<<

0 RIOXXI

org. paulo herkenhoff

CAPA RIO XXI.indd 1 05/11/2019 19:43:42 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CONSELHO CURADOR sede | headquarters BOARD OF TRUSTEES Praia de Botafogo, 190 primeiro presidente fundador | – RJ presidente | president founder and first president CEP 22250-900 ou Caixa Postal 62.591 Carlos Alberto Lenz César Protásio Luiz Simões Lopes CEP 22257-970 vice-presidente | vice-president Tel.: (21) 3799-5498 presidente | president João Alfredo Dias Lins (Klabin Irmãos e Cia) www.fgv.br Carlos Ivan Simonsen Leal vogais | voting members Instituição de caráter técnico-científico, vice-presidentes | vice-presidents Alexandre Koch Torres de Assis, Andrea educativo e filantrópico, criada em 20 de Sergio Franklin Quintella Martini (Souza Cruz S.A.), Antonio Alberto dezembro de 1944 como pessoa jurídica de Francisco Oswaldo Neves Dornelles Gouvea Vieira, Eduardo M. Krieger, Rui direito privado, tem por finalidade atuar, de Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque Costa (Governador do Estado da Bahia), José forma ampla, em todas as matérias de caráter Ivo Sartori (Governador do Estado do Rio científico, com ênfase no campo das ciências Grande do Sul), José Carlos Cardoso (IRB – sociais: administração, direito e economia, CONSELHO DIRETOR Brasil Reseguros S.A.), Luiz Chor, Marcelo contribuindo para o desenvolvimento BOARD OF DIRECTORS Serfaty, Márcio João de Andrade Fortes, econômico e social do país. Murilo Filho (Federação Brasileira presidente | president de Bancos), Orlando dos Santos Marques Carlos Ivan Simonsen Leal Institution of technical-scientific, educational (Publicis Brasil Comunicação Ltda.), Pedro and philanthropic character, created on vice presidents Henrique Mariani Bittencourt (Banco BBM vice-presidentes | - December 20th, 1944, as a legal entity of S.A.), Raul Calfat (Votorantim Participações Sergio Franklin Quintella private law with the objective to act, broadly, S.A.), Ronaldo Mendonça Vilela (Sindicato das Francisco Oswaldo Neves Dornelles in all subjects of scientific character, with Empresas de Seguros Privados, de Previdência Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque emphasis on social sciences: administration, Complementar e de Capitalização nos Estados law and economics, contributing for the vogais | voting members do Rio de Janeiro e do Espírito Santo), Sandoval socioeconomical development of the country. Armando Klabin, Carlos Alberto Pires de Carneiro Junior, Willy Otto Jorden Neto Carvalho e Albuquerque, Cristiano Buarque Franco Neto, Ernane Galvêas, José Luiz suplentes | deputies Miranda, Lindolpho de Carvalho Dias, Marcílio Cesar Camacho, Clóvis Torres (Vale S.A.), Marques Moreira, Roberto Paulo Cezar de José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, Luiz Andrade Ildefonso Simões Lopes (Brookfield Brasil Ltda.), Luiz Roberto Nascimento Silva, suplentes | deputies Manoel Fernando Thompson Motta Filho, Aldo Floris, Antonio Monteiro de Castro Filho, Nilson Teixeira (Banco de Investimentos Ary Oswaldo Mattos Filho, Eduardo Baptista Crédit Suisse S.A.), Olavo Monteiro de Carvalho Vianna, Gilberto Duarte Prado, Jacob Palis (Monteiro Aranha Participações S.A.), Patrick Júnior, José Ermírio de Moraes Neto, de Larragoiti Lucas (Sul América Companhia Marcelo José Basílio de Souza Marinho, Nacional de Seguros), Rui Barreto, Sergio Mauricio Matos Peixoto Andrade, Victório Carlos de Marchi

f i c h a catalográfica e l a b o r a d a p e l a b i b l i o t e c a m a r i o h e n r i q u e s i m o n s e n / f g v

Rio XXI: Vertentes Contemporâneas / Org. Paulo Herkenhoff Rio de Janeiro: FGV, 2019. 288 p.: il.

Texto em português e inglês. Os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem, 1. Rio de Janeiro (RJ) – Política cultural. 2. Arte – Rio de Janeiro (RJ). 3. necessariamente, a opinião da FGV. Projetos culturais – Rio de Janeiro (RJ). I. Herkenhoff, Paulo, 1949- . II. FGV. The texts are of authors’ responsabilities CDD – 306.098153 and do not necessarily reflect the opinion of FGV Foundation. 2.1. FUNDO NACIONAL DA CULTURA 3

Os projetos viabilizados pelo FNC devem conter a marca do Fundo Nacional da Cultura e a assinatura da Secretaria Especial da Cultura | Ministério da Cidadania, acompanhada da marca do Governo Federal, conforme estipula este manual. org. paulo herkenhoff

Marca do Fundo Assinatura da Secretaria Especial da Cultura | Ministério da Cidadania, Nacional da Cultura sempre acompanhada da marca do Governo Federal

• Para detalhes sobre a aplicação e o uso da marca do Governo Federal, consulte o manual disponível em cultura.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/logotipos.

4 organização e direção editorial | agradecimentos | acknowledgements organization and editorial direction Andréa Zabrieszach dos Santos Paulo Herkenhoff Armando Mattos Bernardo Damasceno editor responsável | chief editor Bernardo Mosqueira Sidnei Gonzalez Brenda Valansi/ArtRio Cesar Cunha Campos coordenação geral | general coordination Cecília Fortes Silvia Finguerut Clara Gerchman/Instituto Tunga Daniela Name coordenação institucional | Eliana Souza e Silva institutional coordination Fernando Leite Patricia Werner Frances Reynolds Francisco Proner projeto gráfico | graphic design Heloísa Buarque de Hollanda Fernando Leite/Verbo Arte Design Isabela Souza da Silva Galeria Anita Schwartz colaboração | collaboration Galeria Luciana Caravello Arte Contemporânea Bianca Sili Galeria A Gentil Carioca Julia Travassos Galeria Artur Fidalgo Marcela Galeria Fortes D’Aloia e Gabriel Galeria Múl.ti.plo Espaço Arte revisão | proofreading Galeria Raquel Arnaud Ana Carolina Estevez Gina Ferreira Isabel Ferreira Guilherme Altmayer Ligia Lopes Laíse Rangel Maria Cristina Sampaio Lopes Leno Veras Marina Bichara Lucas Cimino/Galeria Zipper Luciana Brito Galeria tradução | translation Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho Follow-Up Traduções Luiza Mello Joana Lavôr Luiz Camillo Osório/Prêmio Pipa Lula Mello gráfica | printing Lula Wanderley Ipsis Gráfica e Editora Marcelo Campos Marcia Mello Maria Clara Rodrigues Marisa Flórido Cesar Monica Grandchamp Museu de Arte do Rio de Janeiro Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Museu da Imagem do Inconsciente Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea Paula Kossatz Paulo Roberto Santi Pedro Évora Pedro Rivera Peter Fernandez Prêmio Foco Rara Dias Ricardo Resende Selma Pantel Stefania Paiva Tania Rivera Vera Saboya Walter Apel A realização do livro RIO XXI – Vertentes artistas | artists contemporâneas só foi possível graças à Adriana Varejão Iole de Freitas colaboração dos diversos artistas que cederam Afonso Tostes Ivens Machado* as imagens de seus trabalhos para integrar Alessandra Vaghi Jérôme Souty a presente publicação. Os artistas marcados Alexandre Mazza Joana Traub Csekö com asterisco já faleceram e seus herdeiros Alice Miceli Joelington Rios também cederam as imagens. A FGV agradece Amália Giacomini enormemente esse apoio. José Damasceno Ana Linnemann Laercio Redondo Ana Stewart The book RIO XXI – Vertentes contemporâneas Livia Flores was only possible thanks to the collaboration Ana Vitória Mussi Lucia Laguna of the various artists who granted the right of Angelo Venosa Luiz Baltar use the images of their works to integrate this Luiz Zerbini publication. The starred artists have passed Arjan Martins Lula Wanderley away and their heirs have also relinquished the Arlindo Oliveira Lygia Pape* images. FGV greatly appreciates this support. Arthur Omar Manata Laudares Ascânio MMM Marcela Cantuária Marcelo Tinoco Bia Martins Marcos Bonisson Bruno Veiga Marcos Chaves Bruno Miguel Matheus Rocha Pitta Caio Reisewitz Maurício Dias e Walter Riedweg Carlito Carvalhosa Maxwell Alexandre Caroline Valansi Miguel Rio Branco Chang Chi Chai Milton Guran Milton Ribeiro* Claudia Jaguaribe Mulambö Coletivo Bonobando Opavivará Coletivo Líquida Ação Panmela Castro Daniel Lannes Paula Trope Daniel Senise Pedro Évora Daniel Toledo Pedro Victor Brandão Delson Uchôa Rafael Bqueer Denilson Baniwa Rafael Pereira Abranches Eduardo Berliner Renato Bezerra de Mello Eduardo Coimbra Roberto Garcia Eduardo Frota Ronald Duarte Eduardo Kac Eloísa Brantes Ronaldo Rego Emilia Estrada Rosana Palazyan Enrica Bernardelli Rosângela Rennó Felipe Cama Sergio Alevatto Fernando Leite Suzana Queiroga Nos créditos de cada obra apresentada estão Tatiana Grinberg indicados os fotógrafos que reproduziram Fernando Lindote Thereza Miranda as obras. A FGV empreendeu todos os Flavia Junqueira Thiago Ortiz esforços para localizar esses profissionais e Gabe Passareli Thiago Rocha Pitta obter a cessão de uso das imagens. A todos Gina Ferreira e Hélio Carvalho Tiago Sant'Ana que colaboraram e participaram os nossos Grupo EmpreZa agradecimentos. Grupo UM Victor Arruda Guga Ferraz In the credits of each work presented are Guilherme Altmayer indicated the photographers who reproduced Guy Veloso Walter Goldfarb the works. FGV has made every effort to Hélio Oiticica* Wuelyton Ferreiro obtain the use license of the images. To all who Igor Vidor Yasmin Lopes collaborated with the book, our sincere thanks. Ivan Grilo Yhuri Cruz the 21st century demands new per- This publication has been cherished spectives for art that must include con- for some years and once again counts temporary practices and the continuity on the fundamental collaboration of cu- of some paths understood in a new key. rator Paulo Herkenhoff, who, for almost This production calls for new readings ten years, shares his expertise in vari- and transverse modes of observation. ous publications focused on art by the Why start with Rio de Janeiro? First of all, Fundação Getulio Vargas. here is the headquarters of the Fundação In this book, Paulo Herkenhoff acts as Getulio Vargas, which since its foundation the organizer and author of several texts in 1944 has valued critical thinking, the and invites various specialists to bring expansion and improvement of ideas that together the proper diversity of perspec- contribute to the country’s development. tives, languages, gender and ethnicity, Secondly, because the historical aesthetic seeking the analysis and registry of con- vigor of the city, with its cosmopolitan vo- temporary production in various subjects. cation and its plurality, continues at pres- In this sense, the book is organized ent as a privileged place for experimenta- with texts that deal with the construc- tion of the country. tion of the city of Rio de Janeiro and its The Brazilian modernist tradition is architecture, its landscape, the African associated with the city of São Paulo, presence in art, the funk and as from the 1922 Modern Art Week. There loci of production, the memory and mon- were some protagonists of the Modern uments in public spaces and alternative Movement also in Rio de Janeiro who spaces and, finally, the places of delirium came to launch the concepts of Con- and alterity diagrams that emerge as cretism and Neoconcretism. Today, the “models of art practice taken as a system two main cities in alternate in of effective and fair exchanges between artistic vanguard and aesthetic exper- the artist and individuals in state of so- imentation, which is spread over the cial vulnerability ”, according to the orga- country with potent regional artistic nizer of this book, Paulo Herkenhoff. panoramas. Although the Brazilian eco- The proposal of the book proved to be nomic scenario is in crisis, art remains so rich that this is the first volume of fundamental to allow free reflection the work. There is material for a second and with a growing national and inter- volume that we hope to be able to pub- national art market. lish, as well as studies on other nuclei of The city of Rio de Janeiro, with its history Brazilian contemporary production. It is, of diversity, translated into urban behavior therefore, an open work in every sense, as and rationality, and the enormous flow of proposed by Umberto Eco. people and information, was the stage for The book brings together works of al- transformations and experiments whose most 100 artists, who work or have per- authenticity and power led Rio de Janeiro formed in the city of Rio de Janeiro, and to to be considered the contemporary locus, whom we should thank the assignment which attracts artists from other cities. of use of their works that made this pub- The city becomes a magnet for aesthetic lication possible. Special thanks also go to innovation in dialogue with artists from Banco Fator, which collaborated with FGV all over the country. in financing this publication. O século XXI demanda novas perspectivas para a Esta publicação vem sendo acalentada há alguns anos arte que compreendam as práticas contemporâneas e e conta mais uma vez com a fundamental colaboração do a continuidade de alguns caminhos compreendidos curador Paulo Herkenhoff, que, há quase dez anos, com- em nova chave. Essa produção pede novas leituras e partilha sua expertise em diversas publicações volta- modos transversais de sua observação. das para a arte realizadas pela Fundação Getulio Vargas. Por que começar pelo Rio de Janeiro? Primeiro por- Neste livro, Paulo Herkenhoff atua como organiza- que aqui está a sede da Fundação Getulio Vargas, que, dor e autor de diversos textos e convida vários especia- desde sua fundação, em 1944, valoriza o pensamen- listas para reunir a devida diversidade de olhares, de to crítico, a expansão e o aperfeiçoamento de ideias linguagens, de gênero e de etnias, buscando a análise que contribuam para o desenvolvimento do país. Em e o registro da produção contemporânea nas mais va- segundo lugar, porque o histórico vigor estético da ci- riadas disciplinas. dade, com sua vocação cosmopolita e sua pluralidade, Neste sentido, o livro está organizado a partir de continua no presente como lugar privilegiado de ex- textos que tratam a construção da cidade do Rio de perimentação do país. Janeiro e sua arquitetura, sua paisagem, a evolução A tradição modernista brasileira ficou associada à das gerações construtivas, a presença afrocarioca na cidade de São Paulo, a partir da Semana de Arte Mo- arte, as quebradas e as favelas como loci de produção, derna de 1922. O Rio de Janeiro também teve alguns o contemporâneo e a preservação da memória nos es- protagonistas do Movimento Moderno que vieram a paços públicos e nos espaços alternativos, e, finalmen- lançar os conceitos do Concretismo e do Neoconcre- te, os lugares do delírio e dos diagramas de alteridade tismo. Na atualidade, essas duas cidades do Brasil se que surgem como “modelos de prática da arte tomada alternam na vanguarda artística e na experimentação como sistema de trocas efetivas e justas entre o artis- estética, que toma todo o país com potentes panora- ta e indivíduos em estado de vulnerabilidade social”, mas artísticos regionais. Muito embora o panorama segundo o organizador deste livro, Paulo Herkenhoff. econômico brasileiro apresente-se em crise, a arte A proposta do livro Rio XXI revelou-se tão profícua continua sendo fundamental para possibilitar a refle- que este é o primeiro volume do trabalho. Há material xão de forma livre e sem amarras e com um crescente para um segundo volume que esperamos poder publi- mercado nacional e internacional. car, além de estudos sobre outros polos de criação con- A cidade do Rio de Janeiro, com sua história de diver- temporânea. Trata-se, portanto, de uma obra aberta, sidade, traduzida nos costumes e na racionalidade ur- em todos os sentidos, como propôs Umberto Eco. banos, e pelo enorme fluxo de pessoas e informações, O livro reúne obras de mais de 100 artistas, todos foi palco para transformações e experimentações cuja que atuam ou já atuaram na cidade do Rio de Janei- autenticidade e potência levaram o Rio de Janeiro a ro, e a quem devemos agradecer pela cessão de uso ser considerado o locus da contemporaneidade, o que de suas obras que tornaram possível essa publicação. atrai artistas de outras cidades – ou seja, a cidade tor- Cabe ainda um especial agradecimento ao Banco Fa- na-se um ímã para a inovação estética em diálogo com tor, que colaborou com a FGV no financiamento desta artistas de todo o país. publicação.

Carlos Ivan Simonsen Leal p r e s i d e n t e da f u n dação g e t u l i o va r g a s Art reflects its time. As a manifestation A arte reflete o seu tempo. Como manifestação da of culture, it has to do with knowledge, cultura, tem a ver com o acúmulo de conhecimentos, the beliefs and the practices of a group, crenças e costumes de um grupo, a expressão simbó- the symbolic expression of a society, the intangible heritage of a country, the soul lica de uma sociedade, o patrimônio imaterial de um of a nation. Art reveals yearnings, dreams, país, a alma de uma nação. A arte revela anseios, so- delusions, politics – everything that we, as nhos, delírios, política – tudo, enfim, que nós, enquan- a community, live in everyday life. to comunidade, vivemos no cotidiano. However, art is also a projection of a desired future. Thereby, in times of crisis, No entanto, arte é também uma projeção de um fu- it is even more important to look at this turo desejado. Assim, em momentos de crise, torna-se subject in a multifaceted manner, in order ainda mais importante lançar um olhar multifacetado to have a glimpse of what will be the new sobre o tema, de forma a vislumbrarmos quais serão values and concepts that artistic expres- os novos valores e conceitos que a arte nos anunciam. sions announce to us. This book presents these multiple views Este livro traz múltiplos olhares sobre as mais varia- of various artistic expressions, especially das expressões artísticas, especialmente dos artistas of the artists who live in Rio de Janeiro, residentes na cidade do Rio de Janeiro, revelando a revealing the vast creative fertility that is enorme fertilidade criativa que, mesmo na atualidade, rich and diverse, even in current times. From this point of view, the curator and apresenta-se rica e diversificada. organizer of this book, Paulo Herkenhoff, Foi com esse olhar que o curador e organizador deste articulated a multitude of analyses by sen- livro, Paulo Herkenhoff, articulou uma multiplicidade sitive and precise critics on diverse expres- de análises de críticos sensíveis e precisos sobre ex- sions of art, presenting us tendencies and pressões de arte diversas. Eles nos apresentam tendên- (sometimes unexpected) biases, providing enlightenment about such manifesta- cias e vieses (por vezes, inesperados), provendo ilumi- tions and consequently about their roots. nação sobre tais manifestações e, consequentemente, Therefore, the present publication is sobre suas raízes. a contribution to reflection and intends Assim, a presente obra se trata de uma contribuição to reveal that Rio de Janeiro has been re- newing its identity, while also keeping its para a reflexão e tenciona revelar que o Rio de Janeiro strength and its ability to reinvent itself – vem renovando sua identidade, sem deixar de manter as there is no better way to do this than sua força e sua capacidade de se reinventar – e não há through art. forma melhor de fazer isso do que pela arte.

Sidnei Gonzalez Rio de Janeiro has always had the vo- O Rio de Janeiro sempre teve a vocação da con- cation to contemporaneity, welcoming temporaneidade, com seus braços abertos ao acolhi- the multifaceted artistic and cultural mento de multifacetados movimentos artísticos e movements of our history. With a perfect mix of races, colors, sounds, aromas and culturais de nossa história. Com uma mistura perfeita movements, Rio de Janeiro is a synthe- de raças, cores, sons, aromas e movimentos, o Rio de sized piece of Brazil, artistically designed Janeiro é um pedaço sintetizado do Brasil, artistica- by nature and by artists. mente desenhado pela natureza e por seus artistas. By supporting Rio XXI – Contemporary Trends editorial project, Banco Fator – Ao colaborar com o projeto Rio XXI – Vertentes Con- which was born in Rio de Janeiro in 1967 – temporâneas, o Banco Fator – que nasceu no Rio de Ja- remains aligned with its vocation to neiro em 1967 – permanece alinhado à sua vocação de foster cultural actions that enhance the fomentar ações de Incentivo à Cultura que enalteçam creativity, beauty, sensitivity and values a criatividade, a beleza, a sensibilidade e os valores that merge to consolidate this immense nation. Moreover, this was a way of hon- que se mesclam para consolidar esta imensa nação. oring the city in which the bank recog- Ademais, esta foi uma maneira de homenagear a cida- nized itself as a financial institution for de em que nos reconhecemos como instituição finan- the first time. ceira pela primeira vez. We hope that the images and texts con- tained in this book are strands of fluid ex- Que as imagens e textos contidos neste livro sejam pression, capable of exciting, influencing, vertentes de fluida expressão, capazes de emocionar, mobilizing and enriching the Brazilian influenciar, mobilizar e enriquecer o imaginário brasi- imagination, to recognize ourselves as a leiro, para nos reconhecermos como povo e para guiar- people and to guide the path of present mos o caminho das gerações presentes e futuras. and future generations. Parabéns à FGV pela iniciativa. Congratulations to FGV for the initiative.

Banco Fator Sumário

Introdução 12 Arte afrocarioca no século XXI 100 Introduction Afrocarioca art in the 21st century Paulo Herkenhoff Marcelo Campos

Rio: cidade contemporânea? 22 Cidade das Quebradas, 116 Rio: contemporary city? o vagão das mulheres Silvia Finguerut e Paulo Herkenhoff City of the Broken, the womens's car Heloísa Buarque de Holanda Bibliotecas Parque, 42 um impulso iluminista Uma maré de possibilidades 128 Park Libraries, an Enlightenment impulse para o Rio de Janeiro Vera Saboya A tide (maré) of possibilities for Rio de Janeiro Rio, histórias 48 Eliana Sousa Silva de jardins e paisagens Rio, histories of gardens and landscapes Observatório de Favelas 144 Paulo Herkenhoff e Galpão Bela Maré – reconhecendo e afirmando Rio, novos modos de apresentar a 82 as potências dos história, a necessidade de saber territórios populares Rio, new ways of presenting history, Observatório de Favelas and the need to know Galpão Bela Maré – acknowledging and Paulo Herkenhoff asserting the competencies of popular territories Isabela Souza da Silva Rio de Janeiro, insubordinação e 156 Lugares do delírio – 230 as experiências anti-institucionais Loucura e arte nas décadas de 2000 e 2010 no Rio de Janeiro Rio de Janeiro, insubordination Places of Delirium – and anti-institutional experiences Madness and Art in the decades of 2000 and 2010 in Rio de Janeiro Bernardo Mosqueira Tania Rivera

Os fins dos tempos – 190 Quatro mestres da 254 futuros passados e passados futuros escultura do século XXI na arte contemporânea Três luzes e o pé na terra do Rio de Janeiro Four masters of The ends of times – future pasts 21st-century sculpture and past futures in contemporary Three lights and the art scene of Rio de Janeiro foot on the ground Leno Veras Paulo Herkenhoff

Dois Zés e uma Carmen 206 Postais de viajantes 260 Two Zés and one Carmen Travelers postcards Paulo Herkenhoff Paulo Herkenhoff

Clarice Lispector e os 212 Notas 277 diagramas de alteridade Notes na arte do Rio de Janeiro and the alterity diagrams in the art of Rio de Janeiro Paulo Herkenhoff Introdução

Paulo Herkenhoff

Introduction influenced Caetano da Costa Coelho in Rio de Janeiro has been the beacon for the the painting of the ceiling of the church Brazilian visual culture, since the colonial of the Ordem Terceira de São Francisco da period. Rio is a generous, centrifugal city Penitência (1736 and 1741), and expanded that has thought modern Brazil, incompa- from Rio to the churches of Minas by Mas- rable and always surprising. One of them is ter Ataíde. Aleijadinho came to Rio in 1777, about its origin as a human cluster. The be- but it is necessary to further evaluate the ginning of the urbanization of Rio de Janei- impact of the religious architecture of the ro did not occur with the foundation of the city on the Master from Minas, such as the city by Estácio de Sá in 1565, as the official portals and the external medallion of the positivist story tells. Recent archaeological Church of the Ordem Terceira do Carmo. surveys of Institute of National Historical In any case, Rio de Janeiro’s colonial fur- and Artistic Heritage (IPHAN) at the church niture in rosewood influenced the taste of de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, in the decorative arts of the Río de la Plata on the corner of Sete de Setembro and Pri- cities of Buenos Aires and Montevideo. meiro de Março streets found a rammed The Imperial Academy of Fine Arts was a earth fortification, objects of material cul- great leap in the modernization of the art ture and 30 human skeletons. Those are system in Brazil, distinct from the religious traces of the early 16th century, therefore, model of the colonial period. It replaced prior to the proclaimed foundation of Rio the and the Rococo with Neoclas- in 1565. The site may have emerged from sicism, the aesthetic arm of the Enlight- a Portuguese construction to defend cargo enment. From Belém to Alegre, the theft, as Guanabara Bay has always been Rio de Janeiro Academy trained artists hospitable to navigation. “It is the most from every corner. It is useless to reduce important archaeological discovery ever it to the place of academicism because in made in the state. They help to tell the it the models of Western art were prac- history of the city. The 17th century Nossa ticed: neoclassicism, romanticism, real- Senhora do Ó chapel is the first occupation ism, impressionism, post-impressionism, we know about in this area. With the found pointillism, symbolism. It was the place remains of the fortress we have evidence of of practice of historical painting, nativism, occupation even before this chapel. They plein-air, positivism, art-nouveau. A self- would be among the first Portuguese to respecting historian will look for these occupy the city in 1504 to market goods”, specifics. For decades, the effects of the Im- tells Carlos Fernando Andrade of IPHAN.1 perial Academy extended to the Southern In the colonial period, the baroque illu- Cone, reaching Argentina, Chile, Paraguay, sionist style of Giovanni Battista Gaulli and Uruguay. In the political integration of in the Church of Jesus in (1679) the country, after the revolts and regional

12 O Rio de Janeiro é a cidade farol da cultura visual brasi- A Academia Imperial de Belas Artes foi o grande leira, desde o período colonial ao presente. O Rio é cida- salto na modernização do sistema de arte no Bra- de centrífuga, generosa, que pensou o Brasil moderno, sil, distinto do modelo religioso do período colonial. incomparável e sempre surpreendente. Uma delas é so- Substituiu o barroco e o rococó pelo neoclassicismo, bre sua origem como aglomerado humano. O início da braço estético do iluminismo. De Belém a Porto Ale- urbanização do Rio de Janeiro não ocorreu com a fun- gre, a Academia carioca formou artistas de todos os dação da cidade por Estácio de Sá em 1565, como narra cantos. Inútil reduzi-la a lugar do academicismo, pois a história oficial positivista. Recentes levantamentos nela se praticaram os modelos da arte ocidental: neo- arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e classicismo, romantismo, realismo, impressionismo, Artístico Nacional (IPHAN) na Igreja de Nossa Senho- pós-impressionismo, do pontilhismo, do simbolismo. ra do Carmo da Antiga Sé, na esquina das ruas Sete de Ela foi lugar de prática da pintura histórica, do na- Setembro e Primeiro de Março, encontraram uma for- tivismo, do plein-air, do positivismo, do art-nouveau. tificação em taipa de pilão, objetos da cultura material Um historiador que se preze buscará essas especifici- e 30 esqueletos humanos. São vestígios do início do sé- dades. Por décadas, os efeitos da Academia Imperial culo XVI, portanto, anteriores à proclamada fundação se estenderam ao Cone Sul, alcançando a Argentina, do Rio, em 1565. O sítio pode ter surgido de uma cons- o Chile, o Paraguai e o Uruguai. Na integração polí- trução portuguesa para defender roubo de cargas, pois tica do país, depois de debeladas as revoltas e revo- a baía de Guanabara sempre foi hospitaleira para a na- luções regionais, os primeiros projetos de uma visão vegação. “É a descoberta arqueológica mais importan- expandida do Brasil, ainda que não totalizadora, fo- te já feita no estado. Elas servem para ajudar a contar a ram do pintor Antônio Parreiras e, sobretudo, o fotó- História da cidade. A capela da Nossa Senhora do Ó, do grafo Marc Ferrez saídos da Guanabara. século XVII, é a primeira ocupação que temos conhe- O Rio de Janeiro foi palco da inclusão da mulher cimento nesta área. Com os restos da fortaleza encon- no sistema de arte, através de uma longa história de trados temos então indícios de ocupação antes mesmo interdições, superação e destemor, desde a primeira desta capela. Seriam dos primeiros portugueses que metade do século XIX até a atual presença paritária ocuparam a cidade, em 1504, para comercializar mer- no ambiente, em que pesem alguns bolsões do poder cadorias”, conta Carlos Fernando Andrade do IPHAN.1 e da hierarquia do patriarcado machista. Essa história No período colonial, o estilo ilusionista barroco de começou em 1840 na I Exposição Geral de Belas Artes, Giovanni Battista Gaulli na igreja de Jesus de Roma que incluía uma mulher entre os participantes, Emma (1679) influenciou Caetano da Costa Coelho na pintura G. P. Gros de Prangey, além de ter sido a primeira mos- do teto da igreja da Ordem Terceira de São Francisco tra de arte no mundo a incluir fotografia. da Penitência (1736 e 1741), expandiu-se do Rio pelas A modernidade foi uma marca crescente do Rio de igrejas de Minas do Mestre Ataíde. O Aleijadinho veio Janeiro desde o século XIX, daí a cidade não caber ao Rio em 1777, mas cabe aprofundar a avaliação do nos marcos temporais da Semana de Arte Moderna de impacto da arquitetura religiosa na cidade sobre o 1922. O Rio foi moderno (bem) antes do modernismo. mestre mineiro, como os portais e o medalhão exter- Não foi à toa que Mario de Andrade, então morador no da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. Já os móveis da federal, em sua avaliação da Semana disse coloniais fluminenses em jacarandá influenciaram o que ela não surtiria efeitos no Rio, uma cidade mais gosto nas artes decorativas das cidades platenses de marota e cosmopolita. O Rio, Recife, Belém, Porto Ale- Buenos Aires e Montevidéu. gre foram modernos antes do modernismo, prévia

13 revolutions were eradicated, the first pockets of power and of the hierarchy of projects of an expanded vision of Brazil, the macho patriarchy. This history began although not a totalizing one, were those in 1840 at the I General Exhibition of Fine by painter Antônio Parreiras and, above Arts, which included a woman among the all, by the photographer Marc Ferrez, both participants, Emma G. P. Gros de Prangey, from Guanabara. and it was the first art show in the world Rio de Janeiro was the scene of the inclu- to include photography. sion of women in the art system, through Modernity has been a growing mark of th José Damasceno a long history of interdictions, overcoming Rio de Janeiro since the 19 century. For Snooker, 2001 and fearlessness, from the first half of the this reason, the city does not fit in the th Lã [Wool] 19 century to the present equal pres- timeframe of the 1922 Modern Art Week. Coleção [Collection] Frederic Guilbaud ence in the environment, in spite of some Rio was modern (well) before modernism.

14 e independentemente do que ocorreu em São Paulo período moderno no Brasil. O carioca Luiz Nunes de- em 1922. De toda forma, o Rio foi a cidade que con- senvolveu no Recife o primeiro programa extenso de feriu uma dimensão nacional a certas tendências do arquitetura moderna numa cidade brasileira. Todos modernismo. As duas grandes experiências do ensi- esses arrojos levaram a arquitetura brasileira ao re- no da arte para o moderno se deram com os cursos conhecimento internacional. de Alberto da Veiga Guignard e Bruno Lechowski, que No Brasil, a utopia do urbanismo social moderno atraíram artistas de várias partes do Brasil. A expan- tem marcos fundamentais no Rio de Janeiro. A pri- são do modernismo como um fato nacional ocorreu meira habitação coletiva de arquitetura modernista em 1931, com a 38a Exposição Geral de Belas Artes, dita foi a vila operária na Gamboa, projetada pela asso- o Salão Revolucionário, organizado por Lúcio Costa. O ciação de Lúcio Costa e Gregori Warchavchik em 1933. Palace Hotel, na Avenida Rio Branco, inaugurou na Outros exemplares foram o Pedregulho (Conjunto década de 1910 a primeira galeria de arte moderna Residencial Prefeito Mendes de Moraes, 1947) e a do Brasil. Ao longo de quase quatro décadas ali expu- Unidade Residencial da Gávea (1952) projetados por seram Tarsila, Segall, Ismael Nery, Foujita, Portinari, Affonso Eduardo Reidy para a classe média. O arquite- Guignard e muitos outros. O modernismo no Brasil, to urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos inovou ao mesmo tempo em que busca modelos de ruptura como urbanista porque pensava os espaços da do cânon, implicava em recuperar certos valores da como dotados de uma inteligência e um saber cons- tradição cultural do país, resultando na criação do trutivo, demandando uma reflexão do futuro com os IPHAN em 1937. moradores como processo de melhoria e escolha. Mais A partir do Rio de Janeiro, Lúcio Costa pensou o pla- recentemente, Carla Juaçaba, Jorge Mario Jáuregui e no urbanístico de Brasília e deu per- o Rua Arquitetos de Pedro Rivera e Pedro Évora, entre sonalidade à Brasília, a nova capital do Brasil elevada outros, demonstram inteligência, sensibilidade para à condição de patrimônio mundial pela UNESCO, e expandir funções da arquitetura na relação com o te- criou os símbolos modernos de São Paulo (o Parque cido urbano, modelo experimental de léxico dos ma- do Ibirapuera, com a sede da Bienal de São Paulo e o teriais, com marcante sensibilidade para projetos de edifício Copan) e de Belo Horizonte com o complexo espaços expositivos para a inclusão social. da Pampulha. Juscelino Kubitschek inventou a Mi- O audacioso modelo arquitetônico do Museu de nas Gerais moderna através das forças culturais do Arte Moderna do Rio de Janeiro projetado por Affon- Rio de Janeiro, com a arquitetura de Oscar Niemeyer so Eduardo Reidy, influenciou no dese- na Pampulha, outro patrimônio cultural mundial se- nho do prédio do MASP, porque as condições dos ter- gundo a UNESCO, e com Alberto da Veiga Guignard, renos dos dois edifícios eram semelhantes. O MAM cuja pintura converteu a orografia fluminense no carioca foi o espaço do neoconcretismo, abrigando mar de montanhas mineiras, que introduziu a forma- suas principais manifestações. ção moderna do artista plástico em Belo Horizonte. A presença no Rio de críticos como Mario Pedrosa A moderna sede do antigo Ministério da Educação, e , conferiu ao neoconcretismo uma como projeto desenvolvido por Lúcio Costa, Oscar espessura teórica com justeza na resolução das obras Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e outros, a partir do jamais encontrada na arte brasileira moderna. Os ne- traço inicial de Le Corbusier, foi o primeiro arranha- oconcretos resgataram a subjetividade no campo da céu sobre pilotis no mundo, rebatendo-se posterior- abstração geométrica, de uma forma ímpar no cânon mente no edifício das Nações Unidas em Nova York, da arte ocidental. A diferença neoconcreta será abor- e a melhor integração entre arte e arquitetura do dada no segundo volume desta rapsódia carioca.

15 It is not surprising that Mario de Andrade, developed by Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, then a resident of the federal capital, in his Affonso Eduardo Reidy, and others, based assessment of the Week said that it would on Le Corbusier’s initial trait, was the first have no effect on Rio, a more rascal and skyscraper on piloti in the world, later re- cosmopolitan city. Rio, Recife, Belém, and bounding in the United Nations building were modern before mod- in New York, and the best integration of ernism, previously and independently of art and architecture of the modern period what happened in São Paulo in 1922. In any in Brazil. The Carioca Luiz Nunes devel- case, Rio was the city that gave a national oped in Recife the first extensive program dimension to certain trends of modernism. of in a Brazilian city. The two great experiences of the teaching All these audacities led Brazilian architec- of art to the modern took place with the ture to international recognition. courses of Alberto da Veiga Guignard and In Brazil, the utopia of modern social Bruno Lechowski, which attracted artists urbanism has a major milestone in Rio from various parts of Brazil. The expansion de Janeiro. The first collective housing of of modernism as a national fact occurred modernist architecture was the work- in 1931, with the 38th General Exhibition ing-class village in Gamboa, designed by of Fine Arts, aka the Revolutionary Salon, the association of Lúcio Costa and Gregori organized by Lúcio Costa. The Palace Hotel, Warchavchik in 1933. Other examples were on Rio Branco Avenue, opened in 1910 the the Pedregulho (Residential Complex Pre- first gallery of modern art in Brazil. Over feito Mendes de Moraes, 1947) and the nearly four decades Tarsila, Segall, Isma- Residential Unit of Gávea (1952) designed el Nery, Foujita, Portinari, Guignard, and by Affonso Eduardo Reidy for the middle many others have been exhibited there. class. The urbanist architect Carlos Nelson Modernism in Brazil, while seeking mod- Ferreira dos Santos innovated as an urban- els of canon rupture, implied the recovery ist because he thought the favela spaces of certain values of the country’s cultur- were endowed with intelligence and con- al tradition, resulting in the creation of structive knowledge, demanding a reflec- IPHAN in 1937. tion of the future with the residents as a From Rio de Janeiro, Lúcio Costa thought process of improvement and choice. More of Brasilia’s urban plan and Oscar Niemey- recently, Carla Juaçaba, Jorge Mario Jáure- er gave personality to Brasilia, the new gui and Rua Arquitetos by Pedro Rivera and capital of Brazil elevated to the UNESCO Pedro Évora, among others, demonstrate World Heritage status, and created the intelligence, sensitivity to expand archi- modern symbols of São Paulo (Ibirapuera tectural functions in relation to the urban Park), with the headquarters of the Bienal fabric, experimental model of materials of São Paulo and the Copan building), and lexicon, with marked sensitivity to exhibi- also Belo Horizonte with the Pampulha tion space projects for social inclusion. complex. Juscelino Kubitschek invented The audacious architectural model of modern Minas Gerais through the cultural the Rio de Janeiro Museum of Modern forces of Rio de Janeiro, with the architec- Art designed by Affonso Eduardo Reidy ture of Oscar Niemeyer in Pampulha, an- influenced Lina Bo Bardi in the design other UNESCO World Cultural Heritage, of the MASP building because the con- and with Alberto da Veiga Guignard, whose ditions of the grounds of both buildings painting converted the orography of Rio de were similar. The Carioca MAM was the Janeiro into the sea of mountains of Minas space of neoconcretism, hosting its main Gerais, which introduced the modern for- manifestations. mation of the plastic artist in Belo Horizonte. The presence in Rio of critics like Mario The modern headquarters of the for- Pedrosa and Ferreira Gullar gave neo- mer Ministry of Education, as a project concretism a theoretical thickness with

16 Desde o pós-guerra, na volta do exílio em Nova York, Mario Pedrosa escolheu definitivamente viver no Rio, experiência só interrompida na ditadura de 64. Pe- drosa foi o maior crítico brasileiro de todos os tem- pos, sua visão intelectual atravessa todo o século XX, compreende o esgotamento dos parâmetros da mo- dernidade (introduz pioneiramente o conceito de arte pós-moderna), seus posicionamentos políticos são um legado valioso e válido para os desafios à liberdade no século XX, ao afirmar que em tempos de crise é pre- ciso estar com os artistas ou que “a arte é o exercício experimental da liberdade”. A força da pintura no Rio não se ancorava só na abs- tração geométrica. O vigor do signo material da pintu- ra e a fantasmática de Flavio Shiró e de Iberê Camargo formaram uma produção ímpar. Sem dúvida, a exposi- ção de Shiró no MAM carioca, em 1959, foi uma avas- saladora influência transformadora do olhar de Iberê com efeitos sobre a escala da obra, a largueza do gesto pictórico, a carga material da pincelada, a consciência do signo material, a formação da matéria no quadro (e não mais na paleta), a arqueologia da cor, o uso de trin- chas e pincéis, o arrancar de tinta nas camadas mais profundas do entitamento para trazer luz à superfície obscura e o valor simbólico do abstrato e do informe. Os princípios conceituais e a arte experimental e pública exibida no projeto curatorial do MAM cario- ca com Frederico Morais e Roberto Pontual de 1968 e as exposições organizadas por Helio Oiticica não ti- veram paralelo comparável em todo o Brasil. Em tor- no do Museu de Arte Moderna formou-se, no final da década de 1960, a mais radical geração política de ar- tistas plásticos na oposição à ditadura com Cildo Mei- reles, Barrio, Antonio Manuel, Claudio Paiva, Ascânio Bruno Miguel MMM, Waltercio Caldas, Ivens Machado, Ana Vitoria A história é contada pelos vencedores – Mussi, Tunga, Sonia Andrade e outros, ao lado de artis- Cia das Índias versus Fifa [History is told by tas de outras gerações como Lygia Pape, Helio Oiticica, winners – Indian Company versus Fifa], 2013 Óleo e tinta spray sobre prato Cia das Índias e Lygia Clark, Rubens Gerchman e Anna Maria Maioli- moldura de cedro e vidro [oil and spray paint no, e Evandro Teixeira. Essa extensa arte de resistên- on a Indian Company plate and cedar framing and glass], 74 × 53 cm cia à ditadura de 1964, ampla em sua agenda, tam- Foto [Photo] Jaime Acioli bém culminou com uma frente ampla, envolvedora

17 the entire 20th century and comprises the exhaustion of the parameters of moderni- ty (pioneering the concept of post modern art). His political positions are a valuable and valid legacy for the challenges to free- dom in the 20th century, by stating that in times of crisis one must be with the artists or that “art is the experimental exercise of freedom”. The power of painting in Rio was not only anchored in geometric abstraction. The vigor of the material sign of painting and the phantasmatic of Flavio Shiró and Iberê Camargo formed a unique produc- tion. Undoubtedly, Shiró’s exhibition at the Rio de Janeiro MAM in 1959 was an overwhelming transforming influence of Iberê’s gaze with effects on the scale of the work, the breadth of the pictorial gesture, the material load of the brushstroke, the awareness of the material sign, the forma- tion of matter in the painting (and no lon- ger in the palette), the archeology of color, the use of brushes, the plucking of paint into the deeper layers to bring light to the obscure surface, and the symbolic value of the abstract and the shapeless. The conceptual principles and exper- imental and public art exhibited in the curator project of the Rio de Janeiro MAM with Frederico Morais and Roberto Pontu- al of 1968 and the exhibitions organized by Helio Oiticica were unique throughout Brazil. Around the Museum of Modern Art, in the late 1960s, the most radical political generation of visual artists was formed, in opposition to the dictatorship, with Cildo fairness in the resolution of works never Meireles, Barrio, Antonio Manuel, Claudio found in modern . The neo- Paiva, Ascânio MMM, Waltercio Caldas, concretes rescued subjectivity in the field Ivens Machado, Ana Vitoria Mussi, Tunga, of geometric abstraction, in a unique way Sonia Andrade and others, alongside art- in the canon of western art. The neocon- ists from other generations such as Lygia crete difference will be addressed in the Pape, Helio Oiticica, Lygia Clark, Rubens second volume of this Carioca rhapsody. Gerchman and Anna Maria Maiolino, and Amalia Giacomini Since the postwar period, back from his Evandro Teixeira. This extensive art of resis- Dobra [Fold], 2012 exile in New York, Mario Pedrosa has defi- tance to the dictatorship of 1964, broad in Elásticos e pregos de latão [Elastic band and brass nails], ø45 cm nitely chosen to live in Rio, an experience its agenda, also culminated in a broad front, Coleção particular [Private collection], only interrupted during the dictatorship of involving also artists from São Paulo, such São Paulo 64. Pedrosa was the greatest Brazilian crit- as Waldemar Cordeiro, at Helio Oiticica’s Foto [Photo] Amalia Giacomini ic of all time. His intellectual vision spans New Brazilian Objectivity exhibition at

18 também de artistas de São Paulo, como Waldemar culturais como o Boi de Parintins no estado do Ama- Cordeiro, na exposição Nova Objetividade Brasileira zonas. Por outro lado, o carnaval envolveu artistas ne- de Helio Oiticica no MAM em 1967, ocasião em que oconcretos como Helio Oiticica com o no pé e Oiticica apresenta a instalação Tropicália e aborda a Amilcar de Castro e com projetos “vontade construtiva geral” na arte brasileira. O tropi- de alegorias na Mangueira. O Rio de Janeiro também calismo na arte, música, cinema e teatro explode no reinventou o réveillon do Brasil com sua celebração Rio de Janeiro. É um tempo, por exemplo, em que o de Iemanjá e fogos de artifício. Cinema Novo, um fenômeno mais concentrado no O breve círculo econômico virtuoso experimenta- Rio, se entrecruzava com as artes visuais com os car- do pela cidade no século XXI resultou na criação do tazes de Lygia Pape, a presença de Helio Oiticica como Museu de Arte do Rio (MAR), um dos dois museus de ator do cinema de ou de Ivan Cardoso arte mais visitados do Brasil em 2019 e um modelo e Neville D’Almeida. político experimental de instituição inclusiva com o A exposição Como vai você, Geração 80? (Parque eixo arte e educação. O MAR se provou ser um mu- Lage, 1984), com curadoria de Marcus Lontra, Paulo seu da sociedade civil participativa, suburbano, com Roberto Leal e Sandra Mager, reuniu a produção desta um extenso conceito de arte que desierarquiza as década, sobretudo em pintura, proveniente de várias manifestações culturais, dedicado à pluralidade das partes do Brasil, e cuja existência vinha sendo enun- diferenças e aberto a toda a cidade, caracterizando-se ciada em artigos e exposições, como o Salão Nacional como um “museu suburbano”, sensível às estéticas e de Artes Plásticas. Desde a década de 1990 com Wal- ao gosto de camadas da população até aqui ausente ter Dias & Riedweg, Paula Trope e Rosana Palazyan da maioria dos museus do Brasil. Também o MAC de que se estabelece e se consolida no Rio a “arte dos Niterói se pauta por uma política cultural próxima diagramas de alteridade”. Eles são modelos de prática desses parâmetros do MAR. Paralelamente, a cidade da arte como sistema de trocas efetivas e justas entre viu a explosão artística nas favelas como a Rocinha, o artista e indivíduos em estado de vulnerabilidade o complexo da Maré (Redes da Maré), o complexo social através de ações incidentes no plano da econo- do Alemão, na ladeira de Tavares Bastos, Mangueira, mia simbólica com resultados reais positivos para a Serrinha em Madureira, morros do Pavão e Pavãozi- vida das pessoas, como reconhecimento autoral e/ou nho, sem se esquecer da FLUP, a Festa Literária das divisão dos resultados econômicos da arte, em elisão Periferias. Artistas e curadores surgem por toda a da usurpação da mais valia simbólica deste outro. parte na cidade. No início da década de 1960, o importante cam- O século XXI, com este volume inaugural, mostra po da cultura popular foi alterado no Rio de Janeiro, uma cidade com novas perspectivas no campo social uma cidade dos grandes eventos populares. O padrão de circulação da obra de arte. O projeto editorial de operístico das escolas de samba do Rio de Janeiro, que apresentação das artes plásticas no Rio de Janeiro, reuniu, nessas agremiações, técnicos e profissionais promovido pela Fundação Getulio Vargas, se propõe do Theatro Municipal e professores e estudantes da a uma visão expandida e a uma agenda contemporâ- Escola Nacional de Belas Artes. As transformações da nea aberta, tomadas a partir do ano 2000. A edição narrativa no enredo, da encenação, da ampliação da não se ateve a um único critério de organização, como escala dos desfiles, do volume visual e do esplendor décadas ou meios técnicos. Ao longo de sua execução, sensorial do carnaval carioca se expandiu pelo Brasil o resultado foi surpreendentemente extenso com o e afetou decisivamente mesmo outras festividades envolvimento de mais de 200 artistas, demandando

19 MAM in 1967, when Oiticica presents the such as Helio Oiticica with the rhythm Buarque de Holanda, Isabela Souza da Sil- installation Tropicália and addresses the of the samba, and Amílcar de Castro and va, Silvia Finguerut and Vera Saboya have “general constructive will” in the Brazil- Franz Weissmann with the projects of the been invited. ian art. Tropicalism in art, music, cinema allegories in Mangueira. Rio de Janeiro has The art of Rio was understood as that and theater bursts in Rio de Janeiro. It is a also reinvented Brazil’s New Year’s Eve produced in or about the city, by Rio de time, for example, when Cinema Novo, a with its Iemanjá celebration and fireworks. Janeiro-born artists wherever they have phenomenon concentrated mainly in Rio, The brief virtuous economic circle ex- been performed, by adopted Cariocas or intersected with the visual arts with Lygia perienced by the city in the 21st century by visitors. The goal is to present an exten- Pape’s posters, and the presence of Helio Oi- resulted in the creation of the Rio Art Mu- sive agenda that escaped closed criteria. ticica as an actor in Glauber Rocha´s or Ivan seum (MAR), one of the two most visited This included broad issues such as archi- Cardoso and Neville D’Almeida´s films. art museums in Brazil in 2019 and an ex- tecture and urbanism, new libraries, cul- The exhibition Como vai você, Geração perimental political model of an inclusive ture without social class boundaries, cul- 80? (Parque Lage, 1984), curated by Mar- institution with the art and education axis. tural organization in the Maré favela, the cus Lontra, Paulo Roberto Leal and Sandra MAR proved to be a suburban participato- historical relationship between art and Mange, brought together the production ry civil society museum, with an extensive madness, the culture of resistance and of this decade, mainly in painting, from concept of art that de-hierarchizes cultural rising, landscapes and gardens, Clarice various parts of Brazil, whose existence manifestations, dedicated to the plurality of Lispector and the alterity diagrams, Zé Ca- was being enunciated in articles and ex- differences and open to the entire city, char- rioca and . The city, which hibitions, such as the National Salon of acterizing itself as a “suburban museum”, has always been represented by travelers Visual Arts. Since the 1990s with Walter sensitive to aesthetics and the taste of layers fascinated by its natural landscape, gen- Dias & Riedweg, Paula Trope and Rosana of the population hitherto absent from most erates the category of its own travelers Palazyan, the “art of the alterity diagrams” museums in Brazil. Also the MAC of Niterói around the world, around Brazil and the has been established and consolidated in is guided by a cultural policy close to the Brazilian territory. Rio. They are models of the practice of art same parameters of the MAR. At the same For the next volumes the art critics and as a system of effective and fair exchang- time, the city saw the artistic explosion in theorists Adolfo Montejo Navas, Guilherme es between the artist and individuals in the favelas such as Rocinha, the Maré com- Vergara, Lauro Cavalcanti, Lisette Lagnado a state of social vulnerability through ac- plex (Redes da Maré), the Alemão complex, (who could not accept the invitation to tions that affect symbolic economy with on the Tavares Bastos slope, Mangueira, participate in this issue), Luiz Camillo Os- real positive results for people’s lives, such Serrinha in Madureira, Pavão and Pavão- ório, Luiza Duarte, Maria da Glória Ferreira, as authorial recognition and/or division zinho hills, without forgetting the FLUP, Marisa Flórido, Pablo Leon de la Barra, Rafa- of the economic outcome of the art, in the Literary Festival of the Periphery. Art- el Cardoso, Fonseca, Lula Wander- elision of the usurpation of the symbolic ists and curators appear all over the city. ley, some of the authors of this volume and surplus-value of this other. The 21st century, with this inaugural vol- others will be invited to participate. Among In the early 1960s, the important field of ume, shows a city with new perspectives the subjects to be covered are museums popular culture has been changed in Rio in the social field of art circulation. The and cultural centers in favelas, graffiti and de Janeiro, a city of major popular events. editorial project for the presentation of other works in public spaces, new gender The opera standard of the Rio de Janeiro visual arts in Rio de Janeiro, promoted by policies, female activism in art, artist train- samba schools brought together, in these the Fundação Getulio Vargas, proposes ing in Rio de Janeiro, residential projects associations, technicians and profession- an expanded vision and an open contem- in Rio, premises of Rio de Janeiro awards, als of the Municipal Theater and teachers porary agenda, taken as of the year 2000. visual poetry, video art and experimental and students of the National School of The issue did not meet a single organiza- cinema, open space art, neo-pentecostal Fine Arts. The transformations of narrative tional criterion, such as decades or techni- aesthetic, art and education in Rio, against in the plot, the staging, the expansion of cal means. Throughout its execution, the the natural destiny: the city of engineer- the scale of the parades, the visual volume result was surprisingly extensive with ing, fire histories, the culture of Rocinha, and the sensory splendor of the Rio Carni- the involvement of more than 200 artists, Indians in the scene of city, graffiti, artist’s val have expanded throughout Brazil and demanding that the issue be divided into books, National Museum: the possible re- have decisively affected even other cultur- several volumes, this being the first. The construction, lesson of Carioca things, art al festivities such as the Boi de Parintins in art critics Bernardo Mosqueira, Leno Ve- and science, art and history, art and music, the state of Amazonas. On the other hand, ras, Marcelo Campos, Tania Rivera and the paths of current painting in Rio, four con- the Carnival involved neoconcrete artists culture critics Eliana Souza Silva, Heloisa structive generations, more travelers.

20 Angelo Venosa Sem título [Untitled], 2013 Acrílico [Acrylic], 23 × 33 × 23 cm sua edição partilhada em volumes, sendo este o pri- Para os próximos volumes serão convidados a escre- meiro. Foram convidados os críticos de arte Bernardo ver os críticos e teóricos de arte Adolfo Montejo Navas, Mosqueira, Leno Veras, Marcelo Campos, Tania Rive- Guilherme Vergara, Lauro Cavalcanti, Lisette Lagnado ra e as críticas da cultura de Eliana Souza Silva, Heloi- (que não pode aceitar o convite para participar da pre- sa Buarque de Holanda, Isabela Souza da Silva, Silvia sente edição), Luiz Camillo Osório, Luiza Duarte, Maria Finguerut e Vera Saboya. da Glória Ferreira, Marisa Flórido, Pablo Leon de la Bar- A arte do Rio foi entendida como aquela produzi- ra, Rafael Cardoso, Raphael Fonseca, Lula Wanderley, da na cidade ou sobre ela, por artistas cariocas de alguns dos autores deste volume e outros. Entre os as- nascimento onde quer que atuassem, por cariocas suntos a serem contemplados estão museus e centros de adoção ou por visitantes. O objetivo é apresentar culturais em favelas, grafite e outras obras em espaços uma diversificada agenda que escapasse de critérios públicos, novas políticas de gênero, ativismo feminino que fechassem o compasso. Foram incluídas amplas em arte, formação de artista no Rio de Janeiro, proje- questões como arquitetura e urbanismo, novas bi- tos de residências do Rio, premissas de prêmios cario- bliotecas, a cultura sem fronteiras de classe social, a cas, poesia visual, vídeo arte e cinema experimental, organização cultural na favela da Maré, a histórica arte em espaço aberto, uma estética neo-petencostal, relação entre arte e loucura, a cultura de resistên- arte e educação no Rio, contra o destino natural: a ci- cia e levante, paisagens e jardins, Clarice Lispector dade da engenharia, histórias de incêndios, a cultura e os diagramas de alteridade, Zé Carioca e Carmem da Rocinha, índios na cena da cidade, grafite, livros- Miranda. A cidade, que sempre foi representada por de-artista, Museu Nacional: a reconstrução possível, viajantes fascinados por sua paisagem natural, gera lição de coisas cariocas, arte e ciência, arte e história, a categoria de seus próprios viajantes pelo mundo, arte e música, caminhos da pintura atual no Rio, qua- pelo Brasil e por seu próprio território. tro gerações construtivas, mais viajantes.

21 Rio: cidade contemporânea?

Silvia Finguerut e Paulo Herkenhoff

Rio: contemporary city?

“When Europeans found the Guanabara Bay in the 16th century, they saw an ab- solutely unique and magnificent nature and founded the city of São Sebastião of Rio de Janeiro. The combination of sea, mountains and forest surrounding it has always been the scene for major and im- portant historical events in Brazil.”

This is the starting text of the dossier “Rio de Janeiro: Carioca Landscapes be- tween the Mountain and the Sea”, which made the city of Rio de Janeiro win, in 2012, the title of world heritage for the universal value of its urban landscape. The dossier presents the city as an ex- ceptional example of the challenges, con- tradictions and the creativity encompass- ing Brazilian people. For the first time, the cultural landscape category was associat- ed to the recognition of the existing har- mony between the natural landscape and human intervention, including the use and practices in its space and its cultural manifestations. The title ‘world heritage’ could indicate that the city has evolved in a sustainable manner, preserving its environment while building its identity.

Jardim suspenso do Palácio Capanema, projeto de Burle Marx [Roof garden – Capanema Palace, project by Burle Marx] (1945) Foto [Photo] Leonardo Finotti

22 “Uma natureza absolutamente singular e magní- portugueses e de outras origens, além do Mestre Va- fica foi o que os europeus encontraram quando, no lentim, o artista filho de uma escrava que construiu século XVI, avistaram a Baía de Guanabara e fun- igrejas esplêndidas, como a Igreja de São Pedro dos daram a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Clérigos, o chafariz do Largo do Paço e o Passeio Pú- Seus arredores caracterizados pela combinação blico, o primeiro do jardim aberto à população nas entre o mar, as montanhas e a floresta, ao longo Américas. Ademais, Valentim foi uma fonte didática de mais de quatro séculos de história, foi e tem para Aleijadinho. sido palco de grandes e importantes eventos histó- A constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil ricos do Brasil.” e Algarves demandou a modernização de sua capital nos trópicos, substituindo a metrópole colonial por É desta forma que se inicia o dossiê Rio de Janeiro, uma cidade adequada à diplomacia imperial que se paisagens cariocas entre a montanha e o mar que le- instalava com o Príncipe Regente Dom João VI. Foi varam a cidade do Rio de Janeiro a conquistar, em contratada a Missão Artística Francesa (1816), que 2012, o título de patrimônio mundial pelo valor uni- revolucionaria os padrões “góticos”, como se dizia na versal da sua paisagem urbana. época, barrocos e rococós do Rio. A Missão foi um sal- O dossiê apresenta a cidade como um exemplo ex- to radical na produção estética, talvez até mais que cepcional dos desafios, das contradições e da criati- a Semana de Arte Moderna (1922), por suas conse- vidade do povo brasileiro. Pela primeira vez, utiliza- quências mais amplas e imediatas. Finalmente, o se a categoria de paisagem cultural para reconhecer Brasil abandonava o barroco, forma vinculada à Con- a harmonia entre a paisagem natural e a interven- tra-Reforma, e adotava um sistema de arte moderno ção do homem, incluindo o uso e as práticas em seu com o neoclassicismo. O arquiteto neoclássico Grand- espaço e suas manifestações culturais. O título de jean de Montigny circulava entre as cortes napoleô- patrimônio mundial poderia significar que a cidade nicas na Europa do Leste e ficou encarregado de obras evoluiu de forma sustentável, preservando seu meio monumentais no Rio de Janeiro, enquanto Debret se ambiente e construindo a sua identidade. dedicou a registrar edifícios, arquitetura efêmera, a O resultado da evolução do traçado urbano do cenografia na capital do Reino Unido. Rio de Janeiro se deve aos planos urbanísticos e às Ao final do séculoXIX , com a abolição e o final do obras de infraestrutura que delinearam ruas e ave- Império, buscou-se higienizar o centro da cidade, que nidas. A cidade, que foi capital federal no período tinha cerca de 500 mil habitantes. O prefeito Perei- de 1763 a 1960, sempre se propôs a buscar soluções ra Passos liderou reformas e projetos que empreen- urbanísticas audaciosas que pudessem melhorar deram uma intervenção em busca de modernizar e a vida na cidade, tais como desmontes de morros, limpar a cidade, deixando-nos como legado, dentre aterros, retificação do mar e túneis. No século XVIII, outros, a belíssima Avenida Central (hoje Avenida o abastecimento de água e o porto desenharam pra- Rio Branco). No entanto, foi mantido o Morro da Fa- ças e chafarizes, aquedutos e canais, sempre com vela, atual Morro da Providência, que deu nome ao a preocupação de atender à elite, levando escravos conglomerado de casebres empinado nas alturas. e posteriormente um contingente da população a Nascia a favela pioneira da cidade como uma solu- ocupar charcos e morros ou a buscar a periferia da ção habitacional espontânea para uma população cidade. No Rio setecentista, houve grandes remode- excluída sem expectativas de política de habitação lações e progresso na cidade que se tornaria a ca- pública. Este era o Rio de Janeiro que se preparava pital do Vice-Reino, sob a condução de engenheiros para ser uma moderna capital republicana, adaptada

23 The result of the evolution of Rio de Ja- Master Valentim, son of a slave, was an neiro’s urban layout was determined by artist and made splendid contributions, the urban planning and the infrastructure building the São Pedro dos Clérigos constructions that shaped the streets Church, the Largo do Paço fountain and and avenues. The city that has been the the Passeio Público, which is the first pub- federal capital between 1763 and 1960 lic garden in the Americas. Valentim has always stayed open to pursuing daring also been an important didactic source urban solutions to improve city life, such for Aleijadinho. as hill demolitions, embankments, sea The constitution of the United Kingdom rectification and tunnels. In the 18th cen- of Portugal, Brazil and the Algarves re- tury, the water supply and the port com- quired the modernization of its capital in posed drawings of squares and fountains, the tropics, replacing the colonial metro­ aqueducts and canals, always oriented to polis with a city suitable for the imperial Pilotis e painel de azulejos de Cândido Portinari – serving the elite, which led slaves – and diplomacy established by the Prince John Palácio Capanema [Pilotis and Candido later a contingent of the population – to VI of Portugal. When hired, the French Portinari’s tiles panel – Capanema Palace] (1945) occupy wetlands and hills or to seek the Artistic Mission (1816) revolutionized the Foto [Photo] Fernando Leite, 2011 outskirts of the city. Baroque and Rococo standards of Rio, the > Le Corbusier In the 18th century, the city registered “Gothic”, as they would say at the time. Plano para a cidade do Rio de Janeiro major refurbishments and progress The Mission marked a radical leap in the [Rio de Janeiro city plan], 1929 and Rio would become the capital of aesthetic production, perhaps even more Carvão e pastel sobre papel [Charcoal and pastel the Viceroyalty of Brazil, led by engi- than the Modern Art Week of 1922 for its on paper], 76 × 80,5 cm neers from Portugal and other countries. wider and immediate consequences. Acervo [Collection] Fundação Le Corbusier

24 para um novo patamar de vida cosmopolita com Os anos de 1930, em contínua inspiração do urba- visitas diplomáticas, conferências e congressos, mas nismo europeu, promovem o funcionalismo e todo o que também enunciava sua marca de exclusão. aparato conceitual modernista, sobretudo trazidos O prefeito Pereira Passos adotou o paradigma do por Le Corbusier, buscando atender à promessa da planejamento de Paris pelo barão de Haussmann, industrialização. A cidade ganhou planos sucessi- por vezes dito o artista da destruição, tal o furor de vos, ora por necessidade de novas infraestruturas, modernização que avançou sobre construções histó- ora pelo crescimento da máquina administrativa, ricas. Como em Paris, as reformas do Rio desafoga- e belos prédios modernos ou em estilo art déco. O ram o trânsito, cuidaram da insalubridade, fizeram modernismo na arquitetura vem depois do urbanis- surgir o grande boulevard da Avenida Central, as mo: o Palácio Gustavo Capanema (MEC), que reuniu galerias e hotéis modernos, e cuidaram da retifica- grandes arquitetos (Lucio Costa, Carlos Leão, Oscar ção da orla na direção do Leblon. Quando esteve no Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vascon- Rio em 1929 e em 1936, Le Corbusier declarou que cellos e Jorge Machado Moreira) sob o risco inicial Pereira Passos havia realizado um verdadeiro mi- proposto por Le Corbusier teve o mais importante lagre urbanístico. O monumental Mercado Munici- programa de inclusão de arte no Brasil, com obras pal foi o maior exemplo de arquitetura de ferro no de arte integradas de , Bruno Gior- Brasil, mas foi demolido no final dos anos 1950 para gi, Adriana Janacópulos e outros, bem como móveis dar cursos às demandas de vias expressas determi- de Lucio Costa e paisagismo de . nadas pela indústria de automobilismo. A Exposição Do conjunto resultou o principal patrimônio arqui- do Centenário da Abertura dos Portos em 1907 e a tetônico do modernismo latino-americano e o pri- impressionante Exposição do Centenário da Inde- meiro edifício sobre pilotis da história, que serviu pendência em 1922, a primeira iniciativa internacio- de ponto de partida para o projeto do prédio da sede nal do Brasil a ser divulgada na imprensa interna- da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova cional, deixaram importantes marcas na paisagem. Por mais de um século, a cidade realizou mudanças de patamar em sua capacidade de organizar gran- des eventos como o carnaval e sua tradição de cons- truir arquitetura temporária, como, atualmente, para o Rock in Rio. Na gestão do prefeito Antônio Prado Junior, o Pla- no Agache incluiu projetos como a Praça Paris (1926) e a Esplanada do Castelo, só realizado em parte, com os edifícios com altas colunas, implantadas rente ao meio-fio, mas que abrigam amplos espaços. São qua- dras cobertas sob essa estrutura que amenizam a vida em dias de calor e abrigam em caso de chuva. Malgrado o descontrole, muitos desses edifícios estão pelo centro da cidade. Os mais importantes edifícios construídos na Esplanada foram a sede dos Ministérios da Fazen- da, do Trabalho e, sobretudo, o exemplar Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema.

25 When Brazil finally abandoned the Ba- roque style, a form related to the Counter- Reformation, the country adopted a mod- ern art system with the Neoclassicism. The neoclassical architect Grandjean de Montigny was moving around the Napo- leonic courts in Eastern and was in charge of monumental works built in Rio de Janeiro, while Debret devoted himself to recording such buildings, the ephemer- al architecture and the scenography in the capital of the United Kingdom. At the end of the 19th century, with the slaves abolition and the end of the Empire, there was a turn to sanitize the city, which had about 500.000 inhabitants. The May- or Pereira Passos led reforms and projects that undertook an intervention intended to modernize and clean the city; the idea was to contribute with a legacy that in- cluded the stunning Central Avenue (now named Rio Branco Avenue). However, the Morro da Favela (currently called Morro da Providência) was kept, giving its name to the conglomerates of huts built in the heights of Rio de Janeiro. The city’s pioneer slum was born as a spontaneous housing solution for an ex- cluded population with no expectation of accessing public housing policies. This was Rio de Janeiro’s panorama while pre- paring to be a modern republican capital, adapting itself to experience a new level of a cosmopolitan life with diplomatic vis- its, conferences and congresses, but also announcing its exclusion marks. The Mayor Pereira Passos adopted the had performed a true urbanistic miracle. paradigm of Parisian planning through The monumental Municipal Market was Baron Haussmann, often called “the art- the greatest example of iron architecture ist of destruction” due to the expressive in Brazil, but it was demolished in the late rage of modernization that advanced over 1950s in favor of the freeways demanded historical buildings. Just like in Paris, the in the growing motoring industry. Pórticos do MAM projetados por Affonso Reidy renovations could unburden traffic in Rio, The exhibition of the centenary of the e Carmen Portinho [MAM’s gantries conceived remedy the lack of sanitation, resolve the opening of the ports of Brazil in 1907 and by Affonso Reidy and Carmen Portinho] (1967) rectifying of the sea waterfront toward the impressive independence centenary Foto [Photo] Fernando Leite, 2007 Leblon area and resulted in the grand bou- international exposition in 1922 marked > Calçadão de pedras portuguesas de levard of the Central Avenue, as well as the first global initiatives in Brazil Copacabana concebido por Burle Marx modern galleries and hotels. covered by the international press, which [Copacabana sidewalk made of Portuguese When Le Corbusier visited Rio in 1929 also contributed to the changing landscape. stones, conceived by Burle Marx] and 1936, he declared that Pereira Passos For over a century, the city has registered Foto [Photo] Bruno Veiga, 2007

26 York. Entre os elementos da arquitetura moderna hospital de transplantes de órgãos, um grande tea- introduzidos no Rio estão os pilotis e o sistema de tro de ópera, uma colossal concha acústica para rock brise-soleil para regular o excesso de luminosidade, e quadras de esportes – tudo unido à cidade por um presentes no projeto do Ministério da Educação e logo túnel também de cristal. adaptados com grande elegância na sede da Asso- Com 4,5 milhões de habitantes em 1970, com um ciação Brasileira de Imprensa (ABI), no projeto dos crescimento de mais de 30% em 10 anos, a adminis- irmãos Marcelo e Milton Roberto, de 1935. tração municipal buscou fazer uma nova higieniza- Com seu período mais profícuo na década de 1950, ção urbana depois de tragédias como inundações e Affonso Eduardo Reidy foi o arquiteto moderno bra- incêndios, retirando a favela da Catacumba, na Lagoa sileiro que pensou o compromisso social com a ha- Rodrigo de Freitas, e levando boa parte de seus mora- bitação de interesse popular com o Conjunto do dores para a Cidade de Deus, a mais de 33 km de dis- Pedregulho, originalmente planejado para abrigar tância. A orla de Copacabana foi duplicada e ganhou funcionários públicos municipais. O edifício do Mu- o calçadão com desenhos geométricos de Burle Marx. seu de Arte Moderna (MAM) garantiu a Reidy o papel Na Zona Oeste, o polêmico projeto de Lucio Costa de melhor arquiteto de museus do Brasil, pelo respei- orientou o crescimento da Barra e de Jacarepaguá, to à obra de arte e pelo diálogo com os responsáveis mas rapidamente recebeu alterações deturpadoras pelas instituições para produzir espaços respeitosos por parte da pressão das empresas imobiliárias. para a arte. Ademais, Reidy ofereceu um programa Depois da transferência da Capital Federal para de soluções para o edifício do MAM, que foi utilizado Brasília, o Plano Doxiadis, também conhecido como por Lina Bo Bardi no projeto do Museu de Arte de São Plano Policromático, foi encomendado pelo gover- Paulo Assis Chateaubriand (MASP), ajudando-lhe a nador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, em resolver os desafios de São Paulo: a obrigação de que 1965. Arquiteto e urbanista, Constantino Doxiadis a construção não atrapalhasse a vista, nem impedis- procurou projetar as necessidades futuras da cidade se a passagem das pessoas em nenhum momento, em termos de circulação, habitação, trabalho e la- levou o projeto a utilizar um sistema de pórticos, com zer. O Aterro do Flamengo é um complexo projeto de grande área térrea livre sob a estrutura; assim, o sis- tema foi adotado também no museu paulistano. A audácia de engenharia do prédio do MAM carioca, entregue a Carmen Portinho para o cálculo e as solu- ções dos desafios técnicos, resultou num prédio sem colunas internas de sustentação, já que a primeira laje se apoia sobre vigas em V e a segunda é pendu- rada por tirantes vindos das vigas superiores. Se Rei- dy foi o nome da arquitetura moderna de interesse social no Rio, em sua geração, Sergio Bernardes foi o mais delirante, propondo grandes audácias desafia- doras da gravidade, como o Pavilhão de São Cristóvão, que teve sua cobertura destruída por um vendaval, e projetos nunca construídos, como o Grande Ovo, uma grandiosa bolha cristal, com vários andares, onde funcionariam o Parlamento do Terceiro Milênio, um

27 still standing in the city center. The most important buildings on the Esplanada were the headquarters of the Ministries of Finance, Labor and, above all, the outstand- ing Ministry of Education and Health, now denominated Palácio Capanema. The 1930s, in turn, flowing through a continuous inspiration coming from the European urbanism, bring the function- alism and the entire modernist concep- tual apparatus, especially brought by Le Corbusier, who was aiming to fulfill the promise of industrialization. The city earned successive plans and beautiful modern and buildings, some- times related to new infrastructure needs, sometimes due to the growth of the ad- ministrative machine. Modernism in architecture comes right after urbanism: the Palácio Capanema (MEC) brought together great architects (Lucio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcel- los and Jorge Machado Moreira) under the initial risk proposed by Le Corbusier; and the project registered the most important art inclusion program in Brazil, with inte- grated artwork by Candido Portinari, Bru- no Giorgi, Adriana Janacópulos, among others, as well as furniture made by Lucio Costa and a landscaping project by Rober- to Burle Marx. Palácio Capanema emerged as the main architectural contribution of Latin American modernism and the first building with pilotis in history, which many changes in its ability to arrange ma- served as a starting point for the design of jor events, like Carnival, and its tradition of the United Nations (UN) headquarters in building a temporary architecture – just New York. Among the elements of modern like in the Rock in Rio festival nowadays. architecture introduced in Rio are the pi- During Mayor Antonio Prado Junior’s lotis and the brise-soleil system to regulate administration, the Agache Plan included the excessive luminosity present in the projects such as the Paris square (1926) and project of the Ministry of Education, which the Esplanada do Castelo, which was par- was soon adapted with great elegance for Sede da FGV, projetada por Oscar Niemeyer tially executed, with tall columned build- the headquarters of the Brazilian Press As- nos anos 1940 [FGV headquarters, projected ings established very close to the curbs, sociation (ABI) in the project of the broth- by Oscar Niemeyer in 1940’s] but able to house large spaces. It’s precisely ers Marcelo and Milton Roberto in 1935. > Auditório da FGV, projetado por Oscar these blocks covered by such structures Having his most fruitful period in the Niemeyer em 2011 [FGV auditorium, that can lessen life on hot days and give 1950s, Affonso Eduardo Reidy was the projected in 2011 by Oscar Niemeyer] shelter in the rainy ones. Despite the lack of Brazilian modern architect responsible Fotos [Photos] Marcelo Freire urban control, many of these buildings are for the social commitment to housing

28 urbanismo de Affonso Reidy, com desenho paisagís- na década de 1940, mas construída nos anos 1960, tico de Burle Marx, concebido e coordenado por Lota na enseada de Botafogo, de Oscar Niemeyer. Macedo Soares. Com o Parque do Flamengo, como é A gestão omissa da cidade levou à especulação também denominado, mudou-se de modo definiti- imobiliária. A omissão do Instituto do Patrimônio vo a feição do Rio, priorizando o modelo de trans- Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que se base- porte pelo automóvel, mas também valorizando a ava em velhos paradigmas que ignoravam a arquite- paisagem e adensando a Zona Sul, o que gerou de- tura eclética, e a imprensa interessada nos anúncios manda pelos túneis que foram abertos de modo a fa- de incorporações levaram ao desastre estético da cilitar o trânsito. Arquitetura e urbanismo passam praça Marechal Floriano, conhecida como Cinelândia. a caminhar juntos. Foram construídas importantes Este era o conjunto mais homogêneo de edifícios de edificações do modernismo carioca, como o MAM, estilos variados, do eclético e neoclássico ao art-nou- com seu Bloco Exposições inaugurado em 1968, que veau e art-déco, que incluíam o Teatro Municipal, a seria, para muitos, a última grande construção mo- Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, derna de relevo levantada no Rio no século XX, e a a Câmara Municipal, o Clube Naval, as antigas sedes sede da Fundação Getulio Vargas (FGV), projetada do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Jockey Club,

29 of popular interest, with the Conjunto do Freitas, rearranging most of its residents All these factors originated the aesthet- Pedregulho, originally designed to house into Cidade de Deus, located more than ic disaster in Marechal Floriano square, municipal government employees. The 33 km away. The Copacabana waterfront known as Cinelândia. This was the most building of the Museum of Modern Art was doubled and received the calçadão homogeneous set of buildings of varying (MAM) established Reidy’s role as the (a giant sidewalk) with Burle Marx’s geo- styles, from eclectic and neoclassical to best museum architect in Brazil, known metric drawings. In the Zona Oeste area and art deco, which included for his art appreciation and the dialogues (West Zone of Rio de Janeiro), the contro- the Municipal Theater, the National Li- with the institutions’ leaders aiming to versial project proposed by Lucio Costa brary, the National Museum of Fine Arts, produce respectful spaces for the arts. oriented the growth observed in Barra and the City Hall of Rio de Janeiro, the Naval In addition, Reidy inaugurated a program Jacarepaguá areas, but shortly suffered Club, the former headquarters of the Su- of solutions for the MAM building that misleading changes resulting from the preme Court (STF) and the Jockey Club, as was used by Lina Bo Bardi on the Museum pressure from real estate companies. well as the Monroe Palace, which former- of Art of São Paulo Assis Chateaubriand In 1965, succeeding the transfer of the ly housed the Federal Senate, suddenly (MASP) project, helping her tackle some Federal Capital to Brasilia, the Doxiadis demolished in 1974 for building the sub- of São Paulo’s challenges: the construction Plan, also known as the Polychromatic way. In the last quarter of the 20th century, could never interfere in the view or block Plan, was commissioned by the Guanaba- a report produced by the architect Lucio the passage of people, which made the ra State Governor Carlos Lacerda. The ar- Costa denying the protection to the eclec- project use a system of gantries, keeping chitect and urbanist Constantino Doxiadis tic set of buildings and opened the flank a large free floor area under the structure. sought to design the city’s future needs for the decharacterization of Marechal Carmen Portinho commanded the calcula- concerning movement, housing, work and Floriano square. tions and solutions for the technical chal- entertainment. The Flamengo Park marked In the end of the 20th century, the city lenges the MAM Carioca building present- a complex urbanistic project by Affonso achieves a smaller population growth ed, and the audacious engineering project Reidy, with a landscaping design by Burle rate and its leaders introduce new infra- resulted in a building with no internal Marx, conceived and coordinated by Lota structures: the completion and inaugu- supporting , as the first concrete Macedo Soares. This is known as a defini- ration of the highways Linha Vermelha slab is sustained by V-shaped beams and tive turning point for Rio, prioritizing the (started in 1978) and Linha Amarela (start- the second is suspended by pulling units transportation model by cars, but also en- ed in 1994), as well as the construction coming out of the upper beams. If Reidy hancing the landscape and the expanding of the Sambódromo with Oscar Niemey- became the name of modern architecture occupation of the Zona Sul area (South er’s project – which involved acceptance of social interest in Rio during his genera- Zone of Rio de Janeiro), which required the controversies for trying to unite Carnival tion, Sergio Bernardes was the most frantic construction of tunnels to ease traffic. and education. amongst these professionals, proposing Architecture and urbanism thus become Still during Leonel Brizola’s manage- great audacities that challenged gravity, closely associated and many important ment (1983-1987 and 1991-1994), a proj- such as the São Cristóvão Pavilion, that had buildings were built in the modernist Rio, ect of a factory of schools for full-time its roof destroyed by a windstorm, as well such as the MAM, with its block of exhi- teaching impressed the city, under the as great projects that remained on paper, bitions inaugurated in 1968, which rep- guidance of and his eman- such as the Grande Ovo (Big Egg), a mag- resents for many the last major modern cipatory educational project. Around nificent crystal bubble with many floors building erected in Rio in the 20th centu- 500 Integrated Public Education Cen- that would become the headquarters of ry, and the headquarters of the Fundação ters (CIEPs) were built in different areas the Third Millennium Parliament, housing Getulio Vargas (FGV), designed in the throughout the city, but also in several an organ transplant hospital, a big opera 1940s and built in the 1960s by Oscar municipalities within the state of Rio. house, a colossal acoustic shell for rock Niemeyer in the Botafogo Cove. Simultaneously, still in the 1970s, the ar- music and sports courts – all connected to The oversight in the management of the chitect Augusto Ivan de Freitas Pinheiro the city by crystal tunnel. city led to real estate speculation, helped launched the idea of creating a Cultural With 4.5 million inhabitants in 1970, reg- by the omission of the Institute of Nation- istering a growth of over 30% in 10 years, al Institute of Historic and Artistic Heri- the municipal administration tried to tage (IPHAN), which was grounded in old make a new urban sanitation after trage- standards and overlooked the eclectic ar- Sambódromo, projetado por Oscar Niemeyer dies such as floods and fires, removing the chitecture. Add to this the press interests [Sambodrome, projected by Oscar Niemeyer] Catacumba slum from Lagoa Rodrigo de in the new incorporation advertisements. Getty Images, 2017

30 além do Palácio Monroe, que abrigava o Senado Fe- Foram construídos cerca de 500 Centros Integra- deral, repentinamente demolido em 1974 para a pas- dos de Educação Pública (CIEPs) em bairros de toda sagem do metrô. No último quartel do século XX, um a cidade, mas também em diversos municípios do parecer do arquiteto Lucio Costa negou proteção ao estado do Rio. Simultaneamente, o arquiteto Au- conjunto eclético e abriu o flanco para a descaracteri- gusto Ivan de Freitas Pinheiro, ainda nos anos 1970, zação da praça Marechal Floriano. lançou a ideia de um Corredor Cultural, que preser- Ao final do século XX, a cidade passa a reduzir vasse o patrimônio construído no centro do Rio. O a taxa de crescimento populacional e seus gesto- programa municipal de Augusto Ivan articulava res introduzem novas infraestruturas: a conclusão preservação do patrimônio, meio ambiente, estímu- e inauguração das Linhas Vermelha (iniciada em los fiscais e educação patrimonial. O Corredor Cultu- 1978) e Amarela (iniciada em 1994), planejadas em ral implementou políticas públicas municipais para 1965, e a construção do Sambódromo com projeto de preservar cerca de 30 mil imóveis envolvidos em 36 Oscar Niemeyer, de aceitação polêmica por tentar áreas urbanas protegidas: as Áreas de Proteção do unir Carnaval e educação. Ainda durante o governo Ambiente Cultural (Apacs). de Leonel Brizola (1983-1987 e 1991-1994), o projeto Na década final do século XX, destacaram-se a or- de uma fábrica de escolas para ensino em tempo in- ganização da orla da cidade e, sobretudo, o projeto Rio tegral comoveu a cidade, sob a orientação de Dar- Cidade, dando assim identidades distintas às diver- cy Ribeiro e o projeto de educação emancipatória. sas áreas, sendo 15 na primeira fase e 15 na segunda

31 Corridor that would preserve heritage of The arrival of the 21st century finds Rio de in the space formed by two intersecting the center of Rio. Augusto Ivan’s munici- Janeiro with almost 6 million inhabitants avenues in a monotonous landscape with pal program articulated the preservation and consolidated as a tourist destination no public spaces. of heritage, environment, tax incentives nationally and globally. In fact, its metro- In 2009, the City Hall announced that and heritage education. The Cultural Cor- politan region had over 13 million inhabi- the city would host the World Cup of 2014 ridor has implemented municipal public tants. The completion of the Pan American and the Olympic Games of 2016 and out- policies to conserve about 30.000 proper- Games in 2007, following the construction lined an ambitious strategic plan in order ties in 36 protected urban areas, denomi- of athletic equipment in Barra, contribut- to fulfill the demands of international nated Areas of Protection of Cultural Envi- ed for setting an extra boost in the growth entities. The restoration of the Maracanã ronment (Apacs). of that region. During this period, under stadium was one of the main symbols of Out of the late decade, we should high- the Cesar Maia management, there was the city revitalization in the period. light the organization of the city’s water- also the construction of the City of Music, During subsequent years, important front and, above all, the Rio Cidade project, later called City of the Arts, aiming to pro- pieces of urban infrastructure were built, which grounded different identities to the vide cultural events to the population of like the extension of the subway up to various areas, 15 in the first phase and 15 in Zona Oeste, so given up by the traffic and the Jardim Oceânico, in Barra, and the ex- the second (Rio Cidade I and Rio Cidade II), absence of cultural alternatives. pressways for buses and mainly the revi- involving many specific actions. Carrying Being a great target for the real estate talization project for the Porto Maravilha, the motto “urbanism back on the streets”, speculation, Barra da Tijuca was wait- which, through specific urbanistic instru- Rio Cidade integrated the Strategic Plan for ing for a top-notch service structure de- ments (Consorciated Urban Operation), the City of Rio de Janeiro, elaborated in the signed by a qualified architect able to authorized the construction of skyscrap- municipal administration of Cesar Maia draw a building carrying a high symbolic ers, new avenues and tunnels and revital- (1993-1996), with the conceptual participa- value. This was the first project designed ized the old structures of the Porto area, tion of the Municipal Secretary of Urban- by a renowned foreign architect: Chris- creating an environment of appreciation ism Luiz Paulo Conde, who was later elected tian de Portzamparc, responsible for var- of pedestrian walks. Mayor and responsible for the award-win- ious similar developments in France, who The city has become a huge building ning Favela-Bairro project, aiming to inte- proposed a stunning building based on a site. Also seeking to upgrade itself in a grate the slums in the urban fabric. modern brutalist inspiration, anchored technological point of view, the City Hall

Estádio do Maracanã [Maracanã Stadium] Shutterstock, 2019

> Cidade das Artes, projetada por Christian de Portzampac [Cidade das Artes, and art hall, projected by Christian de Portzampac] Shutterstock, 2016

32 (Rio Cidade I e Rio Cidade II) com ações pontuais. Cidade das Artes, visando oferecer programação cul- Com o lema “o urbanismo de volta às ruas”, o Rio tural à população da Zona Oeste, tão sacrificada pelo Cidade integrou o Plano Estratégico da Cidade do trânsito e pela falta de alternativas culturais. Alvo Rio de Janeiro, elaborado na administração munici- de grande especulação imobiliária, a Barra da Tijuca pal de Cesar Maia (1993-1996), com a participação aguardava por uma estrutura de serviços de primeira conceitual do Secretário Municipal de Urbanismo linha, projetada por um arquiteto de qualidade, que Luiz Paulo Conde, depois eleito prefeito municipal, pudesse desenhar um edifício de alto valor simbólico. responsável pelo premiado Favela-Bairro, que busca- Tratava-se do primeiro projeto elaborado por um ar- va integrar as favelas ao tecido urbano. quiteto estrangeiro e de renome – Christian de Port- A chegada do século XXI encontra o Rio de Janeiro zamparc, responsável por diversos empreendimentos com quase 6 milhões de habitantes e já consolidado similares na França –, que propôs um belíssimo prédio como destino turístico nacional e internacional. A re- de inspiração brutalista moderna, num terreno defini- gião metropolitana possuía mais de 13 milhões de ha- do por duas avenidas que se cruzam, em uma paisa- bitantes. A realização dos Jogos Pan-americanos, em gem monótona e carente de espaços públicos. 2007, com a construção dos equipamentos esportivos Em 2009, a Prefeitura anunciou que a cidade se- na Barra, impulsionou ainda mais o crescimento da- ria a sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpí- quela região. Nesse período, no governo Cesar Maia, adas de 2016 e traçou um plano estratégico ambi- foi lançada a Cidade da Música, depois batizada de cioso para fazer frente às demandas dos organismos

33 created the Center for Rio Operations Transit (LRT) on the Olympic Boulevard, Villa Aymoré, located in the Glória area (COR), which integrates information from which, together with the Orla Conde re- has united an art collective, coffee and 30 different agencies operating within the vealed an area in the city full of historic various creative economy professionals city in order to monitor operations and buildings closed to public access two in its ten restored houses. Finally, it is also minimize any impacts that might affect centuries ago that now offer pedestrian worth highlighting the São Fernando In- citizens’ lives. This constitute the will for accessibility. stitute located in the city of Vassouras, an building a smart city, even depending on Once this is a historical area, the archae- initiative by Ronaldo César Coelho, who is the management capacity and on the de- ological research was mandatory and cru- finalizing a complex project led by archi- cisions of its administrators. cial to rediscover the well-preserved Cais tect Maurício Prochnik. In the midst of these major events, in do Valongo (Valongo Wharf), built in 1811, Many important international designers 2012 the Rio+20, the United Nations Con- where about 1 million slaves disembarked have been attracted to Rio. The Fasano Ho- ference on Sustainable Development oc- coming from the African continent, an tel received Philippe Starck, an avant-gar- curred, taking up many areas of the city area erased from the urban fabric in 1911. de designer and hotel interiors architect. raising structures focused on civil society, The rescue of this important structure Starck created allusions to the Bossa Nova like the Porto Maravilha district (which for the black population also valued the times in the details of the building. The was still in its revitalization process), the Pedra do Sal, considered the cradle of Cari- Yoo2 Hotel located in the Botafogo beach Flamengo Park and the Copacabana Fort oca samba. This also brought attention to also has Starck’s features. Another hotel in (having temporary structures, such as the Pretos Novos Cemetery, transformed São Paulo to plant its flag in the city was the Humanidade exhibition, designed by in 2005 in the Pretos Novos Institute. The the Emiliano Hotel, on Copacabana beach, Bia Lessa in partnership with the award area contributed to an exemplary promo- designed by the North American office winning Carioca architect Carla Juaçaba, tion of the Afro culture throughout the Oppenheim Architecture and finished by which received over 60.000 people during city, with original initiatives from the cou- Studio Arthur Casas, having the façade the conference period, setting its potential ple Petrúcio and Mercedes Guimarães. coating as its dominant element, made as an innovative space). Due to her con- Following a global trend and the tradi- of perforated metal plates with a design cerns about the environment, Juaçaba was tion kept by great Carioca collectors, such inspired by the cobogós of the Brazilian the first winner of the arcVision Award – as Raymundo Castro Maya (1963), Lucien modernist tradition. Women and Architecture, a well-known Finkelstein with the Naif Museum (1995), In 2009, the paulista architect Isay Wein- prize for the international recognition of Jacques Van de Beuque with the Casa do feld conceived the Midrash building, the women architects who strive for socially Pontal Museum (1986) and Roberto Bur- Center for Culture and Transcendence of sustainable innovation. le Marx (1999), in the 21st century, Rio de the Jewish Congregation in Brazil, using The Rio+20 international conference Janeiro gained many new institutions Hebrew words in different layers and sizes also inaugurated the Madureira Park, con- that democratized private collections in its concrete façade, graved with the word ceived by Ruy Resende in the remaining and private properties, such as the Pre- “Midrash”, which means: “extract meaning”. ground of the transmission lines of Light, tos Novos Institute and the Casa Roberto In Copacabana, the Atlântica avenue the power supplier company in the city. Marinho Museum. The latter was de- is the address of a another project con- An extensive and narrow terrain that suc- signed by Glauco Campello, responsible ceived by the New York office Diller Scofi- cessfully created good space solutions for for the discreet and effective adaptation dio + Renfro, responsible for projects like holding a huge set of education, culture of a collector’s house in Cosme Velho area the Boston Institute of Contemporary Art and entertainment activities, in an area opened in 2018. Another property opened (ICA), the High Line and the new MoMA deprived of public services. Having strik- to the public was Casa Geyer Museum, building in Manhattan. Mastering a rare ing architectural structures, but priori- whose collection was donated by the cou- sense of value towards the building, the tizing coexistence, the park has 109.000 ple Maria Cecilia and Paulo Geyer to the architects understood that the Carioca square meters and received an expansion Imperial Museum of Petropolis in 1999, population and the middle-class visitors between 2012 and 2016, while receiving before their death. The museum of the did not have access to the spectacular the Olympic Rings. Geyers still awaits adaptation to receive views of Atlântica Avenue, except for Next to Porto Maravilha, alongside the the public, particularly towards the work

new architectural buildings, the region’s of competence of the federal authorities Pavilhão Humanidade, 2012 – concebido por logistic support structures were also ren- responsible for culture. Bia Lessa e Carla Juaçaba [Humanity Pavilion, ovated and/or restored while receiving In lockstep with the contemporary trend conceived by Bia Lessa and Carla Juaçaba] avenues, tunnels as well as the Light Rail of multiple activities in a single address, Foto [Photo] Celso Brando

34 internacionais. A reforma do estádio do Maracanã uma cidade inteligente que, entretanto, ainda depen- foi um dos principais símbolos dessa revitalização de da capacidade de gestão e principalmente das deci- da cidade, que, ao longo dos anos seguintes, construiu sões de seus administradores. importantes infraestruturas urbanas, como a exten- É nessa toada dos grandes eventos que em 2012 foi são do metrô até o Jardim Oceânico, na Barra, as vias realizada a Rio+20, a Conferência das Nações Unidas expressas para os ônibus e principalmente o projeto sobre Desenvolvimento Sustentável, que ocupou di- de revitalização do Porto Maravilha, que, por meio versas áreas da cidade com estruturas voltadas para a de instrumentos urbanísticos específicos (Operação sociedade civil, dentre elas o Porto, então em processo Urbana Consorciada), autorizou a construção de ar- de revitalização, o Parque do Flamengo e o Forte de Co- ranha-céus, novas avenidas e túneis, e revitalizou as pacabana com estruturas temporárias, como a exposi- estruturas antigas do Porto, criando um ambiente ção Humanidade, concebida por Bia Lessa em parceria de valorização dos passeios de pedestres. A cidade com a premiada arquiteta carioca Carla Juaçaba, que tornou-se um enorme canteiro de obras. Buscando recebeu mais de 60 mil pessoas durante o período da atualizar-se também do ponto de vista tecnológico, Conferência, tornando-se um espaço de grande inova- a Prefeitura criou o Centro de Operações Rio (COR), ção. Por suas preocupações com o meio ambiente, Jua- que integra informações oriundas de 30 diferentes ór- çaba foi a primeira vencedora do prêmio arcVision – gãos que atuam na cidade, visando monitorar a sua Women and Architecture, reconhecimento interna- operação e minimizar o impacto de quaisquer proble- cional das mulheres arquitetas que se empenham na mas que afetem a vida dos cidadãos. Esta é a busca por inovação socialmente sustentável.

35 hotel guests or residents of waterfront with the maintenance of the existing an eclectic one and a modern one, through a areas. Thus, they designed the new Im- structures, whether in sportive or urban fluid roof that has an abstract and ethereal age and Sound Museum building a ramp/ infrastructures. The city is experiencing a shape, simulating the waves of the water staircase that dominates its façade, in- moment of despair and it is only through surface. The complex engineering of this tended to be a continuation of Burle its resilience, which has its natural and slab is unique, one of the five of its kind in Marx’s calçadão, which would even invite cultural landscape as its greatest wealth, the world, and reiterates Rio’s historic role the public to enter the museum. On the that we might find the certainty that in the field of engineering innovation in terrace, they proposed an open-air am- future generations will enjoy the so- Brazil. The other anchor of this revitaliza- phitheater for movie screenings. called cidade maravilhosa (wonderful city) tion process is the Museum of Tomorrow, Unfortunately, the construction of the in a more promising way than during the designed by the Spanish Santiago Calatra- Image and Sound Museum was halted present crisis. va, with its remarkable architecture and with only 70% of the project complet- The recovery of the Porto Maravilha various innovations, such as the metallic ed. The post-Olympics downturn in Rio, district now keeps two museums as its structures that turn into sculptures and known worldwide, has been aggravated symbolic portal in Mauá square and was open according to luminosity, guided by by the political and economic crisis of able to promote an urban renewal of one the state and in the entire country. Many of the most degraded areas of the center works were stopped. The Olympic legacy during the Mayor Eduardo Paes’ project. Praça Mauá e Museu do Amanhã, projetado por that promised a social destination for the The Rio Art Museum (MAR), designed by Santiago Calatrava [Mauá Square and Museum athletic structures couldn’t be consoli- Thiago Bernardes and Bernardo Jacobsen, is of Tomorrow, projected by Santiago Calatrava] dated and there are still many problems intended to bring together two buildings, Shutterstock, 2015

36 A conferência internacional Rio+20 propiciou ain- Instituto dos Pretos Novos, a Casa , da a realização do Parque Madureira, concebido por com projeto de Glauco Campello, responsável pela Ruy Resende, no terreno remanescente das linhas discreta e efetiva adaptação da casa do colecionador de transmissão da Light, companhia que fornece no Cosme Velho e aberta em 2018, e a Casa Geyer, energia para a cidade. Trata-se de um terreno longo cuja coleção havia sido doada pelo casal Maria Cecí- e estreito, que, com boas soluções espaciais, distribui lia e Paulo Geyer ainda em vida ao Museu Imperial um enorme conjunto de atividades de educação, cul- de Petrópolis, em 1999, e que ainda aguarda adequa- tura e lazer, numa área extremamente carente de ser- ção para receber o público, em obra de competência viços públicos. Com estruturas arquitetônicas mar- das autoridades federais na área da cultura. Em sin- cantes, mas priorizando a convivência, o Parque tem tonia com a tendência contemporânea de múltiplas 109 mil m2 e foi se expandindo de 2012 a 2016, quando atividades num único endereço, a Villa Aymoré, lo- recebeu os anéis olímpicos. calizada no bairro da Glória, reúne um coletivo de De volta ao Porto Maravilha, ao lado das novas ar- arte, café e diversos profissionais da economia cria- quiteturas, as estruturas de apoio logístico da região tiva, em suas dez casas recuperadas. Finalmente, na também foram renovadas e/ou recuperadas com ave- cidade de Vassouras, merece destaque o Instituto nidas, túneis e com a implantação do Veículo Leve so- São Fernando, iniciativa de Ronaldo César Coelho, bre Trilhos (VLT) no Boulevard Olímpico que, junto que está ultimando um complexo projeto liderado com a Orla Conde, revelou uma área da cidade reple- pelo arquiteto Maurício Prochnik. ta de prédios históricos, fechada ao acesso público há Muitos criadores internacionais importantes fo- dois séculos, e que, agora, oferece acessibilidade aos ram atraídos para o Rio ou pela cidade. O hotel Fasa- pedestres. Por se tratar de área histórica, a pesquisa no trouxe Philippe Starck, um designer de vanguar- arqueológica nessas obras foi uma obrigação que pos- da e arquiteto de interiores de hotéis. Nos detalhes sibilitou a redescoberta de um bem conservado Cais do edifício, Starck alude aos tempos da Bossa Nova. do Valongo, construído em 1811, por onde passaram O hotel Yoo2, na praia de Botafogo, também tem o cerca de 1 milhão de escravizados desembarcados da risco de Starck. Outro hotel paulista a fincar bandei- África, o qual havia sido apagado no traçado urbano ra na cidade foi o hotel Emiliano, na praia de Copa- em 1911. O resgate dessa importante estrutura para cabana, concebido pelo escritório norte-americano a presença negra valorizou também a Pedra do Sal, Oppenheim Architecture e finalizado pelo Studio considerada berço do samba carioca, e jogou luz ao Arthur Casas, tendo como elemento dominante o re- Cemitério dos Pretos Novos, depois, em 2005, sob a vestimento da fachada, placas metálicas com dese- forma do Instituto dos Pretos Novos, para a exemplar nho inspirado nos cobogós da tradição modernista promoção da cultura afro na cidade, por iniciativa do brasileira. Em 2009, o arquiteto paulista Isay Wein- casal Petrúcio e Mercedes Guimarães. feld concebe o prédio do Midrash, o Centro de Cultu- Seguindo uma tendência mundial e mesmo da ra e Transcendência da Congregação Judaica do Bra- tradição de grandes colecionadores cariocas, como sil, utilizando em sua fachada de concreto palavras Raymundo Castro Maya (1963), Lucien Finkelstein em hebraico, em diferentes camadas e tamanhos, com o Museu Naif (1995), Jacques Van de Beuque finalizadas com a palavra “Midrash”, que significa com a Casa do Pontal (1986) e Roberto Burle Marx “extrair sentido”. (1999), o Rio de Janeiro ganhou, no século XXI, A avenida Atlântica é o endereço de outro projeto novas instituições que democratizaram coleções concebido pelo escritório nova-iorquino Diller Scofi- privadas e propriedades privadas, como o referido dio + Renfro, responsáveis por alguns projetos como o

37 solar panels. The biggest feature of the In due times, the city of Rio de Janeiro its transposed project held in New York, Museum of Tomorrow is its innovative knew how to value, through public and a process that dates back to Marcel technology to introduce the Anthropo- private buildings, its cosmopolitan voca- Camus’ film Black Orpheus, in which the cene, a period in which environmental tion. Today, Rio has some buildings from Babilônia hill, in Leme, composed the sce- conditions are determined by human ac- other award-winning architects, such as nario. There, the ruins of an unfinished tion. Therefore, the Rio Art Museum and Christian de Portzamparc, Norman Foster – shack served as the baseline for the spi- the Museum of Tomorrow became sym- with a project for a private building in the ral space that allows you to observe the bolic anchors: in the plane of the sensible Porto Maravilha area (the AQWA build- views of the slum and Leme beach. The we have art; in the plane of reason, science. ing, commissioned by the absorbing com- Centro de Artes da Bela Maré (CAM) (Arts In the 21st century, in addition to the pany Tishman Speyer) –, Richard Meier – Center of Beautiful Maré) project held many cultural projects held by the mu- with another private building, Leblon through the Observatório de Favelas (Slum nicipality and state, an almost sponta- Offices –, as well as various projects by Observatory of Rio de Janeiro) and the Au- neous phenomenon occurred; the city , Jean Nouvel and tomática invited the Rua office to renovate of Rio attracted more foreign architects Zaha Hadid still on paper. a shed located in a boundary of the Maré top-notch on the international scene, Alongside the construction of athletic Complex for holding the Travessias exhibi- including recipients of the Pritzker Prize, equipment for the Olympics and Paralym- tion, a project intended to incorporate the the highest honor for architecture glob- pic Games and the renewal of the port ally. The architect Oscar Niemeyer, who district, other projects were inaugurated, Museu da Imagem e do Som, projetado por was born and lived in Rio de Janeiro, re- giving opportunities to young Carioca Diller + Scofidio [Sound and Image Museum, ceived the Pritzker in 1988 and designed architects. Pedro Rivera and Pedro Évora projected by Diller+ Scofidio] the buildings of FGV, Obra do Berço, Casa from the Rua office were responsible for Shutterstock, 2016 das Canoas, National Hotel, Sambódromo the award-winning project of the social > Museu de Arte do Rio – MAR, projetado and in the neighboring city of Niterói, the headquarters of the Golf Course. por Bernardes e Jacobsen [Art Museum Caminho Niemeyer, with emphasis in the The 1500 Babilônia photography gal- of Rio, projected by Bernardes e Jacobsen] Contemporary Art Museum. lery located in Leme hill is a result from Shutterstock, 2017

38 Instituto de Arte Contemporânea (ICA) de Boston, a não se realizou e a manutenção das estruturas, sejam High Line e o novo prédio do MoMA em Manhattan. esportivas ou de infraestrutura urbana, ficou a de- Com raro sentido do valor do prédio, os arquitetos sejar. A cidade vive um momento de desesperança e entenderam que a população carioca e os visitantes só mesmo a sua resiliência, que tem a sua paisagem de classe média não tinham acesso às vistas espe- natural e cultural como seu maior patrimônio, é que taculares da avenida Atlântica, salvo os hóspedes nos dá a certeza de que as futuras gerações poderão de hotéis ou moradores da orla. Assim, conceberam usufruir da cidade dita maravilhosa de modo mais o novo Museu da Imagem e do Som com uma ram- promissor do que na crise do presente. pa/escadaria que domina sua fachada e que se pro- A recuperação da zona portuária tem dois museus põe como continuação do calçadão de Burle Marx, como seu portal simbólico na praça Mauá e trouxe a convidando o público a ingressar no museu. No ter- renovação urbana de uma das áreas mais degrada- raço, propuseram um anfiteatro a céu aberto para das do centro no projeto do prefeito Eduardo Paes. O sessões de cinema. Museu de Arte do Rio (MAR), projetado por Thiago Infelizmente, a construção do Museu da Imagem e Bernardes e Bernardo Jacobsen, tem como proposta do Som foi interrompida, realizados 70% do projeto. reunir dois prédios, um eclético e outro moderno, por A depressão pós-olimpíadas, já conhecida em outros meio de uma cobertura fluida, com uma forma abs- países, foi agravada no Rio de Janeiro pela crise po- trata e etérea, simulando a ondulação da superfície lítica e econômica do estado e de todo o país. Obras da água. A complexa engenharia dessa laje, uma das pendentes foram paralisadas. O legado olímpico que cinco únicas do mundo, reitera o histórico papel do prometeu destinação social às estruturas esportivas Rio no campo da inovação da engenharia no Brasil.

39 production of the set of slums into Rio’s urbanistic processes. A great illustrative artistic scene. In addition to these, there example is Luiz Carlos Toledo’s project for was also the unfinished Casa do Jongo Rocinha, winner of a public tender. (Jongo House) project in the Serrinha hill Nevertheless, the paradigmatic case is in Madureira. Moreover, inspired by the Redes da Maré, for the quality of the eman- Colombian model, there are the outstand- cipation strategies, the concepts, the ing Park Libraries in Rio de Janeiro, which scope of the actions, the concrete results with an innovative, attractive and invit- achieved and the large-scale work. There ing architecture changed the concept li- are massive challenges in this complex of brary in Brazil. Refer to Vera Saboya’s pre- 16 slums involving 137.000 inhabitants. sentation of the project in this book. However, the organization, persistence Many historians of architecture and ur- and agglutination capacity achieved very banism consider that Rio’s best contribu- high results, with human development tion to the field of urbanism are the cre- policies, such as the Lia Rodrigues Com- ative solutions implemented in slums, as panhia de Dança (Lia Rodrigues Dance architecture for survival, as well as proj- Company) and the expressive increase ects of social interest designed by archi- in the number Maré residents enrolled Museu do Amanhã (vista posterior), projetado tects and urbanists through the attentive in the university. The Maré and its citi- por Santiago Calatrava [Museum of Tomorrow listening of the population involved by zens is a role model for achieving a Brazil (back view), projected by Santiago Calatrava] the projects, who end up being part in the for everyone. Shuttersotck, 2016

40 A outra âncora do processo de revitalização é o Mu- 1500 Babilônia de fotografia, no morro do Leme, de- seu do Amanhã, projetado pelo espanhol Santiago corre de seu projeto transposto de Nova York, em Calatrava, com sua arquitetura marcante e repleto processo que remonta ao filme Orfeu Negro, de Mar- de inovações, como as estruturas metálicas que se cel Camus, do qual o morro da Babilônia foi parte transformam em esculturas e se abrem conforme do cenário. Ali, as ruínas de um barraco inacabado a luz da hora, orientadas por placas solares. A gran- foram a base do espaço em espiral que permite ob- de característica do Museu do Amanhã é sua tec- servar a vista da favela e da praia do Leme. O proje- nologia inovadora para apresentar o antropoceno, to do Centro de Arte da Bela Maré, por meio de seu período em que as condições ambientais são determi- Observatório das Favelas e a Automática, convidou nadas pela ação humana. O Museu de Arte do Rio e o o escritório Rua para a renovação de um armazém Museu do Amanhã são âncoras simbólicas: no plano nos limites da Maré para a exposição Travessias, um do sensível, a arte, e no plano da razão, a ciência. projeto de incorporação do conjunto de favelas na No século XXI, ocorreu um fenômeno quase es- cena das artes do Rio. Além destes, tem o projeto pontâneo: além dos projetos culturais pelo muni- inacabado Casa do Jongo, no morro da Serrinha, em cípio e estado, o Rio atraiu mais arquitetos estran- Madureira, e, inspiradas no modelo colombiano, as geiros de primeira linha na cena internacional, com exemplares Bibliotecas Parque cariocas, com arqui- destaque para alguns recipientes do Prêmio Pritzker, tetura inovadora, atraente e convidativa, que mu- a maior honraria da arquitetura mundial. O arqui- daram o conceito de biblioteca no Brasil. Veja-se a teto Oscar Niemeyer, carioca e morador do Rio, re- apresentação de Vera Saboya nesta coletânea. cebeu o Pritzker em 1988 e projetou os prédios da Muitos historiadores da arquitetura e do urba- FGV, a Obra do Berço, a Casa das Canoas, o Hotel nismo consideram que o melhor do Rio no campo Nacional, o Sambódromo e, na vizinha Niterói, o do urbanismo são as soluções criativas nas favelas, Caminho Niemeyer com destaque para o Museu de como arquitetura da sobrevivência, e os projetos de Arte Contemporânea. Quando teve a oportunidade, interesse social criados por arquitetos e urbanistas a cidade do Rio soube valorizar, por meio de edifí- em atenciosa escuta da população envolvida pelos cios públicos e privados, sua vocação cosmopolita. O projetos que, de algum modo, tornaram-se sujeitos Rio conta hoje com alguns edifícios de outros arqui- partícipes dos processos urbanísticos. Exemplo dis- tetos premiados, como: Christian de Portzamparc, so é o projeto de Luiz Carlos Toledo para a Rocinha, Norman Foster (com um projeto de um edifício pri- vencedor de um concurso público. Mas o caso pa- vado na região do Porto Maravilha, o edifício AQWA, radigmático é o das Redes da Maré, pela qualidade encomendado pela incorporadora Tishman Speyer), das estratégias de emancipação, pelos conceitos, pela Richard Meier (outro edifício privado, o Leblon Offi- abrangência das ações, pelos resultados concretos ces), além de projetos irrealizados de Paulo Mendes atingidos e pelo trabalho em larga escala. Os desafios da Rocha, Jean Nouvel e Zaha Hadid. são imensos neste complexo de 16 favelas e envolven- Ao lado da construção dos equipamentos esporti- do 137 mil habitantes. No entanto, a organização, a vos para os Jogos Olímpicos e Jogos Paralímpicos e obstinação e a capacidade de aglutinação trouxeram a renovação da área portuária, ofereceu-se abertura resultados muito elevados, com políticas de desenvol- para novos projetos, dando oportunidades a jovens vimento humano, como a Companhia de Dança Lia arquitetos cariocas. Pedro Rivera e Pedro Évora, do Rodrigues e a elevação de jovens moradores matri- escritório Rua, foram responsáveis pelo premiado culados em universidades. A Maré de seus cidadãos projeto da sede social do Campo de Golfe. A galeria é um modelo para um Brasil para todos.

41 Bibliotecas Parque, um impulso iluminista

Vera Saboya

Park Libraries, an Enlightenment impulse

The recent construction of a Park Libraries (Bibliotecas Parque) network in the state of Rio de Janeiro was inspired by ideas from Brazilian intellectuals who dedicated themselves to the elaboration of public policies, such as Mario de Andrade, Dar- cy Ribeiro and Anísio Teixeira. The model was later updated with examples of expe- riences taken from library networks in Me- dellin and Bogotá, as well as from media libraries spread throughout France. The project’s main concept was based on the philosophical perception that time and space for thinking are needs that became urgent in the great and frantic cities of the world. This way, squares, li- braries and living spaces that enable an interruption in active life and labor have a strong healing role in the current societies that have expanded and democratized access to the incredible diversity of web content, but, paradoxically, experience a frightening outbreak of individualism and conservatism. At that time, Rio de Janeiro seemed to be experiencing some sort of Enlightenment impulse. The atmosphere of the city and the country would make one believe in the materialization of a clear intellectual development through the emergence of citizen groups discussing the city, its mobility and its occupation. There were groups of people from disadvantaged classes, who were formerly deprived from

42 A recente construção de uma rede de Bibliotecas passado e que vivemos infinitamente um processo ci- Parque no estado do Rio de Janeiro foi inspirada nas vilizatório, deixando sempre a barbárie para trás. ideias de intelectuais que se dedicaram à elaboração A memória escrita, a literatura, o acesso ao conheci- de políticas públicas, como Mario de Andrade, Darcy mento e à poesia têm forte significação política nesse Ribeiro, Anísio Teixeira, depois atualizadas com o cenário. Uma política pública focada na democrati- exemplo das experiências na rede de bibliotecas de zação do acesso ao conhecimento, à informação e às Medellin e Bogotá, e das mediatecas espalhadas por artes tem como espinha dorsal o desejo de criação de toda a França. potenciais lugares de abertura ao conhecimento e ao Seu conceito teve impulso também na percepção fazer artístico. filosófica de que tempo e espaço para o pensamento O papel da leitura como instrumento de potencia- são necessidades que ganharam urgência nas gran- lização de um sujeito que possa usufruir de sua capa- des e frenéticas cidades do mundo. Praças, bibliote- cidade de pensar, de julgar, de modo a conquistar a cas, espaços de convivência que possibilitem inter- liberdade de ser e de compreender o mundo, parecia rupção da vida ativa e do labor têm um forte papel ter evidência suficiente para se impor como estraté- curativo em sociedades que ampliaram e democrati- gia de desenvolvimento em nosso país. zaram o acesso à incrível diversidade de conteúdo na O conceito de “biblioteca” evoluiu muito. Suas pos- web, mas que, paradoxalmente, vivem um assustador sibilidades se ampliaram no mundo todo: de um lu- surto de individualismo e conservadorismo. gar de guardar livros, de consulta para pesquisas e O Rio de Janeiro parecia passar, naquele momento, estudos, passou a ter papel de espaço para produção por uma espécie de impulso iluminista. A atmosfera cultural, de troca de ideias e de circulação do conhe- da cidade, do país, fazia crer no evidente desenvol- cimento mediado por universitários, escritores, pen- vimento intelectual que tomou corpo em grupos de sadores e artistas. cidadãos que discutiam a cidade, sua mobilidade e Foi imediata a apropriação dos espaços pelas co- sua ocupação; de pessoas de classes desfavorecidas, munidades, com uma incrível quantidade de livros antes sem acesso às universidades, que passaram a emprestados, um enorme número de consultas fei- frequentar aulas de economia, filosofia, artes e -ou tas ao acervo e uma percepção do tempo generoso tras; de organizações do terceiro setor que passaram que jovens e crianças se davam, sem nada fazer, ali, a compreender fortemente seu papel junto ao Esta- espalhados pelo agradável espaço da neutralidade. do; e de grupos de jovens que se organizavam espon- Inaugurava-se um espaço, uma experiência quase taneamente para ampliar liberdades e potencializar revolucionária para a vida de jovens que, naqueles suas representações políticas, sociais e culturais. momentos, não estavam na escola, não estavam Estava em curso um processo de aprendizado co- em casa, locais nos quais deveriam corresponder a letivo raro na história da sociedade brasileira. Pare- uma série de afazeres domésticos ou às expectativas cia, pelo menos para mim, o curso natural das coisas. dos pais; não estavam no trabalho e não estavam Fomos criados com a ideia de que caminhamos para nas ruas, onde seriam incessantemente aborda- a frente, que o tempo à nossa frente é melhor que o dos: “o que você está fazendo aqui? Onde trabalha? Aonde está indo?”. O ato de frequentar esses espaços foi revelador de Biblioteca Parque de Manguinhos [Manguinhos Park Library] um desejo que não parte da construção de uma po- Salão principal de literatura e acesso digital [Main reading and digital access hall] lítica pública, mas de um sem-número de cidadãos Foto [Photo] Vera Saboya ávidos por momentos de lazer não produtivo, de ócio

43 access to universities and now attend conquer the liberty of being and under- would unceasingly be asked: “What are classes in economics, philosophy, arts standing the world seemed to present you doing here? Where do you work? and others; people from third sector orga- enough evidence to impose itself as a de- Where are you going?”. nizations that started to strongly under- velopment strategy in our country. Attending such spaces revealed a desire stand and align their role with the State; The concept of “library” has evolved that wasn't born from the construction and groups of young people who sponta- enormously. Its possibilities have wid- of a public policy, but from a very large neously mobilized themselves to expand ened all over the world: from a place to number of citizens eager to find moments liberties and enhance their political, so- store books, consultation for research and of non-productive entertainment, a cre- cial and cultural representations. study, it has become a space for cultural ative leisure in the encounter with art, as A rare process of collective learning in production, for exchange of ideas and cir- well as moments of openness to thought in Brazilian society was in course. It seemed culation of knowledge mediated by univer- their lives. to be, at least to me, the natural course of sity students, writers, thinkers and artists. The libraries architecture was inspired things. We were all raised with the idea Communities immediately adopted by the idea of free, unrestricted, easy and that people would move forward, that the these spaces, with an incredible amount safe access. Combining these conditions, future is better than the past and that we of books borrowed, a great number of con- are endlessly living a civilizing process, sultations made to the collection and the always leaving barbarism behind. acknowledgement of the generous time Fachada da Biblioteca Parque Estadual, Written memory, literature and access to young people and children spent there projeto de Glauco Campello [State Park Library knowledge and poetry have strong political doing nothing, spread across the pleas- facade, projected by Glauco Campello] significance in this scenario. A public policy ant spaces of neutrality. This marked the > A escultura Espelho antes do nome, do artista focused on the democratization of access opening of a space that provided quite a plástico Waltercio Caldas, criado especialmente to knowledge, information and the arts revolutionary experience in the lives of para o local, dialoga com o espelho d’água maintains the desire to create potential young people who, at that time, weren't no pátio da Biblioteca Parque Estadual [The places that stimulate knowledge and ar- at school nor at home, places where they sculpture Mirror before the name, created by tistic making as its backbone. should correspond to a series of house- the artist Waltercio Caldas, was conceived as a The role of reading as an instrument of hold tasks or expectations from their site-specific piece that dialogues with the water mirror at the State Park Library] potentiation of a subject that can enjoy parents; these young people were not their ability to think, to judge, in order to at work, nor on the streets, where they Fotos [Photos] Rogério Reis

44 criativo no encontro com a arte, por momentos de Esses espaços estão situados no centro do Rio de abertura ao pensamento em suas vidas. Janeiro e de Niterói, e também no Complexo de Sua arquitetura foi inspirada na ideia de acesso li- Manguinhos e na favela da Rocinha, territórios pra- vre, irrestrito, fácil e seguro. Não é fácil juntar essas ticamente abandonados pelo Estado, muitas vezes condições, que são, a meu ver, obrigatórias quando dominados pela violência do tráfico da milícia e pensamos na criação de espaços verdadeiramente pela violência urbana. públicos. São um respiro, um lugar de interrupção do fluxo, Seus acervos contemplam toda a população: se lugar de parar para uma reflexão, para uma palavra. estuda ou não, se é operária, se chegou ou não à Vários são os estudos que estabelecem uma relação universidade. O leitor encontra de tudo – de livros entre a palavra (melhor dizendo, a falta dela) e a sobre a Grécia Antiga até o bestseller mais vendido. violência. Todo cidadão, ali, tem acesso a todo tipo de conheci- No seio de comunidades radicalmente marginali- mento, do popular ao erudito. zadas, instalar uma Biblioteca Parque pode promover

45 which are, in my opinion, obligatory when nothing is more revolutionary and innova- Lost in the library, we hear Borges: “Some- we think of creating truly public spaces, is tive than libraries” – and these libraries are times at evening there's a face that sees us not an easy task. named “Parks” to show how the adventure from the deeps of a mirror. Art must be that Its collections contemplate the entire of knowledge can take place in a space fa- sort of mirror, disclosing to each of us his population: whether you study or not, re- vorable to encounter, exchange, pleasure face”. One day, sitting on the library floor, gardless if you are a worker or have been and leisure. our eyes proceed to the Odyssey and we enrolled in the university. The reader Park Libraries were conceived as spaces are in Ancient Greece, plunging into the finds everything – from books on Ancient of “action” and for holding theoretical ref- adventures of Ulysses through the chant of Greece to bestsellers. Every citizen, there, erences for the scientific, technological Homer. This loss of self has no end and the has access to all kinds of knowledge, from and humanistic “understanding” of the search perpetuates us as men: “Losing one- the popular to the erudite. events of the world. They unite generous self is also the way” said Clarice Lispector. These spaces are located in the center spaces for action labs, shelters with cut- Libraries may be the best example of this of Rio de Janeiro and Niterói, in the Man- ting-edge technology and vast reference limitless adventure for paths to discover. guinhos Complex and in the Rocinha slum, literature, as well as theaters and auditori- The opportunity to talk about our stories, territories almost abandoned by the State ums able to host meetings and exchanges. the finding of a place dedicated to words, and often dominated by violence from They are spaces for knowledge and con- present the chance of building a linkage militia trafficking, as well as by urban vi- struction of possible actions based on pro- that locates us regarding our actions and olence itself. grams to deliver to the child, young person relationships. We move from mere action These libraries are a breath of fresh air, and adult the opportunity and experience to the word and place ourselves in the a place for interrupting the flow, for stop- of creating solutions for their environ- world. Due to their precise insertion in the ping and reflecting, for a word. There are ment, their neighborhood, their relation- territories of urban misery, the Park Librar- several studies establishing a relation be- ships and their way of living in the city. ies present themselves as intensive centers tween the word (that is, its absence) and It is also in this place that we stop to ad- of social inclusion, restoring or inaugurat- violence. mire a quote, to listen to a story, to let our- ing dialogue, discoveries, encounters and Installing a Park Library in the heart selves be distracted by matters beyond our opportunities able to break the seals of of radically marginalized communities purpose, thus being led by a torrent of asso- such segregation, in order to develop cre- can promote the reverse of this violence. ciations. “I’ve often felt that my library ex- ative freedom and intelligence for the next Adriana Rattes, Executive Secretary of plained who I was, gave me a shifting self generations. the State Secretary for the Culture, said: that transformed itself constantly through- A new Enlightenment impulse is what “In a country where people read so little, out the years”, writes Alberto Manguel. we need.

Instalação interativa na Biblioteca Parque Rocinha [Interactive installation at Rocinha Park Library] Foto [Photo] Equipe da Secretaria de Cultura

> Instalação para a exposição 100 anos de Vinícius de Moraes [Installation of the exhibition 100-year anniversary of ] Foto [Photo] Equipe da Secretaria de Cultura

46 o avesso dessa violência. A secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes, dizia: “Num país onde se lê tão pouco, não há nada mais revolucionário e inova- dor do que bibliotecas” – e que essas bibliotecas te- nham o nome de “Parques”, para mostrar que a aventu- ra do conhecimento pode se dar num espaço propício ao encontro, à troca, ao prazer e ao lazer. As Bibliotecas Parque foram concebidas como espa- ços também do “fazer” e de referências teóricas para a “compreensão” científica, tecnológica e humanista dos eventos no mundo. Elas unem generosos espaços para laboratórios do fazer, abrigos com tecnologia de ponta e vasta literatura de referência, além de teatros e auditórios que possibilitam encontros e troca. São es- paços do saber e da construção de possíveis atuações a partir de programas que tragam à criança, ao jovem e ao adulto a oportunidade e a experiência de criar solu- ções para seu meio, seu bairro, seus relacionamentos e seu modo de viver na cidade. Também é nesse lugar que paramos para admirar uma citação, ouvir uma história, deixamo-nos dis- trair por questões alheias ao nosso propósito e somos levados por uma torrente de associações. “Muitas ve- zes senti que a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos anos”, es- creve Alberto Manguel. Perdidos na biblioteca, ouvimos Borges: “Por vezes à noite há um rosto. Que nos olha do fundo de um espelho. E a arte deve ser como esse espelho. Que nos mostra o nosso próprio rosto”. Num dia, senta- de construirmos algum encadeamento que nos si- dos no chão da biblioteca, nossos olhos avançam tue em relação a nossos atos e relações. Passamos do na Odisseia e estamos na Grécia Antiga, a mergu- puro agir para a palavra e situamo-nos no mundo. lhar nas aventuras de Ulisses pelo canto de Homero. As Bibliotecas Parque, pela inserção precisa nos ter- Esse perder-se não tem fim, e a procura nos eterniza ritórios da miséria urbana, apresentam-se como nú- como homens: “Perder-se também é caminho”, disse cleos intensivos de inclusão social, restituindo ou Clarice Lispector. As bibliotecas talvez sejam o me- inaugurando o diálogo, as descobertas, os encontros lhor exemplo dessa aventura sem limites por cami- e as oportunidades capazes de romper os selos dessa nhos a conhecer. segregação, a fim de desenvolver a liberdade e a inte- A oportunidade de falarmos de nossas histórias, o ligência criadoras das próximas gerações. encontro de um lugar dado às palavras, é a chance Um novo impulso iluminista é do que precisamos.

47 Rio, histórias de jardins e paisagens

Paulo Herkenhoff

Rio, histories of gardens and landscapes the purpose of gardens is to introduce or- der into the free creations of nature.2 The Rio de Janeiro has an extraordinary ability splendor of the Atlantic Forest was inter- to invent its symbols and to exert multiple preted by the Count of Clarac or described fascinations on its visitors. It is the Brazil- by Auguste de Saint-Hilaire. The Tijuca ian city with the densest history of gar- Forest was reduced to charcoal and dev- dens, from the beginning of colonization astated by coffee expansion until it was to the creation of artists in the 21st century. reforested by Dom Pedro II in the mid-19th The oldest remaining gardens are monas- century. In Parque Lage there are still traces tery gardens, such as those of the Francis- of the original forest. Then, the romantic can Convent of Santo Antônio, the Monas- outline of the sinuosity, the naturalistic tery of São Bento and the Convent of Santa furnishings, and the bucolic costumes of Tereza das Clarissas, all established ac- François Marie Glaziou, the imperial ar- cording to the rules of their orders. In the borist, who leaves his designs at Quinta da Grammaire des Arts du Dessin: Architecture, Boa Vista and at the reforms of the Public Sculpture, Peinture, Charles Blanc says veg- Promenade and Campo de Santana. There etables, flowers, fruit trees, and rare plants is nothing equivalent in Brazil. were planted in the abbeys, but the Bene- Adriana Varejão synthesizes her land- dictines, one of the most self-serving orders, scaping with Panorama da Guanabara Adriana Varejão × “had terraces, sidewalks, decks, and plat- (2012, 120 550 cm), her garden of the world. Paisagens [Landscapes], 1995 bands; the composition of their gardens Her octopus look encompasses Portugal óleo sobre madeira [oil on wood], was as simple and regular as their life”. 1 and the indigenous cultures of Brazil, the 110 × 140 × 10 cm Other historical landmarks are Mestre and , Japan and China, > Panorama da Guanabara [Guanabara Bay Valentim’s Public Promenade and, since since her orography crosses from Vila Rica Panorama], 2012 the 19th century, the Botanical Garden, to Macau (1992). They are also the gardens Óleo e gesso sobre tela [Oil and plaster on with its palm tree alley, in the neoclassical of historical, cannibal, anthropological and canvas], 120 × 550 cm architectural discipline. Blanc adds that subjectivizing times. The cultured painter’s Fotos [Photos] Eduardo Ortega

48 O Rio de Janeiro guarda uma extraordinária capaci- das sinuosidades, o mobiliário naturalista, fantasias dade de inventar seus símbolos e de exercer múltiplos bucólicas de François Marie Glaziou, o arborista impe- fascínios sobre seus visitantes. É a cidade brasileira rial, que deixa seu desenho na Quinta da Boa Vista e com a mais densa história de jardins, desde os pri- nas reformas do Passeio Público e do Campo de Santa- mórdios da colonização à criação dos artistas no sé- na. Nada há de equivalente no Brasil. culo XXI. Os mais antigos jardins remanescentes são Adriana Varejão sintetiza seu paisagismo com Pano- hortos monasteriais, como os do convento franciscano rama da Guanabara (2012, 120 × 550 cm), seu jardim do de Santo Antônio, do mosteiro de São Bento e do con- mundo. Seu olhar-polvo engloba Portugal e as culturas vento de Santa Tereza das Clarissas, todos constituídos autóctones do Brasil, Holanda e África, Japão e China, segundo as regras de suas ordens. Na Grammaire des pois sua orografia atravessa de Vila Rica a Macau (1992). Arts du Dessin: Architecture, Sculpture, Peinture, Char- São também os jardins dos tempos históricos, canibais, les Blanc diz que nas abadias se plantavam legumes, antropológicos e subjetivadores. O extenso quadro nar- flores, árvores frutíferas e plantas raras, mas os bene- rativo da pintora culta é um emaki ocidental, o rolo ditinos, uma das ordens mais austeras, “tinha terraços, ilustrado com imagens e histórias, conforme a tradição passeios, tabuleiros e platibandas; a composição de secular japonesa e brasileira com Guignard do quadro seus jardins era simples e regular como sua vida.” 1 Fantasia (1960, 30 × 122 cm), com três pontos de fuga.3 Outros marcos históricos são o Passeio Público do Muito serenamente, para além da “ansiedade da influ- Mestre Valentim e, desde o século XIX, o Jardim Bo- ência” (Harold Bloom), Varejão é herdeira de Guignard. tânico, com sua aleia de palmeiras, em disciplina ar- A produção paisagística de Adriana Varejão ocorre quitetônica neoclássica. Blanc agrega que o objetivo por embaralhamento transtemporal, reterritoriali- dos jardins é introduzir ordem nas livres criações da zação de identidades, choques antropofágicos de cul- natureza.2 O esplendor da Mata Atlântica foi inter- turas, subjugações antropológicas, biomas neocolo- pretado pelo Conde de Clarac ou descrita por Augus- niais, justaposição transversal de estilos e períodos da te de Saint-Hilaire. A Floresta da Tijuca foi reduzida arte, entredevoração de telas, escavação orgiástica de a carvão e devastada pela expansão do café até ser vísceras, arqueologia canibal de superfícies pictóricas, reflorestada por Dom Pedro II em meados do século pathosformel de lugares sobreviventes, miscigenação XIX. No Parque Lage ainda se guardam vestígios da por estupros, formas de dominação sexual, horrorifi- floresta original. Em seguida, o traçado romântico cação do sublime, da biopolítica bruta, quadros feridos,

49 transverse juxtaposition of styles and periods of art, screen devouring, orgiastic excavation of viscera, cannibal archeolo- gy of pictorial surfaces, pathosformel of surviving places, miscegenation for rapes, forms of sexual domination, horrification of the sublime, gross biopolitics, wounded pictures, the obscene of history, staging of the terrible, Edenic hell, uncondition- al love, enabling the impossible, bodily misery of colonial war, juxtaposition of ghostly tropes, the counter spaces and pro-places with history, eloquence of the unspeakable, post-neo-baroque, presenti- fication of the slave social modes, the dis- tancing of the scenes of the human land- scape, the iconological self, the landscape self, the many self, the self that I am every and all. The place unfolds as a refuge, port, route, state of siege, scene of hospitality betrayed in the social formation of Brazil. There is a Carioca Caio Reisewitz, who never ceases to amaze with unthinkable visions around Rio as he reconsiders the city, poetically interprets its contrasts, pro- poses new historical scripts and ignites the flame of its magic in each image. A Reisewitz rectangle could be a click or an angle, but it is above all a sharp and gran- diose instant, which provides silence and ecstatic vision in the abbey church of São Bento. The artist proposes contemplation just like the Benedictine religious order of reflection, a kind of experience of the mo- nastic enclosure by sight, but without the dramas of the Baroque monument – ora et labora. His work has the serene lightness extensive narrative painting is a western of a Gregorian Vespers in the monastery. emaki, the scroll illustrated with images There it is imposing, the Solomonic and stories, following the Japanese and that unites all men on the ground to the Brazilian secular tradition with Guig- heavens to unite men with God. The artist nard’s painting Fantasia (1960, 30 × 122 interprets the Counter-Reformation and cm) with three vanishing points.3 Quite se- G. C. Argan pulsates in his scholar look.4 Rei- renely, apart from the “anxiety of influence” sewitz interprets every baroque church like (Harold Bloom), Varejão is Guignard’s heir. an ideological argument. Gently, he points Caio Reisewitz The landscape production of Adriana Va- out that nothing remains but silent con- Igreja Santa Catarina do Julgamento [Saint Catherine Church], 2013 rejão occurs by trans-temporal shuffling, templation before the Reisewitzian temple. C-print montado em metacrilato reterritorialization of identities, anthro- The greatness of Caio Reisewitz’s imag- [C-print mounted on plexiglass], pophagic shocks of cultures, anthropo- es is the subtle interpretation of the po- 226 × 180 cm logical subjugations, neocolonial biomes, tential of the dimensions of the optical

50 a ob-cena da história, encenação do terrível, inferno linguagem, a selva barroca de Reisewitz abre uma cla- edênico, amorosidade incondicional, possibilitação do reira para o interior monumental, que remete à faus- impossível, misérias corporais da guerra colonial, jus- tosa igreja dourada de São Francisco da Penitência, en- taposição de tropos fantasmais, dos contraespaços e talhada no Rio por Francisco Xavier de Brito, o mestre pró-lugares com história, eloquência da indizibilidade, do Aleijadinho. Caio Reisewitz é um mestre em simpli- pós-neobarroquismo, presentificação dos modos so- ficar a complexidade de seus atos poéticos até que pa- ciais escravocratas, o destiempo das cenas da humana reçam ter sido sempre assim e simultaneamente pode paisagem, do eu iconológico, do eu paisagístico, do eu deixar subjacente a violência canibal da catequese na muitas, do eu que sou todas e todos. O lugar se desdo- violentação das culturas indígenas. bra como refúgio, porto, rota, estado de sítio, cena da “Estou lidando com um trabalho vivo. Tem vida pró- hospitalidade traída na formação social do Brasil. pria”, 5 diz Rosana Palazyan de O jardim das daninhas. Existe um Caio Reisewitz carioca, que não cessa de Na Casa França-Brasil (2010) plantou um jardim de surpreender com olhares impensáveis pelo Rio ao re- quebra-pedra (Phyllanthus tenellus) e Maria-sem-ver- considerar a cidade, interpretar poeticamente seus gonha (Impatiens walleriana). Alguém disse que “qual- contrastes, propor novos roteiros históricos e acender a quer planta pode ser uma daninha se nascer em local chama de sua magia em cada imagem. Um retângulo onde não é desejada, onde existe uma cultura econo- de Reisewitz poderia ser um clique ou um ângulo, mas micamente produtiva e retirar dela seus nutrientes”. é sobretudo um átimo agudo e grandioso, que propicia Grandjean de Montigny projetou a Praça do Comércio silêncio e olhar extático na igreja abacial de São Bento. (hoje Casa França-Brasil), na capital do Reino, como O artista propõe recolhimento tal como a ordem religio- espaço para transações dos comerciantes da Corte. As sa beneditina de reflexão, uma espécie de experiência daninhas “são indesejáveis e precisam ser destruídas.” de clausura monástica pelo olhar, mas sem os dramas Nessa crítica institucional, a cidade é a megamáquina do monumento barroco – ora et labora. Sua obra tem a revista por semiotização espacial. O jardim das Dani- leveza serena de um canto gregoriano das Vésperas no nhas enternece, sem omitir a desterritorialização do mosteiro. Ali está ela imponente, a coluna salomônica sujeito vulnerável. Na praça da Candelária, vive uma que une os homens no solo aos céus para unir os ho- grande população. Palazyan pensa a espacialização (a mens a Deus. O artista interpreta a Contrarreforma e G. rua e o jardim) e a biopolítica, onde o corpo sem abrigo C. Argan pulsa em seu olhar erudito.4 Reisewitz toma e a erva proscrita se decifram mutuamente sob a vio- toda igreja barroca como tal argumentação ideológica. lência coletiva. Com delicadeza, ele aponta que nada resta senão a con- No 18 de Brumário, Marx descreve o lumpemprole- templação silente diante do templo reisewitziano. tariado, o refugo de classe composto por “impostores, A grandeza das imagens de Caio Reisewitz é a sutil vigaristas, cafetinas, catadores de lixo, pedintes”. Em As interpretação do potencial das dimensões do regime mulheres mendigas, João do Rio ironiza a cosmópolis, ótico, para criar uma cena na qual o espectador se a economia do lumpesinato feminino nas ruas do Rio: sente como partícipe e presença observante, mais do pedintes, prostitutas, “vagabundas ladras”, “pitonisas que plateia de um espetáculo. Diante de Igreja Santa ambulantes”, “cigana exótica”. Michael Pollan relaciona Catarina do Julgamento (2013), todos somos testemu- daninhas aos sistemas de dominação: “se as flores de nhas do encontro dramático entre dois mundos. A ma- jardim fossem escravas do homem, então as daninhas taria luxuriante revela a ecologia dos donos da terra, seriam emblemas de liberdade e de vida natural”. 6 Es- as populações autóctones, cuja saga trágica começaria sencial à acumulação do capital, a mais-valia quase no primeiro encontro com os europeus. Num ato de inexiste entre a gente de rua, que sobrevive do essencial.

51 regime to create a scene in which the O jardim das daninhas [Weed Garden]. viewer feels like a participant and obser- At Casa França-Brasil (2010) she planted vant presence rather than an audience a garden of quebra-pedra (Phyllanthus of a spectacle. Looking at Igreja Santa tenellus) e Maria sem-vergonha (Impa- Catarina do Julgamento (2013), we are tiens walleriana). Someone said that “any all witnesses of the dramatic encounter plant can be a weed if it is born in a place between two worlds. The lush of the veg- where it is not wanted, where there is an etation reveals the ecology of the land- economically productive crop and to take owners the indigenous people, whose its nutrients from it”. Grandjean de Mon- tragic saga would begin at the first en- tigny designed the Praça do Comércio counter with the Europeans. In an act of (now Casa França-Brasil), in the capital of Marcelo Tinoco Karandash,2017 language, the baroque jungle of Reisewitz the Empire, as a space for transactions by Impressão em pigmento natural sobre opens a clearing to the monumental in- Court merchants. Weeds “are undesirable papel de algodão [Natural pigments print terior, which refers to the splendid gold- and must to be destroyed”. In this institu- on cotton paper], 150 × 183 cm en church of São Francisco da Penitência, tional critique, the city is the mega-ma- Edição de 6 [Edition of 6] carved in Rio by Francisco Xavier de Brito, chine revised for spatial semiotization. the master of Aleijadinho. Caio Reisewitz O jardim das daninhas softens, without > Rosana Palazyan is a master at simplifying the complex- concealing the deterritorialization of the O jardim das daninhas [Weed garden], 2010 ity of his poetic acts until they seem to vulnerable subject. At Candelária square Instalação. Plantas variadas e obras da have always been that way and at the (near Casa França-Brasil), a large popu- série Por que daninhas? dispostas em bases de aço inox, dimensões variáveis [Varied plants same time he can underlie the cannibal lation lives. Palazyan thinks of spatial- and works of the series Why weeds? arranged in violence of catechesis in the violation of ization (the street and the garden) and stainless steel basis, varied dimensions] indigenous cultures. biopolitics, where the homeless body and Vista da instalação [Instalation view] na Casa “I’m dealing with a living job. It has a the outlawed grass decipher each other França-Brasil, Rio de Janeiro, 2010 life of its own”, 5 says Rosana Palazyan of under collective violence. Foto [Photo] Vicente de Mello

52 A imagem dessa população é de força ociosa a consu- um morador de rua. João do Rio repisa no inominado mir sem produzir. As daninhas “competem por espaço dos que vivem na rua com um rapaz – “o meu nome e nutrientes”. Palazyan distorce o antropocentrismo da para quê?”. 8 Em sua botânica, Palazyan reage ao avaliação negativa das daninhas e cria a conexão por morador de rua como o sem nome. Gilles Deleuze e liames éticos entre daninhas e população de rua. Félix Guattari situam, com modelo árvore/raiz, os Na cadeia significante da linguagem, Palazyan defi- beatniks, gangues.9 As comunidades provisórias dos ne o espaço coletivo em relação ao corpo – o elo mais que dormem na rua têm algo da estrutura de rizoma, denso na cadeia: o jardim, entre o nômade (a população sem deitar raízes que constituam laços permanentes. sem teto) e o fixo proliferante (a daninha). Ralph Waldo O desejo de pertencer é revelado por um morador de Emerson argumenta serem construção humana a rua do Rio: “me sinto como todos os moradores que ideia de “erva daninha” e “o problema metafísico das têm casa, apartamento, os mesmos direitos”. A luta por plantas daninhas não difere do problema metafísico espaços pela daninha, a capacidade de resistência e do mal: é uma propriedade permanente do univer- sobrevivência, vem da força da vida. Plantas tóxicas e so ou é uma invenção da humanidade?”. 7 “Na rua eu as ervas daninhas ocupam o lugar de ameaça à ordem vi que tinha rótulo, mas não tinha identidade”, disse conforme Pollan,10 que cita seu avô (hippies, sindicatos

53 In The Eighteenth Brumaire, Marx de- In the significant chain of language, scribes the Lumpenproletariat, the class Palazyan defines the collective palace in junk made up of “impostors, swindlers, relation to the body – the densest link in pimps, garbage collectors, beggars”. In As the chain: the garden, between the nomad mulheres mendigas [Women beggars], João (the homeless population) and the pro- do Rio mocks the cosmopolis, the economy liferating fixed (the weed). Ralph Waldo of the female Lumpenproletariat on the Emerson argues that the idea of “weed” is streets of Rio: beggars, prostitutes, “slut human construction and “the metaphysi- thieves”, “walking pythoness”, “exotic gyp- cal problem of weeds does not differ from sy”. Michael Pollan relates weeds to domi- the metaphysical problem of evil: is it a nation systems: “if garden flowers were permanent property of the universe or is Carlito Carvalhosa 7 slaves of man, then weeds would be em- it an invention of humanity?”. “I saw on Já estava assim quando cheguei [It was like 6 blems of freedom and natural life.” Essen- the street that I had a label but no identity,” this when I arrived], 2006 tial to the accumulation of capital, surplus said a homeless man. João do Rio remarks Gesso, madeira, aço, fitas de carga [plaster, wood, value is almost nonexistent among the in the unnamed of those who live in the steel, loading tapes], 600 × 400 × 340 cm homeless, who survive on the essentials. street with a boy – “my name for what?”.8 Instalação no [Exhibition view] Museu de Arte The image of this population is of idle force In her botany, Palazyan reacts to the Moderna do Rio de Janeiro to consume without producing. Weeds homeless as the unnamed. Gilles Deleuze Foto [Photo] Carlito Carvalhosa “compete for space and nutrients”. Palazyan and Félix Guattari situate, with tree/root > 9 Cesar Barreto distorts the anthropocentrism of negative model, the beatniks, gangs. The provi- Praia de Ipanema [Ipanema Beach], 2001 weed assessment and creates the ethical sional communities of those who sleep on Fotografia analógica, a partir de connection between weeds and the home- the street have something of the rhizome chapa negativa de 4 × 5’ [Analogic photo, less population. structure, without laying roots that form from a negative plate 4 × 5’]

54 e ervas daninhas são forças do caos). “As plantas dani- do ataque ao problema de construção da obra: manter nhas”, diz Pollan, “não é o Outro. As plantas daninhas o inominado em estado formal mutante. somos nós”. 11 A ontologia do visível (isto, ou aquela massa geo- Já estava ali quando eu cheguei, de Carlito Carvalho- gráfica, “já estava ali quando eu cheguei”... isto já era sa, parece aludir à migração. Feita por um artista pau- visível antes do meu olhar) de Merleau-Ponty é pen- lista que se mudou para o Rio, a escultura é um Pão-de- sada a partir de Cézanne. Se o filósofo ainda se remete Açúcar decepado. Ou poderia referir-se à colonização: ao campo metafísico, Carvalhosa dispensa a memória o que estava ali antes de a cultura ocidental chegar cultural do penhasco (sua história simbólica para o era uma pedra com um outro nome e valor simbólico. país), e talvez mesmo a fenomenologia bacherlardiana Nomear é tomar posse. No entanto, o trabalho recua de La Terre et les rêveries de la volonté. Não obstante, ao momento mais primordial ao firmar que a pedra– ele se sabe diante de um confronto merleau-pontyano o monumental acidente geográfico– “já estava ali alusivo a Cézanne: a humanidade constituída (o sujei- quando eu cheguei” e não tem nome, mas forma. No to da percepção produtiva da arte: o artista) suspende entanto, o artista não fixa dicotomia entre os tempos hábitos (como o de pensar a paisagem como algo dado díspares da chegada e do estar antes. A obra trata de na pintura) e nos revela “o fundo de natureza inuma- um momento constitutivo do sujeito sensiente. Essa na sobre a qual a pintura se instala”. Se a memória de distância entre o eu e o mundo (o que “já estava ali”) é Carvalhosa se constrói com seu aparato sensorial, sua a consciência. O título afirmativo cria um ponto de sus- produção se desdobra com um olho na história da arte. pensão, anterior à etapa de intensificação expressiva “A paisagem se pensa em mim e eu sou sua consciência”,

55 permanent ties. The desire to belong is re- the monumental geographical accident – vealed by a homeless man from Rio: “I feel “was already there when I arrived” and has like all inhabitants who have a house, an no name but form. However, the artist apartment, the same rights.” The struggle does not set dichotomy between disparate for spaces for weeds, the ability to resist times of the arrival and of being before. The and survive, comes from the strength of work deals with a constitutive moment of life. Toxic plants and weeds take the place the sentient subject. This distance between Rosângela Rennó of a threat to order according to Pollan,10 the self and the world (which “was already Projeto A última foto [Project Last Photo], 2006 which quotes his grandfather (hippies, there”) is consciousness. The affirmative Debora Engel unions, and weeds are forces of chaos). title creates a point of suspension, prior Gradosol, 2006 “Weeds,” says Pollan, “are not the Other. to the stage of significant intensification Fotografia em cor e câmera fotográfica Gradosol 11 The weeds are us”. of the attack on the problem of the con- emolduradas [Color photo and photographic Carlito Carvalhosa’s Já estava ali quan- struction of the work: keeping unnamed camera Gradosol framed] do eu cheguei [it was already there when I in a mutated formal state. Foto [Photo], 83 × 83 × 9,5 cm / câmera [camera] arrived] seems to allude to the migration. Merleau-Ponty’s ontology of the visible 17,3 × 24,5 × 9,5 cm Made by a São Paulo artist who moved to (this, or that geographical mass, “was al- Rio, the sculpture is a severed sugar loaf. ready there when I arrived”... this was al- > Pedro Vasquez Or it could refer to colonization: what was ready visible before my gaze) is thought Fed 2, 2006 Fotografia em papel de prata/gelatina e câmera there before Western culture arrived was based on Cezanne. If the philosopher still fotográfica Fed 2 Tipo C emolduradas [Photo in a rock with another name and symbolic refers to the metaphysical field, Carvalhosa silver paper/gelatin and photographic camera value. To name is to take possession. How- dismisses the cliff’s cultural memory (the Fed 2 type C framed] ever, the work goes back to the most pri- country’s symbolic history), and perhaps Foto [Photo], 58 × 88 × 9 cm / câmera [camera] mordial moment by stating that the rock – even the Bacherlardian phenomenology of 12,4 × 22 × 10 cm

56 escreveu Cézanne. Como o monte Sainte-Victoire para salto tecnológico da fotografia analógica para a digital, a pintura de Cézanne, o Pão-de-Açúcar é o mero dado do século XX para o século XXI. O luto pela analógica do mundo (o pré-mundo), a partir do qual Carvalho- se depara com a força poética do novo regime fotográ- sa contrapõe a especificidade da escultura à natureza fico. Perversamente, Rennó encaminha o espectador primordial. Entre a opacidade da memória e o não- para a economia de acumulação (arquivos, bibliotecas, saber, Carvalhosa evidencia seu quiasma: o que vem coleções e atlas), mas, de fato, está problematizando da coisa (o que ali estava) e que vem dele em seu tra- os modos de circulação e apropriação do objeto foto- balho de artista. gráfico ou da imagem como objeto do desejo. Expõe Rosângela Rennó pediu a colaboração de 43 fotógra- o que Barthes tratou como tensão da fotografia: sua fos para o projeto A última foto: ofereceu uma câmera submissão ao código civilizado das ilusões perfeitas e analógica diferente a cada um para fazer uma ima- o enfrentamento da inacessível realidade.12 Antes que gem do Cristo Redentor. Essa viria a ser a última foto o veneno da fotografia encontre seu antídoto fatal na de cada câmera, que em seguida seria selada. Cada predação pelo mercado, Rennó promove a conversão câmera analógica e sua última fotografia são exibidas escatológica da fotografia perdida do homem comum em um par em molduras separadas. Todo projeto de em discurso poético como o destino último na cultura. Rennó implica a abordagem de um aspecto singular A metalinguística de Rennó é irredutível à linguagem da questão da fotografia, do contrato social da imagem autorreferenciada e ilustrativa de teorias. Textos de ao regime ótico. A última foto talvez seja o trabalho filósofos e cientistas sociais talvez sejam mais impor- da arte, em termos mundiais, que melhor dê conta do tantes para seu projeto que a história da arte e a teoria

57 La Terre et les rêveries de la volonté. Never- Rosângela Rennó asked 43 photogra- theless, he knows himself in the face of a phers to collaborate on the project. A úl- Merleau-Pontian confrontation alluding tima foto [The last photo]: she offered a to Cezanne: constituted humanity (the different analog camera to each one to Eduardo Coimbra subject of productive perception of art: the make an image of Christ the Redeemer. Nuvem [Cloud], 2008 artist) suspends habits (such as thinking This would become the last photo of each Impressão em lona translúcida, estrutura of the landscape as given in painting) and camera, which would then be sealed. Each de ferro, lâmpada fluorescente, espelho reveals to us “the background of inhuman analog camera and its last photograph [Print in translucent heavy canvas, iron structure, fluorescent lamp, mirror], 470 × 470 × 48 cm nature on which the painting takes root.” If are displayed in pairs in separate frames. (cada elemento [single piece]); 470 × 470 × 1.180 cm Carvalhosa’s memory is built on his sensory Every project of Rennó implies the ap- (conjunto [ensemble]) apparatus, his production unfolds with an proach of a unique aspect of photography, Instalação na [Installation at] Praça XV de eye on art history. “The landscape thinks of from the social contract of the image to Novembro, Rio de Janeiro me and I am its conscience”, wrote Cezanne. the optical regime. A última foto may be Foto [Photo] Wilton Montenegro Like Mount Sainte-Victoire for Cezanne’s worldwide the work of art that best re- painting, Sugar Loaf is the mere datum flects the technological leap from analog > Chang Chi Chai of the world (the pre-world), from which to digital photography from the 20st to Cristo Redentor, série Transcendências Carvalhosa contrasts the specificity of the 21st centuries. The mourning for the [Christ the Redeemer/Transcendences series], 1998-2005 sculpture with primordial nature. Between analog encounters the poetic force of the Impressão sobre papel montado em placa the opacity of memory and not knowing, new photographic regime. Perversely, de PVC e miniatura da estátua do Cristo Redentor Carvalhosa shows his chiasm: what comes Rennó directs the viewer to the economy [print on paper fixed on a PVC plate e miniature from the thing (what was there) and what of accumulation (archives, libraries, col- of the statue], 120 × 200 cm comes from him in his work as an artist. lections, and atlases), but in fact, she is Coleção [Collection] Museu de Arte do Rio – MAR

58 da fotografia. Consistentemente, Rennó vem revol- “Momento da dúvida e do intenso abandono: o advir. vendo o cânon fotográfico em todas dimensões ideo- Terá lugar? Dará lugar? Entre os lugares da cidade – lógicas, simbólicas e imaginárias. Depois de conhecer que a lógica do monumento teria por função hierar- seu trabalho, nunca mais poderemos olhar para uma quizar – a imagem do Cristo Redentor ocupa o pon- fotografia ou pensar sua civilização da mesma forma. to máximo, a visibilidade absoluta, braços abertos A fotografia cotidiana se propôs a realizar o desígnio sobre nós. Como pensar o suceder nestes tempos de Flusser de que “o fotógrafo somente pode fotogra- sem promessas? Tempos de história sem finalidade? far o fotografável”, 13 mas o esforço de Rennó tem sido Sem o futuro que daria sentido e causalidade ao que extrair o infotografável. Ela traz à luz aquilo que não acontece no agora? Ao que advém no aqui? Ao desa- seria visualmente descrito pelo fotógrafo nem ver- brigo da Presença: do grego παρουσια, presença, pa- balizável pelo teórico: qual é o lugar da fotografia na rousia significa a volta do Cristo glorioso no fim dos vida? Para Rennó, só a fotografia explica a fotografia. tempos, no fim da história (do Cristo e do mundo) Diz Marisa Flórido Cesar que “a proposta de Chang em Deus. Mas o Filho do Homem talvez não retor- Chai é plantar mudas de ipê amarelo nas ruas, praças, ne como prometido nas escrituras; nosso desígnio becos e vielas da Zona Norte e Leopoldina da cidade do comum não mais se realizará como anunciado pelo Rio de Janeiro, formando o contorno ampliado da som- projeto da História. Esta devedora da temporalidade bra do monumento do Cristo Redentor”. Marisa Flórido cristã, ocidental, com seu desenrolar linear, com sua Cesar ainda escreve: redenção no horizonte do mundo. ‘Emancipação da

59 problematizing the modes of circulation graph or think of its civilization in the and appropriation of the photographic same manner. Everyday photography set object or image as the object of desire. She out to accomplish Flusser’s plan that “the exposes what Barthes treated as the ten- photographer can only photograph the sion of photography: its submission to the photographable”, 13 but Rennó’s effort has civilized code of perfect illusions and the been to extract the unphotographable. confrontation of the inaccessible reality.1 2 She brings to light what would not be vi- Before photography’s poison finds its fatal sually described by the photographer nor antidote in market predation, Rennó pro- verbalizable by the theorist: what is the motes the eschatological conversion of the place of photography in life? For Rennó, lost photograph of the common man into only photography explains photography. poetic discourse as the ultimate fate in Marisa Flórido Cesar says that “Chang culture. Rennó’s metalinguistics is irreduc- Chai’s proposal is to plant seeding of the ible to the self-referential language that il- yellow ipê [trumpet tree] on the streets, Flavia Junqueira lustrates theories. Texts from philosophers squares, alleys, and lanes of the North Parque Lage 1811, #1 [Lage Park 1811,#1], 2019 and social scientists may be more import- Zone and Leopoldina in the city of Rio de Impressão digital com pigmentos minerais ant to her project than art history and the Janeiro, forming the enlarged shape of the [Digital print with mineral pigments], 150 × 183 cm theory of photography. Consistently, Ren- shadow of the Christ the Redeemer monu- nó has been revolving the photographic ment”. Marisa Flórido Cesar still writes: > Joelington Rios canon in every ideological, symbolic and O que sustenta o Rio, Zé [What imaginary dimension. After knowing her “Moment of doubt and intense abandon- sustains Rio, Zé], 2018 work, we can no longer look at a photo- ment: the coming. Will it take place? Will Fotomontagem [Photomontage]

60 Humanidade’, diria o projeto das Luzes; Parousia, di- na horta medicinal, no quintal de dona Maria – cenas riam os cristãos. Com tempos de execução e recepção autobiográficas do artista quilombola. Ao chegar ao além de nossa frágil e breve existência, transcenden- Rio, o jovem trazia ilusões vinculadas à natureza, ao do o aqui e o agora, Cristo Redentor/Transcendências charme da Zona Sul, às grandes personalidades e à quer repensar a noção de processo e de projeto — e força simbólica da cidade. O roteiro para elaborar sua a de porvir nele implicado – em um mundo que vê série O que sustenta o Rio, pressupõe deambulação frustrar o futuro pressagiado pelo ideal iluminista. em estado de questionamento, entre deriva e errância Um porvir que há de vir sem feições, sem contornos. para expor os desafios da vida na cidade. O que susten- Questões cruciais: o tempo, o dom, o cuidado com o ta o Rio nasce da “experiência de corpo que se desloca outro. Excedendo os contornos da projeção natural e observa o que está ao redor”. Rafael Lopes escreveu formada pelo sol, a sombra desenhada pelos ipês que as imagens de Rios são “crônicas de uma cidade amarelos transgride as ilusórias e arbitrárias fron- que ora vive de sua aparente estabilidade e paz e ora teiras políticas ou socioculturais, atravessa vários é sacudida pelas questões sociais inerentes a esse sis- bairros, suas praças, seus guetos, alcança e abraça tema que privilegia poucos em detrimento de muitos.” as cidades da vizinhança. Considerada a árvore na- Rios sobrepõe por fotomontagem em preto e branco e cional, a palavra ‘ipê’ vem do tupi: árvore cascuda, ajusta a imagem do Redentor à cabeça de pessoas, qua- resistente. Florescendo apenas uma vez ao ano, o se anônimas, em situações ordinárias, como emblema desenho amarelo da sombra do Cristo só fica visível de pertencimento à cidade do amor e das fricções. Para nos fins dos invernos, anunciando as primaveras e Joelington Rios, viver o Rio é a experiência radical de seus ciclos renovados. Sua floração amarela rever- descoberta crítica sobre os subúrbios, as favelas, as te a melancolia associada às sombras, para extrair praias, os contrastes, as asperezas, os embates e a ex- delas suas resistências ‘iluminadas’. Como projeto, clusão. Para o artista quilombola o Rio ideal, a Cidade talvez inexequível, talvez impossível, poderá ou não acontecer. Ocorrerá? Não há como não enfrentar o susto de uma resposta que nos falha. Não há como não se instalar nessa suspensão sem desabafo, no sem lugar da perplexidade, para acolher o imprevi- sível e o inesperado do impossível. Para abrir, enfim, os braços àquilo ou àquele que vem.”

Nascido no quilombo de Jamary dos Pretos em Tu- riaçu no Maranhão, Joelington Rios deixou seu vila- rejo e veio para o Rio em 2017. “Sempre morei no qui- lombo. Meus pais são lavradores, trabalham na roça, plantam, colhem, e tiram deste processo todo o sus- tento da família. Meu pai, além de lavrador, é vaquei- r o .” 14 Na memória da origem, em foto por celular, Joe- lington registrou o regozijo no “meu quilombo” pela eleição de Rafael Ribeiro para vereador. Uma enterne- cedora cena de afeto e registro cultural em Jamary dos Pretos apresenta “minha parteira e minha professora”

61 it give place? Among the places of the on the horizon of the world. ‘The emanci- city – which the logic of the monument pation of humankind’, the Enlightenment would have to hierarchize – the image of project would say; Parousia, the Christians Christ the Redeemer occupies the high- would say. With times of execution and est point, absolute visibility, open arms reception beyond our fragile and brief ex- Victor Arruda above us. How to think of succeeding in istence, transcending the here and now, Homenagem às vítimas do dinheiro these times without promises? Times Cristo Redentor/Transcendências [Christ [Tribute to victims of money], 2014 of history without purpose? Without Intervenção durante a ArtRio [Intervention during ArtRio] the future that would give meaning Foto [Photo] Vicente de Mello and causality to what happens in the Uma noite no Rio [A night in Rio], 1986 now? To what comes in the here? To Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas], the homelessness of the Presence: from 100 × 100 cm the Greek παρουσια, presence, parousia Coleção [Collection] Gilberto Chateaubriand – means the return of the glorious Christ MAM-RJ at the end of times, at the end of history Foto [Photo] Museu de Arte Moderna (of Christ and the world) in God. But the do Rio de Janeiro Son of Man may not return as promised in the scriptures; our common purpose > Guga Ferraz Roma de Nero [Nero’s Rome], 2008 will no longer be fulfilled as announced Adesivo sobre mapa [Adhesive on map], by the project of history. This debtor of 100 × 130 cm Christian, Western temporality, with its Cortesia [Courtesy] Artur Fidalgo Galeria linear unfolding, with its redemption

62 Maravilhosa, colide com a crise estrutural de enorme doentes da maldição do petróleo enquanto alimenta segmento da população, o apartheid social, a vida nua, de royalties a corrupção de outros estados, o antro de a fricção da marginalidade. O Rio de Janeiro tem uma depressão e falha.15 Esses são os movimentos tectôni- avançada antropologia urbana, crítica da situação ur- cos da paisagem guanabarina de Victor Arruda. Neles, banística que espelha a estrutura socioeconômica que nada é estável. divide a cidade em morro e asfalto, por ordenamentos Sem temor nem desamor, o contundente Guga Fer- de classes sociais, bairros e grupos sociais. A interação raz mapeia a urbe carioca violenta em Roma de Nero se dá pelo trabalho e pela praia, por exemplo. O termo (2008). Sua geografia da aflição– os lugares como es- cidade partida se disseminou com o livro de Zuenir paços com história de abandono social e violência – se Ventura (1994). Malgrado tudo, a cidade não deixou de inscreve na história do fogo devastador do Brasil, da ser amada e cantada, para o bem e para o mal. Seus coivara ecológica dos índios à devastação das matas moradores, como as personagens de Joelington Rios de Félix Émile Taunay (Mata reduzida a carvão, c. 1830) trazem o Rio na cabeça. É o Rio de Rios. a Pedro Weingärtner (A derrubada, 1897), das queima- Victor Arruda é um artista maldito (desde as pin- das ruralistas contemporâneas, dos paióis do tráfico turas de juventude baseadas nos catecismos eróticos pelo Rio de Janeiro à especulação e ao achaque imo- de Zéfiro à paisagem da Guanabara voraz), um artista biliário, aos sem teto e favelas em São Paulo com seus dos artistas, artista cuja obra resiste à visibilidade de incêndios premeditados. A arte do fogo de Ferraz não styling do capital. Em uma das edições da ArtRio, uma pode ser a cerâmica, pois é a história carioca narrada traineira navegou na baía com o neon Homenagem às por granadas, fuzis AK-47, russos contrabandeados e vítimas do dinheiro. Na celebração da pintura da Ge- pistolas-metralhadoras compactas UZI israelenses. O ração 80, Arruda estragou a festa das cores com uma fantasmal do horror de Guga Ferraz habita as mesmas pintura bruta en grisaille e afirma que não é possível cidades do sublime, do êxtase e da riqueza. ser só feliz. Sua audácia foi desconstruir a obra divina – Fernando Lindote sabe que o Rio não é para amado- “dentro da barra tem uma baía que bem parece que a res nem só para seus amantes. É a cidade inclusiva ím- pintou o supremo pintor arquiteto do mundo, Deus par em suas praias e festas, no uso dos espaços públi- Nosso Senhor,” o jesuíta Fernão Cardim no século XVI. cos, mas também uma cidade partida pela violência O pintor nelson-rodriguesiano é contra a hipocrisia, o racismo e o preconceito e desnuda a geografia cul- tural representada na baía do Rio. A Guanabara com uma anatomia canibal, guana + bara = seio + mar = “mar do seio”. Evocação de uma região quinhentista de antropófagos de André Thevet e Jean de Léry, a boca desdentada do olhar insensível de Claude Lévi-Strauss, o Rio de todos os pecados (a seringa da droga, o pênis ereto, o seio), a Sodoma do imaginário pudico dos bra- sileiros, a Cloaca Máxima justaposta à Roma de Nero em chamas de Guga Ferraz, a enseada da agonia da biodiversidade, a bocadura de corpos, o escoadouro de ouro, o porto do abocanhamento escravista do Valongo, o refúgio de piratas, o cemitério de navios, as águas

63 the Redeemer/Transcendences] wants garden in Dona Maria’s backyard – autobi- to rethink the notion of process and de- ographical scenes by the quilombola artist. sign – and that of the future entailed in Arriving in Rio, the young man brought it – in a world that sees frustrating the illusions linked to nature, to the charm of future. presaged by the Enlightenment the South Zone, to the great personalities ideal. A future that will come without and the symbolic strength of the city. The features, without contours. Critical is- roadmap for elaborating his series O que sues: the time, the gift, the care with the sustenta o Rio [What sustains Rio] presup- other. Exceeding the contours of the sun’s poses walking in a state of questioning, be- natural projection, the shadow drawn by tween drift and wandering to expose the the yellow ipê transgresses the illusory challenges of city life. O que sustenta o Rio and arbitrary political or sociocultural comes from the “experience of the body boundaries, traverses various neighbor- that moves and observes what is around”. hoods, their squares, their ghettos, reach- Rafael Lopes wrote that the images of es out and embraces the surrounding Rios are “chronicles of a city that now lives cities. Considered the national tree, the on its apparent stability and peace and is word ‘ipê’ comes from the Tupi: hard bask sometimes shaken by the social issues in- tree, resistant. Blooming only once a year, herent in this system that privileges the the yellow drawing of the shadow of the few over the many.” Rios overlaps by black Christ is visible only at the end of winters, and white photomontage and adjusts the heralding the springs and their renewed image of the Redeemer to the heads of al- cycles. Its yellow flowering reverses the most anonymous people, in ordinary situa- melancholy associated with the shadows, tions, as an emblem of belonging to the city to extract from them their ‘illuminated’ of love and friction. For Joelington Rios, liv- resistances. As a project, perhaps unfeasi- ing Rio is the radical experience of critical ble, perhaps impossible, that may or may discovery about suburbs, slums, beaches, not happen. Will it occur? There is no way contrasts, harshness, clashes, and exclusion. not to face the fright of an answer that For the quilombola artist the ideal Rio, the fails us. It is impossible not to settle into Marvelous City, collides with the structural this suspension without an outburst, in crisis of a huge segment of the population, the place of perplexity, to welcome the social apartheid, naked life, the friction of unpredictable and the unexpected of the marginality. Rio de Janeiro has advanced impossible. Finally, to open the arms to urban anthropology, critical of the urban what or to whom is coming”. situation that mirrors the socioeconom- ic structure that divides the city into hills Born in the Jamary dos Pretos quilombo and asphalt, by social class, neighborhood in Turiaçu in Maranhão, Joelington Rios and social groupings. The interaction takes left his village and came to Rio in 2017. place through the work and the beach, for “I have always lived in the quilombo. My example. The term cidade partida [broken parents are farmers, they work on the city] was spread by Zuenir Ventura's book Marc Ferrez farm, they plant, they reap, and they de- (1994). In spite of everything, the city has Corcovado [Corcovado Mountain], c. 1886 rive all their livelihood from this process. not ceased to be loved and sung, for good Fotografia [Photograph] My father, besides being a farmer, is a and for bad. Its inhabitants, like the char- Coleção [Collection] Gilberto Ferrez / Acervo IMS cowboy”.14 In memory of the origin, in a acters of Joelington Rios carry Rio in their cell phone photo, Joelington recorded the heads. It is the Rio of Rios. > Fernando Lindote joy in “my Quilombo” for the election of Victor Arruda is an accursed artist (from Hy-Brazil – hepatoscopia I [Hy- Brazil – hepatoscopy I], 2015 Rafael Ribeiro as councilor. A heartwarm- youth paintings based on Zephyr’s erotic Óleo sobre tela [Oil on canvas], 200 × 150 cm ing scene of affection and cultural record catechisms to the voracious Guanaba- Coleção do artista [Artist’s collection] in Jamary dos Pretos features “my mid- ra landscape), an artist of the artists, an Foto [Photo] Thales Leite wife and my teacher” in the medicinal artist whose work resists the styling

64 65 visibility of the capital. In one issue of the refuge of pirates, the ship graveyard, ArtRio, a trawler sailed into the bay with the sick waters of the oil curse while the the neon sign Homenagem às vítimas do payment of royalties – feeds the corrup- dinheiro [Tribute to the victims of money]. tion of other states, the den of depression In the celebration of the Generation 80 and failure.15 These are the tectonic move- painting, Arruda spoiled the feast of colors ments of Victor Arruda’s Guanabarian with a brute en grisaille painting and states landscape. In them, nothing is stable. that it is not possible to be just happy. His Without fear or dislike, the blunt Guga boldness was to deconstruct the divine Ferraz maps the violent Rio de Janei- work – “Inside the bar, there is a bay that ro city in Roma de Nero [Nero’s Rome] seems to have painted the supreme ar- (2008). His affliction geography – places chitect painter of the world, God Our Lord,” like spaces with the social neglect of histo- Jesuit Fernão Cardim in the 16th century. ry and violence – is inscribed in the history The Nelson-Rodriguian painter is against of the devastating fire of Brazil, ecological hypocrisy, racism, and prejudice and un- coivara of the Indians to the devastation covers the cultural geography represented of the forests of Félix Taunay (Mata redu- in the bay of Rio. Guanabara with a canni- zida a carvão [Forest reduced to charcoal], bal anatomy, guana + bara = breast + sea = c. 1830). Pedro Weingärtner (A derrubada “breast sea”. Evocation of a 16th-century re- [The clearing], 1897), from contemporary gion of anthropophagous by André Thevet rural burnings, from the Rio de Janeiro’s and Jean de Léry, the toothless mouth of traffic storages to speculation and real Claude Lévi-Strauss’s insensitive gaze, the estate, to homeless people and the favelas Rio of all sins (the drug syringe, the erect in São Paulo with their premeditated fires. penis, the breast), the Sodom of the Brazil- Ferraz’s art of fire cannot be pottery, for ians, the Cloaca Maxima juxtaposed with it is Rio’s history told by grenades, smug- the Roma de Nero [Nero’s Rome] in flames gled Russian AK-47 rifles, and IsraeliUZI of Guga Ferraz, the inlet of the agony of bio- compact submachine guns. The ghostly diversity, the mouthful of bodies, the gold- horror of Guga Ferraz inhabits the same en outlet, the port of Valongo’s slave mouth, cities of sublime, ecstasy and wealth.

Marcos Chaves Insustentável beleza, da serie Sugar Loafer [Unbearable Beauty, from the Sugar loafer series], 2018 Impressao em pigmento mineral sobre papel de algodao [Print with mineral pigments on cotton paper], 133 × 200 cm

> Luiz Zerbini Erosão [Erosion], 2014 Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas], 200 × 300 cm

66 da exclusão, matriz de sua revolta. O Rio carioca se ama tiva vertical chinesa, o sobe-desce na superfície do profundamente e aplaude o sol. Mas o Rio também é suporte, as paisagens de Guignard e Vieira da Silva. uma cidade profundamente autocrítica, autocanibal. O homem cordial carioca tolera e usufrui da cidade Antes de Cabral, a inalcançável ilha de Hy-Brasil partida de Zuenir Ventura. Desfruta do sublime mais aparecia em mapas da Europa a oeste da Irlanda no incandescente sob a trilha sonora de rajadas de fuzil Atlântico. Na linhagem da Paisagem canibal de Adria- e balas perdidas. Macunaíma, o vassalo de São Paulo, na Varejão, em Hy-Brazil – hepatoscopia 1, Fernando impera entre corpos-escombros. No reino da devasta- Lindote, o paisagista feroz, monta cenas impiedosas ção, a paisagem civilizada é a cena de uma barbárie do Rio. Já não é mais o sublime e a comunhão cósmica que, sem se enunciar, é mistério incômodo. se contamina com sublimações antagônicas e as con- Felipe Cama é um narrador visual por grupos de ima- tradições. Estão ali a bocarra do tubarão, a memória gens sob um foco formal ou temático, reunindo até 30 do Corcovado nu de Marc Ferrez, a arcada sanguinária figuras. Em Avenida das Palmeiras Imperiais (Rua Pais- de Mário de Andrade, o turista. Rio,16 “purgatório da sandu) ele recorre a impressões fotográficas de repre- beleza e do caos” (, 1992). Ali estão a sentações da rua que em tempos faltosos do Império geografia dramática do maciço da Tijuca, a perspec- levava da praia do Flamengo ao pórtico do palácio da

67 Fernando Lindote knows that Rio is nei- Marc Ferrez’s naked Corcovado, the blood- ther for amateurs nor just for its lovers. It is thirsty arch of Mario de Andrade, the tour- the unique inclusive city in its beaches and ist. Rio,16 “Purgatory of beauty and chaos” parties, in the use of public spaces, but also (Fernanda Abreu, 1992). Here are the dra- a city broken by the violence of exclusion, matic geography of the Tijuca massif, the matrix of its revolt. Rio de Janeiro deeply Chinese vertical perspective, the rise and loves itself and applauds the sun. But Rio is fall on the surface of the support, the land- also a deeply self-critical, auto-cannibal city. scapes of Guignard and Vieira da Silva. Felipe Cama Before Cabral, the unreachable island The Carioca cordial man tolerates and Avenida de Palmeiras Imperiais – Rua Paissandu of Hy-Brazil appeared on maps of Europe enjoys the broken city of Zuenir Ventura. [Imperial Palms Avenue – Paissandu street], west of Ireland in the Atlantic. In the line He enjoys the most incandescent sublime 2010/2015 of Adriana Varejão’s Paisagem canibal beneath the soundtrack of rifle blasts and Impressão em metacrilato e em papel algodão, [Cannibal Landscape], in Hy-Brazil – hepa- stray bullets. Macunaíma, the vassal of dimensões variáveis [print in plexiglass and toscopia 1, Fernando Lindote, the fierce São Paulo, reigns between rubble-bodies. cotton paper, variable dimensions] landscaper, mounts ruthless scenes of Rio. In the realm of devastation, the civilized > Fernando Leite It is no longer the sublime, and the cosmic landscape is the scene of barbarism that, Jardim [Garden], 2015 communion is contaminated with antag- without speaking, is a troubling mystery. óleo sobre tela [Oil on canvas], 160 × 130 cm onistic sublimations and contradictions. Felipe Cama is a visual narrator by groups Coleção particular [Private collection], São Paulo The shark’s mouth is there, the memory of of images under a formal or thematic focus, Foto [Photo] Fernando Leite

68 Guanabara, residência da Princesa Isabel. As palmeiras de Clarac em Floresta Virgem do Brasil (1822) e Johann foram plantadas por ordem de D. Pedro II e a rua foi no- Moritz Rugendas, ao período pré-modernista em que meada em memória da tomada da cidade de Paysandú a vegetação exuberante substituía os exercícios do ro- pelas tropas brasileiras na Guerra da Tríplice Aliança mantismo e do impressionismo surgentes. naquele ano. A obra embaralha tempos sociais e fases Em termos do signo material, as paisagens de Leite de crescimento das plantas. Cama propõe uma visão estão comprometidas com a tradição de João Baptista gestáltica do conjunto de nove cenas em dimensões va- da Costa (Rio Piabanha em Petrópolis, c. 1910) e Eliseu riáveis da aleia da espécie Roystonea oleracea, percebi- Visconti (Mamoneira, Morro de São Bento, 1890), que da como grupo de mais do mesmo, como uma repetição são referências para suas paisagens fotossintéticas. movida por pequenas diferenças, para depois reclamar Leite não teme o verde, mas seu vergel parece cuida- a atenção para a minúcia em estudo do fenômeno da doso, como o mestre, nos detalhes individualizados de visão e de suas errâncias de leituras. cada folha. Na visão diurna do pintor, todo seu univer- A paisagem de Fernando Leite remonta à tradição do so verde tem um véu de semitons, dado pelo substra- registro da luxuriosa Mata Atlântica desde os artistas to de branco que se insere, como as folhas prateadas viajantes do século XIX, como as clareiras do Conde em noite enluarada. No entanto, essas vistas ilusórias,

69 ringing together up to 30 figures. In In terms of the material sign, the land- form long landscaping narratives in the Avenida das Palmeiras Imperiais (Rua Pais- scapes of Leite are committed to the style of the aforementioned emakis, the sandu) he uses the photographic prints of tradition of João Baptista da Costa (Rio Japanese scrolls of illustrated stories that representations of the street that in the Piabanha in Petrópolis, c. 1910) and Eliseu unfold, as in Guignard, Ivens Machado, times of the Empire led from Flamengo Visconti (Mamoneira, Morro de São Bento, and Adriana Varejão, chapters of the beach to the entrance of the Guanabara 1890), which are references for his photo- bonds of gaze between Brazil and Japan. Palace, the residence of Princess Isabel. synthetic landscapes. Leite does not fear Both works propose unexpected relations The palm trees were planted by order of green, but its vergel seems careful, like the of time and space in the Carioca scene. D. Pedro II and the street was named in master, in the individualized details of each In love with her hometown, Thereza Mi- memory of the capture of the city of Pa- leaf. In the daytime vision of the painter, randa reconfigures Rio’s mountainous pro- ysandú by Brazilian troops in the Triple his entire green universe has a veil of semi- file in two stages, beyond its historic land- Alliance War that year. The work shuffles tones, given by the white substrate that scape. She dates back to the ancient time social times and plant growth phases. fits in, like silver leaves in a moonlit night. of the geological formation of the new Ca- Cama proposes a gestalt view of the set However, these illusory views, taken from rioca mountain range and proposes a con- of nine scenes in varying dimensions of a fictional point of view, are irretrievably temporary time based on subjective writ- the alley of the Roystonea oleracea spe- Rio, for there are the valley mountains, the ing. Such engraving, after looking at the cies, perceived as a group of more of the tropical rainforest, and the imperial palm built heritage of Rio, now revisits the na- same, as a repetition moved by small dif- trees (Roystonea oleracea), originally from ture of the city that is a cultural heritage ferences, to later claim attention to the the Antilles, but which have become a of humanity. Everything will be different, study detail of the phenomenon of vision. City brand. If every landscape is an imag- with some strangeness, as an alternative and their reading errors. inary construct, Jardim [Garden] (2015) is note to Rio’s geographical identity. Miran- Fernando Leite’s landscape dates back a sumptuous second-degree invention, as da’s spatiotemporal feature constitutes a to the tradition of recording the luxurious Leite sets up his own scene of the Tijuca new harmonizing order of the mountains Atlantic Forest from 19th-century travel- Forest, which, having been devastated by with their peaks and profile. She infuses ing artists, such as the forest clearings of coffee plantations, was reforested as of them with rhythm and melodious se- the Count of Clarac in Floresta Virgem do 1860. In short, Fernando Leite’s Edenic vi- quence, she writes calligraphy. Brasil [Brazil’s Virgin Forest] (1822) and Jo- sion is the simulacrum of the pictorial na- Anna Bella Geiger’s engraving address- hann Moritz Rugendas, to the pre-modern- ture of Baroque luxury, as Clement Green- es the contradictions of the human land- ist period when lush vegetation replaced berg thought of the Tropics.17 scape in Rio port zone. The assembly of the emerging exercises of romanticism In the 21st century, two engravings by this engraving is based on the process of and impressionism. Thereza Miranda and Anna Bella Geiger bricolage archeology. Historically, Geiger’s

70 tomadas de um ponto de vista fictício, são irremedia- em Guignard, Ivens Machado e Adriana Varejão, ca- velmente o Rio, pois estão ali as montanhas em vale, pítulos dos laços de olhar entre o Brasil e o Japão. As a floresta úmida tropical e as palmeiras imperiais duas obras propõem inesperadas relações de tempo e (Roystonea oleracea), originária das Antilhas, mas que espaço na cena carioca. se tornaram uma marca da cidade. Se toda paisagem é Enamorada de sua cidade natal, Thereza Miranda um constructo imaginário, o Jardim (2015) é uma sun- reconfigura em dois tempos o perfil montanhoso do tuosa invenção de segundo grau, já que Leite monta Rio, para além de sua paisagem histórica. Ela remonta sua própria cena da Floresta da Tijuca, que, tendo sido o tempo ancestral da formação geológica de sua nova devastada por cafezais, foi reflorestada a partir de serra carioca e propõe um tempo contemporâneo ba- 1860. Em suma, a visão edênica de Fernando Leite é o seado na escritura subjetiva. Tal gravura, depois do simulacro da natureza pictórica de luxo barroco, como olhar sobre o patrimônio carioca construído, agora re- Clement Greenberg pensava os Trópicos.17 visita a natureza da cidade que é patrimônio cultural No século XXI, duas gravuras de Thereza Miranda e da humanidade. Tudo será diferente, com dado estra- Anna Bella Geiger formam longas narrativas paisagís- nhamento, como uma nota alternativa à identidade ticas à moda dos citados emakis, os rolos nipônicos de geográfica do Rio. O traço espaço-temporal de Miranda histórias ilustradas que se desdobram, como ocorrem constitui uma nova ordem harmonizadora das mon- tanhas com seus picos e perfil. Infunde-lhes ritmo e < Anna Bella Geiger sequência melodiosa, ela escreve uma caligrafia. Zona Portuária com águas dos mares [Port area with sea water], 2010 Fotogravura e vídeo [photo engraving and video], 90 × 447 cm A gravura de Anna Bella Geiger aborda as contradi- Vídeo [Video] 10’ ções da paisagem humana na zona portuária do Rio. A montagem dessa complexa gravura está pautada no Thereza Miranda Perfil das montanhas do Rio [Rio’s mountains profile], 2008 processo de uma arqueologia de bricolagens. Histori- Gravura em metal, aguatinta e água-forte camente, a produção de Geiger se montou por brico- [Metal engraving, etching and aquatint], 60 × 250 cm Coleção [Collection] Museu de Arte do Rio – MAR lagem dos signos materiais posto que opera com téc- Doação anônima [Anonymous donation] nicas tradicionais, fotografias, xerox, folhas de ouro e

71 production has been assembled by the bri- the obvious tourist area of beauty or the colage of material signs since it operates sociological of a full beach day. What is with traditional techniques, photographs, most evident, thus, is a point of view con- photocopies, gold leaf and much more, in structed as an invention of his optical re- an eschatological view of world matter. gime. In his images, everything seems to At this point, Geiger’s bricolage brings to- have always been there waiting for him gether heteroclitic elements in the works to become visible, from the most hidden, of Rio’s port and social times. Ethnologist from the most complex to the simplest, Claude Lévi-Strauss used the term brico- everything awaited his body and his in- lage to indicate the interpenetration of timate look. It is a point of view that is cultures. Geographer Anna Bella Geiger more than focus and geometry, to become Vik Muniz Postcards from nowhere / Rio de Janeiro, 2013 attests that every port is a bricolage of cul- look affectivity. His Arpoador is loving. His Fotografia [Photograph] tures, as it is crossed by diverse identities, photographic work is geography. For de- including her Waldman family, who ar- cades, his camera wanders Ipanema, more > Marcos Bonisson rived in Brazil through Mauá square in Rio. specifically, its focus is, at its extreme, the ZigZag # 8, 2001 Marcos Bonisson does not photograph Arpoador of sand, sun, rock, and sea. To Fotografia [Photograph]

72 muito mais, em visão escatológica da matéria do mun- do. Neste ponto, a bricolagem de Geiger ajunta ele- mentos heteróclitos nas obras do porto do Rio e tempos sociais. O etnólogo Claude Lévi-Strauss usou o termo bricolagem que indica a interpenetração das culturas. A geógrafa Anna Bella Geiger atesta que todo porto é bricolagem de culturas, pois é atravessado por iden- tidades diversas, inclusive de sua família Waldman, que chegou ao Brasil pela praça Mauá do Rio. Marcos Bonisson não fotografa o óbvio turístico da beleza ou o sociológico de um dia de praia cheia. O que está mais evidente, portanto, é um ponto de vis- ta construído como invenção de seu regime ótico. Em suas imagens, tudo parece que sempre esteve ali a sua espera para se tornar visível, do mais oculto, do mais complexo ao mais simples, tudo esperava seu corpo e sua intimidade do olhar. Trata-se de um ponto de vista que é mais que foco e geometria, para ser afetividade do olhar. Seu Arpoador é amoroso. Sua obra fotográfica revista e pedras preciosas, entre muitas surpresas. O ar- é geografia. Por décadas, sua câmera deambula por tista tudo recombina parcimoniosamente em imagens Ipanema, mais especificamente, seu foco é, em seu para serem fotografadas e chegar à forma final. O ex- extremo, o Arpoador de areia, sol, pedra e mar. Para tenso diapasão de Vik Muniz visita a história da arte apresentar este lugar é necessário o corpo. Por aquela do Renascimento à land-art, a exclusão social, a retra- areia, caminharam a Garota de Ipanema (e Vera Bar- tística do poder simbólico (de Freud a Lula, bem como a reto Leite), o que resultou na música de Tom Jobim colunista social feita de fragmentos de revistas pornôs), e Vinicius de Moraes, ou o bando da pornopoesia de a história das cidades (Rio, São Paulo, Buenos Aires ou Eduardo Kac. Nas dunas de Ipanema, espreguiçaram- Nova York), a metafotografia, a hagiografia, a cultura do se a música, , , Hélio Oiticica, espetáculo da dança dos famosos (ele próprio um per- jovens que fumavam maconha dentro do mar. Naque- sonagem), as geografias culturais, a literatura (Alice), a las águas, aportaram centenas de latas com maconha, pintura sem pincel, a invenção das formas de existên- lançadas ao mar por um barco de contrabando. Foi o cia da imagem. A factory de Vik é incessante. “verão da lata”. Quando vejo suas imagens, compreen- O Rio de Janeiro sempre esteve no horizonte deste do que estar ali produtivamente requer uma intimida- carioca de adoção, desde as fotografias de museus à de carnal com esse lugar. É isso que nelas se vê: você melancolia do fim do carnaval, do lixão de Gramacho empresta seu corpo à paisagem. em Duque de Caxias (na base de seu documentário Vik Muniz, o bricoleur voraz por excelência da arte Lixo extraordinário, que foi indicado ao prêmio Oscar brasileira desde Farnese de Andrade (1926-1996), inve- de melhor documentário em 2011) aos Cartões postais terado ajuntador de cacos, lixo de toda espécie, entu- da imagem de metrópole global, como o Pão-de-Açúcar lho, resíduos, poeira de museus, fios, restos, chocolate, e a enseada de Botafogo. Como todo carioca, não se açúcar, arroz, confete e serpentina, pedaços rasgados de furta à entusiasmada elegia e à ácida crítica da cidade

73 sugar, rice, confetti and serpentine, torn pieces of magazine and precious stones, among many surprises. The artist all par- simoniously recombines images to be photographed and arrive at the final form. Vik Muniz’s extensive diapason visits the history of to land-art, social exclusion, the portrayal of symbol- ic power (from Freud to Lula, as well as the social columnist made of fragments of porn magazines), the history of cities (Rio, São Paulo, Buenos Aires or New York), meta-photography, hagiography, the cul- ture of the famous dance show (himself a character), cultural geographies, literature (Alice), brushless painting, invention of the forms of existence of the image. Vik’s factory is incessant. Rio de Janeiro has always been on the horizon of this Carioca of adoption, from museum photographs to the melancholy of the end of Carnival, from Gramacho dump in Duque de Caxias (on the basis of his documentary Lixo extraordinário [Ex- traordinary Trash], which was nominated for an Oscar for the best documentary in 2011) to the postcards of the image of a global metropolis, such as the Sugarloaf Mountain and the Botafogo Cove. Like present this place is necessary the body. every Carioca, one does not shy away from The Girl from Ipanema (and Vera Barreto the enthusiastic elegy and acid criticism Leite) walked through that sand, which re- of the chosen city but also puts suspicion sulted in the music of Tom Jobim and Vini- and distrust on the city’s destinations. He cius de Moraes, or the bunch of Pornpoetry is an opinion maker who is dedicated to of Eduardo Kac. In the dunes of Ipanema, expanding the place of art in society. He the music stretched, Gal Costa, Caetano was the creator of the title Escola do Olhar Veloso, Hélio Oiticica, young people that [Look School] for the educational sector of smoked pot in the sea. In those waters, the Rio Art Museum (MAR), an exemplary hundreds of cans of marijuana docked, pedagogical project in terms of institu- Renato Bezerra de Mello thrown overboard by a smuggling boat. It tions in Brazil. The material sign in Muniz Lagoa-mãe [Mother-lagoon], 2019 was the “summer of the can”. When I see proposes a metaphor for social fractures Bordado em linha de algodão sobre toalha de his images, I realize that being there pro- in Rio, the city broken into a thousand linho [Embroidering in cotton thread on linen ductively requires carnal intimacy with shards. For Vik Muniz, one way to love Rio tablecloth], 52 × 51 cm this place. This is what you see in them: is to point out its contradictions. Foto [Photo] Pat Kilgore you lend your body to the landscape. Claudia Jaguaribe produces landscapes Vik Muniz, the voracious bricoleur of of Rio and São Paulo with an intense > Ana Linnemann 1 nível/3 níveis [1 level/3 levels], 2011 Brazilian art par excellence since Farnese post-production work of juxtaposing im- Copos de água, madeira e dobradiças [Glasses de Andrade (1926-1996), inveterate shards ages. They are answers to the demands of water, wood and hinges], 30 × 107 × 30 cm collector, rubbish of all kinds, rubble, de- from the psychology of each city. In São Foto [Photo] Pat Kilgore bris, museum dust, yarn, scraps, chocolate, Paulo, she reinforces the sea of buildings,

74 escolhida, como também coloca suspeitas e descon- partida em mil estilhaços. Para Vik Muniz, uma forma fianças sobre os destinos da cidade. É um formador de de amar o Rio é apontar suas contradições. opinião, que se dedica à expansão do lugar da arte na Claudia Jaguaribe produz paisagens do Rio e de São sociedade. Foi o idealizador do título Escola do Olhar Paulo com um intenso trabalho de pós-produção de jus- para o setor educacional do Museu de Arte do Rio tapor imagens. São respostas a solicitações da psicolo- (MAR), um projeto pedagógico exemplar em termo de gia de cada cidade. Em São Paulo, reforça o mar de edi- instituições do Brasil. O signo material em Muniz pro- fícios, o paliteiro infindável, a selva de pedra. Expõe o põe uma metáfora das fraturas sociais do Rio, a cidade narcisismo da cidade do capital triunfante, que celebra

75 the endless toothpick, the stone jungle. with Hélio Oiticica, Lygia Pape, Evandro Every day, Beatriz Milhazes goes from She exposes the narcissism of the trium- Teixeira, Ivens Machado, Antonio Manu- her home to the atelier in Horto Florestal, phant capital city, which celebrates gi- el, Paula Trope, Dias & Riedweg, Tatiana passes through the Botanical Garden gantism, the metropolis, the invisibility Altberg, Igor Vidor and other looks of Rio. and confronts the Tijuca Forest. Her look of misery, the expansion of real estate There is no tacit silence or pact of collu- is nourished by the luxurious Carioca and even its traffic jams as indexes of its sion by Rio de Janeiro artists regarding the tropical landscape. The logic of the con- power. Finally, it is the sanitized city that expulsion of favelas from Rio’s prestigious structive will of Milhazes, a former math- obliterates its housing problems. In the areas, as occurs in São Paulo and Brasília ematics teacher, was already, in the 1980s, opposite, the artist produces hyperbolic in the process of social eugenics through through equations of sensory seduction landscapes of Rio’s favelas to cope with strategies for the removal, concealment, to the resounding logic of the neoclassical their density and urban situation. The and exploitation of the capital of the real alley of the Botanical Garden. The paint- society of Rio de Janeiro prevents the re- estate industry. including by arson. Geog- er’s mathematical unconscious feeds on moval of favelas, understanding that they rapher in the ’s bias, what Number in the nature ordered by man in are not a problem, but a housing solution amazes and frightens the bourgeois spirit the Garden and the replanted Forest. Ev- and right. It is the position of urban plan- in Jaguaribe’s work is pure polysemy: class ery Milhazes painting is a landscape con- ner Carlos Nelson Ferreira dos Santos in division, consumption hypothesis, elector- struct of light-color. The only history that the 60s, Darcy Ribeiro and social move- al density, physical strength of rising po- interests her is the narrative of the materi- ments such as Redes da Maré and Obser- tential, naked life, childhood under social al sign and the color of the painting itself. vatório das Favelas. Jaguaribe composes immobility, difficulties of access, neigh- Her challenges are the transformation of the history the aesthetic belt of solidarity borhood rights and, above all, the injustice light into the color of the modern/modern- defense and memory of the real favela and the resilience of its population. ism axis as advocated by Graça Aranha in

76 o gigantismo, a metrópole, a invisibilização da miséria, a expansão imobiliária e até seus congestionamentos como índices de sua potência. Enfim, é a cidade hi- gienizada que oblitera seus problemas habitacionais. No oposto, a artista produz paisagens hiperbólicas das favelas do Rio para dar conta do confronto com sua densidade e situação urbana. A sociedade fluminense impede a remoção de favelas entendendo que elas não são problema, mas solução habitacional e direito. É a posição do urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos nos anos 1960, Darcy Ribeiro e de movimentos sociais como Redes da Maré e Observatório das Favelas. Jagua- ribe compõe o histórico o cinturão estético de defesa so- lidária e de memória da favela real com Hélio Oiticica, Lygia Pape, Evandro Teixeira, Ivens Machado, Antonio Manuel, Arthur Omar, Paula Trope, Dias & Riedweg, Ta- tiana Altberg, Igor Vidor e outros olhares do Rio. Não há silêncio tácito nem pacto de conivência dos artistas ca- riocas com respeito à expulsão de favelas das zonas de prestígio do Rio, como ocorre em São Paulo e Brasília em processo de eugenia social por estratégias de remoção, ocultação e a exploração do capital da indústria imo- biliária, inclusive por incêndios criminosos. Geógrafa no viés de Milton Santos, o que espanta e amedronta o espírito burguês na obra de Jaguaribe é pura polisse- mia: divisão de classe, hipótese de consumo, densida- de eleitoral, força física do potencial de levante, vida nua, infância sob a imobilidade social, dificuldades de acesso, direito de vizinhança e, sobretudo, a injustiça e a força de resistência de sua população. Todos os dias, Beatriz Milhazes faz o percurso de sua casa ao atelier no Horto Florestal, passa pelo Jardim < Delson Uchôa Botânico e se confronta com a Floresta da Tijuca. Seu Paisagem Cantagalo floração jacintos de água [Cantagalo landscape with water hyacinths blossom], 2015 olhar se nutre da luxuriante paisagem tropical carioca. Instalação na [installation at] Lagoa Rodrigo de Freitas, A lógica da vontade construtiva de Milhazes, ex-pro- Rio de Janeiro fessora de matemática, passava, já nos anos 1980, por Claudia Jaguaribe equações de sedução sensorial à retumbante lógica da Série Rio – Paisagens construídas aleia neoclássica do Jardim Botânico. O inconsciente (Menina na laje) [Rio – Built landscapes series (Girl on roof slab], 2011 matemático da pintora se alimenta do Número na na- Inkjet em metacrilato [inkjet on plexiglass], tureza ordenada pelo homem no Jardim e na Floresta 180 × 110 cm

77 A estética da vida [The Aesthetics of Life] visual chords and her relational architec- (1921), the landmark of the 20th-century ture. This, because “what she does is also nationalist look. The painter is inscribed music”, as Oiticica would say. in the history of modern color in Brazil as Lucia Laguna lives in a house in Engenho of Eliseu Visconti, Tarsila do Amaral, Alfre- Novo with a green garden. Vines invade do Volpi, Helio Oiticica, and Cildo Meire- her rooftop studio, from where she unveils les. However, the anthropophagic look of a sea of middle-class houses, favela shacks, Beatriz Milhazes devours Piet Mondrian, the sprawling cluster of the North Zone Henri Matisse, Helio Oiticica, Bridget Riley, and the suburbs. From this seemingly in- the Baroque Faust, the Carioca Carnival, hospitable view of a hard life, a Rio with and the European Opera. She paints in an no sea nor forest, which is not a postcard, international Brazuca language. This way, a region mocked by the middle class of the she sets a color landmark in the 21st centu- South Zone, the artist constructed a paint- ry. Her titles are arbitrary, such as Avenida ing with renewed freshness. Her architec- Brasil.The ballast of her sensitivity lies in tural unconscious is dominated by this the scientific understanding of light, the space, hence its appearance sometimes as social uses of color, contemporary design, a sublime peripheral: urban chaos is trans- anthropological symbolism, electronic de- muted into chromatic delicacies, the con- vice technologies and, finally, the phenom- structed vernacular will be erudite color. enology of human perception of the color The urbanistic mess becomes sweet struc- spectrum. The symbolic economy of the ture, the convulsive city becomes beauty, Milhazean color has a metrological bal- as Breton defined it,18 in visceral landscape. Luiz Baltar ance, which is not guided by exact calcula- Laguna’s palette is unparalleled in Bra- Série Fluxos [Flows series], 2015 tions and prior control but comes from the zilian art in these Rio de Janeiro’s inven- Fotografia [Photograph], 45 × 190 cm artist’s dialogue with the color-light in her tive landscapes that even photographer Coleção [Collection] Porto Seguro

78 replantada. Todo quadro de Milhazes é um constructo percepção humana do espectro cromático. A economia de paisagem da cor-luz. A única história que lhe in- simbólica da cor milhazeana tem um equilíbrio me- teressa é a narrativa do signo material e da cor da trológico, que não se pauta por cálculos exatos e por própria pintura. Seus desafios são a transformação controle prévio, mas advém do diálogo da artista com da luz em cor do eixo moderno/modernismo tal como a cor-luz em seus acordes visuais e sua arquitetura preconizada por Graça Aranha em A estética da vida relacional. Isso, porque, o q ela faz também é música, (1921), o marco do olhar nacionalista do século XX. como diria Oiticica. A pintora se inscreve na história da cor moderna no Lucia Laguna vive numa casa no Engenho Novo com Brasil a partir de Eliseu Visconti, Tarsila do Amaral, um jardim verdejante. Trepadeiras invadem seu ate- Alfredo Volpi, Helio Oiticica e Cildo Meireles. No en- lier do último andar, de onde ela descortina um mar tanto, o olhar antropofágico de Beatriz Milhazes devo- de casas de classe média, barracos de favelas, o imen- ra Piet Mondrian, Henri Matisse, Hélio Oiticica, Brid- so aglomerado da Zona Norte e de subúrbios. A partir get Riley, o fausto barroco, o carnaval carioca e a ópera desta vista aparentemente inóspita da vida dura, de europeia. Pinta em um idioma brazuca internacional. um Rio sem mar e florestas, que não é cartão postal, re- Assim, fixa um marco da cor no séculoXXI . Seus tí- gião ironizada pela classe média da Zona Sul, a artista tulos são arbitrários, como Avenida Brasil. O lastro de construiu uma pintura com renovado frescor. Seu in- sua sensibilidade está na compreensão científica da consciente arquitetônico é dominado por este espaço, luz, dos usos sociais da cor, do design contemporâ- daí sua aparição por vezes como sublime periférico: o neo, da simbólica antropológica, das tecnologias dos caos urbano é transmutado em delicadezas cromáti- aparelhos eletrônicos e, por fim, da fenomenologia da cas, o vernáculo construído será cor erudita. A bagunça

79 Augusto Malta, in his wanderings through background, Laguna continually investi- suburbia, was unable to see. Tarsila, in gates the history of art and contemporary times of more urban harmony, painted painting with a serene anthropophagic Carnaval em Madureira [Carnival in Mad- look for the matter needed for art in its ureira] (1924), foreshadowing and epistemological condition through paint- 19 the Império Serrano. ing. Her color is not objective, but, as in the Beatriz Milhazes The etymology of the name engenho in screen Entre a Linha Vermelha e a Linha Avenida Brasil [Brazil Avenue], 2003 the name of the neighborhood helps to Amarela n. 44 [Between the Red Line and Acrílica sobre tela, 299 × 397 cm understand the painting of Laguna, the the Yellow Line n. 44] (2005), two express- Foto [Photo] Sid Hoeltzell Spanish-American literature teacher. The ways of her region, lets us glimpse the sea Indo-European source gen or gnê leads to of houses, the sweet look on its neighbor- > Lucia Laguna Entre a linha vermelha e a linha amarela n. 44 Portuguese generating, engendering, giv- hood in a soft palette of cultured color, [Between Red Highway and Yellow Highway ing birth. Ingeniousness and ingenuity which goes from Alfredo Volpi to Richard n.44], 2005 come from Ingenium for innate qualities, Diebenkorn. Laguna represents to subur- Acrílica e óleo sobre tela [Acrylic and as the suburbs are, to become an excellent ban Rio what Volpi has meant for São Pau- oil on canvas], 190 × 210 cm painting. A woman with a solid cultural lo with Cambuci, his neighborhood. Foto [Photo] Estúdio Lucia Laguna

80 urbanística vira estrutura doce, a cidade convulsiva de ingenium para qualidades inatas, como o subúrbio vira beleza, como Breton a definiu,18 em paisagem o é, para se transformar em excelente pintura. Mulher visceral. A paleta de Laguna não tem paralelo na arte com sólida formação cultural, Laguna investiga sem brasileira nessas paisagens de invenção de um Rio de cessar a história da arte e a pintura contemporânea Janeiro que nem o fotógrafo Augusto Malta, em suas com um olhar antropofágico sereno em busca da ma- andanças por subúrbios, foi capaz de ver. Tarsila, em téria necessária à arte em sua condição de epistemo- tempos de mais harmonia urbanística, pintou Carna- logia através da pintura. Sua cor não é objetiva, mas, val em Madureira (1924), prenunciando a Portela e o como na tela Entre a Linha Vermelha e a Linha Amare- Império Serrano.19 la n. 44 (2005), duas vias expressas de sua região, deixa A etimologia de étimo engenho no nome do bairro entrever sobre o mar de casas, o olhar doce sobre sua auxilia compreender a pintura de Laguna, a professo- vizinhança em paleta suave de cor culta, que vai de Al- ra de literatura hispano-americana. A fonte indo-eu- fredo Volpi a Richard Diebenkorn. Laguna representa ropeia gen ou gnê conduz ao português gerar, engen- para o Rio suburbano o que Volpi significou para São drar, fazer nascer. Engenho e engenhosidade proveem Paulo com o Cambuci, seu bairro.

81 Rio, novos modos de apresentar a história, a necessidade de saber

Paulo Herkenhoff

Rio, new ways of presenting Parque Lage allowed him to cross borders history, the need to know “as a place of exchange”, there was no dia- logue there for the Afro agenda. In his dia- In the 20 th century, some Carioca artists lectical turn, Arjan assumed the condition proposed new models of agency of his- of “brown” and assumed his Afro agenda. tory in Brazil, in the trait inaugurated “I see myself as belonging to the African Adriana Varejão by Cildo Meireles with Missão/Missões descent community” – this new syntax Proposta para uma catequese – parte I, díptico: (Como construir catedrais) (1987) and will bring the subject’s unity in confron- morte e esquartejamento [A catechesis’ proposal – Adriana­ Varejão with Proposta para uma tation with his socio-ethnic adversities. part I – diptych: death and dismemberment], 1993 × catequese (1993). The photo of a girl on the cover of an Óleo sobre tela [oil on canvas], 140 240 cm Foto [Photo] Eduardo Ortega Oscar Peterson has become his Arjan Martins and histories of the drift de-territorialized childhood emblem. His > Arjan Martins Arjan Martins’ political unconscious has questioning gaze stems from resistance Atlântico [Atlantic], 2016 been repressed: “I was unaware of the to apartheid. Arjan re-historicizes the Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas], 200 × 390 cm Afro-Brazilian agenda.” If the school of provider black woman: mother of saint, Foto [Photo] Pedro Agilson

82 No século XX, alguns artistas cariocas propuseram “Não é só escravidão, mas outros sistemas de do- novos modelos de agenciamento da história no Brasil, minação. Não sei se o modernismo deu conta desta no traço inaugurado por Cildo Meireles com Missão/ agenda”, suspeita. Conquista e seus desdobramentos Missões (Como construir catedrais) (1987) e Adriana Va- foram a voraz máquina de matar. O recalcado ree- rejão com Proposta para uma catequese (1993). mergirá como terror náutico num abismo cartográ- fico: o comércio Atlântico na escravização em que o Arjan Martins e histórias da deriva Rio foi o destino. Arjan exacerba potências simbólicas: O inconsciente político de Arjan Martins andou recal- uma corda polissêmica resgata e salva, mas aprisiona cado: “eu desconhecia a agenda afro-brasileira”. Se a e escraviza. Ele sabe que a escravidão não é um contra- Escola do Parque Lage lhe propiciou superar fronteiras to social entre duas civilizações, mas a regra da força “como lugar de trocas,” lá não havia interlocução para subjugante. Seu foco se expandirá do afrodescendente a agenda afro. Em sua virada dialética, Arjan assumiu para outras formas de opressão, pois cabe conjugar os a condição de “pardo” e assumiu sua pauta afro. “Me povos sob a opressão. Sua simbologia compreenderá vejo pertencente à comunidade afrodescendente” – distopias e a clivagem dos dominados em coordenadas esta nova sintaxe trará a unidade do sujeito em con- geográficas perversas, rosa dos ventos desorientada, fronto com suas adversidades socioétnicas. navio adernado. Com Fanon, Arjan toma os excluídos A foto de uma menina da capa de um disco de Oscar da Terra,2 não apenas os escravizados, mas os outros Peterson virou seu emblema da infância desterrito- povos à deriva, as fronteiras fechadas, a miséria em rializada. Seu olhar interrogante brota da resistência errância. A cena do pequeno sírio Aylan Kurdi, jacen- ao apartheid. Arjan re-historiciza a mulher negra pro- te morto no Mediterrâneo, é o índice trágico atual do vedora: mãe de santo, ama, cozinheira, tia dos terrei- naufrágio de todo navio de escravos, para além da ros. Cada uma a seu modo é uma anti-A negra.1 diáspora africana.3

83 nanny, cook, aunt of the terreiros. Each in symbology will comprise dystopias and negreiro (2015) and Carnaval 82 (2017) pres- its own way is an anti-A Negra.1 the cleavage of the dominated in perverse ent the same orgiastic lust, in criticism of “It’s not just slavery, but other systems geographical coordinates, disoriented Africans’ frequent demotion to sexual ser- of domination. I don’t know if modern- wind rose, overturned ship. With Fanon, vices and carnivalized life. ism took care of this agenda”, he suspects. Arjan takes the wretched of the Earth,2 not An artful title Existem duas maneiras de Conquest and its consequences were the only the enslaved, but the other drifting ser feliz nesta vida, uma é fazer-se de idiota voracious killing machine. The repressed people, the closed borders, the wandering e a outra sê-lo [There are two ways of being will reappear as nautical terror in a car- misery. The scene of the little Syrian Aylan happy in this life, one is to play dumb and tographic abyss: the Atlantic trade in the Kurdi, dead in the Mediterranean, is the the other to be dumb] (2018) for Freud’s enslavement in which Rio was the desti- current tragic index of the sinking of every portrait with blurred lenses like Oswald nation. Arjan exacerbates symbolic pow- slave ship, beyond the African diaspora.3 de Andrade in the Manifesto antropófago – ers: a polysemic rope rescues and saves “Against the dressed and oppressive real- but imprisons and enslaves. He knows Daniel Lannes, the false history ity registered by Freud (...), and without that slavery is not a social contract be- and suspected stories the Pindorama’s prisons of matriarchy”. tween two civilizations, but the rule of a Daniel Lannes is a counter historian. His History is woven around the unconscious. subjugating force. His focus will expand painting builds history as farce, suspicion, Lannes has appropriated the emblematic from the Afro-descendant to other forms irony with the pose or the unexpected pose of the 17 boys of the 1922 Modern Art of oppression, for it is appropriate to join capture of the poseless character or even Week on the steps of the São Paulo Mu- together people under oppression. His a recognized lie. The paintings Navio nicipal Theater. Like a windstorm, curved

Daniel Lannes O sonho de Getúlio [Getulio’s dream], 2015 Acrílica e óleo sobre lona [Acrylic and oil on canvas], 220 × 160 cm Coleção [Collection] Museu de Arte do Rio – MAR Foto [Photo] Tahian Bhering

> Pacto sinistro [Sinister deal], 2017 Acrílica e óleo sobre linho [Acrylic and oil on linen, 140 × 180 cm Coleção particular [Private collection], Rio de Janeiro Foto [Photo] Pat Kilgore

84 Daniel Lannes, a falsa história rostos e lançam todos no mesmo vendaval do desejo, e histórias suspeitadas pois são 17 homens e um segredo (2017). Daniel Lannes é um contra-historiador. Sua pintura Em O sonho de Getúlio, o ditador exausto se atira constrói a história como farsa, suspeita, ironia com num sofá no Palácio do Catete e parece em devaneio a pose ou da captura inesperada da personagem sem com a imagem de Virginia Lane, sua amante. Em Não pose ou até mesmo uma sabida mentira. As telas Na- Existe Pecado Ao Sul do Equador (2017), o retrato em vio negreiro (2015) e Carnaval 82 (2017) apresentam meio busto do ditador em solene pose presidencial a mesma luxúria orgiástica, em crítica ao frequente está tomada por uma despudorada cena de carnaval. rebaixamento dos africanos aos serviços sexuais e à Lannes, com elegante sutileza, urde relações entre vida carnavalizada. sexo e poder no Brasil. Para além da anedota, Pacto Um título maroto Existem duas maneiras de ser fe- sinistro (2017), ele representa o encontro fortuito en- liz nesta vida, uma é fazer-se de idiota e a outra sê-lo tre Dom Pedro II e o filósofo Nietzsche num vagão de (2018) para o retrato de Freud com as lentes turvas trem. Fato ou mentira? 4 à la Oswald de Andrade no Manifesto antropófago – “Contra a realidade social, vestida e opressora, ca- Walter Carvalho em Contrastes simultâneos dastrada por Freud (...) e sem penitenciárias do ma- “O espaço humano na cidade cada vez mais se aniqui- triarcado de Pindorama”. História urdida em torno do la”, analisa Walter Carvalho sobre a história de um inconsciente. Lannes se apropriou da emblemática deficit social pós-colonial.5 Longe do ensaio fotográ- pose dos 17 rapazes da Semana de Arte Moderna de fico, Carvalho desenvolve instalações cinemáticas, 1922 na escadaria do Theatro Municipal de São Paulo. quase-cinema, pois o espectador pode organizar seu Como um vendaval, pinceladas curvas borram seus modo e ritmo de ver.

85 brush strokes blur their faces and throw Walter Carvalho in them all in the same whirlwind of desire, Contrastes simultâneos for they are 17 homens e um segredo (2017). “The human space in the city is increas- In O sonho de Getúlio, the exhausted ingly destroying itself”, analyzes Walter dictator throws himself on a couch in Ca- Carvalho on the history of a postcolonial tete Palace and muses over the image of social deficit.5 Far from the photo essay, Virginia Lane, his lover. In Não existe Carvalho develops cinematic, almost- pecado ao sul do Equador (2017), the cinema installations, since the viewer can half-bust portrait of the dictator in a sol- organize his way and rhythm of seeing. emn presidential pose is overtaken by a Universidade Federal 6 is not a codified shameless Carnival scene. Lannes, with totality in an image, each image is insuf- elegant subtlety, weaves links between ficient and necessary for the formation of sex and power in Brazil. Beyond the an- the open narrative and linked by sequence ecdote, Pacto sinistro (2017), he depicts and juxtaposition. In the work he sees that the fortuitous encounter between Dom “whoever deceits, bites the dust, betrayer Walter Carvalho 7 Pedro II and the philosopher Nietzche in ends up dead” – that is the code of ethics Universidade Federal [Federal University], 2016 a train car. Fact or lie? 4 of drug trafficking. Fotografia [Photograph]

86 Universidade Federal 6 não é uma totalidade codifi- “A vida entre favelas, delegacias e casas de deten- cada numa imagem, cada uma é insuficiente e neces- ção para menores é uma verdadeira universidade, sária à formação da narrativa aberta e encadeada por uma escola perfeita para o aprendizado do crime, sequência e justaposição. Na obra entrevê que “quem num desafio constante à sociedade que vive no meio dá caô, dorme no bagulho, xisnove acaba indo de dessa guerra particular”, arremata o artista. ralo” 7 – é do código de ética do tráfico de drogas. Ele desnuda o estado de barbárie da tragédia social Universidade Federal é o aniquilamento do sujeito, brasileira e carioca que fricciona “corpos dóceis” (Fou- de todos, no processo da violência no Brasil: bandidos, cault) até a condição de anulação social e rasura (Walty). vítimas de bandidos e da polícia, toda a sociedade, en- Um corpo desfigurado pelo fogo numa rebelião para fim. Uma visão sombria do Rio atual e do país. Surge menores detidos numa instituição penal. O fotógrafo daí a intensificação semântica da fotografia de Carva- esculpe dobras e vísceras do corpo no interior da super- lho com agrupamento e justaposição de imagens que fície da imagem. O medo da barbárie nos ameaça de criam novas narrativas e estruturas. No título univer- nos tornarmos bárbaros entre o medo e o ressentimen- sidade = conhecimento e federal = o país. to (Todorov). É a advertência de Universidade Federal.

87 university, a perfect school for learning crime, in a constant challenge to the soci- ety that lives in the midst of this particular war,” says the artist. He exposes the barbaric state of the Brazilian and Carioca social tragedy rub- bing the “docile bodies” (Foucault) to the condition of social annulment and era- sure (Walty). A body disfigured by fire in a rebellion of minors detained in a penal institution. The photographer carves the folds and guts of the body inside the surface of the image. The fear of barbarism threatens us of becoming barbaric between fear and resentment (Todorov). It is the warn- ing of Universidade Federal.

Bruno Veiga and Carioca’s social psychology, between conviviality and uprising Bruno Veiga has a loving look at the psy- chology of the Cariocas, capturing the rumors of their desire for music. They are indications of faith in Saint George, of the suburban elegance and of the pleasant conviviality in the violent city. The aes- thetic quality of that look is the cut as vi- sual rhetoric. For him, to cut is to precisely point, to focus, to extract the essential, to dramatize the visible. His radical image of the 2010s uprisings comes from the reduction of form. Veiga sums up his narrative to materials and colors through clippings of the real in an exercise of the constructive will that Oitici- ca saw in Brazil during the dictatorship of Universidade Federal is the annihilation 64. Thus, Veiga is part of the 4th construc- of the subject, of everyone, in the process tive generation along with Beth Jobim, Thiago Rocha Pitta of violence in Brazil: thugs, victims of thugs Raul Mourão and others. His constructive Monumento à deriva continental and the police, in short, the whole society. A method of isolating building details refers [Monument to the continental drift], 2011 dark view of the current Rio and the coun- to Geraldo de Barros in the Bandeirante Cimento sobre tecido [Cement on fabric], try. From this arises the semantic intensi- photo club. In the face of popular uprising, 260 × 120 × 220 cm fication of Carvalho’s photography with hasty partitions, eager defenses against Coleção particular [Private collection] grouping and juxtaposition of images that possible acts of protest, vandalism, or pre- Foto [Photo] Pat Kilgore create new narratives and structures. dictable attacks on the symbols of power In the title, university = knowledge and and capital gain an unexpected plastic > Bruno Veiga Série Paisagem blindada federal = the country. presence. Veiga’s refined aesthetic of the [Armoured Landscape series], 2013 “Life among favelas, police stations and uprising refers to Evandro Teixeira’s pho- Fotografia [Photograph] detention centers for minors is a true tograph of police violence in Candelaria in

88 Bruno Veiga e a psicologia social carioca, presença plástica inesperada. A refinada estética do le- entre o convívio e o levante vante de Veiga remete à fotografia de Evandro Teixeira Bruno Veiga tem um olhar amoroso sobre a psicologia da violência policial na Candelária em 1968. O corte dos cariocas, de captura dos rumores do desejo à mú- nas imagens é um posicionamento político no levante sica. São índices da fé em São Jorge, da elegância su- popular, pois indica os temores do aparelho de Estado burbana e da convivialidade amena na cidade violen- e do capital em relação aos protestos. ta. Uma qualidade estética desse olhar é o corte como retórica visual. Para ele, cortar é apontar com precisão, Evandro Teixeira e a construção definir o foco, extrair o essencial, dramatizar o visível. do ponto de vista simbólico da história. Sua imagem radical dos levantes da década de 2010 O momento exato, a cena inesperada, o punctum da se dá pela redução da forma. Veiga resume sua nar- imagem e o ângulo escolhido fazem de Evandro Tei- rativa aos materiais e às cores via recortes do real em xeira uma artista-historiador com cenas heroicas em exercício da vontade construtiva que Oiticica viu no metáforas, alegorias e metonímias da decadência do Brasil em plena ditadura de 64. Assim, Veiga compõe poder da ditadura militar. Sua escada portátil ou a a 4a geração construtiva com Beth Jobim, Raul Mou- escolha de prédios para fotografar evidenciam uma rão e outros. Seu método construtivo de isolamento de vontade de montar uma cena para além do olhar do detalhes de construções, remete a Geraldo de Barros homem comum. Este, no entanto, como espectador no fotoclube Bandeirante. Diante da revolta popular, da fotografia, passa à condição de testemunha ocular tabiques apressados, defesas ansiosas contra possíveis dos acontecimentos. atos de protesto, de vandalismo ou de ataques previsí- Teixeira é um inventor da história no ato da ocor- veis aos símbolos do poder e do capital, ganham uma rência. O valor estético e o ethos de suas imagens da

89 1968. The cut on the images is a political paralleled by the taxonomies of Arthur stance in the popular uprising, for it indi- Bispo do Rosário, in works such as Car- cates the fears of the State and capital ap- rinho – Arquivo I (undated), in which the paratus in relation to the protests. monographic charts include the Carioca socialites Ruth Cohn and Ruth Niskier in Evandro Teixeira and the construction the Ruth section. The feeling of dusk turns of the symbolic point of view of history Negativos into a vanitas of decadent dolce The exact moment, the unexpected scene, vita Rio in agony, such as the Empire at the the punctum of the image and the chosen Ilha Fiscal ball, an ironic requiem. Sic tran- angle make Evandro Teixeira an artist-his- sit gloria mundi. torian with heroic scenes in metaphors, Mussi’s surreptitious linguistic turn allegories and metonymies of the power causes the inversion of the ethos of her decay of the military dictatorship. His porta- frames. She makes invisible the codes of ble ladder or his choice of buildings to pho- social negotiation of power and dissolves tograph shows a willingness to set a scene the signs of status. Therefore, Negativos – beyond the ordinary man’s gaze. However, exteriorities from the core of the arkhé – as a spectator of photography, the common is an accumulation of no-ones, a count- man becomes the eyewitness of events. er-mnemonic construction. Mussi knows Teixeira is an inventor of history at the from Derrida that the archive is a consign- time of occurring. The aesthetic value ment for oblivion, suppression, and repres- and ethos of his images of the mass for sion.9 She does not violate the archives, but the death of the student Edson Luís in rectifies its meaning under acid critical front of the Candelaria in 1968 must be scrutiny. She does not consign individuals, compared to the painting Liberty leading but their social group. Mussi is the artist the people (1830) by the romantic Eugène of the black mourning as in the Barreiras Delacroix. These are moments of the un- series (1972), with sports images taken derstanding of the greatness of popular from newspapers, with parts covered in struggles for liberty. In the 21st century, allusion to the dark times of the dictator- Evandro Teixeira’s lenses surprise other ship.10 Her paradoxical logic of wasteful constitutive moments of this immediate parsimony articulates the photo excess history of the present. of the socialites viciously reduced to no one to the material precariousness, which Ana Vitória Mussi and the places Mussi among the artists who treat wicked look at the archive the limit as power. The massive cascade of negatives spurts from the wall towards the viewer.8 They Eduardo Berliner and represent Ana Vitória Mussi’s decades the dissenting bodies of work, then an artist hidden outside Eduardo Berliner’s micronarratives are re- the art market, on her breadwinner as a ports of daily life formed by the phantas- photo reporter for gossip columns in Rio. mal, the tenuous memory, the perception Negativos (1974-2006) is a great chroni- and perceptual disconnect between the cle of the Rio de Janeiro bourgeoisie, re- subjectivities of a common occurrence corded for decades, reduced to thousands (Acostamento, adding a lot of earth in En- Ana Vitória Mussi ghosts in negative. Thus, a construction of terro, watering a plant in Corpo em muda), Por um fio (Negativo) [Dangling by a thread the history of the decadence of the ruling articulated by the pictorial nexus among (negative)], 1977/2004 22 mil negativos de eventos de alta sociedade class since the colonial period of the for- themselves. carioca fotografados entre 1977 e 1989 mer capital of Brazil. Rita Felski has historicized the inven- [22 thousand negatives of carioca’s high society Mussi’s mal d’archive shows its wick- tion of everyday life, a model of cultural events photographed between 1977 e 1989], st ed vigor in the clash between idleness studies that expand in Brazil in the 21 330 × 150 × 60 cm and precarity. This archival delirium is century,11 pointing Lukács, Heidegger Foto [Photo] Guarim de Lorena

90 missa pela morte do estudante Edson Luís em frente à Candelária em 1968 devem ser comparados à tela A liberdade conduzindo o povo (1830) do romântico Eugène Delacroix. São momentos de compreensão da grandeza das lutas populares pela liberdade. No século XXI, as lentes de Evandro Teixeira surpreen- dem outros momentos constitutivos desta história imediata do presente.

Ana Vitória Mussi e o olhar perverso sobre o arquivo A volumosa cascata de negativos jorra fluxos da pa- rede na direção do espectador.8 Eles representam dé- cadas de trabalho de Ana Vitória Mussi, então uma artista oculta, fora do mercado de arte, em seu ganha- pão como repórter fotográfica para colunas sociais do Rio. Negativos (1974-2006) é uma imensa crônica da burguesia carioca, registrada por décadas, reduzida a milhares de fantasmas em negativo. Portanto, uma construção da história de decadência da classe domi- nante desde o período colonial da ex-capital do Brasil. O mal d’archive de Mussi mostra seu vigor perverso no embate com o ócio e o precário. Este delírio arqui- vístico encontra paralelo nas taxonomias de Arthur Bispo do Rosário, de obras como Carrinho – Arquivo I (s/d), onde as fichas monográficas incluem as socia- lites cariocas Ruth Cohn e Ruth Niskier na seção das Ruth. O sentido de ocaso conforma Negativos como seu grupo social. Mussi é a artista do preto enlutado uma vanitas do Rio dolce vita decadente em agonia, como a série Barreiras (1972), com imagens de espor- como o Império no baile da Ilha Fiscal, um réquiem tes extraídas dos jornais, com partes recobertas em irônico. Sic transit gloria mundi. alusão ao sombrio tempo da ditadura.10 Sua parado- A sub-reptícia virada linguística de Mussi provo- xal lógica de parcimônia perdulária articula o exces- ca a inversão do ethos de seus fotogramas. Ela invi- so de fotos de peruas maldosamente reduzidas a nin- sibiliza os códigos de negociação social de poder e guém à precariedade de materiais, o que situa Mussi dissolve os signos de status. Assim, Negativos – ex- entre os artistas que tratam o limite como potência. terioridades do âmago do arkhé – é um acúmulo de ninguéns, uma construção contramnemônica. Mussi Eduardo Berliner e os corpos em dissenso sabe com Derrida que arquivo é consignação para o As micronarrativas de Eduardo Berliner são relatos da esquecimento, supressão e repressão.9 Ela não viola vida cotidiana formados pela fantasmática, pela me- os arquivos, mas retifica seus sentidos sob um ácido mória infirme, pela percepção e os desencontros per- escrutínio crítico. Ela não consigna indivíduos, mas cepcionais entre as subjetividades de uma ocorrência

91 and Guy Debord and, above all, Henri Le- febvre in the definition of daily life as a 19th-century phenomenon. What distin- guishes a Berliner scene is what escapes, what disaggregates, what resists, what is dyslexic, and, ultimately, painting in its ability to bring together dissent through its material sign that consoli- dates the will of belonging to the power of the painting. A world of ghosts and apparitions that are, however, very carnal. If everyday life remains amorphous, as Felski states, Berliner proposes a social con- tract of imaginary coexistence between disjunctive hybrids, dissociated centaurs (like a headless dog), poltergeister, psycho- pathological subjects in integrated schizo state, zombies. Berliner’s everyday life prevents monotonous repetition against routine. His characters resist irresilience. Everyone insists on their disaggregated individual state because, from a distance, everything and everyone belong insepara- bly to the picture, and more closely, no one is normal (Caetano Veloso, Vaca profana).

Daniel Senise and the post-Gutenberg history Some recent object paintings by Daniel Senise reiterate his quality as an artist in the history of the tense relations with Whistler’s Mother, the floor of the piano fac- tory, and his visible traces of work (which is always hidden in the exchange value). In recent years, the artist has visited the history of culture with new ques- tions. What is the fate of billions of hard copy books stranded in bookstores, sec- Eduardo Berliner ond-hand bookshops, schools, homes af- Acostamento [At the shoulder of the road], 2009 ter the internet and the digital book? The Óleo sobre tela [Oil on canvas], 320 × 240 cm fast decline of the Gutenbergian book is in Coleção [Collection] Banco Itaú S.A. the recent works by Daniel Senise. They Foto [Photo] Andrea Capella were converted into solid volumes of pulp and then into bricks for the construction > Daniel Senise of memorial monuments to the press, Eva, 2009-2010 which we may call the painting. Art his- Site-specific para o Centro Cultural São Paulo tory books are present in this blind library, Tijolos feitos de convites e folders de exposição cobrem a obra Eva, de Victor Brecheret [Site-specific for São Paulo with no real book, but its remains. Some Cultural Center. Bricks made of invitatins and folders of the cover pages of famous editions of art exhibition surround Victor Brecheret’s Eve] books such as Gallimard are preserved to Foto [Photo] João Mussolin cover the untyped book.

92 comum (Acostamento, juntar um monte de terra em Berliner impede a repetição monótona contra a roti- Enterro, aguar uma planta em Corpo em muda), arti- na. Seus personagens resistem à irresiliência. Todos culados pelos nexos pictóricos entre si. insistem em seu estado individual desagregado por- Rita Felski historiou a invenção da vida cotidiana, que visto de longe tudo e todos pertencem, insepara- um modelo de estudos culturais que se expande no velmente, ao quadro e, ademais, de perto, ninguém é Brasil no século XXI,11 apontando Lukács, Heidegger normal (Caetano Veloso, Vaca profana). e Guy Debord e, sobretudo, Henri Lefebvre na defi- nição do cotidiano como fenômeno oitocentista. O Daniel Senise e a história pós-Gutenberg que singulariza uma cena de Berliner é o que esca- Alguns quadros objetos recentes de Daniel Senise rei- pa, o que desagrega, o que resiste, o que é disléxico, teram sua qualidade de artista da história das rela- e, em última análise, a pintura como sua capacidade ções tensas com a Mãe de Whistler, o piso da fábrica de juntar o dissenso através de seu signo material de piano e seus vestígios visíveis do trabalho (que é que consolida a vontade de pertencer à potência do sempre o que se oculta no valor de troca). quadro. Um mundo de fantasmas e aparições que, no Nos últimos anos, o artista tem visitado a história entanto, são muito carnais. Se o cotidiano permanece da cultura com novas indagações. Qual o destino de amorfo, como afirma Felski, Berliner propõe um con- bilhões de exemplares de livros impressos encalha- trato social de coexistência imagética entre híbridos dos em livrarias, sebos, escolas, casas depois da inter- disjuntivos, centauros dissociados (como um cão sem net e do livro digital? O vertiginoso ocaso do livro gu- cabeça), poltergeister, sujeitos psicopatológicos em tenbergiano está em obras recentes de Daniel Senise. estado de schize integrado, zombies. O cotidiano de Foram convertidos em volumes sólidos de pasta de

93 Walter Goldfarb, a decalogue for the unspeakable To think of Walter Goldfarb’s painting as a decalogue with an undisclosed command- ment.

1. Spatiality. Thou shalt burn. Immensity “The Lysergic Theaters crumble on me with their fury, a pictorial mass of white lacquer (Grab these God-thrown headstones !!!) and tons of ashes (Burn in the flames of the Inquisition and the Concentration Camps furnaces – bastard painter!) ”.

2. Unspeakable. Thou shalt not speak. Thou shalt be silent. The limit of language: the abyss between linguistic saying and si- lence (Wittgenstein). Painting as a possi- bility of the unspeakable. Painting is to be silent because there is silence. Or is yet to speak through signic traces. To erode the visible to the limit of the yet utterable to the look. Art explores this yet.

3. Psychoanalysis – Narcissus – Oedipus – Eros. Thou shalt covet. Myths as tragedy or realization of the subject. Painfully. Oe- dipus: Carioca seashore (Tannhäuser’s pas- sion for Venus). “The printed marks on the body and soul of men of faith through the scourge of Christ speak of my contamina- tion by the painting and the Narcissus of the artist.

4. Scripture – Shoah – Exodus. Thou shalt wander. Always invisible: there is no Bra- zil without Jews. “Chameleonic is a func- tion of the Verb, Figure, and Abstraction”. Goldfarb and the Jewish thickness. The wandering. [Scraped fusain over raw can- vas, ash repository. The hidden, fleeting

Walter Goldfarb O Messias ardente atrás do espelho [Burning Messiah behind the mirror], 2013 Pau marfim, bordado, carvão, laca, acrílica e óleo sobre lona crua [Ivory, embroidery, charcoal, lacquer, acrylic and oil on raw canvas], 580 × 200 cm Foto [Photo] Beto Felício

94 papel e, em seguida, em tijolos para a construção de 5. Imortalidade – Paraíso e Inferno – Flagelo – Culpa. monumentos memoriais da imprensa, que podemos Não morrerás. Escatologia inscrita na pintura: o des- chamar de quadro. Os livros sobre história da arte tino último das coisas em metáforas do presente. frequentam essa biblioteca cega, sem livro real, mas “O desconforto na rotina do fazer e pensar de ateliê é seus restos. Algumas folhas de rosto de edições céle- pulsão sadomasoquista que me condena a vagar inin- bres de livros de arte como a Gallimard são preserva- terruptamente em busca de processos que reconfor- das para capear o livro sem tipo. tem as pinturas para que me levem ao próximo traba- lho, alimentando novas formas de sofrer (pintar) para Walter Goldfarb, um decálogo para o indizível confortar (redenção).” Pensar a pintura de Walter Goldfarb como um decá- logo com um mandamento não revelado. 6. Pintura – Metamorfose – Delírio – Beleza. Verás. Isso é pintura com lentidão própria, em condição de 1. Espacialidade. Arderás. A imensidão. “Os Teatros intempestividade histórica (Nietzsche + Levinas em Lisérgicos desabam sobre mim com sua fúria, massa Humanisme de l’autre homme). Suturar e tatuar a pictórica de laca branca (Agarre essas lápides lança- tela. A pulsão neobarroca da forma. das por Deus!!!) e toneladas de cinzas (Queime nas 7. Música. Escutarás. O triângulo edipiano, o não do chamas da Inquisição e nos fornos dos Campos de pai, o Nome do pai, o pai fraco; Sem acusado ou víti- Concentração – pintor bastardo!)”. ma. Moisés, Freud e Derrida. Pai spalla e o inconscien- 2. Indizível. Não dirás. Calar-te-ás. O limite da lingua- te musical do pintor. “O ser musical é uma serpente”. gem: abismo entre o dizível linguístico e o silêncio 8. Arquitetura – Escassez. Despenderás. Cultura da (Wittgenstein). A pintura como possibilidade do indi- escassez (sem penúria intelectual, falta de matéria zível. Pintar é se calar porque há silêncio. Ou é dizer ou dispêndio de energia). Camadas de branco: apa- ainda, por vestígios sígnicos. Corroer o visível ao limi- gamento da história e acumulação de tudo. [Lisette te do ainda dizível ao olhar. A arte explora esse ainda. Lagnado: Pintura de escassez, ou pintura e ética].

3. Psicanálise – Narciso – Édipo – Eros. Desejarás. 9. Hoje – Memória – Futuro. Não esquecerás. [O cordão Mitos como tragédia ou realização do sujeito. Dolo- umbilical cose o labirinto de ideias]. “A memória vivi- rosamente. Édipo: Orla carioca (a paixão de Tannhäu- ficada em minhas telas é leve. Garante o amanhã.” ser por Vênus). “As marcas impressas no corpo e na 10. O décimo se reserva ao que surja do Aleph. alma dos homens de fé através do flagelo de Cristo falam de minha contaminação pela pintura e do narci- so do artista.” Joana Traub Csekö e uma hipérbole da história 4. Escritura – Shoah – Êxodo. Errarás. Invisível sempre: Joana Traub Csekö é uma sofisticada agente da his- não existe Brasil sem judeus. “Camaleônico é uma tória, quer quando sua fotografia torna visíveis al- função de Verbo, Figura e Abstração.” Goldfarb e a guns processos culturais singulares, quer quando espessura judaica. A errância. [Fusain raspado sobre seu foco se volta para o pior da história social. Sua a lona crua, repositório de cinzas. A memória ocul- agenda sobre a qualidade do art déco na arquitetu- ta, fugaz]. “Conciliar figuração, abstração, geometria e ra do Rio de Janeiro, celebra uma etapa histórica em texto: a herança judaica do pintor se calca no Verbo e que a especulação imobiliária selvagem do período nas abstrações sobre o divino e impede a representação.” da ditadura de 64 não havia degradado a qualidade

95 memory]. “Reconciling figuration, ab- Joana Traub Csekö and hyperbole straction, geometry, and text: the painter’s in history Jewish heritage is grounded in the Word Joana Traub Csekö is a sophisticated agent and abstractions about the divine and pre- of history, both when her photography vent representation.” makes visible some unique cultural pro- cesses and when her focus turns to the 5. Immortality – Paradise and Hell – worst of social history. Her agenda on Scourge – Guilt. Thou shalt not die. Escha- the quality of Art Deco in Rio de Janeiro’s tology inscribed in painting: the ultimate architecture celebrates a historic stage destiny of things in metaphors of the in which the wild real estate speculation present. of the 64-dictatorship period had not de- graded the quality of the city’s architec- “The discomfort in the studio making and ture. The work focuses on the beauty of thinking routine is a sadomasochistic drive the lobby of some buildings in the Lido that condemns me to wander uninterrupt- area in Copacabana. Joana Csekö’s cam- edly in search of the recomforting processes era then exists in a state of lovingness. of the paintings so that they take me to the Passionately, the artist will say. next work, feeding new ways of suffering The same camera of Joana Csekö be- (painting) to comfort (redemption)”. comes a weapon in the symbolic war against the process of the debasement 6. Painting – Metamorphosis – Delirium of public affairs that circumvents the – Beauty. Thou shalt see. This is painting due value of citizenship. The optical de- with its own slowness, in a condition of vice is her weapon of social wrath. The historical untimeliness (Nietzsche + Levi- look is caustic, has a basic constitutional nas in Humanisme de l’autre homme). bias: power emanates from the people Stitching and tattooing the screen. The and in their name must be exercised. neo-baroque drive of form. Her camera hunts counter-democratic targets. The artist insists in correlating 7. Music. Thou shalt listen. The oedipal tri- the political gangs, invades the images angle, not of the father, the father’s name, of important individuals harmful to soci- the weak father; With no accused nor vic- ety, bare demagogues, links relationships tim. Moses, Freud, and Derrida. The spalla where they are not expected, manages father and the painter’s musical uncon- arguments and evidence. Her exemplary scious. “The musical being is a serpent”. constructive will is in the HU series, the 8. Architecture – Scarcity. Thou shalt spend. University Hospital of the Federal Univer- Culture of scarcity (without intellectual sity of Rio de Janeiro, a grand structure shortages, lack of matter or energy ex- planned in the Vargas period that was penditure). White layers: erasing history never entirely completed. The unfinished part had deteriorated and was imploded. and accumulating everything. [Lisette La- Csekö recorded the process on video as a gnado: Scarcity painting, or painting and memento of misuse of public funds. It is ethics]. her way of exposing social mourning. Her 9. Today – Memory – Future. Thou shalt not linguistic dimension will be here in the forget. [The umbilical cord sews the maze of field of hyperbole. Looking at HU’s “dry leg”, the artist assembles the ghost build- ideas]. “The vivid memory on my canvases Joana Traub Csekö ing as a social memory of the history of is light. It guarantees tomorrow.” Série HU – simetria assimétrica [HU series the wastage of public resources, mirrors (University Hospital) – assymetric simetry], 2008 10. The tenth is reserved for what arises hyper-exaggerated images and creates Fotografia colorida, díptico [Color photograph, from Aleph. wild perspectives on the immensity built. diptych], 50 × 75 cm e [and] 60 × 180 cm

96 da arquitetura da cidade. O trabalho põe em foco a espera, agencia argumentos e evidências. Sua exem- beleza da portaria de alguns edifícios na área do Lido plar vontade construtiva está na série HU – simetria em Copacabana. A câmera de Joana Csekö existe, en- assimétrica, o Hospital Universitário da Universidade tão, num estado de amorosidade. Apaixonadamente, Federal do Rio de Janeiro, uma grandiosa estrutura dirá a artista. planejada no período varguista, que nunca foi intei- A mesma câmera de Joana Csekö passa a uma ramente concluída. A parte inacabada se deteriorou arma na guerra simbólica contra o processo de avil- e foi implodida. Csekö registrou em vídeo o processo, tamento da coisa pública que burla o devido valor da como memento do mau uso da verba pública. É seu cidadania. O aparelho ótico é sua arma de ira social. modo de expor o luto social. Sua dimensão linguísti- O olhar é cáustico, tem um viés constitucional bási- ca será aqui do campo da hipérbole. No olhar sobre co: o poder emana do povo e em seu nome deve ser a “perna seca” do HU, a artista monta o edifício fan- exercido. Sua câmera caça alvos contrademocráticos. tasma como uma memória social da história do des- A artista insiste em correlacionar corriolas políticas, perdício dos recursos públicos, espelha imagens em invade imagens das iminências danosas à sociedade, hiperexagero e cria perspectivas desatinadas da imen- desnuda demagogos, articula relações onde não se as sidão construída.

97 Marcos Chaves, history Marcos Chaves’ flag evokes optimistic and as hope[lessness] reticently the lyrics by de The immediate historiography, the blunt Hollanda: “In this avenue a popular sam- criticism of the present, the belief in the ba will pass.” and the memory of his lived future of the changes that are expected to time. The composer wrote for his time a occur already move art around what hap- song that is updated at any time: pened since January 1, 2019. On the mast of the Rio Art Museum building (MAR) “In an unfortunate time / A page of our was raised a green and pink flag, the col- history / Faded memory passage / Of our ors of the flag of the Mangueira samba new generations / Sleeping / Our moth- school, which has on one side the words erland so distracted / Not realizing it was “It will pass” and, on the other, a threaten- subtracted / In dark transactions”. ing question mark. Vai passar [It will pass] (2019), Marcos Chaves’s flag is ambivalent, Marcos Chaves is a chronicler of every- for those who are confident in a better day life in Rio de Janeiro, with a look at his future, less entropic than the present, it cultural landscape, the junction between is a statement: It will pass. Period. For nature and man’s work, the cultural ways skeptics, it is pure doubt: will evil “pass?”. of living urban kindness, its pains and the Marcos Chaves “Weeping may endure for a night, but joy solutions of the homeless, in the precari- Vai passar/? [It will pass/?], 2019 cometh at dawn” (Psalm 30, verse 6) – is ous house of the man of the naked life. The Bandeira [Flag], 350 × 550 cm Biblical and became a proverb in the Por- artist is a true Carioca because he is loving Instalação no [Installation] Museu de Arte tuguese language: “There is no evil that and critical of the charms and social ills of do Rio – MAR always lasts, nor good which does not end.” the beloved city. Foto [Photo] Daniela Paoliello

98 Marcos Chaves, a história como [des]esperança Buarque de Hollanda: “Vai passar / nessa avenida um A historiografia imediata, a crítica contundente do samba popular” e a memória de seu tempo vivido. O presente, a crença no futuro das mudanças que se compositor escreveu para seu tempo uma música que espera que venham a ocorrer já movimentam a arte se atualiza em qualquer presente: em torno do ocorrido desde 1 de janeiro de 2019. No mastro do prédio do Museu de Arte do Rio (MAR) foi “Num tempo / Página infeliz da nossa história / Pas- içada uma bandeira verde e rosa, as cores da bandeira sagem desbotada na memória / Das nossas novas da escola de samba da Mangueira, que tem em um gerações / Dormia / A nossa pátria mãe tão distra- lado as palavras “Vai passar” e, no outro, um pon- ída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebro- to de interrogação ameaçador. Vai passar (2019), a sas transações”. bandeira de Marcos Chaves é ambivalente, aos con- fiantes num futuro melhor, menos entrópico que o Marcos Chaves é um cronista da vida cotidiana do presente, é uma afirmação: Vai passar. Ponto. Para Rio de Janeiro, com um olhar sobre sua paisagem os céticos, é pura dúvida: o mal “vai passar?”. “O choro cultural, junção entre natureza e obra do homem, os pode durar uma noite, mas a alegria virá ao amanhe- modos culturais de viver a gentileza urbana, suas do- cer” (Salmo 30, versículo 6) – é bíblico e virou um pro- res e as soluções dos sem tetos, na casa precária do vérbio da língua portuguesa: “Não há mal que sempre homem da vida nua. O artista é um autêntico carioca dure, nem bem que se não acabe.” A bandeira de Mar- porque amoroso e crítico com relação aos encantos e cos Chaves evoca otimista e reticente a letra de Chico mazelas sociais da cidade amada.

99 Arte afrocarioca no século XXI

Marcelo Campos

Afrocarioca art in the 21 st century brought ethnic-racial issues to art produc- tion and curatorship. Even though blacks have accumulated Known terreiros in Rio, at the beginning achievements, “every police van is a slave of the twentieth century, commanded by ship”, warns the band O Rappa. If black babalorishas and ialorishas, such as João brotherhoods have existed for more than Alabá´s in an old two-story house at Rua three centuries, erecting churches of wor- Barão de São Félix, in the Saúde port area, ship to St. Benedict, Our Lady of the Rosary, today have their ancestry maintained but St. Anthony on side , social equality threatened. The ialorisha Meninazinha between whites and blacks remains dis- de Oxum, for example, a descendant of tant. To address black art in Rio de Janei- Alabá, maintains the terreiro in São João ro in the 21st century, it is worth thinking de Meriti. In her terreiro, Mother Menina- about the social changes made in strug- zinha created the Iyá Davina memorial, to gles, with advances and setbacks that re- her grandmother, and her group choos- flect the organization of the black people. es what to preserve as art, memory, and On the other hand, social inequality and heritage, defining the “spiritual aura” of racism continue to kill people of African some. What James Clifford has called “mu- descent on the hill and on the asphalt. The seums as contact zones” at the Portland investigation into the murder of Rio de Ja- Museum is reconfigured by involving the neiro city councilwoman Marielle Franco population whose material culture was and driver Anderson Gomes in 2018 points in the ethnological collection. The invita- to possible alliances between politicians, tion to comment on the pieces resulted in police and parallel powers to the state. performances, songs, stories, but did not Recently, the access from people of Afri- reach their senses, frustrating the muse- can descent has widened with the adop- ologists. Mother Meninazinha is an activ- tion of public notices and calls that inte- ist in complaining that the Afro-Brazilian grate socio-geographical areas ignored by pieces of the Police Museum (atabaques, the art circuit, such as Maré, Alemão and orishas “settlements” and tools) from the Chapéu Mangueira. These are projects, police raids on the terreiros should be Thiago Ortiz some in contradiction, that integrate art transferred. The campaign “Free our sa- EU-EXU, 2018 into the favelas, strengthen households cred” led to the transfer of the collection Arquivo gif, 1" and enroll young people in spaces such to the Republic Museum. Even though to as the Parque Lage School of Visual Arts. appropriate a museum means conformity > Wuelyton Ferreiro Yemanjá, 1992 The State University of Rio de Janeiro to the Eurocentric model that causes the Aço inoxidável [Stainless steel], 100 × 50 cm (UERJ) is a spotlight on higher education stigma of cabinet of curiosities, reappro- Coleção do artista [Artist’s collection] policy of quotas (Federal Law No. 3,708 of priating these pieces is to strengthen the Foto [Photo] Wilton Montenegro 2001), which changed the art scene and preservation of the Afro-Brazilian culture.

100 Ainda que os negros tenham acumulado conquis- tas, “todo camburão tem um pouco de navio negrei- ro”, alerta a banda O Rappa. Se as irmandades negras existem há mais de três séculos, erigindo igrejas de culto a São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santo Antônio em altares laterais, a igualdade social entre brancos e pretos segue distante. Para tratar da arte negra no Rio de Janeiro do século XXI cabe pensar as mudanças sociais, feitas em lutas, com avanços e retrocessos que refletem a organização do povo ne- gro. Por outro lado, a desigualdade social e o racismo continuam matando a população afrodescendente no morro e no asfalto. A investigação do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do motoris- ta Anderson Gomes em 2018 aponta para possíveis alianças entre políticos, policiais e poderes paralelos ao do Estado. Recentemente, o acesso dos afrodescendentes se abriu com a adoção de editais e chamadas públicas, que integram áreas sociogeográficas ignoradas pelo circuito da arte, como a Maré, o Alemão e o Chapéu Mangueira. São projetos, contraditórios alguns, que integram arte às favelas, promovem residências e matriculam jovens em espaços como a Escola de Ar- tes Visuais do Parque Lage. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) é destaque na política de co- de Portland, ao envolver a população cuja cultura tas no ensino superior (Lei Federal no 3.708 de 2001), material estava no acervo etnológico. O convite para que mudou a cena das artes e trouxe questões étnico- comentar as peças resultou em performances, cantos, raciais para a produção da arte e curadorias. histórias, mas não chegou a seus sentidos, frustran- Terreiros notórios no Rio, no início do século XX, co- do os museólogos. Mãe Meninazinha é ativista em re- mandados por babalorixás e ialorixás, como o de João clamar que as peças afrocariocas do Museu da Polícia Alabá num sobrado da Rua Barão de São Félix, na Zona (atabaques, assentamentos de orixás e ferramentas) Portuária da Saúde, hoje, tem sua ancestralidade advindas das batidas policiais nos terreiros, deveriam mantida, mas ameaçada. A ialorixá Meninazinha de ser transferidas. A campanha “Liberte nosso sagra- Oxum, por exemplo, descendente de Alabá, mantém do” levou à transferência do acervo para o Museu da o terreiro em São João de Meriti. Em seu terreiro, Mãe República. Ainda que se apropriar de um museu seja Meninazinha criou o memorial Iyá Davina, sua avó, e confirmar o modelo eurocêntrico causador do estigma seu grupo escolhe o que preservar como arte, memó- dos gabinetes de curiosidade, reapropriar-se dessas ria e patrimônio, definindo a auratização “espiritual” peças é fortalecer a preservação da cultura afrocario- de algumas. Reconfigura-se o que James Clifford de- ca. A importância dos terreiros no Rio de Janeiro re- nominou “museus como zonas de contato”, no Museu negocia-se como herança de narrativas, muitas vezes,

101 The importance of the terreiros in Rio de they were thrown into these graves. The Janeiro is renegotiated as a heritage of Pretos Novos Cemetery, the largest of its often matrilineal narratives of oral cul- kind, holds about 30,000 bodies. ture recorded in books, theses, and reports, Rio de Janeiro is incredibly rich with the reaching the expanded imagination of Car- presence of cultural manifestations of Af- nival and art. On the other hand, the impor- rican origin, but where medium-term cul- tance of candomblés in Rio is not ignored, tural policies cannot be established. The since they have been more visible in Bahia. initiatives remain entrusted to seasonal The terreiros in Rio were located in interests of the public power and resist Pequena África, a name coined by Heitor through the struggle of those who partic- dos Prazeres, which referred to the Gam- ipate and organize the places of action of Milton Guran Fotografia [Photograph] boa area and its surroundings as a Little the black people. The favelas were the re- O grupo Afoxé Filhos de Gandhi acompanhado Africa. In the 21st century, Little Africa is sult of movements of the poor population de várias ialorixás em cerimônia da lavagem home to cultural manifestations that re- through the city sanitized by imported simbólica do Cais do Valongo, 2017 [The Afoxé vive historical ties. Afoxé Filhos de Gandhi, policy models, such as the Rio of boule- Gandhi’sons group together with several founded by dockers in 1951, two years af- vards, copied from Paris. Some outstanding ialorixás in symbolic washing ceremony ter its homonymous in Salvador, is at Rua Cariocas arose from these neglected mar- of the Valongo Wharf] Camerino. The Instituto dos Pretos Novos gins, often in danger of disappearing, such > Milton Ribeiro is a remarkable archaeological site discov- as the sambistas, builders of our popular Xangô.Omolu.Ogum, 1997 ered (1996) where the remains of enslaved music. These sambistas needed to have Óleo sobre tela [Oil on canvas] blacks were found. The slaves arrived sick ties with the white institutionalized Coleção [Collection] Milton Guran on the ships and, if they could not resist, power in order not to be caught in the Foto [Photo] Thales Leite

102 matrilineares da cultura oral registrada em livros, te- entregues a interesses sazonais do poder público e ses e reportagens, chegando ao imaginário ampliado resistem pela luta de quem participa e organiza os do carnaval e da arte. Por outro, não se ignora a im- lugares de ação do povo negro. As favelas foram re- portância dos candomblés do Rio, já que eles são sultantes de movimentações da população pobre mais visíveis na Bahia. pela cidade higienizada por políticas de importa- Os terreiros no Rio se situavam na Pequena África, ção de modelos, como Rio dos boulevards, copiado nome cunhado por Heitor dos Prazeres que se referia de Paris. Destas margens descuidadas e frequen- à área da Gamboa e adjacências como uma África de temente ameaçadas de desaparecimento, surgem pequenas proporções. No século XXI, a Pequena Áfri- ilustres cariocas, como os sambistas formadores da ca abriga manifestações culturais que reavivam os nossa música popular. Estes sambistas precisavam vínculos históricos. O Afoxé Filhos de Ghandi, funda- ter vínculos com o poder institucionalizado branco do por estivadores do cais do porto em 1951, dois anos para não serem pegos nos crimes de vadiagem, como, depois de seu homônimo em Salvador, ocupa a Rua por exemplo, no fato histórico de João da Baiana, cujo Camerino. O Instituto dos Pretos Novos é um notável pandeiro foi assinado pelo político Pinheiro Machado sítio arqueológico descoberto (1996) onde foram en- para servir como uma espécie de habeas corpus contrados os restos de negros escravizados chegados numa batida policial. , João da Baiana, Sinhô, doentes nos navios e, se não resistiam, eram lançados Pixinguinha provinham das práticas do candomblé nessas covas. O Cemitério dos Pretos Novos, o maior e da umbanda, filhos das negras baianas que ocupa- de seu gênero, guarda cerca de 30 mil corpos. vam as ruas, as ditas tias. Alguns viviam em pensões O Rio de Janeiro tem enorme riqueza na presen- e cortiços e não possuíam direito à moradia, sendo, ça de manifestações culturais de matrizes africa- frequentemente, despejados. Práticas culturais e re- nas, mas não se consegue estabelecer políticas cul- ligiosas se misturavam. Todos tocavam nos lundus e turais de média duração. As iniciativas continuam nos terreiros, cantavam em Banto e Yourubá.

103 vagrancy crimes, as, for example, in the historical fact of João da Baiana, whose tambourine was signed by politician Pi- nheiro Machado to serve as a kind of habeas corpus in a police raid. Donga, João da Baiana, Sinhô and Pixinguinha came from the practices of candomblé and Umbanda, children of the black women from Bahia who occupied the streets, the said aunts. Some lived in pensions and tenements and had no right to housing, and they were often evicted. Cultural and religious practices were mixed. Everyone played in the lundus and in the terreiros, sang in Banto and Yorubá.

“Here có in the terreiro / Pelú adié / Envy us / Who has no wife (Bis) / In the old black jacutá / There is a yaô party (Bis) / Ôi there is an Ogum nêga / Of Oxalá, of Iemanjá / Mucama of Oxossi is a hunter / Hail Nanã Nanã buruku (Bis) / Yô yôo emerged from the and dancing Yô yôoo / In the old black terreiro iaiá / performed while working on farms in the let us saravá (whom, my father?) Xangô!” province of Rio de Janeiro. In juxtaposition with the narrated facts, In the song Yaô (from the 1930s), Pixin- Rio de Janeiro is the place in Brazil where guinha cites candomblé orishas (Ogum, the police kill and die the most. Six out of Oxalá, Iemanjá, Oxossi, Nanã, Shango), in ten police officers killed are black. In addi- the presence of the Old Black, from Um- tion, the command of the Rio de Janeiro banda. favelas is in the hands of drug trafficking, In recent years, African-influenced with an increase alliance between drug chants and dances are still present in the dealers and pastors against the terreiros. city. The Tambores of Olokum, an afoxé In view of the above, Afrocarioca art is a group led by Garnizé, rehearses on Sun- form of resistance. It faced the violent days at the Aterro do Flamengo. Alabê past of slavery that threw contingents of Funfun is an atabaque orchestra with ogãs Africans and their descendants onto the of several houses of saints, mainly coming streets and criminalized them through the from the house of the late Mother Nitinha offense of vagrancy. Art shines from these de Oxum, a Candomblé ground located in streets, in the dancing and singing groups, Miguel Couto. Jongo da Serrinha takes its signs and knowledge of Candomblé’s ter- name from the hill where it is located in reiros. Today these expressions have a Madureira. Clara Nunes honored the jon- never noticed voice, an outcry, and a social go, giving it the cover of a long play album, insertion. The fundamental fact was the with a picture by Wilton Montenegro that quota policy, seen in the universities of Rio portrays the community surrounding the since 2001, and sanctioned by President singer. Grandmother Maria, an important Dilma Rousseff in 2012. The presence of shared culture, in Fred- religious leader, an imposing figure, com- Johann Moritz Rugendas manded the group and the terreiro. The rick Barth’s terms, crosses different tem- Dança lundu [Lundu dance], 1835 jongo, Intangible Heritage of the South- poralities, in which the manifestations Litografia [Lithograph] east, is an African inheritance that has of these places shine, but there are still Wikimedia Commons

104 “Aqui có no terreiro/Pelú adié / Faz inveja pra gen- alarido e uma inserção social nunca percebidos. O te / Que não tem mulher (Bis) / No jacutá de preto fato fundamental foi a política de cotas, perceptível velho / Há uma festa de yaô (Bis) / Ôi tem nêga de nas universidades do Rio, desde de 2001, por lei san- Ogum / De Oxalá, de Iemanjá / Mucama de Oxossi é cionada pela presidente Dilma Rousseff em 2012. caçador / Ora viva Nanã Nanã buruku (Bis) / Yô yôo A presença de cultura compartilhada, nos termos Yô yôoo / No terreiro de preto velho iaiá / Vamos de Fredrick Barth, cruza temporalidades distintas, saravá (a quem meu pai?) Xangô!” em que brilham manifestações desses lugares, mas ainda perseguição, intolerância e vontade de anula- Na canção Yaô (década de 1930), Pixinguinha cita ção da diferença.1 Mesmo com o possível avanço das orixás do candomblé (Ogum, Oxalá, Iemanjá, Oxossi, políticas afirmativas, somos surpreendidos com a Nanã, Xangô), à presença do Preto Velho, da umbanda. destruição terrorista de terreiros de Umbanda e Can- Em anos recentes, os cânticos e danças de influên- domblé na periferia do Rio. Cresceu em escala assus- cias africanas permanecem pela cidade. Os Tambores tadora, um violento fundamentalismo religioso que de Olokum, grupo de afoxé comandado por Garnizé, eclode livremente na gestão da prefeitura evangéli- ensaia no Aterro do Flamengo aos domingos. Alabê ca. Seitas diversas contribuem para esta barbárie. Se Funfun configura-se como uma orquestra de ataba- constitucionalmente seu cargo está acima de estra- ques com ogãs de diversas casas de santo, principal- tégias religiosas, esse prefeito nunca reconheceu o mente advindos da casa da falecida Mãe Nitinha de valor simbólico e econômico do carnaval, a maior fes- Oxum, candomblé localizado em Miguel Couto. O ta do Rio, que tem sua origem na cultura afrodescen- Jongo da Serrinha leva o nome do morro que ocupa dente. O atual prefeito nunca prestigiou um desfile em Madureira. Clara Nunes prestigiou o jongo, dan- de escolas de samba numa atitude de exemplar estí- do-lhe a capa de um long play, com foto de Wilton mulo à intolerância e à incapacidade de relacionar-se Montenegro que registra a comunidade em torno da com o diverso, mais uma forma de proselitismo. cantora. Vó Maria, importante liderança religiosa, fi- As “Escolas temem que carnaval de 2018 seja o mais gura imponente, comandava o grupo e o terreiro. O difícil dos últimos tempos”; 2 “Pela primeira vez em 13 jongo, Patrimônio Imaterial do Sudeste é uma he- anos, Prefeitura do Rio corta apoio financeiro à pro- rança africana surgida do canto e da dança durante cissão de Iemanjá”. 3 trabalho nas fazendas da província do Rio de Janeiro. Crivella dificultou a prática de rituais religiosos em Em justaposição com os fatos narrados, o Rio de louvor de Iemanjá no final do ano, exercendo nova Janeiro é o lugar do Brasil onde a polícia mais mata censura contra as religiões e ignorando que a origem e morre. Seis em cada dez policiais mortos são ne- histórica do réveillon carioca, que serviu de exemplo gros. Ademais, o comando das favelas cariocas está para todo o Brasil, são os festejos do orixá das águas. entregue ao tráfico de drogas, com crescente alian- “O grupo Tambores de Olokun é impedido de ensaiar ça entre traficantes e pastores contra os terreiros. A no Aterro do Flamengo”; 4 “Veto de Crivella a reconhe- arte afrocarioca, frente ao exposto, é resistência. Ela cimento da Pedra do Sal como patrimônio abre guerra enfrentou o passado violento e escravocrata que jo- com movimentos”. 5 gou contingentes de africanos e descendentes nas Tramita pela Secretaria Municipal da Cultura o ruas e os criminalizou no delito de vadiagem. A arte projeto do Museu da História e da Cultura Afro-Bra- resplandece destas mesmas ruas, nas rodas de canto sileira (MHCAB), prometido para o ano de 2020. No e dança, signos e saberes dos terreiros de Candom- panorama museal brasileiro, destaca-se a iniciativa blé. Essas manifestações possuem hoje uma voz, um do Museu de Arte do Rio (MAR), em reunir um acervo

105 persecution, intolerance and the desire to the social formation of Brazil: indigenous, repeal the difference.1 Even with the pos- Afro, Portuguese, Jewish, Arabic, Japanese, sible advance of affirmative policies, we Chinese, among others. The MAR rep- are surprised by the terrorist destruction resents an integral Brazil. Thanks to di- of Umbanda and Candomblé terreiros on rector Paulo Herkenhoff’s personal effort, the outskirts of Rio. Violent religious fun- with no single piece donated by the City damentalism that arises openly during Government, the MAR sought private do- the evangelical municipal administra- nors and created a unique Afro-Brazilian tion has grown to a frightening scale. Var- collection. These donors expressed inter- ious sects contribute to this barbarity. If est in creating a collection for MAR and constitutionally his position is above reli- not donating to any municipal institution. gious strategies, this mayor has never rec- This is the most important Afro-Brazilian ognized the symbolic and economic val- collection in a general museum of the ue of the Carnival, Rio’s biggest festival, country’s cultural history, with over 300 which has its origin in African descen- manuscripts of slavery and 300 other piec- dant culture. The current mayor never es and works of art. It would be a disaster attended the Samba School parades in an to transfer pieces from the MAR collec- attitude of stimulating intolerance and tion to MHCAB because the MAR project inability to relate to the diverse, another is to remove Afro-Brazilian culture from form of proselytism. the ghetto of monographic institutions. The Vila Rica 2016 performance by Grupo The “Schools fear the 2018 Carnival EmpreZa symbolizes MAR’s commitment would be the most difficult of recent to the history of slavery. times”; 2 “For the first time in 13 years, the In parallel to these initiatives, the city’s Rio Janeiro City Government cuts finan- cultural programming presents initiatives cial support to the Iemanjá procession”. 3 for discussion and insertion of Afro-Bra- zilian art in exhibitions. In 1990, Casa Crivella made it difficult to practice re- França-Brasil exhibited Portraits of Bahia ligious rituals in praise of Iemanjá at the with photos of Verger, drawings by Cary- end of the year, exerting new censorship bé and African pieces from its collections. against religions and ignoring that the In 2016, the Orishas exhibition 6 histori- historical origin of the Carioca New Year’s cally reviews 1990, promoting rereading Eve, which served as an example for all of of modern and contemporary production. Brazil, is the celebration of the orisha of There, the Afro-Brazilian theme was ex- the waters. plored from various perspectives: Afri- can ancestry and religiosity allied with “The group Tambores de Olokun is pre- themes of identity, representation, and vented from rehearsing at Aterro do socio-cultural condition. Flamengo”; 4 “Crivella’s veto recognizing Importantly, the modern fascination Pedra do Sal [Salt Rock] as heritage with African descent culture brought trenches warfare against movements”. 5 the debate about heritage and the recog- nition of non-Western religions, but the The Municipal Secretariat of Culture relationship with their material culture is submitting the project of the Museu was anchored in colonizing premises. The Grupo EmpreZa da História e da Cultura Afro-Brasileira imprints of candomblé are in Jorge Ama- Vila Rica, 2009/2014 (MHCAB), promised for the year 2020. In do’s Jubiabá and Bahia de Todos os Santos, Performance realizada no Museu de Arte do Rio durante a exposição “Eu como você”, 2014 the Brazilian museum panorama, there Glauber Rocha’s Barravento, Abdias Na- Imagem: Grupo EmpreZa [Performance held at is the initiative of the Museu de Arte do scimento’s Experimental Theater of the Rio’s Art Museum during exhibition “I eat you”] Rio (MAR), to gather a collection of visual Black, Baden Powell and Vinícius de Mo- Fotos [Photos] Thales Leite e Vinicius Berger culture, which includes ethnic nuclei of rais’ Afro- album and in the works

106 de cultura visual, que inclui núcleos étnicos da forma- Vila Rica 2016 pelo Grupo EmpreZa simboliza o empe- ção social do Brasil: indígena, afro, português, judaico, nho do MAR com a história da escravidão. árabe, nipônico, chinês, entre outras. O MAR consti- Em paralelo a essas iniciativas, a programação tuiu um Brasil integral. Graças ao esforço pessoal do cultural da cidade apresenta iniciativas de discus- diretor Paulo Herkenhoff, sem uma peça doada pela são e inserção da arte afro-brasileira em exposições. Prefeitura, o MAR buscou doadores particulares e Em 1990, a Casa França-Brasil expôs Retratos da criou um acervo afro-brasileiro ímpar. Estes doado- Bahia com fotos de Verger, desenhos de Carybé e res manifestaram interesse em criar um acervo para peças africanas de suas coleções. Em 2016, a exposi- o MAR e não doar para qualquer instituição munici- ção Orixás 6 revê historicamente 1990, promovendo pal. Este é o mais importante acervo afro-brasileiro releituras da produção moderna e contemporânea. num museu geral da história da cultura do país, com Ali, o tema afro-brasileiro foi explorado sob várias mais de 300 manuscritos da escravidão e outras 300 perspectivas: ancestralidade e religiosidade africa- peças e obras de arte. Seria um desastre transferir nas aliadas a temas de identidade, representação e peças do acervo do MAR para o MHCAB, pois o situação sociocultural. projeto do MAR é retirar a cultura afro-brasileira do Importante destacar que o fascínio moderno pela gueto das instituições monográficas. A performance cultura afrodescendente trouxe o debate sobre

107 of Verger, Carybé, Agnaldo dos Santos, Ru- reaffirm the perhaps first human condi- bem Valentim and Mestre Didi, who, be- tion: knowing that we are not alone. Af- ing an artist and priest, made the cultural ro-Brazilianness today exceeds the popu- boundaries of art undefinable. The work of lar/erudite limit that restricted Heitor dos Umbanda artist and priest Ronaldo Rego Prazeres, Maria Auxiliadora, Louco, and also has a similar position. Orishas deep- Chico Tabibuia. The 21st century innovates; ened the debate on the diaspora legacy of social networks are the tool for belonging slavery (violence and inequality), convert- to the Afro-Brazilian universe and to the ed into clamor, chants and words of faith, recognition of identity ties by the terreiro protection, and good omens. In the wor- people. Arjan Martins, Ayrson Heráclito, ship of the orishas, Brazilians are renamed, Dalton Paula, Rosana Paulino, Aline Mota, Tiago Sant’Ana earn amulets, maintain an intense rela- Helô Sanvoy, Tiago Sant’Ana, Yhuri Cruz, Bejè Oró #3, 2013 tionship with Africa, recognize ancestral Milena Lízia, Moisés Patrício, Panmela Fotografia, díptico (pigmento mineral parents, adorn themselves and become Castro, SaraElton Panamby, Mulambö and sobre papel de algodão) [Photography, odara. They bring beauty away from colo- Coletivo Trovoa, among many others, up- diptych (mineral pigments on cotton paper)], nialist ideas and inaccessible models, but date Afro-Brazilian heritages and accept 105 × 70 cm cada [each] as a gift to be shared, an “axé”. In art and hybridity and contamination. Coleção do artista [Artist’s collection] society, candomblé means the singular The artist Wuelyton Ferreiro uses the > Ronaldo Rego moment of symbolic reconfiguration, in tradition of the execution of orishas set- Casinhas dos Erês [Erês little houses], 1992 which forms, colors, and elements are re- tlements, but with free interpretation Madeira policromada [Polychrome wood], leased, played, celebrated and experienced. of the objects, according to function, art 90 × 60 × 14 cm cada The force of the “” (the air emitted by and religiosity: terreiros, markets, and Coleção [Collection] Museu Afro Brasil, São Paulo the body) weaves links across oceans to samba rounds. Always in metal, 7 they Foto [Photo] Rômulo Fialdini

108 patrimonialização e reconhecimento das religiões não ocidentais, mas a relação com sua cultura ma- terial esteve ancorada em premissas colonizadoras. Marcas do candomblé estão em Jubiabá e Bahia de Todos os Santos de , em Barravento, de Glauber Rocha, no Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, o disco Afro-sambas, de Baden Powell e Vinícius de Morais e na obra de Verger, Cary- bé, Agnaldo dos Santos, Rubem Valentim e Mestre Didi, que, sendo artista e sacerdote, tornou indefiní- veis as fronteiras culturais da arte. A obra do artista e sacerdote da Umbanda Ronaldo Rego também tem posição semelhante. Orixás adensou o debate do le- gado da diáspora da escravidão (a violência e a desi- gualdade), convertido em clamor, cânticos e palavras de fé, proteção e bons presságios. No culto aos orixás, os brasileiros são renomeados, ganham amuletos, mantêm intensa relação com a África, reconhecem pais ancestrais, adornam-se e ficam odara. Trazem a beleza longe de ideias colonialistas e modelos ina- cessíveis, mas como dádiva a ser partilhada, um “axé”. Na arte e na sociedade, o candomblé significa o singular momento de reconfiguração simbólica, O artista Wuelyton Ferreiro recorre à tradição da em que formas, cores e elementos são lançados, jo- execução de assentamentos de orixás, mas com li- gados, festejados e experimentados. A força do “emi” vre interpretação dos objetos, conforme a função, a (o ar emitido pelo corpo) tece elos que atravessam arte e a religiosidade: terreiros, mercados e rodas de oceanos para reafirmar a talvez primeira condição hu- samba. Sempre em metal,7 eles incorporam indícios mana: saber que não estamos sós. A afro-brasilidade simbólicos. Quase sempre, a peça se faz de forma di- hoje ultrapassa o limite popular/erudito que restrin- reta, como se forjada de modo arcaico e, raramente, giu Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Louco e aparece a ideia de fundição. O gesto de Wuelyton se Chico Tabibuia. O século XXI inova, as redes sociais faz em contato com os modos tradicionais da forja, são a ferramenta para o pertencimento ao universo pois gosta de mostrar que usa carvão para esquen- afro-brasileiro e reconhecimento de vínculos iden- tar e amolecer o metal, e consegue, de modo muito titários pelo povo de terreiro. Arjan Martins, Ayrson original, dobras, vincos e torsões, onde as imagens Heráclito, Dalton Paula, Rosana Paulino, Aline Mota, de pássaros, por exemplo, se formam de uma única Helô Sanvoy, Tiago Sant’Ana, Yhuri Cruz, Milena Lí- vez, sem o uso de chapas, como na tradição exem- zia, Moisés Patrício, Panmela Castro, SaraElton Pa- plar de José Adário, ferreiro baiano, também conhe- namby, Mulambö e Coletivo Tróvoa, entre tantas e cido como Zé Diabo. tantos, atualizam heranças afro-brasileiras e assu- Os terreiros de candomblé são o ponto de obser- mem hibridismos e contaminações. vação da polifonia estética afrodiaspórica, como

109 incorporate symbolic clues. Almost always, Perhaps we can say that a vast tradition the piece is made directly, as if forged in was fostered by these terreiro artists. An- an archaic way and rarely does the idea of thropologists detected African pieces in casting appear. Wuelyton’s gesture is in the terreiro’s reserved places, in orisha contact with the traditional ways of the quarters in the shed in the early twentieth forge, as he likes to show that he uses coal century. Specificities arise according to the to heat and soften the metal, and man- spiritual composition of the subject, un- ages, in a very original way, folds, creases derlines the honorary positions of the said and torsions, where bird images, for exam- Oloyé. Mestre Didi produced Obaluaê xa- 8 ple, are formed at once, without the use of xarás for ritual functions. Artistic inter- Arjan Martins plates, like in the exemplary tradition of pretations relate to the concept of the per- Sem título [Untitled], 2018 José Adário, a blacksmith from Bahia, also son in candomblé: the same orisha may ac- Acrílica sobre tela [acrylic on canvas], known as Zé Diabo. quire distinct characteristics according to 160 × 240 cm (díptico [diptych), 160 ×120 cm Candomblé terreiros are the vantage the so-called “qualities” of the entity, and (cada[each]) point of Afrodiasporic aesthetic polyph- the concept of self is split, as in psychoana- Foto [Photo] Pedro Agilson ony, as for Thiago Ortiz and Treme Terra lytic theory, but of a different order. A priest, > Yhuri Cruz by Aderbal Axogum. Beyond the official according to the orishas surrounding his Monumento à voz de Anastácia [Monument circuit of art, the daily life of the orishas eledá (fundamental nucleus of his body), to the voice of Anastácia], 2019 houses of worship demands pieces of the receives interdictions and orientation Santinho [Small devotion card] afro strain in ancestral interpretation. for the colors and the combination with Foto [Photo] Fernanda Carvalho

110 para Thiago Ortiz e Treme Terra de Aderbal Axogum. da Pontifícia Universidade Católica (PUC), formado- Para além do circuito oficial da arte, o dia a dia das ra de teoria e crítica de arte. Antes de Arjan, a pro- casas de culto aos orixás demanda peças de estirpe dução que se aproximava do Afro-Brasil era a série afro em interpretação ancestral. Talvez possamos de Beatriz Milhazes dedicada à Estação Primeira afirmar que uma vasta tradição foi fomentada por de Mangueira. Milhazes, diferente de Arjan, lidava esses artistas de terreiro. Antropólogos detectavam com signos amplos, prática da pintura da geração peças africanas em locais reservados dos terreiros, 80, unindo colunas gregas e frutas tropicais. Arjan em quartos de orixá no barracão no início do século compunha uma geração formada majoritariamente XX. Especificidades surgem conforme a composição por brancos, mas que se envolvia em debates afro espiritual do sujeito, sublinha os cargos honorífi- -brasileiros, como religiosidade e violência, distantes cos dos ditos Oloyé. Mestre Didi produzia xaxarás das artes. Com repertório de signos afro-religiosos de Obaluaê8 para funções rituais. As interpretações em intervenções urbanas, os anos 2000 apresentam artísticas se relacionam ao conceito de pessoa no Ronald Duarte com Nimbo-Oxalá, a etérea nuvem candomblé: um mesmo orixá pode adquirir carac- feita com os gases de extintores de incêndio, e Ale- terísticas distintas, de acordo com as denominadas xandre Vogler, com um tridente de Exú. Destaque-se “qualidades” da entidade, e o conceito do “eu” sofre que a presença da arte em intervenções urbanas será cisão, tal qual na teoria psicanalítica, mas de outra recorrente no Rio, quase como vocação expandida do ordem. Um sacerdote, segundo os orixás que cercam que acontecera à geração de Hélio Oiticica. seu eledá (núcleo fundamental de seu corpo) ganha Arjan põe um foco no elemento mapa, para nego- interditos e orientações para as cores e a combinação ciar a consciência de uma diáspora densa que ainda com preceitos. Welynton Ferreiro se coloca atento a segrega os negros em guetos como os morros e fa- tais detalhes. Varia na interpretação de cada entida- velas cariocas. Em seus mapas, linhas de orientação, de e busca nos itãs 9 os componentes que devem cons- rosa dos ventos e a cruz de Caminha. As rotas de con- tar na escultura, pois, para além do visível, a trama de quistas coloniais inscrevem o tráfico de seres escravi- relações nunca termina. zados no Atlântico. Surgem rostos de crianças negras. As pinturas de Arjan Martins reconfiguram cenas A mão na boca ou a boca coberta por máscara de me- de senhoras que portam bacias de alumínio com fru- tal remete à escrava Anastácia, personagem recen- tas, comuns em mercados pelo Brasil. Torsos e len- temente reinterpretada por Yhuri Cruz, liberando-a ços na cabeça, colares de missanga e cores vibrantes evidenciam o caráter africano. Inscrições parecem aludir ao período pré-abolição, mas blusas e saias indicam que não são figuras do século XIX. As ba- tas, características das negras de ganho no Rio ou na Bahia daquela época, são substituídas por blusas t-shirts de malha. Assim, as personagens não se si- tuam numa África ancestral ou no porto do Rio, um local onde trabalhavam. No final dos 1990, poucos negros participavam da cena artística carioca. Eles eram ignorados nos projetos do Curso de Especia- lização em História da Arte e Arquitetura no Brasil

111 precepts. Welynton Ferreiro pays attention T-shirts. Thus, the characters are not locat- and violence, far from the arts. With rep- to such details. He differs in the interpre- ed in an ancestral Africa or the port of Rio ertoire of Afro-religious signs in urban tation of each entity and searches in itãs9 de Janeiro, a place where they worked. In interventions, the 2000s feature Ronald the components that must be included in the late 1990s, few blacks participated in Duarte with Nimbo-Oxalá, the ethereal the sculpture, because, beyond the visible, the Rio de Janeiro art scene. They were ig- cloud made of fire extinguisher gases, and the web of relationships never ends. nored in the projects of the Specialization Alexandre Vogler, with an Exú trident. It is A predominantly black and white paint- Course in History of Art and Architecture noteworthy that the presence of art in ur- ing by Arjan Martins reconfigures the in Brazil at the Pontifical Catholic Univer- ban interventions will recur in Rio, almost scene of ladies who carry aluminum fruit sity (PUC), which educates theory makers as an expanded vocation of what had hap- bowls, common in markets across Brazil. and art critics. Before Arjan, the produc- pened to the generation of Hélio Oiticica. Torsos and headscarves, beads necklaces tion approaching Afro-Brazil was Beatriz Arjan focuses on the map element to and vibrant colors show the African na- Milhazes’ series dedicated to Estação Pri- negotiate the consciousness of a dense ture. A numbering such as “1850” seems meira de Mangueira. Milhazes, unlike Ar- diaspora that still segregates blacks into to allude to the pre-abolition period, but jan, dealt with broad signs, the practice ghettos like the hills and favelas of Rio. On blouses and skirts indicate that they are of 80’s painting, uniting Greek columns his maps, there are guidelines, the wind not 19th-century figures. The gowns, char- and tropical fruits. Arjan was part of a rose, and the Caminha’s cross. The routes acteristic of black women in Rio or Bahia mostly white generation, but engaging in of colonial conquest inscribe the traffick- at that time, are replaced by knitwear Afro-Brazilian debates, such as religiosity ing of enslaved beings in the Atlantic.

112 das mordaças. A boca da criança, em Arjan, é circun- elementos conceituais e palavras do duro cotidiano, dada por lábios grossos, característica étnica que desde o emblema da Prefeitura do Rio, as faixas azuis inspira o preconceito racial. A mão na boca recorda dos uniformes escolares, caixas d’água, a padrona- o banzo (“aldeia” em quimbundo) e assim, nomeava gem com ondas de piscina de plástico. A arte de Max- uma atitude suicida, a saudade dos negros que co- well põe em jogo cenas e saberes heterogêneos. Nas miam terra até morrer, quando privados da liberdade. redes sociais, ele se descreve como “oriundo do preto, Arjan lida com signos que resumem a presença histó- do cinza, da sujeira, do asfalto. Sou personagem ínte- rica do negro do Rio. Cenas de mulheres trabalhando gro da cidade, do Rio de Janeiro, da favela, da Rocinha, no mercado aparecem desde os registros dos viajantes, da cultura urbana” – em mistura de cor e etnicidade, vendendo angu, ervas e mingau. Arjan trata a rua, na ambiente e território. A força evangélica nas classes história do negro no Rio de Janeiro, como um local de populares é questionada por Maxwell como “eu sou a negociação, conquista e manifestação de saberes, da própria oração”, “o pecado é o alimento da vida” e “que religiosidade e da festa. Deus me livre de Jesus”. 10 O fenômeno da favela em Maxwell Alexandre, outro representante da arte Milton Santos é a ideia de cidade local, onde a cultu- afrocarioca no século XXI, se formou em design na ra excedente se faz a partir do encontro entre fatores PUC-RJ. Morador da Rocinha, sua mãe é empregada externos e internos à coletividade.11 Maxwell articula doméstica evangélica. Ele provém, então, de um “ce- pertencimento, herança e orgulho étnicos. Sua produ- nário cultural sincrético” (Canclini). Negro, faz inter- ção se afeta nos contatos com a PUC e o Parque Lage, venções urbanas, pinturas murais, referendando-se pela cultura do skate e o cotidiano da favela. Sua obra em Keith Haring. Seu processo atesta o resultado da expõe cenas comuns com armas e crianças negras política de cotas na universidade. O pintor aborda com cabelos coloridos. Numa, o título Reprovados

< Ronald Duarte Nimbo-Oxalá, 2004/2014 Performance no [Performance at] Parque Lage Foto [Photo] Fernando Leite

Mulambö Seleção [National team], 2018 Guache sobre papelão e fita crepe [Gouache on cardboard and tape], 120 × 150 cm Coleção do artista [Artist’s collection] Foto [Photo] Daniela Paoliello

113 Black children’s faces appear. The hand meeting between external and internal on the mouth or the mouth covered by a factors in the community.11 Maxwell ar- metal mask refers to the slave Anastasia, a ticulates ethnic belonging, heritage, and character recently reinterpreted by Yhuri pride. His production is affected by the Cruz, freeing her from the gags. The child’s contacts with PUC and Parque Lage, by mouth in Arjan is surrounded by thick the skate culture and the daily life of the lips, an ethnic feature that inspires racial favela. His work exposes common scenes prejudice. The hand in the mouth recalls with guns and black children with colored the banzo (“village” in Kimbundu) and hair. In one, the title Reprovados [students thus named a suicidal attitude, the long- who fail] alludes to school performance ing of black people who ate soil to death and the community’s position in relation when deprived of their liberty. Arjan deals to the elites and public policies. Maxwell with signs that summarize the historical resignifies the precariousness of the mate- presence of the black from Rio. Scenes of rial. He creates what Wittgenstein called women working in the market selling po- tautology, in the process of code feedback. lenta, herbs, and porridge appear in travel- “I’ve been using latex mostly, but black skin ers’ records. Arjan treats the street, in the is painted with grease, bitumen, asphalt, history of black people in Rio de Janeiro, as and henna – hair straightening cream,” a place of negotiation, conquest, and man- says Maxwell. Grease and henna allude to ifestation of knowledge, religiosity, and the prejudiced game of blackface practice, celebration. sometimes denounced by black move- Maxwell Alexandre, another represen- ments, but common in theater shows, Hol- tative of Afro-Brazilian art in the 21st cen- lywood musicals and Carioca chanchadas tury, graduated in design at PUC-RJ. He that consisted of changing the color of the is a resident of Rocinha, and his mother face of actors and actresses with black ink. is an evangelical maid. He comes, then, In the art and life axis, Maxwell makes from a “syncretic cultural scene” (Cancli- visible materials and methods of a surplus ni). Black, he makes urban interventions, daily life, acts within his own mobility murals, making reference to Keith Har- without the need for exogenous interpret- ing. His process attests to the outcome of ers, the forged Brazilianness in the Mas- the university’s quota policy. The painter ter's house or the nationalism that had discusses conceptual elements and words served the cruelest repression. This Afro- of the hard every day, from the Rio City carioca production operates in proximity Government emblem, the blue stripes of to visual signs that place the mechanisms school uniforms, water tanks, to the pat- of subordination and belonging in new tern with plastic pool waves. Maxwell’s critical keys. art brings into play heterogeneous scenes Recognition of Cais do Valongo and sur- Maxwell Alexandre and knowledge. In social networks, he de- rounding areas as a Cultural Heritage of A noiva – Igreja do Reino da Arte [The bride – scribes himself as coming “from the black, Humanity by UNESCO had, among its Church of the kingdom of Art], 2019 gray, dirt, asphalt. I am an integral char- greatest supporters, the Afro-descendant Santinho [Small devotion card] acter of the city, of Rio de Janeiro, of the artist and anthropologist Milton Guran, favela, of Rocinha, of urban culture”– in who argues that “the Brazilian State owes > Éramos as cinzas e agora somos o fogo, da série a mixture of color and ethnicity, environ- to the African matrix a national muse- Pardo é papel [We were ashes and now we are ment and territory. The evangelical pow- um that recounts the history of the slave fire, from the “Brown is paper” series], 2017/2018 er over the popular classes is questioned trade and the enslaved Africans in Brazil Látex, graxa, henê, betume, corante, caneta esferográfica, grafite, carvão, vinílica, acrílica e by Maxwell as “I'm the prayer itself,” “sin and the Americas, to give visibility to their vara de óleo sobre papel pardo [latex, grease, is the food of life,” and “may God deliver achievements and to establish an effec- henna, bitumen, pigment, ballpoint pen, graphite, 10 me from Jesus”. The favela phenomenon tive dialogue with the other countries charcoal and vinylic and acrylic painting and oil in Milton Santos is the idea of a local city, involved in the African Diaspora in the stick on brown paper], 320 × 476 cm where the surplus culture is based on the Americas and Africa.” 12 Foto [Photo] Pedro Agilson

114 alude ao rendimento escolar e à posição da comuni- exógenos, da brasilidade forjada na casa grande ou dade frente às elites e às políticas públicas. Maxwell no nacionalismo que servira à mais cruel repressão. ressignifica a precariedade do material. Ele cria o Esta produção afrocarioca opera em proximidade de que Wittgenstein chamou de tautologia, em proces- signos visuais que situam os mecanismos de subal- so de retroalimentação dos códigos. “Tenho usado ternidade e pertencimento em novas chaves críticas. látex majoritariamente, mas a pele negra é pintada O reconhecimento do Cais do Valongo e de áreas com graxa, betume, asfalto e henê – creme para ali- adjacentes como Patrimônio Cultural da Humanida- samento de cabelo”, diz Maxwell. Graxa e henê alu- de pela Unesco, teve entre seus maiores defensores, o dem ao jogo preconceituoso da prática do black face, artista e antropólogo afrodescendente Milton Guran, ora denunciada por movimentos negros, mas comum que argumenta que “o Estado Brasileiro deve à matriz em espetáculos de teatro, musicais de Hollywood e africana um museu nacional que reconte a história nas chanchadas cariocas que consistia na troca de do tráfico de escravos e dos africanos escravizados no cor do rosto dos atores e atrizes com tinta preta. No Brasil e nas Américas, para dar visibilidade às suas eixo arte e vida, Maxwell torna visíveis materiais e realizações e estabelecer um diálogo efetivo com os métodos de um cotidiano excedente, age dentro da demais países envolvidos na Diáspora Africana nas própria mobilidade sem necessitar de interpretes Américas e na África”. 12

115 Cidade das Quebradas, o vagão das mulheres

Heloísa Buarque de Holanda

City of the Broken, This picture illustrates part of the atmo- sufficient and emerging cultural produc- the womens's car sphere of the late 1990s in the city of Rio tion that intends to act, even without State de Janeiro. The reactions known are still support, and shows effective autonomous Around 1993-1994 I started to perceive timid and confusing. The press reports the political and cultural strength? some signs of turbulence within the exclu- emergence of the peripheral culture as a The different forms of activism avail- sive and white scenario of Brazilian culture. novelty in the city’s cultural scenario. The able up to this point used to satisfy the Funk music was already ruling the most skeptical think it is a fad launched middle-class intellectual (including me) young middle class parties, as well as the by a temporary journalistic agenda. The and his/her revolutionary desire. With modulated frequency radios, and its main more orthodox scholars doubt the quality the emergence of this picture, such forms audience were classes A and B. There were of this new cultural wave, consequently turned minimally insufficient. spectacles like Cobertores (Blankets) about questioning the phenomenon’s extent and I realized then that one possible way the reality of street children; or the re- its permanence as it has been depicted in would be to abandon once and for all the hearsal on solidarity, which, according to publications and comments throughout center-periphery paradigm. I started pur- its choreographer Carmen Luz, had a cast the media and in strongholds associated suing the interdependence between the formed by children from the Andaraí Hill; with the third sector, as well as in the activ- many poles that the city presents. That is, or A dança das marés (The dance of tides) ist segments that raise the subject and/or observe the diversity, which is not neces- by Ivaldo Bertazzo, in which 62 young res- cause of cultural inclusion. For intellectuals, sarily equal to inequality. Rather, face in- idents of the Maré Complex (11-12 years by contrast, this was not an easy matter. equality from the strength of differences, old) translated their own stories into mo- 1993 was also the year in which two his- and bet, above all, in the encounters with- tion; these examples, among a surprising toric massacres occurred in Rio de Janeiro: in the broken city. number of different events, fill up the au- the police killed 20 street children on the It was precisely when I was provided dience of theaters and catch the attention entrance stairs of the Candelária Church with these feelings that I arrived in hip of the critics. A strong example is Nós do at city center and, just one month later, hop: the intellectual vanguard of the pe- Morro (We from the Hill), which ravishes 40 residents of Vigário Geral, a commu- riphery cultural movements. the Shell Theater Award at this time with nity on the outskirts of the city. Concom- The culture I found in the peripheries the piece Machadiando, the group’s eighth itantly, earlier movements on behalf of didn’t look like what was said in the news- theatrical production. In sequence, the citizenship have deepened their ranks and papers and magazines of that time. I saw novel written by Paulo Lins, Cidade de a political articulation regarding police vi- a culture with very well-defined goals, Deus (City of God) leads the list of best olence begins within the intellectuals. At pushing its prior agenda forward with te- sellers and his film adaptation competes the same time, the middle class starts to nacity: the promotion of visibility not only in the Oscar. Even the selective fashion show interest, or even curiosity, to know of their artistic products, but also of the world bows down to the styling and more about life in the favelas. Still, the cul- precarious context, unsupported by the know-how of Coopa Roca, the Rocinha ar- ture of the periphery starts to gain visibili- public policies ruling their lives. tisans collective, that steadily steps of the ty and move towards the center, with very As an example, we can think of the rap- Fashion Week catwalk under strong ap- particular characteristics. per MV Bill, who promoted an impres- plause, one of the most important fashion How would it be possible to build an sive exhibition of the video clip Soldados events in the country. approximation with this proactive, self- do morro (Soldiers of the Hill), in 2001, in

116 Foi por volta de 1993-4 que comecei a perceber alguns meninos de rua nas escadas da Igreja Candelária, no sinais de turbulência no cenário branco e exclusivo centro da cidade, e, apenas um mês mais tarde, de 40 da cultura brasileira. moradores de Vigário Geral, comunidade da periferia O funk dominava as festas jovens de classe média, da cidade. Coincidentemente, movimentos anterio- bem como as rádios de frequência modulada, cuja res pela cidadania engrossam suas fileiras, começa audiência são as classes A e B; espetáculos como uma articulação política dos intelectuais sobre a vio- Cobertores, sobre a realidade dos meninos de rua; ou lência policial e, paralelamente, cresce o interesse, ou um ensaio sobre a solidariedade, como define sua co- mesmo a curiosidade, da classe média sobre a situa- reógrafa Carmen Luz, com um elenco formado por ção da vida nas favelas. Ainda nessa época, a cultura crianças do morro do Andaraí; ou A dança das marés, da periferia começa a ganhar visibilidade e se deslo- de Ivaldo Bertazzo, em que 62 jovens de 11 a 12 anos, car em direção ao centro, com características bastan- moradores do Complexo da Maré, traduzem em mo- te particulares. vimento suas próprias histórias; esses, dentre mais Como seria possível uma aproximação com essa um número surpreendente de eventos, lotam as pla- produção cultural emergente, pró-ativa, autossufi- teias dos teatros e chamam a atenção da crítica. Um ciente, que pretende agir, mesmo sem o apoio do Es- forte exemplo é o Nós do Morro, que arrebata, nessa tado, e que mostra efetivas forças política e cultural hora, o Prêmio Shell de Teatro com Machadiando, oi- autônomas? tava produção teatral do grupo. O romance de Paulo As formas de ativismo com as quais o intelectual Lins, Cidade de Deus, lidera a lista de mais vendidos, de classe média (como eu) até então satisfazia seu e sua adaptação para o cinema concorre ao Oscar. Até desejo revolucionário, nesse quadro, pareciam não mesmo o seletivo mundo fashion se curva ao estilis- se sustentar mínimamente. Percebi que um caminho mo e ao know how da Coopa Roca, a cooperativa de ar- possível seria abandonar de vez o paradigma centro- tesãs da Rocinha, que pisa com firmeza na passarela periferia. Comecei a perseguir a interdependência da Fashion Week, um dos mais importantes eventos entre os diversos polos da cidade. Observar a diversi- do mercado de moda do país, sob fortes aplausos. dade que, não necessariamente, é igual à desigualda- Esse quadro dá um pouco o clima do final dos anos de. Ou melhor, enfrentar a desigualdade a partir da 1990 na cidade do Rio de Janeiro. As reações ainda são força das diferenças. Apostar, sobretudo, nos encon- tímidas e um pouco confusas. A imprensa noticia a tros da cidade partida. emergência da cultura periférica como novidade na Foi munida desses sentimentos que cheguei ao hip cena cultural da cidade. Os mais céticos acham que se hop: a vanguarda intelectual dos movimentos cultu- trata de modismo lançado por uma agenda jornalís- rais da periferia. tica passageira. Os acadêmicos mais ortodoxos duvi- A cultura que encontrei nas periferias não era o que dam da qualidade e, portanto, da permanência dessa se dizia nos jornais e revistas daquela época. O que nova onda cultural – duvidam, inclusive, do porte do eu via era uma cultura com metas bastante definidas, fenômeno tal como divulgado e comentado na mídia encaminhando, com garra, sua agenda prioritária: a e em redutos ligados ao terceiro setor e a segmentos promoção da visibilidade não só de seus produtos ar- ativistas que levantam a questão e/ou bandeira da tísticos, mas também do contexto precário e desassis- inclusão cultural. Para os intelectuais, não se tratava tido pelas políticas públicas em que viviam. de assunto fácil. Como exemplo, podemos pensar no caso do rapper 1993 foi também a data de duas históricas chacinas MV Bill, que promoveu uma exibição impactante do no Rio de Janeiro: o assassinato, pela polícia, de 20 videoclipe Soldados do morro, de 2001, no Fantástico.

117 the Sunday evening TV show. In national In hip hop, the notion of territory be- the kind “cachorra com atitude” (a “bitch” network, the clip highlighted, through comes central in all of its political mani- with attitude), who screams what no one shocking images, the drama that some festations and artistic expressions. In hip would and boasts about her power. teenagers live, armed with machine guns, hop universe, in addition to the functional Convinced that they wouldn’t just re- working in “bocas de fumo” (places where idea of territory, we also have the Zip code, verse the situation of the male chauvin- drugs are sold). It was a crucial complaint, which seems to me the definition, in this ist ethos, Tati and her followers preceded as 90% of the work in the drug trafficking case, of a minimal unit, a shorter version building a social complaint towards vio- is done by teens with 9-18 years old. This of city. It is interesting to observe how the lence and male chauvinist, which is an act exhibition provoked a national commo- ideas of territory and Zip code, although of critically seizing the sexual brutality tion, placing the problem of the high in- extremely localized, do not seem to dimin- they experience on the daily basis. These cidence of minors in drug trafficking in ish in any form the geopolitical impact of are opposed by the rappers, a group led the country’s cultural and political agen- hip hop actions and interventions. Within by Nega Giza, who relishes equal prestige da, also demonstrating the importance of this universe, I even came across an “inner with her serious and performative voice what rappers call “information trafficking”, phenomenon in the phenomenon”, which of high communicative impact, whose rap that is, the intensive circulation of news is the very strong presence of women in does not use bad words or sexual speech- and information regarding people’s lives in this area. At that time, we already repre- es to attract the public. Giza rejects the low-income communities. sented a large portion of the field, but had American rap, she calls it “babinha music” Hip hop culture identifies itself as culture not seen yet Karol Conka and the so called (drool music), comparing it to national rap, with attitude. By attitude, there is a gener- “geração tombamento”. 1 The pioneers were which would be a committed rap, not just al understanding of art forms committed Tati Quebra-Barraco, Nega Giza, Ana Cris- art, but much more – it is a transformative to the transformation of its surroundings. tina, Mônica, Kelly, Danielle, among others. and pedagogical attitude in response to It is not by chance that the Jamaican acro- They are divided between rappers whose the status quo. Giza defines herself as a 24- nym RAP, that stands for rhythm & poetry, diction is extremely politicized and funkei- hour hip hop activist, as well as a feminist has been transformed by the Brazilian hip ras (funk authors/singers) who have a reb- who militates against the role of woman hop: into rhythm, poetry and politics. el attitude. Tati Quebra-Barraco is a funk as an object, as a domestic woman, all in From this point emerges the figure of pioneer, who was last month in Berlin favor of the revolutionary black woman. the artist-citizen: one whose work of art and who was the first woman to stand out Whether it is Tati, manipulating the male is inseparable from his/her commitment in the “batidão” (giant beat), which was chauvinist system (or denouncing the vio- to the transformation of his/her territory. mainly dominated by men before her. lence environment that invades women’s Besides this framework, we also discover Tati’s performance – whose name “Que- space), or Giza, a warrior, wielding the flag that the is much more bra-Barraco” is a jargon from the peri- of change, the fact is that they both mark expanded than the North American and phery meaning “the act of sexual inter- that something important is taking place, European movements. Traditionally, there course”– seduces and disturbs. She enters promoting decisive political openings for are only four main elements in hip hop cul- the stage, shouts her catchphrase “Je- low-income women. ture: the rap, the MC, graphite and break suuuuuus”, shoots highly sexual phrases, Historically seen as the “Broken City”, Rio dance. We include the knowledge, which is breaks prejudices, and asks for equality de Janeiro ends the century experiencing called the fifth element, in addition to lit- between men and women, invariably the opening of some channels of articu- erature and basketball. The importance of leaving the crowds ecstatic. lation between territories impenetrable knowledge initially came from the valori- In her private life, Tati never gives inter- until these days. zation of the local culture’s history and its views, she is married and a mother of 3 racial roots, which probably generated the children – one of them is a newborn and need to search for more information and known as “Mila Quebra-Berçário” (Mila, knowledge. The organic knowledge then nursery breaker) – and, as Tati said, she is a becomes valued and experienced as an dedicated spouse and housewife. On stage, integral part of hip hop culture, frequently accompanied by a ringing rhythm and referenced for its structural and political sampled symphonic strings, she trans- value. As Jéssica Balbino asserted, a rep- mutes herself into the hurricane woman Ana Stewart resentative of the Zulu Nation in Brazil, who, just as a revolving machine gun, de- Série Meninas do Rio [Girls from Rio], 1998 “there is no hip hop without knowledge, livers her outflows and battle cries. Tati, Fotografia [Photograph] without reading or writing”. being a model for other rappers, makes Cortesia [Courtesy] Galeria da Gávea

118 Soldados do morro revelou, em rede nacional, por pelo hip hop brasileiro: foi transformada em ritmo, meio de imagens chocantes, o drama de adolescen- poesia e política. tes, armados de metralhadoras, trabalhando nas bo- Nasce, então, a figura do artista-cidadão: aquele cuja cas de fumo – denúncia importante, na medida em arte é indissociável de seu compromisso com a trans- que 90% do trabalho no tráfico é feito por menores, formação de seu território. Nesse quadro, também a partir dos nove anos. Essa exibição, que provocou ocorre a descoberta de que o hip hop brasileiro é bem uma comoção nacional, colocou o problema da alta mais expandido do que os movimentos norte-ameri- incidência de menores no tráfico na pauta cultural canos e europeus. Tradicionalmente, restringem-se a e política do pais, além de comprovar a importância quatro os elementos do hip hop: o rap, o MC, o grafite do “tráfico de informação”, como é chamada, pelos e a break dance. Nós acrescentamos a estes o conheci- rappers, a disseminação intensiva de notícias e da- mento, também chamado de o quinto elemento, além dos sobre a vida nas comunidades de baixa renda. de literatura e basquete. A importância do conheci- A cultura hip hop se autoidentifica como cultura mento veio, inicialmente, pela valorização da história com atitude. Por atitude, são entendidas formas de da cultura local e de suas raízes raciais, o que gerou, arte comprometidas com a transformação de seu provavelmente, a necessidade da busca de mais in- entorno. Não é por acaso que a sigla jamaicana RAP, formação e conhecimento. O conhecimento orgâ- para rythm & poetry, teve sua leitura transformada nico passa, então, a ser valorizado e experimentado

119 Guy Veloso Mulher travestida de Zé Pilintra em dia de protesto contra o Temer em 2017 na Candelária [Woman cross-dressed of Zé Pilantra in a protest day against president Temer in 2017 at Candelaria (downtown)]

120 como parte integrante da cultura hip hop, sendo seus desabafos e gritos de guerra. Tati, modelo das de- frequente a insistência em seu valor estrutural e mais rappers, faz o gênero “cachorra com atitude”, que político. Como sublinha Jéssica Balbino, represen- grita o que não pode e vangloria-se de seu poder. tante da Zulu Nation no Brasil, “não há hip hop sem Convictas de que não estariam apenas invertendo conhecimento, sem a leitura e sem a escrita”. No hip a situação do ethos machista, Tati e suas seguidoras hop, a noção de território torna-se central em todos prosseguiram com o que percebem como sendo uma os seus discursos políticos e nas expressões artísti- denúncia social da violência e do machismo, um ato cas. No universo hip hop, além da ideia funcional de de se apoderar criticamente da brutalidade sexual que território, encontramos também a de CEP, que me experimentam no dia a dia. A estas se opõem as rap- parece a definição, neste caso, de uma unidade mí- pers lideradas por Nega Giza, que goza de igual pres- nima, ainda menor, de cidade. É interessante obser- tígio, com sua voz grave e performática, de alto im- var como as ideias de território e de CEP, ainda que pacto comunicativo, cujo rap não tem palavrão, nem hiperlocalizadas, não parecem diminuir em nada o usa os recursos do discurso sexualizado para atrair o impacto geopolítico das ações e intervenções do hip público. Giza rejeita o rap americano, apelidando-o hop. Dentro desse universo, ainda me deparei com um de “babinha music”, em contraste com o rap nacional, “fenômeno dentro do fenômeno”, que é a atuação que seria um rap de compromisso, que não é apenas fortíssima das mulheres nessa área. Já eram muitas arte, que vai além – que é atitude transformadora e naquela época, quando ainda não existiam a Karol pedagógica diante do status quo. Giza se define como Conka e a “geração tombamento”. Lembro das pio- uma militante hip hop 24 horas por dia, bem como fe- neiras: Tati Quebra-Barraco, Nega Giza, Ana Cristi- minista que milita contra o papel de mulher-objeto, de na, Mônica, Kelly, Danielle e outras. Elas se dividem mulher doméstica, em favor da mulher negra revolu- entre rappers de dicção extremamente politizada e cionária. Seja Tati, manipulando o sistema machista funkeiras de atitude . Dentre estas últimas, (ou denunciando o ambiente de violência que invade ressalta-se a pioneira Tati Quebra-Barraco, que es- o espaço das mulheres), seja Giza, guerreira, empu- teve no mês passado em Berlim e que foi a primeira nhando a bandeira da mudança, o certo é que ambas mulher a despontar no “batidão”, antes dominado sinalizam que algo de importante está no ar e come- pelos marmanjos. çam a promover aberturas políticas decisivas para as A performance de Tati – cujo “Quebra-Barraco” é mulheres de baixa renda. uma gíria da periferia que significa “o ato da relação sexual” – seduz e incomoda. Ela entra no palco, grita Historicamente vista como a Cidade Partida, o Rio de o bordão “Jesuuuuuus”, dispara frases de alto teor se- Janeiro, encerra o século assistindo à abertura de al- xual, rompe preconceitos, pede igualdade entre ho- guns canais de articulação entre territórios até hoje mens e mulheres e leva, invariavelmente, o público impenetráveis. ao delírio. Artistas e intelectuais começam a se dedicar a uma Na vida privada, Tati nunca aparece em entrevistas, nova forma de engajamento intelectual, interagin- é casada, mãe de 3 filhos – sendo que uma é recém- do diretamente com as comunidades e levando uma nascida e conhecida como Mila Quebra-Berçário – e, educação profissionalizante informal aonde o conhe- segundo ela mesma, é esposa e dona de casa dedicada. cimento formal não chega. Como consequência, nas- No palco, acompanhada por um ritmo repicante e cor- ce uma importantíssima rede de trocas de competên- das sinfônicas sampleadas, transfigura-se na mulher- cias culturais e visões de mundo. A nova bandeira furacão que, como uma metralhadoras giratória, emite política do momento é: o importante é agir.

121 Artists and intellectuals then begin to contaminated the artistic production and exchange between different aesthetic out- dedicate their works to a new form of cultural events throughout the city. looks signaled hybridization – inventive intellectual engagement, interacting di- In order to think about the subject evo- and well resolved – between center and rectly with communities and providing lution, we can simply look to the redirec- periphery. We started to perceive, above an informal professionalizing education tion of the current production of the na- all, that the informal, the deviant and to areas where the formal knowledge is tional cinema and the prestige obtained what is said to be problematic from the usually inaccessible. As a consequence, a by films like Notícias de Uma Guerra aesthetic, urbanistic, economic and social very important network of exchanges of Particular (News from a Private War) (by points of view, which is now experienced cultural skills and world views emerges. João Moreira Salles), Carandiru (by Hector in the peripheries, pointed to extremely The new political banner of the moment Babenco), Cidade de Deus (City of God) (by interesting solutions. There was clearly an is: the important thing is to act. ), O Rap do Pequeno ongoing exchange flow, customizations There are also some notorious examples Príncipe Contra as Almas Sebosas (The Lit- and even remixing as the structuring fac- of early “brodagem”. 2 After a terrible ep- tle Prince Rap Against the Tallowy Souls) tor of that culture. isode of murders in the favela of Vigário (by Paulo Caldas). In the same way, the very constitution Geral, Waly Salomão and Caetano Veloso On style, to give just one last example, of favelas also involves flows and move- go up the hill and help with the founda- I cite Rio Fashion Week parade’s success ments. Let us see: a migrant arrives at a tion of the Afro Reggae Cultural Center. in 2003, which took place at the Museum metropolis looking for work. Since he has They offer workshops on art, music, poetry of Modern Art. In the occasion, the ethe- no possessions, he settles in a favela and and philosophy. Rosane Swartman, a film- real and Caucasian mood of the models goes out looking for a job in the city cen- maker, also gives a film direction course gave rise to the black beauty of the Rio ter. If he is lucky and obtains a job, part for the Nós do Morro group, in the Vidigal de Janeiro gangs that enter the walkway of the new salary returns to the place of Favela. Gringo Cardia, a renowned scenog- under applause, wearing pieces from the origin, where his family is based. This rapher, has been directing the Spectacu- prestigious brand Blue Man. And it must flow is not exclusively associated with lu Art and Technology School since June be said that Tati Quebra Barraco was in- wages – it is, above all, a constant move- 2000, training boys and girls from the pe- vited as the great attraction of the follow- ment that accommodates this person’s riphery studying to become actors, danc- ing Fashion Week parade. cultural and affective experiences, thus ers, illuminators, designers, costume de- It became clear that it was urgent to un- establishing a network of interlocutions signers, theatrical carpenters, accessories derstand what is the culture that comes between the territory of origin (root), the specialists, sound artists and set designers. from the favelas, peripheries or commu- territory of arrival (favela) and the territo- Tetê Leal, a sociologist, creates the Copa nities. ry of work (center). Rocca in Rocinha, forming seamstresses, Aiming to respond, I developed, together In fact, a permanent movement is cre- fashion designers and business women. with the designer Gringo Cardia, the ated encouraging the constant traffic be- Nowadays, Copa Rocca unites more than project of an exhibition in Rio de Janeiro tween these different poles, which builds 80 employees, working for the major na- called Periphery Aesthetics, testing, as a up the experimentation of a significant tional brands, participating in interna- methodology, a shared curatorship. We diversity of world perspectives, cultures tional fashion shows, exporting its models called many artists from the periphery and socioeconomic structures. Thus, we to Selfridge’s and Galerie Lafayette and inviting them to bring what they consid- realized that the periphery is a place of ar- building collaborations with our best vi- ered beautiful in their communities to ex- rival and movement, a place where a fas- sual artists, such as Antônio Dias, Ernesto hibit in a prestigious cultural space in the cinating laboratory of hybridization and Neto and Carlos Vergara. Rosana Palazyan, city. From a very extensive collection of cultural re-signification takes place. a visual artist, is working on a co-author- materials received, we selected some ob- ing project with inmates from the João jects together and set up an exhibition in Luiz Alves School, teenagers arrested for the four floors of the Post Office Cultural armed robbery, drug trafficking and oth- Center in Rio de Janeiro, in 2004. er crimes; their artworks are displayed in During the work development, some Suzana Queiroga large galleries and museums. things became evident from the materials No 5, 2000 On the other hand, another important being brought to us. The culture of the pe- Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas], 140 × 120 cm fact to highlight is that exclusion as a sub- riphery is structurally pop; it is not a “root Coleção particular [Private collection] ject and hip hop as a style have strongly culture”. The movement, the flow, and the Cortesia [Courtesy] Canvas Galeria de Arte

122 Alguns exemplos iniciais de brodagem são notó- Tetê Leal, socióloga, cria a Coopa Roca na favela rios. Waly Salomão e Caetano Veloso, depois de uma da Rocinha, formando costureiras, designers e em- terrível chacina na favela de Vigário Geral, sobem presárias da moda. Hoje a Coopa Roca, com mais o morro e ajudam a fundar o Centro Cultural Afro de 80 funcionárias, trabalha para as grandes grifes Reggae. Oferecem oficinas de arte, música, poesia, nacionais, participa de desfiles internacionais, ex- filosofia. Rosane Swartman, cineasta, oferece cur- porta seus modelos para a Selfridge’s e a Galerie La- so de direção cinematográfica para o grupo Nós do fayette e atua em colaboração com nossos melhores Morro, na Favela do Vidigal. artistas plásticos, como Antônio Dias, Ernesto Neto Gringo Cardia, renomado cenógrafo, dirige, desde e Carlos Vergara. junho de 2000, a Escola Fábrica de Espetáculos, pro- Rosana Palazyan, artista plástica, desenvolve um fissionalizando meninos e meninas da periferia que trabalho em coautoria com internos de João Luiz Al- estão se tornando atores, bailarinos, iluminadores, ves, adolescentes retidos por assalto à mão armada, designers, figurinistas, carpinteiros teatrais, adere- tráfico de drogas e outros crimes, e seus resultados cistas, sonoplastas e cenógrafos. são expostos em grandes galerias e museus.

123 2009, together with Numa Ciro, an artist, performer and psychoanalyst fueled by an unbeatable transforming energy, I creat- ed a social technology laboratory at UFRJ called Universidade das Quebradas (Uni- versity of the Broken). At that time, the insistence of the periph- eral culture on the structural importance of knowledge was already clear, identified as one of the biggest needs of the poor and a strategic factor for raising any project of social transformation. The actions to facili- tate access to culture were now manifested, above all, as a citizen right. The University of the Broken thus assumed the mission of activating the right to enunciate these knowledges in the noble space of the Fed- eral University of Rio de Janeiro (UFRJ). In light of this, we created an exper- imental environment of exchange be- tween knowledges and creation practices, disguised as an extension course. The lab articulated cultural and intellectual expe- riences produced inside and outside the academia, it should be a space where the university and the peripheries, togeth- er, could think and create new forms of knowledge. Just as it it was an action in defense of an ecology of knowledges, that is, a manner to reestablish the systemic balance between the various forms of In 2009, the culture of the periphery vernacular (in this case, coming from the had already showed its effective actions peripheries) and academic (scientific and to achieve its goals. In that short space of technical) knowledge; such balance was time, the city became aware of its power unstructured by a long trajectory of si- and inventiveness. For the most attentive lencing of certain forms of knowledge by ones, the innovative force of resources mo- the dominant ones. The search for this bilized by peripheral artists and activists balance was not intended to promote the could even offer solutions to some of the equivalence between the many different urban, political, and cultural impasses of a kinds of knowledge, but the inclusion of city that had long been perceived as broken. all in a balance. There was an urge for another step be- The initial work with the University of yond artistic expression, this time toward the Broken was to shape a model of shared the fifth element of hip hop: knowledge. production of knowledge based on an idea Enrica Bernardelli It was important for the peripheral in- of a collective intelligence. The agents of the Serpentinas [Serpentines], 2000 Instalação no [Installation at] Museu de Arte tellectuals to articulate themselves, as University of the Broken – teachers and cul- Moderna do Rio de Janeiro they are numerous, with the hard core of tural producers from the peripheries – had Foto [Photo] Wilton Montenegro academic knowledge: the University. In to, therefore, be equivalent intellectually.

124 Por outro lado, também importante é o fato de que o desviante, o que é percebido como problemático a exclusão como tema e o hip hop como estilo conta- do ponto de vista estético, urbanístico, econômico e minaram, de maneira muito forte, a produção artísti- de configuração das relações sociais, hoje em práti- ca e os eventos culturais da cidade. ca nas periferias, apontava para soluções extrema- Como tema, basta pensar no redirecionamento da mente interessantes. Havia, claramente, um fluxo produção atual do cinema nacional e do prestígio contínuo de trocas, customizações e mesmo remixes de filmes como Notícias de Uma Guerra Particular como o fator estruturante dessa cultura. (de João Moreira Salles), Carandiru (de Hector Ba- Nesse mesmo sentido, a própria constituição das benco), Cidade de Deus (de Fernando Meirelles), O favelas também diz respeito a fluxos e movimentos. Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas Vejamos: um migrante chega a uma metrópole em (de Paulo Caldas). busca de trabalho. Como não tem posses, instala- Como estilo, para dar apenas um último exemplo, se numa favela e sai à procura de um trabalho no cito o sucesso do desfile da Fashion Week 2003 no centro. Se tiver sorte e arrumar trabalho, parte de Rio de Janeiro, apresentado no Museu de Arte Mo- seu salário volta para o local de partida, onde está derna, onde o clima etéreo e ariano das modelos dá fixada sua família. Esse fluxo não é só de salários – é, lugar à beleza negra das gangues cariocas que en- sobretudo, um movimento constante que conforma tram na passarela, abaixo de aplausos, vestindo mo- suas experiências culturais e afetivas, estabelecen- delos da prestigiada grife Blue Man. Diga-se de pas- do uma rede de interlocuções entre o território de sagem, que Tati Quebra Barraco foi a grande atração origem (raiz), o território de chegada (favela) e o ter- dos desfiles da Fashion Week seguinte. ritório de trabalho (centro). Estava claro que era urgente entender que cultu- Na realidade, é criado um movimento permanen- ra é essa que vem das favelas, periferias ou comu- te que incentiva o trânsito entre cada um desses po- nidades.Tentando responder, desenvolvi, junto com los, promovendo a experimentação de uma diversi- o designer Gringo Cardia, o projeto de uma exposi- dade significativa de visões de mundo, de culturas ção no Rio de Janeiro, chamada Estética da Periferia, e de estruturas socioeconômicas. Assim, demo-nos testando, como metodologia, a curadoria compar- conta de que a periferia é um lugar de chegada e de tilhada. Chamamos artistas da periferia e pedimos movimento, onde se processa um fascinante labora- que trouxessem o que consideravam belo em suas tório de hibridização e ressignificação cultural. comunidades para ser exposto num prestigioso espaço cultural da cidade. A partir de um enorme Em 2009, a cultura da periferia já tinha dito a que material levantado, fizemos uma seleção de obje- vinha. Nesse curto espaço de tempo, a cidade já se tos, também compartilhada, e montamos a expo em dava conta de sua potência e inventividade. Para os quatro andares do Centro Cultural dos Correios no mais atentos, a força inovadora dos recursos mobi- Rio de Janeiro, em 2004. Durante o trabalho, a par- lizados pelos artistas e ativistas da periferia talvez tir do material que nos foi trazido, algumas coisas pudessem mesmo oferecer soluções pra alguns im- ficaram evidentes. A cultura da periferia é uma cul- passes urbanísticos, políticos e culturais de uma ci- tura estruturalmente pop. Não é uma “cultura de dade que se percebia há tanto tempo como partida. raiz”. O movimento, o fluxo e a troca entre diferen- A hora pedia um outro passo para além da expres- tes olhares estéticos sinalizavam uma hibridização são artística, agora em direção ao quinto elemento – inventiva e bem resolvida – entre centro e periferia. do hip hop: o conhecimento. Era importante uma Começamos a perceber, sobretudo, que o informal, articulação dos intelectuais das periferias, que são

125 The work project of the lab foresees a structured schedule based on exchanges, offering lectures based on the human- ities program, taught by the university professors, integrated to presentations, workshops and seminars offered or pro- moted by the “quebradeiros” (members of the University of the Broken), who also take part in the project management, in the creation of the activities program and in the selection of lessons and adminis- tration of activities and evaluations of the project, as well as in the maintenance of its official website. If I can roughly summarize the mission of the University of the Broken, I would say that it is to franchise the academic space and the different academic knowl- edges for the peripheries, but, above all, to promote interlocution (or even inter- pellation) in the university knowledge systems, which historically hold very low levels of social porosity. In this process, we’ve reached many sur- prises. Perhaps the most important might have been to take as a goal, through prac- tice and listening, the great commitment of the participants from the peripheries: to reject the identification of their cultur- al production with the senses of exclu- sion and shortage, with which they defi- nitely no longer identify themselves, and to put the peripheral culture in the place of a culture of the contemporary. However, in this experience of the Uni- versity of the Broken it also became clear how the knowledge production area is still viscerally ruled by the idea of intel- lectual property, besides the evidence For this, we created a very thorough public that the intellectual field is quite respon- Panmela Castro notice for participants. Participants should sive with respect to the “value” of the said Por quê? [Why?], 2016 be intellectuals, activists or mid-career informal knowledge, especially as ex- Performance no Museu Bispo do Rosário, artists, which should be demonstrated change value. Perhaps this is the greatest durante a exposição Das virgens aos through personal portfolios and by a long difficulty as well as the biggest enchant- cardumes e da cor das Auras [performance at Bispo do Rosário Museum durig the exhibition face-to-face interview. The idea was that ment of the problems that we will have Das virgens aos cardumes e da cor das Auras] the process of sharing was held between to face from now on in the arena of an Foto [Photo] Leonardo Mota two types of semi-equivalent intellectuals. university that is still broken.

126 muitos, com o núcleo duro do saber acadêmico: a Os participantes deveriam ser intelectuais, ativistas Universidade. Em 2009, junto com Numa Ciro, ar- ou artistas em meio de carreira, o que deve ser com- tista, performer, psicanalista, dona de uma energia provado por meio de portfólios pessoais e de uma transformadora imbatível, criei um laboratório de longa entrevista presencial. A iporeia é de que o pro- tecnologia social na UFRJ, chamado Universidade cesso de compartilhamento fosse entre dois tipos de das Quebradas. intelectuais semiequivalentes. Naquele momento, já estava clara a insistência da O projeto de trabalho do laboratório prevê um pro- cultura periférica na importância estrutural do co- grama estruturado a partir de trocas, com palestras nhecimento, identificado como uma das grandes ca- relativas ao currículo de humanidades, ministradas rências das populações pobres e fator estratégico para por professores universitários, articuladas a apre- qualquer projeto de transformação social. As ações de sentações, palestras, e seminários oferecidos ou pro- viabilização do acesso à cultura se manifestavam ago- movidos pelos “quebradeiros”, que também partici- ra, sobretudo, como um direito cidadão. A Universida- pam da gestão do projeto, da criação do programa de das Quebradas assumira, portanto, a missão de ati- de atividades e escolha das aulas e da administra- var o direito de enunciação desses saberes no espaço ção das atividades e avaliações do projeto bem como nobre da Universidade Federal do Rio de Janeiro. de seu site oficial. Criamos, então, disfarçados de curso de extensão, Se eu puder resumir grosseiramente a missão da um ambiente experimental de troca entre saberes Universidade das Quebradas, diria que é a de fran- e práticas de criação, articulando experiências cul- quear o espaço e o saber acadêmicos para as peri- turais e intelectuais produzidas dentro e fora da ferias, mas, sobretudo, promover uma interlocução academia. Seria um laboratório em que a universi- (ou mesmo interpelação) nos sistemas de conheci- dade e as periferias, juntas, pensariam e criariam mento universitários cuja porosidade é, historica- novas formas de conhecimento. Como numa ação mente, bastante baixa. que defendesse uma ecologia dos saberes, ou seja, Nesse processo, as surpresas foram muitas. A mais restabelecesse o equilíbrio sistêmico entre as diver- importante talvez tenha sido, por meio da prática e sas formas de conhecimentos vernaculares (no caso, da escuta, assumir como objetivo o grande empe- vindos das periferias) e acadêmicos (científicos e nho dos participantes das periferias: rejeitar a iden- técnicos), equilíbrio este desestruturado por uma tificação de sua produção cultural com os sentidos longa trajetória de silenciamento de certos saberes de exclusão e carência, com a qual definitivamente por formas dominantes de conhecimento. A busca não mais se identificavam, e colocar a cultura da pe- desse equilíbrio não pretendeu promover a equiva- riferia no lugar de uma cultura do contemporâneo. lência entre os diversos saberes, mas a inclusão de Entretanto, ficou também claro, nessa experiência todos eles em um equilíbrio. das Quebradas, como a área da produção de conhe- O trabalho inicial com a Universidade das Quebra- cimento ainda é visceralmente regida pela ideia de das foi o de formatar um modelo de produção com- propriedade intelectual, além da evidência de que o partilhada de conhecimento, baseado numa ideia campo intelectual é bastante reativo no que diz res- de inteligência coletiva. Os atores da Universidade peito ao “valor” dos saberes dito informais, especial- das Quebradas – professores e produtores culturais mente enquanto valor de troca. Talvez seja essa a das periferias – teriam, portanto, que ter alguma maior dificuldade e também o maior encantamento equivalência intelectual. Para isso, criamos um edi- dos problemas que teremos que enfrentar agora na tal de seleção dos participantes, bastante criterioso. arena de uma universidade ainda partida.

127 Uma maré de possibilidades para o Rio de Janeiro

Eliana Sousa Silva

Pedro Évora Modelo vivo da Maré [Living model of Maré], 2017 Instalação na exposição [Exhibition view] Travessias V, Galpão Bela Maré Foto [Photo] Gabi Carrera

128 “Quem sou eu para te cantar, favela, O objetivo do presente artigo é, especialmente, apre- que cantas em mim e para ninguém a noite sentar uma favela carioca a um público que não a co- inteira de sexta nhece presencialmente; no máximo, percebe-a a par- e a noite inteira de sábado tir de determinadas representações hegemônicas na cidade. A poesia genial de Drummond nos remete a e nos desconheces, como igualmente muitas questões que ainda hoje estão postas quan- não te conhecemos? do miramos essas percepções sobre como vivem os (...) moradores dos espaços periféricos. Como assinala a Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer, Carta da Maré – manifesto das periferias,1 a dinâmi- medo só de te sentir, encravada ca de estigmatização de favelas e espaços similares favela, erisipela, mal-do-monte acontece tanto nos países dominantes como nos paí- ses subalternizados, na ordem econômica e sociopo- na coxa flava do Rio de Janeiro. lítica vigente. Seus pressupostos são sociocêntricos: Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver os padrões utilizados para qualificar as periferias, Nem de tua manha nem de teu olhar. em geral, são referenciados em teorias urbanísti- Medo de que sintas como sou culpado cas e pressupostos culturais/estéticos vinculados a determinadas classes e grupos sociais hegemônicos. e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade. Eles consagram o que é um ambiente saudável, agra- Custa ser irmão, dável e adequado às funções que uma cidade deve custa abandonar nossos privilégios exercer no âmbito do modelo civilizatório em curso. e traçar a planta Na mesma linha, definem um determinado conceito da justa igualdade. de ordem e as formas pretensamente adequadas de comportamento social e de agir no mundo. Com isso, Somos desiguais temos o fortalecimento das noções de ausência, ca- e queremos ser rência e homogeneidade como elementos de percep- sempre desiguais. ções reducionistas e de classificações hierárquicas E queremos ser das periferias em relação aos demais espaços da ci- dade. Toma-se como significante aquilo que a perife- bonzinhos benévolos ria não seria em comparação a um modelo idealizado comedidamente de cidade, baseado em padrões culturais e educativos sociologicamente colonizadores, construídos, em geral, pelas parcelas mui bem comportados. mais enriquecidas da população. Nesse sentido, as Mas favela, ciao, periferias são concebidas como espaços precariza- dos, com sujeitos que têm a sua historicidade nega- que este nosso papo da, seus territórios não reconhecidos como legítimos está ficando tão desagradável. e seus moradores, não raramente, tratados de forma Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?” exotizada (a não civilização, por excelência). Todavia, continua a Carta da Maré, a definição de Favelário Nacional, periferia não deve ser construída em torno do que ela Carlos Drummond de Andrade (Corpo, 1984) não possuiria em relação ao modelo dominante na

129 “Who am I to sing you, favela, A tide (maré) of possibilities However, the Maré Letter prevails: the definition of the periphery shouldn’t orbit that sings inside me and to nobody the for Rio de Janeiro around what it could not possess in rela- entire night of Friday This article has a particular purpose of pre- tion to the dominant model within the and the entire night of Saturday senting a Carioca favela (slum from Rio de socio-territorial dynamics or physical dis- not knowing us, just like we don’t know Janeiro) to an audience that does not know tance in relation to the hegemonic center. it in person; at the latest, these people per- It must base itself recognizing the set of you? ceive it from certain hegemonic represen- daily practices that materialize a genuine (...) tations present in the city. The brilliant organization of the social web, with its in- I am afraid. Fear of you without knowing poem of Drummond reminds us of many ventive powers, its distinctive forms of oc- you, questions that resonate until today when cupying spaces, as well as the counter-he- we look at these perceptions about how the gemonic communicative arrangements afraid just to feel you, landlocked residents of peripheral spaces live. As the typical of each territory. Thus, the possi- favela, erysipelas, mountain sickness Maré Letter – Manifest from the peripheries 1 ble references of what might be a decent pointed out, in the current economic and dwelling – endowed with necessary condi- in the flava thigh of Rio de Janeiro. socio-political order, the dynamics of stig- tions for the well-being – should be estab- Fear: not from your blade or your revolver matization of favelas and similar spaces lished from the concreteness of its mor- occurs both in the dominant countries and phology, the recognition of the practices neither from your slyness, nor your look. in the subalternized. Its assumptions are set up by its residents and the objective Fear that you feel how guilty I am sociocentric: the standards used to qualify conditions of their social life; it’s a com- and of our weak or inexistent brotherhood. the peripheries are generally based on ur- plete and complex place where groups banistic theories and cultural/aesthetical approach in favor of their values, practices, It costs to be a brother, premises associated to certain hegemonic experiences, memories and social position, it costs to abandon our privileges social classes and groups. They consecrate affirming their identity as a strength for what is a healthy, pleasant and appropri- the consolidation of their lives. and trace the blueprint ate environment particularly towards the The proponents of the Letter therefore of fair equality. functions that a city should put in prac- consider that the peripheries are territo- tice within the framework of the ongoing ries that constitute the city, characterized We are unequal civilization model. Similarly, they define a in part or in the totality by challenges, but and we want to be certain concept of order and the allegedly also by a list of powers, such as: always unequal. appropriate forms of social behavior and action in the world. – Presence of young people and children And we want to be Thus, we reach the strengthening of as sources of inventiveness, broadening the benevolent good people some notions of absence, shortage and ho- references of demands and public actions mogeneity as elements of reductionist per- regarding the guarantee of rights; sparingly ceptions and hierarchical classifications – Neighborhood and kinship relations sociologically regarding peripheries in relation to the marked by intense sociability and bonds other spaces in the city. This perspective very well behaved. of solidarity and reciprocity, with a strong takes as signifier what the periphery could appreciation of common spaces as a place But favela, ciao, not be in comparison to an idealized model of socio-cultural interaction; cause this chat of ours of city, based on cultural and educational standards from colonizers, constructed, – Multiplicity of cultural, artistic and per- it’s getting so unpleasant. in general, by the richest portions of the formative forms, means and methods that Can you see that I have lost the tone and population. In this sense, the peripheries invent, renew and update urban aesthetic the arrogance from the beginning?” are conceived as precarious spaces, with narratives; subjects whose historicity is constantly – Significant presence of domestic, soli- denied, their territories are not recognized dary and popular economic initiatives; National Slum Book (Favelário Nacional), as legitimate and the inhabitants, not rare- Carlos Drummond de Andrade ly, are treated in an exotifying way (“the – Presence of alternative forms of urban- (Corpo, 1984) non-civilization, quintessentially). istic, educational, economic and real estate

130 dinâmica socioterritorial ou da distância física em imobiliários, dentre outros, como resposta à insufi- relação a um centro hegemônico. Ela deve ser reco- ciência, à ausência e/ou à inadequação dos investi- nhecida pelo conjunto de práticas cotidianas que mentos do Estado e do mercado formal nesses campos; materializam uma organização genuína do tecido – Elevado grau de autorregulação do espaço público social, com suas potências inventivas, formas dife- por parte dos(as) seus(suas) moradores(as), afirman- renciadas de ocupação do espaço e arranjos comu- do experiências e exercícios de autonomia; nicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território. Assim, é a partir da concretude da sua – Criatividade na proposição de soluções urbanísti- morfologia, do reconhecimento das práticas esta- cas solidárias em termos de habitação, provisão de belecidas por seus moradores e das condições obje- serviços públicos e equipamentos de uso comum, tivas de sua vida social que devem se estabelecer as que devem ser consideradas referência para a cidade referências possíveis do que é uma habitação digna, como um todo; dotada das condições necessárias para o bem-estar e bem-viver; um lugar pleno e complexo, onde grupos – Construção de experiências de convivência entre se aproximam por valores, práticas, vivências, me- grupos de nacionalidades, etnias e religiosidades dis- mórias e posição social, afirmando sua identidade tintas, fazendo das periferias recurso e abrigo para a como força de realização de suas vidas. aproximação de práticas pluriculturais e multiétni- cas, sem desconsiderar a existência de situações de Os(as) proponentes da Carta consideram, portanto, conflito e intolerância; que as periferias são territórios constituintes da ci- – Forte protagonismo feminino em questões funda- dade, caracterizadas, em parte ou em sua totalidade, mentais, como propagação de saberes ancestrais e por desafios, mas também por um conjunto de po- condução de ações educativas, políticas, culturais e tências, tais como: econômicas;

– Presença de população jovem e infantil como fonte – Territórios de invenção de conhecimentos cuja de inventividade, ampliando referências de demandas complexidade deve ser amplamente reconhecida e e de ações públicas em torno da garantia de direitos; valorizada pelo conjunto da sociedade;

– Relações de vizinhança e parentesco marcadas por – Presença de modelos participativos e coletivos, intensa sociabilidade e vínculos de solidariedade e além de movimentos e organizações sociais de luta reciprocidade, com forte valorização dos espaços co- pela afirmação e construção de direitos, ampliando muns como lugar de convivências socioculturais; as referências de demandas e de ações públicas de democratização da cidade. – Multiplicidade de formas, meios e modos culturais, artísticos e performáticos que inventam, renovam e – Logo, o que se evidencia é que favelas, para além atualizam as narrativas estéticas urbanas; da dimensão geográfica, são muito mais complexas, sofisticadas e carregadas de potências nas práticas – Significativa presença de iniciativas econômicas de seus moradores. Nesse contexto, coloca-se a Maré domésticas, solidárias e populares; – em sua especificidade e em que pese sua imensa he- – Presença de formas alternativas de serviços e equi- terogeneidade, ela reflete as construções inventivas pamentos urbanísticos, educacionais, econômicos e que caracterizam grande parte das favelas cariocas.

131 services and equipment, among others, as responses to the insufficiency, absence and/or inadequacy of the State and formal market investments in these fields;

– High level of self-regulation of the pub- lic space by its residents, consolidating ex- periences and exercises of autonomy;

– Creativity in proposing solidarity-based urban solutions in terms of housing, pro- vision of public services and common use equipment, which should be taken as ref- erence for the entire city;

– The construction of coexistence experi- ences between groups of different nation- alities, ethnicities and religions, turning the peripheries in a resource and shelter for the approach of pluricultural and mul- tiethnic practices, not excluding the exis- tence of situations of conflict and intoler- ance;

– Strong feminine protagonism applied to essential matters, such as the propaga- tion of ancestral knowledge and conduc- tion of educational, political, cultural and economic actions;

– Territories creating knowledge which present complexities that must be wide- ly recognized and valued by society as a whole;

– Presence of participatory and collective models, as well as social movements and organizations contributing with the strug- gle for the consolidation and construction of rights, broadening references of exist- ing demands and public actions for the democratization of the city.

Thus, we then uncover the evidence that Guia de ruas da Maré [Maré’s street guide], 2014 favelas, beyond their geographic dimen- Editado pela REDE / Redes de Desenvolvimento da Maré sion, are much more complex, sophisti- e Observatório das Favelas [Edited by REDE/ Developing cated and fuelled with powers within the network of Maré and Favelas Observatory], Rio de Janeiro various practices its residents experience. In this discussion, Maré is placed – con- > Marcos Chaves Amarécomplexo [Love is complex], 2011 cerning its specificity and its immense Intervenção urbana para a exposição Travessias, Avenida heterogeneity – as a corpus that reflects Brasil, passarela 19 [Urban intervention at Brasil Avenue, the inventive constructions that charac- crossway 19, for Travessias exhibition], Rio de Janeiro terize most of the favelas in Rio. Therefore,

132 Logo, minha expectativa ao descrever o que a consti- tui é que isso contribua para que as pessoas que me leem se sintam mais próximas, mais identificadas e com mais empatia por esses importantes territórios da cidade e por seus moradores.

A constituição da Maré O processo de formação das diferentes favelas que conformam a região que hoje conhecemos como Maré teve início nos anos 1940. Ela é constituída por um conjunto de 16 comunidades que se localizam en- tre as três principais vias de acesso ao Rio de Janeiro: a Avenida Brasil, a Linha Vermelha e a Linha Ama- rela. Inserida na região conhecida como Leopoldina, na Maré residem 140 mil pessoas, segundo o Censo Maré. Sua formação vem de um longo processo de mudanças urbanas que atingiu a cidade durante o século XX, em especial na sua segunda metade. Es- sas transformações aconteceram, basicamente, pelo incremento da atividade industrial e de serviços na cidade carioca, o que teve como consequência a che- gada de muitos nordestinos, principalmente de áreas empobrecidas atingidas pela seca, que vinham em busca de novas oportunidades para suas vidas, como e Nova Holanda (criada pelo poder público no início muito bem retratou Graciliano Ramos: “Podia conti- da década de 1960). As palafitas existentes em algu- nuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela mas dessas favelas foram, durante um longo tempo, terra dura, acharia um lugar menos seco para enter- a marca emblemática da situação de pobreza e das rar-se” (2000, p. 117). Para milhares desses retirantes, precárias condições de qualidade de vida na qual vi- a Maré tornou-se um local de esperança de uma vida via uma parcela da população local. Com a retirada menos penosa. das palafitas, no início dos anos 1980, os moradores Outro fator fundamental para o surgimento das foram transferidos para novos assentamentos, que favelas da Maré foi a construção da Avenida Brasil, deram origem à Vila do João, à Vila dos Pinheiros, ao via de maior extensão do município. Iniciada sua Conjunto Esperança e ao Conjunto Pinheiros, passan- construção em 1939, foi inaugurada em 1946. Nesse do a região da Maré a ter dez favelas. período, muitos operários que nela trabalharam ter- Em 1988, foi criada a XXX Região Administrativa minaram se fixando nas áreas vizinhas à avenida. da cidade do Rio de Janeiro, que incluiu, como área de A Maré reunia, até o início dos anos 1980, apenas abrangência, as comunidades situadas na margem seis favelas: Parque Maré, Baixa do Sapateiro e Mor- direita da Avenida Brasil. Nesse caso, a Maré tornou- ro do Timbau (constituídas ainda na década de 1940), se um espaço constituído por áreas anteriormente Parque Rubens Vaz e Parque União (década de 1950) circunscritas aos bairros de Manguinhos, Bonsucesso,

133 my expectation while describing what the writer Graciliano Ramos: “Would it be constitutes Maré is transforming the way possible to continue living in a graveyard? people reading this will think of it, so they Nothing attached him to that hard soil, so can feel closer, more identified and more he would find a less dry place to bury him- empathetic both with these important ar- self” (2000, p. 117). For thousands of these eas of the city and its residents. poor migrants, Maré became a place of hope for maintaining a less painful life. The conception of Maré Another key factor for the emergence The formation process of the different of the favelas of Maré area was the con- favelas that establish the region known struction of Avenida Brasil, the biggest today as Maré began in the 1940s. It is avenue of the municipality. Its construc- formed by a group of 16 communities tion began in 1939, inaugurated in 1946. located between the three main access During this period, many of the workers roads to Rio de Janeiro: Avenida Brasil, building it ended up living in the areas Linha Vermelha and Linha Amarela. Maré surrounding the avenue. composes the region known as Leopoldi- Until the beginning of the 1980s, Maré na and has 140.000 residents, according had only 6 favelas: Parque Maré, Baixa do to the Census of Maré (Censo Maré). Its Sapateiro, Morro do Timbau (erected in the formation is originated by a long process 1940s), Parque Rubens Vaz, Parque União of urban changes that happened at the (erected in the 1950s) and Nova Holanda twentieth century, especially in its sec- (created by public authorities in the early ond half. Such transformations happened, 1960s). The stilts houses existing in some mostly, through the increase of industrial of these favelas were, for a long time, the activity and services in the city of Rio de emblematic mark of the situation of pov- Janeiro, which resulted in the arrival of erty and the precarious quality conditions many people from the Northeast region pertaining to the lives of the local popula- of Brazil, mainly from impoverished areas tion. With the removal of the stilts in the affected by the drought, who would come early 1980s, residents were transferred Yasmin Lopes (Mão na Lata/Redes da Maré) to the metropolis in the search for new to new settlements, which conceived Autorretrato [Self portrait], 2016 opportunities, as very well represented by Vila do João, Vila dos Pinheiros, Conjunto Fotografia pinhole [Pinhole photograph]

134 Ramos e Penha. Dessa maneira, além das dez fave- No processo, os chamados conjuntos habitacionais, las já mencionadas, passaram a fazer parte da Maré abandonados pelo poder público, transformaram-se a Praia de Ramos e Roquete Pinto — que antes per- em novas favelas. tenciam ao bairro de Ramos. No início dos anos 1990, O mesmo poder público que aumentou a população mais duas localidades foram erguidas, na região, e os assentamentos da Maré nunca se fez responsável pela Secretaria de Habitação do Município, por meio por seu desenvolvimento sustentável e integrado. Pra- do projeto Morar sem Risco: Nova Maré e o Conjun- ticamente todos os governos se caracterizaram pela to Bento Ribeiro Dantas, batizado pelos moradores ausência de um diálogo democrático com a população, como “casinhas”. Para esses locais, foram transferidas expresso no autoritário planejamento urbanístico, ar- populações retiradas de áreas consideradas de risco, quitetônico e paisagístico das construções, pela falta tais como encostas, e também moradores em situa- de investimento na infraestrutura, pela oferta precari- ção de rua e famílias que residiam em palafitas na co- zada dos equipamentos sociais e, especialmente, pela munidade Roquete Pinto – as últimas moradias desse absoluta ausência de políticas de segurança pública tipo a serem eliminadas da paisagem da Maré. ou de regulação do espaço público. Essa ausência de Em 1994, o então prefeito César Maia criou (for- uma preocupação genuína dos governos com o territó- malmente, por meio de um decreto do Poder Execu- rio local e seus viventes fez com que, na Maré, fossem tivo municipal) o bairro Maré. A ideia era expressar desenvolvidas formas próprias de organização, disso- o reconhecimento, pelo poder público, de que a re- nantes, em muitos aspectos, dos espaços regulados gião estava urbanizada e já possuía equipamentos pelo Estado nos territórios formais da cidade. Vemos, e serviços públicos, como qualquer outro bairro da portanto, ocorrer na Maré o que já denunciava Lima cidade – era a inclusão formal da Maré como um Barreto, no início do século xx, no período de desen- bairro do Rio, e não mais como um lugar à margem volvimento das favelas no Rio de Janeiro: “por esse da urbanização. Essa formalização, feita de manei- intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma ra vertical, de cima para baixo, gerou uma situação grande parte da população da cidade, a cuja existên- de estranhamento para uma parte significativa dos cia o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes moradores da Maré. Eles não perceberam, em suas impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias vidas cotidianas, mudanças que justificassem a noutros pontos do Rio de Janeiro” (1996, p. 59). classificação de seu território de moradia como um Entretanto, em que pese sofrer com a desigualdade bairro da cidade. socioterritorial estabelecida pelo Estado e pelo Mer- Em 2000, um último conjunto habitacional foi cado na cidade, a Maré foi se afirmando como um construído: Salsa e Merengue. Como de regra, fo- espaço de invenção, criatividade e formas de solida- ram transferidas para o local populações que não riedade orgânica de alto grau, que permitiram que residiam na região. Com a inauguração de Salsa e fossem conquistados muitos serviços e equipamen- Merengue, a Maré passou a reunir um conjunto de tos urbanos, assim como foram se constituindo orga- 16 favelas. Como se evidencia, o processo de consti- nizações e coletivos de variados tipos, especialmente tuição das favelas da Maré revela um dado impres- culturais, que geraram um cotidiano marcado por sionante: das 16 localidades, nove foram construídas um rico conjunto de práticas socioculturais e econô- pelo Estado: os Centros de Habitações Provisórias de micas, para além das representações usuais centra- Ramos e Nova Holanda; os conjuntos habitacionais das na ausência e na valorização exclusiva de suas Vila do João, Pinheiros, Esperança, Vila Pinheiros, precariedades. Essa vivência coletiva é central, e é por Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Salsa e Merengue. isso que a destacamos no segundo item deste artigo.

135 Fábio Caffé Menino brincando de soltar pipa [Boy flying the kite], 2007 Favela Vila Vintém [Vila Vintém slum], Rio de Janeiro Fotografia [Photograph]

136 As experiências cotidianas O que torna a favela da Maré singular, nesse con- e organizativas na/da Maré texto, no quadro das mais de mil favelas cariocas, de No cotidiano da Maré, um conjunto de elementos acordo com o Instituto Pereira Passos, é a forte pre- fortes se coloca diante da percepção imediata: o chei- sença da sociedade civil, que passou a desenvolver, ro forte nas vielas, em função do sistema de esgoto desde a década de 1970, uma forte luta pela garantia precário; o barulho permanente, de todos os lados, em dos direitos fundamentais dos seus moradores. Esse geral de música funk, forró ou, cada vez mais, o ser- processo foi iniciado pelas associações de morado- tanejo; as ruas principais ocupadas por barracas, que res, que se organizaram a fim de pressionar os su- vendem os mais diversos produtos; um grande núme- cessivos governos para garantir a oferta de serviços ro de lojas, em geral de médio a pequeno porte, desta- e equipamentos urbanos no território local. A partir cando-se os muitos espaços de venda de bebidas al- da década de 1990, surgiram outras formas organi- coólicas; o grande número de veículos, especialmente zação, frutos das inserções de alguns moradores e motos, bicicletas e vans, que disputam as ruas com moradoras nas dinâmicas dos movimentos comuni- um grande número de pessoas, de todas as idades, tários, que foram fundamentais para a garantia de sobretudo crianças, adolescentes e mulheres – pre- direitos básicos, como acesso à construção de redes senças permanentes nas ruas, em todos os horários e de água potável, esgoto sanitário, drenagem de va- dias, com destaque para as noites e os fins de semana. lões, escolas de ensino fundamental, rede de ener- A alta circulação nas ruas não se explica pelo que gia elétrica, dentre outros. poderia parecer à primeira vista: nas casas residiria Algumas instituições nascem e se consolidam, uma quantidade de pessoas muito superior a sua ca- portanto, como fruto de experimentações iniciais pacidade, e isso as tornaria inabitáveis. Com efeito, em torno da ideia de fortalecimento da mobilização a densidade média de habitantes por domicílio na e do potencial local dos moradores da Maré; outras Maré está próxima da média da cidade. Fatores como se desfazem e se recriam a partir da experiência e a má qualidade das habitações e o pequeno tamanho do desejo de se aprofundar na radicalização de um dos cômodos justificam mais, em termos físicos, a projeto estruturante para a região da Maré. opção pelas ruas. Outros fatores sociais também in- Nessa perspectiva é que apresento, no item seguin- fluenciam a intensa circulação coletiva: a alta taxa te, o trabalho da Associação Redes de Desenvolvi- de desemprego, em especial dos jovens – um gran- mento da Maré – Redes da Maré, como é comumente de número destes também não estuda; a pequena chamada –, instituição da qual sou fundadora, como circulação dos moradores em outros espaços da ci- projeto singular de ação global, que tem provocado dade e a concentração de suas atividades de lazer e um forte impacto na realidade local. de consumo na própria favela; e a prática de vários tipos de brincadeiras coletivas entre as crianças, por Redes da Maré exemplo. Essa presença das pessoas nas ruas é o O processo começou com a criação de um pré-vesti- elemento que mais impacta aqueles que vão, pela bular comunitário, que, nos últimos 21 anos, já con- primeira vez, a uma favela como a Maré: à noite, en- tribuiu para o ingresso de mais de 1.600 estudantes quanto as ruas dos bairros de classe média estão, em em universidades públicas e na PUC-Rio. Formados, geral, vazias, permanecendo seus moradores tranca- muitos deles se envolveram em diferentes tipos de dos em uas casas e apartamentos repletos de gra- ações comunitárias. O pressuposto de origem era des, a favela está com o comércio aberto e seus bares pela busca de investimento no potencial de morado- cheios de vidas pulsantes. res e moradoras da Maré, a fim de que, no médio e no

137 Esperança and Conjunto Pinheiros, so the region were transferred to live there. With inequality set up by the State and the Maré region now had 10 internal favelas. the inauguration of Salsa and Merengue, economy throughout the city, Maré went In 1988, the Administrative Region XXX Maré now started to hold a group of 16 on affirming itself as a space of invention, of the city of Rio de Janeiro was created, favelas. As one can see, the process of creativity and high-level organic solidari- which also covered the communities lo- setting up the favelas in Maré reveals an ty forms that allowed the achievement of cated on the right border of Avenida Bra- impressive fact: out of the 16 localities, 9 many urban services and equipment, as sil. With this, Maré became a space consti- were constructed by the State: the Ramos well as organizations and collectives of tuted by areas previously circumscribed and Nova Holanda Centers for Temporary various kinds, especially cultural, which to the districts of Manguinhos, Bonsuces- Habitation; the housing complexes Vila created a daily life marked by a rich set so, Ramos and Penha. So, in addition to do João, Pinheiros, Esperança, Vila Pin- of socio-cultural and economic practices, the 10 favelas already mentioned, Praia heiros, Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré transcending the usual representations de Ramos and Roquete Pinto – formerly and Salsa and Merengue. Throughout the centered on the absence and the exclusive from the Ramos neighborhood – also be- process, the so-called housing complexes, appreciation of existing precariousness. came part of Maré. In the early 1990s, 2 highly abandoned by the public authori- This collective living is central, and that is other localities were constructed in the ties, have become new favelas. why we chose to highlight it in the second region by the Municipal Housing Depart- The particular public authority that in- item of the present article. ment of the city of Rio de Janeiro through creased the population and settlements the project “Live without Risk” (Morar at Maré was never responsible for its sus- The daily and organizational sem Risco): the New Maré and the Con- tainable and integrated development. It experiences at/from Maré junto Bento Ribeiro Dantas, baptized by could be said that all of the governments In the daily life at Maré, a group of strong the residents as “little houses” (casinhas). were marked by the absence of a demo- elements stands out as an immediate per- These areas also received populations cratic dialogue with the population, illus- ception: the strong smell in the alleys due withdrawn from areas considered at trated by the authoritarian planning of to the precarious sewage system; the con- risk, such as slopes, and street dwellers urbanism, architecture and landscapes of stant noise coming from all over, usually and families who lived on stilts in the the constructions, the lack of infrastruc- of funk music, forró or sertanejo (the latter, Roquete Pinto community – these were ture investment, the precarious provision each day more); the main streets occu- the last houses of this type eliminated of public social facilities and, in particular, pied by tents selling sell the most diverse from the Maré landscape. the absolute absence of public security products; the vast number of shops, usu- In 1994, the Mayor César Maia formal- policies or regulation of public space. ally small or medium – highlighting the ly created the neighborhood of Maré, by It was this absence of a genuine govern- great amount of venues selling alcoholic means of a decree from the Municipal mental concern with the local territory beverages; there is also a large number of Executive Power. The objective was to and its inhabitants that created an urge, vehicles, especially motorcycles, bicycles express the recognition by the public so many residents started to develop their and vans competing space in the streets authority that the region was urbanized, own forms of organization, dissonant, in with many people, of all ages, especially already offering public equipment and many aspects, from the spaces regulated children, adolescents and women – per- services like any other neighborhood in by the State in the formal territories of manently present on the streets, at all the city – this step represented the for- the city. This picture we catch from what times and days, particularly more at the mal inclusion of Maré as a neighborhood happened in Maré leads us to what Lima evenings and weekends. in Rio, no longer a place outside urbaniza- Barreto already denounced, at the begin- The high level of human circulation in the tion. Nevertheless, as this formalization ning of the 20th century, when the favelas streets is not associated by what one might was vertically settled, from the top to the were emerging in Rio de Janeiro: “it is all see at first sight: usually a house would bottom, it created a discomfort for a sig- over this intricate labyrinth of streets and hold a number of residents far superior to nificant part of the residents of Maré. The bibocas that live a vast part of the city’s its capacity, becoming uninhabitable. In point is that people did not perceive in population, to whom the government fact, the average density of inhabitants per their daily lives such changes that might closes its eyes, while collecting atrocious household in Maré is close to the city aver- justify the classification of their territory taxes from and employing them in use- age. Factors such as the poor quality and as a neighborhood in the city. less and sumptuous works elsewhere in small size of the rooms justify, in physical In 2000, the last set of housing complex Rio de Janeiro”(1996, p. 59). terms, people’s preference for the streets. was built: Salsa and Merengue. As usual, It’s also important to stress that despite Other social factors also influence the in- populations that did not reside in the facing such a strong socio-territorial tense circulation of people on the streets:

138 longo prazos, essas pessoas fossem responsáveis pela permitiu que todos os logradouros locais fossem elaboração de um projeto estruturante para a região. identificados e reconhecidos, com o respectivo CEP; Os projetos, portanto, como o pré-vestibular comuni- o Censo de Empreendimentos Comerciais, que mos- tário, não teriam um fim em si mesmos, mas seriam, trou a força produtiva local, com seus quase 4 mil contudo, fundamentais para a alargamento das pos- empreendimentos econômicos; e, por fim, o Censo sibilidades da população da Maré. Populacional, que produziu um rico conjunto de da- Nesse sentido é que se chegou aos cinco eixos de dos sobre a população local. Com ele, as condições trabalho priorizados pela Redes da Maré, os quais de produção de políticas públicas passam a ter uma sintetizam a nossa crença de que, se trabalharmos base técnica muito melhor. e persistirmos, ao longo do tempo, nesse caminho, O projeto do Censo Maré sintetiza, de maneira sin- estaremos atingindo nosso propósito maior de con- gular, o trabalho que a Redes da Maré intenta rea- tribuir para a melhoria da qualidade de vida da po- lizar no conjunto de favelas. As ideias de produção pulação que reside no conjunto de 16 favelas que de conhecimento, de efetivação de ações e da busca formam a Maré. Os eixos de atuação são: educação, pelo comprometimento do Estado em garantir di- arte e cultura, memórias e identidades, segurança reitos básicos à população são fundamentais para pública e desenvolvimento territorial. Essas áreas que se superem as desigualdades de acesso a direi- agregam, atualmente, 21 inciativas/projetos, que tos básicos na cidade. Entendemos que exigir que as têm em comum a perspectiva de produzirem resul- favelas da Maré entrem no mapa da cidade, que as tados que tragam mudanças estruturais na vida da suas quase 1.000 ruas tenham nomes e CEP, sendo população local. reconhecidas formalmente, como os logradouros de O percurso metodológico que estabelecemos para outras partes da cidade, é algo crucial para diminuir todo o trabalho da Redes da Maré vem do exercício fisiologismos e clientelismos que ainda fazem parte prático desses anos de experimentações e passa pela das relações estabelecidas pelos governos e políti- produção de conhecimento sobre as diferentes reali- cos de maneira geral. dades das favelas da Maré, pela elaboração de ações Além de múltiplas atividades no campo educacio- e pela sistematização dessas ações, com a finalidade nal, de gênero, de raça, de arte e da cultura, a Redes da de fazer advocacy, que basicamente envolve a reivin- Maré coloca segurança pública como um direito fun- dicação de direitos, com o objetivo de influenciar a damental a ser construído. Desse modo, desenvolve formulação e a implementação de políticas públicas iniciativas no campo da pesquisa, do monitoramento que atendam às necessidades da população e, de fato, das situações de violência e da mobilização comuni- direitos sejam efetivados. tária, que fazem com que os moradores e as mora- Pontuaremos aqui algumas das iniciativas rea- doras adquiram maior consciência de seus direitos lizadas a partir dos eixos de trabalho, como, por nesse campo, bem como que as forças de segurança exemplo, no campo do desenvolvimento territorial, tenham um respeito maior à população diante do o projeto chamado Censo Maré. Essa iniciativa, rea- temor de que as organizações denunciem eventuais lizada em parceria com outra instituição da socie- práticas de violação de direitos. dade civil, o Observatório de Favelas, teve início com Acima de tudo, a Redes da Maré trabalha para a a elaboração da cartografia da região, feita por mo- democratização das linguagens artísticas como um radores e técnicos da área, desdobrando-se em três elemento fundamental para o desenvolvimento lo- importantes produtos: o Guia de Ruas da Maré, que cal, para a ressignificação simbólica da Maré e para

139 the constant and high rate of unemploy- It is from this perspective that I present, knowledge about the different realities ment, especially among the young; a in the following item, the work of the Maré inside Maré, as well as from the elabora- great number of people outside school; Development Network Association – Redes tion of actions and the consequent sys- the small circulation of residents in other da Maré, as it is commonly called –, the in- tematization of these actions created, for spaces of the city and the concentration stitution of which I am founder, as a sin- guaranteeing advocacy – which basically of their leisure activities and consump- gular global action project that has been involves the claim for rights with the aim tion in the favela itself; and also the prac- provoking a strong impact on local reality. of influencing the formulation and im- tice of many types of collective games plementation of public policies able to among children, for example. Redes da Maré meet the needs of the population and the This intense presence of people on the The process began with the creation of a effective enforcement of rights. streets is the element that usually im- community course oriented for prepar- So now we will list some of the initia- pacts the most those who visit a favela ing students for the university entrance tives carried out from the work axes, such like the Maré for the first time: at night, exam, “vestibular”, which in the last 21 as, for example, in the field of territorial while the streets of middle-class neigh- years has already contributed to the en- development, there was the project called borhoods are always empty, with their rollment of more than 1.600 students Maré Census. This initiative, created in residents locked in their houses and apart- in public universities and in PUC-Rio. partnership with a different institution ments full of fences, the favela keeps its Graduated, many of them started to work of civil society, Observatório das Favel- trade open, full of pulsating lives. with different types of community ac- as (Slum Observatory), started with the According to the Pereira Passos Institute, tions. The original assumption was the elaboration of a cartography of the region what makes the Maré favela singular, in search for investments in the potential of made by residents and technicians of the this context, inside a framework with more residents of Maré, so that, in the medium area. It resulted in three important prod- than 1.000 favelas in Rio de Janeiro, is the and long terms, the people involved could ucts: the Guide of Streets of Maré, which strong presence of the civil society, which be responsible for the elaboration of a allowed all local sites to be recognized have been developing since the 1970s a structuring project in the region. These having their own zip code; the Census of solid struggle for the fundamental rights projects, as the course for the university Commercial Ventures, which highlighted of its residents. This process was initiated entrance exam, would not have an inter- the local productive force with its almost by residents’ associations, that is, people nal goal, but would be essential for the 4.000 economic ventures; and, finally, the who organized themselves to raise pres- expansion of the population in Maré. Population Census, which produced a rich sure against the successive governments In this sense, we’ve reached the five set of data regarding the local population. to ensure the provision of urban services priority axes maintained in the work of This document enabled conditions of pro- and equipment in the local territory. Redes da Maré. Those axes synthesize our duction that gave a much better technical From the 1990s onwards, other forms belief that if we work and persist over foundation to the public policies. of organization emerged as outcomes time, we will achieve our greater purpose The Maré Census project synthesizes in from the insertion of some residents into of contributing to the improvement of the a unique manner the work that the Redes the dynamics of community movements, quality of life of the population living in da Maré is trying to accomplish in the fundamental for guaranteeing basic the set of 16 favelas that constitute Maré. favelas. The ideas of producing knowl- rights such as access to the construction The areas of practice are education, art edge, getting actions implemented and of potable water networks, sewage, drain- and culture, memory and identities, pub- searching for the commitment of the age of giant ditches, elementary schools, lic security and territorial development. State to guarantee basic rights to the pop- electric power network, among others. These areas currently unite 21 initiatives/ ulation are essential for overcoming the Some institutions emerge and consol- projects, which have in common the inequalities in the access to basic rights idate, therefore, as the result of initial prospect of producing results that might in the city. We are certain that demand- experiments around the idea of strength- consolidate structural changes in the ing the insertion of the favelas of Maré ening the mobilization and the local po- lives of local people. in the city map and attributing names tential of Maré residents. Of course, other The methodological route we estab- and zip codes for its almost 1.000 streets – institutions also disintegrated or were lished as a ground for all the works of so they can be identified and formally redone from the experience and desire to Redes da Maré derives from the practical recognized just like streets from other deepen the radicalization of a structuring exercise of the last years of experimen- parts of the city – are crucial actions to di- project of the Maré region. tation and involves the production of minish the patronages that still compose

140 Suzana Queiroga Mapamaré [Maré map], 2010 Nanquim sobre papel recortado [India ink on papercut], 260 × 360 cm Foto [Photo] Gabi Carrera

Mapamaré is a work that was made from a series of Mapamaré é uma obra que foi realizada a partir de uma série meetings and workshops that I gave in the Redes Project, de encontros e oficinas que ministrei no Projeto Redes, com with children from the Nova Holanda Slum, belonging to crianças da Comunidade Nova Holanda, pertencente ao Complexo the Complexo da Maré (2009). For two months I worked with da Maré (2009). Por dois meses trabalhei com eles sua cartografia them their affective cartography, daily perceptions about the afetiva, percepções cotidianas sobre o espaço geográfico e o geographical space and the children’s view of their community. olhar das crianças em relação a sua comunidade. Ao final do At the end of the workshop cycle these children went to my ciclo de oficinas estas crianças estiveram em meu ateliê e foram studio and were invited to paint with nankin on a large kraft convidadas a pintar com nankin sobre um grande papel kraft no paper on the floor. Sitting on the paper and freely grouped, chão. Sentados sobre o papel e agrupados livremente trabalharam they worked with the striking elements of their cognitive com os elementos marcantes do seu mapa cognitivo. Alguns map. Some elements are repeated in the map, as they were elementos se repetem no mapa, pois foram abordados por todos, approached by everyone, such as the soccer field, the school, como o campo de futebol, a escola, a igreja e o valão. Ao final do the church and the Big Ditch. At the end, they themselves were desenho eles mesmos se encarregaram de criar conexões entre responsible for creating connections between the nuclei by os núcleos tornando um só desenho pela inserção de avenidas making one single drawing inserting avenues and strategic e cruzamentos estratégicos. Meu trabalho posterior à visita intersections. My job after that visit was to cut out the foi o de recortar as áreas não pintadas, reforçar a pintura preta unpainted areas, reinforce the black paint, and create some e criar alguma conexão entre as partes que estavam muito connection between the parts that were too loose and fragile, soltas e frágeis, dando a estas linhas um pouco mais de giving these lines thickness when needed. (Suzana Queiroga). espessura, quando necessário. (Suzana Queiroga).

141 the relations established by governments hostility, fear and in the customization of and politicians in general. relations that always start with the same, In addition to multiple activities in the the equal; it’s necessary to finally break field of education, gender, race, art and with the insistence on representing the culture, the Redes da Maré project priori- different monstrously, ignoring their hu- tizes public safety as a fundamental right mane dimension. to achieve. So it develops initiatives in the Spaces such as the Redes da Maré field of research, monitoring of situations demonstrate that it is possible to build a of violence and community mobilization, Pedagogy of Coexistence, that this abili- which make both male and female resi- ty of coexisting is a permanent learning dents more aware of their rights in these and that it occurs from a perspective of fields, also ensuring that security author- full mobility, uniting the physical, edu- ities hold greater respect towards the cational, cultural, economic and, partic- population when it comes to the fear that ularly, the symbolic dimensions – in this the organizations denounce eventual case, the act of residents of Maré recog- practices of violation of rights. nize themselves as beings belonging to Above all, Redes da Maré works on be- the city, who have the right to live freely half of the democratization of artistic in their different spaces and equipment. languages as a fundamental element For guaranteeing this complete mobility, for local development, for the symbolic the civil society organizations, the public re-signification of Maré and on behalf of institutions, and each one of us must feel the expansion of the subjective and ob- responsible for this construction. This is jective repertoire of the population, par- precisely our work in Maré, that is, break- ticularly children and young people. Thus, ing with the usual views and narratives we have strong ongoing actions in the that put populations living in favelas char- territory associated to cultural activities. acterized as second-class citizens. We use For doing so, we obtained two sheds that our energy and intelligence to show that became important cultural centers, not we are responsible for converting that pic- only of Maré, but in the entire city. For ture and creating a world with fewer hier- dance, it is worth mentioning the exist- archies and invisibilities; therefore, with ing partnership between Redes da Maré more social justice. and Companhia Lia Rodrigues. With in- ternational fame and recognition, Lia Ro- Final considerations drigues has built, for 12 years, her artistic I affirm, at the end of this text/manifesto, work, nourished and stimulated by the that living in the city of Rio de Janeiro of- possibility of exchange, sharing and liv- fers us the possibility of constructing rich ing with different local residents. With and plural forms of meaning lives, cul- this, according to her speech, her work be- ture, freedom and affirmation of the con- came more intense, creative, humane and dition of subjects. For this, the experience engaged in the construction of a more of Maré, as well as of many other favelas democratic society. in Rio de Janeiro, can contribute to build The example of this partnership shows a new city. So, before we think about a that best way for the city to overcome the favela as just one of the problems and situation of political, financial and, above challenges facing the city, we must think all, ethical crisis is based on the recogni- of it as part of the solution. Through our Anônimo [Anonymous] tion of the possible fraternal and daily inventive practices, constructions and Caixa de sapateiro [Shoeshine box], 2014 Marcenaria em madeira e ferro [Carpentry meeting among different people and ex- achievements, we are able to think and in wood and iron], 19 × 18 × 15,5 cm isting differences. For this, we must break live the new, the revolutionary, the beau- Coleção [Collection] Museu de Arte do Rio –MAR the representation of a city centered on tiful and the intense. Fundo Paulo Herkenhoff

142 a ampliação do repertório subjetivo e objetivo da po- pulação, em particular de crianças e jovens. Assim, temos uma forte atuação no território a partir de ati- vidades culturais. Para isso, adquirimos dois galpões, que se tornaram um importante polo cultural não só da Maré, mas da cidade. No caso da dança, vale res- saltar a parceria da Redes da Maré com a Companhia Lia Rodrigues. De fama e reconhecimento internacio- nais, Lia Rodrigues tem construído, por 12 anos, sua obra artística, alimentada e estimulada pela possibi- lidade de troca, de partilhas e de vivências com dife- rentes moradores e moradoras locais. Com isso, sua obra se tornou, de acordo com sua fala, mais intensa, mais criativa, mais humana e mais engajada na cons- trução de uma sociedade mais democrática. O exemplo da parceria entre a Redes da Maré e a Companhia Lia Rodrigues demonstra que a única forma de o Rio de Janeiro sair da situação de crise – sentir responsável por essa construção. É exatamente política, financeira e, sobretudo, ética – em que se isso que temos buscado fazer na Maré, ou seja, rom- encontra é a partir do reconhecimento do encontro per com as usuais visões e narrativas que colocam as fraterno e cotidiano dos diferentes e das diferenças. populações de favelas no lugar de cidadãos de segun- Para isso, deve-se romper com uma representação de da classe. Usamos nossa energia e inteligência para cidade centrada na hostilidade, no medo, na particu- mostrar que somos responsáveis por mover esse qua- larização das relações com apenas o mesmo, o igual; dro e criar um mundo com menos hierarquizações e deve-se romper, enfim, com a insistência na mons- invisibilidades; portanto, com mais justiça social. trualização do diferente, retirando dele sua dimen- são humana. Considerações finais Espaços como a Redes da Maré demonstram que Afirmo, ao término deste texto/manifesto, que viver é possível construir uma Pedagogia da Convivência, na cidade do Rio de Janeiro nos oferece a possibilidade que essa capacidade de convivência é um aprendi- de construir formas ricas e plurais de significação da zado permanente e que ela ocorre a partir de uma vida, da cultura, da liberdade e da afirmação da condi- perspectiva de mobilidade plena, que reúne as di- ção de sujeitos. Para isso, a experiência da Maré, assim mensões física, educacional, cultural, econômica e, como de de tantos outros territórios favelados no Rio especialmente, a simbólica – no caso, o ato de mora- de Janeiro, pode contribuir para construir uma nova dores e moradoras da Maré se reconhecerem como se- cidade. Logo, antes de pensarmos na favela apenas res da cidade, que têm o direito de viver com plenitu- como mais um dos problemas e desafios colocados de em seus diferentes espaços e equipamentos. Para diante da cidade, devemos pensá-la como parte da que essa mobilidade plena seja garantida a todos e solução. Por meio de nossas práticas, realizações e todas, cada um de nós, bem como as organizações construções inventivas, é possível se pensar e viver o da sociedade civil e as instituições públicas, deve se novo, o revolucionário, o belo e o intenso.

143 Observatório de Favelas e Galpão Bela Maré – reconhecendo e afirmando as potências dos territórios populares

Isabela Souza da Silva

Observatório de Favelas and Galpão Bela Maré – acknowledging and asserting the competencies of popular territories

Created in 2001, the Observatório de Fave- las do Rio de Janeiro (Slum Observatory of Rio de Janeiro) is committed to produc- ing knowledge, developing intervention methodologies and forming transforma- tive individuals able to take action in the process of overcoming inequalities in the Brazilian society, having the slums and peripheries as its main references. Right in its foundation, the Observatorio de Favelas has developed projects aiming to provide education to form researches in the communities where the organization was stepping in and to expand the qual- ified knowledge produced regarding the slums. The permanent goal is contributing to breaking the dominant vision that asso- ciates these areas exclusively to violence, criminality and poverty. The Observatório das Favelas headquarters is located at the Nova Holanda slum, one of the 16 that constitute the Maré Complex (Complexo da Maré) – the biggest slum complex in Brazil, with almost 140 thousand inhabi- tants. This geographical location is crucial to holding works and debates since both

144 Livia Flores e Ronald Duarte Desilha, 2016 < Mapa com trajeto da navegação, em ação realizada por Livia Flores e Ronald Duarte a convite de Alessandra Vannucci para o Simpósio Utopias, Galpão Bela Maré [Map with navigation route taken by Livia Flores and Ronald Duarte invited by Alessandra Vannucci po Utopias symposium]

> Ancoradouro na Maré sob viaduto de acesso à ilha do Fundão. Ponto de desembarque de navegação Desilha [Anchorage at Maré under under access viaduct to Fundão’island. Point of disembarkation of Desilha]

O Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, criado acadêmico ressaltando os saberes e a potência das fa- em 2001, tem por missão a produção de conhecimento, velas. Eles conduziram a instituição para atividades o desenvolvimento de metodologias de intervenção e de organização de grupos de pesquisadores e de es- a formação de sujeitos de transformação que contri- tudos de vivências de territórios populares. Com base buam para a superação das desigualdades da socieda- em dados e informações, foram constituídos proces- de brasileira, sendo as favelas e as periferias as suas sos de mediação para influenciar políticas públicas principais referências. Já em seu início, o Observatorio no Rio de Janeiro e em outras cidades, em parceria de Favelas desenvolveu projetos visando formar pes- com a sociedade civil organizada, o setor público, a quisadores nas comunidades onde atuava e ampliar academia e instituições privadas. O programa Cone- o conhecimento qualificado sobre as favelas, sempre xões de Saberes, surgido como Rede Pesquisadores no intuito de contribuir para ruptura com a visao Universitários de Origem Popular (2002), é exemplar. dominante que as associa unicamente a violencia, a Ele se estendeu até Niterói e São Gonçalo pela Univer- criminalidade e a pobreza. A sede do Observatório fica sidade Federal Fluminense (UFF) e pela Universidade na favela Nova Holanda, uma das 16 que compõem o do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (2003). Sob o nome Complexo de Favelas da Maré, o maior do Brasil, onde de Conexões de Saberes, o Ministério da Educação vivem cerca de 140 mil pessoas. Essa localização geo- (MEC) incorporou o projeto, expandindo-o em parce- gráfica é central para os trabalhos e debates, pois é a ria com o Observatório de Favelas (2004). Em 2005, 14 partir da periferia que se dá a intervenção nas ques- universidades federais foram integradas ao progra- tões estruturantes para ação política de incidência ma; em 2006, 31 universidades federais em todas as pública e proposições de agendas de direito à cidade. unidades da Federação. O Prêmio Tecnologia Social Os fundadores do Observatório compõem a primei- da Fundação Banco do Brasil, na área da educação, ra geração de universitários que alcançou sucesso consagrou o Observatório em 2005.

145 the intervention in the structuring mat- territory, communication, education, right population’s quality of life, especially in ters associated with the public political to life and public safety. The activities are Rio de Janeiro slums. The ultimate goal actions and the propositions of agendas part of propositions and actions aiming to is conceiving a city in which all citizens related to the right to the city are stem- build experiences that overcome inequal- live freely, where their possibilities and ming from the periphery. ities and strengthen democracy to assert subjective intentions are achievable under The founders of the Observatório das slums and peripheries as territories full equality and human dignity. Therefore, Favelas constitute the first generation of of capacities and rights through the five besides proposing agendas holding the university students in their families and following areas: qualified production and the equitable dis- have achieved academic success high- tribution of urban equipment and goods, lighting slums’ knowledge and competen- Education there is also an attempt to advocate urban cies. They have oriented the institution The Observatório das Favelas values ac​​ - policies: social and symbolic investments towards organizing groups of researchers tions able to recognize and cherish pop- in engagement spaces for the affirmative and studies on the experiences of popu- ular individuals and territories. Public recognition of differences (racial, ethnic, lar territories. Based on data and infor- schools, for example, are considered a gender or sexuality), for the reaching the mation, some mediation processes were place of formation and sociability. Thus, plural coexistence and democratic partic- established to influence public policies initiative are sought in the field of educa- ipation, that is, a return to the polis as a in Rio de Janeiro and other cities in part- tion, which is one of the main challenges sense of living the city as an assertion of nership with organized civil society, the faced by this population to overcome it's citizen belonging. public sector, the academia, and private historically subordinated social condition, institutions. An outstanding example through the full exercise of an active and Communication is the Knowledge Connections Program critical citizenship for qualified insertion The degree of radicalization of democra- (Programa Conexões de Saberes), originally in the labor market. cy is given by the plurality of broadening called the Network of University Research- The aim is acting under the certainty that worldviews. In contemporaneity, beyond ers from Popular Areas (Rede de Pesquisa- the creation of educative spaces for young its individual manifestations, the freedom dores Universitários de Espaços Populares) people from the urban periphery helps to of speech relies on a broad set of rights, (2002). It is a program that extended to overcome the perverse logic of low-per- such as access to the communication, for Niterói and São Gonçalo through the Flu- forming public education and the universi- example. For this reason, presently the minense Federal University (UFF) and the ty structure that is extremely rigid, which right to communication presupposes the State University of Rio de Janeiro (UERJ) is not equivalent to the reality and themes guarantee of conditions for everyone to (2003). The project was incorporated by experienced by these people. In this sense, have their ideas conveyed under visibil- the Ministry of Education (MEC) in part- Observatório das Favelas consolidates an ity regimes strongly impacted by media nership with the Observatório das Fave- effective journey towards the democrati- actions. The representation of slums and las (2004). In 2005, 14 federal universities zation of information and knowledge as their inhabitants is often marked by the joined the program and in 2006, 31 fed- fundamental constitutional rights. historical accretion of symbolic violence, eral universities in all units of the Feder- stigmatization, invisibility, exotification ation. The organization was also granted Urban Policies and other similar narratives. To overcome with the Social Technology Award of the The meaning of our existence, in addition these conservative imaginaries, the Ob- Banco do Brasil Foundation in 2005. Their to the proposition on incidence on the servatório das Favelas creates and artic- agenda includes the defense of urban public authorities to assume the due com- ulates conditions, forms and means for integration, the demonstration of slums’ mitment to the interests of the majority holding communications able to cope potential, as well as the struggle to end of the population, is to produce concepts, with the multiplicity of political demands, the violence and historical discrimination methodologies, and social technologies cultural manifestations and subjective experienced by the population in slums. that become references for the elaboration production processes present in popular There is also an affirmative action plan for of policies that, with scale, may impact defending the right to the city, substan- social institutions. The Urban Policies De- tiating the resignification of the role and partment of the Observatório das Fave- Thiago Ortiz las is characterized by the production of place of slums in the definition of public Favelidades artísticas [Artistic ‘favelities’], 2018 policies. At the moment, different pro- diagnoses, analyzes, and evaluations re- Faixa de rua para a exposição Bela Verão, grams and projects are in place to develop garding public urbanization actions that no Galpão Bela Maré [Street band for themes related to urban policies, art and contribute to the improvement of the Bela Verão exhibition]

146 A pauta do Observatório de Favelas inclui a defesa da integração urbana, a demonstração do potencial das favelas, a luta pelo fim da violência e da discrimi- nação histórica vivida pelas populações destes locais. Defende-se um plano de ações afirmativas de direi- tos à cidade, fundamentado na ressignificação do pa- pel e do lugar das favelas na definição das políticas públicas. Atualmente, são desenvolvidos programas e projetos nos temas de políticas urbanas, arte e ter- ritório, comunicação, educação, direito à vida e se- gurança pública. São proposições e ações que visam construir experiências que superem as desigualda- des e fortaleçam a democracia a partir da afirmação das favelas e periferias como territórios de potências e direitos através de cinco áreas: da maioria da população, é produzir conceitos, me- todologias e tecnologias sociais que se tornem refe- Educação rências para elaboração de políticas que, com esca- O Observatório de Favelas valoriza os sujeitos e ter- la, possam impactar as instituições sociais. A área ritórios. A escola pública, por exemplo, é vista como de Políticas Urbanas do Observatório se caracteriza lugar formativo e de sociabilidade. Buscam-se, então, pela produção de diagnósticos, análises e avaliações iniciativas no campo da educação, que é um dos prin- de ações públicas de urbanização que contribuam cipais desafios enfrentados por esta população para para a melhoria da qualidade de vida da população, a superação de sua condição social historicamente sobretudo das favelas. A grande meta é construir subalternizada, por meio do exercício pleno de uma uma cidade em que todos os cidadãos vivam com li- cidadania ativa e crítica para a inserção qualificada berdade, onde suas possibilidades e intenções subje- no mercado de trabalho. tivas sejam possíveis sob a igualdade e a dignidade Atua-se sob a certeza de que a criação de espaços de humana. Portanto, além de propor agendas de pro- formação para os jovens da periferia urbana auxilia dução qualificada e distribuição equitativa de bens e na superação da lógica perversa da educação públi- equipamentos urbanos, preconizam-se políticas de ca de baixo aproveitamento e da estrutura univer- cidade: investimentos sociais e simbólicos em espa- sitária que se coloca de forma extremamente rígida cialidades de encontros para reconhecimento afir- e impermeável à realidade e a temáticas daqueles mativo de diferenças (raciais, étnicas, de gênero e de sujeitos. Neste sentido, o Observatório consolida um sexualidade), para criação de convivências plurais e caminho efetivo para democratização da informação para participação democrática, ou seja, um retorno à e do conhecimento como direitos constitucionais polis como sentido de viver a cidade como afirmação fundamentais. de pertenças cidadãs.

Políticas urbanas Comunicação O sentido de nossa existência, além da incidência O grau de radicalização de uma democracia é dado propositiva sobre os poderes públicos para que as- pela pluralidade de visões de mundo em circulação. sumam o devido compromisso com os interesses Na contemporaneidade, a liberdade de expressão,

147 territories. The complexity and richness violence uniting civil society and the State engage new actors and the multiple lan- of these urban territories of the city are and such proposals hold the potential of guages ​​in order to highlight local compe- often highlighted and presented in a sin- becoming public policies. It is also rele- tencies and democratize access to the arts. gle dimension in other historical contexts. vant to highlight an action that has been developed since 2008, the Lethal Violence Another significant project held by Obser- Art and Territory Reduction Program (Programa de Redução vatório das Favelas in the field of Art and The Observatório das Favelas believes in da Violência Letal) (PRVL), held in partner- territory is Cultural Soils (Solos Culturais); the political centrality of culture for the ship with the National Department for the it’s a research that elaborated, (re)framed construction of a transformative project Promotion of Children and Adolescents’ and spread, together with with 100 young of the city. Thus, so it works to disprove Rights (Secretaria Nacional de Promoção people from Rio, a recognition beyond stereotyped representations of the favelas dos Direitos da Criança e do Adolescen- the hegemonic meaning of culture. In and the urban periphery from the power te), the United Nations Children’s Fund partnership with the Rio de Janeiro State of its subjects and territories. The strategy (UNICEF) and the Violence Analysis Labo- Secretariat of Culture and Petrobras, the is to impact art and culture public pol- ratory of UERJ. Such agents coordinate to- project covered five territories – City of icies and to highlight the role of popular gether the development of strategies seek- God (Cidade de Deus), “Alemão” Complex territories as matrixes of creative produc- ing the reversal of the reality of violent (Complexo do Alemão), Penha Complex tion in many artistic languages. The Ob- deaths that affect the adolescence and (Complexo da Penha), Manguinhos and servatório das Favelas seeks to entrust youth in the country. From 2008 to 2015, Rocinha – holding actions highly focused methodologies of social mobilization and PRVL operated in 16 metropolitan regions on research programs, social production, knowledge production able to inscribe with high youth murder rates. In 2016, the aesthetic interventions in these territories the practices and cultural manifestations Open Society Foundation started support- and throughout the city and studies con- of slums in the concept of culture held by ing Observatório das Favelas projects an- cerning the practices and cultural habits policy makers, in a way that these practic- chored in a Latin American scale, always in of young people from these slums. Cultur- es contribute to the visibility of the plural dialogue with civil society organizations. al Soils represented a concrete action in richness of artistic production in slums the attempt to establish cultural policies and urban peripheries. Communication and Art and Territory from the perspective of valuing the diver- The Observatório das Favelas operates sity of cultures in each territory, contribut- Right to Life and Public Safety in the fields of Communication and Art ing to their visibility and the development The police forms of operation, the pres- and Territory since 2003, when it created of new potentials. Some concepts and ence of armed criminal groups and the the School of Popular Photographers and, methodologies investigated in Cultural high rates of lethality – especially within in 2005, the Popular School of Critical Soils contributed to the formulation and teenagers and young people – demand Communication. The mission expressed execution of projects and actions in other the conception of a new model of public is forming highly skilled professionals in regions, such as the Leopoldina and the security rooted in the valuation of life and photography, video and journalistic pro- Zona Oeste: the Music Stations at Leopol- the recognition of all citizens as subjects duction so they can disseminate original dina (“Estações Musicais da Leopoldina”), of rights. Thus, the work that the Obser- perspectives about the slums and their the “Oeste Carioca” and the Periphery Cul- vatório das Favelas has been building in residents. Some affirmative experiences tures (“Culturas da Periferia”). the field of human rights contributes to emerged from these cultural practices as Taking on the co-management of the the construction of new interlocutory po- a movement of creation, proposition and Arena Carioca Roberto de Oliveira (Di- sitions in order to assert public security visibility of agendas oriented to over- cró), a municipal equipment in the heart as a right. So, policies and methodologies coming inequalities and radicalizing of of Park in Penha, was the are elaborated aiming the reduction of democracy. The positive artistic asserting great bet towards the construction of lethal violence, especially among young of the popular territories walks alongside a cultural public policy born inside the people in popular territories. The goal is with the expansion of more democratic popular territory and its urgencies, un- to maintain a security policy under the meanings about the city and its citizens der the double movement of marking fundamental principle of valuation of life. and multiplies the communication forms the territory as grounded on the right The Observatório das Favelas has been transporting such meanings. To this end, related to artistic languages ​​and aes- developing studies and policy proposals communication tools such as journalism, thetic expressions that are historically towards this intention aiming to the for- advertising and audiovisual are incorpo- denied to popular individuals and terri- mulation of strategies to confront urban rated to amplify existing narratives and tories, legitimizing at the same time the

148 para além de suas manifestações individuais, depen- novo modelo de segurança pública, pautado na va- de de um amplo conjunto de direitos, como o acesso lorização da vida e no reconhecimento de todos os aos meios de comunicação. Portanto, o direito à co- cidadãos como sujeitos de direitos. Assim, o traba- municação pressupõe hoje a garantia de condições lho do Observatório no campo dos direitos humanos para que todos possam ter suas ideias expressas contribui para a construção de novas interlocuções sob regimes de visibilidade fortemente impactados que afirmem a segurança pública como direito. São pela ação da mídia. A representação das favelas e de propostas políticas e metodologias para a redução seus habitantes é marcada pelo acúmulo histórico da violência letal, sobretudo contra os jovens de ter- de processos de violência simbólica, inclusive sua ritórios populares. O objetivo é uma política de se- estigmatização, invisibilização, exotização ou suas gurança sob o princípio fundamental à valorização combinações. Para superar tal imaginário conserva- da vida. O Observatório tem desenvolvido estudos dor, o Observatório de Favelas cria e articula condi- e proposições de políticas com esse foco, visando ções, formas e meios para uma comunicação que dê à formulação de estratégias de enfrentamento da conta da multiplicidade de demandas políticas, mani- violência urbana que reúnam a sociedade civil e o festações culturais e processos de produção subjetiva Estado e tenham potencial para se converter em po- presentes nos territórios populares. A complexidade e líticas públicas. Desde 2008, uma ação relevante é o a riqueza destes territórios da cidade são destacadas e Programa de Redução da Violência Letal (PRVL), de- estão unidimensionalmente apresentadas em outros senvolvido com a Secretaria Nacional de Promoção contextos históricos. dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o La- Arte e território boratório de Análise da Violência da UERJ, que se O Observatório de Favelas acredita na centralidade articularam para desenvolver estratégias que resul- política da cultura para a construção de um projeto tem na reversão das mortes violentas que afetam a transformador da cidade, por isso trabalha para des- adolescência e a juventude no país. De 2008 a 2015, o mentir representações estereotipadas das favelas e da PRVL atuou em 16 regiões metropolitanas com altos periferia urbana a partir da potência de seus sujeitos índices de homicídios de jovens. A partir de 2016, a e territórios. A estratégia é impactar as políticas pú- Open Society Foundation passou a apoiar projetos blicas de arte e cultura e evidenciar o papel dos terri- do Observatório ancorados na escala da América La- tórios populares como matrizes da produção criativa tina, sempre em diálogo com organizações da socie- nas várias linguagens. O Observatório busca legar me- dade civil. todologias de mobilização social e produção de conhe- cimentos que inscrevam as práticas e manifestações Comunicação e arte e território culturais das favelas no conceito de cultura dos formu- O Observatório de Favelas opera no campo de comu- ladores de políticas e que contribuam para visibilida- nicação e arte e território desde 2003, quando criou de da riqueza plural da produção artística em favelas e a Escola de Fotógrafos Populares e, em 2005, a Escola periferias urbanas. Popular de Comunicação Crítica. A missão aqui é for- mar profissionais de alta qualificação técnica em fo- Direito à vida e segurança pública tografia, vídeo e produção jornalística para difundir Os modos de atuação policial, a presença de grupos discursos originais sobre as favelas e os seus mora- criminosos armados e os altos índices de letalidade – dores. Já despontaram experiências afirmativas des- em especial de adolescentes e jovens – exigem um sas práticas culturais como movimento de criação,

149 that the latter are not part of the hege- monic legacy and are not in line with the market logic of the cultural industry. The central matter in Rio’s public agenda is overcoming the unequal spatial distri- bution of cultural equipment throughout the city, as well as the discretionary shar- ing of incentive resources towards cultural production. Any desire oriented to the con- struction of an effectively democratic city must be grounded on a radical political ap- proach able to assert the existing sociocul- tural differences. It is crucial to recognize the plurality of imaginaries and practices experienced in the city, discharging any hierarchical standards that drive relation- ships of cultural supremacy between indi- viduals, social collectives and areas in Rio. More than a normative concept em- ployed to define distinctions between social practices or human beings, culture pertains to the concrete experiences of the subjects in the world and, more pragmat- ically, in the city. Inspired by Milton San- tos (“The Nature of Space” – A Natureza do Espaço), I share the belief that culture expresses the very history of human exis- tence in the city, representing a heritage and a constant learning process. However, we must not consider that the territory is settled in itself and has rigid and im- permeable borders. It must be perceived peripheral artistic and cultural produc- and experienced through porous borders, tions as artwork, since these are frequent- where the exchange relations of ideas, ly not considered “applicable” in cultural values ​​and objects take place in varying spaces in the city central areas. intensities. The territory, therefore, is the Actions of diagnosis, stimulation and communication of cultures. Thus, the cir- articulation of social, economic, artistic cularity of imaginaries, practices and cul- and cultural networks thus become cen- tural products are indispensable for the tral to a long-term socially integrated ur- enrichment of sociability and, above all, as ban development. The full social and eco- a project of a democratic city, since culture nomic development of the city of Rio de is the construction that allows human Janeiro will only be accomplished when beings to interrogate their daily lives and a cultural policy that incorporates the protrude themselves towards the future. diversity of social and economic life of Marcos Chaves popular and suburban areas is properly Galpão Bela Maré – a utopia Amarésimples [Love is simple], 2011 Intervenção urbana para a exposição Travessias, implemented. It will not be possible to in the field of the arts Avenida Brasil, passarela 19 [Urban intervention conceive full citizens as long as we live All in all, artistic experiences from slums at Brasil Avenue, crossway 19, for Travessias divided into places of cultural supremacy and peripheries are known by many insti- exhibition], Rio de Janeiro and subalternized, under the allegation tutions and different actors in the city, but

150 proposição e visibilidade de agendas de superação movimento de marcar o território como de direito, no de desigualdades e de radicalização da democracia. A que concerne às linguagens artísticas e às expressões afirmação artística positiva dos territórios populares estéticas que são historicamente negadas a sujeitos caminha em consonância com a ampliação dos signi- e territórios populares e, ao mesmo tempo, legitimar ficados mais democráticos sobre a cidade e seus cida- como arte as produções artísticas e culturais perifé- dãos e multiplicam as formas de comunicação destes ricas que, em geral, não são tidas como “cabíveis” em sentidos. Para tal, ferramentas de comunicação como espaços culturais de regiões centrais da cidade. jornalismo, publicidade e audiovisual se incorporam As ações de diagnóstico, estímulo e articulação para amplificar as narrativas e engajar novos atores de redes sociais, econômicas e artísticas e culturais, e várias linguagens com o objetivo de destacar as po- são centrais para o desenvolvimento urbano social- tências locais e democratizar o acesso às artes. mente integrado e de longa duração. O pleno desen- volvimento social e econômico do Rio só se efetivará Outro projeto significante do Observatório de Favelas quando for implementada uma política cultural que no campo de atuação da arte e do território são o So- incorpore a diversidade da vida social e econômica los Culturais. Um trabalho elaborou, (res)significou e dos espaços populares e suburbanos. Não será possí- difundiu, junto a 100 jovens do Rio, o reconhecimen- vel conceber cidadãos plenos enquanto vivermos di- to para além do sentido hegemônico da cultura. Em vididos em lugares de supremacia cultural e lugares parceria com a Secretaria de Estado de Cultura do Rio subalternizados, sob a alegação de que estes últimos de Janeiro e da Petrobrás, foram atingidos cinco ter- não compõem o legado hegemônico nem se coadu- ritórios – Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Com- nam com as lógicas de mercado da indústria cultural. plexo da Penha, Manguinhos e Rocinha – por meio A questão central da agenda pública carioca é supe- de ações cujos eixos eram a formação em pesquisa rar a desigual distribuição espacial de equipamentos e produção social, a realização de intervenções esté- culturais pela cidade e a repartição discricionária de ticas nesses territórios e na cidade e a realização de recursos de incentivo à produção cultural. Todo dese- estudos sobre práticas e hábitos culturais de jovens jo de construção de uma cidade efetivamente demo- dessas favelas. O Solos Culturais foi uma ação con- crática deverá ter como marco uma radical política creta na tentativa de estabelecer políticas culturais de afirmação das diferenças socioculturais. É indis- a partir da ótica da valorização da diversidade das pensável o reconhecimento da pluralidade de ima- culturas em cada território, contribuindo para a sua ginários e práticas vividas na cidade, destituindo de visibilidade e para o desenvolvimento de novas po- qualquer legitimidade padrões hierarquizantes que tencialidades. Conceitos e metodologias experimen- orientam relações de supremacia cultural entre indi- tados a partir do Solos Culturais contribuíram para víduos, coletivos sociais e áreas do Rio. a formulação e a execução de projetos e ações (Esta- Mais do que um conceito normativo empregado ções Musicais da Leopoldina, Oeste Carioca e Cultu- para definir distinções entre práticas socais ou entre ras de Periferia) em outras regiões, como a Zona da seres humanos, a cultura diz respeito às vivências Leopoldina e da Zona Oeste. concretas dos sujeitos no mundo e, de forma mais Assumir a cogestão da Arena Carioca Roberto de pragmática, na cidade. Inspirada em Milton Santos Oliveira (Dicró), equipamento municipal no coração (A natureza do espaço), compartilho a crença de que da Parque Ary Barroso na Penha, foi a aposta na cons- a cultura expressa a própria história da existência trução de uma política pública cultural que nasça do humana na cidade, sendo uma herança e um cons- território popular e de suas urgências, sob o duplo tante aprendizado. Todavia, não se considerar que o

151 recognized by very few. Such territories bounded by elitist conceptions of public, and their residents are still mostly empir- municipal and state policies in the field ically represented by ideas centered on the of the arts. This is well materialized in alleged lack of practices, knowledge and in the strong concentration of theaters, cin- the perception that precarious forms would emas and cultural spaces in the city center dominate the landscape. The central issue and in neighborhoods where inhabitants is that the above assumptions legitimize holding the greatest economic power live. and facilitate the reproduction of actions Given this historic preference, there are no and public policies that withhold the effec- large scale public investments in ​​culture tive development of these territories in the designated to the suburbs and slums of polis scenario. This occurs, historically, due Rio – especially to Leopoldina, Zona Norte to the action of a split State that develops and in the area of Zona Oeste. Metrópole transcultural – retrato das periferias distinct practices and strategies of action The Galpão Bela Maré (Bela Maré Art do Rio de Janeiro [Transcultural metropolis – according to the territory where it oper- Shed) was created in 2011 in the Maré Rio de Janeiro’s peripheries portraits], 2019 ates at each time. In this framework, the Complex of slums, in partnership with Vista da exposição no [Exhitibion view] residents of suburbs and peripheries are Produtora Automatica, in order to contrib- Galpão Bela Maré objectively harmed because State actions ute to the democratization and diffusion Foto [Photo] Marcia Farias

152 território esteja fechado em si e que apresente frontei- e difusão de todo tipo de expressão artística. O Bela ras rígidas e impermeáveis. Ele deve ser percebido e vi- Maré comprova ser possível descentralizar os equi- vido a partir de fronteiras porosas, onde as relações de pamentos culturais ou possibilidades de fruição es- troca de ideias, valores e objetos se realizam em inten- tética na cidade e reconhecer os moradores dos terri- sidades variadas. O território, portanto, é comunica- tórios populares como cidadãos com plenos direitos, ção de culturas. Assim, a circularidade de imaginários, afastando-os dos juízos que os estigmatizam ou cri- práticas e produtos culturais são indispensáveis para minalizam. O Bela Maré trabalha em sintonia com o enriquecimento de sociabilidade e, sobretudo, como o mundo contemporâneo, onde o campo artístico é projeto de cidade democrática, pois a cultura é a cons- instrumento de desenvolvimento econômico, social trução que permite os seres humanos interrogarem o e territorial, confirmando o papel da arte como cen- seu cotidiano e projetarem-se na direção do futuro. tral na ampliação das possibilidades existenciais de O Galpão Bela Maré funciona como o lugar da uto- múltiplos grupos sociais. Entre 2011 e 2017, a progra- pia no campo das artes. De modo geral, as experiên- mação do Bela Maré se consolidou por meio de cinco cias artísticas nas favelas e periferias são conhecidas edições da exposição Travessias. O principal objetivo por várias instituições e atores da cidade, mas reco- do Travessias – e do Centro Cultural que ele inaugu- nhecidas por poucos. Prevalece em relação a tais ter- rou – é proporcionar encontros entre pessoas de dife- ritórios e seus moradores a representação empírica rentes territórios da cidade e do país, mobilizando-as dominada por noções centradas na pretensa carên- através do potencial transformador que é próprio das cia das práticas, saberes e na percepção das formas artes. A escolha da Maré e da Avenida Brasil como precárias que dominariam a paisagem. A questão áreas-sede do espaço cultural que abriga a exposição central é que os pressupostos assinalados legitimam é estratégica, já que estes locais figuram em parte do e facilitam a reprodução de ações e políticas públicas imaginário social como aqueles do medo e do terror. que retêm o desenvolvimento efetivo desses territó- Realizar um evento de arte contemporânea na Maré é rios no cenário da polis. Isto ocorre, historicamente, criar possibilidades para a construção de referências devido à ação de um Estado partido, que desenvolve para as demais favelas, ao passo que se marca uma práticas e estratégias de ação distintas de acordo com favela e, portanto, todas como lugar possível para o território nos quais atuam. Nesse quadro, os mora- arte contemporânea brasileira da maior relevância. dores dos subúrbios e periferias são objetivamente O trabalho desenvolvido no Galpão Bela Maré está prejudicados porque as ações do Estado se fizeram centrado na construção de laços entre arte, política e referenciadas em concepções elitistas de políticas cidade. Em 2014, o Galpão Bela Maré passou a com- públicas, municipais e estaduais, no campo das artes. por a Rede Carioca de Pontos de Cultura, passando Ela se materializou na forte concentração de teatros, a realizar ações de articulação de coletivos locais e cinemas e espaços culturais no centro e em bairros intervenções culturais pelas favelas da Maré. Além nos quais vivem a população com maior poder eco- das exposições Travessias, foram realizados projetos, nômico. Diante dessa opção histórica, não há, nos su- como o BelaLab (plataforma de pesquisa artística em búrbios e favelas cariocas – sobretudo na regiões da formato híbrido, voltada para discussão do espaço Leopoldina, Norte e Oeste da cidade – investimentos urbano, da cultura digital e da arte contemporânea, públicos de porte no âmbito da cultura. a partir de projetos de arte multimídia), o festival O Galpão Bela Maré nasceu em 2011 no Complexo #amaréfunk (oficinas gratuitas de estímulo à produ- da Maré, em parceria com a Produtora Automática, ção, rodas de bate-papo abertas ao público e baile de com o objetivo de contribuir para a democratização encerramento, que criou um espaço transversal de

153 of all types of artistic expression. Bela created to stimulate production, chat activities to stimulate reading, meetings Maré proves that it is possible to decen- rooms open to the public and the closing with artists, poetry readings and parties). tralize the cultural equipment or ideals of party, which created a cross-sectional It is worth mentioning the two editions aesthetic enjoyment in the city, besides space for discussion about funk within of Bela Verão, an event held in partnership recognizing the residents of popular terri- the slum as a pillar of culture, resistance, with FUNARTE for young peripheral and tories as citizens with full rights, detach- movement and language), the NÓS – 10 LGBTQI+ artists that awarded 15 artists, ing them from the judgments that stigma- anos de Imagens do Povo (WE – 10 years of and also the exhibition Memórias dos Do- tize or criminalize them. Bela Maré works Images from the People) (a photographic mingos de Sol (Memories of Sunny Sun- in tune with the contemporary world, exhibition commemorating ten years of days) (a photographic, iconographic and where the artistic field is an instrument the People’s Pictures Program), the Popu- cartographic research, associated with of economic, social and territorial develop- lar Photography Festival (a meeting that the current photographic documentation) ment, confirming the central role of art in fostered a debate on the political role of that built an experience of reconstruction the enlargement of the existential possi- the image and the multiple developments and update of the memory and diversity bilities for multiple social groups. Between of photography in contemporary times), of cultural practices within the beaches of 2011 and 2017, the Bela Maré program was the exhibition of the movie Quase Samba, the Recôncavo Carioca (Guanabara Bay). consolidated through five editions of the workshops of the Maré Inventive Territo- The Metrópole Transcultural (Transcultur- Travessias (Passages) exhibition. The main ry Project (Projeto Território Inventivo da al Metropolis) exhibition, curated by Ron- objective of the exhibition and its inau- Maré), the action Nós da Maré (We from ald Duarte and supported by Sesi/Firjan gurated Cultural Center is providing en- Maré) (a project that promotes integrat- and the Maria and João Aleixo Institute, counters between people from different ed aesthetic interventions in the Maré brought together 14 metropolitan visual territories in the city and all over Brazil, territory through a collaborative network, artists and emerged from the Observatório mobilizing them through the transforma- making it possible to build and strength- das Favelas’s institutional desire of putting tive potential that art provides. en networks of cultural actors in the re- together a large exhibition able to conduct The choice of Maré slum and Brasil ave- gion), the “FLUPPENSA COM B NEGÃO” a debate about the not obvious, multiple nue (critical road artery that connects the event (part of the Flupp Pensa Program of and not always visible metropolitan Rio de peripheries) as hosting areas for the cultur- the UPPs International Literary Fair), the Janeiro to the arts field. From 2011 to May al space sheltering the exhibition is strate- Vou Fazer Arte project (a work focused on 2019, almost 50.000 people visited Galpão gic, as these areas populate part of the so- digital cultural and image production ar- Bela Maré, which, with its wide opera- cial imagination as places of fear and terror. ticulated with aesthetic experimentation tion, now represents one of the possible Holding a contemporary art event in Maré for adolescents living in Maré) and the in- answers to the urgency for overcoming is creating possibilities for the construction ternational seminar “After all, what is the territorial distinctions that still define sub- of baselines for other slums; so if a slum is periphery and what is its place in the city?”. alternity cuts between what is a “superior marked by the art scene, all of them can In 2017, Galpão received the fifth edi- culture” (carrying the sense of civilized) become places for the most relevant Bra- tion of Travessias and, in partnership and a “popular or folk culture” (carrying zilian contemporary art. with Instituto Itaú Cultural, the Diálogos the sense of lacking the civilizing work), The work developed at Galpão Bela Maré Ausentes (Absent Dialogues) exhibition, concepts often conveyed in locations con- is centered on building links between art, which brought to Maré the production sidered opposite, such as those of “center” politics and the city. In 2014, the Galpão of 17 creators or groups, with paintings, and “periphery” or “asphalt” and “slum”. Bela Maré became part of the Carioca Net- installations, photographic essays, short work of Culture Points (Rede Carioca de films and records of performances and Pontos de Cultura), starting to articulate theatrical shows that portrayed black local collectives and cultural interven- experiences in Brazil. Between 2018 and tions through the Maré slums. In addition 2019, six exhibitions took place at Galpão Matheus Rocha Pitta to the Travessias exhibitions, there were Bela Maré, which has consolidated itself Leite de pedra [Milking the stone], 2018 many other projects: the BelaLab (an ar- as a cultural space able to give visibility Escultura [Sculpture] Realização em parceria com a ONG Redes tistic research platform with a hybrid for- to different subjects, issues and peripheral da Maré. Um litro de leite foi oferecido os mat, focused on the discussion of urban territories based on expository proposals moradores em troca de um quilo de pedra space, digital culture and contemporary and that mobilize art education activities [Partnership with Redes da Maré NGO. art, based on multimedia art projects), (mediated visits, workshops in the space One liter of milk was offered to dwellers the #amaréfunk festival (free workshops itself or in schools, movie screenings, in exchange of 1 kg of stone]

154 discussão sobre o funk dentro da favela como cultu- ra e resistência, movimento e linguagem), a mostra NÓS – 10 anos de Imagens do Povo (uma exposição fotográfica comemorativa dos dez anos de existência do Programa Imagens do Povo), o Festival de Foto- grafia Popular (encontro que propiciou a discussão sobre o papel político da imagem e os múltiplos des- dobramentos da fotografia na contemporaneidade), a exibição do filmeQuase samba, oficinas do Projeto Território Inventivo da Maré, a ação Nós da Maré (que através de uma rede colaborativa promove interven- ções estéticas integradas no território da Maré, visi- bilizando a construção e o fortalecimento de redes de atores culturais da região), o evento FLUPPENSA COM BNEGÃO (parte da programação Flupp Pensa, da Feira Literária Internacional das UPPs), o projeto Vou Fazer Arte (trabalho focado na cultural digital e na produção da imagem articulado a experimenta- ções estéticas para adolescentes moradores da Maré) e o seminário internacional O que é periferia, afinal, e qual o seu lugar na cidade?. que construiu uma experiência de reconstrução e Em 2017, o Galpão recebeu a quinta edição de Tra- atualização da memória e das diversidades de prá- vessias e, em parceria com o Instituto Itaú Cultural, a ticas culturais das praias do recôncavo carioca (Baía exposição “Diálogos ausentes”, que levou para a Maré de Guanabara). A mostra Metrópole transcultural, a produção de 17 criadores ou grupos, com pinturas, com curadoria de Ronald Duarte e apoio Sesi/Firjan instalações, ensaios fotográficos, curtas-metragens e e do Instituto Maria e João Aleixo, reuniu 14 artistas registros de performances e de espetáculos teatrais visuais metropolitanos e que surgiu do desejo insti- que retrataram vivências negras no Brasil. Entre 2018 tucional do Observatório de Favelas de montar uma e 2019, seis exposições se concretizaram no Galpão grande mostra que levasse para o campo das artes Bela Maré, que se consolidou como espaço cultural visuais um debate sobre o Rio de Janeiro metropoli- que visibiliza sujeitos, questões e territórios periféri- tano, não óbvio, múltiplo, nem sempre visível. cos a partir de propostas expositivas e que mobilizam De 2011 a maio de 2019, quase 50 mil pessoas visita- atividades de arte-educação (visitas mediadas, ofici- ram o Galpão Bela Maré, que, com seu amplo funcio- nas no próprio espaço ou em escolas, sessões de cine- namento, é uma das respostas possíveis à urgência ma, atividades de estímulo à leitura, encontros com pela superação das distinções territoriais que esta- artistas, saraus e festas). Cabe destacar as duas edi- belecem recortes de subalternização entre o que se ções de Bela Verão, com jovens artistas periféricos e considera “cultura superior” (exprimindo o sentido que, com a Funarte, premiou 15 artistas periféricos e de civilizado) e o “popular” ou “folclórico” (carente da LGBTQI+ e a exposição Memórias dos Domingos de Sol obra civilizadora), tantas vezes veiculadas nas loca- (pesquisa fotográfica, iconográfica e cartográfica,- as lizações consideradas opostas, como as de “centro” e sociadas à documentações fotográficas do presente), “periferia” ou “asfalto” e “favela”.

155 Rio de Janeiro, insubordinação e as experiências anti-institucionais nas décadas de 2000 e 2010

Bernardo Mosqueira

Rio de Janeiro, insubordination Machado de Assis, Hélio Oiticica, Oscar and anti-institutional experiences Niemeyer, Lúcia Murat, Cildo Meireles, in the decades of 2000 and 2010 Estêvão Silva, Adriana Varejão, Timótheo da Costa, Zózimo Bulbul, Heitor Villa-Lo- Rio de Janeiro was the capital of the Por- bos and Heitor dos Prazeres, and a chosen tuguese colony and the heart of the Vice- home by Clarice Lispector, Luz del Fuego, royalty of Brazil, as well as capital of the Ivens Machado, Lygia Pape, Roberto Burle Portuguese Empire – including Portugal, Marx, , Abdias do Nascimento, Angola, Mozambique, Goa, East Timor, Mário Pedrosa, , Madame Macau, amongst others, and capital of the Satã, Lélia Gonzalez, , and the Brazilian Repub- Muniz Sodré, Tunga, Conceição Evaristo lic until 1960. More than a thousand years and Carlos Drummond de Andrade. The before the Portuguese invasion, the Tu- Vaccine Revolt, the Revolt of the Lash, the pinambá people formed sambaquis (shell Communist uprising of 1935, the Central middens) with tons of shells in Guarat- Rally, the kidnapping of the North Amer- iba. Their bodies were so strong that the ican Ambassador Charles Elbrick and the marks left by muscles are still visible on march of the one hundred thousand also their bones. In Carioca soil, the Tupinambá took place in Carioca soil. people, seeing the French for the first time, A port, rock, swamp, match and post- shouted and swung necklaces, wristbands al, Rio particularly metabolizes the Af- and bracelets built with the bones and rican cultural matrix, cultural variances teeth of their old enemies devoured as sac- amongst the different Brazilian regions, rifices. This is also where the colonial ex- foreign cultures, natural landscape and an perience of Antarctic France happened; its intense political scene. Overseas, it is the destruction gave birth to the Portuguese most well-known Brazilian city and top colonization in the region. destination for domestic and international Between the early 16th century and the tourism in Brazil. mid-19th, Rio was the destination for 20% The city has been in the spotlight for Eduardo Kac of all black slaves in the world. The diver- the Pan American Games (2007), Military Eduardo Kac com seu Poemazoide, durante a performance Interversão, praia de Ipanema sity backdrop of the cohabiting different World Games (2011), World Youth Day [Eduardo Kac with his poemzoon,during the African nations in Rio, resulting from the (2013), World Cup final (2014), Olympic performance inter-version, Ipanema beach], 1982. Diaspora crossroads condition, baptized Games and Summer Paralympic Games Foto [Photo] Belisario Franca. Rio’s port district as “Little Africa”. Rio is (2016). In the same period, Rio experienced Cortesia [Courtesy] Luciana Caravello Arte the birthplace of Chiquinha Gonzaga, a breakthrough in the gentrification, as Contemporânea

156 O Rio de Janeiro foi capital da colônia portuguesa e os negros escravizados no mundo, e a diversidade de sede do Vice-Reino do Brasil; foi a capital do Império nações africanas coabitantes no Rio, consequência Português – que incluía Portugal, Angola, Moçambi- de sua condição de encruzilhada da Diáspora, deu à que, Goa, Timor, Macau etc. –; capital do Império do zona portuária do Rio o apelido de “Pequena África”. Brasil e da República Brasileira até 1960. Mais de mil Foi no Rio onde nasceram Chiquinha Gonzaga, Ma- anos antes da invasão, os tupinambás já formavam chado de Assis, Hélio Oiticica, Oscar Niemeyer, Lúcia seus sambaquis com toneladas de conchas em Gua- Murat, Cildo Meireles, Estêvão Silva, Adriana Varejão, ratiba. Seus corpos eram tão fortes que as marcas que os Timótheo da Costa, Zózimo Bulbul, Heitor Villa-Lo- os músculos deixaram em seus ossos se mantiveram bos e Heitor dos Prazeres. A mesma cidade foi esco- visíveis até hoje. Foi em solo carioca que os tupi- lhida como morada de Clarice Lispector, Luz del Fue- nambás, ao avistarem os franceses pela primeira vez, go, Ivens Machado, Lygia Pape, Roberto Burle Marx, gritaram e balançaram no ar os colares, pulseiras e Zuzu Angel, Abdias do Nascimento, Mário Pedrosa, braceletes formados pelos ossos e dentes de antigos Nise da Silveira, Madame Satã, Lélia Gonzalez, Ney inimigos devorados sacrificialmente. Foi também Matogrosso, Muniz Sodré, Tunga, Conceição Evaristo neste local que logo se estabeleceria a experiência e Carlos Drummond de Andrade. Foi sobre solo cario- colonial da França Antártica, cujo processo de des- ca que aconteceram a Revolta da Vacina, a Revolta da truição deu início à Colonização Portuguesa nesta re- Chibata, a Intentona Comunista, o Comício da Cen- gião. Entre o início do século XVI e meados do século tral, o sequestro do Embaixador Americano Charles XIX, o Rio de Janeiro esteve na rota de 20% de todos Elbrick, a Passeata dos Cem Mil.

157 well as in the economic and security cri- sis, making Rio a mortal city, especially for black young people. On the one hand, Rio is dynamic, surpris- ing, superlative, charming, but it can also prove itself enchanted by its own Narcissus and sphinx reflected in Guanabara waters. More than half of the ten richest Brazilian people were born in Rio, but the city is also well-known for being the cradle of the first Brazilian slum– currently Morro da Providência – and of the biggest slum in the country – Rocinha. The city was born and raised in the midst of territory con- flicts, which are violently multiplied today. Plunged in extreme wealth and adver- sities, systemic, endemic and syndromic in freedom. Insubordination refuses to corruption and radical violence by the sound inferior, refuses to act under the parameterless State and “parallel” powers, rules of an organization scaled by a chain of Rio developed itself introducing a cultural command. It is the active breakdown of the production marked by diversity, inventive- hierarchical structure between the inferi- ness and intensity, frequently receiving or and superior in the vertical framework. compliments for holding transformative It is challenge, desecration; the art of Lilith, encounters and affections. Having a his- the class struggle. As Mikhail Bakhtin tory of crisis and prosperity rounds, the teaches, one of the most powerful exercis- city reached singular paths towards the es of insubordination is Carnival – and the expansion of the Brazilian cultural auton- carnivalization of life. omy, reflecting on Brazilianity and becom- The insubordinate decides the time to ing one of the epicenters of cultural inno- be a king, queen, harlot, priest, libertine, vation in .1 bate-bola or masked. He chooses pleasure Being the capital for the Colony, the Em- or laziness, makes bad choices, possibly be- pire and the Republic (1763-1960), hold- ing amoral, incoherent, and submissive in ing the largest slave trade port in Amer- a disguised manner. He may love beyond ica, suffering intense urban slavery and monogamy, may give a tram ride while experiencing the obscene and constant being hung, may start a revolution. The exposed fractures of the Brazilian social insubordinate is not perfect for capitalism. inequality – and stemmed by its history, He lives in another epistemology, plays on memory, traumas and resistances –, Rio’s the abyssal line. The insubordinate has se- culture developed one of its most relevant crets. He may transgress, or not: either in qualities: the contesting behavior against a wicked or ethical and creative way. On power structures. This means that a fun- the forefront of the obscure certainty of damental characteristic of the people of his disobedience, he may have a very high Rio de Janeiro is insubordination. tolerance for oppression and might linger Insubordination is not synonymous with through the wicked little transgressions arrogance, irreverence, disobedience, negli- before choosing great ethical revolutions. gence. Insubordination lies in the desire, in It is important to point out that insub- self-sufficiency, in pride, in free geniality, in ordination is not the definition of Carioca Ateliê de Dissidências Criativas nonconformity, in resistance, in irresigna- people; it is not incorporated by everyone Carnavandalirização [Carnival-liric vandalization] tion, in the immediate gesture, in movement, and not even an exclusive attribute of Rio Ação coletiva durante a Copa do Mundo, 2014 in Exu, with axé, in powers, in rebellion, de Janeiro. As a comparison, in Brazil, there [Collective action during World Cup]

158 O Rio de Janeiro, essa cidade que é porto, pedra, porto de comércio de escravos em toda a América, por pântano, partida e postal, metaboliza de forma parti- ter sofrido intensa escravidão urbana e por ter sem- cular a matriz cultural africana, as culturas das dife- pre apresentado obscenamente as fraturas expostas rentes regiões brasileiras, as culturas estrangeiras, a da desigualdade social brasileira, a cultura do Rio de paisagem natural e o intenso cenário político. O Rio Janeiro, a partir de sua História e memória, de seus é a cidade brasileira mais conhecida no exterior e o traumas e resistências, desenvolveu uma de suas maior destino no Brasil tanto para o turismo interno qualidade mais relevantes: o comportamento contes- quanto para o internacional. O Rio esteve sob os ho- tatório em relação às estruturas de poder. Isso quer lofotes com os Jogos Pan-Americanos (2007), os Jogos dizer que uma característica fundamental do povo Mundiais Militares (2011), a Jornada Mundial da Ju- do Rio de Janeiro é a insubordinação. ventude (2013), a final da Copa do Mundo (2014), os Jo- A insubordinação não é sinônimo de arrogância, gos Olímpicos e os Jogos Paralímpicos de Verão (2016). irreverência, desobediência, negligência. A insubor- Nesse mesmo-tempo, Rio experimentou o avanço da dinação está no desejo, na autonomia, na altivez, na gentrificação e da crise econômica e de segurança, genialidade gratuita, na inconformidade, na resis- que tornam a cidade mortal, especialmente para a tência, na irresignação, no gesto imediato, no movi- juventude negra. Se, por um lado, o Rio é dinâmico, mento, em Exu, com o axé, nas potências, na rebeldia, surpreendente, superlativo e encantador, também na liberdade. A insubordinação se nega a ser catego- pode ser o oposto, encantado pelo próprio reflexo de rizada como inferior, recusa a agir segundo as regras Narciso e esfinge na superfície das águas da Guana- de uma organização nivelada de uma cadeia de co- bara. Na lista das 10 pessoas mais ricas do país, mais mando. É o rompimento ativo da estrutura hierárqui- da metade nasceu no Rio, mas a cidade também é ca entre o inferior e o superior no ordenamento ver- conhecida por ter sido berço da primeira favela bra- tical. É desafio, profanação; é a arte de Lilith, a luta de sileira – hoje Morro da Providência – e da maior fave- classes. Como ensina Mikhail Bakhtin, um dos mais la do país – a Rocinha. A cidade nasceu e cresceu em poderosos exercícios de insubordinação é o Carnaval – conflitos por território, hoje multiplicados violenta- e a carnavalização da vida. mente. Neste contexto de riqueza e adversidade ex- O insubordinado é rei quando quer, é rainha, é me- tremas, corrupção sistêmica, endêmica e sindrômica retriz, é padre, é libertino, é bate-bola, é mascarado. e violência radical tanto do Estado sem parâmetros O insubordinado escolhe o prazer ou a preguiça, faz quanto dos poderes “paralelos”, o Rio se construiu escolhas ruins, pode ser amoral, incoerente, pode ser como uma cidade que sempre apresenta uma produ- submisso dissimuladamente, pode amar além da ção cultural marcada pela diversidade, inventividade monogamia, pode andar pendurado no bonde, pode e intensidade, com elogios recorrentes à potência dos fazer a revolução. O insubordinado não é perfeito encontros transformadores e dos afetos. Neste terri- para o capitalismo. O insubordinado vive a partir tório, que tem sua história definida por ciclos de crise de outra epistemologia, brinca na linha abissal. O e de prosperidade, foram trilhados caminhos singu- insubordinado tem segredos. O insubordinado pode lares na direção da expansão da autonomia cultural transgredir ou não: perversamente ou ética e criati- brasileira, refletindo sobre a brasilidade e tornando o vamente. O insubordinado, no alto da certeza obnu- Rio um dos epicentros de inovação cultural na Amé- bilante de sua insubmissão, pode ter tolerância mui- rica Latina.1 to alta à opressão. O insubordinado demora-se muito Talvez por ter sido capital da Colônia, do Império e entre as pequenas transgressões perversas antes de da República (de 1763 a 1960), por ter contido o maior optar pelas grandes revoluções éticas.

159 are cities presenting settled cultures, feed- not necessarily results in insurgency and, ing the world with what is more rentable, summed with an excessive self-love, some- but also places whose characteristics re- times results in a paralysis, condescension late to the powerful and uncertain, derived or alienation of responsibility over democ- from the culture of Encantaria. Among the racy and the city’s transformations. capitals, perhaps Salvador is the one that We are so engulfed in the hegemonic be- partakes of Rio’s insubordination. lief of a constant need for productivity, or- Such attribute is outlined in many forms der, logic, certainty, control, and rationality – in Rio: the relationship of hatred and hor- a historical demand imposed by capitalism, ror between the society and the Military patriarchy and colonialism – that one of the Police, the conception the Carioca middle most beautiful and disruptive forms of in- class holds about workers’ “bad services”, subordination is choosing delirium. In the the figure of the malandro, the conciliation face of a whole range of possibilities, one with incoherence, the fantastic tale about must seek to plow through a tortuous and “when the slum comes down”, the resistance new furrow, to sow seeds beyond the line, Maurício Dias e Walter Riedweg Funk Staden, 2007 of the samba gatherings, the emergence of to grow a bent twig, to harvest from the Videoinstalação (still) [Video installation] funk, the Carnival, the many independent new lyre, to eat the unknown Baroque fruit, Dimensões variáveis, loop 16’ [Variable street Carnival blocks, the thrill for wit, in- to rave. To cope with the Cartesian system dimensions, loop 16’] formality, marginality, non-engagement, and orthogonal forces, one must be unpu- Encomenda para a 12a Documenta de Kassel mockery and innovation. Insubordination rified, get hands dirty within the world, [Comissioned by Documenta-12 Kassel]

160 É importante ser dito que a insubordinação não é a definição do carioca, não está em todas as pessoas da cidade, nem é característica exclusiva do Rio de Ja- neiro. Como comparação, podemos perceber que, no Brasil, há cidades com culturas mais conformadas, que alimentam o mundo com o que ele já tem de mais rentável. Há locais cujas características se relacionam com o “potente e incerto” derivado da cultura da En- cantaria. Entre as capitais, talvez Salvador seja a que mais comungue com o Rio em sua insubordinação. No Rio, a característica se manifesta, por exemplo, na relação de ódio e horror entre a sociedade e a Polí- cia Militar, no que é entendido pela classe média como o “mau serviço” dos trabalhadores, na figura do “ma- landro”, na boa convivência com a incoerência, na fan- tástica narrativa de “quando o morro descer”, na resis- tência das rodas de samba, no surgimento do funk, no Carnaval, nos inúmeros blocos independentes, no gos- to pela matreirice, pela informalidade, pela margina- lidade, pelo descompromisso, pelo deboche e pela ino- vação. A insubordinação no Rio não resulta, necessaria- mente, em insurgência e, somada de um amor próprio desmedido, desemboca, por vezes, em certa paralisia, condescendência ou alienação da responsabilidade so- bre a democracia e as transformações da cidade. Por vivermos imersos na crença da necessidade de produtividade, ordem, lógica, certeza, controle e racionalidade imposta pela lógica hegemônica, de- manda histórica do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo, uma das formas mais bonitas e disrup- Rafael Bqueer tivas de insubordinação é a escolha pelo delírio. Dian- Alice, 2014 Foto-performance na exposição Do Valongo à te de todo o campo de possibilidades, escolher passar favela: imaginário e periferia, Museu de Arte do o arado por um novo e tortuoso sulco, semear fora Rio. O artista aparece de perfil, em frente à obra do lugar esperado, crescer pau torto, colher da nova Figura de jovem negra, de Belmiro de Almeida, 1880 [Photo-performance at the exhibition lira, alimentar-se da inesperada fruta barroca, deli- “From Valongo to Favela: imaginary and rar. Diante do plano cartesiano e das forças ortogo- periphery. The artist presents himself in profile, nais, impurificar-se, sujar-se de mundo, comer a terra in front of the work “Figure of a young black woman”, by Belmiro de Almeida, 1880] em que tudo dá e já tem dono, mastigar vermes que tudo dão e não têm nome, deixar-se adoecer da febre Denilson Baniwa Arqueiro digital [Digital archer], 2017 tropical, ferver, rever, ter a cabeça como pira funerá- Infogravura, tamanhos variados [Digital print, ria de um mundo antigo e moribundo, pirar, pairar, different sizes]

161 eat the land where everything grows as a Plastic Arts. Still in the 1990s, although By shifting the artist-producer position property, chew the emerging worms with some new commercial galleries arose, part to artist-proposer-instigator and from no name, let the tropical fever lodge, boil, of those representing the livelihood of art- audience-observer to audience-agent-par- reconsider, keep the head as the funerary ists in Rio closed their doors, relocated to ticipant, they got hold of public or unoccu- craziness of an ancient dying world; it’s to different cities or moved to the secondary pied spaces, reinforced the importance of freak out, float, rave. Staring at world, one market. That was the case of Bonino, César friendship as a subversion form, invested must forge it through his own body, make Aché, Paulo Klabin, Petite Galerie, Sara- in shaping and reshaping the collective the difference emerge, perform pact dis- menha and Thomas Cohn galleries. and, above all, took over the mission to ruptions, agree the betrayal of agreements, Museums such as MAM-RJ2 and the embrace the unexpected, the unusual, sur- dismiss the institutions to which we com- National Museum of Fine Arts either kept prising and reverberating curve. Between mune and laugh, rave. The raving insubor- discouraging event schedules or held the late 1990s and the 2010s, many radical dinates: this is our best and our best artists. mega exhibitions from prominent artists. experiences occurred outside institutional Walking alongside with the constant os- At that time, young artists in Rio encoun- spaces in Rio de Janeiro. cillation between moments of crisis and tered a shortage for livelihood – except for abundance in Rio, insubordination stim- the gallery inside Rio Business Center –, Atrocidades Maravilhosas [Wonderful ulated the city to generate irreversible the lack of institutional representativity Atrocities). This was Alexandre Vogler’s transformations in every cultural sphere. and general hopelessness in the Brazilian proposal (2000) involving artists in the Although Rio has been chosen as a home political scene. occupation of urban walls and sidings and work place by a huge part of Brazilian On the basis of the insubordination con- with large printed street posters (lam- artists with a meaningful work in the in- text and having such a discouraging pic- be-lambe). The name of the project, ATR(i) stitutional system, the city produced an ture, groups of young artists started build- Ocidades Maravilhosas, derives from the environment of strong anti-institutional, ing their own strategies for executing former Mayor Cesar Maia’s slogan – “Rio, counterinstitutional and para-institu- works, exercises carrying new languages Wonderful City”. The actions spread over tional behavior that received very little often linked to ephemeral and radical ac- highly frequented areas in Zona Norte study. This essay investigates this scenario tions of great effect, particularly in public [North Zone], Centro [Downtown] and a looking particularly into actions from the or unoccupied spaces. Acknowledging the little less in Zona Sul [South Zone] area. 2000s playing a fundamental role in shap- limits of institutional criticism, this gen- Vogler developed Atrocidades with col- ing the Carioca art system as it is today. eration refused to undergo the logic of leagues from the Arts postgraduate at The passagem from the 1980s to the big institutions, exercising its opposition the Federal University of Rio de Janeiro 1990s in Brazil was marked by the greatest from the outside. They believed the exist- (UFRJ), where he got his Master’s Degree post-war economic crisis back then, with ing institutions were subject to globaliza- researching the relationship between unimaginable inflation rates and supply tion parameters, which could only follow speed, body and the aesthetic experience problems. It was the beginning of the rede- the international market and were not of the city. Participants wouldn’t define mocratization after the military dictator- prepared to receive radical proposals, as Atrocidades as a group or collective, it was ship and the promulgation of the Federal they would like to develop. a collective action. Through poster lan- Constitution of 1988. This is when neolib- These artists maturing in the late 1990s guage, they used formal and discursive eralism violently landed in the country, in also fought against the 80’s generation structures derived from advertising and 1990, with the rule of Fernando Collor de “beautiful forms”, already in hegemonic conveyed to the streets atypical images for Mello. Right in the second day of his term, levels. Right or not, they believed that the the public environment (such as sexuali- Collor introduced a project to dismantle previous generation was not committed to ty, drugs, etc.). The projects’ main interest culture, extinguishing Funarte, a very ac- politics and extremely self-centered with- was to directly access to the public in the tive public agency for the promotion, docu- in the art world and in creating well-fin- city, with no participation of institutions mentation and national circulation of cul- ished forms that, from their perspective, or interference from conceptual filters of ture, which originates a real disaster in the would affect only the luxury artwork art and no sense of aura awakening. The visual arts field throughout the country. market. The arising generation wanted strategy was simple: strong and repeat- With Funarte’s end, the State of Rio de both the artist and his ego dissolving at ed images from the urban landscape and Janeiro’s capital lost several exhibition the streets, desecrated the art world and the flow of bodies that transform the city. spaces (named after Macunaíma, Rodri- enchanted life. They would move small Despite the ephemerality, Atrocidades’ go Mello Franco de Andrade and Sergio uprisings and trespasses up in response to works proposed a compliment for the Milliet), as well as the National Salon of boredom and hopelessness. powerful body moving through in the

162 delirar. Diante do mundo, forjá-lo por meio do pró- Aché, Paulo Klabin, Petite Galerie, Saramenha e Tho- prio corpo, emergir a diferença, figurar o rompimen- mas Cohn. Os museus, como o MAM-RJ2 e o Museu to dos acordos, convencionar a traição das conven- Nacional de Belas Artes, ou tinham programação de- ções, destituir as instituições que comungamos e rir, sestimulante ou recebiam megaexposições de artistas delirar. Os insubordinados delirantes: é esse o nosso ilustres. O cenário, naquele momento, da perspectiva melhor, nossos melhores artistas. dos artistas jovens no Rio, era formado pela escassez A insubordinação, em contato com a constante osci- de formas de sustento – uma exceção era a galeria do lação entre momentos de crises e abundância no Rio, Centro Empresarial Rio – , pela não representatividade estimulou a cidade a gerar transformações irreversí- nas instituições e pela desesperança no cenário políti- veis em todas as esferas da cultura. Ainda que o Rio te- co brasileiro da época. nha sido escolhido como lugar de moradia e trabalho A partir do contexto da insubordinação e diante do por enorme porção dos artistas brasileiros significati- quadro desalentador, grupos de jovens artistas passa- vos e absorvidos pelo sistema institucional, a cidade ram a construir as próprias estratégias para realizar produziu um ambiente de forte comportamento anti- trabalhos, exercícios de novas linguagens, que, muitas institucional, contrainstitucional e parainstitucional vezes, se ligavam a ações efêmeras e radicais de gran- ainda pouco estudado. Este ensaio investiga esse am- de efeito, sobretudo em espaços públicos ou desocupa- biente, mas, em especial, as experiências a partir dos dos. Essa geração, reconhecendo os limites da crítica anos 2000, que tiveram papel fundamental na forma- institucional, decidiu que não se submeteria à lógica ção do sistema de arte no Rio tal como ele é hoje. das grandes instituições, exercendo sua oposição de No Brasil, a passagem da década de 1980 para 1990 fora delas. Ela acreditava que as instituições então foi marcada pela então maior crise econômica do existentes eram submissas aos parâmetros oriundos pós-guerra, com inflação inimaginável e problemas da globalização, que só obedeciam ao gosto do merca- de abastecimento. Viviam-se os primeiros momen- do internacional e que não estavam preparadas para tos da redemocratização pós-ditadura militar e pro- receber propostas radicais como as que eles gostariam mulgação da Constituição Federal de 1988, quando o de desenvolver. neoliberalismo chega violentamente ao país, já em Essa geração que crescia no final dos anos 1990 se 1990, com o governo de Fernando Collor de Mello. opunha, também, “às belas formas” da Geração 80, No segundo dia de mandato, Collor iniciou um pro- que alcançava patamares hegemônicos. Certos ou não, jeto de desmantelamento da cultura com a extinção eles acreditavam que a geração anterior era descom- da Funarte, então um órgão público muito ativo em prometida com a política e demasiadamente auto- fomento, documentação e circulação nacional de centrada no mundo da arte e na criação de formas cultura, e cujo fim causou uma verdadeira catástro- bem-acabadas que, da perspectiva deles, causariam fe no campo das artes visuais em todo o país. Com o impacto apenas no mercado de luxo de objetos de fim da Funarte, a capital fluminense perdeu as salas arte. A geração que surgia mirava a dissolução do ar- de exposição Macunaíma, Rodrigo Mello Franco de tista e de seu ego nas ruas da cidade, dessacralizava Andrade e Sérgio Milliet e o Salão Nacional de Artes a arte e encantava a vida, propunha microrrevoltas Plásticas. Ainda durante os anos 1990, mesmo que e microtransgressões em resposta ao tédio e à de- outras possam ter sido abertas, parte das galerias co- sesperança. Deslocando o lugar de artista-produtor merciais, parte do sustento dos artistas do Rio, fecha- para artista-propositor-instigador e do público-ob- ram as portas, mudaram de cidade ou se deslocaram servador para público-agente-participante, tomaram para o mercado secundário. É o caso da Bonino, César os espaços públicos e desocupados para si, reforçaram

163 city, using the urban web as a means of creation and communication with the other, finding comprehensiveness, visi- bility, virulence, differentiation, democra- tization and disorder. Through works that dissolved in the city in anonymous pro- cesses, the project offered resistance to the centrality of the artist, the author, the institutions and the art circuit itself. The initiative should be more counter-insti- tutional than anti-institutional. The core procedure was not oriented to oppose institutions; it just disregarded them as artist’ main place of action. Atrocidades was eventually absorbed by the insti- tutional system, making national and international exhibitions, such as in the Panorama of Brazilian Art 2001. Among the project agents were Alexandre Vogler, Ana Paula Cardoso, André Amaral, Adria- no Melhem, Arthur Leandro, Bruno. Lins, Clara Zuñiga, Claudia Leon, Shower, Ed- son Barrus, Felipe Barbosa, Geraldo Mar- colini, Guga Ferraz, Joao Ferraz, Leonardo Tepedino, Luis Andrade, Marcos Abreu, Ronald Duarte, Rosana Ricalde and Roo- sivelt Pinheiro. The most iconic work was Vogler’s “What can detergent do to a woman’s hand”, merging collages into the Caju Cemetery wall featuring two hands of red-painted nails opening the large lips of a vulva, with the text in it.

Zona Franca [Free Zone]. In 2001, Edson Barrus, Alexandre Vogler, Guga Ferraz, Aimberê Cesar, Roosivelt Pinheiro, Ducha and Adriano Melhem created a weekly event on Mondays at Fundição Progres- so, in Lapa. It established a space for study, exchange, performances, actions and ephemeral exhibitions bringing to- gether dozens of artists from different generations and other cities. Zona Fran- Guga Ferraz ca had an anarchist substance opposing Auto de resistência [Proof of resistance], 2010-2018 the institutional system: salons, curators, Serigrafia e spray sobre papel de algodão [Screen critics, hierarchies, privileged relation- print and spray on cotton paper], 100 × 70 cm ships, the market and the notion of com- > ônibus incendiado [Burnt bus], 2013 petition, both in art and life. The project Adesivo sobre placa de acrílico [Adhesive on was highly considered a relevant and plexiglass], 69 × 69 cm vibrant action, but when it completing

164 a importância da amizade como forma de subversão, investiram na construção e reconstrução do comum e, sobretudo, tomaram como missão abraçar o ines- perado, o inusitado, a dobra surpreendente e reverbe- rante. Entre o final dos anos 1990 e a década de 2010, aconteceram várias experiências radicais fora de es- paços institucionais no Rio de Janeiro.

Atrocidades Maravilhosas. Atrocidades Maravilho- sas foi a proposta de Alexandre Vogler (2000) que en- volveu artistas na ocupação de muros e tapumes no espaço urbano com impressos lambe-lambe de gran- de formato. O nome do projeto, ATR(i)Ocidades Ma- ravilhosas, deriva do slogan do prefeito Cesar Maia – “Rio Cidade Maravilhosa”. As ações se espalhavam por pontos de grande passagem na Zona Norte, Cen- artista, do autor, das instituições e do próprio circuito tro e menos na Zona Sul. Vogler desenvolveu o Atro- da arte. A iniciativa desejava ser mais contrainstitu- cidades com colegas da pós-graduação em Artes na cional do que anti-institucional. O procedimento bá- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde sico não era em oposição às instituições, mas apenas fazia mestrado com pesquisa sobre a relação entre a as desprezava como lugar principal da ação para os velocidade, o corpo e a experiência estética da cidade. artistas. O Atrocidades acabou por ser absorvido pelo Os participantes não definiam o Atrocidades como sistema institucional, tendo sido exibido no Brasil um grupo ou coletivo, mas como uma ação coletiva. e no exterior, como no Panorama da Arte Brasileira Na linguagem dos cartazes, utilizavam estruturas 2001. Entre os agentes do Atrocidades estão Alexan- formais e discursivas derivadas da publicidade e le- dre Vogler, Ana Paula Cardoso, André Amaral, Adria- vavam às ruas imagens estranhas ao ambiente públi- no Melhem, Arthur Leandro, Bruno Lins, Clara Zuñiga, co (como sexualidade, drogas etc.). O maior interesse Cláudia Leão, Ducha, Edson Barrus, Felipe Barbosa, do Atrocidades era acessar diretamente o grande pú- Geraldo Marcolini, Guga Ferraz, João Ferraz, Leonardo blico da cidade sem ter que participar do funciona- Tepedino, Luis Andrade, Marcos Abreu, Ronald Duarte, mento das instituições e sem ser mediado pelo filtro Rosana Ricalde e Roosivelt Pinheiro. O trabalho mais do conceito de arte, sem despertar dimensão auráti- icônico do Atrocidades foi O que os detergentes fazem ca. A estratégia era simples: imagens fortes e repe- com a mão de uma mulher de Vogler, imagens cola- tidas para a paisagem urbana e o fluxo dos corpos das sobre o muro do cemitério do Caju apresentando que transformam a cidade. Apesar da efemeridade, duas mãos de unhas pintadas de vermelho abrindo os trabalhos do Atrocidades, com o elogio ao corpo os grandes lábios de uma vulva, com a frase título. potente em movimento na cidade, utilizavam a teia urbana como meio de criação e comunicação com o Zona Franca. Em 2001, Edson Barrus, Alexandre Vo- outro, encontrando abrangência, visibilidade, viru- gler, Guga Ferraz, Aimberê Cesar, Roosivelt Pinheiro, lência, diferenciação, democratização e perturbação. Ducha e Adriano Melhem criaram um evento sema- Nas obras que se dissolviam na cidade em processos nal, às segundas-feiras, na Fundição Progresso, na anônimos, o Atrocidades se opunha à centralidade do Lapa, que instaurava um espaço de estudo, troca,

165 one year (52 Mondays),3 Zona Franca in the city center. The Rés project was was accused of being romantic, naive, intended as a space for discussion, prov- irresponsible and inconclusive by some ocation, experimentation, study, action academics of the time who missed forms and exhibition, conducting lessons, ex- and products. Still, maintaining a regu- hibitions and independent publications lar programming in the art columns of to performances, theatrical experienc- Rio newspapers, it was selected as one es, conviviality rituals, themed events of the best “exhibitions of the year” by and sound art experiments. Rés do Chão O Globo newspaper and took part in the represented an anti-capitalist, counter- “On Difference #3, Politics of Space” exhi- cultural and anti-neoliberal position, bition in Stuttgart, . Besides the having as strategies the construction regular weekly schedule, the Zona Fran- of the “uncategorizable”, with processes ca’s main achievement was building an absolutely imbricated by affection and environment of extreme freedom and friendship networks. Rés do Chão’s ac- exchange, where one could execute every- tions took place in a private apartment, thing that would be prohibited in an insti- at the street or through the invitation tutional or commercial museum space. of institutions, like when the Funarte’s Grupo EmpreZa galleries reopened at Gustavo Capanema Descarrego [Unload], 2005/2014 Rés do Chão [Ground floor]. In the be- Palace. Among the collaborating artists Performance realizada durante a exposição ginning of 2002, the Espaço Experimen- were Alexandre Sá, Phodre Band, Carmen Eu como você [Performance during the tal Rés do Chão was created in Edson Riquelme, Cecilia Cotrim, Daniela Mat- exhibition “I eat you”], Museu de Arte do Barrus’s apartment, in Lavradio street, tos, Lívia Flores, Newton Goto, Orlando Rio de Janeiro – MAR

166 realização de performances, ações e exposições efê- Daniela Mattos, grupo empreZa, Lívia Flores, Newton meras que reuniam dezenas artistas de gerações dis- Goto, Orlando Maneschy, PhP, Rubens Pileggi e grupo tintas e visitantes de outras cidades. O Zona Franca, Urucum, entre outros. Barrus, a partir da constru- com teor anarquista, se opunha ao sistema institu- ção parainstitucional do Rés do Chão, realizava os cional: salões, curadores, críticos, hierarquias, rela- convites aos artistas com a intenção de desfazer as ções privilegiadas, mercado e ideia de seleção e com- relações esquemáticas de centralidade-marginali- petição na vida e no meio da arte. Vista como ação dade. Enaltecendo o que pode receber valor em sis- relevante e vibrante ao completar um ano de duração temas complexos, o Rés inspirava comportamentos (52 segundas-feiras),3 O Zona Franca foi acusado de e interações para além dos determinados (ou deter- romântico, ingênuo, irresponsável e inconcludente mináveis) pelos valores de troca de mercado, ligados pela Academia na época, que sentia falta de formas ao paradigma de opressão e segregação. É de Barrus e produtos. Ainda assim, com programação regular a ótima colocação de que “A qualidade é um parâme- nas colunas de arte dos jornais do Rio, foi seleciona- tro de exclusão”. do como uma das melhores “exposições do ano” pelo jornal O Globo e chegou a participar da mostra “On RRadial. Planejando preparar o terreno para o Coló- Difference #3, Politics of Space” em Stuttgart, na Ale- quio Transdisciplinar Resistências,4 Alexandre Vo- manha. Para além da programação semanal regular, gler, Ronald Duarte, Luis Andrade, Tatiana Roque e a principal conquista do Zona Franca foi construir Ericson Pires desenvolveram o RRradial em 2001. O um ambiente de troca e liberdade extremas, onde se procedimento principal do RRadial era a transposi- consentia a execução de tudo aquilo que poderia ser ção para além das áreas centrais do Rio de ações ra- proibido em um espaço institucional comercial ou dicais lúdicas, de criação de imagens e situações de- museológico. lirantes que tinham ao mesmo tempo força poética e contundência política. Entre suas ações estiveram Rés do Chão. No início de 2002 surgiu o Espaço Expe- Ovo no asfalto, em que o grupo fritou ovos no asfalto rimental Rés do Chão, no apartamento de Edson Bar- no calor em Cabuçu, a caminho de Bangu; Foguetório, rus, na rua do Lavradio, no centro do Rio. O Rés tinha festa de réveillon fora de época, no dia 11 de setem- como projeto instaurar-se como espaço de discussão, bro de 2002, na Praia do Recôncavo, em Sepetiba, um provocação, experimentação, estudo, ação e exibição, ano após os ataques nas Torres Gêmeas em Manhat- e realizava desde aulas, exposições e publicações tan; e Fumacê do descarrego, quando defumaram as independentes até performances, experiências te- ruas da cidade numa Kombi adaptada para carregar atrais, rituais de convivência, festas temáticas e ex- uma chaminé de 3 metros de altura sob a qual seriam perimentos de arte sonora. O Rés do Chão foi como queimados mais de 100 kg de defumador, nos cami- posição anticapitalista, contracultural e antineoli- nhos entre a região da Leopoldina e o Centro.5 Antes beral, tendo como estratégias a construção do inca- desta ação, pediram licença a Exu com a colaboração tegorizável, com processos absolutamente imbri- do artista e ogan de candomblé Aderbal Ashogun, cados por redes de afeto e amizade. As ações do Rés filho de sangue e santo da importante ialorixá Mãe do Chão aconteciam no apartamento ou na rua ou a Beata de Yemonjá. Mesmo se configurado como gru- convite de instituições, como foi o caso das galerias po, o RRadial serviu como plataforma de apoio para a da Funarte reabertas, no Palácio Gustavo Capanema. realização de trabalhos individuais dos componentes, Entre os artistas colaboradores estavam Alexandre sendo as autorias das ações coletivas assumidas indi- Sá, Banda Phodre, Carmen Riquelme, Cecília Cotrim, vidualmente em outros momentos.

167 RRRadial Fumacê do descarrego [Smoke to unload], 2011 Ação pública, em que 100kg de defumador foram queimados no caminho entre a região da Leopoldina e o Centro do Rio de Janeiro [Public action, when 100kg of burnt smokers were realeased on the way between Leopoldina’s station and downtown Rio de Janeiro areas]

Maneschy, PhP, Rubens Pileggi and the eggs on the asphalt in the heat in Cabuçu, Among them were Ronald Duarte, Jarbas collectives Grupo EmpreZa and Grupo next to Bangu; “Foguetório”, an out of sea- Lopes, Jorge Duarte, Raimundo Rodrigues, Urucum. Since the para-institutional son New Year’s Eve party on September 11, Roberto Tavares, Deneir Martins, Julius construction of Rés do Chão, Barrus in- 2002, at Recôncavo Beach, in Sepetiba – a Sekiguchi and others. The starting point vited artists with the intention of undo- year after the attacks to the Twin Towers for the actions was the understanding ing the schematic relations of centrali- in Manhattan; and “Fumacê do Descar- that the “peripheral” is only “imaginary”. ty-marginality. Exalting what would be rego”, when the group smoked the city They used to choose places of passage in valued in complex systems, Rés inspired streets in a transport van adapted to carry regions such as Nova Iguaçu, São João de behaviors and interactions beyond those a 3-meter high chimney that burned more Meriti, Nilópolis, Barra Mansa, the Frago- determined (or determinable) by market than 100 kg of smokers passing through so train station, Central do Brasil and the exchange values, bound in a model of op- streets between the Leopoldina area and Pau Grande square in Magé. In a moment pression and segregation paradigm. Bar- the city center.5 Prior to this action, they supported by Sesc, the group received the rus is the author of the great statement asked Exu for permission with the col- collaboration of over 500 artists. They un- that “Quality is an exclusion parameter”. laboration of the artist and candomblé derstand that its main function is to ques- ogan Aderbal Ashogun, blood and saint tion the boundaries within the art circuit RRadial. In order to dip toes in the water son of the important ialorixá Mãe Beata and to combat the engine of its imperme- for holding the Transdisciplinary Collo- de Yemonjá. Even configured as a group, ability, identified by them in the figures quium Resistências,4 Alexandre Vogler, RRadial served as a support platform for of institutions and curators, indifferent Ronald Duarte, Luis Andrade, Tatiana individual works of its members. Later on, to those who live and work on the side- Roque and Ericson Pires created RRradial, the authorship of collective actions was lines of the city. In 2003, they launched in 2001. Its main procedure was the trans- analyzed individually. the “Fome Zero Cultural”[Cultural Zero position of lurid radical actions beyond Hunger] manifest, claiming for the end the central areas of Rio, creating images Imaginário Periférico [Peripheral Imagin- of the centralization in Brazilian art, and delusional situations carrying, at the ery]. Created in 2002, the Imaginário Per- science and technology fields, demanded same time, poetic strength and politi- iférico is composed mainly of artists from the “redistribution of national intellectu- cal forcefulness. Among its actions were the Baixada Fluminense and other regions al capital”, the “occupation of the public “Ovo no asfalto”, in which the group fried read as outskirts or peripheries of Rio. agencies by artists, critics and arts

168 Imaginário Periférico. Surgido em 2002, o Imagi- Csekö, Julia Csekö, Marcelo Cidade, Márcia X, Marilá nário Periférico é composto sobretudo por artistas Dardot, Maurício Ruiz, Mulum Marssares, Goto, Ri- oriundos da Baixada Fluminense e de outras regiões cardo Basbaum, Romano, Ronald Duarte, Suely Farhi entendidas como subúrbio ou periferias do Rio, que e Xico Chaves. Na segunda edição, colaboraram An- contou com Ronald Duarte, Jarbas Lopes, Jorge Duarte, gela Freiberger, Arjan Martins, Chacal, Ernesto Neto, Raimundo Rodrigues, Roberto Tavares, Deneír Mar- Franklin Cassaro, Isabel Lofgren, Laura Lima, Marcos tins, Júlio Sekiguchi e outros. O ponto de partida de Chaves e Simone Michelin. O Alfândega se inspirava suas ações era o entendimento de que o “periférico” é na condição de “lugar de trocas e circulação” natural algo apenas “imaginário”. Escolhiam locais de passa- dos portos para construir-se como espaço de intercâm- gem em regiões como Nova Iguaçu, São João de Meriti, bio e debate entre artistas experimentais da lingua- Nilópolis, Barra Mansa, a estação de trem de Fragoso, gem. O patrocínio permitiu que os artistas fizessem a Central do Brasil e a Praça de Pau Grande em Magé. trabalhos mais desconcertantes, como O grande bingo, O grupo, num momento apoiado pelo Sesc, já recebeu de Marcelle e Dardot. O público não percebia que em a colaboração de mais de 500 artistas. O Imaginário todas as cartelas (vendidas a R$ 1,00) estavam marca- Periférico entende que suas principais funções são das os mesmos números em sequências diferentes. Na questionar as fronteiras do circuito de arte e comba- hora certa, todos gritavam “bingo!” ao mesmo tempo, ter o motor de sua impermeabilidade, identificado ganhando o prêmio que era o valor total arrecadado por eles nas figuras das instituições e dos curadores, dividido pelo número de vencedores, ou seja, R$ 1,00. indiferentes aos que habitam e trabalham às margens da cidade. Em 2003, lançou-se o manifesto “Fome Zero Esquina. Entre 2001 e 2003, Ducha ativou um espaço Cultural”, que reivindicava o fim da concentração de para performances e esculturas sociais na esquina da arte, ciência e tecnologia no Brasil e exigia a “redis- Avenida Rio Branco com a Rua Buenos Aires e, além de tribuição do capital intelectual nacional”, a “ocupação suas ações, recebeu convidados, infligiu a ironia de ins- das direções de órgãos públicos por artistas, críticos e titucionalizar uma região do espaço público. O registro teóricos das artes”, a “implantação de centros culturais em vídeo era feito de maneira oculta, com a câmera no nas comunidades e periferias” e o “pagamento das dí- 19o andar de um prédio. Sem autorização da prefeitura, vidas culturais com as etnias não-brancas”. 6 No Imagi- o Esquina promovia ações rápidas com cenas pertur- nário Periférico, existia uma dubiedade entre as ações badoras ou absurdas como em Cama (2001, de Du- nas praças públicas e o desejo forte de inclusão e aper- cha), em que uma cama era colocada no cruzamento feiçoamento das instituições. quando se fechava o sinal; sobre a cama, travesseiros, lençóis, fronhas, cobertores e um casal dormindo con- Alfândega. Aimberê Cesar, Alexandre Vogler, Guga fortavelmente. Em outra experiência, simularam-se Ferraz e Roosivelt Pinheiro implantaram um projeto acidentes com sacos de laranja. Alternavam-se atos autônomo em continuidade ao Zona Franca. Nego- cênicos e outros confundíveis com os fluxos e ritmos ciando apoio com a Prefeitura, chegaram ao modelo do local. Camila Rocha, Ricardo Basbaum, Bob N, Mar- do Alfândega que aconteceu em duas ocasiões, em ja- cio Ramalho e Jarbas Lopes participaram do Esquina. neiro e novembro de 2003, no Armazém 5 na zona por- tuária. O município queria revitalizar a região. Com o OInusitado. De 2002 a 2005, Floriano Romano dirigiu patrocínio, puderam convidar 45 participantes (31 ho- o programa de rádio OInusitado – via Rádio comuni- mens, 12 mulheres e dois coletivos) – dentre eles, Alex tária Madame Satã na Lapa com sinais que atingiam Hamburguer, Bob N, Cabelo, Cinthia Marcelle, Daniela da Glória à Praça XV e pela Rádio Interferência, rá- Mattos, Guilherme Zarvos, Jarbas Lopes, Joana Traub dio livre de estudantes midiativistas da ECO-UFRJ.

169 theorists”, the “establishment of cultural by the condition of a natural “place of ex- centers in communities and peripheries” change and circulation” the ports have in and “the payment of cultural debts for order to create a space for exchange and non-white ethnic groups”. 6 The Imaginá- debate among experimental artists work- rio Periférico presented an incertitude be- ing with language. The sponsorship al- tween actions in public squares and the lowed the execution of more bewildering strong wish for inclusion and improve- works, such as “O Grande Bingo”, by Mar- ment of existing institutions. celle and Dardot. There were bingo cards having the same numbers, in different se- Alfândega [Customs]. Aimberê Cesar, Ale- quences (sold for R$1.00), but people didn’t xandre Vogler, Guga Ferraz and Roosivelt realize the resemblance. At the end of the Pinheiro implemented an autonomous bingo, the picture was everyone scream- project to continue the Zona Franca. After ing “bingo!” together, winning the same arranging some support with the City Hall, prize, the total amount collected divided the model of Alfândega was settled and it by the number of winners, i.e., R$1.00. happened in two occasions, in January and November 2003, in Armazém 5 of the port Esquina [Corner]. Between 2001 and 2003, district. The municipality wanted to revi- Ducha activated a space for holding perfor- talize the region. Having the sponsorship, mance and social sculpture in the corner of they were able to invite 45 participants Avenida Rio Branco and Rua Buenos Aires. (31 men, 12 women and two collectives) – The space received guests and inflicted the among them, Alex Hamburger, Bob N, irony of institutionalizing a public space Cabelo, Cinthia Marcelle, Daniela Mattos, area. Video recordings were in course Guilherme Zarvos, Jarbas Lopes, Joana with a hidden camera on the 19th floor of Traub Csekö, Julia Csekö, Marcelo Cidade, a building. With no authorization from Tatiana Grinberg Márcia X, Marilá Dardot, Maurício Ruiz, the City Hall, Esquina promoted quick Espaço em branco entre quatro paredes [White Mulum Marssares, Goto, Ricardo Basbaum, actions with disturbing or absurd scenes space between four walls], 2001-2002 Romano, Ronald Duarte, Suely Farhi and such as in Cama (2001, made by Ducha), Instalação no quarto 302 do Hotel Love’s House – divisória autoportante invertida a 70 cm das Xico Chaves, and, in the second edition, in which a bed was placed at the cross- paredes [Installation in room 302 of Love’s Angela Freiberger, Arjan Martins, Cha- road when the lights went red; on the bed, House hotel with a inverted self-supported cal, Ernesto Neto, Franklin Cassaro, Isabel pillows, sheets, pillowcases, blankets and partition wall, located 70 cm from the room Lofgren, Laura Lima, Marcos Chaves and a couple sleeping comfortably. In another walls], 275 × 70 × 300 cm Simone Michelin. Alfândega was inspired experiment, accidents were simulated Foto [Photo] Beto Felício

170 O programa difundia obras experimentais, sonoras pela produtora Automática, foi uma força na coorde- e musicais, históricas e contemporâneas, leituras de nação de produção do Agora/Capacete. As diferenças livros, poesia e radionovelas. Percebendo a falta de entre as crenças e modos de fazer entre os membros espaços institucionais para experimentos sonoros, o do Agora e o diretor do Capacete Entretenimento fize- programa sempre acolheu quem se aproximasse. En- ram com que as duas iniciativas se separassem natu- tre os participantes estão Alexandre Vogler, Alexandre ralmente. Com o tempo, o Agora se desfez e o Capacete Sá, Bruno Lopes Lima, Cristina Pape, Felipe Barbosa, continuou se transformando até encontrar o modelo Rosana Ricaldi, Ronald Duarte, Paulo Vivacqua, Ricar- institucional de escola/clube/residência com ambi- do Basbaum, Milton Machado, Rodolpho Caesar, Edson ções internacionais, ainda em atividade em 2019. Barrus, Graziela Kunsch, Grupo EmpreZa, Guga Ferraz. Orlândias. Em 2001, Ricardo Ventura convidou artis- Agora e Capacete. De modo menos “punk” e anár- tas para ocuparem com suas obras uma casa de sua quico que as iniciativas anteriores, foi criada a Agên- família na rua Jornalista Orlando Dantas (de onde cia de Organismos Artísticos, AGORA, pelos artistas deriva o título Orlândia). Ventura, Márcia X, sua com- Eduardo Coimbra, Raul Mourão e Ricardo Basbaum.7 panheira, e Elisa de Magalhães convidaram artistas, O objetivo era desenvolver com agilidade mostras con- críticos e curadores para a construção de uma mos- temporâneas com circulação fora dos museus e sem tra com instalações e performances com duração de o compromisso do mercado. O AGORA foi lançado 15 dias. Ricardo e Márcia haviam vendido trabalhos com as individuais Puxador de Laura Lima e Sintético para Gilberto Chateaubriand e, por isso, dispunham de Raul Mourão na Fundição Progresso (1999). O pro- de alguns recursos para a exposição. Em Orlândia, jeto mais icônico do AGORA foi a exposição Love’s Márcia apresentou pela primeira vez a performance House (2002), idealizada por Mourão e Coimbra, que Pancake (30 kg de leite condensado despejados sobre convidaram 13 artistas (Brígida Baltar, Carla Guagliar- si, cobrindo-se depois de confeitos). Nesse Orlândia, di, Ricardo Becker, Eduardo Coimbra, Fernanda Gomes, Tunga realizou Pequeno Milagre, um muro construí- Ricardo Basbaum, Tatiana Grinberg, João Modé, Raul do transversalmente num fim de corredor, feito com Mourão, Lívia Flores, Marcos Chaves, Chelpa Ferro e pães e peixes; o cimento foi trocado por gesso virado Laura Lima) para ocuparem individualmente quartos com vinho no lugar de água. No topo, quilos de sal de um andar do antigo motel homônimo da Lapa por grosso. Essa parede era regada por garrafões de vinho onze dias, concomitantemente com o início da XXV que, vazios, eram estilhaçados no chão. Eram todos Bienal de São Paulo. Antes de completar um ano, o elementos do universo cristão. Os poetas Simon Lane, Agora fundiu-se com o Capacete Entretenimentos, ge- Gerardo Mello Mourão (pai de Tunga), o artista Cabelo rido por Helmut Batista, criando o Espaço Agora/Ca- e Marieta Dantas improvisavam a partir do poema A pacete, na Rua Joaquim Silva, na Lapa, num prédio que ladainha do morto de Mello Mourão. No dia seguinte, comportava ainda ateliês de sete artistas, entre eles os materiais apodreceram, surgiram larvas e insetos. Paula Trope, Marcos Chaves, Tatiana Grimberg e Car- Microfones estavam incrustados no muro, e os comen- los Bevilacqua. Por dois anos e meio, o Agora/Capa- tários do público captados dos dois lados podiam ser cete promoveu performances, projeções de filmes, de- ouvidos juntos em uma sala próxima ao corredor, sob bates, shows e exposições de Fernanda Gomes, Paulo os odores do apodrecimento. Alguns meses depois, o Bruscky, Chelpa Ferro, Tatiana Grimberg, Lívia Flores, trio acabou por decidir organizar uma segunda edição João Modé, Brígida Baltar, Thiago Carneiro da Cunha, na casa em Botafogo chamada Nova Orlândia (2001). Jordan Crandall, Pierre Huyghe, Foreign Investment e Dois anos depois, em um conjunto de sobrados e lo- outros. A historiadora da arte Luiza Mello, responsável jas também de propriedade da família de Ricardo, na

171 bags filled with oranges. The interesting thing was the switching between what was scenic and the local flow and rhythm. Among Esquina members, were Camila Rocha, Ricardo Basbaum, Bob N, Marcio Ramalho and Jarbas Lopes.

OInusitado [The unprecedented]. Between 2002 and 2005, Floriano Romano directed the radio program OInusitado – via the community radio Madame Satã, in Lapa, which used signals reaching from Glória to XV de Novembro Square, and the ra- dio Interferência, a free radio managed by activist media students from ECO-UFRJ. The program spread experimental, sound and musical, historical and contemporary works, as well as book and poetry readings and radio soap operas. Facing the lack of institutional spaces for sound experiments, the program was always open to the inter- ested artists. Among the participants were Alexandre Vogler, Alexandre Sá, Bruno Lopes Lima, Cristina Pape, Felipe Barbosa, Rosana Ricaldi, Ronald Duarte, Paulo Vi- vacqua, Ricardo Basbaum, Milton Machado, Rodolpho Caesar, Edson Barrus, Graziela Kunsch, Grupo EmpreZa and Guga Ferraz.

Agora and Capacete. Offering a less “punk” former homonymous motel, in Lapa, con- and anarchic proposal than the previous currently with the start of the XXV São initiatives, the artists Eduardo Coimbra, Paulo Art Biennial. Before completing its Raul Mourão and Ricardo Basbaum 7 cre- first year, Agora merged with Capacete En- ated the Artistic Organizations Agency, tretenimentos, directed by Helmut Batista, AGORA. The goal was to quickly raise con- thus creating the Agora/Capacete Space temporary exhibitions able to circulate at Rua Joaquim Silva, in Lapa, in a build- Marcia X Pancake, 2001 outside museums and disconnected from ing that also held seven artists’ studios, Performance com leite condensado e confeitos, the market. AGORA was launched with for example, Paula Trope, Marcos Chaves, durante a Orlândia [Performance with the solo exhibitions “Puxador”, from Laura Tatiana Grimberg and Carlos Bevilacqua. condensed milk and confectionary during Lima, and “Sintético”, from Raul Mourão at For two and a half years, Agora/Capacete the collective action Orlândia], 2001 Fundição Progresso (1999). The most icon- promoted performances, film screenings, ic project was the exhibition “Love’s House” debates, shows and exhibitions by Fer- > Tunga (2002) designed by Mourão and Coimbra, nanda Gomes, Paulo Bruscky, Chelpa Ferro, Pequeno milagre [Little miracle], 2001 inviting 13 artists (Brígida Baltar, Carla Tatiana Grimberg, Lívia Flores, João Modé, Muro de gesso, tijolos, peixes salgados, Guagliardi, Ricardo Becker, Eduardo Coim- Brígida Baltar, Thiago Carneiro da Cunha, pães e vinho [Plaster wall, bricks, salted fish, bread and wine] bra, Fernanda Gomes, Ricardo Basbaum, Jordan Crandall, Pierre Huyghe, Foreign Instalação e performance na Orlândia Tatiana Grinberg, João Modé, Raul Mourão, Investment and others. The art histori- [installation and performance during Lívia Flores, Marcos Chaves, Chelpa Ferro an Luiza Mello, leading the Automática collective action Orlandia], 2001 and Laura Lima) to individually occupy for art production company, was the force Cortesia [Courtesy] Instituto Tunga eleven days rooms located in a floor of the behind the main production coordination Foto [Photo] Wilton Montenegro

172 esquina da Rua Bela com rua General Bruce embaixo Grupo UM. Em 2003, provocado por Domingos Guima- de um viaduto da Linha Vermelha em São Cristóvão, raens, Nadam Guerra escreve o Manifesto Um, funda- realizaram o Grande Orlândia (2003), que contou com dor do Grupo UM, que estabelece o “hibridismo total a colaboração de mais de 110 artistas. Entre a primeira entre as artes e a vida”. 9 Interessados em investigar e e a terceira exposições, as experiências foram se tor- experimentar fazeres artísticos híbridos, múltiplos, in- nando cada vez mais radicais, inclusivas e diversas. terdisciplinares e transversais, os dois desenvolvem o conceito de Arte Viva, derivado da Live Art, para desig- Associados. Em 2005, dois anos após o Grande Orlân- nar o que se faz ao vivo em conexão com a presença. O dia, Márcia X faleceu. Em 2007, Ricardo Ventura convi- Grupo UM atuou como movimento anti-institucional, dou o Opavivará! 8 para propor uma mostra coletiva na anticompartimentalização da arte ao redor de meios, casa da rua Jornalista Orlando Dantas. O resultado foi grupos e instituições superespecializadas. Em 2003 e uma experiência expositiva mutante, com um mês de 2004, o grupo realiza quatro “espetáculos-instalações” duração, ao redor da Cozinha Coletiva do Opavivará! coletivos chamados Visor em que os participantes e que, de maneira análoga ao mito da sopa da pedra, do grupo são convidados a elaborar novos trabalhos todos os interessados poderiam chegar a qualquer a partir de temas-conceitos híbridos inspirados no momento com novas obras para expor. Mais de 200 Manifesto Um e estudados e discutidos pelo coletivo artistas participaram. anteriormente: Performances Fotográficas (no Parque

173 of Agora/Capacete. The opposing beliefs bread and fish. Instead of using cement and working ways amongst Agora mem- and water, the foundation was fortified bers and the Capacete director resulted in with plaster and wine. On the top of it, a a natural split between the two initiatives. pile with pounds of coarse salt. This wall Over time, Agora crumbled and Capacete was watered with wine gallons that shat- kept transforming itself until its institu- tered on the floor when empty. A Christian tional establishment, having a model of a universe elements combination. The poets school/club/residency with international Simon Lane, Gerardo Mello Mourão (Tun- ambitions, still active in 2019. ga’s father), Cabelo and Marieta Dantas performed over the adaptation of Mello Orlândias. In 2001, Ricardo Ventura invit- Mourão’s poem A Ladainha do Morto. In ed some artists to fill their works in his the following day, the source materials family house, at rua Jornalista Orlando went rotten and larvae of flies and oth- Dantas (and the street gave the name to er insects sprang up. There were micro- the initiative, “Orlândia”). Ventura, Márcia phones embedded in the wall, so public Opavivará X, his companion, and Elisa de Magalhães commentary from both sides could be Cozinha coletiva [Collective kitchen], 2007 invited many artists, art critics and cura- heard all together in a room close to the Ação coletiva na casa de Ricardo Ventura, tors for building a show for installations corridor, hit by the rotting smell. A few na rua Jornalista Orlando Dantas, Botafogo and performances during 15 days. Since months later, the trio repeated the work at [Collective action at Ricardo Ventura’s home Ricardo and Márcia sold works to Gilberto the house in Botafogo called “Nova Orlân- at Jornalista Orlando Dantas street] Chateaubriand, they had some resources dia” (2001). Two years later, in a set of sob- for the exhibition. In Orlândia, Márcia rados and shops also owned by Ricardo’s > Grupo UM (Nadam Guerra e performed for the first time the Pancake family, on the corner of rua Bela and rua Domingos Guimaraens) Sol [Sun], Série Poesia Paisagem [Landscape (pouring over herself 30 kg of condensed General Bruce, in São Cristóvão, bellow a and Poetry series], 2008 milk, covered with confectionery). In this viaduct in Linha Vermelha, they held the Fotografia de intervenções poéticas edition of Orlândia, Tunga presented “Grande Orlândia” (2003). This new initia- na paisagem; letras de papel e vista the work Pequeno Milagre, a crossroad tive united more than 110 artists. The ex- da lua cheia [Poetic interventions in the wall built at the end a corridor made of periences changed a lot between the first landscape: paper letters and full moon]

174 das Ruínas), Teatro Abstrato (Teatro Laura Alvim), Hu- manogravura (Teatro Odisséia) e Escultura Imaterial (Parque Lage). Ainda em 2004, participam da exposi- ção Posição 2004 e do Fórum Cultural Mundial. Entre os artistas participantes do grupo estão Carlos Eduar- do Cinelli, Jaya Pravaz, Julia Csekö, Joana Traub Csekö, Löis Lancaster, Pedro Seiblitz, Raïssa, Natalia Warth, Tissa Valverde, Moana Mayall, Bruno Castello, além dos fundadores do Grupo UM. Em 2005, em parceria com Marcela Levi e Alex Cassal, abrem o V::E::R, festi- val de arte viva, no Parque Lage. O grupo se encerra em 2005, mas a parceria entre Nadam e Domingos prosse- guiu. Em 2011, realizaram outro V::E::R, em modelo de residência por duas semanas na ecovila de Terra Uma em Liberdade (Minas Gerais) com 21 artistas, escritores e curadores. Em 2013, Nadam realiza a mostra come- morativa de 10 anos de Grupo UM na Galeria de Arte Ibeu, com obras de Nadam, Domingos e quatro artis- tas fictícios, novos componentes do grupo: Aline Elias, Leo Liz, Juca Américo e Euclides Terra.

Grupo Py. Influenciadas por Agora-Capacete, Orlân- dias, o Vade Retro, o Zona Franca, o CEP 20.000, e o Lo- ve’s House e Grupo UM, as irmãs Joana Traub Csekö e Julia Csekö criaram, com colegas, o grupo Py. Valori- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, zando o modo horizontal e acentrado, a primeira ocu- ocorreu numa casa em Santa Tereza. A última ação pação de quatro casas em construção foi no bairro de foi o FEBEARio (2008), título derivado do FEBEAPÁ Itaipu, em Niterói. Márcia X falecera há pouco tempo. (Festival de Besteiras que Assola o País), do humorista Os participantes decidiram na travessia da barca Rio- Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, homenageado Niterói que homenageariam a artista, uma das orga- no nome do Espaço Cultural Sergio Porto que recebeu nizadoras dos Orlândias. As casas se localizavam na a mostra. A cada ação, trocavam-se alguns colabora- rua Py, daí o título da mostra ser Py = X, Circuito Aber- dores: Daniel Murgel, Carolina Ponte, Pedro Varela, to. Utilizava-se a estratégia do Orlândia do título dado Rodrigo Torres, Slot, Daniel Toledo, João Magalhães, pelo nome da rua e X era reverência a Márcia X. Na Soraya Miranda, Franz Manata e Saulo Laudares, Er- segunda ação, Py = X2, ocuparam a galeria da Funda- nesto Neto, Cleantho Viana, Cadu D’Oliveira, Marta ção de Arte de Niterói com obras em formato peque- Jourdan e Maria Laet, Paulagabriela, Cury, Ri- no. A terceira foi Pyneo e aconteceu em um galpão em cardo Ventura, Glaucia Mayer, José Damasceno, Mar- São Domingos, Niterói, com alusão a Pinel. A quarta, cos Chaves, Barrão, Julio Callado, Alexandre Vogler, PYrata, talvez a mais icônica, ocorreu na barca de tra- Guga Ferraz, André Sheik, Rodrigo Cabot, Deborah vessia Rio-Niterói, com grande repercussão. A quinta, Engel, Mariana Manhães, Botner&Pedro. O Py fazia o Pylar, ocupar, produzir, resistir, título inspirado no elogio à potência das reuniões intensas e criativas de

175 and third exhibitions, becoming more and more radical, inclusive and diverse.

Associados [Associated]. In 2005, two years after Grande Orlândia, Márcia X passed. In 2007, Ricardo Ventura invited Opavivará!8 to propose a collective show in his house at rua Jornalista Orlando Dantas. As an outcome, there was a mu- tant exhibiting experience of one month orbiting around the Opavivará! Collective Kitchen in which, analogously to the folk story of the stone soup, anyone that was interested could take works to the exhibi- tion. More than 200 artists participated.

Grupo UM. In 2003, encouraged by Do- mingos Guimaraens, Nadam Guerra writes the Manifesto Um, inaugurating Grupo Um and establishing the “total hy- bridism between the arts and life”. 9 Inter- ested in investigating and experimenting hybrid, multiple, interdisciplinary and cross-sectional artistic practices, they both develop the concept of Arte Viva, derived from Live Art, to designate what is done live in connection with presence. Grupo UM operated as an anti-institutional, an- Marcela Levi and Alex Cassal, they opened Manata Laudares ti-partitioning art movement gravitating the V::E::R, a live art festival at Parque Bandeira [Flag], 1998 around very qualified media, groups and Lage. The group was shut down in 2005, Ação realizada durante a travessia Pyrata em 2005 na Barca Rio-Niterói. A performance institutions. In 2003 and 2004, the group but the partnership between Nadam and ocorre até a presente data, em eventos onde conducted four collective “show-installa- Domingos continued. In 2011, they held o duo propõe a demarcação e apropriação tions” called Visor, in which group mem- another V::E::R, as a two-week residence temporária do espaço [Action taken during the bers were invited to elaborate new works model at the Terra Una Ecovillage, in Pyrata crossing in 2005 at Rio-Niterói ferry. based on hybrid concept-themes inspired Liberdade (Minas Gerais), having 21 artists, The performance takes place to date, in events by the Manifesto UM (Manifest ONE), writers and curators. In 2013, Nadam held where the duo proposes the demarcation and which were studied and discussed by the the commemorative exhibition of the 10th temporary appropriation of space] collective: Performances Fotográficas (in anniversary of Grupo UM, held at the Ga- Parque das Ruínas), Teatro Abstrato (Te- leria de Arte Ibeu, featuring works by Na- > Grupo Py atro Laura Alvim), Humanogravura (Teatro dam, Domingos and four fictional artists, PYrata, 2005 reuniu propostas de 80 artistas Odisséia) and Escultura Imaterial (Parque new members of the group, Aline Elias, em uma barca de travessia Rio de Janeiro- Lage). In 2004, they also integrated the Leo Liz, Juca Américo and Euclides Terra. Niterói. O grupo Py realizou uma chamada aberta e acolheu todos os artistas que enviaram exhibition Posição 2004 and the World propostas. A barca Itapuca circulou com seu Cultural Forum. Among the group’s par- Grupo Py. Influenced by Agora-Capacete, fluxo normal de passageiros durante todo o dia ticipating artists were Carlos Eduardo Ci- Orlândias, Vade Retro, Zona Franca, CEP do evento [PYrata puts together proposals of nelli, Jaya Pravaz, Julia Csekö, Joana Traub 20.000, Love’s House and Grupo UM, the 80 different artists in a ferry that connects Rio Csekö, Löis Lancaster, Pedro Seiblitz, Raïs- sisters Joana Traub Csekö and Julia Csekö and Niterói. The PY group made an open call e sa, Natalia Warth, Tissa Valverde, Moana founded the Grupo Py with some col- received all artists that applied. The Itapuca ferry Mayall, Bruno Castello, as well as Grupo leagues. Valuing the horizontal and cen- made its normal route, full of regular passengers UM founders. In 2005, in partnership with terless form, the first occupation of four during all the performance day]

176 poucas pessoas para transformar o mundo por conta- Costa com mais de 50 artistas. Muitos dos artistas fi- minações e reverberações. A proposta do Py era ins- zeram instalações site-specific em relação com os ob- tituir Zonas Autônomas Temporárias, levando arte a jetos da casa. Mesmo que tenha tido força suficiente lugares não convencionais, temporariamente ativa- para se firmar como um espaço e ocasião de exercício dos e vividos com liberdade e criatividade extremas. e troca entre artistas, o Projeto Apartamento teve ca- ráter mais privado que outras experiências. Entre os Projeto ApArtamento. Jonas Aisengart, perturbado artistas, estavam Andrei Yurievitch, Fernando Codeço, pelo acúmulo de pinturas em sua casa-ateliê, criou Guga Ferraz, Ícaro Lira, Júlia Debasse, Liza Machado, uma exposição que espalhasse seus trabalhos pelas Lucas Parente, Manoel Friques, Pedro Meyer, Pedro casas de amigos de forma a abrir espaço em sua pró- Victor Brandão e Tahian Bhering. pria residência e permitir que mais pessoas pudessem ver suas obras. Bruna Lobo apresentou a contrapropos- Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem ta de realizar uma única mostra em seu apartamento nome. Numa festa de artistas num ateliê em dezem- na Lapa com obra de vários artistas que estivessem na bro de 2009, um jovem e influente curador dizia “não mesma situação de Jonas. Assim surgiu o Projeto apar- tolerar excessos de liberdade” na arte e na vida. Do tamento: super uso em 2008. A segunda ocupação foi fato surgiu a ideia de realizar uma exposição viva em Copacabana, no apartamento de Marina Marche- e vibrante que articulasse artistas em torno de uma san, mas, ao ser anunciada, foi proibida pelo síndico discussão sobre liberdade, em março de 2010. O título do prédio e acabou ocorrendo num bar como Projeto da mostra provém de Perto do Coração Selvagem, ro- Apartamento II: quarto.sala.copa.cabana. A tercei- mance de estreia de Clarice Lispector, escrito aos vinte ra edição foi no apartamento do filósofo Alexandre anos, durante a 2a Guerra Mundial. Foram 43 artistas

177 houses under construction was held in the Projeto ApArtamento [ApArtment Proj- neighborhood of Itaipu, in Niterói. Shortly ect]. Jonas Aisengart, disturbed by the ac- after Márcia X's death, crossing the sea in cumulation of paintings in his home-stu- the ferry (barca) that navigates the Rio-Ni- dio, created an exhibition that scattered terói route, Grupo Py’s members decided to his works through friends’ houses, to honor the artist, who was one of the great make room in his own and for more peo- organizers of Orlândias. The houses were ple to see the pieces. Bruna Lobo presented located at rua Py, that’s why the tribute the counterproposal of holding a single was called Py = X, Circuito Aberto. Just as show in her apartment in Lapa with works in Orlândia, the title followed the street of several artists who were in the same name and the X was for Márcia X. In the situation as Jonas. This was the beginning second action, Py = X2, they occupied the of Projeto apartamento: super uso in 2008. gallery of the Niterói Art Foundation with The second occupation was in Copaca- small works. The third was Pyneo and took bana, at Marina Marchesan’s apartment, place in a warehouse in São Domingos, but, when announced, the building’s land- Niterói, alluding to Phillipe Pinel Institute. lord prohibitted it from happening. After The fourth and perhaps the most iconic, that, the gathering was performed in a PYrata, happened at the Rio-Niterói cross- bar as the Projeto Apartamento II: quarto. ing ferry, achieving great repercussion. sala.copa.cabana [bedroom.living room. The fifth, Pylar, ocupar, produzir, resistir, scullery.hut]. The third edition was in the [pylar, occupy, produce, resist] inspired by apartment of the philosopher Alexandre the Landless Workers’ Movement took Costa uniting more than 50 artists. Many place in a house in Santa Teresa. The last of them presented site-specific installa- action was the FEBEARio (2008), named tions interacting with the objects of his by the festival FEBEAPÁ (“foolishness home. Although the project had enough festival dropping on the country”) of the strength to establish itself as an ideal humorist Sérgio Porto, Stanislaw Ponte space and event for exchanges between Preta, honored at the Espaço Cultural artists, it was too private. Among the col- Sergio Porto, where the show took place. laborating artists were Andrei Yurievitch, Each action, the collaborators took differ- Fernando Codeço, Guga Ferraz, Ícaro Lira, ent turns: Daniel Murgel, Carolina Ponte, Júlia Debasse, Liza Machado, Lucas Par- Pedro Varela, Rodrigo Torres, Slot, Daniel ente, Manoel Friques, Pedro Meyer, Pedro Toledo, João Magalhães, Soraya Miranda, Victor Brandão and Tahian Bhering. Franz Manata and Saulo Laudares, Ernes- to Neto, Cleantho Viana, Cadu D’Olivei- Liberdade é pouco. O que desejo ainda ra, Marta Jourdan and Maria Laet, Pau- não tem nome. [Freedom is not enough. lagabriela, David Cury, Ricardo Ventura, What I desire has no name]. At a party in an Glaucia Mayer, José Damasceno, Marcos art studio in December 2009, an influential

Chaves, Barrão, Julio Callado, Alexandre young curator said “we must not tolerate Vista de uma sala da ocupação Liberdade é Vogler, Guga Ferraz, André Sheik, Rodrigo excesses of freedom both in art and life”. pouco. O que desejo ainda não tem nome Cabot, Deborah Engel, Mariana Manhães, The event resulted in the idea of ​​holding à esquerda uma instalação sonora da Vivian Botner&Pedro. Grupo Py was praising the a lively and vibrant exhibition that artic- Caccuri, na parede da frente, um lambe-lambe power of intense and creative gatherings ulated artists around a discussion about do Fernando de La Roque e à direita objeto de between a small group of people as trans- freedom in March 2010. The show’s title Pedro Victor Brandão e um tríptico de Leo Ayres formative, reverberating and contaminat- was inspired by Clarice Lispector’s novel [View from an occupation room Freedom is little. What I wish has no name, on the left a Vivian ing the world. The aim was to establish Near to the Wild Heart, written when she Caccuri sound installation, on the front wall, “Temporary Autonomous Zones”, taking was twenty years old during World War a street photograph by Fernando de La Roque art to unconventional places, temporari- II. The process gathered 43 artists having and on the right object by Pedro Victor Brandão ly activated and lived with extreme free- works, performances and different actions and a triptych by Leo Ayres] dom and creativity. for 3 days.10 The show opening lasted Foto [Photo] Pedro Victor Brandão

178 que participaram com obras, performances e ações convite do espaço comercial e o que realizam com por três dias.10 A abertura da mostra durou 12 horas, liberdade para experimentar na ocupação. Vênus e com 2800 pessoas e mais 1800 nos dois dias seguin- Terra são “planetas irmãos” com semelhanças e di- tes. Em 2011, as dezenas de horas filmadas por Pedro ferenças. A comparação entre os espaços estimulava Acosta como registro do processo da exposição teriam que os artistas delirassem. Participaram Ana Hupe, se perdido numa mudança. Os participantes incluíam Bob N, Bruna Lobo, Caroline Valansi, Claudia Hersz, Suzana Queiroga, Marcos Chaves, Maria Lynch, Raul Daniel Toledo, Isabela Sá Roriz, João Penoni, Suely Mourão, Raul Leal, Tiago Rivaldo, Joana Traub Csekö, Farhi e Tiago Rivaldo. Em 2012, ocorreu “Vênus Terra I Julia Csekö, Franz Manata e Saulo Laudares, Opaviva- pela lei natural dos encontros”, a partir de uma con- rá!, Vivian Caccuri, Pedro Victor Brandão, Ana Hupe, vocatória de artistas para compartilhar trabalhos Bob N, Bernardo Ramalho, Gilvan Nunes, Luiza Baldan, em processo, experimentar linguagens, performan- Bernardo Damasceno, André Parente, entre outros. ces e propostas relacionais. Participaram artistas oriundos de mais de 10 estados. Em 2013, em mais Vênus Terra. Em 2011, a mostra dupla Vênus Terra uma edição, os espaços do Teatro Ipanema (cochia, reuniu os mesmos artistas com obras mais seguras corredores, subsolo, hall, palco, plateia) receberam e contidas em menor escala na galeria Toulouse e Alex Hamburguer, André Amaral, Andrei Muller, montava num galpão na Lapa experimentos, insta- Bhagavan David + coletivo Bioma, Bruno Mendon- lações, processos, performances, arte sonora e rela- ça + Istmo, Cleantho Viana, Daniela Serruya Kohn, cional.11 Em confronto, o que os artistas produzem a David Ribeiro, Domingos Guimaraens, Elisa Castro

179 12 hours, with 2800 people and 1800 in the next two days. In 2011, the dozens of hours filmed by Pedro Acosta recording the exhibition process got lost in a house move. Among participant artists were Suzana Queiroga, Marcos Chaves, Maria Lynch, Raul Mourão, Raul Leal, Tiago Rival- do, Joana Traub Csekö, Julia Csekö, Franz Manata and Saulo Laudares, Opavivará!, Vivian Caccuri, Pedro Victor Brandão, Ana Hupe, Bob N, Bernardo Ramalho, Gilvan Nunes, Luiza Baldan, Bernardo Damasce- no, André Parente, amongst others.

Vênus Terra [Venus Earth]. In 2011, the double show Vênus Terra united the same artists with safer and smaller-scale works at Toulouse Gallery as well as ex- periments, installations, processes, per- formances, sound and relational art in a shed at Lapa.11 On one hand there was what artists produced at the invitation of the commercial space, on the other hand there was what they performed with freedom to experiment inside the occu- pation. Venus and Earth (Vênus e Terra) are “sister planets” with similarities and differences. Comparing the spaces was a claim for raving. Among them, Ana Hupe, Sá Roriz, Inês Nin, João Penoni, Julia Csekö, Bob N, Bruna Lobo, Caroline Valansi, Clau- Julio Callado, Leo Ayres, Luísa Nóbrega, dia Hersz, Daniel Toledo, Isabela Sá Roriz, Luiza Crosman, Opavivará!, Pedro Vic- João Penoni, Suely Farhi and Tiago Rivaldo. tor Brandão, Maíra das Neves, Maíra Vaz In 2012, there was also “Vênus Terra I pela Valente, Marcio Shimabukuro (Shima), lei natural dos encontros”[Venus Earth I for Mayra Redin, Mavi Veloso, Nadam Guerra, the natural law of meetings], convoking Nena Balthar + Roberto Correa, Rubiane artists to share works in process, experi- Maia and Polyanna Morgana. ment with languages, performances and relational proposals. Artists from over 10 Inhame, [yams] (2011-2012), created by Lui- states participated. In 2013, in new edition, za Machado and Fabrício Belsoff, in Lapa, spaces inside Teatro Ipanema (backstage, was an initiative aiming to be anti-insti- corridors, basement, hall, stage, audience) tutional. The actions happened at Casa received Alex Hamburger, Andre Amaral, da Escada Colorida, at the Selarón Stairs. It Andrei Muller, Bhagavan David + Bioma started with the occupation 10xUSO, with collective, Bruno Mendonça + Istmo, Cle- Aleteia Daneluz, Alex Topini, Ana Bial, Ana antho Viana, Daniela Serruya Kohn, Da- Dantas, Coletivo Filé de Peixe, Eduardo vid Ribeiro, Domingos Guimaraens, Elisa Coimbra, Fernanda Antoun, Guilherme Castro + Jonas Arrabal, Eduardo Montelli, Malfitano, Pedro Victor Brandão and Ur- Caroline Valansi Emanuel Aragão, Franklin Cassaro, Glaucia sula Tautz, and kept going as a shared stu- Pornografia política [Political pornography], 2015 Mayer, Hugo Richards + Natali Tubench- dio and residence. The Encontros sensíveis Serigrafia sobre papel [Screen print on paper], lak, Ícaro Lira + Lucas Sargentelli, Isabela were gatherings in which the artists 70 × 50 cm

180 + Jonas Arrabal, Eduardo Montelli, Emanuel Aragão, coletiva Canal Molambo e um núcleo de design. O Franklin Cassaro, Glaucia Mayer, Hugo Richards + Norte Comum se vinculou a uma rede de coletivos Natali Tubenchlak, Ícaro Lira + Lucas Sargentelli, da Zona Norte de colaboração, fomento, viabilização Isabela Sá Roriz, Inês Nin, João Penoni, Julia Csekö, e circulação de atividades culturais na região. Desta- Julio Callado, Leo Ayres, Luísa Nóbrega, Luiza Cros- cam-se as aulas de História do Rio em bares e praças man, Opavivará!, Pedro Victor Brandão, Maíra das (as Ágoras Cariocas) e a relação com o Hotel Spa da Neves, Maíra Vaz Valente, Marcio Shimabukuro Loucura.12 O Norte Comum é mutante, objetiva criar (Shima), Mayra Redin, Mavi Veloso, Nadam Guer- o comum biopolítico como meta em ações públicas ra, Nena Balthar + Roberto Correa, Rubiane Maia e como troca de conhecimento. Polyanna Morgana. Leão Etíope do Méier. No encontro entre as ruas Dias Inhame. O Inhame (2011-2012), criado por Luiza Macha- da Cruz e Hermengarda, há um leão dourado. O Leão do e Fabrício Belsoff, na Lapa, tinha objetivo anti-ins- do Méier guarda a entrada do bairro como ação pu- titucional e se localizava na Casa da Escada Colorida, blicitária do Lions Club International. A partir de ex- na Escadaria Selarón. Foi inaugurado com a ocupação periências e desejos do Norte Comum, o grupo “Leão 10xUSO, com Aleteia Daneluz, Alex Topini, Ana Bial, Etíope do Méier” (2014) realiza atividades híbridas e Ana Dantas, Coletivo Filé de Peixe, Eduardo Coimbra, multiartísticas na praça Agripino Grieco, onde há um Fernanda Antoun, Guilherme Malfitano, Pedro Victor anfiteatro público. O grupo se refere ainda ao leão de Brandão e Ursula Tautz, e seguiu como ateliê compar- Judá, presente na antiga bandeira da Etiópia (que re- tilhado e residência. Os Encontros sensíveis mostraram sistiu à colonização, exceto sob o fascismo italiano), ao público experiências de Anton Steenbock e Marcelo cujas cores inspiraram o panafricano e o rastafári. Co- Mudou resultantes dos meses de trabalho da dupla na meçou como roda de samba para levantar fundos para casa com a colaboração de Belsoff e Machado. o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo (de Candeia, e Wilson Moreira), Norte Comum. Na Zona Norte surgiu uma rede para cuja sede fora destruída por uma tempestade. Ativi- debater a relação entre a região e a cultura (2011). Per- dades quinzenais de música, cinema, artes visuais, cebendo que as instituições culturais apoiadas pelo teatro, circo, carnaval, dança, gastronomia, aulas de governo, patrocinadores e leis de incentivo se aden- história e manifestações políticas tomaram a praça. savam apenas do centro à Zona Sul, rejeitaram o mito Facção cultural, o Leão Etíope objetiva criar programa- de que a Zona Norte não tem interesse na cultura e ção democrática, alterar o imaginário sobre o bairro criaram redes de produtores culturais e de público in- e redirecionar o eixo Zona Sul-Zona Norte de ativida- teressado. O Norte Comum não é um “coletivo de arte” des culturais de qualidade. Temas relativos à matriz nem é formado só por artistas, mas por interessados africana, à valorização do povo negro carioca e à luta em pensar a cultura e pautas da região sob a experi- antirracista são fortes no coletivo. O Leão Etíope é um ência de habitá-la. Com ação propositiva, sugeriram modo de ocupação parainstitucional de espaços públi- ao Sesc Tijuca a curadoria uma programação de mú- cos para artistas independentes. Sua continuidade do sica a partir da escuta dos desejos dos habitantes da espaço já vai a mais de cem edições. Com os ativadores região. Tudo se desdobrou na Geringonça, que articu- Deborah Fontenelle, Bê Lima, P.H., Karoline Ruthes e la artes visuais, música, blocos de carnaval, dança, pa- Pedro Rajão – o Leão é uma plataforma de aprendiza- lestras, teatro, gastronomia, circo etc., orquestrados do aos que desejam transformar espaços ociosos em em ações únicas. Criaram a produtora audiovisual equipamentos culturais de independentes.

181 Anton Steenbock and Marcelo Mudou thus engaged in many collectives of the de Arte Negra and for Escola de Samba Qui- presented public experiences with pieces North Zone for having more collaboration, lombo (of Candeia, Nei Lopes and Wilson created after months of work there, in col- fostering, viability and circulation of cul- Moreira), whose headquarters had been laboration of Belsoff and Machado. tural activities in the region. We can high- destroyed by a storm. Over time, biweekly light the Rio History classes conducted in activities of music, cinema, visual arts, the- Norte Comum [Common North]. In Zona bars and squares (the Cariocas Agoras) ater, circus, Carnival, dance, gastronomy, Norte area, a network was created to de- and the actions held at the Hotel Spa da history classes and political manifesta- bate relations between region and culture Loucura.12 Norte Comum is quite mutant tions took over the square. Calling itself a (2011). Realizing that government-backed and seeks to create the biopolitical com- “cultural faction”, Leão Etíope aims to cre- cultural institutions, sponsors and incen- mon as a goal in public actions, as a means ate democratic programming, transform tive laws were only directed to the Cen- to knowledge exchange. the imaginary about the neighborhood ter to Zona Sul [South Zone] areas. Norte and redirect the Zona Sul-Zona Norte[- Comum members rejected the myth that Leão Etíope do Méier [Méier’s Ethiopian South-North zones] axis for bringing qual- Zona Norte has no interest in culture and Lion]. Right in the meeting of the streets ity cultural activities. African array themes united networks of cultural producers Dias da Cruz and Hermengarda, there is a towards the valorization of the black peo- and an interested audience. It is not con- golden lion. It is the lion guarding Méier ple in Rio and the anti-racist struggle repre- sidered an “art collective”, and not consti- entrance as an advertising action for Lions sent the collective’s flagship. Leão Etíope is tuted uniquely by artists, but interested Club International. From experiences and a para-institutional occupation of public in thinking about culture and the agen- desires raised inside Norte Comum, the spaces form for independent artists. It has das of this region from inside, inhabiting group “Leão Etíope do Méier” (2014) started reached more than one hundred editions. it. As a purposeful action, they suggested performing hybrid and multiartistic activ- With activators like Deborah Fontenelle, that Sesc Tijuca curated a music program ities in the Agripino Grieco square, where Bê Lima, P.H., Karoline Ruthes and Pedro based on the musical wishes of the inhab- there is a public amphitheater. The group Rajão – the Leão is a learning platform for itants. This initiative resulted in Gerin- also refers to the lion of Judah of the an- those wanting to transform unused spac- gonça, which articulates visual arts, music, cient flag of Ethiopia (which is a country es into independent cultural equipment. Carnival blocks, dance, seminars, theater, that resisted colonization, except under gastronomy, circus etc. – all orchestrated the Italian fascism), whose colors inspired Vade Retro Abacaxi. From the Group in unique actions. They created the collec- the Pan-Africanism and the Rastafarian- Artes Visuais e Políticas [Visual Arts and tive audiovisual producer Canal Molambo, ism. It started as a samba gathering orient- Politics], formed by artists opposed to the as well as a design center. Norte Comum ed to raise funds for the Grêmio Recreativo Guggenheim Museum, emerged the Bloco

Bloco Vade Retro Abacaxi Desfile de 2015, Praia de Ipanema, Rio de Janeiro [Carnival block 2005, Ipanema beach]

> Opavivará Pula-cerca [Jumping the fence], 2009 Intervenção poética nos gradis da praça Tiradentes, com 8 escadas de obras [Poetic intervention at Tiradentes square fences, with 8 construction ladders]

182 Vade Retro Abacaxi. Do grupo Artes Visuais e Polí- independentes na cidade do Rio com participações ticas, de artistas opostos à filial do museu Guggen- em grandes bienais, festivais e museus. heim, surgiu o Bloco Vade Retro Abacaxi (2011), que, bienalmente, desfila no carnaval andando de costas O Coletivo Filé de Peixe (2006) investiga arte como do Arpoador ao Posto 9, em Ipanema, envolvendo os produto destinado ao consumo e ao colecionismo, frequentadores da orla. A concentração é marcada criando formas subversivas de recepção, reprodu- pela distribuição de “presentes”, símbolos do desfile ção, comercialização e circulação da arte, hackeando (cartazes, adereços, adesivos). O bloco foi organizado laços institucionais tradicionais. No Piratão (2009), por Suely Farhi e Aimberê Cesar. O Vade Retro realiza o no processo da economia informal, comercializam “AÇÃOEMBLOCO”, desfile-ato em apoio a causas (Al- cópias piratas de videoarte contemporânea e histó- deia Maracanã e o Museu da Maré). Já homenageou o rica de um acervo de mais de mil títulos. O coletivo ZenNudismo de Aimberê. se desenvolveu em espaços públicos, mas propôs ações em espaços tradicionais de arte. OPAVIVARÁ!, coletivo carioca de artistas, continu- amente ativo desde 2005, em diversas formações, in- A Gentil Carioca, criada pelos artistas Ernesto Neto, vestiga a substância do que é comum por meio da Laura Lima e Marcio Botner em 2003, tornou-se uma produção de obras e ações vibrantes que estimulam influente galeria latino-americana, participando de experiências de práticas coletivas e/ou colaborati- feiras de arte, enquanto nutre uma forte relação com o vas. Mesmo desenvolvendo projetos também em es- Rio e com a região da Praça Tiradentes onde se localiza. paços institucionais, entendem que todo momento Sua exposição Abre Alas ocorre sempre logo antes do público é ocasião para ação e aprendizado. O traba- Carnaval, com jovens artistas selecionados por portfó- lho do coletivo tem alcançado repercussão local e lios. Em Parede Gentil, artistas ocupam uma empena internacional, de modo que alternam experiências cega externa da galeria com obra site specific. Artistas

183 works and actions that stimulate expe- riences of collective and/or collaborative practices. Although it also develops proj- ects in institutional spaces, its members understand that every public moment is an occasion for action and learning. The collective’s work has already reached lo- cal and international repercussions, so they engage both in independent expe- riences in Rio and in major gatherings, such as biennials, festivals and museums.

Coletivo Filé de Peixe [Fish fillet collec- tive] (2006) investigates art as a product intended for consumption and collecting, trying to create subversive forms of recep- tion, reproduction, commercialization and circulation of art, hacking traditional insti- tutional ties. In the action Piratão (2009), an informal economy process, the artists Vade Retro Abacaxi (2011), which, every performs the “AÇÃOEMBLOCO”, a pa- sold pirating copies of contemporary and two years, parades in Carnival walking rade-act supporting particular causes (Al- historical video art from a collection of backwards from Arpoador to Posto 9, in deia Maracanã and Museu da Maré). It has over 1.000 titles. The collective has devel- Ipanema, inviting people walking in the already honored ZenNudism of Aimberê. oped in public spaces, but also proposed beach waterfront. The concentration is actions in traditional art spaces. marked by the distribution of “gifts”, sym- OPAVIVARÁ!, a Carioca art collective bols of the parade (posters, props, stickers). that is active since 2005, in various for- A Gentil Carioca, created by the artists This Carnival block was initiated by Suely mations, that investigates the substance Ernesto Neto, Laura Lima and Marcio Bot- Farhi and Aimberê Cesar. The Vade Retro of what is common producing vibrant ner in 2003, has become an influential

Alessandra Vaghi Continente de sobrevivência, 2007 Ação durante a BAB – Bienal Anual de Búzios [tradução], 2007

Daniel Toledo Intervenção no espaço público, durante a BAB – Bienal Anual de Búzios [Public space intervention during Búzios annual biennal], 2007

184 desenham para o projeto Camisa Educação com tema de importância para a educação para o Brasil. Essa ações e as demais exposições se relacionam com o en- torno, da área comercial da Saara à zona de prostitui- ção da Praça Tiradentes. Por ser uma galeria gerada e gerida por artistas, a trajetória da Gentil tem uma ação livre, radical e experimental, fugindo da atitude conti- da esperada das galerias comerciais. Muitos dos prin- cipais artistas citados neste ensaio são representados pela Gentil ou participaram de suas ações. Em 2015, a entrada de Elsa Ravazzolo como diretora e, posterior- mente, sócia da galeria representou a confirmação de um caminho em direção à maior profissionalização do empreendimento. A galeria já operou como “embaixa- da” carioca ao fazer mostras em museus estrangeiros sobre arte no Rio. Mesmo tendo forte trajetória inter- nacional (é a única carioca na Art Basel, por exemplo), A Gentil Carioca mantém a vibração, o impacto e a relevância de um espaço independente no contexto local. Um momento icônico da galeria se deu quan- do Simone Michelin se apropriou da performance O baile, de Laura Lima, para compor a abertura de sua obra O espírito do Rio em comemoração ao primeiro aniversário de A Gentil Carioca, em 2004. Michelin justapôs imagens do tableau-vivant de Lima, encena- do por artistas como Alex Hamburger, a um trecho da ópera A flauta mágica de Mozart.“É como se a situação, a realidade ou irrealidade do mundo da arte carioca, o bom e o ruim da corte (...), de certa maneira, estivesse também retratada ali”, disse Michelin.

BAB Bienal. A Bienal Anual de Búzios é irreverente, organizada pelo artista Armando Mattos. Em 2007, ocupou um galpão na Orla Bardot com 15 artistas. Ao longo dos anos, já se realizou em praça pública, espa- ços em reforma, em publicações e em parceria de esco- las públicas. OPAVIVARÁ!, Laura Lima, Ernesto Neto, Guga Ferraz Daniel Toledo, Bruno Mendonça, Leo Ayres, Alessan- Cidade-dormitório [Dormitory-city], 2007 dra Vaghi, Marcos Bonisson, Martin Ogloter, Simone 8 beliches na parede cega da galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro [8 bunk beds Michelin, Enrica Bernardelli, Joana Cesar e Panmela against the blind wall of Gentil Carioca gallery] Castro são alguns participantes.

185 Latin American gallery, participating in BAB Bienal. The Buzios Annual Biennial processes of Carioca artists, as well as a re- art fairs, while nurturing a strong rela- is irreverent, organized by the artist Ar- sponse to the transformations of context tionship with Rio and the region around mando Mattos. In 2007, he occupied a in Rio.13 This case study should certainly Tiradentes Square, where it is located. The shed at Orla Bardot with 15 artists. Over be further expanded and deepened. exhibition Abre Alas always opens before the years, many actions have been held in During the analyzed time, the city expe- Carnival, with young artists selected by public squares, spaces under renovation, rienced growth and euphoria with mega portfolios. In the Parede Gentil action, art- publications and collaborating with pub- events and changes, but also suffered ists occupy a blind external gable at the lic schools. OPAVIVARÁ!, Laura Lima, Er- with strong political and economic crises. wall of the gallery with some site-specif- nesto Neto, Daniel Toledo, Bruno Mendonça, The sequel of bad government rulers, the ic works. There, artists also draw for the Leo Ayres, Alessandra Vaghi, Marcos Bonis- redistribution of oil royalties, the inter- Camisa Educação [Education Shirt] project son, Martin Ogloter, Simone Michelin, En- national crisis in product prices, the ex- with a theme of importance for Brazilian rica Bernardelli, Joana Cesar and Panmela tensive political corruption, the arrival of education. These actions and other exhi- Castro are amongst the participants. the PCC [criminal organization] from São bitions relate to the surroundings, from Paulo in the city, the UPP [Community the Sahara commercial area to the pros- Exhibiting parties: GangBang, Bota na Police Project] collapse and the genocide titution zone around Tiradentes Square. Roda, Prazer é Poder e Boca. Rio has a tradi- of young black people are some of the For being a gallery created and managed tion of holding parties with artists’ partic- contributing factors that truly destroyed by artists, Gentil’s path raises free, radical ipation or exhibitions with parties. Some lives and undermined both the Cariocas and experimental actions, getting away of the movements referenced herein have self-esteem and economy. from the contained attitude expected of created experiences like that, such as the At the same time, the art market has commercial galleries. Many of the main Rés do Chão, as there is a seek for the po- evolved and strengthened; now young artists cited in this essay either are rep- litical potential of the collective enjoyment artists have different dreams. Radical an- resented by Gentil or have already partic- and celebration. GangBang party, held at ti-institutional experiences gave way to ipated in their actions. In 2015, when Elsa Fosfobox club between 2010 and 2012 had the excessive professionalism amongst Ravazzolo became the gallery’s director video projection and was organized by artists and projects from alternative or and, later, a partner, Gentil strengthened André Amaral, Icaro dos Santos and Saulo parainstitutional institutions.14 its path towards a greater profession- Laudares. Bota na Roda, formed by 30 peo- A certain lethargy hits the way art sys- alization of the venture. The gallery has ple, occupied the space of COMUNA in tem operates – limited to the opposition already operated as a Carioca “embassy” Botafogo, migrating afterwards to other to identity and representativeness is- by holding small shows about art in Rio locations in the city, presenting installa- sues –, which signals that many simulate inside foreign art museums. Even though tions and performances at electronic music way more than experience the critique it has a strong international history (it parties. From 2013 to 2015, the group had a of their transformative role within the is the only Carioca gallery in Art Basel, countercultural motto, aimed at the expan- cultural system. High experts, artists for example), Gentil Carioca preserves sion of a behavioral revolution. Each action become machines fueling institutions the vibration, impact and relevance of had a specific theme, with artists, writ- and events with the appropriate prod- being an independent space in the local ers and cultural producers (Tiago Rivaldo, ucts. By localizing system demands in- context. An iconic moment in the gallery OPAVIVARÁ!, Anna Costa e Silva, Antoine stead of what the flow of adventures and happened when Simone Michelin took Guerreiro do Divino Amor, Bruno Balthazar, ownership of Laura Lima’s performance João Penoni, Matheus Rocha Pitta, Susana O baile to compose the opening of her Guardado, Marcos Chaves). With its termi- work O espírito do Rio, in commemoration nation, Susana Guardado and the curator of the first anniversary of the gallery, in Bernardo José de Souza launched the “he- 2004. Michelin juxtaposed images from donistic and errorist” movement Prazer é Marcela Cantuária Lima’s tableau-vivant, staged by artists poder (2015), a party-exhibition-political Fantasmas da esperança like Alex Hamburger, inside an excerpt manifestation about pleasure and power [Phantoms of hope], 2018 Acrílica e óleo sobre tela [Acrylic and from Mozart’s opera The Magic Flute. “It carrying the participants repertoire. oil on canvas], 340 × 450 cm, círculo is just as if the situation, the reality or un- These are just some of the many initia- de madeira [wood circle] ø 100 cm reality of Rio’s art world, the court’s good tives undertaken in Rio de Janeiro be- Instalação no [Exhibition view] and bad (...), in a way, was also pictured in tween the late 1990s and 2015, which Solar dos Abacaxis, 2018 that scenario”, affirmed Michelin. occurred as consequences of previous Foto [Photo] Renato Mangolin

186 Expo-festas: GangBang, Bota na Roda, Prazer é Po- em festas de música eletrônica. De 2013 a 2015, o gru- der e Boca. O Rio tem uma tradição de festas com par- po tinha tom contracultural, mirava na expansão da ticipações de artistas ou mostras com festas. Alguns revolução comportamental. Cada ação tinha um tema, movimentos supracitados criaram experiências desta com artistas, escritores e produtores culturais (Tiago ordem, como o Rés do Chão, guiado por pesquisa sobre Rivaldo, OPAVIVARÁ!, Anna Costa e Silva, Antoine o potencial político do gozo coletivo e da celebração. A Guerreiro do Divino Amor, Bruno Balthazar, João Pe- GangBang, realizada no clube Fosfobox, entre 2010 e noni, Matheus Rocha Pitta, Susana Guardado, Marcos 2012, contava com projeção de vídeos, e era organizada Chaves). Com o fim do Bota na Roda, Susana Guardado por André Amaral, Icaro dos Santos e Saulo Laudares, e o curador Bernardo José de Souza lançaram o mo- e o Bota na Roda, formado por 30 pessoas, ocupou o vimento “hedonista e errorista” Prazer é Poder (2015), espaço da Comuna em Botafogo até migrar para ou- festa-exposição-manifestação política com aquele re- tros locais da cidade, com instalações e performances pertório de participantes.

187 work growth require, the artist danger- inside the elitist academy, they even achievements of an expressive group ously corrupts his creative abilities. The produced documents calling these move- of artists of a generation. The particular over-specialization of professionals in ments contemplative, affirming that one ephemerality associated to the radical- art system presented in repeated move- could only extract a “slight smell of hap- ity of their actions resulted in the ex- ments – which rigorously define the piness and hangover” and requiring “or- istence of very few written documents boundaries, functions and performance der, constancy and accuracy” from them. about them. In most cases, more or less of critics, curators, institutions. etc. – also Heirs of the historiography, criticism purposefully, there was no concern fuels the maintenance of status quo. and management of institutional spaces, with creating and disseminating the More than defining what an artist, cu- focusing for decades on the cultural pro- memory around their activities. This is rator, critic or institution should do, one duction of white people, heterosexual and also intended to provide an opportunity must imagine what is still out there to do. rich men through – a more or less con- for new generations to learn and be in- This essay is also constructed as a form scious – effort to obliterate the production spired and go beyond what those artists of justice against a part of Rio’s academic of women, black people, LGBTs and mar- have already strongly and truthfully criticism anchored in a formalist gene- ginalized in general, they now accuse these achieved in the last decades. This is the alogy of intellectuals, who, uncomfort- movements of being too insubordinate to way to finding more diverse insubordi- able with the insubordination of these the same system built by their masters. nate raving young people – to whom proposals, classified these artists as na- Although comprehensively exposed we owe and will owe our ravishment ive, infertile and unimportant. Towered herein, this research recognizes the and gratitude.

188 Estas são apenas algumas das iniciativas realizadas trabalho, o artista perturba perigosamente sua capa- no Rio de Janeiro entre o fim dos anos 1990 e o ano cidade criativa. A superespecialização de profissionais de 2015. Elas ocorreram como consequências de reali- do sistema da arte em movimentos recorrentes – que zações anteriores dos artistas cariocas e como reações definem rigorosamente limites, funções e atuação de aos processos de transformação do contexto do Rio.13 críticos, curadores, instituições etc. – alimenta a ma- Este estudo de caso deve ser ainda ampliado e apro- nutenção do status quo. Mais do que definir o que um fundado. Nesse tempo, a cidade passou por crescimen- artista, curador, crítico ou instituição deve fazer, cabe to e euforia com megaeventos e mudanças, mas sofreu imaginar o que ainda pode fazer. fortes crises política e econômica. A sequência de pés- Este ensaio também se constrói como uma realiza- simos governantes, a redistribuição dos royalties do ção de justiça contra uma parte da crítica acadêmica petróleo, a crise internacional do preço do produto, a carioca ligada à genealogia mais formalista de intelec- extensa corrupção política, a chegada do PCC paulista tuais, que, incomodados com a insubordinação destas à cidade, a falência das UPPs e o genocídio dos jovens propostas, classificaram estes artistas como ingênuos, negros destruíram vidas e derrubara a autoestima e a inférteis e desimportantes. Encastelados na academia economia cariocas. elitista, chegaram a escrever que estes movimentos Ao mesmo tempo, o mercado de arte se fortaleceu são contemplativos, que deles restou apenas um “leve e o sonho dos jovens artistas se modificou. Experiên- cheiro de felicidade e ressaca” e cobram deles “ordem, cias radicais anti-institucionais deram lugar ao pro- constância e exatidão”. Herdeiros da historiografia, da fissionalismo excessivo dos artistas e dos projetos de crítica e da gestão de espaços institucionais que por instituições alternativas ou parainstitucionais.14 Certa décadas debruçaram-se prioritariamente sobre a pro- letargia em face do funcionamento do sistema da arte – dução cultural de homens brancos, heterossexuais e limitada à oposição em caso de questões identitárias ricos num esforço – mais ou menos consciente – de e de representatividade – sinaliza que muitos mais si- obliteração da produção de mulheres, negros, LGBTs mulam do que experimentam a crítica de seu papel e marginalizados em geral, acusam esses movimentos transformador diante do sistema cultural. Superespe- de serem insubordinados demais ao sistema que seus cializados, os artistas se tornam máquinas de alimen- mestres ajudaram a construir. tar mercado, instituições e eventos com produtos ade- A presente pesquisa, ainda que seja um processo quados. Ao localizar as demandas do sistema no lugar aqui exposto, reconhece os feitos de um grupo ex- das demandas do fluxo de aventura e crescimento do pressivo de artistas de uma geração. A efemeridade associada à radicalidade de seus feitos fez com que re- lativamente pouco fosse escrito sobre suas ações. Na maioria dos casos, de maneira mais ou menos proposi- tal, não houve preocupação com a construção e circu- Bote da Jararaca lação da memória de suas atividades. Este ensaio de- Crianças e adolescentes ligados ao Instituto Todos na Luta, em atividade coordenada por Prili e Solar dos Abacaxis, seja oferecer oportunidade para que as novas gerações ativando obra do coletivo Bote da Jararaca no evento Manjar: possam conhecer, se inspirar e ir além do que aqueles Somos Muitxs, que ocorreu na véspera do segundo turno das artistas realizaram com tanta força e verdade nas úl- eleições de 2018 [Jararaca's attack. Children and adolescents linked to the Todos na Luta Institute, coordinated by Prili timas décadas, para que assim possamos ter, entre os and Solar dos Abacaxis, activating the work of the Jararaca's jovens, cada vez mais, melhores e mais diversos insu- attack collective at the event Manjar: Somos Muitxs, which took place on the eve of the 2018 runoff election] bordinados delirantes, a quem devemos e deveremos Foto [Photo] Renato Mangolin nossos arrebatamento e gratidão.

189 Os fins dos tempos – futuros passados e passados futuros na arte contemporânea do Rio de Janeiro

Leno Veras

The ends of times – continent – which can be seized, for ex- future pasts and past futures ample, in the visual arts field by the ap- in contemporary art scene pearance of a historiographical system- of Rio de Janeiro atization that is based on the seminal text published in 1764 by Johann Joachim Future pasts Winckelmann, entitled “Reflections on On February 20, 1909, the Italian poet Ancient Art” – and its central characteris- Filippo Tommaso Marinetti published tic is the radicalization of the asymmetry in the French newspaper Le Figaro a text between past, present and future, stand- containing a series of proposals for the ing out since the 18 th century, occurred conformation of new aesthetic, among with the intensification of what we call which was the following statement: “We “nostalgia of ruins”. are facing the extreme promontory of the The multiplication of objects and artifacts centuries!... Why should we look back if collections of the most varied natures aris- we want to break through the mysterious ing at the creation of the cabinets of curi- doors of the Impossible? Time and Space osities (wunderkammer) acted like mecha- died yesterday. We are already living in nisms of representation; that is, the past the absolute as we have already created was present through residues, narrative the eternal omnipresent speed”. fragments that composed a worldview A century after this manifestation, we that correlated individuals and the world. can perceive the unfolding being uncov- This happened in order to engender a ered from this acceleration propelled in form of mediation, combining space and the middle of the 19th century, which over- time in a cadavre exquis, conforming true whelmingly culminates at the beginning nurtures of nostalgia – a possible and an of the 20 th century in what’s associated impossible at a single time –, reconfigured with the complex modifications by which as reverse utopia. the structures of western societies have In this sense, patrimonialization and – Cildo Meireles been rearranged due to the industrial and taking into account the subsequent stages Cadê Amarildo? Inserções em circuitos techno scientific revolutions and also, in of the formation of collections as a pre- ideológicos – Projeto Cédula [Where is Amarildo? Insertions in ideological circuits – Banknote particular, in the implementation of new cursor to the idea of museums and its Project], s.d. [undated] temporalities and uses. subsequent occurrences – musealization th Carimbos sobre cédulas [ Stamps on banknotes] Since the 17 century, a new sense of both become appealing to this brief Foto [Photo] Pat Kilgore temporality has emerged in the European critical comment, which according to

190 Futuros passados engendrar uma forma de mediar-se, combinando No dia 20 do mês de fevereiro do ano de 1909, Filippo espaço e tempo em um cadavre exquis, conforman- Tommaso Marinetti, poeta italiano, publicou no jor- do verdadeiros cultivos de nostalgia – uma possível nal francês Le Figaro um texto de sua autoria com e impossível a um só tempo –, reconfigurada como uma série de propostas para a conformação de uma utopia às avessas. nova estética, dentre as quais figurava o seguinte É nesse sentido que a patrimonialização e – tendo enunciado: “Nós estamos no promontório extremo em perspectiva as etapas subsequentes da prática da dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, formação de coleções como precursora da ideia de se queremos arrombar as misteriosas portas do Im- museu e suas posteriores ocorrências – a musealiza- possível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós ção interessa a este breve comentário crítico, posto já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a que, segundo Andreas Huyssen, em seu livro Seduzi- eterna velocidade onipresente”. dos pela memória (2000), “a nostalgia se contrapõe às Passado um século dessa manifestação, podemos noções lineares de progresso, ou até as solapa, quer empreender uma observação dos desdobramentos sejam elas dialeticamente emolduradas como filoso- que se descortinaram a partir dessa aceleração propul- fia da história, quer sejam sociológica e economica- sada em meados do século XIX, culminando avassala- mente vistas como modernização”. doramente, no princípio do século XX, não somente Podemos correlacionar essa abordagem a outro ar- no que diz respeito às complexas modificações pelas gumento de Huyssen, presente na obra Culturas do quais as estruturas das sociedades ocidentais foram passado-presente: modernismos, artes visuais e prá- reconfiguradas devido às revoluções industriais e ticas da memória (2014), no qual se apresenta um tecnocientíficas ocorridas, mas, em específico, na im- diagnóstico da expansão da musealização como um plementação de novas temporalidades e seus usos. vício das sociedades modernas, baseado na premissa Desde o século XVII, emergiu no continente euro- do consumo, significando dizer que“o passado ven- peu um novo sentido de temporalidade – o que pode de mais do que o futuro”. Isso nos ajuda a refletir so- ser apreendido, por exemplo, no campo das artes vi- bre como contextos como o brasileiro, no ano de 2015, suais pelo surgimento de uma sistematização histo- pode levar a serem erigidas instituições tais como o riográfica que tem como marco o texto seminal pu- Museu do Amanhã, que opera no sentido inverso, pro- blicado em 1764 por Johann Joachim Winckelmann, blematizando o porvir em uma instituição museal. intitulado “Reflexões sobre a arte antiga” –, cuja ca- Nomear de tal forma um museu sintetiza a pro- racterística central é a radicalização da assimetria blemática sobre a qual se debruça outro autor desse entre passado, presente e futuro, sobressaindo-se campo de pesquisa: Jonathan Crary, que apresenta desde o século XVIII, quando o que se pode denomi- como sintomática desse período de transição de épo- nar nostalgia das ruínas intensificou-se. cas em que vivemos a percepção de que o tempo aca- Sobretudo por meio da multiplicação de coleções bou, ou está eternamente acabando, considerando de objetos e artefatos das mais variadas naturezas, o “tempo como condição essencial para a inteligibi- com o advento dos gabinetes de curiosidades (wun- lidade do mundo” (2014), de modo que a operação de derkammer) enquanto mecanismos de representação, sobrepor ou suprimir diferentes modos de apreender o passado se fazia presente por resíduos, fragmentos a estruturação da narrativa temporal, como “tempo narrativos que compunham uma cosmovisão que passado” e “tempo futuro”, através de um mecanismo correlacionava os indivíduos e o mundo, de modo a de articulação de temporalidades.

191 Andreas Huyssen in the book Seduzidos pela Memória (2000), “nostalgia is op- posed to the linear notions of progress, or can even undermine them, whether dialectically framed as a philosophy of history, or sociologically and economically perceived as modernization”. We can correlate this approach to other argument Huyssen maintains in the work Culturas do passado-presente: modernis- mos, artes visuais e práticas da memória (2014), which presents a diagnosis of the expansion of musealization as an addic- tion of modern societies, based on the consumption premise, meaning “the past sells more than the future”. This helps us think about how contexts such as the Bra- zilian, in the year 2015, can lead to the cre- ation of institutions such as the Museum of Tomorrow, which operates in the oppo- site direction, problematizing the future of the museum institutions. To name a museum in such a way sum- marizes the problematic on which anoth- er author of this field of research focuses: Jonathan Crary. He argues that the per- ception that time is over, or is continu- ously ending, given that “time as an es- sential condition for the intelligibility of the world” (2014) is a symptom of this pe- riod of transition of times that we are ex- periencing, understanding the operation of overlapping or suppressing different ways of apprehending the structuring

Coletivo Bonobando Monumoments Concepção [Conception]: Coletivo Bonobando [Hugo Bernardo, Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, Vanessa Rocha e as convidadas Christina Gabriela, Larissa Bery, Mariah Valeiras e Suellen Tavares] Direção [Direction]: Adriana Schneider e Simon Will Colaboração [Collaboration]: Lucas Oradovschi Dramaturgia e texto [Dramaturgy and text]: Coletivo Bonobando e Amora Pêra Comissionado pelo Festival Atos de Fala em sua edição AdF.crise, com apoio do Goethe-Rio [Commissioned by the Atos de Fala Festival in your AdF.crise edition, with support of Goethe-Rio] Foto [Photo] Anette Carla Alencar

192 Em tempo: retornando ao princípio dessa argumen- virtudes das nações modernas: fidelidade, justiça, tação para concluir a primeira etapa desta proposição, união e liberdade. cabe trazer à baila a fala de David Harvey (2007) acerca A liberdade foi elegida para um dos atos da inter- do contexto do final do século XIX e início do século venção performativa realizada pelo coletivo Bono- XX, época descrita como período em que as transfor- bando, criado na zona norte, em 2014, pelos artistas mações das práticas espaciais e temporais implica- Adriana Schneider, Daniela Joyce, Hugo Bernardo, ram uma perda da identidade com o lugar e repetidas Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, rupturas radicais com todo o sentido de continuida- Lucas Oradovschi, Marcelo Magano, Patrick Sonata, de histórica, na qual museus, bibliotecas, arquivos e Thiago Rosa, Vanessa Rocha e pelos produtores Joyce outras arquiteturas mnemônicas passaram a objeti- Torres e Marcelo de Brito. var organizações coerentes voltadas a “inventar uma Nessa ação, exibida ao público em abril do ano de tradição”, resposta direta ao horror vacui. 2018, a escultura, imunda por tornar-se reiterado alvo Essa expressão conclui nossa aproximação inicial dos encargos intestinais dos pássaros columbinos à temática, pois sintetiza o entrecruzamento entre que ali habitam, recebeu a investida sanguínea da práticas de formação de memórias e conformação de cor vermelha de uma purpurina que escorrera desde imaginários, circunscritas, nesta fala, às ações polí- sua face até seu ventre, avivando o corpo inerte como tico-poéticas – aqui entendidas como dispositivos que em um ato de ressureição dessa alegoria morti- mediadores de temporalidades – engendradas por ficada por sua condição original, mas também pela sujeitos cuja experiência no espaço do Rio de Janeiro deslembrança de sua finalidade. e no tempo do século XXI são potentes disparadores O ciclo de intervenções, brilhantemente batiza- de entendimentos sobre as relações contemporâneas do como Monumoments, segue pelas demais musas entre práxis artísticas e ativistas frente ao recrudes- brônzeas, encenando ritos habituais para aquela ju- cimento sistemático de dinâmicas de esquecimento, ventude marginalizada, como as corriqueiras revis- apagamento e aniquilamento. tas policiais, dirigidas somente aos pretos e pardos, por meio das quais implantam-se provas ou asse- Pretérito mais-que-perfeito diam-se sexualmente, por exemplo, moças e rapazes A Praça Tiradentes, logradouro fundado no século que tentam mobilizar-se por entre tiranias e tiroteios. XVII, a princípio denominada Rossio Grande, em re- verência ao Largo do Rossio na capital da metrópole Pretérito perfeito portuguesa, já foi também referida como Campo dos Nessa mesma praça, ponto nevrálgico da reforma Ciganos, por ter sido ocupada por essas populações, olímpica que deformou o centro histórico da cidade ou Campo do Polé, por ter recebido a instalação de dita maravilhosa para a flutuação dos veículos leves um pelourinho, estes alguns dos diversos passados sobre trilhos (cujo orçamento mensal de dispêndio já hoje ali não descritos. não dispomos em nossos caixas-fortes após a pilha- Em seu centro, foi inaugurada, em 1862, a estátua gem dos desgovernos envolvidos com o esquema mi- equestre de Dom Pedro I, com projeto de João Maxi- lionário de concessões públicas para os negociantes miano Mafra, executado pelo escultor francês Louis da mobilidade), sucedeu outra ação coletiva. Rochet, a mando do imperador Pedro II do Brasil. Em Também realizada a partir do envolvimento de pes- 1865, a praça recebeu mais estátuas, em estilo clás- quisadoras e professoras de universidades públicas sico da Fundição Val d’Osne, incorporando as quatro no desenvolvimento de grupos de produção artística

193 of the temporal narrative, such as “past executed the piece, under the command these occurrences, another collective ac- tense” and “future tense”, through a mech- of Emperor Pedro II of Brazil. In 1865, the tion was presented in the same square. anism of articulation of temporalities. square received more statues, in the clas- This one was also held from the involve- Timely: going back to the principle of sic style of the Val d’Osne Foundry, in- ment of researchers and professors of this argumentation to conclude the first corporating the four virtues of modern public universities in the development of stage of the present proposition, we can nations: fidelity, justice, union and liberty. groups of artistic production formed by bring to light the speech of David Har- Liberty statue was recently chosen for a young people mainly from the areas with vey (2007) regarding the context of the performance art presented by the Bono- less access to education, this other inter- late 19th and early 20 th century, a time bando, a collective created in the north vention also uses the statues that pop- taken as a period in which transforma- side of Rio in 2014 by the artists Adriana ulate – muted and muting – the squares tions of spatial and temporal practices Schneider, Daniela Joyce, Hugo Bernardo, that were crated for not sheltering people involved a loss of identity with the place Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Su- in street situation. and repeated radical disruptions with the arez, Livia Laso, Lucas Oradovschi, Marce- Other animals reside in the square, some entire meaning of historical continuity; lo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, in extinction – the inverse movement of museums, libraries, archives and other Vanessa Rocha and producers Joyce Tor- what’s happening within the ascending mnemonic architectures now looked for res and Marcelo de Brito. multiplication of the homeless people –, coherent organizations oriented for “in- In this action, presented to the public in such as the capybara and the anteater, the venting a tradition”, a direct response to April of the year 2018, the sculpture, un- tortoise, the alligator and the macaw or horror vacui. clean for being a repeated target of the the tapir and the armadillo, respectively This term finishes our initial approx- intestinal charges of pigeons that inhabit located at the four different sides of the imation to the theme as it synthesizes there, received a sanguine spread of a red statue, which symbolize the four great riv- the tangle between practices of memory glitter that flowed from Liberty’s face un- ers of the unified Brazilian territory and its formation and the conformation of imag- til its belly, reviving the inert body as if it different original inhabitants. inaries, circumscribed, in this argument, was an act of resurrection of that allego- The representations of the indigenous to political-poetic actions – here under- ry mortified by its original condition, but ethnic groups next to the quadrupeds, stood as mechanisms that mediate tem- also by the remembrance of its purpose. crouched or sited and at a lower level in poralities – engendered by subjects whose The cycle of interventions, brilliantly comparison with the conqueror allegorize experience in space of Rio de Janeiro and baptized as Monumoments, proceeds to their humanities as gentile, juxtaposed in the time of the 21st century are power- the other bronze muses, staging typical not as cultures, but nature: Paraná, São ful triggers of understandings regarding rites for that marginalized youth, such as Francisco, Amazonas and Madeira are the the contemporary relations between ordinary police frisks, normally directed writings next to them. We do not know artistic and activist praxis in the face of exclusively to the black and brown peo- the name of their peoples, languages, cus- the systematic resurgence of dynamics of ple. Through such practices, the police is toms and religiosities. oblivion, erasing and annihilation. able to manipulate evidence or sexually It is against this huge insult that the harass, for example, girls and boys who artist Eloísa Brantes and her collaborators Pluperfect try to mobilize themselves through tyr- acted covering these human figures with Praça Tiradentes, a square founded in annies and shootings. wide white fabrics maculated by vivid the 17th century, originally called Rossio blood tones alluding to the ethnocide on- Grande as a reverence to Rossio Square in Past tense going until today. It took just a little time the Portuguese metropolis, has also been The square is the sensitive point affect- for the police to remove the vestiges of referred to as “Campo dos Ciganos” (Gyp- ed by the constructions held during the this pictorial activation of the sculptures, sy Field), since the area was occupied by Olympics, which deformed the historic fulfilling its civic duty of bowing down to this community, or Campo do Polé, for center of the city said to be wonderful, the late Portuguese crown. having received the installation of a pillo- the transformations were made so that ry; these are some of the several pasts not light vehicles could float on rails (and the described today in the region. monthly expenditure budget is no longer In its center, the equestrian statue of in our strong rooms after the economic Eloísa Brantes Dom Pedro I was inaugurated in 1862. plundering of the misrule associated with Intervenção em monumento João Maximiano Mafra made the proj- the millionaire scheme of public con- [Intervention on a monument], 2017 ect and the French sculptor Louis Rochet cessions for mobility traders). Following Foto [Photo] Guilherme Altmayer

194 formados por jovens majoritariamente oriundos faces da estátua, que simbolizam os quatro grandes das zonas de menor acesso à educação, essa outra rios do território unificado brasileiro e seus distintos intervenção coincide ao atuar sobre as estátuas que habitantes originários. povoam, mudas e emudecedoras, as praças que fo- As representações das etnias indígenas junto ram engradadas para não abrigarem as pessoas em aos quadrúpedes, agachados ou sentados, em nível situação de rua. inferior com relação ao conquistador, alegorizam Outros animais, alguns deles em extinção, cami- suas humanidades enquanto gentio, justapostos nho inverso da ascendente multiplicação de desa- não como culturas, mas como natureza: Paraná, São brigados, residem na praça, tais como a capivara e o Francisco, Amazonas e Madeira são os escritos. Não tamanduá-bandeira, a tartaruga, o jacaré e a arara ou sabemos como se chamam seus povos, seus idiomas, a anta e o tatu, respectivamente situados nas quatro costumes e religiosidades.

195 Imperfect past tense distribute drinking water to the popula- The Coletivo Liquida Ação (Liquid Action tion in Rio until the 19th century, through Collective) understands urban intervention collective actions that revive the fountains as a concussion possibility in the spatial per- built by Mestre Valentim, throwing hun- ception conditioned by the daily paths. The dreds of buckets full of liquid from which collective is led by the above-mentioned art- these architectural structures take their ist together with the performers Evee Ávila, original function back, even in the current Maurício Lima and Thaís Chilinque, who condition of disuse. Coletivo Líquida Ação have been working since 2006 in several Around three thousand liters of water Mitolorgias urbanas – Águas férteis fountains all over Rio de Janeiro, triggering were transported to the monuments of e banho de espuma [Urban Mythol-Orgies Fertile Waters and Bubble Bath], 2009-2011 them through the Mitolorgias urbanas – Praça XV, Fonte dos Amores and Saracu- Intervenção urbana [Urban intervention] Águas férteis project (Urban Mythol-Orgies ras, manipulated in the performances by Foto [Photo] Jérôme Souty Fertile Waters and Bubble Bath). groups of up to 20 people, with the help Realizado com o apoio do Prêmio Funarte Artes These actions consist of ephemeral res- of the population present in the place and Cênicas na Rua [Staged with the support of the torations of the fountains that used to willing to collaborate; which creates an Funarte Performing Arts on the Street Award]

196 É frente à tal afronta que a artista Eloísa Brantes e despejar a agua dentro dos chafarizes e banhar-se no seus colaboradores atuaram, cobrindo essas figuras acúmulo dessa sequência de ações concretas. humanas com largos tecidos brancos maculados por Numa outra ação do mesmo grupo, intitulada Ba- tons sanguíneos vívidos, alusivos ao etnocídio ainda nho de espuma, o chafariz da Glória recebeu, em 2011, hoje em curso. Pouco tardou para que a polícia reti- uma outra intervenção coletiva de reativação fugaz da rasse os vestígios desta ativação pictórica das escul- edificação desativada: uma pichação com spray de es- turas, cumprindo-se o dever cívico de fazer reverên- puma, seguida da lavagem do monumento, com gran- cia à saudosa coroa portuguesa. de adesão de moradores de rua – o banho em público, como condição histórica dessas comunidades, é reati- Pretérito imperfeito vado pela ocupação popular do patrimônio arruinado. A intervenção urbana como possibilidade de abalo na percepção espacial condicionada pelos trajetos co- Futuro do pretérito tidianos é o entendimento do Coletivo Líquida Ação, A calceteria em pedra portuguesa, como ficou conhe- liderado pela artista supracitada, que, junto aos per- cido o material base para a composição das vias de formers Evee Ávila, Maurício Lima e Thaís Chilinque, circulação de pedestres que compõem, entre muitos atua, desde 2006, em diversos chafarizes da cidade outros, o famoso calçadão de Copacabana, é uma do Rio de Janeiro, acionando-os por meio do projeto técnica em desuso, pela quase completa ausência de Mitolorgias urbanas – águas férteis. oferta de formação técnica para o ofício, mas tam- Tais ações consistem em restaurações efêmeras das bém pela substituição desta por outras formas mais fontes que distribuíam água potável para a popula- duradouras de ladrilhar o passeio público. ção carioca até o século XIX, por meio de ações coleti- As calçadas cariocas, portanto, tornaram-se ver- vas que reavivem os chafarizes construídos por Mes- dadeiros campos minados ao inverso, pelo que é co- tre Valentim, lançando-se mão de centenas de baldes mum que os transeuntes precisem estar mais atentos cheios do líquido a partir do qual essas estruturas ar- ao caminho que ao destino, o que explica, em parte, quitetônicas, em atual condição de desuso, retomam a forma cabisbaixa dos atentos; no centro histórico, sua função original. devido às infindáveis obras que assolaram esse ter- Aos monumentos da Praça XV, Fonte dos Amores ritório, levando à falência muitos dos comerciantes e Saracuras, foram transportados cerca de três mil locais, a situação beira o inacreditável. litros de água, manipulados nas performances por Em resposta a esse cenário, a artista fluminense Bia grupos de até 20 pessoas, com ajuda da população Martins, também vinculada aos espaços de formação presente no local que se dispunha a colaborar, pelo dos equipamentos de educação pública do estado do que a imagem resultante é alusiva ao método de dis- Rio de Janeiro, criou uma obra impactante, por meio tribuição colonial da água: o braço dos escravos que a da qual bustos de gesso foram marretados sobre al- buscava nos chafarizes. guns desses buracos, sendo reduzida a fragmentos Essas obras-primas da estética rococó no Brasil, menores que preencheram os vazios desses hiatos no representativas da capacidade construtiva das eli- ir e vir urbanístico. tes materialistas cariocas, sao confrontadas com a As esculturas de aspecto neoclássico, de dimensões fugacidade da performance, cujos aspectos formais e estados de conservação variáveis, iam-se desfigu- emergem de açes transitórias, tais como carregar os rando até virar pó, como que em uma intempérie baldes vazios, transferir a agua de um para o outro, da delicadeza do humano pela força do ferro, que,

197 allusive image to the method of colonial fountain received another collective in- down without any pain or no compassion. distribution of water: the arm of the slaves tervention with the fleeting reactivation The interstices covered with whiteness who sought it in the fountains. of the deactivated building: there was a by the intervention named Vias de Inte- These masterpieces of Rococo aesthetics graffiti done with foam, followed by a gração contrasted the blackness of the in Brazil, representative of the construc- massive monument wash with a great black men who, under sunshine, struck tive capacity of Rio’s materialistic elites adhesion of homeless people – having a the pebbles with iron bars, without wear- are confronted with the fugacity of per- bath in public, as a historical condition of ing gloves or masks to pave the way that formance art, as its formal aspects emerge these communities, is something reacti- there is to be decolonized, as the tech- from transient actions such as loading vated by the popular occupation of that nique is also common in the streets of Por- empty buckets, transferring water be- ruined patrimony. tugal, in this continuous mirroring that tween them, pouring the water into the resembles mainly that of Medusa. fountains and bathing in the middle of Future of the past this sequence of concrete actions. The Portuguese stone pavement, a well- In another action of the same group, known base material for the composition Future of the present entitled “Bubble bath”, in 2011, Gloria’s of the pedestrian walkways that compose, A scene with fragments that do not fit among many others, the famous sidewalk together form the historiographical pano- in Copacabana, is a technique in disuse, rama that Emília Estrada encountered due to its almost complete absence of when she was harboring in the capital of technical training for the trade involved, Rio de Janeiro after leaving Argentina, her but also because it is being replaced with country of origin, to pursue her studies in more durable forms to tile the public walk. the artistic field. She got a scholarship at a The Carioca sidewalks, therefore, have school of art, but it was one of the most af- become true minefields in reverse, so it is fected by the economic negligence of the common that passers-by need to be more state of Rio de Janeiro; nevertheless, she attentive to the path than exclusively to managed to stand upright with vivid eyes. the destination, which explains, in part, In order to survive the very peak of the why the more vigilant ones are crestfall- real estate speculation that settled in the en; in the historical center, due to the end- period of what is been called “big events”, less works that devastated this territory, Emília worked as a tourist guide for for- resulting in the bankruptcy of many of the eigners; for doing so, she needed to know local merchants, the situation approaches the history of the city and, therefore, rec- the unbelievable. ognize it by among debris amid the chang- In response to this scenario, the Ca- es in the physical structure of postcards: rioca artist Bia Martins, also linked to the she seized, from this perspective, to recog- training spaces of public education equip- nize the evidence of the past. ment in the state of Rio de Janeiro, creat- This observation perspective soon gave ed a striking work through which plaster way to the collection of debris, pieces of busts were demolished precisely on some olden times, elsewhere, forming a narra- Bia Martins Vias de integração [Integration ways], 2012 of these holes, thus being transformed in tive set of great diversity, by which newly Performance com bustos de gesso e barras de smaller fragments that filled the gaps of cooled asphalt fragments mingled with ferro, dimensões variáveis [Performance with these urban planning hiatus. the splinters of long unheated porcelain – plaster busts and iron bars, variable dimensions] Sculptures with a neoclassical style of noises of past, present and future settled Foto [Photo] Bia Martins varying sizes and states of conservation as a kaleidoscope of stories untold to the were gradually disfiguring to the point of ears and doomed to the oblivion. > Emilia Estrada becoming dust, as it was an intemperance These narrative sources became, there- Vila Autódromo / Píer Mauá / Região Portuária of the delicacy of the human by the force fore, triggers for holding educational [Port area] / Avenida Rio Branco / Vila Autódromo, 2018 of iron, which, piece by piece, decomposed activities open to the public, which the Desenho, pintura e aquarela sobre papel the recognizable structure of the figures artist developed in partnership with the [Drawing, painting and watercolor on paper] that were once ornamented and then torn, archaeologist Elaine Ignácio (responsible Foto [Photo] Emilia Estrada for later become pieces of a body trampled for the technical training of young people

198 pedaço a pedaço, decompunha a estrutura reconhe- atingidas pelo descaso do estado do Rio de Janeiro; cível das figuras, antes ornamentadas e então dilace- não obstante, logrou fincar pé, de olhos vivos. radas, para posterior pisoteio de pedaços dos corpos, Para sobreviver em pleno auge da especulação sem dor alguma ou nenhuma dó. imobiliária que se instalou no período do que se As frestas cobertas de brancura pela intervenção de convencionou chamar de “grandes eventos”, traba- nome Vias de integração contrastam com a negritude lhou como guia turística para estrangeiros, sendo, dos homens pretos que, sob sol a pino, golpeiam os dessa feita, necessário conhecer a história da cidade pedregulhos com barras de ferro, sem luvas ou más- e, portanto, reconhecê-la por entre escombros em caras, para pavimentar o caminho ainda por desco- meio às modificações na estrutura física dos cartões lonizar, posto que a técnica é comum também pelas postais: apreendeu, sob essa ótica, a reconhecer os ruas de Portugal, nesse contínuo espelhamento que indícios do passado. mais assemelha-se ao da Medusa. Essa perspectiva de observação logo deu lugar ao colecionismo de detritos, pedaços de outrora, alhu- Futuro do presente res e algures, que formavam um conjunto narrativo Fragmentos que não se encaixam formam o mosai- de grande diversidade, pelo qual tascos de asfalto co historiográfico que Emília Estrada encontrou ao recém-esfriado se misturavam às lascas de louças aportar na capital fluminense, quando partiu de há muito não aquecidos – ruídos de passado, pre- seu país de origem, a Argentina, para seguir com os sente e futuro configuravam-se como um caleidos- estudos no campo artístico por conta de uma bolsa cópio de histórias não contadas aos ouvidos e fada- de estudos numa das escolas de artes visuais mais das ao olvido.

199 history of the future and the future of history. As if the outrage was not enough, Estrada goes on with the development of tutorials, via audiovisual language, to doc- ument gentrification processes in other locations, where abandoned ports have become lucrative opportunities.

Present There was a big question circulating through social networks during the year 2018, echoing not only in cyberspace, but also in the public sphere, which was devel- oped by the mass media: where is Mathe- usa Passareli? We still do not have answers or a guilty party. The question echoed as a matter pertinent to the problem of the outrageous amount of annihilation of gender-sex-dissident bodies in Brazil (the result of the implementation of a systemic policy of exclusion, exploitation and exter- mination of people not aligned with the codes of conduct governed by religiosity, which dictates a universal moral program, even in a country said to be secular). Her sister, Gabe Passareli, also a visual artist and occupational therapist gradu- ated at the Federal University of Rio de Janeiro, integrated the educational pro- gram of the Queermuseu exhibition, in its reopening at the Escola de Artes Visuais do Parque Lage. At the closing of the show, Gabe presented a performance interven- ing in the building of the institution, even not having authorization, covering herself with coal until her own disappearance. The exhibition, composed of a small LGBTI group of representation, did not even reach the corner of the urgent con- frontation of this harmful reality, but also occupied the place of speak of these subjects already silenced historically. The by the Museum Foundation for the Amer- artist’s courageous intervention resulted ican Man, located in the Serra da Capivara, in didactic writings for a broad audience, in the state of Piauí), articulating artistic sometimes oblivious to the gravity of the poetics and scientific policies building a situation, among which was the potent Gabe Passareli Performance, 2018, Escola de Artes Visuais historical fiction. sentence: “What do we do when a body 1 do Parque Lage [Performance, School of Visual Various historicity regimes merge in turns to ashes?”. Arts Parque Lage] this complex structure of temporalities The body and the coal, both concrete Foto [Photo] Marina Benzaquem that integrate different looks into the matters, found themselves under the

200 Essas fontes narrativas tornaram-se, então, dispa- Tal exposição, composta por exígua represen- radores para a realização de atividades educativas tação LGBTI, não somente passou ao largo do en- abertas aos públicos, que a artista desenvolveu em frentamento dessa realidade nefasta, mas também parceria com a arqueóloga Elaine Ignácio (responsá- ocupou o lugar de fala desses sujeitos silenciados vel pela formação técnica de jovens pela Fundação historicamente. A corajosa intervenção da artista Museu do Homem Americano, situada na Serra da resultou em escritos didáticos para um público am- Capivara, no estado do Piauí), articulando poéticas plo, por vezes alheio à gravidade da situação, dentre artísticas e políticas científicas numa ficção histórica. os quais constava uma potente indagação: “O que Diversos regimes de historicidade1 mesclam-se fazer quando uma corpa vira cinzas?”. nesta complexa estrutura de temporalidades que O corpo e o carvão encontram-se, enquanto maté- integram olhares sobre a história do futuro e o ria concreta, sob um mesmo denominador comum. futuro da história. Não bastasse o afronte, Estrada Gabe Passareli nos ensina, como que em uma edu- segue adiante com o desenvolvimento de tutoriais, cação pela pedra, acerca da impermanência do sig- via linguagem audiovisual, para documentação de nificante e imanência do significado. Unidas pela processos de gentrificação em outras localidades, substância combustível, sólida e negra, resultante em que portos abandonados tornam-se oportuni- da ignificação do orgânico, essas identidades fun- dades lucrativas. dem-se às demais, inúmeras, vidas extintas sob si- lenciamento sepulcral. Presente A arte e a vida, mais do que nunca, encontram-se Uma pergunta circulou pelas redes sociais no ano quando a estética e a política, indissociáveis, irma- de 2018, ecoando não somente no ciberespaço, mas nam-se para educar o olhar do outro. Travestis bi- também na esfera pública erigida pelas mídias de chas indígenas lésbicas mulheres negras, em suas massa: onde está Matheusa Passareli? Seguimos sem dores de pedra, sua força de rocha, seus olhos escu- resposta e também sem culpados. A questão ecoa en- ros tal qual carvão; já passou da hora para que, mui- quanto problema pertinente à questão do indignan- to além de tornarem-se visíveis aos que fecham vio- te montante de aniquilações de corpos gênero-sexo- lentamente seus olhos, essas pessoas possam falar. dissidentes no Brasil (resultado da implementação de É chegado o tempo, por fim. uma política sistêmica de exclusão, exploração e ex- termínio de pessoas não alinhadas aos códigos de con- Passados futuros duta regidos pela religiosidade, que dita um programa Recorrendo ao conceito de heterotopia, descrito por moral universal, mesmo em um Estado dito laico). Michel Foucault como “um lugar de todos os tempos Sua irmã, Gabe Passareli, também artista visual fora do tempo”, propusemo-nos a analisar o acúmu- e terapeuta ocupacional graduada na Universidade lo de temporalidades que é possível identificar em Federal do Rio de Janeiro, integrou o programa edu- uma coleção de arte (observada aqui como médium, cativo da exposição Queermuseu, em sua reabertura concepção articulada às teorias da Ciência da Comu- na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e, no en- nicação), relacionando-a a outros meios comunica- cerramento da mostra, realizou uma performance cionais, porém observando sua especificidade em por meio da qual interviu no edifício da instituição, ser dotada de uma perspectiva múltipla da histori- mesmo sem autorização, cobrindo-se de carvão até cidade, já que capaz de registrar a presença de uma o próprio desaparecimento. concepção de tempo, e as modificações na recepção

201 Guilherme Altmayer Refundação – Casa do Corpo Nu – Luz del Fuego [Refoundation – House of the naked body – Luz del Fuego], 2015 Intervenção em edificação [Building intervention] Foto [Photo] Guilherme Altmayer Dora Vivacqua foi dançarina, atriz, escritora, naturista e feminista. Sob o nome artístico de Luz del Fuego, teve seus filmes apreendidos e manipulados de maneira a incriminá-la. Por meio same common denominator. Gabe Pas- that can be identified in an art collection de autorização da Marinha do Brasil, viveu na sareli teaches us, as in an education by (observed here as a medium, conception Baía de Guanabara, sendo a Ilha do Sol também o local de seu assassinato, em 1967. O feminicídio stone,2 about the impermanence of the connected to the theories of Communica- seguiu-se do apagamento de sua memória, que significance and immanence of meaning. tion Science), relating it to other commu- a intervenção Refundação – Casa do Corpo Nu Merged by the solid, black, combustible nication media, but observing its speci- almeja visibilizar, dando a ver o arruinamento substance that results from the ignition of ficity in being endowed with a multiple do que foi o projeto de sua vida e trazendo à the organic; these identities bond with the perspective of historicity, since it is capa- luz seu programa de práticas estético-políticas many, innumerable, extinguished lives ble of recording the presence of a concep- libertárias. traversed by the sepulchral silencing. tion of time, and the modifications in the [Dora Vivacqua was a dancer, actress, writer, Art and life are more than ever linked reception of temporalities that assemble naturist and feminist. Under the stage name when aesthetics and politics, insepara- it, revealing that it is a changeable appara- of Luz del Fuego, she had her films seized and ble, are brought together to educate the tus that records, first of all, itself. manipulated in order to incriminate her. By permission of the Brazilian Navy, she lived in eyes of the other. Transvestites gays in- Looking to the concept of apparatus, ac- Guanabara Bay, being Ilha do Sol also the place digenous lesbians black women, in their cording to the structuring of the same au- of his assassination, in 1967. The femicide was pains of stone, with their strength of thor, it is possible to understand that the followed by the erasure of her memory, which rock and dark eyes like the charcoal; it is artistic processes are a network formed the intervention "Refundation – House of the past time that, far from becoming visible by heterogeneous elements that include Naked Body" aims to make visible, showing the to those who close their eyes violently, diverse discourses, philosophical proposi- ruin of what was the project of her life and focus these people can speak. The time has fi- tions, scientific statements, architectural on her program of libertarian aesthetic-political nally come, at last. constructions etc., bearing in mind that practices]. these elements establish interrelations. > Rua Marielle Franco [Marielle Franco Past futures Moreover, the complexity formed by this Street], 2018 Recalling the concept of heterotopy, de- set responds and corresponds to a demand Placa instalada no centro do Rio de Janeiro em scribed by Michel Foucault as “a place of at a historical moment: now, the end of homenagem a Marielle Franco [Street sign in all times out of time”, we decided to ana- the idea of future as we know it seems to downtown Rio in honor to Marielle Franco], 2018 lyze the accumulation of temporalities be a peculiarity to be explored. Foto [Photo] Paula Kossatz

202 das temporalidades que o compõem, revelando-a um dispositivo mutável que registra, antes de tudo, a si mesmo. Tomando-se o conceito de dispositivo, segundo es- truturação desse mesmo autor, faz-se possível com- preender que os processos artísticos são uma rede formada por elementos heterogêneos que incluem discursos diversos, proposições filosóficas, enuncia- dos científicos, construções arquitetônicas etc., tendo em vista que tais elementos estabelecem relações en- tre si. Além disso, a complexidade formada por esse conjunto responde e corresponde a uma demanda em um momento histórico: no tempo presente, o fim A ideia de progresso, dessa feita, molda-se a partir da ideia de futuro como conhecíamos parece ser uma das expectativas de futuro, que esperam impaciente- peculiaridade a ser explorada. mente superar o enfadonho presente, o que compro- É plausível empreender essa articulação conceitual mete o projeto futurista de “arrombar as misteriosas para que possamos compreender processos estrutu- portas do impossível” em sua demora em lançar-se rais na composição das sociedades no século XXI, em adiante, arrastado pelos passados e seus resquícios que a ideia de “progresso” ainda permeia a compre- indesejados, tendo, dessa maneira, a utopia se aloca- ensão das práticas culturais que meramente reciclam do centralmente no ordenamento dos processos de um modelo sociológico mais antigo para analisar a desenvolvimento, conforme proposto por Koselleck: modernidade. Nicco, alinhamo-nos a Néstor García “não é mais possível projetar nenhuma expectativa a Canclini, em seu texto Patrimônios destinados à rein- partir da experiência passada” (2006, p. 319). terpretação (2010, p.73), quando delineia que “os pro- Contudo, o confrontamento das utopias com o cessos que mais influenciam hoje no conhecimento exaurimento dos recursos naturais e a intensificação e valoração de muitos bens culturais são as transfor- das desigualdades sociais tem posto em xeque esse mações urbanas que modificam os monumentos e os tipo de imaginário, pelo que a disrupção dos visio- testemunhos históricos”. narismos utopistas e a falência dos projetos contra- Esse entendimento articula-se à teoria sobre a “his- hegemônicos tornaram-se discursos amplamente di- tória em si”, presente no texto Espaço de Experiência e fundidos, o que, inclusive, pode ser observado na am- Horizonte de Expectativas, conclusão do livro Futuros pla reprodução midiática dos imaginários catastró- passados, de Reinhart Koselleck, a partir do qual po- ficos, pertinentes às distopias, tanto no ecossistema demos analisar como a estrutura temporal da moder- imagético erigido pela indústria cultural das mídias nidade está sucumbindo devido à impossibilidade da massivas nas sociedades do espetáculo quanto nos compreensão linear da história, sobretudo tendo em sistemas mnemotécnicos pregressos. vista os enunciados propostos pelos estudos e práti- Tendo em vista a impossibilidade de dar sentido cas pós-, de- e anticoloniais, pelo que encontramos, ao presente a partir do passado – uma catástrofe já nos conceitos de “espaço de experiência” e “horizonte anunciada por Walter Benjamin, crítico essencial da de expectativa”, possibilidades para a análise de dis- cultura, ao descrever, em suas Teses sobre o conceito cursos artísticos na contemporaneidade. de história, texto escrito no auge do recrudescimento

203 It is reasonable to undertake this con- present, tying the futurist project of of modern history, we must consider the ceptual articulation so that we can un- “breaking the mysterious doors of the im- understanding of the concept of “future derstand structural processes within the possible” to its delay for launching ahead, contingents”, on which Gabriel Tarde dis- composition of societies in the 21st cen- dragged by the past and its undesirable cusses (TARDE, 2007, p. 173-174): tury, in which the idea of “progress” still remnants, thus having the utopia centrally permeates the understanding of cultur- allocated in the planning of development It is equally unintelligible to situate the al practices that merely recycle an older processes, as proposed by Koselleck: “it is reason of things only in the past than it sociological model to analyze modernity. no longer possible to forecast any expecta- would be to place it in the space to the Nicco, we align ourselves with Néstor tion from past experiences” (2006, p. 319). right, preferably to the left, to the north, García Canclini, in his text Patrimônios However, the confrontation of utopias preferably to the south. Therefore, it is Destinados à Reinterpretação (2010, p.73), towards the exhaustion of natural re- because our predictions are usually un- while he points out that “the processes sources and the intensification of social certain and confuse and our memories that influence the most today in knowl- inequalities has challenged this type of relatively clear and precise, which we edge and valuation of many cultural imaginary for what the disruption of uto- bestow upon the former blanks, rather goods are the urban transformations that pian visionaries and the bankruptcy of than future ones, the privilege of ex- modify the monuments and historical counter-hegemonic projects have become plaining the real, the present. We induce testimonies”. widely disseminated discourses, which the future of the past, known to us, never This perception articulates with the can even be observed in the wide mediatic the past of the future, the enigma. theory about a “history itself”, present in reproduction of catastrophic imaginaries, the text Space of Experience and Horizon pertinent to dystopias, both in the imag- The transfiguration of temporalities in of Expectations, conclusion of Reinhart ing ecosystem erected by the mass media utopian discourses – temporal machina- Koselleck’s Futures Past book, from which cultural industry in the societies of the tions between future imaginaries and we can analyze how the temporal struc- spectacle, and also in the previous mne- memories of the past – has manifested it- ture of modernity is succumbing due to monic systems. self strongly since the 1960s, while a mul- the impossibility of a linear understand- In view of the impossibility of giving tiplicity of enunciations about the end of ing of history, especially considering the meaning to the present from the past – a utopias multiplied, especially since the statements proposed by studies and post-, catastrophe already announced by Walter 1980s, so it was inevitable to ask ourselves de- and anticolonial practices, for what we Benjamin, an essential culture critic, as about the 2000s. What about now? After are able to find in the concepts of “space of he described it in Theses on the Concept of the infamous declaration about the end experience” and “horizon of expectations” History, written text at the height of the of history and the establishment of the possibilities for an analysis of artistic dis- recrudescence of the Holocaust, the image self-proclaimed post-truth, what remains courses in contemporary times. of a “pile of ruins that grows up to the sky”. for us beyond inhabiting ruins, swallowing The idea of progress, this time, is shaped In order to initiate a dialogue with this fu- waste, cultivating debris, collecting ves- by the expectations of the future, which ture that does not come from the achieve- tiges, listening to noises and venerating impatiently wait to overcome the tedious ments of the supposed linear evolution ghosts? Only time might tell.

Cildo Meireles Marielle / Inserções em circuitos ideológicos – Projeto Cédula [Marielle / Insertions in ideological circuits – Banknote Project], s.d. [undated] Carimbos sobre cédulas [ Stamps on banknotes] Foto [Photo] Pat Kilgore

> Manifestantes levantam placas em homenagem a Marielle Franco, no centro do Rio de Janeiro [Protesters raise boards in tribute to Marielle Franco in Rio de Janeiro's downtown], 2018 Foto [Photo] Francisco Proner

204 do Holocausto, a imagem de um “amontoado de ru- o real, o presente. Induzimos o futuro do passado, ínas que cresce até o céu”. Deve-se ter também em que é conhecido por nós; nunca o passado do futu- conta, para iniciar um diálogo com esse futuro que ro, que é o enigma. não provém dos logros da pretensa evolução linear da A transfiguração das temporalidades nos discursos história moderna, o entendimento do conceito de “fu- utópicos – maquinações temporais entre imaginá- turos contingentes”, sobre o qual o Gabriel Tarde dis- rios de futuro e memórias do passado – manifesta- corre (TARDE, 2007, p. 173-174): se com força desde a década de 1960, enquanto uma Não é menos ininteligível situar a razão das coi- multiplicidade de enunciações sobre o fim das uto- sas somente no passado, do que o seria situá-la pias multiplicam-se, sobretudo desde os anos 1980, no espaço à direita de preferência à esquerda, ao pelo que é inevitável perguntar-nos quanto aos anos norte de preferência ao sul. Assim, é porque nossas 2000. E agora? Após a famigerada declaração do fim previsões são quase sempre incertas e confusas e da história e a instauração da autoproclamada pós- nossas lembranças relativamente claras e precisas, verdade, que nos resta além de habitar ruínas, de- que outorgamos aos nadas anteriores, de prefe- glutir dejetos, cultivar detritos, colecionar vestígios, rência aos nadas futuros, o privilégio de explicar escutar ruídos e cultuar fantasmas? Só o tempo dirá.

205 Dois Zés e uma Carmen

Paulo Herkenhoff

Two Zés and one Carmen the world. Jesse Lerner evaluates that, in America’s relationship with Disney, the terms of social psychology, the very Bra- role of his work for subtle readings and A personality that symbolized Rio de Ja- zilian Zé Carioca was more civilized than adds complexity against stereotypes in neiro for Brazilian children, Zé Carioca the American Donald Duck.1 Or more cos- US/Latin American relations. How to opened a pop scene in Tupiniquim mod- mopolitan. However, Rio de Janeiro is a evaluate the meaning and character of ernism, in the form of comic books and commuting city that oscillates between Disney characters appropriated by art? films. In the 21st century, Zé Carioca, the self-loving narcissism and fierce self-crit- What is originality in the process? Har- Walt Disney Parrot, takes a place in Brazil- icism, as seen in the confrontation be- rison concludes that nothing in the exhi- ian art. With humor and grace, the boast- tween Fernando Lindote’s and Sergio Al- bition seeks substitutes or Ersatz, inferior er and dandyish parrot, quaint and full levato’s Zés Cariocas. substitutes, but are meta expressions of of rhythm, reappears with new mean- Sergio Allevato emerged as a botany de- contemporary culture.2 ings in the work of Fernando Lindote and signer, worked with Adriana Varejão and Fernando Lindote’s exhibition at the Rio Sergio Allevato. studied at Goldsmiths College in London Art Museum (MAR), in 2015, juxtaposed Zé Carioca helped push Brazil into the in 2016. His watercolors began to juxta- Zé Carioca to Macunaíma, in a sociopo- arms of the Allies against the Axis, end- pose icons of comic books, referring to a litical critique of Brazil, differentiated an- ing Vargas’ flirting with Nazi Fascism. In country, to the native plants of that place. thropophagy from plagiarism, exposed World War II, the United States Office of In Quesnelia, Flora Brasilienses, a symbol- the jungle to the domination of culture the Coordinator of Inter-American Affairs ic place is articulated, nature and culture, by the capital. In the production around J. established an intense cultural diplomacy scientific rigor with humor and taking Carlos’s parrot, Zé Carioca, and Carlos Sal- program (Good Neighbor) that included Zé this plant, native from Rio, adding to it danha’s Macaw Blu, Lindote operated the Carioca as part of an anthropological-exot- the head or the beak of Zé Carioca with cannibalistic dismemberment of Zé Osiris. ic package. The Portuguese-Carioca Carmen fruits and seeds of the plant, in a style Torn apart and without a penis, it is inev- Miranda went to Hollywood to become a of the scientific watercolor. He also por- itable the evocation to the dismembered Latin American star, a Bahian adorned with trayed Zé Carioca and Donald Duck with bodies of the painting of Théodore Géri- art-deco Bakelite earrings and bangles cre- flowers and appetizing Brazilian fruits. cault, the romantic painter. For Lindote, ated by Miriam Haskell. Would it be an invitation to eat them as it is a reminder of a particular becoming: Zé Carioca was born at Copacabana Pal- an anthropophagic way of swallowing Zé ace in 1941, where Walt Disney met J. Carlos in an act of endogenous cannibalism and “What interested me in Osiris was [Carioca illustrator, cartoonist and chron- Donald in exogenous cannibalism? Alle- the death by dismemberment. And the icler 1884-1950], the creator of a charming vato or the Tropicalist Arcimboldo? connection of this God with rebirth. talking parrot whose psychology crossed Allevato’s portrait of an angry Donald This aspect of what, once dismembered, the animal’s geometrical anatomy. Disney Duck was the cover image of the show comes back into new life forms. Some was struck by the communicative bird in How to read el Pato Pascual – Disney’s vines produce roots at each time. If you the lightness of J. Carlos’s lines and “ab- Latin America & Latin America’s Disney cut one part, the others continue to sorbed” the figure of the eloquent parrot. in Los Angeles, in which Lindote also proliferate”.3 The charm and daintiness of J. Carlos’s girls participated. In the catalog, Nate Harri- in flapper costumes were masculinized to son summoned Allevato’s production to Zé Carioca, which is no longer published subjectify Zé Carioca among the parrots of weave political considerations of Latin in Brazil, keeps proliferating now in art.

206 Personalidade que simbolizou o Rio de Janeiro para deste lugar. Em Quesnelia, Flora Brasilienses, articu- crianças brasileiras, o Zé Carioca abriu uma cena Pop la-se um lugar simbólico, natureza e cultura, rigor no modernismo tupiniquim, como história em qua- científico com humor e toma essa planta, endógena drinhos e filme. No séculoXXI , o Zé Carioca, o papa- do Rio, agrega-lhe a cabeça ou o bico do Zé Carioca gaio de Walt Disney toma um lugar na arte brasileira. com frutos e sementes da planta, à moda de aqua- Com humor e graça, o papagaio gabola e frajola, catito rela científica. Ele também retratou o Zé Carioca e o e cheio de ziriguidum, ressurge sob novos sentidos na Pato Donald com flores e apetitosas frutas brasileiras. obra de Fernando Lindote e Sergio Allevato. Seria um convite a comê-las como modo antropofági- O Zé Carioca ajudou a empurrar o Brasil para os bra- co de deglutir o Zé em ato de canibalismo endógeno ços dos Aliados, contra o Eixo, acabando com o flerte e o Donald em canibalismo exógeno? Allevato ou o de Vargas com o nazifacismo. No período da Segunda Arcimboldo tropicalista? Guerra Mundial, o Office of the Coordinator of Inter- O retrato do Pato Donald bravo de Allevato foi a American Affairs dos Estados Unidos estabeleceu imagem da capa da mostra How to read el Pato Pas- um intenso programa de diplomacia cultural (Good cual – Disney’s Latin America & Latin America’s Dis- Neighbor) que incluía o Zé Carioca como parte de um ney em Los Angeles, da qual Lindote também partici- pacote antropológico-exótico. A luso-carioca Carmen pou. No catálogo, Nate Harrison convocou a produção Miranda foi para Hollywood para virar star latina, de Allevato para tecer considerações políticas da uma baiana adornada com brincos e balangandãs ar- relação da América Latina com Disney, do papel de t-déco em bakelite criados por Miriam Haskell. sua obra para leituras sutis e agrega complexidade Zé Carioca nasceu no Copacabana Palace em 1941, contra os estereótipos nas relações Estados Unidos/ onde Walt Disney conheceu J. Carlos [ilustrador, char- América Latina. Como avaliar o sentido e o caráter gista e cronista visual carioca 1884-1950], o criador de dos personagens de Disney apropriados pela arte? um charmoso papagaio falante, cuja psicologia atra- O que é originalidade no processo? Harrison conclui vessava a anatomia geométrica do bicho. Disney se que nada na exposição busca substitutos nem Ersatz, impressionou com a ave discursiva na leveza do traço sucedâneos inferiores, mas são metaexpressões da de J. Carlos e “absorveu” a figura do louro enunciador. cultura contemporânea.2 O charme e o dengo das melindrosas de J. Carlos fo- A mostra que Fernando Lindote fez no Museu de ram masculinizados para subjetivar o Zé Carioca en- Arte do Rio (MAR), em 2015, justapunha Zé Carioca à tre os papagaios do mundo. No plano da psicologia Macunaíma, em crítica sociopolítica do Brasil, dife- social, avalia Jesse Lerner, o brasileiríssimo Zé Cario- renciava antropofagia de plágio, expunha da selva à ca era mais civilizado que o americano Pato Donald.1 dominação da cultura pelo capital. Na produção em Ou mais cosmopolita. Mas o Rio de Janeiro é uma ci- torno do papagaio de J. Carlos, do Zé Carioca e da arara dade pendular, que oscila entre o narcisismo autoa- Blu de Carlos Saldanha, Lindote operou o esquarteja- moroso e a autocrítica ferrenha, tal como se percebe mento canibalístico do Zé Osíris. Destroçado e sem pê- no confronto entre os Zés Cariocas de Fernando Lin- nis, é inevitável a evocação aos corpos desmembrados dote e Sergio Allevato. da pintura de Théodore Géricault, o pintor romântico. Sergio Allevato surgiu como desenhista de botâ- Para Lindote, é lembrança de um devir particular: nica, trabalhou com Adriana Varejão e estudou no Goldsmiths College em Londres, em 2016. Suas aqua- “me interessou, em Osíris, a morte por desmembra- relas passaram a justapor ícones de histórias em qua- mento. E a ligação desse Deus com o renascimen- drinhos, referidas a um país, a plantas endógenas to. Esse aspecto do que, depois de desconjuntado,

207 At the other end, Laercio Redondo, in and plastic fruits, palms, ferns, mirrors, of them, the philosopher Ludwig Wittgen- collaboration with Marcia Sá Cavalcante lenses, costume jewelry, trinkets, and a lot stein stated in his autobiography that Car- Schuback, de-Americanized Carmen Mi- of charm. It seems like a happy articula- men Miranda was his favorite.4 Yet, Walter randa and created a kind of a poetic mess tion of seemingly disparate elements such Benjamin wrote about Mickey and Disney. (mess is a very Brazilian mental state!). as the Cold War acre maps of Pop Öyvind Caetano Veloso evaluated that “the mani- They have set up a seductive mobile of Fahlström, the Paulista-Swedish artist – festo song ‘Tropicália’, the namesake of Oi- trinkets, where everything leaves its use- after all, Laercio Redondo splits between ticica’s work, ends with the shout ‘Carmen lessness, aesthetic vulgarity, to create a Stockholm and Rio. This is not a dismem- Miranda dada’. We had found out that she melody image that leads the eye to dance bered Carmen like Lindote’s Zé Osiris, but was our caricature and our x-ray”. 5 with Carmen, to follow her movements, a woman with her aesthetic weapons. The In Redondo and Schuback’s Carmen op- to want to touch her or push her to dance. fluent pace of this Carmen mobile invites tical scheme, a mirror is juxtaposed to “What I do is music,” proclaimed Hélio the viewer to partner, to spin in response a lens on a bar. The circular objects give Oiticica and it echoes in Redondo. This to their graceful movements. body and plastic materiality to Jorge Luis restless Carmen, however, produces mu- Taken to Hollywood in the context of Borges’ cultural challenge: the challenge sic in silence. Carmen was once again a American cultural diplomacy, the Brazil- of non-hegemonic cultures is to transform vibrating body for joy of the senses. This ian bombshell Carmen Miranda died in the mirror into a lens, as Caetano Veloso is a portrait without a face, being pure 1955, but has always been in the Brazilian dealt with this specularity and this refrin- Bergsonian élan vital. imagination, of Carnival and of the drag gence in Carmen. Now, Laercio Redondo’s Carmen Miranda, recurrent in Brazilian queens, fashion and Tropicália, with the mechanics proposes an allegory of the art of recent times, left the plan, left the phonetic rhythm of Caetano Veloso’s Car- world itself, not just of Brazil, now pre- immobility that affected her and came men Miranda Dada, which reflects the senting itself as a dancing and seeing ma- back to life, now dancing, between natural singer’s onomatopoeias – perhaps because chine in this celestial mechanics.

208 < Fernando Lindote Zé Osiris, 2015 Acrílica sobre objeto [Acrylic on object] Dimensões variáveis [Variable dimensions] Foto [Photo] Thales Leite

Sergio Alevatto Flora Carioca, série Retratos [Carioca’s flora, portraits’ series], 2011 Óleo sobre linho [Oil on linen], 100 × 80 cm Coleção [Collection] Luiz Chrisostomo Foto [Photo] Jaime Acioli

209 210 volta em novas formas de vida. Algumas trepadei- ras fazem raízes a cada momento. Se você corta uma parte, outras continuam a proliferar.”3

O Zé Carioca, cuja edição no Brasil foi suspensa, continua a proliferar agora na arte. Em outra ponta, Laercio Redondo, em colaboração com Marcia Sá Cavalcante Schuback, desamericani- zaram Carmen Miranda e criaram uma espécie de bagunça poética (bagunça, um estado mental bem brasileiro!). Montaram um mobile sedutor de quinqui- lharias, onde tudo deixa sua inutilidade, vulgaridade estética, para criar uma imagem-melodia que leva o olhar a dançar com Carmen, a seguir seus movimen- com suas armas estéticas. O ritmo fluente desta Car- tos, a querer tocá-la ou a impulsioná-la para a dança. men mobile convida o espectador para parceiro, para “O q faço é música”, proclamou Hélio Oiticica e ecoa em girar em resposta a seus movimentos graciosos. Redondo. Essa Carmen irrequieta, no entanto, produz Levada para Hollywood no contexto da diplomacia música no silêncio. Carmen voltou a ser um corpo cultural americana, a Brazilian bombshell Carmen vibrátil para alegria dos sentidos. Isso é um retrato Miranda morreu em 1955, mas sempre esteve no ima- sem fisionomia, sendo puro élan vital bergsoniano. ginário brasileiro, do carnaval e das drag queens, da Carmen Miranda, recorrente na arte brasileira dos moda e da Tropicália, com o ritmo fonético de Car- últimos tempos, saiu do plano, deixou a imobilidade men Miranda Dada de Caetano Veloso, que reflete as que a acometia e voltou à vida, agora dança, entre onomatopeias da cantora – talvez por conta delas, o frutas naturais e plásticas, palmas, samambaias, es- filósofo Ludwig Wittgenstein declarasse em sua au- pelhos, lentes, bijuterias, berloques, trejeitos e muito tobiografia que Carmen Miranda era sua predileta.4 Já charme. Parece uma articulação feliz de elementos Walter Benjamin escreveu sobre o Mickey e a Disney. aparentemente díspares como os mapas acres da Caetano Veloso avaliou que “a canção-manifesto ‘Tro- Guerra Fria do Pop Öyvind Fahlström, o artista pau- picália’, homônima da obra de Oiticica, termina com lista-sueco – afinal, Laercio Redondo se divide entre o brado ‘Carmen Miranda dada. Tínhamos descoberto Estocolmo e o Rio. Essa não é uma Carmen esquarte- que ela era nossa caricatura e nossa radiografia.”5 jada como o Zé Osíris de Lindote, mas uma mulher No regime ótico da Carmen de Redondo e Schuback, justapõem-se um espelho a uma lente sobre uma

Laercio Redondo barra. Os objetos circulares dão corpo e materialida- < Carmen Miranda – Uma ópera da imagem de plástica ao desafio cultural de Jorge Luis Borges: o [Carmen Miranda – an image opera], 2013 desafio das culturas não hegemônicas é transformar Vista da instalação no [Exhibition view] Museu de Arte do Rio – MAR, Rio de Janeiro o espelho em lente, como Caetano Veloso tratou des- Foto [Photo] Thales Leite ta especularidade e desta refringência em Carmen. Carmen Miranda – Uma ópera da imagem Agora, a mecânica de Laercio Redondo propõe uma [Carmen Miranda – an image opera], 2013 alegoria do próprio mundo, não só mais do Brasil, Detalhe da instalação na [Installation detail at] Casa França-Brasil, Rio de Janeiro agora se apresentando como uma máquina de dan- Foto [Photo] Sergio Araújo çar e ver nesta mecânica celeste.

211 Clarice Lispector e os diagramas de alteridade na arte do Rio de Janeiro

Paulo Herkenhoff

Clarice Lispector and the it is in the dimension of individuality There is an oblique history of Rio de alterity diagrams in the art that the necessary recognition and the Janeiro art that dates back to the 1960s of Rio de Janeiro detailed construction of subjectivity are. and spreads throughout Brazil. Its na- They would alternatively be diagrams of tional matrix is in the writing of Clarice Contemporary art is a sui generis experi- subjectivation. In a pole, the subject of ex- Lispector’s interiority of the being, which mental field of solidarity in which alterity pression, the subject of language, and the deals with issues of the art and of the diagrams emerge as models of art practice economic subject of the art end up synthe- look, and her personal social responsibil- taken as a system of effective and fair ex- sizing themselves resolutely in that wor- ity. Her chronicle Mineirinho (1962) about changes between the artist and individu- thy recognized Other. The crucial problem the death of this thug with 13 shots fired als in a state of social vulnerability. These with alterity diagrams is the non-appro- by the police, is the poignant reflection actions are incidents on the plane of the priation of the vulnerable Other symbolic on urban marginality and the respon- symbolic economy with real positive re- surplus-value. sibility of citizenship: “The thirteenth sults for people’s lives. Alterity diagrams are constructed as a shot kills me – because I’m the other”, The term diagram defines a schematic process in a field of relations of differ- writes Lispector.1 The writer took the 13 representation of structures or operation ences and uncertainties. The action may shots as the 13 stages of Mineirinho’s in science or art. Diagrammatic geome- take place by precarious technological life ranging from the starving cry of the try is made up of figures and lines that means or in social situations of commu- then newborn, the underprivileged child, illustrate a definition or statement and nicational crisis. The territory is the very the aimless adolescent to the adult with support a proposition. The Latin etymol- idea of social marginality in what it has no support from society to overcome his ogy diagramma comes from the Greek of individual deterritorialization. These condition of absolute exclusion and with diagraphein (dia = through + graphein = artists make visible what is in the zone no horizon, under a rigid social immobil- write). In the theory of alterity diagrams, of social obliteration, the currency of the ity that admits neither emancipation nor there are symbolic propositions between look at the social and political exclusion. hope of better days. The writer takes re- political positions defined by art. The in- Anchored in concrete situations in Rio de sponsibility as the one who did not listen. dividual who had become invisible is now Janeiro, this production, however, points The interval between the shots acceler- discovered and rescued by art, brought to to history and brings some artists close ates, the tense writing calls for an urgency the surface of social life by the artist under together. Frequently young artists worry that ends up disregarded. a new ethical paradigm. Hence the use of about teenagers in risk situations, such the word diagram to understand this so- as the lack of listening to their demands, cial symmetry pro justitia. frustrations and fantasies, the impossi- Helio Oiticica In the 1990s, interests in social alter- bility of planning an emancipated future, B33 Bólide caixa 18, “Homenagem ity operations expanded. Art assumed risk situations of all kinds (drugs, early a Cara de Cavalo [Bolide box 18 “Tribute to Horse Face”], 1965 tasks of ontological investigation of the pregnancy, incorporation into trafficking, Madeira, fotografia, náilon, acrílico, plástico social being, irreducible to the condition police brutality, genocide of young black e pigmentos [Wood, photography, nylon, of social service or of human sciences. It people) or, simply, hunger itself. How to acrylic, plastic and priments] would be inappropriate to treat it as en- solve the libido process between the trau- Coleção [Collection] Gilberto Chateaubriand, gineering or social technology because ma and the fractures of the subject? MAM-RJ

212 A arte contemporânea é um campo experimental sui generis da solidariedade em que surgem diagramas de alteridade como modelos de prática da arte tomada como sistema de trocas efetivas e justas entre o artista e indivíduos em estado de vulnerabilidade social. São ações incidentes no plano da economia simbólica com resultados positivos reais para a vida das pessoas. O termo diagrama define uma representação es- quemática de estruturas ou operação em ciência ou arte. A geometria diagramática é composta por figu- ras e linhas que ilustram uma definição ou afirmação e apoiam uma proposição. A etimologia latina dia- gramma provém do grego diagraphein (dia = através + graphein = escrever). Na teoria dos diagramas de al- teridade existem proposições simbólicas entre posi- ções políticas definidas pela arte. O indivíduo que se tornara invisível é agora descoberto e resgatado pela arte, trazido à tona da vida social pelo artista sob novo paradigma ético. Daí o emprego do vocábulo diagra- ma para compreender esta simetria social pro justitia. Nos anos 1990, os interesses em operações de alte- ridade social se ampliaram. A arte assumiu tarefas de investigação ontológica do ser social, irredutível à condição de serviço social ou de ciências huma- nas. Seria inadequado tratá-la como engenharia ou indivíduos. Esses artistas tornam visível o que está tecnologia social, pois na dimensão da individuali- na zona da obliteração social, moeda do olhar na ex- dade, estão o necessário reconhecimento e a minu- clusão social e política. Ancorada em situações con- ciosa construção da subjetividade. Seriam, alterna- cretas no Rio de Janeiro esta produção, no entanto, tivamente, diagramas de subjetivação. Num polo, aponta para a história e aproxima alguns artistas. É o sujeito da expressão, o sujeito da linguagem e o frequente entre os artistas jovens a preocupação com sujeito econômico da arte terminam por se sinteti- os adolescentes em situação de risco, como a falta de zar, de modo resoluto, nesse Outro dignamente reco­ escuta em suas demandas, as frustrações e fantasias, nhecido. O problema crucial dos diagramas de alteri- a impossibilidade de planejar um futuro emancipa- dade é a não apropriação da mais-valia simbólica do do, as situações de risco de toda espécie (drogas, gra- Outro vulnerável. videz precoce, incorporação ao tráfico, brutalidade Os diagramas de alteridade se constroem como policial, genocídio dos jovens negros) ou, simples- processo num campo de relações de diferenças e de mente, a própria fome. Como resolver o processo da incertezas. A ação pode se dar por meios tecnológicos libido entre traumas e fraturas do sujeito? precários ou em situações sociais de crise comunica- Existe uma história oblíqua da arte carioca que re- cional. O território é a própria ideia de marginalidade monta aos anos 1960 e se espalha pelo Brasil. Sua ma- social naquilo que ela tem de desterritorialização dos triz nacional está na escrita da interioridade do ser

213 Hélio Oiticica must have read Lispec- It is on the bias of the foreseeable death capitalism, sexual abuse, slavery, war, mas- tor’s chronicle at the time of Mineirinho’s that artists work with street children, sacres, diasporas, imperialism, deterritori- death in Senhor magazine since he often a place is seen as a “crime school”. This alization, and genocide. quotes it. His Bólide caixa 18, Poema Caixa 2, praxis is anchored in the way Rio de Janei- In the 1980s, Celeida Tostes went up Homenagem a Cara de Cavalo [Tribute ro’s culture, despite opposing academic- to the Chapéu Mangueira slum in Leme to Horse Face] (1965) refers to another Greenbergian pressures, resists separat- to organize activities with the residents dead outlaw. Mineirinho and Horse Face ing art from life, without losing a hand to recover the local material culture and had fallen into the hostile police catego- over the aesthetics of the work. After organized joint efforts to produce adobe ry of public enemies.2 Oiticica has much Oiticica, the developments occurred in bricks for the construction of houses. Not- of that ethos of Lispector. For him, Horse the late 1960s, with the agency actions ing the existence of a memory of home- Face “has become a symbol of social op- of history by Cildo Meireles (the notion made candy recipes brought by migrant pression over one who is ‘marginal’ . His of the ghetto as a field of symbolic en- women, she created a cooperative and text O Herói Anti-Herói e o Anti-Herói ergy) or by Lygia Pape (Divisor, 1968, an designed packaging to create a brand Anônimo [The Anti-Hero Hero and the integrated network of alterities in a com- and style that would guarantee them an Anonymous Anti-Hero] (1968) clarifies mon collective action) and Artur Barrio. identity and generate conditions for the the ethical program that supports his In Situação T/T (1970), Barrio distributed production of the seamstresses and the Bólide: “What I want to show, which bloody volumes in places at random – the confectioners in action. Tostes was a pre- originated the raison d’être of a tribute, Trouxas – [Bundles] that aroused the in- cursor to the process of alterity diagrams. is the way in which this society castrat- terests and discussions of the simpler pop- The ethical bias, in the collapse of the ed all possibility of his survival.” Horse ulation, curious to understand the strange 1964 dictatorship, aimed at the simple Face is the symbol of the one who must morbid-looking packages possibly related utopia of articulating individual physical die, says Oiticica. Lispector goes further: to executions by the police or the crime. energy and social-familial memory in a “my mistake is the way I saw life open Barrio brokered social mechanisms for the collective process around actions of com- in his flesh and I was amazed, and I saw awareness of the degree of police violence mon interest. The goal was ultimately to the substance of life, placenta, and blood, in society. The Trouxas worked as the mo- raise not only the income but the self-es- the living mud”. 3 In the State of Exception, bilization engine of the Other in different teem of those women. Giorgio Agamben discusses how “naked degrees of questioning. The three, with Oi- What has changed in the generation life” is the one in which “anyone can take ticica, produced visibility and involvement that emerged in Rio in the 90s? It is the without committing homicide or the one of the socially obliterated Other. We can search for concrete and helpless social that can lead to death, in spite of being imagine a Lispectorian trajectory of gen- Other. It is far beyond the vague oppor- unsacrificable.4 It is the state of utter erations of artists who did not live with tunistic desire for anthropological al- unprotection that goes back to the homo her presence in the daily press of Rio. terity of anthropophagic modernism of sacer banished from the protection of Ro- Successive generations in Europe have the Brazilian diversity of a Tarsila. If the man law, which Agamben compares to taken on the task of resisting oppression: formation of the country was seen as a the American Guantanamo prison and Jacques Callot, Goya, Édouard Manet, process of cultural absorption through the Nazi concentration camp. It is added Käthe Kollwitz, John Heartfield, Pablo Pi- the metabolization of all contributions, that naked life in Brazil is in the slums, casso, Georg Immendorf, among others. In it is worth asking who is the Other of streets, quilombos, indigenous villages, contemporary art, exclusion and oppres- Anthropophagy. It was always an exotic prisons, femicide, targets of the work of sion are on the agenda of afro-descendants type drawn from social formation, never some artists. Lispector had written that in the Americas, such as Melvin Edwards, a concrete subject. In the history of art in “when it comes to killing a criminal – at Lorna Simpson, Kara Walker, K’cho, Glenn this moment an innocent is being killed.5 Ligon, Nadine Robinson, Rosana Paulino, Lispector and Oiticica seem to be togeth- Arjan, Ayrson Heráclito, Jaime Lauriano, er in dimensioning the urban homo sac- Maxwell Alexandre, among many others, er, united by ethical bonds. “The society and Palestinians on the international scene Cildo Meireles that marginalizes and kills”6 is exposed such as Emily Jacir and Adel Abdessemed. Inserções em circuitos ideológicos – by him. From the Lispector-Oiticica axis, Many have intertwined issues of class, Projeto cédula [Insertions in ideological one can think of the Brazilian experience ethnicity, and gender in forms of oppres- circuits – Banknote Project], 1970-1975 of art as a field of social alterity relations. sion, such as the surplus-value of advanced Carimbo sobre cédula [Stamps on banknotes]

214 de Clarice Lispector, que lida com questões da arte Bólide: “O que quero mostrar, que originou a razão e do olhar e de sua responsabilidade social pessoal. de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual Sua crônica Mineirinho (1962) sobre a morte deste essa sociedade castrou toda a possibilidade de sua bandido com 13 tiros desfechados pela polícia, é a sobrevivência”. O Cara de Cavalo é o símbolo daquele pungente reflexão sobre a marginalidade urbana e que deve morrer, diz Oiticica. Lispector escreve mais: a responsabilidade da cidadania: “O décimo-terceiro “meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua car- tiro me assassina – porque eu sou o outro,” escreve ne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e Lispector.1 A escritora tomou os 13 tiros como 13 eta- sangue, a lama viva”. 3 Em O Estado de exceção, Gio- pas de vida do Mineirinho que vão do choro famélico gio Agamben discute como a “vida nua” é aquela em do então recém-nascido, passando pela criança des- que “qualquer um pode tirar sem cometer homicídio valida, pelo adolescente sem rumo até o adulto sem ou aquela que qualquer um pode levar à morte, em qualquer apoio da sociedade para superar sua condi- que pese seja insacrificável”. 4 É o estado de desprote- ção de excluído absoluto e sem horizonte, sob uma rí- ção absoluta que remonta ao homo sacer banido da gida imobilidade social que não admite emancipação proteção do direito romano, que Agamben compara nem esperança de dias melhores. A escritora assume à prisão americana de Guantánamo e ao campo de a responsabilidade como aquela que não escutou. O concentração nazista. Agregue-se que a vida nua no intervalo entre os tiros se acelera, a escrita tensa soli- Brasil está nas favelas, nas ruas, nos quilombos, nas cita uma urgência que acaba desconsiderada. aldeias indígenas, nas prisões, no feminicídio, alvos Hélio Oiticica deve ter lido a crônica de Lispector à da obra de alguns artistas. Lispector, escrevera que época da morte de Mineirinho na revista Senhor, já “na hora de matar um criminoso – nesse instante que a cita com frequência. Seu Bólide caixa 18, Poema está sendo morto um inocente”. 5 Lispector e Oiticica caixa 2, Homenagem a Cara de cavalo (1966) se refere parecem colados em dimensionar o homo sacer urba- a outro bandido morto. Mineirinho e Cara de cavalo no, unidos por vínculos éticos. “A sociedade que mar- haviam caído na categoria hostis da polícia, inimigos ginaliza e mata”6 é exposta por ele. A partir do eixo públicos.2 Oiticica tem muito do ethos precedente de Lispector-Oiticica pode-se pensar na experiência Lispector. Para ele, Cara de Cavalo “tornou-se um sím- brasileira de arte como campo de relações de alte­ bolo de opressão social sobre aquele que é ‘marginal’”. ridade social. Seu texto O herói anti-herói e o anti-herói anônimo É no viés da morte previsível que artistas traba- (1968) esclarece o programa ético que sustentou esse lham com meninos de rua, lugar visto como “escola

215 Brazil, the Other only materialized on the hill that Oiticica climbed in search as the Mangueira in Tropicália at the Museum of Modern Art of Rio (MAM-RJ) in 1967. Over the last 30 years, Dias & Riedweg, Trope, Palazyan, Eduardo Frota (in Fortaleza af- ter his long experience in Rio) and Igor Vi- dor provide diagrams of subjectivation of the Other. The art of alterity or sociability diagrams 7 puts side by side with Rio’s pro- duction names such as in São Paulo, Bené Fonteles in Brasília and Alexandre Sequeira in Pará, among oth- ers, as well as Rosangela Rennó’s image policy operations. These artists estab- lished a regime of exchange through art and its social contract system, confront- ing collateral aspects of utopia, entro- py, and inequalities. The aim here is not to adhere to the “politically correct”, but to point out the resistance to inequality in an undemocratic country.8 By listening to the homeless population, the works act as mechanisms of the alterity diagrams, in the subjectivation of the Other, around the use and exchange value of the involved art object, as we shall see. These artists adopt Dias & Riedweg returned to the scene to a new paradigm of social alterity actions make a protocol video of the survivors. It in which art, if it does not change the is estimated from various reports (found world, it can, however, change our way of teenagers, social workers, and the press) thinking, according to Rorty. that half of the boys were already dead. The duo Dias & Riedweg developed the The street was the passport to death, Devotionalia (1994) project, an installation early evidence of the genocide of young with waxed hands and feet of dozens of black and poor. It can be inferred that boys from the streets of Lapa. The project many of those who are missing today was set up at MAM-RJ and then exposed have become the “living mud-shaped be- at the National Congress with the aim of ings”, of Clarice Lispector’s chronicle: “In drawing attention to the abandoned and the meantime, we sleep and falsely save hopeless childhood in neoliberal Brazil. ourselves,” she concludes. Dias & Riedweg, Dias tells that: Trope, Palazyan, and Vidor problematize self-expression in Cidade partida (1994), “ten years later, continuing to casually the title of Zuenir Ventura’s book on the meet some of the children [now young social division in Rio de Janeiro. adults] in Lapa, Flamengo, Copacabana In 1993, before the spread of digital pho- and downtown (...) we have realized tography on mobile phones, Paula Trope that most of them had actually died. The photographed street boys with pin-hole Mauricio Dias & Walter Riedwig surviving ‘boys’ themselves also told us cameras and portrayed those who did Devotionalia, 1994 under what circumstances their friends not have a portrait of themselves, a kind Fotografia, videoinstalação [Photography, died (trafficking, police, violence).9 of unrealized Narcissus due to the lack of video installation]

216 do crime”. Esta práxis é ancorada no modo como a cultura do Rio de Janeiro, malgrado pressões acadê- mico-greenbergianas oponentes, resiste a separar a arte da vida, sem perder a mão sobre a estética da obra. Depois de Oiticica, os desdobramentos ocor- reram em fins da década de 60, com as ações de agenciamento da história por Cildo Meireles (noção de gueto como campo de energia simbólica) ou por Lygia Pape (Divisor, 1968, uma rede integrada de alte- ridades numa ação coletiva em comum) e Artur Bar- rio. Em Situação T/T (1970), Barrio distribuiu volumes ensanguentados em lugares a ermo – as Trouxas – que despertavam interesses e discussões da popula- ção mais simples, curiosa em entender os estranhos embrulhos de aparência mórbida, possivelmente Na década de 1980, Celeida Tostes subiu o morro do relacionados a execuções pela polícia ou pelo crime. Chapéu Mangueira no Leme para organizar ativida- Barrio agenciava mecanismos sociais de tomada des com os moradores para a recuperação da cultura de consciência sobre o grau de violência policial na material do lugar e organizou mutirões para produzir sociedade. As Trouxas funcionavam como motor de tijolos em adobe para a construção de casas. Notando mobilização do Outro em graus diferentes de ques- a existência de uma memória de receitas de doces ca- tionamento. Os três, com Oiticica, produziam visibili- seiros trazidas pelas mulheres migrantes, criou uma dade e envolvimento do Outro que fora socialmente cooperativa e desenhou embalagens para criar uma obliterado. Cogita-se uma trajetória lispectoriana de marca e um estilo que lhes garantisse identidade e gerações de artistas que não conviveram com sua gerasse condições de produzir renda de costureiras e presença na imprensa carioca cotidiana. doceiras em ação. Tostes foi uma precursora do pro- Sucessivas gerações na Europa assumiram a ta- cesso dos diagramas de alteridade. O viés ético, no refa da resistência à opressão: Jacques Callot, Goya, esgotamento da ditadura de 1964, almejava a utopia Édouard Manet, Käthe Kollwitz, John Heartfield, simples de articular energia física individual e me- Pablo Picasso, Georg Immendorf, entre outros. Na mória sociofamiliar em um processo coletivo em tor- arte contemporânea, exclusão e opressão estão na no de ações de interesse comum. O objetivo era, em agenda dos afrodescendentes nas Américas como última análise, elevar não só a renda, como a autoes- Melvin Edwards, Lorna Simpson, Kara Walker, K’cho, tima daquelas mulheres. Glenn Ligon, Nadine Robinson, Rosana Paulino, O que mudou na geração surgida no Rio nos anos Arjan, Ayrson Heráclito, Jaime Lauriano, Maxwell 1990? É a busca de um Outro social concreto e desam- Alexandre, entre muitos outros, e dos palestinos como parado. Está para além do vago desejo oportunista de Emily Jacir e Adel Abdessemed na cena internacional. alteridade antropológica do modernismo antropo- Muitos imbricaram questões de classe, etnia e gêne- fágico da diversidade brasileira de uma Tarsila. Se a ro sob formas de opressão, como a mais-valia no ca- formação do país era vista como processo de absor- pitalismo avançado, o abuso sexual, a escravidão, as ção cultural pela metabolização de todas contribui- guerras, os massacres, as diásporas, o imperialismo, a ções, cabe indagar quem é o Outro da Antropofagia. desterritorialização e o genocídio. Era sempre um tipo exótico extraído da formação

217 a photographic face in an excess of imag- Muller chose to register a ballot that cor- Paula Trope proposed the work Os meni- es and images excesses society. Existence responded to the value of his job as a car nos do morrinho from the invention of without photo or document, without keeper. The artist and the boys have been adolescents from the Pereirão hill in Lar- which there was no formal life. She then equalized by the precariousness of the anjeiras, Rio. Each boy of the morrinho gave each photographed child a pin-hole lensless photographic technique. The boys reinvented Rio’s favelas as a scale model, camera for them to record an object or had their names, Fabrício, João, Xambim, staging daily life, the struggle for housing situation of their own choosing. They cap- Muller and Fefei, recognized as authors. and the war on trafficking. With games of tured their object of desire in photography The images appeared almost life-size war and invasion, they lived the sublima- and stirred in them the imaginary desire in the portraits of the boys, who, when tion and resistance to social annihilation to observe the world through photogra- photographed in the street with camer- and the risk of involvement with traffick- phy. Trope’s political operation offered as without lens, were always lonely as in ing.10 The boys resisted the apartheid of street children – who had always been the social neglect. This happened because pin- the Brazilian favelas. Against the possi- object of an image before – the possibili- hole cameras demand more exposure time bility of their adherence to drug traffick- ty of becoming subjects of photography, than fast industrial cameras. As a result, ing, the project Os meninos do morrinho that is, subjects of language. It was not a passers-by, who passed between the boys proposed to socially negotiate with the simple opposition of culture to nature, but and the camera, were not captured in the boys – object and subject – simultane- the pre-linguistic babble of photographic image. From this came the metaphor of ously photographed and photographers self-recognition of the subject. their social loneliness. These boys appear with pin-holes pictures of their respective Trope’s diptychs were formed with her as ghosts, actors in the social phantasmat- morrinhos, their own personal work. Trope portrait of the boy and the picture taken ic of fear of violence, because, as Lispector structures the work in two images: the por- by the portrayed, whose collaboration writes, “we are the essential sly” and seek trait of the boy registered by her in front of to her work is recognized by the artist. “not to understand”. his morrinho, and another detailed photo

218 social, nunca um sujeito concreto. Na história da arte “dez anos depois, continuando a casualmente encon- do Brasil, o Outro só se concretizou no morro que Oi- trar algumas das crianças [agora jovens adultos] na ticica subiu para trazer como Mangueira em Tropi- Lapa, no Flamengo, em Copacabana e no centro (...) cália no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ) nos demos conta de que grande parte tinha morri- em 1967. Nos últimos 30 anos, Dias & Riedweg, Tro- do mesmo. Os próprios ‘meninos’ que sobreviveram pe, Palazyan, Eduardo Frota (em Fortaleza depois nos contavam também em que situação os amigos de sua longa experiência no Rio) e Igor Vidor propi- morreram (tráfico, polícia, violência)”. 9 ciam diagramas de subjetivação do Outro. A arte de diagramas de alteridade ou de sociabilidade 7 põe Dias & Riedweg voltaram à cena para fazer um lado a lado da produção do Rio, nomes como Claudia vídeo-protocolo dos sobreviventes. Calcula-se por re- Andujar em São Paulo, Bené Fonteles em Brasília e latos diversos (adolescentes reencontrados, assisten- Alexandre Sequeira no Pará, entre outros, bem como tes sociais e imprensa) que metade dos meninos já as operações da política da imagem de Rosangela teria morrido. A rua foi o passaporte para a morte, Rennó. Estes artistas estabeleceram um regime de evidência antecipada do genocídio dos jovens ne- trocas po meio da arte e de seu sistema de contrato gros e pobres. Pode-se inferir que muitos dos que social, com confronto de aspectos colidentes de uto- hoje faltam se tornaram seres em forma de “lama pia, entropia e desigualdades. Não se trata aqui de viva”, da crônica de Clarice Lispector: “Enquanto isso, aderir ao “politicamente correto”, mas de apontar a dormimos e falsamente nos salvamos”, conclui ela. resistência à desigualdade num país antidemocráti- Dias & Riedweg, Trope, Palazyan e Vidor problema- co.8 Ao ouvir a população de rua, as obras funcionam tizam a autoexpressão na Cidade partida (1994), tí- como mecanismos dos diagramas de alteridade, sub- tulo da obra de Zuenir Ventura sobre a divisão social jetivadores do Outro, em torno do valor de uso e de no Rio de Janeiro. troca do objeto de arte envolvido, como se verá. Esses Em 1993, antes da difusão da fotografia digital por artistas adotam um novo paradigma de ações de al- telefones celulares, Paula Trope fotografou meninos teridade social em que a arte, se não muda o mundo, de rua com câmeras sem lente (ditas pinhole) e re- pode, no entanto, alterar nossa maneira de pensá-lo, tratou quem não tinha um retrato de si, espécie de conforme Rorty. Narciso irrealizado por falta de um rosto fotográfico A dupla Dias & Riedweg desenvolveu o projeto De- na sociedade do excesso de imagens e dos excessos votionalia (1994), uma instalação com as mãos e mar- da imagem. Existência sem fotografia ou documento, cas dos pés em cera de dezenas de meninos das ruas sem o que não havia vida formal. Depois, deu uma da Lapa. O projeto foi montado no MAM-RJ e depois câmara pinhole a cada criança fotografada para que exposto no Congresso Nacional com o objetivo de ela própria registrasse um objeto ou situação de sua chamar a atenção para a infância abandonada e sem escolha. Captaram na fotografia seu objeto de dese- perspectivas no Brasil neoliberal. Dias conta que: jo e atiçou nelas o desejo imagético de observar o mundo através da fotografia. A operação política de Trope ofereceu aos meninos de rua – que antes eram sempre o objeto da imagem – a possibilidade de se Mauricio Dias & Walter Riedwig tornarem sujeitos da fotografia, isto é, sujeitos da Devotionalia, 1994 linguagem. Não se tratou de simples oposição da cul- Vista da exposição no [Exhibition view] Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro tura à natureza, mas do balbucio pré-linguístico de Foto [Photo] Mauricio Dias autorreconhecimento fotográfico do sujeito.

219 of the morrinho taken by the young man himself who is his “owner”, who now be- comes a triple subject: authors of the scale model, the collaborators of the artist and a paid economic subject. Trope acts against the despotic order of culture organization. The sets of images juxtaposed the photos of the creator-creature. They looked like readers of the Clarice of “What I want is rougher and harder: I want the earthly”. In Roupa de marca [Brand clothing] (2000/2002), Rosana Palazyan involved children in conflict with the law in ideas such as… a story you have never forgotten? (2000-2007).

“In the face of so many lived histories (from domestic and street violence, trau- ma, feelings of betrayal, aggression; even joys and events involving friendship and solidarity), my curiosity was whether they had kept that history that they would never be able to forget”. 11

Palazyan involved the young in the pro- duction of “designer clothes” (T-shirts with Adidas or Nike logos designed by them), always the object of their desire for con- sumption. The pieces were sold at the Baby- lon Hype Fair in Rio. The money raised was reverted to the institution where they were interned, but intended for collective use as the law prohibits to compensate them

Rosana Palazyan Da série Por que Daninhas? [From the series Why Weeds?], 2006/2008 Bordado com linha e fios de cabelo sobre tecido e plantas [Embroidery with thread and human hair on fabric and plants], 25 × 20 cm cada peça [each piece] Coleção particular [Private collection] Foto [Photo] Vicente de Mello

Da série Escola João Luis Alves, 2000/ 2002 Fotografia, impressão Fine Art sobre papel algodão [Fine art printing on cotton paper], 30 × 24 cm Obra realizada durante o processo de troca e convivência diária com os adolescentes internados na instituição em cumprimento de medidas socioeducativas [Work done during exchange process and daily interaction with detained adolescents engaged in community service] Foto [Photo] Rosana Palazyan

220 Paula Trope Muller, aos 8 anos, guardador de carros [Muller, 8 years old, car keeper] Sem título (O dinheiro) [Untitled (The money)], 1993 Da série Os meninos [From The boys series], 1993-1994 Fotografia com câmera de orifício [Pinhole photograph] Díptico [Diptych], 130 × 101 e 37 × 61 cm

Os dípticos de Trope se formaram com seu retrato fantasmática social do medo da violência, porque, do menino e a foto tirada pelo retratado, cuja cola- como escreve Lispector, “somos os sonsos essenciais” boração é reconhecida pela artista à sua obra. Muller e procuramos “não entender”. escolheu registrar uma cédula que correspondia ao Paula Trope propôs Os meninos do morrinho a par- valor de seu trabalho como guarda de automóvel. A tir da invenção de adolescentes do morro do Pereirão artista e os garotos foram igualados pela precarie- em Laranjeiras, no Rio. Cada menino do morrinho dade da técnica fotográfica sem lente. Os meninos reinventou favelas cariocas em maquete, encenan- ganharam seus nomes, Fabrício, João, Xambim, Mul- do o cotidiano, a luta pela moradia e a guerra de ler e Fefei, como autores. As imagens surgiam quase tráfico. Com jogos de guerras e invasões, viviam a em tamanho natural nos retratos dos meninos que, sublimação e a resistência à aniquilação social e ao fotografados na rua com câmeras sem lente, esta- risco de envolvimento com o tráfico.10 Os meninos vam sempre solitários como em abandono social. resistiam ao apartheid das favelas brasileiras. Contra Isto ocorreu porque a pinhole demanda mais tempo a possibilidade da adesão deles ao narcotráfico, o pro- de exposição do que as rápidas câmeras industriais. jeto Os meninos do morrinho se propôs à negociação Como resultado, os transeuntes, que passavam entre social com os garotos – objeto e sujeito – simultanea- os meninos e a câmera, não foram capturados na ima- mente fotografados e fotógrafos com pin-holes de gem. Disso surgiu a metáfora de sua solidão social. seus respectivos morrinhos, sua obra pessoal. Tro- Esses meninos aparecem como fantasmas, atores da pe estrutura a obra em duas imagens: o retrato do

221 individually. The choices fell on a new tele- issue, the strategy is to think about tasks of vision, games or soccer team shirts. Unable personal emancipation from the Other, a to find his partners again or to remunerate fair remuneration and to build of political them individually (in the case of institu- alliances. Palazyan concluded that: tions for minors), Palazyan addressed the Paula Trope “after creating bonds and being so present perceived amount to an institution capable Série Sem simpatia – os meninos do Morrinho in the daily lives of these boys, I couldn’t of benefiting the social segment in focus. [‘No sympathy’ serie – the boys from Morrinho], go away and disappear suddenly. I have 2004-2005 The procedure, which characterizes social decided to stay in the institution until Com a colaboração de [with the collaboration diagrams, refuses to appropriate surplus the last teenager I had met individual- of] Renato Dias Figueiredo, Marcos Vinicius value because the brokering of symbolic Clemente Ferreira, Luciano de Almeida e José ly was released. So that once more they values of the Other implies considering Carlos da Silva Pereira, Renato Dias Figueiredo would not experience the feeling of con- (Naldão), Marcos Vinicius Clemente Ferreira it necessarily the economic subject of the 12 stant abandonment in their lives.” (Negão), Luciano de Almeida e José Carlos da artistic fact. It is therefore important to Silva Pereira (Júnior) | Fotografia com câmera de prevent the process from becoming the In the 2000s, Eduardo Frota‘s Montese orifício [Pinhole photograph], 160 × 126 cm appropriation of symbolic surplus value. Workshop in Fortaleza, after the return Coleção [Collection] Museu Nacional de Belas In the face of the challenging symbolic of years in Rio, became an irrationalist Artes, Rio de Janeiro

222 “Diante de tantas histórias vividas (desde a violên- cia doméstica e a do dia a dia nas ruas, traumas, sentimentos de traição, agressões; e até mesmo alegrias e acontecimentos envolvendo amizade e solidariedade), minha curiosidade era se eles ha- viam guardado aquela história que nunca conse- guiram esquecer.” 11

Palazyan envolveu os jovens na produção de “rou- pas de marca” (camisetas com logomarcas da Adidas ou da Nike desenhadas por eles), sempre objeto do desejo de consumo deles. As peças foram vendidas na Babilônia Feira Hype no Rio. Os recursos auferidos fo- ram revertidos para a instituição onde eles estavam internados, mas destinados ao uso coletivo já que a legislação proíbe remunerá-los individualmente. As escolhas recaíram sobre uma televisão nova ou jogos e camisas do time de futebol. Na impossibilidade de reencontrar seus parceiros ou de remunerar indivi- dualmente (no caso das instituições para os meno- res), Palazyan endereçou a importância apurada a al- gum órgão capaz de beneficiar o segmento social em foco. O procedimento, que caracteriza os diagramas sociais, recusa a apropriar-se da mais-valia porque o agenciamento dos valores simbólicos do Outro impli- ca considerá-lo necessariamente sujeito econômico do fato plástico. Cabe, pois, evitar que o processo não menino diante de seu morrinho registrado por ela e se converta em apropriação da mais-valia simbólica. outra foto de detalhe do morrinho tirada pelo pró- Diante da desafiante questão simbólica, a estratégia prio jovem que é seu “dono”, que agora se torna um é pensar em tarefas de emancipação pessoal do Ou- triplo sujeito: autores da maquete, colaboradores da tro, de justa remuneração e construir alianças políti- artista e sujeito econômico remunerado. Trope atua cas. Palazyan concluiu que contra a ordem despótica da organização da cultura. Os conjuntos de imagens justapunham as fotos da “depois de criar vínculos e estar tão presente no criatura-criador. Pareciam leitores da Clarice de “O cotidiano daqueles meninos, não poderia ir embo- que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: que- ra e desaparecer de repente. Decidi continuar na ro o terreno.” instituição até que o último adolescente que eu Em Roupa de marca (2000/2002), Rosana Palazyan havia conhecido individualmente tivesse sido pos- envolveu menores em conflito com a lei em ideias to em liberdade. Para que mais uma vez eles não como …uma história que você nunca mais esqueceu? experimentassem o sentimento de abandono cons- (2000-2007). tante em suas vidas.” 12

223 factory, employing more workforce than gesture, materiality, time construction, in art by incorporating the labor factor necessary. Its alterity diagram was the densification of collective experience, the and the extra productive effort under the transfer of income since there was no flow of time/space/sense (enlarged, con- visibility of labor. market for what was produced there. All of tained, expanded, displaced).” 13 The term An Extensive Intervention is an operation his projects presented to funding compa- Extensive Intervention comes from com- with the theory of value, because Frota, nies were based on extraordinary spend- plex carpentry and therefore implied pay- like Trope and Palazyan, works the very ing on woodwork, much the opposite of ing a higher volume of wages to collabora- social condition of value production in the what would be thought of as a labor-sav- tors. This favorable strategy was discussed work of art. By confronting the concepts of ing scheme. In the studio, the work of up with the workers who thus became aware, the political economy of usage value and to 14 workers had the purpose of assem- in a non-insane way, of the meaning of exchange value, he exposes the operation bling structures to obliquely give body to irrational labor, besides the discussions of the imaginary constitution of the art objects. Large cones and spools were built of art history and philosophy. The social object as a sign of value.14 Like Cildo Meire- by the accumulation of wooden planes and political relationship established by les in Árvore do dinheiro [Money Tree] that were glued together to form the body Frota with his assistant workers goes back (1969), Eduardo Frota is one of those who and the shape. It would be more econom- to Geraldo de Barros’s social experiments point to the “gap between exchange value ical, to manufacture a spool, by using a in his Unilabor factory and his collective and use-value, or between symbolic value cylinder from a longitudinally worked log management and luxury distribution. Fro- and real value.” 15 “I realized that cutting or to bend a sheet of plywood rather than ta’s work was a necessity, he says, crafts- wood is a kind of thinking.” Frota reports, to construct a tube by overlapping circular manship creates bodies through repeti- “the audacity of the cut disassembles and planes. Frota proposed projects that de- tion and obsession. His process is what we assembles the shape/object.” Material op- manded more resources from the sponsors could define as ‘production of production’. erations remain visible, as the anti-simu- (Museu Vale) as a way to redistribute and He takes apart the opacity projected by lacrum of a monolithic sculptural volume. increase the income of his collaborators. capitalism on the value of labor added In this sense, his work opens wide the ma- The wood in the lamination bone showed to the product. He aimed to make visible terial truth, an ethical attitude that in Bra- intense investment in the work. Frota stat- what is strategically obliterated in the pro- zil is symbolized by the steel in Amilcar de ed the difference – “what all this implies: cess of constituting the value of exchange Castro’s work. And, to insist, it makes work

Eduardo Frota Ateliê [Studio] Eduardo Frota, Fortaleza, 2005 Foto [Photo] Fernanda Costa

> Carretéis [Spools], 2005 Instalação no [Exhibition view] Museu Vale, Velha, Espírito Santo Laminado Industrial de madeira reflorestada e cola, medidas variáveis [Industrial laminate with reforested wood structure and glue, variable dimensions] Foto [Photo] Sergio Araújo

224 Nos anos 2000, a Oficina do Montese de Eduardo forma. Seria mais econômico, no fabrico de um carre- Frota em Fortaleza, depois do retorno de anos no tel, usar um cilindro a partir de uma tora trabalhada Rio, virou uma fábrica irracionalista, pois emprega- longitudinalmente ou curvar uma folha de compen- va mais força de trabalho do que o necessário. Seu sado, em lugar de construir um tubo pela sobrepo- diagrama de alteridade era a transferência de renda, sição de planos circulares. Frota propunha projetos já que não havia mercado para o que ali se produzia. que demandavam mais recursos dos patrocinadores Todos seus projetos apresentados ao financiamento (Museu Vale) como forma de redistribuir e ampliar por empresas se baseavam em gastos extraordiná- a renda de seus colaboradores. A madeira no osso rios com o trabalho de marcenaria, muito no oposto em laminação demonstrava o intenso investimen- do que se pensaria num regime de economia de mão to no trabalho. Frota afirmava a diferença – “o que de obra. No ateliê, a faina de até 14 operários tinha o tudo isso implica: gesto, materialidade, construção objetivo de montar estruturas para dar corpo aos ob- de tempo, adensamento de experiência coletiva, flu- jetos de um modo oblíquo. A construção de grandes xos de tempos/espaços/sentidos (ampliado, contido, cones e carretéis se fazia pela acumulação de planos expandido, deslocado).” 13 O termo Intervenção ex- de madeira que eram colados formando o corpo e a tensiva advem da marcenaria complexa e implicava,

225 visible as surplus value. “I like João Cabral,” the participants of their projects was as- “No, it’s not that I want the sublime, nor he says, “when he talks about the guts. At sured, whether they were part of the street the things that have become the words the same time, work has this exteriority to population or residents in a favela. They that make me sleep soundly,”18 concludes the world, and it also has its own interiori- were transformed into singularized au- Lispector. To whom is the art of the alteri- ty of the work process.” 16 thors of the image and economic subjects ty diagrams in service of? It would be of no Igor Vidor, from São Paulo, who lived in in an experimental exercise of equality, in use if it were for the Hegelian “good soul” Rio until 2018, treated his alterity diagram the words of Mário Pedrosa. The point was of the artists without concrete beneficiary as minimal “social sculptures” (a concept to extend the rhizome of social equilibri- exchanges with the Other. For this is how that Joseph Beuys developed for his polit- um. It is an integral part of Trope’s work to Lispector deplored the “mixture of forgive- ical-environmental projects), since “there recognize the boys as subjects with their ness, vague charity, of us who take refuge is in it a pregnancy of the marginal econ- own language, culture producers and her in the abstract.” 19 Oiticica despised the feel- omy, of child labor, the drive for life, indi- authoritative collaborators. There would ing of “pity” in cruel “social enjoyment”. The vidual dexterity versus social immobility be no positive alterity diagram without the authors of the alterity diagrams demand inserted in the postcolonial in the form elision of symbolic surplus value. As men- the ethical reflection of the practice in its of post-slavery.” 17 Vidor dealt with young tioned, the value of production of Os meni- contradictions. Perhaps they could, in a jugglers who manipulated yellow tennis nos do morrinho was divided into three summary of this work, borrow Lispector’s balls at the Rio de Janeiro stoplights. He thirds (one for the boys, one for Trope and words: “and I still live in the weak house.” 20 proposed to replace the old balls, painted the third for the gallery, in accordance The scope of this analysis focuses on Rio, the by the gray of the asphalt, with new ones. with the market laws). Also, Igor Vidor place of origin and experimentation of the For him, “the balls in motion are ‘pyra- after the exchange proposed the same alterity diagrams. In Cezanne’s Doubt, Mer- midal solids’, for they are a symptom of agreement that determines that, when leau-Ponty concludes that Cezanne’s work a rigid social structure.” The series Tênis selling the object Tênis Clube, the value is required “this life,” i.e., that life he lived. It Clube (2015) consisted of sets of balls ar- divided into three parts as in Trope’s case. is appropriate here to paraphrase: such ranged chromatically under tonal color The gallery that accepted this proposal solidarity works demanded this socially arrangements in rows. The sale benefited was Luciana Caravello gallery in Rio. unfair and self-critical city, Rio de Janeiro. the jugglers. “In any case, even identifying this perverse structure that keeps the boys at the stoplights, for them it was always work, with day, time and commitment,” comments Vidor, “when they stand in front of the cars there, in those 30 seconds, there’s the forming of an audience that in- evitably does not want to be an audience. (...) I have witnessed from the part of the audience every kind of repulsiveness you can imagine. We once did a power exer- cise under their practice, and I asked the boys to stand a few more seconds after the green light was on; as a result, there was honking, name-calling and car thrown to- wards the boys.” Paula Trope, Rosana Palazyan, Eduardo Frota, and Igor Vidor dismantle the sur- plus-value to make it a critical sign. Trope Rafael Pereira Abranches advanced in the experience of alterity by O malabarista [The juggler] (Maylon da Silva) Fotografia [Photography] proposing to the Morrinho boys to nego- tiate copyright, legal and economic issues, > Igor Vidor via a contract signed with the boy himself, Tênis Clube 6, 2016 if he is of age, or with his guardians, if he Bolas de tênis em caixa de madeira is underage. The direct financial return for [Tennis balls in a wooden box]

226 pois, em pagar um maior volume de salários aos co- Uma Intervenção extensiva é uma operação com laboradores. Esta estratégia favorável era discutida a teoria do valor, pois Frota, como Trope e Palazyan, com os operários que assim tomavam consciência trabalha a própria condição social da produção de desalienante do sentido do trabalho irracional, além valor na obra de arte. Ao confrontar os conceitos da de discussões de história da arte e de filosofia. A rela- economia política de valor de uso e valor de troca, ção social e política estabelecida por Frota com seus ele expõe a operação de constituição imaginária do operários-assistentes remetem aos experimentos so- objeto de arte como um signo de valor.14 Como Cildo ciais de Geraldo de Barros em sua fábrica UNILABOR Meireles em Árvore do dinheiro (1969), Eduardo Frota e sua gestão coletiva e distribuição de luxo. O traba- é um dos que apontam para a “defasagem entre va- lho de Frota se constituiu por uma necessidade, diz lor de troca e valor de uso, ou entre valor simbólico ele: a artesania cria corpos pela repetição e obsessão. e valor real”. 15 “Percebi que o corte na madeira é um Seu processo é aquilo que poderia se definir como tipo de pensamento.” Relata Frota, “a audácia do cor- “produção de produção”. Ele desmonta a opacidade te desmonta e monta a forma/objeto.” As operações projetada pelo capitalismo sobre o valor do trabalho materiais permanecem visíveis, como antissimulacro agregado ao produto. Seu objetivo era tornar visível do volume escultórico monolítico. Nesse sentido, sua aquilo que é estrategicamente obliterado no proces- obra escancara a verdade material, uma atitude éti- so de constituição do valor de troca na arte mediante ca que no Brasil se simboliza no aço na obra de Amí- a incorporação do fator trabalho e do esforço produti- lcar de Castro. E, insista-se, deixa visível o trabalho vo extra, sob a visibilidade do laboral. como valor agregado. “Gosto de João Cabral,” discorre,

227 Sem título (Pega-pega) [Run and catch], 2016 Performance desenvolvida ao longo de 6 meses, com 111 jovens de 3 diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro. Cada região comandadas por facções criminosas rivais (Vila Aliança, Morro da Providência e Santa Cruz). A performance de 11 minutos consistia em um encontro espontâneo, no meio da praça Mauá, onde os jovens corriam em circulo aos gritos de pega-pega. O trabalho foi desenvolvido em parceria por Lucas Silva Junior, Rafael Abranches, Maylon Silva e Igor Vidor. Agradecimento especial para Franklin Ferreira e o projeto Craques da Vida. [Performance developed over 6 months, with 111 young people from 3 different regions of Rio de Janeiro. Each region commanded by rival criminal factions (Vila Aliança, Morro da Providência and Santa Cruz). The 11-minute performance consisted of a spontaneous rendezvous in the middle of Mauá Square, where young people ran in a circle shouting for catch. The work was developed in partnership by Lucas Silva Junior, Rafael Abranches, Maylon Silva and Igor Vidor. Special thanks to Franklin Ferreira and the Craques a Vida projec]. Foto [Photo] Igor Vidor

228 “quando fala das tripas. Ao mesmo tempo, o trabalho menor. O retorno financeiro direto para os partici- tem essa exterioridade para o mundo, também tem pantes de seus projetos, sejam a população de rua uma interioridade própria do processo do trabalho.” 16 ou moradores em favela era assegurado. Eles eram O paulista Igor Vidor, residente no Rio até 2018, transformados em autores singularizados da ima- tratou seu diagrama de alteridade como mínimas gem e em sujeitos econômicos em exercício expe- “esculturas sociais” (conceito que Joseph Beuys de- rimental da igualdade, Mário Pedrosa aqui parafra- senvolveu para seus projetos político-ambientais), seado. O sentido foi estender o rizoma de equilíbrio pois nele “há uma pregnância da economia marginal, social. Integra a obra de Trope reconhecer os meni- do trabalho infantil, da pulsão de vida, da destreza nos como sujeitos com linguagem própria, produto- individual versus a imobilidade social inserida no res de cultura e seus colaboradores autorais. Não ha- pós-colonial sob a forma de pós-escravismo.” 17 Vidor veria diagrama de alteridade positivo sem elisão da lidou com jovens malabaristas que manipulavam mais-valia simbólica. Como mencionado, o valor da bolas de tênis amarelas nos sinais de trânsito do Rio produção de Os meninos do morrinho foi dividido em de Janeiro. Ele lhes propôs trocarem as bolas usadas, três terços (um para os meninos, outro para Trope e, pintadas pelo cinza do asfalto, por novas. Para ele, “as conforme a lei do mercado, o terceiro à galeria). Tam- bolas em movimentos são ‘sólidos piramidais’, pois bém Igor Vidor após a troca, propôs o mesmo acordo são um sintoma da estrutura social rígida imóvel.” que determina que no ato da venda do objeto Tênis A série Tênis Clube (2015) consistiu em conjuntos de Clube, o valor seja dividido em três partes como em bolas organizados cromaticamente sob arranjos cro- Trope. A galeria que aceitou essa proposta foi Lucia- máticos tonais em linhas. A venda beneficiou os ma- na Caravello no Rio. labaristas. “De qualquer forma, mesmo identifican- “Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas do essa estrutura perversa que mantém garotos no que foram se tornando as palavras que me fazem sinal, para eles aquilo sempre foi trabalho, com dia, dormir tranquila”, 18 conclui Lispector. A quem serve hora e compromisso,” comenta Vidor, “quando eles se a arte dos diagramas de alteridade? De nada valeria posicionam diante dos carros ali, naqueles 30 segun- se fosse à “boa alma” hegeliana dos artistas sem tro- dos, existe a formação de um público que inevitavel- cas beneficiárias concretas com o Outro. Pois foi as- mente não quer ser público. (...) presenciei, por parte sim que Lispector deplorou a “mistura de perdão, de de público, todo tipo de repulsa que pode imaginar. caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato”. 19 Uma vez fizemos um exercício de poder sob sua práti- Oiticica desprezou o sentimento de “pena” em cruel ca, e pedi aos garotos que se mantivessem no sinal al- “gozo social”. Os autores dos diagramas de alteridade guns segundos a mais após a abertura do sinal verde; exigem a reflexão ética da prática em suas contra- como consequência houve businaço, xingamentos e dições. Talvez pudessem, em resumo desse trabalho, avanços de automóveis sobre os meninos.” tomar emprestadas as palavras de Lispector: “e conti- Paula Trope, Rosana Palazyan, Eduardo Frota e nuo a morar na casa fraca”. 20 O escopo desta análise Igor Vidor desmontam a mais-valia para convertê-la se concentra no Rio, lugar de origem e de experimen- em signo crítico. Trope avançou na experiência de tação dos diagramas de alteridade. Em A dúvida de alteridade ao propor aos meninos do Morrinho a ne- Cézanne, Merleau-Ponty conclui que a obra de Cézan- gociação de questões autorais, jurídicas e econômi- ne exigia “esta vida”, i. e., aquela sua vida. Cabe aqui cas, via um contrato assinado com o próprio garoto em paráfrase: tais obras solidárias exigiam esta cida- se maior de idade, ou com seus responsáveis, se for de, socialmente injusta e autocrítica, o Rio de Janeiro.

229 Lugares do delírio Loucura e arte no Rio de Janeiro

Tania Rivera

Places of Delirium – Madness several proposals on the border between capable of actively and relevantly taking and Art in Rio de Janeiro art and health. The terrain of madness and part in society. In this context, today it mental health seems to be asserting itself, would be naive – or rather violent and Artists, curators and cultural producers especially in this context, retaking under segregating – to make them incarnate today face the difficult task of realizing a new paradigm the historical importance the figure of the genius subtracted from and defending the power of resistance exerted by the meeting of critics and mod- cultural life, the “brute” or the “virgin” art- and emancipation of art in the face of the ernist artists with the production of psy- ist (to use Jean Dubuffet’s terminology in omnipresence of the cultural industry – chiatric patients in occupational therapy the expression art brut and his review by consolidated in the last decades of the workshops. the Brazilian critic Mário Pedrosa). What twentieth century as a consummate con- The “discovery” of such production in sense could such a qualification have in vergence between artistic production and Europe in the early 1920s contributed to the field of contemporary production, in marketing – and of the professionalization the defense of the “expressive” value of which neither the technical training nor and internationalization of the art market, modern art against the prevailing natu- the reception by critics guarantees the which makes the work a fetish and a kind ralistic academicism, but did not call into place of a non-“brute” “authentic artist”? of stronghold of surplus-value, even when question the confinement of its authors Although there are still galleries of “brute it actively seeks to question the prevailing for long periods, if not for all life. However, art” around the world, it seems problem- economic and social conditions. From the since the 1960s, the initiatives of Franco atic today to incense the production of end of the last century on, the transfor- Basaglia in Trieste and David Cooper and outsider artists and seek to shed light on mative relational proposals that already Ronald Laing in England have led to An- them, as this paradoxically enhances their marked the 1960s adjusted their focus in tipsychiatry and Democratic Psychiatry, supposed distinction from “artists”, in gen- order to address geopolitical and social is- boosting an anti-mental institution move- eral. So what are the current artistic pro- sues, while attempting to build models of ment and psychiatric reform around the posals in the field of mental health? To relationship and society on a micropolitical world. The diagnostic delimitation of the confine art to the supposed curative goals level. In recent years, this search has helped person with severe psychic distress was of “art therapy”? In the case of projects of to cut up the boundaries of the field of art denounced as part of a power device used artistic residency or other interventions in favor of experiential social and politi- by the medical discourse, as shown by the in mental health institutions, would it cal experiences, updating the modernist masterful History of Madness in the Clas- be appropriate to speak of clinical ac- dream of uniting art and life in key policy sical Age by Michel Foucault, in 1972, and tions in culture, or even of artistic-political and leading to a remarkable questioning mental institutions began to be fought as about the conditions of the exposure and institutions that, under the guise of plac- transmission. of such actions. es of “treatment” for disorder, have shown Artur Bispo do Rosário In this field so rich and problematic, themselves as part of a disciplinary sys- Alvo 627, Orfa [Target 627, Oprah] Metal, tecido e linha [Metal, fabric and which raises today the question of what tem that produces social exclusion, seg- thread], 15 × 12 cm art is and its role in people’s lives, as well regation, and suffering. From ‘patients’, Coleção [Collection] Museu Bispo do Rosário as refusing the claim of the so-called subjects who are said to be ‘crazy’ and Arte Contemporânea/ Prefeitura da Cidade do erudite art to delimit a place of exception considered by many to be incapable, they Rio de Janeiro and privilege, we have recently seen arise began to be reinvested as social actors Foto [Photo] Rodrigo Lopes

230 Artistas, curadores e produtores culturais lidam hoje Nesse campo tão rico e problemático, que recoloca com a difícil tarefa de efetivar e defender a potência hoje em discussão a questão do que é arte e de seu de resistência e emancipação da arte diante da oni- papel na vida das pessoas, assim como recusa a pre- presença da indústria cultural– consolidada nas úl- tensão da arte dita erudita de delimitar um lugar de timas décadas do século XX como convergência con- exceção e privilégio, vimos surgirem recentemente sumada entre produção artística e marketing – e da propostas diversas na fronteira entre arte e saúde. profissionalização e internacionalização do mercado O terreno da loucura e da saúde mental parece afir- de arte, que faz da obra um fetiche e uma espécie de mar-se em especial nesse contexto, retomando sob bastião da mais-valia, mesmo quando ela busca ati- novo paradigma a importância histórica exercida vamente questionar as condições econômicas e so- pelo encontro de críticos e artistas modernistas com ciais vigentes. A partir do fim do século passado, as a produção de pacientes psiquiátricos em ateliês de propostas relacionais transformadoras que já mar- terapia ocupacional. cavam os anos 1960 ajustavam seu foco de maneira A “descoberta” de tal produção na Europa no início a encarar questões geopolíticas e sociais, ao mesmo dos anos 1920 contribuiu para a defesa do valor “ex- tempo em que tentavam construir modelos de rela- pressivo” da arte moderna contra o academicismo na- ção e sociedade em um nível micropolítico. Nos últi- turalista vigente, mas não pôs em questão a interna- mos anos, essa busca ajudou a esgarçar as fronteiras ção de seus autores por longos períodos, quando não do campo da arte em prol de experiências vivenciais, por toda a vida. Desde a década de 1960, porém, as sociais e políticas, atualizando o sonho modernista iniciativas de Franco Basaglia em Trieste e de David de unir arte e vida em chave política e levando a um Cooper e Ronald Laing na Inglaterra levaram à Anti- notável questionamento sobre as condições de expo- psiquiatria e à Psiquiatria Democrática, impulsionan- sição e transmissão de tais ações. do, ao redor do mundo, o Movimento Antimanicomial

231 interventions in the field of mental health? Rio de Janeiro, this essay will only briefly In short, how can the interaction between present some of the fundamental axes these fields have emancipatory effects on that branch out today in places where art the subject in culture today? and mental health are critically connected The theoretical and historiographical in culture and operate as subversive models reflection itself constantly bumps in the of reconfiguration of reality and the sub- trap that would lead it to confirm exclu- ject, with micropolitical reach. sionary borders and idealizations, under the justification of the objective descrip- Delirium tion of facts and the exploration of already We are going to use the term “delirium” demarcated territories. Therefore, the ap- to address such places, avoiding the term proach of this field requires us to recog- “madness” because it reifies a “condition” nize the ideological and political implica- of alterity in relation to a supposed “nor- tions of thought itself, as well as to try to mal” and carries the medicalization that direct it ethically, assuming a proposition- places it in the diagnostic category of al dimension – what we will try to do here, “psychosis” and its subdivisions and deri- taking the exhibition Lugares do delírio vations. Severe psychic suffering is not a [Places of Delirium] as a platform of reflec- “disease”, and the mapping of organic sub- tion and historical revision to return to the strates that positive science never ceases question of the relationship between mad- to produce is not based on evidence of pa-

ness and art within the scope of the cur- thologies, consisting of discursive bound- Lugares do delírio [Places of delirium], 2017 1 rent artistic production. Without claiming aries of medical categories with biopolit- Vista da exposição no [Exhibition view] to provide an exhaustive overview of re- ical incidence. It is a complex social fact, Museu de Arte do Rio – MAR cent initiatives in this field in the city of which we must approach in a macro and Foto [Photo] Elisa Mendes

232 e a Reforma Psiquiátrica. A delimitação diagnóstica de territórios já demarcados. A abordagem desse cam- do portador de sofrimento psíquico grave foi denun- po obriga-nos, portanto, a reconhecer as implicações ciada como parte de um dispositivo de poder ao qual ideológicas e políticas do próprio pensamento, bem serve o discurso médico, como mostrava a magistral como a tentar direcioná-lo eticamente, assumindo História da Loucura na Idade Clássica, de Michel Fou- uma dimensão propositiva – o que tentaremos aqui cault, em 1972, e os hospícios começaram a ser comba- fazer, tomando a exposição Lugares do Delírio como tidos como instituições que, sob a designação de lo- uma plataforma de reflexão e revisão histórica para cais de “tratamento” de distúrbios, revelam-se parte buscar recolocar a questão da relação entre loucura e de um sistema disciplinar produtor de exclusão social, arte no âmbito da produção artística atual.1 Sem ter a segregação e sofrimento. De “pacientes”, os sujeitos pretensão de apresentar um panorama exaustivo das ditos “loucos” e tomados por muitos como incapazes iniciativas recentes nesse campo na cidade do Rio de começaram a ser reinvestidos como atores sociais ca- Janeiro, este ensaio se limitará a apresentar breve- pazes de tomar parte na sociedade de modo ativo e mente alguns dos eixos fundamentais que hoje se ra- pertinente. Nesse contexto, hoje seria ingênuo – ou mificam em lugares nos quais arte e saúde mental se melhor, violento e segregador – fazê-los encarnarem conectam de forma crítica na cultura e operam como a figura do gênio subtraído da vida cultural, do artista modelos subversivos de reconfiguração da realidade “bruto” ou “virgem” (para usar a terminologia de Jean e do sujeito, com alcance micropolítico. Dubuffet na expressão art brut e sua revisão pelo crí- tico brasileiro Mário Pedrosa). Que sentido poderia ter Delírios tal qualificação no campo da produção contemporâ- Utilizaremos o termo “delírio” para abordar tais luga- nea, na qual nem a formação técnica, nem a recepção res, evitando o termo “loucura” por este reificar uma por parte da crítica garantem o lugar de “artista autên- “condição” de alteridade em relação a um suposto tico”, não “bruto”? Apesar de ainda existirem galerias “normal” e carrear a medicalização que a positiva na de “arte bruta” mundo afora, parece-nos problemático, categoria diagnóstica da “psicose” e em suas subdivi- hoje, incensar a produção de artistas “outsiders” e bus- sões e derivações. O sofrimento psíquico grave não é car lançar luz sobre eles, pois isso realça, paradoxal- uma “doença”, e o mapeamento de substratos orgâni- mente, sua suposta distinção em relação aos “artistas” cos que a ciência positiva não cessa de produzir não se em geral. Então de que se trata nas propostas artísti- baseia na comprovação de patologias, consistindo em cas atuais no campo da saúde mental? De confinar a delimitações discursivas de categorias médicas com arte aos supostos objetivos curativos da “arteterapia”? incidência biopolítica. Ele é um fato social complexo, Nos casos de projetos de residência artística ou outras do qual devemos nos aproximar em um movimento intervenções em instituições de saúde mental, seria macro e micro, em uma espécie de sanfona crítico- pertinente falar em ações clínicas na cultura, ou ain- clínica: buscando o singular (uma história específica, da em intervenções artístico-políticas no campo da pessoas únicas, um dado microcontexto), sem perder saúde mental? Em suma, como pode hoje a interação de vista o comum (a todos nós: o amplo e complexo entre esses campos ter efeitos emancipatórios sobre campo social e político no qual esse fato se produz). o sujeito na cultura? A “loucura” diz respeito a todos nós. Ela é uma im- A própria reflexão teórica e historiográfica esbarra, portante dimensão do humano e nos lembra que “o a todo o tempo, na armadilha que a levaria a confir- ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigo- mar fronteiras e idealizações excludentes, sob a justi- sos” – na expressão de Antonin Artaud que Nise da ficativa da descrição objetiva de fatos e da exploração Silveira gostava de citar.2 Os modos de “estarmos” no

233 micro-movement, in a kind of clinical- The traditional psychiatric discourse happened insofar as madness embodied a critical accordion: seeking the singular emphasizes its distance from the so- potential for criticizing the representation (a specific story, unique people, a given called “normal”, but Sigmund Freud that met modernist aspirations. Alongside microcontext), without losing sight of demonstrated, conversely, its construc- the art of children and naive artists, the the common (to all of us: the broad and tive and curative power. He stated, as art of madmen – brought to light by Mar- complex social and political field in which early as 1910, that delirium is a remark- cel Réja, Walter Morgenthaler and Hans such a fact takes place). able work of reconstructing the fabric of Prinzhorn in Europe, but also by Ulysses “Madness” concerns us all. It is an import- reality that would have been frayed by a Pernambucano, Osório Cesar and later ant dimension of the human being and deeply disorganizing experience in the Nise da Silveira in Brazil – stood out from reminds us that “the being has innumera- triggering of a psychosis.3 It is not an er- this broader field because it made explic- ble and increasingly dangerous states” – in ror, a deviation to be eventually correct- it the deep split of the subject that went Antonin Artaud’s expression that Nise ed, but rather an attempt to (re)construct hand in hand with the language transfor- da Silveira liked to quote.2 The ways of reality procedurally and uniquely, in the mations proposed by the modernist artists. “being” in the world are plural, involving face of the weakening of the affective The ideology that has dominated this suffering (as well as pleasure) in unique connection with the world. With the term field and to this day persists in the com- ways, without a prior and universal norm “delirium”, we highlight what intense psy- mon sense and practice of some “art to delimit “pathology” in the dense field of chic suffering can produce as a political therapists”, resisting even among artists, “passions” (pathos), from where it derives power for the construction of the subject critics and theorists, is that of the mad- its etymology. However, if the field of se- and the world, inaugurating different man as a subject capable of “free” expres- vere suffering in mental health is thus modalities of “reality”. sion, devoid of the academic bonds of the refracted in a thousand directions and al- Moreover, the term goes beyond the field professional artist. Although the artistic most dissolves into the infinite diversity of suffering, is occasionally used to charac- production by patients of psychiatric in- of singular “states,” it shows, like no other, terize intense moments that may involve stitutions has shown to the modernists, something fundamental: the fact that re- pleasure, joy, invention. Delirium can ap- between the 1920s and 1950s, sophisticat- ality, in some “states of being”, transforms pear at a party, at a play, but also at a re- ed language variations and possibilities itself; therefore, it is not the independent bellion, at a revolt against an unjust and for constructing unconventional modes evidence of our passions, but it seems to violent society. It arises in the Carnival, for of representation of the world – that is, be, to some extent, built by them. The hal- example, suspending one’s social place unfolding the power of delirium in all lucinations and the delirium experienced and gender; or in slang and poetry, which its vigor –, their works used to be seen by many of us demonstrate that percep- twist the language and make it says some- through the lens of the naturalization tion itself is actively and affectively con- thing else, transforming itself. It appears of the human being “in the brute form”. stituted by traces, discrete impressions, and operates, perhaps in a privileged way, The isolation and exclusion to which the and not simply grasped in the way of in art – for it is also largely about getting psychiatric institution system subjected reproducing an evident and unquestion- out of the grooves of conventionally ac- them turned in “freedom” from cultural able reality. cepted thinking and proposing other con- protocols, and even if it consists of a cer- Replacing “madness” with the term de- figurations of reality. tain idealization that echoes the figure of lirium thus seems to allow us to align In the key to delirium, art and madness the mad genius, the face of Romanticism, with the problematization of reality and thus intertwine as fields in the culture in it carries the clear violence of denying representation actively operated by sub- which reality is constructed (since it is al- them full belonging to a culture. jects undergoing psychotic experiences. ways lacking, always redoing itself) and In Brazil, some psychiatrists followed Before being appropriated by the psychi- plural places are formed, in which singu- this path, becoming interested in the atric discourse as a symptom, the etymol- larities are set in motion – and in contact spontaneous production of patients. ogy of the word refers to what comes out with themselves. Osório Cesar, who worked at the Hospital of the grooves of conventionally accept- of Juqueri, in São Paulo, was the one who ed thought, which deviates or presents Modern Art and the expression took this interest further and stimulated, itself as a parallel path to that already of the “crazy” in the 1930s, the contact of artists such as established. Thus, delirium is outside the If the figure of the madman and the pro- Flávio de Carvalho and Tarsila do Ama- paths of the hegemonic thought, but it is duction of patients of psychiatric institu- ral with the works of the inmates. In 1949 nonetheless a thought, a systematized tions interested the artistic vanguards of he founded in the institution, together construction. the first half of the twentieth century, it with dr. Mário Yahn, the Fine Arts Section,

234 mundo são plurais, envolvendo sofrimento (e tam- o mundo. Com o termo “delírio”, ressalta-se o que o bém prazer) de formas únicas, sem que uma norma sofrimento psíquico intenso pode produzir como po- prévia e universal possa delimitar a “patologia” no tência política de construção de sujeito e de mundo, denso campo das “paixões” (páthos), que lhe fornece a inaugurando modalidades diversas de “realidade”. etimologia. Contudo, se o campo do sofrimento grave Ademais, o termo vai além do campo do sofrimen- em saúde mental se refrata assim em mil direções e to, sendo eventualmente empregado para caracteri- termina quase por se dissolver na diversidade infini- zar momentos intensos e que podem envolver prazer, ta de “estados” singulares, ele dá a ver, como nenhum alegria, invenção. O delírio pode aparecer na festa, na outro, algo fundamental: o fato de que a realidade, em brincadeira, mas também na rebelião, na revolta con- alguns “estados do ser”, transforma-se; ela não é, por- tra uma sociedade injusta e violenta. Ele surge no car- tanto, uma evidência independente de nossas paixões, naval, por exemplo, suspendendo o lugar social e o gê- mas parece ser, em alguma medida, por elas constru- nero de cada um; ou na gíria e na poesia, que retorcem ída. As alucinações e os delírios vividos por muitos de a língua e a fazem dizer outra coisa, transformando-se. nós demonstram que a própria percepção se constitui Ele aparece e opera, talvez de modo privilegiado, na ativa e afetivamente a partir de traços, impressões arte – pois trata-se aí, também, em larga medida, de discretas, não sendo simplesmente apreendida sob sair dos sulcos do pensamento convencionalmente o modo da reprodução de uma realidade evidente e aceito e propor outras configurações de realidade. inquestionável. Na chave do delírio, arte e loucura entrelaçam-se, Substituir a “loucura” pelo termo delírio parece- assim, como campos na cultura em que se constrói nos, assim, permitir um alinhamento com a proble- realidade (pois esta é sempre pouca, sempre a se re- matização da realidade e da representação operada fazer) e se conformam lugares plurais, nos quais sin- ativamente por sujeitos que passam por vivências gularidades põem-se em movimento – e em contato. psicóticas. Antes de ser apropriada pelo discurso psi- quiátrico como um sintoma, a etimologia da palavra Arte Moderna e a expressão dos “loucos” refere-se àquilo que sai dos sulcos do pensamento Se a figura do louco e a produção de pacientes de convencionalmente aceito, o que desvia ou se apre- instituições psiquiátricas interessou às vanguardas senta como caminho paralelo àquele já estabelecido. artísticas da primeira metade do século XX, foi na O delírio coloca-se, assim, fora dos caminhos do pen- medida em que a loucura encarnava um potencial de samento hegemônico, mas não deixa de ser pensa- crítica da representação que ia ao encontro das aspi- mento, construção sistematizada. rações modernistas. Ao lado da arte de crianças e de O discurso psiquiátrico tradicional salienta sua artistas naïfs, a arte dos loucos – trazida à tona por distância em relação ao dito “normal”, mas Sigmund Marcel Réja, Walter Morgenthaler e Hans Prinzhorn, Freud veio demonstrar, pelo contrário, seu poder na Europa, mas também por Ulysses Pernambucano, construtivo e curativo. Ele afirmou, já em 1910, que o Osório Cesar e, posteriormente, Nise da Silveira, no delírio é um notável trabalho de reconstrução do teci- Brasil – destacava-se desse campo mais amplo por do da realidade que teria sido esgarçado por uma vi- explicitar a profunda cisão do sujeito que ia de par vência profundamente desorganizadora, no desenca- com as transformações de linguagem propostas pe- deamento da psicose.3 Não se trata de erro, de desvio a los artistas modernistas. ser eventualmente corrigido, mas sim uma tentativa A ideologia que dominou esse campo e até hoje per- de (re)construção de realidade de modo processual e siste no senso comum e na prática de alguns “artete- único, diante do esgarçamento da ligação afetiva com rapeutas”, resistindo mesmo entre artistas, críticos e

235 which had the collaboration of Maria Although the Surrealists simultaneously Leontina for two years, was renamed The had been sustaining a clear criticism of the Free School of Plastic Arts in 1956 and it psychiatric institutions’ system since the worked until around 1979. 1920s, the artistic world, in general, did not Cesar’s initiative was in line with the even propose, in the following decades, a continuing interest of European psychia- direct work with patients, merely incens- trists and artists in patient’s works, which ing their works without reaching to articu- finds in the painter Jean Dubuffet, in late with them a transforming discourse of 1945, the most striking formulation in the the exclusion device. term “brute art” – art brut , which would The history of the encounter between best be translated as “raw art” – to name art and madness in Rio de Janeiro be- the production of people who would be gins at the same moment, but it must be outside the institutional circuit of art, highlighted as striking and founder of a especially psychiatric patients, character- unique path in relation to the one that izing them as those who, exempted from was consolidated in Europe. In 1946, Nise the naturalistic academicism prevail- da Silveira founded the painting studio ing among professionals, would take ev- at the National Psychiatric Center (later erything – theme, rhythm, material, etc. – renamed Pedro II Psychiatric Center, now from themselves, from their “impulses”. 4 the Nise da Silveira Municipal Health By naturalizing the confinement and ex- Care Institute), as a discourse against Lívia Flores e João Wladimir Bernardes clusion of those who produce it, “brute new treatments such as electroshock, in- Carro-coração [Heart car], 2017 art”, understood as a pure and autono- sulin shock, and lobotomy. Her emphasis Vídeo realizado com Clóvis dos Santos e Bloco mous invention made only for the bene- on affection and respect for “clients” (as Carnavalesco Império Colonial [Video produced fit of those who produce it, even opposes, she proposes to call the interns who partic- with Clovis dos Santos and Império Colonial in Dubuffet’s vocabulary, “cultural arts”. ipated in the studio) thus marks the role of Carnival Block]

236 teóricos, é aquela do louco como sujeito capaz de ex- bruta”, entendida como pura e autônoma invenção pressão “livre”, desprovida das amarras acadêmicas feita apenas para o proveito de quem a produz, chega dos artistas profissionais. Apesar de a produção artís- a se opor, no vocabulário de Dubuffet, às “artes cul- tica realizada por pacientes de asilos psiquiátricos ter turais”. Apesar de os surrealistas sustentarem simul- mostrado aos modernistas, entre as décadas de 1920 taneamente, desde a década de 1920, uma clara críti- e 1950, sofisticadas variações de linguagem e possi- ca ao sistema asilar, o mundo artístico em geral não bilidades de construção de modos não convencionais chega a propor, nas décadas seguintes, um trabalho de representação do mundo – ou seja, ter desdobrado direto com pacientes, limitando-se a incensar suas a potência do delírio em todo o seu vigor –, suas obras obras, sem chegar a articular com elas um discurso costumavam ser vistas pela lente da naturalização transformador do dispositivo de exclusão. do humano “em estado bruto”. O isolamento e a ex- A história do encontro entre arte e loucura no Rio clusão a que lhes submetia o sistema asilar revirava- de Janeiro começa no mesmo momento, mas deve ser se em “liberdade” em relação aos protocolos culturais, ressaltada como marcante e fundadora de um cami- e, mesmo que esta consista em certa idealização que nho singular em relação àquele que se consolidava ecoa a figura do gênio louco, cara ao Romantismo, ela na Europa. Em 1946, Nise da Silveira funda o ateliê carrega a violência patente de negar-lhes pleno per- de pintura no Centro Psiquiátrico Nacional (depois tencimento à cultura. rebatizado como Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje No Brasil, alguns psiquiatras seguiram essa trilha, Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da interessando-se pela produção espontânea de pa- Silveira), de saída, como discurso contrário aos novos cientes. Osório Cesar, que trabalhava no Hospital de tratamentos, como o eletrochoque, o choque insu- Juqueri, em São Paulo, foi quem levou mais longe tal línico e a lobotomia. Sua ênfase no afeto e respeito interesse e suscitou, na década de 1930, o contato de pelos “clientes” (como ela propõe chamar os internos artistas como Flávio de Carvalho e Tarsila do Amaral que participavam do ateliê) marca, assim, o papel da com as obras dos internos. Em 1949, ele fundou na iniciativa como precursora do movimento antimani- instituição, ao lado do dr. Mário Yahn, a Seção de Ar- comial e de sua articulação com a arte. tes Plásticas, que contou com a colaboração de Maria Com esse discurso inovador, o ateliê do Engenho de Leontina por dois anos, foi renomeada Escola Livre de Dentro instala-se em um contexto já informado pela Artes Plásticas em 1956 e funcionou até cerca de 1979. noção de expressão criativa como capacidade huma- A iniciativa de Cesar alinhava-se ao interesse na a ser estimulada em uma espécie de desenvolvi- continuado de psiquiatras e artistas europeus por mento pessoal, podendo eventualmente ser utilizada obras de pacientes, que encontra com o pintor Jean com fins terapêuticos, como já ocorria em algumas Dubuffet, em 1945, sua formulação mais marcante iniciativas nos Estados Unidos e na Europa. Tratava-se, no termo “arte bruta” – art brut, que seria melhor tra- nas palavras de Nise, de mobilizar “a surpreendente duzida como “arte crua” – para denominar a produ- eficácia da expressão plástica como verdadeira moda- ção de pessoas que estariam fora do circuito institu- lidade de psicoterapia”. 5 Em suas atividades, foi decisi- cional de arte, especialmente pacientes psiquiátricos, va a presença do jovem artista Almir Mavignier, que caracterizando-os como aqueles que, isentos do aca- era funcionário da instituição psiquiátrica e levou até demicismo naturalista vigente entre os profissionais, lá outros artistas, como Abraham Palatnik e Ivan Ser- tirariam tudo – tema, ritmo, material etc. – de si mes- pa. Após a primeira exposição de obras dos internos, mos, de suas “impulsões”. 4 Naturalizando o confina- organizada por Mavignier no Ministério da Educação mento e a exclusão daqueles que a produzem, a “arte em 1947, o grande crítico de arte e homem político

237 as Abraham Palatnik and Ivan Serpa, was decisive. After the first exhibition of works by inmates, organized by Mavignier at the Ministry of Education in 1947, the great art critic and politician Mário Pedrosa also began following and attending the studio. With Pedrosa and the young artists, Nise’s studio was configured as a kind of plastic experimentation laboratory, oper- ating close to what is currently sought in the artistic residency initiatives. In con- trast to the position of the psychiatrist – who soon became a faithful follower of Carl Gustav Jung’s ideas and defended the virtues of the “pure” expression of the unconscious – the critic elaborated and discussed with artists a true critical re- view of the notion of expression, ripping it from the syntax of inspiration and the mechanical gush of images from the un- conscious to make it a rigorous device of decentering from oneself for the sake of the other and the power of art as a con- struction of the common. We will not have room here to scrutinize the critical debate and theoretical reflec- tion that make explicit the position of Pe- drosa, who, moreover, will remain in ten- sion with that of Nise da Silveira for years, without both of them involved in a pub- lic discussion about the issue. Let us just mention that the innovative Pedrosian the initiative as a precursor of the anti-psy- proposal about expression was naturally chiatric institution movement and its artic- articulated with its aesthetic and political ulation with art. ideas, leading to the defense of abstract With this groundbreaking discourse, the art. Being underground throughout the as- Engenho de Dentro studio is set in a con- sertion of concrete art in the 1950s, it will text already informed by the notion of cre- surface at the end of the decade, with the ative expression as a human capacity to be proposals of the neoconcrete group. The stimulated in a kind of personal develop- debates between “Paulistas” and “Cariocas”, ment, and to be occasionally used for ther- much more than reaffirming anecdotal apeutic purposes, as was already the case characterizations between the two cities with some initiatives in the United States have to do, in my view, with the mark that Gina Ferreira e Hélio Carvalho and Europe. It was about, in Nise’s words, the “madness” of Nise da Silveira’s clients Fora do corpo [Out of the body], 2017 mobilizing “the astonishing efficacy of impresses upon Pedrosa’s thought. Fragmentos de relatos escolhidos plastic expression as a true modality of It is especially in the contact with Ra- da Estruturação do Self (1980-2017) 5 [Fragments of selected stories of the psychotherapy”. In her activities, the pres- fael Domingues that the expression will Structuration of the Self] ence of the young artist Almir Mavignier, show the critic a fundamental twist. The Exposição Lugares do delírio [Exhibition view who was an employee of the psychiatric artist’s work process fascinates him, as he Places of delirium], Museu de Arte do Rio – MAR institution and brought other artists, such says in a late 1959 text, as a “wonderful and

238 Mário Pedrosa começou também a acompanhar e autenticidade “expressiva” é localizada por Pedrosa frequentar o ateliê. na dissociação psicótica, em contraste com a afirma- Com Pedrosa e os jovens artistas, o ateliê de Nise ção da personalidade do artista que estará em jogo configurou-se como uma espécie de laboratório de nas propostas tachistas e expressionistas abstratas. É experimentação plástica, com funcionamento pró- ali, quando o gesto “vem de longe” e não de seu agen- ximo do que é atualmente buscado nas iniciativas te – ali, quando se está “fora de si” –, que se trataria de residência artística. Em contraponto ao posicio- de encontrar uma singularidade fundamental, uma namento da psiquiatra – que logo se tornou uma fiel presença autêntica do sujeito. seguidora das ideias de Carl Gustav Jung e defendia Ele afirma assim, de modo único e inovador, a lou- as virtudes da “pura” expressão do inconsciente –, o cura como posicionamento ético de abertura para o crítico elaborava e discutia com os artistas uma ver- outro em si mesmo – em um gesto crítico cuja inci- dadeira revisão crítica da noção de expressão, arran- dência sobre a produção artística fornecerá as bases cando-a da sintaxe da inspiração e do jorro mecânico para a potente afirmação neoconcreta da arte como de imagens provenientes do inconsciente para fazer convite ao outro e reflexão propositiva sobre a alte- dela um rigoroso dispositivo de descentramento de ridade. O surgimento do Neoconcretismo – e com ele, si em prol do outro e da potência da arte como cons- a abertura das vias fundamentais para a produção trução do comum. contemporânea, especialmente no Rio de Janeiro – Não teremos aqui espaço para esmiuçar o debate passa, portanto, pelo Engenho de Dentro, como bem crítico e a reflexão teórica que explicitam a posição nota Paulo Herkenhoff.7 A relação entre arte e loucu- de Pedrosa, que, de resto, manter-se-á em tensão com ra assim refez-se, entre os anos 1940 e 1960, em uma a de Nise de Silveira durante anos, sem que ambos as- articulação inovadora e marcante para a produção sumam uma discussão pública sobre o tema. Mencio- contemporânea brasileira. Dela partirão fios que se nemos apenas que a inovadora proposta pedrosiana ramificam e geram novos entrelaçamentos atuantes a respeito da expressão se articulava, naturalmente, até hoje, dos quais traremos aqui algumas notícias. com seu ideário estético e político, desembocando na defesa da arte abstrata. Subterrânea ao longo da Da Estruturação do Self à Psiquiatria Poética: afirmação da arte concreta nos anos 1950, ela virá à Lygia Clark, Gina Ferreira e Lula Wanderley tona no fim da década, com as propostas do grupo A prática de Lygia Clark com seu método de Estru- neoconcreto. Os debates entre “paulistas” e “cariocas”, turação do Self, proposto como processo terapêutico muito mais do que reafirmar caracterizações anedó- individualizado oferecido em seu apartamento, ra- ticas entre as duas cidades, dizem respeito, a meu ver, dicaliza a aproximação da arte ao campo da saúde à marca que a “loucura” dos clientes de Nise da Silvei- mental de maneira coerente ao desdobramento da ra imprime no pensamento de Pedrosa. obra da artista, que, desde o início, punha em prá- É especialmente no contato com Rafael Domingues tica uma quebra da superfície convencional de re- que a expressão mostrará ao crítico uma torção fun- presentação em busca da construção de um espaço damental. O processo de trabalho do artista o fascina, vivencial que se acompanha de uma vigorosa pro- como ele diz em texto de fins de 1959, como um “jogo blematização do eu.8 A Estruturação do Self situa-se maravilhoso e autêntico”, no qual se passaria o lápis na fronteira entre terapia e proposição artística e se ou pincel de uma mão à outra, pelas costas, para dei- reinventa a cada sessão, com cada cliente singular, xar o braço “correr livremente pelo painel”, na “con- visando atingir o nível anterior à fala e levar a uma clusão de um gesto que vinha de longe”. 6 A chave da elaboração progressiva e estruturante do eu através

239 authentic game” in which one would pass branch out and generate new interweav- the pencil or brush from one hand to the ing still at work today of which we will other behind his back to leave his arm bring some news here. “run freely through the panel” in the “con- clusion of a gesture from afar”. 6 The key From the Structuring of the Self to to “expressive” authenticity is located by the Poetic Psychiatry: Lygia Clark, Pedrosa in the psychotic dissociation, in Gina Ferreira, and Lula Wanderley contrast to the affirmation of the artist’s Lygia Clark’s practice with her method – personality that will be at stake in abstract Structuring of the Self, proposed as an indi- tachist and expressionist proposals. It is vidualized therapeutic process offered in there, when the gesture “comes from afar” her apartment, radicalizes the approach of and not from its agent – there when one is art to the field of mental health in a man- “out of one’s mind” – that one would find ner consistent with the unfolding of the a fundamental singularity, an authentic artist’s work, which, from the beginning, presence of the subject. put in practice a break from the conven- In this unique and innovative way, he tional surface of representation in search affirms madness as an ethical position of the construction of a living space that of openness to the other in one’s self – in is accompanied by a vigorous problema- a critical gesture whose focus on artistic tization of the self.8 The Structuring of the production will provide the basis for the Self is on the borderline between therapy potent neoconcrete affirmation of art as and artistic proposition and is reinvented an invitation to the other and a proposi- with each individual client, in each ses- tive reflection about otherness. The emer- sion, aiming to reach the level prior to the gence of Neoconcretism – and with it, the speech and lead to a progressive and struc- opening of the fundamental pathways turing elaboration of the self through the for contemporary production, especially sensorial experience with simple, home- in Rio de Janeiro – therefore goes through made objects (called by Clark “relational Engenho de Dentro, as noted by Paulo objects”), which create relationships with Roberto Garcia Herkenhoff.7 the body through texture, weight, size, (colaboração de [collaboration of] Lula Wanderley e [and] Leandro Freixo) The relationship between art and mad- sound, and movement, triggering the sub- Análise combinatória entre uma dízima periódica ness was thus remade, between 1940 and ject’s “affective memory” and fantasies. e uma progressão geométrica [Combinatorial 1960, in an innovative and striking artic- The method, practiced from 1976 to close analysis between a periodic tithe and a geometric ulation for contemporary Brazilian pro- to her death in 1988, seems especially ef- progression], anos 1990 [90’s] duction. From it will come threads that fective to the artist with borderline cases, Vídeo [Video], 16’

240 da vivência sensorial com objetos simples e de con- em seu caso. Longe de nos levar a considerar o méto- fecção caseira (chamados por Clark de “objetos rela- do como recurso terapêutico e destacá-lo do campo cionais”), que criam relações com o corpo por meio da arte, sua posição de “não artista” nos parece an- de textura, peso, tamanho, sonoridade e movimento, tes apontar para a radicalização do questionamento desencadeando a “memória afetiva” e as fantasias e do alargamento das fronteiras da arte como uma do sujeito. O método, praticado de 1976 até perto de das principais características de tais práticas situa- sua morte, em 1988, parece à artista especialmente das na interseção da arte com os serviços de saúde efetivo com casos ditos borderline, situados na fron- mental. Neste sentido, diríamos que não apenas uma teira entre “normalidade” e psicose. “Nunca trate artista como Lygia Clark, ao propor-se a atuar como um psicótico como um louco, mas sim como um ar- “terapeuta”, continua a fazer arte de maneira deslo- tista sem bagagem”, dizia Lygia. E completava: “Acho cada, multiplicando seus lugares e contaminando-os, que o verdadeiro ‘doente’ é o neurótico assimilado como, de forma complementar, uma terapeuta como ao sistema, e considero o ‘borderline’ o sadio que in- Gina Ferreira, ao atuar como propositora de proces- venta a cultura através da criação”. 9 sos de Estruturação do Self, contamina os lugares da Formados por ela no método no início dos anos atenção em saúde mental, fazendo arte ali onde ela 1980, Gina Ferreira e Lula Wanderley logo começa- não seria esperada. Esse duplo movimento de deslo- ram a empregá-lo no campo do tratamento do so- camento ecoa e reduplica o movimento do eu ao re- frimento psíquico grave em atendimento individual virar-se no outro – tarefa que Lygia atribui ao artista/ em consultório e em instituição psiquiátrica. propositor (“Somos os propositores; somos o molde; a Gina Ferreira é psicóloga clínica e, antes de apro- vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o senti- ximar-se de Lygia Clark já havia trabalhado durante do da nossa existência/Somos os propositores: nossa cinco anos com Nise da Silveira na Casa das Palmeiras, proposição é o diálogo. Sós, não existimos; estamos além de ter trabalhado com Ronald Laing em Londres, a vosso dispor”)10 e que Gina encarna no terapeuta em 1980. Após oito meses de processo pessoal de Es- ao fazer dele uma “dobra” que sai “de seu próprio eu truturação do Self com Clark, passou a realizá-lo com para entender a possibilidade de reconstruir mini- clientes encaminhados por ela e sob sua supervisão mamente um outro eu”. 11 até 1987. É de sua autoria o objeto relacional Gota de Na articulação desses dois deslocamentos, algo se Mel, que Lygia incorporou a sua própria prática. Mais dobra e reconfigura de modo plural e móvel a carto- recentemente, sentiu necessidade de oferecer a Es- grafia dos terrenos da arte e da loucura – não se trata truturação do Self em instituição de serviço público apenas de pôr no plural seus lugares, mas de insta- em saúde mental e realizou, de 2014 a 2017, o projeto bilizar as fronteiras. Do eu com o outro ao eu como Arte, Corpo e Sensibilidade no Museu de Imagens do outro, revira-se o próprio eu, e, nesse acontecimento, Inconsciente. Gina acredita que todos temos, além de ele só se inscreve fora de si, e assumindo-se como de- um “núcleo saudável”, um “núcleo psicótico”, que nem lírio em si (e por toda parte). sempre se manifesta. Segundo ela, a Estruturação do Médico de formação, Lula Wanderley, desde mui- Self possibilitaria que esse núcleo incitasse o poten- to jovem, trabalhava como artista gráfico. Foi um cial criativo, pela produção imagética, na busca por dos criadores do movimento Nuvem 33, em Recife, soluções diante dos conflitos da vida. nos anos 1970, antes de se envolver com o campo da Nesse processo, o papel do propositor, do “tera- psiquiatria por meio de Nise da Silveira, que lhe dis- peuta”, não o coloca necessariamente na posição de se para tomar “sua sensibilidade como instrumento “artista”, segundo Gina, que recusa tal caracterização de trabalho”. 12 A partir de seu processo pessoal de

241 situated on the boundary between “nor- mality” and psychosis. “Never treat a psy- chotic like a madman, but rather as an artist with no luggage,” Lygia used to say. And she added: “I think the real ‘sick’ is the neurotic assimilated to the system, and I consider the “borderline” the healthy one who invents culture through creation”. 9 Trained by her in the method in the early 1980s, Gina Ferreira and Lula Wanderley soon began to employ it in the field of the treatment of severe psychic distress both in individual care in the office and in a psychiatric institution. Gina Ferreira is a clinical psychologist and, before approaching Lygia Clark, had worked for five years with Nise da Silveira at the Casa das Palmeiras, and had worked with Ronald Laing in London in 1980. Af- ter eight months of a personal process of Structuring of the Self with Clark, she be- gan to use it with clients referred by her and under her supervision until 1987. She is the author of the relational object Gota de Mel [Honey Drop] that Lygia incorpo- rated into her own practice. More recently, she has felt the need to offer the Struc- turing of the Self in a public service men- tal health institution and has conducted, from 2014 to 2017, the project Arte, Corpo e Sensibilidade [Art, Body, and Sensitivity] at the Museu de Imagens do Inconsciente [Museum of Images of the Unconscious]. Gina believes that we all have, besides a “healthy nucleus”, a “psychotic core” that doesn’t always manifest itself. According to her, the Structuring of the Self would make it possible for this nucleus to stim- ulate the creative potential, through imag- ery production, in the search for solutions in the face of life’s conflicts. In this process, the role of the proposer, the “therapist,” does not necessarily place Lula Wanderley him or her in the position of “artist,” ac- Psiquiatria poética [Poetic psychiatry], 2016 cording to Gina, who refuses such charac- (Detalhe de Insônia (eu horizontal × eu vertical), em terization in her case. Far from leading us colaboração com [Insomnia detail (horizontal self vertical self) in collaboration with] Wanderlei Ribamar to consider the method as a therapeutic Instalação em Lugares do delírio [installation at resource and to detach it from the field of Places of delirium], SESC-Pompéia, São Paulo, 2018 art, her position as a “non-artist” seems to Foto [Photo] Everton Ballardin us to point rather to the radicalization of

242 Estruturação do Self e da colaboração com Lygia em música, em colaboração com Leandro Freixo. Se- Clark ao longo da década de 1980, segue aplicando gundo Wanderley, ao desenvolver esse sistema, o esse método e criando outras proposições sensoriais cliente ia ressignificando seu corpo e invertendo um em seu trabalho terapêutico-poético com pacientes movimento de queda, redirecionando-o para a vida. graves no Espaço Aberto ao Tempo, serviço que criou Podemos dizer que, pela psiquiatria poética, põe-se com Carmen Lúcia Bragança Sobreira em fins dos anos em marcha, assim, um processo que agrega aos ca- 1980, no mesmo centro hospitalar que continua abri- minhos delirantes apresentados pelo cliente certas gando o Museu de Imagens do Inconsciente. A eles, ações artísticas que, de alguma maneira, potenciali- veio se juntar o psiquiatra e escritor Edmar de Souza zam-no e o tornam colaborativo, realizando a façanha Oliveira e outros profissionais, além de colaboradores de favorecer dinâmicas relacionais tradicionalmente externos, dentre os quais se destacam a bailarina e co- tidas como inviáveis com pacientes psicóticos. Trata- reógrafa Angel Vianna e o crítico inglês Guy Brett. se, para Lula, de “um diálogo subjetivo, poético, que é Wanderley denomina Psiquiatria poética esse tra- terapêutico em si na medida em que a subjetividade balho multifacetado, que se dá de modo singulariza- que passa entre nós é muito produtiva e poética”. 14 do e sempre em colaboração com os pacientes, de- Vemos que essa prática artística é simultaneamen- senvolvendo proposições individuais ou coletivas e te clínica: ela se origina de um profundo conheci- gerando performances, vídeos e objetos, em ativida- mento e vivência da experiência do sofrimento men- des variadas que compõem a “arquitetura vivencial” tal grave e busca constituir alianças poéticas com as do EAT. Trata-se, segundo ele, de “uma prática e uma estratégias delirantes dos próprios clientes, a fim de teoria a partir do encontro”. Lula diz deixar-se “sentir colaborar na construção de um lugar de sujeito sin- a partir do sofrimento do outro” e criar uma resposta gular, e, no entanto, compartilhado. Por meio de pro- poética propositiva, em um processo clínico-artísti- posições artísticas, a potencialidade de construção co que, muitas vezes, gera resultados terapêuticos e de um lugar de sujeito pelo delírio é assim reconhe- é empregado mesmo em situações de crise aguda. O cida, e, talvez, alargada, pela participação de outros fundamental na posição do propositor é “um olhar (o “terapeuta”, mas eventualmente outros clientes e acolhedor” e colaborativo, ao qual são agregados ele- membros da equipe, e, em alguns casos, o “público” mentos diversos oriundos do campo da arte, dentre em geral). A arte parece aqui ampliar as possibilida- os quais a poesia e o cinema, incluindo, eventual- des da clínica ao abrir a singularidade do caminho mente, proposições de Lygia Clark, tomadas como delirante para a possibilidade de compartilhamento; “instrumento” para a comunicação com os clientes, a ao fazê-lo, reconfigura a própria noção de “participa- fim de gerar acontecimentos singulares, em um pro- ção”, tão importante na prática inaugurada por Lygia cesso que vai “acumulando histórias”. 13 Clark e outros, como Hélio Oiticica, radicalizando sua Com Roberto Garcia, por exemplo, em fins da dé- incidência no próprio campo da arte. cada de 1980, Lula começa a estudar a questão da Em 1994, foi criado, no EAT, com ampla colabora- dízima periódica, que se ligava à ideia de “espirais ção de membros da equipe e pacientes, o Grupo de de memória” formulada pelo cliente em seu delírio. ações poéticas, que, em 2005, passou a denominar- Como mostra o vídeo Análise combinatória entre se Grupo de ações poéticas: sistema nervoso altera- uma dízima periódica e uma progressão geométrica do, com extensa atuação em performance e música, (c. 1990), Garcia começa, então, a fazer pinturas uti- atualmente prosseguindo na música como Sistema lizando análise combinatória a partir das dízimas Nervoso Alterado Jazz Band, com direção musical de periódicas, usando um sistema que logo transporá Leandro Freixo.

243 the questioning and the widening of the his therapeutic-poetic work with critically developing this system, the client was frontiers of art as one of the main charac- ill patients in the Espaço Aberto ao Tempo – reframing his or her body and reversing a teristics of such practices situated at the EAT [Space Open to Time], a service he cre- downward movement, redirecting it to life. intersection of art with mental health ser- ated with Carmen Lucia Bragança Sobreira We may say that, through poetic psychia- vices. In this sense, we would say that not in the late 1980s, in the same hospital cen- try, a process is set in motion that adds to only an artist like Lygia Clark, in proposing ter that continues to house the Museu de the delirious ways presented by the client to act as a “therapist”, continues to make Imagens do Inconsciente. They were joined certain artistic actions that, in some way, art in a displaced manner, multiplying her by psychiatrist and writer Edmar de Souza leverage it and make it more collaborative, places and contaminating them, but, in a Oliveira and other professionals, as well as performing the feat of favoring relational complementary way, a therapist like Gina external collaborators, among which stand dynamics traditionally considered unfea- Ferreira, acting as a proponent of the Struc- out the dancer and choreographer Angel sible with psychotic patients. For Lula, it turing of the Self processes, contaminates Vianna and the English critic Guy Brett. is “a subjective, poetic dialogue, which is the places of mental health care, making Wanderley calls Poetic Psychiatry this therapeutic in itself insofar as the subjec- art where art would not be expected. This multifaceted job, which occurs uniquely tivity that passes between us is very pro- double movement of displacement echoes and always in collaboration with patients, ductive and poetic”. 14 and reduplicates the movement of self as developing individual or collective prop- We see that this artistic practice is si- it turns into the other – a task that Lygia ositions and generating performances, multaneously clinical: it originates from a attributes to the artist/proposer (“We are videos, and objects, in various activities deep knowledge and perception of the ex- the proposers; we are the mold; it is up to that make up the “experiential architec- perience of severe mental suffering and it you to breathe inside that mold: the sense ture” of the EAT. According to him, it is “a seeks to form poetic alliances with the de- of our existence/We are the proposers: our practice and a theory from the encounter”. lirious strategies of the clients themselves, proposition is the dialogue. Alone we do Lula says he allows himself to “feel from in order to collaborate in the construction not exist; we are at your disposal”)10 and the suffering of the other” and create a of a singular and yet shared place of the which Gina incarnates in the therapist by purposeful poetic response, in a clini- subject. Through artistic propositions, the making her a “fold” that comes “out of her cal-artistic process that often generates potentiality of the delirium in construct- own self to understand the possibility of therapeutic results and is used even in ing a subject’s place is thus recognized and minimally reconstructing another self”. 11 acute crisis situations. The fundamental may be extended, by the participation of In the articulation of these two displace- in the proposer’s position is “a welcoming others (the ‘therapist’, but possibly other ments, something bends and reconfigures and collaborative look”, to which various clients and team members, and, in some in plural and mobile way the cartography elements from the field of art are added, cases, the “general public”). Art here seems of the fields of art and madness – it is not including poetry and cinema, possibly in- to expand the possibilities of the clinic by just a matter of putting their places in cluding Lygia Clark’s propositions, taken opening the uniqueness of the delusional the plural, but of disrupting the borders. as an “instrument”. to communicate with path to the possibility of sharing; in so do- From the self with the other to the self as clients in order to generate unique events, ing, it reconfigures the very notion of “par- the other, the self turns, and in this event, in a process that “accumulates histories”. 13 ticipation,” so important in the practice in- it only inscribes itself outside itself and With Roberto Garcia, for example, in augurated by Lygia Clark and others, such assuming itself as delirium in itself (and the late 1980s, Lula began to study the as Hélio Oiticica, radicalizing its incidence everywhere). issue of a periodic tithe, which was in the field of art itself. Lula Wanderley, a medical doctor, worked linked to the idea of “spirals of memory” In 1994, the Grupo de ações poéticas as a graphic artist from a young age. He formulated by the client in his delirium. [Poetic action group] was created in the was one of the creators of the Nuvem As the video Análise combinatória entre EAT, with extensive collaboration of staff [Cloud] 33 movement in Recife in the uma dízima periódica e uma progressão members and patients, which in 2005 was 1970s, before getting involved with the geométrica [Combinatorial analysis be- renamed Grupo de ações poéticas: siste- field of psychiatry through Nise da Silveira, tween a periodic tithe and a geometric ma nervoso alterado [Poetic action group: who told him to take “his sensitivity as a progression] (c. 1990) shows, Garcia then altered nervous system], with extensive working tool”. 12 From his personal process begins to make paintings using combi- action in performance and music, current- of the Structuring of the Self and his collab- natorial analysis from periodic tithes, us- ly pursuing in music as Sistema Nervoso oration with Lygia Clark throughout the ing a system that he will soon transpose Alterado Jazz Band [Altered Nervous Sys- 1980s, he keeps on applying this method into music, in collaboration with Leandro tem Jazz Band], with musical direction by and creating other sensory propositions in Freixo. According to Wanderley, when Leandro Freixo.

244 À pergunta sobre se seria artista ou terapeuta, Lula Mendes, que congrega pacientes, equipe e moradores Wanderley responde ser um e, uma preposição aditi- dos arredores da instituição e tem atuação significa- va. Trata-se de uma não afirmação de lugar: tiva no carnaval carioca. Outra iniciativa recente e muito significativa foram a Universidade Popular de “É muito difícil. Você tem que oscilar entre duas coi- Arte e Ciência e o Teatro DyoNises, coordenados, a par- sas, está em trânsito. Eu me identifico também com tir de 2012, por Vitor Pordeus, médico, pesquisador e os pacientes, para poder me desidentificar deles, ator, tendo ele, infelizmente, encerrado suas ativida- para poder tratá-los. Então eu sou múltiplo, né? Eu des na instituição em 2016. A companhia de teatro fiz um trabalho, chamado Todo artista é um impos- formada por pacientes e equipe montou espetáculos tor, sobre esta multiplicidade do artista, pensando como Auto da Paixão da Dra. Nise da Silveira e Hamlet, minha posição no EAT”. 15 em cujo processo, apresentado no filme Stultifera Na- vis (2014), dirigido por Dudu Mafra, Pordeus afirma A Psiquiatria Poética não deixa, portanto, de rever- que “o teatro e a poesia são a linguagem do delírio”. berar na atuação constante de Wanderley como artis- No âmbito de ação da Universidade, foram também ta visual fora do campo psiquiátrico, que foi mantida criados o Hotel e o Spa da Loucura, que trouxeram ao longo de toda sua trajetória e levou a sua partici- para o interior da instituição coletivos diversos em pação em numerosas exposições. Talvez seja artificial arte e mobilização social e política, que realizavam separá-las tão claramente, pois ambas são facetas de atividades e experiências variadas, entrecruzando uma mesma densa proposição artística, que Lula ex- públicos diversos. Ressalta-se, nessas experiências, plicita na última página de seu livro O Dragão pou- a construção de um notável dispositivo artístico in- sou no espaço, na qual cita Clark, afirmando “E assim citador de abertura institucional, produzindo a circu- a VIDA lentamente ocupa o lugar do que há muito lação de pessoas diversas no interior do IMAS Nise da tempo se chamava ARTE”, para acrescentar: “que ocu- pa o lugar do que antes se chamava ‘LOUCURA’ ”. 16 Nesse encadeamento loucura-arte-vida, explicita-se a radicalidade e singularidade de sua proposta: tra- ta-se de transformar a “loucura” em arte, no diapasão da busca vanguardista pelo alargamento do campo da arte em prol da própria vida; e, na transformação incessante do sofrimento em arte e da arte em vida, trata-se de experienciar a alteridade em si e no outro, disseminando no mundo gestos poético-delirantes. Dentre as ramificações do trabalho de Nise da Sil- veira no instituto que hoje carrega seu nome, ainda devemos citar, ao lado da continuidade dos ateliês no Museu de Imagens do Inconsciente – atualmen- te coordenados por arte-terapeutas de maneira bem Nise da Silveira e C. G. Jung na inauguração da exposição menos permeada pela presença de artistas atuantes do Museu do Inconsciente, por ocasião do II Congresso no circuito de arte da cidade –, práticas híbridas de Internacional de Psiquiatria, Zurique [Nise da Silveira and C.G. Jung at the opening of Unconscious Museum, during diversidade e mobilidade, como o bloco de carna- the II international Congress of Psychiatry in Zurich], 1957 val Loucura Suburbana, criado em 2001 por Ariadne Foto de [Photo] Almir Mavignier

245 When asked if he would be an artist or exhibitions. Perhaps it is artificial to sepa- therapist, Lula Wanderley answers that he rate them so clearly, for both are facets of is one and, an additive preposition. It is a the same dense artistic proposition, which no-place statement: Lula spells out on the last page of his book O Dragão pousou no espaço [The Dragon “It is very difficult. You have to swing landed in space], in which he quotes Clark, between two things, you are in transit. stating: “And so LIFE slowly occupies I also identify myself with patients, to the place long ago called ART”, then add: be able to disidentify myself from them, “Which takes the place of what was previ- so that I can treat them. So I’m multiple, ously called ‘MADNESS’ ”. 16 In this chain- Artur Bispo do Rosário right? I did a work, called Todo artista é ing madness-art-life, the radicality and Grande veleiro [Great sailboat] um impostor [Every artist is an impos- uniqueness of his proposal is explained: Madeira, plástico, tecido, metal e linha [Wood, plastic, fabric,metal and thread], tor], about this multiplicity of the artist, it is a matter of transforming “madness” 100 × 155 × 96 cm thinking about my position in the EAT”. 15 into art, in the forefront of the avant-garde > Semblantes [Countenances] pursuit of widening the field of art in favor Tecido, linha, plástico e metal [Fabric, thread, Therefore, Poetic Psychiatry reverberates of life itself; and in the incessant transfor- plastic and metal], 95 × 150 × 5 cm in Wanderley’s constant acting as a visual mation of suffering into art and art in life, Coleção [Collection] Museu Bispo do Rosário artist outside the psychiatric field, which it is a matter of experiencing otherness in Arte Contemporânea/ Prefeitura da Cidade was maintained throughout his career oneself and in the other, disseminating do Rio de Janeiro and led to his participation in numerous delirious poetic gestures in the world. Fotos [Photos] Rodrigo Lopes

246 Silveira – especialmente na proposta do Sarau Tropi- Arthur Bispo do Rosário caos pelo coletivo Norte Comum. O reconhecimento da obra de Bispo do Rosário dá- Pordeus formula a pergunta fundamental para as se no início dos anos 1980, inscrevendo-se nos mo- proposições artísticas em contexto institucional em mentos inaugurais do movimento de luta antima- saúde mental: nicomial no Brasil. No contexto da denúncia das condições sub-humanas nas quais se mantinham os “a arte do manicômio vai romper com os valores ins- pacientes nos hospícios, o jornalista Samuel Wainer tituídos do manicômio ou ela vai reproduzir os va- Filho realiza uma matéria sobre a Colônia Juliano lores instituídos do manicômio, que são aqueles da Moreira, que foi ao ar no programa Fantástico em hierarquia, da submissão, da dominação do outro?”17 maio de 1980. Por meio dessa emissão, o crítico e curador Frederico Morais teve seu primeiro contato “Eu acredito que a arte está no centro desta questão”, com “a figura de um homem negro, já desgastado prossegue, pois “a arte é o viver, é a relação”. O funda- pela idade e pela doença, sozinho em meio a uma mental, no imbricamento entre arte e saúde mental, barafunda de objetos os mais variados, bordando seria, portanto, atentar para a qualidade das relações palavras, nomes, datas, imagens”. 18 Tal “barafun- que se aí se desenvolvem – tarefa clínica por excelên- da” será reconhecida como arte pelo crítico, graças, cia e que explicita assim, talvez, sua faceta artística. sem dúvida, à ressonância que apresenta com certas

247 Among the ramifications of Nise da Sil- institution or will it reproduce them, which makes Bispo an emblematic figure veira’s work at the institute that bears which are those of the hierarchy, sub- for the anti-psychiatric institution move- her name today, we must further men- mission, and domination of the other?”17 ment in Brazil. tion, along with the continuity of the Morais proposes to Bispo to hold an indi- workshops at the Museu de Imagens do “I believe art is at the heart of this issue,” vidual exposition to present his works, but Inconsciente – currently coordinated by he continues, because “art is living, it is he refuses, claiming, according to the critic, art therapists in a much less permeated relationship”. The fundamental thing, in that “they were only records and he could manner by the presence of acting artists the intertwining between art and mental not be separated from them”. 19 Only after in the city’s art circuit –, hybrid practices of health, would be, therefore, to pay atten- his death in 1989, the exhibition Registros diversity and mobility, such as the Loucura tion to the quality of the relationships de minha Passagem pela Terra [Records of Suburbana street Carnival group, created that are developed there – a clinical task My Journey Through the Earth] was held in 2001 by Ariadne Mendes, which brings par excellence and which thus perhaps at Parque Lage, with a significant body of together patients, staff and residents from explains its artistic facet. work that then traveled to other Brazilian the outskirts of the institution and has a cities. Despite adopting the term “record” significant performance in the Rio Carni- Arthur Bispo do Rosário in this title, the difference between this val. Another recent and very significant The recognition of the work of Bispo do and the notion of “work of art” is thus rel- initiative was the Universidade Popular Rosário occurs in the early 1980s, as part ativized by the critic himself, insofar as de Arte e Ciência [Popular University of of the inaugural moments of the anti-psy- Bishop’s works are, at first, presented as Art and Science] and the DyoNises The- chiatric institution struggle movement in the work by a leading artist who “indis- ater, coordinated, as of 2012, by Vitor Por- Brazil. In the context of the denunciation putably dialogues with most currents of deus, a doctor, researcher, and actor, who of the subhuman conditions under which postmodern art, from the Dada by Marcel unfortunately ended his activities at the patients were kept in mental institutions, Duchamp, to the different trends of post- institution in 2016. The theater company journalist Samuel Wainer Filho conducts 1950 contemporary art – Pop-Art, New Re- comprised of patients and staff has put to- a story about the Colônia Juliano Moreira, alism, Conceptual Art, Povera Art and the gether shows like Auto da Paixão da Dra. which was aired on the Fantástico pro- archaeological aspect of French art”. 20 It is Nise da Silveira and Hamlet, in whose pro- gram in May 1980. Through this program, important to note that in this “dialogue” it cess, presented in the film Stultifera Navis the critic and curator Frederico Morais had inscribes, in the field of art, a singularity – (2014), directed by Dudu Mafra, Pordeus his first contact with “the figure of a black by giving itself as a record of a trajectory states that “theater and poetry are the man, already worn out by age and illness, that is confused with the artist’s own life, languages of delirium”. Within the scope alone amid a riot of various objects, em- his desires and his tragedy – which heralds of action of the University, the Hotel and broidering words, names, dates, images”. 18 a nascent trend in the field of art that will Spa of Crazyness were also created, which Such a “muddle” will be recognized as art take strength throughout the 1980s with brought to the interior of the institution by the critic, thanks, no doubt, to the reso- names like Louise Bourgeois. The use of diverse collectives in art, and social and nance with certain experiences present in embroidery often appears in the artists of political mobilization, which carried out the international art scene since the 1960s, this strand, which, in Brazil, has in Leonil- varied activities and experiences, inter- such as the use of banal and “poor” ele- son – who recognizes the direct influence secting diverse audiences. These experi- ments, and everyday objects, performed of Bispo in his production – one of his most ences highlight the construction of a re- by artists linked to movements such as prominent names. markable artistic device that encourages Fluxus in the United States and Arte Pove- Occasionally, in the talk of critics and institutional openness, producing the ra in . In 1982, Frederico Morais includ- laypeople, there is some identification of circulation of diverse people within the ed Bispo’s banners in the exhibition At the Bispo with the figure of the “pure” artist, IMAS Nise da Silveira – especially in the Margin of Life, which featured in the Rio of the isolated genius, and his work still proposal of the Sarau Tropicaos by the col- de Janeiro Museum of Modern Art works raises isolated questions about the legiti- lective Norte Comum. by prisoners, inmates of nursing homes, macy of considering as art a work that was Pordeus formulates the fundamental children in rehabilitation institutions and not intentionally constructed as a set of question for artistic propositions in an in- psychiatric patients. In the same year, pho- objects intended for an audience, accord- stitutional context in mental health: tographer and psychoanalyst Hugo Deni- ing to the traditional structure of the art zart made, with funding from the Ministry circuit. In the face of Bispo’s production, “Will the art of psychiatric institutions of Health, the documentary O Prisioneiro however, the question of the expression break with the instituted values of the da Passagem [The Prisoner of the Passage], that underpinned the modernist view of

248 experiências presentes na cena artística internacio- nomes como Louise Bourgeois. O uso do bordado nal desde os anos 1960, como o uso de elementos não raro aparece nos artistas dessa vertente, que, banais e “pobres”, e de objetos do dia a dia, realiza- no Brasil, tem em Leonilson – que reconhece a influ- das por artistas ligados a movimentos como o Flu- ência direta de Bispo em sua produção – um de seus xus, nos Estados Unidos, e a Arte Povera, na Itália. nomes mais destacados. Em 1982, Frederico Morais inclui os estandartes de Persiste, eventualmente, na fala de críticos e lei- Bispo na exposição À Margem da Vida, que apresen- gos, alguma identificação de Bispo com a figura do tava, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, artista “puro”, do gênio isolado, e sua obra ainda trabalhos de presidiários, idosos de asilos, crianças gera questionamentos isolados sobre a legitimida- internas em instituições de reabilitação e pacientes de de se considerar como arte uma obra que não foi psiquiátricos. No mesmo ano, o fotógrafo e psicana- construída intencionalmente como conjunto de ob- lista Hugo Denizart realizava, com verba do Ministé- jetos destinados a um público, segundo a estrutura rio da Saúde, o documentário O Prisioneiro da Passa- tradicional do circuito de arte. Diante da produção gem, que faz de Bispo uma figura emblemática para de Bispo, entretanto, não cabe mais a questão da o movimento antimanicomial no Brasil. expressão que embasava o olhar modernista sobre Morais propõe a Bispo a realização de uma indi- a obra dos “loucos”. No contexto de contaminação vidual para apresentar suas obras, mas este recusa, e crítica da noção de autoria expandidas pela pro- alegando, segundo o crítico, que “eram apenas re- dução artística contemporânea, a obra do paciente gistros e não poderia separar-se delas”. 19 Somente da Colônia Juliano Moreira assume outro papel: ela após sua morte, em 1989, foi realizada a exposição relança e talvez alargue algumas das questões em Registros de minha passagem pela Terra, no Parque pauta, ajudando-nos a vislumbrar novas vias de Lage, com um significativo conjunto de trabalhos reflexão crítica, especialmente no que diz respeito que, em seguida, fez itinerância por outras cidades ao lugar de sujeito que a arte constrói na cultura. brasileiras. Apesar de adotar o termo “registro” nes- De fato, a proposição de Bispo – tomada não como se título, a diferença entre este e a noção de “obra “obra” destacada de seu contexto de produção, mas, de arte” é, então, relativizada pelo próprio crítico, na em toda a sua complexidade, como situação que se medida em que os trabalhos de Bispo são, de saída, constrói em uma série de agenciamentos – acentua apresentados como a obra de um artista de peso, uma outra instância, diferente daquela do “gênio” que “dialoga, de forma incontestável, com a maio- expressivo modernista: aquela que, no Brasil, ganha ria das correntes da arte pós-moderna, desde o Dada sua formulação mais potente com a frase de Hélio de Marcel Duchamp, passando pelas diferentes ten- Oiticica “seja marginal, seja herói”. 21 A figura do dências da arte contemporânea pós-1950 – Pop-art, outsider nela reaparece em uma posição distinta do Novo Realismo, Arte Conceitual, Arte Povera e a ver- estereótipo do gênio fora da cultura (e cuja exclusão tente arqueológica da arte francesa”. 20 É importante do circuito artístico é assim naturalizada). Em chave notar que, nesse “diálogo”, ela inscreve, no campo da ética e política, ela se configura como busca do “ou- arte, uma singularidade – ao dar-se como registro tro” que a sociedade oprime e exclui a tentativa de de uma trajetória que se confunde com a própria deslocamento para o outro da própria instância de vida do artista, em seus desejos e sua tragicidade – produção da arte: o “espectador” sendo convidado a que anuncia uma tendência nascente no campo da tornar-se agenciador, produtor de transformações arte e que tomará força ao longo dos anos 1980 com éticas no mundo.

249 the work of the “crazy” no longer fits. In the its dissemination in punctual events or as its agent, but is a device in which the context of the contamination and the crit- complex socio-cultural situations that put subject constructs itself simultaneously icism of the notion of authorship expand- art out of itself. with objects, images and words, and is ed by contemporary artistic production, But that is saying little. We have to look – mixed with them. It may not be fair to say the work of the patient of Colônia Juliano at least briefly, given the limits of this in this sense that the delirium distorts the Moreira takes on another role: it relaunch- essay – on Bispo’s artistic arrangements, world to build a place for the subject, as we es and perhaps broadens some of the is- which show highly complex singularities, have done so far. The delirium builds plu- sues at hand, helping us to glimpse new going far beyond the aforementioned ral places as a subject ; it gives place to it as avenues of critical reflection, especially in use of ‘poor’ materials. Among them, one an event, refusing its unity and locating it relation to the place of the subject that art should stress a remarkable contamination from the start on the ground of the other – builds in culture. In fact, Bispo’s proposi- between image and word, bringing, with or rather of the others – in dispersion. With tion – taken not as a “work” detached from renewed force, the question of the object Bispo do Rosário, the relationship between its context of production, but in all its com- in its relation to language, making sensi- art and madness thus goes, we would say, plexity as a situation built on a series of as- tive the arbitrariness of representation and from expression to dispersion. semblages – accentuates another instance, destabilizing the world. The serialization Therefore, Bispo is his work only to the different from that of the expressive of objects and the presence of appropriate extent that his infinite work – the world modernist “genius”: the one that, in Brazil, text fragments, in a kind of parodic frag- which it builds – presents him to us in gains its most potent formulation with mentation of any possibility of building the world, while presenting itself as a the phrase of Hélio Oiticica “be margin- unified narratives, oscillate the status of world. This work calls for this life, as Mer- al, be a hero”. 21 The figure of the outsider the object and the image, and problema- leau-Ponty says about Cezanne,22 but far reappears in a position distinct from the tize the “reality”, which seems to be dupli- from marrying in a unity, life and work stereotype of the genius outside the cul- cated through apparently mimetic proce- here come together in the dispersion, in ture (and whose exclusion from the artis- dures, but in a way that makes the very the schism – fragmentation – that consti- tic circuit is thus naturalized). In ethical idea of representation strange. tuted them outside themselves. Through and political terms, it is configured as a Bispo’s work seems to lie in the open crack the lens of this work, contemporary art search for the “other” that society oppress- of the world, in the “little reality” (as André is a foundation of scattered and devi- es and excludes in the attempt of displace- Breton puts it) in which we live. It is on this ant worlds. In it, the figure of the “crazy” ment to the other of the art production in- ruined ground that it builds a work in prog- no longer corresponds to that of a given stance itself: the “spectator” being invited ress that entirely coincides with its deliri- schizophrenic, but to the incarnation of to become an agent, a producer of ethical um, if we recognize in this, as we propose the subject in his schism. transformations in the world. here with Freud, a process of reconstruc- It is important to stress, in this sense, that It is in the context in which Oiticica’s tion of reality, which deviates from the Bispo’s artistic production had a micropo- proposition can be seen as a kind of para- dominant representative pathways in fa- litical reach that allowed him, despite the digm – whose path is nevertheless marked, vor of the mobile edification of one (other) class and racial violence that confined him from the neoconcrete opening, by Nise da place to an other-subject. In this sense, if to a mental institution for much of his life, Silveira’s experience and the reflection she Bispo’s work fuses with the artist’s own to keep in touch with events of his time (as incited in Mário Pedrosa – that the Bispo life, it does not mean that it represents his a frequent reference in many of his works do Rosário situation must be examined. personal memories or experiences, simply shows) and building for himself a place of She embodies and attempts to shift the because it does not consist in representa- recognition – first, within the institution it- production instance to the “marginal” and tions of a given reality, but in an incessant self; then out of it. His assemblages are mi- states that the “museum” can indeed be ev- process of (re)presentation – always unfin- cropolitical and aesthetic at the same time. erywhere, including in a mental hospital. ished because infinite – of a plural world. In addition, the artist’s unstable “muddle” It strongly confirms the broadening of the This operation subverts the classical repre- (which in his cells in the colony was al- field of art targeted by the artists them- sentational system and especially the sub- ways moving elements, problematizing selves, highlighting art from its institution- ject position upon which it is based: that of the delimitation of singular works and also al conditions to an uncertain terrain and the punctual self, the fixed eye embodying rejecting the idea of fixed “installation”) with extremely porous borders. The figure a point of view external to the representa- spells out constructive lines of force that of the “crazy” here ends a dense process tion. The delirium is a device in which this may perhaps be taken as one of the strate- of questioning and destabilization of the place is vacant; or rather, the delusional gies of delirium as an aesthetic-political de- “I” in and through art while radicalizing construction does not start from a subject vice. Unlike that of the “scene” that usually

250 É no contexto no qual a proposição de Oiticica expressão de André Breton) em que vivemos. É so- pode ser vista como uma espécie de paradigma – cujo bre esse terreno arruinado que ela edifica um work trilhamento não deixa de ser marcado, a partir da in progress que coincide inteiramente com seu de- abertura neoconcreta, pela experiência de Nise da Sil- lírio, se reconhecemos neste, como propomos aqui veira e a reflexão por ela incitada em Mário Pedrosa – com Freud, um processo de reconstrução da reali- que a situação Bispo do Rosário deve ser examinada. dade, que se desvia das vias representativas domi- Ela encarna e realiza a tentativa de deslocamento da nantes em prol da edificação móvel de um (outro) instância de produção para o “marginal” e afirma que lugar para um sujeito-outro. Nesse sentido, se a obra o “museu”, de fato, pode estar em toda parte, inclusive de Bispo confunde-se com a própria vida do artista, em um hospital psiquiátrico. Ela confirma, com força, isso não significa que ela represente suas memórias o alargamento do campo da arte visado pelos próprios ou vivências pessoais, simplesmente porque ela não artistas, destacando a arte de suas condições institu- consiste em representações de uma dada realidade, cionais para um terreno incerto e de fronteiras extre- e sim em um processo incessante de (re)apresen- mamente porosas. A figura do “louco”, aqui, arremata tação – sempre inacabada porque infinita – de um um denso processo de questionamento e instabiliza- mundo plural. Essa operação subverte o sistema re- ção do “eu” na e pela arte, ao mesmo tempo em que presentacional clássico e, especialmente, a posição radicaliza a disseminação desta em acontecimentos de sujeito em que se baseia: aquela do eu pontual, pontuais ou complexas situações socioculturais que do olho fixo a encarnar um ponto de vista externo põem a própria arte fora de si. à representação. O delírio é um dispositivo no qual Mas isso é dizer pouco. Devemos nos debruçar – ao esse lugar está vago; ou melhor, a construção deli- menos rapidamente, tendo em vista os limites deste rante não parte de um sujeito como seu agente, mas ensaio – sobre os agenciamentos artísticos de Bispo, é um dispositivo no qual o sujeito se contrói simul- que mostram singularidades altamente complexas, taneamente aos objetos, às imagens e às palavras, indo muito além do uso, já mencionado, de mate- e está mesclado a eles. Talvez não seja justo dizer, riais “pobres”. Dentre eles, deve-se destacar uma nesse sentido, que o delírio distorce o mundo para notável contaminação entre imagem e palavra, tra- edificar um lugar para o sujeito, como fizemos até zendo, com força renovada, a questão do objeto em agora. O delírio constrói lugares plurais como sujei- sua relação com a linguagem, tornando sensível a to; ele dá lugar a este como acontecimento, recusan- arbitrariedade da representação e desestabilizando do sua unidade e situando-o, de saída, no terreno do o mundo. A seriação de objetos e a presença de frag- outro – ou melhor, dos outros – em dispersão. Com mentos de textos apropriados, em uma espécie de Bispo do Rosário, a relação entre arte e loucura vai, fragmentação paródica de qualquer possibilidade portanto, nós diríamos, da expressão à dispersão. de construção de narrativas unificadas, fazem osci- Bispo é a seu trabalho, portanto, apenas na me- lar o estatuto do objeto e da imagem e problemati- dida em que sua obra infinita – o mundo que ela zam a “realidade”, que parece ser duplicada através edifica – o apresenta a nós, no mundo, ao mesmo de procedimentos aparentemente miméticos, mas tempo em que se apresenta como mundo. Essa obra de maneira que torna estranha a própria ideia de pede essa vida, como dizia Merleau-Ponty de Cézan- representação. ne,22 mas, longe de se esposarem em uma unidade, A obra de Bispo parece situar-se na fenda aber- vida e obra aqui se unem na dispersão, na esquize – ta do mundo, no “pouco de realidade” (segundo a fragmentação – que as constituiu fora delas mesmas.

251 governs modern representation, following In the same Colônia Juliano Moreira, an of otherness. “Artists come with a plan, the clear delimitation between its various art and creation space named Ateliê Gaia but the place does not allow, the place is elements, the establishment of a certain is in operation since the 1990s, integrated unstable, it provokes, it destabilizes”, says hierarchy between them and the ordering with the Experimental Culture, Education Resende, marking the institution’s power of their relations outlining possible narra- and Coexistence Pole, administered by to transform artistic practices and under- tive lines, Bispo’s construction refuses the the Museu Bispo do Rosário Arte Contem- lining its political impact: “There art has to establishment of neutral surfaces of repre- porânea [Bispo do Rosário Contemporary be thought of – made – horizontally”.24 sentation. The constructed elements merge Art Museum]. Having gathered several art- Between art and madness, today, places into space and blend together, preventing ists throughout its existence, the group is are plural, always horizontal, tracing delir- the marking of a place for the subject of composed today, in 2019, by Arlindo Olivei- ious lines and articulating the singular to representation (that of the scene struc- ra, Clóvis, Gilmar, Jane Almendra, Leonardo the political element, to art, to life – and tured by perspective, classically). The sub- Lobão, Luiz Carlos Marques, Patrícia Ruth, to the city, setting in motion and trying to ject is confused with the material and is ev- Pedro Mota, Sebastião Swaizer and Victor. subvert its geopolitics of exclusion. erywhere in this profusion of plural events The museum’s curator, Diana Kolker, keeps that are not unified on the scene, but invite track of the studio, in the task of encourag- us adrift and to the uniqueness of each look, ing and supporting the artists’ production. of each moment that is lived next to them. Going beyond the walls of the studio, the In this sense, Bispo do Rosário makes us production of these artists has an impact glimpse, in contemporary art, the power of on the institution itself – it would come, ac- Arlindo Oliveira delirium as a critique of the representation cording to Raquel Fernandes, psychiatrist, Navegar [Sail], s.d. [undated] and opening of deviant and singular spatial and director of the Museum, “to mess up… Madeira, plástico e metal [Wood, plastic reconfigurations and narratives – not only what seemed to be a bit tidy up”. 23 With the and metal], 78 × 69 × 12 cm in the sense of unique and marked by the curator Ricardo Resende, the institution has A jato [By jet], s.d. [undated] one who builds them, but also in the sense been investing, in recent years, in the im- Madeira, plástico e metal [Wood, plastic that the one to whom they are addressed plementation of artists’ residencies in this and metal], 66 × 62 × 50 cm is invited to set in motion in the work, in a place, which offers the traditional field of Coleção [Collection] Museu de Arte do Rio – MAR unique and unforeseeable way. artistic production a kind of embodiment Fotos [Photos] Mario Grisolli

252 Pela lente dessa obra, a arte contemporânea mostra- abertura de reconfigurações espaciais e narrativas se uma fundação de mundos dispersos e desviantes. desviantes e singulares – não apenas no sentido de Nela, a figura do “louco” não corresponde mais àque- únicas e marcadas por aquele que as constrói, mas la de um dado esquizofrênico, mas à encarnação do também no sentido de que aquele a que elas se en- sujeito em sua esquize. dereçam é convidado a se pôr em movimento na É importante ressaltar, nesse sentido, que a pro- obra, de forma única e imprevisível. dução artística de Bispo teve um alcance micropolí- Na mesma Colônia Juliano Moreira, funciona, des- tico que permitiu a ele, apesar da violência de classe de a década de 1990, o Ateliê Gaia, espaço de arte e e racial que o confinou a um hospício por boa parte criação integrado ao Polo Experimental de Cultura, de sua vida, manter-se em contato com os aconteci- Educação e Convivência, administrado pelo Museu mentos de seu tempo (como demonstra a referên- Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Tendo reu- cia frequente em muitas de suas obras) e construir nido diversos artistas ao longo de sua existência, para si um lugar de reconhecimento – primeiro, na o grupo compõe-se, hoje, em 2019, por Arlindo Oli- própria instituição; depois, fora dela. Seus agencia- veira, Clóvis, Gilmar, Jane Almendra, Leonardo Lo- mentos são micropolíticos e estéticos a um só tem- bão, Luiz Carlos Marques, Patrícia Ruth, Pedro Mota, po. Ademais, a “barafunda” instável do artista (que, Sebastião Swaizer e Victor. O ateliê conta com o em suas celas na colônia, estavam sempre a movi- acompanhamento da curadora pedagógica do mu- mentar elementos, problematizando a delimitação seu, Diana Kolker, na tarefa de incentivar e oferecer de obras singulares e recusando também a ideia de suporte à produção dos artistas. “instalação” fixa) explicita linhas de força construti- Indo além dos muros do ateliê, a produção desses vas, que talvez possam ser tomadas como uma das artistas tem incidência sobre a própria instituição – estratégias do delírio como dispositivo estético-polí- ela viria, segundo Raquel Fernandes, psiquiatra e tico. Distinta daquela da “cena” que costuma reger a diretora do Museu, “para desarrumar… aquilo que representação moderna, seguindo a delimitação cla- parecia estar um pouco arrumado”. 23 Com o curador ra entre seus diversos elementos, o estabelecimento Ricardo Resende, a instituição vem apostando, nos de certa hierarquia entre eles e o ordenamento de últimos anos, na realização de residências de artistas suas relações a esboçar linhas narrativas possíveis, a construção de Bispo recusa o estabelecimento de neste lugar, que oferece, ao campo tradicional da pro- superfícies neutras de representação. Os elemen- dução artística, uma espécie de encarnação da alteri- tos construídos fundem-se ao espaço e se mesclam dade. “Os artistas vêm com um planejamento, mas o entre si, impedindo a marcação de um lugar para o lugar não permite, o lugar é instável, ele provoca, ele sujeito da representação (aquele da cena estrutura- desestabiliza”, diz Resende, marcando a potência da da pela perspectiva, classicamente). O sujeito con- instituição em transformar práticas artísticas e su- funde-se com o material e está em todos os lugares blinhando sua incidência política: “ali a arte tem que 24 dessa profusão de acontecimentos plurais que não ser pensada – feita – na horizontalidade”. se unificam em cena, mas nos convidam à deriva Entre arte e loucura, hoje, os lugares são plurais, e à singularidade de cada olhar, de cada momento sempre em horizontalidade, traçando delírios e ar- que se vive junto a eles. Nesse sentido, Bispo do Ro- ticulando o singular ao político, à arte, à vida – e à sário nos faz vislumbrar, na arte contemporânea, a cidade, pondo em movimento e tentando subverter potência do delírio como crítica da representação e sua geopolítica da exclusão.

253 Quatro mestres da escultura do século XXI Três luzes e o pé na terra

Paulo Herkenhoff

Four masters of 21st-century sculpture. as installation-sculpture. In the rococo Three lights and the foot on the ground construction of the Paço Imperial in Rio de Janeiro, in the neoclassical monument of Four septuagenarian masters of 21st-cen- the Praça do Comércio (1820) designed by tury Brazilian sculpture provide games of Grandjean de Montigny, present-day Casa Lygia Pape plasticity that are disparate and bold in França-Brasil, or in the modern building of Ttéia 1, C, 2003 MAM their structures. In all of them there is a the Museum of Modern Art ( ) of Rio Instalação na [Installation at] condition contaminated by architecture de Janeiro conceived by Affonso Eduardo Galeria Bergamin, SP, 2005 and a way of situating in the exhibition Reidy, the most spectacular museum space Foto [Photo] Paula Pape space that admits taking their production in the country, Lygia Pape, Ivens Machado, Cortesia [Courtesy] Projeto Lygia Pape

254 Quatro mestres septuagenários da escultura brasileira torres e andaimes. O modelo construtivo das Ttéias do século XXI propiciam jogos de plasticidade, díspa- se sustenta em labirintos de colunas enviesadas. Per- res entre si e audaciosos em suas estruturas. Em todos cebidas como desmaterializadas, as Tteias evocam a eles há uma condição contaminada pela arquitetura Teoria do Não-objeto (1960) de Ferreira Gullar, defini- e um modo de se situar no espaço expositivo que ad- das como aquilo que não deixa rastro. Com Pape, as mitem tomar sua produção como esculturas-insta- formas livro e dança perdem sua hierarquia e pureza lação. Na construção rococó do Paço Imperial no Rio léxica. A legislação e o código – linguagem e língua – de Janeiro, no monumento neoclássico da Praça do são desconstruídos no fluxo de luz e cor. Comércio (1820) projetada por Grandjean de Montig- No oposto das sutilezas das Ttéias de Lygia Pape, ny, atual Casa França-Brasil, ou no moderno edifício Ivens Machado é o escultor mais brutalista da ge- do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro ração marcada pela elegância da forma abstrato riscado por Affonso Eduardo Reidy, o mais espeta- geométrica (Ascânio MMM, Sergio Carmargo, José cular espaço museológico do país, Lygia Pape, Ivens Resende, Waltercio Caldas e outros). A rudeza da ma- Machado, Ascânio MMM e Iole de Freitas instalam téria torna aguda sua vontade de potência que Gas- uma arquitetura dentro da arquitetura construída em ton Bachelard denominaria “vontade material”. 3 O patente diálogo com a espacialidade, o vazio, os ma- construtivismo cru de Ivens Machado vem da virili- teriais e os ângulos de visão oferecidos em cada pré- dade da arquitetura favelar de equilíbrio precário, da dio. “É no fazer que se vai descobrindo”, pondera As- construção para além da cota. cânio sobre seu trabalho de escultura, uma avaliação O Dicionário inFormal na internet define erronea- aplicável aos três demais.1 Em todos eles, a instalação mente que o termo favelar indica “deixar muito ba- não deve ser confundida com efemeridade, posto que gunçado, em desordem”. 4 Ao contrário, a escultura fa- podem ser reinstaladas em outras circunstâncias. São velada de Ivens Machado opera nos limites da audácia provisoriedades até que encontrem um sítio definiti- contra a física, extrai uma beleza nua de cacos de vidro, vo, como a Ttéia de Pape em seu pavilhão de Inhotim. cimento armado, entulho, toras de madeira, ferro e pe- No século XXI, a neoconcreta Lygia Pape superou dra, sem qualquer recurso ao gosto burguês. suas relações com o plurissensorial neoconcreto dos A instalação Qualas 11 de Ascânio MMM pende no Ballets ao Livro da Criação. No panorama do proje- Espaço Monumental do prédio do MAM do Rio de to construtivo brasileiro, no final da década de 1950, Janeiro como um estranho objeto familiar.5 É quase Lygia Pape implantou a plurissensorialidade no neo- um candelabro, com os reflexos luminosos de seus concretismo, Lygia Clark lançou as bases do conceito elos em alumínio, e quase uma cortina, com suas de infrassensorialidade e Hélio Oiticica a suprassen- grandes dobras mais ou menos teatrais. É quase um sorialidade. Agora, sua vontade material do diáfano, Penetrável para mantermos a análise no contexto do fio de ouro percebido em tramas de luz, quer o da formação de Ascânio, sendo, portanto, um qua- mais leve, menos tensão. Suas Ttéias se lançam como se “ambiente” como no marco histórico das obras e espaços imantados em estado de sublime desmate- conceitos de Hélio Oiticica. O registro de uma he- rialização e traçam estruturas no espaço com a pura rança compõe sua singularidade. Qualas 11 aborda energia lumínica. a questão do site specific ao pensar a obra para o Para Merleau-Ponty, a linguagem não apenas MAM, pois Ascânio compreendeu que o chamado “nasce”, mas também é “desenvolvida na obscuri- Espaço Monumental, projetado por Affonso Eduardo dade”. 2 No início dos anos 1950, seus contemporâneos Reidy para o prédio, ofereceria a dimensão solicitada Zélia Salgado e Franz Weissmann lançavam desenho por Qualas. Seu apreço pelo mestre se revela quando no espaço através de fios de arame montados como declara que:

255 Ascânio MMM and Iole de Freitas install supersensoriality. Now, her material will an architecture within the architecture of the diaphanous, of the gold thread per- built in patent dialogue with the spatiality, ceived in light threads, wants the lighter, emptiness, materials and viewing angles the less tension. Her Tteias are launched offered in each. building. “It is in doing that as magnetized spaces in a state of sublime one finds oneself,” ponders Ascânio about dematerialization and trace structures in his sculpture work, an assessment applica- space with pure light energy. Iole de Freitas 1 ble to the three others. In all of them, the For Merleau-Ponty, language is not only O peso de cada um [The weight of each one], 2015 2 installation should not be confused with “born” but also “developed in the dark.” In Aço inox (Stainless steel), 100 × 300 × 140 cm ephemerality, as they may be reinstalled the early 1950s, her contemporaries Zélia Coleção da artista [Artist’s collection] under other circumstances. They are provi- Salgado and Franz Weissmann launched Instalação no Museu de Arte Moderna sional until they find a definitive site, such design into space through wire strands [Exhibition view on the Museum of as Pape’s Tteia in the Inhotim pavilion. mounted like towers and scaffolding. The Modern Art], Rio de Janeiro Foto [Photo] Sergio Araújo In the 21st century, neo-concrete Lygia constructive model of the Tteias rests on Pape has outgrown her relationships with mazes of skewed columns. Perceived as de- the multisensory neoconcrete of her Bal- materialized, the Tteias evoke Ferreira Gul- Ascânio MMM lets to her Book of Creation. In the panora- lar’s Theory of Nonobject (1960), defined Qualas 11, 2008 Alumínio e argolas [Aluminiun and rings], ma of the Brazilian constructive project, in as that which leaves no trace. With Pape, 590 × 560 × 630 cm the late 1950s, Lygia Pape implemented book and dance forms lose their hierarchy Instalação no Museu de Arte Moderna multisensoriality in neoconcretism, Lygia and lexical purity. Legislation and code – [Exhibition view on the Museum of Clark laid the foundations of the concept language and tongue – are deconstructed Modern Art ], Rio de Janeiro of infrasensoriality and Hélio Oiticica the in the flow of light and color. Foto [Photo] Wilton Montenegro

256 “Reidy era realmente um dos poucos arquitetos in- Lippard afirma que “lugar” é um espaço com memó- teressados na questão arquitetura e sociedade. Nie- ria.7 Sendo assim, Qualas 11 consolida o lugar históri- meyer só se preocupava com o volume e a forma co da trajetória do artista. das construções, o programa de arquitetura e a fun- Ao discutir sua escultura-instalação O peso de cada cionalidade eram questões menores”. 6 um (2015), no MAM do Rio de Janeiro, Iole de Freitas trata do inesperado excelente, A arquitetura de Reidy contagiou Ascânio. Suas ob- servações aludem à função da arquitetura museoló- “quando o material entrega muito mais do que você gica e à necessidade de seu diálogo receptivo com as pede. Neste caso, eu estava trabalhando com chapas exigências espaciais para a circulação e recepção da de aço imensas, retas, pesando quase uma tonela- arte. Ascânio registra a atenção com que a funciona- da cada. Um material muito resistente, industrial. lidade em Reidy é o respeito devido à própria produ- No entanto, vi que, quando uma chapa dessas se ção simbólica e à responsabilidade do edifício no pro- ergue, ela mantém seu poder de autopermanência, cesso de negociação da arte na esfera coletiva. Qualas ou, quando é tensionada, ela perde a memória com reconhece o diálogo democrático da arquitetura com facilidade, e não volta ao formato original. Então, a arte e não o reverso autoritário da arquitetura, que que peso é este? É uma reflexão proposta. O peso, força a imposição canônica do gosto pessoal do ar- quando salta no ar, desaparece. Nestas esculturas, quiteto no projeto como medida, controle e censura o peso está dissolvido no ato de suspensão ou em à liberdade e ao movimento inventivo da arte. Lucy delicados pontos de apoio, em pontos de tensão que

257 In contrast to the subtleties of Lygia Reidy’s architecture contaminated As- On a piece by Iole de Freitas: Pape’s Tteias, Ivens Machado is the most cânio. His observations allude to the func- brutalist sculptor of the generation tion of museological architecture and the “This work is almost the matrix of Iole’s marked by the elegance of the abstract need for its receptive dialogue with spatial production. The near tension forms an al- geometric form (Ascânio MMM, Sergio requirements for the circulation and recep- most circular line or an almost ellipse. It’s Carmargo, José Resende, Waltercio Caldas, tion of art. Ascânio notes the attention with almost drawing, an almost pictorial plane and others). The roughness of the matter which Reidy’s functionality is the respect with oxidation chemistry, it’s almost makes his will for power acute, which due to the symbolic production itself and to sculpture in its almost planar dimension. Gaston Bachelard would call “material the building’s responsibility in the process The sweetly crumpled plan is almost a will”. 3 Ivens Machado’s raw constructiv- of negotiating art in the collective sphere. violent Weissmann. It’s almost dance. It’s ism stems from the virility of the precar- Qualas recognizes the democratic dialogue almost all just female. It’s almost a pas- ious balance of the favelar architecture, of of architecture with art and not the author- de-deux with Amilcar. The fold, between constructing beyond the limits. itarian reverse of architecture, which forces Oiticica and Clark, is unfolding or redou- The Informal Dictionary on the internet the canonical imposition of the architect’s bling, almost one or almost the other. It wrongly defines the term favelar as “to personal taste in design as a measure, con- is almost installation. It is almost three make it very messy, in disarray.” 4 In con- trol, and censorship of freedom and the dimensional, between the second and trast, Ivens Machado’s favela sculpture inventive movement of art. Lucy Lippard fourth dimensions. It’s almost space and operates on the edge of audacity against states that “place” is a space with memory.7 almost thing, almost body, and almost air. physics, extracting a bare beauty of shards Thus, Qualas 11 consolidates the historical It’s almost mineral, it’s almost gaseous. It of glass, reinforced concrete, rubble, logs place of the artist’s trajectory. is almost weightless. It’s almost just mass. of wood, iron and stone, without any re- When discussing her sculpture-instal- It’s almost memory, almost trail. It is al- course to bourgeois taste. lation O peso de cada um [The weight of most flow. The before is almost now. It is Ascânio MMM installation Qualas 11 each one] (2008) at MAM in Rio de Janei- almost pure presence. It is almost time. hangs in the Monumental Space of the ro, Iole de Freitas deals with the excellent Everything lies almost still and almost Rio de Janeiro MAM building as a strange unexpected, in motion. It is almost a becoming and familiar object.5 It is almost a chandelier, almost an ontological rest. It’s almost with the luminous reflections of its alumi- “when the material delivers much more performance and almost desire. It is al- num links, and almost a curtain, with its than you order. In this case, I was work- most body and almost with no organs. more or less theatrical folds. It is almost ing with huge, straight steel plates It’s almost flesh. Everything obeys an a Penetrable, to keep the analysis in the weighing almost a ton each. A very almost order and could promise a near context of the formation of Ascânio, being, tough, industrial material. However, I mess. It is almost geometry and almost therefore, an almost “environment”, as in have seen that when such a plate rises, pure gesture. It’s almost not knowing, it’s the historical framework of the works and it retains its power of self-permanence, almost shapeless. It is almost a feeling of concepts of Hélio Oiticica. The registra- or when it is tensioned it easily loses its world matter, almost its body. It is almost tion of a legacy makes up its uniqueness. memory and does not return to its orig- only weight. The eye almost touches, al- Qualas 11 addresses the issue of site-spe- inal shape. So what weight is this? It is a most wrinkle, almost smooths. It is al- cific when thinking about the work for proposed reflection. The weight, when it most metaphysical. It is almost soul. It’s MAM, as Ascânio understood that the jumps into the air, it disappears. In these almost a synthesis of everything – that so-called Monumental Space, designed sculptures, the weight is dissolved in she did. It is almost nothing. It’s almost by Affonso Eduardo Reidy for the building, the act of suspension or in delicate sup- too much”. 9 would offer the dimension requested by port points, in tension points that cause Qualas. His appreciation for the master is gravity. It is very important to open this revealed when he declares that: space so that the work itself surprises the artist. And this understanding of Ivens Machado “Reidy was really one of the few architects leaving room for the unexpected is only Instalação [Installation], 2011 Terra, toras de eucalipto e aeromodelo interested in the issue of architecture gained through years of work. As young [Soil, eucalyptus logs, aeromodels] and society. Niemeyer only cared about people, we tend to impose ourselves Instalação na Casa França-Brasil the volume and shape of the buildings; upon the matter, and along the way we [Exhibition view at Casa França-Brasil] the architecture program and function- will understand that the work has to im- Cortesia [Courtesy] Acervo Ivens Machado ality were minor issues.” 6 pose itself on us”. 8 Foto [Photo] Pat Kilgore

258 provocam a gravidade. É muito importante abrir É quase instalação. É quase tridimensional, entre esse espaço para que o próprio trabalho surpreenda a segunda e a quarta dimensões. É quase espaço e o artista. E esse entendimento de deixar espaço para quase coisa, quase corpo e quase ar. É quase mineral, o inesperado só é conquistado com anos de trabalho. é quase gasosa. É quase sem peso. É quase só mas- Quando jovens, tendemos a nos impor sobre a maté- sa. É quase memória, quase rastro. É quase fluxo. O ria, e com o tempo vamos entendendo que a obra é antes é quase agora. É quase pura presença. É quase que tem de se impor sobre nós”. 8 tempo. Tudo está quase parado e quase em movi- mento. É quase um devir e quase um repouso onto- Sobre uma peça de Iole de Freitas: lógico. É quase performance e quase desejo. É quase “Essa obra é quase matricial da produção de Iole. A corpo e quase sem órgãos. É quase carne. Tudo obe- quase tensão forma uma linha quase circular ou dece a uma quase ordem e poderia prometer uma uma quase elipse. É quase desenho, quase plano pic- quase bagunça. É quase geometria e quase puro ges- tórico com a química de oxidação, é quase escultura to. É quase não saber, é quase informe. É quase um em sua dimensão quase planar. O plano amassado sentimento da matéria do mundo, quase seu corpo. docemente é quase o Weissmann violento. É quase É quase só peso. O olho quase toca, quase amassa, dança. É quase toda só o feminino. É quase um pas- quase desamassa. É quase metafísica. É quase alma. de-deux com Amílcar. A dobra, entre Oiticica e Clark, É quase uma síntese de tudo – que ela fez. É quase é desdobra ou redobra, quase uma ou quase a outra. nada. É quase muito”. 9

259 Postais de viajantes

Paulo Herkenhoff

Travelers postcards coffee farming) – the sound production re- Manata Laudares searches “what it is like to live in a world After: Nature [São Luiz da Boa Sorte], 2014 Saulo Laudares and Franz Manata recon- mediated by virtual experiences, which is Instalação sonora realizada em fazenda no Vale do stituted the São Luiz da Boa Sorte Farm, still permeated by the memory of tradi- Café [ Sound installation in a farm at Coffee Valley] in Vassouras, as a soundscape between tion.” What is the phonic bias in visual lan- Deck de madeira, sistema de som, trilha sonora phonics, incidental sounds, and music. guages? In the face of the historic place, [Wooden deck, sound system and sound track] They cultivated a tree that bears arbitrary the eye will listen – Manata Laudares > Bernardo Mosqueira fotografado por Ivan Grilo sounds on the sign/signifier/meaning ratify Paul Claudel’s aphorism. Plurisen- na embarcação “São José III”, entre o porto de axis. “The linguistic sign does not unite a sory, like Helio Oiticica, what they will do Apicum-Açu e a Ilha dos Lençóis, no Maranhão, thing and a name, but a concept and an is music, that is, what they do is sound em setembro de 2013 [Ivan Grilo photographed 1 acoustic image,” explains Saussure. The art. “The social role of art has changed”, by Bernardo Mosqueira on “São José III” boat acoustic ecology of the place (space with synthesized Manata Laudares in their 20 between Apicum-Açu e Lençois island/ Maranhão, a history of slavery in the 19th century years of “open programs”, marked by their in September, 2013 ]

260 Saulo Laudares e Franz Manata reconstituíram a Fa- assombrações sonoras e fantasmais. Ali o imaginário zenda São Luiz da Boa Sorte em Vassouras como pai- paisagístico não se erige nem coincide com os fatos sagem sonora, entre a fonética, sons incidentais e a do real, mas surge invisível a partir deles. Todo pai- música. Cultivaram uma árvore que frutifica sons ar- sagista acaba com um manata de lugares. Mais que bitrários no eixo signo/significante/significado. “O errar, no entanto, Manata Laudares mentem, porque signo linguístico não une uma coisa e um nome, mas toda paisagem, inclusive as sonoras, é sempre uma um conceito e uma imagem acústica”, explica Saussu- mentira, pois é incoincidente com a natureza. A arte re.1 A ecologia acústica do lugar (espaço com história é garantia de sanidade (Louise Bourgeois). A arte de escravidão na lavoura do café do século XIX) – a acalma, propõem eles, e o projeto é desacelerar o vi- produção sonora pesquisa “como é viver num mundo sitante. O desafio “foi transmitir a sensação de toda mediado por experiências virtuais e é ainda permea- a fazenda condensada nessa árvore” que assume o do pela memória da tradição”. Qual é o viés fônico nas compromisso de apresentar pars pro toto da Boa Sorte. linguagens visuais? Diante do lugar histórico, o olho A fazenda é como o Estácio, pois seu signo sonoro escutará – Manata Laudares ratificam o aforismo de “acalma o sentido dos erros que faço”, como Luiz Melo- Paul Claudel. Plurissensoriais, como Helio Oiticica, o dia canta em Estácio, Holly Estácio. que farão será música, isto é, o que fazem é sound art. “O papel social da arte mudou”, sintetizaram Manata Laudares nos seus 20 anos de “programas abertos”, marcados pelo interesse no “universo do compor- tamento e da cultura da música eletrônica”. A psico- geografia da dupla difere da ação de Susan Philipsz que particulariza espaços com seu próprio canto, em nuances e imperfeições da voz, fixa a presença indi- vidual na construção arquitetônica sonora do sítio;2 já eles operam a escrita do lugar via a multiplicida- de de sons, pois são psicogeógrafos sociais em busca de paisagens, tão ficcionais quanto plausíveis, nas especificidades intrínsecas do território geográfico. O duo constrói lugares com rumores atávicos, pseu- do-homofonias sonoras, o arrasto metálico de coisas, Candomblé, Brasil, caos e loucura.3 estalos secos, sons animais demarcatórios, prazeres orgânicos, reverbs, fragmentos de atabaques an- “Eu entendo essas viagens como processos experi- cestrais batidos, loops, balbucios indistintos, notas mentais de pesquisa”, escreve Bernardo Mosqueira sintéticas, melodiazinhas ecológicas, índices vocais, sobre sua experiência de curador-viajante a acom- lamentos afro-litânicos, vozes plangentes do eito, panhar artistas. Ele continua “talvez como labora- laudares inconclusos, pios-eletrônicos-cantos furti- tórios de visão holística, de vida criativa, de novas vos, pois tudo reverbera imemorialmente no vale do éticas. Em todos os casos, meu lugar de atuação Paraíba, não por ser som preso entre montanhas, mas sempre foi o de instigador. Durante as viagens, éra- por pertencimento fantasmal à história. Uma suces- mos guiados por uma curiosidade sem fim – e os im- são do impalpável e do invisível conforma a Boa Sorte. previstos eram objetos de grande desejo e atenção. Toda paisagem é um constructo com composição de Todos os acontecimentos eram perscrutados como

261 Afonso Tostes Magia negra [Black magic], circa 1765-2013 Instalação, madeira e granito [Installation, wood and granite] Instalação na Casa França-Brasil [Exhibition view at Casa França-Brasil], Rio de Janeiro

> Sala de trabalho [Working room], 2013 Ferramentas de metal, uso, tempo e cabos de madeira esculpidos como ossos [Metal tools, use, time and wooden handles carved as bones]

Fotos [Photos] Sergio Araújo

interest in the “universe of electronic mu- because it is a sound trapped between “I understand these travels as experimen- sic behavior and culture”. The psychoge- mountains, but because of its ghostly tal research processes,” writes Bernardo ography of the duo differs from the ac- belonging to history. A succession of the Mosqueira about his traveling curator tion of Susan Philipsz that particularizes impalpable and the invisible makeup Boa experience accompanying artists. He spaces with their own singing, in nuanc- Sorte. Every landscape is a construct com- continues “perhaps as the laboratories es and imperfections of the voice, fixes posed of sound and ghost haunts. There of holistic vision, of creative life, of new the individual presence in the sonorous the imaginary landscape does not arise or ethics. In all cases, my role has always architectural construction of the site;2 coincide with the real facts, but arises in- been that of the instigator. During the they already operate the writing of the visible from them. Every landscaper ends travels we were guided by endless curi- place through the multiplicity of sounds, up with a place rogue. More than making osity – and the unforeseen were objects since they are social psychogeo­graphers a mistake, however, Manata Laudares lie, of great desire and attention. All events in search of landscapes, both fictional because every landscape, including the so- were examined as literature or as per- and plausible, in the intrinsic specific- norous, is always a lie, because it is incon- formances, all elements were considered ities of the geographical territory. The sistent with nature. The art is a guarantee and questioned as if they were poetry duo builds places with atavistic rumors, of sanity (Louise Bourgeois). The art calms, or works of art. Perhaps it is the way of sonic pseudo-homophonies, metallic propose them, and the project is slowing understanding culture as life that allows dragging of things, dry crackling, de- down the visitor. The challenge “was to us to see life and art in much the same marcating animal sounds, organic plea- convey the sensation of the whole con- way as if one were always impregnated sures, reverbs, beaten ancestral drums densed farm in this tree” which is com- with the other, or even pregnant by the fragments, loops, fuzzy babblings, syn- mitted to presenting pars pro toto of Boa other. Everything we lived was experi- thetic notes, ecological melodies, vocal Sorte. The farm is like the Estácio, because enced and interpreted simultaneously indices, Afro-litanic laments, plaintive its sound sign “calms down the senses in its many dimensions, its multiplicities, voices of the plantation, inconclusive of the mistakes I make”, as its infinite folds, and crossings. Outside laudatories, electronic stealthy tweets- sings in Estácio, Holly Estácio. of our usual contexts, we abdicated ev- songs, for everything reverberates im- eryday temporality and spatiality, left memorially in the Paraiba Valley, not Candomblé, Brazil, chaos, and madness.3 behind the rigidity of everyday feeling

262 literatura ou como performances, todos os elemen- tos eram considerados e questionados como se fossem poesia ou trabalhos de arte. Talvez seja a forma de entender cultura como vida que nos permita ver vida e arte mais ou menos da mesma maneira, como se uma sempre estivesse impreg- nada da outra, ou mesmo prenha da outra. Tudo que vivíamos era experimentado e interpretado simultaneamente em suas muitas dimensões, por suas multiplicidades, com suas infinitas do- bras e atravessamentos. Fora de nossos contextos habituais, abdicávamos da temporalidade e da espacialidade cotidianas, deixávamos para trás a rigidez do sentir e do pensar do dia-a-dia e mer- gulhávamos em universos encantados – e nunca algo foi tão real. Do meu ponto de vista, sempre senti como um privilégio gigante poder viver isso com os artistas. Nas viagens, eu ficava todo o tempo apontando e ressaltando elementos ou acontecimentos que poderiam ter relação com al- guns interesses, pesquisa, projeto ou trabalho dos artistas. A intensidade das experiências se dava sobretudo pela densidade de encontros que nos forçavam a pensar o que antes era impensável, pela força dessa maré de significações. Durante aqueles períodos, eu me tornava um outro que es- timulava cada um deles a ir além de seus limites. Do mesmo modo, eles me levavam para além de mim. A experiência com Afonso foi fundamental as travas de segurança e as tábuas do assoalho de para que eu me iniciasse no candomblé; com Ivan, um paiol construído há 250 anos na Fazenda Bom foram fundamentais para os caminhos de minha Retiro, em Chapéu D’Uvas. Pareciam respirar, e relação com o Brasil. Mazza me fez fazer as pazes quase era possível ouvir o som preso, cativo, conti- com o caos e com a loucura.” do em suas ranhuras. O continente, ali silente, era negro. Percebendo a força contida nos veios da ma- Bernardo Mosqueira: sobre a instalação Articulação deira, fomos, aos poucos, aproximando-nos cada (2013) de Afonso Tostes: 4 vez mais do tronco, até percebermos que estáva- mos dentro da boca de Zumbi. O paiol havia sido “Eram mais de cem peças longas de madeira resis- construído por escravos e que, por eles, foi, durante tente ao tempo e à chuva. Havia décadas, estavam mais de um século, continuamente preenchido e empilhadas no canto de uma fazenda próxima à ci- esvaziado com toneladas de milho. O Brasil é con- dade de Juiz de Fora. Eram as colunas, os baldrames, siderado por muitos como a nova nação de Xangô

263 and thinking, and plunged into enchant- “There were more than a hundred long Xangô pointed a way for our research ed universes – and never something had pieces of weather and rain resistant and was happy to have this exhibition been so real. From my point of view, I wood. For decades, they had been dedicated to him, to all the orixás and to have always felt like a giant privilege stacked in the corner of a farm near the the black people. Xangô is the orixá of to be able to live this with the artists. city of Juiz de Fora. They were the col- fire, of life, and he is not where death is. During the travels, I have kept pointing umns, the foundations, the safety locks His strong presence also indicated that and highlighting elements or events that and the floorboards of a storeroom built this exhibition recalls the death of all might have to do with some interests, re- 250 years ago at Bom Retiro Farm, in slaves that suffered violence and were search, project or work of the artists. The Chapéu D’Uvas. They seemed to breathe, executed in Brazil, but the exhibition is intensity of the experiences was mainly and you could almost hear the trapped, also full of the fire and life necessary for due to the density of the encounters that captive sound contained in their grooves. the current struggles of the black people forced us to think of what was previous- The continent, silent there, was black. Re- in our country. Positioning this barn in ly unthinkable, by force of this tide of alizing the power contained in the shafts front of the eyes of society, unveiling the meanings. During those times, I became of the wood, we slowly moved closer and memory of slavery in Brazil, shares the another who spurred each one of them to closer to the trunk until we realized that desire for direct action in the collective go beyond their limits. In the same way, we were inside Zombie’s mouth. The memory and, therefore, in the redesign they took me beyond myself. The experi- barn had been built by slaves, and for of our democracy. Being culture the set ence with Afonso was crucial for me to over a century it had been continually of instruments disposed to symbolic me- get initiated in candomblé; with Ivan, filled and emptied with tons of corn by diation that enables approaches to the it was fundamental to the ways of my them. Brazil is considered by many to real, these objects allow us, by perceiving relationship with Brazil. Mazza made me be the new nation of Xangô because the them as extensions and enlargements of make peace with chaos and madness”. first axés that have arrived in our coun- body functions, to find criticism of the try were axés of Xangô: the symbol of social contracts that direct these move- Bernardo Mosqueira: On the installation Xangô is the (double-sided) ax. In con- ments. It is, therefore, a sign of hypertelic Articulation (2013) by Afonso Tostes:4 sultation with Orunmilá, we found that social contracts fully willing to maintain

264 pelo fato de os primeiros axés chegados em nosso de que o trabalho que apresentamos é fruto de uma país terem sido axés de Xangô: o símbolo de Xangô demanda social estritamente ética.” é o machado (de dois lados). Em consulta com Orun- milá, descobrimos que Xangô apontava um cami- Bernardo Mosqueira: sobre Alexandre Mazza no nho para nossas pesquisas e que estava feliz em ter projeto No deserto, o oásis somos nós (2016) no de- esta exposição dedicada a ele, a todos os orixás e ao serto de Atacama: povo negro. Xangô é o orixá do fogo, da vida, e não está onde a morte está. Sua presença tão forte indi- “Mesmo o início surgiu da linguagem. Houve cava, também, que esta exposição recorda a morte sempre ação, criação e transformação – simulta- de todos os escravos violentados e executados no neamente. Ainda antes do tempo, já havia tudo Brasil, mas que ela é plena do fogo e da vida neces- em potência e como chance de sentido. O Universo sários às atuais lutas do povo negro em nosso país. já nasceu da vagina dessa mulher-linguagem en- Posicionar esse paiol à frente dos olhos da socieda- quanto paria outra versão de si mesma, parturien- de, desvelando a lembrança da escravidão no Brasil, te de uma nova Universo que seguiu o fluxo dessa comunga da vontade de ação direta na memória constante gestação da Universo, dando à luz a cor- coletiva e, portanto, no redesenho de nossa demo- nucópia de cornucópias.5 Por um momento, acredi- cracia. Sendo cultura o conjunto de instrumentos tamos que onde não havia água, não poderia haver dispostos à mediação simbólica que possibilita vida, lucidez, fertilidade ou vaidade. Visitamos o abordagens do real, esses objetos nos permitem, Pico da Loucura, subimos no mastro do perigo, ba- ao percebê-los como extensões e ampliações das temos cabeça a Xangô no pé do poderoso Vulcão funções do corpo, encontrar críticas aos contratos Licancabur; pensamos que talvez não voltaríamos sociais que direcionam esses movimentos. É, por- nem ao Rio, nem ao normal. Porém, juntos, pude- tanto, sinal de contratos sociais hipertélicos pleno mos entender que no deserto o oásis somos nós: em vontade de manutenção de laços de exploração. feitos 70% por água, carregamos conosco tudo o Mesmo que sejamos capazes de reconhecer que que nela pode haver. Numa tarde, à sombra de uma existem recentes vitórias para a população negra duna, percebemos que uma das integrantes de nos- brasileira, o legado escravocrata ainda é forte de- sa equipe, a Falta, ardia em febre. A temperatura do mais, e esta exposição deseja poder anunciar mais. corpo da Falta aumentou tanto que ela queimou Mãe Beata de Iemanjá, uma personalidade do à frente de nossos olhos. De suas cinzas, 3 ovos de Candomblé no Brasil, Yalorixá líder do terreiro Ilê pedra cintilante surgiram. Para que eles não dor- Omi Oju Aro a primeira música foi tocada para os missem, tocamos sinos e lambemos um holograma eguns (mortos) ligados ao paiol. Gerações violenta- de alta tecnologia que reproduzia os poderes da das e dois séculos depois, o paiol foi desmontado. Universo. Quando caímos no sono, o tempo fez seu A grande força de Tronco vem do reconhecimento papel e a Aurora chocou os ovos para que nascesse a entidade que procurávamos.”

“Importa muito onde alguém nasceu, para a pes- Alexandre Mazza No deserto, o oásis somos nós [In the desert, soa em si – para mim, ter nascido no Rio de Janei- we are the oasis], 2016 ro, no Brasil, em 1980. Importa o fato da minha Monitor de LED, moldura de madeira, vídeo (loop) [LED monitor, wooden frame, video(loop)] língua materna ser o português do Brasil, da mi- Cortesia [Courtesy] Galeria Luciana Caravello nha cognição ter se formado nesta língua.”

265 ties of exploitation. Even if we are able to the cornucopia of cornucopias.5 For a mo- Alice Miceli is the cartographer of evil, of recognize that there are recent victories ment, we believed that where there was the infinite human ability to engender the for the Brazilian black population, the no water, there could be no life, lucidity, terrible, to mount disasters and plagues slavocratic legacy is still too strong, and fertility, or vanity. We visited the Peak in abundance, to wage war with no eth- this exhibition wishes to be able to an- of Madness, climbed the mast of danger, ical limit and to commit crimes against nounce more. Mother Beata de Iemanjá, bumped head to Xangô at the foot of the humanity. Her travels explore borderless a Candomblé personality in Brazil, Yalo- mighty Licancabur Volcano; we thought territories, from risk and horror to ampu- rixá leader of the terreiro Ilê Omi Oju Aro we might not return to Rio nor to normal. tees and cancerous factories, to the two presented first song at the vernissage However, together we could understand million deaths by the Khmer Rouge in for the eguns (dead) linked to the barn. that in the desert we are the oasis: 70% Cambodia, to the radioactive contamina- Many generations have suffered vio- made of water, we carry with us all that tion of Chernobyl, to the active and lethal lence and two centuries later the barn there may be in it. One afternoon, in the minefields in Angola and Colombia. Miceli was dismantled. The great strength of shadow of a dune, we noticed that one of travels to the hells invented by man. She the Trunk comes from the recognition our team members, the Lack, was burn- exposes what one does not want to see, that the work presented is the result of a ing with fever. The Lack’s body tempera- what is uncomfortable to think about. strictly ethical social demand”. ture increased so much that it burned in Miceli did not come to beautify the world. front of our eyes. From its ashes, 3 eggs It would be better to assign all this to Bernardo Mosqueira: about Alexandre of sparkling stone appeared. Lest they the archives in the logic of forgetting, as Mazza in the project In the desert, we are sleep, we rang bells and licked a high- Jacques Derrida argues,6 but the artist pro- the oasis (2016) in the Atacama desert: tech hologram that reproduced the pow- duces a memory of the obstructed by the “Even the beginning came from language. ers of the Universe. When we fell asleep, power and of the psychically repressed. There has always been action, creation, time played its part and Aurora hatched Alice Miceli’s historiographic method and transformation – simultaneously. the eggs to give birth to the entity we searches for existing images (for exam- Even before the time, everything was were looking for.” ple, of people fleeing from dread) and already in power and as a chance for produces another. A nuclear reactor ex- meaning. The Universe has been born “It matters a lot where someone was ploded in 1986 at Chernobyl. From 2007 from the vagina of this woman-tongue born, to the person himself – for me, to to 2010, Miceli documented the radiation while giving birth to another version be born in Rio de Janeiro, Brazil, in 1980. tragedy using lead pin-hole cameras and of herself, parturient of a new Universe It matters that my mother tongue is Bra- autoradiography to record the remaining that followed the flow of this constant zilian Portuguese, that my cognition was radioactivity on trees and log houses in gestation of the Universe, giving birth to formed in this language.” the Chernobyl Exclusion Zone. The film

Alice Miceli Projeto Chernobyl, série documental, imagem #BW31 [Chernobyl Project, documentation series, image #BW31], 2007-2010 Impressão digital sobre papel [Digital print on paper], 30 × 40 cm

> Em profundidade – campos minados/ série de Angola #12 [In depth – mined camp/ Angola #12], 2018 Impressão em pigmento mineral sobre papel Hahnemulle Matte [Print with mineral pigments on Hahnemulle Matte paper] ed 1/5 +1PA, 110 × 72 cm

266 Alice Miceli é a cartógrafa do mal, da infinita capa- radioatividade remanescente na Zona de Exclusão de cidade humana em engendrar o terrível, de montar Chernobyl em árvores e casas de madeira. O filme uti- desastres e flagelos em abundância, de fazer guer- lizado não era sensível à luz, só aos raios gama, não ras sem limites éticos e de praticar crimes contra a visíveis pelo olho humano. Após meses de exposição, humanidade. Suas viagens exploram territórios sem os filmes foram sensibilizados pela radioatividade fronteiras, do risco e do horror às fábricas de amputa- ainda existente em vários pontos.7 Luiz Camillo Oso- dos e de cancerosos, aos dois milhões de mortos pelo rio vê em Miceli a crença na “potência não ilustrati- Khmer Vermelho no Camboja, à contaminação radioa- va da imagem, a imagem alegórica para Benjamin, tiva de Chernobyl, aos campos de minas ativas e letais ou quiçá o sublime para Lyotard.”8 Como Primo Levi em Angola e na Colômbia. Miceli viaja aos infernos e Alain Resnais, a artista pensa que a poesia depois inventados pelo homem. Expõe o que não se quer ver, de Auschwitz é “não só possível como necessária”, o que é incômodo pensar. Miceli não veio para embe- pois não crê que exista um ‘irrepresentável’ absoluto. lezar o mundo. Melhor seria consignar tudo isso aos Miceli atua onde o humanismo falhou, aqui enten- arquivos na lógica do esquecimento, como argumen- dido não como mera decepção idealista, mas como ta Jacques Derrida,6 mas a artista produz memória do aquele “humanismo do outro homem” de Emma- obstruído pelo poder e do recalcado psiquicamente. nuel Levinas.9 Miceli opera com irrenunciável olhar O método historiográfico de Alice Miceli busca ima- pela intempestividade do humanismo reivindicada gens existentes (por exemplo, de fuga das pessoas sob por Levinas, o humanismo simplesmente é, e diante pavor) e produz outra. Um reator nuclear de Chernobyl de situações extremas da vida nua, sua urgência con- explodiu em 1986. De 2007 a 2010, Miceli documen- ceitual e política independe da avaliação escapistas tou a tragédia, por meio da radiação, usando câmeras de seus significados. O discurso do humanismo e a pinhole de chumbo e autorradiografia, para registrar a arte se tornam então imprescindíveis.

267 in this practice (and this theory).” 10 He is a Warburgian artist from Dreams and ghost stories to his mental travels. Even if he visits places and instances – Afghanistan (Journey to Afghanistan ), the , the abrupt passage of the Matição quilombo 11 to the Borel hill, Inferno [Hell] and memory in Tristes Trópicos [Sad Tropics], the Carni- val (Antropologia da face gloriosa and Res- sureição [Glorious Face Anthropology and Resurrection]) and the Tambores do Brasil [Brazil Drums] – his travel is a flow (Procissão de raízes conduzindo o brilho da consciência [Root Procession Leading the Brilliance of Consciense]) and the rapture is poetic – “everything is silent in the face of ecsta- sy”. Arthur Omar = Eisenstein and Bataille. “Ecstasy is a violent experience. Cinema has a shaking nature, it has a shock el- ement”, he says. Arthur Omar, himself, does not contain his self. Slaughters the look with forms of image perception, in- used was not sensitive to light, only to vents audiovisual dramas based on vio- gamma rays, not visible to the human lence and ecstasy. “A documentary image eye. After months of exposure, the films must be deconstructed to create new Arthur Omar were sensitized by the radioactivity still visual impacts on the viewer. I want to Retire o centro e terás um universo, present at various points.7 Luiz Camillo decrease the information rate to expand da série Antropologia da face gloriosa Osorio sees in Miceli the belief in “the the emotion rate”, he says.12 He shakes [Take away the center and you will have non-illustrative power of the image, the the viewer on travels to stories of fury. an universe, from Anthropology of the glorious allegorical image for Benjamin, or perhaps Massaker (1999) deals with the recording face series], 1973/97 8 Fotografia [Photograph], 100 × 100 cm the sublime for Lyotard.” Such as Primo of Michael Jackson’s clip in Dona Marta Levi and Alain Resnais, the artist thinks that hill 13 and the traveler is accompanied by > Brinco de pérolas no 1, da série Um olhar poetry after Auschwitz is “not only possible a German punk band, machine-gun bursts e sete pérolas [Pearls earrings n. 1, from but necessary” since she does not believe and a samba school drums. The arrival of A look and seven pearls series], 2016-2018 that there is an absolute ‘unrepresentable’. the singer’s film paraphernalia at the slum × Fotografia [Photograph], 100 100 cm Miceli acts where humanism has failed, un- is a massacre by the entertainment indus- derstood here not as a mere idealistic dis- try capital. The agonic title Resurrection re- Os cavalos de Goethe no 43, da série Bouskashi, appointment, but such as that “humanism fers to the terrible impossibility of ecstasy, 2002-2009 [Goethe's horses, n. 43 from 9 Bouskashi series] of the other man” by Emmanuel Levinas. atonement, and catharsis before those ex- Fotografia [Photograph], 120 cm × 180 cm Miceli operates with an indispensable eye ecuted without mercy. The victim of trial Livro Viagem ao Afeganistão [from the for the timelessness of humanism claimed by the heads of the enemy traffic faction book A Trip to Afghanistan], São Paulo: by Levinas, humanism simply is, and in the is as defenseless as a Jew in the Holocaust. Cosac Naify, 2010 face of extreme situations of bare life, its These are territories outside the rule of law. conceptual and political urgency is inde- The vision of the terror of tortured bodies o Os cavalos de Goethe n 21, da série Bouskashi, pendent of the escapist assessment of its on tires to be burned is never to forget. 2002-2009 [Goethe's horses, n. 21 from meanings. The discourse of humanism and Italo Calvino needed 55 fictional cities Bouskashi series] Fotografia [Photograph], 120 cm × 180 cm art then become indispensable. to walk in fantasy through human ex- 14 Livro Viagem ao Afeganistão [from the Nothing to the spurt of images, sounds, perience. To Miguel Rio Branco it took book A Trip to Afghanistan], São Paulo: and concepts of Arthur Omar’s imaginary just one – Maldicidade, which exposes Cosac Naify, 2010 adventure. “Verb and figure do not separate the endless immanence of evil to the eye

268 Ele abala o espectador em viagens a histórias de fúria. Massaker (1999) trata da gravação do clip de Mi- chael Jackson no Morro Dona Marta13 e o viajante é acompanhado por uma banda punk alemã, rajadas de metralhadora e uma bateria de escola de samba. A chegada da parafernália cinematográfica do can- tor à favela é um massacre pelo capital da indústria do entertainment. O título agônico Ressureição re- mete à terrível impossibilidade de êxtase, expiação e catarse diante dos executados sem misericórdia. A vítima do julgamento pelos chefes da facção inimi- ga do tráfego está tão indefeso quanto um judeu no Holocausto. São territórios fora do império da lei. A visão do terror dos corpos torturados sobre pneus a serem queimados é para nunca se esquecer. Ítalo Calvino precisou de 55 cidades ficcionais para andejar em fantasia através da experiência

Nada para o jorro de imagens, sons e conceitos da aventura imagética de Arthur Omar. “Verbo e figu- ra não se separam nessa prática (e dessa teoria).” 10 É um artista warburguiano desde Sonhos e histórias de fantasmas às suas viagens mentais. Mesmo que visite lugares e instâncias – o Afeganistão (Journey to Afghanistan), a Amazônia, a passagem abrupta do quilombo de Matição11 ao morro do Borel, o In- ferno e a memória em Tristes trópicos, o carnaval (Antropologia da face gloriosa e Ressureição) e os Tambores do Brasil – sua viagem é fluxo (Procis- são de raízes conduzindo o brilho da consciência) e o arrebatamento é poético – “tudo se cala diante do êxtase”. Arthur Omar = Eisenstein e Bataille. “O êxtase é uma experiência violenta. O cinema tem uma natureza de abalo, tem um elemento de cho- que”, avalia. Arthur Omar, ele mesmo, não se con- tém. Massacra o olhar com formas de percepção da imagem, inventa dramas audiovisuais pautados em violência e êxtase. “Uma imagem documental deve ser desconstruída para criar novos impactos visuais no espectador. Quero diminuir a taxa de informação para expandir a taxa de emoção”, diz.12

269 Arthur Omar Dionisíaca no 3, da série Antropologia solúvel [Dionysic n.3, Soluble Anthropology series], 2005-2017 Fotografia [Photograph], 120 × 367 cm

270 271 and crosses social times and cultures in by Plautus, Hobbes and Rio Branco), man various economic stages, especially in the is the disease of the world (). uncontrolled process of urbanization and In this endless metanarrative, each rectan- the insane praise of the cannibal metro- gle of Rio Branco is the whole cursed city. polis. As the Biblical curse of the second The only possible double of Maldicidade plague of Egypt (the invasion of frogs), may be the production of Dado Moriyama, photography has become ubiquitous in his São Paulo in shadow, obscure and so- the global economy. Rio Branco’s counter- cially unhygienic.15 Malthusianism hates the proliferation of This Miguel Rio Branco is a Nietzschean people and images because it is the curse from The will to power that has his meth- of contemporary man. od of representing the cursed part of the Miguel Rio Branco’s corpus invites to a world.16 Like the philosopher, he does not convulsive journey through misleading hesitate to mercilessly draw the suffer- subjectivities – beauty is convulsive or is ing, the desolation, and the indignities not (Breton). What distinguishes him on of those who work in the Maldicidade. the world stage is the elegant (but un- Nietzsche wishes those who worry him to approachably raw) image, technically remain alienated in their self-indulgence, Miguel Rio Branco refined (for the perverse demolition of to live the torture of self-distrust, the di- taste), in a refined aesthetics as abscesses saster of the vanquished. He declares that Bar do Beto [Beto’s bar], 1976 of the cruel, sexy look in the material sign, he has no mercy for them because he Amaú turnaround, 1983 for the cursed city is populated by bodies. wishes them the only thing that can prove > Mandog / Dogman, 1979 One cannot interrupt the travel through that someone is worthy of something Maldicidade because Rio Branco is seduc- or not – that is, to survive. However, Rio p. 274 tive, but, like the female spider, he devours Branco, the pseudo-heinous, can be sup- Olhando-me com flores amarelas na cama [Looking at me with yellow the object of desire after copulation. He is portive of the underprivileged of society, flowers on bed] the hacker of the wicked, the demeaning the shattered by the power. In the images, of the mediocre and of the average. His a hole in a medieval wall in Barcelona or Centro de triagem, uma avenida silver bullet is the right blow of the boxer a glass sphere in Tokyo sees us, in revers- chamada Brasil [Sorting center, an without an arm. ibility in the molds of Merleau-Ponty.17 avenue called Brazil] In Maldicidade, hell is the other – as in To paraphrase Didi-Huberman, there is p. 275 Sade (“there is no other hell for man but something in these images that we see Hole in the wall, 1993 the stupidity or wickedness of his fel- ourselves, but also something that targets 18 Bola de cristal e cega [Crystal ball lows”) and in Sartre’s synthesis (“l’enfer us. Miguel Rio Branco’s imaginary is an and blind woman], 2005 sont les autres”). Lupus est homo homini ordeal to the Other and to himself, for Fotografia [Photograph] lúpus (man is the wolf of man – aphorism there is a strict ethos in Maldicidade.

272 humana.14 A Miguel Rio Branco, bastou uma: Maldi- cidade, que expõe ao olhar a interminável imanên- cia do mal e atravessa tempos sociais e culturas em estágios econômicos diversos, sobretudo no descon- trolado processo de urbanização e no insano elogio da metrópole canibal. Como a maldição bíblica da se- gunda praga do Egito (a invasão das rãs), a fotografia se tornou onipresente na economia global. O contra malthusianismo de Rio Branco detesta a proliferação de gente e de imagens porque é a maldição do ho- mem contemporâneo. O corpus de Miguel Rio Branco convida a uma via- gem convulsiva por entre subjetividades em desca- minho – a beleza é convulsiva ou não é (Breton). O que o distingue na cena mundial é a imagem elegan- te (mas inapelavelmente crua), apurada em termos técnicos (para a demolição perversa do gosto), em re- finada estética como abcessos do olhar cruel, sexy no signo material, pois a cidade maldita é povoada por corpos. Não se pode interromper a viagem por Maldi- cidade porque Rio Branco é sedutor, mas, como a ara- nha fêmea, devora o objeto do desejo após a cópula. É o hackeador do perverso, o rebaixador do medíocre e do mediano. Sua bala de prata é o golpe certeiro do boxeador sem um braço. o sofrimento, a desolação, a indignidade dos que Em Maldicidade, o inferno são os outros – como em atuam na Maldicidade. Nietzshe deseja aos que lhe Sade (“não há outro inferno para o homem além da preocupam que permaneçam alienados em sua au- estupidez ou da maldade dos seus semelhantes”) tocondescendência, que vivam a tortura da autodes- e na síntese de Sartre (“l’enfer sont les autres”). confiança, o desastre dos vencidos. Declara não ter Lupus est homo homini lúpus (o homem é o lobo do piedade por eles porque lhes deseja a única coisa que homem – aforismo de Plauto, Hobbes e Rio Branco), o pode provar que alguém é digno de algo ou não – que homem é a doença do mundo (Erasmo Carlos). Nes- é sobreviver. No entanto, Rio Branco, o pseudo-he- sa meta narrativa infindável, cada retângulo de Rio diondo, pode ser solidário aos deserdados da socie- Branco é a cidade maldita inteira. O único duplo pos- dade, aos destroçados pelo poder. Nas imagens, um sível de Maldicidade talvez seja a produção de Dado buraco num muro medieval em Barcelona ou uma Moriyama, sua São Paulo em sombras, obscura e sem esfera de vidro em Tóquio nos vê em reversibilidade higienização social.15 nos moldes de Merleau-Ponty.17 Em paráfrase de Didi- Este Miguel Rio Branco é um nietzcheano de A Huberman, há nessas imagens algo que nos vemos, vontade de potência que tem seu método de repre- mas também algo que nos mira.18 O imaginário de sentação da parte maldita do mundo.16 Como o filó- Miguel Rio Branco é provação ao Outro e a si mesmo, sofo, ele não hesita em desenhar impiedosamente pois há um rigoroso ethos em Maldicidade.

273 274 275 276 NOTAS 14 Entrevista de Paulo Herkenhoff com tornou mais conhecido como diretor Joelington Rios em 3 de maio de 2014. “Eu de fotografia de cinema. Introdução estudei boa parte no quilombo. No entanto 6 Universidade Federal compõe uma tive que sair do quilombo para estudar na 1 Renata Granchi. “Descoberta de sítio pentalogia com Guarde esta ideia, O sertão cidade do município em 2012 e volto para o arqueológico em igreja do Rio surpreende”, é todo espera, Navego num mar de saudades quilombo novamente para estudar (...) 2017 17 de outubro de 2007. Disponível no e A cavidade dos olhos não aparece. vim estudar o último ano aqui no Rio.” site http://g1.globo.com/Noticias/ 7 No glossário de MV Bill e Celso Athayde. Rio/0,,MUL151972-5606,00-DESCOBERTA 15 A baía de Guanabara é uma depressão Falcão – meninos do tráfico. Rio de Janeiro: + DE + SITIO + ARQUEOLOGICO + EM + tectônica do Cenozoico e dois blocos de falha Objetiva: 2006, p. 249-251. IGREJA+DO+RIO+SURPREENDE.html. geológica. 8 São negativos de fotografia analógica. 16 Na primeira página da viagem do turista 9 DERRIDA, Jacques. Archive fever, a freudian aprendiz, Mario de Andrade contempla o impression. Trad. Eric Prenowitz. Chicago e Rio, histórias de jardins e paisagens Rio do navio e imagina uma sanguinária Londres, The Chicago University Press, 1994, 1 BLANC, Charles. Grammaire des Arts du destruição da cidade: “um frêmito passim. Dessin: Architecture, Sculpture, Peinture. Paris, sussurrante percorre a multidão imprensada Henri Laurens Éditeur, 1867, p. 310. na Avenida Rio Branco. Milhares de cavalos 10 Também refiro a Códices (1994), livro com brancos (...) surgem numa galopada cruz preta sobre fundo preto. 2 BLANC, Charles. Grammaire des Arts du imperial, ferindo gente, matando gente, Dessin: Architecture, Sculpture, Peinture. Paris, 11 FELSKI, Rita. “The invention of everyday gritos admiráveis de infelicidade (...). E Henri Laurens Éditeur, 1867, p. 306. life”. In Cool Moves. Londres, Lawrence quando a avenida é uma uniforme poça & Wishart, 1999. 3 Ver Paulo Herkenhoff, Biblioteca Nacional, de sangue. (...) E assim que passarem as a história de uma coleção. Verbete “Shimizuno panteras rasteiras, espirrando pros lados o Kanji Mongatari”, um emaki do século XVII. Arte afrocarioca no século XXI sangue que corre no chão.” ANRADE, Mario Rio de Janeiro, Salamandra, 1996, p. 254. 1 “Ataques a terreiros também estão de. O turista aprendiz. São Paulo, Livraria Paulo Herkenhoff e Priscila Freire. Guignard frequentes no Rio”. Rio de Janeiro, Duas Cidades, 1983, p 54. e o Oriente: China, Japão e Minas. São Paulo, O Dia, 9 de setembro de 2017. 17 GREENBERG, Clement. “Review of Instituto , 2010, p. 34-35. 2 Rio de Janeiro, O Globo, 27 de maio a Group Exhibition at the Art of This 4 ARGAN, Giulio Carlo. The baroque age. de 2019, p. 12. Century Gallery, and of Maria Martins and New York, Rizzoli, 1989. Luis Quintanilha” (1944). In Perceptions 3 Rio de Janeiro, Extra, 29 de novembro 5 Rosana Palazyan em e-mail ao autor, and Judgements 1939-1944. Chicago, The de 2017. em 8 de abril de 2010. University of Chicago Press, 1986, vol. I, p.210 4 “Tambores de Olokun é impedido pela 6 Michael Pollan. “Weeds are us”. 18 Na sentença final da novela Nadja (1928), Prefeitura de ensaiar no Aterro do Flamengo”. The New York Times Magazine. Nova York, André Breton proclama: “La beauté sera Rio de Janeiro, O Globo, 22 de outubro de 2017. 5 de novembro de 1989. convulsive ou ne sera pas”. 5 Roberta Jansen. São Paulo, O Estado de São 7 Michael Pollan. “Weeds are us”. 19 Escolas de samba cariocas fundadas em Paulo, 29 de Junho de 2018. The New York Times Magazine. Nova York, 1923 e 1947 respectivamente. 5 de novembro de 1989. 6 Curadoria de Marcelo Campos e chegou a um público de 25 mil pessoas em menos de um mês. 8 João do Rio. A alma encantadora das Rio, novos modos de apresentar ruas: crônicas (1908). Op. cit., p. 171 e 234 7 Só um tipo de adereço de mão feito em couro, a história, a necessidade de saber respectivamente. não em metal, que apresenta cores: preto, prata, 1 A negra (1928) é uma pintura de Tarsila do dourado, cobre. 9 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs. Amaral. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 8 Xaxará de Obaluaê é um objeto sagrado, Rio de Janeiro: 34, 1995, p. 32. 2 Fanon, Frantz, The Wretched of the Earth, constituído de talos de palmeira e, geralmente 10 Michael Pollan. The botany of desire. 1961. adornado com couros, missangas, búzios, Nova York: Random House, 2002. 3 Resumo sintético de um texto de 2018 religiosamente preparados e imantados. 11 Michael Pollan. “Weeds are us”. The para o Prêmio Pipa. 9 Termo para designar o conjunto de mitos, New York Times Magazine. Nova York, 5 de 4 DIAS, Geraldo. “A longa história do canções e histórias do povo iorubá. novembro de 1989. encontro entre Nietzsche e D. Pedro II” 10 Afirmações presentes no Instagram do 12 BARTHES, Roland. La chambre claire: Note (2018). Disponível no site http:// artista. Disponível em: https://www.instagram. sur la photographie. Paris, Gallimard/Seuil/ www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ com/maxwellalexandre. Cahiers du cinéma, Paris, 1980, p. 184. arttext&pid=S2316-82422018000300247. 11 Santos, Milton. O espaço dividido: os 13 FLUSSER, Villém. Filosofia da Caixa Preta. 5 Em conversa telefônica com o autor dois circuitos da economia urbana dos países Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, p. 31. em 7 de junho de 2009. Walter Carvalho se subdesenvolvidos. São Paulo: EDUSP, 2004.

277 NOTES 14 Paulo Herkenhoff interview with todo espera, Navego num mar de saudades, and Joelington Rios on May 3, 2014. “I have studied A cavidade dos olhos não aparece. most part in the quilombo. However, I had 7 In the glossary of MV Bill and Celso Athayde. Introduction to leave the quilombo to study in the city of Falcão – meninos do tráfico. 1 Renata Granchi. “Descoberta de sítio the municipality in 2012 and return to the Rio de Janeiro: Objetiva: 2006, p. 249-251. arqueológico em igreja do Rio surpreende”, quilombo again to study (...) 2017 I came to 8 They are analog photography negatives. October 17, 2007. Available at http://g1.globo. study the last year here in Rio”. 9 DERRIDA, Jacques. Archive fever, a freudian com/Noticias/Rio/0,,MUL151972-5606,00- 15 Guanabara Bay is a Cenozoic tectonic impression. Transl. Eric Prenowitz. Chicago nd DESCOBERTA + DE + SITIO + ARQUEOLOGICO depression and two blocks of geological fault. + EM + IGREJA+DO+RIO+SURPREENDE.html. London, The Chicago University Press, 1994, 16 On the front page of the apprentice passim. tourist’s journey, Mario de Andrade 10 I also refer to Codices (1994), a book with a Rio, histories of gardens and landscapes contemplates Rio from the ship and imagines a bloodthirsty destruction of the city: “A black cross on a black background. 1 BLANC, Charles. Grammaire des Arts humming thrill runs through the packed 11 FELSKI, Rita. “The invention of everyday du Dessin: Architecture, Sculpture, Peinture. crowd on Rio Branco Avenue. Thousands of life”. In Cool Moves. London, Lawrence & Paris, Henri Laurens Éditeur, 1867, p. 310. white horses (...) emerge in an imperial gallop, Wishart, 1999. 2 BLANC, Charles. Grammaire des Arts du injuring people, killing people, admirable cries Dessin: Architecture, Sculpture, Peinture. of unhappiness (...). And when the avenue is a st Paris, Henri Laurens Éditeur, 1867, p. 306. uniform pool of blood. (...) And as soon as the Afrocarioca art in the 21 century 3 See Paulo Herkenhoff, Biblioteca Nacional, creeping panthers pass, splashing the blood 1 “Ataques a terreiros também estão a história de uma coleção. Entry “Shimizuno that flows on the floor. ANRADE” , Mario de. frequentes no Rio” (Attacks to terreiros are Kanji Mongatari”, um emaki do século XVII. O turista aprendiz. São Paulo, Livraria Duas also frequent in Rio). Rio de Janeiro, O Dia, Rio de Janeiro, Salamandra, 1996, p. 254. Paulo Cidades, 1983, p 54. September 9, 2017. Herkenhoff and Priscila Freire. Guignard e 17 GREENBERG, Clement. “Review of 2 Rio de Janeiro, O Globo, May 27, 2019, p. 12. o Oriente: China, Japão e Minas. São Paulo, a Group Exhibition at the Art of This 3 Rio de Janeiro, Extra, November 29, 2017. Instituto Tomie Ohtake, 2010, p. 34-35. Century Gallery, and of Maria Martins and 4 ARGAN, Giulio Carlo. The baroque age. Luis Quintanilha” (1944). In Perceptions and 4 “Tambores de Olokun é impedido pela New York, Rizzoli, 1989. Judgements 1939-1944. Chicago, The University Prefeitura de ensaiar no Aterro do Flamengo”. of Chicago Press, 1986, vol. I, p.210 (Tambores de Olokun is prevented from 5 Rosana Palazyan in an email to the rehearsing at Aterro do Flamengo by the author on April 8, 2010. 18 In the final sentence of the novel Nadja (1928), André Breton proclaims: City Goverment). Rio de Janeiro, O Globo, 6 Michael Pollan. “Weeds are us”. “La beauté sera convulsive ou ne sera pas”. October 22, 2017. The New York Times Magazine. 5 Roberta Jansen. São Paulo, O Estado New York, November 5, 1989. 19 Carioca samba schools founded in 1923 and 1947 respectively. de São Paulo, June 29, 2018.. 7 Michael Pollan. “Weeds are us”. The New York Times Magazine. 6 Curated by Marcelo Campos, have New York, November 5, 1989. Rio, new ways of presenting reached an audience of 25,000 people in less than a month. 8 João do Rio. A alma encantadora history, the need to know Just a kind of leather, not metal, hand das ruas: crônicas (1908). Op. cit., p. 171 1 A negra (1928) is a painting by 7 and 234 respectively. Tarsila do Amaral. ornament that comes in colors: black, silver, gold, copper. 9 Gilles Deleuze and Felix Guattari. Mil platôs. 2 Fanon, Frantz, The Wretched of Trad. Aurélio Guerra Neto and Célia Pinto Costa. the Earth, 1961. 8 Obaluaê xaxará is a sacred object, Rio de Janeiro: 34, 1995, p. 32. consisting of palm stalks and usually 3 A synthetic summary of a 2018 adorned with hides, beads, whelks, religiously 10 Michael Pollan. The botany of desire. Pipa Prize text. prepared and magnetized. New York: Random House, 2002. 4 DIAS, Geraldo. “A longa história do encontro 11 Michael Pollan. “Weeds are us”. entre Nietzsche e D. Pedro II” (2018). Available 9 Term to designate the set of myths, The New York Times Magazine. New York, at http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ songs and stories of the Yoruba people. November 5, 1989. arttext&pid=S2316-82422018000300247 10 Statements on the artist’s Instagram. 12 BARTHES, Roland. La chambre claire: Note 5 In a phone conversation with the author on Available at: https://www.instagram.com/ sur la photographie. Paris, Gallimard/Seuil/ June 7, 2009. Walter Carvalho became better maxwellalexandre. Cahiers du cinéma, Paris, 1980, p 184. known as a cinematographer. 11 Santos, Milton. O espaço dividido: os dois 13 FLUSSER, Villém. Filosofia da Caixa Preta. 6 Universidade Federal is part of a pentalogy circuitos da economia urbana dos países Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, p. 31. together with Guarde esta ideia, O sertão é subdesenvolvidos. São Paulo: EDUSP, 2004.

278 12 Disponível em: https://www.mundolusiada. aparente homogeneização da globalização. poeta pensar que sua arte não é sonora nem com.br/cultura/minc-criacao-do-museu- 5 Paulo Herkenhoff. “Fumacê do descarrego” visual / Ou o pintor afirmar que arte conceitual nacional-do-valongo-resgata-a-historia-da- in Atlas América, Rio de Janeiro, Oi Futuro, não tem nada a ver com pintura / É o mesmo escravidao-e-heranca-africana-no-brasil/. 2008, p. 93. que o católico pensar que reza para um deus 6 É importante ressaltar que, entre todos os diferente do protestante / Ou o muçulmano Uma maré de possibilidades grupos e movimentos até aqui listados, esse é o julgar que sua crença é mais importante que a para o Rio de Janeiro único movimento que assinala especificamente do budista. / Só haverá paz quando entendermos questões relativas ao racismo. Essa é uma que somos um / Tudo é um / Arte é um / Não 1 Documento elaborado no seminário grande diferença em relação aos jovens artistas importa como se manifesta / Tudo é um / internacional “O que é periferia, afinal?”, de 2019. Todos os grupos listados até aqui e Não importa a cor da pele / Ou a referência realizado pelo Instituto Maria e João Aleixo, parte das experiências que veremos abaixo bibliográfica / Ou se seu fazer requer mais na Maré, em abril de 2017. Disponível em são assustadoramente compostos por grande habilidade / Da mão, da mente, do ouvido http://www.imja.org.br>. maioria (ou totalidade em muitas vezes) de ou do corpo. / Viva a antropofagia / E viva o homens brancos heterossexuais. academicismo! / Viva as tias avós que fazem Rio de Janeiro, insubordinação e as 7 Coimbra e Basbaum já haviam participado crochê rosa bebê! / E viva seus sobrinhos netos experiências anti-institucionais juntos do Grupo Visorama nos anos 80 e 90 que tocam havy metal na garagem! / Viva eu, viva nas décadas de 2000 e 2010 (que também contava com Carla Guagliardi, tu / Viva o rabo do tatu! / Viva a tradição popular, Rosângela Rennó, João Modé, Valeska Soares e / Viva os homens de letras, / E viva os jovens 1 Assinale-se que, por um tempo, o Rio de outros) e Basbaum foi um atuantes no grupo ! / Todos são um, / Ou não serão nada!” Janeiro lutou pela hegemonia da construção Moreninha (1987) por agenciamento coletivo 10 Com curadoria de Bernardo Mosqueira, a da narrativa da história da arte brasileira. Os três artistas criaram a revista item. mostra foi realizada em março de 2010. Mormente depois da mudança da capital federal para Brasília, Rio e São Paulo 8 Opavivará! havia surgido no mesmo ano 11 Curadoria de Bernardo Mosqueira. disputaram a coroa de “centro cultural do e está em atividade constante e intensa até o 12 O Hotel Spa da Loucura (2012 e 2016), criado Brasil”, o que gerou uma historiografia injusta, ano de 2019. por Vitor Pordeus, reuniu mais de 10 coletivos um tesouro crítico recheado de embates falhos: 9 Manifesto UM: “Século vinte e um / Tudo (e.g. Norte Comum) em oficinas de teatro, dança, uma batalha sem vencedores entre soberbos e é um / Quem acha que faz teatro ou música poesia, canto, música, carnaval, pintura e grafite arrogantes. Mais interessante do que lutar pela ou pintura / ou cinema ou performance ou para os pacientes do Instituto Municipal Nise centralidade do Rio e de qualquer outra cidade fotografia / está vivendo no século passado. / da Silveira e moradores do Méier,implementando ou rivalizar de modo dualista com São Paulo, Não há fotografia que não seja música / Não a “Psiquiatria Comunitária”. há poesia que não seja cinema / Nem teatro deve-se aproveitar as oportunidades para 13 É importante que se diga também que que não seja escultura. / Arte única, mais articular conhecimento sobre as singularidades movimentos similares aconteceram em outras que um movimento / É uma constatação da dos lugares cada uma em si e em relação partes do Brasil na mesma época, com outras contemporaneidade. / Tudo é um / Arte é um umas às outras, para desmanchar projetos de especificidades. centralização de poder que ignoram partes / Arte é viva / Não há como matar / E não faz 14 Entre elas, estão o Barracão Maravilha, o da história do país para construir narrativas sentido compartimentar. / Somos herdeiros Studio X, a Bela Maré, a Fábrica da Bhering, autocentradas falsas. O Brasil, diverso, múltiplo, de todas as vanguardas do século vinte / E a Comuna/Casamata, o És uma Maluca, o híbrido e mutante, abarca uma enormidade também do romantismo, do iluminismo, / Do ALINALICE, o Atelier Sanitário, o Espaço Ápis, de formas de ver e viver, uma riqueza cultural clássico, do medieval e do pré-histórico. / Tudo a Lanchonete <> Lanchonete, a Mesa, a Boca, o necessária a pensar o país. é um / Construtivismo surrealista / Cerâmica eletrônica / Muralismo digital / Barroco Fosso, o Pence, a Desvio, a Despina, o Saracura, a 2 O MAM e seus cursos foram fechados em minimalista / Realismo abstrato / Tricô de Caixa Preta e o Solar dos Abacaxis, entre outros. 1986 por decisão de seu presidente Manuel fibra ótica / Humanogravura / Chanchada Nem todos se encontram ainda em atividade. Francisco de Nascimento Brito. conceitual / Concretismo bucólico / Teatro São casos muito diferentes, construindo riqueza o 3 A última ação aconteceu no dia 1 de abril de dança de poesia visual / Vídeo pintura de ímpar de propostas e soluções. Tratar de cada 2002 e, por isso, muitas pessoas acreditaram dramaturgia pop / Cinemogravura de música um deles é assunto para outro texto. que não seria verdadeiramente o fim. conceitual / Escultura sonora de fotografia 4 Organizado no final de 2002 pela expressionista / Vanguarda comercial de Os fins dos tempos – futuros Universidade Federal do Rio de Janeiro e pelo museu alternativo / Academia experimental Collège International de Philosophie de Paris, de galeria pop / Tudo é um / A diferença entre passados e passados futuros na arte o Colóquio reuniu pensadores brasileiros e um pintor e um cineasta / é a mesma que entre contemporânea do Rio de Janeiro estrangeiros de diversas áreas para construir um poeta e outro poeta. / Especificidades e n ota conhecimento coletivamente sobre o tema da individualidades existem / Categorias não / produção das resistências. Seu interesse era Categorias são invenções projetadas sobre o 1 HARTOG, F. Regime de Historicidade afirmar a diversidade de modos de existir, se real / No real arte é uma só / Tudo é um. / O [Time, History and the writing of History – relacionar, pensar e criar naquele tempo de músico supor que o que faz não é teatro / E o KVHAA Konferenser 37: 95 –113 Stockholm 1996].

279 12 Available at: https://www.mundolusiada. International de Philosophie de Paris, the alternative museum / Experimental academy com.br/cultura/minc-criacao-do-museu- Colloquium brought together Brazilian and of the pop gallery / Everything is one / The nacional-do-valongo-resgata-a-historia-da- foreign academics from various areas to difference between a painter and a filmmaker / escravidao-e-heranca-africana-no-brasil/ collectively build knowledge on the subject It is the same as between a poet and another. / of resistance production. The goal was to Uniqueness and individualities exist / Categories Cidade das Quebradas contribute asserting the many different don’t / Categories are inventions covering the forms of existing, relating, thinking and real / In real-world, art is one / Everything is one. / (City of the Broken) creating in an era apparently captured by The musician supposing his work is not theater, / 1 Translator’s note (T. N.): Brazilian expression the homogenization of globalization. The poet thinking his art is neither sonorous nor meaning a generation that knocks something 5 Paulo Herkenhoff. “Fumacê do descarrego” in visual / Or the painter asserting that conceptual down, which relates to transforming a cultural Atlas América, Rio de Janeiro, Oi Futuro, 2008, p. 93. art has nothing to do with painting / It is the image or field. same as a Catholic believing he prays for a 6 We should highlight that, among all the 2 T. N.: Brazilian expression meaning a different god than the Protestant / Or the Muslim groups and movements listed so far, this is partnership between men. thinking his beliefs are more important than the only one particularly addressing racism the Buddhist. / We will only find peace when we issues. This is a turn if we think the young understand that we are one. / Everything is one A tide (maré) of possibilities artists of 2019. Looking at the groups listed / Art is one / Regardless of the manifestation / for Rio de Janeiro so far and part of the following experiences Everything is one / Regardless of the skin color, 1 Document produced during the shown below, we see that they are alarmingly / The bibliographic reference / Or if your action international conference “What is periphery, composed of a majority (or often entirely) of requires more abilities / From the hand, the mind, after all?” held by the Maria and João Aleixo straight white men. the ear or the body. / Here’s to anthropophagy / Institute, at Maré, in April 2017. Available at 7 Coimbra and Basbaum have already worked And here’s to academicism! / Here’s to the great- . together in Grupo Visorama in the 80s and 90s aunts making baby pink crochet! / And here’s to (which also had Carla Guagliardi, Rosângela their grandnephews playing heavy metal in the Rennó, João Modé and Valeska Soares as Rio de Janeiro, insubordination and garage! / Here’s to me, here’s to you / Here’s to collaborators) and Basbaum also took action anti-institutional experiences in the the armadillo tail! / Here’s to popular tradition, / on the Grupo Moreninha (1987) through decades of 2000 and 2010 Here’s to the men of letters, / And here’s to young a collective agency. They created the Item rebels! / Everyone is one, / Or will be nothing!” 1 We should observe that Rio de Janeiro Magazine. fought for the hegemony of a strong narrative 8 Opavivará! was created in the same 10 Curated by Bernardo Mosqueira, the show for Brazilian art history. Above all, Rio and Sao year and is in constant and intense activity happened in March 2010. Paulo have been disputing over the crown of until now (2019). being Brazil’s cultural center since the capital 11 Curated by Bernardo Mosqueira. moved to Brasilia – which resulted in an unfair 9 Manifest ONE: “Twenty-first century / 12 Created by Vitor Pordeus, the Hotel Spa da historiography, a critical treasure full of flawed Everything is one / Those who think are doing Loucura (2012-2016) brought together more clashes: a no winner battle between the snob theater or music or painting / or cinema or than 10 collectives (for example, Norte Comum) and the arrogant. Instead of fighting for a city’s performance or photography / are living in holding workshops of theater, dance, poetry, centrality or holding a dualistic rivalry, the fight the last century. / There is no photography singing, music, carnival, painting and graffiti should be seizing opportunities to articulate that isn’t music, / There is no poetry that isn’t for patients of the Municipal Institute Nise de knowledge on the singularities of each location, cinema, / Nor theater that isn’t sculpture. / Silveira and residents of Méier, implementing a each city alone and one in comparison with Unique art, beyond one movement / A finding “community psychiatry”. another. This is important to dismantle of contemporaneity. / Everything is one / Art power-centralizing projects that ignore parts is one / Art is alive / There is no way to kill it / 13 It is also important pointing out that similar of the history of the country to build false self- And there’s no sense to partitioning it. / We are movements took place in other parts of Brazil at centered narratives. Brazil, this diverse, multiple, the heirs of all twentieth century vanguards the same time, with other specificities. hybrid and mutant, encompasses a multitude / And from romanticism, enlightenment, / of ways of seeing and living, a cultural richness From classic, medieval and prehistoric. / 14 Among them: Barracão Maravilha, Studio that is essential to think the country. Everything is one / Surrealist constructivism X, Bela Maré, Fábrica da Bhering, Comuna/ / Electronic ceramics / Digital muralism / Casamata, És uma Maluca, ALINALICE, 2 MAM and its courses closed in 1986 by Minimalist baroque / Abstract realism / Fiber Atelier Sanitário, Espaço Ápis, Lanchonete <> decision of its President, Manuel Francisco de optic knitting / Humanengraving / Conceptual Lanchonete, A Mesa, Boca, Fosso, Pence, Desvio, Nascimento Brito. chanchada / Bucolic concretism / Dance Despina, Saracura, Caixa Preta and Solar dos st 3 The last action happened on April 1 , 2002 theater of visual poetry / Video-painting Abacaxis. Some are still active. These are very and many people believed it was not a true end. of pop dramaturgy / Cinema-engraving of different cases, which build a unique richness of 4 Organized in late 2002 by the Federal conceptual music / Expressionist photography proposals and solutions. Addressing each case University of Rio de Janeiro and the Collège sound sculpture / Commercial vanguard of an deserves an entire new essay.

280 bibliografia 5 VELOSO, Caetano. “Carmen 11 PALAZYAN, Rosana. Sem título, manuscrito, Miranda Dada”, 1991, disponível em 2004: “No período em que frequentei essa BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e http://tropicalia.com.br/leituras- instituição, percebi que sua direção era técnica, arte e política. Brasiliense: complementares/carmen-miranda-dada. diferenciada das outras existentes no Rio São Paulo, 1985. de Janeiro e que existia a intenção em levar CANCLINI, N. G. La sociedad sin relato – Clarice Lispector e os diagramas de adiante o real sentido de ressocialização, antropología y estética de la inminencia. alteridade na arte do Rio de Janeiro mesmo diante das dificuldades. Após a Buenos Aires: Katz, 2010. mudança da direção e com as modificações CRARY, J. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do 1 LISPECTOR, Clarice. “Mineirinho” in Legião ocorridas neste sentido, não me senti à vontade sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. estrangeira. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1964, para visitar novamente a instituição.” pp. 252-257. A primeira publicação do conto FOUCAULT , M. Microfísica do poder. 12 PALAZYAN, Rosana. Ibidem Mineirinho foi na revista Senhor, Rio de Rio de Janeiro: Graal, 1979. 13 Eduardo Frota em e-mail a Paulo Janeiro, 1966. HARVEY, D. Condição pós-moderna. Herkenhoff em 6 de setembro de 2005. 2 LISPECTOR, Clarice. idem São Paulo: Editora Loyola, 2007. 14 Como argumenta Jean-Joseph Goux, HARTOG, F. Regime de historicidade [Time, 3 LISPECTOR, Clarice. Ibidem in “Théorie d’ensemble’. Paris, Seuil, 1968, History and the writing of History – KVHAA 4 AGAMBEN, Giorgio. State of exception. p. 188-190. Konferenser 37: 95 –113 Stockholm 1996]. Trad. Kevin Attell. Chicago, The University of 15 Eduardo Frota, em e-mail a Paulo Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dh/ Chicago Press, 2005, p. 80. Herkenhoff em 6 de setembro de 2005. heros/ excerpta/hartog/hartog.html. 5 LISPECTOR, Clarice. Ibidem. 16 Eduardo Frota, idem HUYSSEN, A. Culturas do passado-presente: 6 Oiticica, Helio. O Herói Anti-Herói e o 17 As citações de Igor Vidor foram extraídas modernismos, artes visuais, políticas da Anti-Herói Anônimo (1968). Exposição “O de seu e-mail a Paulo Herkenhoff a 17 de memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. artista brasileiro e iconografia de massa” na fevereiro de 2019. . Seduzidos pela memória: arquitetura, Escola Superior de Desenho Industrial. 18 LISPECTOR, Clarice. Ibidem. monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano 7 João do Rio emprega o termo “sociabilidade” 19 LISPECTOR, Clarice. Ibidem. Editora e Consultoria Ltda, 2000. na crônica “As mulheres mendigas” (1904). 20 LISPECTOR, Clarice. Ibidem. KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição Em A alma encantadora das ruas: crônicas à semântica dos tempos históricos. Rio de (1908). Op. cit., p. 182. No século XXI, o termo Lugares do delírio – loucura e arte Janeiro: Contraponto, 2006. acumula novos sentidos sociais, políticos e no Rio de Janeiro TARDE, G. Monadologia e sociologia. antropológicos. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 1 Com projeto original de Paulo Herkenhoff, a 8 Ver do autor. “Paula Trope e a casa fraca WINCKELMANN, J. J. Reflexões pesquisa curatorial iniciou-se em dezembro (arte e sociedade no Brasil contemporâneo)”. sobre a arte antiga. Movimento: de 2014 e resultou em diversas ações até a Em Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça inauguração da exposição em fevereiro de 2017 Porto Alegre, 2016. Artes Plásticas – Mostra itinerante 1005/2006. no Museu de Arte do Rio (MAR). Brasília: CNI/SESI, 2006, p. 29-32. Dois Zés e uma Carmen 9 E-mail de Mauricio Dias a Paulo Herkenhoff 2 Apud SILVEIRA, Nise. “Artaud: um Homem em Busca do seu Mito. Depoimento”. In: Mello 1 LERNER, Jesse. “Of mice and men, women em 13 de junho de 2006. (org.) Encontros. Nise da Silveira. Rio de Janeiro: and ducks.” LERNER, Jesse e ORTIZ-TORRES 10 São autores das maquetes e colaboradores Azougue, 2009. p. 82. (editors). In How to read el Pato Pascual – de Trope: Nelcirlan Souza de Oliveira (Beiço), Disney’s Latin America & Latin America’s Maycon Souza de Oliveira (Maiquinho), José 3 FREUD, Sigmund. “Notas Psicanalíticas sobre Disney. Londres, Black Dog Publishing, Carlos da Silva Pereira (Júnior), Luciano de um Relato Autobiográfico de um 2017, p. 41. Almeida, Rodrigo de Macedo Perpétuo, Paulo Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)” Vitor da Silva Dias (Tovi), Raniere Dias, Renato (1911). In Edição Standard Brasileira das Obras 2 HARRISON, Nate. ‘Ducks in a row’. In Jesse Dias Figueiredo (Naldão), Felipe de Souza Dias Completas de Sigmund Freud. Lerner & Ruben Ortiz-Torres. How to Read el (Lepé), Marcos Vinicius Clemente Ferreira Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII. Pato Pascual Disney’s Latin America, Black Dog (Negão), David Lucio de Araújo, Esteives Publising Book, p. 63-65. 4 Dubuffet, Jean. (1949) L’Art Brut Lúcio de Araújo (Teibe), Gustavo José dos préféré aux Arts Culturels (Catálogo da 3 Fernando Lindote em e-mail a Santos (Djou), Leandro de Paiva Adriano (Lê), exposição realizada na Galeria René Drouin, Paulo Herkenhoff, em 31 de dezembro de 2018. Leonardo de Paiva Adriano (Nem), Irlan Silva Paris), s./p. Disponível em https://monoskop. 4 ESPÍRITO SANTO Júnior. Lúcio Emílio. dos Santos (Plin-Plin) e Bruno Silva dos Santos, org/images/b/b1/Compagnie_de_l_Art_Brut_L_ “Carmen Miranda e Wittgenstein”, 2009, que já lidavam com tecnologias da imagem, art_brut_prefere_aux_arts_culturels_1949.pdf disponível no site http://www.thedrillpress. tendo atravessado a ponte da exclusão digital. com/broca/2009-06-01/broca-2009-06-01- Já produziram video criativo de apresentação 5 Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de miranda-lsanto-01.shtml de sua própria obra. Janeiro: MinC/Funarte/Ed. UFRJ, 1994, p. 13.

281 The ends of times – future pasts and 2 HARRISON, Nate. ‘Ducks in a row’. In Jesse Perpétuo, Paulo Vitor da Silva Dias (Tovi), Raniere past futures in contemporary art Lerner & Ruben Ortiz-Torres. How to Read el Dias, Renato Dias Figueiredo (Naldão), Felipe de scene of Rio de Janeiro Pato Pascual Disney’s Latin America, Black Dog Souza Dias (Lepé), Marcos Vinicius Clemente Publishing Book, p. 63-65. Ferreira (Negão), David Lucio de Araújo, Esteives n ot e 3 Fernando Lindote in an email to Paulo Lúcio de Araújo (Teibe), Gustavo José dos Santos 1 HARTOG, F. Historicity regime [Time, Herkenhoff, on December 31, 2018. (Djou), Leandro de Paiva Adriano (Lê), Leonardo History and the writing of History – KVHAA de Paiva Adriano (Nem), Irlan Silva dos Santos 4 ESPÍRITO SANTO Júnior. Lúcio Emílio. Konferenser 37:95 –113 Stockholm 1996]. (Plin-Plin) and Bruno Silva dos Santos, who were “Carmen Miranda e Wittgenstein”, 2009, 2 Translator’s note (T. N.): A reference already dealing with imaging technologies, available at: http://www.thedrillpress.com/ to the book of the Brazilian poet João having crossed the bridge of digital exclusion. broca/2009-06-01/broca-2009-06-01-miranda- Cabral de Melo Neto, Educação pela pedra. They have already produced a creative video lsanto-01.shtml. presentation of their own work. 5 VELOSO, Caetano. “Carmen Mirada Dada”, bibliography 11 PALAZYAN, Rosana. Untitled, manuscript, 1991, available at http://tropicalia.com.br/ BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia 2004: “During the period I attended this leituras-complementares/carmen-miranda- e técnica, arte e política. Brasiliense: institution, I realized that its direction was dada. São Paulo, 1985. different from others in Rio de Janeiro and that there was an intention to carry on the real sense CANCLINI, N. G. La sociedad sin relato – of resocialization, even in the face of difficulties. antropología y estética de la inminencia. Clarice Lispector and the alterity After the change of direction and the changes Buenos Aires: Katz, 2010. diagrams in the art of Rio de Janeiro that took place, I was not comfortable visiting CRARY, J. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do 1 LISPECTOR, Clarice. “Mineirinho” in Legião the institution again.” sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. estrangeira. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1964, pp. 12 PALAZYAN, Rosana – Ibidem FOUCAULT , M. Microfísica do poder. 252-257. The first publication of the short story Eduardo Frota in an email to Paulo Rio de Janeiro: Graal, 1979. Mineirinho was in the magazine Senhor , Rio de 13 Janeiro, 1966 n. Herkenhoff on September 6, 2005. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 2007. 2 LISPECTOR, Clarice. idem 14 As Jean-Joseph Goux argues, in ‘Theorie d’ensemble’. Paris, Seuil, 1968, pp. 188-190. HARTOG, F. Regime de historicidade [Time, 3 LISPECTOR, Clarice. Ibidem 15 Eduardo Frota in an email to Paulo History and the writing of History – KVHAA 4 AGAMBEN, Giorgio. State of exception. Transl. Herkenhoff on September 6, 2005. Konferenser 37: 95 –113 Stockholm 1996]. Kevin Attell. Chicago, The University of Chicago Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dh/ Press, 2005, p. 80. 16 Eduardo Frota, idem heros/ excerpta/hartog/hartog.html. 5 LISPECTOR, Clarice. Ibidem 17 Igor Vidor’s quotes were taken from his HUYSSEN, A. Culturas do passado-presente: e-mail to Paulo Herkenhoff on February 17, 2019. 6 Oiticica, Helio – O Herói Anti-Herói e o modernismos, artes visuais, políticas da Anti-Herói Anônimo (1968) – exhibition “O 18 LISPECTOR, Clarice. Ibidem memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. Artista Brasileiro e Iconografia de Massa” at the 19 LISPECTOR, Clarice. Ibidem . Seduzidos pela memória: Escola Superior de Desenho Industrial. 20 LISPECTOR, Clarice. Ibidem arquitetura, monumentos, mídia. Rio de 7 João do Rio uses the term “sociability” in Janeiro: Aeroplano Editora e Consultoria Ltda, the chronicle “As mulheres mendigas” [“The 2000. beggar women”] (1904). In A alma encantadora Places of Delirium – Madness and Art KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição das ruas: crônicas (1908). Op. cit., p. 182. In the in Rio de Janeiro à semântica dos tempos históricos. Rio de st 21 century, the term accumulates new social, 1 With an original project by Paulo Herkenhoff, Janeiro: Contraponto, 2006. political and anthropological meanings. the curatorial research began in December TARDE, G. Monadologia e sociologia. São 8 See from the author. “Paula Trope e casa fraca 2014 and resulted in several actions until the Paulo: Cosac Naify, 2007. (arte e sociedade no Brasil contemporâneo)”. In inauguration of the exhibition in February 2017 WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a arte Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça Artes in the Art Museum of Rio (MAR). antiga. Movimento: Porto Alegre, 2016. Plásticas – traveling exhibit 1005/2006. Brasilia: 2 Apud SILVEIRA, Nise. “Artaud: um Homem CNI/SESI, 2006, p. 29-32. em Busca do seu Mito. Depoimento”. In: Mello Two Zés and one Carmen 9 Email from Mauricio Dias to Paulo (org.) Encontros. Nise da Silveira. Rio de Janeiro: 1 LERNER, Jesse. “Of mice and men, Herkenhoff on June 13, 2006. Azougue, 2009. p. 82. women and ducks.” LERNER, Jesse and 10 These are the authors of the scale models 3 FREUD, Sigmund. “Notas Psicanalíticas sobre ORTIZ-TORRES (editors). In How to read and Trope’s collaborators: Nelcirlan Souza de um Relato Autobiográfico de um Caso de el Pato Pascual – Disney’s Latin America & Oliveira (Beiço), Maycon Souza de Oliveira Paranóia (Dementia Paranoides)” (1911). In Edição Latin America’s Disney. London, Black Dog (Maiquinho), José Carlos da Silva Pereira (Júnior), Standard Brasileira das Obras Completas de Publishing, 2017, p. 41. Luciano de Almeida, Rodrigo de Macedo Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII.

282 6 PEDROSA, M. “Da abstração à autoexpressão”, Quatro mestres da escultura do região de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, in Arte. Ensaios: Mário Pedrosa (org. Mammì, L.). século XXI – três luzes e o pé na terra nas cercanias do Cais do Valongo, em diálogo São Paulo: CosacNaify, 2015. pp. 345-346. com o artista Afonso Tostes. 1 Em conversa com o autor, 29 de setembro 7 Em entrevista que nos concedeu em 2009 de 2009. 5 MOSQUEIRA, Bernardo. Alexandre Mazza/ para o vídeo Ensaio sobre o sujeito na arte No deserto, o oásis somos nós. Rio de Janeiro, contemporânea brasileira. Disponível em: 2 MERLEAU-PONTY, Maurice. Galeria Luciana Caravello, 2016. Excertos sobre . Acesso em: 2 maio 2019. Gallimard, 1987, p. 449. Alexandre Mazza. 8 Ver Tania Rivera. “A Fantasia e o Espaço: Lygia 3 BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries Clark”. In O Avesso do Imaginário. São Paulo: 6 DERRIDA, Jacques. Archive fever, a freudian de la volonté. Paris, Librairie José Corti, 1947. CosacNaify, 2013. impression. Trad. Eric Prenowitz. Chicago e 9 Lygia Clark. Memória do Corpo (org. Gina 4 Disponível em: https://www. Londres, The Chicago University Press, 1994. Ferreira). Inédito. dicionarioinformal.com.br/favelar/ 7 Resumo da introdução. Ao diário de viagem 10 CLARK, Lygia. “1968: Nós somos os 5 Este texto sobre Ascânio MMM foi de Alice Miceli. Rio de Janeiro, Zum, 2018. propositores”. In Lygia Clark, Rio de Janeiro: publicado em HERKENHOFF, Paulo. Ascânio A artista pesquisou no Instituto de Funarte, 1980. p. 31. MMM: poética da razão. São Paulo, BEI Editora, Radioproteção e Dosimetria do Rio e integrou 11 Depoimento ao documentário Cuidado 2012, p. 402. um grupo de pesquisa médica autorização a como método nos lugares do delírio (2017). viajar a Chernobyl. Direção: Jessica Gogan e Daniel Leão (projeto 6 Ascânio MMM em e-mail ao autor, 8 de comissionado pela exposição Lugares do delírio, junho de 2008. 8 Conversa com Alice Miceli por Luiz Camillo MAR – Museu de Arte do Rio de Janeiro). Osorio (2016). Disponível em:

283 4 Dubuffet, Jean. (1949) L’Art Brut préféré clinical practice allowed him another way of to Bom Retiro Farm and with Alexandre Mazza aux Arts Culturels (Catalog of the exhibition listening. to the Atacama Desert. The choice of the last two held at René Drouin Gallery, Paris), s./p. 20 Ibid., p. 109. was due to their condition as residents of Rio de Available at https://monoskop.org/images/b/ Janeiro at the time of the travels. 21 Inscription present in the banner presented b1/Compagnie_de_l_Art_Brut_L_art_brut_ for the first time in 1968, at the event Bandeiras 4 MOSQUEIRA, Bernardo. Tronco. Rio de Janeiro, prefere_aux_arts_culturels_1949.pdf. na Praça General Osório [Flags in General Casa França-Brasil, 2013. Excerpts of the project 5 Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Osorio Square]. of transporting a corn storeroom built by slaves 250 years ago in the Juiz de Fora region to Rio de Janeiro: MinC/Funarte/Ed. UFRJ, 1994, p. 13. 22 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A Dúvida Janeiro, near the Valongo Wharf, in a dialogue 6 PEDROSA, M. “Da abstração à de Cézanne”. In: O Olho e o Espírito. São Paulo: with the artist Afonso Tostes. autoexpressão”, in Arte. Ensaios: Mário Pedrosa Cosac Naify, 2004. 5 MOSQUEIRA, Bernardo. Alexandre Mazza/No (org. Mammì, L.). São Paulo: CosacNaify, 2015. 23 Testimonial in the documentary Cuidado pp. 345-346. como método nos lugares do delírio (2017), op. cit. deserto, o oásis somos nós. Rio de Janeiro, Luciana Caravello Gallery, 2016. Excerpts from the Atacama 7 In an interview given to us in 2009 for the 24 Ibid. Desert travel with artist Alexandre Mazza. video Ensaio sobre o sujeito na arte contem- 6 DERRIDA, Jacques. Archive fever, a freudian porânea brasileira [Essay about the subject Four masters of 21st-century sculpture. impression. Trad. Eric Prenowitz. Chicago and in contemporary Brazilian art]. Available at: Three lights and the foot on the ground . Access on: May 2, 2019. 7 Introduction Summary to Alice Miceli’s travel September 29, 2009. 8 See Tania Rivera. “A Fantasia e o Espaço: journal. Rio de Janeiro, Zum, 2018. The artist 2 MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénomenologie Lygia Clark”. In O Avesso do Imaginário. São researched at the Rio Institute of Radioprotection de la perception. Paris, Gallimard, 1987, p. 449. Paulo: Cosac Naify, 2013. and Dosimetry and was part of a medical research 3 BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries group authorized to travel to Chernobyl. 9 Lygia Clark. Memória do Corpo (org. Gina de la volonté. Paris, Librairie José Corti, 1947. Ferreira). Unpublished. 8 Conversation with Alice Miceli by Luiz 4 Available at: https://www. Camillo Osorio (2016). Availlable at: http://www. 10 CLARK, Lygia. “1968: Nos somos os dicionarioinformal.com.br/favelar/ premiopipa.com/pag/artistas/alice-miceli/>. propositores”. In Lygia Clark, Rio de Janeiro: 9 LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do Outro Funarte, 1980. p. 31. 5 This text about Ascânio MMM was published in HERKENHOFF, Paulo. Ascânio Homem. Transl. Pergentino S. Pivatto and others. 11 Testimonial to the documentary Cuidado MMM: poética da razão. São Paulo, BEI Editora, Petrópolis, Editora Vozes, 1993. como método nos lugares do delírio [Care as a 2012, p. 402. 10 Arthur Omar in an email to the author on method in places of delirium] (2017). Directed June 8, 2009. by: Jessica Gogan and Daniel Leão (project 6 Ascânio MMM in an email to the author commissioned by the exhibition Lugares do on June 8, 2008. 11 Matição (Piper angustifolium) is a shrub that delírio, MAR – Art Museum of Rio de Janeiro). 7 LIPPARD, Lucy. The Lure of the Local: the has drupaceous fruits and astringent leaves used in folk medicine. 12 Testimonial present in the same Sense of Place in a Multicentered Society. documentary. New York: The New Press, 1998. 12 Celso Fioravante, “Arthur Omar leva êxtase “Iole de Freitas celebra 70 anos com e violência a Nova York”, Folha de S. Paulo, 13 Idem. 8 exposição no Museu de Arte Moderna”. September 16, 1999. Idem. 14 Interview with Mariana Filgueiras. 13 Arthur Omar´s interview to the author on 15 Ibid. In O Globo, Rio de Janeiro, July 18, 2008. September 3, 2009. 16 WANDERLEY, Lula. O Dragão pousou 9 HERKENHOFF, Paulo. “Quase”. In Manobras 14 CALVINO, Italo. Le città invisibili. Turim, no espaço. Arte contemporânea, sofrimento radicais. Co-curated by Heloisa Buarque de Einaudi, 1972. psíquico e o objeto relacional de Lygia Clark. Rio Hollanda. Centro Cultural Banco do Brasil – 15 Articulated, Rio Branco did the book on de Janeiro: Rocco, 2002. São Paulo, 2006. Tokyo and Moryama São Paulo. Tokyo, Taka Ishii 17 Testimonial in the documentary Cuidado Gallery and Gestuyosha, 2008. como método nos lugares do delírio (2017), op. cit. Travelers postcards 16 The reference here is to BATAILLE, Georges. 18 MORAIS, Frederico. Arthur Bispo do Rosário. 1 SAUSSURE. Ferdinand de. Cours de La part maudite (1949). Paris, Les éditions de Arte além da Loucura (org. Flávia Corpas). Rio de lingüistique génerale (1916). Paris, Payot, 2005, p. 98. minuite, 1967. Janeiro: Nau, 2013. p. 23. 2 On Susan Phillips, see Paulo Herkenhoff. 17 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible 19 Ibid., p. 24. Lula Wanderley, who was Strangers/Étrangers. New York, P.S.1 at et l’invisible (1964). Claude Lefort (ed.). Paris, present in one of Morais’s conversations Clocktower Gallery, 2001, passim. Gallimard, 2004, p.309-310. with Bispo, blends Bispo’s speech in an oral 3 Bernardo Mosqueira in an e-mail to Paulo 18 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ce que nous declaration, stating that it did not seem to Herkenhoff, on May 8, 2019 about his travels voyons, ce qui nous regarde. Paris, Les éditions him a strong refusal. We can assume that his with Ivan Grilo to Maranhão, Afonso Tostes and de minuit. 1992.

284 RIO XXI – uma coleção Segunda geração construtiva no Rio Marco Veloso [Second Constructive generation in Rio] Milton Machado O projeto da Fundação Getulio Vargas Abelardo Zaluar Nelson Felix de abordagem da cultura visual do Rio Ana Vitória Mussi Paulo Paes de Janeiro no século XXI se estende por Anna Bella Geiger Raul Mourão um vasto temário, que deve abranger Anna Maria Maiolino Ricardo Becker cerca de duzentos artistas. A coleção Antonio Dias Rubem Grilo compreenderá novos volumes com Ascânio MMM Tunga convite a outros críticos e especialistas. Athos Bulcão Quarta geração construtiva no Rio Carlos Vergara [The Rio de Janeiro 21st century visual [Fourth Constructive generation in Rio] Carlos Zilio culture approach editorial project Adriana Eu Cildo Meireles designed by Fundação Getulio Vargas Adriana Maciel Claudio Paiva deals with a wide range of topics, which Adriana Varejão Eduardo Sued should gather about two hundred artists. Alexandre Vogler Evany Fanzeres The collection will comprise new volumes Amalia Giacomini for which other critics and experts will Iole de Freitas Angelo Venosa be invite to contribute. Israel Pedrosa Antonio Bokel Ivens Machado Beth Jobim João Carlos Galvão Bruno Veiga Manfredo Souzanetto Cadu Maria do Carmo Secco Eduardo Coimbra Paulo Roberto Leal Enrica Bernardelli Volume II Raymundo Colares Igor Vidor Conterá abordagens já definidas e Ronaldo do Rego Macedo Ismael Monticelli artistas definidos (mas sujeitos a Sérgio Camargo Jarbas Lopes reclassificação geracional): Umberto Costa Barros Joana Traub Csekö [the Volume II is mostly defined Waltercio Caldas João Modé regarding the approches and artists, but Luiz Zerbini subject to a generational classification] Wanda Pimentel Marcelo Macedo Michel Groisman Primeira geração construtiva no Rio Terceira geração construtiva no Rio Valeria Costa Pinto [First Constructive generation in Rio] [Third Constructive generation in Rio] Abraham Palatnik Alex Gama Pintura, pintura – alguns mestres Almir Mavignier Alexandre Dacosta [Paint, paint – some masters] Amilcar de Castro Ana Linnemann Abraham Palatnik Arthur Amora Antônio Manuel Antonio Dias Franz Weissmann Armando Mattos Carlos Vergara Hélio Oiticica Beatriz Milhazes Hércules Barsotti Flavio Shiró Carlos Bevilacqua Ivan Serpa Glauco Rodrigues Chico Fortunato João José Costa Gonçalo Ivo Daniel Feingold José Maria Dias da Cruz Israel Pedrosa Daniel Senise Lygia Clark José Maria Dias da Cruz Lygia Pape Ernesto Neto Katie van Scherpenberg Osmar Dillon Fernanda Gomes Osmar Dillon Paiva Brasil Frida Baranek Paiva Brasil Rubem Ludolf João Carlos Goldberg Roberto Magalhães Willys de Castro José Bechara Ronaldo do Rego Macedo

285 Urbanismo de artista Arte e Física [Art and Physics] Michel Groisman [Artist’s urbanism] Alexandre Murucci Otavio Schipper Guerreiro do Divino Amor Ana Holck Paulo Bevilcqua Guga Ferraz Carla Gagliardi Waltercio Caldas Hélio Oiticica Cildo Meireles Jarbas Lopes Cristina Salgado Pintura, pintura – pós 80 [Paint, paint, after ’80s] Leandra Espírito Santo David Cury Arjan Martins Meninos do Morrinho Ernesto Neto Beth Jobim Frida Baranek Milton Machado Claudio Tobinaga Iole de Freitas Móveis paisagem: irmãos Campana, Cristina Canale João Goldberg Lattoog, Jaime Leirner Daniel Feingold Josely de Carvalho Flavia Metzler Performance Carioca Mariana Manhães Gabriela Machado [Carioca performance] Pedro Paulo Domingues Heleno Bernardi Tatiana Grinberg Lucia Laguna Postais de viajantes II Marcus André [Travelers postcards II] Postais de Viajantes III Maria Klabin Federico Herrero [Travelers postcards III] Maria Lynch Giselle Beiguelman Painel na estação do metrô da Estação Güler Ates Siqueira Campos, saída Figueiredo de Pensamento esférico no Rio Leila Danziger Magalhães [Panel at subway station [Spheric thinking in Rio] Leonardo Finotti Siqueira Campos, exit Figueiredo Carlos Bevilacqua Lygia Pape Magalhães] Cildo Meireles Miroslaw Balka Caio Reisewitz Igor Vidor Peter Coffin Daniel Escobar Paula Gabriela Piotr Uklanski Dora Longo Bahia Roberto Magalhães Regina de Paula Rodrigo Braga Simone Michelin Sarah Morris Waltercio Caldas Muros da cidade: pichação e grafite [City walls: graffiti] Retratística [Portraits] Outros volumes [Other volumes] Celacanto provoca maremoto Adriana Varejão Estão entre os planos da Fundação Lerfamu Ana Stewart Getulio Vargas a organização de Malala Yousafzai Jarbas Lopes outros volumes e eventualmente com Panmela Castro Leandra Espírito Santo outros enfoques, sempre dependendo Profeta Gentileza Arte e culturas indígenas Toz da existência de patrocínios para contemporâneas [Contemporary art and financiamento. O q faço é música [What I do is music] indigenous culture] [Fundação Getulio Vargas plans to Abraham Palatnik Aldeia Maracanã organize new editions and eventually Adriana Calcanhoto Anna Dantes e Selvática with new approaches, always depending Aluisio Carvão Cildo Meireles on sponsorships for financing the Arto Lindsay Denilson Baniwa editions] Beatriz Milhazes Eliane Potiguara Arte e Ciência [Art and Science] Bernardo Damasceno Ernesto Neto Ascânio MMM Cabelo Félix Karaí Beatriz Milhazes Chelpa Ferro Gabriela Noujaim Cildo Meireles Cildo Meireles Lygia Pape Eduardo Kac Hélio Oiticica Museu do Índio Ernesto Neto Jocy de Oliveira Zé Guajajara Otavio Schipper Lilian Zaremba A coleção contemporânea do MAR Tunga Manata Laudares [The contemporary art collection Walmor Corrêa McMarechal of the Rio Art Museum]

286 Palavra de artista: arte conceitual e Laíla poesia visiva [Artist’s word: conceptual Leandro Vieira art and visual poetry] Marcia e Renato Lage Cildo Meireles Paulo Barros Claudio Paiva Rosa Magalhães Denilson Baniwa Eduardo Kac Arquitetura de espaços expositivos Essila Paraíso no Rio [Architecture of exhibition Jorge Duarte spaces in Rio] Mana Bernardes Neide Sá Lição de coisas cariocas esquisitas Sonia Andrade ou intrigantes [Lesson of peculiar or Waltercio Caldas intriguing Carioca things] Wilson Piran Adriana Tabalipa Wlademir Dias Pino Barrão Xico Chaves Brígida Baltar Carlos Bevilacqua Histórias do presente [Present history] Efrain Almeida Arjan Martins Fernanda Gomes Bruno Miguel Jorge Duarte Cildo Meireles José Bechara Daniel Lannes José Damasceno Denilson Baniwa Laura Lima Gustavo Speridião Marcos Chaves Laércio Redondo Maria Nepomuceno Lula Wanderley Matheus Rocha Pitta Matheus Rocha Pitta Rubem Grilo Maxwell Alexandre Thiago Rocha Pitta Milton Guran Escola de Artes Visuais – Parque Lage Pedro Varela Fundação Eva Klabin – projeto Respiração Regina de Paula [Breathing Project] Rosana Palazyan Museus Castro Maya – esculturas do Yuri Firmeza século XXI [21st century sculptures]

Fios da memória [Memory strings] Adriana Eu Vídeo e cinema experimental Ana Linnemann [Video & experimental film] Ana Miguel Alexandre Mazza Anna Maria Maiolino André Parente Bispo do Rosário Brigida Baltar Célia Shalders César Oiticica Filho Daisy Xavier Katia Maciel Daniel Albuquerque Renato Bezerra de Mello Rosana Palazyan

Carnavalesca [Carnival makers] Gabriel Haddad e Leonardo Bora Gentil Carioca Jack Vasconcelos João Edson Pereira

287 Este livro teve textos compostos em Thesis Serif e Thesis Sans e impresso em Munken Lynx 120g/m2 (miolo) e Supremo AA 350g/m2 (capa), pela gráfica Ipsis, São Paulo, em novembro de 2019.