Jean Grenier (1898-1971)
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O filósofo e sua sombra: JEAN GRENIER (1898-1971) PATRICK CORNEAU Tradução de Beatriz Sidou Ler Jean Grenier é, em primeiro lugar, descobrir um tom, uma voz que só a ele pertence – leveza, pudor, discri- ção, recusa em insistir, um sentido atilado da lítotes, uma ironia sutil, uma série de características que às vezes ten- dem a dissimular a profundidade do pensamento e a verda- deira importância da obra. Jean Grenier escreveu muito – umas cinqüenta obras publicadas, cerca de trezentos arti- gos, apresentações, notas de leituras, monografias e críti- PATRICK CORNEAU cas de arte que apareceram em revistas (NRF, L’Oeil, XXème é doutor em Ciências da Informação e da Siècle, Preuves, La Nef), além de contribuições periódicas Comunicação e professor na Université de Bretagne em Combat e L’Express. Sud. Logo à primeira vista, impõe-se uma de X (1971), Les Îles tem um brilho parti- constatação: a pequena platéia atribuída a cular. É o primeiro (1933) e mais conheci- essa obra, que desconcerta por sua varieda- do de todos os livros de Grenier. Reeditado de, seu ecletismo, por seu não-conformis- muitas vezes (1947, 1959, 1977), ele exer- mo, sua recusa às modas. Grenier abordou ceu sobre muitos jovens e muitos autores – todos os gêneros literários: o ensaio, o ro- entre os quais, Albert Camus, que expres- mance, a poesia, a autobiografia, a crítica de sou sua dívida com o livro no prefácio da arte – mas de maneira original, inesperada, reedição de 1959 – uma influência ao mes- no limite de inúmeros gêneros. Assim, Les mo tempo decisiva e secreta, que não se Îles e Inspirations Méditerranéennes são en- contradisse com o tempo. Camus declarou saios, mas passam pela tangente de uma que Les Îles tem sobre muitos livros mais expressão lírica moderada. Le Choix, célebres (Les Nourritures Terrestres de L’Existence Malheureuse, Entretiens sur Gide, por exemplo) uma superioridade que le Bon Usage de la Liberté são ensaios fi- lhe assegura um futuro: “[…] podem ser losóficos em que a demonstração teórica relidas na maturidade sem que se deixe de chega a reter o alento da vida, a poesia do sentir aquela vibração do ser que pode de- cotidiano. Até mesmo Les Grèves, longa cidir uma vocação ou confirmá-la em sua narrativa romanesca, apresenta-se como exigência” (2). uma seqüência de ficções com aparência Reunindo ensaios publicados na NRF de lembranças. Filósofo de formação – e entre 1929 e 1932, esse livro fundamental filósofo reconhecido – ele só se sentia real- contém em germe todos os temas da obra mente livre com os artistas, os pintores em futura e principalmente a problemática do especial. Sua obra testemunha a recusa em pensamento do escritor: a bipolarização aceitar a separação entre as duas vias do entre o Humano e o Absoluto. Sem falar de conhecimento que são o pensamento e a esquema orientador, pelo menos encontra- intuição poética. O próprio texto de Grenier mos no surgimento da obra essa tensão (às desconcerta, incomoda. Essa atipicidade, vezes um dilaceramento) que orienta a essa maneira de expressar uma coisa por suas busca pela verdade de Jean Grenier. conseqüências ou por suas manifestações Antes de mais nada, Jean Grenier é al- indiretas tinham pouca chance de serem en- guém em busca da verdade; é exatamente tendidos pela maioria. Seu estilo, neste as- uma concepção da verdade que se esboça e pecto muito próximo da estética do Extre- se formula no Les Îles e nos textos que se- mo Oriente, explica por que sua obra, du- guiram – Inspirations Méditerranéennes e rante muito tempo, tenha sido mais lida no A Propos de l’Humain. Concepção não- Japão do que na França (1). Poucos meses dogmática, não-sistemática que se funda- antes de se suicidar, Mishima escreveu para menta na ambivalência, na multiplicidade Dominique Aury, então secretário de reda- ou mesmo no paradoxo. Para Grenier a ção da Nouvelle Revue Française: “Adoro verdade não está localizada num meio- retomar a leitura de meu livro preferido: termo, mas antes na tensão desses extre- Les Îles, de Jean Grenier”. mos apreendidos com intensidade: o Hu- 1“Les Îles em japonês chamou mano e o Absoluto, o Pensamento e a Exis- minha atenção por causa da capa, mas me alegro em saber tência, o Eterno e o Temporal, a Liberdade que, assim que publicado, o livro esgotou. Isto serve para e a Escolha, etc. confirmar que aquele povo, por LES ÎLES E A PROBLEMÁTICA DA Ainda encontramos continuamente nos mais que os sinólogos falem mal dele, é mais inteligente do que textos de Jean Grenier esse balanço dialético o nosso; de qualquer maneira, OBRA entre uma aspiração ao Divino, ao Absolu- mais aberto, o que talvez seja a mesma coisa…” (carta de to, ao Ser, ao que no homem não participa Etiemble a Grenier, 14 de maio de 1968). Entre as inúmeras obras publicadas da mudança (o “aquilo” dos hindus) e o 2 Extraído de uma homenagem enquanto Jean Grenier ainda vivia, desde a desejo de pensar mais próximo do humano transmitida pelo rádio por A. tese de doutorado sobre La Philosophie de e, sem se perder, afrontar a riqueza do real Camus depois da atribuição do Prix du Portique a Jean Grenier. Jules Lequier (1933) até Mémoires Intimes animado e inanimado – o que Grenier cha- 130 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 ma de “o mais próximo” – o sol, o mar, as que se empenhasse em amar o próximo na flores, os animais, um aperto de mão, um proximidade cheia de vida, na exigência do olhar. Enfim, conciliar espírito e coração, amor humilde, “aceitante” e caridoso. cumprir as maiores exigências espirituais nos limites da existência. Empuxado para lá e para cá entre as duas postulações do humano e do Absoluto, que não têm medi- O HUMANO SEGUNDO JEAN da comum entre si, Jean Grenier – na pri- meira edição do Îles – se recusa a escolher GRENIER uma em detrimento da outra. Por um lado, o livro ressalta a situação ontológica do ho- Sabemos que o humano não se deixa mem no mundo, as diferentes maneiras de definir. Sim, para definir o humano, alguns estar só (inicialmente, essa compilação autores se ativeram aos traços inferiores do deveria receber o título Les Solitudes) e, homem, a seus instintos mais baixos, sua por outro, a atração pelo vazio, mas sem se força brutal. Assim, os moralistas france- pronunciar. Se Jean Grenier quis juntar dois ses que, no século XVIII, unidos em um ensaios curtos à terceira edição de 1959, mesmo pessimismo, entraram em rivalida- sem dúvida é porque desejava mostrar que de no desprezo pela inanidade e pelo cará- durante esse longo lapso de tempo ocorrera ter heteróclito do eu. O homem é um fanto- uma evolução em seu pensamento. Nesses che e jogo de pulsões diversas – sociais ou dois ensaios ajuntados, a comunhão subs- individuais – que, o mais das vezes, são tituiu a solidão e a aspiração ao distante irracionais. Nessa linha, a abordagem deu lugar à aceitação do que “está perto”. kantiana, também ela totalmente negativa, insiste na finitude do homem: incapacida- Como Jean Grenier conseguiu encon- de do seu saber, de conclusão da sua ação, trar um ponto de equilíbrio que enfim per- incerteza da sua esperança. Para outros, mite uma coesão interna e talvez uma rela- como Nietzsche, o homem não é mais do tiva felicidade? Como, por meio da obra e que uma transição. Zaratustra repete o que ao longo dos anos, foi realizado o demora- ele afirma: o homem segue em direção ao do “trabalho subterrâneo” que apaga ou des- super-homem, o homem é algo que deve basta os sofrimentos dessa nostalgia mis- ser superado e a corrente ascendente da Vida turada com ternura (3) e desse sentimento é o trampolim em que ele está sempre que- de estranheza? Por fim, o que é “estar pró- brando seus ideais para criar novos. Em ximo”? Nietzsche, o profetismo do super-homem é Para responder a essas questões, tere- otimista. mos primeiro de abrir um parêntese. Ten- Para Grenier, essas duas concepções taremos determinar o que é “o humano” extremas se distanciam do humano. A po- para Jean Grenier. Depois, com o apoio dos sição intelectual e supra-humana de textos maiores – Les Îles, Inspirations Nietzsche é tão pouco humana quanto a Méditerranéennes (e, parcialmente, o im- força brutal. Para Grenier, é a manifesta- portante ensaio “Sagesse de Lourmarin”, ção da hybris dos gregos, daquele “excesso publicado em 1936 em Les Cahiers du Sud, nos espíritos que leva ao desmedido nos e neste ensaio retomado com o título atos e causa a perda do homem. Esse impe- “L’Herbe des Champs”), Entretiens sur le rialismo biológico contrasta com o comedi- Bon Usage de la Liberté, A Propos de mento que é o mérito supremo aos olhos l’Humain, Lexique, Les Grèves, Lettres dos Antigos e a pedra de toque das ações d’Égypte, L’Esprit du Tao, Entretiens avec humanas: nada de mais!” (4). Grenier des- Louis Foucher, Mémoires Intimes de X –, confia do poder contido nos extremos: para 3 É sua definição “pessoal” de examinaremos as fontes que alimentaram ele, o humano jamais ultrapassa as medi- saudade no Lexique, p. 50. e formaram seu pensamento, permitindo das e nada tem de “sobre-humano” ou “he- 4 Réflexions sur Quelques Écrivains, Gallimard, 1973, p. que Grenier viesse a propor um humanismo róico”. Ele se manifesta pelos sinais privi- 71. REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 131 legiados do homem que se dirige a outros homens – “o olhar, o sorriso, o aperto de O MEDITERRÂNEO mão” (5). Portanto, por meio de um gesto simples, banal dirá Grenier, mas tão difí- Como o demonstra o importante ensaio cil! Negligenciados ou esquecidos pelos ha- Inspirations Méditerranéennes, Grenier era bitantes dos países da Europa industrial, apaixonado pelos países mediterrâneos.