Um Estudo Sobre As Cidades Invisíveis Dos Tropicalistas (1967-1975)
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CIDADE E TROPICALISMO: um estudo sobre as cidades invisíveis dos tropicalistas (1967-1975) ∗ IDELMAR GOMES CAVALCANTE JÚNIOR Desnaturalizar identidades culturais não é novidade entre os cientistas sociais já faz algum tempo. Um grande número de trabalhos já consagrados, historiográficos ou não, podem servir de referência a historiadores que encontram nesta perspectiva teórica um caminho profícuo a seguir durante as suas investigações. Neste caso, se o que interessa for a construção identitária de uma nação o que deve ser investigado é a criação de um sentimento que depende fundamentalmente de uma abstração. É preciso fazer com que sujeitos concretos acreditem que exista algo invisível aos seus sentidos para que eles possam se sentir parte de qualquer projeto de nação. Uma estratégia que depende da capacidade de se fazer circular discursos e representações por todos os cantos da pretensa nação, sob o risco de se construir uma unidade deficiente ou incompleta. Zygmunt Bauman, por exemplo, conta que na Polônia, no final dos anos de 1930, muitos “poloneses” “não entendiam o que era uma ‘nação’ nem o que significava ‘ter uma nacionalidade’” (BAUMAN, 2005: 23). Tal sentimento de pertencimento era muito abstrato para eles, que só conseguiam informar sobre si mesmos que “somos daqui”, “somos deste lugar” ou “pertencemos a este lugar” (BAUMAN, 2005: 24); se referindo, evidentemente, aos espaços mais próximos onde viviam. Sem discutir as razões que levaram a esta condição, o que o exemplo evidencia é que diferentemente do que acontece com a nação, pensar e sentir uma cidade exige um esforço bem menos abstrato. A experiência chega a ser física. Cada habitante da cidade, em condições normais, acaba vivenciando sua cidade nem que seja por meio de experiências visuais, táteis, olfativas, auditivas e, por que não dizer, gustativas. Todas, portanto, imediatas e concretas. Desta forma, sentir-se um fortalezense, exige, certamente, um esforço de abstração bem menor do que aquele exigido para que um habitante do Ceará se sinta parte de um mesmo projeto que um gaúcho, por exemplo. Sabemos que a cidade existe porque podemos senti-la, situação bem diferente daquela vivenciada pelos poloneses do exemplo de Bauman, os quais, isolados em suas próprias ∗ Professor da Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará – UFC, com bolsa concedida pela FAPEPI. 2 comunidades, não tinham a menor ideia do que era a nação polonesa . Por outro lado, somos como os mesmos poloneses quando eles se identificam facilmente com os espaços que lhes são mais próximos. É assim com as nossas cidades. Sentimos a cidade a partir de lugares conhecidos, como o bairro onde vivemos, e daí vamos descobrindo novos ao longo do tempo. No caso do bairro, ele não é só conhecido pelo sujeito. É tão relevante a familiaridade com que todos se tratam, que se pode dizer que o bairro também conhece seus sujeitos. Como diz Antoine Prost, há nessa relação, além do conhecimento mútuo, um contato social. “Cada morador do bairro ou da vila aufere certo proveito dessa vizinhança, desde que pague o devido preço. Ele recebe pequenas gratificações dos outros: sorrisos, saudações, cumprimentos, troca de palavras que dão a sensação de existir, de ser conhecido, reconhecido, apreciado, estimado” (PROST, 2009: 101) . Prost parece confirmar a proposição inicial, a de que sabemos que a cidade existe porque podemos senti-la, ao afirmar que o sujeito se sente mais conectado à realidade na mesma medida em que o bairro demonstra conhecê-lo; o que, por sua vez, só é possível se o seu corpo transitar e se entregar a contatos que devem acontecer, necessariamente, com certa regularidade; pois existir, implica, inicialmente, mover-se em determinado espaço e tempo, alterar o meio “graças à soma de gestos eficazes, escolher e atribuir significado e valor aos inúmeros estímulos do meio graças à atividades perceptivas, comunicar aos outros a palavra, assim como um repertório de gestos e mímicas, um conjunto de rituais corporais implicando a adesão dos outros” (LE BRETON, 2010: 8). Sem isso, alguém pode ser classificado como um estranho, um outsider 1. E neste caso, evidentemente, “estar fora” ou “dentro”, depende muito mais de fronteiras simbólicas do que daquelas que delimitam oficialmente os limites entre os bairros de uma cidade. Fronteiras invisíveis de cidades igualmente invisíveis (Cf. CALVINO, 2003) que compartilham espaços dentro da cidade visível, oficial e planejada. E para ver essas cidades invisíveis e seus habitantes, é preciso se deixar envolver pela cidade, deixar o corpo se enlaçar pelas ruas, como diz Michel de Certeau ao se referir à impossibilidade de um olhar-voyeur que tenha a capacidade de apreender uma cidade se postando fora dela, de seus problemas e distrações; acomodando-se num ponto de observação privilegiado e utópico (CERTEAU, 1994: 170). A relação que o corpo estabelece com a cidade seria, portanto, uma chave importante para a compreensão dessa cidade. 1 O termo serve “para designar aquelas pessoas que são consideradas desviantes por outras, situando-se por isso fora do círculo dos membros “normais” do grupo. Mas o termo contém um segundo significado, cuja análise leva a um outro importante conjunto de problemas sociais: “outsiders”, do ponto de vista da pessoa rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem as regras de cuja violação ela foi considerada culpada” (BECKER, 2008: 27). 3 As representações de uma nação podem prescindir de corpos e se for preciso, criam corpos, mas serão estes, sempre, corpos idealizados como o de Marianne , a famosa alegoria que representa a República Francesa. Mas uma cidade não existe sem corpos. Ela existe e se transforma sempre em detrimento da acomodação dos corpos de seus habitantes. Isso pode ser percebido claramente em estudos que tratam da modernização das cidades, como a obra Carne e Pedra , de Richard Sennett. Para este autor, a modernização que agiu sobre Paris na época da Belle Èpoque , sob o pretexto de oferecer conforto e espetáculo para o homem moderno, acabou imobilizando corpos, fazendo-os se contentarem com uma contemplação passiva da cidade, o que contribuiu de forma decisiva para a criação daquilo que chama de “corpo passivo”, um corpo desconectado do espaço, que não se deixa excitar por ele. Um corpo passivo “vivencia o mundo como uma experiência narcótica; o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e descontínua” (SENNETT, 2008: 17). Nicolau Sevcenko também fala sobre o lugar ocupado pelo corpo na modernização ocorrida em São Paulo, nos anos vinte do século passado. Segundo ele, pelo planejamento dos poderes públicos, que era compartilhado por muitos na sociedade, as pessoas deveriam ser fisicamente preparadas para fazerem parte de um mundo que se pretendia moderno, um mundo de produção em massa, de movimento e de velocidade. Neste sentido, muitos compartilhavam da ideia de que a cultura física era a “chave para se entrar na vida moderna propriamente dita” (SEVCENKO, 1993: 84); o que, para Sevcenko, iria desencadear um boom dos esportes na capital paulista, um verdadeiro “culto da ação pura”. Também os marginalizados pelo processo de modernização das cidades brasileiras tiveram seus corpos implicados no processo, como podemos perceber nos episódios ligados à demolição de casas populares durante a administração do prefeito Pereira Passos e à vacinação obrigatória, ambos ocorridos no Rio de Janeiro, no início do século XX (Cf. SEVCENKO, 2003). Poderíamos citar outros tantos exemplos, mas acreditamos já ser possível afirmar com segurança que existe uma relação fundamental entre o corpo e a cidade. A cidade se constitui pelos e para os corpos, e estes vão imprimindo, sobre os espaços urbanos, os seus significados, num exercício quase infinito; transformando praças, ruas e avenidas em verdadeiros palimpsestos. Segundo Le Breton (2010: 7-8): Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do 4 corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade. O ator abraça fisicamente o mundo apoderando-se dele, humanizando-o e, sobretudo, transformando-o em universo familiar, compreensível e carregado de sentidos e de valores que, enquanto experiência, pode ser compartilhado pelos atores inseridos, como ele, no mesmo sistema de referências culturais. Conferindo vigor a esta perspectiva, podemos, agora, indagar a respeito dos significados que os sujeitos que participaram do movimento tropicalista, na virada dos anos sessenta para os setenta, conferiram às suas cidades, o que se constitui, para este trabalho, a sua razão de existir. O que se pretende descobrir aqui, portanto, não é uma cidade em seu sentido físico, a cidade cartografada pelos projetos urbanísticos; mas cidades invisíveis, percebidas como uma fantasmagoria que pode se manifestar de forma decisiva nos desejos, na memória, nos símbolos e no olhar dos sujeitos que a constituem. Cidades subjetivas. E para alcançar tal objetivo, procuramos trilhar as veredas deixadas por Edwar Castelo Branco que, ao tomar o espaço urbano como objeto de estudo, adotou uma noção de cidade segundo a qual ela não se oferece à leitura de forma evidente. “Uma leitura histórica das cidades pressupõe, do ponto de vista deste texto, prospectar sentidos, cavar significados lá onde eles se escondem. E comumente se escondem enroscados em palavras, pois é com elas que erigimos e mantemos as nossas cidades subjetivas” (CASTELO BRANCO, 2006: 2). Quanto aos sujeitos que serão analisados, aqueles que na virada dos anos sessenta e início dos setenta participaram do movimento tropicalista, eles surgiram no Brasil, numa época de intensas rupturas que não só alteraram a dinâmica de sua política, economia e cultura; como acabaram por colocar em questão a própria noção de sua identidade.