O filósofo e sua sombra: JEAN GRENIER (1898-1971)

PATRICK CORNEAU Tradução de Beatriz Sidou

Ler Jean Grenier é, em primeiro lugar, descobrir um

tom, uma voz que só a ele pertence – leveza, pudor, discri- ção, recusa em insistir, um sentido atilado da lítotes, uma

ironia sutil, uma série de características que às vezes ten-

dem a dissimular a profundidade do pensamento e a verda- deira importância da obra. Jean Grenier escreveu muito –

umas cinqüenta obras publicadas, cerca de trezentos arti- gos, apresentações, notas de leituras, monografias e críti- PATRICK CORNEAU cas de arte que apareceram em revistas (NRF, L’Oeil, XXème é doutor em Ciências da Informação e da Siècle, Preuves, La Nef), além de contribuições periódicas Comunicação e professor na Université de Bretagne em Combat e L’Express. Sud. Logo à primeira vista, impõe-se uma de X (1971), Les Îles tem um brilho parti- constatação: a pequena platéia atribuída a cular. É o primeiro (1933) e mais conheci- essa obra, que desconcerta por sua varieda- do de todos os livros de Grenier. Reeditado de, seu ecletismo, por seu não-conformis- muitas vezes (1947, 1959, 1977), ele exer- mo, sua recusa às modas. Grenier abordou ceu sobre muitos jovens e muitos autores – todos os gêneros literários: o ensaio, o ro- entre os quais, , que expres- mance, a poesia, a autobiografia, a crítica de sou sua dívida com o livro no prefácio da arte – mas de maneira original, inesperada, reedição de 1959 – uma influência ao mes- no limite de inúmeros gêneros. Assim, Les mo tempo decisiva e secreta, que não se Îles e Inspirations Méditerranéennes são en- contradisse com o tempo. Camus declarou saios, mas passam pela tangente de uma que Les Îles tem sobre muitos livros mais expressão lírica moderada. Le Choix, célebres (Les Nourritures Terrestres de L’Existence Malheureuse, Entretiens sur Gide, por exemplo) uma superioridade que le Bon Usage de la Liberté são ensaios fi- lhe assegura um futuro: “[…] podem ser losóficos em que a demonstração teórica relidas na maturidade sem que se deixe de chega a reter o alento da vida, a poesia do sentir aquela vibração do ser que pode de- cotidiano. Até mesmo Les Grèves, longa cidir uma vocação ou confirmá-la em sua narrativa romanesca, apresenta-se como exigência” (2). uma seqüência de ficções com aparência Reunindo ensaios publicados na NRF de lembranças. Filósofo de formação – e entre 1929 e 1932, esse livro fundamental filósofo reconhecido – ele só se sentia real- contém em germe todos os temas da obra mente livre com os artistas, os pintores em futura e principalmente a problemática do especial. Sua obra testemunha a recusa em pensamento do escritor: a bipolarização aceitar a separação entre as duas vias do entre o Humano e o Absoluto. Sem falar de conhecimento que são o pensamento e a esquema orientador, pelo menos encontra- intuição poética. O próprio texto de Grenier mos no surgimento da obra essa tensão (às desconcerta, incomoda. Essa atipicidade, vezes um dilaceramento) que orienta a essa maneira de expressar uma coisa por suas busca pela verdade de Jean Grenier. conseqüências ou por suas manifestações Antes de mais nada, Jean Grenier é al- indiretas tinham pouca chance de serem en- guém em busca da verdade; é exatamente tendidos pela maioria. Seu estilo, neste as- uma concepção da verdade que se esboça e pecto muito próximo da estética do Extre- se formula no Les Îles e nos textos que se- mo Oriente, explica por que sua obra, du- guiram – Inspirations Méditerranéennes e rante muito tempo, tenha sido mais lida no A Propos de l’Humain. Concepção não- Japão do que na França (1). Poucos meses dogmática, não-sistemática que se funda- antes de se suicidar, Mishima escreveu para menta na ambivalência, na multiplicidade Dominique Aury, então secretário de reda- ou mesmo no paradoxo. Para Grenier a ção da Nouvelle Revue Française: “Adoro verdade não está localizada num meio- retomar a leitura de meu livro preferido: termo, mas antes na tensão desses extre- Les Îles, de Jean Grenier”. mos apreendidos com intensidade: o Hu- 1“Les Îles em japonês chamou mano e o Absoluto, o Pensamento e a Exis- minha atenção por causa da capa, mas me alegro em saber tência, o Eterno e o Temporal, a Liberdade que, assim que publicado, o livro esgotou. Isto serve para e a Escolha, etc. confirmar que aquele povo, por LES ÎLES E A PROBLEMÁTICA DA Ainda encontramos continuamente nos mais que os sinólogos falem mal dele, é mais inteligente do que textos de Jean Grenier esse balanço dialético o nosso; de qualquer maneira, OBRA entre uma aspiração ao Divino, ao Absolu- mais aberto, o que talvez seja a mesma coisa…” (carta de to, ao Ser, ao que no homem não participa Etiemble a Grenier, 14 de maio de 1968). Entre as inúmeras obras publicadas da mudança (o “aquilo” dos hindus) e o 2 Extraído de uma homenagem enquanto Jean Grenier ainda vivia, desde a desejo de pensar mais próximo do humano transmitida pelo rádio por A. tese de doutorado sobre La Philosophie de e, sem se perder, afrontar a riqueza do real Camus depois da atribuição do Prix du Portique a Jean Grenier. Jules Lequier (1933) até Mémoires Intimes animado e inanimado – o que Grenier cha-

130 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 ma de “o mais próximo” – o sol, o mar, as que se empenhasse em amar o próximo na flores, os animais, um aperto de mão, um proximidade cheia de vida, na exigência do olhar. Enfim, conciliar espírito e coração, amor humilde, “aceitante” e caridoso. cumprir as maiores exigências espirituais nos limites da existência. Empuxado para lá e para cá entre as duas postulações do humano e do Absoluto, que não têm medi- O HUMANO SEGUNDO JEAN da comum entre si, Jean Grenier – na pri- meira edição do Îles – se recusa a escolher GRENIER uma em detrimento da outra. Por um lado, o livro ressalta a situação ontológica do ho- Sabemos que o humano não se deixa mem no mundo, as diferentes maneiras de definir. Sim, para definir o humano, alguns estar só (inicialmente, essa compilação autores se ativeram aos traços inferiores do deveria receber o título Les Solitudes) e, homem, a seus instintos mais baixos, sua por outro, a atração pelo vazio, mas sem se força brutal. Assim, os moralistas france- pronunciar. Se Jean Grenier quis juntar dois ses que, no século XVIII, unidos em um ensaios curtos à terceira edição de 1959, mesmo pessimismo, entraram em rivalida- sem dúvida é porque desejava mostrar que de no desprezo pela inanidade e pelo cará- durante esse longo lapso de tempo ocorrera ter heteróclito do eu. O homem é um fanto- uma evolução em seu pensamento. Nesses che e jogo de pulsões diversas – sociais ou dois ensaios ajuntados, a comunhão subs- individuais – que, o mais das vezes, são tituiu a solidão e a aspiração ao distante irracionais. Nessa linha, a abordagem deu lugar à aceitação do que “está perto”. kantiana, também ela totalmente negativa, insiste na finitude do homem: incapacida- Como Jean Grenier conseguiu encon- de do seu saber, de conclusão da sua ação, trar um ponto de equilíbrio que enfim per- incerteza da sua esperança. Para outros, mite uma coesão interna e talvez uma rela- como Nietzsche, o homem não é mais do tiva felicidade? Como, por meio da obra e que uma transição. Zaratustra repete o que ao longo dos anos, foi realizado o demora- ele afirma: o homem segue em direção ao do “trabalho subterrâneo” que apaga ou des- super-homem, o homem é algo que deve basta os sofrimentos dessa nostalgia mis- ser superado e a corrente ascendente da Vida turada com ternura (3) e desse sentimento é o trampolim em que ele está sempre que- de estranheza? Por fim, o que é “estar pró- brando seus ideais para criar novos. Em ximo”? Nietzsche, o profetismo do super-homem é Para responder a essas questões, tere- otimista. mos primeiro de abrir um parêntese. Ten- Para Grenier, essas duas concepções taremos determinar o que é “o humano” extremas se distanciam do humano. A po- para Jean Grenier. Depois, com o apoio dos sição intelectual e supra-humana de textos maiores – Les Îles, Inspirations Nietzsche é tão pouco humana quanto a Méditerranéennes (e, parcialmente, o im- força brutal. Para Grenier, é a manifesta- portante ensaio “Sagesse de Lourmarin”, ção da hybris dos gregos, daquele “excesso publicado em 1936 em Les Cahiers du Sud, nos espíritos que leva ao desmedido nos e neste ensaio retomado com o título atos e causa a perda do homem. Esse impe- “L’Herbe des Champs”), Entretiens sur le rialismo biológico contrasta com o comedi- Bon Usage de la Liberté, A Propos de mento que é o mérito supremo aos olhos l’Humain, Lexique, Les Grèves, Lettres dos Antigos e a pedra de toque das ações d’Égypte, L’Esprit du Tao, Entretiens avec humanas: nada de mais!” (4). Grenier des- Louis Foucher, Mémoires Intimes de X –, confia do poder contido nos extremos: para 3 É sua definição “pessoal” de examinaremos as fontes que alimentaram ele, o humano jamais ultrapassa as medi- saudade no Lexique, p. 50. e formaram seu pensamento, permitindo das e nada tem de “sobre-humano” ou “he- 4 Réflexions sur Quelques Écrivains, Gallimard, 1973, p. que Grenier viesse a propor um humanismo róico”. Ele se manifesta pelos sinais privi- 71.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 131 legiados do homem que se dirige a outros homens – “o olhar, o sorriso, o aperto de O MEDITERRÂNEO mão” (5). Portanto, por meio de um gesto simples, banal dirá Grenier, mas tão difí- Como o demonstra o importante ensaio cil! Negligenciados ou esquecidos pelos ha- Inspirations Méditerranéennes, Grenier era bitantes dos países da Europa industrial, apaixonado pelos países mediterrâneos. O que muito voltados para o futuro vivem mal Mediterrâneo foi sua terra de adoção. Nas- o presente, esses gestos ainda estão em uso cido em e instalado na Bretanha quan- nos países mediterrâneos. do tinha apenas dois anos, Grenier só des- “A sabedoria popular do Mediterrâ- cobriu o Mediterrâneo na primavera de neo pode renovar o homem”, acredita 1923. Ele já havia ido a Roma em 1921, Grenier. Sabe-se que a atitude desse ho- mas foi a Provence francesa que primeiro mem foi escolhida por Camus como res- lhe revelou, naquele mesmo ano, a caracte- posta em O Homem Revoltado (1951, rística especial das terras mediterrâneas. dedicado a Jean Grenier). Camus come- Naquele mesmo verão ele visitou Veneza çou pela revolta, e portanto pelo excesso, com Louis Guilloux (6) e em outubro em- e terminou encontrando a medida. Do barcou para a Algéria, onde assumiria um solitário que era, tornou-se solidário: A cargo de professor. Peste (1947) apareceu depois de O Es- Embora tendo vivido em Paris desde trangeiro (1942). À semelhança do mes- 1915, Grenier acreditava pertencer à Bre- tre, ele também foi atraído pelo Absolu- tanha. Foram as viagens empreendidas em to, pois a revolta – e Grenier viu isso muito 1923 que o arrancaram ao fascínio da terra bem – não é senão uma variante da busca “que, com suas charnecas isoladas e lân- pelo Absoluto. Grenier e Camus, de dis- guidas brumas, com tudo o que há de infor- tantes que eram, tornaram-se próximos; me e indefinido, sugeriu os sonhos vaporo- próximos principalmente no amor pelo sos de Chateaubriand, as oscilações inte- Mediterrâneo que os reuniu. lectuais de Renan, um equilíbrio instável Para Camus, aproximar-se era apenas do espírito, uma emoção sem contorno” (7). ater-se ao espírito mediterrâneo. Para ele Ao contrário, o mundo mediterrâneo lhe só existe um tipo de homem que pode opor- ofereceu de cara, e por contraste, uma afir- se ao “homem russo” e ao “homem atlân- mação da vida em seus aspectos físicos e, tico”: o “homem mediterrâneo”. O homem em seguida, um sentido do contorno e da dos limites por excelência, o homem do proporção. “Uma configuração sensível equilíbrio, da serenidade – “um extremo para o coração – este é o espírito mediter- bem temperado” – para quem a única feli- râneo. O espaço? É a curva de um ombro, cidade é a felicidade terrestre, e a única a oval de um rosto. O tempo? É a corrida de vida é a vida terrestre. Para Camus, homem um jovem de um extremo a outro da praia. do Mediterrâneo, essa sabedoria muito hu- A luz recorta seus traços e gera os números. mana se originava na terra que o criara. Tudo concorre para a glória do homem” Pregar o espírito mediterrâneo era voltar às (8). origens, à terra natal. Grenier deixou para trás a Bretanha, Se há um paralelo tentador a fazer entre rejeitando-a deliberadamente junto com as os dois autores, as coisas são menos sim- meditações metafísicas nele induzidas por ples para Grenier, pois o que alimentou e ela. O mundo não é mais este grande Todo 5 A Propos de l’Humain, formou remonta a fontes mais complexas, do qual o homem está separado pela cons- Gallimard, 1955, p. 194. ao mesmo tempo geográficas e espirituais. ciência, mas antes o único domínio da hu- 6 Cf. Louis Guilloux, Absent de Paris, Gallimard, 1952. Entre estas, é preciso contar à parte a manidade, no qual pode ser experimentada Bretanha e o Mediterrâneo, a terra de elei- 7 Inspirations Méditerranéennes, uma verdadeira “coincidência de mim p. 100. ção e adoção – o cristianismo e o Oriente mesmo com o homem” (9). 8 Ibidem, p. 88. taoísta. É preciso estudar cada uma dessas A isso se junta o elemento importante 9 Ibidem, p. 89. fontes. do que se poderia chamar de mística da

132 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 natureza com a experiência de êxtases nasce arquiteto… E a paisagem é uma cons- emocionalmente positivos dos quais “Jours trução” (14). Os verbos construir e criar Disparus” (10) oferece um exemplo. São são inseparáveis da concepção que tem experiências positivas de harmonia com o Grenier do humanismo mediterrâneo, mas Ser, que pontilham a vida e às quais Grenier eles devem ser compreendidos em correla- fará constantes referências em sua obra (11). ção à idéia de comedimento e não como a Essa afirmação triunfante pouco tem a ver manifestação da fartura do homem. Os tex- com as idéias de absorção ou de alerta fora tos e artigos dessa época insistem particu- do mundo ilusório inspiradas pela Bretanha. larmente na tradição grega do humanismo: Em “Les Îles Fortunées” a afirmação é “A herança helênica é o único universal”, “Ganhei” (12). Daí em diante, o indivíduo declara Jean Grenier. humano está no centro, e o momento, o O ensaio “Interiora Rerum”, escrito em instante, é tudo. Experiência de um tempo 1927, pouco depois de uma estadia em estagnado, de “música sem instrumento”, Atenas, é a melhor ilustração da acolhida de uma “harmonia com nada”; instantes de de Grenier à Grécia. A impressão domi- felicidade total, essas fulgurações serenas nante que nele permaneceu foi “esse tênue escondem a angústia, pelo menos por um ponto entre todos em que o espírito e o momento. Os povos mediterrâneos possu- coração estão paralisados, em que o amor em uma terra tranqüilizadora, porque rica à vida e a submissão ao destino se equili- das certezas que se chamam sol, mar, bele- bram de maneira a prevenir orgulho ou za dos corpos. humildade sem medidas” (15). A lição da Contudo, o humanismo é mais do que a Grécia antiga reside no equilíbrio entre uma intensidade de uma presença física. Com o aceitação da vida em sua profusão e seus tempo, a perfeição dos contornos pode ser contrastes e o que Grenier chama de mais sufocante do que tranqüilizante. “retitude”, uma ordem imposta pelo homem Grenier encontra no Mediterrâneo uma à vida. “Aí está o equilíbrio grego… quero outra qualidade: o sentido da proporção do dizer o equilíbrio humano, quero dizer o qual testemunham a dominação do homem nosso equilíbrio” (16). Depende da justa sobre a natureza e as obras de arte da Era de compreensão da situação do homem, da Ouro da Grécia. No capítulo “La Même relação que o liga à eternidade. O homem Lumière” (13), Grenier exalta a tradição não é desvalorizado nessa perspectiva, mas 10 Les Îles, Gallimard, Col. grega de “comedimento”, preservada, ape- claramente visto em suas limitações. No L’Imaginaire, 1977, pp. 145- 9. sar da extravagância de Roma, na arquite- homem grego, a consciência de sua finitude 11 Os “momentos privilegiados” tura romana da Provence francesa. O per- é a origem da ordem disciplinada cujo con- ou “instantes” são uma espé- cie de harmônica vital que se sonagem Cornelius recorre a essa tradição traste é tão notável em relação à imprecisão reencontra a cada livro, princi- grega em Inspirations Méditerranéennes da arquitetura e da escultura indiana. Para palmente em Les Grèves e Jacques – mas também em para combater a atitude aparentemente ne- os gregos “a vida humana não é realmente Inspirations Méditerranéennes, Voir Naples, Célébration du gativa de seu correspondente. Em resposta senão um emblema de algo eterno… no Miroir, Mémoires Intimes de X, à máxima “Tudo é equivalente: portanto, olhar humano se cruzam dois mundos” (17). Mes Candidatures à la Sorbonne. não façamos nada”, ele retruca: “Se tudo é E o homem está plenamente consciente 12 Les Îles, pp. 83-93. igual, por que não uma obra em vez de uma de apegar-se a esse ponto de interseção. 13 A Propos de l’Humain, contemplação?”. Referindo-se à arquitetu- Para os indianos essas fronteiras precisas Gallimard, 1955, pp. 155- ra de Atenas, diz que “esses edifícios… co- não existem, de modo que escultura e ar- 65. meçam por criar sua ordem e a vida tam- quitetura se fundem uma na outra. “São as 14 Em Inspirations Méditer- ranéennes, “Initiation à la bém lhes é dada a mais”. germinações da pedra, como esta, da natu- Provence”, pp. 93-4. O humanismo não é unicamente uma reza. Rochedos, baixos-relevos, estátuas, 15 Ibidem, “Penser à la Figure visão antropocêntrica do mundo, ele con- afrescos: um só bloco” (18). A humanida- Humaine,” p. 137. tém também um elemento criativo. Em de não tem lugar próprio nessa concepção 16 Ibidem, p. 125. “Cum Apparuerit”, Grenier proclama que do universo. Em lugar de uma tensão, é 17 Ibidem, pp. 129-30. em Provence “o homem se une ao homem uma continuidade. “Onde está a fragilida- 18 Ibidem, p. 130. apenas para fundar… Todo o mundo aqui de dos amores ameaçados?” (19). Parado- 19 Ibidem, p. 132.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 133 xalmente, a Grécia preserva esse sentido nenhuma dor: um fato cegante que a torna da fragilidade e da compaixão na incompa- inútil, um fato incômodo, brutal mas natu- rável firmeza de sua arte. Essa clareza, essa ral: o homem e a morte” (23). confiança falam tanto do que está ausente, subjacente e do que é desconhecido quanto O humanismo que Camus aprendeu de falam da realidade presente. Grenier exalta Grenier não estava separado de um verda- esse aspecto na atitude dos gregos diante deiro sentido da condição humana em que da morte: “Esses rostos meditativos e mei- a vida é afirmada ao mesmo tempo que a gos… nos aconselham a aceitar. Não pode- morte. Aparentemente a vida é apresenta- mos nos superar senão dentro de nossas da como valor único, mas está sempre e fronteiras… Que beleza há num olhar que desde já minada pelo fato irrefutável da sabe não se desviar do inevitável e que sabe morte. Daí o caráter ambíguo da luz medi- não insistir demais nisso” (20). terrânea. Se ela representa a plenitude da O apelo do humanismo mediterrâneo, vida, seu brilho implacável sublinha a fra- ilustrado de modo exemplar pela Grécia, gilidade e a finitude do homem fazendo-o não reside apenas em sua vitalidade criati- lembrar a incomensurável perfeição ina- va, mas também e particularmente na cons- cessível do Absoluto. Em “Les Îles ciência aguçada dos limites em que ela se Fortunées”, Grenier fala de uma “luz sem expressa. Este é o contexto em que devem esperança” que obriga o homem a buscar ser entendidas as afirmações de “Les Îles refúgio em diversas formas de religiões de Fortunées” e dos outros ensaios de Îles. caráter humanista: a alternativa seria su- Essas idéias serão retomadas no A Propos cumbir à vertigem do Absoluto ou adotar de l’Humain, quando Grenier proclama que uma atitude de indiferença, mas árida e “o humano reside em uma fissura” e que “o humano não tem o caráter da realização… O insucesso é a marca do humano”. Em Sur la Mort d’un Chien (21), ele fala da “mar- gem do humano”. O homem é mortal, limi- tado, incompleto, pois sua natureza é tão cruelmente amputada pela morte: “Todos os homens fracassam, mesmo os que ob- têm sucesso” (22). GRENIE A certeza da morte, a existência incerta do Absoluto subtendem o humanismo cons- trutivo da civilização mediterrânea em que os valores positivos repousam sobre um alicerce de desespero. Foi justamente esse “tremor que perpassa em Les Îles” que abalou tão fortemente o jovem Albert Camus, como testemunham essas notas de leitura enviadas a Grenier em uma carta de R 1933:

“Ilhas à deriva – e que muito desejariam fixar-se. Mais do que repousar sobre uma 20 Ibidem, pp. 134-6. unidade, todo o livro tende a ela… E como 21 Sur la Mort d’un Chien, este livro é desesperador: um nada. Nenhu-

Gallimard, 1957. ma coisa em que se possa descansar e mentir

22 A Propos de l’Humain, p. 197. para si mesmo – ‘nem fé, nem piedade, nem 23 Albert Camus – Jean Grenier, amor’… não, nem mesmo o orgulho. Uma JEAN Correspondance 1932-1960, Gallimard, 1981, pp. 13-4. preparação para o grande salto. Também

134 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 desumana – da qual sabe-se que necessaria- vezes pensar em uma intuição panteísta que mente termina em uma forma de suicídio tem sua origem na “Natureza”. Também por abstenção. Se essa alternativa é rebati- não se poderia considerar Grenier um mís- da, Grenier sugere que o melhor que se pode tico cristão pelo fato de ter estado sujeito a esperar é essa tentativa momentânea de intuições especiais que o transportavam “grandiosidade” em que o homem coinci- para fora do tempo e sem as quais ele mal de consigo mesmo: “Vivamos apenas para suportaria a temporalidade comum. Sabe- esses instantes em que está furada a frágil se que essas experiências não são neces- película que todos os dias nos esconde sariamente cristãs. Certamente o “eu” pro- nossos mistérios interiores. Do fundo des- fundo que elas revelam é sinônimo do sa desolação jorrará um canto” (24). Absoluto. Mas a que Deus este se identi- A vida humana é essencialmente uma fica? Para Grenier, o mais das vezes esse desolação, mas sobre esta podemos erguer Absoluto é mui simplesmente sinônimo algo de glorioso. Grenier não tem nenhu- de perfeição. É como um ponto para onde ma ilusão a respeito da fragilidade essen- tudo converge, mas não pode ser definido. cial da vida humana, mas está pronto – Não seria possível concluir nada em rela- quando ocorrem esses momentos fugidios ção a ele. de graça – a considerá-la provisória, ou Contudo, em sua obra póstuma, mesmo secundária. Assume o risco, por Mémoires Intimes de X, uma espécie de pouco que seja prolixo em relação a ela, de testamento espiritual, Grenier faz algumas ver seu caráter ilusório reaparecer então: confissões essenciais para a compreensão “Se me demoro no que é humano, tenho a do que foi sua atitude interior. Assim, po- infelicidade de ver o que mais me agradava demos ler que, malgrado a complexidade ir embora em pedaços” (25). do dogma cristão, Grenier continuava a crer – com nuances e reservas considerá- veis – na verdade do cristianismo. Embora aí se revele cristão, é com pru- O CRISTIANISMO dência e pudor infinito. Idealista, sua iro- nia natural o impede de ceder muito facil- Grenier é um discípulo dos Antigos; seus mente ao Absoluto que poderia ser apenas escritos, marcados pela inquietação metafí- um refúgio estético ou até mesmo indício sica, são acima de tudo poéticos e filosófi- de uma incapacidade disfarçada por um álibi cos. Embora procure na natureza um meio (27). Ele percebe muito bem como sua fé de união com o Absoluto, ele não consegue está enraizada num temperamento solitá- se afastar das formas e não consegue impe- rio e pessimista; Grenier demorou muito dir-se de desfrutá-las esteticamente; pois para se dar conta de que o cristianismo é 24 Inspirations Méditerranéennes, p. 70. ele se interessa demais pelo individual. Para uma “religião alegre” – quando só lhe ha- 25 Ibidem, p.102. ele, o divino mais parece uma aspiração do via sido mostrado a sua tristeza. Ainda que tenha declarado não se orgulhar muito de 26 “Minha natureza íntima não é que uma realidade (26). Camus, que o co- totalmente religiosa, o que não nheceu de muito perto, jamais o conside- ser católico (28), há nele um apego ao ca- exclui a aspiração à religião” (Mémoires Intimes de X, p. 64). rou um verdadeiro crente. tolicismo que depende do simples desejo R 27 Sobre essa questão, ver des- Seria preciso concluir que os sentimen- de permanecer fiel à fé de sua infância ou dobramentos semelhantes em tos de Grenier são mais poéticos, pagãos, à tradição francesa (29). O simplismo de Les Grèves (pp. 433 e segs.). panteístas do que cristãos? À leitura dos uma doutrina aperfeiçoada por todos e por 28 Etiemble conta que Grenier lhe dissera: “Eu sou católico. Mau escritos de juventude e das obras da pri- ninguém e a exagerada valorização de ritos católico. Católico por medo. o impedem de sentir-se à vontade – ele de- E excessivamente pessimista. meira maturidade, às vezes se é tentado a Você teria um excesso de oti- acreditar nisso. Com efeito, o Absoluto de sejaria encontrar no cristianismo vivido a mismo. No fundo, você conti- nua sendo um homem do sécu- que ele tanto fala permanece uma expres- sabedoria para uma transformação interior, lo da Luz” (Nouvelle Revue são vaga, que não pode ser identificada com mas este se mostra um sistema doutrinário Française, no 221). um Deus pessoal; não emana necessaria- e legalista. 29 E isso o aproxima de Descar- tes, que dizia ter “a religião de mente do “espírito” mas nos faz muitas Sendo a fé subjetiva e intuitiva mais do sua ama de leite”.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 135 que racional, não é possível comunicá-la, Quanto mais nos esforçamos, menos nem julgar sua profundeza e qualidade. conseguimos mudar radicalmente o eu pro- Grenier percebeu isso muito bem – ele gos- fundo; até certo ponto, cada um continua tava de citar a frase que Dostoievski pôs na sendo o que é. Assim, o narrador de Îles boca de Nicolas Stavroguine em Os Demô- desejava tornar-se indiferente como o gato nios: “Quando ele acredita, não acredita que observava a fim de conseguir unir-se que acredita, e quando não acredita, não ao Todo, mas não conseguiu deixar de se acredita que não acredita” (30). tornar próximo do animal de maneira hu- Justamente porque nele espírito crítico mana e cristã – a doença e a morte do gato e fé andam lado a lado, Grenier sempre o fizeram sofrer. sentiu que não tinha o direito de fazer qual- Se os problemas do sofrimento e da li- quer tipo de pressão para fazer alguém ar- berdade estavam no centro de sua angústia riscar sua fé. A idéia de proselitismo ou de fiel, o ceticismo jamais tocou Jean propaganda sempre lhe foi estranha: “[…] Grenier – mesmo que nesse ou naquele de eu até tinha horror a isso. Tentar fazer os seus escritos se possa reconhecer uma pon- outros compartilharem as idéias é uma ta de ceticismo à la Montaigne: “Eu acre- barbárie!” – o que vai muito bem com a ditava na verdade e que esta verdade valia humildade da fé, ainda que essa atitude seja que se dedicasse a vida a ela”. Nele a incer- antagônica em relação à dos “grandes au- teza e a dúvida nada têm a ver com um tores católicos”, então fiéis reflexos de uma ceticismo radical. Como já dissemos, é igreja poderosa. Além disso, o que retém precisamente a dúvida atuante do mestre Grenier na expressão de sua fé, afora sua que tocou o discípulo Camus, ao passo que prudência e discrição, é o onipresente risco a proclamação ou o ardor prosélito o deixa- de perversão da fé na ortodoxia. Em Essais vam indiferente. Se a modéstia é uma vo- sur l’Esprit d’Orthodoxie, publicado em cação do espírito, em Grenier ela é mani- 1938, Grenier insiste – para denunciá-lo – festa em sua posição sobre o problema da no valor de exclusão que é inerente à orto- escolha: ele não admitia a tese muito con- doxia. Ainda que o propósito da obra seja temporânea de que cada homem é absolu- mais político do que religioso, o que visa a tamente responsável por si mesmo. Ele crítica e os termos em que ela se aplica, achava esta uma postura de soberba – se identifica as duas realidades sob um con- somos realmente responsáveis por muitas ceito que originalmente pertence ao domí- coisas em nós e em nossa vida, também há nio religioso. muitas outras pelas quais não somos res- Não obstante, se tivéssemos de classifi- ponsáveis. Como pensava Camus, não pre- car Grenier entre os autores cristãos, por cisamos ser recompensados pela escolha educação e por temperamento, ele certamen- que podemos fazer por nós mesmos, se ela te estaria ligado à corrente que, desde Santo estiver de acordo com a nossa dignidade. Agostinho e passando por Pascal, enfatiza a Uma das originalidades de Grenier é que, consciência do trágico na condição huma- hoje, em vez de pronunciar em público a na. Aliás, é para escapar da angústia que é palavra justiça, ele certamente preferiria forçosamente seu corolário que Grenier sen- pronunciar a palavra “misericórdia” ou tiu-se em parte atraído pelas religiões orien- “bondade”… Assim, é inútil insistir na tais que lhe pareciam mais de acordo com compaixão do narrador em relação ao açou- 30 Frase citada em epígrafe de Mémoires Intimes de X. sua própria compleição. Contudo, ele não gueiro condenado pela doença de “L’Île de 31 Cf. Mémoires Intimes de X, p. deixava de enxergar a dificuldade de tal em- Pâques” (32), esse homem que representa 120 : “Não me espanto tanto por aspirar à quietude e profes- presa: “Não me espanto mais tanto por aspi- a humanidade infeliz e que é ao mesmo sar o quietismo, eu que sou o rar à quietude e professar o quietismo – eu, tempo seu alter ego. À sua maneira, este último a poder adquirir a cal- ma. Nossas opiniões muitas que sou o último a conseguir adquirir o sos- ensaio propõe a questão fundamental: como vezes não são senão o reflexo sego. Nossas opiniões freqüentemente são conciliar o bem e a felicidade? E Les Îles de nossas esperanças e não de nossa conduta”. reflexo de nossas esperanças e não de nosso em seu conjunto apresenta um bom exem- 32 Les Îles, pp. 97-109. comportamento” (31). plo dessa dolorosa relação entre a verdade

136 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 e o trágico da vida. Grenier tem para isso afastar-se da influência da Bretanha que, uma resposta tardia. Ao contrário dos ao contrário, simboliza a indeterminação, dogmatismos, ela vai ao encontro do Tao, a evasão, o sentimento do infinito. do Zen e, no final das contas, do Evange- É também uma das razões pelas quais, lho; ou melhor, não há resposta, mas um ao contrário de Camus, cuja admiração ia convite à vigilância permanente: somente até a civilização da Grécia e que jamais mostrou interesse por aquelas cuja “Quem não está feliz não pode ser miseri- característica é o desapego à vida, perma- cordioso. Levei muito tempo para compre- neceu sempre vivo o interesse de Grenier ender e só compreendi isso nos últimos pela civilizações do Leste que, desdenhan- anos: quem deseja ser bom deve começar do razão e ação, tomam o Absoluto como por trabalhar em prol de sua própria felici- único fim. dade e não esforçar-se por meio de um tra- Depois da Índia, descoberta aos 17 anos balho ingrato sempre questionado para rea- através da leitura de Schopenhauer e do lizar a felicidade dos outros” (33). estudo do sânscrito (34), sua atenção se volta para a China. Sabe-se que em 1959 ele publicou L’Esprit du Tao (35), uma antologia comentada que, no dizer dos es- A TENTAÇÃO DO ORIENTE: pecialistas, é uma das melhores, talvez a melhor de todas. O TAOÍSMO À medida que se familiarizava mais com a sabedoria oriental, especialmente com o Herdeiro da Grécia e de Roma, o cristia- Tao, Grenier percebia as ligações ocultas nismo parece distinguir-se das religiões que unem o humano e o Absoluto, esses dois orientais pela importância que atribui ao domínios que lhe haviam parecido inconci- indivíduo. Contudo, ambas – tanto a civi- liáveis. Sabemos que o Tao ensina o wou lização grega como a civilização cristã – wei, que significa menos a inação do que a rejeitam o sobre-humano. Segundo as duas, ação desinteressada: ao contrário da con- o homem não vale pela “extensão de seu cepção ocidental – ou seja, baseada na aqui- ser, mas por seu aprofundamento”; portan- sição de bens mundanos e na ambição –, a to, que o homem reconheça sua própria ação se torna uma espécie de mediadora fragilidade, que aceite seu destino, que seja entre o humano e o Absoluto. comedido, que tenha pudor – enfim, quali- Por outro lado, o sábio taoísta é ao dades puramente humanas – e esta será a mesmo tempo filósofo e santo; situa-se por- maneira de ser verdadeiramente homem. tanto entre o humano e o Absoluto. O Tao Já indicamos que a concepção do hu- não define o Absoluto. É uma religião sem mano é a mesma em Grenier e em Camus, metafísica, sem esperança, que ignora a sendo para os dois sinônimo de medida, de noção do pecado. No entanto, indica o ca- simplicidade fraternal, de circunspeção. minho para ter acesso a esse Absoluto por Todavia, o valor que lhe atribuem difere meio de algumas sugestões. Eis algumas: em um e outro. A Peste é um apelo à soli- 1. A natureza é boa em seu princípio dariedade humana para combater o mal. original. Deve-se confiar nela. Por “natu- Graças aos “homens” a cidade é salva; não reza”, é preciso compreender a espontanei- 33 Mémoires Intimes de X, p. 85. há nada mais além do plano humano que, dade, não a selvageria. 34 Jean Grenier resolveu estudar o sânscrito entre 1923 e 1924. para Camus, constitui um fim. Em com- 2. Nada de revolta. Não se deve imitar Traduziu “O Cântico do Ladrão de Amor”, do poeta Bilhana. pensação, para Grenier, o humano não é a natureza no que ela tem de episódico e de Esse trabalho foi publicado em senão meio, mediação; para ele o fim ver- acidental (tempestades, destruições), mas 1945 na revista do Cahiers du Sud, sob o pseudônimo dadeiro é o Absoluto. Assim, apesar da em suas constantes. Em primeiro lugar, uma Joseph Grimaldi. admiração que sente por sua terra de ado- filosofia desse tipo poderia fazer acreditar 35 Publicado pela Flammarion, co- ção, o Mediterrâneo, símbolo da exatidão na sabedoria popular que louva mediocri- leção Homo sapiens; reeditado em 1973 na cole- (Akrivie, em grego), ele jamais conseguiu dade; contudo, é também a “metriopatia” ção Champs, de bolso.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 137 greco-romana, essa constância que permi- mento da síntese significativa). te ao sábio – seja ele epicurista, estóico ou Como se vê, as qualidades sobre as quais cético – permanecer igual a si mesmo nas o Tao atrai a atenção, constituindo o “ca- situações mais antagônicas. Ela expressa a minho” (a “via”, segundo Lao Tsé) em di- desconfiança do homem diante do reção ao Absoluto, são qualidades eminen- desequilíbrio e das desordens que podem temente humanas. Elas evidenciam a fra- criar os extremos. queza do homem em relação ao divino. 3. Não devemos confiar em nossas pró- Desde então, daí se conclui que o homem prias forças – as forças que não consumi- mais humano é também o homem mais mos mas que acumulamos são uma fonte próximo do divino. Por outro lado, daí se de confiança e energia. Se é preciso exage- destaca o fato de que o humano e o Abso- rar, que o homem o faça no sentido do menor luto, longe de constituírem extremos, são e não no sentido do maior. O sábio sabe domínios muito próximos um do outro; que esconder seu próprio valor; sem procurar a busca do Absoluto leva ao humano e, in- consumir a vida em desejos estéreis, ele versamente, o aprofundamento do humano viverá de boa vontade na obscuridade e não conduz ao divino. Assim Grenier pode es- terá a pretensão de renovar o mundo. Aí se crever em A Propos de l’Humain que “São reconhece o homem da “vida secreta” das Francisco desceu tanto no humano, que “Îles de Kerguelen” (36) para quem falar terminou tocando o divino” (37). Para che- de si, participar da comédia social, é trair o gar a um de seus domínios, não é preciso que a pessoa tem de mais precioso. perder o outro de vista. Por sua vez, os 4. Mais vale ser passivo do que ser ati- deuses têm necessidade do humano: vo. A paz se obtém por meio do abandono Angelus Silesius sempre repete em seus ao movimento do mundo. Não alcançar dísticos que o divino não pode passar sem senão aquele que sabe tomar seu partido o humano. Se castigam os que desejam nesse movimento e não teima em desejar igualar-se a eles, os deuses se permitem que ele pare. Não obstante, abandonar-se à descer à terra e misturar-se aos homens. corrente que nos leva não é tão fácil como Jesus é apenas um exemplo; na Índia, as se acredita habitualmente – ao contrário, reencarnações são realidades cotidianas. isso exige um aprendizado muito demora- Como todas as religiões orientais, o Tao do: o nadador pouco a pouco aprende a ter difere do cristianismo concebido pela teolo- confiança na água que o carrega. gia positiva de observância aristotélica que 5. É sempre necessário ter em vista a considera Deus ora “razão suprema”, que unidade. Para isso, é preciso aprender a tor- basta para explicar o mundo fenomenal, ora nar-se “indiferente”. Como já indicamos, a “amor infinito”, que salva a alma individu- indiferença gratuita e total pode levar à de- al. Em compensação, o Tao, que não com- mência. Por tradição, o ocidental é racio- porta explicações e não é uma religião de nalista e sua indiferença, se existe, é orien- salvação, oferece analogias com a teologia tada em vista de algo ou, antes, alguém. Ele negativa (como aliás com o platonismo e o tem de aprender a experimentar um desa- neoplatonismo), a qual não define Deus se pego gratuito, sem premeditação (nos cris- não for negativamente sob o modo apofático. tãos, o pensamento subjacente é a esperan- Assim, Denis, o Aeropagita, definia o obje- ça da vida futura), sem o que terminará por to de sua aspiração dizendo que ao mesmo não ver mais a Unidade. O sentido da Uni- tempo está no homem e fora do homem e dade é exatamente o que mais falta em que constitui a Unidade dos contrários (a nossa época, seja no domínio moral (não coincidentia oppositorum). é porque se negligencia as distâncias con- Por outro lado, muitos pontos da sabe- sigo e com os outros, que há verdadeira doria do Tao lembram tanto os preceitos do comunhão entre os humanos), metafísica cristianismo como a sabedoria antiga: muito 36 Les Îles, pp. 67-79. (perda de contato com o Cosmo) ou literá- próxima do taoísmo é a atitude do cético 37 A Propos de l’Humain, p. 20. ria (análises sutis, mas estéreis em detri- grego, cuja regra de ouro é a indiferença, e

138 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 a do Cínico, sem outra ambição a não ser humano corre o risco de se perder no Oci- viver sem consciência e sem razão. Contu- dente, é porque este não tem mais o sentido do, nesses dois tipos de homens há uma do divino: “Se não se admite uma revela- propensão ao raciocínio e ao debate, como ção sobrenatural, ou uma intuição do Ab- em todos os gregos, que os distancia dos soluto, recai-se em um positivismo medío- grandes sábios taoístas. cre” (39). O que se conclui disso? Deve-se tomar O Oriente poderia nos ajudar a redes- ao pé da letra a frase já citada de “Îles cobri-lo. “Jours Disparus”, o penúltimo en- Borromées” – “por que viajar, se as monta- saio de Îles, só pôde ser escrito depois do nhas sucedem as montanhas e os desertos contato com as civilizações orientais – em seguem os desertos”? Dizer que, como não outras palavras, somente depois de haver foi dado ao homem a posse da verdade, o conhecido o que está longe é que o narrador Oriente não a possui mais do que o Ociden- termina por se encontrar à vontade no que te; já que, por outro lado, muitos valores da está próximo. A viagem, seja ela verdadei- sabedoria oriental também estão no Oci- ra ou imaginária, não é inútil, é um desvio dente, por que então ir tão longe? necessário. O fato de Grenier haver dedicado muito Isso não quer dizer que o ocidental deva tempo ao estudo das civilizações orientais aceitar a priori a civilização oriental. As prova que esse contato lhe era necessário. forças irracionais que são a sua marca po- Inúmeras vezes exprimiu o gosto que tinha dem ser perigosas. O contato com uma ci- por essas civilizações. Aliás, ele escreveu vilização mais antiga bem pode despertar que “ler ou estudar não está tão longe de alguma coisa oculta em nós e assim torná- acreditar, ser convencido. Todo conheci- la visível; é como um lugar escuro que de mento contém uma fé em germe” (38). repente se iluminasse ou como um germe Nelas, encontrou algo que lhe parecia fal- que começasse a brotar. Observamos que o tar no Ocidente. Realmente, se entre as duas que procuramos fora de nós está em nós, civilizações existem pontos em comum, a em nossa própria “ilha”. O ocidental não maneira de abordar os problemas é dife- pode renegar impunemente uma tradição rente. Todos os valores emanam de um milenar baseada na razão e na vontade. “Não princípio único, mas ao aparecer no tempo se pode, à vontade, deixar uma tradição histórico, transformam-se a ponto de se tor- secular em que se foi criado para adotar narem irreconhecíveis. O ponto de interse- uma outra, completamente estranha. Tanto ção em que se cruzam o divino e o humano mais que, em um certo grau de profundeza, é difícil de manter; ora nos inclinamos por nossas raízes podem juntar-se a outras um lado, ora pelo outro, e o equilíbrio é raízes” (40). perdido. Para restabelecê-lo, é preciso Em compensação, podemos encontrar no mergulhar nas fontes, retornar ao passado. Oriente a inspiração necessária para desco- Se o contato com a Antigüidade greco-ro- brir em nós mesmos uma força de renova- mana nos é necessário, é porque nossos ção. Grenier escreveu: “Os grandes homens valores ali se encontram em um estado mais do Ocidente, aqueles depois dos quais não puro. Sendo mais antiga, a civilização ori- mais se viveu como se vivia, os que criaram ental constitui uma fonte ainda mais pura. alguma coisa, não negaram seu passado: eles Por isso, um contato com ela regenera e o transformaram” (41). E também: “Quem renova. A civilização ocidental, por demais diz que o homem não pode mudar? Ele pas- voltada para o homem, tem necessidade do sou seu tempo mudando…” (42). 38 Lettres d’Egypte, Gallimard, divino e do sagrado que caracterizam as Essa imersão numa civilização mais 1950, p. 112. 39 Entretiens avec Louis Foucher, civilizações orientais para que o homem, antiga não é um passo atrás, mas uma to- Gallimard, 1970, p. 74. assediado pela miragem do super-homem, mada de consciência das verdadeiras pos- 40 Ibidem, p. 74. não deixe de simplesmente ser homem, e sibilidades, para se atirar para a frente e 41 Inspirations Méditerranéennes, para que o humano não se desfigure nem se formar o futuro, assim como a iluminação p. 108. transforme em desumano ou barbárie. Se o é uma tomada de consciência com o eu 42 Les Îles, p. 140.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 139 profundo. Grenier não acredita no devenir go dos escritos posteriores. O pensamento histórico tal como este é concebido na de Jean Grenier é um pensamento que se dialética de Hegel, um processo que vai em procura, que procede por sucessivas corre- direção ao desabrochar do Saber absoluto. ções e aproximações (43) e acima de tudo Em compensação, ele acredita na volta receia a definição, o fechamento, a fixidez constante das coisas, as quais no entanto se que as palavras geram. Grenier temia o gelo produzem sob uma outra forma. Sem a de um pensamento que se solidifica em for- menor dúvida, é nesse sentido que mas duras e definitivas – mortas. Para isso, Nietzsche entendia o mito do eterno retor- não deixa de retomar os temas e problemas no, que não hesitou em profetizar, embora fundadores, tornando-os complexos. Essa admitindo o futuro histórico sob a forma de retomada poderia ser definida como apro- marcha sempre ascendente e triunfante da fundamento e recomeço das relações que o vida, onde o homem não passa de uma tran- escritor mantém com o mundo. A retomada sição. Duas concepções que a uma primei- se opõe à idéia de progresso que, aos olhos ra vista parecem contraditórias. de Grenier, é a maior ilusão de nossa época (44). No plano geral da obra, Les Grèves pode ser considerado a retomada de Jacques; Inspirations Méditerranéennes pode ser tido POR UM HUMANISMO DA como retomada de Les Îles, assim como L’Existence Malheureuse em muitos aspec- ACEITAÇÃO tos se apresenta como retomada da sua tese de doutorado sobre Jules Lequier. O pensamento de Grenier não pode ser No plano temático, o Mediterrâneo é a separado de sua vida nem de seus escritos. retomada da Bretanha, a amizade das coi- Estes oferecem o exemplo de uma aliança sas é a retomada da amizade dos homens. excepcional entre um pensamento rigoro- Em uma outra perspectiva, a crítica de arte so e profundo e uma elegância de expres- retoma e explora os temas do curso de es- são que sabe filtrar e reter a intensidade da tética. Não é significativo que o último tex- experiência vivida. Jean Grenier pertence to escrito por Jean Grenier seja uma medi- a essa linhagem de pensadores que sabem tação sobre “A Escada” (45) – concebida permanecer homens no meio de sua filoso- como metáfora do trabalho do escritor? O fia, o que significa um estilo de existência escritor continua a usar a escada, ele a tem filosófica particular – de tendência não-sis- em seu espírito. Ele sobe e desce, volta a temática, não-dogmática. A marca princi- subir e a descer, caprichoso, inquieto, me- pal desse pensamento – que se manifesta lancólico e desencantado – tem sempre a por inteiro desde Les Îles – é ignorar a cer- consciência de haver esquecido algo, de teza do pensamento instalado em um siste- que não existem os patamares, nem as par- ma rígido e tranqüilizador, mas antes de tidas nem os cumes de chegada. aceitar e assumir o risco de uma busca pro- Procuremos retomar e resumir esse gressiva, insatisfeita, dedicada senão à in- andamento em “espiral” à luz de nossas terminável odisséia da procura pelo menos análises. do repouso difícil, aleatório. De início, nada é evidente. No começo A principal característica dos primei- reina a contingência. Esta é a revelação es- ros escritos de Grenier é a de fundamenta- sencial do primeiro ensaio de Îles. “L’Attrait

43 Por exemplo, em Les Îles: “Tudo rem-se numa tensão frutífera e dinâmica – du Vide”, o mais importante do conjunto, o que acabo de dizer só é exa- que Paulhan estava pronto a chamar de “dia- pois os sentimentos de distanciamento, de to em parte…” (p. 77). lética” – entre certo número de temas ou de vazio, de uma falta essencial informam toda 44 Cf. “Remarques sur l’Idée de Progrès”, in Essai sur l’Esprit níveis cujo Humano e Absoluto constitu- a meditação de Jean Grenier. Essas d’Orthodoxie, Gallimard, col. em os pólos orientadores. Essa problemá- “monições” que são a revelação da vaidade Idées, 1967, pp. 154-67. tica, exposta a partir de Les Îles, será reto- e da vacuidade do mundo fazem-no apre- 45 Publicado na NRF n o 221, maio de 1977, pp. 46-58. mada, desenvolvida e aprofundada ao lon- ender a existência de algo que nos ultrapas-

140 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 sa, a presença de um Absoluto. Absoluto Então, escolher o quê? Os valores são aliás completamente negativo, que mal se relativos e, além disso, se igualam e se anu- desenha, “se esconde e se movimenta por lam diante do superlativo, do Absoluto. trás da tapeçaria do mundo” e só se mani- “Para mim a escolha é impossível, porque festa “por uma ausência que é mais atuante não se pode querer senão o perfeito. E sen- do que as presenças, como numa noitada do este inacessível, é melhor não querer em que o dono da casa está ausente” (46). nada” (48), declara Grenier. A tomada de Essa ausência leva o clima de inadequa- consciência dessa inutilidade da avaliação ção ao paroxismo. A sensação de distan- implica a absoluta submissão à proposição ciamento traz consigo a idéia de que o do instante (49) que, segundo Grenier, é o mundo foi atingido de nulidade pelo espí- mais alto grau de liberdade e talvez o mais rito, que não consegue deixar de sofrer com rematado ideal de “sabedoria”. Preocupa- isso e que não pode mais impedir-se de do em assegurar-se de que um modelo como julgá-lo. Diante de um Absoluto, as coisas esse de sábio não teria permanecido pura- mais diferentes perdem sua diferença, tor- mente ideal, mas com efeito produzira adep- nam-se “não-diferentes”. Ao espetáculo tos no passar do tempo, Grenier dedicou-se dessa uniformidade, o homem volta para a apontar os exemplos vividos: os estóicos, dentro de si mesmo, descobre que seus pró- os céticos, os cínicos e, mais perto de nós, prios pensamentos não apresentam entre si os escolásticos e os quietistas – mas foi uma verdadeira diversidade e, por sua vez principalmente nas doutrinas orientais, in- – esta é uma forma de sabedoria –, torna-se dianas e chinesas, que encontrou exemplos completamente indiferente. Na ausência de perfeitos desses sábios. No que lhe diz res- Deus, qualquer elaboração dos valores é peito pessoalmente, parece que Grenier não irrisória. No mundo das “existências,” nada conseguiu se manter nessa posição indife- importa, pois o Ser não está nele. Parece- rentista – ela depende de um ideal para o nos que essa indiferença, total e definitiva, qual ele tende mais por temperamento do não é senão a transposição, para o plano que por convicção. Continua para ele como metafísico, da atitude do Amante abando- uma miragem: ele a cobiça, aproxima-se nado, como sugere esse trecho de “Îles dela e depois, como sentindo-se desenco- Borromées”, último ensaio de Îles: “As rajado ou enganado, pára, volta atrás, montanhas sucedem às montanhas, as pla- deliberadamente, e não sem sofrer. Se le- nícies às planícies e os desertos aos deser- varmos em conta os dois últimos ensaios tos. Eu jamais terminaria com isso e jamais de Îles, parece-lhe que devemos ser menos encontraria minha Dulcinéia” (47). exclusivos no amor pelo Absoluto e olhar Nesse plano, o Ser amado tornou-se o humildemente em volta: “É preciso dizer Amor essencial, o Absoluto, Deus. O in- adeus ao mais distante, tenho de buscar diferente é o amante de Deus, mas de um refúgio no mais próximo”. Deus transcendente, do qual está funda- É incompreensível que existam graus mentalmente separado. Como todo pen- entre um Absoluto e um Relativo. Contu- samento que se fundamenta nessa ausên- do, parece que existem. Daí essa busca 46 Entretiens sur le Bon Usage de la Liberté, Gallimard, col. cia, ele termina em considerações sobre a apaixonada pelo humano que se manifesta Idées, 1982, p. 109. solidão do homem. O “Eu” está só, eu nesses dois últimos textos cuja temática será 47 Les Îles, p. 155. morro só – parece repetir infatigavelmen- retomada e amplificada em A Propos de 48 Lexique, p. 26. te o homem de Îles, esta é a verdadeira l’Humain. 49 Por meio da experiência da in- realidade do humano e, certamente, sua Grenier tenta chegar a esse “humano” tensidade do instante, Jean Grenier descobre a eternida- grandeza. A solidão do homem, seu aban- pela mediação da natureza e especialmente de e a totalidade, como em dono, o remetem ao problema fundamen- dos animais, “nossos irmãos, os animais”, eco distante a esta frase de Santo Agostinho: “A eternida- tal de sua liberdade. Estamos abandona- como diz Freud (50). Como se, não dese- de não é nada mais do que a dos, portanto livres e sós diante de nossas jando renunciar a seu juramento de voltar posse inteira de si mesmo num único e mesmo instante”. escolhas. Essas escolhas são imperiosas e as costas ao humano, ele voltasse o olhar na 50 Cf. Malaise dans la temos de resolvê-las. direção dos animais que carregam sobre si Civilisation.

REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002 141 cheiros de homens. “Le Chat Mouloud” nos ximo de uma ausência total do mundo e do apresenta um Grenier singularmente mais homem, parece que essa vereda se afasta próximo da devoção e da compaixão do do território humano, enquanto ela não faz que da indiferença. A necessidade de ter- senão aproximar-se dele. Se o caminho pa- nura pelo próximo – pensemos na delicada rece longo, é porque a simplicidade é difí- solicitude do narrador para com o açou- cil e a lucidez exigida é de uma qualidade gueiro que morria de “L’Île de Pâques” –, ainda mais rara. Não se trata apenas de comprimido por essa metafísica do Abso- medir, não se trata apenas de desenhar es- luto, termina por estourar, por baixo, como quemas do mundo – não há receitas para se válvulas de segurança não deixassem esse realizar o homem. E, principalmente, a inte- culto pelo Absoluto desencaminhar-se além ligência sob sua forma discursiva não é su- de certo limite aceitável. E isso dá lugar a ficiente, não se trata apenas de “conhecer”. súbitos clarões, a cores, a toques infinita- Como então pretender conhecer por exem- mente sutis e tênues, mas que bastam para plo o Bem e o Mal como o Tentador sugere tornar a obra de Jean Grenier mais próxima a sua criatura, enquanto o próprio Deus não da obra de um poeta terno e de um artista conhece nada, mas cria tudo? O poder de delicado do que a de um metafísico do Ab- Deus é a cada instante realizar uma pleni- soluto (não estivesse ele apaixonado pela tude, sem buscar conhecer esse desejo que Índia e pelo Tao), pois a indiferença pode é o mal. Portanto, não é preciso conhecer o dar lugar ao Amor: “Nas cidades como mal, viver é participar dessa criação pura e Toledo, Siena, por muito tempo contem- contínua – que, a cada momento, reafirma a plei as janelas engradadas, os pátios interi- verdade do sensível – e não procurar dese- ores onde correm as fontes ao longo dessas maranhar o pensamento do divino e distin- muralhas cegas como se tivessem de me guir entre o bem e o mal. Esse é o proce- ensinar alguma coisa. O que há por trás dimento de Jean Grenier, um pensamento desses obstáculos sempre ali presentes, incoativo, espelho espiritual (52) perfeita- desse mistério sempre suspeitado, que nome mente liso, refletindo a multiplicidade das dar a tudo isso, senão o de Amor?” (51). existências singulares e a propensão das coisas em sua pluralidade irredutível. • • • Depois de o haver empregado até as fronteiras da poesia, para o homem, Jean 51 Les Îles, p. 84. Ao seguir Jean Grenier em seu estreito Grenier pede, com Hölderlin, ainda um 52 “O Sábio usa o seu espírito caminho, cotejando o absurdo, o abando- pouco de amor: “Aquele que pensou o mais como um espelho,” escreveu Tchuang-tse. no, a solidão e o silêncio, às vezes tão pró- profundo, ama o mais vivo”.

Jean Grenier nasceu em Paris em 1898. Passou sua juventude em Saint-Brieuc, onde fez amizade com Max Jacob e Louis Guilloux. Foi professor em Alger, no Instituto Francês de Nápoles, na Faculdade de Letras de Lille, nas universidades de Alexandria e Cairo, e, por último, na Sorbonne, onde ocupou a cátedra de estética. Em 1968 recebeu o Grand Prix National des Lettres. Colaborou em inúmeras revistas de arte e literatura, entre as quais a Nouvelle Revue Française. Morreu em 1971.

142 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 129-142, setembro/novembro 2002