www.rascunho.com.br Mai. 2016 Mai. 193

Arte da capa: Hallina Beltrão 2 | | maio de 2016

translato | Eduardo Ferreira Uma pitada de si na tradução

fundado em 8 de abril de 2000

á pelas tantas, na tra- Como atravessar essa neblina Traduziria como quem produz Rascunho é uma publicação mensal dução do Crime e densa para tocar e sentir o texto, texto postiço. Nem original nem tra- da Editora Letras & Livros Ltda. castigo, de Dostoié- identificar-lhe os sentidos? dução, mas outra coisa qualquer. Ter- Caixa Postal 18821 Lvski, por Paulo Bezer- À falta de conhecimento ceiro tipo de texto. Escritura fingida. CEP: 80430-970 ra, há uma passagem interessante de regras básicas de sua própria Fingia traduzir, mas, na realidade, es- Curitiba - PR sobre tradução. O personagem língua materna, punha cada vez crevia cada vez mais de sua própria Razumíkhin, que ganhava um mais de si. Cada vez mais “coi- cabeça. Coisas suas. Usava a criati- [email protected] dinheirinho como tradutor, reve- sas suas”. O texto saía melhor vidade, preenchia as lacunas com www.rascunho.com.br la que punha “cada vez mais coisa ou pior, afinal? Idiossincrático natural desfaçatez. O original mal minha no texto”. Confessava-se ao extremo, incompreensível? lhe dava uma ideia do que escrever. ruim em ortografia e “às vezes Texto autoral, na melhor das hi- Acendia a centelha, apenas. O resto Editor simplesmente um fracasso” em póteses. Texto simplesmente po- vinha de si mesmo. Rogério Pereira alemão (língua de que traduzia bre, na pior. O papel em branco? Nem lhe para o russo). Ainda assim, afir- Não podia decidir-se, metia medo: espaço de projeção de Editor-assistente Samarone Dias mava restar-lhe o consolo de ver Razumíkhin. Buscava alguém desbragada invenção. A tradução co- que o texto saía “melhor”, para que pudesse ajudá-lo, ou busca- mo campo de irradiação duma cria- logo corrigir-se com uma dúvi- va ajudar alguém (Raskólnikov)? tividade alheia ao autor. Alheia ao Mídias Sociais Lívia Costa da: “vai ver que ele talvez não saia Alguém que fizesse traduções em original. Alheia, mesmo, às próprias melhor mas pior”… seu lugar. Alguém que também, regras da língua de chegada. Colunistas O trecho traía o desleixo e talvez, se dispusesse a pôr algo de Como enxergar através dessa Affonso Romano de Sant’Anna o desprezo do tradutor pelo ori- si, coisas suas, na tradução. névoa compacta? A língua do outro Eduardo Ferreira ginal. A superação das deficiên- Raskólnikov não seria exa- se erguia como barreira a vedar-lhe Fernando Monteiro cias técnicas — conhecimento tamente a melhor aposta. “Não acesso aos significados. A solução? João Cezar de Castro Rocha insuficiente tanto da língua-al- preciso… de traduções...”, res- Contornar a névoa. Deixar-se levar José Castello vo como do idioma original — pondia. Deixava os três rublos pelo devaneio. Pôr um pouco mais Nelson de Oliveira pelo voluntarismo: “ponho cada (quando valeria isso?). Saía cor- de si. Não se deixar tolher por uma Raimundo Carrero vez mais coisa minha no texto”. rendo, descendo as escadas. Su- noção estreita de sentido. Ali estava Rinaldo de Fernandes A mercantilização da tradução, mia na rua, fugindo de um ofício o texto novo. Parecia sustentar-se só, Rogério Pereira no pior sentido: em troca de uns duro e mal pago. sem auxílio do original. Quem é que Tércia Montenegro trocos, um texto torto, ainda que Sozinho com seu texto e conhecia alemão? Quem se daria ao Wilberth Salgueiro passável. Quem se importa? os três rublos, teria de encarar trabalho de comparar original e tra-

Punha cada vez mais de si, ele mesmo, Razumíkhin, a tra- dução? Quem reclamaria, se a tradu- Projeto gráfico e programação visual à falta de contato direto com o dução do texto alemão? Sozinho ção afinal parecesse coerente? Mesmo Rogério Pereira / Alexandre De Mari original. A nuvem do desconhe- com seu russo deficiente (não só que apenas com o título do original? cimento tornava pouco nítido o na ortografia, talvez) e, ainda por Ao menos o título. O resto preencho Colaboradores desta edição original. O que quer dizer mes- cima, a cerração espessa sobre eu mesmo. Punha cada vez mais de si. Adriano Koehler mo esta palavra aqui? Esta frase o original alemão. Teria, certa- E não é que o texto se sustentava? Va- André Argolo aqui? Qual será o contexto? Algo mente, de colocar cada vez mais lia uns rublos. Não o deixava escorre- André Caramuru Aubert que me guie, pelo amor de Deus! coisa sua na tradução. gar para a miséria. Claudia Nina Clayton de Souza Evando Nascimento Gisele Barão Gisele Eberspächer rodapé | Rinaldo de Fernandes Henrique Marques Samyn Luiz Horácio Marcella Lopes Guimarães Marcos Pasche Anotações sobre Martim Vasques da Cunha Maurício Melo Júnior Nelson Patriota romances (33) Paula Dutra Rafael Zacca Richard Hugo Vivian Schlesinger

romance O pên- haver ‘certos vazios que a história ras, os trilhos, as veredas tristes por ILUSTRADORES dulo de Eucli- não registra e que só a ficção po- onde passam, nesta hora, admirá- Bruno Schier des, conforme de dar conta’. Perguntado sobre a veis de bravura e abnegação’. Na se- Carolina Vigna ainda os pesqui- lacuna histórica que o mobilizou gunda, o mesmo autor escreve que a Dê Almeida O Fábio Abreu sadores Adenilson de Barros e mais para a escrita do romance, Guerra de Canudos ‘foi, na signifi- Gilmei Francisco no livro Ca- explica ter sido ‘o enigma de Eu- cação integral da palavra, um crime. FP Rodrigues nudos — conflitos além da clides da Cunha. Quando exata- Denunciemo-lo’”. Em O pêndulo Hallina Beltrão guerra: entre o multiperscpec- mente, em que momento de sua de Euclides, ademais, o narrador se José Luiz Tahan Rafa Camargo tivismo de Vargas Llosa (1981) vida, ele tomou aquele choque identificaria profundamente com o Ramon Muniz e a mediação de Aleilton Fon- de significados e começou a mu- próprio autor: “Os dois apresentam- Robson Vilalba seca (2009), “expõe as caracte- dar de posição’. O enigma a que se como intelectuais interessados em Tereza Yamashita rísticas históricas atuais da região se refere Fonseca pode ser verifi- desvendar mistérios da temática ca- Tiago Silva e dos habitantes de Canudos à cado se comparados, por exem- nudense, viajaram ao lugar dos con- Theo Szczepanski procura de respostas para um as- plo, um trecho do artigo ‘A nossa flitos, construindo suas impressões e sunto que ainda não está encerra- vendeia’ com a nota preliminar seus aprendizados”. Enfim, comCa - do”. Vale a pena citar um trecho de Os sertões. No primeiro, Eu- nudos — conflitos além da guerra: do livro em que os pesquisadores clides da Cunha se refere às ‘hos- entre o multiperscpectivismo de Apoio: indicam o “enigma de Euclides tes fanáticas do Conselheiro’ e Vargas Llosa (1981) e a mediação da Cunha” — ou o “choque de aos soldados da República talvez de Aleilton Fonseca (2009), Adenil- significados” — que teria leva- não percebidos ‘através das ma- son de Barros de Albuquerque e Gil- do Aleilton Fonseca à escrita do tas impenetráveis, coleando pe- mei Francisco Fleck dão uma ótima romance: “Em entrevista à rádio los fundos dos vales, derivando contribuição para os estudos do ro- Unesp, Aleilton Fonseca afirma pelas escarpas íngreme das ser- mance histórico sobre Canudos. maio de 2016 | | 3 11 15 19 40 A nudez como retórica Nosso futuro transcendente Escritores laterais A segunda metamorfose Tércia Montenegro Nelson de Oliveira Fernando Monteiro Nelson Patriota

eu, o leitor quase diário [email protected] | Affonso Romano de Sant’Anna

Grandes poetas Grato ao André Caramuru brilhante tradução Revisão da arte, de Anne Waldman [edição 192, abril]. After les fleurs, poema lírico extraordinário cuja estirpe remete a Emily Dickinson e Frost. Mais uma Paulo coelho, vez obrigado por nos apresentar tão grandes e desconhecidos poetas. J. Fausto Toloy • Campina da Lagoa – PR Murilo mendes

A subjetividade do gosto Como podemos qualificar um texto que não Globo faz uma página que foi criada a cadeira de literatura in- traz em si o rastro de uma intelecção originária? a partir do fato de que fantojuvenil e que ela foi chamada para Talvez como medíocre; no entanto, por ocupar uma leitora ameaçou dar o primeiro curso. Foi a primeira vez certo espaço de prestígio melhor seria qualificá-lo Otocar fogo nos seus li- que isso ocorreu numa universidade. como inepto; enfim, não é este o assunto. Como vros porque nenhuma instituição queria Daí as teses hoje existentes. sentencia o autor do texto referido [edição de aceitar a doação. Falei com o jornal, ini- No meu lançamento de A se- fevereiro], o senhor Nelson de Oliveira, o gosto ciou-se uma campanha de doação e li- dução da palavra, em Brasília, Mar- é subjetivo. Mas o que vem a ser gosto? E valor? vros, mais de 300 pedidos por dia. co Maciel pede que seu filho vá pegar E estético? E o Belo? Não há sombra de nenhum Jack London1 (especialista em in- um autógrafo. Tenho aqui um cartão destes conceitos no longuíssimo texto do senhor formática) encomendou-me um “hi- do senador a propósito daquela crôni- Oliveira. Utiliza-se apenas de rótulos, tal como pertexto” para a revista eletrônica que ca sobre a necessidade de delicadeza3. em casas mais humildes as senhoras utilizam as tratará da Arte Moderna hoje: neces- Um cartão delicado, fraterno. Ele é latas de leite para guardar o feijão e as garrafas sidade de revisão. É um projeto antigo uma figura respeitável. de refrigerante para pôr água na geladeira, com meu que tenho que desenvolver. a única diferença de que as senhoras encontram, 01.05.2001 no melhor espírito de reciclagem, uma nova 22.04.2000 Aeroporto de Lisboa: 14 horas, utilidade para os objetos, enquanto que o Estou fazendo para a revista ele- vindo do Rio, indo para a Ilha da Ma- senhor Oliveira, aparentemente, não sabe do trônica Hipertexto (do Jack London) deira para um encontro sobre culturas que está falando. Defender a subjetividade do um texto provocativo/polêmico sobre do Atlântico, onde devo ler poemas e gosto é uma ingênua artimanha que alguns o “nonsense” que existe na arte que an- falar de minha perplexidade entre es- utilizam para esconder sua própria falta de dam fazendo por aí, analisando as con- ses dois mundos. gosto atrás de um relativismo que a qualquer trafacções que irritam tanto o público Ainda há pouco estava tentando estúpido abraça. Basear-se apenas em duas quanto muitos artistas. me lembrar da visita que fiz a Muri- ou três afirmação de Kant, ainda por cima de Se isso causar polêmica, será bom lo Mendes em 1968, à sua casa em maneira descontextualizada, e citar o nome de e será ruim. Bom porque vai despertar Roma. Seria via Viale, 6? Quase nada Pierre Bourdieu sem outra função que citar uma consciências, ruim porque vai absorver me ocorre. Quadros na parede, apar- autoridade dos novos tempos, só ampliam o meu minha energia por muito tempo2. tamento amplo, era à tarde, a figura subjetivo desgosto. O desprezo com que cita os Saiu o CD de crônicas escolhi- dele e de Saudade Cortesão palida- nomes de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino das pela Luzdacidade, que a amizade de mente na lembrança. Mesmo quan- revelam a preguiça do autor em de fato debruçar- Paulinho Lima produziu. Tem apresen- do ele esteve lá em casa nos anos 70 se sobre a questão do valor estético e participar tação de Fernando Sabino. O Paulo Au- e nos reunimos com Hélio Pelegrino, de fato do debate que tais autores travaram tran fala dois de meus textos. Fernando Sabino e Otto Lara, pouco seriamente, preferindo esconder-se no mais fácil me lembro: só de ter posto um Mo- que é dizer “Eu gosto assim!” De fato, precisamos Tinha dito ironicamente numa zart para tocar e a alegria dos mineiros falar sobre o valor estético, mas aprendamos a crônica que Paulo Coelho deveria ir para em torno dele: Otto, Hélio, Fernan- abrir a boca só quando tivermos certeza. a Academia. Na ocasião ele me mandou do indo junto até mesmo ao banhei- Francivaldo Lourenço • via e-mail um email agradecendo. Agora, lançou ro, como colegiais, para fofocar. Sim, seu novo livro lá, declarando-se candi- lembro-me que Marina estava grávi- dato. Jornais e revistas fazem matéria. da de Alessandra e mostrou o aparta- Leitura prazerosa Abri, por acaso, o Corriere della Sera e mento ao Fernando. Quero parabenizá-los pelo ótimo trabalho do tinha ampla reportagem com ele. Este Rascunho. É realmente maravilho contar com jornal publica, aliás, aos domingos uma um veículo que se dedique exclusivamente à coluna dele. É realmente um fenômeno literatura e com tal envergadura. Uma leitura em todo o mundo. Habilíssimo. Mente profundamente prazerosa. descaradamente, como na entrevista na Notas José Rangel • São José dos Campos – SP Bahia, na qual disse que nunca se impor- 1. Uns 14 anos depois num shopping, vejo tou com o mercado editorial. Ao mesmo Jack London lançando Depois do Facebook. tempo diz que não sabe se já publicou Como as coisas mudam. Ele fala que nos EUA nove ou doze livros, mas está seguro de estão implantando chip nas pessoas como forma de comunicação: o facebook agora está Envie e-mail para [email protected] que já vendeu 29 milhões de exemplares. com nome completo e cidade onde mora. Sem dentro das pessoas. alterar o conteúdo, o Rascunho (Seus editores dizem que ele acompanha a vida dos concorrentes de perto). 2. O projeto não foi para frente. Jack London se reserva o direito de adaptar os textos. vendeu a empresa. Posteriormente o referido Fui ao Jô Soares lançar o CD de artigo foi publicado n’O Globo e gerou o livro crônicas escolhidas, Textamentos e A Desconstruir Duchamp. Depois de várias twitter.com/@jornalrascunho sedução da palavra. edições pela Viera&Lent, a Rocco editou-o facebook.com/jornal.rascunho Ana Maria Machado lembra em sua virtualmente.

instagram.com/jornalrascunho conferência que foi na minha gestão no 3. Publiquei a crônica no livro Tempo de Departamento de Letras e Artes da PUC delicadeza (L&PM, 2007). 4 | | maio de 2016

a literatura na poltrona | José Castello Graciliano: a força do nome

ilustração: Bruno Schier episódio aconteceu em meados dos anos 1930. Graciliano Ramos já era, Onaquele momento, o au- tor de dois importantes romances: Cae- tés, de 1933, e São Bernardo, de 1934. Trabalhava no terceiro, Angústia, que seria publicado em 1936. Em seu apar- tamento, no Rio de Janeiro, recebe o jor- nalista Paulo de Medeiros, de A Gazeta, para uma entrevista. Os dois se sentaram para uma conversa que o repórter, por certo, não esperava tão franca. “Então vo- cê quer saber como se faz um romance”, Graciliano se antecipou, fazendo ele mes- mo a primeira pergunta. E se adiantou na resposta também: “Mas eu ainda não es- crevi nenhum romance”. O repórter sentiu-se obrigado a lembrar-lhe, então, dos dois romances já publicados. Graciliano foi quase ríspido: “Mas não são romances. São duas borra- cheiras”. Atribuir a escrita dos dois livros a duas supostas bebedeiras foi, de fato, uma resposta estranha. Mas que mostra mui- to bem quem era Graciliano Ramos: um homem que, como escritor, tinha uma imensa dificuldade para acreditar em si. Não tive experiências de leitura pública destes dois primeiros romance. Mas há alguns anos, em Curitiba, fiz uma oficina de leitura de Angústia, o terceiro roman- ce. Recordo com que aflição, mas também com quanto espanto o grupo de leitores se entregou ao livro. Ninguém conseguia pa- rar de ler. O romance — que é lento, in- trospectivo, cerrado — arrastou a todos. Para desviar-se de seu tempo, para dentro dele tomar sua própria posição, um escritor precisa, antes de tudo, de coragem intelectual. Isso nunca faltou a Graciliano. Muito menos, um segundo elemento cru- cial, para que o desvio não se pareça com uma simples fuga: talento. É uma das coi- sas que mais admiro em Graciliano Ramos: sua voz forte. A segurança com que fala de si e também o desprezo pelas aparências e pelas ilusões literárias. A intransigência com que afirma seu lugar, sem engrande- Para desviar-se de seu Um pouco mais à frente, é duro novamente: “O mo- a escrever aos dez anos de idade, como cê-lo, mas também sem deixar de ocupá-lo. tempo, para dentro dele dernismo fracassou. Pois fracassada está uma rebe- redator de um jornal para crianças edi- Um escritor deve ser intransigente, antes lião literária cujos soldados acabam na Academia”. tado em sua cidade natal, Quebrangulo, de tudo, com suas próprias palavras. Com tomar sua própria posição, Quando fala especificamente de Mário, é mais áspe- no interior de Alagoas. O jornal tinha seu texto. Nele, ele faz o que quer. Nele, se- um escritor precisa, antes ro ainda: “O próprio Mário de Andrade está escre- periodicidade quinzenal e era impresso gue a direção que bem lhe entender, sem de tudo, de coragem vendo direitinho, bem comportado. Só de longe em em Maceió, com duzentos exemplares. tomar partidos, ou sem se preocupar com longe surgem umas expressões que lhe são típicas”. Admite que, antes de começar a escre- grupos, ou com filiações. intelectual. Isso nunca O desprezo por Oswald é ainda maior. ver, tentou outros ofícios, mas “todas A história vivida por Paulo Medeiros faltou a Graciliano. Já naquele momento, Graciliano precisa de as portas estavam fechadas”. E é direto: me volta durante uma releitura das Con- coragem, sobretudo de muita coragem, para afirmar “Gostaria de poder viver sem trabalhar, versas com Graciliano Ramos, organi- uma posição. Anti-modernista? Provavelmente não. como muita gente”. zada por Ieda Lebensztayn e Thiago Mio menos nas cercanias de 30, o moder- Mas diferente. Que posição? Sua própria posição, Sobre Caetés, seu romance de es- Salla para a Record. O livro foi lançado nismo surgido com a Semana de Ar- de escritor individual e dono de sua escrita particu- treia — imitando o conselho de Franz em 2014 e guarda muitas preciosidades a te Moderna (de 1922) desapareceu”. lar. Em 1949, numa entrevista à Folha da Manhã, Kafka ao amigo Max Brod —, ele diz: respeito não só da personalidade, ou do Graciliano sempre foi um gran- ele radicaliza suas posições. “Não gosto de nenhum “Também Caetés deveria ter sido quei- estilo, mas da “alma” do escritor. Avanço de apreciador da clareza. Sempre de meus livros”, diz Graciliano sem, no entanto, re- mado”. Antes dele, escreveu outros algumas páginas e chego a “O modernis- gostou, também, de colocar limites negá-los. Não se trata de apagar uma ficção, mas de romances, mas queimou todos. A se- mo morreu?”, artigo de Osório Nunes pu- nítidos entre as coisas do mundo. Foi não lhe conferir um tamanho que a ultrapasse. Tra- veridade que tinha consigo e com sua blicado no Dom Casmurro. Mais uma vez um inimigo do vago e do impreciso. ta-se de encontrar — e defender — sua própria es- ficção deveria servir de espelho a tantos Graciliano Ramos trata de nos surpreen- Por isso mesmo, na mesma conver- tatura. Em uma expressão que muito me agrada: de escritores apressados e “práticos” de ho- der. Com seu nome inscrito, grosso modo, sa, sente-se obrigado a tomar distân- cair em si. Tornar-se dono de si mesmo e de seu lu- je. Seria impossível imaginar Graciliano no grupo de romancistas do modernis- cia em relação a Oswald de Andrade gar. Fugir das ênfases e dos exageros. Da retórica, escrevendo um romance de encomen- mo brasileiro, ele é enfático: “Não sou e a Mário de Andrade. Não poupa que a tudo borra e anula. “Vivo bem onde estou. O da. Ou seguindo à risca prazos, fórmu- modernista. O modernismo morreu em as palavras: “Mário e Oswald tenta- que não quero é mudar-me”, prossegue Graciliano las, ou padrões editoriais, como fazem 1930”. Mais uma vez surge o Graciliano ram o romance, mas sem êxito”. As falando não só de sua residência, mas, sobretudo, de tantos contemporâneos. Acima do ad- apreciador da exatidão e da precisão. Sem obras do modernismo como um to- um temperamento. Quer ficar dentro de si mesmo: jetivo, o nome — o substantivo. Nunca nenhum pudor ou vaidade, ele vai mais do também não o interessam. “Não mesmo quando se diminui, gosta de ser quem é. abdicou de seu ritmo, de seu caminho adiante. “Não se pode fixar, rigorosamen- vejo outra realização de vulto que “Até hoje não me considero escritor nem jorna- e de si mesmo. Sustentou, sempre, sua te, este ano (1930) como o do seu apa- não a libertação das cadeias do espí- lista. Fui obrigado a escrever porque não tinha outro própria voz e sua própria assinatura. Por recimento. O que se observa é que, pelo rito. Creio que é seu melhor fruto”. ofício”, ele prossegue na mesma entrevista. Começou isso se tornou Graciliano Ramos.

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Adélia Prado por Fábio Abreu

Poesia reunida apresenta o olhar comovido e comovente de Adélia Prado acerca das miudezas cotidianas

Marcos Pasche | Rio de Janeiro — RJ Milagre de pés descalços maio de 2016 | | 7

parecida na década Essa voz lírica, bastante encurtar o caminho até o leitor, consolidou definitivamente nos anos de 1950 de 1970, a obra de representativa da trazendo a linguagem poética pa- e desde então paira como dominante aprecia a Adélia Prado sig- ra o centro da vida. confirmação ou o desdobramento de 1922, e não Anifica um ponto contemporaneidade hesita ao recusar o que se lhe afigura passadista. bastante peculiar para a poesia literária, é a de Adélia Dada a sua composição, Se essa cultura assim procede, é porque espera brasileira do século 20. Por um Prado, e seu tom o aludido encontro denota sin- poéticas originais, e daí se pode, em tese, enten- lado, seu lirismo, em verso livre e gularidade interessante, pois der como de originalidade o vasto espaço da poe- branco, compõe-se do amor e do peculiar é apresentado formula uma originalidade par- sia contemporânea. desejo de uma mulher que disso de modo integral ticular dentro de um espaço já Na medida em que dentro deste espaço uma trata sem rodeios e sem amarras: em Poesia reunida, marcado por uma espécie de ori- voz se anuncia amalgamando o que é de dentro e “Desde um tempo antigo até ho- ginalidade geral. Explico-me: de- de fora dele, essa voz desenha um outro tipo de ori- je,/ quando um homem segura que congrega os oito pois do Modernismo, o caminho ginalidade, pois dá novo sentido a um arcaísmo via minha mão,/ saltam duas lem- volumes de poesia por que se colocou como esperável de regra entendido como ultrapassado: “Minhas branças guarnecendo/ a secre- ela publicados até agora. para a poesia foi o de afinamento fantasias eróticas, sei agora,/ eram fantasias de céu./ ta alegria do meu sangue”, diz o às suas propostas e conquistas. O Eu pensava que sexo era a noite inteira/ e só de ma- poema Gênero, do livro O cora- impacto do Modernismo produ- nhãzinha os corpos despediam-se./ Para mim veio ção disparado (1978). Por ou- ziu uma interpretação de si mes- muito tarde/ a revelação de que não somos anjos”, tro, no mesmo tipo de verso, essa mo e de suas ramificações como diz-se em Trottoir, de Terra de Santa Cruz (1981). lírica tem no catolicismo um fa- forma única de modernidade, Há ainda um fator a ser sublinhado: embora Adélia tor estrutural de mundividência: e, a partir de seus referenciais, não seja uma pioneira pelo rigor do termo, há pio- “(...) A vida é eterna, irmãos,/ os poetas associáveis a um tipo neirismo no fato de uma mulher se lançar a uma aquietai-vos, pois, em vossas li- de tradição costumam ser vistos atividade secularmente naturalizada como ofício das,/ louvai a Deus e reparti a — quando observados — como masculino. Se se levar em conta, conforme dito, côdea,/ o boi, vosso marido e autores desimportantes, por teo- que a autora é de uma região provinciana de um esposa/ e sobretudo/ e mais que ricamente carregarem em seus país com largo histórico patriarcal e que ela surge tudo/ a palavra sem fel”, inscre- escritos itens formais e ideativos na cena cultural brasileira (1976) quando no País ve-se em Homilia, de Oráculos inadequados para a expressão ar- se processava um contexto político de extremo rea- de maio (2007). Como a vida e tística do tempo presente. cionarismo, o aludido encontro de aspectos anti- a poesia não cabem na estreite- A literatura do século 20 téticos ganha um extraordinário desdobramento za de um aqui e ali, a poesia de desenvolveu-se sob o imperativo socioexistencial, que deve ser recebido como ato po- Adélia Prado exprime, além dos da inovação. Postos diante de va- lítico e simbólico da maior relevância. Cito, a título aspectos referidos, um olhar co- lores tradicionais que se estabe- de exemplo, Casamento, de Terra de Santa Cruz: movido e comovente acerca das leceram por longos séculos (os miudezas cotidianas, pelo qual quais começaram a ser enfren- Há mulheres que dizem: as coisas do mundo ganham no- tados no século 19), os autores Meu marido, se quiser pescar, pesque, vo sentido, algo constatável em do século 20 sentiram necessi- mas que limpe os peixes. Explicação de poesia sem ninguém dade de escapar do que se havia Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, pedir, estupendo poema de Ba- consagrado e de reinventar a li- ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. gagem (1976): “Um trem de teratura como interpretação do É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, ferro é uma coisa mecânica,/ mas mundo. Para que isso ocorresse, de vez em quando os cotovelos se esbarram, atravessa a noite, a madrugada, o constatou-se a necessidade de fa- ele fala coisas como ‘este foi difícil’, dia,/ atravessou minha vida,/ vi- zer com que, primeiramente, a ‘prateou no ar dando rabanadas’ rou só sentimento”. literatura interpretasse a si mes- e faz o gesto com a mão. Retomando os dois pri- ma, para em seguida reivindicar O silêncio de quando nos vimos a primeira vez meiros aspectos e considerando espaço para falar do novo estado atravessa a cozinha como um rio profundo. que o século 20 foi um período de coisas que cercava o homem Por fim, os peixes na travessa, fundamente marcado por con- contemporâneo de então. vamos dormir. testações de ideologias conser- Em sintonia com a ebu- Coisas prateadas espocam: vadoras — principalmente as lição das novas necessidades, somos noivo e noiva. que plasmaram variados tipos os movimentos de vanguarda de convenção —, pode-se ver na foram o estouro da boiada res- Essa voz lírica, bastante representativa da con- poesia de Adélia Prado um en- ponsável pela sistematização temporaneidade literária, é a de Adélia Prado, e seu contro de fatores em tese mutua- dos passos a serem dados a par- tom peculiar é apresentado de modo integral em mente excludentes. O suporte tir daquele momento. Para eles, Poesia reunida, que congrega os oito volumes de discursivo, todo feito de simpli- nada deveria ser como antes, e poesia por ela publicados até agora. Antes da análi- cidade e clareza, segue a linha a nova literatura tinha como se mais detida do livro, deve-se destacar sua primo- modernista; a expressão femi- atribuição estrutural reordenar rosa edição, que conta com belíssima capa, exibe nina está em pleno acordo com suas verdades, tornando possí- extensa lista de referências bibliográficas de e sobre uma das mais importantes pau- veis fatos e formas impensáveis Adélia, republica dois importantes textos acerca tas contemporâneas do debate para a tradição. A beleza deveria de sua obra (redigidos por Carlos Drummond de político e artístico; a religiosida- conhecer e misturar-se à feiura, Andrade e Affonso Romano de Sant’Anna) e con- de — com caráter de credo espe- e com ela substituir o par dos ta ainda com esmerado posfácio de Augusto Massi, cífico, dadas as suas referências antagônicos pelo dos amalga- do qual já citei um fragmento. A reunião de tais fa- litúrgicas e institucionais — tem mados. Sem isso, a arte estaria tores propicia ao leitor interessado ampla visão da relação direta com as tradições condenada ao divórcio da mar- obra da poetisa mineira, que talvez tenha no volu- que se perpetuam de modo mais cha da humanidade. me uma espécie de consagração. nítido em regiões provincianas, e O Brasil não esteve alheio aqui vale o registro de que Adélia ao processo. Bem ao contrário: a Simplíssima trindade Prado é de Divinópolis (cujo no- vetusta assimilação das tendên- De Bagagem (1976) a Miserere (2015), há me vale outro registro), cidade cias estéticas da Europa ganhou na escrita poética de Adélia Prado o emprego inal- do Oeste de Minas Gerais, onde novo matiz, e então a cultura re- terado de um padrão formal e a expressão sistemá- ela vive até hoje, por sinal. Sobre conhecida como própria do Bra- tica de uma percepção da realidade. Ao longo de a relação literária existente entre sil ganhou lugar privilegiado no seus oito livros, processa-se uma linguagem cujos ela e o Modernismo, Augusto palco das “belas artes”. Por aqui, fundamentos podem ser sintetizados pela tríade Massi, no posfácio, faz uma ob- além das inovações formais, Mo- formada por feminilidade, simplicidade e religiosi- servação pertinente: dernismo e Concretismo impu- dade. No volume de estreia, certos predicados fe- seram-se a missão de produzir mininos são afirmados já no primeiro poema, o Deste ângulo [Massi fala uma literatura nacional de fato, muito referido Com licença poética: de questões abordadas pela poe- não necessariamente refratária à sia brasileira da década de 1970, conexão com o exterior (o que se Quando nasci um anjo esbelto, como o sonho, a política, o ero- reconhece como ingenuidade ou desses que tocam trombeta, anunciou: tismo], Adélia também represen- estreiteza reacionária), mas que vai carregar bandeira. tava um último desdobramento gerasse uma intervenção de den- Cargo muito pesado pra mulher, do modernismo, cujas linhas de tro para fora, inserindo o País de esta espécie ainda envergonhada. força convergem para a retoma- modo decisivo no rol das nações Aceito os subterfúgios que me cabem, da do cotidiano, da oralidade, da artisticamente emancipadas. sem precisar mentir. cultura popular e para o desejo de A cultura literária que se Não sou tão feia que não possa casar, 8 | | maio de 2016

divulgação

acho o Rio de Janeiro uma beleza e Ao longo de seus Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia, neles chorem abundantemente, ora sim, ora não, creio em parto sem dor. oito livros, processa- sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia. por provável comoção e em pro- Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Faço comida e como. vável agradecimento? Creio que Inauguro linhagens, fundo reinos se uma linguagem Aos domingos bato o osso no prato pra chamar não. A cultura contemporânea — dor não é amargura. cujos fundamentos o cachorro não comporta a ideia de devoção Minha tristeza não tem pedigree, podem ser sintetizados e atiro os restos. Quando dói, grito ai, a entidades supostamente supe- já a minha vontade de alegria, quando é bom, fico bruta, riores aos homens, o que, então, sua raiz vai ao meu mil avô. pela tríade formada as sensibilidades sem governo. ratifica a simplicidade basilar da Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. por feminilidade, Mas tenho meus prantos, obra de Adélia Prado, porque Mulher é desdobrável. Eu sou. simplicidade e claridades atrás de meu estômago humilde não se pode pensá-la sem essa e fortíssima voz para cânticos de festa. devoção. Quem faz projeções de Dada a apresentação, desta poética parece religiosidade. Quando escrever o livro com o meu nome tal natureza — levar o livro edi- claro o propósito de consolidar no curso histórico e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a tado a um lugar de recolhimento da poesia brasileira a presença afirmativa da mulher uma igreja, e nele ficar aos prantos — permi- — sendo essa presença afirmada pela própria mu- a uma lápide, a um descampado, te supor (falo em suposição por- lher, sem delegação. E como anteriormente se falou para chorar, chorar, e chorar, que o poema não usa referências da dupla originalidade que caracteriza a poesia de requintada e esquisita como uma dama. religiosas inquestionáveis, em- Adélia Prado, convém observar no poema uma for- bora isso seja habitual na poé- te ilustração disto: a referida afirmação, pelo con- Muito abertamente, a voz lírica evidencia que tica em questão) que acredita teúdo que exprime, é, por si só, algo inovador. O no poema fala uma mulher de carne e osso — e que não ser capaz de feitos extraor- modo como tal afirmação se faz também possui es- dá osso a seu cachorro —, pelo que essa voz lírica se dinários — ou mesmo ordiná- tatuto moderno, dada a clara reescrita da primeira emite indistintamente da voz concreta: “sou é mu- rios — sem uma providência parte do afamado Poema das sete faces — também o lher do povo, mãe de filhos, Adélia”. A imagem que que extrapola a condição huma- poema primeiro de um primeiro livro —, de Car- a mulher em questão constrói de si mesma contras- na: “De vez em quando Deus los Drummond de Andrade. Nisso, a poeta dialoga ta radicalmente com a imagem (romântica e ain- me tira a poesia./ Olho pedra, efetivamente com o ideário modernista, justamen- da muito corrente) que se tem dos que escrevem vejo pedra mesmo./ O mundo, te por não assumir postura reverente diante do mo- poesia, via de regra imaginados como seres excên- cheio de departamentos,/ não é numento cultural, chegando a satirizá-lo, dado que tricos ou misteriosos. Essa imagem cotidiana alas- a bola bonita caminhando solta o “gauche” do texto drummondiano torna-se “co- tra-se por toda a obra de Adélia, porque, digo mais no espaço./ Eu fico feia, olhan- xo” — muito mineiramente, a propósito. Toman- uma vez, ela tem ligações ideológicas com o Mo- do espelhos com provocação,/ do o poema integralmente, torna-se perceptível dernismo, e também porque, digo novamente, ela batendo a escova com força nos sua fundamentação irônica, reforçada especial- se estende para onde os modernistas não chegaram, cabelos,/ sujeita á crença com mente nos primeiro e último pares de versos: se em dando, assim, sua nota pessoal à poesia brasileira. presságios./ Viro péssima cris- Drummond o anjo torto e habitante das sombras Mas, em Grande desejo, isso não se dá com tã”, diz parte de Paixão, do vo- apontava para uma ressignificação de símbolos ele- isenção de complexidade, pois o desfecho do poe- lume O coração disparado. vados da ancestralidade, em Adélia o sim ao femi- ma aponta justamente para uma feição contrária, A simplicidade confirmada nino diz que nem toda tradição deve ser castigada, “requintada e esquisita como uma dama”. Porém pela aproximação de certos in- e que nela há belezas não necessariamente incom- (a conjunção de adversidades não se esgota nem se gredientes da fé dá margem para patíveis com as demandas da atualidade. Portanto, gasta), a afirmação é comparativa e não relata uma que se explore o terceiro dos três a ressignificação é também ressignificada, e a licen- característica fixa da personalidade — ela estará, aspectos fundamentais que vejo ça poética se potencializa como entrada triunfal do em certo momento, requintada e esquisita como na composição poética de Adélia gênero feminino: “Quando nasci um anjo esbel- uma dama, porque não é usualmente requintada Prado: a religiosidade. A poesia to,/ desses que tocam trombeta, anunciou:/ (...)/ e esquisita como uma dama. A mais, o “estar” em de Adélia é uma poesia católi- Vai ser coxo na vida é maldição pra homem./ Mu- questão é cogitado para um momento de exceção ca, e confirma seu viés litúrgico lher é desdobrável. Eu sou”. — que, aliás, confirma a regra —, e a consequência mesmo nos poemas que mani- O segundo fundamento da poética adeliana a do feito excepcional só demonstra que a simplici- festam certo conflito espiritual, ser destacado é a simplicidade, e também no livro dade é fator próprio da vida dessa mulher comum. do que daremos exemplos mais à Bagagem, súmula inquestionável de toda a obra da Será usual que poetas contemporâneos, ao publica- frente. Ainda em Bagagem, há, poeta, encontra sólidos exemplos. Recorro a Gran- rem seus livros, procurem por espaços propícios a dentre outros, dois textos que de desejo, segundo poema do volume: práticas de conexão metafísica, como uma igreja, e demonstram bem isso: o primei- maio de 2016 | | 9

divulgação A autora ro é Saudação — “Ave, Maria!/ Ave, carne Adélia Prado florescida em Jesus./ Ave, silêncio radioso,/ Nasceu em Divinópolis (MG), urdidura de paciência,/ onde Deus fez seu em 1935. Além de poeta, é amor inteligível!”; o segundo é Um salmo: contista, professora e filósofa. Publicou, dentre outros, os livros Tudo que existe louvará. Bagagem (1976), Oráculos de Quem tocar vai louvar, maio (2007) e Miserere (2014). quem cantar vai louvar, o que pegar a ponta de sua saia e fizer uma pirueta, vai louvar. Os meninos, os cachorros, os gatos desesquivados, os ressuscitados, o que sob o céu mover e andar vai seguir e louvar. O abano de um rabo, um miado, uma mão levantada, louvarão. Esperai a deflagração da alegria. A nossa alma deseja, o nosso corpo anseia o movimento pleno: cantar e dançar TE-DEUM.

No primeiro poema, há uma efusiva tulo: “Ó Deus,/ não me castigue se falo/ minha vi- louvação a ícones do cristianismo, que soa da foi tão bonita!/ Somos humanos,/ nossos verbos sem qualquer efeito poético. O segundo têm tempos,/ não são como o Vosso,/ eterno”. A também estampa teor laudatório, mas nele reincidência de textos religiosos que, na esteira de sobressai um tom panfletário, dado o voca- Saudação, soam gratuitos, desprovidos de qualquer bulário generalizante e a crença na assimi- interesse que não seja o do louvor previsível, e que, lação totalizante de algo a ser feito. Assim é conforme Um salmo, fazem pensar numa demons- que, em Adélia Prado, a religião sai da ori- tração de fé algo forçosa e mesmo artificial em certos ginalidade e descamba para o lugar comum, momentos, parece incompatível com uma voz poé- inócuo e insípido, e a simplicidade torna-se tica composta por elementos libertários. Sem igno- um simplismo banal. A grande semelhança rar idiossincrasias, a incompatibilidade se desenha existente entre todos os seus livros faz com na medida em que a submissão dogmática se dá de que, ao passar de textos e volumes, a con- modo corrente e alegre. Nos momentos (minoritá- solidação da linguagem signifique também rios) em que a alegria não se manifesta, em seu lugar O melhor da poesia de um maneirismo. Com isso, em diversos aparece um descontentamento ligeiro e superficial, Adélia Prado está nos momentos o leitor talvez tenha a impressão que não se processa como questionamento estrutu- de estar lendo as mesmas coisas, possibili- ral e em tudo se aproxima do clichê religioso. Isto se momentos em que a dade reforçada pela grande quantidade de verifica, por exemplo, no seguinte fragmento de O simplicidade soa natural, poemas que pediam critério mais rigoroso bom pastor, do livro O pelicano (1987): própria de alguém de publicação. Em Bagagem isso fica ex- plícito por ser o livro composto por mais Tudo me está vedado, íntima da vida como um de uma centena de textos: dentre eles, há não há lugar para mim, todo, incluindo aí os poemas geniais, dignos da estreia de um parece que Deus me bate, seus mistérios. nome que veio para ficar. Entretanto, al- parece que me recusa, go da força do livro diminui por conta do pedir auxílio é pecar, conjunto, quando a quantidade torna a não pedir é loucura, qualidade irregular. Por se tratar de uma é consentir no auxílio do Diabo. estreia, a oscilação é compreensível, mas as publicações posteriores permitem veri- Força na leveza ficar que a ideia de que um autor escreve O melhor da poesia de Adélia Prado está nos sempre o mesmo livro é bem adequada à momentos em que a simplicidade soa natural, pró- bibliografia da autora, como se pode ver pria de alguém íntima da vida como um todo, in- em O ajudante de Deus, segundo poema cluindo aí os seus mistérios: “Sei que Deus mora em de Oráculos de maio: mim/ como sua melhor casa./ Sou sua paisagem,/ sua retorta alquímica/ e para sal alegria/ seus dois olhos./ Invoquei o Santo Espírito, Mas esta letra é minha”, diz o delicado Direitos hu- Ele me disse: sofre, manos, de Oráculos de maio. come na paciência Nessas ocasiões, a poesia é a voz da comunhão esta amargura, entre o ser, o que o rodeia e o que o extrapola, e é porque tens boca nessas ocasiões que a poesia se cumpre como reve- e eu não. lação do inédito e do inaudito, colocando-se como Toma o pequeno cálice, tradução do que os discursos convencionais não ex- massa de cinza e fel plicitam. Nessas ocasiões, a poesia de Adélia Prado é não transmutados. um milagre de pés descalços, de cabelos soltos e de É pão de mirra, camisa aberta. E para deixá-la ao sabor do vento, ci- Come. to, como conclusão, um poema (Amor feinho, de Ba- gagem) que deixa os ventos ao sabor e à flor da pele: Logicamente, tal ideia (a de se escre- ver sempre o mesmo livro) não é um to- Eu quero amor feinho. tal desabono e costuma significar que um Amor feinho não olha um pro outro. autor trabalha certas questões de modo Uma vez encontrado é igual fé, obsessivo, a ponto de apresentá-las e reapre- não teologa mais. sentá-las em seus livros a partir de algumas Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo diferenças. Mas no caso de Adélia Prado as e filhos tem os quantos haja. diferenças são mínimas de livro a livro, ra- Tudo que não fala, faz. zão pela qual seus momentos de menor in- Planta beijo de três cores ao redor da casa teresse avolumam-se precocemente. e saudade roxa e branca, Como tenho me valido de exemplos da comum e da dobrada. extraídos do primeiro livro da autora, de- Amor feinho é bom porque não fica velho. vo dizer que o tom panfletário (sobre a re- Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: Poesia reunida ligião) é frequente em outros poemas e eu sou homem você é mulher. Adélia Prado comparece a todos os demais livros da poe- Amor feinho não tem ilusão, Record tisa, conforme comprova Mulher ao cair da o que ele tem é esperança: 544 págs. tarde, de Oráculos de maio, seu sexto tí- eu quero amor feinho.

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tudo é narrativa | Tércia Montenegro A nudez como retórica

ilustração: Dê Almeida as siete cabritas, de Elena Poniatowska, pas­­seia, em breves en- Lsaios, sobre o tempe- ramento e a obra de sete artistas mexicanas de diversas lingua- gens: Frida Kahlo, Pita Amor, Nahui Olin, María Izquierdo, Elena Garro, Rosario Castella- nos e Nellie Campobello. Co- mo todo relato biográfico, este livro também abre reflexões a respeito de atitudes — que não necessariamente estiveram sub- metidas às tendências da época. A nudez de Nahui Olin e Pita Amor ilustra bem isso. É verdade que a história da humanidade nem sempre corre, reta, rumo a um desenvolvimen- to ou evolução. Se determinada prática escandalizou no início do século 20, nada garante que hoje, tanto tempo depois, seja aceita cordialmente ou deixe de polemizar. No que concerne ao gesto de mulheres artistas, então, estamos longe de uma aceitabili- dade tranquila. Ainda há excesso de silêncio, excesso de compara- ção ou até franco desprezo, que rotula costumes (a simplificação de análise também sinaliza uma falta de respeito). Quando, por exemplo, as personagens que ci- tamos expuseram seus corpos em performances ou fotos, tal “li- bertinagem” ofuscou as suas de- mais práticas, virando, para um setor da crítica, o único tema — escandaloso — de suas ações ar- tísticas. Suspeito que hoje uma redução semelhante se repetiria, com o desesperado anseio por com presença de nudismo asso- turos, a se defender de um au- pós-pornô faz com grande intensi- etiquetas do tipo “promíscua” ciado a questões eróticas: ultra- tor difícil ou um pouco mais dade, aliás: suas criações têm explici- ou “excêntrica”, que bastam pa- passa, portanto, a simples questão profundo com a velha senten- tude sexual, mas com um verdadeiro ra preencher a certeza de alguns, de expor um físico atlético ou li- ça: “Ele(a) é um(a) louco(a)!”. veio político que questiona fantasias diante daquilo que incomoda. vre para a realização do balé. Improvável que esse público re- machistas e hierarquias sociais, am- O corpo nu se torna um in- Um caso diferente pode ser jeitasse o incômodo apontando bas tão presas a esquemas repetiti- cômodo porque não há como não encontrado em PornoGráficos, para a própria incompreensão — vos, estereótipos. se sensibilizar diante desse objeto peça do grupo Bagaceira de Tea- um gesto que no primeiro mo- O corpo é essa escultura em que ao mesmo tempo é um sujei- tro que estreou em 2007. Aqui mento (geralmente o que conta, movimento; uma anatomia provisó- to — e, portanto, por mais que o figurino não é a nudez, mas a para tais pessoas) pareceria hu- ria que interfere no mundo em deter- se exponha, permanece mistério. simulação desta, com dois dos milhante, mas depois — ah, de- minados instantes e com uma carga Há um íntimo que não pode ser atores vestindo malhas da cor da pois! — seria o passo inicial para específica de intencionalidade. Mas devassado, e eis aqui o desconfor- pele, reprisando os órgãos sexuais o esclarecimento. pode virar uma armadilha, claro, nas to por trás da nudez. Sua exposi- por pinturas ou adereços. É um Como entender, digamos, mãos de um público despreparado. ção (nos casos que mencionamos lembrete de que a arte estiliza; de- certo vídeo de Sigalit Landau Para voltar ao nosso exemplo intro- sempre voluntária, jamais des- saparece o “puro nu”, o corpo em sem levar em conta a sua nudez? dutório, seria proveitoso questionar cuidada ou ingênua) alcança um estado completamente natural O seu corpo de mulher judia in- por que a nudez provocante de Pita grande poder retórico. nestes ambientes, porque a cria- tegra a mensagem tanto quanto Amor, bem como as fotografias em Mas o que a nudez, en- ção já instaura um artifício. Esse o bambolê feito de arame farpa- que Nahui Olin se despe, pratica- quanto linguagem, pode dizer? artifício é a linguagem, a inventi- do que a fere numa prisão rítmi- mente condenaram a riqueza de sua O uso do corpo, por sua plasti- vidade que a nudez comunica. ca, às margens do Mar Morto. criatividade a uma dimensão polêmi- cidade, já estabelece uma comu- Para além de ser um su- É um corpo presente não só por ca. O fato de terem trabalhado com nhão inevitável com as artes. Em porte expressivo, o corpo tem sua existência biográfica, mas poesia e pintura as excluía de uma atos performáticos, alguém pode a sua história: cicatrizes, pelos, também pelo peso histórico, pe- prática com outras matérias-primas? sugerir que o nu simplesmente texturas, formas vão construin- las associações que aprendemos a Aqui entra um novo problema de re- existe para facilitar a liberdade de do uma bioarquitetura, que nos fazer entre todos esses elementos ceptividade: o preconceito que exige movimentos, como um figurino diz — com um estranho tipo que estão na performance, in- que um(a) artista restrinja-se a um apropriado. Essa dimensão, ló- de silêncio — coisas que somos cluindo a paisagem. único campo de ação. O que a his- gico, tem de ser levada em conta acostumados a evitar. Talvez daí Da mesma forma, Marina tória dessas mexicanas parece dizer, a — mas não é a única. Na perfor- nasça, ainda hoje, a hostilidade Abramović, em performances da todos esses problemas que envolvem mance, como na dança, o corpo contra os que utilizam esse tipo década de 1970, e Milo Moiré, épocas, juízos, rótulos e proibições, não apenas se exibe, mas trans- de “voz”. Se a nudez é um tex- mais recentemente, puseram-se seria talvez resumido assim: não es- mite. Veja-se por exemplo a Cia. to, nem sempre é um texto aber- nuas para quebrar padrões de perem o óbvio nem o conformismo. Dita, de Fortaleza, que realiza a to ou óbvio. Alguns espectadores resistência, seja ela física ou cul- O nu está exposto, mas nem por isso maior parte de seus espetáculos agem como aqueles alunos ima- tural. É algo que o movimento é compreendido. 12 | | maio de 2016

enfrenta o temido Amarelo no bangue -bangue brasileiro que encerra a sequên- cia de 13 contos. Jailson não é o mesmo, mas está em todos os textos. Ao mesmo tempo Jailson é todo mundo. O que o li- vro apresenta é que essa escolha do autor também favorece a aproximação, a partir Je sui Jailson da pergunta que o leitor se faz em algum momento: é o mesmo cara? É e não é. Então podia ser eu. Então pode ser qual- Contos demonstram, com simplicidade e acerto, a quer um, a sofrer injustiça, ser amassado pela pobreza, escanteado pela incomuni- habilidade de Antônio Mariano na construção das frases cabilidade, internado pela discordância.

Poeta André Argolo | Santos – SP O décimo-primeiro conto, O poe- ta, tem algumas chaves possíveis de lei- tura, que engrandecem a experiência. Li que Antônio Mariano é poeta, mas não comum que se di- atenção me encantava. Eu dizia procurei (ainda) ler sua poesia. Estou re- ga que ler é solitá- de minha mãe e de mim, de nos- senhando este livro e tento me ater ao rio. E que escrever sa condição, da crise na cidade. E que o livro me diz. Se soubesse mais so- Étambém. Solidão de um açude me fugia pelos olhos. Ela bre o autor, talvez nem conseguisse fazer muitas vozes, que é isso? Se eu também chorava, vendo a minha esse isolamento, com seus prós e contras. fosse um dicionário, diria, e di- comoção. Prometeu trazer uma Mas o fato é que esse texto em questão ria mal: Estado ou sensação de cesta só para a gente, algumas rou- também parece um tratado sobre ques- desacompanhamento, ainda que pas, outros gêneros alimentícios. tões literárias. Qual a missão do poeta, em meio à multidão, ainda que Cada promessa, uma porta de luz O dia em que comemos assim que ele se reconhece como tal? O no colo de alguém. A solidão é que se abria. Parecia que o paraíso Maria Dulce conto começa pelo desfecho da história: dos grandes temas da Literatura viria se instalar ali. E a paz celes- Antônio Mariano Jaílson Gomes da Costa — esse sobreno- — ela, a morte, o amor, essas coi- tial habitou por um instante a mi- Ficções me de atum em lata é tão emblemático! sas, entrelaçadas, tantas formas de nha boca de dentes estragados. 122 págs. —, funcionário público, é internado pa- contar, tão comuns e ao mesmo ra tratamento psiquiátrico. Ele passa o tempo únicas em cada vida, em O tema da solidão é aber- conto repetindo uma epifania, de que é cada momento da vida. García tamente tratado, até porque ca- poeta, sou poeta, sou poeta, sou poeta. Márquez a tirou de um caroço da da conto tem uma epígrafe e a Nessa nova condição que apresenta, so- Colômbia, ou de um calo de suas maioria ou fala diretamente de fre uma série de atentados contra a vida. pegadas pelo país, e a transformou solidão ou transmite um am- Mantém-se firme como um Bartleby. E em umbigo do mundo, contando biente de solidão. As epígrafes sem escrever nem recitar verso nenhum, cem anos dela. Esse número é um são de livros pouco circulados, sou poeta, sou poeta, sou poeta. Até pouco só de tempo diante da so- desses que raramente se encon- que desenlata sua sinceridade espontâ- lidão que soa falsamente infinita, tram nas vitrines das livrarias. nea num momento crítico que nos faz já que humana, e que não sobre- Por que elas habitam italicamen- entender o porquê da internação. Um viveria a ela própria, no dia em te o logo abaixo dos títulos dos porquê explicável não nele, mas pelo en- que não sobrar quem a lamente, contos? Sim, podem dar um cli- torno, pelo medo, pela sociedade. En-

disseque, exponha. É disso que ma, mas não parecem essenciais o autor tão, trata-se de dizer ao leitor algo sobre são feitos os contos d’O dia em aos próprios textos que as se- um engajamento necessário com a vida que comemos Maria Dulce, de guem. Duas possibilidades, no Antônio Mariano real que o poeta deve ter? Pode ser... Antônio Mariano. mínimo: uma é ventilar boas É de João Pessoa (PB). Publicou No conto homônimo ao tí- escritas pouco divulgadas, que cinco livros, desde o início da Bolsa tulo: comemos. Muita gente para encantam o autor; outra é que década de 90, de poesia e conto. Os preconceitos e julgamentos fá- o que é profundamente solitá- talvez tenham sido a provocação Os de poemas: O gozo insólito ceis na nossa sociedade estão escanca- rio, o sofrimento da fome. Maria de cada história. O fim do livro (1991), Te odeio com doçura rados no conto Herói interrompido. A Dulce não é quem tem fome, ela traz as referências das epígrafes (1995), Guarda-chuvas esquecidos ambientação põe o leitor no centro de a sente sendo a comida. Sendo a usadas. Dá boa curiosidade de (2005) e Sob o amor (2013). João Pessoa, capital da Paraíba. Mas pode comida ela nos revela quem é fo- ler também esses escritores cita- De contos, este O dia em que funcionar no centro da maioria das mé- me. Desamparada, não necessa- dos, pra quem já não os conhece comemos Maria Dulce (2015). dias e grandes cidades brasileiras, trocan- riamente solitária, Maria Dulce. — Maria Valéria Rezende, Prê- do o nome de uma rua, de uma praça. Desamparados os que a devoram mio Jabuti de 2015, é das mais Nesse onde, Jailson, agora um paraibano no conto. Habilidoso conto. Não conhecidas do grupo, mas talvez analfabeto, trabalhador da construção ci- estou aqui a sugerir que se inver- não fosse ainda tanto, quando da vil, paquera moças depois do expedien- ta ordem nenhuma da obra, mas primeira edição da obra. te, em olhares e desejos além dos óbvios, sugiro sim que se comece a leitu- No texto Sobre o autor, tam- carnais, desejos de vida melhor, de amor, ra desse livro por esse texto, que bém no fim do livro, descobre-se de felicidade, e acaba testemunhando um concentra bem a habilidade que que essa obra, publicada pela edi- trecho roubo. A mulher bonita aos olhos dele te- o escritor exibe no livro todo, ha- tora Ficções em 2015, já tinha vi- O dia em que comemos ve a bolsa levada por um rapaz, como ele, bilidade na construção das frases, rado livro dez anos antes, numa Maria Dulce “magro, baixinho e preto”. Jailson corre no encadeamento delas, sempre edição dita não-comercial. E esta atrás do rapaz. A perseguição dura uma contando a história, sem muita primeira edição levava o título de Tenta se apoiar em alguma vida, no que passa pela cabeça de quem digressão, sem citações de exibi- outro conto: Imensa asa sobe o dia. caça um pouco de justiça e reconheci- cionismo cultural. No mínimo, Tanto esse título quanto o próprio força lá fora que o faça se mento. Até que esse tiro sai pela culatra e como técnica, funciona muito conto são mais líricos do que O desligar dali: um barulho de o atinge em cheio: ninguém nota a dife- bem porque não faz o leitor es- dia em que comemos Maria Dulce. motor na oficina à frente, o rença entre caça e caçador. capar das cenas, do pensamento O que parece é que a troca favore- riso alto e a pornografia dos Chama atenção que o autor não dos personagens, de seus pontos ce o clima geral do livro. carrega sua narrativa com regionalismo. de vista. E os sentimentos são mecânicos, uma cigarra no Não abusa de malabarismos estéticos, tão mostrados quanto relatados, Jailson jambeiro, o aparelho de som usa a língua mais pela precisão. Como num equilíbrio difícil de se man- Todos os personagens cen- do vizinho e a música horrível temas, evoca a violência que mora até ter, mas ele consegue. trais dos contos têm o mesmo no último volume, a histeria dentro de seres costumeiramente muito nome. Jailson é um rapaz que pacíficos, evoca a pobreza, o preconcei- Uma vez fiquei sozinho com tenta ganhar um sorriso mas re- de galos e galinhas na tarde to social e racial. Outro valor do livro Maria Dulce após os outros irem cebe uma pedrada do mundo, ao pouco azul, o recado em Morse está na estrutura dos contos, tramas embora. Sentados num velho toco, tentar recuperar a bolsa rouba- do vento batendo nas janelas que vão aumentando a tensão e, mes- mão na mão, olho no olho, sorrin- da de uma mulher — e há mais mal fechadas, a mínima mo sem reviravoltas mirabolantes, têm do sem jeito, eu era o seu escolhido, o que dizer desse conto. Jailson é desfechos que surpreendem. Agora sim, agora me dou conta disso. Eu fa- um dos meninos com fome que interferência entre o seu ouvido vou procurar sua poesia já publicada e lava muito; ela, quase nada. Sua devora o doce menina Maria. E e a voz do filho. aguardar pelo romance. maio de 2016 | | 13

Como ela foi uma das juradas do prêmio que Graciliano recebeu, o escritor convive com a dúvi- da: foi mesmo a qualidade do seu trabalho o fator determinante para a premiação? Ou foi apenas o interesse sentimental da jurada? Um escritor A maneira pouco cortês de se referir às mulheres não é exclusividade do protagonista. Depois de ter uma entrevista pu- blicada em um grande jornal do país, Graciliano se encontra com o editor Romero e ouve o amigo solitário e eufórico perguntar com quantas “marias lombadas” e “marias resenhas” ele já tinha se relacionado desde O ano em que vivi de literatura narra a história a aparição no jornal. de um homem vazio e apaixonado pelos excessos O meio literário O livro é uma sátira dos bastidores da literatura. Em Gisele Barão | Ponta Grossa – PR meio à rotina festeira de Graci- liano comenta-se, mesmo que nas entrelinhas, sobre critérios luiz carames o autor amplamente subjetivos na esco- protagonista de lha de obras literárias premiadas, O ano em que Paulo Scott sobre editoras que valorizam ou vivi de literatura Nasceu em Porto Alegre (RS), em não os escritores que mantêm, Oé Graciliano, um 1966, e vive no Rio de Janeiro (RJ) sobre relações de interesse entre escritor que sai da cidade natal desde 2008. Publicou cinco livros de escritores e editores. Porto Alegre para viver no Rio poesia, como Mesmo sem dinheiro O meio acadêmico tam- de Janeiro. Depois de ganhar comprei um esqueite novo, bém está no alvo da sátira — em muito dinheiro com um grande vencedor do Prêmio da Associação certo momento, Graciliano se re- prêmio literário, ele embarca em Paulista de Críticos de Arte em 2014. fere aos professores de História uma rotina de exageros: muitos Também escreveu cinco livros de como um “clube”, além dos do- eventos, muito sexo, muita be- prosa, como Ainda orangotangos nos de blogs famosos de literatu- bida alcoólica e, principalmente, e Habitante irreal — Prêmio ra, escritores premiados, editores, Machado de Assis da Fundação muita insegurança. Biblioteca Nacional em 2012. críticos. O editor Romero, além Ao contrário do que o título do próprio Graciliano, é um dos faz pensar, o livro do gaúcho Pau- principais representantes dessa lo Scott quase não menciona li- caricatura da “cena” literária. teratura. Graciliano, na verdade, mal escreve — embora esteja de- de ensino médio e da faculda- pai. Ele nunca conseguiu superar Sabe, Graciliano, não sei se vendo produção para uma editora de de História. Na nova vida de o fato de Graciliano ter abando- é o seu caso, porque não sou seu e recheie sua página no Facebook Graciliano, tudo é intensidade, nado a carreira de professor uni- analista e muito menos uma des- de textos — e muito menos lê. desgaste, exagero. versitário de História em Porto sas suas namoradas metidas a gênio Por outro lado, com a fama Alegre para “virar vagabundo” da raça, mas poderia apostar que, que o prêmio lhe deu, o protago- Família no Rio de Janeiro. se não de todo, pelo menos em par- nista vira presença desejada em Além das relações fluidas e te, você está sofrendo da consciência encontros e festas do meio inte- frias com amigos e mulheres, os Feminino de não ter controle algum sobre a lectual. E, ao longo do enredo, conflitos familiares alimentam Há muitas mulheres na sa- O ano em que vivi importância que seus livros vão ter. essa série de eventos fica cada vez a angústia de Graciliano. Paulo ga de Graciliano, mas poucas de- de literatura mais melancólica. Scott desenha muito bem uma las têm nome ou importância na Paulo Scott Angústia A história se passa em 2011. outra peça que colabora na for- vida dele. Além da irmã desapare- Foz Muitos autores já se dedi- Nesse período, as redes sociais já mação do personagem: a relação cida e de uma ou outra namora- 256 págs. caram a escrever sobre o próprio estavam ditando parte do nosso tensa que o escritor tem com o da mais marcante, como Lenara e ofício. Não é difícil encontrar comportamento, nosso círculo pai. Os diálogos entre os dois Janaina, boa parte das outras mu- livros sobre escritores em crise, de relações, com batalhas de ego, ocupam poucos trechos do livro, lheres é referenciada com pouca por exemplo. Talvez a maior di- bajulação e condescendência. E mas o incômodo que esse víncu- formalidade: a “amante do jorna- ferença em O ano em que vi- assim funcionava para Gracilia- lo familiar provoca no protago- lista”, a “deusa”. Um pouco de se- vi de literatura seja justamente no. É difícil contar quantas ve- nista está sempre presente. xo, e elas desaparecem. a falta da literatura na rotina de zes o Facebook aparece no livro. Um dos motivos para os Parte desses relacionamen- um escritor que conseguiu reali- O protagonista nos narra uma problemas na família é o desa- tos começou no mundo virtual, zar o desejo de muitos: sustentar- sequência propositalmente can- parecimento da irmã de Graci- e alguns também reagem de se exclusivamente do dinheiro sativa de postagens, comentários, liano, Flávia. A razão do sumiço acordo com ele. Isso fica claro que esse trabalho lhe garantiu. respostas aos comentários, flertes. não fica muito clara na história, em uma passagem do livro em A história tem algo depri- Ele monitorava tudo o tempo to- que dá apenas algumas pistas do que Janaina reclama de um poe- mente, talvez pela repetição das trecho do, e era dependente da adoração que pode ter acontecido com ela. ma que Graciliano postou no ações de Graciliano: festa, sexo, que a internet lhe garantia. É como se cada integrante da Facebook, com o título “J” — o O ano em que vivi início de relacionamentos, fim A razão para a vida de ex- família tivesse um trauma dife- que parece ser uma provocação de literatura de relacionamentos, indiferen- cessos de Graciliano não parece rente sobre essa perda e um po- para ela e rende uma longa dis- ça, briga com o pai, saudade da ser nenhuma além de deslum- sicionamento diferente sobre o cussão por telefone. O perfil de página inteira no irmã. Em alguns momentos, a bre. De repente, com muito di- paradeiro de Flávia. Discutir so- Graciliano se envolveu tam- Segundo Caderno d’O Globo atitude dele, impulsionada pela nheiro e reconhecimento em bre isso já é rotineiro para eles. bém com Patrícia, uma doutoran- infelicidade, beira o ridículo — mãos, ele se vê em um seleto cír- A irmã desaparecida pare- da em Letras que protagoniza um de sábado foi o estopim. como acontece no trecho em que culo de relações com escritores, ce ser a única pessoa com quem dos capítulos de O ano em que Romero, o meu editor, ligou ele entra num sebo, acompanha- editores, jornalistas, críticos lite- Graciliano realmente se identi- vivi de literatura. Ela se separa me chamando pruma conversa do de amigos recém-conhecidos. rários, curadores, marqueteiros, ficava, a única por quem man- do personagem principal por von- no final de tarde da sexta- Além do próprio enredo, e quer tirar o proveito máximo tinha o mínimo de afeto — há tade própria, e essa atitude deixa o ritmo da narrativa ajuda a dar disso — principalmente no que um belo trecho em que ele des- Graciliano no mínimo desconfor- feira seguinte no Bar Astor no o tom desse período conturbado diz respeito às mulheres. creve a lembrança de um passeio tável e sensibilizado. Mas assim Arpoador (…). Pedi a senha da da vida de Graciliano: um tempo Mas o convívio com essas com Flávia e amigos. que ela sai de cena, ele volta ao rede sem fio, fiquei conferindo que passou acelerado, sem folga. pessoas também o faz se revelar Entretanto, além dessa au- comportamento de sempre. o que estava sendo comentado Mas a angústia dele é a angústia um homem solitário e carente. sência mal explicada, as escolhas Outro momento de in- de todo mundo, um sentimento Um dos poucos amigos que o que o protagonista fez na vida segurança ligado aos relaciona- nas postagens que joguei no que talvez não seja exclusivo de acompanha é Ildefonso, colega também causam desconforto ao mentos acontece com Lenara. facebook durante a tarde. quem escreve. 14 | | maio de 2016

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simetrias dissonantes | Nelson de Oliveira Nosso futuro transcendente

m de meus poemas ilustração: Tereza Yamashita concretos predile- tos é Organismo, Ude Décio Pignatari, publicado em 1960. É um poema bastante simples, feito de um só verso — “o organismo quer per- durar” — que se modifica confor- me o leitor vira as folhas do livro, terminando num orgasmo. Essa oração corriqueira — “o organismo quer perdurar” — é também uma verdade bio- lógica incontestável. A morte é um conceito inexistente, entre as plantas e os animais, e inacei- tável, entre os seres humanos. Da criatura mais simples à mais complexa, todas querem perdu- rar, todas lutam pra permanecer. Em estado selvagem ou con- trolado pelas leis da civilização, o que move os seres vivos é o im- placável instinto de sobrevivência. No mundo altamente racionalis- ta em que vivemos, a inteligência promove a ciência e a tecnologia, mas é o instinto de sobrevivência que promove a inteligência.

Da ficção à realidade O que antes era apenas A morte é um conceito inexistente, entre as plantas de Roberto de Sousa Causo, reu- obra primorosa que integra uma ficção começa a se materializar e os animais, e inaceitável, entre os seres humanos. nidos na coletânea Shiroma: ma- bibliografia composta quase que diante de nós. tadora ciborgue, de 2015. Os só de obras primorosas. Nos principais centros de Da criatura mais simples à mais complexa, todas inúmeros personagens que inte- Clarke avança no futuro pesquisa do mundo todo, gru- querem perdurar, todas lutam pra permanecer. ragem nesse universo trans-hu- um bilhão de anos pra mostrar pos de cientistas e engenheiros mano — estamos no século 25 como a singularidade tecnológi- devassam o corpo humano, ma- d.C. — receberam todo o tipo de ca e a engenharia genética trou- peando cada detalhe, do geno- O cálculo mais preciso já mas também pode acontecer aos aperfeiçoamento biotecnológico. xeram a imortalidade a uma ma ao conectoma. O novíssimo feito sobre a quantidade de plan- saltos. O tempo gosta de pregar Seu metabolismo é mais eficien- humanidade totalmente pós- entendimento biotecnológico tas e animais no planeta deter- peças. É um amigo traiçoeiro, te, são pessoas mais fortes e inteli- trans-supra-humana. propõe que o corpo é uma má- mina que a Terra abriga hoje oito muitas vezes inimigo. gentes, mais resistentes a doenças, As pessoas agora vivem ci- quina, sendo o cérebro um com- milhões e setecentas mil espécies Encerrada no abstrato am- com habilidades físicas e cogniti- clos de mil anos. Ainda há ma- putador. É preciso compreender, (um terço no mar e dois terços biente virtual ou no corpo fe- vas impensáveis em nossos dias. chos e fêmeas, mas são difíceis de então, como essa complexa má- na terra). Mas a maioria — oi- chado de computadores e robôs, A convergência geral de distinguir. Casais não procriam quina funciona, só assim será tenta e cinco por cento — ainda chegará uma hora em que a in- biologia e cibernética de fato tor- mais, mulheres não engravidam possível interferir em sua intrin- é desconhecida. teligência artificialmente cons- nará quase indistinguíveis os orga- nem concebem há mais de um bi- cada trama de sistemas, a fim de Os pesquisadores estimam truída desejará dar um novo nismos de carbono e os de silício. lhão de anos. Um sofisticado siste- corrigir os defeitos, aperfeiçoar que esse número representa um salto evolutivo. Pra dentro do ma computacional — uma cidade as qualidades e agregar múltiplas por cento de toda a vida que já nosso cérebro. Nessa hora ocor- Quem quer viver — armazena na memória todas as extensões biônicas. O objetivo é passou pelo planeta. Espanto- rerá um drástico rompimento pra sempre? características biológicas e psicoló- a longevidade. Sempre foi. so? A natureza é cega, irracional social. Muitas pessoas preferirão Nossa capacidade mental é gicas das pessoas. Assim preserva- O problema é que vivemos e implacável. Cerca de noven- viver longe das máquinas, total- muito limitada. Medidas muito do, cada indivíduo se torna “uma numa sociedade altamente estra- ta e nove por cento das espécies mente desconectadas do mundo grandes tendem a se tornar abs- galáxia de elétrons congelada no tificada e competitiva. Tudo o que surgidas na Terra tiveram sua cibernético. É a opção neolud- tratas. Quando alguém fala em núcleo de um cristal” quando um aprendemos até hoje com a psico- oportunidade e fracassaram. Os dista. Mas a maioria aceitará de um milhão de dólares ou um ciclo de vida chega ao fim. logia, a biologia e a historiografia dinossauros viveram por cen- bom-grado a simbiose, apesar de milhão de quilômetros ou um Ninguém dorme mais, garante que se casais endinheira- to e vinte milhões de anos e de- todos os perigos e dilemas envol- milhão de anos sabemos que é unhas e dentes desapareceram. dos — através da engenharia ge- sapareceram. Não há qualquer vidos nessa escolha. muito dinheiro, longa distância Os pelos do corpo também, so- nética, por exemplo — tiverem a garantia de que o mesmo não A convergência homem- e tempo demais. Mas é só uma brou apenas um pouco de cabe- oportunidade de aumentar a in- acontecerá com nossa espécie, máquina talvez ocorra antes que a impressão meio subjetiva. Não lo na cabeça. Não há mais bebês teligência e a expectativa de vida que está no planeta há míseros engenharia genética consiga mu- dá pra contar nos dedos ou abar- nem crianças, as pessoas já nas- de seus filhos, assim como a de duzentos e cinquenta mil anos. dar radicalmente o ser humano. car com o olhar. O que dizer, en- cem fisicamente desenvolvidas todos os seus descendentes, “tere- Pra permanecer por mais Assistam ao filme Transcendence, tão, de um bilhão? (sem umbigo, é claro). Quando mos não apenas um dilema moral duzentos e cinquenta mil anos, de 2014, dirigido por Wally Pfis- O que eu mais gosto na li- alguém muito velho morre — a mas uma guerra total de classes” muitos ficcionistas sugerem que ter. É provável que a inteligência teratura especulativa é da paixão expectativa de vida, repito, é de (Francis Fukuyama). teremos que aceitar a simbiose artificial nos ajude a aperfeiçoar que seus autores têm por certas mil anos —, volta a ser arquiva- O dilema moral e social homem-máquina. Essa é a pre- os muitos campos da biotecnolo- abstrações absolutamente fasci- do na memória do sistema, pra dessa nova eugenia foi muito missa do romance Os dias da gia. O objetivo é o prolongamen- nantes e sedutoras. Fora da lite- renascer no momento apropria- bem exposto no filme Gattaca, peste, de Fábio Fernandes, lan- to da vida saudável e produtiva, ratura especulativa é raro a gente do, cem milênios depois. Todas de 1997, escrito e dirigido por çado em 2009. custe o que custar. A permanên- ver, por exemplo, o tempo sendo as pessoas vivas se lembram, na Andrew Niccol. Num futuro muito pró- cia do organismo-orgasmo, sem- trabalhado de modo tão criativo. maturidade, das vidas passadas. ximo, a inteligência artificial fi- pre. Singularidade tecnológica Mil anos? Não. Um mi- No romance de Clarke, a Utopia caótica nalmente ganhará consciência e e engenharia genética, reunidas, lhão de anos? Nãããooo. ciência e a tecnologia realizaram O organismo quer perdu- superará a inteligência humana. transformarão radicalmente a na- Um BILHÃO de anos! o que em nosso tempo somen- rar. O organismo quer desespe- Entre os pesquisadores esse even- tureza humana e a civilização. Exatamente. Dá pra imaginar is- te certas doutrinas religiosas se radamente permanecer. Num to já tem um nome: singularida- Esse futuro transformado so? Foi o que fez Arthur C. Clarke atrevem a prometer: a vida eter- universo que está sempre testan- de tecnológica. A evolução pode pela alta tecnologia pode ser an- num de seus melhores romances, na por meio de sucessivas reen- do sua resistência, sem piedade. ser um processo lento e gradual, tevisto, por exemplo, nos contos A cidade e as estrelas, de 1956, carnações. 16 | | maio de 2016

Em Olhos verdes, a visita breve e inesperada de um an- tigo conhecido desperta sen- sações novas num casal de meia-idade, em especial na es- posa. Mas a relação ambígua dela com o visitante não fica Caminhos clara — fruto da elipse narra- Ao contrário, um caminho tiva que não desvela o passado; Afonso Caramano resta ao leitor, do ponto de vis- 11 Editora ta do narrador/esposo, especu- 109 págs. lar sobre a raiz da questão. Em Entrevero, dois via- jantes em direções opostas entre prosa obstruem, cada qual, o rumo do outro, num estreito cami- nho à boca de um despenha- deiro. As reflexões existenciais do narrador e o tom simbóli- co da contenda dotam o con- to de um contorno mítico e poesia realmente notável. É da solidão humana e seus desamparos que tratam O A prosa reflexiva e poética de Ao contrário, um caminho jantar e Ausência; no primeiro, um idoso divide seu lar com a marca a estreia do contista Afonso Caramano família de sua filha, mas a in- diferença mútua, disfarçada em excesso de zelos da filha e Clayton de Souza | São Paulo – SP respeito dos netos, é o que pre- domina, além do latente inte- resse do genro pelo imóvel; no segundo, o vazio dos dias de o mercado lite- Veredas porque, considerando com bas- o autor um velho aposentado se ma- rário atual, uma Nessa pequena união de tante atenção, é de caminhos a Afonso Caramano terializa na ausência do ami- questão que pare- histórias sintéticas e intimis- serem tomados e suas implica- go/parceiro de pesca que não ce ser ponto pací- tas, as questões humanas como ções que se tratam os dramas Nasceu em Jaú (SP), em maio de mais compartilha o exercício N 1969. Formado em letras pela fico é a preferência dos (poucos) misantropia, relações familiares dessas treze histórias. que em si é a metáfora da vida: leitores brasileiros pelo gênero entre outras são condensadas e Do homem que é alveja- Faculdade de Filosofia, Ciências e a pesca do peixe que, tão logo conto. Para embasar essa constata- não diluídas numa prosa cla- do num campo privado o qual Letras de Jaú, destacou-se em diversos capturado, será devolvido ao concursos literários (8º Prêmio UFF ção, basta consultar qualquer lista ra e fluente, altamente poética. não costumava percorrer, em de Literatura, Concurso Cultural mar. Portanto, uma atividade de “mais vendidos”: mal se depara Seus dramas humanos intensifi- Primavera rubra, à mulher que, Conte o Conto Sem Aumentar um metódica, mas sem uma fina- com exemplares representativos cam-se por dois elementos que optando por atravessar a aveni- Ponto, pela Academia Brasileira de lidade que a justifique. da categoria, o que suscita refle- estrategicamente envolvem o da, mergulha em íntimas con- Letras, Feira Nacional do Livro de É a mesma sensação xões talvez pertinentes num mer- leitor, afastando-o da letargia: siderações sobre os rumos que Ribeirão Preto). Ao contrário, um que emerge de Ao mar, pala- cado literário como o brasileiro a elipse narrativa, que instiga optou por seguir na vida, entre caminho é seu livro de estreia. vras, embora de forma envie- onde sobejam escritores que se quem lê a especular em torno obras-primas da pintura mun- sada: num porto sitiado pelo dedicam a esse gênero, e em mé- do passado dos personagens ou dial num museu, em Encontro. mal tempo, um casal se deba- dia o fazem com competência. da história pregressa aos dramas Assim, ora literais, ora te entre ressentimentos passa- Quem se mostra interes- presentes e o foco narrativo que alegóricos, os caminhos aca- dos que o leitor apenas entrevê sado na questão por certo já ob- enleia o leitor, seja em primei- bam por ser o eixo desses e a esperança quase extinta no servou que o desejo em voga do ra pessoa, seja em terceira, com dramas, com uma profunda ritual que ali os trouxe, e que leitor é por narrativas cujo ritmo discurso indireto livre, embora conotação existencial. Con- visa reaver de alguma forma intenso se deve a uma dramati- neste último, em alguns casos tudo, esse elemento gera não o filho ausente de ambos: em cidade constante e progressiva; (em especial no conto Vigília), uma movimentação dramática, pleno mar, numa confluência há que se aprofundar na histó- a alternância de vozes entre nar- no sentido de uma sucessão de de correntes marítimas, lan- ria, aos mínimos detalhes, cada rador e personagem tenda a de- acontecimentos convencionais çar garrafas com mensagens. aspecto do caráter e passado dos sorientar a leitura. que convergem para um clí- Aqui, a mesma sensação de va- personagens: em geral, elipses A já mencionada lingua- max, mas antes uma movimen- zio, o mesmo viver sem a bús- são depreciadas. gem, bem como o foco narrati- tação interior, introspectiva, a sola que norteie a um sentido Como se vê, as deman- vo, também apresenta variações implicar cada um dos persona- redentor para o espírito. das desse leitor se chocam fron- ao longo desses treze contos, gens centrais, num torvelinho Nessas como em outras talmente com os aspectos mais embora mantenha um acento onde passado e presente coexis- histórias, Afonso Caramano marcantes do conto moderno e pessoal ligado à prosa enxuta e tem (por vezes, de forma estra- observa as implicações das es- que respondem pela tênue linha ao uso simbólico de imagens, nhamente inusitada): colhas individuais, e embora divisória entre a prosa e poesia num mergulho introspectivo trecho o desalento seja o saldo dessa desse gênero. que remete à prosa de uma Cla- Comprazia-se em uma di- Ao contrário, um caminho prosa imersiva, a beleza por ve- No entanto (e isto não só rice Lispector. vagação infrutífera (...) — en- zes plástica de sua poética sur- tregava-se a um movimento de no terreno do conto, mas tam- Mas, como já dito, essa No campo devastado nada ge como um alento: bém nas vastas planícies do ro- linguagem segue outros cami- raciocínio, meio enviesado, é ver- mance) as sugestões e omissões nhos, tangenciando, inclusive, dade, sobrepondo camadas à rea- havia com que se animar; ele Somente um dos cavalei- do prosador, o lirismo que atua a recriação poética da fala regio- lidade até transpô-la como se só fazia era durar, sobreviver. ros seguiu pela trilha e chegou do como suplente da tessitura dra- nalista levada a cabo por Gui- atravessasse um véu diáfano (...) Não tinha de fingir nada, outro lado. Provavelmente tenha Descortinava em minúcias mática podem, por sua própria marães Rosa: mas aparentava não se vislumbrado os últimos resquí- essência, estreitar mais as distân- a própria história, reescrita em cios sanguíneos do poente no ho- cias entre o leitor e a ficção com Julguei por bem que se por diferentes nuances, ora revestin- importar nem ver ou ouvir rizonte contrário. seus personagens. Basta que o acaso não houvesse acaso não se- do de antigas sensações fatos que certas coisas — os pequenos leitor se abra a essa experiência ria de esperdiçar a casualidade do nunca ocorreram, ora inventando fracassos acumulados da vida É nessa confluência de ha- encontro, e fui encompridando a impressões para acontecimentos e, claro, que o escritor tenha a em comum, as discussões bilidades usadas em geral com capacidade de seguir por esse ca- conversa. Presumir qualquer um passados. competência que reside o moti- minho, vizinho à obscuridade e presume, assentar sentença, porém, dissimuladas, a apatia nos vo, mesmo ao categórico aman- ao hermetismo. se deve fazer em foro apropriado. É bem desse mundo inte- rostos das crianças, herança, te de romances, para se ler Ao Caso ilustrativo da ques- rior que o livro de Afonso Cara- talvez que lhes legara por contrário, um caminho. Mes- Percalços tão estilística que aqui se reflete mano trata; o exterior, quando meio da filha. A vida, enfim, mo porque não raras as vezes é o primeiro livro do gênero do O título da obra não é es- este aparece, exerce a função de que a extensão dilui o que aqui, paulistano Afonso Caramano, colha arbitrária de um título leitmotiv para os dramas inter- fazendo o seu trabalho, em forma breve, se adensa: o ser Ao contrário, um caminho. dos contos (no caso, o quinto) nos daquele. corroendo a si mesma. humano e seu drama. maio de 2016 | | 17 inquérito rubens figueiredo divulgação

Frio como gelo

ubens Figueiredo político, por enquanto mantido mas e virtudes. Só que, incon- • Qual escritor — vivo ou morto — nas­­­ceu no Rio de Ja­­ na sombra, à espera. Em vez de testavelmente, é um ambiente gostaria de convidar para um café? neiro (RJ), em 1956. recomendar um livro, digo que tomado pela elite social, com Prefiro convidar minha esposa. É mais RÉ considerado um a Dilma tem todo meu apoio e poucas mulheres, quase nenhum inteligente. dos mais originais ficcionistas reconhecimento como uma mu- negro e sem pobres. Isso afeta os brasileiros contemporâneos. Au- lher extraordinária. critérios sobre o que se escreve. • O que é um bom leitor? tor, dentre outros, de Barco a se- Aquele que relaciona sinceramente o co (Prêmio Jabuti) e Passageiro • Quais são as circunstâncias • Um autor em quem se deveria que lê às circunstâncias da sua vida e do fim do dia. Também se dedi- ideais para escrever? prestar mais atenção. das pessoas de seu tempo e tira o má- ca à tradução de autores russos e Estar frio como gelo (como disse Natalia Ginzburg. Mas, nas cir- ximo proveito disso. de língua inglesa. É responsável Tchekhov) e ter a consciência mais cunstâncias presentes, receber pelas traduções de clássicos co- clara possível acerca do assunto so- muita atenção pode não ser na- • O que te dá medo? mo Anna Kariênina e Guerra e bre o qual pretendo escrever. da bom. Ter feito ou fazer mal a alguém. paz, de Tolstói. • Quais são as circunstâncias • Um livro imprescindível e • O que te faz feliz? ideais de leitura? um descartável. Ter feito ou fazer algo de bom a al- Que o texto tenha conteúdo e seja Não sei dizer. guém. • Quando se deu conta de que escrito com clareza e organização. queria ser escritor? • Que defeito é capaz de des- • Qual dúvida ou certeza guiam seu Era adolescente. Queria uma • O que considera um dia de truir ou comprometer um livro? trabalho? porção de coisas. trabalho produtivo? Escrever a sério, ou seja, para de- Quando escrevo, eu gostaria de ser guia- Se a pergunta se refere à atividade senvolver uma perspectiva críti- do por questões e questionamentos. • Quais são suas manias e ob- de escritor, escrever, para mim, ca, e não para alienar o leitor, é sessões literárias? não é trabalho nem pode ser me- muito difícil. Escrever mal, ou • Qual a sua maior preocupação ao Não tenho mania nem obsessão. dido em termos de produtivida- escrever páginas ruins, não é cri- escrever? de. Mas a expansão capitalista me, não é motivo para alarde. Dizer algo de pertinente e útil. • Que leitura é imprescindível tende a mudar isso e transformar Mesmo assim, nesse caso, nesse no seu dia a dia? também essa atividade humana tipo de livro, acho que nenhum • A literatura tem alguma obriga- Nenhuma. em mais um produto. defeito é capaz, no rigor das pa- ção? lavras, de destruir ou compro- Antes de levantar o nariz e responder • Se pudesse recomendar um • O que lhe dá mais prazer no meter o resultado. que a literatura não tem obrigação de livro à presidente Dilma, qual processo de escrita? nada, é bom lembrar que ninguém seria? Se o que tenho a dizer é relevan- • Que assunto nunca entraria tem obrigação de ler. No momento em que escrevo is- te, tudo dá prazer. Até errar. em sua literatura? to, a mesma classe e os mesmos Não sei responder. • Qual o limite da ficção? grupos sociais de sempre estão • Qual o maior inimigo de um Não sei. dando mais um golpe de Estado escritor? • Qual foi o canto mais inusi- no Brasil. Como sempre, dizem Acreditar que não precisa ter o tado de onde tirou inspiração? • Se um ET aparecesse na sua fren- que não é golpe. Como sempre, que dizer. Algo que fiz durante anos, vá- te e pedisse “leve-me ao seu líder”, a a mídia e o Judiciário tentam le- rias vezes por semana, sem quem você o levaria? gitimar. Como sempre, mani- • O que mais lhe incomoda no perceber. Uma experiência de Não existem ETs. pulam uma parte da população meio literário? alienação vivida. com um discurso histérico e po- O meio literário nada tem de di- • O que você espera da eternidade? liticamente vazio de combate à ferente em relação a outros am- • Quando a inspiração não Que eu saiba, só existem o tempo e a corrupção. Um vazio que, em bientes. São pessoas iguais às vem... história e não vale a pena perder tem- seguida, ganhará seu conteúdo outras, com os mesmos proble- Azar. po com o que não existe. 18 | | maio de 2016

ada gênero tem suas especificidades, mas todo o texto preci- Csa, antes de tudo, estabelecer com o leitor um pac- to de envolvimento e empatia; o enredamento excessivo de linhas em labirintos não sedutores po- Frágil mosaico de dificultar a estratégia. Um ro- mance, por exemplo, tem como desafio maior estruturar-se co- Notas sobre Turibio Núñes, o escritor caído, mo... um romance. A compo- sição é o segredo. E isso não é de Jéferson Assumção, é um romance confuso nada simples. Personagens que transitam e gesticulam sem ru- mo nos cenários como fios de- Claudia Nina | Rio de Janeiro – RJ sencapados podem fazer ruir um projeto com pretensões de origi- nalidade ao apostar na confusão. Uma “espécie de todo” é a expressão usada Um dos pontos preocupan- pelo próprio Turibio (lembrando: sim, ele é um tes do romance Notas sobre Tu- autor) para definir os originais que entrega a um ribio Núñes, o escritor caído, de conhecido pouco antes de sua morte silenciosa. Jéferson Assumção, é a opção por Eis o que se descobre quase ao final do romance, um conjunto multifacetado de momento em que igualmente lampejos sobre a narrativas não muito bem condu- vida caída do autor aparecem. Texto sobre texto, zidas e que por isso enfraquecem composição sobre composição, histórias imbrica- a organização do romance co- das uma dentro da outra. Quem escreve é o mes- mo uma estrutura minimamen- mo ser de quem se escreve. te coesa. Pode-se argumentar que Talvez essa “espécie de todo”, referido acima, há muito tempo caiu por terra seja exatamente o que As notas apresentam: nada a necessidade de um enredo só- muito coeso nem capaz de alcançar algum foco. lido, mas não é disso que se fala Muitas ideias todas misturadas a cenários e perso- aqui: até para abstrair a forma é nagens à procura de uma (filosófica?) explicação preciso saber construí-la antes de para a existência. desobedecê-la. A mão forte que irá espatifar a estrutura saberia Contos perfeitamente criar sem destruir, O autor Já o livro de contos Cabeça de mulher mas opta pelo caos com a cons- olhando a neve, em sua maior parte, faz-se de Jéferson Assumção ciência dos gestos. Porém, não pem em meio a cenas comuns, textos que rondam a impossibilidade de algu- parece ser o que ocorre em Notas Nasceu em Santa Maria (RS), em como parênteses, causando uma mas regiões do Brasil, acaloradas por natureza, sobre Turibio Núñes. 1970. Doutor em Humanidades estranheza proposital, o que é serem, surrealisticamente, cobertas de neve. Se as São 16 pontos de vista so- e Ciências Sociais-Filosofia, positivo. Diz um velho cego: ladeiras de Olinda, ou o sertão, conhecessem a bre um mesmo personagem, um pela Universidade de León, na neve, como seria vida ali, com as curvas forman- escritor argentino fictício, nasci- Espanha. Tem mais de 20 livros — A grande questão é que, do pistas de esqui? do em La Plata, com passagens publicados, entre eles A vaca azul há milênios, iludida pelo movi- Entre as singelezas, em Caruaru, por exem- por Porto Alegre e Rio de Janeiro é ninja em uma vida entre aspas mento da Terra, a humanidade plo, as pessoas poderiam produzir bonecos de neve, A ilustração vital — o destino final. Tinha o sonho (2014), (2013) supôs que existia o tempo e inven- uma espécie de artesanato fugaz — um cenário ab- e Homem-massa (2012). Como tou uma forma de dividir o dia e de se tornar um autor brasileiro. repórter especial e ativista, já atuou surdo, tornado possível na ficção: Sua vida é marcada por falências. em vários países, como Índia, de marcar as sucessões de espaços Mas, contrariando as expectati- Quênia e Marrocos. Atualmente, claros e escuros que se formam so- O resto o gelo tinha coberto, dos calanguinhos às vas, ele não aparece como pro- faz pós-doutorado no Programa bre o planeta. Percebeu ainda uma galinhas, duras, mortas, que encontramos a um can- tagonista, e sim de forma lateral de Pós-graduação em Literatura sucessão de dias quentes e frios, o to do galpão, como se tivessem tentado se esconder. Sei com diferentes roupagens. Após da Universidade de Brasília. florescimento e o amadurecimen- que lá, de vez em quando, a neve volta, só que nunca sucessivas quedas, tanto morais to das frutas, e as flores secarem. As mais com tanta força, como quando antes fazíamos quanto físicas, incluindo aí tro- pessoas imaginaram que, entre esses bolinhas para acertar na cabeça dos mandacarus com peços financeiros e intelectuais, eventos fortuitos, havia algo mági- seus braços espinhentos abertos para nós. Núñes termina na favela da Ro- co: o tempo. Mas agora que se sabe cinha. Ao encerrar a (confusa) como o relógio do universo funcio- Talvez o melhor texto seja o mais simples de autobiografia, morre misteriosa- na quando se olha para trás, se vê todos. Saturno no laranjal fala de um pai descas- mente, talvez um suicídio. que não há passado, afinal, e que cador de laranjas e da expectativa dos filhos quan- A aparição de Turibio nas a humanidade caminha sobre um to ao destino das frutas que, por fim, terminavam diferentes histórias, muito me- abismo que se desmorona sempre com o próprio que as chupava inteiras. Existe um nos do que apenas “lateral”, é ab- depois de seus calcanhares. O girar desafio em narrar o simples, especialmente nos solutamente irrelevante. Se fosse dos planetas é só movimento e o dos contos; criar interesse por algo a princípio banal é lateral, mas significativa, o bom ponteiros do relógio não passa disso. um trabalho árduo. argumento teria mais sucesso. O Notas sobre Turibio projeto, afinal, parece estimu- Núñes, o escritor caído Em outro momento, em Nós três ficávamos ansiosos querendo saber para lante: 16 pontos de vista, angu- Jéferson Assumção meio a uma conversa de bar, quem ele daria, primeiro, a laranja tão habilmente lações diversas que traçam tantas Besourobox mais um parêntese filosófico: descascada. Mas ele sempre nos desapontava. (...) Nós histórias quanto cabem em um 263 págs. sentávamos a uma pequena distância a vê-lo comen- olhar cheio de percepções. En- — A vida é um grande ga- do, sozinho, cada uma daquelas laranjas. Com a já contros, amores, viagens, bebe- rimpo. Às vezes passamos décadas referida habilidade, nosso pai chupava-as inteiras e deiras, festinhas, vida na selva mexendo na lama, saímos carre- jogava fora os bagaços intactos, como se fossem cabeças — os cenários são caleidoscópi- gando pedras. Enfiamos as unhas de crianças murchas. cos. Procura-se por Turibio. On- no barro e, nas tantas vezes que o de, onde — pergunta o leitor. mundo se parece cheio de possibili- Em um texto recente, aproximando músi- Ele se inscreve, por exemplo, nas dades, voltamos para a casa de mãos ca e literatura, Raimundo Carrero lembra que há linhas do crachá de um garçom, abanando, e doloridas. Durante músicos se que dedicam meses ao estudo do si- de repente, em uma das narrati- cinco anos, pelo menos, fui ao Po- lêncio entre um compasso e outro. O movimento vas que dão ao romance um as- tenkin todos os domingos de minha se aplica a tudo. Especialmente à escrita. Estudar, pecto de reunião de contos, não vida, dias muito melhores, noite com tempo e cautela, não só o que os grandes au- fosse o arremate final que tenta muito mais agradáveis. Em quase tores escrevem, mas também o que não dizem. de alguma maneira alinhavar a Cabeça de mulher todos retornei ao apartamento com Pensar um pouco no silêncio entre uma frase e ideia de uma construção dupla olhando a neve a escuridão me desequilibrando, outra, entre uma palavra e outra pode ser um in- de vida e texto ao mesmo tem- Jéferson Assumção empurrando em ziguezague pelas teressante exercício sobre os caminhos da narra- po. Reflexões filosóficas também Besourobox ruas, certamente que com a mesma tiva, que, muitas vezes, ganha em profundidade participam das histórias e irrom- 134 págs. sensação dos camponeses na China. quando aposta na clareza. maio de 2016 | | 19

fora de sequência | Fernando Monteiro Retornando aos escritores laterais (1)

screvi sobre Damon ilustração: Tiago Silva adepto dessa lateralidade que não Runyon — um (ma- o faz se sentir escritor quase vin- ravilhoso) escritor te e quatro horas por dia de uma E“lateral”, na minha obsessão continuada que só fez conceituação particular — e me merecer a censura de Margueri- pediram para escrever mais sobre te Yourcenar: “Não pode escrever o assunto. Isto não é mentira, bons livros quem se dedica so- truque de quem tem só quatro mente a escrever livros”. leitores (mulher, duas filhas e Ela tem razão, mais do que um filho) e quer fazer onda pra nunca para os laterais autênti- justificar ir espichando um as- cos, com esse dado biográfico sunto. Não. Por exemplo, Adria- comum a todos, praticamente: a na Dória Mattos — editora da profissão que, às vezes, levava-os revista Continente — foi uma para os mais longínquos lugares das que me pediram mais es- da terra (Victor Segalen na Chi- clarecimentos sobre o que seria na é o melhor dos exemplos), um “escritor lateral”, designa- sem pensar em literatura, sem ção (sem rima) para o meu uso pretender escrever nada, sem pessoal e que vem se tornando estar esperando retirar da expe- público porque, quem sabe, eu riência qualquer tipo de obra tenha a língua solta demais. que o faça vir a pisar no mains- Bom, essa “lateralidade” tream literário. prodigalizada a algumas das mi- Escrevi, quando abordei nhas admirações mais firmes fa- este assunto pela vez primeira: cilita-me a vida, organiza meus “O Lateral que seja mesmo late- índices, areja as minhas listas ral, é realmente inocente disso. (embora já não faça mais qua- Quero dizer, da ‘premeditação’ se nenhuma). Talvez eu deves- de escrever para se imortalizar se conjugar o verbo no passado (?) com a incerta obra-prima que e dizer que, um dia, para mim vá despertar o interesse pela sua foi útil ter essa conceituação nos vida — secreta — de lateral na meus silêncios noturnos — que alma e no corpo evadidos para são, com certeza, mais límpidos e latitudes & longitudes estranhas. claros do que minhas falas sobre Porém, quando ele decide a literatura, nessa idade crepus- escrever, o escritor lateral escreve cular da Senhora da Tempestade um livro, um poema, uma obra (do agora triste Manuel Alegre de que só poderia ter sido escrita por Portugal, um poeta lateral?)... ele — e não por um Hemingway Literal e literariamen- vivendo apenas para transformar te, o escritor lateral ainda me o vivido em páginas e mais pági- fascina. E também me ajuda, nas escritas ‘para a Glória’ (?), o mesmo agora, na minha idade Nobel, o Cervantes, o Camões pessoal crepuscular, no traba- (que acaba de ir para nobody). lho de faxina mental, enquanto O Lateral, então, não é um ainda penso em literatura (em ninguém, porém é um desiludi- breve, deixarei de pensar), e ele, do como o Rimbaud que fugiu o Lateral, existe para mim mais para a África a fim de se tornar do que o jogador que ocupa es- menos que um lateral: virar um sa posição no, aqui, todo-pode- desconhecido traficante de ar- roso campo de Futebol — essa, mas pouco a pouco burguês ao dizem, paixão brasileira que de- ponto de escrever ‘para casa’ pe- ve ter sofrido um grande abati- dindo que lhe arranjassem uma mento com os 7 a 1 que alemães ‘boa e honesta esposa’ etc. empenhados nos impingiram E qual é o problema com na última Copa justamente em isso? Estar ignorado na multi- campos tupiniquins ainda agora dão é poder andar nos cais das escandalizados com esse placar sombras da vida sem ilumina- realmente humilhante e qua- voz de Cassiano Ricardo: “Em ções dos Gigantes das Letras. ção artificial de entrevistas e o se borrador de cinco copas do meu quarto, o silêncio e a lâm- Não. E é curioso, isso: o mais que cerca os não-laterais, os mundo conquistadas quando os pada/ que me divide em dois:/ escritor lateral quase sempre te- que desesperadamente tentam se nossos futebolistas ainda tinham duas vezes eu e uma lâmpada ve/tem uma profissão que ele manter no tapete vermelho dos almas e pernas (mesmo que tor- só./ No salão do vizinho/ que escolheu como qualquer outro holofotes antigos e, quando não tas) correndo em bela sintonia não me convidou/ a mesa farta anônimo não-escritor seguin- mais o conseguem, às vezes dão sobre os gramados anteriores ao e os convivas/ bebendo um vi- do pelos caminhos da vida. Por um tiro nas suas velhas cabeças poder devastador do Dinheiro. nho triste”... exemplo, a profissão de médi- perdidas (como Ernest fez), por- Mas, chega de “soccer” aqui nes- Bem, o poema segue — até co — que foi a do lateral Victor que um escritor que, o mais pos- te campo mensal das letras, para chegar, no final, a fazer o brinde Segalen, autor do misterioso Re- sível, tentou ser o tempo visível voltar ao Lateral (escritor). “aos excluídos”. né Leys. Procurem no Google; não se adapta à invisibilidade, Quem é ele? Voltemos ao lateral: é ele o é mais fácil do que eu começar quase, dos laterais como T. E. Começando do princípio escritor excluído? explicar, no limite das setecentas Lawrence que terminou seguin- (é claro), o escritor lateral sem- Presumo que não seja pre- palavras, quem foi Segalen e co- do para a caserna como quem pre existiu e há muito pedia que cisamente isso, embora, de lon- mo é a sua magnífica crônica da procurasse um monastério laico o reconhecessem como tal. ge, pareça excluidíssimo. Cidade Proibida, na China que cheio de anônimos com Fracasso Laterais foram, desde Ho- Porque o escritor lateral, ele conheceu como marinheiro, escrito na testa.” mero [o Poeta nunca lateral], em princípio, nunca escreveu médico e arqueólogo (e escritor). todos os escritores que honro- para pisar no tapete vermelho Sim, não era a atividade princi- samente não foram convida- da Literatura com o L maiúscu- pal dele. Quase nunca é, quan- CONCLUI NA dos para a festa do vizinho na lo dos Grandes Nomes das Cole- do um lateral é verdadeiramente PRÓXIMA EDIÇÃO 20 | | maio de 2016

Secreto trânsito Os postais são encaminha- mentos, endereçamentos, para ser mais preciso, em seu aspecto formal mais imediato. Não se deve pensar, no entanto, de que se trata de postais para o leitor. Eles são o secreto trân- A correspondência sito das gerações, um sigiloso, mas nada tímido, testemunho da his- tória da guerra. Não descrevem es- sa história tanto quanto acumulam os lamentos. Em outras palavras, os postais são uma tentativa afetiva, um esboço do que Benjamin previra dos derrotados como o encontro marcado entre as gerações, da sua frágil força messiâ- nica, que talvez um dia dê fim à his- O afeto e a impotência perpassam os poemas tória dos massacres e dos genocídios. “Levanta desgraçado/ tira a de Tróiades, de Guilherme Gontijo Flores cabeça/ o pescoço do chão/ Não há mais reino nem rainha/ Não ten- te opor a proa/ contra o acaso das Rafael Zacca | Rio de Janeiro – RJ ondas”, diz um dos muitos poe- mas intitulados Temor/Tremor. Este parônimo, que acompanha diver- divulgação sas das fotografias, anuncia a pas- erca de três anos O autor sagem do medo para a do afeto, da antes do suicídio, Guilherme Gontijo Flores contemplação paralisante para a Sylvia Plath nos le- ação — num salto, da tragédia para gava uma relíquia É poeta, tradutor e professor o cinema; pois se trata, efetivamen- C na UFPR. Nasceu em 1984, de morte; a expressão “um co- te, de um livro que consegue, com em Brasília (DF), e é editor da ração extirpado como uma he- revista escamandro. Autor de material trágico, efeitos semelhan- rança arruinada” assemelha-se a Brasa enganosa e Tróiades. tes ao que consegue a imagem em um item testamentário de mau movimento (deve-se ter em mente agouro, que filhos e netos la- o segundo título da obra, remix pa- mentam ter por sorte. Podería- ra o próximo milênio). Em outras mos pensar que a imagem (como palavras, tal parônimo ensaia uma tantas outras, de morte, na poe- convocação. “Podem ameaçar com sia de Plath) anuncia o suicídio. chamas chagas artes do suplício fo- É talvez a ilusão que se tenha ao me sede pestes várias ferro afundado receber a pequena caixa, de auto- nas vísceras queimadas flagelo cárce- ria de Guilherme Gontijo Flores, re sem luz e todo o mais que ousar o intitulada Tróiades – remix pa- Tróiades – remix para vencedor em fúria temeroso” — esta ra o próximo milênio. o próximo milênio voz já não se ergue sozinha. A armação discreta, de pa- Guilherme Gontijo Flores Troia, a cidade arrasada pelos pel kraft e plástico, emula um Patuá aqueus, e uma das primeiras cida- minúsculo tesouro; ao abri-lo, 25 cartões postais des arruinadas na história da poe- encontramos 25 cartões-postais sia, é tomada, por Gontijo, como e um folheto. Crianças enfor- cidade modelo onde convivem e se cadas, arames farpados, cabeças correspondem os derrotados. Nas degoladas, mortos de guerra, historiador materialista que Ben- Sequer nascer se iguala à morte palavras do poeta, sua obra se ergue estátuas partidas, lamentações, jamin aguardava, ao convidar os Ante a aflição da vida como um “monumento ao massacre trincheiras ocupadas por cadá- defuntos à mesa. melhor morrer interminado da história: de Troia, veres, uma estátua que encara Familiarização e estranha- sem dor arquétipo dos derrotados, até Canu- perplexa uma cidade arruinada, mento. “Todo luto chorado se- ou estética dos males dos, essa espécie de mãe das favelas um corpo que arde na fogueira, rá meu luto”; o fragmento, das contemporâneas, onde os derrota- índios acorrentados pelo pesco- Troades de Sêneca, figura, sob o Feliz de quem morre em guerra dos permanecem ao longo dos seus ço, um negro escravizado com título de Cripta, no verso do pos- e vê tudo consigo con dias; da escravidão imemorial e ubí- as costas marcadas por instru- tal que exibe a fotografia de uma sumir-se qua ao índio ainda silenciado em mentos de punição e tortura, mulher alemã diante de 800 es- nosso discurso”. Como a Roma e o uma mulher cujo rosto se con- cravos mortos pela SS, em 1945. Assim como a herança arruinada de Sylvia Pla- inconsciente de Freud — um con- verteu, ele mesmo, em desolação Talvez não haja muito que se di- th deve mais o seu teor a uma vida de humilhações glomerado anacrônico impossível, e terra arrasada; essas são algumas zer sobre o horror — “o horror é e violência de gênero que ao planejamento da mor- de muitas arquiteturas sobrepostas das aparições das fotografias que indescritível”, como afirmou Lú- te, o acúmulo de escombros das Tróiades de Gon- no mesmo espaço — o inconsciente preenchem a frente dos postais. cia Murat, na introdução de seu tijo não se liga tanto à desistência da vida, quanto a histórico da desgraça é atiçado pe- Foram coletadas e modificadas depoimento para a Comissão da uma vida desgraçada. (Na sua tradução cibernética, lo livro de Gontijo de modo a fa- pelo poeta, que se converteu ele Verdade a propósito das violên- com endereço troiades.com.br, Tróiades é acompa- zer com que todos os oprimidos se mesmo em montador, para apon- cias sofridas durante a ditadura nhada ainda pela música catastrófica Genocide — superponham em uma única ima- tar para a história da guerra e da militar. Para convocar os defuntos Symphonic Holocaust, de Maurizio Bianchi.) Walter gem. É isso que têm em comum: dominação através dos séculos. à mesa, Gontijo não descreve o Benjamin, que figura não apenas com seu fragmen- tudo lhes foi tirado. Não é estranho Essa acumulação imagé- horror — mas também não isola to, mas também como armadura teórico-formal da que um de seus postais pergunte: tica, algo tanatológica, promove suas imagens em uma impenetra- obra, fixou a imagem da tradição sem tradições dos “Pra que chamar os deuses/ se nun- uma familiarização. Quem abre bilidade. Ele opera, como se disse, desgraçados: a história dos vencedores faz com que ca ouviram/ quando chamados”; o tesouro de Tróiades encon- sob o princípio da montagem. as pessoas que sucumbem interrompam seu legado mas de onde vem a força que ainda tra, efetivamente, uma espécie Todos os poemas que muito cedo, e é por isso que o filósofo alerta que o brada “Vamos correr ao fogo/ que de álbum de família. Trata-se de acompanham as fotografias são gesto revolucionário deve ser capaz de perseguir, na hoje a coisa mais bela/ é morrer na uma família desgraçada. As fo- extraídos de três tragédias que história do ocorrido, também os encontros que não pátria incendiada”? tos, como costuma ocorrer com dramatizam a Troia massacra- puderam, mas que poderiam ter acontecido. Esta é a Podemos refazer a pergunta fotos antigas, não confortam e, da (Troades de Sêneca; Troia- lei que dá a forma aos postais. — e, talvez, seja esta a pergunta que diante delas, nos tornamos es- des e Hécuba de Eurípedes) e o Gontijo tenha nos legado, neste se- tranhos. Nós, que sobrevivemos. nono fragmento das teses sobre O sol breu sobre o céu gris gundo volume de sua tetralogia que Walter Benjamin escrevera cer- o conceito de história, de Walter e a chama não impede se chama Todos os nomes que talvez ta vez que, em todas as épocas, Benjamin. Foram traduzidos li- a cobiça nas mãos do vencedor tivéssemos — das seguintes formas: “os vivos descobrem-se no meio- vremente pelo autor, que estilha- que afeto é possível entre aqueles dia da história”, tendo por tare- çou as obras, e, dos cacos, compôs Vai pé caduco que já não podem se afetar? existe fa preparar um banquete para o a sua. Com isso, formulou poe- como puder para saudar afeto depois da impotência? que di- passado; Gontijo faz o papel do mas como A coisa mais bela: tua cidade arruinada zem os derrotados? maio de 2016 | | 21

sob a pele das palavras | Wilberth Salgueiro (H)ojeriza, de Leila Míccolis

Você sabe o que fazer Leila Míccolis por José Luiz Tahan sação de um roubo:/ cu é lindo!/ com a anestesia Fazei o que puderdes com esta a assepsia dádiva”), assim como no poema a asfixia sagrado-profano de Waldo Mo- a idolatria tta: CéU. Acompanhada dessa a covardia tribo rebelde e marginal, Leila se a demagogia alinha a uma contra-dicção, bem a dicotomia no espírito do título de um de a tirania seus livros, a antologia O bom fi- a vilania lho a casa torra. a diplomacia A repetição dos 14 substan- a regalia tivos terminados em “ia”, todos a mordomia paroxítonos, confere ao poema a patifaria um ritmo de ladainha, que só se a hipocrisia? ameaça quebrar quando, visual- mente, se oferece uma nova estro- Enfia... fe. Esta, composta de um único verbo no modo imperativo que Este poema de Leila Míc- mantém no entanto a rima em colis se encontra na segunda par- “ia”, produz um curto-circuito te dos inéditos que compõem que gera o cômico: é um verbo Desfamiliares (2013), livro que que quebra a sequência da clas- contém a poesia completa da au- se gramatical repetida à exaus- tora carioca, abrangendo qua- tão, mas mantém a sonoridade se cinco décadas de produção da cantilena em “ia” e, no entan- (1965-2012). Nele, estampam-se to, ainda, surpreende, pelo aspec- alguns traços que acompanham to semântico, quando conclui o os versos de Leila ao longo des- poema respondendo “Enfia...” se tempo: a clareza, o humor, a ao interlocutor, sutilmente — ou postura crítica, a linguagem re- nem tanto — acusado de cúmpli- ferencial, o gosto do grand finale, ce dos comportamentos cataloga- o tom desbocado e despudorado, dos. Este fecho parece afirmar que o diálogo franco com o leitor, o tais comportamentos, a despeito chiste, o chulo, a insolência. O da diferença conceitual entre eles, próprio poema pode ser lido co- mais se assemelham que diver- mo uma síntese de temas que, gem, e assim a lengalenga sonora nessas décadas, ela vem mapean- A poesia brasileira de Adorno discorre acerca dos sen- aqui não simulam a omissão ou das 14 rimas em “ia” — reforçada do: covardia, demagogia, tirania, hoje, com frequência tidos filosóficos que sustentam o elipse de nada grandioso, mis- pelo fato de serem todos termos hipocrisia e outras formas subs- uso de vários dos sinais de pon- terioso, poético, metafísico; na femininos, gerando igualmen- tantivas de comportamento que bem comportada e tuação (vírgula, travessão, ex- contramão, apenas encenam a te 14 vezes o artigo “a” — parece — no poema terminadas em “ia” voltada a devaneios clamação, interrogação etc.), “hipocrisia” de banir os ditos reunir tudo em um só pacote, fa- — constituem um conjunto que narcísicos e de sentido filosófico que se articula palavrões da linguagem poéti- cilitando, ironicamente, o descar- causa intensa aversão à poeta, co- com o sentido propriamente gra- ca, como se a falta de decoro se te de todos num só movimento, mo o título trocadilhesco já an- metalinguagem, anda matical, escapando-se-lhe. Do resumisse ao uso de certas boca- gesto, decisão e verbo: enfia. tecipa: “(H)ojeriza”. O advérbio precisando de mais sinal de exclamação, por exem- gens e turpilóquios, e não em re- Como este (H)ojeriza, na “hoje” do título, acoplado à “oje- doses de culminante plo, dirá que “se assemelha a um galias, mordomias e vilanias com obra de Leila Míccolis são inú- riza”, em poema e livro recente, ameaçador dedo em riste”. Mas, as quais nos deparamos dia a dia. meros os poemas que testemu- não deixa dúvida de que tal náu- desobediência. para a análise de (H)ojeriza, in- Leila Míccolis, escrito- nham o descaso, a exploração, a sea advém do nosso tempo pre- teressa o que o autor de Dialé- ra contemporaníssima, é costu- miséria, a violência, a opressão, sente e a ele se dirige. tica negativa afirmou sobre os meiramente vinculada à geração a submissão. É uma poesia que, O desabafo final destem- “três pontinhos” (que encerram o marginal, dados o escracho, o co- definitivamente, não se enver- perado, mas nada intempesti- poema de Míccolis): “As reticên- loquial, o deboche que marcam gonha de seguir engajada, aten- vo, pode provocar o riso, pois cias, que eram o meio preferido, sua obra, nesse sentido herdeira ta à “vibração democrática que de repente aparece um verbo na época do Impressionismo co- de uma tradição que inclui tropi- irradia daquela palavra [“enga- — “Enfia” —, em monóstico, mercializado como ‘atmosfera’, calistas, modernistas, românticos jamento”], cuja parcialidade pe- que arremata uma sequência de para se deixar uma frase aberta a e mesmo barrocos, como, para ci- la esquerda se deve à repercussão 14 substantivos com rima em vários sentidos, sugerem a infini- tar exemplos pontuais, Gregório generosa de Sartre”, aponta Ro- “ia”, seguido de capciosas reti- tude de pensamento e associação, de Matos (de furtar e foder e do berto Schwarz em Sequências cências (...), induzindo o leitor justamente o que falta aos escri- Pica-flor), Bernardo Guimarães brasileiras (1999). Com tal ati- a completar o que se omite com tores de segunda categoria, que (d’O elixir do pajé e d’A origem tude estética e ideológica, que expressão bastante popular. A se contentam em simular essa in- do mênstruo), Oswald de Andra- causa tanta... ojeriza em certos primeira acepção que o Dicio- finitude por meio do sinal gráfi- de (de Serafim Ponte Grande e meios acadêmicos, Leila vai, sob nário Houaiss dá ao verbo enfiar co”. Noutras palavras, o filósofo o Primeiro contato de Serafim e a o céu de Maricá, fazendo das — “fazer entrar (fio) em orifício” ironiza o desejo de certos escrito- malícia: “A-e-i-o-u / Ba-be-bi-bo suas, como Dose (“Queres saber — faz perceber que o xingamen- res de, com o uso das reticências, -bu / Ca-ce-ci-co-cu”) e Os Mu- o que ocorre?/ O nosso amor, de to obsceno “enfia no cu”, deve- sugerir uma “infinitude de pen- tantes (de Sabotagem: “Eu vou tão sóbrio,/ virou um porre.”) e ras ofensivo, se sustenta em sua samento e associação”, mas o tiro sabotar/ Vou casar com ele/ Vou Democracia (“A índia enrabada,/ composição mórfica “en- + fio + sai pela culatra, pois as reticências trepar na escada/ Pra pintar seu a negra explorada,/ a branca fo- -ar”. Assim, a despeito da agres- encobririam exatamente a carên- nome no céu/ Sabotagem!/ Sa- dida,/ direitos iguais.”). A poesia sividade explícita, há certa sabe- cia ou ausência de tal infinitude. botagem!/ Sabotagem!/ Eu quero brasileira de hoje, com frequên- doria (ainda que “politicamente O poema de Leila, ao fugir de tal que você se... top top top UH!”). cia bem comportada e voltada a incorreta” e indecorosa!) no xin- nobre pretensão, alcança efeito Entre os poetas atuais, o minús- devaneios narcísicos e de meta- gamento, que, no poema, se ma- hilário imediato, já que o leitor culo palavrão que o poema de linguagem, anda precisando de nifesta, ironicamente elíptico, — aquele “Você” que abre o poe- Leila não precisou dizer aparece, mais doses de culminante de- com força e sem culpa. ma — sabe com precisão como entre outros, na aparentemente sobediência. Sem ser receita, o Em curioso e provocador preencher as reticências, que in- pudica Adélia Prado (“De tal or- poema lista alguns sintomas ne- artigo de 1956, Sinais de pon- sinuam o já sabido, bem distan- dem é e tão precioso/ o que devo fastos que assolam nosso tempo. tuação, publicado em Notas de te de querer deixar a “frase aberta dizer-lhes/ que não posso guar- Cabe a cada um, cabe a “Você” o literatura I (2003), Theodor a vários sentidos”. As reticências dá-lo/ sem que me oprima a sen- ojerizar-se, sem agá. 22 | | maio de 2016

nossa américa, nosso tempo | joão Cezar de Castro Rocha O antigo: aqui e agora. Visita ao Musée Eugène Delacroix (1)

Casa, ateliê e museu obriga a nuançar posições que ato de emular o modelo, em lugar de simplesmen- Retorno, como prometido na co- defendi recentemente. te copiá-lo. luna de abril, à série de artigos acerca de museus e exposições. Delacroix e o (Se você me acompanha nesta coluna, já sa- Desta vez, visitamos o Musée Eu- mundo clássico be aonde quero chegar: a mostra do Musée Eugène gène Delacroix,1 enfatizando uma expo- No momento de minha vi- Delacroix permite aproximar o pintor francês e a sição particularmente significativa para o sita, o Museu apresentava a expo- poética da emulação.) quadro teórico que venho propondo nos sição “Delacroix et l’Antique”. últimos anos. A novidade da abordagem Daí a surpresa mencionada pela exibição, foi esclarecida no início da mostra: pois como imaginar um Delacroix, “encarnação do (O crítico Simão Bacamarte não espírito romântico”, estudioso diligente da Anti- hesitaria no diagnóstico de minha mo- Esta exposição no museu Eu- guidade, discípulo disciplinado da herança clássica? nomania: a apresentação do conceito de gène Delacroix pretende, pela pri- Não apenas isso. poética da emulação no âmbito de culturas meira vez, explorar os vínculos que Como reavaliar seus procedimentos artísticos shakespearianas.) a obra do grande artista estabele- ao reconhecer a centralidade do exame das técnicas ceu com as artes da Antiguidade. dos antigos na composição da obra do francês? Um passo atrás — porém. Encarnação do espírito romântico, Vale a pena recordar a história do que se libertou de regras acadêmi- Grécia, Roma: como informar-se? próprio Museu. cas, muitos se equivocaram jul- Pergunta preliminar: como Delacroix se in- Eugène Delacroix mudou-se para gando que o pintor dedicou pouca formava acerca da cultura clássica? sua nova residência no final de 1857, a atenção ao antigo. No fundo, uma parte relevante da mostra de- fim de localizar-se na vizinhança da igre- dicou-se a rastrear o museu imaginário do artista. ja de Saint-Sulpice, pois aí trabalhava Entenda-se a raiz do mal Na explicação de um dos painéis da exposição: numa capela. -entendido. Em aparência trivial, o gesto leva Numa acepção tradicional, Embora a Antiguidade tenha fascinado De- longe na caracterização de certo impulso a eclosão do romantismo impli- lacroix, o pintor jamais esteva na Itália, tampouco da arte moderna. cou o eclipse do modelo clássico. na Grécia. A Antiguidade de Delacroix foi fruto de Vejamos. Numa palavra: o outono museus e de livros. Foi através das coleções do Lou- É consagrado o modelo da casa-a- da aemulatio. vre, do Museu Britânico, da Biblioteca Real, que ele teliê, posteriormente transformada em Trocando em miúdos: o descobriu as obras-primas. E também graças aos dese- museu — os exemplos são legião e traem espírito romântico, que se liber- nhos, gravuras, fotografias, publicadas em seu tempo, a persistência de uma concepção român- tou de regras acadêmicas, apostou tais como as de Edward Dodwell, Louis-Dupré, Jean tica que assinala o artista mais do que todas as fichas no gênio do artis- -Baptiste Gros, o artista pôde apreciar a riqueza e a destaca a obra. ta, capaz de criar universos com beleza da arte antiga. A planta da casa-ateliê de Delacroix base (quase) exclusivamente em é reveladora. Ora, para chegar-se ao ate- seus impulsos; demiurgo de um Essa Antiguidade “livresca” exige uma análise liê, é preciso sair da residência, passando mundo particular, o artista deve- cuidadosa. É verdade que o “método Delacroix” tam- por uma passagem através da biblioteca. ria encontrar em suas intuições e bém foi adotado por inúmeros criadores, especial- A economia desse espaço sugere a proxi- em suas vivências a matéria-pri- mente os inventores de culturas não hegemônicas. midade, incontornável, entre obra e vida, ma da obra. Não é, claro está, o caso de Delacroix. porém, ao mesmo tempo, estabelece uma Nesse horizonte, a tradição E agora? distância, decisiva, entre vida e obra. Am- não pode ser senão um fardo, do Isto é: se a poética da emulação não pode ser pliada ao máximo, tal distância se deixa qual o artista seria dispensado limitada a uma latitude exata, porém supõe uma monumentalizar na fundação do Musée pela força do talento. atitude precisa, devo reavaliar minha hipótese? Eugène Delacroix, que, comme il faut, re- Pelo contrário, no recorte Sem dúvida. cebe o visitante com um imponente busto clássico, o artista somente se defi- Ainda bem: nada me assusta mais do que pre- do pintor, realizado por Jules Dalou. ne a partir de seu pertencimento servar certezas e reproduzir análises ao longo de dé- à tradição. O diálogo permanen- cadas, como se a tarefa do pensamento não exigisse (Recebe ou constrange? Você decide.) te com os pares é aqui o motor nuançar ideias, corrigir o ângulo de leitura, e, so- da arte. A explicitação dessa con- bretudo, descobrir-se equivocado aqui e ali — e em Modelo oposto foi exercitado por versa infinita vem à superfície nas muitos outros lugares. artistas como Constantin Brancusi e Piet alusões e citações que encarecem Mondrian. O tema merece um artigo, o valor dos precursores. (Antídoto contra o tédio: um nome: Heráclito.) mas, de imediato, observo que, por assim Arte, portanto, no sentido dizer, eles habitaram a própria obra. latino de ars, tradução do grego O método Delacroix Brancusi transformou seu ate- téchne. Caracterizemos o método Delacroix. liê em residência, reservando um espa- Isto é, em primeiro lugar, Como jovem aprendiz, seguiu à risca a cartilha ço exíguo para si mesmo. Desse modo, o artista deve dominar a técnica clássica. Em 1816 começou a frequentar o Louvre. procurava não estorvar sua pesquisa per- definidora de um ofício. A me- Portanto, com 18 anos já admirava as obras da Anti- manente de formas básicas — fiel que lhor maneira de fazê-lo consis- guidade greco-romana. E começou como todos: em sempre foi à etimologia de uma arte que te em apropriar-se de exemplos seus cadernos de estudante, copiava as esculturas que se desejava abstrata. Nesse sentido, a considerados autoridades no tanto cativaram o pintor em seus anos de formação. disposição das esculturas no ateliê ofe- gênero escolhido pelo artista. É quase desnecessário acrescentar, mas vamos rece uma aguda reflexão do artista sobre Aquele que porventura confias- lá: tratava-se de exercício de grande alcance, cujo ob- sua obra em progresso. se num suposto dom, negligen- jetivo era adquirir maestria na distribuição de volu- Mondrian metamorfoseou um pe- ciando por isso o conhecimento mes no espaço, assim como aperfeiçoar o domínio queno estúdio parisiense numa autênti- dos códigos de uma linguagem de formas definidas por sua simetria e proporção. ca instalação de seu conceito de arte. Os artística, seria considerado inep- Em 1825 Delacroix realizou uma viagem móveis, as cores das paredes, os parcos to, artífice apressado, no limite, fundamental, pois, em Londres, dedicou-se com objetos; todo o espaço foi rigorosamente indecoroso. afinco ao exame das coleções do Museu Britânico. concebido como um laboratório de for- Em tal registro, imitar Posteriormente, ele recorreu a fotografias, mas e de possibilidades de poderosa ars o alheio é passo necessário na gravuras e aquarelas que retratavam paisagens clás- combinatoria construtivista. aprendizagem do ofício. Apren- sicas e monumentos célebres. Em seu acervo, por Volto, contudo, à arte de Delacroix, dizagem, eu disse, não finalida- exemplo, encontram-se imagens produzidas por e, sobretudo, destaco um aspecto que me de. O instante seguinte supõe o Roger Fenton, pintor de formação, e, a partir da maio de 2016 | | 23

década de 1850, fotógrafo oficial Ministério da Cultura da Grécia, tentou re- nenhum deles admira as obras... do Museu Britânico. patriar a coleção. Não obteve sucesso. Con- No fundo da tela, descobrimos Há mais. tudo, sua reivindicação levantou questões alguns visitantes, geralmente Recorde-se que, no iní- éticas, políticas e econômicas que nunca fo- casais, e, em todo caso, nenhu- cio do século 19, a chegada de ram dirimidas. Fica o registro.) ma mulher desacompanhada. A mármores do Partenon em Lon- mera localização implica uma dres e Paris produziu tal impac- Voltemos ao quadro. clarawww.vidabreve.com.br hierarquia de olhares. to que originou uma febre por O longo título — repito — anuncia o Não é tudo. imagens, sempre idealizadas, da caráter descritivo da tela. No canto direito inferior Grécia clássica. Chama atenção o traço um tanto alea- da tela, destaca-se uma figura Delacroix participou ati- tório da disposição das esculturas. Há mes- absorta em profunda concentra- vamente dessa voga. As foto- mo um fragmento — a cara de um cavalo ção. Nem especialista, tampou- grafias do Partenon de James — que se encontra no chão e sobre o qual co leigo, eis o artista aprendiz D. Robertson; as imagens de repousa, placidamente, um livro de anota- que, extasiado, copia as formas esculturas antigas por Stephen ções, ostensivamente aberto; como se a sala, inéditas que tem diante dos

Thompson, tornado fotógrafo embora aberta à visitação pública, ainda es- olhos. Viagem no tempo que

oficial do Museu Britânico em tivesse sendo organizada. Afinal, trava-se do demanda o isolamento no espa- Hallina Beltrão Hallina 1859; as magníficas aquarelas “Temporary Elgin Room”. Metáfora inespe- Silva ço abarrotado deTiago esculturas anti- de Edward Dodwell, extraídas rada do notável ensaio visual de Archibald, gas e de estátuas vivas.

de seu livro de viagens, Views que dá a ver o modo como obras eram vistas Ora, basta um pouco de Marcelo Moutinho Marcelo in Greece (1821); entre tantos nos museus oitocentistas, já que se admira- imaginaçãoCastello críticaJosé para que vis- outros exemplos, reforçam o ca- vam os “mármores de Elgin”, e, ao mesmo lumbremos nesse aluno aplicado

ráter livresco da Antiguidade de tempo, se forjava um entendimento novo o jovem Delacroix em suas visi-

SÁBADO Delacroix. da Antiguidade. tas assíduas ao Louvre.TERÇA-FEIRA O fenômeno foi geral. Assim, apreendeu as técni- De fato, a exposição res- (Sim, eu sei! Os critérios museológicos cas do ofício o futuro pintor de gatou uma tela emblemática de do século 19 nada têm a ver com os pres- Femmes d’Alger dans leur apparte-

Archer Archibald, The Tempo- supostos contemporâneos. Claro! Aliás, seria ment, quadro apresentado no Sa-

rary Elgin Room, in 1819 with fascinante dedicar uma coluna ao mapea- lão de 1834. Carolina Vigna Carolina portrait of staff, a trustee and mento dessas diferenças, tendo como ma- Tela-chaveSzczepanski para Theo nuançar visitors.2 terial de consulta, não tratados históricos, aspectos de minha hipótese re-

O longo título, reminis- porém telas como a de Archer Archibald.) lativa à poética da emulação no Humberto Werneck Humberto cente dos romances do século Pereira contexto de culturasRogério shakes- 18, evoca os famosos “mármo- O pintor elaborou com apuro a distân- pearianas.

res de Elgin”; coleção de es- cia entre leigos e especialistas na distribuição Imagem canibalizada por

SEXTA-FEIRA culturas do Partenon levada à dos personagens no espaço pictórico. Pablo Picasso numaSEGUNDA-FEIRA série de es- Inglaterra em 1806 por Tho- No lado esquerdo da tela, reúnem-se boços e telas que, na mostra De- mas Bruce, mais conhecido co- os estudiosos e a equipe do Museu Britâni- lacroix et l’Antique, compôs uma mo Lord Elgin. Ainda hoje, é co. Sintomaticamente — ou seria uma fina seção especial. uma das salas mais visitadas do Notas ironia? — os especialistas trocam palavras Pois é: o espaço acabou,

Museu Britânico. 1. Veja a página do Museu: http://www.musee- entre si, e, com gestos estudados, parecem mas a discussão apenas principia. Fábio Abreu Fábio delacroix.fr/fr/. ponderar gravemente ideias que em breve se- NoAlmeida próximoDê mês, portan-

(Nos anos de 1980, a atriz 2. Eis a tela: http://static.artuk.org/w800h800/ rão fixadas nos cadernos volumosos que exi- to, continuaremos no Musée

Melina Mercouri, ao assumir o CDNII/CDNII_BRIM_Painting_30.jpg. bem com evidente satisfação. No entanto, Eugène Delacroix. Mário Araújo Mário Leite Arruda Ivana

QUINTA-FEIRA DOMINGO

Eduardo Nasi Eduardo

odo dia. odo t

Fabrício Carpinejar Fabrício stração. U il Uma

crônica. Uma QUARTA-FEIRA

Uma crônica. Uma ilustração. Todo dia. Uma crônica. QUARTA-FEIRA www.vidabreve.com.br Uma ilUstração. Fabrício Carpinejar todo dia. Eduardo Nasi

DOMINGO QUINTA-FEIRA Ivana Arruda Leite Mário Araújo Dê Almeida Fábio Abreu

SEGUNDA-FEIRA SEXTA-FEIRA Rogério Pereira Humberto Werneck Theo Szczepanski Carolina Vigna

TERÇA-FEIRA SÁBADO José Castello Marcelo Moutinho Tiago Silva Hallina Beltrão

www.vidabreve.com.br 24 | | maio de 2016

m 1997, Monique de Wael, cidadã bel- ga, publicou Misha: Euma memória do Holocausto, relato autobiográ- fico de uma menina cujos pais foram assassinados em campo de concentração, enquanto ela se Eu fui você, ontem refugiava nas florestas, adotada por uma matilha de lobos. A in- verossimilhança evidente tardou Em O impostor, Javier Cercas reescreve uma biografia usando a ficção como memória a levantar suspeitas entre os lei- tores, emocionados com aquele “milagre”. Dez anos mais tarde, Vivian Schlesinger | São Paulo – SP ao ver sua farsa desmascarada, alegou que apesar da história de “Misha” não ser de fato realida- de, era sua realidade, e que hou- o autor ve momentos em que ela própria teve dificuldade em distinguir Javier Cercas entre o que era real e o que era Nasceu na Espanha em 1962. Além produto de sua imaginação. de escritor, foi professor de literatura Poucos anos antes o ci- espanhola na Universidade de dadão suíço Bruno Grosjean, Girona e Universidade de Illinois. apresentando-se como Binjamin Publicou sua primeira obra, El Wilkomirski, também como- móvil, em 1987, e mais dez livros veu, com Fragmentos: memó- desde então. É considerado um dos rias de uma infância de guerra, mais importantes autores espanhóis a autobiografia inventada, onde da atualidade, e suas obras foram um menino da Letônia sobrevi- traduzidas a inúmeros idiomas. veu sozinho à Guerra e aos cam- pos de concentração. Após cinco anos, mediante provas de que era tudo invenção, Grosjean tentou defender-se borrando os limites entre ficção e realidade, e com is- so, de fato, desviando o foco da questão essencial: o assalto à em- patia, este pequeno tesouro. Do lado de cá do Atlân- tico, James Frey publicou Um milhão de pedacinhos, memó- rias inventadas, da luta contra as drogas. Ao ser exposto, lançou mão do mesmo recurso: agar- rou-se até onde pôde aos pedaci- nhos de realidade para justificar o oceano de mentiras que agora o afogava. Há algo na literatura e história contemporânea que fa- voreça esse tipo de enredo? O impostor, de Javier Cercas, parece indicar que sim. ilustração: Robson Vilalba O personagem do título, Enric Marco, existe na vida real: fal- sificou sua experiência, trans- formando-a em relato heroico: fingiu-se deportado a um cam- po de concentração na Segunda Guerra Mundial. Durante 30 anos foi celebrado como luta- dor antifranquista e vítima dos nazistas. Tornou-se homem pú- blico, dava conferências, dirigiu sindicato, recebeu medalhas, pu- blicou suas memórias. Presidiu a associação espanhola de sobrevi- ventes dos campos. Nunca teria sido desmascarado se não fosse a pesquisa minuciosa de Benito Bermejo, um historiador que, em 2005, deu-se ao trabalho de estudar as listas de deportados espanhóis aos campos de con- centração alemães.

Três cenários Cercas, cujo sobrenome significa fronteiras, interessa-se justamente pela estrutura e vul- nerabilidade das fronteiras, me- tafóricas e reais, entre ficção e realidade, entre política e mora- lidade, entre entender e justifi- car. Partindo desse solo fértil em perguntas, escreveu um “roman- ce sem ficção” sobre a história e maio de 2016 | | 25

a apuração da história de Enric E apesar do narrador prosseguir o torna um homem comum. Ao final da Marco. O produto, um misto com seu projeto, nunca deixa de Guerra, Marco vivia como seus compatrio- de ensaio e jornalismo literário, questionar a honestidade de seus tas, acovardados pela ditadura, procurando utiliza um eficiente recurso: a in- próprios motivos. a invisibilidade, não gostava do que via no tervenção em primeira pessoa do espelho, por isso teria inventado a si pró- romancista Javier Cercas como Nitidez prio com outro passado. Vale reconhecer investigador da verdadeira exis- A diferenciação entre narra- que se reinventou como herói no momen- tência de Marco. O protagonis- dor e narrado vai perdendo a niti- to oportuno, quando todos o faziam, cada ta é o narrador, que pesquisa e dez. “Você não teve, mais de uma O impostor país europeu à sua moda. Cercas examina interpreta as fontes de informa- vez, a suspeita de que era eu que Javier Cercas a Espanha. Em uma entrevista concedida ção. Atua em três cenários pa- havia vivido e havia inventado o Trad.: Bernardo Ajzenberg a Maya Jaggi, do The Guardian, afirmou, ralelos: na reconstrução da vida que inventei somente para que vo- Biblioteca Azul “temos uma tradição de ditadura e inquisi- de Marco, a partir de fatos alega- cê o contasse?” pergunta Marco a 462 págs. ção; matamos as pessoas por pensarem dife- dos e comprovados; nas reflexões Cercas. Referindo-se ao sucesso de rentemente de nós. Nosso esporte nacional morais e metaliterárias às quais o Cercas com outro romance, Mar- não é futebol, é a guerra civil”. Marco teria leitor é constantemente recruta- co (personagem) chega a acusar agido em conformidade com a maioria ao do; e no universo familiar, espe- seu criador (Cercas), em um diá- mentir. Mas onde foi então que cruzou a li- cialmente o filho, cuja presença é logo imaginário, de também haver nha da moralidade, se é que o fez? justificada pela gravação das en- se beneficiado do que se chama de trevistas em vídeo, possível me- “indústria da memória”. Qualidades táfora para memória, a herança A aproximação entre um e Marco possui as qualidades imprescin- de um pai para um filho. outro vai sulcando a objetivida- díveis a um romancista: força, imaginação, “Eu não queria escrever es- de. Alternando-se entre o con- memória, amor à palavra. Aqui Marco é per- te livro” é a frase de abertura. A vívio da família e as entrevistas sonagem de romance, mas também autor de primeira grande questão, escre- com Marco, o narrador pesqui- ficção. Os romances mentem por definição, ver ou não escrever sobre Enric sa, confere, define. Justo Na- diz Cercas. “Nos romances, não só é legíti- Marco? “Estaria eu enganado, e varro considerou a participação mo como obrigatório mentir: essa mentira portanto realmente não se deve da família a nota dissonante no factual é a maneira de se chegar à verdade tentar entender o mal extremo, romance, o aspecto menos con- literária. Através da mentira, o romance re- menos ainda uma pessoa que, vincente, por debilitar a tensão vela a verdade profunda do real, e nos per- como Marco, utiliza o mal ex- entre Cercas e Marco. Isso só va- mite conhecermos e reconhecermos a nós tremo para enganar todo mun- le se o romance ficar restrito à di- mesmos.” Visto assim, Marco poderia ser do?” Seu dilema parte de duas mensão histórica. A presença da uma invenção de Borges, ou Don Quijote questões: determinar que mal fez família, mais exatamente do fi- ou Emma Bovary, várias vezes mencionados. Marco, e se vale a pena debruçar- lho, nas entrevistas e conversas, Mas não é: a linha da moralidade foi cruzada se sobre as façanhas de tal sujeito. não é adjuvante, é mais uma fa- quando Marco utilizou fatos reais do mun- Finalmente, as palavras de Tz- ceta deste romance prismático. do real, vividos por pessoas de carne e osso, vetan Todorov o convenceram: Raul, o filho, tem um papel im- e não de mundos imaginários, para roubar “compreender o mal não signifi- portante: persuadir seu pai a em- calor humano que não lhe era devido. ca justificá-lo, mas sim criar-se os preitar o romance. Mas vai além. A empatia de Cercas por seu sujeito meios para impedir seu regresso”. Oferece seu trabalho de cinegra- cresce a cada encontro. O que inicialmen- A fronteira entre o narra- fista para documentar os encon- te parece uma intrusão de autor na vida de dor e o sujeito da narração, no tros, o que Cercas aceita. Com pesquisado inverte-se. Cercas convence- início, é facilmente observável, sua presença, a herança da me- se que Marco mudou, que nunca agiu por estando o primeiro seguro so- mória está garantida. má-fé, só por egoísmo burro. Há uma sen- bre as razões do segundo. “Eram Enquanto hesita sobre a timentalização literária do personagem, até necessárias as mentiras de Mar- escritura deste romance, o nar- que Santiago Fillol, diretor do documentá- co para revelar as barbaridades rador faz diversas referências a rio sobre Marco, dá o alerta: “Se chegar a do nazismo? Não. Os embustes seu livro anterior, que apesar de alguma conclusão sobre ele, ele vai engolir de Marco eram necessários para ser um sucesso, o deixou estra- você. Se achar que já o entendeu e que ele o bem de Marco, por mais que nhamente deprimido. Menciona tirou a máscara, ele vai engolir você. Enric o mentiroso dissesse que mentia aí a recente perda do pai, à qual está sempre usando uma máscara por trás por uma boa causa, para difundir também reluta em atribuir maior da máscara. Sempre escapa”. O alerta fun- em primeira pessoa as barbarida- importância. Mas o poeta é um ciona. O narrador recupera a direção. des nazistas, porque a história é fingidor. Em entrevistas concedi- fria, e a memória é quente como das após o lançamento de Ana- De qualquer modo, o que me interessa so- o sangue vivo.” Era esse calor que tomia de um instante, Cercas bre Marco não é Marco em si. Marco é um pre- o embusteiro roubava. declarou haver percebido, ao fi- trecho texto. Tome uma lente de aumento, coloque-a As mentiras são desmon- nalizar o livro, ainda que postu- sobre qualquer ser humano, e de fato é ele que se O impostor tadas, uma a uma. Primeiro pela mamente, que “o livro não era vê. O livro não fala de Marco. Ele é o tema vi- linguagem, com a reiteração da sobre Suárez, era sobre meu pai”. sível, como em Soldados de Salamina o tema dúvida (“Marco não se lembra, Quando jovem, o autor, crendo- Para ocultar a sua própria era Sánchez Mazas. O tema invisível é outro: ou diz que não se lembra... [...] se superior, discordava intensa- realidade (ou para ocultar a si Enric Marco é o que somos, mas o bestial. é basicamente um enganador, mente das ideias conservadoras mesmo), Marco se reinventou um charlatão desaforado, um do pai. Com o tempo, Cercas Usa Marco para expor uma camada enrolador sem igual.”). Os fatos veio a entender que seu pai es- várias vezes ao longo de sua humana bem escondida: a mentira. “A li- são verificados, e pouco sobra de tava politicamente errado, mas vida, mas principalmente teratura é uma espécie de hipérbole do que sólido. Em uma prosa ora acele- moralmente certo, defendia sua em duas oportunidades. A realmente somos. Enric Marco é uma hi- rada e contundente, ora pausa- crença no catolicismo e em sua primeira em meados dos anos pérbole da impostura, da mentira”., disse da e reflexiva, a narração não sai família; o franquismo era uma em entrevista a Guilherme Sobota para O de prumo. No melhor estilo do montanha presente em suas vi- 1950, e ele o fez à força na Estado de S. Paulo. “novo jornalismo”, termo que já das. Não é surpreendente, então, ocasião, mudou de profissão Desta forma, é também uma metá- tem décadas, há mistério, docu- que Cercas só se sinta confortável e de cidade, trocou de mulher fora para a Espanha, e para tantos outros mento histórico, ensaio, diálogo em escrever o livro sobre Marco a e de família, até mesmo de países que têm dificuldade de encarar seu com o leitor: referências ao esti- partir do momento em que con- passado de frente. Contra a “ditadura do lo de Capote e W. G. Sebald, aos segue incluir seu filho nessa bus- nome: deixou o emprego de presente” o escritor deve persistir em esca- protagonistas de Flaubert e Cer- ca. Coerentemente, é a ele e à sua representante comercial e var a verdade escondida no passado, já que vantes, aos ensaios de Carrère, esposa que o livro é dedicado. voltou a ser mecânico, trocou “o passado é uma dimensão do presente” Montaigne e Hume. Os fatos, Ao final da primeira parte Barcelona por Hospitalet, (Faulkner). “Não escrevo romances histó- numerosos demais para que o do livro, intitulada A pele da ce- ricos, e sim romances sobre esse presente leitor se lembre, são fracionados bola, Cercas conclui que já pode trocou Anita Beltrán e os maior que contém o passado.” O escritor é e distribuídos, às vezes repetidos, enxergar o bulbo escondido por Beltrán por María Belver e os alguém que acredita que através da forma o que dá a falsa sensação de do- camadas de mentiras. Em alusão Belver, deixou de ser Enrique pode se chegar a uma verdade à qual não mínio da verdade, intercalada ao livro de Günter Grass, revela Marco e passou a se chamar se poderia chegar por nenhum outro cami- de dúvida — exatamente como o segredo mais sórdido nessa fal- nho. Se a verdade do presente encontra-se deve ser, tratando-se desse ani- sa história: Marco sempre este- Enrique Durruti ou Enrique, sob camadas de impostura do passado, é mal insondável que é o homem. ve onde a maioria estava. O que o mecânico. necessário escavá-la. 26 | | maio de 2016

palavra por palavra | Raimundo Carrero A montagem é o segredo da história

is uma questão es- sencial na narrativa: ilustração: Rafa Camargo a montagem. Depois Edo começo, o escri- tor iniciante encontra-se com um dilema: como desenvolver a história. Sim, concordo, concor- do, continue escrevendo e pron- to. Não se faça de rogado. Mas também pode não ser assim. Verifique os efeitos da narrati- va. Tudo numa obra de arte tem função e tem efeito. Nabokov chama a atenção do relógio em Dostoievski. Nos romances do escritor russo os relógios estão sempre incomodando os perso- nagens. Estão em todas as pare- des. Basta levantar os olhos e os ponteiros estão adiante — gran- des e inquietantes. A função é dar ao cenário a beleza e a força que ele exige, compondo a distribui- ção e a harmonia do espaço; e o efeito é o de, quase sempre e não sempre, de atormentar o leitor, subjugando-o ao tempo. Os re- lógios servem para lembrar ao lei- tor e aos personagens que eles são finitos, têm tempo para começar e para terminar. Bobagem para quem lê passando os olhos no pa- pel cheio de letras, e atormenta- dor para quem presta atenção nos movimentos romanescos. Nas habilidades do narrador. É preciso lembrar sempre a lição de Tchekhov: “Se o escri- tor coloca uma corda no cenário, ela deve ter função, nem que seja para enforcar o autor. Não é uma questão de fazer tudo certinho, sem espaço para a liberdade cria- tiva, mas de harmonia espacial e cênica”. Sempre cito a questão da música: ninguém escreve uma nota na pauta só porque é bonito ou interessante, ninguém permi- te um espaço em branco só por- que gosta. Um compasso é um compasso e não adianta desor- ganizar só pelo prazer do criador. Vai dar errado, com certeza, vai dar errado. Assim também é na literatura ou em qualquer outro campo da arte. Tudo tem função e tem efeito. Ao começar Madame Bovary com uma piada ou uma cena risível, Flaubert sabia que dava leveza ao texto, mas cui- tar o aparecimento de Emma no segun- ra Charles, mas drama e som- Reconheço que tudo is- dou imediatamente de dar um do capítulo. Isto é montagem, tem função bra para Emma, que chega ao so é muito técnico, mas não é freio ao ritmo narrativo com o e efeito no espírito do leitor. O que per- leitor com lentidão e leveza. O uma regra. Podemos todos nós perfil físico-psicológico de Char- manece nele é a figura cômica de Charles leitor consciente entende logo estudar sem repetir para alcan- les, recompondo a seriedade da ressaltada nas primeiras páginas do livro, este choque entre as duas apre- çar novas situações narrativas de história e forçando o leitor con- cortada pela presença antipática da espo- sentações. Há aí um verdadeiro acordo com a nossa própria voz. ter a inquietação. No próximo sa para se mostrar dolorosa e dramática jogo de sombras que interessava Aí está o segredo de uma ofici- movimento, libera o riso do lei- na cena de abertura do segundo capítulo, muito a Flaubert. E ainda que na com o máximo de reflexão e tor mas de tal forma preocupa- cujo foco agora é Emma. não entende, percebe a imensa análise. Com todo o investimen- do que logo vem a descrição do Ao contrário do primeiro capítulo, contradição entre os dois perso- to na capacidade criativa, abso- boné de Charles, em si mesmo risível e piadístico, o segundo é dramá- nagens, e já está imerso no po- lutamente particular e privada. risível mas de extrema seriedade. tico, onde se fala da perna quebrada do der de sedução dos dois e de suas Com as nossas próprias forças, Ainda neste primeiro capítulo, pai de Emma — ou seja, a narrativa so- trajetórias na obra. Podemos palavras e circunstâncias. Assim, muda várias vezes o andamento, fre uma fratura, ela já vinha sombria com acrescentar que o primeiro ca- sinceramente, se desenvolve uma de forma que em pouquíssimas a morte da mulher de Charles e agora pítulo é solar, e o segundo, som- oficina de criação literária. A di- linhas faz uma revisão em toda aprofunda a questão. A função é de cho- brio, definindo desde já o caráter ficuldade é examinar uma obra a vida de Charles até a morte da que entre circunstância e apresentação de dos personagens e suas existên- literária inteira como quem vê primeira esposa para possibili- personagens, com riso e brincadeira pa- cias no andamento do texto. um quadro na parede. maio de 2016 | | 27 rabisco literatura infantil e juvenil

Terra Santa A história é inspirada no conto A cruzada das crianças, es- crito pelo francês Marcel Schwob em 1885. Ele, por sua vez, se ins- pirou em diversos fatos — alguns verídicos, outros sem compro- Uma aventura vação — que aconteceram em O barco das crianças 1212 e que resultam em um ele- Mario Vargas Llosa mento comum: um rapaz que Trad.: Paulina Wacht e Ari Roitman conduz um vasto grupo de crian- Alfaguara ças originárias da França e da 112 págs. Alemanha que desejam ir à Pa- lestina para libertar a Terra Santa. de crianças Em seu livro, Llosa não mencio- na nenhum rapaz líder, apenas as crianças que decidem fazer a jor- Mario Vargas Llosa leva o mundo da nada a pé do interior da Europa até Marselha e, de lá, a viagem de imaginação para o tempo das Cruzadas barco em direção à Palestina. À época do lançamento de seu primeiro livro infantil, Adriano Koehler | Curitiba – PR Trecho Llosa havia dito que era muito mais difícil escrever para crian- O barco das crianças reprodução ças do que para adultos. Essa dificuldade pode ser notada em O velho se virou para olhá- alguns trechos de O barco das crianças lo. Fonchito reparou que em que o autor pare- ce não conseguir esquecer a sua em seu rosto cheio de rugas erudição e toda a sua história de cintilavam uns olhos vivos escritor adulto. São momentos e ainda jovens. Uns olhos em que falta explicar algum de- tão intensos que pareciam talhe da história das Cruzadas, por exemplo, que talvez já se- ter visto todas as maravilhas ja conhecida pelos adultos, mas que existem no mundo. Seu ainda não faz parte do universo cabelo era muito branco, assim intelectual das crianças. A esco- como as sobrancelhas, e sua lha de palavras rebuscadas ou pouco comuns, em alguns tre- cútis, barbeada com esmero, chos, também conspira para dei- era muito pálida, quase xar o texto menos infantil. Não é translúcida. Parecia muito nada que comprometa a leitura e frágil; sua magreza extrema lhe pode servir como um incentivo aos pequenos leitores usarem um dava um aspecto quase irreal. dicionário, porém uma ou outra vez são palavras fora do lugar. Ainda sobre o lançamento de Fonchito e a lua, Llosa disse que era a realização de um sonho muito antigo, de um projeto pessoal que estava abandonado e que havia muito ele gostaria de ter retomado. Para ele, era mais importante fazer com que as no- ario Vargas Llo- criança, envolvido em sua roti- para atravessar o Mediterrâneo. vas gerações não renunciassem a sa dispensa na: acordar cedo, tomar café, ir Ali, são recebidos pela população literatura. “Que a literatura pode apresentações, para a escola. Um dia, ele per- com um pouco de desconfiança desaparecer, que pode terminar Mé um dos escri- cebe que há um senhor sentado de alguns, mas com muita ale- confinada às minorias, todos sa- tores mais famosos do mundo, em um banco de um pequeno gria pela maioria, como se fos- bemos. Essa perspectiva seria um Nobel de Literatura em 2010, parque em Barranco, contem- sem anjos enviados por Deus. O retrocesso absurdo para a cultura autor de A guerra do fim do plando o mar. Depois de vê-lo relato do senhor conta a história de todas as sociedades. Somen- mundo, Tia Julia e o Escre- durante várias manhãs, sempre dessas crianças, desde o momen- te com a boa literatura adqui- vinhador etc., etc., etc. O que no mesmo lugar e olhando para to em que se encontram. O autor rimos a sensibilidade, o poder talvez seja novidade são suas in- a mesma direção, ele se pergunta A cada dia, o idoso fa- Mario Vargas Llosa imaginativo, aprendemos a con- cursões pelo universo da literatu- o que estaria fazendo ali, curioso la um pedaço da história para frontar nossos desejos e anseios ra infantil. O barco das crianças como qualquer criança. Até que Fonchito, que tem poucos mi- Nasceu em Arequipa, no Peru, em e, fundamentalmente, a formar é o segundo livro do autor des- um dia, não se aguenta e acorda nutos antes que o ônibus escolar 1936, ganhou notoriedade com a um espírito crítico sobre o mun- tinado a esse público, publica- mais cedo para ir perguntar ao apareça e ele tenha que partir. E publicação do premiado romance A do em que vivemos e estamos do originalmente em 2014, mas idoso o que ele tanto olha. É nes- a cada dia, Fonchito mergulha cidade e os cães (1961). Mudou-se construindo”, comentou. para Paris nos anos 60, e lecionou lançado esse ano no Brasil. O se momento que começa a histó- um pouco mais no relato do ve- A edição da Alfaguara é em diversas universidades americanas primeiro, Fonchito e a lua, foi ria do Barco das Crianças. lho senhor e leva para a escola e e europeias. Ganhou importantes muito bonita. As ilustrações da publicado aqui em 2011. Em De acordo com o senhor, para casa as imagens que sua ca- prêmios literários como o Cervantes, polonesa Zuzanna Celej, artis- ambos, Llosa procura criar um ainda à época das Cruzadas Eu- beça cria a partir da história ou- Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov ta premiada internacionalmen- ambiente de sonho e fantasia pa- ropeias, um grupo de crianças vida. Esse ritmo, aliás, torna o e Grinzane Cavour. Em 2010, te, são um ótimo complemento ra contar temas que são pouco de várias cidades do continente livro uma companhia extrema- recebeu o Nobel de Literatura. a uma história bonita. Talvez se abordados na literatura infantil, decide ir até a Terra Santa pa- mente agradável para pais que Llosa conseguisse ser mais sim- como a relação amorosa entre ra ajudar a recuperá-las para os gostam de ler para seus filhos. ples e menos prolixo, a garota- crianças e as guerras do passado. cristãos. Durante um tempo, as Se a regra da hora de dormir for da curtisse mais o livro. Mesmo Em O barco das crianças, crianças vagam pela Europa até um capítulo por dia, são onze assim pode servir como um ex- reencontramos Fonchito, já um darem em Marselha, pois sabiam noites para se ler o livro (dez ca- celente ponto de partida para o pouco mais crescido, mas ainda que precisariam de um barco pítulos e um epílogo). universo dos livros. 28 | | maio de 2016

Sobre a gente que vive em palácios, pântanos e em uma casa azul de papel

De Frida Kahlo à vontade de ser uma rainha poderosa

Marcella Lopes Guimarães | Curitiba – PR

ma querida alu- ções de sentido da História é jus- Na história dos Grimm, o Seu protagonismo no amor? O assumiram a identidade desses na anunciou ter tamente a narrativa. Mas, se for pai da Cinderela está muito vivo. livro não escamoteia a liberdade seres; sequer adotaram seus so- comprado a obra o primeiro caso, há muito a His- Vê as perversidades da nova fa- sexual do casal e a enquadra no brenomes e são felizes porque UFrida Kahlo, de tória abandonou o desejo de cir- mília contra a sua filha e não faz verbo “compartilhar”. A obra fa- não foram condenadas, assumi- Nadia Fink e ilustrada por Pi- cunscrever as suas perguntas ao nada. Depois de desafios impossí- la ainda da debilidade da saúde ram a responsabilidade por suas tu Saá, coleção Antiprincesas da universo vivido por homens e veis lançados pela madrasta, Cin- da pintora e de sua morte, talvez escolhas, sem se transformarem editora Chirimbote (tradução mulheres que não podem “se su- derela consegue seu intento de ir antecipada pela decisão de levar neles... Elas parecem felizes. Fri- de Sieni Maria Campos, 2015). jar”. Desde as primeiras décadas ao baile, graças a uma mediação às ruas, no estado em que esta- da não é uma antiprincesa pa- Na capa, reparo: “para meninas do século 20, esse campo de co- mágica, mas faz a travessia sozi- va, seu frágil corpo “como uma ra mim porque tinha buço, um e meninos”. Há uns dois anos, nhecimento, que é também um nha e enfrenta o desconhecido. bandeira”... A obra contém ain- corpo machucado, andava colo- também dei de presente à filha fazer, viu-se “revolucionado”, O príncipe inicia o baile, tira a jo- da atividades, “jogos”. rida (Frida, vida, colorida!) ou a obra Frida de Jonah Winter, uso expressão do historiador Pe- vem, irreconhecível aos seus, pa- Para mim, foi inevitável porque casou com um “prínci- ilustrada por Ana Juan (edita- ter Burke, pelo desejo de conhe- ra uma dança. Ao longo da noite, compará-la à narrativa de Jonah pe” sapo (ela chamava Diego as- da pela Cosac Naify, 2004), na- cer a vida de homens e mulheres não se separam. Eles não preci- Winter e às ilustrações surpreen- sim)... Eu me pergunto o que quela mania de os pais já irem muito importantes sim, mas que sam se conhecer para estarem nos dentes de Ana Juan, que eu ti- estaria por trás do elogio ao ou- apresentando as suas paixões às não habitavam castelos. São im- braços um do outro e essa possi- nha em casa. Algumas páginas tro morador do pântano? Um crianças indefesas. Se levei a filha portantes porque criam um sen- bilidade aponta para o risco e pa- têm apenas uma ou duas frases, convite às meninas a ampliarem à exposição de fotos consagrada tido que nos afasta da solidão. O ra a coragem que o cinema não nada de manifesto, ou muita seu olhar e a acharem encan- à pintora no MON, em Curiti- sentido de que eu e você que me deu destaque, mas que a leitura explicação. Entra em cena uma to em lugares imprevistos? Ou ba, em 2014? Claro e duas vezes! lê temos um passado no qual vi- não pode esquecer! Quem disse amiga imaginária, com quem a a naturalização de expectativas Minha curiosidade pelo livro de veram e amaram pessoas de car- que ela ficou esperando sentada? Frida criança brinca; no hospi- muito baixas em relação aos ho- Nadia Fink e Pitu Saá acendeu ne e osso. Na narrativa de suas Não me venham com a desculpa tal, a amiga imaginária é a pintu- mens ou em relação a elas mes- meu desejo por nova investida vidas, podemos ler suas vitórias, da mediação mágica, muitos ou- ra... Frida não melhora de todo, mas?... Cá entre nós, vejo que os junto à minha criança indefesa, seus equívocos, seus sonhos e as tros heróis tiveram parceiros má- nós sabemos, e me emociona a ogros se organizam. Que respos- mas não só... queria entender o escolhas que tinham à disposição. gicos para facilitar a sua vida! pequena frase “seu corpo ficará ta darão os príncipes? Antiprincesas. Na quarta capa da O fato de saber que viveram e en- machucado para sempre”. Não Cinderela virou prince- obra, descubro que há uma série contraram soluções antes de mim Diferentes possibilidades vejo Diego na obra! Ora, então sa porque se apaixonou por um de Anti-heróis e vejo Cortázar. também me enche de esperança Frida Kahlo, de Nadia toda uma parte fundamental de homem filho de rei, em uma fes- A coleção Antiprincesas tem de escrever a minha história! Fink e ilustrado por Pitu Saá, é sua vida está de fora... Escolhas. ta em que jamais teria ido se ti- uma espécie de manifesto na pri- Se a acepção posta no ma- uma biografia com diferentes Não acho que Jonah Winter me vesse ficado sentada, pensando meira página. Seleciono frag- nifesto da coleção, porém, tem possibilidades visuais de leitura. dê um grande texto, acho, entre- na morte da bezerra. Seu ves- mentos: “Por que sempre que nos a ver com a narrativa ficcional, A edição contém documentos tanto, que Ana Juan tatuou ima- tido de baile nem era rosa! Is- falam de história, nos contam so- qual é a essência da sua refuta- visuais autênticos, como fotogra- gens fantásticas nos palácios de so me lembrou do livro de Ian bre mulheres e homens ‘impor- ção? Talvez a equipe que conce- fias, e releituras da obra da pin- minha memória. Falconer (que também ilustra): tantes’?” O manifesto pergunta beu a coleção tenha ido buscar tora. Na página 5, uma caixa de Penso que vivemos um Olivia não quer ser princesa se “importantes” são as princesas a ideia da princesa “bem vesti- texto em lilás fala sobre o nasci- grande equívoco contra os prín- (traduzido por Silvana Salerno. “bem vestidinhas” e limpinhas; dinha” e que não pode sujar nas mento e a polêmica em torno da cipes e princesas porque as ima- Globo, 2014). Olívia “estava ar- pergunta também se “importan- imagens do cinema estaduniden- data. Na mesma página, à direi- gens do cinema suplantaram as rasada” porque havia descoberto tes” seriam os “heróis e seus su- se. Alguém pode lembrar que a ta, a explicação de por que gos- contradições que a leitura pode que “todas as meninas querem perpoderes”, distantes “da gente”. Cinderela de Disney se suja fisi- tamos tanto de Frida. Abaixo, a revelar. Em Frida Kahlo, de Na- ser princesas”. Ao longo do tex- Responde: por “importantes”, camente (é a Gata Borralheira!), declaração de que “ela é de uma dia Fink, leio a bela intenção de to, porém, percebemos que Oli- “estamos falando de quem se su- mas acredito que a coleção tenha família trabalhadora!”. Na pági- mostrar aos leitores (não entendi via se insurge contra um tipo de jou para crescer e se divertir, de ampliado o conceito, pois explica na 8, um elogio à rebeldia: “Fri- até agora por que “para meninas princesa, um estereótipo, pois quem não ficou esperando sen- que “importante” é quem “não da divertida, Frida engenhosa, e meninos”, uma nova moda?) alude a “alternativas”: “prince- tado e de quem também usou ficou esperando sentado” e, nesse Frida inteligente e rebelde”. Na que todos são sujeitos da História sa da Índia”, “princesa da Tai- poderes, mas outros”, como a sentido, vou acreditar em minha página 10, sua tragédia... A obra e isso é muito importante! Mas lândia”, “princesa da África” e “coragem”. O manifesto termina intuição quando propus a relação fala de Diego Rivera, mas encon- vamos combinar que Frida foi “princesa da China” e se imagina com o desejo de “contar histórias entre a intenção do manifesto e tra uma solução discursiva no uma pintora reconhecida em vi- assim. Na página em que se vê que merecem ser contadas”. Vejo a animação estadunidense. Mi- mínimo inusitada para os pro- da. Frida e vida, ai que rima fácil! na história da Rapunzel, Olivia muitos equívocos nesse conjunto nha insistência se funda no fato pósitos da coleção, em que clara- O cinema tem tentado grita socorro para o perigo de ser de declarações em que reconheço, de que a abertura do trabalho ex- mente se propõe o protagonismo nos convencer de que os prín- salva pelo príncipe! Morro de rir! porém, boas intenções. traordinário dos Irmãos Grimm, de uma mulher incrível: “Diego cipes são chatos e os ogros são Mas Olívia também não quer ser Quando o manifesto abor- por exemplo, frustraria essa ex- se apaixonou pelos quadros, e muito bacanas. Na vida, tenho a Menina da Caixa de Fósforos... da história, refere-se à História, pectativa de um mundo em con- também pela pintora”. Como as- visto mulheres incríveis casadas Depois de muita reflexão, Olívia campo de conhecimento ou à certo, contra o qual seria preciso sim? E ela?! Logo depois, “Diego com ogros também, por livre e descobre afinal o que quer ser: narrativa? É uma escolha difícil, elevar novos heróis ou anti-he- e Frida se casaram”. Onde está a espontânea vontade. Só que não “Eu quero ser rainha!”. eu sei..., afinal, uma das opera- róis, antiprincesas? paixão da mulher “importante”? viraram ogras por amor; nem Olívia, você me representa. maio de 2016 | | 29

divulgação As mulheres e a guerra

O pomar das almas perdidas narra a vida de três gerações de mulheres durante a ditadura na Somália

Paula Dutra | Brasília – DF

A autora Nadifa Mohamed

m Três guinéus, livro sensíveis a partir de um cenário da vizinhança, que se ajudam e Nasceu em Hargeisa, Somália, prestado, pois está sempre em escrito em 1936 no em ruínas. se apoiam constantemente, mas em 1981, e foi educada no Reino posição subalterna. A raiva que qual Virginia Woolf As protagonistas do ro- todas são obrigadas a participar Unido. Estudou história e política ela extravasa de forma violenta Ereflete sobre a parti- mance são de três gerações e da festa de aniversário da revolu- no St. Hilda’s College, Oxford. em diversas situações é reflexo cipação das mulheres na guerra, a classes sociais diferentes viven- ção no estádio da cidade, já que Atualmente, mora em Londres. Seu dessas violências contidas e si- autora afirma que “homens fazem do sob o regime ditatorial. De- seriam presas caso se negassem a primeiro livro, Black Mamba Boy lenciadas ao longo de sua vida. a guerra. Homens (em sua maio- qo, Kawsar e Filsan são as três celebrar o ditador, pois “ele pre- (ainda sem tradução no Brasil), foi Apesar disso, sua solidão revela ria) gostam de guerra, pois para protagonistas deste roman- cisa de mulheres que o façam pa- publicado em 2010. Foi eleita pela o quanto ela também já sofreu eles existe ‘uma glória, uma neces- ce que fala das muitas perdas recer humano”. Toda a cena da Granta uma das melhores jovens com suas perdas. sidade, uma satisfação em lutar’ sofridas por essas mulheres e festa é uma grande encenação, escritoras britânicas em 2013. As três mulheres se encon- que as mulheres (em sua maioria) de todas as violências que fa- a falta de liberdade e a repressão tram no dia da festa da revolu- não sentem ou não desfrutam”. zem parte dos seus dias. É por do que é viver em um regime di- ção no estádio em Hargeisa, Se a guerra é um jogo de trazer a perspectiva feminina, tatorial ficam evidentes. onde grande parte do romance homens, como a história tem criando personagens complexas É verdade: elas são idên- é ambientado. Ao ver Deqo ser nos mostrado ser, as mulheres que tentam compreender seus ticas, só que Maryam tem vin- espancada pelos policiais por há muito são as maiores vítimas próprios sentimentos e ações te e poucos anos, Zahra está na ter errado a dança em homena- de suas disputas. As narrativas e demonstram capacidade de faixa dos quarenta, Dahabo e gem ao ditador, Kawsar decide que versam sobre a guerra, se- agência, que o romance de Na- Kawsar quase chegando aos ses- intervir, pois viu na cena “um ja observando a glória do ven- difa Mohamed se engrandece. senta, e a pobre Fadumo é uma momento de verdade dentro de cedor, seja no lamento dos que Aos nove anos, Deqo é encurvada com mais de setenta. uma ficção”. Mesmo correndo perderam, poucas vezes abor- uma menina nascida em um Parecem ilustrações de um livro riscos, ela decide fazer o que jul- dam o sofrimento das mulhe- campo de refugiados. Abando- didático, todas iguais nas mes- ga certo, já que Deqo era apenas res, que se torna ainda maior nada pela mãe logo após o nas- mas roupas, com apenas algu- uma criança em pânico diante em situações de conflito e in- cimento, desde cedo aprendeu mas rugas no rosto ou as costas da multidão. Então ela é pre- dependentemente a qual lado a cuidar de si mesma. Contan- curvadas para marcar a idade. sa por Filsan, a jovem soldado pertençam. Seus corpos são o do com a boa vontade de algu- É desse jeito que o governo pa- O pomar das almas perdidas que assusta as demais pela agres- Nadifa Mohamed palco dessas disputas por po- mas pessoas que trabalhavam no rece querê-las — cartuns sorri- sividade que demonstra. Esse Trad.: Otacílio Nunes der, a violência sexual passa a campo de refugiados, ela conse- dentes sem nenhuma exigência Tordesilhas encontro afetará a vida das três ser uma arma de guerra que tem gue sobreviver, mas o que mais nem necessidade própria. Ago- 296 págs. personagens, cada uma apresen- por objetivo humilhar e destruir deseja é uma família, além de ra esses cartuns ganharam vida tada separadamente no segundo a “honra” dos homens e das fa- compreender por que a mãe a — não arando a terra, tecendo capítulo, e elas só se reencon- mílias, corroborando a ideia de deixou. Com a promessa de que ou trabalhando em uma fábrica tram no capítulo final e de for- que as mulheres são proprieda- vai ganhar um par de sapatos, ar- como nas notas de xelim, mas ma surpreendente. de de alguém. Nos cenários de tigo muito desejado para quem marchando penosamente para São muitas as violências guerra, frequentemente a voz perambula pelas ruas diariamen- uma celebração a que são obri- contra as mulheres retratadas das mulheres é silenciada e invi- te em busca de comida, Deqo gados a comparecer. por Nadifa Mohamed em O sibilizada, e elas mesmas são so- aceita dançar na festa de aniver- Filsan é uma jovem sol- pomar das almas perdidas. Pa- terradas em sua própria dor. sário da revolução que colocara dado, filha de pai militar, que Trecho ra citar apenas dois exemplos, Ainda que essas histórias no poder uma ditadura militar, tem se dedicado unicamente à podemos considerar a violência de violência continuem a exis- apesar de não compreender por sua carreira no exército, algo no O pomar das almas perdidas que logo cedo as meninas pas- tir, no romance O pomar das que as pessoas vivem brigando qual acredita, certamente por sam a temer (por serem mais almas perdidas, a africana Na- ou o que de fato acontece ali. Pa- influência do pai, de quem sem- As sandálias não casam, suscetíveis do que os homens no difa Mohamed dá voz a algumas ra ela, difícil mesmo é viver no pre quis conquistar aprovação. uma é maior que a outra, campo de refugiados) e também dessas mulheres em plena guerra campo de refugiados, sem famí- Apesar de sua competência, a a violência que Kawsar relata so- civil na Somália, nos anos 1980, lia, sem comida e sem perspecti- vida no exército não é fácil pa- mas ficam em seus pés. Ela bre a mutilação genital femini- trazendo a perspectiva femini- vas. Diante do estádio repleto de ra uma mulher, dado o sexismo tomou todas as suas roupas na, realizada ainda na infância, na para narrar o encontro de pessoas, a menina se desconcen- que ainda predomina nas ins- do vento: uma camisa branca algo frequente e reproduzido três mulheres em um contexto tra e erra a coreografia da dança, tituições militares. Filsan sente presa em uma árvore com sob a máscara da tradição mes- de guerra. Mas o que se retrata sendo punida por isso. raiva a cada vez que os colegas mo nos dias de hoje, que afeta aqui não são os eventos bárbaros a provocam com comentários espinhos, um vestido vermelho para sempre a saúde e a sexua- que prontamente imaginamos Grande encenação insinuantes ou olham para o que rolava, abandonado, à lidade da mulher. No entanto, ao falarmos em guerra, e sim a Kawsar é uma mulher de seu corpo como se isso fosse a beira da estrada, uma calça é o pomar que resiste em meio violência cotidiana contra as quase sessenta anos, viúva de única coisa que existisse. Ape- de algodão jogada sobre um ao caos da guerra, transforman- mulheres que certamente acon- um policial respeitado e em luto sar de estar em uma situação de do as dores em novos frutos, o tece em qualquer lugar do mun- pela morte da filha adolescente poder diante de Deqo e Kaw- fio de eletricidade. Veste peças melhor símbolo para a história do. Nesse sentido, o romance que lutou contra o regime jun- sar, logo percebemos que Filsan que fantasmas deixaram para construída por esta jovem es- amplia as possibilidades de re- to aos demais estudantes e não também está sujeita às mesmas trás e se torna, ela própria, critora. Mais do que um livro flexão sobre o assunto, que con- sobreviveu aos traumas vividos violências de gênero, sendo des- um fantasma ainda maior, sobre a vida em um regime mi- segue ser apresentado com uma na prisão. Por ter dinheiro, vi- respeitada em seu trabalho, pe- litar, O pomar das almas per- linguagem por vezes poética, ca- ve em condições um pouco me- lo seu pai em sua família, e seu invisível aos passantes, que didas é uma obra tocante sobre paz de construir imagens belas e lhores que as demais mulheres “poder” é apenas um poder em- tropeçam ou pisam nela. a condição feminina. 30 | | maio de 2016 Erudição sem O século de Camus Lucia Miguel Pereira Graphia pedantismo 328 págs.

Lucia Miguel Pereira parte da literatura para pensar o mundo, o homem e sua condição

Maurício Melo Júnior | Brasília – DF

Trecho á um privilégio que to de uma prosa seca e cortante como a de Albert ferenciar o joio do trigo e, ao contrário marcou a geração Camus. Daí ser dele o século que nasceu sobre os do jornalista descrito na frase atribuída O século de Camus fomentadora da auspícios de um momento de renovações e luzes a Mark Twain, publicava o trigo. Hcultura brasileira na científicas e que já em sua primeira metade viveria Este ouvido apurado para desco- A manhã cheia de sol e de luz, primeira metade do século passa- duas guerras mundiais e a quebra da economia uni- brir qualidades ainda obscuras, a levou do, a sólida formação intelectual. versal. Ou seja, o pessimismo tenha sua razão de ser. a apostar em autores como Graham de uma beleza exuberante, talvez Usando o exemplo do autode- Lucia Miguel Pereira, embora fale primor- Greene, não necessariamente um es- exuberante demais, lembrando as preciador Graciliano Ramos — dialmente de literatura, sabe como poucos usar treante — o artigo foi escrito em 1948 adolescentes meio despidas que ele se dizia apenas um matuto sua vastidão cultural para pensar o mundo, pen- e o inglês já estava na estrada deste ostentam graças roliças de mulheres bronco do sertão —, basta per- sar o homem e sua condição. Embora leve aos in- 1929 —, mas ainda um escritor visto correr sua obra para encontrar, cautos leitores a verem em seus textos apenas os como menor por se dedicar quase que maduras, parece a contribuição da ou topar, como preferia o escri- elementos literários, nas entrelinhas marca seu exclusivamente ao romance policial. E natureza para a alegria pagã — ou tor, com incontáveis exemplos protesto contra a rudeza do mundo. E já então aí Lucia exalta as possíveis qualidades selvagem? — do carnaval. Tudo é desta cultura muito bem for- demonstra a importância da mulher na constru- de um bom livro de suspense. A jovem, ruidoso e excessivo, o mundo só abriga mada. E daí advinha outro tra- ção de uma nova estética. Mesmo reconhecendo mas já então falecida, Simone Weil é ço comum a essa gente. Quando que essa construção data de séculos, é no alvorecer outra de suas apostas. criaturas extrovertidas, cores berrantes, utilizada na criação literária, o do século 20, nos ensina Lucia, que estas vozes se árvores sem a placidez vegetal, casas resultado nos chegava com um impõem com ternura e firmeza. Poucos espíritos terão sido ao mes- sem intimidade. Onde se escondem os intenso requinte de linguagem e É bom, no entanto, logo deixar bem claro mo tempo tão lógicos e tão sensíveis, tão ensimesmados, os tristes, os sofredores? de reflexão sobre o tema de elei- que este discurso, digamos, feminista não nasce de austeros e tão ardentes, tão realistas e tão ção. Quando, no entanto, os uma visão mesquinha, maniqueísta. Tudo vem do místicos, tão simples e tão originais, tão Onde os que leem e meditam? escritos descambavam para a aná- reconhecimento e do entendimento que Lucia der- compreensivos e tão ousados, tão livres e tão lise, a coragem e a segurança que rama sobre seu tempo. A segurança de suas análi- submissos com o dessa Simone Weil, cujo li- traziam deixavam, quase sempre, ses, a serenidade com que olhava as várias faces dos vro, se não me engano póstumo, O enrai- seus leitores desprovidos de ele- fenômenos que a cercavam, levaram a autora a per- zamento precisa ser lido e meditado. mentos para a discordância. ceber as sutilezas escondidas nas sombras daquele A escritora e crítica literária momento. Nestas filigranas conseguia enxergar o Aliás, Lucia se põe como defensora Lucia Miguel Pereira vem desta que vinha adiante. E não por se valer de alguma de uma voz feminina na literatura, a aí estirpe de intelectuais profun- condição de pitonisa, antes sabia utilizar o caldo de deve residir mais um de seus pioneiris- dos, viscerais. Não deixou inédi- cultura que carregava para refletir com profundida- mos. Para ela as escritoras tinham uma tos, ou melhor, tudo aquilo que de e assertiva sobre tudo e sobre todos. percepção diferenciada da realidade que guardou em seus arquivos foi Voltando à seara literária, ela foi precisa em refletia em sua escrita. Não buscava nes- incinerado pela família a pedi- suas previsões. Um exemplo deste fenômeno — e fi- te ponto uma literatura de melhor quali- do da própria autora, mas o que caremos apenas neste, deixando ao leitor a busca de dade, mas inovadora e reveladora. Havia deixou publicado, entre obras outros tantos ao longo do livro — está no que escreve um olhar renovado pela suavidade, e era de ficção e ensaios, demonstra sobre Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. esta visão que traziam as escritoras. bem sua consistência intelectual. Ela própria era um bom exemplo A Graphia, com a coordenação Mas as contingências atuais passarão e o li- desse discurso renovado. Seu texto vi- A autora editorial de Luciana Viégas, vem vro ficará. E o que lhe garante a permanência, o nha com as frases recheadas de poesia, Lucia Miguel Pereira juntando à obra publicada de que lhe permitirá subjugar como a nós os leitores eram quase crônicas, mesmo quando Lucia tudo que foi esparsamente do futuro, para os quais serão quando muito vagos traziam firmeza e até dureza em suas Nasceu em Barbacena (MG) em editado na imprensa. Deste tra- nomes os potentados da época sombria em que se sentenças. 12 de dezembro de 1901 e faleceu balho resultaram anteriormente prendia sem culpa nem processo, é a sua alta e pura em um desastre aéreo no Rio de Janeiro em 22 de dezembro de em dois volumes, A leitora e seus qualidade literária. Documento, sim, e terrível, ele Sentir que a própria personalida- 1959. Crítica literária, biógrafa personagens e Escritos da ma- é, devendo porém seu poder ao fato de ser, primor- de de algum modo encobre o que deveria de Machado de Assis e Gonçalves turidade, que podem ser lidos se- dialmente, uma obra-prima. ser a sua mais autêntica manifestação, é Dias, ensaísta e tradutora foi casada guindo o caminho delineado por desconfiar de que nela não deu tudo o que com o escritor Otávio Tarquínio de Antonio Candido no texto que E aí reside sua magia. Sabia identificar com poderia dar, é adivinhar que o nome per- Sousa. Recomendou à família que escreveu sobre o primeiro destes precisão as qualidades de um texto e ousava apostar durará, mas que pelo menos alguns dos depois de sua morte todos os seus livros. “Aqui temos Lucia em as- em sua permanência. livros serão um dia aqueles “túmulos de inéditos só poderiam ser publicados censão e depois demonstrando a Embora tenha determinado o uso da foguei- palavras” de que fala Valéry. com autorização do marido, que segurança de sua escrita e dos seus ra para seus inéditos, Lucia aplaude a disposição de morreu no mesmo desastre aéreo. pontos de vista.” Max Brod em desobedecer a Kafka, publicando os Ler os textos de Lucia Miguel Pe- Assim, todos os textos inéditos e O terceiro destes volumes, romances que o amigo deixou inacabados. E o faz reira, mesmo aqueles produzido para a cartas pessoais foram incinerados. Publicou, entre outros, os romances O século de Camus, traz os tex- segura de que, jogadas no lixo, estas obras-primas urgência jornalística, dá no leitor uma Maria Luísa e Cabra cega, e o tos escritos entre 1947 e 1955, fariam falta ao legado cultural da humanidade. No boa e justificada inveja. O intenso cal- ensaio História da literatura ou seja, bem na ressaca da Se- entanto, combate o exagero do gesto que organizou do de cultura, a erudição refinada e a se- brasileira — Prosa de ficção — de gunda Grande Guerra, bem em em um volume “malvindo e desnecessário” trechos gurança que eles carregam alimentam o 1870 a 1920. Seus textos de crítica um mundo marcado pela deses- de rascunhos, frases e cenas soltas descritas pelo es- sentimento e o até o tornam nobre. O literária foram reunidos nos volumes perança e pelo pessimismo, um critor tcheco, pois isso em nada contribui para a século de Camus é um bom e definiti- A leitora e seus personagens tempo ideal para o surgimen- grandeza geral de sua obra. Ou seja, Lucia sabia di- vo exemplo disso. e Escritos da maturidade. maio de 2016 | | 31

um ponto de vista importante dos acontecimentos do período. Outro aspecto interessan- te do texto é a maneira com que o autor aborda a guerra. É claro que esse é um tema central do livro — além disso, a experiên- “Quero cia que o autor viveu durante o O autor combate é essencial para a for- Ernst Toller mação da sua opinião e delimita a maneira com que viverá os pró- Nasceu na cidade de Szamicin, na ximos acontecimentos — mas então Prússia (hoje Polônia), em ocupa poucas páginas da obra. 1893. Foi poeta, dramaturgo e político. Suas peças mais conhecidas Nesse segmento, Toller, esquecer são Die Wandlung e Masse Mensch. como uma espécie de fotógra- Foi combatente na Primeira Guerra fo que enquadra apenas algu- Mundial e posteriormente se tornou mas cenas, mais do que fortes, pacifista. Por ser judeu, emigrou para que dão conta do que ele quer os EUA em 1933, com a tomada dizer. Ele não se agarra a longas do poder pelos nazistas. Suicidou- descrições de estratégias milita- se em Nova York em 1939. res ou hierarquias seguidas pelos a guerra” soldados, muito menos acompa- nha o movimento de tropas ou armamentos. Ele foca em algu- Uma juventude na Alemanha acompanha a vida do mas sensações pessoais e diálogos que teve com outros soldados, dramaturgo Ernst Toller e suas reflexões sobre a sociedade pequenas cenas em que a huma- nidade se depara com grandes questões e momentos-chave para Gisele Eberspächer | Curitiba – PR que a guerra perdesse o sentido do ponto de vista dele. Mais um aspecto aborda-

Trecho do, ainda que de maneira breve, rnst Toller, drama- seus interesses é gritante. O perío- são os custos que a população turgo e poeta ale- do é formado de uma sucessão de Uma juventude na Alemanha pagou pela guerra: falta de ali- mão, diz ter escrito golpes de estado que trazem ape- mentos e de energia são apenas Ea autobiografia Uma nas mais pobreza e sofrimento. Não é apenas a minha alguns deles. juventude na Alemanha para Por fim, com a morte de juventude que está aqui Toller também parece sin- contar não apenas a sua juventu- Karl Liebknecht e Rosa Luxem- cero em sua escrita e não poupa de, mas a de toda uma geração burgo e eventual queda do par- registrada, mas a juventude nem a si mesmo, frequentemen- que assistiu e participou de mo- tido, Toller é declarado traidor e de uma geração e, além disso, te comentando sobre situações mentos decisivos para a história Uma juventude na Alemanha sentenciado a cinco anos de pri- em que não tomou a melhor de- Ernst Toller parte da história de uma alemã. O autor parece estar no são. Depois de cumprir a pena, cisão ou não foi coerente consi- Trad.: Ricardo Ploch época. Essa juventude trilhou centro (ou muito perto dele) de é liberado para uma Alemanha go mesmo. O relato mostra uma Mundaréu muitos caminhos, seguiu vários fatos históricos e teve uma 280 págs. diferente, onde começa a tomar realidade fria e dura. Ao longo vida profundamente marcada forma o regime nazista. Muda- falsos ídolos e falsos líderes, da narrativa, Toller também ex- pela sua época. se para os EUA e comete suicí- mas nunca deixou de buscar o plicita alguns dos momentos em Toller nasceu em 1893 em dio em 1939. esclarecimento e de seguir os que se sentiu inspirado para es- uma cidade no leste da Prússia, Uma juventude na Ale- crever suas obras literárias. Além onde hoje é a Polônia. Sua infân- clarado “inútil” para combate, manha se ocupa dos seus pri- preceitos do espírito. (...) Os de conhecer sua época, é possível cia foi permeada por cenas que retorna para seu país e perce- meiros 30 anos de vida: anos homens aprenderam algo com conhecer um pouco dos hábitos hoje nos lembram do filme Fita be que nem sempre os motivos conturbados, dolorosos e decisi- os sacrifícios e os sofrimentos, dele como escritor. Uma juventude na Ale- branca, de Michael Haneke. São que levam a guerra são relevan- vos para história europeia. a queda e a catástrofe, com narrados vários momentos que tes para a população — ao con- manha integra a coleção Linha demarcam uma profunda into- trário, muitas vezes são motivos No presente o triunfo do adversário e do tempo, da editora Mundaréu. lerância religiosa e desigualda- que atendem interesses privados. Toller escreve o livro em o desespero do povo? Eles A coleção visa publicar obras li- de social. Além disso, se vê uma A decepção acontece com certo primeira pessoa e no presente, captaram o sentido, a lição e o terárias marcadas por seu período Mar- criança que desenvolve poucas tom melancólico e Toller se tor- sem ser uma voz onisciente que legado daqueles tempos? histórico. Outros títulos são relações afetuosas, com familia- na um grande pacifista, unindo- reserva toda a sabedoria de mui- cha de Radetzky, de Joseph Ro- res ou amigos, sem explicações se a movimentos contra a guerra. tos anos vividos. Assim, não jul- th; O súdito, de Heinrich Mann, para vários fatos do cotidiano. Esses movimentos fazem ga com sua voz de escritor suas Um ano sobre o Altiplano, de Quando adolescente se com que, aos poucos, o autor se escolhas enquanto criança ou Emilio Lussu, entre outros. muda para a França, onde estuda aproxime mais da vida política, adolescente — não sabe em de- Além do texto original, a e tem mais liberdade para com- que se mostra muito conturba- terminada página o que aconte- edição conta também com um preender o mundo (e a socie- da no período pós-guerra. Com cerá nas páginas seguintes. prefácio de Joseph Roth —Um dade). Sua experiência termina a queda da monarquia, a popu- Essa escolha deixa o lei- apolítico vai ao Rechstag — e quando é deflagrada a Primeira lação depara-se com um espaço tor com uma grande sensação um texto escrito por Toller (Um Guerra Mundial, e ele, junto de vago que não sabe como preen- de acompanhar cada passo do olhar de 1933) no dia em que outros alemães, volta quase co- cher. Acontece então o que de- desenvolvimento do autor. Ve- seus livros foram queimados na mo fugitivo para seu país. pois foi chamado Revolução mos a progressão de suas ideias Alemanha em que o dramaturgo O momento delicado pelo Alemã: vários grupos lutam pe- e crenças aos poucos, vemos seus se pergunta: “Onde está a juven- qual o país passava acendeu no lo poder em um período muito erros e acertos, seu esclarecimen- tude da Europa?”. O texto, po- autor uma vontade de proteger curto de tempo. Esse período se to e falta de compreensão. É co- deroso em suas poucas páginas, sua nação — alistou-se volun- resolve com a consolidação da mo se víssemos a história sendo é encerrado com a seguinte frase: tariamente para o combate. Se República de Weimar, sucedida construída dia a dia. “quem se cala nesses tempos trai no início era animado e curioso, pelo regime nazista. Ainda que narrado da sua missão humana”. aos poucos foi se tornando céti- Durante esse período, perspectiva do autor, a autobio- Ao longo da narrati- co e cansado. Toller vê os fronts Toller luta pelas suas crenças (e grafia mostra o retrato de uma Toller vê os fronts de va, Toller reflete muito sobre de perto e narra casos impres- em alguns momentos se questio- época — todas as dores e ale- perto e narra casos a humanidade e o mundo que sionantes de dor e destruição. na sobre a validade de algumas grias de uma população e como impressionantes de construímos. Ainda que essas Aos poucos, a lógica de guer- delas) e chegou a ser presidente reagiram a tudo que lhes acon- reflexões sejam marcadas por ra passa a fazer menos e menos por seis dias da recém-criada Re- tecia. Por ter vivido momentos dor e destruição. seu tempo, elas extrapolam si- sentido para ele. pública Conselhista da Baviera. A tão específicos da história e tido Aos poucos, a lógica tuações pontuais e são válidas Se essa mudança já esta- falta de diálogo entre diferentes uma posição relativamente cen- de guerra passa a para vários outros momentos va em curso enquanto ele esta- grupos políticos é evidente; até a tral em vários deles, Toller ex- fazer menos e menos decisivos. Se livros essenciais va na guerra, é na volta que ela falta de esclarecimento da popu- plica as mudanças políticas com para entender a humanidade se concretiza. Depois de ser de- lação em saber como defender os clareza e subjetividade, dando sentido para ele. existem, esse é um deles. 32 | | maio de 2016

recebeu, no Brasil, o filme dirigi- do por Vicente Alves do Ó, com ilustrações: Carolina Vigna Dalila Carmo no papel da poetisa. O fiel séquito de leitores de Florbela, diga-se de passagem, não carece de edições nacionais de sua obra, ainda que muitas de qualidade discutível. Encon- tramos, nas grandes livrarias, volumes que trazem não apenas os poemas publicados no Livro de mágoas (1919), no Livro de “Soror Saudade” (1923) e nos póstumos Charneca em flor (1931) e Reliquiae (1931), mas também os livros em prosa — As máscaras do destino (1931) e O dominó preto (1982), ambos publicados após sua morte. Fe- lizmente, leitores mais exigentes não ficam desamparados: ainda é possível encontrar à venda exem- plares das bem cuidadas edições preparadas por Maria Lúcia Dal Farra, responsável também por excelentes volumes que trazem parte de sua correspondência e o Diário. Para além das frontei- ras brasileiras, vale a pena men- cionar um conjunto recente de publicações que vem ocupar um lugar privilegiado na bibliografia florbeliana: refiro-me à edição de suas obras completas a cuidado de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva, empreendimento ainda em curso, valioso tanto pe- lo tratamento dos textos quanto pelas notas sobre os poemas.

Tarefa complexa No que tange à bibliografia passiva, entramos em um territó- rio no qual separar o joio do trigo torna-se uma tarefa especialmen- te complexa. De um lado, há que se considerar que a figura de Florbela sempre foi capaz de causar uma forte impressão — seja na forma de um verdadei- ro fascínio, seja na forma de um inelutável estranhamento — so- bre quem a conheceu pessoal- mente, ou mesmo sobre quem se aproxima de sua efígie ou de mbora o recente sur- sua obra; daí os inúmeros rela- gimento de uma sé- tos produzidos por quem com rie de produções ela conviveu, nem sempre con- Eassociadas à vida e fiáveis, que permitem recompor à obra de Florbela Espanca te- figuras de traços por vezes con- nha voltado a lançar luzes sobre traditórios, mas que convergem o seu nome, seria impróprio fa- no reconhecimento de uma per- lar em termos de um resgate, ou Senhora sonalidade notavelmente forte e mesmo de um revival, em torno independente, capaz de afron- da autora de Charneca em flor, tar convenções sociais e de fa- por uma razão simples: nas últi- zer valer a sua vontade, quando mas décadas, o nome de Florbela necessário, contra tudo e contra jamais deixou de estar em evidên- todos, arcando altivamente com cia. Pode-se demonstrá-lo por as severas consequências disso meio de um experimento trivial: dos labirintos decorrentes. De outro lado, há basta lançar seu nome no Google, os inúmeros ensaios e estudos o que enseja o aparecimento de acadêmicos dedicados à produ- mais de meio milhão de resulta- A poesia de Florbela Espanca exige uma leitura ção florbeliana, que constituem dos — que, se visitados, revelam um terreno em que também é incontáveis páginas dedicadas a atenta e perspicaz, que não se renda às respostas fáceis necessário ingressar com muitos homenagear a autora, com di- cuidados. A par de títulos incon- reito à apresentação de peque- tornáveis para quaisquer estu- nas antologias pessoais (às vezes, Henrique Marques Samyn | Rio de Janeiro — RJ dos aprofundados sobre a obra livremente comentadas) ou de da autora do Livro de mágoas, montagens e desenhos criados a proliferam-se textos que ora en- partir do vasto acervo fotográfi- veredam por sendas marcadas co. Quem desejar outros indícios por leituras impressionísticas, pode percorrer os incontáveis ví- que na maior parte das vezes li- deos com leituras de seus poe- mitam-se a repetir lugares-co- mas disponíveis na internet, que muns da “mitologia” florbeliana alcançam milhares de visualiza- — tão alimentada, inclusive, por ções; ou observar a atenção que figuras significativas como Gui- maio de 2016 | | 33

do Battelli e Rui Guedes — ou tempos — por constituírem as- Embora tanto já mo um atributo feminino, o que “Ama-me doida, estonteadora- a reiterar concepções estereoti- pectos fundamentais da existên- não deixa de apresentar as mar- mente,/ Ó meu Amor! que o co- padas ainda presentes em muitos cia humana — são reelaborados tenha sido escrito cas do tempo — e o erotismo ração da gente/ É tão pequeno... trabalhos acerca da poesia de au- e repensados de forma singular sobre Florbela, — tema que, mais à frente, abor- e a vida, água a fugir...”, lemos toria feminina, que encontram e inovadora, o que faz com que muitas questões darei com mais detalhes. Nes- em Mocidade, soneto de Char- um terreno especialmente fértil seus textos dialoguem tanto com te momento, julgo importante neca em flor. Compreender o no que diz respeito à produção elementos característicos de seu solicitam novos destacar que a percepção de um intricado desenvolvimento do de Florbela Espanca. tempo quanto com outros que o exames que, vínculo entre o amor e a dor co- temário amoroso em Florbela A esse respeito, uma in- ultrapassam; uma literatura que, revisitando-as, mo especificamente feminino, constitui uma tarefa que deman- dagação aparentemente trivial em outras palavras, exige uma longe de manifestar-se nos limi- da atenção para as sutilezas de pode suscitar interessantes refle- leitura atenta e perspicaz, que possam preencher tes da estereotipia, está associada uma sensibilidade singular. xões: o que faz com que a obra não se renda às respostas fáceis. lacunas ou a uma profunda compreensão A percepção da experiên- florbeliana seja tão lida, mas fre- Por isso é que, embora tanto já desenvolver insights do lugar destinado à mulher na cia amorosa como um proces- quentemente tão mal lida? Pen- tenha sido escrito sobre Florbela, sociedade patriarcal, questão so que inevitavelmente envolve so que isso tende a ocorrer por muitas questões solicitam novos que permanecem acutilante para uma sensibilida- negociações e recusas para que dois motivos que, muitas vezes, exames que, revisitando-as, pos- insuficientemente de que sempre reclamou para si a autonomia individual não seja caminham juntos. O primeiro sam preencher lacunas ou desen- explorados. uma liberdade que lhe foi reite- sacrificada faz com que, ao amor, motivo é o já citado carisma de volver insights que permanecem radamente vetada. Cedo Florbe- esteja intrinsecamente ligado ou- Florbela Espanca: sua trajetó- insuficientemente explorados. la teve a percepção de que aquela tro tema central da poesia florbe- ria pessoal, associada a um vas- mesma experiência amorosa ofe- liana: a identidade. Sabendo-se to acervo iconográfico, propicia O amor recida às mulheres como instân- mulher, portanto sujeita a um uma enganosa familiaridade Talvez o tema que mais cia singular de prazer e libertação conjunto de opressões que so- com uma autora que notoria- continue a fascinar os leitores de encerrava, ao mesmo tempo, um bre ela incidia de forma específi- mente explorou temas biográfi- Florbela, o amor, é uma das ques- asfixiante aprisionamento. “O ca; ciente da capacidade — e do cos em sua poesia; isso acaba por tões que está longe de apresentar- casamento é brutal, como a pos- direito — de vivenciar o próprio gerar uma sensação de proximi- se, em sua produção literária, da se é sempre brutal, sempre!”, es- prazer, não apenas sujeitando-se dade que, ao fim, contamina a maneira chã como muitos insis- creveu na carta a Júlia Alves em ao desejo alheio, Florbela deli- leitura da produção literária. Pa- tem em perceber. Também aqui que abordou extensamente o as- beradamente se dedicou a um ra os que seguem por essa senda, é fácil tomar atalhos engano- sunto. “É o casamento um gri- profundo processo de questio- ler os escritos de Florbela é como sos: se a centralidade que o te- lhão de flores e risos? De acordo, namento subjetivo e de constru- ler o que escreveu uma amiga mário amoroso ocupa na lírica mas é sempre um grilhão”, afir- ção da identidade que de várias íntima, cujos dilemas e angús- florbeliana guarda relação com ma para a amiga, aconselhando: formas pode ser percebido, tan- tias são bastante conhecidos; es- expectativas e valores que a tra- “O melhor dos homens não vale to na vida quanto na obra. Os sa certeza de compreensão, por dição patriarcal estabeleceu para um fanatismo, creia-me”. testemunhos daqueles que com outro lado, enseja uma perigosa as mulheres, nada mais errôneo Em Florbela coexistiram ela conviveram mencionam tra- segurança, do que derivam in- do que assumir que Florbela in- a determinação de vivenciar o ços que, por vezes, sugerem uma terpretações arbitrárias, quando corporou-as passivamente; com amor como forma privilegiada atitude talvez calculada ou teatral não flagrantemente abusivas. O efeito, para além dos fatos que de acesso ao prazer e a elabora- — do “desdém marcado, de alma segundo motivo está relaciona- demonstram com mais ênfase o ção consciente de estratégias que funda” mencionado por José Go- do a questões estilísticas próprias modo como seu percurso bio- lhe permitissem salvaguardar a mes Ferreira à “canseira febril de da dicção florbeliana, presentes gráfico desafiou os parâmetros liberdade, estando aí o funda- quem porfia em se reduzir a cin- em um conjunto de elementos: epocais — sobretudo os divór- mento de uma concepção dialé- zas” referida por Amélia Vilar; uma linguagem frequentemente cios de Alberto Moutinho e An- tica que pode ser percebida em a isso soma-se a consciência da clara; o hábil manejo de um re- tónio Guimarães —, não faltam sua obra literária. Conquanto construção de uma imagem ex- gistro de tom confessional; o uso demonstrações evidentes de for- apresente atributos constantes, o terior, explícita na carta em que criativo de um amplo repertório mas de resistência por ela elabo- amor não se apresenta de forma Florbela reconhece, para Júlia Al- simbólico; o recurso a uma retó- radas, particularmente patentes estanque na lírica florbeliana. ves, o que denomina “sombra ne- rica eficiente e bem urdida — o na correspondência. Se Florbela “Beijos d’amor! P’ra quê?!... Tris- gra, enorme, medonha” do seu que pode gerar a impressão de entregou-se intensamente às ex- tes vaidades!/ Sonhos que logo caráter: a hipocrisia, meramen- que o texto de Florbela é sem- periências amorosas, não o fez são realidades,/ Que nos deixam te por parecer alegre às pessoas pre espontâneo e transparente, sem problematizá-las e questioná a alma como morta!”, escreve em quando, por dentro, guardava encerrando sentidos facilmen- -las, o que se reflete no tratamen- Para quê?!, do Livro de mágoas; uma “tristeza amarga e doentia”. te apreensíveis em uma leitura to lírico que dispensou ao tema. rápida e superficial. Quando se Como argutamente obser- associam esses dois motivos, es- vou Maria Lúcia Dal Farra, há tá preparada a armadilha: a obra dois elementos que surgem cons- de Florbela Espanca é analisada tantemente associados ao amor de forma reducionista e contin- na poesia florbeliana: a dor — gente; episódios biográficos ou compreendida pela poetisa co- supostos traços de sua persona- lidade são evocados para justi- ficar interpretações parciais ou descabidas; textos são descon- textualizados e lidos como se não se tratasse de uma autora que, ao longo de sua curta vida, de- dicou-se, com notável afinco, à construção de um projeto literá- rio denso e consistente. Com efeito, o que os mais sérios estudos sobre os escritos da autora de Reliquiae vêm reitera- damente demonstrando é que a produção de Florbela Espanca não pode ser encarada de forma ligeira ou superficial. A autora que, espantosamente, começou a escrever ainda na infância lo- grou construir, a despeito de seu desaparecimento precoce, um edifício literário amplo e com- plexo, em que tem importância tanto o que por ela foi aproveita- do nos livros quanto o que já nos primeiros projetos foi rejeitado; uma obra em que alguns dos te- mas centrais na arte de todos os 34 | | maio de 2016

As personae presentes nas obras literárias florbelianas ma- terializam a seriedade e a com- plexidade com que a autora lidou com as questões identitá- rias. Seja assumindo a máscara que por outro lhe foi concedi- da — “Irmã, Soror Saudade, me chamaste.../ E na minh’alma o nome iluminou-se/ Como um vitral ao sol, como se fosse/ A luz do próprio sonho que so- nhaste”, lemos no quarteto ini- cial de “Soror Saudade”, soneto dedicado a Américo Durão, res- ponsável por conferir à poetisa a alcunha que batizaria seu se- gundo livro —, seja criando pa- ra si mesma uma outra máscara — “Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?.../ Aonde estão os beijos que sonhaste,/ Maria das Quimeras, sem quimeras?” —, Florbela incessantemente se fez outras, o que por outro lado res- ponde a uma intenção artística: uma “estética da teatralidade”, na precisa conceituação de Re- nata Soares Junqueira.

O erotismo Também o erotismo, jus- tamente percebido como um dos componentes mais caracte- rísticos da poética florbeliana, não surge em sua obra de ma- neira arbitrária; a exemplo dos outros temas mencionados, tra- ilustração: Carolina Vigna ta-se de algo desenvolvido no âmbito de um projeto consis- tente. Como enfatizou Cláudia Pazos Alonso, é possível rastreá -lo até o Livro de mágoas, em que o corpo e o desejo já surgem mulher que, de forma conscien- a autora lemos em A minha dor; analisan- Se aqui abordei alguns deles, de inscritos em poemas como Lan- te e deliberada, busca fazer da Florbela Espanca do o tema da angústia na poesia forma necessariamente sucinta guidez ou Amiga — “Beija-me poesia uma via para a expressão de Florbela, Fabio Mario da Sil- — e sem considerar, por econo- as mãos, Amor, devagarinho.../ estética de um ímpeto que reco- (1894-1930), hoje reconhecida va enfatizou como a morte assu- mia, as produções em prosa —, Como se os dois nascêssemos nhece como seu. como uma das mais importantes me um sentido salvífico em um assim procedi com o mero fim poetisas portuguesas, só se tornou Reli- irmãos,/ Aves cantando, ao sol, A manifestação plena do conhecida após a morte, embora soneto como À morte, de de explicitar em que medida a no mesmo ninho...” —, ainda erotismo na obra de Florbela as- tenha publicado dois livros em vida quiae — “Dona Morte dos de- obra florbeliana vem atraindo que venha a alcançar uma ex- socia-se à construção de um âm- (Livro de mágoas, em 1919, e Livro dos de veludo,/ Fecha-me os abalizadas leituras que ilumi- pressão plena em Charneca em bito propício para que isso possa de “Soror Saudade”, em 1923), bem olhos que já viram tudo!/ Pren- nam alguns de seus aspectos fun- flor; é quando a subjetividade ocorrer, o que também corres- como poemas em diversos periódicos. de-me as asas que voaram tan- damentais, sem que entretanto poética, alçada à onipotência, vi- ponde ao desdobramento de um Parte desse reconhecimento deveu-se to!”. Ressalte-se, contudo, que apresentem respostas definitivas; vencia a feminilidade como afir- elemento presente já em seus a Guido Battelli, responsável pela perceber nisso um mero esca- não obstante, a impossibilidade mação suprema da sensualidade: primeiros escritos, a saber: a cria- publicação de suas primeiras obras pismo implica desconsiderar a de alcançar tais respostas é a mais “Trago dálias vermelhas no rega- ção de espaços intersticiais que póstumas (Charneca em flor, aguda consciência que a poeti- cabal demonstração de sua gran- ço.../ São os dedos do sol quan- permitam a eclosão de experiên- Juvenília e Reliquiae, em 1931), sa manifesta acerca dos dispo- deza como autora. do te abraço,/ Cravados no teu cias que não têm lugar no coti- que para difundir a obra de Florbela sitivos opressores que sobre ela Para além dos estereótipos explorou episódios biográficos peito como lanças!// E do meu diano ordinário. Essa suspensão e o suicídio, construindo uma incidem; nessa medida, cabe e das leituras superficiais, uma corpo os leves arabescos/ Vão-te dos princípios que estruturam imagem mítica ainda hoje vigente. considerar essa construção li- parte considerável da produção envolvendo em círculos dantes- a ordem própria da realidade Entre as outras obras póstumas, terária de âmbitos particulares, florbeliana permanece virtual- cos/ Felinamente, em voluptuo- vulgar opera como condição de destacam-se ainda os livros de caracterizados por uma subver- mente inexplorada; somando-se sas danças...”, lemos em Volúpia. possibilidade para a afirmação contos As máscaras do destino são da ordem vigente no real, a isso o interesse que continua Como a tradição crítica vem de um outro mundo, no qual (1931) e O dominó preto (1982). como a possível elaboração de a suscitar, pode-se afirmar que destacando, o tratamento que cessam de existir as restrições e zonas de resistência. Florbela continuará a ser fonte Florbela dispensa ao erotismo opressões costumeiramente im- Se consideramos que a de fascínio, bem como objeto constitui uma ruptura, quando postas. Assim se compreende a produção literária florbeliana co- de estudos que poderão ensejar analisado em relação à literatu- importância, na lírica florbelia- meçou a ser estudada de modo inovadoras leituras e perspectivas ra portuguesa de autoria femini- na, de temas como o sonho e a mais aprofundado e consistente sobre seu singular projeto literá- na até sua época. Não obstante, morte, que constituem vias de nos anos 1940, por vultos como rio. Se a tarefa de percorrer seus a compreensão do modo parti- acesso para esse espaço alterna- Jorge de Sena e José Régio, o que escritos — dos poemas aos con- cular como isso ocorre demanda tivo; contudo, importa perceber se percebe é que, sete décadas de- tos, do diário à correspondên- que se considere tanto a coerên- que esse questionamento metafí- pois — e a despeito da vastíssima cia — jamais deixará de encerrar cia de sua obra poética quanto sico apresenta diferentes nuances bibliografia desde então publica- assombrosos desafios, impor- seu modo pessoal de encarar as na obra de Florbela. da —, muitas questões permane- ta considerar que isso se deve relações afetivas. Analisando as Ana Luísa Vilela obser- cem em aberto, não apenas por ao modo como foram concebi- cartas por enviadas pela poeti- vou que, no Livro de mágoas, conta da complexidade inerente dos pela própria autora, que fez sa a António Guimarães, Maria a tematização da dor emerge da ao tratamento dispensado pe- da multiplicidade um caminho Lúcia Dal Farra observa que, se consciência de uma clivagem la poetisa aos temas que lhe fo- para lidar com as contradições o affair estendeu-se por cinco entre a realidade como vivida ram mais caros, mas também e aporias da condição humana. anos e meio, isso ocorreu devi- e sonhada pelo sujeito poéti- pela intricada maneira como se Talvez seja aplicável a Florbe- do à atração física e ao sexo. Em co, tornando-se para este uma entrelaçam, constituindo um te- la Espanca, afinal, uma alcunha síntese: a afirmação do desejo morada —“A minha Dor é um cido literário que abrange parte que ela jamais utilizou, e que não surge na lírica florbeliana convento. Há lírios/ Dum roxo considerável das dúvidas e dos poderia emprestar de certa len- de maneira contingente; trata- macerado de martírios,/ Tão be- dilemas que mais agudamente dária princesa cretense: a de “Se- se da expressão literária de uma los como nunca os viu alguém!”, afligem a consciência humana. nhora dos Labirintos”. maio de 2016 | | 35

tagonista: dar fim à corrupção acostumar com a estranheza, al- em Dejima, o que significa parar guns leitores patinarão. Mas o com entradas e saídas de mer- que afasta qualquer possibili- cadorias por meios pouco orto- dade de defeitos? A construção doxos. Afora essa singela tarefa, dos personagens e a força dos caberá a Jacob atualizar antigos diálogos. Tais aspectos, persona- relatórios. E o único “soldado gens fortes e bons diálogos, são O tempo no do passo certo” não tardará a cair suficientes para salvar qualquer em desgraça entre seus colegas. obra, aqui simplesmente se des- O cozinheiro Arie Grote tacam em meio a inúmeras ou- pergunta: “Que homem não é tras qualidades. o sujeito mais honesto do mun- Vale lembrar que o humor do aos próprios olhos?”. Logo, as permeia a narrativa. Em meio a práticas nada convencionais para questões históricas, abordagens centro da ilha auferir ganho não implicam de- filosóficas e religiosas, sátira e sonestidade, é algo normal, cor- muita ironia, o humor jamais é riqueiro. Por que abrir mão? deixado de lado. Os mil outonos de Jacob de Zoet é escrito Estamos diante de um Ocorrem várias mudanças “simples” cozinheiro, porém a bruscas na história, o que exige com fluidez, poesia e refinado humor maestria, a delicadeza dos deta- grande atenção do leitor. No en- lhes na descrição tornam, como tanto, esses “acidentes” proposi- disse anteriormente, todos per- tais não implicam consequências Luiz Horácio | Florianópolis – SC sonagens bastante importantes. condenáveis, tam­­pouco ocasio- Uma frase, uma atitude, a des- nam perda de pon­­tos na carteira crição a moda David Mitchell, do escritor. de um ato corriqueiro, não per- A metade seguinte do ro- elicadeza, aventura, São muitos personagens mitem a passagem discreta de mance guarda poucos fios de erudição, humor, e, é óbvio, a empatia não ocorre nenhum personagem de Os mil ligação com a primeira. Jacob ritmo incomum, com todos, mas a maneira como outonos de Jacob de Zoet. Já deixa de ser o protagonista e Dpositivamente, da é contada a história de cada um que o momento é dos perso- o papel é dividido entre Aiba- narrativa. Tudo na mesma cesta consegue tornar todos importan- nagens, vamos ao começo, pri- gawa Orito e Ugawa Uzaemon. à disposição do leitor. Mas na- tes. Os mil outonos de Jacob de meiro capítulo, este é o cenário Elas assumem o protagonismo da é conforme parece. Nas letras Zoet é uma obra extremamen- e o tempo de Aibagawa Orito, enquanto outros personagens pequenas do contrato estabeleci- te detalhista, o passado de ca- parteira em Nagasaki. Ela es- desaparecem para ressurgirem do entre leitor e obra as indefec- da personagem proeminente de Os mil outonos de tuda medicina em Dejima, seu mais adiante. Nada é despre- Jacob de Zoet tíveis “letrinhas” acusam a parte Dejima é detalhado exemplar- David Mitchell professor é um holandês, des- zado por David Mitchell. De- sanguinolenta da trama. Mesmo mente de modo a não aborrecer Trad.: Daniel Galera perta atenção e curiosidade por jima fica em segundo plano e assim vale o preço. o leitor, tampouco obstaculizar a Companhia das Letras ser a única mulher da turma. o Japão é mostrado pela lente A leitura de Os mil ou- fluidez da leitura. Tudo, impor- 562 págs. Adiante, ela deixará de lado o do mistério e das excentricida- tonos de Jacob de Zouet exige tante mais este detalhe, sob a ba- manto dos mistérios e excentri- des. Dejima configurava a mo- enorme disposição, atenção e tuta de um refinado humor. cidades para adquirir relevân- notonia, o vício estabelecido, o controle do leitor. A fluidez da Dizem que os homens se cia maior dentro da narrativa. Japão apresenta o movimento, escrita aliada à ansiedade de che- revelam numa mesa de jogo. Embora grande parte do livro impossível não relacionar com gar à página seguinte pode levar David Mitchell deve saber dis- seja destinada às questões polí- filmes de Akira Kurosawa, que ao desperdício e permitir maior so, alguns de seus personagens ticas, não chega a cair no tédio por sua vez remetem a Shakes- atenção à simples aventura em se reuniam para jogar cartas, e quase inevitável dessas cansati- peare, A balada de Narayama e detrimento da poesia que emol- nesse momento, às vezes em jan- vas abordagens. Logo a seguir também Rashomon, são influên- dura o suspense da narrativa de tares ou outras reuniões, eram o leitor se depara com a trama cias “visíveis” ao leitor; encon- David Mitchell. apresentadas características dos propriamente dita em que não tramos raptos, conspirações, O começo da trama não personagens. faltam as intrigas, as persegui- seitas. Infelizmente a aventu- é nada romântico, muito me- À exceção do médico, Ma- ções, lutas de samurais, sem a ra ocupa grande parte do livro, nos enternecedor, amigável. O rinus, que também era professor excentricidade que sentido te- dispensáveis segundo o juízo início espanta e prende o leitor, na faculdade de Medicina em ria ambientar no Japão?, seitas deste aprendiz. Momento Ses- com direito à ilustração do mo- Nagasaki, e os administradores, secretas e um tanto, quase exa- são da Tarde de David Mitchell. tivo disso tudo. O leitor se vê a maioria dos homens de Deji- O autor gerado, mas que sentido seria se Mas quem dentre vós apostará no Japão antigo, em meio a um ma não estava ali curtindo férias. David Mitchell não antevisse uma futura filma- que não foi escrito visando fu- parto difícil, sangrento, em que Trabalhos forçados era o prêmio. gem?, de aventuras. tura filmagem, quem? nenhum detalhe escapa. Isso Essa mesma ilha recebe Nasceu em 1969, em Southport, A narrativa impressio- E da maneira como trans­­ é oferecido ao leitor em breves Jacob de Zoet , um jovem es- na Inglaterra. Viveu anos no Japão na, aborda temas para todos os correm as mudanças em Os dez páginas, ainda restam em criturário ambicioso que preten- e atualmente mora na Irlanda gostos, corrupção e subornos, mil outonos de Jacob de Zoet, torno de quinhentos e cinquen- de fazer fortuna naquele fim de com a esposa e dois filhos. É autor poder e seus abusos; a influên- o leitor logo se depara com a de outros cinco romances. ta. O ano é 1799 na ilha arti- mundo, na expectativa de retor- cia das guerras napoleônicas chegada de uma fragata ingle- ficial de Dejima, cento e vinte nar, dentro de cinco anos, com na ilha, a parte da excentrici- sa, seu capitão é Penhaligon, metros de comprimento por se- dinheiro suficiente a lhe permitir dade concentra-se na medicina que padece com a gota, mes- tenta e cinco metros de largu- casar com Anna. da época, as religiões, a posição mo assim consegue esconder a ra, situada na baía de Nagasaki. A chegada de Jacob, po- da mulher na sociedade, as ce- doença da tripulação. A chega- Uma ponte faz a ligação. demos dizer, é a parte lenta da nas fortes resultam da opressão. da da fragata à costa de Dejima Nessa ilhota, os japoneses narrativa, abarca apresentação Aqui um aspecto bastante pecu- conduz a narrativa novamente confinaram um pequeno con- do protagonista, sua chegada, a liar da obra: a escravidão é apre- a este cenário. tingente da Companhia das Ín- receptividade, descrição do am- Trecho sentada pela ótica do europeu e Dentre os inúmeros as- dias Orientais, os derradeiros biente, “apresentação da ilha”, Os mil outonos de também pelo olhar e sentimen- pectos que fazem desta obra de parceiros comerciais estrangeiros costume e política locais. Embo- Jacob de Zoet to de um escravo. Mitchell um grande roman- do arquipélago. Essa comuni- ra lenta, não implica problema Cenas fortes, impactantes, ce, ressalta-se, excentricidades à dade forneceu ao Japão, duran- à narrativa, a força dos diálogos Quando as irmãs dizem que são distribuídas de forma equili- parte, o fato de trazer ao leitor te mais de dois séculos, algodão compensa qualquer espasmo de brada ao longo do livro, mas tal- muitos costumes japoneses do e seda. Dejima fora construída uma suposta monotonia. o Lar é muito, muito melhor vez a primeira, a do parto, seja século 19. O autor viveu muitos pelos portugueses, depois passou Com suavidade, o autor que um bordel, elas não estão insuperável. anos no Japão, e descreve, expli- a pertencer aos holandeses da opera a transição, lentamente querendo ser cruéis. Bem, E cá estou de volta à pri- ca, traz para a trama tais infor- Companhia Holandesa das Ín- conduz narrativa e leitor a uma pode ser que uma ou outra meira parte, chama atenção por mações sem o menor prejuízo ao dias Orientais. virada significativa na história. andar num ritmo bem diferente ritmo da narrativa. Durante umas cento e cin- Não é fácil a vida de Ja- queira, mas as outras não. da sequência da história. Talvez Ao final da leitura, ao re- quenta páginas cabe ao leitor a cob: uma relação tensa com os Para cada gueixa bem-sucedida a abordagem, predominante- fletir sobre o que foi lido, surge impressão de estar sendo cons- japoneses em que reina uma des- e disputada por clientes mente os aspectos comerciais de o verdadeiro protagonista de Os tantemente apresentado a per- confiança mútua. Como não ricos há quinhentas garotas Dejima, assim exija. Também mil outonos de Jacob de Zoet: sonagens, Jacob de Zoet parece bastasse, precisa administrar chama bastante atenção a opção o tempo. O tempo e suas nuan- carregá-los pela mão e mostrá conflitos com seus companhei- cuspidas e maltratadas, do autor pelos períodos curtos, ces adequadas às nossas possibili- -los ao estupefato leitor. ros europeus. A missão do pro- morrendo de doença. não digo que atrapalhe, mas até dades e exigências da vida. 36 | | maio de 2016

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Um mundo fora de prumo

Após o sucesso de Game of Thrones, a grande questão é saber para onde vai todo o reino criado por George R. R. Martin

Martim Vasques da Cunha | São Paulo - SP maio de 2016 | | 37

m meados de 2010, cas entre batalhas e alianças nup- A song of ice and fire fracasso em adaptar um roman- Samuel Beckett e Weiss tenta- quando dois jovens ciais; o filho mais velho, Robb, se já vendeu mais de 30 ce como As correções: Franzen va encontrar algum sentido no roteiristas chamados transformando em um senhor da podia tecer toda uma reflexão hermético Finnegans Wake, de EDavid Benioff e Dan guerra, rumo a um fim trágico; o milhões de exemplares, sobre a doença moral de ser um James Joyce. Portanto, quan- Weiss foram à casa do escritor caçula, Bran, ficando paraplégico muito antes de ser norte-americano no início do do, em 2010, Benioff mostrou George R. R. Martin convencê ao descobrir inadvertidamente transformada em século 21, mas isto simplesmen- a Weiss um exemplar da pri- -lo de que eram os únicos sujeitos um momento de fraqueza en- te não interessava quando tinha meira parte do ciclo de George no mundo que poderiam adaptar tre Cersei e Jaime quando estes Game of Thrones, de ser dramatizada em um mo- R. R. Martin, intitulado A ga- o seu gigantesco ciclo de roman- visitavam Winterfell; e o bastar- a série para a HBO vimento de câmera ou um cor- me of thrones (1996), ambos ces, A song of ice and fire [Uma do Snow, renegado pela esposa que David Benioff e te seco. Então, como Benioff e sabiam que poderiam adaptar canção de gelo e fogo], para uma amarga de Ned, Catelyn (porque Weiss convenceriam a HBO a aquele material literário com al- série de televisão no canal HBO. o faz lembrar da ausência tempo- Dan Weiss finalmente investir milhões de dólares em guma facilidade. Afinal, assim Ele apenas os escutou com pa- rária de razão do honrado mari- conseguiram lançar e uma série de TV baseada em li- como Joyce, os livros de Martin ciência e, assim que os dois pa- do) indo para o extremo norte do que se tornou um outro vros de fantasia que tinham uma não param de crescer em com- raram de falar, perguntou com continente, onde ficam as “sen- trama que não parava de crescer? plexidade e em detalhismo, num a maior simplicidade possível: tinelas do muro” — um lugar fenômeno midiático. Muito simples: os dois exagero que muitas vezes nos faz “Quem é a mãe de Jon Snow?”. congelante em que encontramos venderam o produto como se perguntar sobre a sua sanidade Para quem não vive no Pla- os verdadeiros guardas de Wes- fosse um “The Sopranos na Ter- mental; e como Beckett, Mar- neta Terra, Jon Snow é um dos teros e que, pouco a pouco, são ra Média” — uma referência tin possui a mesma visão amarga principais personagens criados os únicos que percebem o ver- ao mundo criado por J. R. R. sobre a natureza humana, defor- na monstruosa série de histórias dadeiro perigo que se aproxima: Tolkien para o seu memorável mada pelas lutas de poder, pelo que saíram da mente igualmen- uma multidão de mortos vivos épico O Senhor dos Anéis, so- vazio existencial e tendo apenas te delirante de Martin, compos- que antes eram conhecidos como mada à extrema violência dos um fiapo de honra para se apoiar ta por cinco romances que têm, os “White Walkers” e que estão mafiosos que foram criados por em um mundo que estaria sain- em média, entre 800 e 900 pági- prestes a invadir sem aviso o con- David Chase. do fora do prumo. nas — e sem data para terminar, tinente inteiro. Benioff já tinha experiên- com mais dois livros para sair cia em fazer esse tipo de venda Dificuldades nas livrarias e satisfazer a curio- Acertaram na mosca quando adaptou nada mais que Contudo, na hora de trans- sidade dos leitores que querem Eis aqui um cenário para a Ilíada, de Homero, para o ar- formar o primeiro livro em um saber como terminará esse ciclo. uma guerra civil sem preceden- rasa-quarteirão Troia (2004), em episódio-piloto para a HBO, no- Snow é o filho bastardo de tes — e que Martin faz questão que Brad Pitt interpretava nin- vamente as coisas ficaram com- Ned Stark, lorde do condado de de descrever em detalhes, capri- guém menos que Aquiles. Vá- plicadas. Por mais que Benioff e Winterfell, um dos únicos lugares chando no realismo violento e rios críticos reclamaram da falta Weiss se inspirassem visualmente, onde ainda existem honra e de- na sexualidade grotesca. Con- de fidelidade do filme em relação por exemplo, nas obras de Aki- cência no continente perturbado tudo, o grande mistério de todo aos eventos narrados pelo vate ra Kurosawa para construir a at- e pervertido de Westeros, com- esse ciclo é aquele singelo deta- cego, mas isto é típico de quem mosfera ameaçadora de Westeros posto por sete reinos que só não lhe que ele perguntou a Benioff não entendeu (ou nunca leu) Le (com citações a Ran, Trono man- se destroem entre si porque vivem e a Weiss: Quem era a mãe do Journal d’un curé du campagne e o chado de sangue e ), sob a mão de ferro de Robert Ba- filho bastardo de Ned Stark? estilo de Robert Bresson, o famoso eles sequer sabiam mostrar ao es- ratheon, um rei que não deixa na- Os dois olharam entre si e ten- ensaio de Andre Bazin sobre as pectador que Cersei e Jaime eram da a dever a um Henrique VIII, taram uma resposta. Por incrí- dificuldades de se adaptar uma irmãos e amantes ao mesmo tem- com sua tendência para devorar vel que pareça, acertaram — e obra literária para o meio cine- po — justamente um detalhe javalis e fornicar jovens prostitu- Martin lhes deu a benção para matográfico. Partindo de uma que, como sabemos, é o que im- tas — e que, graças a uma aliança vender a série à HBO. análise exaustiva do filmeDiá - pulsiona toda a trama. Resultado: de casamento com a família mais O problema era agora con- rio de um pároco de aldeia (diri- foram obrigados a refazer todas as poderosa de Westeros, os Lannis- vencer o canal de televisão a ca- gido por Bresson e baseado no cenas já filmadas, inclusive com ters, pouco se importa com o que bo que era possível transformar romance de George Bernanos), novos atores, num daqueles fei- acontecerá com o seu poder se al- uma obra literária em um produ- Bazin mostra que a verdadeira tos únicos na história da televisão gum dia ele morrer. to comercial bem-sucedido. As infidelidade a um grande livro se em que o que seria uma bomba Ocorre que Baratheon fa- experiências anteriores da empre- deve justamente quando o reali- se transformou em um inespe- lece (aparentemente morto por sa não tinham dado certo: dois zador tenta reproduzir todos os rado sucesso — e que também um javali que comeria no jantar, anos antes, alguém teve a ideia fatos narrados na página escri- mostram os caminhos labirínti- durante uma caçada). Sua espo- inusitada de chamar o cineas- ta. O crítico de cinema francês cos de se adaptar uma obra literá- sa Cersei, uma donzela que é a ta Noel Baumbach para adaptar defende uma abordagem mais ria complicada para um meio que libido dominandi por excelência, o romance As correções, de Jo- pragmática para ambos os la- aparentemente só aceita superfí- tenta manter a sua continuidade nathan Franzen (2000), ao meio dos: o diretor precisa alterar os cies como o cinema e a televisão. na linha sucessória com seu fi- audiovisual. Depois de um ano e eventos contados no romance, George R. R. Martin lho, o psicopata infantil Joffrey, meio de escrita e reescrita dos ro- mesmo que seja de forma radi- provavelmente riu por den- além de esconder a qualquer cus- teiros (supervisionados pelo pró- cal, para ser extremamente fiel tro quando soube das peripé- to da população que todos os seus prio Franzen), da filmagem de ao espírito do escritor que deu a cias de Benioff e Weiss. Não à herdeiros são, na verdade, resul- um piloto de duas horas que ti- semente da película — no caso, toa, ele fugiu de Hollywood e tado do seu relacionamento in- nha no elenco atores do calibre de a história e o enredo. concebeu A song of ice and fi- cestuoso com o irmão Jaime, um Ewan McGregor e Dianne West, Foi o que David Benio- re justamente por causa disso: cavaleiro conhecido por ter assas- a HBO percebeu que a emprei- ff tentou fazer com Homero em o cinema não conseguia alcan- sinado o rei anterior de Westeros, tada não vingaria. Afinal, como Troia: alterou a ordem de algumas çar os seus sonhos mais loucos Aegon Targaryen, quando sua adaptar as sutilezas literárias de sequencias, mudou o compor- quando ele punha o que que- função primeira era justamente um romance repleto de detalhes, tamento de vários personagens, ria no papel. Martin já era um protegê-lo — dando a brecha pa- ramificações e digressões para um para não trair esses épicos, que nome reconhecido no gênero ra que Robert Baratheon conse- gênero de narrativa em que o im- mostravam o mundo como uma de livros de fantasia (tendo pu- guisse o trono com os Lannisters. portante é o “mostrar, não apenas gigantesca guerra em que a bata- blicado o perturbador Dying Ao ser chamado para a ca- contar” (show, don’t tell)? lha entre os homens é apenas o of the Light, uma novela apo- pital do continente, King’s Lan- Apesar do sucesso recen- resultado trágico de não aceita- calíptica) — e também era um ding, Ned Stark tenta ajudar te das séries de TV da chamada rem (e de não perceberem) a ba- roteirista renomado no uni- Robert como seu amigo de lon- “Era de Ouro” ter uma grande talha entre os deuses do Olimpo. verso dos filmes de terror e de ga data, mas, com a morte do dívida à estrutura literária dos Infelizmente, o filme não ficção-científica, tendo escrito rei, suspeita que houve um com- seus arcos dramáticos — como foi bem-sucedido artisticamen- para séries como Twilight Zone plô para assassiná-lo e descobre a ficam evidentes ao olharmos os te devido a uma direção canhes- e ter sido showrunner da série A trama incestuosa de Cersei e Jai- trabalhos de David Chase, Da- tra de Wolfgang Petersen, mas bela e a fera, um enlatado de fil- me. Não é necessário dizer que a vid Milch, David Simon, Mat- seu relativo sucesso financeiro me B que misturava Jean Coc- rainha consegue mandá-lo para thew Weiner e Vince Gilligan permitiu a Benioff que alçasse teau e O exterminador do futuro. o cadafalso e, sob a ordem sur- —, ainda assim roteiristas sem- voos mais arriscados. Foi quan- Ao perceber que os custos para preendente de Joffrey, provoca a pre pensam em termos de ima- do reencontrou seu amigo de se construir qualquer coisa que sua decapitação. O resultado dis- gem, e não de um modo que faculdade, Dan Weiss. Eles já se saísse da sua cabeça eram ele- so é a dispersão da família Stark relacione as palavras e a imagi- conheciam na época em que es- vadíssimos, Martin refugiou-se por Westeros, com as duas me- nação fértil do leitor, para de- tudavam literatura inglesa em na sua casa em Santa Monica, ninas, a dócil Sansa e a rebelde pois concretizá-los diante das Dublin, onde Benioff escrevia Los Angeles, e passou a estudar Arya, sendo tratadas como bone- retinas do espectador. Por isso, o uma tese sobre o impenetrável meticulosamente o período da 38 | | maio de 2016

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Guerra das Rosas, ocorrida na uso sublime do ponto de vista de Mas, no emaranhado profunda sobre a honra em um fator, relacionando-a ora com Idade Média inglesa, para então cada personagem para narrar o das lutas pelo poder mundo completamente domi- o problema do Mal, ora com o criar a sua trilogia que, de acor- drama de um único e gigantesco nado pelo desejo de poder — al- drama da redenção. Eis o pro- do com seus planos, seria muito continente — um recurso que que afetam essa go semelhante aos nossos séculos blema com a saga de Martin: mais épica e cruel do que O Se- Martin aprendeu com ninguém sociedade como um 20 e 21. Afinal, é por causa da ele acredita na honra pela honra nhor dos Anéis, de Tolkien. menos que William Faulkner de todo, indo do mais honra que Ned Stark foi a Win- — e nada mais. O mundo de A A trilogia se transformou Enquanto agonizo (1929). terfell ajudar o seu amigo Ro- song of ice and fire namora com em um ciclo de sete romances A referência não é aleató- reles serviçal até o bert Baretheon; é por causa da o niilismo, mas também não o — e a sua intenção de ultrapas- ria: tanto Martin como Faulk- cortesão da elite, honra que ele morre; é por cau- abraça por completo — o que sar Tolkien só foi alcançada em ner têm a pretensão de criar um Martin parece mais sa dela que sua família inteira é indica que, ao querer controlar termos financeiros, mas não no cosmos particular em que ambos despedaçada; é a honra que faz o seu mundo em todos os deta- aspecto artístico. A song of ice são os únicos deuses, onde a lu- interessado em mostrar os Lannister quererem manter lhes, Martin se deixa contami- and fire já vendeu mais de 30 ta pelo poder é um dos elemen- como a honra é usada, o poder a qualquer custo; é ela nar pelo mesmo desejo de poder milhões de exemplares, muito tos centrais entre os personagens abusada e pervertida que faz Jon Snow se transformar que está a descrever e se acovarda antes de ser transformada em — senão o principal —, provo- em um “sentinela do muro” para diante dos temas realmente im- Game of Thrones, a série para a cando assim a sensação de ins- para os propósitos de recuperá-la diante do mundo e portantes que deveria abordar. HBO que David Benioff e Dan tabilidade em que ninguém está cada personagem. mostrar ao pai que ele é alguém, Na hora de adaptar essas Weiss finalmente conseguiram a salvo, uma instabilidade que, não um mero bastardo; e é a nuances para a televisão, David lançar e que se tornou um outro muitas vezes, não preserva se- honra que faz Martin criar um Benioff e Dan Weiss decidiram fenômeno midiático. Contudo, quer o herói ou a heroína com dos personagens mais queridos transformar o mundo de fanta- mesmo com a perfeição técnica quem o leitor mais se espelha. da saga — e que deixamos por sia mortal de Martin em uma que Martin possui na forma co- Contudo, Faulkner mantinha último para que você perceba a espécie de variação da tragédia mo conta a sua complexa histó- o seu mundo em um contro- complexidade da história a ser grega — na mesma vertente que ria, ele não se preocupa ter duas le orgânico, permitindo que o narrada —, a princesa Daenerys Benioff fez com Homero ao es- coisas que Tolkien fazia questão universo do condado de Yok- Targeryan, filha de Aegon, o rei crever o roteiro de Troia. Dessa em seus livros: uma percepção napatawpha respirasse de uma deposto por Baratheon, e que, maneira, o que antes era uma re- aguçada do problema do Mal e maneira em que o leitor perce- ao descobrir os seus poderes so- flexão pretensiosa sobre a honra uma abertura para uma verda- besse que o escritor desejava que brenaturais para dominar três tornou-se um veículo divertido deira busca pela transcendência. o mundo criado nas páginas dos dragões mágicos que ninguém repleto de peitos e bundas, espa- E não se trata de dizer que romances fosse um espelho do mais supunha existir, pretende das com vísceras e dragões sur- Martin é superior ou inferior a nosso; já Martin usa a técnica voltar para King’s Landing e re- gindo no meio das cenas como Tolkien. Trata-se apenas de com- dos pontos de vista com a inten- cuperar o trono saqueado. se fossem novos deus ex machi- parar os dois autores naquilo ção de estilhaçar a narrativa gi- Assim como Jon Snow, na. O épico trágico de Homero que ambos quiseram realizar na gantesca, para controlar o drama que simboliza o gelo, Daenerys é ainda tem alguma eficácia no ci- maratona da competição artísti- a qualquer custo — e o resulta- o fogo que pode salvar Westeros nema, por mais equivocada que ca: o intento de criar um mun- do não passa de uma mágica ao da ameaça iminente dos White possa ser a sua transposição pa- do completo, total, em que cada manter o suspense e brincar com Walkers. Mas, no emaranhado ra a tela, porque o poeta grego evento tem uma consequência as reviravoltas da luta pelo poder das lutas pelo poder que afetam foi o primeiro a fazer aquilo que numa rede sistêmica de fatos trá- que todos nós queremos saber essa sociedade como um todo, depois William Faulkner faria gicos onde o ser humano se sente como terminarão. indo do mais reles serviçal até o em seus romances: deixou o seu abandonado por todos os lados. cortesão da elite, Martin parece mundo se abrir a uma realidade Neste ponto, Martin parece ser Desejo de poder mais interessado em mostrar co- que está além dos meios huma- mais bem sucedido porque ele Esta futilidade dramática mo a honra é usada, abusada e nos e que, no fim, percebemos parece ter mais controle sobre de Martin parece ser compen- pervertida para os propósitos de que era uma guerra entre os ho- a sua criação. Mas é uma ilusão sada pelo segundo artifício — o cada personagem. E aqui pode- mens e os deuses. Mas, pelo me- — e o truque ocorre por causa de fazer o leitor acreditar que o mos recapturar o elo que o liga a nos neste caso, podíamos nos de dois artifícios que Martin usa seu ciclo de romances seria real- Tolkien, que também falava so- relacionar com esses últimos — para convencer o leitor de que mente sobre temas sérios. No bre a honra no seu “crepúsculo até pela simples razão de que, ao aquilo que lê tem algum sentido. caso, tudo leva a crer que A song dos deuses” da Terra Média — cabo, esses mesmos deuses sem- O primeiro artifício é o of ice and fire é uma meditação mas a tinha subordinada a outro pre quiseram nos amparar. maio de 2016 | | 39

Não há nada disso, nem ças radicais que fizeram para A partir da sexta por Tolkien e C. S. Lewis, pas- onde a honra não vale nada por- nos livros de Martin, mui- manter a fidelidade ao espíri- temporada, a série saram a sofrer de uma reviravol- que a abertura para a transcen- to menos na série de Benioff e to do texto (ou talvez por isso ta de sensibilidades, pervertendo dência tornou-se um bibelô de Weiss. A tragédia parece ser gra- mesmo), eles chegaram agora ultrapassou os eventos assim a educação sentimental das antiquário e a preocupação pelo tuita porque qualquer amostra a um impasse que atormenta dos livros, e agora crianças e dos jovens, que forma- problema do Mal virou uma abs- de amparo divino não passa de ninguém menos que o próprio tanto o escritor como vam o seu caráter ao lerem, no tração com efeitos arrasadores na efeito especial, a magia é um re- Martin: a partir da sexta tem- passado, histórias infantojuvenis nossa imaginação. curso audiovisual semelhante a porada, a série ultrapassou os os seus adaptadores tradicionais. Para ele, o símbolo O resultado foi a encruzi- um videogame e a sensação de eventos dos livros, e agora tanto são vítimas da principal dessa transformação é lhada atual na arte de contar his- inevitabilidade torna-se um ru- o escritor como os seus adapta- instabilidade que justamente o dragão. Antes, es- tórias, uma encruzilhada que já far de tambores sinistros que dores são vítimas da instabilida- te era reconhecido como a repre- tinha sido percebida na “corro- deturpa a educação sentimental de que tanto endeusaram. Ou tanto endeusaram. sentação do Mal, do demônio, são do caráter” dramatizada em do leitor e do espectador, dei- seja, ninguém sabe o que acon- Ou seja, ninguém que deveria ser destruído, por Breaking bad, de Vince Gilligan xando-o, na verdade, para ver tecerá porque ninguém tem a sabe o que acontecerá exemplo, pela espada de São Jor- e antecipada nas séries de Da- o nosso mundo pelo prisma da mínima ideia de como termina- ge; agora, com as narrativas da vid Chase, David Milch, Da- perspectiva satânica. rá o ciclo A song of ice and fire. porque ninguém tem a modernidade, o dragão foi in- vid Simon e Matthew Weiner. Esta última afirmação não Isso pode parecer divertido mínima ideia de como serido como uma força sobrena- Ao seguirem essa mesma cor- é um exagero. A prova disso é o para uma campanha de marke- terminará o ciclo A tural que tem suas vantagens de rente, Martin, Benioff e Weiss fato de que, nem Martin, mui- ting, mas guarda um segredo aperfeiçoar a humanidade — al- fracassaram em sua ambição de to menos Benioff e Weiss, sa- mais sinistro, que nem o próprio song of ice and fire. go que ocorre, em menor grau, criar um cosmos particular por- bem como terminarão a saga Martin consiga perceber — e daí nos épicos de fantasia de Tolkien que eles deixaram os dragões to- que escolheram narrar — o que vem a sua paralisia para escrever e Lewis, mas que depois é con- marem conta da honra solitária provoca apreensão nos fãs mais os volumes finais da saga. Talvez trabalanceado por uma profun- que tanto defenderam. O que exaltados. No caso do primeiro, a chave para perceber definitiva- da busca pela transcendência. sobrou agora é apenas o suces- fica nítido que, depois de três mente esta confusão de sensibili- O’Brien garante que isso foi o so comercial garantido — e, pa- romances perfeitos (A game of dade satânica (em que a inversão que destruiu a sensibilidade mo- ra nós, uma expectativa boba de thrones, A clash of kings [1998] de princípios parece ser a nor- ral das gerações mais recentes, ao finalmente sabermos quem foi a e A storm of swords [2000]), a ma) se encontre na personagem inculcar um relativismo meta- mãe de Jon Snow. É muito pou- partir do quarto volume do ci- Daenerys Targeryan. Ao ser a es- físico em que o Mal fica emba- co para quem queria ser nada clo — A feast for crows [Um colhida para dominar os dragões ralhado com o Bem objetivo, e mais nada menos que o deus do festim para os corvos, 2005] mágicos, que faziam parte de um Deus passa a ser tratado como se seu próprio mundo. —, de que ele simplesmente se passado que muitos acreditavam fosse um apêndice do Diabo. deixou perder nas várias histó- não existir mais em Westeros, ela Quando George R. R. rias do seu cosmos particular; e parece ser a salvadora do reino, Martin coloca uma princesa in- no volume seguinte, A dance of mas Martin parece não entender justiçada, com três dragões a dragons [Uma dança para os que, no fundo, Daenerys será tiracolo, para ser a verdadeira he- dragões, 2011], que deveria se também a destruidora definitiva roína da sua saga, é provável que passar ao mesmo tempo do livro do mundo que criou no papel. ele mal saiba que foi uma das ví- anterior, é mais do que eviden- timas dessa armadilha artística te que o próprio Martin não sa- Reviravolta diagnosticada por O’Brien. E be mais o que fazer — e que o de sensibilidades eis aqui a razão principal do seu melhor, talvez, era ter um editor Em um livro instigan- impasse: ele não sabe mais con- que cortasse a maioria das des- te chamado A landscape with tar a sua história porque foi des- crições inúteis, dos diálogos in- dragons [Uma paisagem com truído pela sensibilidade satânica NOTA chados e das cenas que estão ali dragões], o escritor canadense que ajudou a promover incons- Este é o quinto texto de uma sequencia muito mais pela indulgência do Michael D. O’Brien (autor do cientemente em seus livros. Por de seis ensaios que abordará como o autor do que pela função de fa- formidável Padre Elias) argu- consequência, Benioff e Weiss sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado ao uso da zer a trama avançar. menta que os livros de fantasia também foram ao fundo do literatura na criação dos seus enredos e Já no caso dos dois rotei- mais famosos do século 20, prin- mesmo poço — e o que sobrou de seus episódios. Em julho, texto sobre ristas, mesmo com as mudan- cipalmente os que foram escritos foi um mundo fora do prumo True detective, de Nic Pizzolato. 40 | | maio de 2016 A segunda metamorfose

Nelson Patriota

ilustração: FP Rodrigues

Não parece que ao retirar esgarçadas deixadas como sinais tar seu interior na busca de uma produzia silvos noturnos audí- a mobília estamos lhe mostrando da passagem do tempo. Perspi- explicação para alguma indaga- veis aos seus ouvidos aperfeiçoa- que perdemos a esperança de que caz, a senhora Ana não deixou ção que o perseguia desde então. dos por prolongados exercícios ele um dia se cure e que o esta- de notar que, ao menos dessa Sabia que naquele quarto jazia musicais. Desde então, possuir mos simplesmente abandonando vez, o marido parecia exagerar agora o cadáver de um inseto uma audição invejável passou a à própria sorte? na exibição do tédio que, nor- que, durante alguns dias, guar- ser para ela um fardo intolerá- Pergunta da mãe em A me- malmente, o caracterizava quan- dou certa semelhança com o fi- vel; pior, um mal do qual não tamorfose, de Franz Kafka. do no lar, e conjecturou que lho, e cujo comportamento era conseguia se defender — sobre- isso deveria ter algo a ver com a capaz de interpretar como dita- tudo quando ela se recolhia ao I. metamorfose que acometera o do por propósitos humanos. Ao silêncio do seu quarto à noite. Quando a família Samás filho Gregório, em quem o ve- menos nos primeiros dias subse- De que lhe valia agora que seu retornou do passeio que fez ao lho comerciário depositava suas quentes à sua metamorfose, co- professor de solfejo tivesse clas- campo, logo depois da morte mais fundas esperanças de uma mo se sua humanidade relutasse sificado seu ouvido de absoluto, do filho Gregório, vinha alegre velhice livre de cuidados mate- em dar-se conta do que sucedera perante todos os seus colegas de e confiante. O ar do campo pa- riais. Ultimamente, porém, o ao seu corpo e entrasse em luta classe, condição que lhe abriria recia ter retemperado as ener- tédio e o aborrecimento do ma- aberta pela recuperação de sua as portas dos melhores institutos gias da senhora Ana, apesar do rido ganharam um ingredien- antiga condição. de música, em outras circuns- chiado no peito que a perseguia te extra, cuja causa ela atribuía tâncias? De que servia ter um como um mau presságio, resul- ao trabalho de garçom que ar- II. ouvido tão apurado se à noite tando quase sempre em crises ranjara num restaurante subur- Desde o dia em que tomou ele era invadido por sons capa- de asma que pareciam às vezes bano. Tratava-se de uma rotina ciência da fatalidade, o pai se zes de aterrorizar o mais deste- asfixiá-la. O senhor Samás, por extenuante para alguém da ida- obstinava em permanecer na sua mido dos homens? sua vez, trazia do passeio sabo- de dele, como denotava o sem- poltrona, olhos fixos na fecha- Não obstante a gravida- rosas historietas remanescentes blante desfigurado do marido ao dura da porta à sua frente, como de desses fatos, a pequena Go- das lembranças juvenis. Mesmo chegar em casa, à noite, e que só na iminência de assistir a algum rete não ousava comentar esse a pequena Gorete assobiava tri- aos poucos se desanuviava, mas fenômeno novo e, certamente, assunto com os pais. Temia que nados de canções recém-apren- nunca de todo. Mas o que fazer, assustador. Era ali também on- eles rechaçassem suas suspeitas, didas em contato com garotas pensava a velha mulher, se o fi- de fazia as três refeições diárias. creditando-as à sua imaginação camponesas sorridentes e gentis. lho, que era o provedor de tudo Só tarde da noite é que consentia juvenil e a sua natural inclina- Ao cruzar a soleira de ca- na família, fora forçado a aban- em levantar-se, quando se dava ção para fantasiar a realidade. No sa, porém, o velho Samás recu- donar seu emprego de caixeiro por vencido ante os pedidos cada fundo, ela sabia que eles temiam perou de imediato o ar casmurro viajante, ficando incapacitado vez mais insistentes das mulheres algo pior. Por exemplo: que suas que lhe era habitual. As anedo- para desempenhar qualquer ou- para que se recolhesse à cama. supostas escutas noturnas fossem tas contadas com tanta verve tra atividade produtiva? Mas o que jazia presen- sintomas de uma segunda meta- a curiosos e atentos campone- Paciência!, disse a velha se- temente naquele quarto, agora morfose do ser que, um dia, fo- ses pareciam agora tão insossas nhora, são os desígnios de Deus. que o inseto estava morto, con- ra seu irmão Gregório, e que se quanto o surrado capote que o Assim, resolveu que deixaria a forme a filha dissera na véspe- mostrasse ainda mais assustador protegera de resfriar-se na ca- cargo do marido achar o mo- ra do passeio ao campo, depois do que o primeiro. Por outro la- minhada ao ar livre, e que, num mento adequado para encerrar de uma averiguação que a ocu- do, ela começava a ver que asso- gesto automático, atirou no ca- sua birra, afinal, o passeio tivera para durante toda uma manhã? ciavam cada vez menos o cadáver bide triplo, junto à cristaleira da sido excelente, divertido mesmo, A resposta teria de ser dada pe- do inseto ao filho que tiveram sala de estar. A mudança de hu- conforme ela comentava entre la própria filha, pois ele não se um dia, e o comparavam cada mor do chefe de família não pas- sussurros com a pequena Gorete. atreveria a tocar na maçaneta da vez mais a um monstro de que só sou despercebida à mulher e à Foi aí que, sem mesmo porta do quarto que absorvia conseguiam sentir repulsa. filha, provocando de pronto um dar-se conta, a senhora Ana se tão intensamente sua atenção. Apesar disso, ele não dei- pesado silêncio no entorno. Go- voltou discretamente para o Quem poderia prever o que ja- xava de exercer uma espécie de rete e a mãe logo se recolheram canto em penumbra na qual o zia ali? Quem garantiria que o fascínio mórbido sobre a peque- aos velhos hábitos silenciosos de marido ressonava e percebeu inseto, agora dado como mor- na Gorete, até porque seu quarto folhear velhas revistas que jaziam que não, ele não estava ador- to, não sofrera uma metamorfo- era contíguo ao do desditoso ir- esparramadas sobre uma cesta de mecido. Nem mesmo dormita- se ainda mais medonha do que a mão. Mas que fazer? Não podia vime reluzente, que a nova em- va, como habitualmente o fazia primeira? O pai sentia calafrios propor aos pais que trocassem pregada tivera o cuidado de re- nessa hora da noite. Na verdade, só em pensar na descrição que de quarto com ela, sob pena de tirar do quarto de despejos na seus olhos estavam dirigidos pa- lhe fizera a filha do espectro que cometer sacrilégio aos deveres fi- véspera e, depois de a polir, colo- ra a porta do quarto de Gregório vira, ainda vivo, portanto, num liais. Por acaso, ousaria ela que- cou-a no centro da mesa da sala. — ou do que restara dele. vislumbre do qual se arrepende- rer afrontar a venerável velhice A atenta senhora Samás Não se tratava, todavia, ra amargamente. de seus genitores, colocando-os constatou que o ambiente do- de um comportamento novo É que, embora desse como sob a influência maligna de um méstico requeria cuidados ex- que o senhor Samás apresenta- certo que o irmão-inseto estava monstro insepulto? O que os vi- tremos devido ao modo como o va, por motivo disso ou daqui- morto, devido ao silêncio que zinhos e os amigos iriam pensar marido literalmente desabou, ao lo outro. Pelo contrário, desde passou a reinar em seu quarto de uma filha tão cruel? chegar, sobre a poltrona de fel- que perdera o filho para algo es- durante o dia, ela não conseguia Diante dessas razões, a tro escuro. Era um móvel anti- tranho e inominável, mantinha descartar completamente a sus- pequena Gorete procurava evi- go, levando-se em consideração a poltrona sempre voltada para peita de que o inseto que repou- tar no possível qualquer tipo de que apresentava pequenas áreas o seu quarto, como a perscru- sava no quarto ao lado do seu conflito com os pais enquan- maio de 2016 | | 41

numa adesão mecânica ao mari- parecia dormir silenciosamente do, como se temesse que a filha, sob um lençol de linho branco aproveitando alguma hesitação que lhe deixava apenas a cabeça de sua parte, explorasse de al- a descoberto. Mas não de todo, gum modo seu ato de fraqueza. pois uma nesga do lençol cobria A pequena Gorete, porém, sa- parcialmente seus olhos. bia que o mal maior já fora con- Nesse instante, a atenção sumado, uma vez que nem um da pequena Gorete foi desvia- único vizinho os visitava desde a da por algo que se mexeu entre fatídica metamorfose. os chinelos de Gregório, alinha- Mas ela conhecia bem seus dos no assoalho junto à cama. pais para pensar que perguntas Era uma repulsiva barata que, dessa natureza iriam demovê-los surpreendida pela entrada da do tom negacionista quando menina, logo se esgueirou e de- se tratava daquele assunto irre- sapareceu na sombra produzi- soluto e que, a depender deles, da pelo lastro da cama. A visão assim permaneceria. A pequena do inseto fez com que a peque- Gorete sabia que quando solici- na Gorete desse um grito e, em tados a dizer o que achavam da seguida, acordasse. Como no ausência de visitas à casa, de uns sonho, a manhã se infiltrava pe- tempos para cá, a senhora Sa- las frestas da veneziana do seu más responderia sempre, embo- quarto. Mas a lembrança ainda ra cada vez com menos certeza fresca do irmão dormindo sua- na voz, que não havia pensado vemente no leito, produziu um no assunto. — É até melhor que calafrio que a fez tremer e vibrar os vizinhos nos evitem para não numa forte comoção. O pesa- termos de falar sobre o que suce- delo do asqueroso inseto teria deu com o pobre Gregório, di- chegado ao fim?, perguntou-se. zia. Em seguida, emitindo um Após um esforço para reconsti- longo suspiro, o velho Samás tuir outras passagens do sonho, emendava: — É, acho que você lembrou que estava sozinha em tem razão, querida. casa, porque os pais haviam saí- À pequena Gorete, po- do durante sua ausência sem te- rém, essa cautela dos pais que- rem deixado sequer um bilhete ria dizer justamente o contrário. sobre a mesa da sala de estar, co- Ela sabia que a notícia se espa- mo costumavam fazer, com al- lhara pela vizinhança, sem pre- guma informação sobre a hora cisar indagar de ninguém. O de retorno a casa. Apurando os jeito como era evitada pelas ouvidos, deu-se conta de que o amigas que, antes, costuma- relógio da copa badalou duas vam procurá-la para todo tipo vezes, indicando que já eram de brincadeira e agora a ignora- duas horas da manhã. vam abertamente, falava por si. Recostada ao seu leito, a Além do mais, quem podia ga- fim de melhor refletir sobre os rantir que a antiga empregada, fragmentos do sonho para rea- que pedira as contas de forma vivá-lo ao máximo, a peque- tão inesperada à sua patroa, des- na Gorete ergueu-se de súbito, de a desgraça de Gregório, não sentando-se no leito e assim espalhara pela pequena cida- permanecendo, como se seus de a tragédia do lar dos Samás? membros não mais respondes- Sem falar que aqueles três hós- sem à sua vontade. Em com- pedes que ocuparam, até esses pensação, uma lembrança ficava dias, por duas semanas o quarto cada vez mais clara em sua men- dos fundos da casa, haviam sido te: desde alguns dias, os ruídos praticamente escorraçados pelo noturnos oriundos do quarto de pai, justo no dia em que ela se Gregório vinham perdendo for- apresentara especialmente para ça e, na noite passada, haviam eles (mas este era um segredo só desaparecido de todo. dela!), na antessala, meio de im- proviso como concertista, nu- ma récita malograda, ao final. O que não estariam falando aos amigos e conhecidos sobre o lar dos Samás?, se perguntava, de- solada, a pequenas Gorete. to, ao mesmo tempo, avaliava to pelo pai, seguido do assenti- qual a melhor estratégia a se- mento da mãe. III. guir diante de um problema que A principal razão da recu- Naquela noite, a pequena a afetava diretamente, mas que sa que alegaram — mas talvez Gorete teve um sonho: ao pas- preferia que não afetasse a eles. a menos importante — fosse o sar pelo quarto de Gregório ela Apesar de todas essas res- esforço descomunal que seria notou, ao olhar casualmente pa- salvas, a pequena Gorete sabia preciso fazer para retirar de ca- ra a parte inferior da porta, que que não poderia procrastinar sa aquele enorme estorvo. Sem podia ver a extremidade de uma indefinidamente uma questão contar que dali já sentiam um chave. De imediato, abaixou-se e dessa magnitude. O cadáver do fedor repulsivo e ao menos dois a pegou. Em seguida introduziu inseto, abandonado no quarto degraus acima dos piores mias- -a na fechadura e girou-a no sen- contíguo ao seu, exigia algum mas de que tinham lembrança. tido horário. A porta cedeu de tipo de ação urgente. Mas ela E como iriam remover aquilo de pronto e recuou, como para lhe sabia que não poderia contar, dentro de casa? Precisariam pe- dar passagem. Nesse instante, to- para isso, com a colaboração dir socorro aos vizinhos, o que do o quarto pareceu brilhar sob dos pais, porque da vez que lhes parecia uma hipótese intole- a luz da manhã que se infiltrava Nelson Patriota lhes propusera que tentassem rável, pois tornaria pública uma pela janela aberta para a rua, há- Nasceu em Natal (RN). É jornalista e retirá-lo do quarto e o levas- espécie de má-sorte ou maldição bito ao qual seu irmão se acostu- sociólogo. Autor de A estrela conta, sem até um matagal, situado que havia se abatido sobre a fa- mara desde criança. Procurando Colóquio com um leitor kafkiano, Um nas cercanias da cidade, para mília. — Nem pensar, replica- com o olhar sua cama, a peque- equívoco de gênero e Tribulações de enterrá-lo numa vala qualquer, va o velho Samás. — Sim, nem na Gorete percebeu que ele tinha um homem chamado Silêncio, entre outros. Vive em Parnamirim (RN). a ideia foi repelida de imedia- pensar, repetia a senhora Samás, recuperado sua forma humana e 42 | | maio de 2016

Um novo artista da fome

Evando Nascimento

ilustração: Theo Szczepanski

stêvão resolveu um antes fora do bisavô, do avô, e de todos os tempos, ninguém te, a instalação, a performance e, dia se tornar o maior dele mesmo, o pai, numa nobre escapa. Estêvão decidiu ser ar- quem diria, o grafite. performista do mun- sucessão patrilinear. Para piorar tista, a qualquer preço, intuindo Passados cinco anos depois Edo. Estava cansado as coisas, era o único filho ho- no fundo que fora essa a sorte a de obter o diploma sonhado, de ser pintor, carreira que abra- mem, tendo apenas uma irmã. ele reservada. Desde adolescente Estêvão continuava um artista çara com paixão havia cinco De nada adiantou a pressão, frequentou museus do Rio e do semiconsagrado. Semi porque anos, mas que não trouxera os Estêvão bateu pé, dizendo que mundo, visto que os pais costu- todos que conheciam seu traba- resultados esperados. Todavia, seria pintor ou então abando- mavam passar as férias com os lho louvavam-no como no mí- em vez de dinheiro, desejava ce- naria o ninho antes mesmo que filhos na Europa, raramente nos nimo original, mas o mercado lebridade, prestígio, glória. Pois toda a plumagem tivesse se for- Estados Unidos, que considera- não conseguia se interessar por de riqueza não carecia, porém mado em seu frágil corpo, ha- vam um tanto vulgar. Além dis- uma arte que já nascera velha, de consagração sim: nasceu nu- bilitando-o ao voo. A natureza so, a biblioteca paterna contava por assim dizer, tão antiga quan- ma família carioca abastada, resi- tem caprichos assim, era relati- com inúmeros livros de arte; ele to a humanidade. Careciam to- dente há tempos num tríplex da vamente franzino, a despeito da amava em particular dois grossos dos agora, galeristas, curadores, Avenida Rui Barbosa, fronteira corpulência de todos os patriar- tomos, que vieram como suple- mídia, público em geral, da ver- entre a Praia de Botafogo e a do cas que o precederam. mento da enciclopédia Larous- dadeira novidade, aquela que Flamengo, vista cinematográfi- Devido à determinação do se, nos quais se podia apreciar as superasse o último escândalo, ca para o Aterro e a Baía. Viven- rapaz, a família teve que ceder e obras-primas consagradas pelo levando a engrenagem adian- ciou o tédio que uma criança começou a preparar a filha pa- Ocidente, desde a arte rupestre te. Foi aí que Estêvão resolveu burguesa sofre, cheia de mimos, ra o trono, pois felizmente esta até a modernidade de Picasso, colaborar com o destino — se com babás e serviçais em abun- desde cedo demonstrou ser do- quando nada mais podia ser fei- todos os sinais indicavam que dância, todos negros e mulatos, tada da disposição para manter e to. Todavia, Estêvão tomou pa- seria famoso, por que então não tal como se vê nas novelas da gerir o patrimônio familiar. Al- ra si a tarefa improvável de levar dar uma mãozinha, empurran- Globo exportadas mundo afora guns desconfiavam que ela nas- adiante o legado do mestre ca- do a roda da fortuna para que ou nessas gravuras retratando o ceu menina-homem, coisa que talão, quem sabe superando-o. girasse mais rápido? Decidiu Rio do século XIX — a família nunca foi provada, apesar das Afinal, trazia em si o gênio da fa- fazer uma performance como branca sendo cortejada por seus roupas viris que desde crian- mília, que exigia dele ser o me- nunca antes, em lugar algum. nem sempre bem tratados escra- ça gostava de vestir. Tinham os lhor, independentemente da Planejou tornar-se mendigo e vos. Ele conhecia perfeitamente dois irmãos apenas um ano de carreira que escolhesse. depois relatar em livro de ouro tais imagens, sobretudo aquela diferença, mas ninguém poderia Teve excelentes profes- a experiência da miséria que ja- de Debret, em que uma senho- imaginar indivíduos mais desi- sores, primeiro em casa, regia- mais conhecera na vida. O cho- ra luzidia, de opulenta estirpe guais — uma, a figura da força mente pagos como preceptores que público seria enorme, em lusitana, dá de comer a um ga- em miniatura, o outro, um pro- do futuro artista; depois se ins- especial na alta burguesia, de rotinho, futuro servo, como se tótipo de homem que, suspeita- creveu na Escola de Belas Artes, que legitimamente fazia parte. cãozinho fora. vam, nunca daria certo. A ver. onde brilhou como pretenso Ao saber da decisão, o pai Não ficava abalado com Diz certa lenda inglesa da pintor, todos lá antevendo uma ameaçou deserdá-lo, onde já se essa cena tipicamente brasílica, Idade Média, de inspiração cel- carreira bem-sucedida. Mas Es- viu um Albuquerque. Tampou- mas se comovia com a beleza ta, que o destino é inexorável: o têvão não contava com o fato co adiantou o choro compulsivo plástica das representações do indivíduo se tornará, de um mo- de que, ao longo dos anos 90, a da mãe, a repulsa da irmã, que genial francês. Pois muito cedo do ou de outro, aquilo que já é. pintura entraria em decadência: sempre o julgara o idiota da fa- Estênio decidiu ser pintor, pa- Mesmo o fracasso está previs- no mundo todo, com poucas mília. Estêvão pegou suas roupas ra grande desgosto da família. to no plano original, por causa exceções ninguém mais via in- mais usadas, não eram muitas, Por se tratar do primogênito, o da semente que mais tarde vira teresse no ato de pintar por pin- mas o novo papel social (e artís- pai o imaginara como o futuro mulher, homem, trans, cavalo, tar. O valor em arte se deslocara tico, não esqueçamos) não exigia presidente da indústria de te- orquídea, samambaia ou vírus. para novidades — algumas nem grandes recursos, ao contrário, cidos, assumindo o posto que Do fado, afirmam os fatalistas tão novas — como a vídeo-ar- quanto mais despojado se mos- maio de 2016 | | 43

trasse, mais convincente seria. Por assim dizer, no sétimo dia de preparo, afinal desconhecia inteiramente a pobreza e mui- to mais a indigência, era preci- so ensaiar, no sétimo dia caiu em desgraça de cara no mundo. Converteu-se no primeiro desa- fortunado voluntário da Terra, rindo à toa por estar finalmente sozinho no palco da existência, sem o escudo ou a muleta fami- liar. Romântico que era, prefe- riu fazer o maltrapilho solitário, aquele que vive em sua esfera, grunhe palavras, confundindo- se muitas vezes com o louco. Como saiu sem um tostão de casa, esquecendo intencio- nalmente sobre o criado-mudo a bela quantia que a mãe prote- tora lhe reservara para qualquer aperto, necessitou achar comi- da quando sentiu fome. E aí, como fazer. Deixou com pra- zer a dignidade de lado e tentou pedir esmola, mas, apesar da magreza, seu tipo não conven- cia, parecia mais um daqueles malandros que as pessoas es- pertas evitam. Deambulou por dois dias sem sossego, usando as reservas de energia. Dormia e sonhava com frangos assados, peixes magníficos, massas au- tenticamente italianas e sobre- mesas que só a negra Danuza fazia; acordava com o gosto na boca e o ventre vazio, era durís- sima a vida mendiga. A vontade de comer au- mentando, criou coragem e abriu sua primeira lata de lixo. Viu então que era de fato um artista, somente um bem ver- dadeiro suportaria aquilo com desprendimento e elegância. Deixaria tudo mais tarde con- signado no livro-memória de sua Experiência número 1, co- mo já a denominava. Estêvão estava certo de que naquele mo- mento inaugurava uma nova obra, algo que humano algum sem correspondência na realida- vida, tal como muitos ousaram compara nem de longe à miséria jamais tentara: passar necessida- de, pois toda vez que a sensação antes dele, porém nenhum com da beleza, dizia de si para consi- de sem necessidade, sentir deli- desagradável advinha era logo tanta audácia. Passou uma tarde go, como um mantra. Ou: Mais beradamente na pele a vergasta saciada. Ninguém nunca lhe ex- inteira se deliciando com aque- vale um artista pobre do que um da pobreza, sendo milionário plicou como era a existência de la alegria de poder viver de sua pobre artista. Repetia tais frases de berço. No futuro, meus cole- quem não tem o que comer, ne- arte, embora ao avesso do que nada óbvias para que ganhassem gas de ofício invejarão a audácia: nhum professor de história ou imaginara. Uma epifania, ines- algum significado. por que não pensaram nisso an- de ciências sociais ou mesmo perada como todas. Isso lhe Porém, nos dias seguin- tes... talvez porque não tenham de exatas lhe dera a fórmula da deu forças para abrir outra lata tes não teve a mesma sorte, como eu dinheiro para esbanjar, vontade incontrolável de devorar de lixo e fazer a primeira refei- nem sempre sobrava comida vivendo às avessas como mendigo. sem ter o quê. Aquilo era o oco ção desde que saíra de casa. Por nos restaurantes e, como já es- Mas quando sentiu o cheiro de mais oco que podia imaginar, o sorte, um restaurante da Lapa, tava habituado à penúria, pas- podre, que jamais chegara a suas vazio absoluto, sem nenhuma seu bairro preferido para flanar, sou a catar de lixeira em lixeira narinas com aquela intensida- garantia de retorno ao bom sen- dândi do infortúnio que se tor- um pedaço de sanduíche aqui, de, o estômago se revolveu por timento de gravidade, que nos nara, deitou fora em sacos plás- um gole de Coca ali, uma sobra completo. O corpo debilitado salva a todos da demência. O de- ticos os restos do almoço, e ele de salada acolá, assim por dian- era todo sensações, percorria-o sespero chegou a tal ponto que pôde às cinco da tarde, esgani- te, até que o monstro na barriga uma náusea inusitada, um tor- chegou a pensar em abater e se çado, se deliciar com algo mais deixasse de incomodá-lo. Mas por que o fazia ver o contorno refestelar com um daqueles cor- ou menos fresco, embora mis- o monstro tinha sete vidas e no dos objetos fora de foco, como pos que pululavam pelo Centro, turado a sujidades. Pouco im- dia seguinte voltava ainda mais quem toma um ácido podero- mas prevaleceu o amor atávico portava, não era mais o garoto forte, pedindo mais nutrientes, so e sente os efeitos muito além por sua espécie. Além do mais, mimado que toda vez que der- ao ponto da alucinação. do esperado. Tremia, tremia, tre- desde a remota época da coloni- ramava um líquido no tapete ou Foi aí que Estêvão desco- mia. Súbito se lembrou de um zação, o cristianismo condenava no sofá gritava o nome da em- briu porque os moradores de poema de Manuel Bandeira, lido inapelavelmente a antropofagia, pregada — nunca tinha pega- rua dormem tanto, um modo numa coletânea que pertencia ao a despeito de o próprio Cristo do um pano de limpeza, jamais de poupar o pouco vigor de que pai, poema este que falava de um ter oferecido seu sangue e sua suas mãos delicadas tinham to- dispõem. Então começou a fi- bicho catando detritos para co- carne aos discípulos. cado o nojo do lodo. Foi o me- car quase o dia inteiro deitado mer e do horror de descobrir que No auge do sofrimento, lhor repasto de sua vida, porque no leito improvisado com jor- o tal bicho era um homem... Fe- sorriu beato, enfim alcançava a temperado com o molho da fo- nais, só acordando para pedir chou a lixeira com asco e passou felicidade de ser outro. Eis a pro- me concreta. Agora sim, era um dinheiro ou catar alimento. Fe- mais um dia esfomeado. va definitiva do artista, alguém homem acabado, homem e ar- lizmente, par sua surpresa, o sis- Até então fome era para capaz de levar o dom inato ao tista, no duro. Demasiado hu- tema imunológico se adaptou à ele substantivo abstrato, palavra extremo, com o risco da própria mano. A beleza da miséria não se nova dieta: nenhuma febre, gri- 44 | | maio de 2016

pe ou diarreia miraculosamen- te o acossou. Estou no caminho certo, refletiu aliviado, nenhum mal me atingirá. Viver de restos, quem diria. Jejuar correspon- dia a um tipo de ascese, uma questão de definir o cardápio adequado, mas quase nunca no caso por livre-opção. Quando via algum conhe- cido na rua, escondia o rosto, apesar do orgulho que sentia pela coragem de assumir aque- la real condição. Desde o iní- cio, determinou que investiria um ano naquele projeto e que de preferência depois não vol- taria ao lar, vivendo com seus próprios recursos. Encontraria decerto um modo de sair, por esforço próprio, da privação aguda para o conforto da clas- se média, tal como seu pai dizia que seu bisavô português con- quistara a América, mesmo sen- do imigrante pobre. Já Estêvão se transformara em um migran- te voluntariamente depaupera- do, convertido à classe nula em nome da arte, o fabuloso pobre menino rico. A única coisa que o chocava era a indiferença dos transeuntes, ele fazia agora par- te de uma população invisível nas grandes cidades do planeta, o que também lhe dava um sen- tido de missão. Era emocionante obser- var o mundo dessa perspectiva, de baixo para cima, e não de ci- ma para baixo como fora acos- tumado. As pessoas, os veículos e os prédios pareciam muito mais altos, mesmo um rato ou uma barata assomavam amea- çadores, pré-históricos, na cal- çada onde Estêvão repousava. O ruído da cidade fazia ver as Depois de alguns meses ex- Os Albuquerque jamais coisas e as cores ainda mais des- posto a sol, chuva, poeira, vio- souberam que fim levou o her- proporcionais, por um efeito lência da polícia e de bandidos, deiro, enterrado como indi- ainda não estudado de estereo- quase atropelamento etc., Estê- gente, sem honrar a dinastia do fonia visual. Sua sensibilidade vão aceitou finalmente a amizade nome. Em algum lugar do pla- artística estava sendo afinada de um colega de desdita. Gildo neta dever-se-ia erguer um mo- com o potente esmeril urbano, parecia meramente interessado numento ao artista anônimo, dali surgiriam inúmeros outros no afeto do novo camarada, mas aquele que morreu no auge de planos de intervenção estética. tinha outras intenções. Iniciou seu experimento, em meio ao Quem sabe, por exemplo, pas- Estêvão no consumo do cra- lixo, sem atingir o luxo do re- sar alguns meses numa prisão, ck, este relutou, porém acabou nome. O que o mísero Estêvão por um pretexto qualquer, como convencido de que a droga era ignorava é que sua performan- tentativa de assaltar banco ou um atenuante da fome, abrin- ce nada tinha de original, pois sequestrar alguém de minha an- do as portas para outras percep- já tinha sido realizada nos anos tiga classe, devaneava entre um ções. Viciou-se rapidamente e 70 por um artista tcheco, Lud- sono e outro. Depois escreveria logo precisou traficar para sus- vik Dussék, que passara, em livros como Diário do Assaltan- tentar o luxo de viver drogado, plena ditadura, um mês volun- te ou Manual de Sequestro para tal como o próprio Gildo. So- tariamente como pedinte, exila- Amadores. Oficialmente, pode- breviveu daquele modo por me- do da vida dita normal, nas ruas ria também pleitear uma resi- ses, feliz por ter encontrado um hibernais de Praga. Tal como dência como resistente político modo único, inimitável, de se nosso herói, sua pretensão era na China, havia muitas insti- tornar um exemplar excepcio- vaguear também por um ano, tuições de fomento para isso; lá nal da humanidade. mas quando o governo comu- encontraria o performista-en- Até que se desentendeu nista descobriu a façanha, inter- gajado mundialmente célebre, com um dos subchefes do trá- pretada como protesto político um modelo de bravura. fico, ou antes, o mandante fi- (Não existem desvalidos no co- Durante esse tempo, ligou cou contrariado por Estêvão ter munismo, diziam, que veio para apenas uma vez para a mãe, di- consumido a droga para ven- acabar com a miséria do globo.), zendo que estava bem. A coitada da sem lhe dar lucro. E assim o encarcerou para sempre esse ou- vivia a poder de remédios, pois imaginativo artista amanheceu tro artista da fome, que obteve uma pessoa maldosa lhe contara queimado na Praça Tiradentes, pleno êxito em sua Experiên- que vira seu filho mendigando, matéria de capa do jornal Extra. cia batizada por ele de número e a pobre senhora quase morreu Era enfim, por vias tortas, a am- 0, definhando numa cela até a numa crise hipertensa. Não sen- bicionada fama, que poderia ser morte. Nem o brasileiro, nem o Evando Nascimento tia mais nada, os medicamentos acompanhada por seus colegas de tcheco entrou infelizmente para É escritor, ensaísta e professor não deixavam, habitava uma zo- mendicância, nas manchetes dos o Guia da Arte Moderna e Con- universitário. Autor, entre outros, de na fora do tempo, a voz do filho próximos dias. Ainda o levaram temporânea. Daí a urgência de Cantos do mundo (Record) e Cantos lhe pareceu de outro planeta, para o Hospital Souza Aguiar, se fazer uma placa que seja em profanos (Biblioteca Azul). Este relato quem sabe de outra galáxia. Que mas não resistiu às queimaduras homenagem aos jovens talentos integra o livro inédito A desordem das inscrições. Vive no Rio de Janeiro (RJ). fizera para merecer isso. de primeiro e segundo grau. sacrificados. maio de 2016 | | 45 hq | ramon muniz 46 | | maio de 2016

Driving Montana

The day is a woman who loves you. Open. Deer drink close to the road and magpies spray from your car. Miles from any town your radio comes in strong, unlikely Mozart from Belgrade, rock and roll from Butte. Whatever the next number, you want to hear it. Never has your Buick found this forward a gear. Even the tuna salad in Reedpoint is good.

Towns arrive ahead of imagined schedule. Absorakee at one. Or arrive so late — Silesia at nine — you recreate the day. Where did you stop along the road Neighbor and have fun? Was there a runaway horse? Did you park at that house, the one alone in a void of grain, white with green The drunk who lives across the street from us trim and red fence, where you know you lived fell in our garden, on the beet patch once? You remembered the ringing creek, yesterday. So polite. Pardon me, the soft brown forms of far off bison. he said. He had to be helped up and held, You must have stayed hours, then drove on. steered home and put to bed, declaring In the motel you know you’d never seen it before. we got to have another drink and smile.

Tomorrow will open again, the sky wide I admit my envy. I’ve found him in salal as the mouth of a wild girl, friable and flat on his face in lettuce, and bent clouds you lose yourself to. You are lost and snoring by that thick stump full of rain in miles of land without people, without we used to sail destroyers on. one fear of being found, in the dash And I’ve carried him home so often of rabbits, soar of antelope, swirl stone to the rain and me, and cheerful. merge and clatter of streams. I try to guess what’s in that dim warm mind. Does he think about horizoned firs Dirigindo em Montana black against the light, thirty years ago, and the good girl — what’s her name — believing, or think about the dog O dia é uma mulher que te ama. Aberto. he beat to death that day in Carbonado? Veados bebem junto à estrada e corvos fogem de seu carro. A milhas de qualquer cidade I hear he’s dead, and wait now on my porch. seu rádio desperta forte, num improvável He must be in his shack. The wagon’s Mozart de Belgrado, e rock and roll de due to come and take him where they take Butte1. Seja lá qual for o próximo número, late alcoholics, probably called Farm’s End. você quer ouvir. Jamais o seu Buick I plan my frown, certain he’ll be carried out encontrou uma marcha tão segura. Até bleeding from the corners of his grin. Richard a salada de atum em Reedpoint é boa. Cidades chegam antes do horário imaginado. Vizinho Absorakee à uma. Ou chegam muito tarde — Hugo Silésia às nove — você recria o dia. Onde foi que você parou junto à estrada O bêbado que vive do outro lado da rua tradução e seleção: André Caramuru Aubert e se divertiu? Aquilo era um cavalo em fuga? caiu no nosso jardim, no canteiro de beterrabas Você estacionou naquela casa, aquela ontem. Tão polido. Me perdoe, perdida em uma imensidão de grãos, branca com ele disse. Ele precisou ser ajudado e carregado, ichard Hugo (Richard Franklin Ho- vigas verdes e cerca vermelha, na qual você sabe que um dia levado para casa e colocado na cama, afirmando gan, 1923-1982), pertencente a mais viveu? Você se lembrou do riacho ruidoso, que nós precisávamos beber mais uma e sorriso. prolífica geração de poetas norte-ame- das formas suaves do extinto búfalo. Rricanos, conseguiu a proeza de ter sua Você deve ter ficado horas por ali, depois foi embora. Eu admito minha inveja. Eu o encontrei num arbusto obra amada e respeitada mesmo sendo ele alguém No hotel que você sabia jamais ter visto antes. e sua face espalhada em alface, e arqueado do Oeste que jamais deixou sua região, ao contrário e roncando junto àquele grosso toco repleto de chuva de quase todos os seus contemporâneos, que migra- Amanhã irá se abrir novamente, o céu imenso no qual nós costumávamos navegar com nossos destróieres. ram para Nova York ou San Francisco. E Hugo foi como a boca de uma garota selvagem, nuvens E eu o carreguei até sua casa tantas vezes ainda mais longe, literalmente: nascido em Seattle, frágeis nas quais você irá se perder. Você está perdido tomando chuva, duro como uma pedra, e feliz. então uma cidade bem menor do que é hoje, mi- em milhas de terra sem gente, sem que Eu tento adivinhar o que há naquela cabeça turva. grou para o ainda mais remoto estado de Montana, se tenha medo de ser achado, na agitação Será que ele pensa em horizontes de pinheiros em cuja universidade lecionou. Ele era o exemplo dos coelhos, no voo dos antílopes, nos redemoinhos negros contra a luz, trinta anos vivo (e ensinava isso aos alunos) de que o universal barulhentos dos encontros de riachos. atrás, e aquela boa garota — qual era o seu nome — se atinge pelo local, que a essência do cosmos vive crente, ou pensa no cachorro em sua aldeia, que basta saber ver e traduzir. que ele surrou até a morte em Carbonado? Abandonado por pai e mãe e criado por avós, Hugo entrou para a Força Aérea e participou Eu ouvi dizer que ele morreu, e espero no meu alpendre. da Segunda Guerra, na Europa, de onde voltou Ele deve estar no seu chalé. O carro deve condecorado. Ele conseguiu estudar na Universi- chegar para levá-lo para onde eles levam os bêbados dade de Washington (onde foi aluno de Theodor de fim de noite, provavelmente chamado de Fim das Terras. Roethke) por conta da lei que concedia bolsas de Eu planejo minha reprovação, certamente ele será carregado estudo para veteranos de guerra. Depois disso ele sangrando nos cantos de sua boca sorridente. escreveria incessantemente, sempre lutando con- tra a depressão e o alcoolismo, até morrer, aos 52 anos, de leucemia. Seus poemas oscilam entre a contemplação da beleza das paisagens e os dramas das almas solitárias das cidadezinhas, dos bares e das estradas nas quais viveu. maio de 2016 | | 47

What thou lovest well O que tu amas remains American permanece americano

You remember the name was Jensen. She seemed old Você se lembra que o nome era Jensen. Ela parecia velha always alone inside, face pasted gray to the window, sempre sozinha do lado de dentro, o rosto fundido ao cinza da janela, and mail never came. Two blocks down, the Grubskis e cartas jamais chegavam. Duas quadras abaixo, os Grubskis went insane. George played rotten trombone ficaram loucos. George tocava um trombone quebrado Easter when they flew the flag. Wild roses Páscoa quando eles hasteavam a bandeira. Rosas selvagens remind you the roads were gravel and vacant lots o fazem lembrar que as estradas eram de cascalho e terras vazias the rule. Poverty was real, wallet and spirit, a regra. A pobreza era real, na carteira e na alma, and each day slow as church. You remember threadbare e cada dia lento como igreja. Você se lembra dos grupos church groups on the corner, howling their faith da igreja, puídos, na esquina, bramindo sua fé at stars, and the violent Holy Rollers para as estrelas, e os violentos pentecostais renting that barn for their annual violent sing alugando aquele celeiro para o seu violento cântico anual and the barn burned down when you came back from war. e o celeiro incendiado quando você voltou da guerra. Knowing the people you knew then are dead, Conhecendo as pessoas que você então sabia estarem mortas, you try to believe these roads paved are improved, você tenta acreditar que estas estradas pavimentadas são melhores, que the neighbors, moved in while you were away, good-looking, os vizinhos, que chegaram enquanto você estava fora, têm boa aparência, their dogs well fed. You still have need seus cachorros bem alimentados. Você ainda precisa to remember lots empty and fern. se lembrar das terras vazias e das samambaias. Lawns well trimmed remind you of the train Quintais bem cuidados lembram do trem que your wife took one day forever, some far empty town sua esposa pegou um dia para sempre, de alguma remota cidade vazia, the odd name you never recall. The time: 6:23. o nome estranho você nunca lembrou. A hora: 6:23. The day: October 9. The year remains a blur. O dia: 9 de outubro. O ano permanece uma névoa. You blame this neighborhood for your failure. Você culpa seus vizinhos pelo seu fracasso. In some vague way, the Grubskis degraded you De alguma vaga maneira, os Grubskis o degradaram beyond repair. And you know you must play again para além de uma recuperação. E você sabe que precisa rever de and again Mrs. Jensen pale at her window, must hear novo e de novo a senhora Jensen pálida em sua janela, precisa ouvir the foul music over the good slide of traffic. a música sórdida acima do agradável fluir do trânsito. You loved them well and they remain, still with nothing Você os amou bastante e eles permanecem, ainda sem nada to do, no money and no will. Loved them, and the gray o que fazer, sem dinheiro nem ambição. Os amou, e o cinza that was their disease you carry for extra food que era a doença deles você carrega como comida extra in case you’re stranded in some odd empty town no caso de ficar encalhado em alguma esquisita cidade vazia and need hungry lovers for friends, and need feel e precisar de amantes sedentos como amigos, e precisar se you are welcome in the secret club they have formed. sentir bem recebido no clube secreto que eles formaram.

Sepulturas dos soldados G.I. Graves in Tuscany americanos na Toscana

Vizinho They still seem G.I., the uniform lines Eles ainda se parecem como soldados, as linhas uniformes of white crosses, the gleam that rolls de cruzes brancas, a centelha que se espalha white drums over the lawn. Machines tambores brancos sobre o terreno. Máquinas O bêbado que vive do outro lado da rua that cut the grass left their maneuvers plain. que cortam a grama deixam planas suas manobras. caiu no nosso jardim, no canteiro de beterrabas Our flag doesn’t seem silly though plainly Nossa bandeira não parece ingênua enquanto ela ontem. Tão polido. Me perdoe, it flies only because there is wind. se agita porque há vento. ele disse. Ele precisou ser ajudado e carregado, levado para casa e colocado na cama, afirmando Let them go by. I don’t want to turn in. Deixe que eles se vão. Eu não quero entrar aí. que nós precisávamos beber mais uma e sorriso. After ten minutes I’d be sick of their names Depois de dez minutos eu ficaria doente com seus nomes, of the names of their towns. Then e os nomes de suas cidades. Então Eu admito minha inveja. Eu o encontrei num arbusto some guide would offer a tour algum guia ofereceria um tour e sua face espalhada em alface, e arqueado for two thousand lire, smiling the places por duas mil liras, apontando os locais e roncando junto àquele grosso toco repleto de chuva of battle, feigning hate for the Krauts. das batalhas, simulando raiva dos Krauts2. no qual nós costumávamos navegar com nossos destróieres. I guess visitors come. A cross here and there Eu penso que visitantes vêm. Uma cruz aqui, outra ali E eu o carreguei até sua casa tantas vezes is rooted in flowers. Maybe in Scranton está cheia de flores. Talvez em Scranton tomando chuva, duro como uma pedra, e feliz. a woman is saving. Maybe in books uma mulher esteja lembrando. Talvez nos livros Eu tento adivinhar o que há naquela cabeça turva. what happened and why is worked out. o que aconteceu e por que deu certo. Será que ele pensa em horizontes de pinheiros negros contra a luz, trinta anos The loss is so damn gross. I remember A perda é danada de grande. Eu me lembro atrás, e aquela boa garota — qual era o seu nome — a washtub of salad in basic, blacktop acres de uma tina de salada em simples, áreas de asfalto crente, ou pensa no cachorro of men waiting to march, passing three hours de homens aguardando para marchar, três horas de que ele surrou até a morte em Carbonado? of bombers, en route to Vienna, and bombing bombardeiros passando, em direção a Viena, e bombardeando and passing two hours of planes, coming back. e duas horas de aviões passando, de volta. Eu ouvi dizer que ele morreu, e espero no meu alpendre. Numbers are vulgar. If I stayed Números são vulgares. Se eu ficasse Notas Ele deve estar no seu chalé. O carro deve I’d count the men in years of probable loss. eu contaria os homens em anos de prováveis perdas. chegar para levá-lo para onde eles levam os bêbados 1. Pequena cidade no sudoeste de de fim de noite, provavelmente chamado de Fim das Terras. I’m a liar. I’m frightened to stop. Eu sou um mentiroso. Eu estou ansioso para ficar. Montana. Eu planejo minha reprovação, certamente ele será carregado Afraid of a speech I might make, Com medo do discurso que eu poderia fazer, 2. Apelido pejorativo com o qual os sangrando nos cantos de sua boca sorridente. corny over some stone with a name banal, a respeito de algum jazigo com um nome soldados americanos se referiam aos that indicates Slavic descent — you there, que indicasse origem eslava — você aí, soldados alemães na Segunda Guerra. you must be first generation, você deve ser da primeira geração, I’m third. The farm, I’m told, was hard eu sou da terceira. A fazenda, me disseram, era dura but it all means something. Think mas tudo isso tem um sentido. Pense of Jefferson, on the Constitution, em Jefferson, na Constituição, not of these children não nessas crianças Leia mais em beside me, bumming a smoke and laughing. atrás de mim, pedindo um cigarro e rindo. www.rascunho.com.br ARTES VISUAIS, MÚSICA, DANÇA, TEATRO, CINEMA. O MELHOR DA CULTURA VOCÊ ENCONTRA DE GRAÇA NO ITAÚ CULTURAL.

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