultural de uma cidade a existência de espaços públicos acolhedores de passeio nas cidades, como as “belas alamedas”, e ao seu número de frequentadores. “Quando faltam esses passeios onde seria possível distrair-se com facilidade apenas olhando os outros flanarem, falta a necessidade mais indispensável de uma cidade culta” (SCHELLE, 2001, p. 50). Já Henry Thoreau (1817-1862) elegeu o tema do caminhar na natureza como expressão da busca de liberdade individual frente, a seu ver, a uma civilização estadunidense em decadência. Anarquismo, romantismo e ecologismo permearam, de certa forma, sua concepção de ser humano, que teve na figura do andarilho errante o indivíduo capaz de conhecer a encoberta “natureza selvagem”, inclusive a interior, desfigurada pelas relações modernas urbanas. Publicado pela primeira vez em 1862, certamente um dos escritos mais significativos sobre o caminhar, Caminhando é uma ode a viver a vida de forma direta, sem grandes mediações da indústria, do mundo civilizado. Só assim, para Thoreau (2006), era possível construir a autonomia humana em equilíbrio com a natureza. O sedentarismo, para o autor, era sinônimo de monotonia, submissão, conformismo e domesticação. Contra o utilitarismo e um mundo regido por leis e normas arbitrárias, o pai da desobediência civil propunha a necessidade de se entrar em contato com o desconhecido, exortando a sociedade a

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viver junto a experiências cotidianas e elementares em meio à natureza. Em uma pequena mostra poética de sua relação com o que ele considerava a grandiosa experiência de se caminhar na natureza, Thoreau “declama”:

Tivemos um pôr do sol notável um dia no último novembro. Eu caminhava por um prado, a fonte de um pequeno regato, quando o sol, finalmente, antes de se pôr, depois de um dia cinzento e frio, alcançou um estrato claro no horizonte e a luz do sol mais suave, brilhante e matutina, caiu sobre a grama seca e os caules das árvores no horizonte oposto e nas folhas dos arbustos na encosta da colina, enquanto nossas sombras se estendiam longamente sobre o prado para o leste, como se fôssemos os únicos grãos de poeira em seus raios. Era uma luz que não poderíamos ter imaginado um momento antes e o ar também estava tão quente e sereno que nada faltava para fazer daquele prado um paraíso. Quando refletimos que este não era um fenômeno solitário, que nunca aconteceria de novo, mas que aconteceria para todo e sempre e por um número infinito de tardes, e alegraria e tranquilizaria as últimas crianças que caminhassem por aqui, aquilo ainda se tornou mais glorioso. (THOREAU, 2006, p. 121).

Robert Louis Stevenson (1850-1894), por seu turno, foi um escritor e ativista político escocês que, entre novelas, poesias e relatos de aventuras de viagens, escreveu também um breve texto sobre o caminhar. É importante contextualizar, porém, que em sua obra não-ficcional, En defensa de los ocios, publicada originalmente em (1885), Stevenson (2010) retoma, a seu modo, um debate já proposto cinco anos antes por Paul Lafargue (O direito a preguiça), onde, diferentemente do ativista político franco-caribenho, responsabiliza, primordialmente, os indivíduos por seu estado de entorpecimento em relação ao mundo, ao se submeterem a rotinas frustrantes de trabalho. Denuncia, ainda, como sintoma de sua época, a falta de curiosidade, como característica principal que povoa as almas apáticas: “No saben abandonarse a las provocaciones del azar; no obtienen placer em el mero ejercicio de sus facultades y, a menos que la necesidad les muela a palos, permanecerán donde ya estén” (STEVENSON, 2010, p. 26). Ao criticar a sociedade sedentária que não compreende a alegria lúdica de se vagabundar, o escritor escocês discorre, em seu bonito texto, Caminatas, sobre a prática da caminhada como “cura” social:

Igual podría decirse de un moderno hombre de negocios, el cual, no importa lo que hagamos por él, ya sea que le situemos en el Paraíso o le demos el elixir de la vida, siempre conservará una tacha en su corazón, sus hábitos de oficina. Ahora bien, no hay un momento en que esos hábitos estén más

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mitigados que en los de una caminata. Y por eso, en esos altos en el camino, se sentirán casi completamente libres. (STEVENSON, 2010, p. 04).

Ainda em Caminatas, Stevenson (2010) faz um contraponto a essa forma “cinzenta” de vida, corrosiva do caráter social. Tomando como exemplo uma longa caminhada de todo um dia, o novelista escocês dá algumas dicas, assim como Schelle (2001) o fez, em seu A Arte de Passear, para se obter o máximo desfrute de tal prática que restitui a curiosidade, aquece o coração e alegra o corpo e o espírito. A caminhada deve ser realizada de forma solitária, como observou Rousseau, mesmo quando se está acompanhado, ou seja, caminha-se em silêncio, observando a paisagem e suas manifestações, gozando da total liberdade de se parar ou continuar o caminho quando queira, imprimindo o seu próprio ritmo de velocidade. Esse tipo de caminhar converte-se, portanto, em uma forma profunda de se entrar em contato com o todo, tornando-se uno com o ambiente: “Cuando estoy caminando en el campo me gusta vegetar como el campo” (STEVENSON, 2010, p. 02). Além de se caminhar em silêncio, há que se estar atento e disfrutar das mais diversas variações de humor que se experimenta em uma longa caminhada:

En el curso de un día de marcha hay, como se ve, muchas variaciones en el humor. Desde el alborozo de la partida hasta la fleme feliz de la llegada, los cambios son considerables. A medida que el día transcurre, el viajero se mueve de un extremo al otro. Va sintiéndose más incorporado al paisaje y la embriaguez del aire libre va tomándoselo a grandes zancadas, hasta que ve todo lo que lo rodea como en un alegre sueño. La primera etapa es, ciertamente, más brillante, pero la segunda es harto más apacible. Hacia el final el viajero ya no escribe tantos artículos, ni se ríe de modo tan estruendoso; pero el placer puramente animal, la sensación de bienestar físico, la delicia de cada inspiración, de aire o de cada vez que los músculos se distienden en el muslo, le consuela y la ausencia de los otros placeres, y le hacen llegar alegre a su destino. (STEVENSON, 2010, p. 03-04).

Stevenson (2010) assegura que o descanso depois de uma longa caminhada é inigualável, onde comer, fumar um cachimbo, tomar um trago de bebida ou simplesmente ler um livro se tornam experiências surpreendentemente inéditas e deliciosas, nessas condições. O sentimento de jovialidade que o corpo e a alma experienciam nesse momento de descanso, enchem de orgulho e de prazer aqueles que completam a jornada: “(...) fina embriaguez que produce el moverse al aire libre, que comienza con un deslumbramiento y una pereza en el cerebro, y termina en una paz que sobrepasa toda comprensión” (STEVENSON, 2010, p. 02).

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Já o poeta alemão Hermann Hesse (1877-1962), naturalizado suíço, escreveu um conjunto precioso e instigante de poemas intitulado, Caminhada. Vale ressaltar que a história desse poeta está intimamente ligada, de maneira dramática, à história das duas grandes guerras mundiais. Ao defender sua posição pacifista na Primeira Guerra Mundial, o ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1946, por exemplo, foi bastante hostilizado por grande parte de seus concidadãos. Abandonado e sem recursos para viver em um país totalmente destruído com o fim da guerra, o poeta alemão, em meio também a suas tragédias pessoais, decide migrar para a Suíça, para tentar curar suas feridas existenciais e se empreender na busca de caminhos espirituais. Caminhada (1920) foi escrito em 1919, quando Hesse empreende uma viagem a pé pelos Alpes, da parte norte suíça, dominada ainda pela cultura alemã, rumo ao sul, imerso em paisagens ensolaradas e pela influência das tradições italianas:

Essa é a primeira aldeia ao sul das montanhas. É aqui que principia realmente a vida de peregrino que tanto amo: esse vaguear sem rumo, o descansar ao sol, a liberdade da vagabundagem. Eu gosto de viver de mochila e com as calças esfarrapadas. (HESSE, 1920, p. 27).

O livro de poesias resultado dessa caminhada traz ainda singelas ilustrações realizadas pelo próprio autor das paisagens que o inspiraram ao longo do caminho e está centrado na figura e na valorização do personagem andarilho que, em seu peregrinar vagabundo, se contrapõe ao camponês, fixado na terra, e ao burguês, preso à “sagrada” disciplina do trabalho, supostamente proba: “É impossível ser artista e vagabundo, e ao mesmo tempo um burguês honesto e são” (HESSE, 1920, p. 68). O andarilho nômade hessiano é aquele que se recusa a se submeter ao equilíbrio de uma vida tolerável, “intermediária entre o bom e o ruim”, pregando, ao invés, o amor à “infidelidade, à mudança, à fantasia”, onde “o verdadeiro andarilho, nunca deveria nem conhecer a saudade”. Hesse arremata o seu entusiasmo sobre o bem viver de seu personagem anti-heroico peregrino da seguinte maneira: “Existem bons remédios contra a depressão: a fé, fazer música, poesia, beber vinho e andar a pé. É desses remédios que eu vivo, como o eremita que vive do seu breviário” (HESSE, 1920, p. 103) Os autores a seguir, representantes da segunda metade do século XX e início do século XXI, mais que narraram sobre o caminhar, buscaram, cada um a seu modo, realizar sínteses sobre as diversas práticas e relatos anteriormente escritos sobre o caminhar, acumuladas ao longo da história.

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Nesse sentido, Careri (2013), por exemplo, se dedicou a investigar o andar, “como prática estética”, em seu clássico Walkscapes, partindo da tese inicial de que o nascimento da arquitetura, “como principio de estructuración del paisaje y como arquitectura del espacio interior, está relacionado com el recorrido errático y com su evolución nómada” (CARERI, 2013, p. 54). Assim, se para Careri o caminhar deve ser elevado à posição de motor histórico de constituição da arquitetura, algo parecido pode ser dito sobre a cidade, já que sua organização pode ser definida “como un espacio del estar atravesado por todas partes por los territorios del andar” (CARERI, 2013, p. 154). O arquiteto italiano, por meio de diversas experiências estéticas históricas das cidades europeias do século XX, propõe a retomada de expressões sociais urbanas nômades, invocando elementos arqueológicos e inconscientes da ocupação humana no território, por meio do exercício lúdico de promoção do caminhar como: “anti-arte”155, irreverência, intervenção no ambiente e resistência política. A união entre o nomadismo (que o caminhar arquetípica e arqueologicamente invoca) e a prática estética é vetor fundamental para se pensar relações e apropriações dos/nos espaços urbanos que questionam e transformam os lugares e seus significados. “A partir de este simples acto [,el caminar,] se han desarrollado las más importantes relaciones que el hombre ha establecido con el territorio” (CARERI, 2013, p. 15). O andar, assim, para Careri, traz na sua própria constituição os germes da transformação criativa do ambiente e das relações sociais:

El acto de andar, si bien no constituye una construcción física de un espacio, implica una transformación del lugar y de sus significados. Solo la presencia física del hombre en un espacio no cartografiado, así como la variación de las percepciones que recibe del mismo cuando lo atraviesa, constituyen ya formas de transformación del paisaje que, aunque no dejan señales tangibles, modifican culturalmente el significado del espacio y, en consecuencia, el espacio en sí mismo. Antes del neolítico y, por tanto, antes del menhir156, la única arquitectura simbólica capaz de modificar el

155Ao referir-se ao ativismo cultural, Chaia o faz ao aproximá-lo do que seria a “anti-arte”: “De imediato, o ativismo cultural tende a aproximar-se da anti-arte, ao eliminar o objeto artístico em favor da intervenção social inspirada pela estética e ao desconsiderar a contemplação em benefício do envolvimento da comunidade. Neste fazer, os sujeitos produzem conceitos ou práticas, tendo por base uma consciência crítica aguçada portada pelo artista individual ou por um coletivo. O artivismo distingue-se pelo uso de métodos colaborativos de execução do trabalho e de disseminação dos resultados obtidos. Desta forma, é característico desse tipo de arte política a participação direta, configurando formatos de situações que vai do artista crítico até o engajado ou militante” (CHAIA, 2007, p. 10). 156 Segundo Careri (2013, p. 44), “[…] la palabra ‘menhir’ proviene del dialecto bretón y significa ‘piedra larga’ (men = piedra, hir = larga). La erección de un menhir representa la primera transformación física del paisaje de un estado natural a uno artificial. El menhir constituye la nueva presencia en el espacio del neolítico.

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ambiente era el acto de andar, un acto que era a la vez perceptivo y creativo y que, en la actualidad, constituye una lectura y una escritura del territorio. (CARERI, 2013, p. 40, grifos nossos).

Careri (2013) relembra que foi apenas no século XX que a prática estética do caminhar se desvinculou completamente de qualquer tipo de ritual religioso e estabelece como marco inaugural a vanguarda dadaísta, no início desse século, “cuando Dada lleva a cabo la primera peregrinación laica a una iglesia cristiana”, estreando um conjunto de “incursiones urbanas a los lugares más banales de la ciudad”. A utilização dos corpos em movimento nos espaços urbanos ao ar livre, como interação privilegiada de suas intervenções, se constitui como um dos elementos essenciais de questionamento às restritas e elitistas salas de exposição e espetáculo, centradas em objetos estáticos e a sua sacralização. Rompe-se, assim, com a “aura” da obra de arte e do artista individual, profanando-os, trazendo-os para o espaço por excelência do cotidiano, a rua, onde a vida e a arte se encontram. A obra de arte passa a ser, propositalmente, a intervenção que, por sua efemeridade, não se conserva no tempo e no espaço. Segundo Carreri (2013), com essa atitude estética inaugura-se a primeira de uma série de manifestações da chamada “anti-arte”, “una llamada revolucionaria a la vida y contra el arte”, que culminará com expressões de incursões, visitas, deambulações, derivas, errâncias, vagabundeos, dentre outras, por todo um século:

Resulta interesante señalar que el escenario de la primera acción de Dada es precisamente el París moderno, la ciudad por la que, ya desde finales de siglo XIX, vagaba el flâneur, aquel personaje efímero que, rebelándose contra la modernidad, perdía el tiempo deleitándose con lo insólito y lo absurdo en sus vagabundeos por la ciudad. Dada eleva la tradición de la flânerie al rango de operación estética. (CARERI, 2013, p. 63).

Vale registrar ainda que, para os dadaístas, a utilização do caminhar como prática estética está intimamente relacionada à recusa em aceitar o ritmo veloz imposto às relações sociais urbanas, onde, “la ciudad dadaísta es uma ciudad de la banalidade que ha abandonado todas las utopías hipertecnológicas del futurismo”. A passagem do movimento dadaísta ao surrealista, afirma Careri, se dá justamente quando, depois de uma atividade deambulatória errática157, sem qualquer propósito ou

Es el objeto, a la vez abstracto y vivo, a partir del cual se desarrollarán posteriormente la arquitectura (la columna tripartita) y la escultura (la estela estatua)”. 157 Segundo Careri (2013, p. 68), “la deambulación consiste en alcanzar, mediante el andar, un estado de hipnosis, una desorientadora pérdida de control. Es un médium a través del cual se entra en contacto con la parte inconsciente del territorio”.

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finalidade, nos arredores de Paris, “conversando y caminando durante varios días seguidos, como una ‘exploración hasta los limites entre la vida consciente y la vida soñada’” (CARERI, 2013, p. 66), transformam essa experiência no Primeiro Manifesto do Surrealismo: El viaje, emprendido sin finalidad y sin objetivo, se convertió em la experimentación de una forma de escritura automática en el espacio real, en un errabundeo literario/campestre impreso directamente en el mapa de un territorio mental. (CARERI, 2013, p. 68).

A escolha de se realizar longas caminhadas por lugares afastados dos centros urbanos, como campos vazios, zonas rurais pouco habitadas, “que estaba escapando de las transformaciones burguesas”, é uma característica proposital e definidora do início desse movimento que buscou, por meio da dinâmica e interação do corpo em movimento em espaços irregulares, pouco seguros e cheios de “armadilhas” e obstáculos, acessar o inconsciente individual e urbano. Posteriormente, transladaram a mesma lógica para o interior das cidades, só que agora se valendo de passeios noturnos e lugares inusitados, que passavam ao largo dos pontos turísticos tradicionais:

La ciudad surrealista es un organismo que produce y alberga en su regazo unos territorios que pueden explorarse, unos paisajes por donde uno puede perderse y sentir interminablemente la sensación de lo maravilloso cotidiano. (…) El surrealismo, aunque tal vez no comprendiese su alcance en tanto que forma estética, utilizaba el andar – el acto más natural y cotidiano de la conducta humana – como un medio a través del cual indagar y descubrir las zonas inconscientes de la ciudad, aquellas partes que escapan al proyecto y que constituyen lo inexpresable y lo imposible de traducir a las representaciones tradicionales. (CARERI, 2013, p. 73, grifo nosso).

Dando continuidade ao percurso estético do caminhar, traçado por Careri (2013), chama a atenção o fato de que, na década de 1950, surge um novo movimento, intitulado Internacional Letrista, que, posteriormente, se transforma em Internacional Situacionista. Tecendo duras críticas aos surrealistas, por privilegiarem o espaço do campo ao invés da cidade em suas deambulações e não compreenderem o potencial revolucionário objetivo dessas intervenções na realidade urbana, os situacionistas procuraram resgatar o projeto inicial dos dadaístas e reafirmaram que o espaço das cidades deveria ser o cenário privilegiado para a realização de suas derivas psicogeográficas158, onde “perderse por la

158 Segundo Careri (2013, p. 73), “[deriva es la] actividad lúdica colectiva que no solo apunta hacia la definición de las zonas inconscientes de la ciudad, sino que también se propone investigar, apoyándose en el concepto de “psicogeografia”, los efectos psíquicos que el contexto urbano producen en los individuos. La deriva es una construcción y una experimentación de nuevos comportamientos en la vida real, la

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ciudad [es] una posibilidad expresiva concreta de anti-arte, y lo asume como un medio estético político a través del cual subvertir el sistema capitalista de pós-guerra” (CARERI, 2013, p. 73). Os situacionistas encotraram nas derivas psicogeográficas uma dupla forma, estética e política, de intervenção na dinâmica das cidades capitalistas: “un medio con el que poner la ciudad al desnudo, pero también un modo lúdico de reapropriación del territorio” (CARERI, 2013, p. 93). A cidade, como espaço de circulação e convívios múltiplos coletivos, deveria recuperar sua vocação por meio da espontaneidade dos jogos não capturados pela lógica e pelo tempo do capital:

Era necesario contestar aquel bienestar que la propaganda burguesa vendía como felicidad, y que en el terreno urbanístico se traducía en la construcción de unas viviendas “dotadas de confort” y en la organización de la movilidad. Hacía falta “pasar de circulación como suplemento del trabajo a la circulación como placer”. Hacía falta experimentar la ciudad como un territorio lúdico que podía ser utilizado para la circulación de las personas a través de una vida auténtica. Hacía falta construir aventuras. (CARERI, 2013, p. 92, grifo nosso).

Careri (2013) elege ainda outras duas expressões artísticas, na linha cronológica do século XX, a Land Arte e a Transurbância para compor o cenário do “andar como prática estética”. E conclui sua potente Walkscape recuperando o projeto idealizado de Constant Nieuwenhuijs, membro da Internacional Situacionista, da Nova Babilônia, que reflete “la visión de un mundo que (...) será habitado por la estirpe de Abel, por un homo ludens que, liberado de la esclavitud del trabajo, podrá explotar y transformar a un mismo tempo el paisaje que lo circunda” (CARERI, 2013, p. 93-94). Dando prosseguimento às narrativas e sínteses de diversos autores sobre o caminhar, cabe registrar, por seu turno, um ambicioso projeto de análise da história do caminhar empreendido por Solnit (2001). A autora une a sua própria experiência individual de caminhante à reflexão baseada em diversos campos do conhecimento, esmiuçando: desde o debate sobre a teoria do bipedismo e suas implicações; passando pela história das peregrinações; o surgimento dos passeios a pé nos jardins aristocráticos europeus da Renascença; os clubes de montanhismo do século XIX; a cidadania das ruas, com suas festas, procissões e revoluções; e, sua respectiva ausência, como as sucessivas tentativas de exclusão das mulheres dos espaços públicos e do direito de caminharem desacompanhadas à noite;

materialización de un modo alternativo de habitar la ciudad, un estilo de vida que se sitúa fuera y en contra de las reglas de la sociedad burguesa, y que se propone como superación de la deambulación surrealista”.

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além de se debruçar sobre exemplos de cidades que praticamente eliminaram o caminhar de suas paisagens cotidianas, com a prevalência da pavimentação de paisagens e o estímulo a uma cultura indoor, seja dentro de carros ou dos edifícios: If there is a history of walking, then it too has come to a place where the road falls off, a place where there is no public space and the landscape is being paved over, where leisure is shrinking and being crushed under the anxiety to produce, where bodies are not in the world but only indoors in car and buildings, and the apotheosis of speed makes those bodies seem anachronistic or feeble. In this context, walking is a subversive detour, the scenic route through a half-abandoned landscape of ideas and experiences. (SOLNIT, 2001, p. 12).159

Por sua vez, Gros (2010) analisa o caminhar, mas, em seu caso, dando ênfase a uma perspectiva filosófica e espiritual. Aproximando-se da reflexão de Labbucci (2013), caminhar significa para o filósofo francês “estar do lado de fora (...), ao ‘ar livre, [provocando] a inversão das lógicas do habitante da cidade, e até a inversão de nossa condição mais generalizada’” (GROS, 2010, p. 37). “A caminhada é uma melancolia ativa”. Do mesmo modo, para Gros (2010), os aspectos da lentidão, do silêncio, da inutilidade, da reativação do corpo e sua comunhão com a alma, da simplicidade, austeridade, autonomia, ascese e frugalidade, de se estar liberto da técnica, invertem a noção dos ritmos e sentidos, inclusive do trabalho, “dos mundos civilizados”:

O verdadeiro significado da caminhada não está em rumar para a alteridade (outros mundos, outros semblantes, outras culturas, outras civilizações), está em ficar à margem dos mundos civilizados, quaisquer que sejam. Caminhar é pôr-se fora do caminho: ocupar uma posição marginal com relação aos que trabalham, marginal às autoestradas de alta velocidade, marginal aos produtores de lucro e de miséria, aos exploradores, aos trabalhadores esforçados, posição marginal com relação aos indivíduos sérios que sempre têm coisa melhor para fazer do que dar boa acolhida à pálida suavidade de um sol de inverno ou ao frescor de uma brisa primaveril. (GROS, 2010, p. 98).

Já o antropólogo e sociólogo Le Breton (2011), especialista, dentre outros assuntos, no estudo sobre o corpo na contemporaneidade, logo no início do seu Elogio del Caminar, esclarece que seu objeto de interesse nessa obra é, como denominou na tradução espanhola, o “caminar por elección”, ou seja, o caminhar como opção, escolha, preferência, e,

159 Em livre tradução: “Se há uma história do caminhar, então ela também chegou a um lugar onde a estrada declina, um lugar onde não há espaço público e a paisagem está sendo pavimentada, onde o lazer está diminuindo e sendo esmagado pela ansiedade em se produzir, onde os corpos não estão no mundo, mas apenas dentro de casa, no carro e edifícios, e a apoteose da velocidade faz com que esses corpos pareçam anacrônicos ou débeis. Nesse contexto, o caminhar é um desvio subversivo, a rota cênica por meio de uma paisagem meio abandonada de ideias e experiências” (Solnit, 2001, p. 12, tradução nossa).

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não as caminhadas imperiosas, necessárias, realizadas pela inexistência ou a impossibilidade de se acessar outros meios de transporte. Assim como os demais autores acima trabalhados, Le Breton (2011) afirma que “el caminar por elección” é um “método de imersão no mundo”, por meio da relação corporal e sensorial com o ambiente:

(…) un medio para dejarse penetrar por la naturaleza para ponerse en contacto con un universo inaccesible mediante modos de conocer o de percibir propios de la vida cotidiana. Al filo de su avance, el caminante amplía su mirada del mundo, sumerge su cuerpo en condiciones novedosas para él. (LE BRETON, 2011, p. 36-37).

Por sua vez, Jacques (2012) centra seu olhar na “experiência urbana da alteridade”, por meio do seu, “Elogio aos errantes”. Alteridade urbana essa que resiste “à pacificação dos espaços públicos, através da fabricação de falsos consensos, bus[cando] esconder as tensões que são inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a própria esfera pública” (JACQUES, 2012, p. 14). Assim como para Careri (2013), as narrativas errantes, levantadas pela autora, também são experiências nômades, em sua maioria realizadas por meio do caminhar urbano, “[de] relatos daqueles que erraram sem objetivo preciso, mas com uma intenção clara de errar e de compartilhar experiência, em particular para a experiência da alteridade” (JACQUES, 2012, p. 23). Assim, a arquiteta e urbanista se dedica a analisar a experiência errática nas cidades, por meio de narrativas de flanâncias, deambulações e derivas, que cumprem uma dupla função: a) apreensão crítica das diferentes fases do urbanismo moderno; e, b) suas respectivas ações de resistência e de “valorização da experiência corporal das cidades, por meio do exercício da alteridade, “ao possibilitar a criação de microrresistências que podem atuar na desestabilização de partilhas hegemônicas e homogêneas do sensível” (JACQUES, 2012, p. 22-23). Por meio da errância, da ludicidade do jogo, da fugacidade, os “homens lentos voluntários”160 buscam uma relação espaço-temporal que questiona a modernidade, procurando estabelecer uma relação diferente com seu próprio corpo, com o ambiente e com o outro social. A autora propõe, então, três elementos centrais para a ação urbana da errância nas cidades: desorientação (perder-se), lentidão e incorporação (síntese da interação corpo e cidade). Resumindo:

160 Segundo Jacques (2012, p. 23), “a errância urbana é uma apologia da experiência da cidade, que pode ser praticada por qualquer um, mas o errante a pratica de forma voluntária”.

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(...) pode-se dizer que o errante faz seu elogio à experiência principalmente através da desterritorialização do ato de se perder, da qualidade lenta de seu movimento e da determinação de sua corporeidade. As três dinâmicas poderiam ser consideradas como resistências críticas ao pensamento hegemônico do urbanismo contemporâneo que ainda busca certa orientação, rapidez e, sobretudo, esterilização da experiência e presença física, corporal, nas cidades contemporâneas. (JACQUES, 2012, p. 305, grifos nossos).

Por sua parte, Coverley (2014) elege o escritor caminhante como protagonista de suas reflexões: “os modos pelos quais o ato de caminhar provoca e gera o ato de escrever”. Filósofos, peregrinos, viajantes naturalistas, escritores, artistas, dentre outros, registraram em prosa e verso a influência do caminhar consciente, “essa união entre mente e pé” e seu “significado em si mesmo”, em seus escritos. Vale ressaltar, também, como Coverley (2014) correlaciona a transformação do caminhar, de função elementar de locomoção, ao longo de boa parte história da humanidade, em ato político, na era moderna, na medida em que a propriedade rural comunal na Inglaterra, no século XVI, começa a ser cercada e privatizada, impedindo o livre trânsito de pessoas nas terras que antes eram comunais. Essa “resistência pedestre” foi praticada por muitos que se viram afetados pela limitação de suas perambulações, andanças e vagabundagens pelos belos campos ingleses, como os poetas andarilhos e errantes, por exemplo. As alterações na legislação desse país, como a Lei de Caça, de 1671, e a Lei da Vadiagem, de 1824, foram expressões de uma época em transformação, onde a função da propriedade da terra e suas relações de produção estavam se alterando radicalmente, “assim, o caminhar necessário ao (...) trabalho diário [passou a se distinguir] nitidamente dos ‘passeios descuidados’ e das ‘andanças sem rumo’, mais tranquilas e contemplativas, que ocupavam [os] dias de lazer” (COVERLEY, 2014:72). Ainda Coverley:

Constrangido pela lei, o ato de caminhar adquiriu inevitavelmente uma conotação política, desafiando os limites impostos pela sociedade, e cada vez mais alinhado “com um clamor rebelde por direitos comuns, com o sonho de liberdade liberal, com o ideal de democracia”. Assim, a figura do errante desenvolveu uma forte carga simbólica, indicando a existência de um indivíduo em desacordo com o nosso senso familiar e questionando a distinção imposta entre espaço público e privado. Foi por isso, talvez, que o errante passou a representar ideias românticas de liberdade, tanto política quanto esteticamente. (COVERLEY, 2014, p. 70-71, grifos nossos).

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Poetas, como o inglês John Clare (1793-1864), são citados por Coverley (2014) para ilustrar a influência dessa “perda da liberdade do pedestre”, de direito de acesso a terras antes comunais, nos seus escritos. Vale a pena registrar um breve excerto de um de seus poemas, intitulado I dreaded walking where there was no path, onde a transgressão do caminhar se materializa em imagens poderosas:

Eu temia caminhar onde não havia caminho E pisava com passo cauteloso o trigo cortado E sempre me virava para olhar preocupado E sempre temia ver o proprietário se aproximando, E, no entanto, tudo à minha volta aonde eu tinha ido Parecia tão belo que eu continuava me arriscando E quando chegava à estrada onde todos estão livres Eu imaginava que todos os estranhos franziam o cenho para mim E cada olhar afável parecia dizer “Hoje no seu passeio você transgrediu”. (CLARE apud COVERLEY, 2014, p. 73).

A tese de que, “questões políticas de propriedade da terra e de direito a [seu] acesso” exerceram grande influência na transformação do ato de caminhar em manifestação de resistência política, é extremamente pertinente para se pensar não só a Inglaterra, no período da Revolução Industrial, como todas as cidades capitalistas mundiais que se consolidaram ao longo dos últimos séculos. No Capítulo 5, essa discussão será reatualizada para os dias atuais, onde as “questões políticas de propriedade da terra e de direito a [seu] acesso” continuam influenciando atos de caminhar como resistência política, com o diferencial de que agora essas manifestações, muitas vezes, passam a ocorrer de maneira organizada coletivamente e com o objetivo de pressionar o Estado a promover políticas públicas que favoreçam o caminhar e a permanência no espaço urbano. Retomando o mosaico de autores que se dedicaram a escrever sobre o caminhar, nas mais diferentes abordagens e perspectivas, vale a pena destacar o trabalho de Labbucci (2013), que aborda o caminhar como uma “modalidade de pensamento prático” que pode subverter, e de forma mais incisiva, até mesmo revolucionar os modos de “pensar e agir hoje dominantes”. Corroborando o pensamento dos autores acima, o caminhar, como ação política, seria um “ato de insubordinação a ideologia da velocidade”, para Labbucci (2013). O autor italiano procura, por meio de relatos e reflexões existentes sobre o caminhar, afirmar a importância desse simples ato para se compreender melhor a si mesmo e ao mundo: “Quem caminha é inevitavelmente levado a examinar o que encontra, a aguçar o engenho, a

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desenvolver o senso crítico que induz a fazer comparações e a perguntar o porquê e o como das coisas que nos circundam” (LABBUCCI, 2013, p. 34). O caminhar, por ser movimento, contém em si, “um ato de perturbação da ordem estabelecida”, daí seu potencial revolucionário, segundo o autor. Já Verani (2013), de forma mais pontual, centrou sua investigação nas dimensões reais ou metafóricas do caminhar que influenciaram a obra do poeta mexicano, Octavio Paz, onde “la caminata real o metafórica estimula el acto de escribir poesía” (VERANI, 2013, p. 24).

En un mundo sin salida, lo único que vale, señala Paz, es ‘echarnos a caminar. ¿Hacia dónde? Hacia afuera o hacia adentro, no importa: por las calles de nuestra ciudad, pobladas de fantasmas como nosotros, o por las plazas imaginarias de los sueños, recorridas con los ojos cerrados, desvanecidas en la luz fría de la madrugada’ (PAZ apud VERANI, 2013, p. 37) .

Sobre a relação mais profunda entre a produção de narrativas que versam sobre o caminho e o caminhar, o “transitar pelo mundo”, como experiência arquetípica do homo viator161, movimentos estes que simbolizam a impermanência, a transitoriedade da relação entre a vida e a morte, onde por meio de alegorias nômades, o ser humana busca afastar-se do fantasma perene da finitude humana e entrar em contato com experiências transcendentais de aventura, de arriscar-se a uma rotina não habitual, eivadas de experiências nunca antes experimentadas, ressalta Verani (2013):

El camino es uno de los símbolos más antiguos de la humanidad, enraizando en el inconsciente inmemorial. Concebir la vida como un sendero despierta resonancias de salvación, de transcendencias; alude, además, a la transitoriedad, a la fugacidad de la vida y la llegada de la muerte. La

161 Segundo Gondim, a expressão homo viator foi disseminada pelos filósofos da Grécia Antiga, Cínicos, “para identificar a virtude primeira do caminhante, o homo viator representa a ancestralidade enquanto insurgência primordial. Busca pela verdade em sua essência mais primitiva, diálogo entre a aridez e a abundância contida nos elementares; fogo, terra, água e ar” (GONDIM, 2014, p. 02). Cabe ainda registrar que diferente do que comumente é lembrado, não foram os Peripatéticos ou mesmo os Estoicos ou Epicuristas que se utilizavam, primordialmente, do método de dialogar caminhando. Segundo Gros, “os únicos sábios gregos autenticamente caminhantes foram os cínicos. Sempre a vaguear, a vadiar, a zanzar pelas ruas. Como cães. Sempre na estrada, indo de uma cidade a outra, de uma praça pública a outra” (GROS, 2010, p. 132-133). A etimologia da palavra cínico, segundo Gros, significa cão e está associada a forma ambulante e rude com que os cínicos se posicionavam contra as convenções sociais da época. Por sua condição de errante, os cínicos representavam o Outro, o estrangeiro que, devido às suas “experiências inerentes às grandes peregrinações (...), quando importadas para as cidades, vira[va]m dinamite” (GONDIM, 2012, p. 134). Gondim acrescenta que, “enquanto os estóicos palestravam para um público imóvel, os cínicos dedicavam suas vidas a peregrinação - não no intuito de evangelizar, mas de inquietar as almas coagidas pela convenção social” (GONDIM, 2012, p. 02). Disponível em: . Acessado em: 03 jul. 2015. Revista ARTEFACTUM, UFBA, Salvador, BA, n. 1, 2014.

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literatura occidental se inicia con dos libros de viajes: la conquista de Troya en la Ilíada y la errancia de Ulises en la Odisea de Homero, arquetipo del viajero – más que caminante – que retorna a su lugar, paradigma de la existencia humana en la época clásica. Por otra parte, la figura de un peregrino que se detiene a meditar sobre lo andado es un motivo común en la cultura occidental; por ejemplo, el deambular de un poeta hacia su redención tiene en la Divina Comedia el ejemplo máximo del viaje alegórico, un texto que participa del ritmo corporal y cósmico. El viaje concierne, principalmente, a la narrativa, dimensión no desarrollada en estas páginas; el camino, el andar y el tránsito parecen sugerir ciertas incompatibilidad con el texto poético, lírico; no obstante, como se irá viendo, los pasos de un yo por el poema reviven la experiencia misma de transitar por el mundo. (VERANI, 2013, p. 27-28).

Retomando a poesia de Otávio Paz, Verani (2013) recorda que o mexicano foi um viajante inveterado. A profissão de diplomata lhe propiciou viver em diferentes cidades do mundo, disfrutando de inúmeras experiências erráticas. Porém, a imagem de um “eu errante”, desenraizado, que caminha pelos “abismos e vazios da cidade” já se encontrava presente desde sua obra de juventude (1931 a 1943), como lembra Verani (2013). A concepção de “transitar em busca de una relación mas viva com el mundo” permeia o espírito e a estética do poeta de Mixcoac162, e, Verani (2013) encontra em inúmeros dos seus fragmentos a mediação do caminhar como forma de vincular a “vivência humana” e o ato poético:

A las diez de la noche em el Café de Inglaterra Salvo nosotros tres no había nadie Se oía afuera el paso húmedo del otoño pasos de ciego gigante pasos de bosque llegando a la ciudad Con mil brazos con mil pies de niebla cara de humo hombre sin cara el otoño marchaba hacia el centro de París con seguros pasos de ciego Las gentes caminaban por la gran avenida Algunos con gesto furtivo se arrancaban el rostro. (PAZ apud VERANI, 2013, p. 47).

¡Qué extraño es saberse vivo! Caminar entre la gente con el secreto a voces de estar vivo. (PAZ apud VERANI, 2013, p. 50).

Como é possível observar até aqui, muitos foram aqueles que se dedicaram a escrever sobre as diversas expressões, experiências e significados do caminhar para além de

162 Mixcoac, que na língua Nahuatl significa, “Lugar da Nuvem de Serpente”, é um antigo bairro localizado na Cidade do México, onde nasceu Octávio Paz.

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sua função básica, biológica, elementar de deslocamento. Antes de seguir adiante, porém, vale a pena se debruçar sobre um último autor, ainda que haja tantos outros que, certamente, ficarão de fora da análise aqui proposta. Dentro da literatura nacional, João do Rio, pseudônimo do jornalista João Paulo Barreto, foi o responsável por escrever, até aqui, a obra mais significativa sobre a atividade do flâneur e suas impressões da dinâmica das ruas da, então, capital federal. Com a data imprecisa de publicação de 1908, A Alma Encantadora das Ruas foi escrita em um contexto de profundas transformações políticas e urbanas, ambientada na cidade do Rio de Janeiro. João do Rio captura, por meio de um diálogo com a literatura nacional e internacional, as contradições e tensões de um processo de modernização desigual em curso na capital da nova República, sob os olhares atentos de um vagabundo que flana pelas ruas e espaços onde a tal modernização prometida se “esqueceu” de abençoar:

Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício? (RIO, s/d, s/p).

Para João do Rio, a rua, como um ser vivo, embora imóvel, possui alma! “As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos” (RIO, s/d, s/p). A declaração de amor pela rua, presente já na primeira página da Alma Encantadora das Ruas, é um misto de afirmação do papel e do significado originalmente desempenhados pela rua no contexto urbano, como espaço de encontro e socialização na urbes: “[é] a causa fundamental do tipo urbano”! Mas, também, transmite uma anunciação dramática dos perigos que a modernização urbana em curso pode gerar sobre o sentimento de amor, até ali, “absoluto”, “unânime”, “imperturbável”, “indissolúvel” pelas ruas. A passagem a seguir é quase que a expressão de uma luta heroica de resistência contra o vaticínio que o flâneur presencia nas ruas, em meio as transformações da modernidade urbana:

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós

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somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. (RIO, s/d, s/p).

É somente caminhando, por entre becos, cortiços, pensões, fábricas, repartições, que o flanêur, de forma lenta, vagabunda e desinteressada, consegue acessar a pulsão existente nas ruas e sua linguagem urbana. “As crônicas [cotidianas] da vida a margem da burguesia carioca” revelam a cidade real, “não registrada nos documentos oficiais”, “o avesso do cartão postal” que alimentam, por exemplo, o processo criativo de poetas, escritores, músicos, artistas populares (BARROSO, 2012). É só por meio do caminhar que se pode observar “a fragmentação do espaço público, a desigualdade e o preconceito em relação a diversos grupos sociais” que se encontra nas “pequenas profissões” desempenhadas nas ruas. Desde ambulantes, passando por operários, estivadores, prostitutas, coristas, tatuadores, fumadores de ópio, criminosos, enfim, os párias sociais, esse atento flâneur, amante das ruas, percebe espacialmente que o centro e o subúrbio da cidade comportam uma dinâmica de exclusão, cada vez mais pautada pelas regras do valor de mercado. A rua como “lugar em que se instala o circuito da mercadoria”. As reformas urbanas, implementadas por Pereira Passos, são narradas por esse cronista, com a emergência de uma cultura automobilística, incentivando a construção de largas avenidas e a remodelação do centro urbano, pautadas por um discurso higienista (BARROSO, 2012). Após flanar, vagabundar, devanear por essas ricas e inspiradoras narrativas sobre o caminhar, pertencentes a distintos períodos históricos da modernidade, chama a atenção a existência de alguns elementos comuns que as unem. Como já observado, o caminhar, de atividade corrente e hegemônica de deslocamento ao longo da história, com a emergência do capitalismo, foi perdendo sua centralidade, cedendo o passo a outras formas de mobilidade humana. Devido a essa transição histórica, pode-se depreender dessas narrativas e sínteses sobre o caminhar a existência de um entendimento comum de que a busca pelo “caminar por elección”, pelo caminhar voluntário, é uma reação ou forma de lidar com as contradições advindas da própria estrutura do capitalismo e do seu projeto de modernidade urbana, onde

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“[...] ese tipo de ciudad carece de cuerpo, o más bien hace del cuerpo algo fastidioso, molesto de lo que se podría perfectamente prescindir” (LE BRETON, 2011, p. 131). O desejo de rebelar-se, ou simplesmente evadir-se, por meio do lazer, do passatempo, do hobby, das estruturas de um mundo do trabalho que aliena e massacra, onde o tempo de vida do trabalhador lhe é alheio, e de um modelo de urbanização que cada vez mais encolhe o espaço de trânsito e permanência dos que caminham pela cidade é concretizado e simbolizado na experiência dessas inúmeras caminhadas, onde “o trabalho se põe em suspenso”: En realidad, el que las carreteras se hayan vaciado de caminantes y sólo las recorran ahora los automóviles es un fenómeno bastante reciente. Si bien para nuestros ancestros el caminar se imponía como casi la única forma de desplazarse, hasta para los viajes largos, hoy en día no es más que una elección, incluso una forma deliberada de resistencia a la neutralización técnica del cuerpo que distingue a nuestras sociedades modernas. Aunque dentro de la ciudad se mantiene como un medio de desplazamiento muy importante, caminar entre dos ciudades o dos pueblos se ha convertido en algo prácticamente impensable (…). Por otro lado, en la mayor parte del mundo los peatones le disputan todavía un magro espacio al autobús, los coches y los innumerables vehículos de dos ruedas. (…) La cultura del camino se ha transformado, se ha convertido en un pasatiempo, en un hobby, si bien hoy en día sigue habiendo un gran número de jóvenes vagabundos (Chobeaux, 1996) y de personas sin techo (es decir, de itinerantes entregados únicamente a su cuerpo). (LE BRETON, 2011, p. 94, grifo nosso).

Com a “intenção de evadir-se do [cotidiano] ordinário” das relações estranhadas, o caminhante procura, por meio da retomada da escala humana, entrar em contato com o seu corpo, corpo esse muitas vezes mutilado, levado a condições extremas de sofrimento, em uma sociedade de classes que há muito tempo separou e hierarquizou a relação entre corpo e alma. Desfazendo-se do supérfluo, dos excessos, por meio de uma busca do elementar, do silêncio, em alguns casos no espaço urbano, em outros na “natureza”, o caminhante se aventura, se arrisca, sente sua vulnerabilidade, enquanto caminhante. Por isso, a deriva, como “un momento en el que se abandona sus costumbres, de cada día, en el que renuncia a sus rutas habituales, las sobrepasa, las olvida, las transgrede” (LE BRETON, 2011, p. 120-121). Porém, diferentemente dos valores apregoados na modernidade, essa suposta vulnerabilidade é que o liberta dos grilhões do controle, mediado pela técnica, e do discurso da eficiência e do utilitarismo: caminha-se sem objetivos pré-determinados, desfruta-se do improviso, entra-se em contato com a posição muitas vezes incômoda e desprestigiada de se ser estrangeiro, suspendendo fronteiras, andando pela margem e construindo amizades

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efêmeras ao longo do caminho, por meio do arquétipo desestabilizador do caminho e do livre caminhar. Assim, como foi possível ver acima, diversas são as narrativas que tratam, primordialmente, do “caminar por elección”. Porém, também foi possível observar que esse caminhar voluntário, surge, muitas vezes, como uma forma de resistência à sociedade moderna, onde o próprio caminhar historicamente vem sendo estranhado.

C) Caminhadas coletivas de reivindicação política

As caminhadas coletivas de reivindicação política se inserem na categoria do caminhar voluntário dentro da perspectiva elaborada por Jacques (2012): ato de caminhar como “ferramenta” e “ação urbana” para se transformar as relações sociais vigentes. Inúmeras são as formas de expressão dessas caminhadas: marchas, passeatas, performances, dentre outras. Diante desse contexto, Solnit é taxativa ao declarar que: “[…] only citizens familiar with their city as both symbolic and practical territory, able to come together on foot and accustomed to walking about their city, can revolt” (SOLNIT, 2001, p. 217)163. Importante destacar, no entanto, que “a voz das ruas não é uníssona. Trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo, brutalidade” (ROLNIK, 2013, p. 12)164. Assim, as caminhadas coletivas de reivindicação política contrastam “con los modos habituales de habitar [la ciudad] y circular por ésta” (BONVILLANI, 2013, p. 96), bem como se diferenciam de outras formas de mobilizações coletivas nos espaços públicos. Por exemplo, “se distingue[m] do ajuntamento, que é estático (a manifestação implica um desfile de um ponto a outro), da procissão que tem fins religiosos, do tumulto no sentido corrente que não é, ele, organizado, do motim que se utiliza do espaço público urbano como de um campo de batalha” (FAVRE apud MAGALHÃES, 2013, p. 20). Marcha-se por diversos motivos, sendo que, na contemporaneidade, inclusive pelo direito à cidade e a reapropriação coletiva do espaço urbano:

163 Em livre tradução: “ [...] apenas cidadãos familiarizados com sua cidade, tanto como território simbólico quanto prático, capazes de se unirem a pé e acostumados a andar na cidade, podem se revoltar” (SOLNIT, 2001, p. 217, tradução nossa). 164 Ao final dessa seção encontra-se um conjunto de imagem de marchas e protestos progressistas e conservadoras, no Brasil, de 1964 aos dias atuais.

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(...) o direito à cidade é um grito, uma demanda, então é um grito que é ouvido e uma demanda que tem força apenas na medida em que existe um espaço a partir do qual e dentro do qual esse grito e essa demanda são visíveis. No espaço urbano – nas esquinas ou nos parques, nas ruas durante as revoltas e comícios – as organizações políticas podem representar a si mesmas para uma população maior e, através dessa representação, imprimir alguma força a seus gritos e demandas. Ao reclamar o espaço em público, ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais tornam-se públicos. (MITCHELL apud HARVEY, 2013, p. 33-34, grifo nosso).

De modo um tanto especulativo, porém, bastante imaginativo, Solnit (2001) sustenta que há uma relação entre o grau de “caminhabilidade”165 das cidades e seu potencial revolucionário, valendo-se, como exemplo, do caso de Paris, para apoiar tal argumento. Assim, em diálogo com Eric Hobsbawm, sustenta que quanto mais compacta e concentrada populacionalmente for uma cidade, maior a possibilidade de se haver levantes e insurreições:

Historian Eric Hobsbawm once speculated on “the ideal city for riot and insurrection”. It should, he concluded, “be densely populated and not too large in area. Essentially, it should still be possible to traverse it on foot… In the ideal insurrectionary city the authorities – the rich, the aristocracy, the government or the local administration – will therefore be as intermingled with the central concentration of the poor as possible”. (SOLNIT, 2001, p. 218, grifo nosso).166

A origem das ações de protesto de tomada dos espaços públicos urbanos por meio de marchas coletivas “integram a história da organização capitalista da cidade” (MAGALHÃES, 2013, p. 09). É com o nascimento da classe trabalhadora assalariada, espacialmente concentrada na urbe, que as ações diretas por meio das manifestações públicas surgem como forma de dar visibilidade às demandas coletivas e conferir protagonismo aos seus participantes. Nos protestos públicos, caminha-se coletivamente com desconhecidos, reivindicando demandas comuns, para além da esfera individual. Segundo Solnit (2001, p. 218), “public space is the space we share with strangers, the unsegregated zone. In these communal events, that abstraction the public becomes real and tangible”. Assim:

Manifestar-se significa essencialmente ‘sair à rua’, ocupar um espaço público que seja visível para o maior número de pessoas possível, e desfilar por ele. A ideia de movimento, de deslocamento, é consubstancial à

165 A categoria de “caminhabilidade” ou , no seu original, será tratada, brevemente, no Capítulo 5. 166 Em livre tradução: “O historiador Eric Hobsbawm, uma vez especulou sobre a "cidade ideal para motim e revolta". Deve, concluiu ele, "ser densamente povoada e com uma área não muito grande. Essencialmente, deve ser possível atravessá-la a pé ... Na cidade insurrecional ideal, as autoridades - os ricos, a aristocracia, o governo ou a administração local - estarão, portanto, tão misturadas com a concentração central dos pobres, quanto possível " (Solnit, 2001, p. 218, grifo nosso, tradução nossa).

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manifestação; e sendo possível deve fazer-se através do espaço por excelência: a parte central da rua, e não tanto os passeios. Os lugares concretos onde se desenvolvem as manifestações têm também uma grande importância. Devem gozar de uma grande visibilidade e, além disso, estar carregados com um forte conteúdo simbólico. [...]. Congregar-se, mostrarem-se juntos, ser protagonistas e participantes ‘em primeira pessoa’ são dimensões constitutivas da manifestação. [...]. A importância de ‘fazer- se visível’ explica que seja uma das práticas de cidadania preferidas por aqueles grupos que lutam por seu reconhecimento e inclusão dentro da comunidade de cidadãos. (MORÁN apud MAGALHÃES, 2013, p. 23-24).

É apenas na modernidade, com a emergência de uma nova concepção de história, em que os acontecimentos sociais, ao longo do tempo e do espaço, passam a ser vistos como passíveis de transformação pela ação humana; e, sobretudo, com a “criação” e a “liberação” da classe trabalhadora assalariada, que os protestos políticos ganharam centralidade no contexto urbano, provocando temor, tanto para as hegemonias estatais quanto para o mercado. Dentre os exemplos emblemáticos de tomadas das ruas, que contribuíram para o triunfo, ainda que muitas vezes parciais e provisórios, dos manifestantes, destaca-se que:

Foi nas ruas que os tchecos se libertam em 1989 de opressivas formas de governança: foi na Praça da Paz Celestial que o movimento estudantil chinês buscou estabelecer uma definição alternativa de direitos; foi através de massivos comícios que a Guerra do Vietnã foi forçada a terminar; foi nas ruas que milhões protestaram contra o prospecto de uma intervenção imperialista norte-americana no Iraque em 15 de fevereiro de 2003; foi nas ruas de Seattle, Gênova, Melbourne, Quebec e Bangkok que os direitos inalienáveis à propriedade privada e da taxa de lucro foram desafiados. (HARVEY, 2013, p. 33).

Como visto no Capítulo 2, em termos históricos, a disputa político-territorial em torno da ocupação, ação, circulação e permanência nos espaços públicos, por parte de manifestantes, é acirrada, muitas vezes violenta. O papel desempenhado pelo poder público para controlar as insatisfações da classe trabalhadora, e, mais recentemente, dos diversos grupos sociais que reivindicam seus direitos por meio do reconhecimento de suas identidades, é fundamental para se compreender sua atuação no desenho e na organização das infraestruturas urbanas. “[É] evidente que o urbano funciona como um espaço importante de ação e revolta política. As características atuais de cada lugar são importantes, e a reengenharia física e social e a organização territorial desses lugares são armas nas lutas políticas” (HARVEY, 2013, p. 213). Harvey enfatiza que “sempre houve uma luta por quem cuidará e para quem a produção e o acesso ao espaço e aos bens públicos devem ser

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regulados” (HARVEY, 2013, p. 144), ainda que as estratégias geralmente utilizadas quase nunca são percebidas como medidas de violação do direito de reunião pública para fins políticos (SOLNIT, 2001). Independente do regime de governo adotado, essas medidas visam, por um lado, conter as ameaças de sublevação, insurreição, revolução em relação às instituições políticas estabelecidas; e, por outro, proteger a dinâmica da economia urbana, liberando ruas e avenidas, ou mesmo praças e lugares simbólicos, primordialmente, para a circulação das mercadorias. Como visto no Capítulo 1, por sua vez, os “protestos políticos frequentemente avaliam sua eficácia em termos de sua capacidade de interromper a economia urbana” (HARVEY, 2013, p. 213). É comum, então, se proibir a presença política de passeatas e manifestações nos espaços públicos, reprimindo deliberadamente tais deslocamentos e aglomerações, ou por meio da privatização sistemática desses espaços, inclusive para os automóveis. “Assim, uma rua apropriada exclusivamente como lugar para a circulação dos automóveis fornece dificuldades para que seja apropriada pelos manifestantes” (OFFERLÉ apud MAGALHÃES, 2013, p. 21). Todavia, em meio a essa disputa histórica territorial de ação e sentido político, em muitas democracias, o direito de se protestar em espaços públicos se converteu, via de regra, em direito coletivo fundamental, embora constantemente ameaçado ou suspenso. O embate teórico e político entre os defensores da democracia representativa estrita e os entusiastas de uma visão mais alargada de democracia, considerando salutar a ação direta das manifestações em uma democracia representativa, desde que ordeiras e pacíficas, vem norteando a normatização e a regulamentação dos protestos políticos em diversos países. Para os que defendem os protestos públicos, “a ausência de manifestações na rua é, por si, um sintoma que remete à ausência de democracia” (MAGALHÃES, 2013, p. 30). Porém, Magalhães relembra que, do ponto de vista teórico e analítico dentro das Ciências Sociais, é apenas na década de 1960, “quando o repertório das mobilizações se ampliou para além das questões particulares do movimento operário” que as manifestações passam “a ser devidamente abordadas – num sentido positivo, ou seja, como ação política legítima” (MAGALHÃES, 2013, p. 15). As marchas, passeatas, protestos, manifestações passam a ser reconhecidas como alternativa concreta, legítima e viável de participação ativa da vida política, como “cidadania especializada”, uma vez que os “terrenos da política institucionalizada” são insuficientes ou mesmo se encontram restritos ou obstruídos, sobretudo, para os movimentos populares. “Como consequência, [por meio das manifestações públicas,] abre[-se] a perspectiva para

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construir ‘a vida como ela deveria ser’, ou seja, a possibilidade de construir novas trajetórias” (MAGALHÃES, 2013, p. 18-19). Em diálogo com Marilena Chauí e Milton Santos, Magalhães afirma que:

Oportunamente, [a filósofa] (1988) sugere que a participação em eventos coletivos, em espaços públicos, exerce uma função de aprendizado cidadão, como exercício da cidadania. Nesse rumo, estar em um espaço público, manifestando-se num espaço até então reservado para o capital – compreendendo aqui os negócios e a circulação de automóveis, conforme Santos (2002) – tem o sentido de uma ação pedagógica, significativa para a vivência política, enfim, para a tomada de consciência dos indivíduos como sujeitos históricos e de direitos. (MAGALHÃES, 2013, p. 24).

No Brasil, especificamente, Magalhães chama a atenção para o fato de que as constituições nacionais, “desde 1934, permite[m] ver (...) a manifestação (...) como um ‘caso de polícia’ e raramente como um direito” (MAGALHÃES, 2013, p. 28) 167. Ainda, a autora afirma que “[...] somente com a Constituição Federal de 1988 é que se estabelece de fato a redação que está inscrita no artigo 5, inciso XVI”:

Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ou públicos, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido aviso prévio à autoridade competente. (Constituição Federal de 1988 apud MAGALHÃES, 2013, p. 29).

Anteriormente, durante o período de ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), as manifestações públicas de protesto contra o Regime foram duramente reprimidas, culminando com o Ato Institucional nº 5168, de 1968, que previa, dentre outras medidas, a possibilidade de: i) suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão; ii) proibição de se frequentar determinados lugares; e, iii) proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política. Segundo Pochmann, a ditadura civil-militar também foi responsável pelo

167 Vale registrar, por exemplo, que, por conta das manifestações iniciadas em junho de 2013, um projeto de lei está tramitando no Senado Federal, tipificando “como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos” “com acréscimo de rigor aos praticados durante as mobilizações”, com objetivo de ser aprovada antes da Copa de 2014, realizada no Brasil. A proposta é do senador Pedro Taques (PDT-MT), com um substitutivo de autoria do senador Armando Monteiro (PTB-PE). O PLS nº 508/2013 segue em tramitação no Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=142382. Acessado em: 17 set. 2015. 168 O texto integral do Ato Institucional nº 5 se encontra disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620. Acessado em: 16 set. 2015.

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esvaziamento político das ruas, ao empreender um sólido projeto de privatização dos espaços públicos169:

O movimento de redemocratização nacional chamava a atenção para o fato de que o governo da ditadura militar havia privatizado o espaço público. Essa é uma questão que merece ser destacada. A sociedade brasileira, até o início dos anos 1960, tinha um espaço público que hoje está muito reduzido. Ele foi apropriado pelo privado. A sociabilidade está sendo construída dentro dele. A começar pelo Shopping Center, que hoje é onde as pessoas podem caminhar com certa segurança. Entretanto, na década de 1960 a população tinha a opção do passeio, da praça pública. As pessoas caminhavam, andavam nas ruas. Nós perdemos essa característica. Parte dessa distorção é decorrente da ditadura militar, cujo período foi marcado pela privatização do Estado. (POCHMANN apud MAGALHÃES, 2013, p. 30, grifo nosso).

Por sua vez, recentemente, com a crise econômica instaurada em diversos países da Europa, no ano de 2011, incluindo Espanha e Grécia, milhares de manifestantes retomaram as ruas de suas cidades protestando, dentre outros motivos, contra o lucro desmedido dos bancos e, também, contra as políticas de austeridades de seus respectivos governos que, segundo tais movimentos, penalizam a população em detrimento da salvação dessas instituições financeiras. No caso da Espanha, em meio a tanta pressão realizada pelas marchas dos “indignados”, foi promulgada a Lei de Segurança Cidadã, aprovada em março de 2015, popularmente apelidada de “Lei da Mordaça”. Tal Lei está relacionada com os temas de proteção da segurança nacional e medidas antiterroristas, e proíbe, dentre outros aspectos, a realização, sem autorização prévia, de passeatas, manifestações, aglomerações com finalidades políticas em determinadas áreas da cidade, dando mais poder às forças de segurança para reprimi-las e criminalizando os movimentos sociais. Assim, quando não se pode mais marchar fisicamente em determinados lugares, cria-se uma forma de fazê-lo virtualmente, em sinal de protesto por tal medida que impede a espacialização da política nas cidades, sendo realizado, no ano de 2015, o primeiro protesto em formato de holograma, em frente ao edifício do Congresso Nacional espanhol. A luta pelo direito de se protestar nas cidades corrobora a ideia de que “a cidade não é só palco das lutas, mas é também aquilo pelo que se luta” (BRITO; OLIVEIRA, 2013, p. 69) e que o espaço das

169 Magalhães, em diálogo com Marilena Chauí (1988), por outro lado, salienta que “a entrada dos movimentos populares em cena, bem como a retomada das lutas dos trabalhadores no final da década de 1970, depois de um momento de silenciamento no regime militar, implicou também em formas de ocupação não prescritas para o espaço urbano, fazendo “[...] a política criar novos lugares para exercitar-se” (MAGALHÃES, 2013, p. 26).

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ruas também é um local adequado e legítimo para o exercício direto da cidadania e para a afirmação de autonomia desses sujeitos históricos, não apenas os espaços institucionalizados da democracia representativa.

Figura 23 – Protesto, em forma de holograma, contra a lei da “Mordaça” na Espanha

Fonte: Site - Revolution News.170

Dessa forma, na contemporaneidade, por mais que exista um processo de mobilização e organização nas redes sociais (SAKAMOTO, 2013), em torno de manifestações de inconformidades e demandas em relação a diversos temas da esfera político- econômica global, é sobretudo por meio da ocupação física das ruas, ao se colocar o pé no asfalto e reivindicar o espaço público como local simbólico e concreto das lutas por transformações, que se logra alguma efetividade por mudanças sociais. “Walking (…) become speech in these demonstrations and uprisings, and a lot of history has been written with the feet of citizens walking through their cities. Such walking is a bodily demonstration of political expression” (SOLNIT, 2001, p. 217)171. Em relação às ocupações dos espaços públicos durante as manifestações do movimento Occupy Wall Street, Harvey comenta que:

170 Disponível em: . Acessado em: 07 maio 2015. 171 Em livre tradução: “Caminhar (...) tornar-se um discurso nestas manifestações e revoltas, e um monte de história tem sido escrita por meio dos pés dos cidadãos caminhantes em suas cidades. Esse caminhar é uma demonstração física de uma expressão política "(Solnit, 2001, p. 217, tradução nossa).

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A “street” [rua] de Wall Street são tomar um espaço público central, um parque ou uma praça, próxima à localização de muitos dos bastiões do poder e, colocando corpos humanos ali, convertê-lo em um espaço político de iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder está fazendo e as melhores formas de se opor ao seu alcance. [Essa tática] mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado. A praça Tahrir mostrou ao mundo uma verdade óbvia: são os corpos nas ruas e praças, não o balbucio de sentimentos no Twitter ou Facebook, que realmente importam. (HARVEY, 2012b, p. 61-62, grifos nossos).

A força das caminhadas coletivas com a finalidade de reinvindicação política pode produzir resultados de mobilização extremamente potentes e impactantes, ainda que sob o domínio do ritmo lento de deslocamento do corpo, quando este se converte em uma forma de discurso. “When bodily movement becomes a form of speech, then the distinctions between words and deeds, between representations and actions, begin to blur, and so marches can themselves be liminal, another form of walking into the realm of the representational and symbolic – and sometimes, into history” (SOLNIT, 2001, p. 217)172. O deslocamento do corpo coletivo, manifestando conjuntamente, pode produzir uma mística que se expressa em energia transformadora. A citação a seguir expressa bem o processo político gerado por esse “mar” de gente, marchando por uma causa173. A famosa Marcha do Sal (Satyagraha), realizada por Gandhi e seus compatriotas, ao longo de 44 dias, com o objetivo de se chegar ao oceano, onde se encontrava o sal (elemento natural vital para a maioria das culturas humanas), proibido pelos ingleses de ser extraído da costa indiana pelos cidadãos indianos, pode ser narrada da seguinte forma:

Em fevereiro de 1930, Gandhi já está com sessenta anos e concebe o projeto da marcha do sal. É uma arquitetação dramática, uma epopeia coletiva. Gandhi reúne à sua volta um núcleo de militantes seguros: os satyagrahis, que ele próprio se encarregou de formar, cuja disciplina interior e aptidão

172 Em livre tradução: “Quando o movimento corporal se torna uma forma de discurso, então as distinções entre palavras e atos, entre representações e ações, começam a se confundir, e, assim, as marchas podem tornarem-se limiares, uma outra forma de se caminhar no reino da representação e do simbolismo - e, por vezes, na história” (Solnit, 2001, p. 217, tradução nossa). 173 A história moderna está repleta de caminhadas coletivas de reivindicação política, muitas de longo percurso. Na história do Brasil, um dos exemplos celebres é o da Coluna Prestes (1925-1927). Liderada por Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, esse movimento civil-militar, vinculado, dentre diversas vertentes políticas, ao Tenentismo, marchou 25 mil quilômetros pelo interior do pais, “partindo do município de Santo Ângelo, [no Rio Grande do Sul], durante dois anos e meio. Apesar dos esforços, a Coluna Prestes não conseguiu a adesão da população. (...). O movimento liderado por Carlos Prestes contribui para disseminar os problemas do poder concentrador oligárquico da República Velha, culminando na Revolução de 1930”. Disponível em: . Acessado em: 18 set. 2015.

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para o sacrifício ele conhece bem. (...). Em 11 de março, tomando a palavra diante de milhares de pessoas após a oração da noite, Gandhi exige de todos, caso ele próprio venha a ser preso, que prossigam sem ele, com calma e em paz, o movimento de desobediência. Ele parte no dia seguinte, às seis e meia da manhã, com seu longo bastão de caminhada na mão (um bambu comprido com ponteira), rodeado de fieis trajados como ele de um pano de algodão branco tecido manualmente. São pouco menos de oitenta na partida. Serão vários milhares na chegada ao litoral, 44 dias depois. (...). Os vilarejos que se atravessam tomam um ar de festa: regam os caminhos, cobrem-no de folhas e flores para aliviar os pés dos caminhantes. Cada vez Gandhi se detém, toma tranquilamente a palavra e incentiva todos a cessar toda cooperação ativa com o Império (...). E principalmente: não revidar as provocações (...). A organização da jornada é imutável: rezar pela manhã, caminhar durante o dia, fiar algodão ao cair da noite, escrever nas horas noturnas artigos para seu jornal. No dia 5 de abril, depois de mais de um mês e meio de caminhada, ele alcança finalmente Dandi, no litoral, e passa a noite a rezar com seus discípulos. De manhã, às oito e meia, ele anda em direção ao oceano, banha-se nele, volta à praia e executa solenemente diante das milhares de pessoas ali reunidas o gesto proibido: abaixa-se vagarosamente e colhe um pedaço de sal, enquanto a poetisa Sarojini Naidu exclama: “Salve o libertador”! (GROS, 2010, p. 197).

Foi possível observar, neste Capítulo, a exemplificação de diversos tipos de caminhar, muito além do “domínio da carência física imediata” da necessidade de locomoção, para ilustrar a pluralidade, a complexidade e a riqueza desta atividade eminentemente humana que vem sofrendo um processo de estranhamento tal nas cidades capitalistas, que, por fim, a transformam, também, em mercadoria – tema objeto do capítulo a seguir.

Figuras 24 a 31 - Exemplos de marchas e protestos no Brasil de 1964 aos dias atuais:

Figura 24 – Atrizes em Passeata dos 100 Mil Figura 25 – Marcha da Família com Deus contra a Ditadura Civil-Militar – 1968 pela Liberdade – 1964

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Figura 26 – Integrantes do Movimento dos Figura 27 – Marcha 300 anos de Zumbi Trabalhadores Sem Terra – MST dos Palmares – 1995, Brasília-DF marchando em rodovia

Figura 28 – Marcha das Vadias Figura 29 – Parada do Orgulho LGBT – São Paulo-SP

Figura 30 – Protesto de Junho de 2013, Figura 31 – Protestos anti-corrupção, anti- contra o aumento das tarifas de ônibus governo federal, anti-Lula, anti-Dilma, anti- PT – 2015, São Paulo-SP

Fontes: Diversas.174

174 Primeira linha: 1) Figura 24: Atrizes em Passeata dos 100 Mil contra a Ditadura Civil-Militar – 1968. Fonte: Site – Revista Pesquisa FAPESP. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015; 2) Figura 25: Marcha da Família com Deus pela Liberdade – 1964. Fonte: Site – Pragmatismo Político. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015. Segunda linha: 1) Figura 26: Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST – marchando em rodovia. Fonte: Site – Vermelho. Disponível em:

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4 DO INVOLUNTÁRIO AO VOLUNTÁRIO: O CAMINHAR SE TORNA MERCADORIA

Como foi possível observar até aqui, no “sistema metabólico societal do capital”, diversos fatores vinculados às relações e conflitos de classe, bem como a sua organização espaço-temporal, contribuem para o processo histórico de estranhamento do caminhar. A seguir, o que se procurará desenvolver é a tese de que o caminhar, na contemporaneidade, acaba, também175, por se transformar em mercadoria. Não só a mercadoria força de trabalho se desloca por meio deste caminhar estranhado; como, enfim, o próprio caminhar também passa a “se deslocar” como mercadoria176. Ortiz (2000), em diálogo com Walter Benjamin de, Paris capital do século XIX, já afirmava que, assim:

[...] como as mercadorias que podem ser reduzidas a um mesmo denominador comum, o dinheiro, “equivalente universal”, os indivíduos, no processo de consolidação da lógica capitalista, se fundem a um mesmo padrão transformando-se em massa. O flâneur torna-se assim mercadoria. (ORTIZ, 2000, p. 19, grifo nosso).

Por conta da reconfiguração histórica da produção e reprodução do urbano, sobretudo após a Revolução Industrial, “o indivíduo cede[u] lugar a multidão”. Multidão essa que, em uma sociedade industrial avançada, será moldada à imagem e semelhança de seus parques e esteiras de produção em série, onde a aceleração, a homogeneização e a padronização serão inimigas declaradas da lentidão, da diversificação e da produção artesanal.

. Acessado em: 11 set. 2015; 2) Figura 27: Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares – 1995 – Brasília – DF. Fonte: Site – Fundação Perseu Abramo. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015. Terceira linha: 1) Figura 28: Marcha das Vadias. Fonte: Blog – Bia Francischinelli. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015; 2) Figura 29: Parada do Orgulho LGBT – São Paulo – SP. Fonte: Blog – Diálogos Políticos. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015. Quarta linha: 1) Figura 30: Protesto de Junho de 2013, contra o aumento das tarifas de ônibus. Fonte: Site – Tribuna do Agreste. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015; 2) Figura 31: Protestos anti-corrupção, anti-governo federal, anti-Lula, anti-Dilma, anti-PT – 2015 – São Paulo, SP. Fonte: Blog – Revista Veja. Disponível em: . Acessado em: 11 set. 2015. 175 A utilização da expressão “também” em relação a transformação do caminhar em mercadoria, refere-se ao fato de que, como visto no capítulo anterior, por ser uma atividade humana, o caminhar se expressa de muitas formas e, no capitalismo contemporâneo, inclusive, como mercadoria. 176 É importante destacar aqui que quando se afirma que “o próprio caminhar passa também a “se deslocar” como mercadoria” não se está afirmando que o caminhar seja um sujeito social ao “se deslocar”. O que se pretende sustentar, por meio de um jogo de palavras, é que a atividade do caminhar se torna também mercadoria e, por isso, se exterioriza, dentro da lógica da produção capitalista.

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Em contrapartida ao Antigo Regime, onde “a circulação de pessoas, mercadorias, ideias, objetos, foi sempre restrita”, no século XIX, o “ritmo da história social se modifica” e “a circulação, princípio estruturante da modernidade, possibilita a emergência do flâneur” (ORTIZ, 2000, p. 20-21). “Desenraizando-se de sua territorialidade ele pode caminhar, mover-se segundo os objetivos traçados por sua consciência individual” (ORTIZ, 2000, p. 21). Inevitavelmente, se, por um lado, essa nova dinâmica urbana “liberou” o indivíduo à circulação, “desenraizando[-o] de sua territorialidade”, por outro, essa circulação se encontrou totalmente inserida na lógica das relações capitalistas de produção. Em face a essas reestruturações de relações sócio-espaciais inéditas no urbano, dentre outros fenômenos de transformação, a presença e o sentido da flânerie, no final do século XIX, são profundamente afetados. Como visto até aqui, pode-se inferir que o declínio da flânerie, pelo menos como cantada em verso e prosa no final do século XVIII e em todo o século XIX, representa a transformação de um processo onde as relações no urbano progressivamente se mercantilizaram, invadindo os diversos âmbitos da vida social, impondo, por exemplo, a presença cada vez maior de veículos e infraestruturas urbanas destinadas à aceleração da circulação das mercadorias, além de regras de uso e permanência nos espaços públicos que expulsaram, pouco a pouco, o clássico flâneur das ruas. Por isso, com o paulatino desenvolvimento das relações urbanas modernas, o flâneur foi perdendo seu caráter social transgressivo177, sendo enfraquecido por uma configuração espaço-temporal que inibiu, comprimiu, coagiu sua capacidade de errância e vagabundagem, obrigando-o, por exemplo, a tomar inúmeras medidas de precaução para circular no espaço urbano:

Uma referência ao livro de Edmond Jaloux, Le Dernier Flâneur, é neste ponto expressiva: “um homem que passeia não deveria se preocupar com os riscos que corre ou com as regras de uma cidade. Se algo divertido lhe vem ao espírito, se uma loja curiosa cruza o campo de sua visão, é natural que, sem enfrentar os perigos que nossos antepassados jamais suspeitaram, ele queira atravessar a rua. Ora, hoje ele não pode fazê-lo sem tomar mil precauções, sem antes interrogar o horizonte, sem pedir licença à prefeitura de polícia, sem se misturar em um rebanho agitado e atordoado, para o qual o caminho já se encontra traçado de antemão pelo brilho do vil metal. Antigamente, seus irmãos badaud, que

177 Segundo Padilha (2006b, p. 48), “o flâneur é visto como uma figura transgressora que não se submete à ditadura dos horários ou aos deveres do consumidor, na medida em que ele não vai às compras e que apenas perambula pelas passagens dos comércios”.

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caminhavam tranquilamente pelas calçadas, e paravam em todos os lugares, davam a este fluxo humano uma certa delicadeza e tranquilidade que foi perdida. Agora é a torrente na qual você é engolfado, apertado, jogado à torto e à direita”. No final do XIX, o flâneur da primeira modernidade, acostumado ao ritmo lento das passagens, encontra dificuldade em se deslocar. A circulação pela cidade tornou-se certamente mais fácil e mais rápida, mas as imposições externas são também mais coercitivas, cada vez mais ameaçam sua liberdade individual. (ORTIZ, 2000, p. 19- 20, grifos nossos).

Não é objetivo aqui adentrar a essa discussão específica, porém, mais de um século depois, um vasto debate se segue entre os que advogam a favor da existência de um tipo específico de flâneur, compatível com as características das relações socio-metábolicas atuais; e, os que apontam seu fenecimento, dada a configuração sócio espacial das cidades contemporâneas (FEATHERSTONE, 2000; PASSOS et al., 2003; COVERLEY, 2014; SATURNINO, 2014):

As posteridades da flânerie baudelairiana são numerosas. (...) Fica a pergunta de saber se, na época atual, a padronização das placas com marcas comerciais (as “cadeias” como se diz sem ironia: elos por igual, que se fecham prendendo você) e o alastramento agressivo dos automóveis não teriam deixado a flânerie mais complicada, menos agradável e surpreendente. Criam-se, é fato, espaços para uma flânerie programada, mas vinculados à obrigatoriedade de comprar. (GROS, 2010, p. 182, grifo nosso).

Interessante notar que, “[...] ao aniquilar a antiga forma de propriedade e dispor dos meios para o livre desenvolvimento da valorização do capital, [o capital] começa ‘andar com seus próprios pés’” (MARX apud SANTOS, 2013, p. 101). E, quando o capital “começa a andar com seus próprios pés”, a classe trabalhadora passa a caminhar como uma fantasmagoria – “reificação das relações de produção”, e, por fim, o próprio caminhar se torna fantasmagoria também – “personificação das coisas”. Buscando retomar, ainda que de forma inconsciente, o andar espontâneo, não-estranhado, que o capital lhe usurpou, acaba se valendo da mediação do caminhar como mercadoria, reafirmando, no entanto, por sua própria condição fetichizada, a alienação da classe que vive do trabalho. No capitalismo contemporâneo, o caminhar como mercadoria “volta” ao trabalhador, por exemplo, nas formas de turismo/lazer, saúde/estética, então, como dupla negação: i) ao seguir dentro do contexto das relações sociais de produção onde a força de trabalho se locomove como mercadoria; e, ii) na tentativa do trabalhador superar sua condição de caminhante estranhado por meio do consumo do caminhar como mercadoria. Dessa forma,

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seguem insatisfeitas as condições subjetivas e objetivas das potencialidades do caminhar humano como expressão da omnilateralidade humana. A seguir, a partir de uma breve análise da teoria do valor marxiana, procurar-se-á investigar alguns conceitos chave, do ponto de vista formal, como: mercadoria, valor de uso, valor de troca, mais-valia, trabalho material/imaterial, trabalho produtivo/improdutivo, para se precisar a hipótese de que o caminhar se transforma, também, em mercadoria no capitalismo contemporâneo.

4.1 AS ESPECIFICIDADES DO CAMINHAR ENQUANTO MERCADORIA

No filme A árvore dos tamancos (1978), de Ermanno Olmi, obra-prima do neo- realismo italiano, encontra-se uma trama emblemática que ilustra exemplarmente o processo histórico em que o caminhar vai se transformando em atividade humana estranhada. A história narrada se passa em uma época não específica, onde reina a dubiedade presente entre as relações feudais em declínio, porém, persistentes, e as relações capitalistas emergentes. Os camponeses, protagonistas do longa-metragem, já não mais se enquadram completamente na condição social de servos, mas, tampouco, ainda, na condição de trabalhadores “livres” assalariados. Vivem e trabalham em terras que não lhes pertencem, sem qualquer normatização trabalhista que minimamente garanta sua proteção, encontrando-se, assim, sob o julgo da completa exploração do proprietário rural. A trama aqui analisada se situa no contexto onde uma das famílias camponesas se esforça para que seu filho mais novo possa ir à escola ao invés de trabalhar na lavoura, contrariando o “vaticínio” próprio de sua classe social. A escola se encontra muito distante do lugar de moradia dos camponeses, tendo a criança que caminhar um percurso hercúleo para poder chegar ao local de aprendizagem. Um dia, em uma de suas longas caminhadas, a sola do sapato do menino, um tamanco de madeira, se rompe, voltando para casa desacorçoado, pois sabe que esse pequeno incidente lhe trará grandes dificuldades para seguir frequentando as aulas, dada a “miséria estacionária” em que vive sua família. Líquido e certo, seu pai perde uma noite de sono matutando como conseguir outro sapato para o filho. Silenciosamente, decide dirigir-se ao campo, despistando-se dos olhares dos outros camponeses e, sobretudo, da vigilância constante do capataz da fazenda. Encontra uma árvore adequada e derruba seu tronco para fazer um novo tamanco. Após isso, cobre-a com gravetos e grama para que ninguém perceba que foi arrancada por meio de mãos

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humanas. O filme prossegue envolto em outras tramas cotidianas e, aparentemente, o segredo do camponês se encontra a salvo. Até que, já no final da película, ele é descoberto e, de forma dramática, junto com sua família, expulso da propriedade. Especificamente, a trama aqui descrita insere-se nas contradições e nos conflitos próprios às relações sociais de produção mediadas pela propriedade privada, que possui “papel fundamental no complexo sistema de classes e camadas sociais”. Independentemente do modo de produção em que se ambienta o filme, o que se observa é um “modo de exploração”, onde o monopólio da terra nas mãos de poucos produz a total submissão “da classe dos produtores diretos pela classe dos exploradores” (BOTTOMORE, 2012). Assim, a expropriação dos meios de produção das mãos de quem verdadeiramente produz, leva, como visto anteriormente, o produtor a reduzir “a si próprio e a sua humanidade” à condição de “animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estreitas necessidades corporais” (MARX, 2004, p. 31). Desse modo, as relações sociais de produção presentes no filme obstruem ou mesmo ceifam qualquer possibilidade de manifestação propriamente humana do ser genérico, como, por exemplo, no caso da criança: ter um sapato para poder caminhar rumo ao aprendizado escolar. Nesse contexto, portanto, a terra não é de quem nela produz, e, por conseguinte, também não são as árvores plantadas e cuidadas pelos camponeses. O que a trama do filme particularmente simboliza são relações sociais reificadas, presentes em outros modos de produção, mas que se intensificam no capitalismo, onde os camponeses são proibidos e drasticamente penalizados por buscarem realizar atividades elementares, pré-condições para a sua realização como seres humanos. “[Transformar] o antigo camponês num despossuído de seus meios habituais de reprodução de existência – tornando-o, portanto, dali em diante abstratamente possuído pela produção de mercadorias” (LINHARES, 2007, p. 49), representa a “inexorabilidade” histórica do capitalismo178. Tendo em mente a metáfora de A árvore dos tamancos, é no contexto de consolidação do sistema capitalista que os meios para um caminhar não estranhado são definitivamente retirados da classe trabalhadora. Além disso, é na contemporaneidade que um caminhar, em forma de simulacro179, passa a ser oferecido como mercadoria, com a (falsa)

178 Interessante notar que a história do filme em questão guarda similaridade com a primeira reflexão escrita, de cunho materialista, realizada por Marx, na Gazeta Renana, contendo uma crítica político-jurídica severa contra um projeto de lei prussiano da época, que previa a penalização pelo “roubo” de lenha, que condenava, particularmente, camponeses e pessoas pobres. 179 Oliveira parte da conceituação de Marilena Chaui para explicar a categoria simulacro, sendo esta “uma encenação, um espetáculo bem coordenado e dirigido, que em tempos de globalização e meio técnico-científico- informacional, forja uma falsa consciência, um falso consenso, principalmente quando amparado na mídia e na

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promessa de que tal atividade, pela via do consumo capitalista, lhes restituirá “as modalidades gozosas de fruição” (KEHL, 2009) reprimidas, recalcadas e “apagadas” metodicamente da memória coletiva. Mas, enfim, em que tipo de mercadoria constitui-se esse caminhar? De forma sucinta, para a teoria marxiana do valor, a mercadoria representa a forma elementar de acumulação do capital180, sendo que o “elemento que expressa o valor real das mercadorias é o trabalho” (SANTOS, 2013, p. 35). Marx, se contrapondo aos economistas liberais clássicos, procurou demonstrar o que havia de oculto na forma-mercadoria, para além da sua utilidade, claramente observável por todos. Se propôs a demonstrar o caráter fetichista da mercadoria no sistema capitalista, ao afirmar que, apesar de se constituir como um objeto concreto que possui utilidade específica e pode ser ofertado no mercado, o que a define é o fato de ser produto das relações sociais de trabalho. Assim, “o valor de uma mercadoria não é determinado pelo trabalho objetivado, materializado nela, mas pela quantidade de trabalho vivo socialmente necessário para produzi-la” (SANTOS, 2013, p. 53). Partindo de uma concepção dialética de análise, a teoria do valor marxiana afirma que a forma-mercadoria possui dois aspectos, características a priori, que se relacionam e se determinam mutuamente: valor de uso e valor de troca. Como mencionado acima, toda mercadoria deve possuir qualidades próprias que atraiam a necessidade ou o desejo, inclusive, do espírito humano para serem consumidas, ou seja, devem possuir valor de uso. Se uma mercadoria não possui qualquer utilidade, então, o trabalho concreto empregado para a sua confecção tampouco o possui, sendo que “[...] o trabalho útil é uma externa necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza, e, portanto, da vida humana” (MARX, apud HARVEY, 2013a, p. 36). Por sua vez, o outro aspecto definidor da forma-mercadoria, o valor de troca, é definido por “algo que faz com que todas as mercadorias sejam comensuráveis na troca” (HARVEY, 2013a, p. 27) – porém, “expressão de um conteúdo distinguível” (SANTOS, 2013). Esse “algo”, “quantitativo e homogêneo”, e que “expressa algo igual” é o “elemento a partir do qual as relações de troca das mercadorias com diferentes utilidades se estabelecem, nas mais variadas proporções” (SANTOS, 2013, p. 48), que, para Marx, se define como tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir a mercadoria.

constatação de especialistas e cientistas, promotores da ‘verdade’ absoluta” (OLIVEIRA, 2011, p. 113) e acrescenta: “[o] simulacro não é um protótipo de algo já constituído: é, ‘o momento em que uma encenação se transforma em realidade universalmente aceita’” (OLIVEIRA, 2011, p. 172). 180 Para a teoria marxiana do valor, o capital “aparece (...) como um processo social total, tornando absolutos, de um lado, a produção de bens e serviços sob a forma de mercadoria na qual há trabalho excedente, e de outro o regime de trabalho assalariado” (SANTOS, 2013, p. 105).

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Importante ressaltar, também, que o trabalho abstrato “socialmente necessário” é historicamente determinado pela criação de “um mercado mundial que foi introduzido pelo modo de produção capitalista” (HARVEY, 2013a, p. 29). Concomitante a isso, “[...] tornar o processo de trabalho isolado em processo de trabalho coletivizado [foi] a primeira modificação executada pela subsunção real do trabalho ao capital” (SANTOS, 2013, p. 101). Somente assim foi possível estabelecer uma “unidade social média de trabalho homogêneo”, de forma abstrata. Esse aspecto dual da relação entre valor de uso e valor de troca, portanto:

(...) permite que [Marx] formule a definição crucial do valor como “tempo de trabalho socialmente necessário”, que “é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições socialmente normais existentes e com grau social médio de destreza e intensidade do trabalho. (MARX apud HARVEY, 2013a, p. 30).

Ainda no sistema capitalista, a exploração da “força de trabalho socialmente combinada”, mediada pela concentração da propriedade privada dos meios de produção na mão de poucos, além de produzir mercadorias que contêm valor de uso e valor de troca, gera também valor excedente, sendo que os meios para a extração dessa mais-valia se limitam, de maneira simplificada, a duas realidades: i) pelo “prolongamento máximo” da jornada de trabalho – trabalho vivo que produz a mais-valia absoluta; e, ii) por meio do trabalho morto, ao se incrementar continuamente o “desenvolvimento técnico com vistas a alcançar índices maiores de produtividade do trabalho e decorrente maximização da extração de mais-valia relativa” (SANTOS, 2013, p. 123). Diante desse breve e simplificado cenário acerca da forma-mercadoria na teoria marxiana do valor, retoma-se a pergunta anterior: “que tipo de mercadoria constitui esse caminhar?”, para se tecer, em seguida, uma análise concreta da sua existência no capitalismo contemporâneo.

4.2 CONCEITUANDO O CAMINHAR COMO MERCADORIA-SERVIÇO

A partir de uma perspectiva mais ampla do capital global, em que “a presença cada vez mais determinante do valor mercantil como mediação das relações sociais” (LINHARES, 2007, p. 27) se torna universal, parte-se da ideia de que o caminhar em si não é uma mercadoria, mas o serviço caminhar, oferecido no mercado, em suas várias modalidades, como se verá a seguir, sim, o é.

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Quando se afirma que, analiticamente, o caminhar se torna mercadoria, não se está aqui objetificando o caminhar, ao contrário, parte-se da premissa marxiana de que o serviço oferecido de caminhadas é a externalização estranhada das relações sociais de produção. Assim, “ao elevar-se como esfera separada e hegemônica em relação a todos os outros momentos sociais, a economia do valor impôs ao mundo o movimento abstrato e corrosivo de suas categorias” (LINHARES, 2007, p. 12). Como ponto de partida, afirma-se que o caminhar como mercadoria, aqui analisado, é oriundo de atividade imaterial, insere-se na categoria serviços e varia em relação a sua produtividade ou não dentro do circuito do capital. Ao realizar tal afirmação, é importante salientar que existe todo um debate sobre a capacidade ou não das atividades de serviço gerarem valor, mesmo dentro da teoria valor trabalho, ativado “principalmente, após as mudanças engendradas no âmbito da reestruturação produtiva da década de 1970, marcada pela diminuição dos postos de trabalho na fábrica” (SANTOS, 2013, p. 21). Não constitui objetivo, aqui, aprofundar essa discussão, porém algumas breves considerações serão levantadas a fim de se contextualizar a forma mercadoria-serviço em que se insere o caminhar (SANTOS, 2013; DAL ROSSO, 2014). De partida, como visto no Capítulo 1, corrobora-se aqui a ideia de que a produção de valor transcende o espaço da fábrica, em “uma noção ampliada de indústria”, na contemporaneidade (FERRARI, 2008; HARVEY, 2005; SANTOS, 2013), espraiando-se pelos diversos rincões das cidades, por meio da reestruturação das relações de produção, sob a batuta da precarização e da terceirização das relações de trabalho. Essa “noção ampliada de indústria” implica não somente a ampliação espacial da produção de valor, por meio da realização do trabalho material em outros espaços que não o da fábrica, como também, através do trabalho imaterial, onde “os resultados finais [de outros ramos produtivos que não os tradicionalmente industriais] não se corporificam em efeitos úteis imediatos” (SANTOS, 2013, p. 119), ou em mercadorias materiais, físicas. Nesse sentido, “uma teoria do valor baseada nos critérios de medição empírica [quantitativista] do resultado do trabalho não é capaz de explicar a inserção do trabalho imaterial na produção capitalista” (SANTOS, 2013, p. 24). Assim, é importante ressaltar que, para a teoria do valor em Marx, “[...] mercadorias são produzidas para saciar necessidades materiais ou para atender a desejos da fantasia” (MARX, 1975). Desejos do espírito, que não são aportes da modernidade e são encontrados em todos os momentos da história humana, podem ser também mercadorias,

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atendidas certas condições” (DAL ROSSO, 2014, p. 80). Ainda sobre a distinção entre trabalho material e imaterial, Santos (2013) acrescenta:

(...) a necessidade de ouvir melodias agradáveis à fantasia humana só pode ser suprida pela atividade na qual o homem extrai sonoridades de objetos ou das cordas vocais sob a forma de música audível aos ouvidos humanos. O valor de uso produzido é adequado a um tipo de consumo específico: uma música só pode ser consumida imaterialmente, e o alimento que sacia a fome só pode ser consumido materialmente. (SANTOS, 2013, p. 73).

Desse modo, dentre os diversos ramos produtivos que se realizam por meio da “exploração da mais-valia gerada pelo trabalho [imaterial]”, encontra-se o setor de serviços, bem como o dos bens culturais e da informação, por exemplo. Especificamente, além de o setor de serviços se encontrar articulado com o setor industrial, já que muitos serviços se realizam com a finalidade de, ou mediante consumo de algum artigo concreto, seu “próprio processo de produção” se realiza, justamente, enquanto processo. Nessa medida, “trabalho imaterial [é] todo trabalho humano cujo resultado útil seja predominantemente imaterial, mesmo quando há necessidade de mediações de objetos materiais para que este trabalho imaterial seja efetivado enquanto utilidade” (SANTOS, 2013, p. 15). Com o objetivo de ilustrar o setor de serviços no momento em que floresciam as indústrias de comunicações e transportes de navegação e ferroviário, por exemplo, Marx teceu a seguinte reflexão:

O que a indústria de transportes vende é a própria mudança de lugar. O efeito útil produzido está inseparavelmente ligado ao processo de transporte, isto é, ao processo de produção da indústria de transporte. Homens e mercadorias viajam com o meio de transporte, e seu deslocamento, seu movimento no espaço, é precisamente o processo de produção que se realiza. O efeito útil só pode ser usufruído durante o processo de produção; não existe como objeto de uso diverso desse processo, objeto que funcionasse, depois de ser produzido, como artigo, que circulasse como mercadoria. (MARX apud SANTOS, 2013, p. 130).

No período em que Marx escreveu, o setor de serviços não possuía qualquer relevância econômica “na totalidade da produção capitalista” em comparação com o setor produtivo tradicional, diferentemente de hoje que existe um crescimento vertiginoso deste setor “como empregador de mão de obra”. Por isso:

[...] segundo o Manual on statisstics of international trade in services (ONU, 2010), os serviços – definidos como bens intangíveis vendidos no mercado – são os maiores receptores de fluxos de investimento internacional, sendo

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responsáveis por cerca de 60% dos investimentos produtivos globais no período de 2005 a 2007. (SANTOS, 2013, p. 11).

Não se deve perder de vista que, aqui, o que se busca é compreender o caminhar como mercadoria-serviço, oriundo de trabalho imaterial, variando em relação à sua produtividade ou não dentro do circuito do capital. Porém, antes disso, partindo do geral para o particular, resta tecer uma breve reflexão sobre os conceitos de trabalho produtivo e improdutivo relacionados ao trabalho imaterial no setor de serviços, de uma forma geral. Em diálogo com Marx, Dal Rosso afirma que “o grande setor de emprego em serviços pode ser dividido de acordo com as categorias de trabalho produtivo e não produtivo de valor” (DAL ROSSO, 2014, p. 87) e que, por ser oriundo de atividade imaterial, pode ser produtivo, “desde que atenda ao critério de ‘gerar diretamente mais-valia’” (DAL ROSSO, 2014, p. 82). Por isso, a primeira noção que se deve ter em conta é a de que a geração de mais-valia pode se dar de maneira direta ou indireta. Assim, no caso de um trabalho improdutivo, apesar de não gerar mais-valia, pois apenas troca serviço por remuneração (geralmente na forma de dinheiro), ainda assim, contribui indiretamente para a concretização do circuito do capital. “[...] As formulações de Marx indicam que mesmo os trabalhos imateriais improdutivos não se encontram independentes e livres da atividade capitalista, exercendo função importante na valorização do capital” (SANTOS, 2013, p. 140). Os produtos originados desse trabalho improdutivo se constituem mercadoria, uma vez que, estabelecidos, não possuem valor de uso para o produtor, apenas “utilidade social para terceiros”, sendo que, “[...] para que o valor seja realizado, a mercadoria necessita percorrer seu circuito completo, da produção ao consumo” (DAL ROSSO, 2014, p. 75). Sendo assim, se o trabalho improdutivo, de alguma forma, colaborar para o consumo de mercadorias capitalistas, ele, por sua vez, faz, necessariamente, parte do processo global capitalista. Por sua vez, para que haja geração direta de mais-valia é necessário que relações sociais de produção específicas, como a propriedade privada dos meios de produção e o regime de trabalho assalariado, por exemplo, estejam presentes na valorização do capital, por meio da atividade produtiva. Nessas condições, o valor-trabalho contido em uma mercadoria é a única grandeza capaz de “gerar diretamente mais-valia”, “e não a materialidade ou imaterialidade do conteúdo ou do produto” (DAL ROSSO, 2014, p. 82-83).

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De maneira simples e direta, Dal Rosso resume a diferença entre trabalho improdutivo e trabalho produtivo de uma atividade imaterial do setor de serviços da seguinte forma:

[...] as atividades desenvolvidas nos setores de serviços são improdutivas quando organizadas de maneira a trocar serviços por remuneração, mesmo que envolvendo algum substrato material, como livros, quadros, obras de arte, softwares; e são produtivas, quando organizadas como meio para ampliar o capital inicialmente investido. (DAL ROSSO, 2014, p. 83).

Sendo assim, “nem todo assalariado é trabalhador produtivo” (SANTOS, 2013, p. 105). Ainda Dal Rosso, em relação à geração de mais-valia direta (oriunda da produção de valor na esfera da produção) ou indireta (resultante da geração de valor nas esferas da circulação e do consumo) da atividade imaterial no setor de serviços, dialoga com o economista Isaac Rubin, trazendo os seguintes exemplos:

Há serviços que se materializam imediatamente em produtos, o que torna mais fácil o reconhecimento da presença de mercadorias, de valor e de mais valor, por assumirem uma forma material, na expressão de Rubin (1972). Em belas artes, pintura, escultura, desenho, arquitetura, fotografia e cinema apresentam separadamente a fase da produção e do consumo, completando claramente o processo de comodificação. O circuito de produção, circulação e consumo coloca-se como necessário para que a obra de arte passe pelo mercado e realize, assim, seu valor. Outros não, pois produção, circulação e consumo realizam-se ao mesmo tempo, como é o caso de shows, apresentações musicais e teatrais, balés, danças, as artes de performance e outras modalidades artísticas. A produção simultânea à circulação e ao consumo não impede que o serviço seja entendido como produtivo de valor, uma vez que importa a presença do trabalho assalariado, da mercadoria e da mais valia. (DAL ROSSO, 2014, p. 86, grifos nossos).

Diante dessa contextualização abstrata da forma mercadoria-serviço, vale destacar, ainda, que a mesma atividade profissional pode ser produtiva ou improdutiva. Como visto acima, depende da organização das relações de produção na qual se encontra inserida. “[...] Se organizada sob a forma de uma exploração do trabalho vivo por indivíduo ou empresa” é atividade produtiva. Se “significa[r] simplesmente a troca de serviços por dinheiro” é improdutiva (DAL ROSSO, 2014, p. 82). Após essa breve exposição da forma mercadoria-serviço, a partir da teoria do valor em Marx, pretende-se utilizá-la, à luz de um exame particularizado da hipótese aqui levantada de que o caminhar se torna mercadoria na sociedade capitalista contemporânea, na

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investigação concisa de dois casos hipotéticos empíricos181. Os exemplos em questão se encontram inseridos no setor de serviços turísticos que oferecem passeios de caminhadas no campo – por exemplo, o trekking182 – como atividade a ser consumida. Cabe destacar que, no item 4.3.1., serão exemplificadas outras manifestações do caminhar como mercadoria. Do ponto de vista do circuito do capital, a indústria do turismo – responsável pela produção, circulação distribuição e consumo de mercadorias – é responsável por articular um conjunto amplo de atividades materiais e imateriais, que inclusive transcendem sua própria esfera de atuação, correspondendo desde as áreas de transporte e alimentação, passando pela oferta de alojamento, recreação, vestuário e equipamentos diversos, etc. Além disso, pode variar em relação às suas várias demandas sociais, como, por exemplo: esporte, aventura, “natureza”, saúde, religião, trabalho/negócios, recreação, histórico-cultural, etc. (LEMOS, 2003). Regressando aos exemplos a serem aqui analisados, o serviço turístico de passeios de caminhadas no campo – atividade imaterial, ainda que amparada por trabalhos materiais, como a utilização de equipamentos de segurança e conforto, alimentação, vestuário, veículo para transporte, edificações para se dormir, etc. –, pode se constituir como serviço improdutivo, não se submetendo ao capital. Ou pode se inserir na categoria de trabalho produtivo, ao gerar mais-valia.

181 Importante registrar o diálogo direto estabelecido com o sociólogo Vinícius Oliveira Santos, que trouxe elucidações fundamentais para o estabelecimento dos contornos formais do caso hipotético empírico a ser a seguir analisado, ressaltando que eventuais erros e imprecisões na análise são de completa responsabilidade da autora. 182 A origem da palavra trekking, em inglês, remonta às atividades migratórias do período da colonização inglesa pelo mundo. Trek significa migrar. O uso contemporâneo do termo significa: “modalidade esportiva, que nada mais é do que uma caminhada em trilhas, com paisagens naturais, muitas vezes deslumbrantes”. Existem vários tipos de trekking, dentre eles destacam-se: “Independente - viaja sozinho, organiza, planeja a rota, escolhe o equipamento, compra as provisões, estuda o clima. A viagem é mais econômica e flexível em datas e caminhadas fora do roteiro pré-determinado. É necessário ter experiência para praticar”. “Organizado - para aventureiros que não têm experiência e desejam se aventurar em lugares de difícil acesso e ou desconhecidos, passando a responsabilidade da organização e infraestrutura para guias locais ou empresas especializadas”. “Assistido - É um estágio intermediário entre os dois anteriores. Nesse caso, você mesmo, ao chegar no local a ser visitado, escolherá e contratará os carregadores, guias, comprará os mantimentos e demais equipamentos coletivos. Este tipo de viagem possibilita uma maior interação com os nativos, além de contribuir para a economia local”. “de Competição - Também chamado de ‘enduro a pé’, é uma modalidade recente no Brasil. Semelhante ao enduro de carros de regularidade, equipes de três a seis pessoas tem que percorrer um caminho pré-estabelecido por uma organização, no meio da natureza, no menor tempo possível, seguindo as indicações de um mapa”. Disponível em: . Acessado em: 13 jun. 2015.

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O primeiro exemplo hipotético empírico, referente ao caminhar como serviço improdutivo é o de uma família, residente nas imediações de um parque nacional brasileiro183 – área protegida como unidade de conservação da natureza –, que inicia um negócio de ecoturismo, com serviços de pacotes de longas caminhadas, que duram alguns dias, no interior do parque, contendo guias especializados para orientar, motivar e facilitar o caminho a ser percorrido, além de prestarem auxílios de primeiros socorros, contando também com equipamentos de acampar, recreação e alimentação, etc. No caso desse empreendimento estritamente familiar, a atividade comercializada em questão é oriunda de trabalho imaterial improdutivo, já que não é mediada pelo binômio das relações sociais de produção: propriedade privada dos meios de produção e venda da força de trabalho mercadoria. Assim sendo, não produz mais-valia, mas, sim, troca o seu serviço por dinheiro para adquirir outros produtos de utilidade própria, mantendo a continuidade desse fluxo de produção e consumo de valor de uso e valor de troca para suprir necessidades cotidianas de sobrevivência. Assim: “(...) por exemplo, não é suficiente para acumulação, mas simplesmente para manter uma estrutura no que se refere ao pagamento de impostos, aluguel, entre outros” (MARTONI, 2012, p. 76). Porém, por todo o acima exposto, esse negócio familiar contribui, de alguma forma, para a concretização do circuito do capital. Ainda que improdutivo, possui relevância no processo global capitalista. Por outro lado, devido às “tendências inerentes” ao próprio processo de acumulação capitalista, em um segundo exemplo, pode-se afirmar que o mesmo serviço de caminhada no campo, também pode se inserir na lógica do trabalho produtivo, desde que esteja a cabo, por exemplo, de uma agência de ecoturismo184, possuindo funcionários assalariados (dentre eles, trabalhadores que realizam atividades centrais na empresa, como os guias de turismo que conduzem as caminhadas), onde “o dono do capital assume a gerência do processo de trabalho [e] sua finalidade é a produção aumentada de mais- valia” (SANTOS, 2013, p. 89).

183 Segundo o artigo 11 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC – o parque nacional, dentre os diversos tipos de unidades de conservação, “tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico”. Disponível em: . Acessado em: 25 set. 2015. 184 Como bem ressaltou Vinícius Oliveira Santos, em diálogo direto com a autora, “a caminhada não precisa estar necessariamente sob o comando de uma agência de turismo para que se constitua enquanto trabalho produtivo, para isto, basta que a relação social de trabalho dentro do negócio possua a necessidade da mediação do trabalho assalariado em suas atividades centrais (contratação de guias, recepcionistas, serviços de informação em geral etc.). O assalariamento desses/dessas profissionais será, logicamente, mais barato que o produto que geram. Em outros termos, ele mobiliza um valor maior que o que é pago ao trabalhador”.

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Além disso, também devido às “tendências inerentes” ao próprio processo de acumulação capitalista, a probabilidade de que o negócio estritamente familiar se expanda, escapando dos limites da atividade improdutiva é alta, devido à própria dinâmica concorrencial imposta por esse modo de produção185. Assim, a detenção de meios de produção e o comando da mercadoria força de trabalho na forma de assalariamento, nas mãos de capitalistas (que pode ser a própria família em questão), criam as condições sociais necessárias para a geração de mais-valia. Esse processo de estrangulamento das “formas coletivas de trabalho”, por meio da concorrência, ao substituir relações improdutivas pelo “trabalho assalariado produtivo”, constitui a mola propulsora do sistema capitalista, que, devido a sua própria “natureza”, se espalha avassaladoramente pelas relações de produção e reprodução social. Diante desses dois exemplos que compõem o cenário produtivo-organizativo em que o caminhar como mercadoria se insere, Martoni (2012) chama atenção para “a hiper- expansão do setor [“de serviços, incluindo as atividades relacionadas ao turismo”] nas últimas quatro décadas”, em decorrência da reestruturação produtiva do regime de acumulação flexível, apontando para o retrocesso de algumas conquistas históricas da classe trabalhadora, acrescentando que, “[...] não é por acaso que em 2011, os serviços foram mais procurados que as indústrias por investimentos estrangeiros diretos no Brasil, sendo esta uma tendência para os próximos anos” (MARTONI, 2012, p. 78). Após essa breve conceituação e exemplificação do caminhar como mercadoria- serviço, a partir da teoria do valor em Marx, buscar-se-á a seguir analisar outros exemplos desse tipo de caminhar, tanto no campo, como na cidade, onde as relações cotidianas no espaço de reprodução social se intensificam como mercadoria, independentemente de sua produtividade ou improdutividade.

4.3 O OLHAR DA MEDUSA E O CAMINHAR SE TRANSFORMA EM MERCADORIA

Lefebvre realiza um exercício imaginativo sobre a possibilidade de, no capitalismo contemporâneo, os elementos da natureza, como o ar e a luz, chamados pelo autor de “as novas raridades”, virem a “perder sua natureza”, tornando-se mercadorias – “bens

185 A ideia de que há uma tendência presente de os empreendimentos improdutivos serem solapados ou absorvidos por atividades produtivas, sobretudo devido à concorrência oriunda das próprias relações sociais de produção estabelecidas no capitalismo, foi salientada por Vinícius Oliveira Santos, em diálogo direto com a autora. Santos ainda ressalta que, no exemplo em questão, essa dinâmica se dá muitas vezes pela concorrência dos “não nativos” que chegam a esses lugares com o objetivo de explorar a potencialidade desse mercado.

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produzidos”. “Vê-se chegar o momento em que o ar será filtrado acima das aglomerações, ao redor das cidades. De fato, ele já é um produto industrial no “ar condicionado” (LEFEBVRE, 2008, p. 123). “Os ‘elementos’, com seus envoltórios espaciais, ganham, portanto, valor (de troca e de uso). Eles entram nos circuitos das trocas: produção – repartição – distribuição. Eles integram as riquezas e, por conseguinte, dependem da economia política” (LEFEBVRE, 2008, p. 123). Mantendo as devidas proporções, é bastante ilustrativa a reflexão de Lefebvre (2008) para se pensar o caminhar como mercadoria. Seguramente, o caminhar não figura entre os elementos da natureza elencados pelo autor. O caminhar, sim, é atividade humana e, como visto no Capítulo 3, se expressa das mais variadas formas no tempo e no espaço. Porém, por outro lado, a promessa do caminhar como atividade não-estranhada passa a se constituir como “nova raridade”, no capitalismo contemporâneo, e como tal, entra “nos circuitos das trocas”, como observado acima. Sendo assim, o caminhar como mercadoria é um “indicador” para se compreender o urbano contemporâneo. Em meio à dinâmica das cidades capitalistas, com a liberação do “tempo cíclico da produção”, em contraposição aos “antigos ritmos cíclicos das sociedades pré-industriais” (LINHARES, 2007); juntamente com a supressão das limitações do espaço para a circulação das mercadorias, expulsando progressivamente a realização de atividades não-produtivas nos espaços coletivos urbanos, o caminhar como mercadoria encontra um “nicho de mercado” perfeito para a sua proliferação. Este caminhar se insere, assim, em um mundo onde a lógica produtivista embrenhou não só a esfera da produção, como a da reprodução social. Amparada pela ideologia da “busca da felicidade” – “o ‘novo’ Leitmotiv do mundo gerencial do capitalismo contemporâneo” –, e do “ócio criativo”, dentre outras, encontra nessa contradição186 um dos combustíveis adequados para a aceleração do circuito do capital, ao estimular o constante consumo de mercadorias para se atingir o inatingível: a felicidade. No entanto, “se a onda é a do ideário da felicidade, a pragmática que prolifera é a da corrosão” (ANTUNES, 2012)187. Ainda em relação ao discurso do mundo gerencial, as caminhadas ao ar livre vêm sendo incentivadas como forma de se “fortalecer a vida empresarial”. Por meio da modalidade trekking, por exemplo, advoga-se que tais caminhadas contribuem para se desenvolver “a

186 Antunes afirma que “a busca da felicidade (...) está em descompasso com a guerra das empresas globais em sua competitividade destrutiva. Esse descompasso faz com que o paralelo acabe por entrar em curto-circuito, e quando isso ocorre, são os ‘de baixo’ que acabam pagando a conta” (2012). Disponível em: . Acessado em: 23 set. 2015 187 Artigo A fatura do bem-estar, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 16-09-2012. Disponível em: . Acessado em: 23 set. 2015.

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serenidade e a força necessárias para que executivos consigam atingir suas metas, mesmo as mais ousadas”. Em entrevista ao Portal IG, Marcio Moniz Chafino, engenheiro de 40 anos é um assíduo praticante de trekking, com mais de 12 roteiros realizados em seu “curriculum”, dentre eles, Tanzânia, Argentina, Bolívia e Venezuela. Chafino (apud CORREIA; FURLAN, 2013) realiza as seguintes analogias ao se referir sobre a importância e a influência do trekking em sua vida profissional:

(...) se não tiver concentração, força de vontade e preparação não entregará os resultados esperados. “Atividades como esta me dão força para alcançar meus objetivos profissionais, assim como também busco força na vida profissional para chegar ao cume ou ao fim de cada caminhada”. (CHAFINO apud CORREIA; FURLAN, 2013, s/p, grifos nossos).188

A prática do trekking, por sua vez, permitiria aos seus praticantes o contato direto corporal com dimensões, como as de aventura e de “risco desejado” que, por sua vez, se incorporariam ao cotidiano laboral e afetivo-familiar dos adeptos. Dentre as “funções edificadoras do risco-aventura”, Spink destaca algumas elencadas em reportagens nos meios de comunicação: “a) O fortalecimento do caráter; b) A aprendizagem de flexibilidade e decisão nos programas de treinamento e desenvolvimento gerencial; c) Ou ainda, a busca de novos espaços para o fortalecimento dos laços familiares” (SPINK, 2001, p. 1285). Nesse sentido, uma das hipóteses a serem destacadas é que o “nicho de mercado” do caminhar como mercadoria ganha espaço na contemporaneidade por um movimento duplamente contraditório. Devido à prevalência de relações estranhadas no capitalismo e, apesar dela, o ser humano busca a realização de suas necessidades materiais e desejos do âmbito da realização do espírito, ainda que na forma alienada189 e reificada, por meio do consumo de mercadorias, estimulado por “apetites artificiais”, de caráter “coercitivo inconsciente”. Por meio desse consumo passivo e individualista, o ser humano não exerce o “primeiro ato histórico (...) de sua primeira necessidade”, que é: a “atividade humana produtiva” de criação (MÉSZÁROS, 2006, p. 108). “[...] O homem, devido à alienação, não se apropria de ‘sua essência omnilateral como um homem total’, mas limita sua atenção à

188 Disponível em: http://economia.ig.com.br/carreiras/2013-02-01/caminhadas-ao-ar-livre-fortalecem-a-vida- profissional.html. Acessado em: 18 mai. 2015. 189 Para Marx, “[...] uma negação adequada da alienação é, portanto, inseparável da negação radical das mediações capitalistas de segunda ordem [: propriedade privada- intercambio - divisão do trabalho] (MÉSZÁROS, 2006, p. 82).

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esfera da mera utilidade. Isso acarreta um extremo empobrecimento dos sentidos humanos” (MÉSZÁROS, 2006, p. 182):

[...] pois, se tudo está subordinado à necessidade de acumulação de riqueza, é irrelevante se as necessidades assim criadas são propriamente humanas, ou se são necessidades indiferentes, ou mesmo desumanizadoras. Marx escreve que “cada homem especula sobre como criar no outro uma nova carência, a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em nova sujeição”; e escreve que “a expansão dos produtos e das carências o torna escravo inventivo e continuamente calculista de desejos não humanos, requintados, não naturais e pretenciosos”. (MÉSZÁROS, 2006, p. 134, grifos do autor).

Partindo dessa perspectiva, Linhares (2007, p. 06) analisa as festas carnavalescas “como guetos segregados de diversão e entretenimento”, a fim de se compreender o processo de reificação das relações urbanas contemporâneas. O autor afirma a persistência de um “encantamento no desfile carnavalesco”, como promessa de realização de “[...] um sentido absolutamente humano para a atividade de troca do homem com o mundo”, “apesar do seu processo de mercantilização, [despedaçado] em atividade isolada dentro deste conjunto eclético e deteriorado que chamamos ‘tempo livre’” (LINHARES, 2007, p. 06). A festa carnavalesca, como ato historicamente subversivo, foi solapada, abrindo espaço para a emergência de uma festa espetacularizada, “[deixando] de ser aquela poderosa centralidade de décadas atrás, a manifestação concreta do avanço e do brilho da sociedade urbana, para estabelecer-se no pseudo-centro dos entretenimentos programados” (LINHARES, 2007, p. 176). Importante ressaltar que, ainda na consolidação da sociedade industrial, ou seja, já sob o reino da completa expropriação “de seus antigos meios de reprodução da vida”, o trabalhador, todavia, vinculado aos seus antigos parâmetros de socialização e valores coletivistas, “ainda não havia perdido completamente o sentido do uso das coisas”:

Seu gosto pelos jogos e banquetes – pela festa, portanto – constata de maneira assertiva este fato: “Os proletários não economizavam. Recebem de suas origens agrárias e transmitem um certo gosto pelo bem viver (a boa cozinha) e um sentido de festa que os pequenos burgueses e os burgueses destroem” (LEFEBVRE, 1991b, p. 42). Ora, onde houve dispêndio festivo de objetos, ele necessariamente realizou-se como dispêndio festivo de tempo. Assim, fora de sua jornada de trabalho, o trabalhador mantinha ainda um certo sentido de uso do tempo. Mas este qualitativo vivido, obviamente, existia apenas como prolongamento de uma outra época. (LINHARES, 2007, p. 37-38, grifos nossos).

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É com o avanço do capitalismo e seus processos coercitivos e de inculcação ideológica que “o sentido de uso do tempo” é roubado da classe trabalhadora. Não só o sentido, como o próprio tempo. Dessa forma, toda a ideia de separação entre tempo de trabalho e tempo de lazer, sendo o lazer aprisionado no fim de semana e nas férias, foi sendo imposta na constituição do mundo urbano capitalista (RYBCZYNSKI, 2000). Cabe destacar, mais uma vez, que a ideia de um tempo pré-determinado e fixo destinado a atividades relacionadas ao mundo do não-trabalho é uma criação do próprio do sistema capitalista para controlar o trabalho e a própria vida da classe trabalhadora. E que, ao longo da história, esse tempo livre que, em tese, seria não produtivo, foi sendo rapidamente apropriado pelo capital, em sua forma “empreendimento de lazer”. “Começando no século XVIII com os esportes profissionais e as viagens de recreio, a ideia moderna de lazer pessoal surgiu junto com o empreendimento de lazer. Um não existiria sem o outro” (RYBCZYNSKI, 2000, p. 106). Em diálogo com Adorno e Horkheim, Padilha (2008) chama a atenção para o fato de que a diversão, assim como o lazer:

(...) é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho. [...] Do processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode fugir adequando-se a ele mesmo no ócio. (ADORNO; HORKHEIM apud PADILHA, 2008, p. 111, grifos nossos).

A ilusão de que, durante o fim de semana, por exemplo, o tempo pertenceria ao trabalhador e que esse tempo poderia ser usado como ele bem o entendesse, guarda uma série de ocultações contraditórias que se exacerbam na contemporaneidade. Assim, é possível observar que o tempo do não-trabalho vem sendo cada vez mais consumido pelo tempo do trabalho, por intermédio das novas tecnologias, por exemplo. A luta histórica pela redução e regulamentação da jornada de trabalho, parcialmente conquistada por parte da classe trabalhadora vai, pouco a pouco, perdendo seus limites, sendo invadida por uma “sutil” avalanche de demandas produtivas externas ao tempo e ao local de trabalho:

A Google, ao oferecer condução para seus “colaboradores”, com Wi-Fi para que possam conectar-se e laborar antes mesmo do horário de trabalho começar e ainda ofertar lavanderia para seus “colaboradores”, não estaria se apropriando do tempo de trabalho de seus engenheiros e programadores? E a

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Atlasian, produtora australiana de software, ao criar o FedEx Day, “um dia de trabalho a cada trimestre no qual os funcionários ficam livres para trabalhar no que desejarem, com o único compromisso de entregar algo à empresa no dia seguinte”, não estaria fazendo o mesmo? O resultado: em 18 realizações do dito-cujo, “550 projetos foram apresentados e 47 projetos ou aprimoramentos foram entregues a clientes da companhia”. Não é preciso dizer que a ideia do FedEx Day se espalhou pela “aldeia global”, pois instilar “ócio criativo” traz mesmo é aumento da massa de mais valia, através da subordinação dos trabalhos imateriais à forma-mercadoria. (ANTUNES, 2012, s/p).190

Retomando, é possível afirmar que o contexto alienado das festas carnavalescas contemporâneas, por exemplo, se encaixa perfeitamente na realidade do caminhar como mercadoria. Também a perda progressiva do seu caráter subversivo, como visto anteriormente, no Capítulo 3, sendo sua realização forçadamente direcionada a espaços e tempos pré-definidos, constituindo-se como uma “pausa”, um “respiro”; para o reestabelecimento das rotinas laborais, afasta o caminhar do rol de atividades humanas não estranhadas, libertas, no sentido de “auto-realização no exercício autodeterminado e externamente não-impedido dos poderes humanos” (MÉSZÁROS, 2006, p. 170). Assim, atualmente, é sobretudo no fim de semana e nas férias que se pratica o Wandern191, como “estratégia”, porque não dizer “gerencial”, de adaptação alienada ao “aperto da cidade, da pressa da existência civilizatória (...). E não é por acaso que, precisamente na metrópole Berlim, na virada do século, tenha surgido o Wandervogel” (BOLLNOW, 2008, p. 125):

(...) o Wandern é uma ocupação de fim de semana, i.e. um relaxamento essencialmente temporário da seriedade da vida profissional. Nessa volta à origem em que consiste o Wandern em virtude de sua essência mais profunda, o homem deveria se regenerar, rejuvenescer, mas assim também deveria voltar rejuvenescido à seriedade de sua vida, para lá realizar suas tarefas. (...). Pois é dentro do ócio compreendido de maneira sensata que o Wandern contém seu grande significado no contexto geral da vida humana. (BOLLNOW, 2008, p. 130, grifos nossos).

190 Artigo A fatura do bem-estar, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 16-09-2012. Disponível em: . Acessado em: 23 set. 2015. 191 Segundo Bollnow (2008, p. 119), “[...] entre as diversas variantes do cômodo caminhar, mais ou menos preguiçoso, interessa-nos em especial o Wandern. Adiantamos aqui uma definição aproximada e provisória, somente para efeitos de orientação: entendemos por Wandern um movimento a pé, de certa importância, sem pressa, sem um objetivo externo, ininterrupto, de um lugar para o outro”. “Os Wandernde Handwerkbursche (aprendizes peregrinos) do passado ou os Fahrende Schüler (colegiais viajantes) não praticavam o Wandern no sentido atual. Eles iam para o estrangeiro aprender, por certo não sem uma alegria na aventura de conhecer o mundo. E iam a pé por ser esse o modo mais simples, e por não terem acesso a outro tipo de transporte” (BOLLNOW, 2008, p. 120).

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Nesse duplo movimento contraditório específico de se buscar “escapatórias” para a realidade estranhada das cidades, por meio do caminhar como mercadoria, observa-se um movimento dual mais geral, relacionado à condenação e ao estímulo exaustivo simultâneo do caminhar na sociedade capitalista atual. Por um lado, como foi possível observar até aqui, existe um conjunto de ações e discursos, no âmbito da organização das cidades, que negam o caminhar com atividade humana não estranhada. Por outro, mediante essa negação, o caminhar só passa a ser afirmado em sua expressão estranhada e/ou como mercadoria. Com um exemplo simbólico, é possível ilustrar, a seguir, a força ideológica da práxis que combate o caminhar como atividade do ser genérico, por excelência. O exemplo, propriamente dito, trata-se de uma crônica, de Menalton Braff (2015), publicada na revista Carta Capital, onde o autor afirma o seguinte: “Tenho esperança de que ainda se invente uma pílula-da-caminhada, que se possa tomar enquanto se lê um bom livro, escreve-se uma crônica ou qualquer coisa assim”. Há de se confessar que, ante a brevidade da crônica, não é possível distinguir se Braff está sendo sarcástico e irônico em relação à negação do caminhar na contemporaneidade, ou se, de fato, almeja a “descoberta” da pílula- da-caminhada. Ou, ainda, o que é mais provável, as duas situações. Porém, saber a real intenção do autor, para os fins aqui propostos, é irrelevante. Independente disso, parte-se do princípio de que, para qualquer das duas opções, a possibilidade de se sonhar com a invenção da pílula-da-caminhada simboliza um momento histórico específico, onde o caminhar, como atividade não estranhada, chegou ao extremo da possibilidade de sua não concretização. Assim, seja como denúncia ou afirmação de uma sociedade que, sim, é capaz de pensar em eliminar essa atividade do seu cotidiano, inclusive, porque já não há mais tempo para se realizar outras atividades também importantes para a realização da omnilateralidade humana, como desejou o autor, “ler um bom livro, escrever uma crônica”; ou, seja porque o caminhar, reduzido a dimensão de atividade apenas física, representa a expressão de uma sociedade “que só pensa no corpore sano”. O sintomático de se apreender, portanto, é que esse caminhar passa a existir, sobretudo, como atividade meramente mecânica, desprovido de “aura” humana. Por isso, não é de se estranhar que acaba de ser inventado o walkcar192, “meio

192 Chama-se atenção para o fato de que o walkcar não se insere na categoria onde se encontra os patins e o skate, que possuem na sua constituição, enquanto objetos, uma ludicidade própria às relações sociais urbanas. O walkcar, ao que tudo indica, cumpre única e exclusivamente a função de deslocamento da mercadoria força de trabalho, se possível, de forma mais acelerada. Esse objeto tecnológico, inventado por Kuniaki Saito, da empresa Cocoa Motors, é um “aparelho [que] consiste [em] uma prancha quadrada de alumínio do tamanho de um laptop, equipada com 4 rodas e um motor elétrico que se ativa ao subir em cima e que permite que o usuário se mova por superfícies mais ou menos planas a uma velocidade de uns 10 km/h. (...). O Walkcar pesa entre 2 e 3 quilos,

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de transporte [motorizado] para não voltar a caminhar nunca mais”, concretizando o oximoro do “andar sem andar”.

Figura 32 - Aparelho de locomoção motorizada urbana – walkcar

Fonte: Site – Metamorfose Digital.193

Ainda Braff, em seu pequeno texto, comenta que só passou a caminhar depois que seu médico cardiologista exigiu que ele realizasse “algum tipo de atividade física como modo de manutenção da carcaça”:

Depois de um infarto, ele disse, que eu escolhesse: caminhada ou remédio. Melhor ainda: caminhada e remédio. Como os remédios andam o olho de nossa cara em noite de tempestade, concordei em fazer minhas caminhadas de uma hora exata e religiosamente e cinco vezes por semana. Isso tem lá seu lado econômico, pois elimino a necessidade de alguns remédios suplementares. (BRAFF, 2015, s/p).194

Então, o cronista elege o caminhar como atividade física porque, dentro dessas condições estranhadas, este pode ser praticado de maneira mais econômica para a “manutenção da carcaça”. Como será visto a seguir, esse caminhar para a conservação do

motivo pelo qual é facilmente transportável, tem uma autonomia de 12 km aproximadamente e demora 3h para carregar. O [aparelho] começará a ser pré-vendido em outubro [de 2015] através de uma campanha de crowdfunding no Kickstarter e deverá custar 800 dólares”. Disponível em: . Acessado em: 26 set. 2015. 193 Disponível em: . Acessado em: 26 set. 2015.

194 Disponível em: . Acessado em: 28 jun. 2015.

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corpo e da saúde também passa a ser estimulado como prática mercantil na contemporaneidade. O que é importante salientar aqui é a dupla contradição que se apresenta: se, por um lado, se nega o caminhar como atividade humana, propriamente dita; por outro, o incentivo à sua prática regressa como forma estéril de humanidade, e/ou, em muitos casos, como mercadoria, material e simbolicamente (pílula-da-caminhada e walkcar, por exemplo). É possível afirmar, portanto, que a primeira negação é condição necessária para que, só assim, no capitalismo, o caminhar possa ser afirmado em uma nova negação: como mercadoria – objeto de consumo. Portanto, o caminhar se expressa, na contemporaneidade, como dupla negação social das relações humanas.

4.3.1 Algumas expressões do caminhar como mercadoria – onde tudo se transforma em pedra (mercadoria)

Como diria Certeau (1994, p. 183), “[...] caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio”. Como observado, esse “desejo” de evadir-se, de errar, de vagar é aprisionado como mercadoria no capitalismo contemporâneo, e, exatamente por isso, encontra-se disponível apenas às pessoas que, pagando, estão “aptas” a acompanharem tais “aventuras”, tais “devaneios”, restritos aos seus horários de lazer, seja nos fins de semana, seja no período de férias (RYBCZYNSKI, 2000). Assim como visto no exemplo da espetacularização das festas carnavalescas, o caminhar como mercadoria está inserido em uma lógica que transforma as atividades de diversão e de lazer em mercadoria. Porém, a peculiaridade contemporânea na oferta dessas mais variadas formas de atividade no período do não-trabalho é que passa a incorporar, como forma de simulacro, a comercialização, no turismo, de uma suposta experiência express de um modo “completamente” diferente de se viver a rotina maçante do dia a dia, incluindo, dentre as diversas opções, o contato “direto” com o “espetáculo” da pobreza ou com a “natureza selvagem”, por exemplo. O que Baudrillard (1991) classificou como “deserto do próprio real”, inclui desde os tradicionais mundos da fantasia, como a Disneylândia, por exemplo, passando atualmente pelos passeios turísticos em forma de “safaris” nas favelas, com direito à “aventura” de se hospedar em uma, ou até mesmo, para os “clientes mais extravagantes”, o “saborear” único de se hospedar em um hotel de luxo que simula arquitetonicamente uma favela ou, por fim, desfrutar de um resort e shopping center em meio à “natureza selvagem”, unindo o “melhor

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dos mundos”: segurança, mimos e conforto que tais serviços exclusivos podem oferecer, com a experiência “direta” espetacularizada em tais ambientes195. Como visto no Capítulo 3, no povoado de Alberto, localizado no município de Ixmiquilpan, no estado de Hidalgo, no México, encontra-se o passeio turístico da Caminata Nocturna, simulacro da travessia a pé de migrantes irregulares que tentam cruzar a fronteira entre México e Estados Unidos. Além disso, no passeio Border Crisis: Fact and Fiction, o turista é convidado a desfrutar de um pacote que lhe dá direito a conhecer o cotidiano do migrante indocumentado na fronteira. O que todas essas atividades turísticas guardam em comum é o discurso ideológico de que, ao consumir tais mercadorias impactantes, o turista “provaria” de uma experiência mais autêntica da realidade e da alteridade. Em reportagem realizada pela agência de notícias CNN México sobre o passeio Border Crisis, afirmam que: “Experimentar de cerca la realidad de la frontera México-Estados Unidos es tan simple como comprar un boleto que cuesta 89 dólares. La oficina de viajes de Gray Line, en Tucson, Arizona, ofrece este viaje dos veces al mes”196. Aos moldes do que salientou Simmel (1971), é, sobretudo, pela mediação do dinheiro, por meio da contratação de um serviço, que o turista mantém uma distância “segura” em relação à alteridade radical visitada, podendo, nessas condições, desfrutar da experiência “mais autêntica” desse encontro, dessa realidade. Zizek (2009, p. 44) chama a atenção para o fato de que, “hoje, a tolerância liberal perante os outros, o respeito pela alteridade e a abertura a ela, é contrabalanceada por um medo obsessivo do assédio”, e acrescenta:

Em resumo, o Outro está muito bem, mas só na medida em que a sua presença não seja intrusiva, na medida em que esse Outro não seja realmente outro. (...). O meu dever de ser tolerante para com o outro significa efetivamente que não deveria aproximar-me demasiado dele, invadir o seu espaço. Por outras palavras, deveria respeitar a sua intolerância à minha proximidade excessiva. O que se afirma cada vez mais como direito humano central na sociedade capitalista tardia é o direito a não ser assediado, que é o direito a permanecer a uma distância segura dos outros. (ZIZEK, 2009, p. 44).

195 Sobre o turismo nas favelas e simulações de luxo de favelas, vide: . Acessado em: 11 jun. 2015; e . Acessado em: 11 jun. 2015. Sobre exemplo de projeto de megaempreendimento turístico a ser construído na “natureza selvagem”, vide: . Acessado em: 11 jun. 2015. 196 Disponível em: . Acessado em: 26 set. 2015.

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Os diferentes tipos de passeios turísticos, elencados no presente item e no anterior (4.2), podem ser analisados a partir do debate conceitual, iniciado na década de 1980, mas que ganha vulto, sobretudo, nos anos 2000, de uma provável transformação da categoria turismo para pós-turismo, devido a inúmeras transformações sociais no âmbito da modernidade tardia (FREITAS, 2013). Adjetivos como: “inusitado, criativo, incomum” se tornam parte do vocabulário definidor do tipo de demanda que se busca nesse novo segmento de ofertas turísticas, baseado na comercialização da experiência, e, segundo Freitas (2013, s/p):

Passou a ser imperativo compreender o diferencial turístico da região para estimular, da melhor maneira possível, a atenção, o “olhar”, o sentimento, a emoção, as sensações e percepções do turista. Essa ideia visaria transcender o serviço, e a atividade turística caracterizaria-se pela experiência.

Na década de 1990, ainda segundo Freitas (2013), a economista Auliana Ponn (1993) também havia evidenciado “algumas transformações e tendência do turismo” nessa época, utilizando-se do binômio “velho” e “novo”, para se referir à demanda do turista. O “velho turista” se encaixaria no turismo de massas, onde o gosto por visitar atrações e o valor do “ter”, adornado por sentimentos de precaução ante a experiência turística e superioridade em relação à comunidade visitada, norteariam sua conduta. Por sua vez, “o novo turista” se harmonizaria com um perfil mais aventureiro, em busca de novas experiências, inclusive de aprendizagem com a cultura local e de práticas esportivas na natureza, onde os valores do “ser” e compreender estariam no centro de sua demanda. É no ano de 1998, no entanto, com o lançamento do livro El Posturismo: de los centros turísticos industriales a las ludópolis, de Sergio Molina, que Freitas (2013) observa uma ampla aceitação da categoria pós-turismo, contrapondo-se ao turismo tradicional, com a absorção de parâmetros da “Economia da Experiência” por parte da indústria do turismo. Dentre os diversos tipos de modalidades do turismo de experiência, Freitas (2013) menciona o Travel Designers como serviço oferecido para se contemplar o “desejo” de personalização da experiência turística, por meio da montagem individualizada de um roteiro “artesanal” em meio a destinos “exóticos”, ou desfrutando de experiência “raras e singulares” em lugares popularmente conhecidos, como é possível observar no discurso da seguinte agência de turismo: “Nossa atuação promove o Turismo de luxo, da forma como o entendemos no século XXI: a busca de experiências raras, que exprimam a cultura e a natureza dos mais diferentes lugares do planeta” (FREITAS, 2013, s/p). No entanto, cabe

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salientar que o serviço do Travel Designers não necessariamente oferece experiências de luxo, mas, sim, oferece um “mergulho profundo” em experiências culturais e de natureza cênica consideradas únicas, sendo, muitas delas, de renúncia ao conforto urbano cotidiano. Como afirma Freitas (2013), a utilização do termo pós-turismo, contrapondo-se a uma concepção anterior de turismo, oriunda do amplo processo de reestruturação produtiva, se insere no discurso pós-moderno que prega, dentre outros elementos, o fim da centralidade da relação capital e trabalho para explicar as relações de produção e reprodução social. Apesar das transformações na segmentação dos serviços oferecidos pelo setor de turismo, ao longo do tempo, é possível observar, no entanto, que essas variações se deram, todavia, sob a égide das relações capitalistas de produção. Por sua vez, é possível afirmar que a elaboração e aplicação da categoria pós- turismo como “nova” roupagem à mercadoria serviço de turismo, atendem as demandas históricas do capitalismo de superar suas crises cíclicas, gerando novas necessidades e desejos a serem transformadas em mercadoria para o consumo. Ainda cabe frisar que a segmentação do setor de serviços de turismo, com a emergência da modalidade de turismo de experiência, por exemplo, não significa, absolutamente, o fim de outras formas da oferta desse produto, como no caso do “velho turismo”. Como poderá ser visto a seguir, essa “nova” forma de se vender o serviço de turismo se encontra vinculada à emergência de uma ideologia, originada nos anos 1970, mas que ganhou amplitude com Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992, tornando-se, a partir de então, senso comum, embora com várias críticas e contestações sobre o seu significado e significante (OLIVEIRA, 2005, 2011, 2014; RODRIGUES, 1993, 2006, 2012): o desenvolvimento sustentável. Dessa maneira, em meio ao universo de “simulacros e simulações”, vale a pena, assim, trabalhar alguns exemplos, propriamente ditos, do caminhar como mercadoria no espaço urbano e rural, relacionados ao campo do lazer/turismo e da saúde/estética, a fim de se ilustrar o amplo espectro dessas relações presentes nas cidades capitalistas contemporâneas.

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Exemplo 1: Caminhadas na “natureza” de aventura/ecoturismo e peregrinações contemporâneas

Como será possível observar, sobretudo na última década, uma série de rotas de caminhadas na “natureza”197 vêm sendo criadas no Brasil e no mundo, em um processo amplo de expansão do turismo mundial, em suas vertentes: turismo de aventura, ecoturismo e peregrinações laicas (CARNEIRO, 2004; BRUNHS 2004; COSTA, 2007; CARNEIRO; STEIL, 2008).198 Em uma breve recapitulação histórica sobre o desenvolvimento do turismo de aventura e o ecoturismo no Brasil, o Diagnóstico do Turismo de Aventura no Brasil (2009) aponta para três momentos decisivos que impulsionaram o crescimento do setor, sendo eles: a) a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), mais conhecida com ECO-92, que proporcionou um ambiente de divulgação do ecoturismo, pautada por valores ecologistas; b) a produção de equipamentos no próprio Brasil para a prática de atividades em meio à natureza, no final dos anos 1990, barateando o preço final do produto; e, c) a feira Adventure Sports Fair, realizada anualmente em São Paulo, desde 1999.

197 Os inúmeros tipos de caminhada na ‘natureza’ existentes são realizados, como observado no exemplo do trekking (nota de rodapé nº 182, p. 191), por meio de variadas formas de organização: desde a organização mais informal e sem fins lucrativos (incluindo, grupo de amigos, associação sem fins lucrativos, etc.); até as formas de organizações, associações e empresas, etc., que visam lucro. Essa diversidade também vale para as caminhadas organizadas no urbano, como poderá ser visto no Exemplo 2 deste item. Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas, “[...] a caminhada, como atividade de aventura, pode ser dividida em dois grandes grupos: a caminhada e a caminhada de longo curso. A primeira pode durar desde uma hora até um dia inteiro, mas o praticante retornará ao seu local de origem, para ali pernoitar. Na caminhada de longo curso, muito conhecida como travessia, o praticante pernoitará em locais ao longo da trilha, porque o trecho percorrido excede o limite de um dia de viagem. O pernoite pode acontecer em situações diversas como acampamentos, pousadas, fazendas e bivaques entre outros” (Diagnóstico do turismo de aventura no Brasil, 2009, p. 81). Destaca-se, ainda, que o termo “natureza” aqui utilizado se define em contraposição ao urbano, ou seja, está relacionada ao que tradicionalmente é chamado de campo. Como essa expressão vem sendo utilizada na contemporaneidade, veremos brevemente a seguir. 198 Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura, “[...] as primeiras reflexões a respeito do Turismo de Aventura remetem à década de 80. Autores demonstravam uma tendência de considerar os aspectos clássicos do termo somente como as possibilidades econômicas do setor, a necessidade da prática em meio natural e a relação dos elementos de risco com a participação controlada do praticante. Além de conduzir à exploração comercial do segmento, ao definir que a atividade envolve interação com o meio natural, excluem-se as possibilidades de prática no meio urbano e em ambientes fechados. Swarbrooke (2003, p. 28) amplia a concepção de Turismo de Aventura e relaciona-o à elevação espiritual do participante, atraindo uma proporção cada vez maior da população que está “em busca de auto-realização e prazer através de atividades físicas e mentais estimulantes”. Essas diferentes concepções demonstram que os conteúdos em torno do Turismo de Aventura transitam em dimensões variadas” (Diagnóstico do turismo de aventura no Brasil, 2009, p. 29). Essas definições para o turismo de aventura trazem elementos interessantes também para se pensar as categorias de ecoturismo e as peregrinações laicas, tanto pela “interação com o meio natural”, quanto pela “busca de auto- realização e prazer através de atividades físicas e mentais estimulantes”, relacionada à “elevação espiritual”.

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Nesse contexto, o crescimento do setor de turismo de aventura e ecoturismo foi impulsionado, no Brasil e no mundo, pelo discurso e prática advindos do movimento ecologista/ambientalista199 (BRUHNS, 2004), que teve na Rio-92, “com a adoção da Agenda 21 como receituário dos países signatários” (OLIVEIRA, 2014, s/p), o palco perfeito para a sua consagração na forma ideológica200 de desenvolvimento sustentável em meio à geopolítica neoliberal201 da época, “sob o binômio economia-ecologia”: “onde o escopo primaz é a apropriação da natureza enquanto mercadoria de alto valor” (OLIVEIRA, 2014, p. s/p). “Trata-se de um novo significado da geopolítica, ‘que não mais atua na conquista de territórios, mas na apropriação da decisão sobre seu uso’” (BECKER, 2004, p. 21 apud OLIVEIRA, 2014, s/p). De forma breve, é importante destacar que a consagração da Eco-92 não representou um feito instantâneo, mas, sim, um longo processo de reconfiguração de forças globais, iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial. A “perturbação moral” suscitada pela “banalização do mal” nos regimes totalitários desse período, e, principalmente, o receio em relação ao domínio tecnológico para a construção e lançamento de novas ogivas nucleares

199 Segundo Oliveira (2011, s/p), “[...] este “novo” movimento ecológico / ambiental que emerge na década de 60 traz consigo uma crítica à sociedade tecnológico-industrial (particularmente, contra empreendimentos extremamente controversos ambientalmente como as centrais nucleares), tanto capitalista quanto socialista, e é em parte fruto das agitações estudantis de 1968, nos Estados Unidos e na Europa (DIEGUES, 1996). Contudo, o movimento ambientalista deste período (MONTIBELLER FILHO, 2008, fala em “revolução ambiental norte- americana”) repercute um antigo debate que, em termos teóricos, havia nos Estados Unidos já no século XIX. Naquele momento, duas visões de proteção do mundo natural se enfrentavam, sintetizadas pelo arquétipo do embate entre as ideias do engenheiro florestal Gifford Pinchot (fundador do Serviço Florestal dos EUA, em 1905), que articulou as bases teóricas do conservacionismo, e do naturalista John Muir (escocês, radicado nos Estados Unidos)43, que propugnou, sob influência de Thoreau, Marsh, Darwin e Haeckel (este último, criador da noção de ecologia), as bases do preservacionismo” (DIEGUES, 1996 apud OLIVEIRA, 2011, p. 25-26). Ainda em relação a evolução histórica dos movimentos ecológicos/ambientais Oliveira afirma que: Montibeller-Filho (2008), através do estudo da obra de Leis e D’Amatto (1995), divide historicamente o movimento ambientalista da segunda metade do Século XX em cinco decênios, assim considerados: [1] na década de 50, emerge o ambientalismo dos cientistas, com a inclusão da temática ambiental em breves relatórios e documentos da UNESCO; [2] na década de 60, surge o ambientalismo das ONGs (e dos movimentos sociais), esta nova estruturação dotada de ideias prolixas e, em geral, bastante atuantes; [3] na década de 70, ocorre a institucionalização do ambientalismo, com a Conferência de Estocolmo, em 1972, e a gerência definitiva, por parte da ONU, das questões intrínsecas à problemática ambiental; [4] nos anos 80 têm-se a era do fortalecimento dos Partidos Verdes e constituição da Comissão Brundtland, que definirá a concepção de Desenvolvimento Sustentável como agendado novo século; [5] por fim, na década de 90, as empresas passam a adotar o desenvolvimento sustentável em suas estruturas produtivas e mercadológicas, numa espécie de empreendedorismo Verde”. (OLIVEIRA, 2014, p. 27). 200 Oliveira entende “a concepção de desenvolvimento sustentável como ideologia e mecanismo de manutenção, sob nova alcunha, da exploração capitalista da força de trabalho e da natureza (considerada como conjunto de recursos naturais), é possível interpretar a crise ambiental como intempérie “necessária” ao modo de produção capitalista. (OLIVEIRA, 2011, p. 68) O tema do desenvolvimento sustentável como ideologia que dá suporte a muitos dos discursos dos que lutam pelo direito a se caminhar será tratado no capítulo 5. 201 Em diálogo com Armando Boito Jr., Oliveira afirma que “[a] política neoliberal baseia-se, destacadamente, em um tripé: privatização, abertura comercial e desregulamentação financeira e do mercado de força de trabalho” (OLIVEIRA, 2011, p. 83).

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“irão fomentar a realização das três mega-conferências sobre o meio ambiente”, a saber: 1) a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo – 1972); 2) a já mencionada Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio- 92 ou Eco-92), realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992; e, 3) a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20), também realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 2012 (OLIVEIRA, 2011; 2014).202 A Conferência de Estocolmo foi marcada por conflitos inconciliáveis entre países centrais, os chamados “zeristas”, que advogavam a limitação do desenvolvimento econômico como forma de se conter o crescente escasseamento dos recursos naturais e a progressiva contaminação atmosférica, enfim, “um ajuste ecológico da máquina capitalista”, a fim de se reequilibrar possíveis ameaças ao próprio sistema como um todo e as relações de dominação entre países centrais e periféricos, de forma particular; e os países periféricos, denominados “desenvolvimentistas” (dentre eles se destaca o Brasil, sob o domínio de uma ditadura civil- militar), que advogavam o direito de se aproveitar aquele momento histórico específico para crescer economicamente (OLIVEIRA, 2011; 2014). “Influenciada pelo Clube de Roma, e sua principal publicação – “Os Limites do Crescimento” (“The Limits of Growth”) (MEADOWS, 1973) – a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo – 1972) esteve marcada pelo dissenso entre países centrais e periféricos nas soluções para o veloz e destrutivo desenvolvimento capitalista mundial” (OLIVEIRA, 2014, s/p). Por sua vez, na Conferência Rio-92, um modelo ideológico consensual pôde ser acordado, tendo em vista que, como salientado acima, os países capitalistas centrais e periféricos estavam alinhados sob a égide do neoliberalismo, amparados pelo Consenso de Washington (ressalta-se que o presidente do Brasil à época era Fernando Collor de Mello), e os países oriundos dos ex-blocos socialistas se encontravam completamente desarticulados e enfraquecidos. Para essa Conferência:

202 Segundo Oliveira, “se a origem do desenvolvimento sustentável tem base nestes grandiosos congressos, muito influenciada pelo pós-guerra e os receios subsequentes, é possível afirmar que seu alicerce teórico é mais antigo (remete ao final do Século XIX), e está contido nas ideias conservacionistas do liberal norte-americano Gifford Pinchot (DIEGUES, 1996, p. 30 apud OLIVEIRA, 2014, s/p). A defesa do uso racional da natureza advém do despertar da necessidade de sua existência para a manutenção do perfeito funcionamento da máquina capitalista. A natureza é o combustível primaz, onde a partir do trabalho humano e mediação da técnica são construídas as mercadorias fontes de riqueza e de poder. Neste processo de exploração do homem e da natureza pelo capital, a execução das riquezas naturais pela ação industrial, segundo a cartilha do pensamento dominante, será contornada pela evolução da técnica, através de mecanismos de filtragem da poluição e pelo uso metódico dos “recursos” cada vez mais escassos, guardando para um mercado futuro em espaços específicos” (RODRIGUES, 1992, p. 80 apud OLIVEIRA, 2014, s/p).

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(...) o Relatório Brundtland [Nosso Futuro Comum] foi o documento das Nações Unidas que apontava a solução – definitiva, indelével, incontestável – para as catástrofes sócio-ambientais emergentes e a obliteração dos valiosos recursos da natureza: o desenvolvimento sustentável, definido como o modelo que “atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades” (BRUNDTLAND, 1988, p. 46).

Por último, a Conferência Rio+20 confirmou a hegemonia ideológica do desenvolvimento sustentável, onde a própria conferência recebeu o formato empresarial, onde “emergia com clareza a ‘Economia Verde’, onde a questão ambiental se consolidou como ‘feira de negócios’” (OLIVEIRA, 2014, s/p), em meio a um cenário internacional pós crise estadunidense, de 2008, e em plena crise europeia; e, em um contexto nacional de fortalecimento do Estado, por meio do pacto entre capital e trabalho, nos governos Lula e Dilma. “Desta maneira, a Rio+20 é o resultado de décadas de evolução da questão ambiental, com a paulatina consagração do desenvolvimento sustentável e consolidação do binômio economia-ecologia sob o manto da chamada ‘Economia Verde’” (OLIVEIRA, 2014, s/p). O termo sustentabilidade penetrou todas as esferas da vida social e passou a fazer parte do vocabulário cotidiano, inclusive das empresas capitalistas. “A crise ambiental, acima de tudo, se tornou uma oportunidade de obtenção de maiores lucros com a problemática ambiental contemporânea” (OLIVEIRA, 2011, p. 183). Por exemplo, os setores de marketing das mais diferentes empresas e governos, amparados pelo “princípio da precaução”203, adotam a ideologia do desenvolvimento sustentável como “tônica da urbanização pós-moderna”, “a partir de inventos anti-contaminantes” e a “a paulatina adoção arquitetura ecológica, formas de tratamento e reutilização de água e coleta seletiva de lixo” (OLIVEIRA, 2014, s/p). Assim, no setor de turismo não poderia ser diferente. Valendo-se do discurso ambiental, faz surgir o turismo de aventura, o ecoturismo e as peregrinações laicas, tendo a paisagem como mercadoria por excelência. “O ecoturismo[, por exemplo,] privilegia áreas naturais apelativas do ponto de vista estético, (...) como florestas, cachoeiras, rios extensos, canyons (...). Essa atividade responde a concepção de vida, inspiradas no ambientalismo,

203 “O empresariado entende o “Princípio da Precaução” como uma oportunidade inigualável de superar o risco e a incerteza através de investimentos e estudos localizados. A procura por um consumo mais eficiente de energia, a redução de poluição nas escalas global e local e o uso racional de matéria-prima fornecem a chance da criação de novas técnicas mais lucrativas e estimulam transformações econômicas mais virtuosas, em lugar da aceitação sectária dos problemas existentes. É o princípio da gestão ambiental, uma forma empresarial-racional de gerir as riquezas naturais, potencializando a utilização das mesmas enquanto recursos, e ainda, constituindo um planejamento austero para se evitar o desperdício e os impactos negativos decorrentes de atividades produtivas (como a poluição em suas diversas formas)” (OLIVEIRA, 2011, p. 93-94).

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apoiados em ideologias ambientalistas e/ou místico-religiosas” (BRUHNS, 2004, p. 24). Oliveira ressalta que, para:

David Barkin (1994, p. 342) afirma que “o ambientalismo é a nova religião do fim de século”. É amparado nesta perspectiva que a ideologia do desenvolvimento sustentável fica disfarçada mediante um potente discurso de “Proteção à Natureza”, que utiliza um olhar romanceado e confere uma ilusão de um discurso menos agressor para com o domínio da mesma. De uma concepção que visa manter o domínio da natureza como recurso, emerge uma noção vaga, “ainda em construção”, e por isso mesmo, passível de análise e enriquecimento. A sustentabilidade do desenvolvimento capitalista se transforma em “bula para salvação do mundo”, e traz para o seu interior mesmo aqueles que não percebem suas verdadeiras implicações. (OLIVEIRA, 2011, p. 162).

Embebido nesse contexto ideológico de sustentabilidade, a oferta e a demanda pelas caminhadas na “natureza”, como mercadoria, crescem exponencialmente, no Brasil e no mundo e junto com elas um mercado crescente de empresas privadas que oferecem diferentes tipos de equipamentos, dentre eles os de segurança e de suporte, para a prática de atividades na natureza, como a caminhada, por exemplo204.

204 Retomando a discussão anterior de que, “no trabalho imaterial há fragmentos de trabalho material” (SANTOS, 2013, p. 15), destaca-se, na indústria do turismo, a produção de um número infinito de objetos que dão suporte aos diversos tipos de caminhada, sejam no campo ou no espaço urbano. Incluindo, inclusive, aplicativos para tablet e smart phone e livros, revistas e filmes sobre o tema.

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Figura 33 - Publicidade da empresa Walking México: um dia de caminhada na montanha – Nevado de Toluca, México – ao custo de 1600,00 pesos mexicanos. Data do passeio: 18 de outubro de 2015.

Fonte: Facebook – Walking México.205

Em maio de 2014, a Adventure Sports Fair completou sua décima quinta edição ininterruptamente. Realizada todos os anos no espaço do Anhembi, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a feira, no ano de 2013, segundo relatório produzido pela própria organização do evento, recebeu, ao longo de cinco dias, 60 mil visitantes, dos quais mais de 50% tinham entre 26 e 45 anos; 47% possuíam renda familiar de R$ 6.200,00 a acima de R$ 12.400,00; e quase 60% possuíam o Ensino Superior completo. A feira ainda contou com mais de 150 expositores nacionais e internacionais, além de 242 reuniões de negócios realizadas. No relatório divulgado não há cifra do montante em dinheiro negociado na feira, mas, só em exposição nos meios de comunicação, os organizadores da feira estimam um retorno de R$ 4.366.607,00. Além de palestras sobre diversos temas ligados ao turismo de aventura, a feira abriga o Fórum Interamericano de Turismo Sustentável. Aliando os discursos da “qualidade de vida” e da “preocupação ambiental”, a Adventure Sports Fair proporciona um espaço de negócios nos ramos de bens e serviços como: “acessórios (barracas, fogueiras, cantis, etc.)”; vestuários tecnológicos, “como roupas

205 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

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fabricadas especialmente às atividades ao ar livre”; calçados, como botas tênis, sandálias, “elaboradas para cada modalidade, que diferem no solado, cabedal, design, de acordo com o desempenho desejado”; além de: turismo, nutrição e saúde, treinamento, segurança e veículos terrestres, como bicicletas e veículos off road (LOMANTO, 2005). Segundo Lomanto (2005, p. 51), a feira “é também o mais importante salão de veículos 4 a 4 do Brasil, com a presença das principais marcas do mercado”. Diante desse breve cenário sobre a maior feira de turismo de aventura do país e, provavelmente, da América Latina, é possível observar a dimensão e a segmentação dos vários ramos do mercado que compõe este tipo de empreendimento.

Figura 34 - Exemplos de equipamentos para a realização de caminhada na “natureza”

Fonte: Site – Out Door Assicurznione Escursionismo.206

Frente a esse panorama sobre o universo do mercado do turismo de aventura, esportivo e de ecoturismo, que abriga as caminhadas urbanas e, sobretudo, as na natureza, vale a pena se indagar o que há por trás do discurso dos que buscam e dos que “vendem” as caminhadas de longas distâncias na natureza no século XXI. A busca de autenticidade e alteridade de indivíduos isolados nas grandes metrópoles, geralmente, são argumentos utilizados para a explicação desse fenômeno social, mesclados a um discurso ambiental, e da busca da qualidade de vida. Aliando o próprio gosto pela prática do trekking com as perspectivas de ampliação desse mercado:

206 Disponível em: . Acessado em: 17 set 2015.

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Geraldo Isoldi, 36 anos, ex-sócio da corretora de valores Isoldi, (...) largou o mercado financeiro para se tornar sócio da assessoria esportiva Selva Aventura, que ajuda a preparar interessados em praticar esportes ao ar livre, como trilhas e corridas de aventura. “Atuava há 13 anos no mercado financeiro e o cenário já se mostrava bastante desafiador para as corretoras independentes na época em que tomei a decisão. Em 2010, durante um treinamento para uma corrida de aventura na selva, me propuseram a sociedade e aceitei”, lembra o empresário”. (CORREIA; FURLAN, 2013, s/p).207

Maffesoli (2001) constrói em torno da ideia de pulsão de errância todo um arcabouço conceitual para se compreender a contemporaneidade que, para ele, seria pós- moderna. Segundo o autor, a sociedade contemporânea estaria vivendo um paradoxo, diante da própria condição humana, ancorado em uma ambiguidade fundamental, o desejo/necessidade de fixar-se e evadir-se simultaneamente: “[...] será que o drama contemporâneo não vem do fato de que o desejo de errância tende a ressurgir como substituição, ou contra o compromisso de residência que prevaleceu durante toda modernidade?” (MAFFESOLI, 2001, p. 22). Alicerçada apenas em um dos polos dessa dicotomia, a modernidade, representada por seu conjunto de instituições e valores rígidos, estáveis, seguros, fixos, sedentários, domesticados, viria sofrendo um bombardeio em suas estruturas com a emergência do outro polo dual, há muito tempo esquecido, mas que, de acordo com Maffesoli (2001), se encontra inscrito na própria constituição do ser social – a volta do reprimido:

É preciso não esquecer, a fixação no trabalho caminha lado a lado com a estabilidade dos costumes. E o passeador que vagueia chama, ao contrário, um outro tipo de exigência: a de uma vida mais aberta, pouco domesticada, a nostalgia da aventura. (MAFFESOLI, 2001, p. 34).

Numerosas são as ocasiões de tipo em que se “soltam as amarras”, em que a pessoa se exila ou foge a fim de restituir o sabor àquilo que, sob pesados golpes da rotina, perdeu-o quase que totalmente. (MAFFESOLI, 2001, p. 77). As ideias de nomadismo, barbarismo, errância, fluidez seriam, portanto, estados sociais e mentais que estariam em evidência na contemporaneidade, confrontando-se diretamente com os próprios pressupostos da modernidade, que deposita no trabalho, na disciplina, no sedentarismo os valores essenciais para a realização social e do indivíduo. “Prisioneiro de um espaço fechado ou ilimitado, o corpo reage, nervosamente ou pelo modo

207 Disponível em: . Acessado em: 18 mai. 2015.

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da depressão a essa falta de espaço, a essa falta de um lugar circunscrito que se abra a outros lugares. A depressão vital é a consequência a uma falta de abertura espacial” (MONGIN, 2009, p. 244). Dentro dessa compreensão, a aventura de se caminhar longas distâncias, por exemplo, reavivaria nos indivíduos um sentimento arquetípico presente no imaginário coletivo, o desejo de potência e de risco na sua positividade, de transcender às limitações impostas pelo próprio corpo, pela natureza e pela sociedade. Seria como uma afirmação da autonomia humana, onde:

(...) na transição para a sociedade de risco ocorrem várias transformações: a crença na possibilidade de controlar o futuro a partir da agregação e análise de séries de informações, passa a ser questionada frente à natureza sistêmica dos riscos manufaturados; a norma cede lugar à probabilidade como mecanismo de gestão e a gestão dos riscos no espaço privado se desprende dos mecanismos tradicionais de vigilância, pautados nas instituições disciplinares, e passa a depender do gerenciamento de informações que são de todos e não são de ninguém. Amplia-se, assim, a experiência intersubjetiva do imperativo da opção, gerando novos mecanismos de exclusão social. (SPINK, 2001, p. 1287).

A racionalidade, nesses casos, não daria conta sozinha de explicar a dimensão emocional daquelas pessoas que optam por se arriscarem, se aventurarem em atividades de lazer/esportes radicais com o intuito de fugirem de rotina maçante, homogeneizadora; que rompem com a rigidez do controle das próprias emoções, reatando vínculos afetivos sociais junto aos parceiros de aventura. A caminhada, portanto, reinstauraria a centralidade das emoções e do corpo na contemporaneidade, reintegrando o ser humano a uma unidade com a natureza ou, ao menos, despertaria no indivíduo uma pulsão para o resgate da vida:

A paixão moderna pelas atividades de risco nasce da profusão dos sentidos que o mundo contemporâneo sufoca. A perda de legitimidade dos referenciais de sentido de valores, sua equivalência geral numa sociedade onde tudo se torna provisório, desestabiliza o panorama social e cultural. A margem de autonomia do ator se amplia, mas traz consigo o medo ou o sentimento de vazio. [...] Somos chamados a nos tornar empreendedores de nossas próprias vidas. O indivíduo tende a cada vez mais se auto- referenciar, procurar em si o que antes procurava no sistema social de sentidos e valores no qual a existência se inscrevia. A procura de sentido é fortemente individualizada. (LE BRETON, 2009, p. 88, grifos nossos).

Diante da construção desse discurso “pós-moderno”, uma indagação permanece: como se configura a ideia de aventura e de risco na contemporaneidade? Em que medida os

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indivíduos adeptos de tais caminhadas, em sua maioria oriundos das classes médias urbanas, buscam/lidam com a aventura/risco? Nesse sentido, vale a pena problematizar tal busca dentro de um contexto de sociedade do consumo (BAUDRILLARD, 2007), em que a aventura e o risco são controlados a tal ponto que não causem dano algum aos indivíduos, ou que não fujam muito às suas rotinas diárias, por meio da contratação de empresas de turismo, equipamentos de segurança de alta tecnologia e com elevado conforto. Seria esta a vez do oximoro: corra todos os riscos com total segurança? Certamente, essas modalidades de esporte/lazer movimentam enormemente a economia contemporânea e ajudam a “reciclar os detritos” na sociedade de consumo:

Por toda a parte, hoje em dia, é preciso reciclar os detritos, os sonhos, os fantasmas; o imaginário histórico, feérico, lendário das crianças e dos adultos é um detrito, o primeiro grande resíduo tóxico de uma civilização hiper-real. (...). As pessoas já não se olham, mas existem institutos para isso. Já não se tocam, mas existe a contactoterapia. Já não andam, mas fazem jogging, etc. Por toda a parte se reciclam as faculdades perdidas, ou o gosto perdido pela comida. Reinventa-se a penúria, a ascese, a naturalidade selvagem desaparecida: natural food, health food, yoga. Verifica-se, ao segundo nível, a ideia de Marshall Sahlins, segundo o qual é a economia de mercado, e de maneira nenhuma a natureza, que segrega a penúria (...). (BAUDRILLARD, 1991, p. 22, grifo nosso).

Ainda em relação ao binômio risco-aventura, observando a história da humanidade é correto afirmar que cada vez menos existem “terrenos intocados” no globo terrestre. As façanhas de exploração e desafios, tantas vezes relatados, em se chegar pela primeira vez a cumes de montanhas, interiores de florestas nativas, cachoeiras, grutas e cânions, “escondidos” na paisagem natural, são cada vez mais raros. Porém, ainda são essas regiões onde se encontra uma maior probabilidade de correr riscos, se aventurar frente ao desconhecido. Nessas paisagens remotas há vezes em que os caminhos não são pré-definidos, exigindo dos que por aí transitam um ritmo de caminhada mais lento e maior ativação dos sentidos. Já que a trilha é aberta na medida em que se caminha. A regra, no entanto, é que o ser humano já tenha esquadrinhado boa parte do espaço territorial global. Seja por via terrestre, aérea ou espacial. Por isso, como bem colocou Bollnow (2008), “o homem, na paisagem cultural moderna, está destinado aos caminhos pré- definidos já por relações de propriedade” (BOLLNOW, 2008, p. 105). As relações de propriedade, portanto, são definidoras das relações espaciais desenvolvidas no campo e na

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cidade. Assim, a ideia de se caminhar sem amarras pelas paisagens bucólicas do mundo esbarra com as cercas da propriedade privada da terra. A criação de parques nacionais em todo o mundo, influenciados pela corrente ambientalista conservacionista do final do século XIX, acabou por convertê-los em fontes importantes de receita para as economias nacionais208. Interessante notar, no entanto, que, quanto mais se populariza a prática do ecoturismo, turismo de aventura e peregrinações contemporâneas, surgem, por sua vez, movimentos sociais articulados em torno da preservação de determinadas paisagens intocadas, bem como da “creación y defensa de zonas de indeterminación, de terrenos baldíos para la invención, el descubrimiento, el juego, la libertad, contra los proyectos de domesticación y urbanización de la montaña” (LE BRETON, 2011, p. 96). Esses movimentos que defendem as montanhas selvagens, dentre eles o Montain Wildernesss209, se organizam também contra a construção de empreendimentos imobiliários, como o previsto para o Grand Canion210 e pela manutenção de pouco fluxo demográfico nos cumes das montanhas:

La industria turística acomoda los lugares únicos y delicados y los dispone para su consumo rápido, pero con ello destruye su aura al banalizarlos. “El progreso, al fin, ha llegado ao parque Arches, tras un millón de años de abandono. La industria turística ya está aquí” (Abbey, 1995, 73). E. Abbey enumera así un gran número de lugares mágicos que antes eran accesibles sólo tras unas cuantas horas de camino a pie (…) y que hoy han sido entregados a las masas motorizadas gracias a la construcción de nuevas carreteras (…). Abbey teme que el resto de los bosques y parques nacionales norteamericanos corra la misma suerte. El nervio de la guerra es la accesibilidad: en cuanto un lugar es accesible en coche, recibe irremediablemente un infinito número de visitas motorizadas. (LE BRETON, 2011, p. 95-96, grifo nosso).

A segunda categoria que deve ser problematizada em tais narrativas, certamente, é a da natureza. Diferentemente do flâneur, do século XIX, que imprimia importância vital ao ambiente das cidades, esse turbilhão de gente, de massas uniformes e distantes, para

208 Para mais informações sobre a movimentação econômica gerada pelos parques nacionais, vide as seguintes matérias: 1) National park visitors inject billions into the us economy. Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015; 2) Turismo impulsa en [República Dominicana] actividad de senderismo. Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

209 Para mais informações sobre o Montain Willderness, consultar seu site: . Acessado em: 30 set. 2015. 210 Reportagem, Com shopping e resort, megaempreendimento turístico no Grand Canyon preocupa ambientalistas nos EUA. Disponível em: . Acessado em: 07 ago. 2015.

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realização e êxito de suas caminhadas (BENJAMIN, 1989), o caminhante, ou andarilho do século XXI, busca, muitas vezes, o inverso, a volta a uma natureza idealizada, volta essa que muito se assemelha ao discurso dos românticos do final do século XIX, ou ao movimento de “regresso à natureza” no início do século XX nos Estados Unidos. Hannigan (1995, p. 146) afirma que:

À medida que a Europa e América se tornam mais urbanizadas no final do século XIX, as visões da natureza começaram a passar por uma importante transformação. Em particular, o conceito de “natureza selvagem” como ameaça para a fixação humana que há muito predominava deu lugar a uma nova e intensamente romântica, representação na qual a experiência da vida selvagem foi celebrada.

A saturação das grandes cidades, o planejamento urbano/arquitetônico que privilegia o transporte motorizado em detrimento dos pedestres e o “sentimento de abstenção” gerado pelos medos, reais ou imaginários, que os espaços das grandes metrópoles contemporâneas incutem, materializados nos condomínios fechados e shopping centers, mais uma vez, anestesiam os sentidos, como visto no Capítulo 2:

Nas grandes metrópoles, nos shopping centers, nas grandes avenidas, nos condomínios os pés são forçados a caminhar sobre aquilo que os olhos já percorreram, de forma que caminhar se torna um ato de sofrimento, quando deveria ser descoberta de novas paisagens. Quando os pés tornam-se escravos dos olhos, o caminhar torna-se enfadonho, mera questão de cobrir distâncias, como ocorre quando devemos atravessar um longo estacionamento. A vitalidade das cidades depende do caminhar e a liberdade das pernas provoca a liberdade da mente, conclui. (HILLMAN, 1993 apud BRUHNS, 2004, p. 5, grifo nosso).

O discurso que tem por base a reaproximação do ser humano com a “natureza”, por meio das caminhadas de longa distância, e com as cidades, por meio das walkable communities/cities211, por exemplo, deve ser lido à luz da hegemonia vigente da matriz discursiva do desenvolvimento sustentável onde, segundo Rodrigues (2012, s/p):

(…) al mismo tiempo en que ocultan los verdaderos responsables por los problemas –aquellos que se apropian y son propietarios de los medios de producción, de las tierra, de las riquezas –, atribuyen la responsabilidad a

211 Os princípios das walkable communities/cities podem ser encontrados de forma sintetizada na Carta Internacional do Caminhar, elaborada pela organização internacional Walk 21, , cuja adesão de movimentos por mobilidade urbana sustentável e administrações governamentais locais de diversos países da Europa e da América do Norte vem se tornando bastante significativa e, mais recentemente, recebendo adesão de diversos países capitalistas periféricos. (). Acessado em: 10 nov. 2014.

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los “consumidores” y a los pobres que ocupan áreas que no interesan al sector inmobiliario, obscureciendo la esencia de la desigualdad y de la segregación socio-espacial, ocultando la importancia del territorio, del espacio y de la sociedad. [...] La difusión del término “desarrollo sustentable”, como ya se ha dicho, hace que el análisis de la producción se traslade estratégicamente para el análisis del consumo, obscureciendo la existencia de trabajadores, de clases y de estratos de clases sociales, promoviendo una matriz ideológica combinada con la precarización de las relaciones de trabajo.

Em uma tentativa sistemática de negar os conflitos sociais imanentes à estrutura do capitalismo, em poucas palavras, os que se valem da perspectiva do desenvolvimento sustentável procurariam eliminar qualquer tipo de ruptura, erupção, ou dissenso na sociedade e, inclusive, na própria “natureza”. Inversamente ao preconizado, como toda ideologia, as caminhadas na natureza se constituiriam como práticas, não para a busca da alteridade e da autenticidade, mas, sim, para a reprodução das estruturas sociais no espaço urbano. Evade-se da metrópole, pois essa é extremamente heterogênea, desigual e contraditória, para se aconchegar no colo da “mãe natureza”, privilégio dos que podem pagar. Lefebvre já fazia uma crítica áspera aos que propalavam o direito à “natureza”, ainda nos anos 1950 e 1960:

Muito estranhamente, o direito a natureza (ao campo e à “natureza pura”) entrou para a prática social há alguns anos em favor dos lazeres. Caminhou através das vituperações, que se tornaram banais, contra o barulho, a fadiga, o universo “concentracionista” das cidades (enquanto que a cidade apodrece ou explode). Estranho percurso, dizemos: a natureza entra para o valor de troca e para a mercadoria; é comprada e vendida. Os lazeres comercializados, industrializados, organizados institucionalmente, destroem essa “naturalidade” da qual as pessoas se ocupam a fim de traficá-la e trafegar por ela. A “natureza”, ou aquilo que é tido como tal, aquilo que dela sobrevive, torna-se o gueto dos lazeres, o lugar separado do gozo, a aposentadoria da “criatividade”. Os urbanos transportam o urbano consigo, ainda que não carreguem a urbanidade! Face a esse direito, ou pseudo- direito, o direito à cidade se afirma como um apelo, como uma exigência. Através de surpreendentes desvios – a nostalgia o turista o retorno para o coração da cidade tradicional, o apelo das centralidades existentes ou recentemente elaboradas – esse direito caminha lentamente. A reivindicação da natureza, o desejo de aproveitar dela são desvios do direito à cidade. Esta última reivindicação se anuncia indiretamente, como tendência de fugir à cidade deteriorada e não renovada, a vida urbana alienada antes de existir “realmente”. A necessidade e o “direito” à natureza contrariam o direito à cidade sem conseguir iludi-lo. (Isto não significa que não se deva preservar amplos espaços “naturais” diante das proliferações da cidade que explodiu). (LEFEBVRE, 1969, p. 107-108, grifo nosso).

Dentro deste contexto, o caminhar hoje se despolitizou a tal ponto (não que o flâneur do século XIX fosse conscientemente/explicitamente politizado, mas seu caminhar se

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contrapunha à divisão social do trabalho) que se precisa sair da metrópole (espaço ideologicamente construído como do medo, de não solidariedade), apenas no final de semana (tempo do lazer, apropriado pela lógica do consumo e da divisão do trabalho), por meio de pacotes turísticos, para se refugiar na “natureza”, espaço soft, onde os “iguais” podem se encontrar de forma a recuperar a sua completude, por meio do discurso do “bem-estar”, da “qualidade de vida”, do “consumo orgânico” e do “turismo sustentável”.

Figura 35 - Parte de um panfleto promocional oferecendo “férias de caminhadas em Portugal” – realizado pela agência de turismo portuguesa Pomarinho

Fonte: Site – Pomarinho.212

212 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

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Por fim, em relação às caminhadas na “natureza”, como mercadoria, destacam-se as peregrinações laicas contemporâneas (CARNEIRO, 2004; CARNEIRO; STEIL, 2008; GROS, 2010; LE BRETON, 2011), encontrando no “mercado o ‘mediador’ do sagrado”. Esse sagrado, por sua vez, se relaciona com a concepção de Zizek (2009) de “hedonismo envergonhado”, dentro da “lógica dos contrários”, onde, no capitalismo contemporâneo, não existe uma real predisposição da sociedade para se sacrificar, sobretudo, por uma causa externa a si mesmo, onde, ainda segundo Zizek, a “ética budista da solidariedade com todos os seres vivos, corresponde a [uma atitude de denegação fetichista]”. Assim, para o autor esloveno, “tudo o que o budismo oferece como solução é uma indiferença universalizada – uma aprendizagem do modo de evitar uma empatia excessiva. É por isso que o budismo pode cair com tanta facilidade no preciso contrário da compaixão universal” (ZIZEK, 2009, p. 54). Com o discurso213 da busca por experiências pessoais de “transformação” e do autoconhecimento inúmeros caminhos surgiram, no Brasil e no mundo, inspirados pelo Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, constituindo-se, inclusive, em atividades preparatórias para o Caminho de Santiago (CARNEIRO; STEIL, 2008). Dentre eles, destacam-se: o Caminho da Luz, em Minas Gerais; o Caminho do Sol, em São Paulo; o Caminho da Fé, que passa pelos estados de São Paulo e Minas Gerais; o Caminho das Missões Jesuíticas, no Rio Grande do Sul; os Passos de Anchieta, no Espírito Santo; compondo as caminhadas de longa distâncias dos “peregrinos-turistas”214.

213 Como exemplo do discurso dos que “optam” por realizar ese tipo de peregrinação destaca-se a sentença a seguir: Los caminos de Compostela siguen siendo recorridos hoy por miles de peregrinos (BURLES, 1995), no ya como afirmación ostentosa de la fe sino en una búsqueda personal de espiritualidad o en una voluntad de tener un tiempo para uno mismo, de romper con los ritmos y las técnicas del mundo contemporáneo uniéndose simbólicamente a millones de predecesores. Se trata todavía de una promesa, de una voluntad de afirmar la devoción, pero lo más común es que sea una búsqueda de lo sagrado, es decir, de la constitución de una temporalidad y una experiencia íntima, inolvidable por su originalidad y densidad. Los caminos de la fe ceden lugar a los caminos del conocimiento o de la fidelidad a la historia, los caminos de la verdad se convierten en caminos del sentido, y ya será cada peregrino quien decida con qué tipo de contenido personal los va a llenar (LE BRETON, 1997, 2007 y ss.). El caminar desnuda, despoja, invita a pensar el mundo al aire libre de las cosas y recuerda al hombre la humildad y la belleza de su condición. El caminante es hoy el peregrino de una espiritualidad personal, y su camino le procura recogimiento, humildad, paciencia; es una forma ambulatoria de plegaria, librada sin restricciones al genius loci, a la inmensidad del mundo alrededor de uno mismo” (LE BRETON, 2011, p. 146-147). Importante frisar que não se trata aqui de desqualificar a fala, ou mesmo, as percepções dos “peregrinos-turistas” em relação aos motivos que os levam a eleger o percurso de tais caminhos, pois, independentemente de sua percepção, o que interessa aqui é demonstrar a relação objetiva desse tipo de discurso no âmbito das relações sociais fetichizadas do capitalista. 214 Para mais informações acerca desses caminhos, acessar: Caminho da Luz: http://www.caminhodaluz.org.br/ Caminho do Sol: http://www.caminhodosol.org/ Caminho da Fé: http://www.caminhodafe.com.br/ Caminho das Missões Jesuíticas: http://www.caminhodasmissoes.com.br/site/ Passos de Anchieta: http://www.abapa.org.br/

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Figura 36 - Peregrinos no Caminho de Santiago de Compostela – Espanha

Fonte: Site – DW.215

Nessa “nova área híbrida”, que mescla “elementos ditos ‘religiosos’ com uma estrutura turística”, “a seleção de bens simbólicos e invenção de tradições” próprias dessas caminhadas, contribuem para a criação de um estilo de vida e a reafirmação de um imaginário que se calca na “busca de uma experiência transformadora, fora das obrigações e compromissos cotidianos” (CARNEIRO, 2004, p. 98). Nesse sentido:

(...) a oferta e o consumo dos signos e símbolos que circulam em torno destas peregrinações podem ser inscritas na modalidade de religiosidade difusa, bastante próxima ao que vem sendo denominado Nova Era, que permite identificar o “espírito peregrino” com o sagrado (...). Ou seja, um sagrado que se apresenta livre de qualquer tipo de “monopólio institucional”, ancorado na religião do Self, nas formas destradicionalizadas, onde as mercadorias, o lazer, o espetáculo, se tornam os instrumentos indispensáveis para produzir significados espirituais e morais. (CARNEIRO, 2004, p. 97, grifo nosso).

É importante também ressaltar que a criação de tais rotas de peregrinação, amparadas por uma lógica mercadológica, além de instituir o fim da ideia de sacrifício, também o faz em relação à aventura e ao risco. Assim “o grande achado de Compostela [, por exemplo,] foi ter instituído caminhos traçados, com etapas definidas, visitas obrigatórias: quatro estradas principais, inumeráveis outras secundárias” (GROS, 2010, p. 121). Além disso, toda a infraestrutura de albergues, restaurantes, lojas de equipamentos e atrações

215 Disponível em: . Acessado em: 17 set. 2015.

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desenhadas especialmente para os peregrinos, contribuem para que sua estadia em cada “pouso” seja segura e algo de reconfortante. Analisados alguns exemplos do caminhar na “natureza” como mercadoria, procurar-se-á, a seguir, realizar o mesmo procedimento para o caminhar no urbano.

Exemplo 2: O caminhar como mercadoria-serviço no urbano

Se é necessária uma prescrição médica para nos lembrarmos de caminhar, então estamos vivendo num estranho mundo novo, onde alguma coisa básica foi esquecida. (HILLMAN, 1993, p. 51).

Como foi observado ao longo desse texto, a cidade acaba por assumir a forma mercadoria na atualidade. É possível constatar, assim, o número crescente de atividades de lazer que se valem do espaço público coletivo urbano, sendo boa parte delas impulsionadas por demandas organizadas de movimentos sociais urbanos, como será possível observar no Capítulo 5. Muito estimulada como atividade de lazer de rua, mas não se resumindo apenas a isso, nota-se, por exemplo, o aumento das vendas de bicicletas e acessórios em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, com a ampliação da malha cicloviária, por exemplo. Vale ressaltar que, sobretudo nas grandes cidades, ainda que exista a organização cada vez mais expressiva de movimentos urbanos que lutam por uma mobilidade urbana que privilegie o uso de veículos não motorizados, o discurso da “cidade e da mobilidade sustentáveis”, defendido por muitos desses movimentos, é utilizado, muitas vezes, como marketing empresarial para o aquecimento desse setor em franca expansão. No mercado de bicicletas e acessórios216 espanhol, mesmo em meio a uma crise econômica histórica, por exemplo:

[...] em 2013, foram vendidas na Espanha mais de um milhão de bicicletas, superando pelo segundo ano consecutivo as vendas de automóveis (722.703). Cifras que animaram ao setor, que faturou 2,48% a mais que no exercício anterior e que movimentou mais de um bilhão de euros (três bilhões de reais), segundo a Associação de Marcas de Bicicletas da Espanha (AMBE). A indústria ciclística, que emprega 14.000 pessoas, exibe musculatura econômica. “Nos últimos cinco anos, em plena crise, as vendas

216 Para mais informações sobre a movimentação da economia aquecida pelo mercado de bicicletas, especificamente na Inglaterra, acessar a matéria: Cyclists can help Britain's economy get back on its bike suggests research. Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

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de bicicletas cresceram a uma média de 10%”, anuncia a AMBE, que acaba de apresentar seu relatório sobre as cifras do setor. (LEÓN, 2014, s/p). 217

Assim, se, por um lado, há uma forte reinvindicação para a apropriação pública dos espaços urbanos não mediada pela lógica da mercadoria, por outro, é possível observar um conjunto crescente de segmentos de produtos comercializáveis de lazer urbano que se concretizam no espaço público das ruas. O mercado das corridas de rua, por exemplo, vem crescendo vertiginosamente. Interessante notar o fato de que, para cada corrida de rua existente, geralmente, sob a mesma organização, se faz acompanhar por eventos de caminhadas, em uma versão reduzida do percurso para os não-corredores. A definição de rotas pré-estabelecidas, ordenadas e vigiadas por todo um aparato que privatiza, ainda que momentaneamente, o espaço das ruas, traz para a dinâmica de socialização no espaço público o cultivo dessa atividade como uma festa- mercadoria, banhada por um universo de competição, mas amenizado pelo discurso da “qualidade de vida”218. O mercado das corridas e caminhadas de rua movimenta, assim, vários segmentos relacionados aos setores de educação física e saúde/nutrição e, no Brasil, começa a se expandir para o meio rural, na versão corridas de trilha. Além disso, a promoção dessas corridas está intimamente relacionada às dinâmicas do “mundo gerencial”, onde vem crescendo a procura de empresas interessadas em promover caminhadas, corridas e olimpíadas corporativas, além de grupos de corrida para os seus funcionários” (TOTTI, 2014, s/p)219. Em relação aos valores movimentados nesse setor, destaca-se:

A expansão da corrida acompanha um crescimento geral do universo esportivo no Brasil. De acordo com um estudo da Pluri Consultoria, especializada em analisar esse mercado, o setor cresceu 7,1% ao ano entre 2007 e 2011, e hoje representa 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Um levantamento do Sebrae mostrou que o número de academias de ginástica cresceu 127% nos últimos cinco anos. (...) A última pesquisa mais completa sobre o setor foi realizada em 2009 pela Fundação Instituto de Administração da Universidade de São Paulo (FIA/USP), a pedido da Corpore, maior organizadora de corridas de rua do país. O levantamento chegou à conclusão de que o Brasil tinha, na época,

217 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015. 218 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015. 219 Disponível em:< http://blogs.oglobo.globo.com/pulso/post/economia-de-folego-um-mercado-que-corre- 519733.html>. Acessado em: 30 set. 2014.

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cerca de 4 milhões de corredores, que movimentam um mercado de R$ 3 bilhões. (TOTTI, 2014, s/p, grifo nosso).

Por sua vez, devido às ideologias reinantes na sociedade capitalista, de necessidade de aumento das performances laborais, aliadas a uma sociedade guiada pelo culto pelo corpo escultórico, recentemente amortecido pelos discursos do “bem-estar” e da “qualidade de vida”, fragmenta-se “a identidade humana entre o homem de um lado e esse belo objeto que seria o corpo” (LE BRETON, 2009, p. 35), estimulando a prática de atividades físicas em academias de ginástica crescentemente, como apontam os dados acima. Assim, afirma-se que “[...] o interesse febril que dedicamos ao corpo não é de modo algum espontâneo e ‘livre’, é a resposta a imperativos sociais tais como a ‘linha’, a ‘forma’, o ‘orgasmo’, etc.” (LE BRETON, 2009, p. 85). Muitos são os serviços de atividades físicas, denominados de assessorias esportivas220, que contam com um serviço completo de trainer, oferecendo-se: caminhadas/corridas, alongamento e assessoria nutricional. É possível observar que essa lógica, inicialmente própria das grandes cidades, penetra a subjetividade das diversas frações de classe, inclusive nas cidades de menor porte.

Figura 37 - Pessoas caminhando e correndo nas esteiras de uma academia de ginástica

Fonte: Site – Vivo mais saudável.221

As corridas e caminhadas nas esteiras das academias, muitas vezes prescritas pelo corpo médico, representam mais uma vez o aprisionamento e a transformação dessas

220 Um exemplo de empresa de assessoria esportiva é a Trainer Assessoria Esportiva. Para mais informações: . Acessado em: 30 set. 2015. 221 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

224

atividades humanas em mercadoria, onde “o corpo quando encarna o homem”, ou ainda a “‘identificação’ do corpo como fragmento”222 (LE BRETON, 2009). Uma relação corporal completamente empobrecida, se se parte da perspectiva fenomenológica de que “o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE BRETON, 2009, p. 07). Realizadas em locais fechados, como regra, havendo pouco ou nenhuma interação social, essas caminhadas e corridas são realizadas em sua forma estática, reduzidas a pura mecanização do movimento humano, não se saindo do lugar. “[O] corpo humano [é] rebaixado ao modelo da máquina, destituído do valor da encarnação, da presença do homem, visto como um objeto entre outros” (LE BRETON, 2009, p. 90). Nesse caso, não se cumpre nem a função elementar de deslocamento humano. O que dirá para as potencialidades lúdica e estética que essa prática pode oferecer?

Figura 38 - Panfleto de divulgação de serviços de atividade física, incluindo “alongamento, caminhada nutrição e bem-estar”

Fonte: Panfleto digitalizado, recebido na rua pela autora.

222 Segundo Le Breton (2009, p. 31), “[o] isolamento do corpo nas sociedades ocidentais (eco longínquo das primeiras dissecações e do desenvolvimento da filosofia mecanista) comprova a existência de uma trama social na qual o homem é separado do cosmo, separado dos outros, separado de si mesmo. Em outras palavras, o corpo na modernidade (...)”.

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Ainda, frente a esse “universo fitness”, destacam-se uma série de aplicativos223 para aparelhos telefônicos celulares (smartphone) e tablet, que auxiliam no estabelecimento e avaliação de uma rotina diária para o praticante de atividades físicas, como a corrida, a caminhada e o ciclismo. Curioso notar que existe um, especificamente, chamado Mova Mais224, que supostamente estaria encarregado de beneficiar quem mais pratica atividade física, promovendo o incentivo a adoção de um “estilo de vida saudável”. Com um público superior a 60 mil usuários, “a proposta da plataforma é que as pessoas tenham disciplina e assiduidade em relação aos exercícios”225, um verdadeiro “incentivo para uma mudança de vida”. O incentivo para a prática de atividades físicas, no entanto, é pela via do consumo, ou seja, quanto mais exercícios se realiza, o tempo da atividade será computado “e gerará pontos para os programas de fidelidade parceiros”. Destacam-se, ainda, como exemplo do caminhar como mercadoria, a emergência do serviço de caminhadas guiadas nas cidades226. Transformadas em atividade turística histórico-cultural, o próprio ato de percorrer, de escapar ao controle da disciplina, de errar, de jogar, de derivar, de andar sem rumo, enfim, é capturado pela lógica das caminhadas pagas. “Ontem, a experiência urbana dinamizava a vita activa; hoje, a experiência urbana é consumida, patrimonializada, musealizada. A experiência se confunde então com uma paisagem, com o “quadro” que oculta a própria cidade” (MONGIN, 2009: 249). Ainda assim, esse tipo de caminhada possui cada vez mais aceitação, por ser uma atividade realizada ao ar livre e de forma coletiva, por isso, considerada mais segura. É a oportunidade que muitas pessoas possuem, turista ou mesmo moradores locais, de conhecer, por exemplo, um pouco mais do centro histórico, muitas vezes decadente, das cidades. Suas histórias, seu passado, reconstituindo-se, por meio do transitar pelas ruas e vielas, uma memória coletiva frequentemente soterrada pelo processo cada vez mais acelerado de abandono, construção e demolição de edifícios nessas áreas.

223 Ainda em relação a aplicativos para smartphone e tablet, ressalta-se a quantidade cada vez maior desses dispositivos relacionados à mobilidade urbana, dentre eles os que auxiliam o deslocamento a pé e a acessibilidade das vias. Para maiores informações e exemplos de alguns desses aplicativos existentes, vide: . Acessado em: 30 set. 2015. 224 Para mais informações sobre a plataforma Mova Mais, acessar: . Acessado em: 30 set. 2015. 225 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015. 226 Assim como as caminhadas na “natureza”, dentre as suas versões urbanas destacam-se as que são gratuitas e as que são pagas, sendo as gratuitas muitas vezes organizadas por movimentos sociais urbanos que lutam pela mobilidade urbana não motorizada e pela reapropriação dos espaços públicos e coletivos.

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Figura 39 - Parte de um panfleto da São Paulo Free Walking Tour, que oferece diferentes tipos de passeios caminhando pela cidade de São Paulo

Fonte: Panfleto recebido na rua pela autora.

Interessante notar que alguns tipos de caminhadas guiadas nas cidades, embora gratuitas, se formatam de forma que, ao longo do percurso do passeio, o público caminhante possa realizar diversas paradas a fim de se consumir, seja souvenirs, seja alimentação, ou alguma atração, etc. Assim, esse serviço acaba gerando lucro devido à organização entre os comerciantes que recebem esses visitantes. Uma lógica muito similar, mantendo-se as devidas diferenças, foi adotada nos shopping centers, nos Estados Unidos e no Canadá, focando no público alvo de pessoas idosas. Valendo-se do imaginário de segurança e da homogeneidade de classe que impera nesse espaço, esses idosos, muitos deles aposentados, que possuem tempo e renda fixa da aposentadoria, são convidados a caminharem no shopping (fitness walking), monitorados por equipe de profissionais da área da saúde e da educação física, como forma de se exercitarem coletivamente e interagirem socialmente, formando verdadeiros clubes de caminhada. “Its goal is to provide health-conscious people with a climate-controlled, safe, fun place in which to walk and to meet new friends”227.

227 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

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Figura 40 - Campanha publicitária de um mall walkers club, evidenciando-se pela imagem seu público alvo, idosos, e a finalidade do clube, fazer compras

Fonte: Site – Avalon Mall.228

Por meio das denominadas mall walkers club, as administrações dos shopping centers se utilizam do discurso da “qualidade de vida” e do “bem-estar” que a caminhada proporciona para poderem aproximar seus consumidores preferenciais das lojas e praças de alimentação, inclusive oferecendo descontos para os membros participantes desses clubes. Dentre outras “vantagens” oferecidas pelos mall walkers club, destacam-se:

Walkers get a jump on other shoppers as the stores finally open in the morning, a big advantage during the holiday shopping season. No wonder mall merchants support walking programs, it ensures loyal customers who return several times a week. Free blood pressure checks, low cost or free cholesterol screenings, presentations by health and exercise experts are other perks for mall walkers. The club may organize to take groups to charity walking events or other organized outdoor walks.229

Por fim, na categoria das caminhadas urbanas, encontra-se o exemplo da terceirização do caminhar, por meio do serviço de passeadores de cães. Essa realidade, presente no cotidiano das grandes cidades mundiais, se encontra em franca expansão devido à complexidade das próprias relações urbanas contemporâneas. Esse serviço, geralmente

228 Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015. 229 Em livre tradução: “Os caminhantes podem dar uma passadinha pela manhã nas lojas antes que estas estejam abertas para o público geral, uma grande vantagem durante a temporada de compras natalinas. Não admira que os comerciantes de shopping centers apoiem os programas de caminhada, eles garantem que os clientes leais retornam várias vezes por semana. Exames gratuitos ou de baixo custo de pressão arterial e colesterol, apresentações de especialistas em saúde e atividade física são outras regalias oferecidas para os caminhantes. O clube de caminhada dos shopping centers também podem organizar a participação dos grupos em eventos de caminhada de caridade ou outros passeios ao ar livre” (tradução nossa). Disponível em: . Acessado em: 30 set. 2015.

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consumido pelas classes médias nas grandes cidades, se origina de um aumento no número de pessoas que possuem animais de estimação, como gatos e cachorros. Dentre os diversos fatores para esse aumento, observa-se cada vez mais as relações sociais pautadas pela solidão da vida cotidiana, que exclui progressivamente o contato com outros sujeitos sociais. O animal de estimação viria, assim, para suprimir essa carência afetiva, ganhando, inclusive, status de ser humano, estimulado pelo mercado como um segmento potencial. Assim, observa-se a criação do universo pet, com um aumento vertiginoso no setor de serviços e objetos destinado aos animais de estimação. Soma-se, a tudo isso, o fato de que, nas grandes cidades, as classes médias vivem, sobretudo, em apartamentos, sendo esses, na maioria das vezes, cada vez menores. Também, há de se observar que com as distâncias dos locais de moradia dos locais de trabalho, dificultado por um trânsito cada vez mais caótico e lento, a possibilidade dos donos dos animais, no caso os cachorros (que dependem mais dessa relação, dentre os animais de estimação), de saírem às ruas para se exercitarem e interagirem com o ambiente é escassa, sendo a contratação de um passeador de cães a única possibilidade de muitos donos de poder oferecer condições mínimas de satisfação e conforto para o cão. Dessa forma, a terceirização do caminhar com o serviço dos passeadores de cães é uma mercadoria que elucida bastante as relações sociais nas cidades capitalistas contemporâneas.

Figura 41 - Passeador(a) de cachorros

Fonte: Site – Portal do Dog.230

230 Disponível em: . Acessado em: 27 set. 2015. No Brasil, além dos diversos passeadores informais, encontra-se negócios bastante estruturados como o Dogs Walker Brasil. Para mais informação, acesse: . Acessado em: 30 set. 2015.

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É, justamente, dentro desse embate entre o processo de estranhamento do caminhar, convertendo-se em mercadoria (inclusive, a do caminhar terceirizado), e a reação histórica, até muito recentemente, individual, de libertação dessa relação social aprisionada, que a organização e as demandas dos movimentos sociais urbanos contemporâneos pelo direito a caminhar, sobretudo, nas cidades, serão, analisadas no próximo capítulo.

230

5 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS CONTEMPORÂNEOS E A LUTA PELO DIREITO A SE CAMINHAR NAS CIDADES

Desde finales del siglo XIX, las ciudades, que históricamente han interpretado múltiples funciones, desde las militares y religiosas hasta las políticas y comerciales (en función de la historia y la geografía de su construcción y transformación), han ido definiéndose cada vez más en función del papel que desempeñan en la organización de la reproducción social: el aprovisionamiento y el mantenimiento de una población de clase trabajadora. Obviamente, la ciudad era también una extraordinaria centralización de medios de producción y productividad, de trabajo cultural y lucha política – y mucho más –, pero en el momento en que la división del trabajo entre producción y reproducción social se convirtió simultáneamente en una división espacial, la dimensión de la ciudad moderna pasó a definirse en función de los límites del movimiento diario de los trabajadores entre su hogar y su trabajo. (SMITH, 2005, p. 65, grifo nosso).

Como visto até aqui, se, por um lado, é possível observar um processo sistêmico de estranhamento e mercantilização das relações urbanas, especificamente, no caso em análise, relacionado ao caminhar; por outro, como será abordado a seguir, observa-se um movimento de resistência social a tal processo, com a organização de atividades coletivas que se contrapõem a essa lógica. Analisar a configuração dos movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar, sobretudo, nas cidades, bem como os avanços e limites de sua práxis política é o objetivo principal deste capítulo. Tais mobilizações são identificadas aqui por possuírem ao menos três eixos norteadores de reinvindicação: i) a mobilidade urbana a pé (que se materializaria com a atuação do Estado e de uma gestão democrática na concepção e implementação de políticas públicas de: infraestrutura urbana que privilegie os veículos não motorizados, particularmente, o pedestre; de contenção do fluxo e da velocidade dos automóveis motorizados; e, de estímulo a uma cultura viária que privilegie o respeito e a segurança especialmente do pedestre, no trânsito); ii) a reapropriação dos espaços públicos, ou como denomina Harvey (2014a), a “comunalização”231, como ambientes privilegiados de sociabilidade coletiva, por meio do estímulo à circulação e à permanência dos pedestres em tais espaços; iii) a adoção de uma concepção mais ampla sobre o caminhar, além de

231 Segundo Harvey (2014a, p. 145), “[...] no cerne dessa prática de comunalização encontra-se o princípio de que a relação entre o grupo social e o aspecto do ambiente tratado como um comum será tanto coletiva quanto não mercantilizada – para além dos limites da lógica das trocas e avaliações de mercado”.

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mobilidade a pé, devendo este ser estimulado em suas mais variadas acepções, como: resistência, vitalidade, diversidade, ludicidade, fruição, lazer, etc.232 Parte-se também da hipótese de que os movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar e pela reapropriação dos espaços públicos contemplam dois níveis de entendimento sobre o espaço público, que se complementam: i) como espaço para a circulação e a permanência interativa do pedestre nas ruas, parques, praças e edificações públicas, com acessibilidade e primazia pedestre em relação aos outros modais, sobretudo o motorizado individual; e, ii) como espaço “que se consubstancia na luta pelo direito à cidade, pelo direito a ter direitos, que ocupa espaço público como estratégia da dimensão real da política. [Nesse caso,] a ocupação, mesmo que transitória, de ruas, praças, parques e edifícios mostram a dimensão do espaço público no espaço político e na esfera pública” (RODRIGUES, 2008, s/p). Ainda em relação à segunda acepção, Rodrigues pondera que:

[...] para ocupar, tomar os espaços públicos há prévia organização societária. Não se trata de um evento de protesto, mas de organização social. Ela é feita não só pelos que sofrem com a exploração no mundo do trabalho com a falta de terra para plantar, de empregos, com a espoliação da moradia, mas também dos que se aliam nas lutas para apontar problemas de políticas neoliberais, de globalização excludente, desigualdade socioespacial. Constrói no espaço público, sua força política para obter direitos negados, para interferir nas políticas econômicas e sociais. (RODRIGUES, 2008, s/p)

Antes de adentrar aos propósitos do capítulo, no entanto, considerações iniciais devem ser pontuadas, a fim de se estabelecer, de antemão, alguns limites da análise a ser empreendida. Em primeiro lugar, salienta-se não haver sido realizado trabalho de campo sobre tais movimentos sociais urbanos contemporâneos, pois, dentro do escopo da confecção da tese, realizar tal tipo de investigação implicaria em um investimento de tempo e de logística do que a autora não dispunha.

232 Parte-se da hipótese de que esse terceiro eixo norteador das reivindicações dos movimentos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades vem contribuindo, de maneira acentuada, para a participação efetiva da fração de classe média nessa agenda política específica. O direito a fruição coletiva no espaço público como ponto de pauta da luta urbana se diferencia das lutas tradicionais pelo direito à moradia, por exemplo, atraindo, particularmente, o interesse desse grupo social. Além disso, “[...] o ressurgimento da ênfase na suposta perda de comunalidade urbana reflete os impactos aparentemente profundos da recente onda de privatizações, cercamentos, controles espaciais, policiamento e vigilância na qualidade de vida urbana em geral e, em particular, na potencialidade de se criar ou inibir novas formas de relações sociais, novos bens comuns) em um processo urbano influenciado, quando não dominado, por interesses de classe dos capitalistas” (HARVEY, 2014a. p. 134). Essa realidade privatizante, sobretudo, nas grandes cidades capitalistas mundiais, transcende espacialmente as áreas mais pauperizadas e segregadas das cidades, atingindo sobretudo as localidades mais valorizadas pelo capital, o que contribui para mobilizar as mais variadas frações de classe em torno de lutas em relação aos seus espaços de convivência cotidianos.

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Além disso, há que se destacar que, no Brasil, a emergência de tais mobilizações específicas se pronunciou com mais evidência nos últimos anos. Certamente, esses movimentos sociais já vinham sendo gestadas e organizadas anteriormente, inclusive, inspirados em experiências internacionais similares e nas lutas pela mobilidade urbana sustentável233, particularmente, lideradas por cicloativistas, como será possível observar a seguir. A hipótese aqui levantada, porém, é a de que, com os avanços em outras frentes de luta pela mobilidade urbana ativa, houve um estímulo para a organização de maneira mais sistemática e perene em torno do direito a se caminhar nas cidades, inclusive, em decorrência da percepção de que a luta relacionada às demandas pedestres, específica e historicamente, encontra-se relegada a um segundo plano de interesses, tanto por parte de movimentos sociais, quanto por parte, sobretudo, do próprio Estado. Regressando à justificativa para a não realização de trabalho de campo sobre essas mobilizações, portanto, é importante frisar que em se tratando de movimentos específicos bastante recentes234 no Brasil, só foram captados por esta investigação em um momento avançado do doutorado, contribuindo, assim, para o seu não acompanhamento em campo. A ausência de trabalho de campo, no entanto, não significa que não tenha sido realizada uma cuidadosa investigação de materiais disponibilizados nas plataformas/mídias digitais (sites, blogs, redes sociais), por meio das quais muitas dessas mobilizações se organizam e se comunicam, preferencialmente. Além de apresentar alguns desses movimentos sociais urbanos contemporâneos no Brasil e no mundo, concentrar-se-á a análise, sobretudo, em alguns documentos

233 Existe uma variedade de formas de se definir a categoria mobilidade urbana sustentável. “De acordo com UN- HABITAT (2013), sob a perspectiva ambiental, a mobilidade urbana sustentável aponta para três macroestratégias complementares de ação: i ) redução da necessidade de viagens motorizadas; ii) mudança de viagens para os modos de transporte público coletivo e os não motorizados; e, iii) inovações tecnológicas dos veículos e utilização de combustíveis mais limpos (incorporação de tecnologias de controle de emissões e de melhoria da eficiência energética)” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 96). 234 Quando se afirma que tais movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades são recentes no Brasil, tem-se a clareza de que a luta pelos direitos dos pedestres já existe há décadas no país, como é possível observar com a fundação, no ano de 1981, da Associação Brasileira de Pedestre - ABRASPE. Para mais informações sobre a ABRASPE, acessar: . Acessado em: 18 out. 2015. Porém, é importante fazer uma diferenciação entre esses dois tipos de movimentos sociais, tendo em vista que organizações, como a ABRASPE, estiveram historicamente empenhadas na concretização do primeiro eixo reivindicatório acima elencado, qual seja: a mobilidade a pé, preocupando-se, sobretudo, com a implementação de políticas públicas que visassem o fluxo e a segurança dos pedestres, a qualidade das calçadas, etc. O que não significa dizer que os outros dois eixos não estivessem presentes em suas pautas de luta. Disponível em: http://www.pedestre.org.br/downloads/opedestre.pdf. Acessado em: 02 nov. 2015. Porém, a particularidade das atuais mobilizações se caracteriza justamente por enfatizar, além da mobilidade a pé, os eixos de reapropriação do espaço público para o caminhante e a própria luta pela ampliação da concepção de pedestre, como aquele que encarna a possibilidade de recuperar a vitalidade das cidades e, de uma certa maneira, um tempo social que concorre com a lógica do capital.

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produzidos, no âmbito nacional e internacional, que expressam e norteiam, de alguma forma, o discurso e as ações dessas mobilizações. Tais documentos representam, em alguma medida, consensos e expressam uma opinião sistematizada e refletida coletivamente. Com isso, vale ressaltar que não se centrará atenção particular em mobilizações sociais concretas/específicas, ainda que sejam utilizadas para ilustrar o contexto mais geral de atuação política desses movimentos. Por sua vez, a partir de um suporte teórico-metodológico baseado na concepção de direito à cidade, pretende-se traçar um cenário mais amplo, onde essas expressões particulares se ancoram, para, então, propor uma análise crítica dos avanços e limites de tais mobilizações sócio-urbanas contemporâneas que lutam pelo direito de se caminhar nas cidades.

5.1 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS CONTEMPORÂNEOS – UMA BREVE HISTORIZAÇÃO

Para se compreender os movimentos sociais urbanos contemporâneos é importante retomar, uma vez mais, a perspectiva, até aqui desenvolvida, de que as cidades capitalistas contemporâneas se tornaram espaços privilegiados não só da reprodução da força de trabalho, como também da própria produção e acumulação capitalista. A “urbanização desempenha um papel particularmente ativo (ao lado de outros fenômenos, como os gastos militares) ao absorver as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir em sua busca de mais-valia” (HARVEY, 2014a, p. 33). Maricato corrobora essa ideia e acrescenta a “tensão social” advinda dessa apropriação privada do urbano:

Mas a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, também um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos. (MARICATO, 2013, p. 20, grifo nosso).

Como visto até aqui, em um contexto de globalização e neoliberalismo, liderados por um processo de reestruturação produtiva baseado, dentre outros aspectos, na precarização das relações de trabalho e na disseminação de ideologias desarticuladoras da classe trabalhadora, a “mercantilização monopolizadora das ruas” (HARVEY, 2014a) ocorre de maneira cada vez mais acelerada e avassaladora, mediada por um Estado capitalista, cujo

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papel estrutural é o de dispersor das contradições sistêmicas próprias desse modo de produção (SANTOS, s/d). Por sua vez, Vainer (2013) relembra que:

A cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custo crescente de um transporte público precário e espaços urbanos segregados. (VAINER, 2013, p. 39).

Por mais que a urbanização venha desempenhando papel cada vez mais ativo na resolução das crises cíclicas do capital, observa-se, simultaneamente, a força do discurso de que as contradições e conflitos urbanos são originados “fora do mundo do trabalho e da produção e como tal, não é ao capital mas sim à sociedade no seu todo e, portanto, ao Estado que compete resolver” (SANTOS, s/d, p. 66). Em sua teoria da dialética negativa do Estado capitalista, Boaventura de Sousa Santos aponta os limites estruturais e o caráter ideológico das “políticas urbanas” acionadas pelo Estado, como um “conjunto de mecanismos de dispersão variáveis e de variável articulação segundo uma série complexa de fatores estruturais e conjunturais” (SANTOS, s/d, p. 69) e acrescenta que:

Ao superar a questão urbana das contradições do modo de produção capitalista que estão na sua base, o Estado converte-a num conjunto de “problemas sociais” ou “tensões sociais” suscetíveis de serem resolvidos dentro dos limites estruturais e de compatibilidade funcional impostos pela lógica do capital. Uma vez formulada a questão urbana ao nível da estrutura de superfície da sociedade, é também ao nível desta estrutura que a sua resolução deve ser planeada e executada. O objetivo não é resolver as contradições, mas dispersá-las, mantendo-as em níveis toleráveis e funcionais perante as exigências da acumulação capitalista no momento histórico e na conjuntura dadas (...). (SANTOS, s/d, p. 68, grifo nosso).

Em meio aos limites estruturais impostos pelo sistema capitalista, “(que não são estáticos) [,] decorre[ntes] conjuntamente da defesa da propriedade privada, do funcionamento da renda fundiária e dos recursos financeiros tornados disponíveis pelo processo de acumulação” (SANTOS, s/d, p. 69), o Estado é cada vez mais acionado pelas “classes urbanas” heterogêneas, em forma de movimentos sociais urbanos235, a fim de mediar as “tensões sociais” geradas pela conflitividade oriunda da “problemática urbana”.

235 Os movimentos sociais urbanos, para Manuel Castells, são definidos como “sistemas de práticas sociais contraditórias que confrontam a ordem estabelecida a partir das contradições específicas da problemática urbana” (CASTELLS apud Santos, s/d, p. 76). Por sua vez, para Rodrigues, “os movimentos sociais além de mostrar as desigualdades na distribuição da riqueza e de poder alteram a cultura política. [São] (...)

235

Como salienta Dagnino, a cultura política mundial se viu extremamente abalada com a emergência do projeto global neoliberal, afetando particularmente os países latino- americanos, com a “confluência perversa entre um projeto político democratizante, participativo, e o projeto neoliberal, [marcando] hoje (...) o cenário da luta pelo aprofundamento da democracia na sociedade brasileira” (DAGNINO, 2004, p. 95), sendo que “[...] a perversidade [da confluência desses dois projetos] estaria colocada, desde logo, no fato de que, apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva” (DAGNINO, 2004, p. 96-97). Nesse contexto, o movimento articulado de encolhimento do Estado e enfraquecimento de organizações tradicionais de esquerda – sindicatos e partidos políticos, por exemplo –, e “a progressiva transferência de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil” – particularmente para as organizações não governamentais (ONGs) – (DAGNINO, 2004, p. 97), gera contradições e ambiguidades na identificação dos projetos políticos a que se vinculam esses “novos sujeitos sociais”, exatamente porque o projeto neoliberal passa a se valer da utilização, ainda que na aparência, de “referenciais comuns” ao “projeto político democratizante, participativo”, como “participação, sociedade civil, cidadania, democracia” (DAGNINO, 2004, p. 97). Meszáros (2004), por sua vez, chama a atenção para a prevalência de uma ideologia dominante que expressa, das mais distintas formas, a não existência de alternativas para o capitalismo, embora mantenha um discurso hegemônico que defende o pluralismo. Zizek (1996, p. 5) acrescenta que:

(...) hoje, como assinalou Fredric Jameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular e assombrada pelas visões do futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o “fim do mundo” que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o “real” que de algum modo sobrevivera, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global (...). (grifos do autor).

É possível afirmar, dentro desse contexto, que o campo das disputas políticas no/do urbano se tornou mais complexo e a identificação dos discursos ideológicos que respaldam os interesses da classe dominante também se converteu mais nebulosa, inclusive

‘manifestações dos conflitos de classes ou de camadas de classes, que reafirmam (os de acordo com o ‘status quo’) ou contestam a ordem estabelecida (os contestatórios e/ou populares) em relação à concentração da riqueza e do poder’” (RODRIGUES, A. 1993, p. 3; RODRIGUES, 2005b, s/p, grifo nosso).

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para o próprio reconhecimento dos movimentos sociais urbanos, que se “onguizaram”236, sendo possível observar que “[...] em boa parte do mundo capitalista, passamos por um período surpreendente em que a política foi despolitizada e mercantilizada” (HARVEY, 2011, p. 178). Para Harvey, é somente através de uma “exposição clara de como as práticas dominantes funcionam”, por meio de uma “teorização radical”, que os movimentos sociais articulados podem construir espaços efetivamente radicalizados para transformação da realidade social:

Muitas e muitas vezes, os movimentos políticos construíram espaços alternativos, nos quais algo aparentemente diferente acontece, apenas para descobrir que suas alternativas logo eram reabsorvidas nas práticas dominantes da reprodução capitalista. (...). Portanto, a conclusão deve certamente ser que são as práticas dominantes que têm de ser visitadas. (HARVEY, 2011, p. 194).

Harvey (2014), no entanto, tece crítica ao que ele denomina de “esquerda tradicional” que resiste “em abandonar a sua ênfase (...) na produção em favor de uma política da vida cotidiana” (Harvey, 2014)237 e, por isso, não concebe os vários movimentos sociais urbanos contemporâneos238, organizados em torno de demandas pontuais e não sistêmicas

236 O neologismo “onguização” refere-se ao processo histórico global em que os movimentos sociais urbanos passaram a se estruturar institucional, jurídica e ideologicamente a partir do modelo advindo das organizações não governamentais – ONGs, inclusive em relação a suas reivindicações junto ao Estado. “A luta por sociedade emancipada, ficaria renegada ao passado, a tarefa agora é humanizar o capitalismo, atuar sob o prisma da solidariedade, da filantropia” (SANTOS, 2011, p. 13). O potencial político transformador das estruturas de exploração sistêmica passa a ser substituído pelo discurso das “parcerias”, “empowerment”, “sinergia” “governança participativa”, “planejamento estratégico”, “advocacy”, “governaça” e da “gestão”, onde, como aponta Dagnino, em diálogo com Luciana Tatagiba: “A ênfase gerencialista e empreendorista transita da área da administração privada para o âmbito da gestão estatal (TATAGIBA, 2003) com todas as implicações despolitizadoras delas decorrentes” (TATAGIBA, 2004, p. 103). É importante ressaltar, no entanto, uma tendência recente, no Brasil, para a constituição de movimentos sociais mais informais, horizontais e de atuação local, como observar-se-á a seguir. A pesquisa, Ativismo no contexto urbano: diagnóstico para ação nas cidades, que investigou movimentos sociais cujos campos de atuação se centravam em mobilidade e transporte, resíduos sólidos e infraestrutura nas cidades, identifica que “[...] a partir de 2011, acentua-se um padrão de atuação dos grupos que não fazem planejamento estratégico, indicando possivelmente uma nova forma de atuação, ou sugerindo de que é uma prática de grupos mais consolidados ao longo do tempo. Os grupos que atuam nacionalmente surgem em ordem crescente até 1997, quando passa a haver um decréscimo contínuo. Nesse mesmo período desde 1997, aumentam progressivamente o surgimento de grupos com atuação local em diferentes cidades” (ESCOLA DE ATIVISMO, 2014, p. 21). Além disso, “[...] um dado que chama bastante atenção é que 51% dos grupos pesquisados (141) não possuem CNPJ. A maior parte desses grupos não- institucionalizados se autodeclararam como Movimentos (50), Coletivos (33) e Grupos (19), totalizando 102, correspondente a 72%. Somados os Fóruns, que em sua maioria não possuem CNPJ (13), e os Comitês, que nenhum possui (6), esse percentual chega a 86% (121) (ESCOLA DE ATIVISMO, 2014, p. 33). 237 Disponível em: . Acessado em: 18 jul. 2015. 238 Harvey (2014) chama atenção para a diversidade e fragmentação que compõem os movimentos sociais urbanos contemporâneos que se organizam para promover mudanças sociais. Além das organizações não governamentais, as quais o autor tece críticas radicais, destaca também os movimentos anarquistas, autonomistas e organizações de base; os movimentos originados do mundo do trabalho e partidos de esquerda; os movimentos

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(ainda que a origem dessas demandas se assenta nos processos de acumulação por espoliação - deslocamentos e despossessão, por exemplo) (HARVEY, 2004; 2011; 2014a), como “espaços heterópicos” que possuem potencial revolucionário239. E prossegue Harvey:

Ao meu ver, a política do cotidiano é o ponto crítico a partir do qual podem se desenvolver as energias revolucionárias, e onde já ocorrem atividades orientadas para a definição de uma vida não alienada. (HARVEY, 2014, s/p).240

Para esse autor, inclusive, muitos desses movimentos “podem tornar-se radicalizados ao longo do tempo na medida em que eles, cada vez mais, percebam que os problemas são sistêmicos e não particulares ou locais” (HARVEY, 2011, p. 207), e agrega que “o enfoque na vida diária na cidade, vila, aldeia ou outro local fornece uma base material para a organização política contra as ameaças que as políticas de Estado e de interesses capitalistas, invariavelmente, representam para as populações vulneráveis” (HARVEY, 2011, p. 207). Harvey chama a atenção, assim, para a necessidade de se reunir essas diversas forças sociais dispersas pelo neoliberalismo em um projeto político unificado, a partir da concepção de direito à cidade:

O direito à cidade não pode ser concebido simplesmente como um direito individual. Ele demanda um esforço coletivo e a formação de direitos políticos coletivos ao redor de solidariedades sociais. No entanto, o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. (...). A descentralização do poder que o neoliberalismo demanda abriu espaços de toda sorte para que florescessem uma variedade de iniciativas locais de maneira que são muito mais consistentes com uma imagem de socialismo descentralizado ou de um socialismo anarquista do que de um planejamento e controle centralizados e estritos. As inovações já existem lá fora. O problema é como reuni-las de maneira a construir uma alternativa viável ao neoliberalismo de mercado. (HARVEY, 2013b, p. 32-33, grifo nosso).

sociais guiados “pela necessidade pragmática de resistir a deslocamentos e desapropriações; e, por fim, os movimentos emancipatórios em torno das questões de identidade. 239 Para Harvey, “[...] o conceito de heterotopia defendido por Lefebvre (radicalmente diferente do de Foucault) delineia espaços sociais limítrofes de possibilidades onde ‘algo diferente’ é não apenas possível, mas fundamental para a definição de trajetórias revolucionárias. Esse ‘algo diferente’ não decorre necessariamente de um projeto consciente, mas simplesmente daquilo que as pessoas fazem, sentem, percebem e terminam por articular à medida que procuram significados para sua vida cotidiana. Essas práticas criam espaços heterópicos por toda parte. Não precisamos esperar a grande revolução para que esses espaços venham a se concretizar” (HARVEY, 2014, p. 22, grifos do autor). 240 Disponível em: . Acessado em: 18 jul. 2015.

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Com esse panorama, é possível afirmar que as contradições de classe materializadas espacialmente nas cidades passam a ser fontes inesgotáveis de lutas no tecido social urbano241. Assim, em um momento histórico onde uma “ideologia da circulação” reina absoluta espacial e temporalmente (visto no Capítulo 1), onde os “bens comuns urbanos” tornam-se cada vez mais privatizados (visto no Capítulo 2), e onde as relações sócio-espaciais se expressam, preponderantemente, a partir do valor de troca e não do valor de uso; uma pluralidade grande de movimentos sociais urbanos surgem com objetivos mais variados possíveis, mas, de alguma forma coincidem, procurando fazer frente a essa avalanche de “liofização”242 das relações urbanas. Pois, como afirma Lowy, “[...] se não devemos nutrir ilusões sobre um “capitalismo limpo”, devemos, entretanto, tentar ganhar tempo e impor aos poderes públicos algumas mudanças elementares” (LOWY, 2009, p. 49). Particularmente no Brasil, a organização dos movimentos sociais urbanos ganha corpo, sobretudo a partir dos anos 1970, quando as lutas populares por condições de urbanidade e moradia passam a ter “visibilidade pública e política” (RODRIGUES, 2005, s/p). A ideia de que a cidade, por ser produzida coletivamente, deve, também, ser apropriada coletivamente, entra no cenário das mobilizações e manifestações no processo constituinte. Sob forte pressão e organização popular e de outros estratos sociais243; em um processo de reabertura democrática, a Constituição de 1988, em seus artigos 182 e 182, incorpora, pela primeira vez, a questão urbana como direito coletivo, assegurando que a cidade “deve cumprir sua função social em benefício de todos” (controle social do uso e ocupação do solo) (RODRIGUES, 2005, s/p), embora convivendo “harmoniosamente”, na mesma Constituição, a concepção de que o direito à propriedade privada é inalienável.

241 Para Harvey (2014, p. 231), “[...] as práticas de acumulação por desapropriação, apropriação de rendas, pela extorsão de dinheiro e vantagens, encontram-se no âmago de muitos dos descontentamentos que se relacionam às qualidades da vida cotidiana para a massa da população. Os movimentos sociais urbanos costuma mobilizar- se em torno dessas questões, que decorrem do modo como a perpetuação do poder de classe se organiza em torno do estilo de vida e do trabalho. Portanto, os movimentos sociais urbanos sempre têm um conteúdo de classe mesmo quando são primariamente articulados em termos de direitos, cidadania e labuta da reprodução social”. 242 A expressão “‘liofização’ organizacional” é utilizada por Ricardo Antunes, em diálogo com o sociólogo espanhol Juan Jose Castillo, “tomada de empréstimo da química para explicar o processo de transformar substância líquida em pó”, para referir-se ao processo onde as empresas “enxugaram suas ‘substâncias vivas’, os trabalhadores, por meio da modernização tecnológica e da reestruturação produtiva” (ANTUNES apud COSTA, 2009, s/p). Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/21768-um-1o-digno-do- seculo-xix-entrevista-com-ricardo-antunes. Acessado em: 19 out. 2015. Parafraseando os autores em questão, a “liofização” das relações urbanas consistiria em “enxugar” a presença da classe trabalhadora dos espaços públicos urbanos na realização de atividades não estranhadas, não mercantilizadas. 243 Dentre essas diversas forças sociais, destaca-se o “Movimento Nacional pela Reforma Urbana – MNRU (criado em 1985), cujo ideário teve rebatimento na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988); vindo dar origem ao Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal de 1988” (DUARTE, 2015, p. 16).

239

A seguir, antes de empreender a análise propriamente dita sobre os movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar, torna-se importante contextualizá-los dentro de um conjunto mais amplo de movimentos sociais urbanos que têm como bandeira de luta a mobilidade urbana e a reapropriação do território coletivo urbano, seja ele as vias de circulação ou os espaços públicos de permanência, de uso da cidade.

5.1.1 Movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pela mobilidade urbana – privilegiando o transporte público e o não motorizado – e a reapropriação coletiva do espaço público244

As ruas congestionadas pelo tráfego tornam esse espaço público particular quase inutilizável até para os motoristas (para não falar de pedestres e manifestantes), chegando, em determinado momento, à cobrança de taxas de congestionamento e acesso, em uma tentativa de restringir o uso para que possam funcionar com mais eficiência. Esse tipo de rua não é um comum. Antes do surgimento dos carros, porém, as ruas geralmente o eram – um lugar de socialização popular, um espaço para as crianças brincarem (tenho idade suficiente para me lembrar que era onde brincávamos o tempo todo). Contudo, esse tipo de comum foi destruído e transformado em um espaço público dominado pelo automóvel estimulando as administrações urbanas a tentar recuperar alguns aspectos de um comum anterior “mais civilizado”, criando espaços exclusivos para pedestres, cafés nas calçadas, ciclovias, miniparques como espaços de lazer etc.) Mas essas tentativas de criar novos tipos de comuns urbanos podem ser facilmente capitalizadas. Na verdade, podem ser projetadas justamente com essa finalidade. Os parques urbanos quase sempre aumentam o preço dos imóveis nas áreas vizinhas (desde que, claro, o espaço público do parque seja controlado e patrulhado de modo a manter a ralé e os traficantes à distância). (...). A criação desse tipo de espaço público diminui radicalmente, em vez de aumentar, a potencialidade de comunalização de todos – a não ser os muito ricos. (HARVEY, 2014a, p. 146-147, grifo nosso).

A partir dessa citação de Harvey, é possível observar as encruzilhadas em que os movimentos sociais urbanos contemporâneos, que lutam pela mobilidade urbana – privilegiando o transporte público e o não motorizado – e a reapropriação coletiva do espaço público, se deparam ao elegerem determinadas frentes de lutas cotidianas com o objetivo de transformar as relações espaciais das cidades capitalistas mundiais. Por outro lado, Rodrigues (2008) destaca como a reapropriação (temporária ou permanente) dos espaços públicos pela sociedade civil pode se constituir em ato transgressivo em relação ao sistema estabelecido:

244 Ressalta-se que muitos desses movimentos sociais possuem uma agenda política reivindicatória mais ampla, incluindo temas conexos como a reforma urbana, de maneira geral, a questão da moradia e as mudanças climáticas, de maneira específica, dentre outros temas urbanos.

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A ocupação do espaço público pela sociedade civil organizada implica em desobediência civil ao que se considera uso “permitido”. Quando a sociedade civil organizada, qualquer que seja o sentido atribuído a ela, toma, isto é, ocupa o espaço público, provoca, ou pelo menos procura fazê-lo, a dessacralização do sistema político, da propriedade como bem absoluto, e das normas impostas pelo Estado capitalista ao espaço público. (RODRIGUES, 2008, s/p).

A partir dessa linha tênue e contraditória relacionada aos limites e possibilidades da ação política subversiva, balizada pela realidade objetiva, para se criar “novos tipos de comuns urbanos” que não sejam “capitalizados” é que se analisará aqui o papel desempenhado por esses movimentos sociais urbanos contemporâneos. Constituem-se mobilizações absolutamente plurais e heterogêneos, compostas por organizações não governamentais, organizações da sociedade civil de interesse público, associações, entidades filantrópicas, coletivos, comitês, fóruns, institutos, redes, grupos informais virtuais e/ou presenciais245, intervenções/performances urbanas individuais ou coletivas, dentre outros. Assim, como em qualquer movimento social urbano, “se incluem lutas reivindicativas muito diversas segundo os objetivos, o nível de organização e de mobilização, a composição de classe, o nível de consciência política e de articulação com lutas políticas mais amplas”, tendendo “a ser interclassistas na medida em que a ‘crise urbana’ atinge não só a classe operária como largos estratos da pequena burguesia” (SANTOS, s/d, p. 77).246 Dessa forma, uma quantidade enorme de tendências, formas de organização e matizes ideológicas compõe o cenário contemporâneo da luta pela mobilidade urbana, no Brasil e no mundo. Alguns mais contestadores em suas críticas à organização espacial das

245 Segundo a pesquisa, Ativismo no contexto urbano: diagnóstico para ação nas cidades, “[...] as novas tecnologias de comunicação ajudam a catalisar esses arranjos coletivos autônomos e independentes das instituições convencionais, por possuir custos operacionais reduzidos e possibilitar uma dinâmica de relações por afinidade. As ferramentas de troca de mensagens instantâneas, os celulares, os blogs, as mídias sociais, os wikis, ao ampliar consideravelmente a comunicação direta e multidiversa entre as pessoas, promovem uma alteração no padrão de constituição e organização dos grupos sociais, seja pela facilidade cada vez maior de compartilhamento de informações, de cooperação ou de ação coletiva. Os dados da pesquisa apresentam indicativos interessantes sobre esse fenômeno recente de proliferação de grupos a partir de uma configuração mais horizontal e local” (ESCOLA DE ATIVISMO, 2014, p. 21). 246 Reatualizando o argumento de Boaventura de Sousa Santos, para o fato de que na atualidade a “crise urbana” atinge não apenas a classe trabalhadora, em suas variadas frações de classe, como também a própria burguesia de forma expressiva – vide os congestionamentos viários, por exemplo – ainda que de forma bastante desigual. No entanto, vale lembrar que os estratos mais elevados da classe dominante ainda encontram soluções alternativas para fugir do tráfego caótico das grandes cidades, com a utilização de helicópteros para a sua locomoção, por exemplo. São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, segundo a Associação Brasileira dos Pilotos de Helicóptero (Abraphe), estão entre as dez cidades com maiores frotas de helicópteros do mundo, sendo São Paulo a primeira. Disponível em: . Acessado em: 20 out. 2015.

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cidades, norteados por uma visão anticapitalista e antiglobalização; outros menos, baseados em uma concepção mais reformista e de conciliação/pacto social; é possível encontrar, assim, uma heterogeneidade enorme nesses movimentos, sendo ilustrada nos seguintes exemplos: Passe Livre, Bicicletada, Reclaim the Street, Reclaim the Night, Living Streets, Critical Mass, Dia Mundial Sem Carro, Walk 21, Rua Viva, Poro. Nota-se que muitos deles adotam um “tipo de padrão de organização menos institucionalizado, sem lideranças definidas, estruturas menos hierarquizadas e mobilizações autoconvocadas” (ESCOLA DE ATIVISMO, 2014, p. 21). Vale a pena abordar, ainda que brevemente, algumas dessas bandeiras de luta. Por exemplo, o Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social, originário dos movimentos estudantis, que luta para que o transporte seja integralmente público, desvinculado da concessão à iniciativa privada. Segundo o MPL, o acesso universal ao transporte público deve ser garantido pelo Estado, por meio do passe livre para toda a população. “O debate sobre o direito de ir e vir, sobre a mobilidade urbana nas grandes cidades e sobre um novo modelo de transporte para o Brasil”247, faz parte de sua pauta reivindicatória. Além disso, como visto anteriormente, esse Movimento se autodefine como um “movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário”, sendo que “a independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.”248. É apenas com o processo histórico que a pauta do MPL se estendeu da reivindicação do passe livre para os estudantes para a defesa da tarifa zero249 de transporte público para toda a população, revelando, assim, um processo de amadurecimento político na compreensão do direito à cidade, sob o ângulo da luta de classes. Foram paulatinamente compreendendo que “o sistema de transportes só ser[ia] voltado para o interesse público se fo[sse] gerido por usuários e trabalhadores”. Aproximaram-se, assim, por exemplo, do Movimento dos Trabalhadores sem Teto – MTST e do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, além de outros coletivos relacionados às demandas pelo direito à cidade. Foi no III

247 Disponível em: http://www.passapalavra.info/2013/06/80247. Acessado em: 22 out. 2015. 248 Disponível em: http://www.mpl.org.br/. Acessado em: 22 out. 2015. 249 Em 2006, o MPL-SP organizou um seminário que contou com a presença do ex-secretário de Transporte, Lúcio Gregori, na gestão da, então, prefeita de São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores, Luiza Erundina (1989-1993). Scarcelli (2014) lembra que foi na gestão Erundina que o tema da tarifa zero no transporte público apareceu pela primeira vez na agenda de governamental brasileira. A proposta foi prontamente rechaçada na Câmara de Vereadores de São Paulo, sendo diretamente arquivada, sem passar por qualquer tipo de votação na Casa. Nesse seminário com o MPL-SP, Gregori chamou a atenção para o fato de que, restringir a luta pelo transporte público apenas aos estudantes era não compreender o real significado da ideia de mobilidade como um direito fundamental, que vem sendo violado no espaço urbano, atingindo, sobretudo, a classe trabalhadora como um todo.

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Encontro Nacional do MPL, em Guararema-SP, no ano de 2006, que “delinearam mais claramente seus horizontes anticapitalistas” (SCARCELLI, 2014, s/p). Já a Bicicletada250 se define como um “movimento sem líderes inspirada na Massa Crítica, ou Critical Mass, uma ‘coincidência organizada’ que começou a tomar as ruas de São Franscisco, nos EUA, no início dos anos 90”251. Seus principais objetivos se centram na divulgação da bicicleta como um meio de transporte sustentável no meio urbano e na apropriação do espaço de circulação por indivíduos não motorizados, prioritariamente. Baseados no princípio da ação direta e com o lema, “não estamos atrapalhando o trânsito, nós somos o trânsito”, buscam ocupar massivamente as faixas “destinadas” aos automóveis com o trânsito de bicicletas, desnaturalizando esse espaço como espaço preferencial, se não exclusivo, dos veículos motorizados. Por sua vez, o movimento Reclaim the Streets que, numa livre tradução, significa Reconquistar as Ruas, é um considerado também um movimento anárquico, ou seja, que não possui lideranças centralizadas ou institucionalizadas, se opondo ao uso do automóvel motorizado privado enquanto modal predominante de circulação nas cidades. A presença dos automóveis expulsaria a população das ruas, pelo espaço que ocupam e pela insegurança que provocam, dentre outros motivos. Nascido na Inglaterra, o Reclaim the Street ou o também Living the Streets, teria como ação principal a ocupação e o fechamento de ruas e espaços públicos para a realização de encontros, festas, enfim, outras formas de uso desses espaços, que não os utilizados para a circulação de transporte motorizado. O Reclaim the Night ou igualmente conhecido como Take Back the Night (Reconquiste a Noite ou Tenha de Volta a Noite), por seu turno, encontra-se bastante vinculado ao Reclaim the Street, mas possui uma clivagem de gênero nas denúncias e demandas propostas por essa luta. Esse movimento internacional surgiu como uma forma de protesto contra os assédios, estupros e assassinatos de mulheres que “ousavam” andar pelas ruas das cidades à noite, de madrugada. No Brasil, a Marcha das Vadias, inspirada no SlutWalk canadense, é um evento que acontece anualmente em diversas cidades do país e que tem por objetivo afirmar a posição feminista da relação de autonomia que deve existir entre a relação da inviolabilidade do corpo da mulher no espaço público. Também o Dia Mundial Sem Carro, realizado mundialmente em 22 de setembro, por diversas iniciativas que se propõem a visibilizar alternativas ao uso massivo do transporte

250 Disponível em: . Acessado em: 13 set. 2015. 251Disponível em: . Acessado em: 13 set. 2015.

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individual motorizado, tem como princípio a mobilidade sustentável. Ao incentivarem a adesão ao uso de outros modais de transporte, especificamente nesse dia, os organizadores da iniciativa acreditam que este se converte em gesto simbólico, porém, concreto, com potencial de sensibilizar os adeptos, especificamente, e toda a população, de maneira geral, a refletirem e buscarem soluções de mobilidade para além do uso excessivo do carro – mobilidade ativa. No âmbito das organizações não governamentais brasileiras, encontram-se, por exemplo, as ONGs Rua Viva e a Mobilize, dentre diversas, que reivindicam o espaço da rua, como o espaço da circulação e encontro das pessoas e não de carros. Baseados nos ideais da mobilidade sustentável e do não transporte, a Rua Viva, por exemplo, defende o desenvolvimento autônomo de regiões urbanas, para que a circulação das pessoas dependa cada vez menos do transporte motorizado. Por sua vez, o Mobilizee se centra na luta para que as “cidades sejam mais humanas e democráticas, com transporte público de qualidade, mais estrutura cicloviária e calçadas acessíveis, gerando menos acidentes e um ar mais limpo”252. Saindo do âmbito das organizações dos movimentos sociais ou organizações não governamentais, propriamente ditas, para espaços de reflexão e troca de conhecimentos sobre experiências em políticas públicas, ações diretas das comunidades de bairros, dentre outras, encontra-se, por exemplo, o Walk 21. Este espaço é conhecido como um espaço internacional altamente articulado, onde se propõe encontros anuais globais, sendo que já foram realizados dezesseis encontros anuais sobre o tema da mobilidade sustentável, tendo como prioridade o caminhar nas cidades em diversas partes do mundo. Além disso, o Walk 21, por meio do acúmulo de conhecimentos desenvolvidos ao longo desses anos de encontros presenciais, criou um site para a divulgação de uma agenda de investigações relacionadas ao caminhar e formulou uma Carta Internacional do Caminhar, traduzida em diversas línguas, que visa estreitar o diálogo e a pressão dos movimentos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades com os poderes públicos locais, para a implementação de políticas públicas que visem assegurar o caminhar como forma privilegiada de deslocamento urbano. Por fim, destaca-se, dentre tantos outros movimentos sociais, o Poro, composto por uma dupla de artistas de Belo Horizonte-MG que, por meio de “intervenções urbanas e ações efêmeras”, “busca apontar sutilezas, criar imagens poéticas, trazer à tona aspectos da cidade que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos”253.

252 Disponível em: . Acessado em: 08 jun. 2015. 253 Disponível em: . Acessado em: 15 mai. 2015. Para mais informações sobre o debate proposto pelo Poro, acessar o “Manifesto: por uma cidade lúdica e coletiva, por uma arte pública,

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É, enfim, contra a hegemonia da sociedade do automóvel, mediada, dentre outros elementos, pelo seu planejamento urbano, que se contribui para a tirania do isolamento, da não interação, do privatismo, que diversos coletivos vêm se organizando. Esses tipos de movimentos sociais são particularmente antigos em países como a Espanha, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá, por exemplo (LUDD, 2004; ECHAVARRI; DAUDÉN; SCHETTINO, 2009). Data de 1929, na Inglaterra, a criação de uma campanha, que posteriormente se transformou em uma associação, intitulada Living Streets254, que visa melhorar os espaços públicos dos bairros, tornando-os mais seguros e acessíveis as pessoas a pé. Ainda na Inglaterra, na década de 1930, a organização da sociedade civil inglesa, Ramblers Association255, surgiu com a finalidade de advogar a favor dos direitos de se caminhar em todo o território nacional, envolvendo, inclusive, os vários níveis da administração governamental. No Brasil, esse debate é mais recente. Uma das hipóteses é a de que se deu, primeiramente, a partir da universidade, pela reflexão de urbanistas e arquitetos (DEL RIO, 2002; HOLANDA, 2000; MALATESTA, 2014). O debate sobre o “não transporte” no país, ou seja, o alerta sobre a urgência em se frear o uso do transporte motorizado nas cidades, a fim de se reapropriar do espaço e do tempo social, foi apresentado, pela primeira vez, segundo Stanislau (s/d, s/p), por um grupo de urbanistas e engenheiros de tráfego, no 8º Congresso Brasileiro de Transporte Público, no Rio de Janeiro, há mais de duas décadas256. Por sua vez, no caso específico da emergência do cicloativismo, há a hipótese de que ocorreu nos anos 1980, com o regresso de vários exilados do período da ditadura militar da Europa, como Alfredo Sirkis e Fernando Gabeira, sensibilizados pelo estímulo a uma cultura do transporte não motorizado nesses países (XAVIER, s/d, s/p). Porém, é, sobretudo, no último decênio, por meio da constituição e da organização mais sistemática da sociedade civil e da estrutura estatal, sobretudo, com a criação do Ministério das Cidades257, em 2003, que o debate, principalmente sobre a mobilidade urbana sustentável, ganhou força258.

crítica e poética”. Disponível em: . Acessado em: 15 maio 2015. 254 Para maiores informações, acessar: . 255 Para maiores informações, acessar: . 256 Para maiores informações, acessar reportagem, Em defesa do não-transporte, de Nazareno Stanislau, no site da Revista Galileu: . Também, no site da ONG Rua Viva é possível encontrar um artigo intitulado, Não Transporte: a reconquista do espaço social, escrito a várias mãos, por diversos urbanistas brasileiros: . Acessado em: 13 jun. 2014. 257 Vale destacar, no entanto, que o Ministério das Cidades se transformou, ainda com pouco tempo de existência, no ano de 2005, em “moeda de troca” para a manutenção de uma base de sustentação do governo

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Com o Ministério das Cidades, a mobilidade urbana ganhou espaço nas políticas públicas de âmbito federal. Na estrutura interna do Ministério foi criada a Secretaria Nacional de Transporte e Mobilidade Urbana - SeMob. Entre as políticas formuladas, a partir desse período, encontram-se: o Projeto de Lei nº 1.687/2007, que institui as diretrizes da Política de Mobilidade Urbana; uma série de documentos259 que contribuem para o debate da criação da Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável; o Plano de Mobilidade por Bicicletas nas Cidades; e o Programa Brasil Acessível e a promulgação da Lei nº 12.587/2012, que instaura a Política Nacional de Mobilidade Urbana e “objetiva inverter [o] paradigma carrocentrista, priorizando o modo não motorizado e o transporte público no planejamento do sistema de mobilidade das cidades, este integrado com o planejamento de uso do solo” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 45). Além disso, vale destacar a realização de cinco Conferências Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007, 2010 e 2013) e a criação, em 2004, do Conselho das Cidades, onde esses temas foram amplamente tratados. No âmbito institucional, acaba de ser promulgada uma emenda que inclui no artigo 6º da Constituição Federal o transporte no conjunto dos direitos sociais260, juntamente com “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Ainda no plano federal, visando cumprir os objetivos traçados pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, destaca-se, o projeto, em desenvolvimento, pela SeMob do Ministério da Cidade, do Sistema Nacional de Informações de Mobilidade Urbana e a publicação, em 2015, do Caderno de Referências para Elaboração de Plano de Mobilidade Urbana – PlanMob – cujo objetivo é o “de instrumentalizar os municípios para que atendam a exigência de elaboração de seus Planos, fornece subsídios para o planejamento da mobilidade urbana em todo o país” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 11). Com isso, muitas cidades brasileiras já começaram a debater e a introduzir, em nível municipal, os princípios

federal no Congresso Nacional, apesar de ter surgido como a materialização utópica de um projeto coletivo germinado ainda nos anos 1960, com o governo João Goulart, fortalecendo-se ao longo do processo de redemocratização do Brasil, de se pensar o desenvolvimento urbano como ferramenta de inclusão e redução das desigualdades sociais. 258 Cabe assinalar que não é parte integrante deste trabalho desenvolver uma reflexão aprofundada sobre como essas políticas públicas vêm sendo implementadas, nem o alcance dessa implementação. 259 Esses documentos podem ser acessados em:

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norteadores da Política Nacional de Mobilidade Urbana em seus planos diretores e planos de mobilidade urbana. Com o objetivo de “criar um novo paradigma sobre o tema”, o Caderno de Referências do PlanMob destaca conceitos e fundamentos sobre mobilidade urbana baseados em uma perspectiva de “qualidade ambiental”, “mudanças climáticas” e no “desenvolvimento urbano sustentável”, em sintonia com os “diversos tratados, convenções e declarações internacionais, tais como a Agenda 21, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, as Conferências das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (UN-Habitat)” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 94), e, no plano nacional, com o Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257/2001, que previu o direito a “cidades sustentáveis”, e a Lei nº 12.587/2012, que “garante a prioridade do transporte não motorizado [e coletivo] sobre o transporte individual motorizado, independentemente do tamanho das cidades” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, 36), devido ao esgotamento deste tipo de modelo. Diante dessa breve contextualização sobre a entrada da temática da mobilidade urbana sustentável e da reapropriação dos espaços públicos aos não motorizados na agenda política nacional, por meio da ação de movimentos sociais urbanos e por parte do Estado, a seguir, se debruçará mais detidamente sobre os movimentos sociais urbanos contemporâneos e a luta pelo direito a se caminhar nas cidades, como parte dessas mobilizações mais amplas relacionadas à mobilidade urbana, mas que dá voz e visibilidade própria à causa pedestre. Como salientado inicialmente neste capítulo, a constituição desse tipo de organização específica, voltada para a efetivação de pelo menos três eixos norteadores de reinvindicação: i) a mobilidade urbana a pé; ii) a reapropriação coletiva dos espaços públicos pelos pedestres; e, iii) a adoção de uma concepção mais ampla sobre o caminhar para além da mobilidade; é um fenômeno extremamente recente no país, que vem ganhando espaço no tema mais amplo da mobilidade urbana, de uma maneira em geral.

5.1.1.1 Movimentos sociais urbanos contemporâneos e a luta pelo direito a se caminhar nas cidades

Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada no Jornal do Brasil, de 09 de maio de 1982, a respeito da criação da Associação de Pedestres do Rio de Janeiro, fez um grave apelo sobre a necessidade de se lutar pelo direito a se caminhar, que ecoa fortemente nos dias atuais:

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Vamos trabalhar pela afirmação (ou reafirmação) da existência do pedestre, a mais antiga qualificação humana do mundo. Da existência e dos direitos que lhe são próprios, tão simples, tão naturais, e que se condensam num só: o direito de andar, de ir e vir, previsto em todas as constituições... o mais humilde e o mais desprezado de todos os direitos do homem. Com licença: queremos passar. (ANDRADE, 1982, s/p).261

Ainda que se constitua no modal de transporte mais utilizado pela população brasileira (vide Figura 42), a mobilidade a pé e o direito dos que caminham nas cidades têm sido historicamente negligenciados pelo poder público e, em certa medida, pela própria sociedade civil organizada que luta por políticas urbanas, particularmente a mobilidade. Porém, sobretudo a partir do século XXI, em alguns países latino-americanos262, observa-se um movimento de organização das mobilizações sociais urbanas que lutam pelo direito a se caminhar, questionando-se:

(...) os modos de deslocamento nas cidades, em grande medida devido à sacralização do automóvel, produto de seu apelo e status. Os discursos começam a derivar de uma perspectiva que prioriza a velocidade, para outra que, motivada pelos princípios de urbanidade, procura estabelecer uma organização espacial que tenha por foco o pedestre e promova menos velocidade e mais qualidade de vida, por meio da oferta de melhores espaços públicos. (BARROS, 2014, p. 01-02, grifo nosso).

261 Disponível em: . Acessado em: 10 ago. 2015. 262No México, por exemplo, encontra-se, provavelmente, uma das experiências mais organizadas, embora ainda bastante recente, de mobilização social em torno do direito a se caminhar. A Liga Peatonal, “una red de personas, colectivos y organizaciones dedicados a la promoción y defensa del efectivo ejercicio de los derechos del peatón en las ciudades mexicanas y de un espacio público que ponga como eje a la persona”, vem construindo um diálogo nacional em torno do tema, promovendo espaços (já realizou dois congressos, sendo o primeiro em 2014, nacional, e em 2015, internacional – para mais informações, acessar: ) e documentos de consenso (Carta Mexicana de los Derechos del Peatón) sobre os direitos dos pedestres. Disponível em: . Acessado em: 23 out. 2015. Para acessar a Carta, vide: . No ano de 2015, ano eleitoral nos municípios mexicanos, foi elaborada, por diversas organizações, a Agenda de Movilidad México, contendo cinco compromissos a serem firmados pelos candidatos, dentre eles “calidad y seguridade em la movilidad peatonal”. Disponível em: . Acessado em: 10 out. 2015. Para o Instituto de Políticas para el Transporte y el Desarrollo – ITDP – México –, particularmente para a Cidade do México, assim, “está emergiendo un nuevo interés por la movilidad peatonal, que se refleja tanto en la irrupción de nuevos movimientos ciudadanos que buscan defender los derechos del peatón, como el impulso dado al transporte no motorizado por las organizaciones da la sociedad civil y algunas iniciativas gubernamentales”. Disponível em: . Acessado em: 23 out. 2015. Destaca-se, ainda, que o ITDP - México realizou um seminário internacional, entre outubro de 2014 a abril de 2015, intitulado, Movilidad Peatonal: de la investigación a la política púbica. Além disso, o México foi o único país latino americano a ser sede de um congresso da Walk21, em 2012. Disponível em: . Acessado em: 17 mar. 2015. Várias outras experiências mexicanas poderiam ser elencadas em relação à mobilização da sociedade civil em torno do tema do direito a se caminhar nas cidades, sendo estes alguns registros importantes desse percurso que apenas se inicia.

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Apesar de sua heterogeneidade e incipiência, a hipótese que se defende aqui é a de que, no Brasil, alguns desses movimentos vêm surgindo de forma bastante informal, por exemplo, pela união de amigos/conhecidos, a partir de experiências individuais no exterior e/ou por meio de atividades pontuais, convocadas pelas redes sociais, para a promoção de ações locais e diretas de intervenções urbanas que dão visibilidade à causa do pedestre. No entanto, observa-se a tendência para que uma parcela dessas mobilizações se organize de forma mais duradoura e, por isso, busque sua institucionalização263.

Gráfico 3 - Distribuição dos deslocamentos por modo de transporte, Brasil, 2012

Fonte: ANTP (12/2012) apud Ministério das Cidades (2015).264

Essa formalização permite com que esses movimentos possam ter um maior diálogo e penetração no estabelecimento de prioridades e ações por parte da administração pública, por exemplo. A institucionalização permite, assim, que esses movimentos sejam reconhecidos e convocados como sujeitos sociais qualificados para o debate público sobre assuntos relacionados ao direito de se caminhar nas cidades.

263 No Manifesto por Ruas mais Humanas e Sustentáveis, por uma Cidade Melhor é possível encontrar algumas organizações que lutam, dentre outras temáticas, pelo direito a se caminhar na cidade. Algumas delas, bem como outras, serão tratadas a seguir. 264 No gráfico em questão, as nomenclaturas para cada modal de transporte se encontram abreviadas, sendo: “bici” – bicicleta; “moto” – motocicleta; “auto” – automóvel e “TC” – transporte coletivo. Chama-se atenção, ainda, para o fato de que os dados contidos no gráfico representam valores absolutos para o país. Certamente, dependendo da região, do estado ou do município, e das localidades de cada município esses dados variam. Ainda assim, é extremamente significativo o que apontam esses números: a prevalência do transporte a pé sobre as demais modalidades. Disponível em: . Acessado em: 15 out. 2015.

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No mapeamento aqui realizado, não é de se estranhar que a presença expressiva dessas mobilizações em grandes cidades, como a megalópole cidade de São Paulo, por exemplo. Se unem, frequentemente, com organizações não governamentais e outros tipos de organizações vinculadas a temas mais amplos das políticas urbanas, com ênfase, sobretudo, em mobilidade, mas que vêm, pouco a pouco, se sensibilizando para a causa pedestre265. Algumas mobilizações que iniciam com atuações bastante localizadas, sejam em praças, ruas ou bairros, ganham “musculatura” ao se organizarem em instâncias de maior escopo. Vale a pena registrar dois exemplos dessa dinâmica. Exemplificando, a Liga Peatonal, no México, e a Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo266 – são espaços que surgiram da união entre várias mobilizações, que identificaram, nesse tipo de formato, a constituição de um movimento amplo e fortalecido, mas que, ao mesmo tempo, mantivesse uma estrutura democrática e plural, respeitando a existência particular de cada mobilização específica. A diferença que se deve destacar entre as duas experiências, provavelmente porque no México o debate tenha se iniciado um pouco antes, é que, no caso mexicano, a “Liga” é formada por movimentos de várias partes do país, e no caso brasileiro, a Cidadeapé concentra sua atuação em São Paulo. Dessa forma, é possível observar, também, como visto acima, que a Liga Peatonal já conseguiu produzir uma carta nacional em defesa dos direitos dos pedestres e realizar congressos (nacional e internacional) diretamente relacionados ao tema. Por outro lado, porém, destaca-se a atuação da Cidadeapé que, mesmo antes da sua institucionalização (março de 2015 é a data de sua fundação), em parceria com outras mobilizações, contribuiu

265 Elenca-se alguns outros representantes dos movimentos sociais, no Brasil, que, de alguma forma, trabalham com a agenda da mobilidade a pé: Cidade Ativa - Bela Rua - Desenhe sua faixa - Vila a 30 km/h - Pedestres no Jaguaré - Instituto Mobilidade Verde - ITDP Brasil - Transporte Ativo - Corrida Amiga - Desbravadores de Sampa - Sampa Pé - Canal Mova-se - Mobilize - Pé de Igualdade - * Destaca-se que uma lista contendo essas organizações, dentre outras, pode ser encontrada na página eletrônica do Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a pé em São Paulo. Disponível em: . Acessado em: 18 out. 2015. 266 Disponível em: . Acessado em: 20 out. 2015.

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para a criação da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Acessibilidade da Associação Nacional de Transportes Públicos - ANTP267, em fevereiro de 2014. Nesse espaço, iniciou-se a elaboração de um documento, encaminhado à Secretaria de Transportes da Prefeitura Municipal de São Paulo, em abril de 2015, contendo “Diretrizes para o Plano de Mobilidade Urbana 2015 da Cidade de São Paulo referentes à mobilidade a pé”268, contando com um processo de ampla participação. Além disso, entre os dias 25 e 28 de novembro de 2015, a Cidadeapé e outros parceiros apoiaram a realização do Seminário Internacional Cidades a Pé269, realizado pela ANTP, com o patrocínio do Banco Mundial e do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment Facility - GEF)270. Ressalta-se, também, a atuação da Cidadeapé para a instalação da Câmara Temática da Mobilidade a Pé, no Conselho Municipal de Transito e Transporte (CMTT), da Secretaria de Transporte da Prefeitura de São Paulo271. Observa-se que, com essas iniciativas, dentre outras, a Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo vem buscando cumprir com seu objetivo principal que é o “ter uma representatividade formal perante o poder público a fim de defender as condições dos espaços da cidade para quem se desloca a pé: os pedestres"272. Cabe ainda registrar, brevemente, algumas outras iniciativas locais-práticas nacionais, dentre tantas273, também conhecidas como “microrrevoluções urbanas cotidianas”

267 Para mais informações sobre a Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP, acessar: . Acessado em: 23 out. 2015. 268Disponível em: https://mobilidadeape.files.wordpress.com/2015/04/diretrizes-para-o-plano-de-mobilidade- urbana-2015-da-cidade-de-sc3a3o-paulo-referentes-c3a0-mobilidade-a-pc3a9-final.pdf 269 Disponível em: . Acessado em: 30 nov. 2015. Dentro do âmbito do Seminário, ocorreu “o ‘Pontapé’, espaço de apresentação no Seminário que t[ve] como finalidade a promoção de organizações, movimentos, coletivos e indivíduos que possu[i]am algum projeto e/ou iniciativa voltados à temática da transformação do espaço urbano visando à melhoria do deslocamento a pé nas cidades”. Essa atividade se vê particularmente importante na medida em que representa a tentativa de se fazer dialogar e conhecer os inúmeros projetos e/ou atividades espalhadas pelo país, voltadas para a mobilidade a pé. Disponível em: . Acessado em: 28 out. 2015. 270 Para mais informações sobre o Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment Facility - GEF), acessar: . Acessado em: 24 out. 2015. 271 O ofício com a solicitação da implantação da Câmara Temática foi protocolado pela associação Cidadeapé, em 22 de outubro de 2015. O ofício pode ser acessado em: . Acessado em: 23 out. 2015. 272 Disponível em: . Acessado em: 23 out. 2015. 273 Por exemplo, o Instituto Cidade em Movimento lançou o Prêmio Mobilidade Minuto, um concurso nacional, cuja primeira edição realizada em 2014, selecionou 77 iniciativas “já implementadas e que, de fato, são ações de impacto para a melhoria dos espaços públicos, transporte público e particular, meios não-motorizados, novas formas de organização do trabalho, uso de tecnologia, cortesia e qualidade da mobilidade”. Para acessar as inciativas que concorreram ao Prêmio, acessar: http://www.cidadeemmovimento.org/premiomobilidademinuto/concorrentes/prueba. Acessado em: 24 out. 2015.

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ou “urbanismo tático”, com o objetivo de ilustrar a diversidade de atuação desses movimentos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades. O Curativos Urbanos274, por exemplo, é um projeto iniciado na cidade de São Paulo e já realizado em vários lugares do Brasil e do mundo, cujo objetivo é “usar cor e bom humor para despertar a atenção sobre os machucados das calçadas - que podem machucar muita gente por aí”. Assim, “algumas calçadas machucadas ganham curativos coloridos” para promoverem o debate sobre os espaços públicos e para chamarem a atenção do poder público e dos proprietários dos imóveis para conservarem as calçadas urbanas.275

Figura 42 – Piso tátil danificado com um “curativo urbano”

Fonte: site – The City Fix Brasil.276

274 Alguns dos membros do Curativo Urbano, posteriormente, ajudaram a criar a associação sem fins lucrativos, Bela Rua, cujo objetivo é “realiza projetos urbanos e intervenções urbanas participativas e divertidas para incentivar as pessoas a transformar a cidade”. Disponível em: http://www.belarua.com.br/#viva. Acessado em: 04 ago. 2015. 275 Disponível em: https://www.facebook.com/curativosurbanos/info/?tab=page_info. Acessado em: 28 set. 2015. 276 Disponível em: . Acessado em: 07 ago. 2015.

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Por sua vez, a Jane’s Walk277 é uma caminhada coletiva, idealizada em Toronto, no Canadá, e inspirada nos ensinamentos da urbanista Jane Jacobs. Dessa maneira, uma das propostas da caminhada se concentra em “revelar nas cidades o cotidiano dos bairros e estabelecer relações com a vizinhança”278. Presente em diversas cidades do mundo, no Brasil já contou com edições em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia, Curitiba e Florianópolis. A organização da caminhada é realizada de forma voluntária por iniciativas locais, em cada cidade, devendo ser registrada no portal do Jane’s Walk.

Figura 43 - Intervenção urbana realizada pelo grupo mexicano, Peatones Primero, consistindo em uma caminhada coletiva pelas ruas da Cidade do México, onde cada participante, de posse dos seguintes materiais: adesivos com os seguintes dizeres – “Sanção cidadã por invadir um espaço pedestre” e filipetas, contendo os artigos do regramento de trânsito metropolitano, que amparam tal sansão; prega-os nos automóveis e obstáculos do mobiliário urbano que impedem ou dificultam o caminhar do pedestre sobre as calçadas

Fonte: Facebook – Peatones Primero.279

277 Disponível em: . Acessado em: 03 mai. 2015. 278 Disponível em: . Acessado em: 03 mai. 2015. 279Disponível em: . Acessado em: 23 set. 2015.

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Um outro tipo de iniciativa ainda bastante incipiente no Brasil, mas que já possui tradição em outros países280, são os projetos de caminhos escolares, também conhecidos como , em inglês, ou pedibus, em espanhol. Bastante negligenciadas nas políticas de planejamento urbano das cidades, as crianças281 sofrem cotidianamente nos espaços públicos das cidades, sobretudo, no caminho para a escola, com a falta de acessibilidade adequada no traçado urbano e a insegurança no trânsito. Assim, compartilha-se a ideia de que por meio da organização comunitária (família, escola e bairro) é possível construir um ambiente cívico que permita às crianças, de maneira autônoma e segura, irem caminhando à escola. A ideia é desenvolver a cultura do caminhar localmente, para que essa prática possa ser estendida espacialmente, afetando inclusive o caminhar dos adultos:

O esforço de oferecer melhores cidades para pedestres e ciclistas também significará, é claro, melhores condições para crianças, melhores oportunidades para idosos e um convite mais forte para que o exercício [físico] seja realizado em conexão com outras atividades diárias. A oportunidade de praticar atividades criativas e culturais também será reforçado quando a ‘cidade cotidiana’ for melhor para a atividade e permanência humanas. (GEHL, 2013, p. 161).

O projeto piloto, Caminho Escolar de Paraisópolis282, desenvolvido nesse bairro pela Secretaria de Habitação da Prefeitura do Município de São Paulo, mas que contou com ampla participação da comunidade para a sua implementação, entre os anos de 2011-2013, possuiu os objetivos acima descritos. De acordo com estudo realizado para a realização do projeto, “[...] na comunidade de Paraisópolis, a maioria dos alunos do Ensino Fundamental (85% da amostra em estudo) faz seu trajeto casa-escola-casa a pé, sozinhos ou

280 No dia 7 de outubro é comemorado o Dia Internacional do Caminhar à Escola / Caminho Escolar / Rotas Seguras. Disponível em: . Acessado em: 17 out. 2015. 281 Uma referência entre os movimentos sociais que desenvolvem projetos relacionados ao urbano (arte, arquitetura e espaço público), cujo o foco centra-se nas crianças e conta com sua ativa participação, é a Rede Ocara, com atuação na América Latina e especialmente no Brasil. Disponível em: http://www.redocara.com/. Acessado em: 01 set. 2015. Destaca-se que em 26 de outubro de 2015, no Palácio Anchieta, na cidade de São Paulo, foi realizado o Seminário “A relação criança-cidade: uma via de mão dupla”, para se discutir a construção de cidades a partir das necessidades das crianças. Disponível em: . Acessado em: 28 out. 2015. 282 Ressalta-se que a fundadora da Rede Ocara, Irene Quintáns, esteve à frente do projeto piloto Caminho Escolar em Paraisópolis. Disponível em: . Acessado em: 17 out. 2015. Mais informações sobre este projeto, acessar: . Acessado em: 17 out. 2015. O Caminhos da Escola foi o ganhador, na categoria Qualidade do Espaço Público da Mobilidade, em 2014, do Prêmio Mobilidade Minuto, do Instituto Cidade em Movimento.

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acompanhados”283. Esse dado, que se repete em vários locais do país, por si só já aponta para a necessidade de efetivação de projetos similares. Por sua vez, o Walking Gallery Brasil284 é um projeto iniciado em Barcelona, na Espanha285, e se encontra presente em algumas cidades do mundo, dentre elas, São Paulo e Porto Alegre. Em sua versão brasileira, com o slogan “Além das paredes”, busca “criar um novo modo de exibição artística ao ar livre por meio da ocupação do espaço público. Além de conectar pessoas de diferentes vertentes artísticas, o Walking Gallery Brasil busca conscientizar os cidadãos sobre a necessidade da participação da sociedade civil na melhoria da qualidade de vida nas cidades brasileiras”286. Em um gesto simbólico, o espaço de exposição das obras passa da galeria de arte ou do museu fechados e, muitas vezes elitizados, para o espaço público, democratizando assim o espaço da rua, como espaço de aprendizagem e fruição.287

283 Disponível em: . Acessado em: 17 out. 2015. 284 Disponível em: . Acessado em: 02 out. 2015. 285 Disponível em: . Acessado em: 02 out. 2015. 286Disponível em: . Acessado em: 02 out. 2015. 287 Dentre as várias iniciativas observadas nos últimos tempos que visam a democratização dos espaços públicos, e a sua reapropriação pelos não motorizados, destacam-se ainda: i) a grande mobilização e os embates originados em torno do fechamento da Avenida Paulista, em São Paulo, nos domingos, para a realização de atividades de encontros e de lazer. Costa (2015) relembra que, historicamente, esse tipo de luta que visa a comunitarização de espaços aos não motorizados surgiu, na América Latina, em Bogotá, Colômbia, há mais de quarenta anos, em 1974. Disponível em: . Acessado em: 26 out. 2015; ii) inspirado em experiências internacionais, a criação de parklets, “espaços de lazer construídos onde antes havia vagas de estacionamento de carros. Assim, o veículo estacionado cede espaço a um ambiente amigável para ciclistas e pedestres usufruírem a cidade, descansar, conversar e comer ao ar livre”. Disponível em: . Acessado em: 24 out. 2015. Em diversas cidades do Brasil encontram-se esses novos espaços de convivência pública que substituem vagas de estacionamento, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza e Recife, por exemplo. Existe também uma ampla literatura que vem no caminhar em espaços públicos uma ferramenta interessante de aprendizagem (Farrero, 2013; Masschelein, 2008).

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Figura 44 - Caminhada coletiva realizada pela Galeria Itinerante – Walking Gallery Brasil

Fonte: Facebook – Walking Gallery Brasil.288

Destaca-se também a iniciativa da Caminhada Silenciosa, idealizada pela artista carioca Vivian Caccuri, e que conta com dois anos de atividade, em diversos locais do Brasil e do mundo. Em um itinerário urbano de oito horas, guiado pela artista, os participantes da caminhada andam pela cidade, em silêncio, observando atentamente, através dos outros sentidos, as contradições e contrastes dessa experiência. Segundo Caccuri (2012, s/p), “o objetivo da caminhada silenciosa (...) é questionar como se configura a circulação em espaços públicos e privados, entendendo o urbanismo, a arquitetura e o capital como agentes formadores da personalidade dos espaços urbanos”289. Por fim, observa-se a existência de um conjunto de conceitos/categorias específicos elaborados para tratar o tema do caminhar no urbano, como: walkable communities, walk score, walkability, pedestrianização, urbanismo caminhável, ciudades que caminan, ciudades passeables, sociedad peatonal290, desenvolvidos, sobretudo, por urbanistas e arquitetos, em diversos países, (ECHAVARRI; DAUDÉN; SCHETTINO, 2009; GEHL, 2013; GÓMEZ, 2009; INSTITUTO MOBILIDADE VERDE291, SPECK, 2012) e que são amplamente utilizados para dar sustentação às demandas políticas desses movimentos que

288 Foto 1: caminhada do Walking Gallery Brasil em uma estação de metrô, disponível em: . Acessado em: 02 out. 2015. Foto 2: caminhada do Walking Gallery Brasil cruzando uma faixa de pedestre, disponível em: . Acessado em: 02 out. 2015. 289 Disponível em: . Acessado em: 24 out. 2015. 290 Todas essas categorias estão assentadas no princípio da caminhabilidade, “medida urbana sustentável” (GHIDINI, 2011), “que significa que la mayoría de las edificaciones se deben ubicar dentro de un radio de camino de 10 minutos entre la vivienda y el trabajo, lo que implica la peatonalid de las calles, árboles (…) y velocidad reducida para la circulación de vehículos” (GÓMEZ, 2009, p. 634). 291 Projeto de Urbanismo Caminhável, [on line], s/d. Disponível em: . Acessado em: 20 out. 2015.

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lutam pelo direito a se caminhar nas cidades. O caminhar, assim, vem sendo utilizado como indicador de qualidade de vida e “medida urbana sustentável” (GHIDINI, 2011, s/p), porém, segundo Gehl (2013, p. 134), “[...] o fato de haver muitos pedestres numa cidade não necessariamente indica que haja boa qualidade urbana – muitos caminham porque não há opções de transporte suficiente, ou há grandes distancias entre os vários serviços urbanos”. É bastante significativo observar, assim, a compreensão, por parte desses movimentos, de que “agora deve ser a vez do pedestre”292. Por seu histórico abandono e porque outros modais de transporte não motorizados vêm ganhando espaço no debate público e na implementação de políticas urbanas, como as bicicletas, por exemplo, os movimentos sociais que lutam pelo direito a se caminhar reivindicam que, dada a paulatina mudança de paradigma, o pedestre, como “praticante ordinário da cidade” (CERTEAU, 1994), não deve ser, mais uma vez, negligenciado293 e o caminhar deve ser valorizado em suas mais diversas expressões. A partir de um conjunto de documentos294 produzidos por diferentes mobilizações nacionais e internacionais, é possível identificar elementos comuns na agenda reivindicatória desses movimentos:

292 Observa-se que, dentre os seis objetivos da mobilidade a pé, traçados pela Cidadeapé, encontra-se a meta de que o Estado deve criar “programas de investimento na rede da mobilidade a pé, com igual ou maior aporte de investimento que aos outros modais”. Disponível em: . Acessado em: 22 out. 2015. 293 Para o dia 22 de setembro de 2015, data em que se comemora o Dia Mundial Sem Carro, a Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo enviou ao prefeito da cidade, Fernando Haddad, uma carta convite, convidando-o a ir, nesse dia, para o trabalho a pé e ele aceitou. E as razões elencadas para que o prefeito elegesse esse modal de transporte podem ser observadas no trecho da carta a seguir: “Na Semana da Mobilidade de 2014 o trajeto da residência do prefeito até a prefeitura foi realizado de bicicleta, demonstrando a preocupação da gestão em reconhecer os modos de deslocamento ativos. Em 2015 a Prefeitura de São Paulo continua trabalhando para uma cidade mais humana com implementação de projetos como a qualificação de 1 milhão de m² de calçadas e a redução de velocidades nas vias. Dito isso, nós da SampaPé!, Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo, Corridaamiga, Pé de Igualdade e Mobilize os convidamos a experimentar realizar o trajeto de sua residência até a prefeitura em nossa companhia no dia 22 de setembro de 2015 – Dia Mundial Sem Carro, enquanto observamos os pontos positivos e negativos de se deslocar a pé em São Paulo”. Disponível em: . Acessado em: 10 out. 2015. 294 Os documentos analisados em questão são: 1) Carta Internacional del Caminar – (autor: Walk21,s/d); Disponível em: http://www.walk21.com/charter/documents/Carta_Internacional_espanol_03-07.pdf. Acessado em: 10 nov. 2014. 2) Carta Europea de los Derechos del Peatón – (autor: Parlamento Europeu – 1988); Disponível em: http://www.peatonesdesevilla.org/Carta_Europea_Derechos_Peaton.html. Acessado em: 24 jul. 2015. 3) Carta Mexicana de los Derechos del Peatón – (autor: Liga Peatonal – 2014); Disponível em: http://ligapeatonal.org/carta-mexicana-de-los-derechos-del-peaton/. Acessado em 06 set. 2015. 4) Manifesto por Ruas mais Humanas e Sustentáveis, por uma Cidade Melhor (autor: vários movimentos – 2014); Disponível em: https://institutomobilidadeverde.wordpress.com/2014/09/24/manifesto-por-ruas-mais-humanas- e-sustentaveis-por-uma-cidade-melhor/. Acessado em: 24 fev. 2015.

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1. Caminhar como direito fundamental e universal e modal de transporte mais utilizado, por isso, priorização e valorização de uma rede de mobilidade a pé; 2. Papel central do Estado como promotor de arcabouço jurídico, criação de instâncias específicas e implementação de políticas urbanas que privilegiem a mobilidade a pé e os direitos do caminhante; 3. Cidade para pessoas - escala humana como eixo central das políticas públicas e dos desenhos urbanos para a mobilidade a pé; 4. Cidade compacta, densa, mista e participativa, que privilegie o urbanismo caminhável; 5. Reapropriação dos espaços públicos para pessoas e prevalência da velocidade de locomoção humana; 6. Acessibilidade universal e segurança – no trânsito, de maneira específica, e urbana, de maneira geral para os pedestres; 7. Participação ativa da sociedade civil nas instâncias consultivas e deliberativas da administração pública, nos diversos níveis de governo; 8. Promoção de cidades/comunidades saudáveis, amigáveis e sustentáveis; 9. Promoção do uso integral dos meios de transporte, privilegiando os motorizados coletivos e os não coletivos; 10. Criação de uma cultura do caminhar, para além da mobilidade a pé, como atividade humana que expressa resistência, vitalidade, diversidade, ludicidade, lazer, fruição, etc. A seguir, proceder-se-á uma análise crítica de alguns elementos presentes no discurso utilizado por parte dos movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pela mobilidade por meio do transporte coletivo e não motorizado e pela reapropriação coletiva dos espaços públicos, dentre eles, os que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades. Opta- se por analisar os seguintes princípios estruturantes desse discurso: cidades sustentáveis para pessoas, à luz de uma compreensão radical sobre o direito à cidade. Ressalta-se, como foi possível observar, que a diversidade de movimentos existentes também repercute na pluralidade de seus discursos. Isso significa que não se pretende aqui realizar uma análise generalizada e generalizante do discurso desses movimentos. Com isso, não se objetiva afirmar que a análise desses elementos se aplica para

5) Seis Objetivos da Mobilidade a Pé – (autor: Cidadeapé – 2015); Disponível em: http://cidadeape.org/6-objetivos-da-mobilidade-a-pe/. Acessado em: 09 out. 2015. 6) Carta do Pedestre – (autor: ABRASPE, s/d). Disponível em: http://www.pedestre.org.br/downloads/CARTA%20DO%20PEDESTRE.pdf. Acessado em: 09 out. 2015.

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todos os movimentos, embora, a investigação aqui empreendida permite afirmar que tais tipos de conhecimento aparecem de maneira estruturada e estruturadora no discurso de vários deles. A análise crítica a tal discurso implica identificar limites na objetivação e subjetivação política de tais movimentos, como sujeitos sociais implicados ativamente na transformação das relações urbanas atuais. Compartilha-se da visão de Harvey, de que esses movimentos são imprescindíveis para uma transformação radical da realidade social contemporânea, devendo estes, no entanto, identificarem no funcionamento e nas contradições do sistema capitalista, por meio de uma “teorização radical”, as origens que estruturam a dinâmica segregadora, segmentada, excludente e desigual das cidades, revelando as disputas existentes em relação ao urbano, onde quem o produz e o mantém não possui direito de usá-lo de forma a explorar toda a potencialidade criadora da condição humana:

A liberdade da cidade foi apropriada por uma elite financeira da classe capitalista em seu próprio interesse. Tem ainda que ser contraposta pelos movimentos populares. É ainda muito cedo para imaginar tal possibilidade? Podem os movimentos sociais urbanos emergirem como sendo cidade mais do que fragmentos perdidos da cidade? Se sim, então uma condição para o sucesso de tais movimentos é confrontar o problema do capital excedente em sua raiz. E isto significa, muito simplesmente, que a acumulação de capital não pode continuar sua trajetória corrente, abstratamente determinar nossos destinos e fortunas, ditar quem e o que somos e o que nossas cidades devem ser. Ele deveria ser considerado inalienável. A liberdade da cidade ainda está para ser encontrada. (HARVEY, 2009b, p. 16-17, grifo nosso).

A criação ou recuperação de espaços públicos para os não motorizados, por exemplo, deve seguir as pistas deixadas por Milton Santos (2001, s/p), ao se referir sobre o papel dos “homens lentos” que, por sua condição urbana, são os sujeitos sociais por excelência, capazes de perceber as contradições da realidade e, por isso, atuar politicamente sobre elas. Dessa forma, criar ou recuperar espaços públicos para a socialização e realização de ações políticas que levem em consideração a totalidade social, por meio da conscientização da universalidade da luta de classes, possibilita que esses movimentos não sejam absorvidos pelas “práticas dominantes da reprodução capitalista” e para que “transformações radicais da vida, do dia-a-dia”, por meio da apropriação desses espaços, ocorra (HARVEY, 2011). Zizek, por sua vez, destaca o dilema vivido pelos movimentos sociais contemporâneos:

El bloqueo que vivimos hoy se debe a que son dos los caminos posibles para el compromiso social y político: o se juega el juego del sistema, emprendiendo la “larga marcha a través de las instituciones”, o se interviene en los nuevos movimientos sociales, desde el feminismo al

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antirracismo, pasando por la ecología. De esta suerte, una vez más, el límite de estos movimientos es que no son POLÍTICOS en el sentido de un singular universal: son “movimientos de uno solo tema” que carecen de la dimensión de la universalidad, es decir, que no se relacionan con la TOTALIDAD social. (ZIZEK, 2004, p. 111, grifos do autor).

Ao avaliar as relações de classe na “era do globalismo transnacional”, Mészáros (2004) afirma que se está vivendo embates de classe nunca antes experimentados na história. O trabalho, sendo cada vez mais explorado, vai perdendo paulatinamente todas as suas conquistas históricas consagradas com o período do keynesianismo. Com o slogan “outro mundo é possível e necessário”, Mészáros fala da necessidade em se fortalecer um movimento internacionalista de massas na luta contra o capital. Segundo suas análises, contra a ideologia dominante, nunca se pode perder de vista o “imperativo de expansão autodestrutiva do capital” (MÉSZÁROS, 2004, p. 41). Antes de proceder a análise em questão, vale a pena observar o diálogo de David Harvey com Michel De Certeau e Michel Foucault sobre o vigor e a potência transformadora que as “práticas populares” nos espaços públicos podem desempenhar, ainda que presas à “ordem repressiva abrangente”:

De Certeau define aqui uma base para a compreensão do fermento das culturas de rua populares e localizadas, mesmo expressas no âmbito da estrutura imposta por alguma ordem repressiva abrangente. “O alvo”, ele escreve, “não é deixar claro como a violência da ordem é transmutada numa tecnologia disciplinar, mas antes trazer à luz as formas clandestinas assumidas pela criatividade dispersa, tática ou paliativo de grupos ou indivíduos já presos nas redes da ‘disciplina’”. A “ressurgência de práticas ‘populares’ na modernidade científica e industrial”, ele escreve, “não pode ser confinada ao passado, ao campo nem aos povos primitivos”, mas “está presente no cerne da economia contemporânea”. Os espaços podem ser ‘libertados’ mais facilmente do que Foucault imagina, precisamente porque as práticas sociais espacializam em vez de se localizarem no âmbito de alguma malha repressiva de controle. (DE CERTEAU apud HARVEY, 1992, p. 197).

5.1.2 O discurso das cidades sustentáveis para pessoas: desenho, planejamento e gestão – breve análise crítica à luz do direito à cidade

O discurso dos que se apoiam na ideia de cidades sustentáveis para pessoas, a fim de se imaginar295 possibilidades de transformação do urbano, está amparado na junção de

295 Utiliza-se a expressão “imaginar” a partir da concepção marxiana que identifica nessa ação uma atividade definidora da condição humana, como elemento constituinte do processo de intercâmbio entre o ser humano e a natureza, por meio do trabalho (MARX, 2004). Harvey inclusive chega a denominá-la de “imaginação prazerosa”, quando liberta das “relações de privilégio e domínio de classes” (HARVEY, 2014a, p. 18)

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vários conhecimentos, dentre eles, os oriundos do desenvolvimento sustentável e do movimento novo urbanismo. Parte-se da ideia de que, mesmo que o diagnóstico apresentado por esses discursos sobre os problemas das cidades esteja correto, o entendimento das origens de tais contradições não o é, sendo, inclusive, muitas vezes, ocultado. Por isso, as soluções propostas para lidar com tal problemática, acabam se tornando, frequentemente, insuficientes para transformar mais profundamente a realidade social apresentada. Esse discurso acaba por se converter, assim, em ideológico:

Los enunciados ideológicos pueden ser verdaderos en relación con la sociedad en su estado actual, pero falsos en cuanto sirven para descartar la posibilidad de una situación transformada. La verdad misma de estos enunciados es también la falsedad de su negación implícita de que pueda concebirse algo mejor. (EAGLETON, 1997, p. 51).

Em uma perspectiva mais alargada, compreende-se aqui “ideologia como função social ampla, e não somente como pura negatividade” (RANIERI, 2001, p.119). Dentro dessa perspectiva, a “ideologia proporciona a tomada de consciência dos problemas que afetam grupos sociais, assim como a orientação para a resolução destes conflitos, ainda que o conjunto ou mesmo o conteúdo das respostas possa ser gnosiologicamente interpretado como falso” (RANIERI, 2003, p. 22). Também:

Se a realidade, segundo Marx, aparece invertida, é porque até hoje estas condições materiais mantiveram o ser humano sob o seu jugo, e não puderam ser subvertidas, compreendidas a partir de sua lógica intrínseca, devido, inclusive, às limitações destas mesmas condições materiais que determinam as relações entre os indivíduos. Enquanto o homem não se emancipa, o poder, a política, a história e as ideias (a ideologia em geral) são expressos a partir de representação externa ao trabalho propriamente dito; submete-se a própria vontade a uma vontade ideal, autônoma, subsistente por si mesma, acreditando-se que esta vontade tem história própria e autônoma. (RANIERI, 2001, p. 118).

Se, por um lado, a “ideologia [, de maneira geral,] é (...) um elemento regulador, cujo fim é dirimir conflitos sociais” (RANIERI, 2003, p. 22); por outro, a ideologia dominante, particularmente, tem a “função social” (SILVA, 2015) de ocultar “uma realidade contraditória e invertida” para a perpetuação da reprodução social (BOTTOMORE, 2012). Para Zizek:

[...] assim, uma ideologia não é necessariamente “falsa”: quanto a seu conteúdo positivo, ela pode ser "verdadeira", muito precisa, pois o que

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realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação. Estamos dentro do espaço ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo — “verdadeiro” ou “falso” (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) — é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração”) de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. (ZIZEK, 1996, p. 12, grifos nossos).

Como salientou Lukács, “é a função social que decide se alguma coisa se torna ou não ideologia” (LUKÁCS apud SILVA, 2015, p. 348), sendo “a tarefa da crítica da ideologia (...) justamente discernir a necessidade oculta, naquilo que se manifesta como mera contingencia” (ZIZEK, 1996, p. 08). Assim, como salientou Dagnino (2004), a utilização de “referenciais comuns” aparentes, utilizados pelo projeto neoliberal a partir do “projeto político democratizante, participativo”, faz com que parte dos movimentos sociais acabem por adotar um discurso incapaz de ir às raízes dos problemas estruturais e históricos urbanos, logo, abraçando um arcabouço aparentemenre limitado, muitas vezes invertido, para a realização de suas ações políticas práticas. Telles (2010) acrescenta:

Se antes a questão urbana era definida sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudança social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois, da construção democrática e da universalização dos direitos (anos 80), agora os horizontes estão mais encolhidos, o debate é em grande parte conjugado no presente imediato das urgências do momento, os problemas urbanos tendem a deslizar e se confundir com os problemas da gestão urbana e a pesquisa social parece em grande pauta pautada pelos imperativos do pragmatismo gestionário das políticas sociais voltadas às versões brasileiras dos quarties difficiles. (TELLES, 2010, p. 16, grifo nosso).

“Mas como ocorre de a força crítica e de oposição trazidas por esquemas utópicos degenerar com tanta facilidade no curso de sua materialização em obediência a ordem vigente?” (HARVEY, 2009a, p. 221). A partir dessa indagação, ressalta-se, uma vez mais, que o objetivo proposto nesta seção é o de se lançar mão das categorias “cidades sustentáveis para pessoas” como expressões ideológicas norteadoras de parte dos movimentos sociais urbanos aqui analisados, observando-se, assim, os limites dessas mobilizações296. Interessa

296 Ressalta-se, mais uma vez, que não se propõe a realização de uma crítica generalizada e homogênea a esses movimentos sociais. Reconhece-se que há pautas legítimas no discurso e na ação dessas organizações, porém, o que se pretende aqui, sim, é analisar que por de trás de demandas legítimas, que buscam transformar a realidade social, pode haver fundamentos ideológicos norteadores que colaboram para que as contradições estruturais da

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aqui demonstrar a relação objetiva desse tipo de discurso no âmbito das relações sociais fetichizadas do capitalista.

5.1.2.1 Cidades sustentáveis para pessoas

De maneira geral, o discurso das cidades sustentáveis297 para pessoas está conscrito a uma visão idealista-reformista das instituições urbanas, em que, por meio de inovação tecnológica e do desenho urbano298, bem como do planejamento299 e da gestão300, aliados aos princípios da “mobilidade sustentável”301, ou “verde”, seria possível se “consertar” e harmonizar as fissuras da desordenada dinâmica urbana, que, cada vez mais, esvaziam os espaços públicos da presença dos não motorizados, por exemplo: produção e organização do espaço urbano não sejam enfrentadas, contribuindo para a perpetuação da reprodução social, apesar do discurso que clama por mudanças. 297 Segundo Cavalazzi (apud DUARTE, 2015, p. 22), “a cidade sustentável seria aquela onde se concretiza a compatibilização dos princípios de justiça distributiva com o equilíbrio das relações de todos os atores sociais; implicando o ‘desenvolvimento econômico compatível com a preservação ambiental e a qualidade de vida dos habitantes; em uma palavra, equidade’”. A forma sustentável “deverá mesclar, ainda que em escalas distintas, zonas de trabalho, moradia e lazer, reduzindo distâncias e ‘pedestrizando’ as cidades, de modo a frear a mobilidade da energia, das pessoas e bens” (ACSELRAD, 1999, p. 85). No âmbito do Estado, destaca-se que “o direito à cidade sustentável [foi] positivado no sistema jurídico brasileiro através do Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º (inciso I), e compreendido como ‘direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações’” (DUARTE, 2015, p. 22). Por sua vez, destaca-se que no Caderno de Referências para Elaboração de Plano de Mobilidade Urbana, “[o] Ministério das Cidades e a SeMob, em particular, [afirmam que] têm a missão de criar políticas públicas transversais que garantam o acesso das pessoas às cidades, respeitando os princípios de desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 21). 298 O discurso centrado em soluções a partir de inovações tecnológicas e do desenho urbano, “tornando as cidades mais seguras através do design” ou “um bom desenho viário vai educar os pedestres a caminhar”, por exemplo, é frequentemente utilizado como ferramenta compreensiva e de intervenção na problemática urbana contemporânea. 299 Por sua vez, o planejamento, elaborado e implementado de forma participativa é identificado como uma das soluções a serem perseguidas para a construção de cidades sustentáveis para pessoas. O urbanista Jan Gehl, por exemplo, acredita que “o planejamento físico pode influenciar imensamente o padrão de uso em regiões e áreas específicas”, e acrescenta que “[...] o fato de as pessoas serem atraídas para caminhar e permanecer nos espaços da cidade é muito mais uma questão de se trabalhar cuidadosamente com a dimensão humana e lançar um convite tentador” (GEHL, 2013, p. 17). 300Assim como ocorre com as inovações tecnológicas, o desenho e o planejamento, a expectativa em relação ao papel mediador da gestão urbana segue a mesma lógica dessas outras ferramentas “estratégicas” que buscam “organizar” de forma mais “eficiente” e “racional” o urbano. De maneira crítica, compreende-se que a ideia de gestão, introduzida fortemente com a emergência do neoliberalismo no cenário mundial, serve para administrar os conflitos que já estão postos e fazer “funcionar” a dinâmica contraditória das cidades. Suspendendo a política, não se cria nada para além da aplicação normativa vigente. 301 O discurso da mobilidade sustentável constitui uma das esferas do desenvolvimento sustentável, onde, segundo critérios elencados pela ONG Rua Viva, é possível ser resumido sob os seguintes aspectos: a) por meio da utilização de modos de transporte alternativo de qualidade, não motorizados ou público, é possível se reduzir impactos ambientais e sociais; b) contribuir para a permanência das pessoas nos espaços públicos, reduzindo-se, assim, a violência nas ruas; c) preservar o meio ambiente, reduzindo, por exemplo, a emissão de gases poluentes na atmosfera; d) contribuir para o reordenamento urbano, a fim de se evitar o excesso de deslocamento; e) promover uma cultura de paz no trânsito; f) preservar o patrimônio histórico, cultural e artístico das cidades. Disponível em: . Acessado em: 29 mar. 2015.

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Se os planejadores dos espaços urbanos – Arquitetos e Urbanistas, Planejadores de Transportes, Técnicos do Governo, etc. – levarem em consideração aspectos que priorizem o bem-estar ao nível do olho – ou seja, para a velocidade de 5Km/h (Gehl, 2010) – e preterirem o foco no modo motorizado – velocidade de mais de 50Km/h – as sociedades estarão mais próximas de uma mudança de paradigma (Vasconcellos, 2013). As cidades serão para pessoas, e não para carros. (BARROS, 2014, p. 356).

As pessoas começam a vislumbrar uma alternativa além da cidade acelerada, onde as bicicletas, os ônibus fora dos congestionamentos dos carros, as reduções de velocidades, as zonas de 30 Km/h e a caminhada transformam a cidade em um lugar mais humanizado e seguro. (MANIFESTO 15ª JORNADA BRASILEIRA “NA CIDADE, SEM MEU CARRO”, 2015).302

Assim, por sua capacidade de promover uma “cidade viva, segura, sustentável e saudável”, os que defendem a cidade sustentável para pessoas afirmam que a cidade planejada na “altura dos olhos”303, ou seja, a partir da escala humana, negligenciada historicamente pelos modernistas, deve ser priorizada por urbanistas, arquitetos, gestores, planejadores de transportes e movimentos sociais, etc., inclusive por seu baixo custo de implementação304, se comparado a outros investimentos sociais, para tornar o espaço público convidativo para circulação e permanência das pessoas (GEHL, 2013). A partir dessa concepção, deve-se transformar o padrão de uso das cidades, onde “[...] convites para caminhar, andar de bicicleta e participar de uma vida urbana certamente devem abranger, cidades, em qualquer parte do mundo, não importando o nível de desenvolvimento econômico” (GEHL, 2013, p. 215). Para o urbanista Jan Gehl, a implementação de políticas públicas centradas nas “cidades ao nível dos olhos” insere-se no elo das políticas globais, e geram, dentre outros aspectos, potencial econômico para o desenvolvimento das regiões que passam por tais transformações305. Embora teça crítica “aos interesses financeiros vinculados às duas maiores

302 Disponível em: . Acessado em: 09 out. 2015. 303Para Gehl (2013, p. 195), “a cidade ao nível dos olhos” é “a cidade experimentadas pelas pessoas”. 304 Entre os benefícios destacados na defesa do investimento em políticas públicas voltadas ao caminhar nas cidades, por exemplo, estariam: qualidade de vida e interação social, meio de transporte sustentável, prática saudável, atividade economicamente acessível, investimento público democrático, aproveitamento justo do solo e diminuição dos congestionamentos (ECHAVARRI; DAUDÉN; SCHETTINO, 2009). 305 O escritório Gehl Architects foi o responsável pela realização de estudos para a realização de um projeto de revitalização do Vale do Anhangabaú, no centro da cidade de São Paulo. Segundo informações da Arquitetura da Gentrificação, “projeto de investigação da jornalista Sabrina Duran realizado em parceria com a organização Repórter Brasil, sobre as medidas de higienização social adotadas durante as duas últimas administrações municipais de São Paulo (2005-2012) no centro da capital”, os estudos em questão foram realizados a pedido e pagos pelo banco Itaú, atribuindo uma clara vocação mercantil ao Vale. “O projeto, que prevê novo mobiliário urbano, quiosques, cafés, lojas, novas fachadas para o comércio local, um hotel na Avenida São João, um shopping subterrâneo na Galeria Prestes Maia e espelhos d'água ao longo do Vale, foi doado pelo banco à prefeitura. Se implementado, terá um custo estimado de R$ 200 milhões aos cofres públicos, segundo a própria

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escalas”, cidades e bairros, Gehl (2013) apresenta um exemplo da cidade dinamarquesa de AArhus, de como as políticas públicas centradas “na altura dos olhos” contribuem positivamente, segundo sua percepção, para a valorização dos imóveis da área em questão:

O rio AArhus, na Dinamarca, canalizado e transformado em via para o tráfego de veículos na década de 1930, foi reaberto em 1996-1998 e os espaços ao longo de seu curso transformando-se em área de recreação e pedestre. Desde então, as áreas ao longo do rio vêm sendo o espaço externo comum mais utilizado da cidade. Essa transformação foi tão popular e economicamente bem-sucedida – o valor dos edifícios ao longo do rio mais que dobrou – que outro trecho maior do rio foi reaberto em 2008. (GEHL, 2013, p. 16, grifo nosso).

Ainda assim, o urbanista dinamarquês advoga que esse tipo de política pública contribui para a “sustentabilidade social”306 na construção da “cidade como local de encontro” “na qual as pessoas de todos os grupos socioeconômicos possam movimentar-se lado a lado” (Gehl, 2013, p. 97) e acrescenta que:

Em uma dimensão muito maior do que a das arenas comerciais particulares, o espaço público da cidade democraticamente gerido garante acesso e oportunidades de expressão de todos os grupos da sociedade e liberdade para atividades alternativas. (...). Com interface aberta e acessível entre as pessoas, o espaço urbano garante uma importante arena para grandes encontros, manifestações e protestos políticos, bem como para atividades mais modestas, por exemplo, coleta de assinaturas, distribuição de folhetos, realização de happenings ou protestos. (GEHL, 2013, p. 28-29).

Regressando historicamente, o discurso centrado na recuperação de um planejamento urbano baseado na escala humana não motorizada, recorrendo a “estructura y morfología de los poblados tradicionales” e que promove “la creación y el mantenimiento de um ambiente diverso, escalable y compacto, con comunidades completas estruturadas de forma integral: lugares de trabajo, tendas, escuelas, parques y todas las instalaciones essenciales para la vida diaria de los residentes, situadas todas dentro de una distancia fácil de caminar” (GÓMEZ, 2009, p. 634), nasce em oposição ao urbanismo modernista. Inicia-se, como visto anteriormente, com Jane Jacobs, ainda nos anos 1960, e ganha força com o

SPUrbanismo, empresa pública submetida à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) e que está à frente do projeto”. Disponível em: . Acessado em: 27 out. 2015. 306 Segundo Gehl, “[o]s princípios subjacentes à criação de uma cidade viva também incluem planos para a sustentabilidade social. A cidade viva tenta se contrapor à propensão das pessoas para se retirarem nos condomínios fechados e promover a ideia de uma cidade acessível, atraente para todos os grupos da sociedade. A cidade é vista como o que atende a uma função democrática onde as pessoas encontram diversidade social e compreendem mais o outro, por meio do compartilhamento do mesmo espaço urbano” (GEHL, 2013, p. 109).

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movimento Novo Urbanismo307, liderado pelo promotor imobiliário Robert S. Davis e pelos arquitetos e urbanistas Andres Duany e Elizabeth Plater-Zyberk, dentre outros, nos Estados Unidos, sobretudo a partir dos anos 1980 (GÓMEZ, 2009). Em relação à análise e às proposições empreendidas por Jane Jacobs, Harvey aponta alguns pressupostos ideológicos utópicos ao modelo societal urbano proposto pela urbanista, que acabam por reafirmar a exclusão, o autoritarismo e a segregação social:

Jacobs foi à sua própria maneira tão utópica quanto o utopismo que atacou. Ela se propôs a organizar livremente o espaço de uma outra maneira, mais intima (de escala menos ampla), a fim de alcançar um propósito moral distinto. Sua versão de livre organização espacial trazia em si seu próprio autoritarismo, oculto na noção orgânica de ambiente habitacional e de comunidade como base da vida social. O aparato de vigilância e de controle que ao ver dela é tão benevolente, pois proporciona uma segurança tão necessária, causou em outras pessoas, como Senet (1970), a sensação de algo opressivo e degradante. E, ainda que ela tenha acentuado sobremaneira a diversidade étnica, só mesmo um certo tipo de diversidade controlada poderia de fato funcionar da forma feliz que ela concebera. A busca da realização dos objetivos de Jacobs poderia facilmente justificar todas aquelas comunidades fechadas e todos aqueles movimentos comunitários excludentes que hoje fragmentam cidades em todo o território dos Estados Unidos. (HARVEY, 2009a, p. 216-219, grifos nossos).

Harvey também chama a atenção para os componentes ideológicos presentes no discurso dos adeptos do Movimento Novo Urbanismo, que depositam no planejamento urbano, voltado para a escala comunitária, a capacidade de se proporcionar “uma incomensurável melhoria” na “qualidade material e da vida social urbana”:

307 Vale registrar que sob princípios do Novo Urbanismo foi elaborado o “padrão de qualidade” do Desenvolvimento Orientado pelo Trânsito (TOD – da sigla em inglês para Transit Oriented Development). Disponível em: . Acessado em: 27 out. 2015. O TOD, amplamente utilizado pelos movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pela mobilidade sustentável, também faz parte do PlanMob 2015, do Ministério das Cidades, como parâmetro para resolução dos desafios de integração entre o planejamento da mobilidade urbana e o desenvolvimento urbano, e contou com a participação na sua elaboração das organizações EMBARQ Brasil; Instituto de Energia e Meio Ambiente – IEMA; e, o Instituto de Política de Transporte e Desenvolvimento – ITDP-Brasil. “O termo TOD diz respeito à ação estatal para requalificação do espaço urbano focando em princípios da mobilidade urbana sustentável, incluindo: desenho urbano que priorize o pedestre e o ciclista; incentivo ao uso do transporte de massa; restrição ao estacionamento e circulação do automóvel; assim como redefinição dos parâmetros de urbanismo com foco em cidades compactas, adensadas, bem conectadas e com uso misto do solo”. Disponível em: . Acessado em: 15 out. 2015. Além disso, o “TOD implica em alta qualidade, em um planejamento cuidadoso e numa concepção de características de uso do solo e de formas de construção que apoiam, facilitam e priorizam não só o uso do transporte de alta capacidade, mas também o pedestre e a bicicleta”. Disponível em: . Acessado em: 27 out. 2015.

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[Andrés] Duany (1997), um de seus principais luminares [do movimento “novo urbanismo”], “tem a forte impressão de que o urbanismo, se não a arquitetura, pode afetar a sociedade”. A correta livre organização espacial, à maneira proposta pelo novo urbanismo, vai, de acordo com ele, ajudar a corrigir as coisas. Suas propostas evidenciam a saudade da vida nas pequenas cidades norte-americanas, seu sólido sentido de comunidade, suas instituições, seus usos diversificados da terra, sua alta coesão e seus ideólogos (como Raymond Unwin). Se se trouxer tudo isso de volta ao planejamento urbano, a qualidade material e da vida social urbana sofrerá uma incomensurável melhoria. (...). Como recuperar a história, a tradição, a memória coletiva, e o concomitante sentido de pertinência e de identidade que as acompanha – eis os componentes do santo Graal desse novo urbanismo. (HARVEY, 2009a, p. 222, grifos nossos).

Como afirma Harvey (2000), “[...] el nuevo urbanismo está en la cresta de la ola”308 e é considerado “um dos principais candidatos a agente de transformação de nossos futuros urbanos” (HARVEY, 2009a, p. 222). O geógrafo inglês reconhece nesse discurso a ênfase na crítica à sociedade do automóvel, bem como, novas formas de se pensar a relação entre trabalho e vida e a busca pela qualidade ambiental, porém, é enérgico ao apontar seus limites:

Este movimiento repite asimismo -a un nivel básico- la misma falacia de los estilos arquitectónicos y de planificación que critica. Para decirlo en pocas palabras, perpetúa la idea de que la planificación urbana puede ser la base de un nuevo orden moral, estético y social. El diseño correcto y la calidad arquitectónica serán la gracia salvadora de la civilización. Pocos partidarios del nuevo urbanismo suscribirían una tesis tan brutal. El nuevo urbanismo cambia el marco espacial, pero no la presunción de que el orden espacial puede ser el vehículo para controlar la historia y el proceso social. (HARVEY, 2000, s/p, grifo nosso).

E, uma vez mais, Harvey tece crítica contundente a esse movimento: “[...] o novo urbanismo se vincula a um esforço leviano contemporâneo de transformar cidades grandes e hiperpopuladas, aparentemente bastante fora de controle, numa rede interligada de ‘aldeias urbanas’, nas quais, acredita-se, cada cidadão poderá relacionar-se, democrática e cordialmente com todos os outros” (HARVEY, 2009a, p. 223). Para o geógrafo, só há uma alternativa viável aos adeptos dos pressupostos ideológicos do Novo Urbanismo:

A no ser que el nuevo urbanismo forme parte de un ataque frontal contra las rampantes desigualdades sociales y el malestar urbano, fracasará rotundamente en la tarea de cambio de cualquier factor realmente sustantivo y esencial. En realidad -como sucede en Estados Unidos- puede

308 Disponível em: . Acessado em: 10 set. 2015.

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constituir sólo una parte del problema de la creciente segregación racial, en lugar de ser una solución para los dilemas de la vida urbana. (HARVEY, 2000, s/p).

Como salienta Rodrigues (2012), nesse tipo de discurso não se realiza uma crítica radical à estruturação das instituições e das relações socioespaciais que reproduzem a desigualdade, a segregação, a exploração e a exclusão históricas originadas pelo sistema capitalista, às quais, por exemplo, os pedestres/caminhantes estão submetidos. Tecendo um contraponto entre as concepções materiais da cidade como direito e a cidade pensada sob uma perspectiva ideal, Rodrigues (2007, s/p) acrescenta:

A cidade como direto tem como base a vida real, o espaço concreto e o tempo presente. Ao contrário, no ideário da cidade ideal, o espaço e o tempo são abstrações. Reflete o pensamento de planejadores do Estado capitalista e do capital. Os problemas são considerados desvios do modelo, solucionáveis com novo tipo de planejamento e uso de novas tecnologias. Os avanços da tecnologia articulam formas e conteúdos da e na cidade, mas não “produzem” a cidade ideal, embora provoquem transformações na cidade real.

Como é possível observar, o discurso das cidades sustentáveis para pessoas exclui a dimensão espacial e histórica do conflito de classes. Assim, desconfia-se das estratégias de “pacificação” oferecidas por tal discurso, no qual o capital vem se valendo para apaziguar a crise no/do urbano. “A primeira lição que [se necessita aprender] é que um capitalismo ético, sem exploração e socialmente justo que beneficie a todos é impossível. Contradiz a própria natureza do capital” (HARVEY, 2011, p. 193). Em uma sociedade onde as contradições de classes estão presentes, traçar desenhos, planejamento e gestão urbana que visem a “harmonia social”, acabam por contribuir com os objetivos do capital e do Estado capitalista de amortecer a luta de classes. Por isso, Harvey sugere que se deve ser estimulada a criação de espaços de rebeldia em que se possam germinar movimentos revolucionários309. Regressando sua mirada ao século XIX, Harvey aponta que:

Como observou Benjamin (1969) acerca das arcadas parisienses do século XIX, todo o ambiente parecia projetado para induzir antes o nirvana do que a

309 No Seminário Cidades Rebeldes, promovido pela editora Boitempo e pelo Sesc, na cidade de São Paulo, de 09 a 12 de junho de 2015, “Harvey suger[iu] a Haddad abrir espaço para movimentos revolucionários” e acrescentou, “Sem esses espaços, o aparato repressivo do Estado cresce”. Disponível em: . Acessado em: 18 out. 2015.

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consciência crítica. E muitas outras instituições culturais – museus e organizações de proteção do patrimônio histórico, arenas para espetáculos, exposições e festivais – parecem ter como objetivo o cultivo da nostalgia, a produção de memorias coletivas higienizadas, a promoção de sensibilidades estéticas acríticas e a absorção de possibilidades futuras numa arena não- conflituosa eternamente presente. Os contínuos espetáculos da cultura da mercadoria, incluindo a transformação do próprio espetáculo em mercadoria, desempenham seu papel do fomento da indiferença política. (HARVEY, 2009a, p. 221).

Afirmar que as ruas devem ser reapropriadas por atividades lúdicas, de lazer, fruição, de ócio e diversão, por exemplo, não é suficiente, dentro do contexto do capitalismo, para se produzir espaços não estranhados, tendo em vista, como visto no Capítulo 4, do que representa, por exemplo, o lazer no capitalismo e a apropriação privada do tempo de produção e reprodução social do trabalhador. Além disso, resta a pergunta: quem vai poder “brincar” nesses espaços? Dessa forma, Ferrari aponta para o fato de que, “[...] a sociedade civil esvaziada dos antagonismos e contradições de classe não questiona a apropriação privada dos resultados do trabalho social, transforma-se, assim, em paradigma de análise e de organização de movimentos sociais” (FERRARI, 2008, p. 48). Em uma perspectiva histórica mais ampla, o discurso baseado no comunitarismo, que não dialoga e não se une aos “precariados” e à periferia, em uma escala socioespacial mais dilatada, está fadado a lograr vitórias cosméticas, dentro do âmbito do normatizado, que não rompem com as contradições estruturais e sistêmicas do capitalismo:

Obscurecido o cerne determinante da produção – mesmo a mais imediata – a possibilidade da ação, da intervenção dos trabalhadores sobre seus destinos fica comprometida. A crítica possível, a partir destas esferas idealmente autonomizadas, reduz-se a intenções subjetivas que resultam em frustrações e na reprodução do conceito de uma sociedade civil plural, porém desossada da estrutura de classe. A substituição da sociedade (de classe) pela sociedade civil composta de comunidades locais cumpre exatamente o papel de eliminar as classes objetivas do discurso e da ação. (FERRARI, 2008, p. 48).

Dentro desse contexto, vale a pena retomar as indagações realizadas por Rodrigues (2008), já apresentadas anteriormente nesta tese, sobre: como é possível tal conquista do espaço público em uma sociedade capitalista, cujo Estado é a instância mediadora e responsável pela definição e delimitação desses espaços, sempre a partir da “doação” de áreas públicas pela propriedade privada? E, concomitante a isso, como é possível

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estimular participação política, por meio da ocupação dos espaços públicos, que “estrapo[lem] a propriedade privada e a riqueza” definidas pelo Estado capitalista? (RODRIGUES, 2008). A incapacidade ou a negação deliberada para se apontar os limites “de os direitos da propriedade privada individualizada atenderem aos interesses comuns” (HARVEY, 2014a, p. 147), sacralizam, e, perpetuam a ideia de que a “propriedade privada e um Estado dedicado preservar e proteger essa forma institucional são pilares fundamentais para a sustentação do capitalismo, mesmo que o capitalismo dependa de um igualitarismo empreendedor radical para sobreviver” (HARVEY, 2011, p. 189). Como visto anteriormente, Zizek (2009) chama essa estratégia de “ideologia do comunismo liberal” que representa a “personificação da auto-negação inerente ao próprio processo capitalista”, como solução contemporânea para se driblar as crises do capitalismo, e, reestabelecer o equilíbrio do sistema:

A mesma forma de raciocínio – é a própria coisa que constitui a ameaça o melhor remédio contra ela – prevalece com a mais visível evidência na atual paisagem ideológica. Consideremos a figura do financeiro e filantropo George Soros, por exemplo. Soros representa a mais implacável forma de exploração financeira especulativa combinada com a preocupação contrária e humanitária frente às consequências sociais catastróficas de uma economia de mercado desenfreada. (ZIZEK, 2009, p. 27).

Debord, por sua vez, antes mesmo da existência consumada da ideologia do desenvolvimento sustentável310, por exemplo, já denunciava esse tipo de construção discursiva do capitalismo em se deslocar a origem das contradições sociais da esfera da produção para a esfera do consumo, logo, responsabilizando o indivíduo e não o sistema pelas contradições apresentadas:

Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos da incitação ao desperdício na sociedade de abundância econômica não sabem para que serve o desperdício. Condenam com ingratidão, em nome da racionalidade econômica, os bons vigias irracionais sem os quais o poder dessa racionalidade econômica despencaria. Boorstin, por exemplo, que descreve em L’Image o consumo mercantil do espetáculo, porque pensa poder deixar de fora desse desastroso exagero a vida privada, ou a noção de “mercadoria honesta”. Não compreende que a própria mercadoria fez leis cuja aplicação “honesta” deve produzir a vida privada como realidade distinta e sua

310 Em tempos de ideologia do desenvolvimento sustentável , Mészáros dá uma definição de sustentabilidade que muito se distancia da sustentabilidade propalada no capitalismo avançado: “sustentabilidade equivale ao controle consciente do processo de reprodução sociometabólica pelos produtores livremente associados (o que, evidentemente, é o único meio viável de auto-controle) em contraste com o antagonismo insustentável, estruturalmente arraigado e, em última análise, a destrutividade da ordem reprodutiva do capital” (MÉSZÁROS, 2004, p. 44).

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reconquista posterior pelo consumo social das imagens. (Aforismo 198. DEBORD, 1997, p. 128-129).

Assim, a assumpção, por parte do Estado, de que as transformações urbanas devem se dar a partir de valores, atitudes e princípios, e que esse câmbio subjetivo altera as relações materiais, apenas demonstram o caráter fetichista desse tipo de discurso que alcançou penetração em diversos espaços da sociedade:

Nessa ótica, é necessário pensar as cidades dentro de um processo de progressiva implementação de critérios de sustentabilidade, que exigem o reconhecimento de valores, atitudes e princípios, tanto nas esferas públicas como privadas e individuais da vida urbana. (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2015, p. 95).

Após essa breve análise crítica sobre o discurso das cidades sustentáveis para pessoas, que norteia a organização, dentre outros atores, de parte dos movimentos sociais urbanos contemporâneos, que lutam pelo transporte público e não motorizado e pela reapropriação coletiva dos espaços públicos, inclusive os que possuem foco no direito a se caminhar, retoma-se a perspectiva radical proposta por Harvey (2014a), sobre o direito à cidade, onde as transformações das relações urbanas, em sua dinâmica espaço-temporal, devem ser enfrentadas à luz de uma perspectiva crítica ao capitalismo:

Somente quando a política se concentrar na produção e reprodução da vida urbana como processo de trabalho essencial que dê origem a impulsos revolucionários será possível concretizar lutas anticapitalistas capazes de transformar radicalmente a vida cotidiana. Somente quando se entender que os que constroem e mantêm a vida urbana têm uma exigência fundamental sobre o que eles produziram, e que uma delas é o direito inalienável de criar uma cidade mais em conformidade com seus verdadeiros desejos, chegaremos a uma política do urbano que venha a fazer sentido. (HARVEY, 2014a, p. 21).

O direito à cidade, assim, não se resume à luta por se ter direito coletivo àquilo que já existe. Em sua concepção utópica, vai além e projeta a perspectiva de “nos fazermos e nos refazermos, assim como nossas cidades, [sendo estes] um dos mais preciosos, ainda que dos mais negligenciados, dos nossos direitos humanos” (HARVEY, 2009, p. 01). Dentro dessa concepção, para haver a efetivação de tais tipos de transformações revolucionárias, no entanto, somente pela via da “da mobilização social e da luta política/social”. A indagação de Harvey (2013b, p. 31): “[...] mas qual visão eu ou os movimentos sociais construímos para

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nos guiar em nossa luta?”, portanto, deve permanecer no horizonte de todos aqueles que lutam pelo direito à cidade.

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CONCLUSÕES

O resultado de uma tese de doutorado certamente não expressa toda a complexidade do longo caminho percorrido no processo de investigação, desde a elaboração do projeto inicial de pesquisa até o seu desfecho com a submissão da versão final do texto escrito à banca de defesa. E, no caso desta, em particular, é possível observar que a sua conclusão terminou como a antítese do que se havia proposto originalmente. A perspectiva teórico-metodológica que passou a ser adotada no decorrer do processo, mediante diálogo bibliográfico e presencial com inúmeros interlocutores; bem como, o tempo de maturação necessário para a construção do conhecimento científico, ainda que em constante embate com a pressão por produtividade, foram fundamentais para a realização desta pesquisa. Retomando o debate sobre as relações de produção e o caminhar estranhado, foi possível observar, dentro da lógica da Crítica da Economia Política, que a concentração dos meios de produção nas mãos de poucos faz com que a classe trabalhadora viva o seu cotidiano como se estivesse, exclusivamente, sob a égide do reino das necessidades:

É evidente por si mesmo que a economia nacional considere apenas como trabalhador o proletário, isto é, aquele que, sem capital e sem renda da terra, vive puramente do trabalho, e de um trabalho unilateral e abstrato. Ela pode, por isso, estabelecer a proposição de que ele, tal como todo cavalo, tem de receber o suficiente para poder trabalhar. Ela não o considera como homem em seu tempo livre-de-trabalho (...). (MARX, 2004, p. 30). [...] Mas a economia nacional conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais. (MARX, 2004, p. 31).

Em contraposição a essa realidade estranhada, Lefebvre (2005), em franco diálogo com Marx, de a Crítica à filosofia hegeliana do Estado, realça que a tríade: necessidade, trabalho e fruição faz parte da “totalidade social e da individualidade não mutilada”. Esses três aspectos, dialeticamente coordenados, compõem, segundo o filósofo francês, a “realidade psíquica fundamental e o fenômeno humano total” de uma sociedade não alienada, possuindo, cada um, realidade própria, porém, mutuamente determinados. Cada um desses três elementos serve, por isso, de mediação para a realização dos demais, em uma “espiral ascendente perpétua”, onde nem a necessidade, nem o trabalho, nem a fruição devem possuir primazia individual sobre os demais aspectos, mas, sim, ser identificados como imprescindíveis para a realização de relações sociais não-estranhadas.

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Assim, para se compreender o caminhar, seu processo de estranhamento no espaço urbano contemporâneo e as tentativas de superação desse estranhamento, torna-se necessário refleti-los à luz dessa tríade dialética (necessidade, trabalho e fruição), dentro do contexto histórico capitalista, onde:

Uma vida cheia de sentido em todas as esferas do ser social, dada pela omnilateralidade humana, somente poderá efetivar-se por meio da demolição das barreiras existentes entre o tempo de trabalho e tempo de não trabalho, de modo que, a partir de uma atividade vital cheia de sentido, autodeterminada, para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente e, portanto, sob bases inteiramente novas, possa se desenvolver uma nova sociabilidade. Uma sociabilidade tecida por indivíduos (homens e mulheres) sociais e livremente associados, na qual ética, arte, filosofia, tempo verdadeiramente livre e ócio, em conformidade com as aspirações mais autênticas, suscitadas no interior da vida cotidiana, possibilitem as condições para a efetivação da identidade entre indivíduos e gênero humano, na multilateralidade de suas dimensões. Em formas inteiramente novas de sociabilidade, em que liberdade e necessidade se realizem mutuamente. Se o trabalho torna-se dotado de sentido, será também (e decisivamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do tempo livre, do ócio, que o ser social poderá humanizar-se e emancipar-se em seu sentido mais profundo. (ANTUNES, 2009, p. 175, grifo nosso).

Dessa forma, é possível afirmar que uma das maiores contribuições da teoria e do método marxiano está em eleger a categoria trabalho como atividade produtiva, fruto da consciência e da vontade humana, definidora das relações entre o homem e natureza. Engels311 (2004) chega a afirmar que “o trabalho criou o próprio homem”, e Ranieri (2001), em diálogo com Marx, salienta que a categoria trabalho constitui o “alicerce de toda atividade humana”, o “elemento universal de socialização da humanidade”. Por sua vez, Antunes (2009), ao revisar Lukács, afirma que o trabalho:

É, como a linguagem e a sociabilidade, uma categoria que se opera no interior do ser: ao mesmo tempo em que transforma a relação metabólica entre homem e natureza e, num patamar superior, entre os próprios seres sociais, autotransforma o próprio homem e a sua natureza humana. E como no interior do trabalho estão pela primeira vez presentes todas as determinações construtivas da essência do ser social, ele se mostra como sua categoria originária. (ANTUNES, 2009, p. 145).

311 Por meio de um diálogo crítico com Darwin, Engels (2004) também argumenta que a posição ereta permanente foi uma precondição que impulsionou o desenvolvimento histórico diferenciado das funções dos pés e das mãos dos seres humanos, onde “a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração” (ENGELS, 2004, s/p). Para Engels, portanto, o trabalho é o motor central da evolução humana e as mãos e os pés não são apenas órgãos de trabalho, mas também produto dele.

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Em termos históricos, a relação de subordinação e de apropriação do trabalho concreto pelo capital, por meio da propriedade privada e da divisão do trabalho, gerou o trabalho estranhado, onde a “atividade vital” de quem produz deixa de ser objeto de sua vontade e consciência para se tornar “apenas um meio para sua existência”:

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho [que] está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem. (MARX, 2004, p. 86, grifos do autor).

Esse “ser desumanizado tanto espiritual quanto corporalmente”, produto do trabalho estranhado, é o mesmo ser que leva consigo sua condição estranhada para todas as esferas de atividade312, esferas da vida social. Ainda assim, se sente muito mais “junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho” (MARX, 2004, p. 83). Nesse sentido, quando se observa especificamente a atividade do caminhar em sua dupla função, como diria Marx (2004), animal e social, o que se procurou investigar é: como que a função social do caminhar, enquanto “objeto para si”, livre fruição, interação social e mediação reflexiva-criativa vai se reduzindo a tal ponto que, no capitalismo contemporâneo, transforma-se, sobretudo, em “objeto em si”, mero deslocamento da mercadoria força de trabalho? O simples deslocar-se como força de trabalho se encontra no nível das necessidades animais, pois trabalha “sob o domínio das carências físicas e imediatas”, enquanto o caminhar como efetivação do ser genérico, segue os princípios da omnilateralidade humana313, guiado pelas “leis da beleza”314, onde o “homem produz mesmo

312 Harvey (2011) afirma que um conjunto de sete “esferas de atividades” compõe a trajetória evolutiva do capitalismo: 1) tecnologias e formas de organização; 2) relações sociais; 3) arranjos institucionais e administrativos; 4) processos de produção do trabalho; 5) relações com a natureza; 6) reprodução da vida cotidiana e das espécies; e 7) “concepções mentais de mundo”. 313 De acordo com Marx, “[o] homem se apropria de sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetivação humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano” (MARX, 2004, p. 108, grifos do autor).

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livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela” (MARX, 2004, p. 85). Como visto no decorrer da Tese, pode-se afirmar que o caminhar como ato liberto/libertador nunca pertenceu à classe trabalhadora. Foi possível observar que as experiências históricas relacionadas ao caminhar, como atividade humana que se aproximam de sua expressão não estranhada, pertencem, na maioria das vezes, a uma determinada classe ou fração de classe315. Diante desse contexto, entende-se que o caminhar só pode se concretizar, de forma integral, genérica, na medida em que as relações sociais de existência estejam libertas dos grilhões da relação capital/trabalho, onde “o imperativo da acumulação pressupõe o imperativo da anulação do espaço pelo tempo” (HARVEY, 2005). “Minimizar o período de perambulação das mercadorias” (MARX apud, HARVEY, 2005), inclusive da mercadoria força de trabalho, para se completar de forma cada vez mais rápida e “eficiente” o ciclo de produção capitalista, implica o controle constante da vida produtiva e não produtiva do trabalhador, e, também, na perene organização espacial do urbano. Por isso, uma das lutas mais importantes da classe trabalhadora, sobretudo nas cidades, tem sido a de diminuir o tempo de trabalho apropriado pelo capital (ANTUNES, 2009). Partindo, assim, de uma dimensão utópica dialética316 do caminhar, vale destacar que este complexo ato, calcado na condição natural e vital do ser humano, pode vir a materializar e a simbolizar a reapropriação, por parte dos trabalhadores, do espaço (fim da

314 Marx (2004, p. 85) utiliza a expressão “leis da beleza” nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, quando trata exatamente da diferença do ser humano para os outros animais quanto as suas capacidades de objetivação. 315 Contudo, é possível encontrar, por exemplo, a figura do andarilho, caminhante solitário e sem rumo, comumente vivido por indivíduos despossuídos. Porém, segundo analisa Gomes (2010), esse tipo de errância pode significar uma experiência extremamente sofrida, penosa, eivada de privações, onde o sentido de incompletude e inadequação preenchem a construção desta identidade andarilha como um “sem rumo”, “sem propósito”, “marginal”, muito diferente das experiências ética e estética do caminhar consciente, voluntário, guiado pela livre fruição, aproximando-se da realização de um ser genérico. Cabe registrar ainda que, desde uma perspectiva marxiana do capitalismo, nem as classes médias, como expressão de fração de classe, nem os próprios capitalistas podem ser identificados como “seres genéricos”, pois há de se destacar a cisão sistêmica existente na relação entre capital e trabalho que atinge a todos, mesmo que de forma desigual. Trabalho livre e livre fruição, no fundo, não são privilégio de ninguém, nesse modo de produção. Estruturalmente, há uma mútua dependência entre trabalhadores e capitalistas que não permite a nenhuma das classes exercer a sua plena autonomia e autorrealização. 316 Harvey afirma que “a rejeição, em época recente, do utopismo baseia-se em parte na aguda consciência de sua ligação intrínseca com o autoritarismo e o totalitarismo (a Utopia de More pode facilmente ser lida dessa maneira). Mas a rejeição do utopismo a partir disso também tem o efeito infeliz de interromper o livre fluxo da imaginação na busca de alternativas” (HARVEY, 2004, p. 214), logo, “a tarefa é montar um utopismo espaço- temporal – um utopismo dialético – que tenha raízes fincadas em nossas possibilidades presentes ao mesmo tempo que aponte trajetórias diferentes para os desenvolvimentos geográficos desiguais humanos” (HARVEY, 2004, p. 258).

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propriedade privada) e do tempo (fim da exploração do trabalho a serviço da produção de mais valia) usurpados historicamente, ou seja, a materialização da reconstituição das relações do ser humano com ele mesmo (corpo e subjetividade), do ser humano com os outros seres sociais, do ser humano com o outro ser individual e do ser humano com o produto do seu próprio trabalho, sobretudo no espaço das cidades, onde o movimento e a copresença podem constantemente educar os homens para a diferença:

A cidade é o lugar em que o Mundo se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos homens a diferença. Por isso a cidade é o lugar da educação e da reeducação. Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado. (SANTOS, 2008, p. 79).

Ao longo de cinco capítulos, foi possível observar, portanto, como o “sistema metabólico societal do capital”, materializado em um projeto político-econômico no qual o espaço urbano se torna um dos principais ativos econômicos e financeiros para absorção de capital excedente, desempenhando papel cada vez mais presente na resolução das crises cíclicas do capital, transforma a forma e o conteúdo das cidades em relações predominantemente baseadas no valor de troca. Particularmente, no espaço urbano contemporâneo, onde a privatização dos espaços coletivos e públicos e a “ideologia da circulação” se convertem em modelos da sociabilidade humana pela invasão dos automóveis motorizados, privilegiando a circulação das mercadorias e de velozes e pela expulsão da presença e interação constante das diversas classes ou frações de classes sociais nesses espaços de “dissensos”, inclusive por meio da propagação de uma ideologia do medo; o caminhar acaba por desempenhar, sobretudo, sua função instrumental mais elementar de mero deslocamento da força de trabalho, preso ao “domínio da carência física imediata” da necessidade de locomoção. Dessa maneira, onde tudo se transforma em “pedra”, o caminhar, como uma das atividades definidoras da condição humana, se converte também em atividade estranhada (Entfremdung)317, tornando-se, inclusive, mercadoria, a partir da “mercantilización directa de nuestra experiência misma”318 (ZIZEK, 2004, p. 101), no “capitalismo ‘pós-moderno’”, como ironicamente denomina Zizek (2004).

317 De forma sintética, “[estranhamento] remete à expropriação das capacidades humanas do indivíduo por parte da oposição entre capital e trabalho (RANIERI, 2001, p. 116). 318 Em relação ao processo contemporâneo de mercantilização da experiência, dentre as quais o caminhar, como mercadoria serviço, se insere, Jeremy Rifkin afirma que,“[...] a medida que pasamos cada vez más horas del día en entornos sintéticos [...] la vida se convierte a su vez en una mercancia. Alguién la hace para nosotros;

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Ainda que se expresse de maneiras infinitas, dependendo da relação espaço- temporal, o caminhar, em suas formas voluntárias e involuntárias, como observado, se encontra, no capitalismo, sob a égide das relações estranhadas319. Através da separação artificial e imposta entre tempo de trabalho e tempo fora do trabalho, por exemplo, o capitalismo tardio se apropria cada vez mais do tempo de não trabalho da classe trabalhadora, convertendo-o também em instrumento de reprodução ampliada do capital, prevalecendo a lógica do lazer pela via do consumo. Dessa forma, todos os serviços oferecidos pela atividade do caminhar, sejam eles de lazer, turismo, etc., como forma de superação320 da realidade social estranhada, ainda assim, são limitados por sua própria natureza coisificada, mercantilizada. Em contraposição a essa realidade urbana estranhada, é possível observar, por outro lado, a organização de mobilizações sociais de resistência que, no caso particular dos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades, vem ganhando força no cenário nacional, nos últimos anos. Caracterizados por possuírem ao menos três eixos norteadores de reivindicação: i) a mobilidade urbana a pé; ii) a reapropriação coletiva dos espaços públicos pelos pedestres; e, iii) a adoção de uma concepção mais ampla sobre o caminhar para além da mobilidade, esses movimentos se inserem na luta mais ampla pela mobilidade urbana que privilegia o transporte público e o não motorizado, assim como, a reapropriação coletiva dos espaços públicos pelos não motorizados. A composição heterogênea desses movimentos sociais repercute na pluralidade dos discursos adotados em suas mais variadas formas de se conceber e de se intervir no urbano. Ainda assim, observa-se que parte dessas mobilizações encontra no discurso das “cidades sustentáveis para pessoas” o esteio político-ideológico para a sua organização política, sendo esse discurso enraizado nas perspectivas lideradas pelo movimento Novo Urbanismo e pelo desenvolvimento sustentável.

nosotros se la compramos. Nos convertimos en los consumidores de nuestras propias vidas” (RIFKIN apud ZIZEK, 2004, p. 102). E Zizek acrescenta, “[…] la idea de hacer del propio sí mismo una obra de arte que expresara Michel Foucault cobra así una inesperada confirmación: compro mi buena forma física acudiendo a un gimnasio de fitness; compro mi iluminación espiritual asistiendo a cursos de meditación transcedental” (ZIZEK, 2004, p. 102). Nesse contexto, o fetiche da mercadoria “llega a su culminación precisamente cuando el fetiche mismo se ha ‘desmaterializado’, se ha convertido en una entidad virtual ‘inmaterial’ y fluida” (ZIZEK, 2004, p. 103), a experiência. 319 Segundo Ranieri, “é a forma do controle do trabalho (...) que pode fazer do indivíduo um não-indivíduo, identificado tão-somente com os membros da sua classe e não consigo mesmo como indivíduo autodeterminado” (RANIERI, 2001, p. 117). 320 Dessa maneira, segundo a perspectiva marxiana, “[...] a superação do estranhamento só se coloca, portanto, na efetiva suprassunção (uma vez que as conquistas passadas que elevam as potencialidades do gênero humano são mantidas na sociedade emancipada) do caráter espontâneo e contingente da divisão do trabalho, da propriedade privada e da troca” (RANIERI, 2001, p. 164).

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Por todo o observado ao longo do texto, a existência de movimentos sociais que lutam pelo direito à cidade é imprescindível para se fazer frente à ordem social capitalista que transforma o espaço urbano em espaço de acumulação ampliada do capital, agudiza as desigualdades, as exclusões e segregações dessas relações humanas, contando com o papel fundamental desempenhado pelo Estado, como “dispersor” das tensões advindas das contradições do capitalismo. Porém, também foi possível observar que soluções sociais, propostas a partir de transformações que não levam em consideração a luta de classes, são insuficientes para se adentrar às raízes do antagonismo da relação capital/trabalho e, portanto, limitadas na proposição de uma agenda radical de transformação das relações urbanas, onde a perspectiva de “nos fazermos e nos refazermos, assim como nossas cidades” (HARVEY, 2009, p. 01), deve estar no centro das mobilizações. Amparados na concepção idealista321 de que o planejamento, o desenho, as inovações tecnológicas e a gestão urbana são os mecanismos a serem acionados para se “harmonizar” as contradições urbanas, parte dos movimentos sociais que lutam pela mobilidade urbana sustentável, dentre eles alguns dos movimentos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades, acaba por não transcender e conceber a perspectiva de um caminhar “desestranhado”322. Partindo-se das contribuições de Henri Lefebvre e David Harvey, deve-se regressar, dessa forma, à perspectiva originária sobre o direito à cidade, “como direito à vida urbana transformada [e] renovada”, onde a classe trabalhadora, organizada coletivamente, por suas próprias qualidades intrínsecas de classe despossuída, se constitui na “mais poderosa força política para a transformação radical da sociedade” (BOTTOMORE, 2012). De acordo com Lefebvre:

O direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada. (...). Só a classe operária pode se tornar o agente, o portador ou o suporte social dessa realização. Aqui ainda, como há um século, ela nega e contesta, unicamente com sua presença, a estratégia de classe dirigida contra ela. (...). Será indispensável descrever longamente, ao lado da condição dos jovens e da juventude, dos

321 Em relação à concepção idealista, “Marx denuncia que o estranhamento não pode ser superado por uma ação pura e imediatamente ideal do pensamento, por meio de uma inversão da realidade efetiva, mas somente pela ação material e objetiva dos homens” (RANIERI, 2001, p. 97). 322 Segundo Ranieri, “a perspectiva do ‘desestranhamento’ é aquela que toma como ponto de partida o trabalho humano, pois o estranhamento manifesta-se historicamente como objetivação e apropriação. O proletariado encontra-se então, no interior desata perspectiva, como aquele elemento que não somente se opõe ao poder do capital, mas como o que transcende a si mesmo e a este último, na medida em que emancipa o trabalho do seu jugo” (RANIERI, 2001, p. 09).

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estudantes e dos intelectuais, dos exércitos de trabalhadores com ou sem colarinho e gravata, dos interioranos, dos colonizados e semi-colonizados de toda espécie, de todos aqueles que sofrem a ação de uma quotidianeidade bem ordenada, será necessário mostrar aqui a miséria irrisória e sem nada de trágico do habitante, dos suburbanos, das pessoas que moram nos guetos residenciais, nos centros em decomposição das cidades velhas e nas proliferações perdidas longe dos centros dessas cidades? Basta abrir os olhos para compreender a vida cotidiana daquele que corre de sua moradia para a estação próxima ou distante, para o metrô superlotado, para o escritório ou a fábrica, para retomar à tarde o mesmo caminho e voltar para casa a fim de recuperar as forças para recomeçar tudo no dia seguinte. (LEFEBVRE, 1969, p. 108-109, grifos do autor).

Nesse sentido, vale a pena recuperar o “homem lento”, de Milton Santos (2008, 2013), como sujeito histórico que traz a potencialidade para se compreender as contradições urbanas porque se encontra diretamente afetado por elas. Os seres humanos lentos, como representação urbana da classe trabalhadora, se constituem, assim, os sujeitos sociais potencialmente revolucionários e, como foi observado anteriormente, podendo ser interpretados como uma reatualização ou, quem sabe, até mesmo a superação do flanêur da metrópole do mundo europeu, onde o trabalhador migrante, pobre, mulher, negro, indígena, despossuído, sem teto, mendigo, enfim, o “estrangeiro”, indivíduos estranhos à cidade mercadoria, à cidade empresa, experimentam e explicitam cotidianamente, por meio do seu caminhar lento, as contradições de uma cidade excludente, onde o direito a usufruir da produção coletiva urbana pertence aos poucos velozes. “Quem voa, diz Benjamin, ‘vê’ apenas, mas quem caminha pela estrada ‘aprende com a força que ela tem’ (erfährt von ihrer Herrschaft)” (BENJAMIN apud MASSCHELEIN, 2008, p. 38). A partir de um amplo processo “imaginativo prazeroso” que a confecção de uma tese de doutorado permite e, até mesmo, impõe, o caminhar dos seres humanos lentos pode ilustrar uma nova expressão do direito à cidade, porém, do ponto de vista da classe trabalhadora. O caminhar dos seres humanos lentos, em sua positividade, representa a antítese da lógica do espaço-tempo do capital. O ser humano lento, lento em sua mobilidade, ao reivindicar o caminhar, em toda sua dimensão estética-poética-lúdica-existencial-política, é aquele que, enquanto classe, busca romper com as amarras da propriedade privada dos meios de produção, do tempo e do espaço. O ser humano lento, trabalhador liberto, passa a ter o caminhar como a expressão da forma emancipada de estar no mundo, não pertencendo este, mas aos poucos ociosos, ao longo da história.

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Figura 45 - Pintura de Jean-Baptiste Debret, Voyages au Brésil: Retour d’un proprietaire (Viagens ao Brasil: Regresso de um proprietário)

Fonte: Site – Ciência Hoje323

Tendo por base a “teorização radical” proposta por Harvey (2009b), por meio da confrontação do “problema do capital excedente em sua raiz”, é possível, enfim, se enfrentar o “analfabetismo urbano”, denunciado por Maricato (2002). Apontar avanços e limites das ações políticas de parte dos movimentos sociais urbanos contemporâneos que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades, no sentido de se fazer frente às causas do processo de estranhamento do caminhar, e suas propostas de intervenção na realidade para tornar o caminhar um direito, dentro de uma perspectiva mais ampla da concretização da emancipação humana, correspondeu a um dos objetivos desta Tese:

Devem ser encontrados meios para cortar a ligação entre o igualitarismo radical e a propriedade privada. Pontes devem ser construídas com as instituições baseadas, por exemplo, no desenvolvimento de direitos de propriedade comuns e na gestão democrática. A ênfase deve mudar do igualitarismo radical para a esfera institucional. Um dos objetivos do direito à circulação na cidade, para dar um exemplo, é criar um novo bem comum urbano para deslocar o excesso de privatizações e exclusões (associadas tanto com o controle do Estado quanto com a propriedade privada) que deixam em geral grande parte da cidade fora do alcance da maioria das pessoas. (HARVEY, 2011, p. 189).

323 Disponível em: . Acessado em: 16 set. 2015.

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O que se procurou aqui, também, é discutir alternativas sociais de transformação do mundo social e o caminhar nas cidades, hoje, apresenta-se como sintoma do tipo de vida urbana que não se quer, porém, trazendo em si elementos desafiadores e instigantes para se imaginar a elaboração de desenhos de associações humanas “desestranhadas”. Para isso, apoiando-se nas indicações de Harvey (2011), seria importante que pesquisas sobre o tema e movimentos sociais que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades observassem algumas dimensões, dentre várias, a serem incorporadas nos estudos e práxis política, a fim de se compreender e lutar por um caminhar não estranhado:

 Acessar os fundamentos teórico-metodológicos que permitem a crítica ao sistema capitalista e o questionamento sobre o seu futuro, reintroduzindo a centralidade do trabalho324 como categoria definidora da condição humana;  Assumir o papel central e histórico da luta de classes e sua especificidade nas cidades contemporâneas;  Partir das relações da vida cotidiana para se chegar às relações de exploração entre capital e trabalho, que se materializam nas relações de produção e reprodução social;  Observar que a luta pela prevalência do tempo lento dos não motorizados só é possível, de forma integral, partindo-se de uma luta maior pela reapropriação do controle do trabalho, e todas as implicações derivadas, por parte dos trabalhadores;  Contribuir para a criação de “espaços heterópicos” de rebeldia, em diálogo com outras lutas sociais anticapitalistas;  Observar as contradições e os limites do Estado capitalista na formulação de políticas públicas e na gestão da problemática urbana;  Compreender o processo histórico de organização dos movimentos sociais e suas contradições inerentes, sobretudo no neoliberalismo.

O caminhar “desestranhado”, da maneira elaborada por este texto, só é possível de ser abraçado como bandeira de luta a partir da assumpção de que as contradições no/do urbano, que se agudizam na contemporaneidade, são fruto, nada mais, nada menos, do que do

324 Segundo Ranieri, “uma vez desvendada a natureza social do trabalho desvendam-se, igualmente, os caminhos para a compreensão da desigualdade socioeconômica e, consequentemente, sua superação: é somente na compreensão do objeto do trabalho como objeto que, ao mesmo tempo, supre e cria necessidades que repousam, por um lado, o sentido da sociabilidade e, por outro, a chave de seu coroamento numa sociedade emancipada” (RANIERI, 2001, p. 29).

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processo histórico da luta de classes. Só assim é possível se lutar pela ruptura das relações de exploração capital/trabalho para que os trabalhadores, enfim, se reapropriem dos meios de produção e, consequentemente, do tempo de produção e de não produção:

Uma agenda revolucionária implica tornar a relação verdadeiramente clara em oposição à oculta e opaca. Conceber uma sociedade sem acumulação de capital não é diferente em princípio de conceber uma cidade sem carros. Por que não podemos todos apenas trabalhar lado a lado sem qualquer distinção de classe? (HARVEY, 2011, p. 188).

Por seu recente surgimento e difusão no cenário político nacional e por conter elementos de análises extremamente frutíferos para a compreensão da mobilização em torno das disputas do/no urbano no capitalismo global, propõe-se, por fim, alguns breves elementos para a construção de uma agenda de investigação futura sobre os movimentos sociais que lutam pelo direito a se caminhar nas cidades325:

 Pesquisar o processo histórico de surgimento desses movimentos nos países capitalistas centrais e nos periféricos, e sua relação com o Estado, observando os elementos comuns e as especificidades adotadas em cada contexto específico, sobretudo, os relacionados à sua organização nos países latino-americanos, buscando-se compreender suas diferentes dimensões políticas e sociais;  Realizar pesquisa empírica sobre esses movimentos sociais com objetivo de mapear e acompanhar o processo histórico de difusão dessa agenda na construção de uma pauta nacional e sua capacidade de penetração nas ações de Estado;  Aprofundar a análise de discursos ideológicos, que acabam contribuindo para a manutenção da reprodução social, dando suporte à parte desses movimentos sociais;  Investigar o processo de financiamento público/privado dos movimentos sociais e de políticas públicas, cujo tema seja a mobilidade urbana e os interesses, por exemplo, do capital imobiliário, em tais financiamentos relacionados à valorização dos espaços urbanos, dentro da concepção de cidade como mercadoria.

325 A proposta de agenda de pesquisa possui o objetivo de contribuir com pesquisas futuras relacionadas ao tema considerando que não foram parte integrante da investigação aqui apresentada.

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Vale, portanto, acompanhar de perto como a luta pelo direito a se caminhar na cidade vai se desdobrar nos próximos anos. Seguirá sob a égide da ideologia das “cidades sustentáveis para pessoas” ou ampliará o seu horizonte para uma crítica radical que reivindique a cidade como valor de uso e, como consequência, o caminhar, como atividade não estranhada, expressão da omnilateralidade humana?

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