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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Luís Fernando dos Reis Pereira

OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS: permanência e movimento nos gibis de super-heróis e na série

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Luís Fernando dos Reis Pereira

OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS: permanência e movimento nos gibis de super-heróis e na série Sandman

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro.

São Paulo 2010 4

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Amálio Pinheiro, pela orientação e confiança; aos colegas do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem;

a Paulo Pereira e Sergio Betarello, pelas colaborações;

e ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida.

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Somos feitos do mesmo material dos sonhos, e nossa pequena vida é rodeada pelo sono.

William Shakespeare, A tempestade, Ato 4, Cena 1.

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PEREIRA, Luís Fernando dos Reis. Os Perpétuos e os Incompletos: permanência e movimento nos gibis de super-heróis e na série Sandman. 2010. 303 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO. A tese analisa as narrativas ficcionais da série de revistas em quadrinhos Sandman, do autor britânico , publicadas originalmente nos EUA pela editora estadunidense DC Comics e no Brasil, a princípio, pela editora Globo, entre 1989 e 1996, a partir da tradução e apropriação de elementos provenientes de diferentes contextos culturais para as construções da narrativa, com o objetivo de demonstrar que Sandman apresenta maior tendência à mobilidade e à articulação do que os gibis de super-heróis, que geralmente enfatizam as estruturas de permanência e isolamento. Em nosso trajeto, investigamos como o princípio de identidade, desenvolvido por determinados núcleos do pensamento ocidental, é aproveitado, assim como características distintas, de outros contextos culturais, colocando em jogo conceitos como centralidade/descentralidade, realidade/ficção, estabilidade/instabilidade, etc. Para fundamentar nosso percurso, recorremos às teorias sobre processos e sistemas semióticos da cultura, explorando e articulando estudos de Iuri Lotman, Severo Sarduy, Amálio Pinheiro, Jésus Martín-Barbero e Edgar Morin, enquanto as teorias de Scott McCloud e Will Eisner embasaram o estudo da linguagem recente e ainda em formação da mídia “quadrinhos” em conjunto com as teorias do romance e da carnavalização de gêneros de Bakhtin, dando suporte aos aspectos da linguagem narrativa da série analisada. Sandman, composta por 75 edições e algumas publicações especiais, combina aspectos dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses, mitologia, cultura pop, literatura, religiosidade, paganismo, magia, fantasia, horror gótico, fatos históricos, referências filosóficas, elementos da epopeia clássica e do folclore para contar a história de Sonho, também chamado Oneiros, Morpheus, Tecedor de Formas, etc., soberano do Sonhar, e suas complexas relações com a humanidade e outros seres, entre eles seus irmãos Destino, Morte, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio; os deuses modernos e os que já foram esquecidos; suas amantes mortais e imortais; Lúcifer e seus demônios e mesmo os anjos. Na periferia de tal trama em mosaico, pervertendo os elementos épicos clássicos, há resquícios do drama de um herói “ausente”, inacabado e absurdo, incapaz de permanecer igual a si mesmo e que insiste em habitar vários aspectos fronteiriços: ilhas entre a realidade e o Sonhar, regiões brandas, onde o tempo se torna maleável (locais de tradução entre o familiar e o estrangeiro), e seu próprio reino, fronteira metafórica entre a vida e a morte. Tais articulações possibilitam que sejam discutidos o ambiente de operação sígnica proposto por Lotman, a semiosfera, e suas fronteiras móveis/tradutórias, noção-chave para a compreensão das tendências de permanência e de mudança dos textos da cultura. Finalmente, Sonho, protagonista ocasional que é a personificação dos sonhos, questiona, ao longo das histórias, as noções objetivas de identidade, de verdade e de imutabilidade. Pode ser questionado, analogamente, o princípio de identidade de culturas autocentradas e autorreferentes baseadas em lógicas binárias e em sistemas preponderantemente fechados que costumam gerar exclusão, por meio da ideia de verdade e de tolerância, ao contrário dos ambientes do reino do Sonhar de Sandman, afeitos à ideia de hospitalidade discutida por Derrida.

Palavras-chaves. Sandman, super-herói, cultura, identidade, épico, quadrinhos.

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ABSTRACT. This thesis analyzes the fictional narratives of the comics books series Sandman, written by the British author Neil Gaiman, originally published by DC Comics and, in Brazil, by Globo, from 1989 to 1996, noting the translation and appropriation of elements from different cultural contexts for the construction of the narrative, in order to demonstrate that Sandman has a higher tendency to mobility and articulation than the superhero’s comic books, which generally emphasize the structures of permanence and isolation. We investigate how the principle of identity, developed by certain core of Western thought is used, as well as different characteristics from other cultural backgrounds, bringing into play concepts such as centrality and periphery, reality/fiction, stability/instability, etc. In support of our journey, we turn to theories about the processes and semiotic systems of culture, exploring and articulating studies of Yuri Lotman, Severo Sarduy, Amálio Pinheiro, Jesus Martín-Barbero and Edgar Morin, while the theories of Scott McCloud and Will Eisner served as basis for studying the “recent” and still “in process” language of the "comics" as art and media; we counted, as well, with the major contributions of Bakhtin’s theories of novel and literary genres carnavalization, to support aspects of narrative language on the studied comics. series, with 75 editions and some special publications, combines aspects of the American superhero comics, mythology, pop culture, literature, religion, paganism, magic, fantasy, gothic horror, historical facts, philosophical references, elements of the classic epic and folklore to tell the story of Dream, also called Oneiros, Morpheus, etc., ruler of , and their complex relations with humanity and other beings, including his siblings Destiny, Death, Destruction, Desire, Despair and Delirium; modern gods and those who have been forgotten; their mortal and immortal lovers; Lucifer and his demons; and even the angels. In the periphery of such a mosaic plot, perverting the classic epic elements, remnants of the drama of a “missing” hero, unfinished and absurd, unable to remain equal to himself, and who insists in to inhabit different borders: islands between reality and the Dreaming; soft regions where time becomes malleable (local of translations between the familiar and the foreign), and his own kingdom, which is a metaphorical border between life and death. Such arrangements allow the discussion of the signic operating environment proposed by Lotman, the semiosphere, and its mobile/translation borders, a key concept to understanding the trends of permanence and change of the cultural texts Finally, Dream, occasional actor, the personification of the dream itself, questions, over the stories, the objective notions of identity, truth and immutability, as well as we may question, similarly, the principle of identity in self-centered and self-referencing cultures based on binary logic and mainly closed systems that tend to generate several ways of exclusion, through the idea of truth and tolerance, unlike the Sandman’s realm environments, linked to Derrida's discussion of the idea of hospitality.

Keywords. Sandman, superheros, culture, identity, epic, comics.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Ilustração de pintura pré-colombiana. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 10.

Figura 2 Ilustração de tapeçaria francesa. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 12-13.

Figura 3 Ilustração de mural egípcio. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 14.

Figura 4 Ilustração medieval de martírio de santos. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 16.

Figura 5 Capa de primeira revista do , de 1939, com arte de Joe Shuster.

Figura 6 Ilustração dos Vingadores, de . Pôster.

Figura 7 Ilustrações de Gibbons para a primeira página da série Watchmen.

Figura 8 Ilustração de Frank Miller em : The Dark Knight Returns, capítulo 1.

Figura 9 Capa de The Amazing Spider-Man #1, 1963.

Figura 10 Primeira página de X-Men #2, 1963.

Figura 11 Combate entre Tempestade e Ciclope, em The Uncanny X-Men #201, 1986, arte de Rick Leonardi e Whilce Portacio.

Figura 12 Homem-Aranha nas Guerras Secretas #8, 1984.

Figura 13 Diagrama de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 48.

Figura 14 Diagrama de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 52-53.

Figura 15 Galactus na primeira edição de Silver Surfer, de 1968. Arte de John Buscema e Joe Sinnot.

Figura 16 Norrin Radd sendo transformado no Surfista Prateado, em Silver Surfer #1, 1968, arte de John Buscema e Joe Sinnot.

Figura 17 Ilustração de Fallen Son: A morte do Capitão América, capítulo 3, p. 11 e 13, de 2007. De Jeph Loeb, John Romita Jr. e Kaus Janson.

Figura 18 Primeira página de Superman #300, de 1976. Arte de Curt Swan e Bob Oksner.

Figura 19 Primeira página da edição #201 de The Uncanny X-Men (1986), arte de Rick Leonardi e Whilce Portacio.

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Figura 20 Primeira página de Web of Spider-Man #117. Arte de Steven Butler e Randy Amberlin.

Figura 21 Encontro entre Aranha Escarlate e Venon durante a Saga dos Clones.

Figura 22 Luta entre o Homem-Aranha e o Duende Verde original. The Amazing Spider- Man #122, 1973. Arte de John Romita e Tony Mortellaro.

Figura 23 Jean Grey se transforma em Fênix. X-Men #101, 1976. Arte de Deve Cockrum e Frank Chiaramonte.

Figura 24 Fênix Negra destrói um sistema solar em X-Men #135, de 1980. Arte de John Byrne e Terry Austen.

Figura 25 Última página de Superman #75, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 26 Steel como Superman, em Superman: The man of steel #22, junho de 1993. Arte de Jon Bogdanove e Dennis Janke.

Figura 27 O Último Filho de Krypton, o Erradicador, como o Superman em #687, junho de 1993. Arte de Jackson Guice e Denis Rodier.

Figura 28 A Maravilha de Metrópoles, o Superboy, como o Superman, em Adventures of Superman #501, em junho de 1993. Arte de Tom Grummett e Doug Hazlewood.

Figura 29 O Homem do Amanhã, em Superman #68, em junho de 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 30 O verdadeiro Superman, em Superman #81, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 31 Primeiro encontro do Homem-Aranha com o Mancha, em The Spectacular Spider-Man #98, 1985. Arte de Herb Trimpe e Jim Mooney.

Figura 32 Homem-Aranha, com uniforme negro, após salvar um menino do ataque do Homem de Ferro do futuro, em The Amazing Spider-Man Annual #20, de 1986.

Figura 33 X-Men #2, 1963. Arte de Jack Kirby e Paul Reinman.

Figura 34 X-Men #262, 1990. Arte de Kieron Dwyer e Joe Rubinstein.

Figura 35 Wolverine e Rachel Summers em X-Men #207, 1986. Arte de John Romita Jr. e Dan Green.

Figura 36 Batman e Duas Caras em Batman: The Dark Knight Returns, de Frank Miller.

Figura 37 Capitão América #125, 1970. Arte de Gene Colan e Frank Giacoia.

Figura 38 Homem-Aranha em Spider-Man, em aventura da década de 1960.

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Figura 39 Wolverine em A Saga da Fênix Negra.

Figura 40 Primeira página de Guerras Secretas #12.

Figura 41 Iron Man #231, 1988. Arte de Mark Bright e Bob Layton.

Figura 42 Começo de Guerras Secretas #1.

Figura 43 X-Men #242. Arte de Marc Silvestri e Dan Green.

Figura 44 Final de Guerras Secretas #11.

Figura 45 The Amazing Spider-Man #36.

Figura 46 A morte do Capitão Marvel.

Figura 47 Funeral do Superman, em Funeral for a Friend.

Figura 48 Funeral do Capitão América em Civil Wars: Fallen Son.

Figura 49 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 50 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 51 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 52 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 53 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 54 Fantastic Four #49. Arte de Jack Kirby e Joe Sinnott.

Figura 55 Fantastic Four #49. Arte de Jack Kirby e Joe Sinnott.

Figura 56 Sandman #4, p. 1, arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 57 Sandman #4, p. 13-14. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 58 Sandman #4, p. 17. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 59 Sandman #21, p. 18. Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 60 Sandman #22, p. 23-24. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 61 Sandman #23, p. 3 e 4. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 62 Sandman #23, p. 7. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 63 Sandman #23, p. 8. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

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Figura 64 Sandman #23, p. 9. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 65 Sandman #17, p. 12-13. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 66 Sandman #17, p. 19. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 67 Sandman #1, p. 22. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 68 Sandman #75, p. 36. Arte de .

Figura 69 Sandman #69, p. 7. Arte de Marc Hempel.

Figura 70 Sandman #71, p. 15. Arte de Michael Zulli.

Figura 71 Sandman #37, p. 7. Arte de Shawn McManus.

Figura 72 Sandman #5, p. 5. Arte de Sam Kieth e Malcolm Jones III.

Figura 73 Sandman #9, p. 7. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 74 Sandman #18, p. 14. Arte de Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 75 Sandman #25, montagem de várias páginas. Arte de Matt Wagner e Malcolm Jones III.

Figura 76 Sandman #50, p. 20. Arte de P. Craig Russel.

Figura 77 Sandman #14, montagem de várias páginas. Arte de Zulli e Parkouse.

Figura 78 Montagem, a partir de diversas edições de Sandman, das várias formas das Três Mulheres.

Figura 79 Doutor Destino (DC Comics) dos gibis de super-heróis da década de 1970.

Figura 80 Doutor Destino em Sandman #05.

Figura 81 Capas dos gibis de Sandman, super-herói das décadas de 1970 e 1980, por, respectivamente, Simon e Kirby; Thomas e Argondezzi.

Figura 82 Sandman #11. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 83 Sandman #12. Arte de Chris Bachelo e Malcolm Jones III.

Figura 84 Sandman #13. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 85 Sandman #13. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 86 Sandman #21, p. 5. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 87 Sandman #21, p. 24. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. 19

Figura 88 Sandman #46, p. 23. Arte de e Vince Locke.

Figura 89 Sandman #46, p. 24. Arte de Jill Thompson e Vince Locke.

Figura 90 Capa de Sandman, Casa de Bonecas, por Dave McKean, em Capas na Areia.

Figura 91 Capa de Sandman, Convergências, por Dave McKean, em Capas na Areia.

Figura 92 Sandman #74, p. 16. Arte de Jon J. Muth.

Figura 93 Sandman #74, p. 17. Arte de Jon J. Muth.

AS REPRODUÇÕES CONTIDAS NESTE VOLUME SÃO SOMENTE PARA FINS DE PESQUISA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, SEM QUALQUER FINALIDADE DE LUCRO.

SANDMAN, SPIDER-MAN, SUPERMAN, X-MEN E OUTROS, ASSIM COMO TODAS AS IMAGENS E PERSONAGENS PRESENTES NAS FIGURAS, SÃO MARCAS REGISTRADAS DAS EDITORAS MARVEL, DC COMICS E OUTRAS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS À AMPLA REDE COLABORATIVA QUE VEM DISPONIBILIZANDO MATERIAIS INÉDITOS E RAROS ATRAVÉS DOS MAIS DIVERSOS MEIOS, MÍDIAS E TÉCNICAS.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 021

1 O CONCEITO DE IDENTIDADE E OS PROCESSOS CULTURAIS...... 053 1.1 A Identidade e os Sistemas Fechados...... 053 1.2 Essência, Diferença e Tolerância no Ocidente...... 056 1.3 A Identidade e os Processos Culturais...... 058 1.4 Especialização e Consciência...... 062

2 UMA BREVE HISTÓRIA EM QUADRINHOS...... 069 2.1 O Cenário do Mercado Estadunidense de Quadrinhos de Super-Heróis...... 070 2.2 Possíveis Traços Distintivos da Linguagem dos Quadrinhos...... 082

3 ENTRE AS ESFERAS ÉPICAS E OS ESPAÇOS COTIDIANOS...... 091 3.1 Três Narrativas...... 099 3.1.1 O Homem-Aranha e seus Clones...... 099 3.1.2 A Saga da Fênix...... 103 3.1.3 Superman e o Retorno da Morte...... 109 3.2 Os Super-Heróis e a Ordem...... 115 3.3 Constâncias e Algumas Mudanças...... 138

4 OS SONHOS COTIDIANOS...... 173 4.1 Elementos do Cotidiano...... 177 4.2 Sonho e a Mudança...... 200 4.3 As Várias Formas e as Identidades...... 222 4.4 As Fronteiras do Sonhar...... 253 4.5 A Amargura e o Riso...... 260

CONCLUSÕES E DESLOCAMENTOS...... 273

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 293

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INTRODUÇÃO

As histórias em quadrinhos, ou simplesmente quadrinhos ou gibis, começaram a tomar forma no século XIX, entre artistas europeus e estadunidenses, e se consolidaram como meio massivo, a princípio, com as “tirinhas” publicadas em jornais no começo do século XX, adquirindo diferentes linguagens e formas de expressão de acordo com os contextos culturais em que foram sendo produzidas ao longo do tempo. Will Eisner, autor de quadrinhos estadunidense, que também lecionou na Escola de Artes Visuais de Nova York e é considerado o precursor dos quadrinhos modernos, definiu-os como arte sequencial (2001, p. 7), levando em consideração que imagens e palavras são usadas em sequência para estabelecer uma linha narrativa. Tal definição significa que somente um desenho ou um quadro não configuram a forma de expressão conhecida como “quadrinhos”. Contudo, ao abrirmos um jornal, as tirinhas (comics em inglês, que vem do latim comicus, por sua vez proveniente do grego komikos – “que pertence à comédia”) assumem diferentes formas, como sequências curtas de quadros, usualmente ligados a temas humorísticos e de crítica social, ou apenas um único quadro ilustrado, podendo conter alguma fala de impacto que condense toda a ideia humorística ou reflexiva do autor. Segundo Scott McCloud (2005, p. 30), nesse caso estamos tratando de outra linguagem, muito próxima à dos quadrinhos, mas que seria, de forma mais específica, território da charge. Não há necessidade de leitura sequencial e, por isso, tratar-se-ia de outra forma de expressão. Tomando como ponto de partida a definição de Eisner, McCloud (2005, p. 7-10) busca maior especificidade conceitual. Ressalta o caráter visual de toda a arte sequencial, chamando a atenção para o fato de que a leitura da linguagem verbal escrita também é realizada em sequência, assim como no caso do cinema, que também exibe fotolitos sequencialmente. Mas se os filmes são exibidos num único espaço, no qual o olho deve estar focado numa única região para observar a sucessão de quadros, os quadrinhos ocupam espaços diversos, através de justaposições e outros elementos de diagramação. Os quadrinhos poderiam, então, ser denominados “forma de arte visual sequencial justaposta”. Preocupado com o juízo de valor da palavra “arte” num meio tão problemático quanto o das comunicações massivas, sugere outra definição, a de “imagens estáticas sequenciais justapostas”. Continua, 22

então, jogando com as mudanças e adições de palavras, chegando ao seguinte resultado: “História em Quadrinhos s. pl. 1. Imagens pictóricas e outras, justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta do espectador” (MCCLOUD, 2005, p. 9). Seu interesse é abrir o campo de possibilidades de expressão dos quadrinhos, ou seja, aumentar o campo de definição dessa forma comunicativa sem perder de vista seus traços distintivos. Eisner acredita que uma das características dos quadrinhos é o fato de utilizarem palavras e imagens articuladas como modo de estabelecer sequências narrativas:

A configuração geral da revista em quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. (EISNER, 2001, p. 8)

Os quadrinhos possuem aspectos das artes plásticas e da literatura, que têm seus elementos traduzidos e combinados para expressar ideias, narrativas ou provocar um efeito estético. A partir do momento em que passam a fazer parte de uma história em quadrinhos, tanto os elementos literários quanto os plásticos assumem funções e formas diversas das que teriam num quadro ou num livro, sem perder, ao mesmo tempo, muitos de seus traços distintivos, conforme as diferentes situações de elaboração. McCloud (2005, p. 10) estudou documentos antigos em busca de formas de artes sequenciais. Encontrou num manuscrito pré-colombiano, descoberto por Hernán Cortés em 1519, uma “tela brilhantemente colorida e pintada” que “conta sobre o grande herói militar e político ‘8-Cervos Garras de Jaguatirica’” (Figura 1). Nela, segundo o autor, podemos combinar as figuras, icônicas e simbólicas, e “ler” que no ano de 1049 d.C., na data de “Doze Macacos”, num determinado local – indicado por outra figura –, de significado ainda desconhecido, 8-Cervos conquistou o referido lugar e aprisionou um príncipe de 9 anos, chamado 4-Ventos “Serpente de Fogo”, e assim por diante até o final da história, que relata mais combates e mortes. Também relata (MCCLOUD, 2005, p. 12) a existência de uma tapeçaria francesa medieval, com figuras em sequência, sobre a conquista da Inglaterra pelos normandos, em 1066. Da esquerda para a direita, observa, leem-se os fatos em ordem cronológica (Figura 2).

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Também dá o exemplo de arte sequencial egípcia do século XII a.C., claramente narrativa, sobre um evento de colheita bem completo, da semeadura ao pagamento dos impostos devidos, que deve ser lida em zigue-zague, de baixo para cima, para que se tenha percepção da sequência narrativa (Figura 3).

Figura 1

Em Desvendando os Quadrinhos, McCloud procura investigar linguagens “primas” dos quadrinhos em outras culturas e épocas. O exemplo acima remonta à América pré-colombiana. 24

Figura 2

Tapeçaria francesa anterior ao século XIV, com imagens em sequência que procuram contar a história da conquista da Inglaterra pelos normandos.

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Figura 3

Acima, exemplo egípcio de imagens que podem ser lidas em sequência, em zigue-zague, de baixo para cima.

Obviamente, McCloud não atribui o nascimento dos quadrinhos aos antigos egípcios, babilônios ou maias. Sua intenção é construir um percurso de utilização de imagens em sequência deliberada com o objetivo de relatar determinado evento, seja ele histórico ou mítico. Normalmente, contam-se ambos ao mesmo tempo, sem que haja uma contradição entre eles. Devemos considerar, no entanto, que o autor pode estar tentando qualificar de forma “positiva” os quadrinhos ao identificar num passado longínquo exemplos dessa forma de 26

expressão. Ao mesmo tempo, pode estar procurando indícios da construção histórica desse tipo de expressão narrativa. McCloud identifica também, nos relatos medievais do martírio dos santos, mais especificamente numa série de 1460, detalhes das torturas que sofreu Santo Erasmo, desde sua prisão até sua execução (Figura 4). Podemos traçar um paralelo com a sequência da Via Cruzes de Cristo, retratada em doze quadros de diferentes estilos em praticamente todas as igrejas católicas brasileiras. De forma semelhante, é uma narração em sequência, sem texto, somente com imagens. Em 1731, o pintor inglês William Hogarth (1697-1764) compôs uma história em seis ilustrações chamada O progresso de uma prostituta. Foram expostas e vendidas para serem vistas em ordem determinada, lado a lado, sequencialmente. Hogarth fez outras séries como essa e seu trabalho serviu de inspiração para outros artistas, que começaram a criar sequências pictóricas que, vistas lado a lado, transmitiam significação específica. Ou seja, apresentavam uma linha narrativa sequencial (MCCLOUD, 2005, p. 16). Entretanto, os quadrinhos modernos teriam surgido somente em meados do século XIX, com Rodolphe Topffer, que empregava “caricaturas e requadros” e, pela primeira vez na Europa, palavras, relacionadas de forma interdependente com imagens1. Uma ideia bastante difundida – a de que todos os quadrinhos têm como traço distintivo a combinação de imagens e palavras – só é realmente válida em certas tradições. A presença e a importância das palavras na narrativa sequencial variam bastante de acordo com as escolas e artistas. É consenso que a primeira tira de jornal, tal como a concebemos hoje, apareceu em 18 de fevereiro de 1895 no jornal New York World e se chamava The Yellow Kid. Foi lançada em preto e branco e, a partir de maio do mesmo ano, em cores, e contava as histórias de Mickey Dugan, sendo desenhada por Richard Felton Outcault. Sua característica distintiva, além de ser uma tira e estar num jornal, tal qual as tirinhas modernas, foi o surgimento do balão de diálogo, aquela forma geralmente ovalada que representa a “voz” do personagem que tem a propriedade da fala naquele momento determinado, possuindo dentro de seus limites frases ou formas expressivas variadas.

1 É importante notar que estamos traçando uma linha de desenvolvimento da expressão comunicativa das histórias em quadrinhos no contexto de certo ocidente, pois nosso estudo diz respeito especificamente a tal tradição. Além do mais, estamos apenas observando alguns parâmetros para entender tal universo, sem o objetivo de construir uma genealogia dessa forma de expressão de ideias e narrativas. 27

Figura 4

As torturas sofridas por Santo Erasmo, com leitura sequencial – produção do século XV. Notar a semelhança com os quadros que retratam a Via Crucis nas igrejas católicas.

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Muitos desses conceitos se devem aos populares gibis estadunidenses de super- heróis, gênero consolidado pelas duas gigantes editoriais responsáveis pelos mais populares personagens com superpoderes do mundo – a Marvel2 e a DC Comics3. Cada uma dessas editoras conta com seus próprios personagens e seu próprio “universo”, com suas cosmologias e lógicas particulares. O Superman (Figura 5), da DC Comics, criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1933, combate o crime e a injustiça e defende, como ficou evidente no primeiro filme do personagem, de 1978, o “american way of life”. Além disso, durante as guerras em que os Estados Unidos estiveram envolvidos, este e outros personagens, como o Capitão América (Figura 6), da Marvel, idealizado por Joe Simon e Jack Kirby, foram mobilizados política e ideologicamente pelo governo para reforçar ideais de patriotismo, liberdade e heroísmo. Uma característica importante dos gibis é sua produção massiva, assim como acontece com algumas tiras de jornal. O que os gibis fizeram foi elaborar uma nova mídia na qual as tiras que aparecem nas folhas de jornal assumiram novas formas de elaboração e produção. Mas foi com o aparecimento de Superman, que se tornaria a referência básica da produção de quadrinhos estadunidense, que o que era anteriormente periódico se tornou também serial. Se nos jornais a tirinha podia aparecer e contar uma história que não teria necessariamente interligação com publicações seguintes, os gibis criaram histórias em forma folhetinesca, a serem lidas como se fossem “capítulos” de um livro, número após número. Essa foi, talvez, uma expansão da própria estrutura dos quadrinhos, de sua linguagem. Se aceitamos como válida a definição de Eisner de arte sequencial, qual seja, a de que os quadrinhos têm como característica fundamental o fato de poderem ser lidos em sequência deliberada, isso é, estabelecida pelo autor, então é significativo o surgimento das séries quadrinescas, pois estas criam histórias a serem acompanhadas em sequência temporal, ao longo de inúmeras edições.

2 A foi fundada em 1939, em Nova York, tendo como nome original “Timily Comics”. Foi recentemente comprada pela Disney. 3 A DC Comics foi fundada em 1934 e era chamada de National Allied Publications. É uma empresa do grupo Time Warner. 29

Figura 5

Capa da primeira edição da revista do Superman, de 1939. Em 2009, o gibi original com a primeira aparição do Superman foi leiloado por mais de 300 mil dólares nos Estados Unidos. 30

Figura 6

A arte acima é um exemplo das ilustrações de luxo para pôsteres e edições comemorativas. Essa, feita por Alex Ross, é dos Vingadores, grupo de heróis da Marvel; numa ilustração eminentemente solar, mostra em primeiro plano o Capitão América, usual líder do grupo, entre Henry Pym, o Homem-Formiga (à esquerda), e o deus nórdico Thor. Acima dele, a Vespa (à esquerda) e o Homem de Ferro (à direita). Acima de todos, Namor, o regente de Atlântida. Podemos notar que as imagens, que retratam os super-heróis de baixo para cima, confirmam e reforçam sua dimensão grandiosa. Técnica de perspectiva semelhante é usada no cinema, que realiza filmagens com câmera baixa e ascendente.

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Não basta ler um único gibi para entendê-lo, temos de ler o próximo, e depois o próximo e assim consecutivamente se quisermos acompanhar a história do personagem, do super-herói daquele título, e ficar a par de sua saga, de sua “mitologia”. As tirinhas de jornal também apresentam, algumas vezes, histórias maiores que podem ser acompanhadas ao longo de várias edições, como no caso do clássico personagem Flash Gordon4, por exemplo. Mas, hoje em dia, estas são formas narrativas mais raras e que não possuem comparação com a amplitude das séries de super-heróis. Se não atribuirmos somente à lógica de mercado tal fenômeno que, prendendo o leitor à estrutura folhetinesca de expectativa pelo próximo episódio, garante as vendas, podemos encontrar um prolongamento da leitura sequencial. A própria história do personagem, para além da história específica de um único número, é estruturada de forma sequencial, em pequenos capítulos de cerca de 20 páginas cada. Porém, diferentemente do folhetim, não há expectativa alguma de conclusão. A trama possui início. Mas não possui, nesse contexto, meio ou fim. Uma história famosa: um ser muito evoluído, superior de várias formas à espécie humana, envia seu único filho ao planeta Terra, onde ele é criado por um casal virtuoso de humanos como se fosse um de nós, sem, na verdade, pertencer a este mundo. Ele logo demonstra ter poderes sobre-humanos e um grande senso de justiça e de compaixão pelas pessoas. Seu destino é salvar a humanidade, sobretudo de si própria. A semelhança da história do Superman com o mito cristão do salvador do mundo não é casual. Para além dos dramas humanos e das infelicidades banais do dia a dia, os super- heróis, que não envelhecem e podem realmente salvar o mundo, constroem em torno de si mesmos uma aura mítica. Próximos aos heróis míticos, dialogam com tais estruturas narrativas primevas. Apesar das implicações ideológicas que os quadrinhos de super-heróis têm e tiveram ao longo de sua existência, seja pelas possibilidades de seu uso para a construção de consensos políticos sobre determinados temas, seja por suas visões conservadoras sobre outros assuntos, tais questões não são diferentes das alienações e manipulações atribuídas a outros meios de comunicação massivos, como o rádio, a televisão, o cinema ou mesmo os jornais e revistas, segundo a visão de certos teóricos e pensadores. Tendo em vista a vastidão de tal debate, optamos por apenas mencioná-lo, sabendo que outros autores trabalharam exaustivamente tais relações em outros espaços.

4 Herói espacial criado em 1934 por Alex Raymond e publicado pela primeira vez no New York American Journal. 32

Em todo caso, o sucesso dos super-heróis não está somente nos gibis. Alastrou-se para a televisão, através dos desenhos animados e séries produzidos desde os anos de 1960, e para os cinemas, mídia em que já foram produzidos, com grandes orçamentos, filmes bem- sucedidos, como Superman, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Batman, Hulk, etc. Como já dissemos, há certo consenso, em determinados meios, sobre os quadrinhos serem uma arte menor, apesar de divertida e até, algumas vezes, criativa. Tal ideia nos parece antiga – a de que as formas de cultura que combinam diferentes linguagens são menos interessantes, principalmente se forem resultado dos desenvolvimentos da indústria de comunicação massiva e se deverem muito de sua elaboração às técnicas de produção mais tardias. Os quadrinhos não são nem pintura, nem literatura, menos ainda cinema. Ainda assim, fazem uso de elementos das artes plásticas, de certos gêneros literários e da narrativa cinematográfica. A presença em conjunto de tais elementos configura uma simplificação das linguagens citadas ou uma forma de elaboração de novas linguagens, com seus traços distintivos e códigos próprios? A articulação entre linguagens quase sempre é vista como algo negativo, como uma “queda” da linguagem original – ou das linguagens originais –, a qual seria vitimada por um processo de empobrecimento decorrente da utilização de seus códigos para a construção de formas terceiras, quartas, quintas de expressão, normalmente assim classificadas por ordem hierárquica de influência, ou seja, da proeminência de uma sobre a outra. Dessa forma, a fotografia seria uma queda da pintura, assim como o cinema seria uma degradação da performance presencial teatral, por exemplo. Outro fator que provoca uma visão negativa dos quadrinhos é a época de seu nascimento. Tal linguagem se consolida no auge da formalização dos meios de comunicação massivos, no período entre guerras, período de grande desenvolvimento da indústria das comunicações, da produção em série dos jornais e da propaganda moderna. Os quadrinhos estadunidenses mais populares, os de super-heróis, costumam sofrer ao menos três formas de depreciação: em razão da mídia em que se inscrevem, massiva e de produção em série a baixos custos; por conta da linguagem que utilizam, uma combinação de desenhos, textos e recursos narrativos sequenciais; e, finalmente, por seus temas, que envolvem as aventuras de super-heróis, ou seja, por tratarem de uma temática fantástica.

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Contudo, tal panorama, nem sempre homogêneo, vem sofrendo modificações. A visão “chapada” que apresentamos corresponde apenas a uma “opinião” geral. Fato é que os quadrinhos estadunidenses não são mais vistos somente como produções de segunda categoria. Nos anos 1980, a DC Comics lançou um selo para quadrinhos classificados para adultos, ou leitores maduros, de modo a diferenciar a produção com temas direcionados para um público mais velho daquelas de super-heróis tradicionais. Tais publicações, a princípio, focaram o gênero de horror. Exploravam mais a sensualidade e apresentavam personagens mais densos, em enredos elaborados por uma leva de escritores anglo-saxões contratados para “dar cara nova” aos quadrinhos da editora. Começaram a se popularizar as graphic novels, ou romances gráficos, denominação que passou a ser dada aos quadrinhos considerados “de qualidade”. Criou-se, assim, uma dualidade entre os quadrinhos usuais, os gibis, e os produzidos com suposta qualidade superior, apresentados em forma de graphic novels. Tal termo foi popularizado por Will Eisner, por ocasião da publicação de seu prestigiado Um Contrato com Deus5, com o objetivo de diferenciá-lo dos quadrinhos de produção massiva e sequencial. O fato de reconhecidamente os quadrinhos terem tornado-se mais densos nas produções denominadas graphic novels criou uma dicotomia entre os quadrinhos considerados de qualidade e aqueles que continuavam sendo vistos como descartáveis e meras expressões da baixa cultura. Alguns criadores rejeitaram a denominação, que acabava por identificar determinados quadrinhos como forma de arte, de alta qualidade, aproximando-os da literatura, e outros como produções inferiores. Tais artistas afirmavam que os quadrinhos em geral constituíam a linguagem através da qual eram produzidas suas obras, negando e afastando qualquer substituição de termos. Para eles, a utilização de elementos romanescos, cinematográficos e de artes plásticas faziam parte do processo criador por serem pertencentes a séries culturais próximas. Tal processo criativo de apropriação e tradução de materiais alógenos era inerente à produção artística e não deveria ser usado para uma pretensa hierarquização dos quadrinhos. Numa visão não hierárquica, o que temos são obras quadrinescas estadunidenses que em determinado momento começaram a explorar outras formas narrativas e outros campos temáticos, diferentes daqueles tradicionalmente abordados pelos quadrinhos de super-heróis que se firmaram e fizeram sucesso entre tantos leitores. Os próprios super-heróis receberam

5 Publicado originalmente pela editora Baronet, em 1978. 34

abordagens diferenciadas, não sendo negados enquanto personagens capazes de gerar histórias mais elaboradas. O surgimento de obras mais complexas em ambientes saturados por uma lógica de repetição de personagens, ideologias, morais e elementos mais ou menos fixos, como super- heróis com certos acabamentos crônicos, faz parte da própria dinâmica da cultura e não é um fato extraordinário. Sobre os determinismos da cultura, pondera Morin (1998, p. 44):

Basta por vezes uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio inovador ou provocado por um abscesso de crise, para criar as condições iniciais de uma transformação que pode eventualmente tornar-se profunda.

O determinismo, ou imprinting, é a estrutura estável que normaliza e normatiza o pensamento, o conhecimento e a própria cultura. A brecha seria a possibilidade de quebra de tal estrutura rígida, por onde a dúvida poderia “atacar” as certezas fazendo uso do movimento.

Por um lado, o imprinting, a normalização, a invariância, a reprodução. Mas, por outro lado, os enfraquecimentos locais do imprinting, as brechas na normalização, o surgimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, a modificação das estruturas de reprodução. (MORIN, 1998, p. 37-38)

Autores de quadrinhos que começaram a atuar no mercado americano a partir da década de 1980, como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman, inovaram com suas obras. Eles fizeram parte de um momento de desvio dos modos de produção usuais utilizados pela indústria estadunidense de quadrinhos. Watchmen (Figura 7), de Moore, abordou um mundo realista onde heróis mascarados, perturbados e sem poderes, atuavam guiados por uma moral ambígua e um altruísmo pouco convincente, diferentemente do modelo de super-herói tradicional do século XX. Frank Miller, em O Cavaleiro das Trevas (Figura 8), recriou um Batman idoso, melancólico, ressentido com o mundo e frustrado, mas também radical, com uma postura próxima a de um guerrilheiro urbano. E Neil Gaiman, em 1988, começou a escrever a série Sandman, que terminaria em 1996, depois de 75 edições mensais e algumas edições especiais. Sandman conta a história de Sonho, a personificação do próprio sonho, da ação de sonhar, também conhecido pelos nomes Morpheus, Oneiros, Tecedor de Formas, entre outros. Regente do Sonhar, reino para onde vão todos os sonhadores adormecidos, ele tem a responsabilidade de governar os sonhos e os pesadelos. A matéria da qual são feitos os sonhos é proveniente de seu reino. O Sonhar é também o reino da imaginação e das esperanças.

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Figura 7 Em Watchmen, obra cult de Moore e Gibbons, super-heróis são mostrados como mascarados perturbados. Acima, reprodução da primeira página, com policiais no local do assassinato do vigilante sádico Edward Morgan Blake, conhecido como Comediante, que foi arremessado através da janela de seu apartamento. 36

Figura 8

O Batman de Frank Miller – o Cavaleiro das Trevas. A história revolucionou os quadrinhos ao colocar Batman não somente contra os criminosos psicóticos, mas também contra o governo estadunidense e o colega Superman. A grandiosidade de Batman como representante da sociedade civil capaz de se auto-organizar é notada nas ilustrações. 37

Sonho é um dos sete seres antropomórficos conhecidos como Perpétuos (The Endless). A família de sete irmãos é formada por Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio (do mais velho para o mais novo). Segundo a narrativa, os Perpétuos existem e existirão enquanto houver vida ou, talvez, qualquer forma de existência; enquanto houver seres que tenham um destino a cumprir (ou construir?) e que morram, sonhem, destruam, desejem, desesperem-se e delirem. Os irmãos não são deuses. Não são seres encantados. São personificações de fenômenos constantes, comuns à maioria dos seres vivos. Diferentemente dos quadrinhos de super-heróis, que não têm perspectiva de fim, Sandman terminou, por decisão do autor, no número 75. Segundo Neil Gaiman, o término ocorreu porque “as histórias que importam têm de ter um final”6. Dado o sucesso do título, seu término contrariou as lógicas de mercado, que prolongam as narrativas que dão lucro, lançando novas versões e continuações quase que ilimitadamente. A narrativa subverteu também a lógica dos super-heróis: Sonho não se enquadra neste universo tradicional, não é altruísta, não tem ideais a defender nem uma identidade secreta – ou seja, não tem pretensões de salvar o mundo. E o autor contraria ainda mais o padrão, donde lançamos outro questionamento: poderia Sonho possuir uma identidade, uma vez que ele é constituído da própria matéria de que os Sonhos são feitos? Esta tese visa analisar as narrativas da história em quadrinhos Sandman a partir das traduções, apropriações e subversões que a obra realiza de certos elementos das histórias de super-heróis, bem como suas articulações e montagens com determinados aspectos da cultura massiva, da filosofia e da tensão entre formas cotidianas e eventos extraordinários. Procuraremos estabelecer reflexões sobre os processos de comunicação dos textos culturais e sobre o princípio de identidade desenvolvido por determinados núcleos filosóficos ocidentais, bem como sobre as características distintas que tais questões assumem em outros contextos nos quais centralidade/ex-centralidade, realidade/ficção, estabilidade/instabilidade não se encontram em oposição, mas em jogo comunicativo. Gaiman coloca em contato diversas características das séries culturais: elementos épicos, aspectos do herói trágico, fragmentos de cultura pop, estruturas super-heróicas, literatura, fatos históricos, contextos mitológicos, referências religiosas e filosóficas, etc. Contudo, apesar de ser interessante a enumeração de apropriações7 e traduções8 presentes na

6 GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior. 7 Apropriação: tornar próprio ou compartilhar o alheio, que também nos toma para si; retirar um elemento de determinado contexto e rearranjá-lo em um novo ambiente, que também se altera, estabelecendo novos atritos e 38

série, nosso interesse está nas operações de sintaxe9 – de articulação e montagem dos elementos, responsáveis pela criação de atritos e movimentos – ao mesmo tempo em que conferem traços distintivos à obra, diferenciando-a das demais de sua série cultural, ou seja, dos quadrinhos do universo de super-heróis, sem os negar ou se opor a eles e sem conferir, tampouco, harmonização final e ideal.

A construção da identidade e da transformação na modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e opções. Esta equação confere ao pensamento moderno um carácter dual: de um lado, pensamento de raízes, do outro, pensamento de opções. O pensamento das raízes é o pensamento de tudo aquilo que é profundo, permanente, único e singular, tudo aquilo que dá segurança e consistência; o pensamento das opções é o pensamento de tudo aquilo que é variável, efémero, substituível, possível e indeterminado a partir das raízes. (...) É verdade que certos momentos históricos ou certos grupos sociais atribuem predominância às raízes, enquanto outros as atribuem às opções. Vêem-se num jogo ou movimento de raízes para opções e de opções para raízes, em que um dos vectores predomina na narrativa da identidade e da transformação. (SANTOS, 2006, p. 54-55)

Se por raízes temos construções que tendem a e buscam o constante, o estável, o singular, o essencial, tal qual concebemos o princípio de identidade e as produções em série mais ou menos “pasteurizadas” – certa característica dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses –, por opções temos o detalhe improvável que se torna possível, o variado, a abertura para a chance, no sentido de diversidade de propostas e de combinações inesperadas. Sandman é opção frente à raiz da tradição de um mercado que tende ao homogêneo e à repetição e que prega, usualmente, o discurso fictício de ausência de opções frente a um mercado onipotente que, ironicamente, acaba por se configurar como terreno fértil para o surgimento de articulações de outras variedades de expressões culturais. É exatamente no limite, quando um movimento, uma escola, uma tradição, parece não ter mais por onde se desenvolver, em sua fronteira de permanência, de raiz, que combinatórias imprevisíveis abrem possibilidades, as quais são, algumas vezes, intensas e rápidas na disponibilização de opções.

relações; tornar o objeto outro que não ele próprio, sem integrá-lo ou diluí-lo em um si mesmo autorreferente; apossar-se do estranho para que haja incômodo mútuo. 8 Tradução: interpretar e recriar um texto cultural (uma dança, um livro, um texto, um prato culinário, uma peça teatral, uma expressão de alegria, um deus) a partir de uma estrutura de códigos de linguagem que não coincida com a estrutura anterior, com o texto de partida. “Não há tradução se o que vier de fora não reagir, por sua vez, sobre todo o conjunto lingüístico em que entrou, como uma pilha voltaica acelerando novas conexões a partir da imantação entre dois ou mais sistemas de linguagem” (PINHEIRO, 1995, p. 52). 9 Sintaxe: segundo Amálio Pinheiro (1994), são operações de seleção, combinação e montagem de elementos no processo de tecitura de determinado texto da cultura. A sintaxe não coincide com a gramática, apesar de partir dela para subvertê-la. Ao selecionar determinados ingredientes culinários e combiná-los de uma forma específica, determinada sintaxe está sendo realizada, assim como quando materiais de construção, como tijolos, tintas, portas e azulejos, são selecionados e arranjados de forma específica para construir uma casa ou uma igrejinha. 39

Se, como procuraremos demonstrar, uma das características de Sandman é a construção narrativa a partir de fragmentos e se o princípio de identidade, “pensamento de raiz” por excelência, tal como foi concebido e desenvolvido por certos aspectos da cultura ocidental, pressupõe a aniquilação das estruturas fragmentadas em prol de uma fala unívoca, essencialista e totalizante, a criação de Neil Gaiman consegue abrir espaços através de novas combinações e relações, configurando certa constelação de “pensamento de opções”, sem com isso negar a cultura clássica, tradicional, à qual sua obra está associada em decorrência dos próprios contextos culturais e históricos de produção. O que ocorre é que, através de deslocamento, toma-se o clássico, antes raiz, também por opção e, assim, acionam-se forças inclusivas. Se houvesse negação do meio em que está inserido, surgiria consequentemente um “delírio” de que Sandman poderia ter uma essência superior a dos outros gibis. E a opção tenderia a se tornar um variedade de pensamento de raiz, nos termos discutidos por Boaventura de Souza Santos. Se há inovação em Sandman, mais interessante que isso é notar a tradução de temas recorrentes e presentes na cultura, objetivando incluí-los às formas e ritmos narrativos através da tradução e da montagem. Tal movimento traz densidade às discussões, símbolos e reflexões precipitadas pela estrutura combinatória desenvolvida na obra. Ao invés de mero acúmulo de elementos sem ligas ou pontos de articulação, é proposta uma capacidade de sintaxe, característica própria de textos culturais complexos que buscam determinados efeitos sobre si mesmos, sobre a cultura e sobre seu público:

Em vez de sincretismo acrítico, proponho a mestiçagem ou a hibridação com a consciência das relações de poder que nela intervêm, ou seja, com a investigação de quem hibrida quem, o quê, em que contextos e com que objectivos. (SANTOS, 2006, p. 29)

Se partirmos da premissa de que a reunião de elementos heterogêneos, por si só, não é capaz de garantir complexidades combinatórias nem ampliação da comunicação entre os diferentes aspectos das culturas, faz-se necessária a análise de como foram combinados os diferentes elementos para a construção de um texto cultural, porque, evidentemente, qualquer combinação é tão passível de falhas tradutórias quanto as simplificações o são, por exemplo, no que tange à sua pretensa possibilidade de objetividade analítica. Composto por traduções, o reino regido por Sonho, o Sonhar, é uma representação de certos aspectos da cultura, não sendo apenas um “lugar” análogo ao conceito de inconsciente. 40

É uma analogia aos universos imaginários, seus comportamentos, suas alternâncias. A discussão sobre permanência e mudança na cultura, assim como aquela sobre o princípio de identidade, ecoa nas histórias ao lado de outros elementos e elaborações. O Sonhar é metalinguagem de si próprio porque, de certa forma, é reflexo: um sonho dentro do sonho. Não por acaso, em uma das histórias, o povo das fadas assiste à peça de Shakespeare Sonho de uma noite de verão, criando reflexos e espelhamentos – fadas estão presentes no enredo – numa peça que também apresenta o elemento de duplicação, por meio da presença de personagens que ensaiam, de forma cômica, para uma apresentação teatral. Textos e séries culturais se combinam a todo momento. Tal evento não é incomum. Por isso mesmo, nosso interesse está na articulação e nos movimentos que tornam possível a construção de relação e, dessa forma, a elaboração de novas esferas de significados. A quantidade de elementos é menos importante do que o procedimento operatório de encaixe que se dá entre eles. Neil Gaiman sempre negou a afirmação, comum entre os fãs da série, de que Sandman não era história em quadrinhos, mas literatura:

Adoro fazer quadrinhos porque há tanto a ser explorado, tanto que ninguém fez até hoje. Desde o início quis levar os quadrinhos a sério, o que parece que não vinha sendo feito. Sempre quis fazer quadrinhos para pessoas que não lêem quadrinhos. O problema é que muita gente diz: ‘Eu não leio quadrinhos, leio Sandman.’ (...) É claro que Sandman é quadrinhos. A diferença é que é bom. Ou pelo menos eu espero que seja. Fui cogitado para receber um Pulitzer e a idéia foi descartada porque não sou americano. Por mim tudo bem. Fiquei satisfeito assim mesmo.10

Ao negar uma nova conceituação da obra, o autor impede a ruptura, a negação e, consequentemente, a construção de novo parâmetro de identidade. Permite que sua produção se situe como processo, como elemento contributivo, talvez até mesmo diferenciado e inovador, mas ainda assim como um texto cultural que faz parte de uma série mais ampla que, por sua vez, está também em contato com outras séries. É comum à Teoria dos Sistemas a noção de que um único elemento diferenciado, ao passar a integrar certo conjunto, modifica toda a estrutura e a si próprio. A ruptura com a tradição é forma de negação e oposição. Por estar inserido na série quadrinesca, Sandman pode ter contribuído para tornar mais maleável a indústria dos gibis de super-heróis.

10 GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior. 41

A história de Sandman, abordada ao longo de 75 edições, conta, muitas vezes, a aventura de um protagonista ausente. Como o próprio Sonho confessa a Shakespeare:

Shakespeare - Você vive numa ilha? Sonho - Eu sou, ao meu modo, uma ilha. Shakespeare - Mas isso pode mudar. Todos os homens podem mudar... Sonho - Eu não sou um homem. Shakespeare - Mas... Sonho - E eu não mudo. Eu lhe perguntei antes se você se via refletido em seu conto. Shakespeare - Sim. Sonho - Eu não. Eu não posso. Eu sou o príncipe das histórias, Will; mas eu não tenho minha própria história. Nem nunca terei. (Sandman #75, p. 25)

O príncipe das histórias não tem uma história própria. Discutiremos isso mais adiante. Por enquanto, basta citar que Sonho é um protagonista ausente. Na verdade, esta é uma denominação equivocada. Não se trata de protagonismo nem de ausência. Como personificação dos sonhos, sua ausência/presença é bastante questionável, assim como seu papel em seu próprio arco de histórias – sua ausência pode ser presença constante e vice- versa. Até que ponto ele é/pode ser considerado o protagonista das histórias que se pretendem sobre ele? As edições de Sandman foram sucesso de público e crítica. Gaiman esteve no Brasil três vezes – em 1995, em 2001 e na 6ª edição da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em 2008. A lista de prêmios ganhados pelo título inclui o maior prêmio do mundo dos quadrinhos, o Eisner Award de Melhor Escritor, vencido por quatro anos seguidos, entre 1991 e 1994, e o de Melhor Série, em 1991, 1992 e 1993; o prêmio Harvey de Melhor Escritor em 1990 e 1991 e o de Melhor Série em 1992; e o mais notável, o World Fantasy Award, na categoria Melhor História Curta, pela edição 19, Sonhos de uma Noite de Verão, de 1991, primeiro grande prêmio literário dado a uma revista em quadrinhos. Evidentemente, não são os prêmios conquistados que caracterizam a qualidade da história. Os prêmios não são usados aqui para honrar a obra, mas apenas para ilustrar, de forma breve, o impacto da série entre a crítica e os fãs. Neil Gaiman continua escrevendo histórias em quadrinhos, romances e roteiros para cinema. Algumas de suas obras, como Caroline, um livro infanto-juvenil, e Stardust, uma espécie de conto de fadas em prosa, foram adaptadas pelo cinema hollywoodiano com êxito, sendo encenadas por bons atores e rodadas com relativa qualidade, principalmente Caroline, animação de estética interessante que fez jus ao clima sombrio do conto, publicado em 2005. 42

No Brasil, as reuniões de fãs da década de 1990 para conversar e assistir a palestras sobre Sandman eram bastante diversas. Muitas delas ocorreram na Gibiteca Henfil, situada, à época, na Vila Mariana. Para conversar com os editores brasileiros da revista, lá se encontravam as velhas guardas dos quadrinhos, os fanzineiros, os góticos, os nerds, os intelectuais e os adolescentes em geral que gostavam de um bom gibi. Sandman foi publicado integralmente pela Editora Globo, de 1989 até 1996, com algumas interrupções. A Globo chegou a publicar também algumas encadernações que reuniam certos períodos da série. Em 1998, a Brainstorm republicou os gibis, mas de forma incompleta. A editora Conrad lançou, nos anos 2000, todos os 10 arcos, em livros encadernados com capa dura. Hoje, os direitos da série são da Editora Pixel, que tem o projeto de relançá-la integralmente com material extra, assemelhando a publicação à última edição americana, denominada Absolute Sandman, que traz rascunhos, roteiros, esboços de desenhos, cartas trocadas entre o autor e os desenhistas e outros itens de interesse sobre o processo de construção dos quadrinhos. O estudo comparativo e relacional da série Sandman com séries culturais próximas serve à reflexão sobre questões concernentes à dinâmica de permanência e mobilidade da cultura e, consequentemente, aquelas que tangem as relações entre as estruturas de núcleos duros de identidade e os ambientes com outras formas de produção e organização de conhecimento. Nossa base de pensamentos, teorias e hipóteses para o plano de estudos acima referido foi extraída de diversos campos que desenvolveram, ao longo de seus processos, comunicação e relações entre si, articulando conceitos sem perder seus traços distintivos. Desde a perspectiva da semiótica da cultura e da obra teórica e analítica de Iuri Lotman, concebe-se a cultura como sendo formada por textos. Os textos, segundo tal concepção, seriam conjuntos de códigos e linguagens que possuem, entre outras características, traços distintivos e certa integridade interna. Em nosso estudo, por exemplo, as histórias em quadrinhos são um texto cultural – possuem traços distintivos, como quadros, nos quais podemos encontrar desenhos e palavras que interagem, sequencialmente, com outros quadros justapostos, que têm linguagem própria baseada em traços, etc. Também possuem certos limites – podemos ver uma tirinha de quadrinhos num jornal, mas não há diluição entre ambas: a tirinha continua sendo uma tirinha e o jornal permanece como um texto cultural distinto. Tal caráter fechado do texto, segundo Lotman, não implica falta de relação, pelo contrário, implica exatamente a existência de relação. Não houvesse uma estrutura interna 43

delimitadora, haveria a diluição da tirinha de quadrinhos no jornal, não sendo possível qualquer relação. Não existiria tirinha, mas apenas jornal. É seu caráter fechado, seus traços distintivos, que permite que a gramática da tirinha mantenha relativa estabilidade quando em contato com outro texto da cultura. Obviamente, a estabilidade, como dissemos, é relativa – a mesma tirinha, num jornal, possui determinadas regras constitutivas e operativas; quando presente numa revista ou na Internet, possui outras. Ainda assim, poderá ser percebida como uma tirinha. Mas não como a mesma tirinha. Daí que os textos da cultura têm características móveis, que variam de acordo com os contextos com os quais se relacionam. Há dois casos em que a relação é impossível ou, ao menos, sofre grandes prejuízos: quando da diluição dos textos, exemplificada acima, e na oposição entre textos. Quando dois textos criam condições de antagonismo absoluto, a distância entre eles atrofia os pontos de troca, impossibilitando combinações. Numa situação-limite, de guerra ou segregação, tal coisa pode acontecer. Porém, devemos lembrar, tais situações de diluição e oposição total são exemplos ideais. Geralmente, o que podemos observar são textos, ou conjuntos de textos, ou mesmo culturas, mais ou menos afeitos às relações entre si. Lotman (1995, p. 91) observa que outra característica dos textos culturais é sua multiplicidade interna, ou o texto no texto. Em resumo, o texto cultural “história em quadrinhos” possui dentro de si outros textos, como o das histórias de super-heróis ou o das histórias de horror, que, por sua vez, possuem outros textos, como as histórias de vampiros e as histórias de zumbis, e assim consecutivamente. Tal configuração não é mera agregação de elementos, mas diversidade de sentidos, vozes e significações. Assim como a biosfera é algo diferente da simples “soma” dos seres vivos, constituindo um ambiente de contato e possíveis diálogos, os textos culturais operam entre si por fazer parte da semiosfera.

Como agora podemos supor, não existem por si só, de forma isolada, sistemas precisos e funcionalmente unívocos que realmente funcionem. A separação destes está condicionada unicamente por uma necessidade heurística. Tomado em separado, nenhum deles tem, na verdade, capacidade de trabalhar. Só funcionam estando submersos em um continuum semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de diversos tipos e que se acham em diversos níveis de organização. A esse continuum, por analogia com o conceito de biosfera introduzido por V. I. Vernadski, o chamamos semiosfera.11

11 Tradução livre. No original: “Como ahora podemos suponer, no existen por sí solos en forma aislada sistemas precisos y funcionalmente unívocos que funcionan realmente. La separación de éstos está condicionada únicamente por una necesidad heurística. Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan estando sumergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización. A ese continuum, 44

A semiosfera parece ser, segundo Lotman, um ambiente operativo que não é formado somente pelo conjunto das linguagens, códigos e textos culturais. É diferente da soma dos signos. Ao mesmo tempo, não existe por si só, ou seja, sem a presença de textos em estado dinâmico. Mais adiante, no mesmo texto, há uma passagem elucidativa:

Pode-se considerar o universo semiótico como um conjunto de distintos textos e de linguagens fechados uns em relação aos outros. Então, todo o edifício terá o aspecto de ser constituído por distintos tijolinhos. Não obstante, parece mais frutífera a aproximação contrária: todo o espaço semiótico pode ser considerado como um mecanismo único (se não um organismo). Então, resulta como primário não um ou outro pequeno tijolo, mas sim o “grande sistema”, denominado semiosfera. A semiosfera é o espaço semiótico fora do qual é impossível a existência da semiose.12

A semiosfera não é a soma dos elementos presentes em seu interior. Tais elementos também não possuem uma hierarquia quanto à sua preponderância nesse ambiente de operação sígnica. Podemos diferenciar os textos da cultura do conceito de semiosfera. Mas a semiosfera, configurada como um ambiente operatório, caracteriza-se antes pelo conjunto flutuante e transitório de operações, pelo movimento dos textos uns em relação aos outros, do que pela soma dos textos separadamente. A semiosfera é forma de operação dos textos e não sua mera reunião. Da mesma forma, a biosfera não pode ser considerada a soma dos seres vivos. Como sistema único, a biosfera é, de fato, o conjunto das relações desenvolvidas pelos seres vivos. Não se trata de “algo”, mas de um ambiente. Ainda na mesma linha de raciocínio, um organismo não é a soma de suas células ou órgãos, mas sim os procedimentos operativos de seus conjuntos e unidades que, ainda que delimitados, são incapazes de funcionar se apartados – não do conjunto, mas do organismo, ou seja, da organização operatória. Lotman estipula ao menos dois importantes traços distintivos da semiosfera: o caráter delimitado e a irregularidade semiótica. Tais características são de difícil definição, contudo são fundamentais para que haja uma melhor compreensão de tal ambiente operativo.

por analogía con el concepto de biosfera introducido por V. I. Vernadski, lo llamamos semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 22). 12 Tradução livre. No original: “Se puede considerar el universo semiótico como un conjunto de distintos textos y de lenguajes cerrados unos con respecto a los otros. Entonces todo el edificio tendrá el aspecto de estar constituido de distintos ladrillitos. Sin embargo, parece más fructífero el acercamiento contrario: todo el espacio semiótico puede ser considerado como un mecanismo único (si no como un organismo). Entonces resulta primario no uno u otro ladrillito, sino el “gran sistema”, denominado semiosfera. La semiosfera es el espacio semiótico fuera del cual es imposible la existencia misma de la semiosis” (LOTMAN, 1996, p. 23-24). 45

O caráter delimitado diz respeito “a determinada homogeneidade e individualidade semióticas” (LOTMAN, 1996, p. 24). Resumidamente, podemos dizer que a semiosfera tem certa coerência interna, logo, pode ser delimitada em relação ao que está dentro ou fora de seu espaço operativo, de forma figurada, é claro. Entretanto, a semiosfera é ambiente relacional para os elementos que se encontram em seu interior, como também para todo e qualquer texto externo a ela. Isso é possível em virtude do seu limite. Da fronteira. Ao contrário da usual impressão, a fronteira não é barreira ao externo. Antes, é o local de tradução, de passagem e mediação entre dada semiosfera e os textos culturais externos a ela:

a fronteira semiótica é a soma dos tradutores – “filtros” bilíngües passando através dos quais um texto se traduz a outra linguagem (ou linguagens) que se acha fora de dada semiosfera. O “caráter fechado” da semiosfera se manifesta em que esta não pode estar em contato com os textos alossemióticos ou com os não-textos. Para que estes adquiram realidade para ela, é indispensável traduzi-los a uma das linguagens de seu espaço interno ou semi-otimizar os fatos não-semióticos. Assim, pois, os pontos da fronteira da semiosfera podem ser equiparados aos receptores sensoriais que traduzem os estímulos externos à linguagem de nosso sistema nervoso, ou aos blocos de tradução que adaptam a uma determinada esfera semiótica o mundo exterior em relação a ela.13

Outro exemplo de Lotman pode esclarecer melhor a questão:

Todos os grandes impérios que lidavam com nômades, “estepes” ou “bárbaros”, assentavam em suas fronteiras tribos desses mesmos nômades ou “bárbaros”, contratados para o serviço da defesa da fronteira. Essas colônias formavam uma zona de bilingüismo cultural que garantia os contatos semióticos entre os dois mundos. Essa mesma função de fronteira da semiosfera é desempenhada pelas regiões com diversas mesclas culturais: cidades, vias comerciais e outros domínios de formação de koiné e de estruturas semióticas mestiças.14

A fronteira, como local de tradução, é o ponto de troca entre textos de diferentes culturas. Os pontos de fronteira, as periferias, as margens, todo o espaço distante dos núcleos – que usualmente são pontos ligados às ideias de identidade cultural, pureza, integridade, os

13 Tradução livre. No original: “... la frontera semiótica es la suma de los traductores -- “filtros” bilingues pasando a través de los cuales un texto se traduce a otro lenguaje (o lenguajes) que se halla fuera de la semiosfera dada. El “carácter cerrado” de la semiosfera se manifiesta en que ésta no puede estar en contacto con los textos alosemióticos o con los no-textos. Para que éstos adquieran realidad para ella, le es indispensable traducirlos a uno de los lenguajes de su espacio interno o semiotizar los hechos no-semióticos. Así pues, los puntos de la frontera de la semiosfera pueden ser equiparados a los receptores sensoriales que traducen los irritantes externos al lenguaje de nuestro sistema nervioso, o a los bloques de traducción que adaptan a una determinada esfera semiótica el mundo exterior respecto a ella” (LOTMAN, 1996, p. 24-25). 14 Tradução livre. No original: “Todos los grandes imperios que lidaban con nómadas, “estepa” o “bárbaros”, asentaban en sus fronteras tribus de esos mismos nómadas o “bárbaros”, contratados para el servicio de la defensa de la frontera. Esas colonias formaban una zona de bilinguismo cultural que garantizaba los contactos semióticos entre los dos mundos. Esa misma función de frontera de la semiosfera es desempeñada por las regiones con diversas mesclas culturales: ciudades, vías comerciales y otros dominios de formaciones de koiné y de estructuras semióticas creolizadas” (LOTMAN, 1996, p. 27). 46

quais, para manter determinada estabilidade, evitam trocas, hibridações e outras formas de contato – funcionam como tradutores dos textos exteriores a determinada cultura, incluindo- os ao processá-los em suas linguagens e códigos, porém alterando a si mesmas no decorrer do processo. Durante a tradução, não é somente o texto traduzido que enfrenta o atrito de novas formas de codificação. Neste ato, o tradutor também tem seus mecanismos reorganizados pelo contato relacional com o “diferente de si mesmo”.

A tradução como ato político desestabiliza não apenas a noção de identidade estável, preguiçosa, mas sobretudo o fanatismo e a isoglossia. Um anacronismo latente faz com que as literaturas compartilhem espaços e tempos heterogêneos e simultâneos. Ao traduzir Homero, Haroldo de Campos heleniza o português ao mesmo tempo em que lusifica o grego – com o que se amplia as identidades, bem como a compreensão do presente. Mimética e não-mimética, a tradução é a “sobrevida” do texto original: vive mais tempo e também de modo diferente. De onde ser a tradução uma experiência expressionista, capaz de transformar uma coisa em outra, de ser ela mesma e seu outro. (MATOS, 2006, p. 167)

Diante de um texto alienígena, há duas posturas possíveis. Tratá-lo como texto estrangeiro à cultura ou como não texto. A forma de considerar tal elemento externo é, antes, posição ética. Como texto estrangeiro, reconhecemos outros elementos imersos em contexto cultural que não é o nosso, mas que é como o nosso. É tanto quanto o nosso. A fronteira existe e traduz o texto estrangeiro. Torna-se parte nosso, parte do outro – texto único de passagem entre duas culturas. Como não texto, por outro lado, vemos esse outro como não cultura, não inteligível, não operativo. Como não texto, não linguagem ou não código, não é passível de tradução e acaba segregado a partir do centro da cultura – construindo o elemento exótico, que é considerado curioso por não ser classificado como pertencente ao terreno da cultura ou da civilização. A postura não oposicional e de reconhecimento quanto ao texto estrangeiro, como dissemos, implica uma ética.

Em Heródoto encontramos indicações sobre a exemplaridade de conhecer-se a si mesmo pela mediação do Outro. Quando o historiador narra detalhadamente e com admiração respeitosa os costumes dos egípcios, é a própria Grécia que dá a conhecer: ‘Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens ficam em casa a tecer (...) Os homens carregam os fardos na cabeça, mas as mulheres os carregam nos ombros (...). Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de divindades, sejam estas masculinas ou femininas. Os homens são os sacerdotes de todas as divindades. Os filhos não são compelidos contra a vontade a sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê-lo mesmo sem o querer’ (HERÓDOTO, 1962, II, p. 35). Conhecer o Outro é conhecer melhor a si mesmo (MATOS, 2006, p. 65) 47

Já a irregularidade semiótica diz respeito à diversidade de elementos submersos em dada semiosfera. Algumas estruturas, que ora ocupam posições e têm caráter mais nucleares e centrais, tendem a se descreverem, servindo de referência para a descrição dos espaços semióticos das periferias. Em outras palavras, determinados textos, que podemos tomar como tendências da semiosfera, alcançam, pela própria dinâmica cultural, posição de centralidade, tornando-se descritivos do todo e criando generalização que impõe tal modelo descritivo a outros elementos, configurando uma ilusão de identidade ou uma identidade ilusória a partir de uma postura totalitária. As irregularidades existentes entre centro/periferia, memória/esquecimento, sincrônico/diacrônico15 organizam-se em níveis móveis. Elementos centrais podem tornar-se periféricos; elementos anteriormente diacrônicos podem, por cortes em profundidade temporal, ocupar posição sincrônica, ou seja, tornar-se contemporâneos, modernos, por meio de novos textos gerados – semelhantes aos antigos, mas, obviamente, diferentes. A memória e o esquecimento também têm essa dinâmica. Diversos fatores podem tornar alguns textos parte de uma memória ativa, constituintes da história cultural e do presente processual, e levar outros textos à zona do esquecimento. Tais textos, evidentemente, não são apagados da cultura. Um processo interessante mencionado por Lotman é a capacidade de os textos da cultura se reconstruírem em seu todo relacional, isto é, determinada forma de dançar, por exemplo, guarda consigo a memória/esquecimento de outras danças, músicas, livros, objetos da cultura. Sob determinadas condições, tais textos submersos nessa hipotética forma de dançar podem ser reconstruídos, reelaborados, reinscritos na semiosfera (LOTMAN, 1996, p. 31), não como os textos “originais” o foram um dia, mas como novas escrituras dos textos culturais dados como perdidos, traduzidos e mediados por mecanismos semióticos. A semiosfera – a cultura – possui um elaborado mecanismo de memória que reconstitui códigos, linguagens e textos culturais. Claramente, tal processo é analógico: a reelaboração se verifica com elementos presentes e ausentes e no entorno de contextos disponíveis, que guardam a memória do texto “perdido” nas relações que um dia ele estabeleceu com outros signos. Um processo digital não seria capaz, por sua necessidade de alta fidelidade de informações para operar, de realizar tal mecanismo de memória. Entretanto, possui outras capacidades de operação distintas que precisariam ser analisadas em outro momento.

15 Sincronia, em linguística, refere-se ao estudo dos elementos que coexistem num determinado momento na língua. A diacronia, por sua vez, leva em consideração a sucessão dos textos ao longo do tempo. 48

Tais noções da semiótica da cultura irão nortear nosso estudo a respeito dos sistemas identitários, estáveis, permanentes e rígidos da cultura, bem como de seus movimentos dialógicos, abertos, instáveis e tradutórios, os quais propiciarão melhor entendimento sobre como os textos culturais se articulam em Sandman e como a série articula-se com outros textos ao redor, no ambiente de diferentes semiosferas. Se, por um lado, Sandman inscreve-se na série cultural “quadrinhos” e, por local de produção, na série estadunidense “quadrinhos de super-heróis”, há outras séries nas quais ele também está inscrito. Duas delas, concomitantes com os estudos teóricos apontados acima, interessam-nos especialmente no entendimento dos movimentos de articulação de Sandman com os textos culturais ao seu redor, possibilitando a leitura de uma obra complexa e que, analogamente, talvez seja uma reflexão mais ampla do que pode, a princípio, parecer. Dois operatórios culturais são importantes, em nosso estudo, para situar os mecanismos de elaboração da obra de Neil Gaiman: a tendência à permanência e a tendência à mudança16. Ambos podem parecer meros conceitos, mas são algo diferente. Primeiramente, não se trata de palavras que guardam oposição entre si. São textos da cultura, mas também são operatórios. Por sua capacidade tradutória, todos os textos culturais possuem determinado nível operatório17. Porém, a respeito da permanência e da mudança, falamos de textos em que o mecanismo operatório tem preponderância organizacional, hierárquica ou não, sobre outros aspectos. Lotman (1996, p. 29-30), ao descrever a irregularidade semiótica da semiosfera, delimita o seguinte processo: se uma estrutura nuclear de dada semiosfera ocupa posição dominante e se eleva ao estado de autodescrição, configurando sistemas de metalinguagem com a ajuda dos quais descreve não somente a si mesma, mas também ao espaço periférico, então é construído sobre a irregularidade semiótica real um nível ideal de unidade – que podemos relacionar ao princípio de identidade.

16 Mudança e permanência são aspectos em jogo aproximativo e em fronteiras móveis, sendo tendências raramente passíveis de ser encontradas de forma isolada nos diferentes contextos. 17 Se, tradicionalmente, certa segurança é atribuída à permanência, à estabilidade e à imutabilidade, tais elementos também conferem certo “mal-estar”, mesmo angústia, pelas impossibilidades e exclusões que trazem consigo. Portanto, não podemos considerar que opções por determinadas formas de organizar o conhecimento e a cultura, assim como as escolhas pelo reforço ou manutenção do princípio de identidade, sejam meramente buscas por consolo ou conforto. 49

Uma das formas de construção de princípios de identidade nucleares e totalizantes tem lugar quando uma estrutura nuclear desenvolve, numa posição dominante, autodescrição e “sistemas de metalinguagem” descritivos de todos os níveis de dada semiosfera, assim como de outras, se levarmos em conta que culturas usam suas autorreferências para descrever outras culturas, externas a seus sistemas de familiaridade. Em tal processo podemos reconhecer certa tendência à permanência e à estabilidade. Sobre essa determinada condição:

A criação de auto-descrições metaestruturais (gramáticas) é um fator que aumenta bruscamente a rigidez da estrutura e faz mais lento seu desenvolvimento. Entretanto, os setores que não foram objeto de uma descrição ou que tenham sido descritos em categorias de uma gramática “alheia” obviamente inadequada a eles, se desenvolvem com mais rapidez.18

Fica evidente o caráter de estabilidade e permanência do sistema que desenvolve para si e para seu entorno uma descrição/identidade autorreferente e de todo o sistema. As áreas não descritas, não mapeadas, ou pouco descritas e mapeadas são consideradas menores ou pouco importantes em relação ao centro nuclear “legítimo”. Tais locais periféricos são espaços de aceleração de desenvolvimento de novos códigos, sentidos, linguagens e articulações entre os textos da cultura, desdobrando novos sistemas sígnicos, já que não possuem, em outras palavras, conceitos tão rígidos sobre “si mesmos”, sendo locais com linguagens em aberto. Para Lotman, tais estruturas, nucleares e periféricas, mudam de posição uma em relação à outra, criando dinâmicas de equilíbrio do sistema semiótico e dos desenvolvimentos das semiosferas. A existência de núcleos rígidos e de periferias suaves é, para o teórico, uma lei organizacional da semiosfera. Apesar de não propor algum outro tipo de processo organizador da semiosfera, o que faz parecer que determinada identidade autorreferencial, assim como metalinguagens descritivas, é elemento constante em qualquer semiosfera, há um espaço para um operador, de alguma forma, diferenciado:

Não obstante, embora o fato dessa divisão ser absoluta, as formas que toma são relativas desde o ponto de vista semiótico e dependem em considerável medida da metalinguagem de descrição escolhida – ou seja, de se estamos diante de uma

18 Tradução livre. No original: “La creación de autodescripciones metaestructurales (gramáticas) es un factor que aumenta bruscamente la rigidez de la estructura y hace más lento el desarrollo de ésta. Entretanto, los sectores que no han sido objeto de una descripción o que han sido descritos en categorías de una gramática “ajena” obviamente inadecuada a ellos, se desarrollan con más rapidez” (LOTMAN, 1996, p. 30). 50

autodescrição (descrição sob o ponto de vista interno e nos termos produzidos no processo de autodesenvolvimento da semiosfera dada) ou se a descrição é levada a cabo por um observador externo em categorias de outro sistema.19

Se as relações centro/periferia são próprias à cultura, é a descrição externa, estrangeira, proveniente de outro sistema, que possibilita alterações nas relações destas categorias do sistema. Dessa forma, seria, como o próprio Lotman afirma, o excesso de textos culturais externos em contato tradutório com os textos internos àquela cultura (a “arribada de confluências”, citada por Pinheiro, em paráfrase a Lezama Lima (1988) o mecanismo possibilitador de uma “razão mestiça” operadora das estruturas e dos níveis culturais, em vez do discurso de centro autorreferente e de aspecto permanente.

Se os princípios de identidade e de não contradição determinam um “terceiro excluído”, rever este “princípio de Razão” significa apreender um pensamento eclético e plural que recusa a lógica binária das ortodoxias. Razão mestiça, poderíamos dizer, porque mista e porque joga com descobertas, ‘com plasticidade e metamorfose, destacando um terceiro termo que, incluído, é a tolerância heterodoxa’. (MATOS, 2006, p. 63)

Tal operador não binário, não ortodoxo, alorreferente20 constituído pela pluralidade de atritos e não pela harmonia do sistema, seria a possibilidade não de eliminar, mas de relativizar o sistema centro/periferia que Lotman vê como lei fundamental da semiosfera, criando, quem sabe, novas formas de organização da cultura, do conhecimento e dos próprios processos de elaboração de textos. Segundo tal lógica, culturas com acentuadas características abertas, curvas, móveis21, curiosas, interessadas no estranhamento22 mais do que na conformidade, teriam maior dinâmica interna a partir da suavização das hierarquias e da carnavalização23 dos núcleos centralizadores em decorrência do próximo contato com as periferias “suaves”. O riso desestabiliza o sistema ao evidenciar o absurdo da crença em “si mesmo”.

19 Tradução livre. No original: “Sin embargo, mientras que el hecho de esa división es absoluto, las formas que reviste son relativas desde el punto de vista semiótico y dependen en considerable medida del metalinguaje de descripción escogido – o sea, de si estamos ante una autodescripción (descripción desde un ponto de vista interno y en términos producidos en el proceso de autodesarrollo de la semiosfera dada) o si la descripción es llevada a cabo por un observador externo en categorías de otro sistema” (LOTMAN, 1996, p. 30-31). 20 Aquilo cuja referência se verifica a partir de qualquer ponto “estranho” ao próprio ambiente. 21 Cf. PINHEIRO, 1996, p. 15. 22 Estranhamento (ou Ostranenie, termo original russo), termo utilizado pelo formalista russo Viktor Chklovski, seria o efeito criado pela obra literária para nos distanciar (ou estranhar) dela no que tange ao modo comum como apreendemos o mundo e a própria arte, possibilitando que haja alteração em nossas formas perceptivas e cognitivas. 23 Bakhtin considera a carnavalização e o riso formas de subversão das dicotomias alto/baixo, sagrado/profano. Cf. A cultura popular na idade média e no renascimento, Brasília: EDUMB/Hucitec, 1999. 51

No primeiro capítulo, realizaremos um estudo do percurso histórico de determinado princípio de identidade em certos aspectos da cultura ocidental, acreditando que isso irá ajudar a contextualizar a tradição na qual a série Sandman se insere e se desloca. Exploraremos, ainda, alguns desdobramentos da tendência à identidade e à criação de centros de poder essencialistas. No segundo capítulo, apresentaremos algumas características da série cultural na qual Sandman se insere: os gibis de super-heróis estadunidenses. Discutiremos também alguns possíveis traços distintivos da linguagem dos quadrinhos, cuja gramática ainda está em pleno desenvolvimento, necessitando, como poderemos constatar, de diversos estudos e pesquisas. No terceiro capítulo, discutiremos algumas características dos quadrinhos de super- heróis do ponto de vista do enredo, de aspectos gráficos e de gênero, procurando séries próximas e elementos distintivos que nos possibilitem uma aproximação com tal texto cultural. Por fim, no quarto capítulo dialogaremos com a série Sandman, destacando as questões de identidade e de tradução, bem como as discussões trazidas pela obra. Destacaremos também os fragmentos constitutivos provenientes da estruturas clássicas, bem como sua subversão a partir de elementos romanescos estudados por Bakhtin em seus escritos sobre o romance.

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1

O CONCEITO DE IDENTIDADE E OS PROCESSOS CULTURAIS

O fim da Filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico- científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da Filosofia quer dizer: começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental- europeu.

Martin Heidegger, O Fim da Filosofia, p. 73.

1.1 A Identidade e os Sistemas Fechados

Se é verdade que o princípio de identidade se desenvolveu intensamente em certas tradições culturais do Ocidente, devemos considerar que de alguma forma se fazem presentes outras forças que tendem ao externo e ao alheio. Porém, as resistências dos processos autodescritivos centrais é considerável. É preciso entender que o princípio de identidade – que, mais do que um conceito, configura uma forma de organização do conhecimento e, consequentemente, uma forma de olhar o mundo, a realidade – adquiriu proeminências tais a ponto de fundar o pensamento científico tradicional e a história do pensamento filosófico do Ocidente. As vozes e os caminhos divergentes sempre têm de enfrentar tais paradigmas “clássicos” e, de alguma forma, romper com tal princípio que busca o idêntico como parâmetro civilizatório. As histórias em quadrinhos de super-heróis apresentam-nos personagens altamente especializados – diferentes de outros, mais gerais e maleáveis, como os populares Snoopy, Charlie Brown e Calvin, por exemplo – que contam, em sua construção, com bases fornecidas 54

pelo princípio de identidade24. Certos gêneros narrativos, seja na literatura ou em outras formas de arte, nas mídias massivas ou mesmo na ciência, são afeitos a formas de organização que decorrem de uma visão de mundo dada a partir da identidade como realidade fechada em si mesma, finalizada e essencialista. Em tais contextos, personagens muito especializados – como os heróis com superpoderes – são parte da estrutura, conferindo e resultando em elementos que reforçam o caráter identitário e o ciclo de repetição de informações, como veremos mais adiante. Dessa forma, uma visão mais acurada de certa concepção da identidade é oportuna para nossas discussões, tendo em vista que tal princípio tende a normatizar as aventuras dos personagens. A princípio, podemos recordar a grande divisão, presente nos quadrinhos, entre super-heróis e vilões. Entre o bem e o mal. É sabido que a identidade é consequência e causa de certas simplificações e, por isso, tende a operar em sistemas binários e dicotômicos consideravelmente fechados. Descartes, ao fundar a modernidade (ao menos em relação à história da filosofia), retirou do homem a dependência de Deus, rompendo com a Idade Média e estabelecendo o pensamento como a única realidade constante e confiável (MATOS, 2006, p. 18). Esse aspecto da mente, ligado à razão e a certa racionalidade, assumiu os contornos da identidade que, em combinação com outros campos com noções similares, configurou uma forma específica de produção de conhecimentos, de organização dos saberes e de hierarquização das experiências humanas, partindo do alto – a cabeça, o abstrato, a ideia – como fonte da verdade e do bem. O pensamento assume um papel central, sendo a única realidade inegável, já que nossas percepções podem ser ilusórias ou enganosas, mas o pensamento não, pois ele indubitavelmente existe, diferentemente dos sentidos, que não nos dão “estabilidade, permanência, identidade” (MATOS, 2005, p. 19).

A primeira verdade, fonte das demais – o cogito – poderá estabelecer e garantir as verdades da dedução matemática, segundo os preceitos da boa ordenação dos elementos, do encadeamento de unidade simples, de maneira analítica, decompondo em partes as dificuldades e ordenando os números. A confiança cartesiana na “luz natural” faz com que ele diga que se trata de bem aplicar a razão para bem conhecer. (MATOS, 2005, p. 18)

24 Discutiremos de forma mais aprofundada as questões de especialização no capítulo 3, após estruturarmos certas questões pontuais a respeito do princípio da identidade, dos movimentos culturais e das formas de organização do conhecimento. 55

A razão, que não se deixa enganar, ao contrário dos sentidos, reconhece a verdadeira natureza da realidade. O princípio de identidade é algo central e imprescindível para os novos tempos da racionalidade:

Penso, logo existo é uma verdade primeira e irresistível, apta a fundar a ciência, referindo-se a si mesma, sem recorrer a qualquer forma de transcendência, seja ela mítica ou teológica. (MATOS, 2005, p. 19)

Descartes colabora na fundação da forma de pensamento e de organização do conhecimento na qual se baseia a ciência moderna tradicional. O pensamento, considerado uma certeza unificada à existência, retira do campo da experiência concreta e sensual qualquer possibilidade de aferição da realidade do mundo ou de si mesmo. A organização dos saberes se ampara na construção de oposições, de identidades e na redução dos fenômenos a categorias de pensamento binárias, proeminentemente numéricas, que, se bem ordenadas, trarão o conhecimento (MATOS, 2005, p. 20). A identidade como referência a um grupo, pessoa, objeto, etnia, nação, etc. constitui uma das formas que o princípio assume no pensamento. A realidade é composta por elementos idênticos ou não idênticos, instáveis ou estáveis, racionais ou irracionais. Tais categorias são irredutíveis e inconciliáveis, pois não se trata de uma interpretação, mas da própria natureza das coisas. A mudança, em tal sistema, é secundária e subordinada à essência, à identidade. As modificações e os processos se identificam com a degradação e a corrupção das purezas originais. Os elementos temporalmente anteriores, passados, tendem a ser considerados originais ou fontes de influência dos posteriores, os quais são tomados como simples cópia ou como um campo da variação de formas derivadas de deturpações daquele objeto primordial. A razão, ao contrário, vai progredindo, revelando-se e iluminando a si mesma e ao mundo, rumo ao entendimento do todo. A civilização seria o triunfo de tal racionalidade, o desvelamento da razão das obscuridades do corpo, dos sentidos e das emoções. O princípio de identidade fundamenta-se em uma razão dual, constituída por elementos nos quais prevalece a ausência de contradição. Assim, o diferente, por ser considerado oposto, não consegue estabelecer relações de troca nesse sistema, estando em condição externa e definitivamente distante das identidades, que não supõem a contradição e a tensão. O que é oposto (assim como o que é idêntico) não encontra pontos de relação e comunicação, criando situações de isolamento e de simplificação, condições estas que tendem a originar conceitos rígidos e ideais por meio do procedimento de abstração de determinadas 56

características de certo objeto, ampliação de tal elemento e generalização de suas propriedades, gerando realidades com alto grau de unicidade, totalidade e harmonia. Repelindo as contradições, os procedimentos citados encaminham-se para a consolidação de verdades fundamentais.

1.2 Essência, Diferença e Tolerância no Ocidente

Não é difícil encontrar exemplos de tal pensamento binário. Um conceito muito usado pela mídia atual é o de tolerância. Tolerância religiosa, “racial”, étnica, política, nacional. A ideia de tolerância implica intolerância, pois conta com ela ao fundamentar suas qualidades sociais. A noção de tolerância pressupõe que no outro, de fato, há algo incômodo, de difícil convivência, desagradável ou repulsivo. E esse algo deve ser tolerado para que uma harmonia possa ser estabelecida no convívio social. Se não podemos eliminar completamente a diferença e a contradição trazidas pelo contato com o outro, ao menos podemos mantê-lo a certa distância. Podemos associar tal pensamento à dualidade e à rejeição do “alheio”. Não se trata de travar diálogos e conexões com o estrangeiro – apenas importa tolerá-lo por suposta civilidade, para que certa paz e harmonia possam ser mantidas, conquistadas ou restauradas. Porém, expulsar o diferente seria o mais apropriado aos pensamentos que seguem tais preceitos. A tolerância é uma concessão, um abrir mão do “direito” à intolerância, do direito de vivermos resguardados entre nossos idênticos – nossa nação, nosso povo, nossa cultura, nossas crenças. Em outras palavras, é uma gentileza, um favor para com aqueles que insistem em ser insuportavelmente diversos de nós mesmos. Pois, de fato, se temos que tolerar, é porque deve haver elementos externos tão incômodos que são realmente intoleráveis, terríveis, ameaçadores a certo estilo de vida, a certa cultura, à identidade – princípio que nos diz, idealmente, quem somos, quem fomos e quem sempre seremos. Relativizar as identidades significa colocar em jogo certas certezas e conhecimentos estáveis e, supomos, permanentes. Olgária Matos (2006, p. 65-66) chama nossa atenção para outra importante questão relacionada à tolerância:

Recentemente, Derrida, ao considerar a amizade, refere-se à hospitalidade, contrapondo-a ao cosmopolitismo ou, pelo menos, indicando-a como seu limite. Ao cosmopolitismo corresponde a noção de tolerância. No par cosmopolitismo- 57

tolerância trata-se, sempre, de um “direito de visita”, de não ser tratado como inimigo em terra estrangeira. A tolerância encontra-se, observa Derrida, “do lado da ‘razão mais forte’, que é uma marca suplementar de soberania, é a boa face da soberania que, do alto, significa ao outro: eu te deixo viver, não me és insuportável, eu te ofereço um lugar em minha casa. Eu te acolho com a condição que te adaptes às leis e normas de meu território, segundo minha língua, minha tradição e memória’. (...) Quanto à hospitalidade, ela é incondicional, diz respeito ao estrangeiro que chega sem ter avisado. (...) A hospitalidade é um “salto” absoluto para além do saber e do poder, da norma e da regra, sendo ela a condição de possibilidade do mundo ético e político; nela a própria expressão “alteridade do outro” torna-se supérflua, pois a hospitalidade refere-se àquele que entra em nossa vida sem dizer que vinha. Compreender a hospitalidade e o campo semântico e emotivo que a constitui só existe quando já se fez a experiência da identidade instável e cambiante.

A hospitalidade representa a ausência da necessidade de tolerância, vã numa estrutura em que não é preciso afirmar uma essência que se pretenderia superior. Em tal contexto, a língua, os costumes e a cultura podem sofrer modificações por conta daquele que “chega de repente”, do diferente, pois esse não é visto como ameaça, mas como elemento no qual se procura colaboração, comunicação e troca – contribuições para as dinâmicas culturais. A tolerância, ao contrário, mantém o status quo, relegando as diferenças e as contradições à margem. A tolerância pretende somente garantir direitos socioeconômicos básicos, exigindo apenas que os “outros” permaneçam ausentes das esferas “essenciais”, sejam elas políticas ou culturais. Crises e desestabilizações são evitadas e constrói-se a apologia ao cosmopolitismo dos híbridos que se justapõem mas não se tocam e dos semelhantes que se fundem, baseados na tolerância.A hospitalidade pressupõe, por sua vez, a crise, por receber não somente o outro, o estrangeiro, mas sobretudo sua cultura, suas ideias, suas possibilidades de descentralizarmo- nos de nós mesmos. A hospitalidade só parece ser possível dentro de um quadro em que a identidade seja, ao menos, fluida e provisória, não constituindo um princípio autorreferencial com pretensões absolutas. O exercício da hospitalidade é o exercício do enfraquecimento dos núcleos rígidos, da centralidade e da flexibilização “do poder, da norma e da regra”. Por isso mesmo, são as instituições tão pouco afeitas à hospitalidade – de outra forma, colocariam em risco certos fundamentos e ideologias que se baseiam na permanência e na estabilidade. Há sociedades que tendem mais à hospitalidade do que ao cosmopolitismo, o que significa que o binômio tolerância/intolerância encontra ressonância maior em determinadas culturas, enquanto outras parecem tangenciar tal lógica binária com comportamento diverso, disponibilizando sua “casa” – sua cultura – para mudanças operadas desde “fora”, com vistas às contribuições externas a ela própria. O outro acaba por perder a condição de elemento 58

oposto ou exótico, mas não alcança, tampouco, qualquer proeminência. Trata-se de outra forma de organização, na qual o centro não está em lugar algum.

1.3 A Identidade e os Processos Culturais

Podemos encontrar em todas as culturas tendências ao aberto e ao fechado, ao idêntico e ao diferente, à estabilidade e à instabilidade – polarizações que, na verdade, só nos servem metodologicamente, pois nunca se encontram em estado puro, permanente ou totalizante numa esfera cultural. Do aberto ao fechado, do idêntico ao diferente, há um longo caminho de gradações, de regiões intermediárias, de “terceiros”, fora dos eixos entre os opostos convencionais, e são normalmente tais aspectos em relação que encontramos ao olharmos com maior atenção um ou outro texto da cultura. Por isso, denominamos tais condições de tendências provisórias, obedecendo à sua própria lógica interna, o que, muitas vezes, implica incoerências textuais. De qualquer forma, tais tendências são construções culturais, de força e sustentação variáveis, que se relacionam de forma móvel e instável com outros elementos da cultura, sendo modificadas por eles na medida em que também os modificam, podendo, assim, perder sua parcial dominância de acordo com os ritmos e tempos de determinada sociedade. Como já citado na introdução, a dinâmica de funcionamento da cultura ocupa papel importante na obra do semioticista russo Iuri Lotman (1922-1993). Eis sua noção de semiótica, segundo Sanches:

[A semiótica] pode ser definida a partir da distinção (...) entre semiótica do signo (a tendência lógica de Pierce e Morris) e semiótica da linguagem como sistema cênico (a tendência linguística inaugurada por Saussure). Enquanto na primeira interessa ao pesquisador a relação do signo com o significado e o processo de semiose, na segunda não é o signo isolado o objeto de estudo, mas sim a linguagem, quer dizer, ‘o mecanismo que utiliza um certo jogo de signos elementares para a comunicação dos conteúdos.25

Os estudos focados nas relações sígnicas que se verificam através das linguagens (sistemas de código) levaram à construção do conceito de semiosfera, isto é, de um continuum

25 Tradução livre. No original: “(...) puede ser definida a partir de la distinción (...) entre semiótica del signo (la tendencia lógica de Pierce y Morris) y semiótica del lenguaje como sistema sígnico (la tendencia linguística inaugurada por Saussure). Mientras en la primera interesa al investigador la relación del signo con el significado y el proceso de semiosis, en la segunda no es el signo aislado el objeto de estudio, sino el lenguaje, es decir, ‘el mecanismo que utiliza un cierto juego de signos elementales para la comunicación de contenidos” (SANCHES, 1996, p. 249). 59

semiótico, de um ambiente articulado no qual as relações de linguagem são possíveis. Tal noção determina que os signos isolados não possuem lógica interna esclarecedora de seus processos construtivos. Essa lógica operativa só pode ser elucidada se contextualizada no sistema da semiosfera. A semiosfera possui certas características que podem ser compartilhadas com o conceito análogo de cultura. Lotman se preocupa em esclarecer, em diversos pontos de sua obra, o caráter ao mesmo tempo homogêneo e heterogêneo da cultura, assim como seu caráter fechado e aberto. Tais tendências são condições culturais que em diferentes momentos manifestam-se com forças variáveis, definindo o funcionamento de determinados textos dessa cultura em relação a si mesma e ao que se situa fora dela, ou seja, fora de certo espaço da semiosfera, que podem ser elementos ainda não codificados ou postos em linguagem ou, ainda, outros sistemas culturais que necessitam de tradução para integrar determinada cultura. Lotman identifica dois traços distintos que caracterizam a semiosfera – seu caráter delimitado e a irregularidade semiótica. O primeiro indica que a semiosfera é um sistema delimitado, mas não fechado, que conta com certa “homogeneidade e individualidade semióticas”. Nesse quadro, aparece o conceito fundamental de “fronteira”. Como já comentamos anteriormente, a semiosfera possui certo caráter fechado, porém, sua fronteira não é exatamente uma separação, mas sim um espaço de tradução, no qual é possível que textos, isto é, linguagens, provenientes de outras esferas culturais e sígnicas sejam processados, integrados, modificados, e passem a integrar dada semiosfera. Mais do que divisão ou barreira, a fronteira, no espaço semiótico, é um local de processamento de informações e códigos, um ambiente de ressignificação de conteúdos e formas. Um espaço de passagem que, ao não assimilar ou barrar os elementos externos, e sim traduzi-los, mantém níveis relacionais de homogeneidade/heterogeneidade. A fronteira, ademais, também traduz os textos internos para ambientes externos, para outras culturas. A elaboração de textos externos e internos para outros ambientes é o próprio mecanismo que dá sentido à esfera semiótica e encerra sua possibilidade de existência, pois promove uma dinâmica de novos significados e textos sem os quais a segunda característica atribuída por Lotman à semiosfera não poderia existir – a irregularidade semiótica.

O espaço semiótico se caracteriza pela presença de estruturas nucleares (com mais frequência várias) com uma organização expressa e de um mundo semiótico mais amorfo que tende à periferia, no qual estão submersas as estruturas nucleares. Se uma das estruturas nucleares não só ocupa a posição dominante, como também se eleva ao estágio de autodescrição, e, por conseguinte, segrega um sistema de 60

metalinguagens com ajuda dos quais se descreve não só a si mesma, mas também ao espaço periférico da semiosfera dada, então sobre a irregularidade do mapa semiótico real se constrói o nível de sua unidade ideal. A interação ativa entre esses níveis torna-se uma das fontes dos processos dinâmicos dentro da semiosfera.26

Se o espaço semiótico é constituído por diversos níveis irregulares em relação, os elementos centrais, dominantes na cultura, ao adquirirem status de referência para a organização do sistema e linguagens próprias para tal, constituem uma hierarquia formal entre os textos culturais e estabelecem regiões mais e menos próximas às estruturas nucleares. Dessa forma, estabelecem-se referências autoconstruídas com as quais se pode definir uma “identidade” cultural. Se a fronteira determina uma região de tradução, a irregularidade semiótica deve considerar determinadas estruturas que conferem certo nível de organização e homogeneidade aos conteúdos heterogêneos. Tais tendências convivem de forma dinâmica e processual em todo o espaço da semiosfera, colocando em relação os espaços de cultura e os de não cultura (espaços codificados e não codificados, pertencentes a outros contextos culturais), e entre textos mais centrais e aqueles situados nas margens, na periferia dos sistemas. Os textos mais centrais, que adquirem posição descritiva sobre o restante do sistema, conferem certa estabilidade ao ambiente semiótico e, por isso, possuem códigos e conteúdos mais fixos, mais rígidos, em relação aos textos periféricos, que são mais instáveis e plurais. Podemos entender tal condição como o processo pelo qual se constituem identidades culturais – textos mais centrais como unidades identitárias que conferem significado formal e de conteúdo ao conjuntos da esfera semiótica e aos conjuntos externos a ela, ou seja, a outras culturas. Porém, tal identidade é provisória, pois os textos tendem a se mover no sistema e trocar de posição – textos da periferia podem passar a ocupar posições centrais e vice-versa. A perspectiva descritiva de determinada cultura é, portanto, dinâmica e aquilo que se considera como “identidade cultural” significa apenas um momento autorreferencial provisório, com tendência a ser superado pelo próprio mecanismo funcional da semiosfera, mas que, por diversas questões, deseja-se que fique permanente e essencial.

26 Tradução livre. No original: “El espacio semiótico se caracteriza por la presencia de estructuras nucleares (con más frecuencia varias) con una organización manifiesta y de un mundo semiótico más amorfo que tiende hacia la periferia, en el cual están sumergidas las estructuras nucleares. Si una de las estructuras nucleares no solo ocupa la posición dominante, sino que también se eleva al estadio de la autodescripción y, por consiguiente, segrega un sistema de metalenguajes con ayuda de los cuales se describe no sólo a sí misma, sino también al espacio periférico de la semiosfera dada, entonces encima de la irregularidad del mapa semiótico real se construye el nivel de la unidad ideal de éste. Le interacción activa entre esos niveles deviene una de las fuentes de los procesos dinámicos dentro de la semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 30). 61

Podemos vislumbrar, assim, que o mecanismo da identidade individual não se apresenta de forma isolada e independente em relação aos princípios de identidade de uma cultura: ambas provêm da elevação de uma tendência, de uma característica que é, por definição, provisória, limitada e variável, como elemento essencial que confere significação aos elementos heterogêneos e irregulares que se apresentam nas pessoas, nos povos, nas etnias, na cultura e nas semiosferas vistas de modo amplo. Anteriormente, citamos um dos modos operatórios da abstração – que é a capacidade de recorte, ampliação e generalização. Uma específica tendência cultural, para se tornar elemento de significação geral, é recortada, extraída do conjunto das relações e ampliada. Fora de seu contexto relacional ela é alçada à grandeza de aspecto geral e tende a adquirir prerrogativa essencial. A codificação de tendências em elementos estáveis, nucleares, centrais e essenciais diminui as possibilidades de tradução de textos ao constituir fronteiras mais rígidas. Da mesma forma, um alto grau de instabilidade e de descentralização dos textos semióticos aumenta o volume e a velocidade das traduções e a variedade de níveis de irregularidade, tornando menos comum a configuração de autodescrições com grau elevado de estabilidade e permanência. Provavelmente, tais condições têm importante vínculo com o estabelecimento de núcleos de poder e com a constituição de estruturas institucionais. Textos centrais dominantes tendem a se referir a si mesmos univocamente, em monofonia, limitando a geração de significados paralelos (paródias, traduções, etc.), fechando os códigos e as linguagens e gerando, assim, imobilidades que podem ser instrumentalizadas para a elaboração de conceitos ideais como o de verdade e o de identidade. Podemos considerar que tal processo se inicia a partir do momento em que certa tendência da cultura sobressai ao todo e referencia os conjuntos relacionais heterogêneos e diversificados. Tomando a tendência pelo todo, opta-se por uma totalização homogênea da pluralidade e por descrições simplificadas e não relacionais que objetivam dar conta das representações das realidades de forma regular, nivelando as grandes irregularidades da semiosfera e de seu entorno e diminuindo, portanto, os ritmos de tradução e de elaboração de novas linguagens e significados e, por conseguinte, o tráfego entre os espaços centrais e periféricos. A identidade, de forma semelhante, é o isolamento de determinada característica ou tendência e sua definição como central e imutável. 62

Se operações complexas que agem pelos movimentos e fluxos da cultura são características dos ambientes semióticos, assim como sua simplificação a partir de conceitos ideais tomados de forma isolada que objetivam a totalização dos elementos heterogêneos, podemos supor que ambos são também tendências do pensamento humano ou, um passo aquém, cerebrais?

1.4 Especialização e Consciência

Henri Atlan, em Entre o Cristal e a Fumaça, reflete sobre a possibilidade de interação entre natureza e cultura na constituição e na evolução dos grupos humanos, alertando o leitor sobre a carga negativa de tal tentativa, acusada de organicista e

vivamente combatida como tal. Entretanto, os perigos – lógicos e políticos – do organicismo são hoje suficientemente conhecidos para que possamos evitar cair em suas armadilhas, mas sem rejeitar o que o estudo dos sistemas naturais pode nos ensinar em matéria das possibilidades lógicas concernentes à organização em geral. (ATLAN, 1992, p. 10)

Com a mesma consciência, levantaremos hipóteses sobre “a possibilidade de uma interação entre cultura e natureza” nas dinâmicas que comentamos acima. Em A pré-história da mente, o arqueólogo Steven Mithen investiga caminhos de desenvolvimento da mente humana moderna, em busca das origens da arte, da religião e da ciência. Para isso, procura mapear a evolução humana desde o ancestral comum a símios e humanos, que teria vivido há mais de 5 milhões de anos. Partindo das pesquisas de psicólogos evolutivos, Mithen afirma que a mente humana é resultado da evolução e que, qualquer que seja a definição de “mente” que utilizemos, ela deve ser estabelecida a partir das possibilidades dadas pelo processo de seleção natural.

O ponto de partida dessa argumentação é a mente ser uma estrutura funcional complexa que não poderia ter surgido pelo acaso. Se estamos dispostos a ignorar a possibilidade de uma intervenção divina, o único processo conhecido que pode ter dado origem a tamanha complexidade é a evolução pela seleção natural. (MITHEN, 1998, p. 68)

A partir do jargão científico “a ontogenia recapitula a filogenia”, proposto por Haeckel no século XIX, percebemos como pesquisadores tentam relacionar o desenvolvimento da mente da criança à evolução da mente humana. 63

Nossa mente, ao nascermos, possui módulos de “inteligências” específicas, as quais Mithen enumera como naturalista, linguística, social e técnica, além de uma inteligência geral. Tal estrutura, segundo ele, explicaria, por exemplo, os rápidos desenvolvimentos da mente infantil na aprendizagem das complexas e sofisticadas regras gramaticais de qualquer idioma e na habilidade intuitiva de reconhecimento e categorização de formas de vida em grupos coerentes. De forma semelhante, através da evolução dessas inteligências específicas, teria a mente humana se desenvolvido ao longo do tempo. Porém, em sua concepção, tais inteligências, durante milhões de anos, desenvolveram-se sem se comunicar entre si, em “espaços” próprios, mantendo-se isoladas e servindo a tarefas específicas: a inteligência natural servia para mapear o espaço e aprimorar as habilidades de caça e coleta; a técnica, para a elaboração de ferramentas a partir de pedras e outros materiais; a social, como um “laboratório” individual para tentar prever o comportamento dos outros membros do grupo; e a linguística, para a comunicação, em decorrência direta da ampliação da vida social dos homens primitivos. Anteriormente a esses setores especializados, teríamos tido uma inteligência geral que daria conta de diversas situações, porém sem a efetividade que garantem as especializadas. Essa é a mesma inteligência que, em diferentes níveis, apresentam muitos animais. Devido à ausência de contato entre as inteligências especializadas, era impossível haver comunicação complexa de conteúdos culturais, aprendizagem ou criatividade. Mithen aponta que as “explosões” culturais constatadas em alguns momentos da pré-história podem ter ocorrido pela amplificação da comunicação entre setores especializados, que levaram à criação, por exemplo, de instrumentos específicos para a caça de determinados animais pelo contato entre as inteligências naturalista e técnica, o que tornou possível a associação de diferentes designs instrumentais às características de certos animais (como construir instrumentos leves e longos para animais rápidos e machados pesados para os fortes e lentos).

Fase 1. Mentes regidas por um domínio de inteligência geral – uma série de regras sobre aprendizado geral e tomadas de decisão. Fase 2. Mentes em que a inteligência geral foi suplementada por várias inteligências especializadas, cada uma devotada a um domínio específico do comportamento e funcionando isoladamente. Fase 3. Mentes em que as múltiplas inteligências especializadas parecem trabalhar juntas, havendo um fluxo de conhecimento e de idéias entre os domínios comportamentais. (MITHEN, 1996, p. 105)

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A mente moderna, assim, seria o resultado da criação de um grande espaço de comunicação entre as inteligências, que se tornaram “conscientes” uma das outras. Mithen aponta que o desenvolvimento da inteligência linguística teria sido fundamental nesse processo, possibilitando a socialização, na própria mente e no grupo, dos conhecimentos antes isolados. Além disso, a própria consciência, outrora um “laboratório” encarregado de prever o comportamento dos companheiros de grupo, teria se ampliado notavelmente como resultado da construção de pontos relacionais entre diferentes módulos cerebrais, permitindo que não somente fossem testadas as hipóteses relacionadas aos outros membros da espécie, mas também aquelas concernentes ao mundo natural, aos instrumentos, aos objetos inanimados, etc., originando pensamentos mais complexos e relacionais. A consciência do homem moderno seria o resultado do intenso fluxo de comunicação entre as inteligências, agora “abertas” aos processos relacionais. Metáforas e analogias permitiram aplicar conhecimentos, antes específicos, a outras áreas, configurando processos de aprendizado e criação. Além disso, características culturais estimulariam e desenvolveriam diferentes aspectos das especializações, colaborando na diversificação das habilidades humanas. Nesse sentido, dois pontos nos interessam: 1) a inteligência naturalista e seus usos primitivos e 2) a possibilidade de a consciência do homem moderno e, consequentemente, a mente complexa, terem sido resultado da comunicação entre inteligências antes especializadas que puderam ser aplicadas, por analogia, ao desenvolvimento das mais diversas formas de conhecimento. A hipótese para o desenvolvimento da inteligência naturalista na mente de nossos ancestrais, milhões de anos atrás, teria sido a grande vantagem competitiva que o reconhecimento especializado das diferentes espécies teria trazido. Estudos sugerem que a mente da criança, mesmo sem aprendizagem específica, é capaz de diferenciar seres vivos de objetos inanimados e, conhecendo um exemplar de uma espécie, ampliar esse conhecimento a todos os membros da mesma, ainda que haja muitas diferenças entre eles. Tais capacidades facilitaram a caça e a defesa dos homens primitivos, ao permitirem a identificação de potenciais fontes de alimento e de perigo entre a enorme variedade de seres vivos presentes no meio ambiente. Segundo Mithen (1998, p. 167), é como se a cada espécie fosse atribuída uma “essência”, uma identidade. Assim acontece com as crianças, ao se referirem às plantas e aos animais, e assim teria sido por milhões de anos, explicando como tantas culturas diferentes e sem comunicação entre si desenvolveram, de alguma forma, sofisticados sistemas de classificação do mundo natural, com semelhanças notáveis entre si. 65

Seria possível uma pressão evolutiva ter algum papel na concepção de que os seres vivos e especificamente os humanos possuem uma essência imutável? Uma identidade fixa? A hipótese de que antes da mente moderna houve traços de consciência em nossos antepassados que operavam conhecimentos especializados e de que a mente moderna pode ter sido fruto da interação entre inteligências específicas e, de certa forma, bastante utilitárias, não deixa de ser incômoda, afinal, pode nos levar a questionar certas noções sobre nossa existência, liberdade e possibilidades de escolha. Seria preferível e mais agradável supormos que nossas capacidades cognitivas foram desenvolvidas objetivando mais do que a sobrevivência, por antepassados conscientes de seu percurso e de suas escolhas, não por mera elevação de nosso pretenso papel no mundo, mas principalmente porque poderia implicar um ser humano menos determinado pela natureza e mais autônomo em relação às suas escolhas e culturas. Contudo, há outros pontos de vista. Lacan, apesar de reconhecer os processos de evolução, atribuiu ao surgimento da linguagem a divisão radical entre o ser humano e a natureza, de tal ordem que as leis da evolução e da seleção natural não mais se aplicariam à compreensão da mente humana. Propiciadora da cultura e da consciência, a linguagem teria instaurado um espaço no qual as teorias evolucionistas e da seleção natural não seriam aplicáveis satisfatoriamente ao fenômeno humano27. De todo modo, as questões concernentes às interações entre natureza e cultura, separadas ou mais próximas, são bastante polêmicas e extensas na história do pensamento, o que, provavelmente, continuarão a ser por muito tempo. As possibilidades combinatórias são bastante amplas. O segundo ponto é levemente mais pacífico que o primeiro. É o que aborda a consciência como resultado da operação comunicativa interna e externa, a partir do desenvolvimento da inteligência social e do aumento da comunicação entre as inteligências especializadas, que teria se dado principalmente por meio do aprimoramento da inteligência linguística. Dessa forma, teria sido possível a comunicação e a reflexão sobre conhecimentos específicos, criando formas análogas de pensamento passíveis de serem aplicadas a outros domínios.

27 As teorias da complexidade elaboradas por Edgar Morin, por exemplo, partem de uma analogia com o biológico, assim como o conceito de semiosfera de Lotman e os sistemas auto-organizativos de Henry Atlan, pressupondo, por meio de apropriações da genética e da cibernética, “programas” nos mecanismos de funcionamento da cultura. “Mas não é certo que a natureza comporta um princípio de variedade que é testemunhado pelos milhões de espécies vivas? Não comporta um princípio de transformação? Não comporta em si própria a evolução, que conduziu ao homem? Será a natureza humana desprovida de qualidades biológicas?” (MORIN, 2000, p. 16). Outras correntes de pensamento, baseadas em certas áreas do estudo da linguagem, com as quais dialogam as teorias estruturalistas, bem como a psicanálise de Lacan, consideram que a teoria da evolução darwiniana deixa de ser relevante para o ser humano a partir do surgimento da linguagem, quando haveria ocorrido a ruptura do homem, de forma irreversível, com o mundo da natureza. A linguagem teria “criado” o homem, e não o contrário. 66

Inicialmente, o desenvolvimento da mente moderna teria como característica predominante a possibilidade da extensão e da adaptação de determinados conhecimentos específicos a outros domínios da cognição e da realidade, através de analogias e metáforas, o que teria permitido o desenvolvimento das religiões, das artes e das bases do pensamento científico – se considerarmos que a capacidade de formular e experimentar hipóteses foi fundamental para o desenvolvimento tecnológico e para a sobrevivência da espécie. Tais relações teriam sido possíveis em razão do desenvolvimento das habilidades reflexivas e comunicativas. Segundo Mithen, a habilidade linguística, base para a comunicação complexa, seria uma condição fundamental para o desenvolvimento de uma consciência reflexiva. Paralelamente, segundo Lotman:

O intercâmbio dialógico (em sentido amplo) de textos não é um fenômeno opcional do processo semiótico. A utopia de um Robinson isolado, criada pelo pensamento do século XVIII, está em contradição com a idéia atual de que a consciência é um intercâmbio entre os hemisférios cerebrais até a comunicação entre culturas. A consciência sem comunicação é impossível. Nesse sentido se pode dizer que o diálogo precede a linguagem e a gera.28

Assim, talvez possamos supor que a consciência reflexiva seja resultado dos processos comunicativos. A consciência moderna seria originária de uma habilidade especializada que, em comunicação com outras inteligências, tornou a mente humana mais complexa e com maior potencial comunicativo. Contudo, Mithen observa que é possível que o homem, em seu processo de aprendizagem, tenha aplicado alguns aspectos especializados de forma equivocada, como a atribuição de características sociais a animais, criando imagens de “felinos falantes”, que podem ter colaborado na formação das bases para pensamentos religiosos e artísticos. Ou, ainda, considerar certos grupos humanos como objetos inanimados, passíveis de utilização funcional, aos quais não aplicamos nossas capacidades de empatia, imprescindíveis ao convívio social. Ao que parece, a procura por certas estruturas estáveis, imutáveis e essenciais foram tão relevantes para a sobrevivência da espécie como a capacidade comunicativa e a “paixão por metáforas, representações e analogias” (MITHEN, 1996).

28 Tradução livre. No original: “El intercambio dialógico (en sentido amplio) de textos no es un fenómeno facultativo del proceso semiótico. La utopía de un Robinson aislado, creada por el pensamiento del siglo XVIII, está en contradicción con la idea actual de que la consciencia es un intercambio entre los hemisferios cerebrales hasta el intercambio entre culturas. La consciencia sin comunicación es imposible. En ese sentido se puede decir que el diálogo precede al lenguaje e lo genera” (LOTMAN, 1996, p. 35). 67

Talvez por isso toda cultura possua em sua dinâmica, em diferentes níveis de intensidade, atritos constantes entre forças especializadas e relacionais – simplificadas e complexas. Há indícios de que o processo comunicativo foi essencial para a ampliação da consciência, assim como para seu desenvolvimento – não somente a comunicação que ocorre no meio social, mas também a comunicação dentro da mente, entre diferentes módulos, inteligências e campos cognitivos. Além disso, a consciência, conforme explica Mithen (1996, p. 128), teria surgido como um instrumento para ser usado no convívio social – a própria mente seria laboratório individual que tenta prever o comportamento dos outros membros do grupo e, assim, possibilita o uso de dissimulação e de estratégias para vencer disputas de poder contra os adversários da mesma espécie. A consciência teria, dessa forma, tornado as relações mais complexas pelo aumento do volume de informações dialógicas no convívio social. Da mesma forma, é provável que a necessidade de conviver em bandos mais numerosos tenha exercido pressão evolutiva para o desenvolvimento de uma consciência mais eficiente na prática da empatia. No processo de organização do conhecimento, o princípio de identidade reduz os objetos a um traço distintivo que adquire primazia em sua descrição. Tal discurso isolado, geral e absoluto anula as gradações, os níveis e os atritos com outras tendências e elementos do sistema relacional. Assim, torna-se possível construir uma harmonia pretensamente estática e disseminar a crença de que verdades totalizantes e exclusivas teriam sido encontradas. Como veremos a seguir, os quadrinhos de super-heróis, com seus personagens altamente especializados em operar atitudes heroicas e ordeiras, criam discursos predominantemente isolados e unívocos, diminuindo os espaços e as possibilidades de relação com outras esferas de significado que poderiam fazer parte das narrativas. Nossa convivência com tais seres é bastante agradável e pacífica por sua previsibilidade e pouca (ou mesmo nenhuma) ambiguidade. Conhecemos suas motivações e posições frente à realidade. Nossa empatia em prever o comportamento de tais seres é bastante eficiente e, consequentemente, acabamos por sentir a segurança que as instâncias político-sociais, em suas estabilidades funcionais, objetivam conferir aos variados agrupamentos de seres humanos, mais ou menos repletos de contradições e imprevisibilidades. 68

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UMA BREVE HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Em 1988, foi lançada a primeira edição de Sandman, escrita por Neil Gaiman e desenhada por David McKean29, nos Estados Unidos, pela DC Comics, editora estadunidense de quadrinhos fundada em 1934 e responsável por títulos famosos como Superman, Flash, Batman, Mulher-Maravilha, entre outros. Publicada pelo selo Vertigo, criado em meados da década de 1980 para reunir periódicos voltados para um público mais velho, que se convencionou chamar “adulto”, diferenciado daquele que usualmente acompanhava as séries de super-heróis. A revista possuía, como todas desse segmento, o selo de indicação “Mature Readers” (Leitores Maduros), o que, normalmente, prejudicava as vendas entre os leitores usuais de quadrinhos. De toda forma, a DC manteve a linha editorial, investindo na contratação de autores britânicos, tradicionalmente criadores de roteiros mais complexos do que aqueles produzidos pelos autores estadunidenses. A formação dos roteiristas de gibi ingleses era mais literária, mais direcionada aos livros do que propriamente ao universo dos quadrinhos, sobretudo os estadunidenses (SANDERS, 2006, p. 14). De fato, houve no Reino Unido certas proibições e limitações relacionadas aos quadrinhos estadunidenses, de forma que a leitura de gibis de super-heróis não foi tão intensa quanto nos Estados Unidos. Uma tradição diferente, mais ligada ao terror e ao gótico do que aos super-heróis, desenvolveu-se nos países britânicos. Com a perspectiva de produzir histórias diferentes daquelas nas quais a editora havia investido com exclusividade até então, houve a contratação de autores ingleses, escoceses e irlandeses pelo mercado editorial estadunidense durante os anos 1980. O inglês Neil Gaiman, que se tornaria conhecido como o autor de Sandman, foi um dos ditos “invasores”. Convidado para produzir histórias para o selo Vertigo da DC, deu cara

29 David McKean nasceu em Berkshire, Inglaterra, em 29 de dezembro de 1963. Seu trabalho como artista plástico e ilustrador incorpora elementos de desenho, pintura, fotografia, colagem, arte digital, entre outras áreas. 70

nova a alguns antigos personagens da chamada Era de Prata dos quadrinhos (1956-1970). Depois do êxito alcançado com a minissérie Orquídea Negra30, a editora o convidou para produzir uma série mensal de revistas sobre um antigo personagem da década de 1930 – Sandman. De acordo com Gaiman, a única exigência que lhe fizeram foi a de que o nome do personagem fosse mantido. Os editores queriam que a revista (e o personagem principal) se chamasse Sandman. Fora isso, tudo o mais poderia ser recriado e reelaborado por Gaiman. Porém, as limitações de qualquer campo criativo não são somente comerciais. Ao contrário do que diz o senso comum, não é apenas o mercado que rege a produção cultural. Qualquer artista está inscrito em determinada tradição, sob os auspícios de certas correntes e paradigmas, além de estar sujeito às limitações impostas por seu tempo, seu espaço criativo, seu contexto cultural e suas interligações com os entornos próximos. Nesse sentido, talvez uma das atribuições do artista seja distorcer o horizonte de expectativa de certos contextos culturais, ampliando as possibilidades de expressão e de linguagem. Certa inquietação é necessária para romper convenções, assim como são importantes algumas habilidades combinatórias. Muitas vezes, a inovação surge com novas formas de interpretação, elaboração e combinação de elementos que já estavam presentes entre os textos da cultura – a inovação pode ser uma nova forma de operação de sintaxe.

2.1 O Cenário do Mercado Estadunidense de Quadrinhos de Super-Heróis

Os quadrinhos estadunidenses do final dos anos 1980 se situavam numa tradição chamada, informalmente, de “era moderna dos comics” (nome inglês para as histórias em quadrinhos). Considera-se que tal período iniciou-se em meados de tal década e dura até hoje. Tais “eras” dizem respeito aos quadrinhos estadunidenses de super-heróis e são uma denominação tradicionalmente aceita por criadores, fãs, produtores e estudiosos. As duas principais editoras de super-heróis estadunidenses são a DC Comics, já citada, e a Marvel, sua grande rival comercial. Há outras editoras, geralmente denominadas sob a alcunha de “independentes”, que tiveram algum impacto sobre a produção de gibis de super-heróis, com personagens que marcaram a indústria por suas inovações narrativas.

30 Orquídea Negra é uma super-heroína do Universo DC que apareceu pela primeira vez em 1973. 71

Contudo, as famas tradicionais da Marvel e da DC não parecem ter sido abaladas, tendo em vista que não tardaram a abarcar os novos talentos e as novas tendências que faziam sucesso no mercado e incorporá-los à sua linha editorial. Um dos motivos da força dos quadrinhos da Marvel e da DC vem de um fenômeno que se desenvolveu ao longo do século XX e criou sólida tradição entre os leitores de ambas as editoras: o conceito de “universo”. No mundo dos quadrinhos, “universo” é o nome dado ao ambiente existencial dos super-heróis. Há o Universo DC e o Universo Marvel, por exemplo. Ambos utilizam, em comum, certos aspectos do mundo contemporâneo, mas as organizações hierárquicas dos super-heróis, das dimensões, dos mundos paralelos, dos vilões, etc., são bem diferentes e distintivas. Os heróis dessas editoras não se encontram por não pertencerem ao mesmo universo. Parcerias entre as duas foram constituídas algumas vezes, e revistas com heróis populares dos dois universos, atuando em conjunto ou como antagonistas, foram publicadas. Mas tais eventos foram exceções à regra de isolamento das duas linhas editoriais. De maneira geral, é importante manter a coerência interna de tais universos, tendo em vista que os leitores dos quadrinhos dão grande valor à lógica dos eventos narrados. Isso quer dizer que um super- herói pode muito bem morrer e renascer quantas vezes forem necessárias, contanto que esteja dentro das regras do “universo” ao qual ele pertence. Tendo em vista tal aspecto, podemos dizer que a produção dos quadrinhos de super-heróis se assemelha ao gênero cinematográfico e literário da ficção científica. A ficção científica, embora quase sempre mostre fatos inusitados e futuristas, tem certa obrigação de explicar as tecnologias e as teorias que tornam possíveis seus eventos. Por isso, a ciência faz parte de seu nome. Espera-se que qualquer coisa, por mais incrível e fora da realidade que pareça, tenha algum tipo de explicação coerente e plausível. Ou, ao menos, detalhada. Por isso mesmo, certos eventos envolvendo super-heróis até desgostam os fãs por suas justificativas “lógicas” absurdas. Se a morte e ressurreição do Superman, ocorrida na década de 1990, por exemplo, fosse menos explicada, talvez fizesse até mais sentido. A questão é que, fazendo parte de um universo com muitos personagens – tendo os mais importantes suas próprias revistas e contextos –, explicações e estruturas internas de lógica se fazem necessárias para que as histórias dos personagens “parentes” possam ser coordenadas entre si. De outra forma, seria impossível a convivência entre os personagens do mesmo “universo”. 72

Informalmente, os “universos” DC e Marvel passaram por quatro eras distintas. A era de ouro foi um período marcado pela primeira geração de escritores, artistas e editores da indústria de quadrinhos americana e durou da década de 1930 ao final da década de 1940 do século passado. Foi o período de criação de super-heróis como Superman, Batman e Capitão América. Podemos considerar o surgimento do Superman, em 1938, na revista Action Comics #1, como fato inaugural da era de ouro e da tradição dos super-heróis. O nome super- herói, inclusive, parece ter se originado do nome do herói, Superman. Nesse período, foram criados super-heróis cujas características heroicas seriam a base de toda a produção de ídolos nos quadrinhos. Essa foi a época do surgimento da energia atômica. Seus efeitos e características influenciaram o imaginário pós-guerra e geraram seres bastante poderosos, muitos deles alterados devido à radiação e com poderes advindos da quebra do átomo. Talvez por isso mesmo tenha se tornado tão marcante na cultura pop a fraqueza do Superman – a kryptonita, pedra radioativa, normalmente verde, que podia até mesmo matá-lo. De forma geral, podemos observar algumas características básicas nos quadrinhos de super-heróis, as quais vêm se desenvolvendo, desde seu primórdio: altruísmo irrestrito; idealismo engajado à ideologia da democracia, da liberdade e do modo de vida americano, muito divulgados à época em virtude da 2ª Guerra Mundial e da posterior propaganda anticomunista; poderes sobre-humanos; ausência de conflitos éticos ou morais; e obediência às autoridades institucionais – mesmo o Superman recebia ordens de generais e presidentes. A era posterior, chamada de era de prata, cobriu o período da década de 1950 até o final da década de 1960. O exemplo mais evidente e clássico desse período é o Homem-Aranha, criado por Stan Lee em 1962 (Figura 9). Se alguns super-heróis têm sua origem e poderes atribuídos a objetos místicos e contatos com entidades sobrenaturais, o Homem-Aranha segue outra tendência, pois adquiriu poderes oriundos da radiação ao ser picado por uma aranha que havia se tornado radioativa durante um experimento. O alter ego do Homem-Aranha é Peter Parker, um rapaz franzino, órfão, pouco popular e aficionado por ciência. É o típico garoto fã de quadrinhos e para quem eles eram feitos. No papel do herói ou de Peter, o protagonista estava sempre com problemas: sem dinheiro para fazer a teia artificial que usa para combater o crime, atrasado para as aulas na universidade em decorrência das noites mal dormidas nas quais sai pela cidade como Homem-Aranha, com dívidas de aluguel, sem dinheiro para ajudar a tia viúva, tímido, com baixa autoestima, etc. 73

Figura 9

A primeira edição do gibi The Amazing Spider-Man, de 1963, custava apenas 12 centavos de dólar. Aqui, o aracnídeo confronta o Quarteto Fantástico, família de heróis popular de Nova York criada na mesma época do Aranha por Stan Lee. 74

O grau de identificação dos leitores com os super-heróis aumentou consideravelmente nessa época. Eles finalmente pareciam ter os mesmos problemas espécie que seus leitores tinham, apesar de seus poderes especiais. A despeito das diferenças, alguns aspectos continuaram muito parecidos – o nível de idealismo, o altruísmo, o respeito às autoridades policiais e políticas, a repetição das lutas contra o crime (uma constante como representação do mal) e contra supervilões. Outra criação da época foi a revista dos X-Men (Figura 10), em 1963, que contava a história de um grupo formado por super-heróis mutantes, também concebidos por Stan Lee. Tratava-se de pessoas com uma mutação genética – a presença do gene x – que resultava na manifestação de algum poder especial sobre-humano. Por isso, sofriam grande preconceito, sendo muitas vezes marginalizados, inclusive abandonados por suas próprias famílias. O professor Charles Xavier, mutante com poderes telepáticos, reuniu alguns jovens excluídos em seu instituto para superdotados e, além de lhes dar uma “família”, formou uma equipe com o objetivo de enfrentar criminosos e mutantes maléficos e, assim, colaborar para que as duas espécies, Homo sapiens e Homo sapiens superior, possam vivem em paz e harmonia no mundo. A relação temática desse título com os preconceitos raciais estadunidenses ficou bastante evidente e, até hoje, os X-Men apresentam discussões a respeito de intolerância, discriminação social, segregação, etc. Quadrinhos como esses contribuíram para certa humanização dos super-heróis, aumentando a empatia deles com o público, o qual era alertado pela Comics Code Authority – CCA, um tipo de agência reguladora e censora dos gibis estadunidenses sobre como os quadrinhos aumentavam índices de delinquência juvenil e deturpavam os valores da sociedade estadunidense (SANDERS, 2006, p. 17) – nada muito diverso do que aconteceu, acontecia e acontece em relação à literatura, à música, ao cinema, ao rádio, à TV, à Internet, etc. Outros super-heróis chegaram ao universo Marvel: o Quarteto Fantástico, o primeiro time de super-heróis da editora; o Homem de Ferro (Tony Stark, o milionário que usava uma armadura com tecnologia de ponta capaz de manter seu coração doente funcionando); Thor (o deus nórdico aprisionado na terra na forma de um médico deficiente, como castigo imposto por seu pai, Odin, em razão de seu interesse pelos humanos); Hulk (monstro extremamente forte e irracional no qual se transformava o doutor Bruce Banner ao ficar com raiva, resultado da contaminação irreversível por raios gama). 75

Figura 10

Primeira página da segunda edição dos X-Men. Na imagem, Anjo, Ciclope, Fera, Homem de Gelo e Garota Marvel atendem ao chamado telepático de seu líder e mentor, Charles Xavier, conhecido como Professor X.

76

Além dos novos heróis, houve, por exemplo, a ressurreição do Capitão América, que havia lutado na 2º Guerra Mundial e, em vez de ter sido morto – como se pensava –, apenas sofrera um acidente, ficando em animação suspensa, congelado no Ártico durante décadas. Sua volta ao mundo dos vivos resultou na criação do maior time de super-heróis da Marvel – Os Vingadores. Já na DC Comics, muitos personagens foram reformulados, recriados e modernizados. Por razões de coerência, alguns desses heróis, com mais de duas décadas de idade, foram reintroduzidos nas tramas com a criação da chamada Terra – 2, um planeta igual ao nosso (Terra – 1), onde os super-heróis da era de ouro viviam. Tal mecanismo de mundos paralelos, que podiam se comunicar entre si sob determinadas circunstâncias, desenvolveu-se de tal forma na DC que, anos depois, foi escrita a série Crise nas Infinitas Terras31 como meio de tentar resolver as contradições e complicações criadas pela existência de não apenas duas, mas muitas Terras Paralelas no chamado multiverso. A posterior era de bronze de quadrinhos de super-heróis inicia-se no começo da década de 1970 e dura até meados da década de 1980. O traço distintivo desta época, digno de nota, foi a introdução de novos temas às histórias, antes sequer mencionados. Para os quadrinhos de super-heróis, bastante conservador na maioria das questões, sobretudo em relação às sociais, era um grande progresso abordar temas como o abuso de drogas, como fez Stan Lee nos gibis do Homem-Aranha32, em 1971. Tal relação com a sociedade da época é bem interessante. Se os grandes avanços da ciência eram rapidamente transportados para os universos Marvel e DC, o mesmo não se dava com os processos sociais, como os movimentos estadunidenses pelos direitos civis ou a contracultura. Apesar disso, nos desenhos, nos textos, nas falas dos personagens e nos namoros entre heróis e mocinhas apareciam elementos bastante modernos, gírias, roupas ligadas às mais recentes tendências da moda. Assim, os quadrinhos apresentavam um descompasso entre tempos e atitudes – modernos e antiquados, conservadores e liberais. Surgiram super-heróis que representavam minorias. Antes da década de 1970, o Pantera Negra33, rei de um país africano, e Falcão34, parceiro do Capitão América, eram duas raras exceções à regra de super-heróis brancos, protestantes e anglo-saxões. Um grande exemplo é Luke Cage35, primeiro personagem negro a ter publicação própria. Porém, somente

31 Minissérie com 12 edições, publicada originalmente em 1986. 32 É revelado que o melhor amigo de Peter Parker, Harry Osborn, é dependente de LSD. 33 A primeira aparição do Pantera Negra ocorreu em 1966. 34 A primeira aparição do Falcão foi em 1969. 35 Luke Cage estreou nos gibis em 1972 e foi criado por Archie Goodwin e John Romita. 77

nos anos 1980 é que Cyborg36 e Tempestade37 (Figura 11), super-heróis negros, tornaram-se líderes de suas equipes, Novos Titãs e X-Men, respectivamente. Outro evento marcante foi o surgimento do uniforme negro do Homem-Aranha (Figura 12), que pode ser considerado como o marco de virada para a próxima era, a moderna, que dura até hoje. O Homem-Aranha sempre foi considerado o “amigo da vizinhança”. Um super-herói popular em sua cidade, visto como o sujeito que enfrenta ameaças espaciais da mesma forma que ajuda uma velhinha a atravessar a rua. Um sujeito de bem, vestido com uma roupa vermelha e azul cheia de teias. Um super-herói camarada. O uniforme negro deu-lhe outro aspecto. Se continuava o mesmo em seu comportamento, a nova roupa lhe conferiu um tom sombrio inédito. Não por coincidência, nunca ele havia sido tão agressivo como nessa época. Peter Parker estava, afinal, sintonizado com o período que se iniciava. A era moderna dos super-heróis parece ter começado não especificamente com a publicação de novos títulos, mas com a revelação de alguns escritores: John Byrne no comando da revista do Quarteto Fantástico, Frank Miller escrevendo Demolidor e Chris Claremont no roteiro de X-Men. Nesta época os roteiros se tornaram tão ou mais importantes que a arte gráfica, mudando uma tendência que se mantinha mais ou menos regular desde o estabelecimento da indústria dos quadrinhos de super-heróis. Foi também o momento da “invasão” dos escritores ingleses nos quadrinhos comerciais americanos. O resultado foi a transformação de uma arte considerada menor em algo cult, moderno e inovador, levando, inclusive, à criação, pela DC, do selo de obras maduras e adultas Vertigo, que abrigou os títulos mais inovadores e famosos dos anos 1980 e 1990. Muitas especulações foram feitas a respeito da importância da entrada dos autores ingleses no universo dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses. Uma hipótese bastante aceita no meio é a de que os autores estadunidenses que trabalhavam com quadrinhos haviam sido criados e formados nas artes lendo quadrinhos e, portanto, a renovação do meio era muito difícil. Já os autores ingleses tinham tido contato com diversos gêneros de quadrinhos europeus e alguns deles tinham na literatura sua maior influência. Em outras palavras, a criação de um espaço comunicativo entre a literatura e os quadrinhos, através da chegada não só de autores ingleses, mas também escoceses e irlandeses, escolhidos pela coincidência da

36 Cyborg é um super-herói da DC Comics criado em 1980. 37 Tempestade é uma mutante que controla o clima e integra a equipe de X-Men. 78

língua, tornou possível uma reelaboração das tradicionais formas criativas de contar as histórias por meio da linguagem quadrinesca desenvolvida para os super-heróis até então, que parecia alimentar-se de seus próprios temas, sem alcançar as variações presentes em outras formas de expressão. O crítico literário e tradutor russo Iuri Tinianov (1894-1943) ressaltou em seus estudos a importância dos deslocamentos de signos entre diferentes séries culturais, por meio de apropriações e traduções, para a renovação e revitalização de diferentes linguagens, possibilitando novas formas de sintaxe.

O russo Iuri Tinianov (1975) levou para frente os estudos poéticos na segunda década do século XIX, ao expor, contra a pretendida autonomia do verso, que cada elemento construtivo de um poema, em caso de desgaste e repetição automatizada, devia aproveitar-se dos procedimentos de outras “séries culturais”, por exemplo, a escrita jornalística ou a fala cotidiana. Causava-se assim um “estranhamento” pelo deslocamento construtivo das expectativas de leitura através da relação entre o texto e os extra textos. (PINHEIRO, 2009, p. 11)

Neste momento surgiram as graphic novels. Por ocasião de sua obra Um contrato com Deus, de 1978, Will Eisner, o criador de Spirit38, utilizou o termo graphic novel para defini-la, querendo distingui-la da produção quadrinesca tradicional. A partir de então, essa se tornou uma denominação comum para designar quadrinhas que teriam maior qualidade que os títulos mensais usuais. Já que a maioria dos gibis é produzida em forma de série, ou seja, em forma semelhante à do folhetim, contando as histórias dos personagens a cada mês, mantendo o suspense e a expectativa e fidelizando o leitor, uma das características das graphic novels é a apresentação de uma história acabada, com princípio, meio e fim. No máximo, seria permitida uma pequena série, uma minissérie, de poucas edições. Além disso, de forma geral, a graphic novel é uma forma literária de quadrinhos – um livro com imagens ajudando a contar a história. Usualmente, considera-se o leitor e o produtor de graphic novels mais cultos e sofisticados que o leitor e produtor de gibis. Como já citamos na introdução, muitos escritores foram contra a denominação graphic novel. Queriam que suas obras fossem vistas como quadrinhos, mídia com a qual trabalhavam e na qual buscavam explorar os limites de uma linguagem muito nova e pouco conhecida.

38 Spirit é um combatente mascarado do crime, criado em 1940. 79

Figura 11

Página de X-Men #201, de 1986. Tempestade luta com Ciclope pela liderança dos X-Men. Derrotado, o antigo líder abandona o grupo e parte com a esposa, Madelyne Pryor, para o Alasca. 80

Figura 12

Na década de 1980, a série Guerras Secretas reuniu os maiores e mais populares heróis da Marvel numa batalha cósmica promovida pelo Beyonder, um ser misterioso. Acima, a primeira aparição do Homem- Aranha com o uniforme negro, mudança radical de figurino que trouxe a possibilidade de um herói um pouco mais sombrio atuar sem perder, contudo, seu carisma e amabilidade característicos. 81

Alguns títulos ajudaram a construir a ideia, se não de graphic novel, mas de quadrinhos de “qualidade”, ou seja, de quadrinhos que, de alguma forma, eram distintos dos de super-heróis vendidos todos os meses nas bancas. Maus, de autoria de Art Spiegelman, lançada em 1986, ganhou o prêmio Pulitzer e contava a história do holocausto, mais especificamente a luta do pai de seu criador, um judeu polonês, para sobreviver à perseguição nazista. Os personagens, contudo, não eram humanos: judeus são ratos, alemães são gatos e os aliados são cachorros. Batman: O Retorno do Cavaleiro das Trevas, também de 1986, trouxe um protagonista amargurado, velho, que foi obrigado a deixar a vida de vigilante por ordens do governo estadunidense, o qual não via com bons olhos certas inspirações que os super-heróis causavam nas pessoas. A Mulher-Maravilha voltou para sua ilha, o Arqueiro Verde teve um de seus braços arrancado pelo Superman, que se tornou um aliado secreto do governo, obedecendo cegamente a quem quer que estivesse “por trás da bandeira”. Bruce Wayne, identidade secreta de Batman, se embebeda de vinho todas as noites para “adormecer” o morcego, que nada mais era que sua necessidade de fazer diferença num mundo, segundo ele, atormentado por coisas “piores que assassinos”. Eventualmente, volta a ser o justiceiro mascarado e enfrenta o Superman numa luta histórica. Watchmen, de Alan Moore, de 1987, reuniu heróis desconhecidos num mundo onde mascarados eram amados e odiados por suas posições políticas e ideológicas. Sem superpoderes – somente o Dr. Manhattan era um super-humano – a ênfase era dada nos idealismos, lealdades ou incoerências dos personagens. Dave Gibbons, ilustrador da série, incorporou elementos de imagens cinematográficas, criando sequências narrativas que iam de quadros gerais panorâmicos a detalhes específicos. Outros exemplos, distantes do gênero dos quadrinhos dos super-heróis, trouxeram tanto ou mais inovações do que os citados acima, mas não os abordaremos aqui, limitando- nos apenas aos relacionados de forma mais próxima às séries de super-heróis. De forma geral, o nome graphic novel acabou diferenciando histórias em quadrinhos produzidas de forma especial, em uma única edição ou em poucos episódios, do tipo de quadrinhos produzidos de forma seriada, mensal, sobre super-heróis em contextos mais ou menos homogêneos. Podemos notar a presença de certa carga ideológica, tendo em vista que a nova categoria cria certa estrutura hierárquica pouco interessante para o entendimento dos movimentos da série cultural dos quadrinhos. Além disso, tal discussão sobre gibis e graphic 82

novels nasce nos Estados Unidos, configurando certa oposição que, em outros locais, com suas próprias tradições quadrinistas, soa sem sentido, não fosse pela penetração massiva de tal produto cultural ao redor do globo, em inúmeros países.

2.2 Possíveis Traços Distintivos da Linguagem dos Quadrinhos

O panorama da produção de quadrinhos é tão vasto e diversificado, abrangendo desde os mangás japoneses às tirinhas presentes nos fanzines produzidos artesanalmente e distribuídos, através de redes independentes, pelo correio e em festas underground, que parece bem difícil estabelecer formas de possíveis códigos gerais constituídos na mais ou menos breve história das histórias em quadrinhos. Scott McCloud, artista e teórico do meio, lançou um livro sobre a arte produzida em forma de quadrinhos. Porém, antes de investigarmos a pesquisa de McCloud, convém comentarmos algo sobre a mídia “quadrinhos”, tendo em vista a máxima de McLuhan de que “o meio é a mensagem” (MCLUHAN, 2003, p. 21). Segundo este autor, os meios, quanto à definição (exatidão) das informações transmitidas, podem ser divididos de duas formas:

Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, como o rádio, de um meio frio, como o telefone, ou um meio quente, como o cinema, de um meio frio, como a televisão. Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual. O telefone é um meio frio, ou de “baixa definição”, porque ao ouvido é fornecida uma baixa quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus usuários. (MCLUHAN, 2003, p. 38)

A linha quente Washington-Moscou, via de comunicação direta por teletipo inaugurada em 1963, durante a Guerra Fria, foi considerada “infeliz em todos os sentidos” pelo autor, que viu num meio quente – pouco participativo, bastante diferente do telefone, frio 83

e mais envolvente – um reflexo da tradição literária do Ocidente, mas não a melhor opção para o diálogo e a negociação de possíveis conflitos e antagonismos. O meio frio tende ao analógico; o quente, ao digital. Dada a “baixa resolução” do meio frio e sua não especialização em codificação, ou seja, sua transmissão usual de mensagens em mais de um “canal” perceptivo, muitas lacunas devem ser preenchidas pelo destinatário da mensagem. É como se muitos pontos que formam uma figura fossem fornecidos, mas não todos. Cabe ao receptor completar os espaços restantes e colaborar na construção do sentido. Já o meio quente, de alta definição, especializado, fornece tamanha saturação de informações que a participação do destinatário na elaboração da mensagem é mínima. A escrita baseada no alfabeto é um bom exemplo.

Um meio frio como os caracteres escritos hieroglíficos ou ideogrâmicos atua de modo muito diferente daquele de um meio quente e explosivo com o do alfabeto fonético. Quando elevado a um alto grau de intensidade abstrata, o alfabeto se transforma em tipografia. A palavra impressa, graças à sua intensidade especializada, quebrou os elos das corporações e mosteiros medievais, criando formas de empresas e de monopólios extremamente individualistas. Mas a reversão típica ocorreu quando o monopólio extremado trouxe de volta a corporação, com seu domínio impessoal sobre muitas vidas. (MCLUHAN, 2003, p. 39)

Meios quentes, de alta definição, tendem à especialização e ao alto grau de abstração. Meios frios, de baixa definição, tendem ao geral, à pluralidade e à experiência. O processo de leitura de um livro, em geral meio quente e de alta definição, exige especialização e abstração para ser operativo. Um diálogo entre vizinhos, mídia fria, tem canais gerais e múltiplos de percepção, sendo o uso da experiência mais acentuado do que da abstração. Certas gradações nos meios estão usualmente presentes, não havendo ambientes integral ou exclusivamente quentes ou frios. Idealmente, abstraídos dos contextos, podemos conceituá-los; porém, como fatos da vida, há interação constante entre meios frios/quentes, analógicos/digitais, de alta/baixa definição. Nesse sentido, estados puros nos servem somente como forma de estudo de tendências e de suas leis internas. McLuhan dedica um capítulo da obra aqui citada – Os meios de comunicação como extensões do homem – ao estudo do meio “quadrinhos”, associado ao estudo do meio “imprensa”, do qual o jornal é considerado o grande exemplo pela velocidade com que se propagou pelo mundo em um período de tempo relativamente curto, a partir do surgimento da 84

tecnologia de impressão. A citação abaixo pode ser considerada referência para todos os tipos de quadrinhos, mas se refere especificamente àqueles que aparecem nos jornais, as tirinhas.

As estórias em quadrinhos (como já explicamos nos capítulo dedicado à imprensa), apresentando baixa definição, possuem uma forma de expressão altamente participante, perfeitamente adaptada à forma em mosaico do jornal. (MCLUHAN, 2003, p. 189)

Jornal, quadrinhos, cidades. Se, por um lado, os ritmos metropolitanos, exigem, nos ambientes internos corporativos e burocráticos, meios quentes e de alta definição, por outro, a urbanidade, seu comércio, seus fluxos, seus mercados, pregões, relações e proliferação de códigos manifestam acentuada inclinação aos meios, linguagens e canais de baixa definição, participativos e analógicos.

Picasso sempre foi um fã de estórias em quadrinhos americanas. De Picasso a Joyce, os intelectuais sempre tiveram estima por essa arte popular americana, porque nela viam uma autêntica reação criativa às iniciativas oficiais. De outra parte, a arte refinada tende a evitar e condenar as manifestações artísticas ruidosas numa poderosa sociedade “quadrada”, de alta definição. (MCLUHAN, 2003, p. 189)

As primeiras tiras de jornal eram voltadas principalmente ao humor despretensioso. Eram repletas de personagens gerais, diferentes daqueles “palhaços acrobáticos da era de alta industrialização” (MCLUHAN, 2003, p. 189). Desde tal percepção, com o surgimento dos super-heróis, criam-se personagens especializados em ações, ideais, moral e visão de mundo. Quando surge o Homem-Aranha, vemos um super-herói um pouco mais genérico, que enfrenta bandidos enquanto pensa na prova de física do dia seguinte, quando se sentará ao lado daquela moça loira que sorri para ele todos os dias, mas que ele não sabe o nome por conta de sua timidez e de sua vida dupla. Quando entramos na era moderna dos quadrinhos, não são temas novos e polêmicos que são introduzidos no universo dos super-heróis, mas personagens que sofrem deslocamentos39 de seus contextos para participar de outros universos, narrativas e contextos socioculturais. Se o meio é a mensagem, a passagem de informação de determinado meio para outro, que é o processo tradutório, necessariamente configura novas mensagens e sentidos.

39 Deslocamento: mudança de posição; movimento para ocupar ou ceder espaço; desarticulação provisória; movimento que configura novos sentidos e significados. 85

Em Desvendando os Quadrinhos, de 2005, McCloud explora diversos aspectos da história, da produção, da criação, da leitura e das linguagens dos quadrinhos. Focar-nos-emos em algumas questões e relações que consideramos mais pertinentes a nosso estudo, entendendo que nos aventuramos em terrenos desconhecidos e pouco estudados, se compararmos os gibis a outras formas de arte. Longe de constituírem leis ou rígidas teorias, consideramos que as reflexões do autor são relevantes indícios de alguns caminhos que poderemos seguir em nossos estudos sobre os quadrinhos. Segundo McCloud, os quadrinhos descendem de outra série cultural, o cartum, que são desenhos humorísticos que podem ou não possuir legendas, cuja característica básica seria simplificar a realidade para promover a identificação do leitor com ela:

Quando abstraímos uma imagem através do cartum, não estamos só eliminando os detalhes, mas nos concentrando em detalhes específicos. Ao reduzir uma imagem ao seu ‘significado’ essencial, um artista pode ampliar esse significado de uma forma impossível pra arte realista. (MCCLOUD, 2005, p. 30)

Como menciona o autor, o cartum é uma linguagem que amplia detalhes, por isso, segundo ele, aproxima-se do campo do significado. A fotografia, que é de alta definição, por exemplo, aproxima-se do campo da “coisa”, ou seja, do objeto, do referente. Dessa forma, ele propõe o seguinte esquema (MCCLOUD, 2005, p. 48):

Figura 13

McCloud esquematiza o caminho que leva da imagem realista, mais próxima do objeto, até suas formas mais abstratas. 86

Há uma sequência que leva da imagem realista até a abstração das palavras. As imagens e as palavras estão distantes, mas nem tanto. O autor lembra, ainda, que elas já estiveram muito próximas, como nas formas de registro maias, egípcias ou, hoje em dia, nos ideogramas orientais. Consequentemente, McCloud (2005, p. 51-52) apresenta restrições ao conceito de que quadrinhos são o resultado da combinação de palavras e imagens, ainda que concorde que muitas vezes tal definição ajuda a entender alguns aspectos dessa arte. O autor vê os quadrinhos e as artes gráficas em geral como um jogo de forças entre vértices-ideais de três categorias: há o plano das figuras (relacionado aos significantes), da realidade (relacionado ao referente) e da linguagem (relacionado ao significado). Ele entende que tais vértices, incorporando a linguagem escrita e outros ícones um pouco abaixo da base que liga os objetos às ideias, representam o vocabulário pictórico dos quadrinhos (MCCLOUD, 2005, p. 51. Figura 14). Por meio de combinações de diferentes níveis de aproximação entre o significante, o significado e o referente os signos são desenvolvidos, construídos, relacionados entre si e, consequentemente, o estilo “quadrinhos” é concebido. Mas os quadrinhos contam, ainda, com outros elementos, como a disposição dos quadros na página – o traço que, para McCloud, é uma linguagem própria dos quadrinhos. Além disso, diferentes tipos de traços, seja para compor desenhos ou para expressar movimento, comunicam diferentes sensações, emoções, posturas, desejos, etc. Há também a manipulação dos quadros para gerar efeitos temporais – quadros alargados podem ser usados para tempos mais longos, enquanto sequências de quadros mais estreitos podem dar a ideia de rápidos instantes. Porém, o autor alerta, esse é somente um dos componentes temporais. Se num quadro pequeno há um “cof-cof” ou uma frase longa, o tempo nele varia consideravelmente, pois este outro constituinte altera o tempo/espaço do quadrinho da ação/situação. Se nos quadros e na diagramação das páginas existe um movimento de seleção e combinação de elementos, através de imagens e design, outros processos, para McCloud, acontecem nos quadrinhos. Para ser mais específico, acontecem entre eles. Os espaços entre os quadrinhos são chamados de “sarjeta”. De forma geral, é um espaço vazio, em branco. Uma interrupção no fluxo de informação. Devemos lembrar que se os quadrinhos são, como propôs Eisner, uma arte sequencial e, como completou McCloud, de imagens justapostas, a existência desse vazio, dessa interrupção, é tão necessária quanto os próprios quadros de ilustrações. 87

Figura 14

Pirâmide com o modelo de McCloud sobre a distribuição dos personagens de quadrinhos de acordo com sua proximidade do plano da realidade, das figuras ou do significado. Os super-heróis ocupariam, nesse esquema, o centro próximo à base, mais próximo ao vértice realista.

Outras mídias operam por imagens justapostas, como o cinema e a televisão. Mas os quadrinhos contam com a visualização objetiva de fragmentos de espaço, que são experimentados conscientemente inúmeras vezes durante a leitura de um gibi. Acima, designamos a sarjeta como lugar de interrupção. Mas o mais adequado seria entendê-la como lugar de passagem. Segundo McCloud (2005, p. 67):

Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a ‘conclusão’ nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada. No limbo da sarjeta (...) a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em 88

uma única idéia. Se a iconografia visual é o vocabulário das histórias em quadrinhos, a conclusão é a sua gramática.

Devemos entender que um dos esforços gramaticais de um autor de quadrinhos é a combinação das linguagens segundo uma determinada gramática para causar certo efeito conclusivo no leitor. Ou seja, ele precisa levar o leitor a atribuir determinado sentido às sequências gráficas apresentadas. Como já citamos, McLuhan considerou os quadrinhos um meio frio e de baixa definição, altamente participativo. McCloud defende que o espaço entre os quadros é responsável pelo grande envolvimento exigido pelo esse meio de comunicação. É nesse espaço que o leitor “completa as lacunas” que os artistas, propositalmente ou não, deixam para a imaginação. Formar, a partir de mosaicos, fluxos narrativos exige do leitor um alto grau de conclusão. McCloud (2005, p. 89) também constata que:

O quadrinho é um meio monossensorial que depende de um só sentido para transmitir um mundo de experiências. Mas e os outros quatro sentidos? O som é representado por dispositivos como balões que, por si só, são uma representação exclusivamente visual. Dentro dos quadros, só dá para transmitir informações visualmente. Como entre eles nenhum dos nossos sentidos é exigido todos os nossos sentidos acabam envolvidos.

A partir dessas reflexões, o autor conclui que nenhuma arte exige tantos momentos de conclusão do leitor – e, consequentemente, tanta participação imaginativa – quanto os quadrinhos. Esse excesso participativo é algo próprio dessa arte e, por isso, seria um erro considerá-la somente “uma mistura de artes gráficas e ficção em prosa” (MCCLOUD, 2005, p. 92), ainda que seja evidente a grande contribuição dessas duas formas de arte para a linguagem dos quadrinhos. Devemos perceber, primordialmente, suas formas de expressão e organização, isto é, suas formas específicas de sintaxe. McLuhan profetizou a destruição dos quadrinhos pela televisão. Esta seria um meio tão participativo quanto os quadrinhos, mas com a característica de exigir dois sentidos para apreensão das informações ao invés de apenas um, sendo, por isso, mais envolvente. Talvez pudéssemos teorizar sobre por que tal coisa não aconteceu. Porém, baseados na falha das profecias quanto à morte do rádio pelo surgimento da TV, ou da fotografia pelo aparecimento do cinema, podemos dizer que as mídias são mais do que certo estágio de desenvolvimento técnico. Suas formas construtivas, combinatórias e suas linguagens 89

estabelecem relações com a cultura que não podem ser apagadas somente pelo surgimento de técnicas consideradas mais avançadas por sua superior velocidade de transmissão de informações ou maior definição digital. Existem relações culturais subjacentes bastante complexas que não se baseiam apenas na eficiência quantitativa de dados, mas também nas possibilidades de conexão dos textos culturais entre si e com outras séries da cultura.

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ENTRE AS ESFERAS ÉPICAS E OS ESPAÇOS COTIDIANOS

Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.

Hobbes, O Leviatã, p. 144.

Os super-heróis têm suas próprias histórias – os mais famosos, seus próprios gibis. O Homem-Aranha, o Superman, o Batman e os X-Men, por exemplo, têm um ou mais títulos mensais que narram suas trajetórias e aventuras. Alguns personagens e grupos criados há mais de 50 anos continuam apresentando-se jovens, praticamente sem sinais de envelhecimento, resguardados, nas páginas de papel, da ação do tempo. Eles parecem, a princípio, viver no mesmo mundo em que vivemos e compartilhar de nosso universo. A maioria deles vive nos Estados Unidos da América, mais especificamente na cidade de Nova York, onde se passam muitas de suas aventuras, que podem, eventualmente, se expandir para outros países, planetas, galáxias e dimensões. O mundo retratado nos quadrinhos geralmente possui ciências e tecnologias mais avançadas do que as sociedades contemporâneas, mas as ruas são muito parecidas com as nossas, assim como os carros, os prédios, além de alguns problemas globais, como a poluição e a pobreza; os penteados se assemelham aos de nossa época, da mesma forma que roupas e acessórios, os modelos de óculos, os ternos dos executivos, os uniformes militares, a decoração das casas, a arquitetura dos prédios universitários e os monumentos históricos. Por vezes, esses super-heróis circulam por alguns países que não estão em nossos mapas: como Latvéria, um território do leste europeu governado pelo Doutor Destino40, ou a

40 Doutor Destino é um supervilão do universo Marvel, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1962. 92

ilha de Genosha, onde os mutantes41 já passaram por horrores tão grandes quanto os que ocorreram nos campos de concentração alemães da 2ª Guerra Mundial. Mas são lugares minúsculos, incapazes de mudar a organização do mundo. Ainda assim, são mundos com questões e problemáticas extras em relação à nossa realidade. Os super-heróis também ficam horrorizados com a fome e as guerras ao redor do mundo, porém têm preocupações maiores, como as investidas bélicas da espécie alienígena Skrull42, ansiosa por dominar e colonizar o planeta, escravizando todos os humanos. Há também ameaças que não vêm de outras civilizações, mas de seres ou entidades cósmicas poderosas, como Galactus43, o Devorador de Mundos (Figura 15), que é um risco constante a todos os planetas, ou Darkseid44, um dos grandes inimigos do Superman. Tal mundo, com lugares que pretendem ser os mesmos que os nossos, apesar de possuir história correlata, não apresenta entrelaces históricos. No mundo dos super-heróis, de forma análoga ao que ocorre em nosso tempo, o presente possui uma força que se sobrepõe aos aspectos passados e às implicações futuras. O hoje dos super-heróis é o motor das narrativas e o passado não é mais que uma explicação, uma racionalização dos acontecimentos – não comporta processo, haja vista a ausência de envelhecimento dos personagens. O presente é absoluto e por isso não está sujeito às mudanças e às alterações promovidas pelo cotidiano. Os super-heróis enfrentam desafios bem maiores que eles próprios. Ou, ao menos, que assim parecem ser. Quando o inimigo alcança a escala de ameaça planetária, galáctica ou até mesmo cósmica, os “mocinhos” se unem e geralmente conseguem repelir o perigo. Nesses momentos críticos, super-heróis como o Surfista Prateado45 (Figura 16) – ser alienígena que viaja pelo universo e esporadicamente visita a Terra – lutam ao lado de seres com poderes mais modestos, como o Homem-Aranha, que possui força e agilidade sobre- humanas, teias artificiais (criadas por ele mesmo) e um “sentido de aranha” que o alerta sobre qualquer perigo eminente. Apesar disso, o Aranha, também conhecido como “O Cavaleiro das Teias”, “Aracnídeo”, “Amigo da Vizinhança” ou “Cabeça de Teia”,possui tamanha determinação, coragem e senso de responsabilidade que sua ajuda quase sempre é vital em qualquer contexto, nem que seja para colaborar apenas com seu bom humor.

41 Mutantes é um termo usado no Universo Marvel para denominar seres humanos com poderes especiais em decorrência de mutação genética do Gene X – trata-se do Homo sapiens superior, suposto passo evolutivo do Homo sapiens. 42 Os Skrulls são uma civilização alienígena do universo Marvel, criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1962. 43 Galactus é uma entidade cósmica do universo Marvel, criada em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby. 44 Darkseid é um supervilão do universo DC, criado por Jack Kirby em 1970. 45 O Surfista Prateado é um super-herói cósmico do universo Marvel, criado em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby. 93

Figura 15

Nessa reprodução de uma das páginas da história da origem do Surfista Prateado, vemos Galactus, o Devorador de Mundos, preparando-se para consumir Zenn-La, o planeta natal do futuro super-herói, o qual protesta numa tentativa de fazer o gigante cósmico poupar seu mundo. 94

Figura 16

Norrin Radd é transformado no Surfista Prateado, com sua armadura de prata virtualmente indestrutível. A mão da Galactus, ligeiramente acima do Surfista, de joelhos, dá o tom da grandiosidade da cena, com a energia circulando ao redor como se fossem relampejos de algum deus antigo. 95

O super-heroísmo é, na maioria dos casos, uma questão de bravura e altruísmo, sendo a circunstância, geralmente, pouco relevante diante da essência predestinada do combatente do crime e do mal. O presente sem limites ou fronteiras, que subordina o passado e não faz referência ao futuro, torna a realização do momento absoluta e espetacular, só podendo ser sufocada ou eclipsada pelo desafio e pela conquista seguintes. A vitória é do símbolo, sendo o homem instrumento. Eles trazem consigo suas insígnias: a “Estrela Branca” do Capitão América46 (Figura 17); o “S” do Superman47 (Figura 18); o “Morcego” do Batman48. Com o tempo, esses símbolos passam a indicar as causas defendidas por cada um dos personagens: patriotismo, verdade, justiça. O cotidiano dos super-heróis é feito de desafios maiores do que os dos humanos comuns. Não obstante, eles se encontram à altura das tarefas que devem cumprir, e não somente por terem superpoderes, mas principalmente por seus traços de caráter, como a coragem, o idealismo, a responsabilidade, a lealdade, etc. Sem tais características, suas habilidades especiais, ainda que sobre-humanas, seriam insuficientes. A lealdade e a amizade são retratadas com grande destaque, a tal ponto que muitas equipes de super-heróis se autodenominam “famílias”. Em geral, muitos personagens perderam contato, por diversas razões trágicas, com suas famílias biológicas. Os grupos são, assim, a base para motivação e apoio nas adversidade. Laços semelhantes aos atribuídos usualmente aos grupos familiares são apresentados nas histórias, como no caso dos X-Men (Figura 19), grupo formado por mutantes rejeitados e discriminados pela sociedade e que, juntos, sob a tutela do professor Charles Xavier, vivem numa mansão, enfrentando os problemas coletivamente, apesar das brigas, desentendimentos e tensões ocasionais. Cada personagem possui uma história característica, que pode ou não se relacionar com as trajetórias de outros heróis. Tais traços históricos representam a “mitologia” do personagem – um momento singular que o levou a assumir o fardo. Porém, o termo “história” talvez seja inapropriado, tendo em vista que a leitura dos fatos, preservados sob uma aura sagrada, não são passíveis de reinterpretação. De toda forma, tais mitologias se configuram como contextos particulares de conflitos, laços de amizade e familiaridade e inimizades recorrentes. Os heróis são considerados figuras lendárias por participarem de enredos que

46 A estrela do Capitão América é proveniente da bandeira americana. 47 O S do traje do Superman é, na verdade, o símbolo de sua família Kriptoniana, cujo sobrenome é El. O pai do Superman se chama Jor-El e o herói, Kal-El. O S da roupa, dessa forma, tem duplo significado: é a inicial de Superman, indicando sua superioridade, seus atributos “super”, e, em linguagem kriptoniana, é seu sobrenome, El. 48 O morcego do Batman está ligado ao seu nome, que significa Homem-Morcego. Ele adotou o símbolo por conta da ligação com as trevas e por haver caído, quando criança, numa caverna repleta deles, o que o deixou com medo desses animais. 96

envolvem o destino da humanidade, do planeta e, em alguns casos, de todo o universo. Eles são lendas vivas, podemos dizer, porque não são os relatos sobre eles que estabelecem o lendário, mas são suas ações que, constantemente, os reafirmam. Os heróis possuem campos de atuação. Alguns se concentram em ameaças mais triviais, como o crime. Quando Frank Castle49 teve sua família assassinada por bandidos, assumiu a identidade do Justiceiro, um combatente do crime organizado, de moralidade questionável, que procura fazer a justiça que as instituições não estariam aptas a proporcionar. Já o herói alienígena Surfista Prateado, que abdicou de sua humanidade para poupar seu planeta natal, enfrenta desafios galácticos.

Figura 17

Cena de um dos gibis da série Fallen Son (Filho Caído), sobre a morte do Capitão América. Acima, vemos o escudo do super-herói voando pelo céu noturno e retornando às mãos de seu amigo de longa data, o Gavião Arqueiro, sob os olhos do Homem de Ferro. A estrela branca no meio das faixas circulares vermelhas e brancas tornou-se um dos maiores símbolos do universo Marvel.

49 Frank Castle, também conhecido como Justiceiro, é um anti-herói do universo Marvel, criado por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita em 1974. 97

Figura 18

Nessa edição especial, a #300, de Superman, de 1976, é contada uma história futurista e hipotética do homem de aço que se passa no ano de 2001. Superman voa pelos céus de Metrópoles. Os jovens, no canto inferior direito, apontam e fazem as mesmas perguntas daqueles de décadas atrás: “Olhem lá em cima! É um pássaro? É um Strato-Jet? Não, é o Superman!” Podemos ver que o termo “avião”, clássico, da segunda pergunta, é substituído pelo de uma nave “futurística” ficcional – Strato-Jet. É o tom de humor na cena lendária do defensor do planeta. 98

Figura 19

A página, de X-Men #201, mostra os super-heróis mutantes reunidos ao redor do filho de Ciclope e Madelyne Pryor, ao centro. O clima familiar é reforçado por uma angulação mais suave dos heróis, retratando-os de cima e situando-os num plano mais baixo e mais amistoso.

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A identidade secreta, cultivada e protegida por muitos deles, os resguarda, bem como a seus amigos e familiares, mas somente até certo ponto. Os preceitos que os guiam, elevados, não são deixados de lado em suas vidas comuns, apesar de muitos deles serem vistos, em seu cotidiano, como tolos, irresponsáveis ou egoístas. Aparentam estar despreparados para a vida, mas no fundo possuem um espírito elevado. Estão prontos a dar a vida pela moça que nem sabe que eles existem ou pelo chefe que os trata de forma injusta, sem pedir nada em troca. O senso de dever é superior a qualquer desejo pessoal. As motivações podem ser as mais diversas, mas os ideais são os mesmos – nobres e valorosos.

3.1 Três Narrativas

A seguir, três narrativas que servirão como estudo de caso. Elas referem-se a diferentes épocas, contextos e super-heróis.

3.1.1 O Homem-Aranha e seus Clones

Peter Parker era um adolescente inseguro, frágil, meio adoentado, tímido e amolado por outros garotos na escola. Órfão, vivia com os tios, Ben Parker e May Parker, no bairro de Queens, Nova York. Não tinha muitos amigos nem namorada, mas era bastante inteligente, fascinado por ciências, dedicado aos estudos e um bom sobrinho. Durante uma visita a um laboratório científico foi picado por uma aranha radioativa. Teve seu corpo alterado, ganhando força e agilidade proporcionais às de uma aranha, habilidade de escalar paredes, capacidade de dar grandes saltos e um “sentido de aranha”, capaz de alertá-lo sobre perigos antes de qualquer sinal ser notado por pessoas comuns. Seu corpo ficou atlético, sua visão melhorou e ele pôde dispensar os óculos. Continuava desajeitado socialmente no dia a dia, porém mais seguro sobre si mesmo. Assim que descobriu os poderes sobre-humanos, revolveu ganhar dinheiro e fama com as mudanças. Começou a participar de exibições de luta livre. 100

Enquanto contava o dinheiro recebido por uma das lutas, um ladrão passou correndo ao seu lado, fugindo dos policiais. Quando perguntaram por que ele não havia feito nada para impedir o malfeitor, Peter respondeu que não era problema seu. Seu tio, Ben Parker, acabou sendo baleado e morto pelo mesmo ladrão, logo em seguida, levando Peter a uma crise de consciência. Por fim, o bandido morreu após ser perseguido por Peter, num acidente, e o rapaz incorporou para si as palavras que seu tio lhe dissera uma vez: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Assim surgiu o Homem-Aranha. Algumas preocupações são constantes na vida de Peter Parker desde os anos de 1960/1970: zelar pela frágil tia May e tentar manter o relacionamento com Mary Jane, seu interesse romântico permanente, apesar dos perigos de sua vida dupla, entre outras. Entre as muitas aventuras vividas por ele, resumimos abaixo a chamada Saga dos Clones, publicada nos anos 1990 e que envolveu muitos detalhes da vida desse popular personagem. Em meados dos anos 1990, Peter estava casado com sua namorada dos anos 1970, Mary Jane Watson. Como Homem-Aranha, estava se excedendo um pouco com os criminosos, sendo mais violento que de costume. Mary Jane se sentia um pouco abandonada pelo marido, muito dedicado à vida de vigilante. Nesse período, tia May, que sempre teve uma saúde frágil, piora e entra em coma. Um homem chamado Ben Reilly aparece para ver a tia de Peter. Muito parecido com Peter, revela ser um clone (Figura 20). Realmente, numa história dos anos 1960, um vilão chamado Chacal clonou Peter Parker e a cópia tentou matar o original. Peter venceu o confronto, matando acidentalmente o clone, cujo corpo jogou na chaminé de uma fábrica. Ben Reilly conta que, na verdade, ele não estava morto. Acordou desorientado, saiu da chaminé e foi viver sua vida isolado e escondido durante todo aquele tempo, reaparecendo somente por conta de tia May. Como clone, compartilhava dos sentimentos e características de Peter. Após se entender com Peter, Ben resolve assumir a identidade de um super-herói e adota o nome de Aranha Escarlate (Figura 21). Ambos vivem suas aventuras até que o Chacal, que todos pensavam estar morto, reaparece, trazendo consigo vários clones de Peter Parker e causando grande confusão na cidade. Surge também o clone da primeira namorada de Peter, Gwen Stacy, morta nos anos 1960 pelo Duende Verde. Um geneticista chamado Seward Trainer decide fazer um exame de DNA em Ben e Peter. O resultado do teste revela que Ben Reilly era o verdadeiro Peter Parker. 101

Figura 20

Em Web of Spider-Man #117, Peter Parker e Ben Reilly, seu até então desconhecido clone, se encontram nos telhados de Nova York, dando início aos eventos da Saga dos Clones. 102

Figura 21

O clone Ben Reilly assume a identidade do super-herói Aranha Escarlate e luta contra Venon, inimigo clássico do Homem-Aranha, durante a Saga dos Clones. A cena, nas alturas, sob relâmpagos, nuvens ameaçadoras e chuva, dá aos dois personagens um cenário de luta bastante intenso, reforçado pelo hiperdimensionamento de ambos, que são retratados sob perspectiva baixa. 103

Voltando à história dos anos 1960, depois que Peter jogou seu suposto clone na chaminé da fábrica, ele teve dúvidas sobre se não poderia ser, ele próprio, o clone. Pediu exames a um amigo cientista, mas nunca chegou a ver o resultado. Decidiu, na época, que não precisava de tal prova para saber quem era, ou seja, o verdadeiro Peter Parker. Diante de tal revelação de que era um clone, seu mundo cai. Decide se mudar com a esposa para longe, deixando a tarefa de super-herói para Ben Reilly, que assume a identidade de Homem-Aranha. Outras reviravoltas ainda aconteceriam. O vilão Norman Osbourne, grande inimigo de Aranha que todos acreditavam estar morto, também retorna. Ele é o Duende Verde (Figura 22), responsável pela morte de Gwen Stacy, a namorada de Aranha, nos anos 1960. Revela que sobreviveu graças a um soro especial e que se escondeu na Europa para planejar sua vingança contra o Homem-Aranha. Ele fez muita coisa para arruinar a vida de Peter. Ele havia, inclusive, contratado cientistas para forjar os resultados dos testes de DNA feitos por Peter e Ben. Desse modo, Peter não era o clone. Ben Reilly sempre fora o clone. O objetivo do vilão era apenas confundir Parker antes de “destruí-lo”. Ao fim, numa batalha final, o Duende Verde morre, assim como o clone Ben Reilly, depois de grandes atos de heroísmo. Peter volta a ser ele mesmo. Volta a ser o Homem-Aranha, o querido e bem- humorado super-herói da cidade de Nova York.

3.1.2 A Saga da Fênix

Nova York também é o palco de outra história famosa. Os X-Men são um grupo formado por mutantes com poderes extraordinários, devotados a defender a humanidade de mutantes malignos, promovendo uma convivência pacífica com os seres humanos. Jean Grey foi recrutada para os X-Men pelo professor Charles Xavier nos anos 1960. Com poderes telepáticos e telecinese, a moça assumiu a identidade de Garota Marvel e, junto com Ciclope (Scott Summers, seu par amoroso), Homem de Gelo (Bob Drake, o mais jovial), Fera (Dr. McCoy, o grande cientista) e o Anjo (Warrin Warthington III, um herdeiro milionário), lutou contra diversos adversários. 104

Figura 22

O Homem-Aranha luta contra o Duende Verde na história de 1973, após a morte de Gwen Stacy, primeiro grande amor do super-herói. 105

O grupo mudou sua formação muitas vezes ao longo dos anos, mas sempre se manteve fiel ao “sonho” de Xavier – o fim da discriminação, do preconceito e da intolerância entre humanos e mutantes. Inicialmente, Jean, primeira e única mulher do grupo à época, mostrava certa fragilidade, apesar de seus poderes. Aparentava ser uma espécie de eterna “donzela em perigo”. Mas esse foi uma característica que se modificou ao longo do tempo, desaparecendo eventualmente e dando lugar a uma personalidade mais segura. Em 1976, quando outros mutantes já haviam sido recrutados para o grupo, algumas mudanças importantes ocorrem na vida dessa personagem. O local é Manhattan (provavelmente, o local preferido de todos os vilões do universo). Jean e outros dois X-Men, Wolverine50 e Banshee51, são raptados por robôs gigantes conhecidos como Sentinelas. Tais máquinas são uma ameaça constante aos mutantes. Criados por humanos e normalmente ligados a algum programa secreto do governo, os Sentinelas são programados para perseguir e destruir mutantes. Os humanos são, em realidade, os piores inimigos do grupo. Após serem aprisionados, os três são levados para uma base na órbita da Terra, onde um ativista antimutantes planeja construir uma nova geração de Sentinelas. Os outros X-Men conseguem chegar ao local e resgatar seus companheiros. Contudo, frente à destruição da estação espacial, têm de fugir numa nave danificada. Para tornar a situação ainda mais dramática, uma tempestade de raios cósmicos ameaça matar todos a bordo. A única saída é se proteger num compartimento especial da nave. Porém, alguém precisa pilotar e pousar o veículo. Apesar dos protestos, Jean se oferece para tal tarefa, dizendo que tem maiores chances de sobreviver. A nave chega à Terra, caindo no rio Hudson. Todos escapam e procuram por Jean, mas não a encontram. De repente, ela emerge das águas, com um novo uniforme, dizendo:

Escutem X-Men! Eu não sou mais a mulher que vocês conheceram! Eu sou fogo! E vida encarnada! Agora e sempre, eu sou Fênix! (Figura 23)

50 Wolverine, ou Logan, é um super-herói mutante do universo Marvel, criado por Len Wein e John Romita em 1974. 51 Banshee (Sean Cassidy) é um super-herói mutante do universo Marvel, criado em 1967 por Roy Thomas, Werner Roth e Stan Lee. 106

Figura 23

Nessa página, vemos Jean Grey emergir de forma triunfal das águas do rio Hudson como a Fênix. Ela não perde tempo em anunciar o poder e o nome dessa nova versão de si mesma. 107

Daí em diante, Jean Grey se torna um dos seres mais poderosos do universo Marvel. Desenvolve poderes bem acima daqueles que tinha, como a habilidade de manipular energia e matéria. Pode, por exemplo, transformar os elementos – pedra em metal, água em oxigênio, etc. Seus poderes telepáticos e telecinéticos ficam praticamente ilimitados. Para os leitores, quatro anos se passam. Então, em 1980, outro evento ocorre na vida de Jean. Na pele de Fênix, virtualmente invencível, ela começa a ser manipulada por um mutante chamado Mestre Mental, que utiliza ilusões e sonhos para tentar dominar sua mente. Ele pertence a um grupo chamado Clube do Inferno, que deseja Jean para o papel da Rainha Negra do Clube; eles já contam com a Rainha Branca, o Rei Branco e o Rei Negro. Jean sucumbe a esse plano, voltando-se contra seus amigos. Depois de vários embates, o Clube é derrotado pelos X-Men. Ao ser libertada do jugo do Mestre Mental, Jean sofre uma transformação e se torna a Fênix Negra. Como essa nova entidade, ela ataca seus amigos e voa para o espaço. Alimenta-se de uma estrela, destruindo todos os planetas em sua órbita e levando à morte cinco bilhões de seres alienígenas (Figura 24). Quando ela volta à Terra, o professor Xavier consegue trazê-la ao seu normal, mas sob o risco de, a qualquer momento, perder novamente o controle sobre o seu lado obscuro. O Império Shiar, uma civilização intergaláctica, exige que Jean pague pelas mortes que causou. Sob a ameaça da Guarda Imperial de Shiar, Jean percebe que perderá o controle e se tornará a Fênix Negra novamente. Após declarar seu amor por Scott, ela realiza seu último ato heroico ao decidir cometer suicídio, sacrificando-se para evitar mais mortes. Quatro anos mais se passam e, no mesmo lugar onde a nave pilotada por Jean havia caído anos atrás, um estranho fenômeno energético acontece. Os Vingadores52 são chamados e descobrem, no fundo do rio Hudson, um casulo do qual tal energia está saindo. Dentro dele, está o corpo adormecido de Jean Grey. Isso se explica pelo fato de que, enquanto Jean pilotava a nave para salvar seus amigos, uma entidade conhecida como Força Fênix reconheceu nela um hospedeiro perfeito. Já que a heroína se encontrava bastante ferida, Força Fênix clonou seu corpo para poder usá- lo como “veículo”, e protegeu o original num casulo, para que se recuperasse com o tempo. De volta, Jean Grey encontra os velhos amigos, os X-Men originais, e forma com eles um novo grupo para ajudar mutantes.

52 Os Vingadores são um grupo de super-heróis do universo Marvel, criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1963. 108

Figura 24

Na Saga da Fênix Negra, Jean Grey atravessa o espaço e consome uma estrela, levando uma civilização inteira à morte. Tal evento não poderia passar sem uma punição à altura – no caso, o suicídio da personagem.

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3.1.3 Superman e o Retorno da Morte

Em 1992, foi publicada a história mais improvável do universo dos super-heróis, contando a morte do Superman. Tal evento, amplamente divulgado, gerou enormes vendas e publicidade para a Editora DC Comics. A narrativa é simples: surge um monstro nas ruas de Metrópoles, chamado Apocalipse, e Superman parece ser o único capaz de detê-lo. Durante a luta, ambos morrem. Seu eterno amor, , e seu amigo mais leal, Jimmy Olsen, estão ao seu lado nesse momento histórico para os quadrinhos (Figura 25).

Figura 25

Última imagem da primeira parte da série A Morte do Superman. Enquanto o super-herói agoniza, de forma dramática, com sua capa suspensa ao seu lado como uma bandeira, Lois Lane se desespera e Jimmy Olsen captura com suas lentes o momento histórico, em meio às ruínas da cidade de Metrópoles.

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O Superman é o “último filho de Krypton” enviado à Terra por seu pai para salvar-se da destruição de seu planeta natal e se tornar protetor da atrasada e promissora espécie humana. Desde os anos 1930, quando foi criado, o Superman mudou pouco. Sua perda, para seus colegas super-heróis, é devastadora. O planeta se sente órfão, privado de seu maior ícone. O símbolo de tudo quanto é bom e verdadeiro caiu em batalha contra o mal. Após o evento, os quatro títulos mensais que contavam a história do Homem de Aço foram cancelados. Três meses depois, todos os títulos foram relançados ao mesmo tempo. E, em cada um deles, um personagem diferente, com alguma característica ligada ao “maior herói do planeta”, clamava pelo posto deixado pelo Superman. Foram eles:

O Homem de Aço – literalmente um Superman de aço, usando uma armadura ultramoderna. Tratava-se de John Henry Irons, que já havia trabalhado para o exército estadunidense criando armas (Figura 26);

O Último Filho de Krypton – com visual moderno, óculos verdes, tratava-se de uma manifestação do objeto “consciente” kryptoniano conhecido como “O Erradicador” (Figura 27);

A Maravilha de Metrópoles – um adolescente que muitos acreditavam ser algum tipo de clone do Superman. Na verdade, era um clone humano aperfeiçoado, resultante de experiências do governo (Figura 28);

O Homem do Amanhã – um ciborgue que parecia ser algum tipo de “reconstrução” do antigo Superman. Na verdade, era um vilão que chegou a destruir uma cidade de 7 milhões de habitantes (Figura 29).

Nenhum deles era o verdadeiro Superman. O objeto “consciente” conhecido como ”O Erradicador”, sabendo que Kal-El não estava morto, mas somente muito fraco e ferido, levou seu corpo após o funeral e o deixou preso na Fortaleza da Solidão, casa do herói, de onde drenava seus poderes para usá-los e se parecer com o verdadeiro Homem de Aço, adotando o nome de “O último filho de Krypton”. Porém, seu plano não funcionou como esperava, pois ao mesmo tempo em que ele se alimentava, o corpo do Superman se fortalecia. Quando este despertou, voltou para Metrópoles e, embora ainda estivesse debilitado, venceu o ciborgue “Homem do Amanhã”, que se revelara um supervilão, recuperando sua identidade e sendo reconhecido por todos como o verdadeiro Superman (Figura 30). 111

Figura 26

John Henry como o Homem de Aço, um dos candidatos a ocupar o lugar deixado vago pelo Superman. Sem dúvida, há uma sedução na permanência do símbolo para além da morte, sendo a volta dos mortos o triunfo último do símbolo – da esperança humana numa vida que ultrapassa a finitude e se perpetua no tempo, talvez com um significado elevado e inspirador. 112

Figura 27

O objeto kryptoniano Erradicador assume a forma do Superman como O Último Filho de Krypton. Ao encontrar Lois Lane, ele mostra possuir as memórias do super-herói, mas sem emoções. O uniforme, cuja capa vermelha ficou mais destacada, assume formas mais nobres – dignas, talvez, do único herdeiro da civilização kryptoniana. 113

Figura 28

O clone Conner Kent, A Maravilha de Metrópoles, em sua primeira aparição como possível substituto do Superman. Irreverente, talvez seja a melhor versão do Superman garoto – o Superboy. 114

Figura 29

O violento Homem do Amanhã, um ciborgue que diz ser o Superman reconstruído com elementos tecnológicos, entra em ação ao lado de outros super-heróis.

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Figura 30

Kal-El, o verdadeiro Superman, reaparece após se recuperar de seus ferimentos, com cabelos compridos e um uniforme negro. Lois Lane está presente em sua ressurreição, assim como esteve em sua morte.

3.2 Os Super-Heróis e a Ordem

Essas três histórias fazem parte da vastíssima coleção de narrativas dos três personagens enfocados. Poderíamos ter dado outros exemplos. Alguns aspectos seriam diferentes, outros seriam semelhantes. Essas histórias, publicadas durante vários meses em diversos gibis das séries, dão conta de acontecimentos de grandes proporções nos contextos 116

do universo Marvel e foram batizadas, pelas editoras e pelos fãs, com o nome de “sagas” – Saga dos Clones, Saga da Fênix, etc. Saga era o nome dado aos relatos de caráter épico escritos pelos povos nórdicos que foi estendido, por analogia de heroísmo e aventura, a narrativas modernas diversas. Se, por um lado, notamos que nessas sagas alguns acontecimentos, temas e situações se repetem, podemos perceber também a presença de elementos bastante diferentes em cada uma das três histórias. Discutiremos, a seguir, tais generalidades e especificidades à procura de alguns fios condutores que nos possibilitem elaborar observações sobre as histórias de super-heróis sob o ponto de vista de sua forma narrativa e de suas relações com a dinâmica cultural. O Homem-Aranha, como relatamos anteriormente, foi criado na era de prata dos quadrinhos com uma proposta diferente e ousada para a época: incorporar no super-herói elementos do dia a dia do “jovem médio americano” leitor de gibis, aficionado por ciências e ficção científica. Peter Parker representava esse garoto, que supunham tímido, desajeitado, introspectivo e inteligente. Quando se torna o Homem-Aranha, outras características surgem: o senso de responsabilidade, a postura heroica, o altruísmo. Tais elementos, combinados, criaram um super-herói mais próximo dos leitores da época, o que deve explicar grande parcela de seu sucesso. O Homem-Aranha dificilmente entra numa luta sem proferir piadas a respeito de algo, seja um gracejo sobre a roupa ou sobre os modos do adversário. E, durante o embate, não consegue ficar calado, sem fazer algum comentário bem-humorado, mesmo nos momentos mais críticos. E tudo isso apesar da preocupação com o pagamento do aluguel daquele mês (e de outros). Sem dúvida, o Aranha representou uma mudança considerável no universo dos super-heróis. Constatamos isso ao recordarmos a história da criação do Superman. Um alienígena de uma civilização avançada, mandado à Terra por seu pai, como último de sua espécie. Aqui, por causa do sol amarelo (o de Krypton era vermelho), o personagem desenvolve poderes quase ilimitados. E, em vez de dominar o planeta ou realizar seus desejos, decide cumprir um destino maior: salvar a humanidade de perigos diversos e de si mesma. No longa-metragem “Superman”, de 1979, cujo roteiro foi escrito por Mario Puzzo, podemos ouvir, através da voz de Marlon Brando, que representou Jor-El, o pai biológico do herói, algo sobre o destino do Homem de Aço:

Mesmo tendo sido criado como um ser humano, você não é um deles. Eles podem ser um grande povo, Kal-El. Eles desejam ser. Somente lhes falta a luz para mostrar 117

o caminho. Sobretudo por essa razão, pela capacidade deles para o bem, eu lhes enviei você, meu único filho.53

O escritor procurou atualizar o mito do salvador do mundo através da narrativa desse herói super-humano. Desde sua criação, Superman desenvolve a propensão a ser o símbolo da possibilidade de salvação da humanidade. Algumas vezes, o Superman aparece diretamente ligado ao que podemos chamar de status quo. Ou seja, ele geralmente é leal ao poder instituído, alinhado ao governo estadunidense. O Homem-Aranha, por sua vez, não apresenta uma ligação tão clara de subordinação; não há, porém, qualquer oposição, a não ser em situações de exceção precisamente localizadas e pontuadas. Peter é mostrado, de forma geral, como um patriota. Além disso, o Superman se leva completamente a sério. Já o Aranha apresenta elementos mais descontraídos e extrovertidos. Ele ri, o que não é muito comum entre super- heróis (Figuras 31 e 32). Por coincidência ou não, ambos trabalham com a mídia, mais especificamente com a produção de notícias. Clark Kent (alter ego do Superman) e Peter Parker começaram trabalhando em jornais impressos, o primeiro como repórter, ao lado de sua querida Lois Lane, e Parker como fotógrafo freelance. Outro paralelo pode ser estabelecido no que se refere à postura ética e moral dos dois heróis: se o Superman carrega consigo os ensinamentos transmitidos por seu pai kryptoniano Jor-El e seus pais adotivos terrestres, Marta e Jonathan Kent – o caráter reto e o destino de ser o defensor da humanidade –, Peter traz consigo o ensinamento de seu falecido tio, Ben Parker, como grande norte de sua vida – a responsabilidade que seus grandes poderes lhe trouxeram. Ambos estão ligados à tradição e à sua família, seja como pessoas aparentemente comuns ou super-heróis. Peter e Clark são tão íntegros quanto o Superman e o Homem- Aranha. As diferenças são mero “faz de conta”: às vezes, Clark finge ser covarde para poder se ausentar e agir como super-herói sem despertar suspeitas. Da mesma forma, Peter, sobrecarregado com as tarefas de super-heróis, é taxado como irresponsável ou preguiçoso por faltar ao trabalho ou às aulas, ou ainda ao aniversário da tia. De forma geral, sacrificam sua felicidade pessoal pelo bem da sociedade e para cumprir seus altos ideais.

53 SUPERMAN. Direção de Richard Donner. EUA: Warner internacional, 1978. (82 minutos). Inglês. 118

Figura 31

Nessa aventura de janeiro de 1985 – The Spectacular Spider-Man #98 – o Aranha aparece no primeiro painel “caindo de rir” após um novo vilão se apresentar com o nome de “O Mancha” (The Spot). Para ele, tratava-se de um dos nomes de bandido mais hilários que já tinha ouvido. O humor é uma marca do Homem-Aranha, famoso por suas piadas entre um golpe e outro. Certamente, seu riso não é só em relação ao outro – trata-se de uma gargalhada também sobre si mesmo. 119

Figura 32

Após derrotar o Homem de Ferro do Futuro, Iron Man 2020, o qual tentava matar um garoto que se tornaria um terrorista, o Homem-Aranha encontra o pai do menino que salvou. Precisando pagar o aluguel, recusa os 15 mil dólares que lhe são oferecidos, mas aceita um empréstimo de 275,36 dólares para pagar o aluguel de seu apartamento. Estava buscando um jeito de conseguir o dinheiro quando foi defender o garoto de Arno Stark, o dono da armadura do futuro. 120

Contudo, devemos frisar que o bem é expresso pelos princípios da lei e da identidade. O bem e o mal são fundamentos relativamente fixos, sendo a lei expressão da sociedade supostamente homogênea, a qual os heróis devem defender contra a tirania do mal, que simboliza a desordem e a corrupção da civilização. Os “altos ideais” não representam conquistas espirituais ou sociais, mas ideais gerais que se querem específicos, como viver em paz ou fazer justiça. Ao se conferir certa especificidade a um termo tão geral quanto pode ser a palavra “justiça”, por exemplo, os super-heróis se tornam aptos a identificá-la com a lei ou com certa ordem social, criando assim uma realidade unívoca. A paz se torna a “paz americana” ou, para todos os efeitos, a “pax vigilante”. Tamanha especialização na feitura do bem torna a maioria desses vigilantes os únicos vigias de seus próprios atos, sendo eles os únicos capazes de averiguar com exatidão o quão bem cumprem seu papel e quais limites devem ser ultrapassados ou obedecidos diante das ameaças. Especializados, seus atos não têm relação direta com a ética ou a reflexão, mas com a necessidade da qual foram “imbuídos” por seu destino. São agentes, em última análise, dos valores sociais em suas formas instituídas e, também, daqueles que deveriam ser instituídos, mas que, talvez por “fraqueza”, não o são, como a liberdade de usar violência de forma irrestrita para defender os modos de vida das pessoas e da sociedade como um todo. Por isso, a seguinte máxima heroica é verdadeira: “fazemos o que é preciso”. Jean Grey, antes somente uma integrante do grupo conhecido como X-Men, chegou a se tornar uma das maiores forças do universo. Observando os desenhos da personagem ao longo dos anos – entre sua criação e sua transformação em Fênix passaram-se quase 15 anos – , podemos ver que seus cabelos se tornaram mais volumosos, seus trajes mais justos e seu corpo mais curvilíneo. A sensualidade chega a seu ápice quando se torna a Fênix (Figuras 33 e 34). Ela não nutre grande ligação com sua família biológica, a qual deixou muito cedo para se tornar uma X-Men. Segue o sonho do Professor Xavier – a paz entre humanos e mutantes num mundo livre e justo. Tal inspiração, ideal, crença, pauta a vida de todos os X-Men, que também não possuem elos significativos com os parentes consanguíneos, normalmente porque estes os discriminaram de alguma forma, em razão de serem mutantes. Jean, Peter e Clark enfrentaram situações difíceis, extremas, em seu caminho como super-heróis. A mutante descobriu seus poderes quando criança, de forma dramática: sua amiga Annie foi atropelada e, ao socorrê-la, Jean se conectou à sua mente, sentindo sua morte. A experiência foi tão terrível que a deixou em coma durante algum tempo. 121

Figura 33

Nas primeiras edições de X-Men, nos anos 1960, Jean aparecia como uma moça frágil e, como a maioria dos super-heróis, com uma roupa que escondia contornos. No primeiro painel, Scott, seu interesse amoroso, ampara-a após uma luta. 122

Figura 34

Nesta edição, do começo dos anos 1990, Jean volta aos X-Men. Usa uniforme colado junto ao corpo ultradefinido, com salto alto e cabelos volumosos e soltos. Ela própria questiona, no painel número 1, a necessidade daquele tipo de uniforme, para embaraço do amigo Sean Cassidy, o Banshee. 123

Peter, como já observamos, perdeu seu tio por ter deixado um criminoso fugir, apesar de ter poderes para prendê-lo. À época, era um jovem deslocado, de vida modesta e órfão. Tais elementos conferem considerável fardo ao jovem fotógrafo. Quanto a Clark, nem mesmo seus poderes ilimitados o protegeram de desventuras: último sobrevivente de sua espécie, também órfão, criado num rancho, sozinho entre os seres humanos comuns, sem poder fazer o que todos faziam – como praticar esportes –, sempre preocupado em esconder seus poderes e sua origem extraterrestre. Seu local de refúgio, construído no Ártico, se chama “Fortaleza da Solidão”. Contudo, a presença desses elementos trágicos não torna tais heróis imperfeitos ou ambíguos. Suas histórias reforçam as grandes qualidades presentes em seus atos heroicos e altruístas. O sofrimento de suas existências não só explica suas escolhas – notabiliza ainda mais seus comportamentos diante dos infortúnios da vida. Geralmente, não há neles o egoísmo ou qualquer intenção de revanche em razão de suas histórias. Recriminam somente a si mesmos e aceitam seus destinos. Suas tristezas são parte de seu fado, não havendo espaço para ressentimentos ou revoltas. Assim, é bastante questionável se as experiências vividas pelos personagens implicam mudanças. As circunstâncias alteram a visão de mundo de tais super-heróis? Seus amores, por exemplo, raramente mudam; geralmente há um amor platônico ou histórico que o persegue durante todo o tempo. Surgem novas paixões, mas há a ideia de um amor ideal e verdadeiro. Não parece haver, a princípio, um desenvolvimento da visão de mundo dos personagens para além de mudanças que acompanham certa visão média da sociedade sobre determinados temas e suas implicações.

O tempo inteiramente fetichizado é o do presente perpétuo, aquele em que a repetição contínua das mesmas pseudonovidades faz desaparecer toda a memória histórica a fim de que nenhum acontecimento possa ser compreendido em suas causas e consequências. A memória do sofrimento é arquivada para que o homem possa adaptar-se a um eterno presente. A luta de Ulisses é contra a alteração, é pela adaptação. (MATOS, 2006, p. 79)

Uma indicação de tal disposição é o fato de que, quando existe a intenção de mudar a personalidade do herói, reelaborando-a, escritores são contratados para fazer uma reformulação completa: escrevem novas histórias para explicar suas origens54, transportam- nos para dimensões paralelas, nas quais os super-heróis são recriados, e então os trazem de volta, com algumas novas características.

54 O Batman, por exemplo, teve sua história recontada em Batman: Ano 1, escrita por Frank Miller e ilustrada por David Mazzuccheli em 1987. 124

Podemos constatar, porém, que os elementos mais relevantes na determinação do herói são bastante rígidos e constantes. O sonho de Xavier e o amor por Scott sempre serão a motivação de Jean. As palavras de tio Ben sobre responsabilidade sempre moverão o Aranha. Clark nunca deixará para trás seu destino. Esses fatos elementares, parte dos “mitos de criação” de alguns super-heróis, raramente são modificados. Ainda assim, todo o passado externo a esse momento singular, em que houve a gênese do herói, está sujeito a alterações. Os escritores, em nome do presente absoluto, com sua necessidade de novidades constantes, alteraram, por exemplo, de tal modo os “arquivos” da vida do Homem-Aranha, que seu passado chegou próximo ao descarte completo; afinal, não se tratava do Peter Parker original, mas de um clone. A Fênix, que os leitores supunham ser Jean Grey, chegou próxima do esquecimento completo; posteriormente, revelou não ser a verdadeira heroína. Os passados, assim, se tornam repletos de histórias descartáveis. Wolverine, um X-Men muito popular, já teve muitos passados: alguns, depois de alguns anos, desmentidos, sob a alegação de que eram memórias implantadas no cérebro do mutante. E, assim, novas histórias foram contadas sem que o comportamento do herói sofresse modificações de acordo com a vida que teria ou não levado. Tais alterações drásticas do passado podem ser realizadas, em parte, porque a experiência e a alteração a partir dos eventos vivenciados é praticamente inexistente. Assim, os eventos pelos quais os personagens possam ter passado não têm real significado para o que ele representa, a maneira como se comporta ou o que defende. Evidentemente, suas características heroicas são essenciais e não são constituídas a partir de seus processos. Por isso Peter Parker pôde deixar de ser o Homem-Aranha, cedendo lugar para o então suposto “original”, Ben Reilly, que se revelou tão valoroso quanto o Aranha anterior. De forma geral, o espaço temporal entre o presente absoluto, lugar das aventuras espetaculares, e o passado “mítico” do personagem, que se configura como princípio essencial e permanente de sua identidade, significa pouco, podendo ser alterado sem prejuízos para criar novos elementos nas séries. As inovações, contudo, costumam ser limitadas, não adentrando certos núcleos tidos como constantes, normalmente ligados a tal passado de “tempos originais”, “fundantes” e “míticos” que tendem a normatizar, junto ao presente absoluto, o personagem. O foco não costuma ser de alteração, mas de adaptação. Veremos, adiante, que há, de forma acentuada, um caráter cíclico de restaurações nas histórias de super- heróis. 125

Tais núcleos assumem outras formas nos universos dos heróis, não ficando reservados apenas às posturas morais ou éticas. Modelam o que os circunda, fazendo que o próprio sentido do mundo ao redor seja como um reflexo de tais leis internas que conferem o comportamento super-heroico55. Os personagens coadjuvantes estão presentes sob as normas do super-herói, não sendo mais que fantasmas na ausência de sua narrativa específica. Os super-heróis, contudo, têm vida própria. Autonomia sem limites. Seu comportamento é um fim em si mesmo, raramente um meio, porque não há processo, há essência sem traços de experiência. O presente absoluto esgota o passado e afasta a memória, assim como a reflexão e a alteração. Superman, por exemplo, morre sob os olhares cuidadosos de Jimmy Olsen e Lois Lane, seus amigos de sempre do jornal Planeta Diário, constantes das histórias do personagem. É significativo que esses dois estejam com ele no momento de sua morte, criando uma cena clássica dos quadrinhos. Novos personagens com presença constante nas histórias são raros, assim como o desaparecimento daqueles de longa data. Mudanças acontecem, mas são lentas e pequenas, se levarmos em consideração que os quadrinhos super-heróis têm sido publicados mensalmente, de forma praticamente ininterrupta, há pelo menos quarenta anos. Jean tem consigo que os X-Men são sua família. É para eles que ela volta depois de ter sido encontrada no casulo pelos Vingadores. É uma constante seu amor por Scott, com quem ela sempre fica no final e para quem volta depois de alguma aventura difícil ou sofrimento intenso. É da imagem dele que ela se recorda nos momentos de desespero, de morte iminente, de perigo extremo. E o sentimento é recíproco. Peter tem também seu núcleo de personagens: seus amigos Harry e Flash, sua namorada/esposa Mary Jane, seu patrão J. J. Jameson, sua tia May. Na morte e ressurreição do Superman, alguns elementos chamam nossa atenção: o ato de extremo heroísmo do kriptoniano ao sacrificar sua vida em defesa dos cidadãos de Metrópoles; a posterior proliferação de personagens que clamam ser o Superman original; o verdadeiro Homem de Aço se revelando num momento de perigo, vencendo um inimigo que tentava se passar por ele mesmo. Jean Grey, na Saga da Fênix, morre ao salvar seus amigos, cometendo um sacrifício heroico. Quando o clone de Jean se suicida para evitar que a Fênix tome controle novamente

55 Podemos considerar que tais leis internas são, nesses contextos, formas microcósmicas de leis universais, pois indicam comportamentos morais, éticos e sociais que estão de acordo com contextos maiores, como a sociedade, a civilização ou o transcendente. 126

de seu corpo e coloque em risco o universo, comenta-se no gibi que foram as qualidades intrínsecas da super-heroína, herdadas pela Fênix ao clonar o corpo de Jean, as reais responsáveis pelo fim da ameaça. Foi a humanidade de Jean que levou o clone a acabar com a própria vida pelo bem do universo. Na aventura do Homem-Aranha com seus clones, que causou uma reviravolta no universo do herói, por piores que possam parecer alguns deles, as cópias têm algo de nobre em suas atitudes – como o assassino Kane, que matava para proteger Mary Jane. Seria porque, apesar de meras réplicas do verdadeiro herói, não poderiam fugir da influência benéfica do original? Nas três aventuras, há o retorno dos super-heróis originais. Suas ausências foram um acidente de percurso em sua história. Ou talvez não. Poderiam ser apenas mais uma provação pela qual todo super-herói, de alguma forma, tem de passar. Entretanto, esses seres enfrentam provações não por acaso: eles parecem prontos e destinados a vencer tais batalhas árduas e impossíveis. O sofrimento próprio, reconhecido e incorporado, reforça a identidade heroica, com sua aura de sacrifício e superioridade, em contraste com a do ser humano comum e ordinário, repleto de contradições e cuja existência parece permeada por sentimentos pouco nobres. Jean, Peter e Clark, nas sagas relatadas e em diversas outras, têm sua identidade roubada, questionada ou desafiada. Em todas elas, retornam a si mesmos, até mesmo de suas próprias mortes. Ao voltarem, algumas mudanças acontecem: um uniforme diferente, algum poder novo, a descoberta de algum fato perturbador, a criação de um novo arquivilão, um traço inédito de personalidade – como um pouco mais de risos irônicos ou até mesmo alguma agressividade extra. Mas alguns elementos parecem invariantes na maioria dos super-heróis: os ideais, a tendência ao altruísmo, a coragem extrema, o senso de justiça. Mesmo os superanti-heróis possuem algumas características que não se alteram: Wolverine, um X-Men famoso, pode matar muitas vezes, mas o faz com finalidades nobres – uma vez causou a morte de uma amiga para impedi-la de assassinar a sangue frio um inimigo56 (Figura 35). O Justiceiro, ainda que tenha seus métodos questionados por super-heróis clássicos, não é visto como um vilão, mas como aquele personagem que não tem os limites que os outros possuem e, por isso, está apto a realizar o “trabalho sujo” que precisa ser feito por alguém. A lei, numa sociedade decadente e corrupta, pode ser tão inimiga do bem e da boa ordem social quanto o próprio crime, nos ensina Frank Castle, o Justiceiro.

56 Durante a saga dos X-Men conhecida como Massacre de Mutantes, da década de 1980, Wolverine fere mortalmente sua amiga Rachel Summers para impedi-la de matar a Rainha Branca, uma vilã. 127

Figura 35

Wolverine fere gravemente sua colega Rachel Summers, a Nova Fênix, para impedi-la de assassinar uma inimiga. No último painel, as letras que indicam que ele desembainhou suas garras de adamantium – snikt.

128

Na década de 1980, Frank Miller escreveu a minissérie O cavaleiro das Trevas. Enfocava um Bruce Wayne/Batman idoso, que fora obrigado a se aposentar, assim como todos os heróis, por pressão do governo. Diante dessa determinação política, Superman caçou os rebeldes. O Arqueiro Verde, que se negou a obedecer, teve um de seus braços arrancado pelo herói para que não mais pudesse empunhar o arco. O milionário senhor Wayne toma vinho todas as noites para vencer seu desejo de colocar novamente a roupa do Batman e voltar a ser um vigilante na cidade de Gotham City. Numa noite, assistindo às notícias de morte, violência nas ruas e outras tragédias, perde o controle e o vemos assumir novamente o papel do homem-morcego. A continuação da história apresenta diversas inovações de arte e enredo, que aproxima, em alguma medida, Batman de seus inimigos históricos (Figura 36). Outros elementos – como um adolescente assumindo o papel de Robin, o deslocamento do papel do “mal”, que se afasta do supervilão e assume a forma das gerações massificadas e violentas – “revolucionaram” o universo dos super-heróis, na medida em que mostraram novos campos a serem explorados. Por outro lado, podemos observar a repetição de um tema: Bruce Wayne pode tentar enganar a si mesmo, “anestesiar” a vocação de seu espírito, mas não pode mudar sua identidade ou seu destino. Ele é o Batman, apesar da idade, do vinho e do Estado. Porém, diversos outros temas explorados durante a história se distanciam do universo tradicional dos super-heróis. Devemos lembrar, contudo, que a produção de Frank Miller não fez parte da cronologia da série do Batman. Trata-se de uma história que retirou o personagem de seu contexto usual e, dessa forma, ressignificou diversos elementos, nisso consistindo seu caráter inovador, na apropriação e na tradução de elementos tradicionais. De forma semelhante, Peter Parker é o verdadeiro Homem-Aranha. O clone Ben Reilly, mesmo que corajoso e nobre, só pode “interpretar” o papel do herói original. Ele não é o verdadeiro Aranha; ele é uma cópia. Peter retorna, ao fim da longa saga, à sua identidade: o Homem-Aranha. Assim como Bruce Wayne, ele não pode fugir de seu destino. Tal eixo identidade/destino é fortemente determinado no universo dos heróis dos quadrinhos. O destino do Superman, de forma semelhante, não pode ser cumprido por nenhum dos seres que aparecem em Metrópoles após a morte do Homem de Aço. Eles não têm o que é necessário para ser o verdadeiro Superman. O original não só deve retornar por si, mas pela própria ordem da realidade. 129

Figura 36

Batman, o Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, encontra o vilão Duas Caras e vê seu inimigo como um reflexo de si mesmo. 130

A nobreza humana de Jean Grey, constante da verdadeira super-heroína, é o elemento que salva o universo da fúria da Fênix. O clone de Jean Grey, possuído pela Fênix, não percebeu nada novo ou diferente, não realizou nenhuma reflexão ou mudou seu comportamento. Apenas retornou ao seu fundamento original, a humanidade da verdadeira Jean Grey. Notou que tinha um poder que a deixava fora de si, a tornava diferente de si mesma, e que isso era extremamente perigoso. A dinâmica das histórias dos super-heróis é intensa. A todo o momento algo está acontecendo: inimigos surgem, antigos vilões voltam, personagens históricos são ressuscitados, poderes inesperados se manifestam, artistas novos dão nova plástica aos movimentos acrobáticos das lutas, colocam cores e efeitos gráficos impressionantes e contundentes nas páginas do gibi, montam cenas combinando diversos heróis e vilões em batalhas grandiosas. Encontros entre super-heróis extremamente famosos, mas que não se conhecem, são promovidos em edições bem elaboradas e divulgadas; escritores decidem recriar uma equipe de heróis, alterar alguma história de seu passado, criando novos enredos, ou então somente introduzir um pai desconhecido para gerar conflitos inesperados. Na aventura do Superman surgiram quatro novos “super-homens”, acarretando uma grande quantidade de acontecimentos. Alguns, um pouco inovadores; outros, traduções de antigos personagens assumindo novas formas. Como, por exemplo, o caso de Apokalipse, um vilão bastante poderoso que morreu junto com o herói – Superman – e, assim como ele, voltou da morte mais tarde. Contudo, o resultado mais evidente e relevante de toda essa construção é a volta ao estado original. O super-herói apresenta, em seu retorno, poucas características diferentes, como um novo uniforme e o cabelo comprido – parece menos “comportado”. Entretanto, continua sendo um campeão da justiça, orientado pelos princípios “ancestrais” que lhe foram transmitidos. A ordem foi restaurada com a volta do campeão da humanidade, a esperança da civilização na salvação permanece intacta. O Superman não é somente o Homem do Amanhã, a forma de vida que a humanidade desejaria ser, eterna, invencível e, ao menos supostamente, autônoma. Ele simboliza algo maior, mais forte e elevado, capaz de nos proteger, em grande parte, de nós mesmos. Em outras palavras, o Superman não segue a bandeira, pois ele É a bandeira – uma imagem da estrutura social institucional, que parece, num presente absoluto, existir desde sempre. Capaz de nos velar nas adversidades, supõe-se que sempre conseguirá manter e restaurar a ordem. Naquilo em que nós somos fracos, a bandeira é forte, nos ajudando a fazer os sacrifícios necessários para a manutenção da estrutura destinada a promover o bem geral. 131

Jean Grey passa por uma morte parecida, em sacrifício por seus amigos, e tem seu corpo clonado e possuído por uma entidade cósmica chamada Fênix, que luta ao lado dos X- Men contra inúmeros perigos, perde o controle, transforma-se na Fênix Negra, destrói um sistema solar, assassina bilhões de integrantes desse sistema, é capturada e julgada por uma civilização intergaláctica, sacrifica-se pelo bem do universo, reaparece anos depois, revela que nunca morreu (nem matou) de fato, nem foi a Fênix que tanto perigo trouxe ao universo. O que se altera são seus poderes, agora um pouco mais fortes do que antes, e, além disso, Jean Grey sente-se perdida com tantos acontecimentos. Porém, ao final da trama, forma um grupo com seus antigos companheiros, veste um uniforme um pouco diferente e continua apaixonada por Scott Summers que, apesar de casado, nunca a esqueceu. Tais eventos contados durante a história da Fênix, de grande magnitude, aconteceram, mas podiam muito bem não haver ocorrido, porque foram irrelevantes para a organização da vida da personagem. Jean Grey age, dali para frente, como se quase nada tivesse acontecido. E, de certa forma, não aconteceu. Ela ficou num casulo enquanto seu clone interagiu com todos e colocou o mundo em perigo. Tanto é assim que, com o tempo, todos eles voltam a ser X-Men – o sonho de Xavier não pode morrer. Peter Parker deixou de ser o Homem-Aranha, ficou deprimido, quase perdeu a esposa e a tia, teve até mesmo seus poderes usurpados para, ao fim da história, ver os clones deixarem sua vida, readquirir seus poderes, reaver seu núcleo familiar e, descobrir que seu primeiro e mais lendário inimigo nunca morreu. Por fim, reassumiu a identidade de Homem- Aranha. Os exemplos são exaustivos. Grande parte dos super-heróis tem histórias e sagas cuja estrutura básica é um estado primeiro de ordem, seguido de um evento aparentemente espetacular que desestabiliza suas vidas. Vencidos os desafios impostos por tal situação, também de forma grandiosa, a ordem é restabelecida. As mudanças – de uniformes, poderes, vinculações – não modificam os ideais ou a visão de mundo, levando-os antes, como já citamos, à adaptação e não à alteração, impensável em contextos que primam pelo acabamento. Num evento recente do universo Marvel, chamado Guerra Civil, Peter Parker revela ao mundo que é o Homem-Aranha, deflagrando uma série de consequências que culminam no assassinato de tia May. Pouco tempo depois, Peter faz um acordo com um ser de outra dimensão para que tia May volte à vida, sendo o fim de seu casamento com Mary Jane o preço desse resgate. O tempo é alterado, sua tia volta à vida em segurança e todos se esquecem de que Peter Parker é 132

o Homem-Aranha. Mary Jane continua na vida do herói, pois sua memória, apesar da mudança, não foi apagada completamente. Há, em tal ritmo contínuo de eventos, uma restauração das qualidades do super- herói. As provações que ameaçam sua identidade e sua existência resultam na reafirmação de suas posturas e de seu destino. Há alguma similaridade entre tais acontecimentos e certas narrativas míticas que tratam de tema parecido. No século XIII, Wolfram Von Eschenbach escreveu Parsifal, romantizando histórias da tradição oral ao estilo dos romances de Cavalaria. Fala sobre um cavaleiro nobre chamado Parsifal (Percival) e sua busca pelo Santo Graal. A busca do Graal, identificada na Europa, após as Cruzadas, com a busca do cálice usado na última ceia por Cristo, tendo em vista certos elementos que compõem algumas versões mais antigas da história, parece ser uma lenda bastante antiga, pagã, proveniente do norte europeu. Em todo caso, é uma história bem interessante, sobretudo nessa versão alemã. Nela, Parsifal, em sua peregrinação em busca do Graal, expia seus erros e se purifica através da prestação de inúmeros serviços aos necessitados e do sofrimento pelo isolamento e a solidão. Apesar dos terríveis combates, é extremamente bem-sucedido, não restando dúvidas sobre sua predestinação como o maior dos cavaleiros. Ao encontrar, finalmente, o castelo onde o Graal está guardado, comete um erro e falha em restaurar a saúde do rei ferido, guardião do Graal, e a própria terra. Após novo ciclo de redenção, consegue uma segunda chance para cumprir sua demanda. Parsifal, através de provações que afirmam seu caráter heroico e o conduzem ao cumprimento pleno de seu destino, restaura a Terra. De forma similar, o super-herói, ao passar por suas batalhas e dificuldades, acaba por salvar o mundo. Mas, enquanto Parsifal amadureceu e é reconhecido e aclamado, o super-herói apenas realiza o retorno ao seu estado “natural”, continuando sua vida dupla: como mascarado é lendário; porém, como homem comum é um reles desconhecido, como no caso de Peter Parker. Mas podemos pensar, por outro lado, que só superficialmente ele é um homem comum. Sua essência é parecida com a de Parsifal. Suas solidões servem para reforçar o caráter moral do sacrifício. Não é gratuitamente que o Homem-Aranha recebe o epíteto de Cavaleiro das Teias, assim como Batman é chamado de Cavaleiro das Trevas. As séries culturais desses dois relatos de heroísmo, apesar das enormes distâncias, comunicam-se em alguns aspectos, promovendo traduções e novas leituras a partir da apropriação de certos elementos. São heroísmos bem diversos, mas aparentados. 133

O mito cristão do salvador, assim como vários outros, também apresenta a reparação do mundo pelo sacrifício heroico. Cristo enfrenta a morte para cumprir seu destino: salvar os homens e restaurar o mundo. O herói retorna, transfigurado, com sua divindade reafirmada e fortalecida, não restando dúvidas sobre seu destino. A morte do Superman se apropria de alguns elementos de tal história, recriando o contexto do herói que dá sua vida pelos outros, retorna da morte e, assim, restitui a esperança dos homens nos ideais que simboliza. Os super-heróis salvam o mundo regularmente – três ou quatro vezes ao longo de um ano, dependendo da área de atuação do personagem. Alguns, que atuam contra o crime organizado, o fazem mais esporadicamente do que aqueles que protegem o planeta inteiro. Tal ritmo cíclico aumenta a fama lendária do personagem sem interferir em sua estabilidade. Demonstra que o uniforme negro do Aranha, por exemplo, não altera seu caráter heroico ou seu altruísmo, apesar de ser evidentemente mais sombrio do que a vestimenta azul e vermelha. O Superman, após seu retorno da morte, também adota um novo uniforme que, por coincidência, é igualmente negro. Se, por um lado, é evidente que faz bastante diferença o aspecto visual do super- herói no imaginário dos leitores, isso não se manifesta da mesma forma no contexto das histórias. Algumas vezes, os escritores conseguem criar narrativas mais complexas, do ponto de vista das relações estabelecidas, interagindo com códigos visuais e aproveitando elementos variantes na composição das tramas dos personagens. Porém, em geral, serve como regra a acentuada semelhança do herói a si próprio. Na história de Jean Grey e da Fênix, o desenlace da história se dá com o caráter benéfico de Jean triunfando sobre os delírios e frenesi da Fênix Negra. O espaço para que o personagem possa mudar e, eventualmente, contradizer ou reinterpretar seus feitos anteriores, dialogando com suas experiências e assumindo novas formas de organização de vida, aparece raramente nas histórias em quadrinhos de super- heróis, que vivem num presente afastado das outras tensões temporais. Nossa impressão é de que o super-herói é aquilo que ele é. Sua exterioridade coincide com sua interioridade. Seus atos são um reflexo de seu caráter, sem espaços para as circunstâncias ou para os acasos. Seu heroísmo é definido como essencial, e não como resultados processuais. Os subtextos estão usualmente ausentes de suas condutas ou motivações. Os elementos que costumam compor as histórias, ou a grande história de suas vidas, são normatizados pela especialização no heroísmo de aventura, núcleo de tal gênero de gibi. Personagens, tecnologias, grupos sociais, civilizações espaciais, magia: os elementos são descritos a partir desse núcleo, sendo instrumentalizados para o enfrentamento e para a 134

configuração de ameaças a serem vencidas. Encaixados em justaposição – pois são desafios a serem ultrapassados ou técnicas a serem dominadas, sem negociação de estados intermediários –, poucos elementos tornam mais complexas as histórias de super-heróis, do ponto de vista das sintaxes realizadas. A vitória do Superman contra a morte é evidente, assim como a volta de Peter Parker como o verdadeiro Homem-Aranha e a redenção da Fênix através da humanidade de Jean Grey. Apesar das indicações de mudança, a expectativa é pela permanência, pelo retorno ao antigo estado de estabilidade. Os ciclos anteriores confirmam que as histórias terão como desenlace o retorno dos heróis. A restauração da ordem é tão necessária quanto inevitável, ela própria guiando a reordenação de si mesma, através de uma lógica interna que se retroalimenta. O ato heroico de retorno da morte, a recuperação da própria identidade e a vitória sobre os sentimentos baixos e sobre o demônio interior (as contradições, as dúvidas, o cansaço) como formas de restauração do estado anterior são coerentes com estruturas recorrentes das histórias de super- heróis57. Ocorrem eventos nos gibis que modificam alguns contextos, porém os novos elementos continuam sendo operados a partir do texto central: o tema do super-herói e a defesa da ordem. Como já discutimos, podemos observar dinâmicas culturais propensas à permanência ou à mudança, em diferentes momentos, nas sociedades. Enquanto as regiões centrais da cultura, mais hierarquizadas e rígidas, tendem a buscar a manutenção do próprio discurso, bem como seu prolongamento tentacular para definir as regiões periféricas, estas tendem a apresentar maior mobilidade combinatória e descritiva. Pelo aspecto conservador e central de certas mídias massivas, certos textos culturais relacionados a tais suportes tendem a produzir estruturas narrativas hierarquizadas e direcionadas à centralidade discursiva, cujas variações esporádicas são exceções que geralmente não alteram de forma significativa os enredos de base.

Uma vez que, desde Kafka e Camus, a literatura dos intelectuais está como que corroída pelo absurdo, a cultura de massa se esforça em aclimatar, aclimar e, finalmente, sufocar o absurdo, dar um sentido à vida por meio da exclusão do contra-senso da morte. (MORIN, 1997, p. 97)

57 Na tradição cartesiana, o homem não doma somente a natureza, mas a si próprio. O interno e o externo devem ser reduzidos à semelhança algébrica da fórmula e aos elementos básicos, imutáveis, essenciais, o que torna capaz o mútuo reconhecimento – em outra palavra, a identidade. O homem que não se domina não pode dominar o seu entorno. 135

Os gibis de super-heróis estadunidenses tendem a normatizar alguns aspectos apropriados dos campos da ficção científica, das narrativas mitológicas, do cotidiano das grandes cidades, em uma estrutura de tendência rígida e central, em que o significativo é a constância do herói, o “saber-se a si mesmo” (garantia de sua exterioridade), seu altruísmo, sua identificação com o bem, o justo e as instituições, somente se insurgindo contra estas últimas se nelas forem evidenciados sinais de corrupção. O super-herói assume, muitas vezes, o papel de herói restaurador que recupera a ordem essencial, desfigurada pela ação do mal. Demonstram a proeminência da ação e da vontade individual na construção do mundo e do destino, como “Robinsons Crusoés” contemporâneos, reafirmando a liberdade e a potência individuais nos desenlaces sociais, sem se importar com as dificuldades. Porém, tais possibilidades só se concretizam se seu intento final estiver de acordo com determinados ideais superiores. Consequentemente, não se trata de mudança, mas de restauração. Adaptação, e não alteração. Os gibis de super-heróis, como foi visto, passaram por períodos denominados eras de ouro, de prata, de bronze, etc., talvez como reflexo ou metáfora de estruturas que se afastam, com o tempo, de um centro ideal e mais perfeito. Não se trata de nomes surgidos por mero acaso; talvez sejam uma representação do desejo de manter o mundo como era nas imediações do pós-guerra, quando, mesmo sem a divisão fundamental promovida pela dicotomia entre Eixo e Aliados, bem e mal, a dividir o globo, restava o “mundo livre” do capital e a “cortina de ferro” do comunismo. Se a Guerra Fria manteve as divisões que se pretendiam absolutas durante os anos de 1960, tempo de surgimento da era de prata dos gibis, os movimentos culturais e sociais trouxeram opções, possibilidades e diversidade, desafiando paradigmas que até então eram predominantemente duais. A cultura trouxe para o jogo as tensões cotidianas, apresentando fluxos e formas de existência que seguiam lógicas um pouco diversas daquelas pregadas e disseminadas pelas então potências econômicas e militares. O Homem-Aranha, que surgiu com a emergência do cotidiano em diversas frentes, também seguiu certa normatização. Lembremos que no começo da Saga dos Clones, o Aracnídeo está um pouco displicente em relação à sua esposa e exagerando na violência em sua atuação como herói. Tal situação é “corrigida” através de seu sofrimento – a perda ilusória de sua identidade e a negação momentânea de seu destino. Ele se retira para viver longe de tudo e de todos com sua esposa, num cotidiano de subúrbio que logo é invadido pelas urgências heroicas. Notemos, ainda, que Peter não tem o bom humor de seu alter ego, Homem-Aranha, mostrando-se melancólico em situações nas quais o herói se mostraria falante e extrovertido. O cotidiano, com suas levezas pouco decisivas, serve ao herói, mas não ao homem comum? É uma questão a ser avaliada. 136

Apesar de diferentes textos culturais (costumes, heroísmo, ficção científica) interagirem na construção dos gibis, a justaposição é mais utilizada do que a articulação, promovendo a manutenção da narrativa “restauradora” como elemento central. Não basta que dois textos culturais diferentes estejam presentes para que algo diferente ou inovador seja produzido. A convivência tolerante entre eles modifica minimamente os textos mais estabelecidos, realizando alterações pouco relevantes do ponto de vista da estrutura das histórias. Em outras palavras, prima-se pela acumulação de elementos, e não por sua tradução. A manutenção dos estados dicotômicos não pode ser superada enquanto os mecanismos centrais de autodescrição e hierarquização, desde o centro até os elementos periféricos, não forem subvertidos através da interação com elementos externos, alógenos, estrangeiros, resultando em desestabilização da ordem discursiva vigente sem, contudo, destruir ou eliminar as diferenças. Não se trata de construir novos sentidos fixos a partir da periferia ou das culturas das bordas58; muito menos da normatização das “brechas” ou das “opções”, no sentido de imobilizar o elemento diverso, convertendo-os em “imprintings”, citados por Morin, ou em “raízes”, nas palavras de Boaventura; o relevante é que a instabilidade não se destina apenas às estruturas centrais, ainda que estas sejam mais difíceis de serem colocadas em jogo relacional. Contudo, é necessária também a desestabilização dos elementos periféricos e externos. Diferenças inconciliáveis e hierarquias rígidas só podem ser superadas com novos movimentos de diálogo. O tradutor não é nem nativo nem estrangeiro. Ele pertence aos dois mundos. Quando os quadrinhos introduzem na história de um super-herói elementos novos, como um uniforme diferente ou um novo enredo, é necessária uma nova ordenação da narrativa. O que acontece, de maneira geral, é a normatização da “novidade” segundo os critérios permanentes que já se encontram presentes no universo do herói. O novo é totalizado e a hegemonia do homogêneo é restaurada. O paralelo com a hospitalidade e o cosmopolitismo de Derrida nos é útil. Não basta a convivência cosmopolita entre textos culturais, a tolerância e a permissão da visita do outro em bairros ou ruas contíguas, mas sem a alteração de seus próprios costumes em consequência de tal presença estrangeira. A tolerância só existe por se considerar o diferente como possível invasor e agressor, mas que, por civilidade, merece uma oportunidade. Já o

58 “Falo de cultura das bordas e não das margens, para não trazer a noção de pejorativa ou mesmo reversora de marginal ou de alternativa. Com "bordas" quero enfatizar a exclusão do centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daquelas que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas” (FERREIRA, dez 89-fev 90, p. 169-174). 137

princípio da hospitalidade constitui outro operativo: o estrangeiro chega sem aviso ou convite e, mesmo assim, não cabe a ideia de invasão. Em nosso espaço de convivência com o outro, os idiomas, as linguagens, os discursos, e os próprios objetos de nossa cultura se reorganizam de forma cambiante e instável para dar conta das diferenças bem-vindas. Não existe risco à identidade dos diversos, não por respeito ou tolerância entre eles, mas porque os pensamentos de essência não se fazem presentes. Segundo Lotman59, o fluxo abundante de textos externos no interior de dada cultura tende a desestabilizar o discurso autorreferente e as relações hierárquicas do contexto, sendo uma das formas de aceleração do que podemos chamar de desenvolvimento da cultura, mas que, de fato, são movimentos de tradução e de geração de novos textos, a partir da elaboração colaborativa, no interior da cultura, de novos códigos e linguagens – gramáticas e semânticas – e, consequentemente, de novos sentidos e discursos. As estruturas centrais das histórias de super-heróis estadunidenses da Marvel e da DC Comics têm a ver, na maioria dos casos, com ideais fixos dos personagens, relacionados a elevados códigos morais e ao altruísmo em relação à sociedade organizada. A defesa dos valores centrais e a restauração da ordem frente aos perigos dos inimigos responsáveis pelo caos, pelo mal e pela desordem são uma forma de solapar o questionamento. A predestinação do herói ao sucesso, diante dos defeitos natos e irreversíveis dos vilões (que concentram todos os refugos e fragmentos que não pertencem à constituição do herói), representa o próprio discurso da inutilidade da mudança na ordem instituída. O que é é; o que não é não é. Aos super-heróis, que algumas vezes também são trabalhadores/consumidores, cabe a tarefa da adaptação. As formas, os penteados e as roupas, para o super-herói, são mudanças superficiais de um presente absoluto que não comporta alteração. A tais novidades o super-herói adapta seu figurino, suas cores, suas relações. Clark Kent, com a emergência de televisão, deixa o jornal impresso e vai para o noticiário televisivo da mesma empresa em que trabalhava. Ele e Lois Lane se tornam um casal de apresentadores jornalísticos. Superman, quando retorna dos mortos, dá provas de sua identidade através de seu heroísmo, do próprio ato heroico capaz de restaurar a ordem e a paz. Ao vencer a batalha contra o impostor que tenta usurpar seu lugar, a ordem retorna ao mundo. Contudo, os textos externos, mesmo que evitados ou ressignificados a partir dos contextos centrais, promovem modificações nas linguagens dos quadrinhos que alteram os discursos identitários, ainda que de forma discreta.

59 Cf. a Introdução e o Capítulo 1. 138

3.3 Constâncias e Algumas Mudanças

A linguagem cotidiana, as novas tecnologias, a inserção de desenhos modernos no design dos super-heróis, os video games, as séries televisivas, alteram as narrativas, introduzem novos elementos no imaginário, distinguem heróis de anti-heróis, supervilões de reles bandidos, etc. Para o leitor, a visão de seus heróis sendo representados por grafites sob os viadutos e nas paredes das cidades estabelece novas relações com as narrativas, assim como criadores e produtores dos gibis não estão fechados aos novos significados que tais heróis vão ganhando ao interagirem com outros contextos culturais, como o citado grafite, o cinema, a música popular e a televisão. Evidentemente, o Homem-Aranha não é – nem poderia ser – exatamente o mesmo personagem de trinta ou mesmo dez anos atrás. Da mesma forma, o Aranha na visão dos habitantes de São Paulo é diferente daquele que está no imaginário dos cidadãos de Tóquio ou da Cidade do México. Tudo isso age na criação de novos significados e sentidos. A própria produção dos gibis está sujeita ao enfrentamento de contradições, quando brechas podem surgir para novos textos culturais, novos diálogos. A interação dinâmica entre determinadas formas narrativas, mais rígidas, e as oscilações da sociedade e da cultura, com seus fluxos de troca, tende a tornar imprevisíveis as formas de recepção/apropriação/tradução, o que altera os horizontes de expectativa dos meios que produzem os gibis e as histórias heroicas. A leitura é uma forma de recriação dos textos, mais do que mera atitude de passividade receptiva.

O lugar das indústrias culturais nesses processos exige redefinir esse conceito para além do sentido inicial dado pela Escola de Frankfurt: dessublimada “queda da arte na cultura” e sua redução à mercadoria. Pois isso nos impediria pensar as contradições que dinamizam a complexidade cultural da sociedade de início de novo século. Ainda reconhecendo a articulação histórica entre capitalismo e industrialização, as transformações vividas pelas sociedades ocidentais têm desvendado a densidade de relações que liga a criação cultural com as lógicas da produção industrial: nem o cinema deixa de ser arte pelo fato de ser indústria, constituindo, isso sim, outro tipo de arte, nem a estandardização implica a total ausência de inovação. É a tensão entre criação e produção que faz hoje das indústrias culturais – desde o cinema até a música discográfica, desde a televisão até a videoarte – espaços de entrecruzamento de diferentes espaços da produção social e da criatividade cultural, conformados por dispositivos complexos que não são de ordem meramente tecnológica, mercantil ou política e nos quais pesam tanto as filiações como as alianças, as pesadas máquinas de fabricação como as sinuosas trajetórias de circulação, e em que os estratagemas de apropriação devem ser levados em conta tanto quanto as lógicas de propriedade. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 358) 139

Entretanto, alguns elementos tendem a não perder a centralidade descritiva, apesar das contaminações e traduções. Ao que parece, tais modificações são mais lentas e discretas na medida em que os gibis de super-heróis tendem a se fechar em sua própria série e estabelecer diálogos com seus próprios textos, códigos e linguagens internas. A estabilidade se firma como valor, não apenas do gibi, mas de muitos leitores, que costumam, ironicamente, abominar “ousadias”, sobretudo as cinematográficas, que descaracterizem os personagens – sua integridade e lógica internas, bem como seu contexto “mitológico”. De toda forma, se houvesse maiores espaços de tradução voltados para os textos externos, talvez as modificações e novas elaborações nos quadrinhos de super-heróis estadunidenses seriam mais dinâmicas e novas configurações poderiam ser atribuídas aos aspectos centrais autorreferentes das narrativas, relativizando o domínio da tendência à permanência e à repetição de ciclos. Os super-heróis trafegam pelo universo para defendê-lo de acordo com seus próprios preceitos éticos cosmopolitas não porque sejam tirânicos em suas posições, mas porque tais elementos são superiores e constantes e, por isso, passíveis de serem generalizados. Por outro lado, raramente os elementos externos que visitam o planeta são tratados com hospitalidade. A primeira visão é de desconfiança. Se recebidos de forma mais aberta e amigável, há um sinal claro de ingenuidade destinada a ser traída pelos visitantes mal-intencionados. O visitante bem-intencionado, ao contrário, é convidado a viver entre nós se assim o desejar; torna-se nosso aliado, vence nossa resistência, luta conosco pelo bem de todos, como foi o caso do Surfista Prateado, que chegou à Terra como arauto de Galactus para anunciar a vinda do Devorador de Mundos. Porém, sensibilizado pelo comportamento dos terráqueos, rebela-se contra seu mestre e ajuda o Quarteto Fantástico a salvar o planeta, ficando preso na Terra desde então como castigo por sua atitude. Traçamos, anteriormente, alguns pontos de diálogo possíveis dos super-heróis com certos relatos míticos. Outra aproximação admissível se verifica com os relatos épicos. Os gibis estadunidenses se apropriaram de certos elementos heroicos de outras épocas e os traduziram em novas formas, como parte do processo de criação dos super-heróis e de seus universos. Em tal processo, outros elementos interagiram e configuraram um tipo específico de herói: o super-herói, que mantém diálogo com diversas tradições de heroísmo, fantasia, ficção, etc. Um dos gêneros que contribuíram para a criação dos seres super- humanos modernos foi o épico ou, ao menos, certas ideias e formas presentes nas narrativas de caráter épico representam tal contribuição. Fazemos essa distinção porque o volume de estudos e significados do gênero épico ao longo da história é muito vasto. Da mesma forma, o termo “épico” é usado para se referir a 140

diversas manifestações criativas mais recentes: há filmes épicos, romances épicos, peças teatrais épicas, etc. Por uma definição ampla: entende-se, segundo o Dicionário Houaiss, que o adjetivo “épico” é próprio do “que relata, em versos, uma ação heroica” ou que é “relativo a ou próprio de epopéia ou de heróis”. Segundo o mesmo dicionário, epopeia é um “poema épico ou longa narrativa em prosa, em estilo oratório, que exalta as ações, os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário que representa uma coletividade”, além de uma “sucessão de eventos extraordinários, ações gloriosas, retumbantes, capazes de provocar a admiração, a surpresa, a maravilha, a grandiosidade da epopeia” e, ainda, uma “aventura fabulosa”60. Convém, antes de prosseguirmos, diferenciarmos os termos “épico” e “epopeia”.

A epopéia é uma realização literária específica de uma matéria épica, caracterizada, crítica e teoricamente, como uma manifestação do discurso épico. Matéria épica e epopéia guardam estreita relação entre si, mas não se confundem, teórica e operacionalmente, uma com a outra. Sendo a epopéia uma realização literária específica de uma matéria épica, fica implícita a pré-existência desta em relação à primeira. Tem-se na matéria épica a configuração de uma idéia ou temática que, impregnada no imaginário coletivo e social, suscita manifestações discursivas e/ou artísticas de natureza diversa, tais como epopéias, romances, pinturas, filmes e mesmo relatos de cunho científico investigativo. Já a epopéia só existe como criação literária. (SILVA; RAMALHO, 2007, p. 56)

Pode ser tal linha de definição, ou diferenciação, a responsável por designarmos como “épicas” narrativas cinematográficas ou em prosa que estão bastante distantes da composição em versos que denominamos “epopeia”. Lembramos, também, que os gibis incorporaram não só a palavra “épico”, mas também “saga”, para falar das grandes aventuras dos super-heróis. Em todo caso, elementos épicos, ligados ao heroísmo, podem ser encontrados nas epopeias clássicas sem que precisemos recorrer aos denominados épicos modernos e contemporâneos para estabelecer um diálogo com as histórias em quadrinhos de super-herói. Durante a 2a Guerra Mundial (assim como em outras guerras), o Capitão América enfrentava os nazistas de posse de uma arma característica, um escudo indestrutível, que trazia a estrela branca, símbolo do super-herói e do país pelo qual lutava. Durante tais batalhas era comum que dez, vinte, trinta inimigos tombassem frente à força, à agilidade e ao poder do soldado, suas armas e sua insígnia (Figura 37). O Homem-Aranha enfrenta quadrilhas armadas, desviando de balas e golpes ao mesmo tempo em que aprisiona os bandidos com suas teias ou os ataca com chutes acrobáticos (Figura 38).

60 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 141

Figura 37

Nessa edição especial dos anos 1970, o Capitão América vai cumprir uma missão no Vietnã. Podemos ver que ele luta contra muitos inimigos “anônimos” ao mesmo tempo, vencendo um pequeno exército. Na história, o arquivilão chinês Mandarim está envolvido na guerra do Vietnã. 142

Figura 38

Antes de confrontar os inimigos poderosos, os super-heróis lutam contra seus cúmplices desconhecidos. Aqui, o Homem-Aranha “humilha” um desses grupos de mercenários com pancadaria e gracejos. 143

Wolverine é conhecido por ser um mutante perigoso, feroz e praticamente invencível, já que seu corpo se cura rapidamente e ele tem um esqueleto super-resistente, construído com o lendário metal adamantium. A quantidade de batalhas vencidas pelos X- Men devido à sua presença confiante e furiosa é incontável. Normalmente, Logan está em desvantagem contra os inimigos, que aparecem às dezenas. As lutas homem a homem somente ocorrem quando se trata de algum inimigo pessoal ou arquivilão que a ele se iguala em ferocidade ou habilidade (Figura 39). Tal habilidade – de enfrentar de forma solitária, e com sucesso, número elevado de inimigos em grandes batalhas ou guerras – é um dos elementos que diferenciam o super-herói. De forma semelhante, os heróis das sagas e dos épicos fazem grande diferença no campo de luta, decidindo batalhas contra grandes e lendários exércitos. Siegfried, Ulisses, Aquiles, Ajax: heróis muito diferentes, porém todos capazes de impingir grandes perdas aos inimigos comuns, lutando contra grandes grupos sem sofrimentos maiores, pois tais grupos são compostos por soldados comuns, que carecem de bênção especial ou divina. As lutas que merecem sua completa atenção são somente aquelas contra homens tão grandes quanto eles próprios, tal qual foi a de Heitor contra Aquiles às portas da cidade de Troia, conforme nos conta Homero em Ilíada. Em Odisseia, o momento de revelação da identidade de Ulisses aos pretendentes de sua esposa, que o tinham como morto, acontece logo depois que ele empunha sua arma, um arco que ninguém mais senão ele próprio poderia manejar, e enfrenta com total destemor o grande grupo.

Assim falavam os pretendentes; mas o astucioso Ulisses após ter levantado o grande arco e de o ter examinado, tal como um homem conhecedor da lira e do canto facilmente estica uma corda a partir de uma cravelha nova, atando bem a tripa torcida de ovelha de um lado e de outro – assim sem qualquer esforço Ulisses armou o grande arco. Pegando nele com a mão direita, experimentou a corda, que logo cantou com belo som, como se fosse uma andorinha. (HOMERO, 2008, p. 350)

Aquiles também possui armas específicas, forjadas pelo próprio deus Hefesto e que representam seu poder e anunciam sua presença nos campos de batalha, incentivando aliados e amedrontando os inimigos, mesmo que sejam numerosos. No canto XII do poema épico, os troianos são incitados a avançar contra os gregos sob o aviso de que Aquiles não está entre eles. Nas sagas nórdicas e lendas europeias, as armas também são associadas aos heróis, sendo sinais de sua identidade e de sua força – são exemplos famosos a espada Balmung de Siegfried e a Excalibur de Rei Arthur. 144

As armas dos super-heróis raramente são mágicas, mas contam com truques inesperados e miraculosas tecnologias. São também bastante específicas: os bastões do Demolidor61, as garras de adamantium de Wolverine, o escudo inquebrável do Capitão América, o cinto de utilidades do Batman, o anel do Lanterna Verde, o martelo de Thor62, o laço da Mulher-Maravilha, etc. Tais instrumentos, muitas vezes, são únicos ou feitos especialmente para eles, sendo impensável, quando não impossível, serem usados por outras pessoas. O martelo de Thor só pode ser empunhado por alguém tão digno quanto o deus nórdico do trovão; o Capitão América foi um dos poucos mortais a conseguir levantá-lo. Em ao menos uma ocasião, durante a série Guerras Secretas, da década de 1980, a imagem do escudo quebrado do Capitão América (Figura 40) foi usada para ilustrar a morte de todos os heróis. Os superpoderes – cada vez mais sofisticados e criativos, conforme os universos heroicos foram se desenvolvendo nos quadrinhos – muitas vezes se assemelham aos poderes dos deuses. Super-heróis disparam raios das mãos, tal qual Zeus durante a Guerra de Troia, como narrado no Canto VIII de Ilíada63; têm força sobre-humana como Hércules; velocidades divinas como Mercúrio. Não por acaso, o Capitão Marvel usava a palavra mágica Shazam para invocar a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, a resistência de Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio – as iniciais de tais seres míticos dão forma à palavra mágica usada para a transformação. A capacidade de enfrentar dezenas ou centenas de inimigos, que lembram algo das lutas de Ulisses em sua casa ou Aquiles e outros heróis, como Ajax e Agamêmnon nos campos de batalha de Troia, ou mesmo dos cavaleiros medievais, é sempre usada nos gibis, não somente como modo de criar grandes momentos de ação, mas também para ilustrar até que grau se diferencia o herói das pessoas comuns, que fazem pouca diferença perto dele. Todo herói, como já citamos em exemplos acima, se encontra em desvantagem numérica contra muitos inimigos, e uma de suas características é conseguir vencer, muitas vezes sozinho, pequenos grupos ou mesmo grandes exércitos. Esse é um dos atributos desse tipo de herói. Os filmes hollywoodianos, nos quais um único policial, por exemplo, consegue acabar com toda uma organização criminosa, terrorista ou mesmo frustrar os planos de conquista do ditador de uma nação, seguem lógica semelhante.

61 Demolidor é um super-herói do universo Marvel, criado por Stan Lee e Bill Everett em 1964. 62 Thor, deus nórdico do trovão e da guerra, é também um super-herói do universo Marvel, criado por Stan Lee, Larry Lieber e Jack Kirby em 1962. 63 “Da altura do Ida, Zeus troa e contra os Dânaos fulgura e flameja. Espantam-se os Aqueus, tomados do cloroso medo verde” (HOMERO, 2001, p. 299). 145

Figura 39

Wolverine enfrenta capangas do Clube do Inferno durante a Saga da Fênix Negra. 146

Figura 40

O escudo do Capitão América quebrado, no último número das Guerras Secretas, se torna símbolo do aparente extermínio dos super-heróis pelo Doutor Destino. Contudo, eles ressuscitariam em breve através dos poderes e da imaginação do próprio inimigo.

147

Aquiles tem um ponto fraco, seu calcanhar; Siegfried, a parte anterior de seu ombro. O Superman, personagem inaugural dos “modernos” super-heróis dos gibis, tem seu ponto fraco na kryptonita, um mineral que lhe é mortal oriundo de seu planeta natal. O Lanterna Verde possui também uma fraqueza: a luz amarela, que inibe a energia verde de seu anel. O favor dos deuses e a magia, presentes algumas vezes nos clássicos épicos citados, existem de maneira muito diversa nos quadrinhos. Alguns super-heróis possuem poderes mágicos, como os personagens místicos Zatana, da DC Comics, e a Feiticeira Escarlate ou o Doutor Estranho, da Marvel. Contudo, a maioria dos heróis tem instrumentos forjados a partir da sua criatividade e engenhosidade, e não de seres mágicos. Podemos dizer que elementos da ficção científica estão muito mais presentes nos quadrinhos do que os contextos míticos quando se trata de fornecer material para a criação de instrumentos de batalha aos personagens. Ou, talvez, a ficção científica tenha ocupado alguns espaços análogos aos ocupados pela magia em outros gêneros de narrativa. De qualquer forma, os o papel dos objetos especiais, que são símbolos dos personagens, foi ampliado64 nas histórias. A “magia” de Tony Stark, responsável pela construção de armaduras com tecnologias inéditas, design sofisticado e cores repletas de simbolismo, é um dos elementos mais cativantes das histórias do Homem de Ferro (Figura 41). O Senhor Fantástico, líder do Quarteto Fantástico, é um cientista genial, capaz de inventar instrumentos que civilizações muito mais avançadas que a terrestre ainda não conhecem. Até mesmo o Homem-Aranha, que não tem laboratório próprio, criou a fórmula do fluido de teia ultrarresistente que usa em seus lançadores. Os super-heróis possuem a habilidade de vencer exércitos, têm armas especiais únicas, são lendários; seus grandes inimigos são, como eles, seres especiais e possuem fraquezas mais ou menos secretas. Podemos observar também algumas cenas marcantes, verdadeiros painéis que procuram dar conta de grandes momentos das histórias, retratando o grupo ou suas batalhas em dimensões ampliadas, procurando demonstrar a grandiosidade única dos super-heróis, daquela determinada saga ou do grupo ao qual eles pertencem. Podemos chamar tais cenas de “épicas”, porque apresentam os personagens em momentos que se querem lendários e dignos de lembrança por parte dos fãs (Figuras 42 a 48).

64 Devemos lembrar que os super-heróis estão lutando durante grande parte do tempo e, dessa forma, suas armas e poderes são ainda mais importantes para eles do que o arco foi para Ulisses ou a armadura para Aquiles. 148

Figura 41

Primeira aparição de uma nova versão da armadura do Homem de Ferro, que retoma o vermelho e o dourado da armadura original clássica, da década de 1960. 149

Figura 42

Primeira cena dos super-heróis reunidos durante as Guerras Secretas pelo ser extradimensional Beyonder. A cena tem ares grandiosos: o cenário imenso e o encontro de tantos seres lendários numa aventura no meio do universo por motivos misteriosos contra seus piores inimigos. Presentes: Capitão Marvel, Tempestade, Capitão América, Senhor Fantástico, Vespa, Hulk, Ciclope, Professor X, Thor, Wolverine, Coisa, Aranha, Vampira, Homem de Ferro, Tocha Humana, Magneto, Mulher-Hulk, Gavião Arqueiro, Colossus, Noturno e o dragão Lockheed, mascote da heroína Lince Negra.

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Figura 43

Cena da série Inferno, de 1989, que mostra os X-Men “modernos” (à esquerda) encontrando os X-Men “clássicos” (à direita). A divisão do campo de batalha, a provocação de Wolverine beijando seu amor proibido Jean Grey na frente de Ciclope, as poses de batalha e o cenário amplo criam o efeito de um evento memorável.

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Figura 44

Como um raio divino uraniano saído da mão de um deus, Doutor Destino atinge os super-heróis durante as Guerras Secretas com uma rajada de energia. A visão de heróis como Hulk, Thor e Colossus, entre outros, tombando sob um único golpe, é bastante impressionante e mostra a imensidão do poder do vilão. 152

Figura 45

A edição #36, de dezembro de 2001, de The Amazing Spider Man, mostra o Homem-Aranha assistindo, impotente, à queda das Torres Gêmeas após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Na página seguinte, dois cidadãos perguntam onde ele estava e por que não impediu aquilo. Ele não consegue responder e pensa: “Como você diz que “não sabia” [que terroristas atacariam as Torres Gêmeas com aviões]? Nós não poderíamos saber. Nós não poderíamos imaginar” – frases semelhantes às respostas do governo estadunidense frente ao questionamento do público sobre possíveis avisos das agências de inteligência sobre os atentados. Até o Doutor Destino e outros vilões vêm ajudar os super-heróis, os bombeiros e os policiais no resgate às vítimas em meio aos escombros, ou seja, mesmo eles, os bandidos, choram ao ver tamanha destruição causada por “loucos” que nem mesmo os piores vilões do universo Marvel seriam capazes de realizar. 153

Figura 46

Numa edição especial, todos os super-heróis estão presentes enquanto o Capitão Marvel, um super-herói cósmico, agoniza devido a um câncer. A presença de tantas personalidades poderosas e honradas evidencia a gravidade do momento. 154

Figura 47

O funeral de Superman é acompanhado por todos os super-heróis da DC e por uma multidão em Metrópoles. A bandeira estadunidense cobre o caixão dele. O S está ao lado da carruagem. No canto inferior direito, Lois Lane e Jimmy Olsen choram pelo amigo. 155

Figura 48

Os super-heróis carregam o caixão do Capitão América, em Washington, em direção ao memorial construído para o herói-soldado. A estátua enorme ao fundo traduz o que o falecido simbolizou para a nação. Nas mãos, suas armas – a bandeira e o escudo. 156

Em um texto de 1941, Bakhtin discute diferenças entre o gênero épico e o discurso romanesco, procurando estabelecer algumas diferenças entre eles. Segundo o autor, alguns pontos levantados à época, como a definição do que é romance, eram de fato a crítica, a partir deste, a outros gêneros considerados como clássicos e às suas relações com a realidade, “da sua heroicização enfática, do seu convencionalismo, do seu poetismo restrito e inerte, da sua monotonia e abstração, do aspecto acabado e da imutabilidade dos seus personagens” (1998, p. 403).

Do ponto de vista do nosso problema, a epopéia, como um gênero determinado, se caracteriza por três traços constitutivos: 1. O passado nacional épico, o “passado absoluto”, segundo a terminologia de Goethe e Schiller, serve como objeto da epopéia; 1. A lenda nacional (e não a experiência pessoal transformada à base da pura invenção) atua como fonte da epopéia; 3. O mundo épico é isolado da contemporaneidade, isto é, do tempo do escritor (do autor e dos seus ouvintes), pela distância épica absoluta. (BAKHTIN, 1998, p. 403)

Os super-heróis, em relação a tais elementos, estão bastante distantes dos mundos épicos da epopeia. O passado nacional, absoluto, na maioria das histórias de super-heróis, cede lugar, primeiramente, à memória de um tempo mítico de origem, essencial, no qual o caráter do herói foi criado e do qual ele retira forças para os desafios atuais; em segundo lugar, ao tempo contemporâneo, compartilhado pelos autores, personagens e leitores dos gibis, mas que toma ares de um presente absoluto. Na ausência de uma visão processual, histórica, a subordinação a um presente e a um passado que se apresentam como integrais se torna completa. Ainda assim, a sensação é a de que o mundo dos super-heróis existe bem aqui, entre os nossos prédios ou os prédios de outra cidade e, de forma geral, em todo o nosso universo. Uma das consequências do distanciamento temporal da épica clássica é o caráter perfeito e acabado em si mesmo.

Tudo que participa deste passado, o faz na sua autêntica essencialidade e significação, mas, por outro lado, adquire um acabamento e uma conclusão, e despoja-se, por assim dizer, de todos os direitos e pretensões a um desenvolvimento real. (BAKHTIN, 1998, p. 408)

Disso decorre que “o homem dos grandes gêneros distanciados é (...) inteiramente perfeito e terminando. Ele é concluído num alto nível heróico, (...) coincide consigo próprio e é igual a si mesmo. Ademais, ele é completamente exteriorizado. Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância” (BAKHTIN, 1998, p. 423). 157

Os ciclos reparadores da ordem (do mundo e de si mesmo) que se repetem em grande parte das histórias de super-heróis estabelecem personagens com algum nível de acabamento, ao menos no que diz respeito à sua postura heroica. Apesar de questionado algumas vezes, em razão de dúvidas passageiras e circunstanciais, o super-herói tende a encontrar o caminho de volta ao seu modo de vida. Seu olhar de dúvida serve antes à afirmação da necessidade da permanência do que à reorganização através da mudança. O presente absoluto exige novidades constantes, descartando mudanças ou alterações. Ao personagem cabe a adaptação. Mas certa aproximação temporal, certo sincronismo, cria condições para que o herói viva também no mundo cotidiano ou, ao menos, que conviva com alguns de seus aspectos, quebrando sua elevação heroica e levando-o a compartilhar de elementos “inferiores” em relação à magnitude de seu destino.

A vida atual, o presente ‘vulgar’, instável e transitório, esta ‘vida sem começo e sem fim’ era objeto de representação somente dos gêneros inferiores. Mas, antes de mais nada, ela era o principal objeto de representação daquela região mais vasta e rica da criação cômica popular. (...) O presente, a atualidade enquanto tal, o “eu próprio”, os “meus contemporâneos” e o “meu tempo” foram originalmente o objeto de um riso ambivalente, objetos simultâneos de alegria e destruição. (...) O “passado absoluto” dos deuses, dos semideuses e dos heróis – nas paródias e particularmente nos travestimentos – ‘atualiza-se’: rebaixa-se, é representado em nível de atualidade, no ambiente dos costumes da época, na linguagem vulgar daquele tempo. (BAKHTIN, 1998, p. 412)

Tal articulação do heroísmo com o plano cotidiano, nos quadrinhos, é expressa de várias formas. Não havendo qualquer possibilidade de estabelecer uma distância absoluta dos personagens com o presente (ainda que esse tenha feições de um tempo absoluto), os super- heróis acabam “caindo” num mundo um pouco mais relativo. As identidades secretas, ao contrário do que possa parecer, são bem menos usadas pelos super-heróis do que se pensa. A vida mundana é vivida de formas diferentes por eles. Aqueles que realmente têm uma “vida” para além das atribuições heroicas não são tantos quanto já foram um dia, quando todo mascarado possuía um alter ego. Os gibis contam a história de Peter Parker ao mesmo tempo em que contam as aventuras do Homem-Aranha. Já citamos o bom humor do Aracnídeo. Há outros índices de “rebaixamento”: situações constrangedoras, como ficar sem fluido de teia em momentos cruciais; as “correrias” empreendidas por Peter para pagar o aluguel ou para estudar entre um combate e outro contra um supervilão e não ser reprovado em Química; suas confusões amorosas; as campanhas difamatórias promovidas por seu chefe J. J. Jameson contra o Aranha, com a ajuda indireta do próprio Peter, já que ele é o “fotógrafo oficial” do herói; a 158

perda eventual de suas roupas na pressa de vestir o uniforme azul e vermelho para salvar algum cidadão em perigo. A vida de Clark Kent, o Superman, também tem seus momentos. Quantas vezes não vislumbramos um Clark tímido, até mesmo ridículo? Os comportamentos engraçados que deve assumir para esconder que é o Superman são momentos clássicos dos gibis e dos filmes do herói.

Agora, um ponto na mitologia do super-herói é, há o super-herói e há o alter ego. O Batman é, na verdade, Bruce Wayne, o Homem-Aranha é realmente Peter Parker. Quando o personagem acorda de manhã, ele é Peter Parker. Ele tem que colocar um traje para se tornar o Homem-Aranha. E nessa característica o Superman está sozinho. O Superman não se tornar o Superman. O Superman nasceu Superman. Quando o Superman acorda de manhã, ele é o Superman. Seu alter ego é Clark Kent. Sua roupa com a grande "S" é o cobertor em que ele estava envolvido quando era bebe e os Kents o encontraram. Essas são as suas roupas. O que Kent veste – os óculos, o terno – que é o traje. É a fantasia que o Superman usa para se misturar com a gente. Clark Kent é como o Superman nos vê. E quais são as características de Clark Kent? Ele é fraco... Ele é inseguro... Ele é um covarde. Clark Kent é a crítica do Super-Homem a toda a raça humana.65

O super-herói, com a caracterização de seu alter ego, entra no mundo cotidiano repentinamente. E muitas vezes o jogo de riso, as cenas ridículas e as desventuras conseguem espaço na própria atuação heroica, como acontece quando vemos o bom humor jovial do Flash, os momentos de azar do Homem-Aranha ou o comportamento e linguajar “bronco” do Coisa. São nesses pontos de contato com o cotidiano que surge a possibilidade de deslocamentos e acontecimentos inusitados nos quadrinhos de super-heróis – a surra do ser superpoderoso que se encontra na mão dos vilões, o desencanto afetivo, a perda, a decepção. Como tais elementos se desenvolvem ao longo das narrativas é uma questão que já discutimos anteriormente, ao nos referirmos a certa hierarquia e ao domínio da identidade heroica sobre os outros aspectos dos personagens; contudo as variações de força dessa tendência à permanência estão sujeitas à popularidade do super-herói, seu simbolismo e “mitologia”, sua relevância na ordem interna do “universo” quadrinesco em questão, entre outras coisas. As equipes de super-heróis, que se popularizaram nos anos 1960, desestabilizaram, de certa forma, o movimento promovido pelo elemento do alter ego, a identidade secreta que permitia ao herói viver entre as pessoas comuns. Ironicamente, isso ocorreu no mesmo momento em que outros heróis eram criados com características mais humanas. O grupo, muitas vezes (como a Liga da Justiça, os X-Men, os Vingadores, o Quarteto Fantástico), se

65 KILL BILL. v. 2. Direção de Quentin Tarantino. EUA: Imagem Filmes, 2004. (137 minutos). Inglês. 159

torna o núcleo por excelência de convivência dos super-heróis, seja durante as aventuras ou entre elas, não sobrando espaço para a vida sem a vestimenta ou sem a máscara. O que podemos observar, como já citamos, é o caráter “familiar” que tais grupos tendem a adquirir, tornando-se eles próprios a polarização de alguma atuação cotidiana, que difere de intensidade de acordo com a mitologia que envolve cada grupo. Como grupo, os X-Men apresentam variações interessantes de temática, provavelmente porque lidam com alguns temas bastante contemporâneos, como a discriminação e a genética. Durante sua fase “australiana”66, o grupo, após uma ressurreição mística, se refugiou numa cidade abandonada no deserto da Austrália. À época, faziam parte da equipe os remanescentes do evento Massacre de Mutantes, que se passou nos esgotos de Nova York e causou muitas mortes. O professor Xavier havia sido levado por uma civilização intergaláctica para ser curado de uma enfermidade mortal e a liderança estava sendo exercida por Ororo, a Tempestade. Considerada uma das fases mais interessantes dos X-Men, estas foram as últimas histórias escritas por Chris Claremont67 à frente do título, depois de mais de 15 anos criando histórias sobre os mutantes. Sob grande pressão após eventos dramáticos, como o ataque dos aliens da Ninhada68, as mulheres decidem sair às compras e os homens resolvem passar uma tarde na cidade, enchendo a cara. Assim, as moças seguem através de um portal dimensional para um shopping em algum lugar do mundo, para fazer compras (onde acabam enfrentado uma paródia dos “Caça-Fantasmas”) e os rapazes seguem para alguma cidade próxima em busca de um bar, alguma diversão e conversa fiada, como muitos de nós depois de um dia estressante. Enquanto bebem no “boteco”, veem gigantescas naves chegando. Uma invasão extraterrestre é o que está ocorrendo. Porém, a cidade ignora a intenção dos invasores, somente revelando incômodo pelo número de tanques nas ruas atrapalhando o trânsito (Figura 49). Vemos outras cenas de paródia: jornais que sabem dos fatos, mas consideram que há coisas mais importantes para serem noticiadas; o mutante Longshot, antes astro de TV

66 Publicada entre 1988 e 1990 pela Marvel. 67 Roteirista americano de história em quadrinhos que criou personagens como Vampira, Lince Negra, Senhor Sinistro, Gambit e Fênix. 68 Alienígenas parasitas do universo Marvel que tentam invadir a Terra desde 1982, quando apareceram pela primeira vez nas revistas dos X-Men. 160

interdimensional, fazendo invasoras inimigas, após alguma luta, se apaixonarem por seu charme (Figura 50); Wolverine jogando cartas e blefando, enquanto aposta sua vida, com o comandante dos invasores (Figura 51); o super-herói Destrutor, bêbado, mostrando aos alienígenas que suas armas são pequenas perto do disparo de sua rajada de plasma (Figura 52). Ao final, com a retirada incondicional dos invasores, os quatro chegam bêbados e cantando como bons e velhos camaradas em casa, para diversão das moças. Wolverine, inclusive, beija Tempestade, para desconcerto da amiga (Figura 53). Entre um movimento restaurador e outro ao redor destes ciclos constantes, das mudanças de poderes, de uniformes, nos quais o espírito heroico permanece e o super-herói não deixa seus ideais, sua luta, seu destino e sua identidade, elementos “baixos” dão espaço a deslocamentos, a certo humor e ao despretensioso. Nesses momentos, surgem histórias com elementos diferentes dos usuais, provocando mudanças mais contundentes do que a destruição de um planeta, a união de duas dimensões ou a reaparição de um terrível vilão. Nos quadrinhos de super-heróis as experiências mais inovadoras surgem quando elementos de pouca relevância ou ausentes nas maiorias das narrativas são articulados com outros temas, sobretudo os mais centrais, como o caráter heroico, os valores elevados, etc. São nesses momentos que se permitem deslocamentos e variações combinatórios, porque os elementos altos são relativizados e os baixos, praticamente ausentes nas narrativas usuais, são desenvolvidos e destacados a partir de operação contributiva, sem ganhar relevância superior. São desvios que rejuvenescem o gênero e são, ao mesmo tempo, retorno reelaborado – restauração inventiva – aos tradicionais cartuns críticos e às tirinhas com humor inusitado presentes nos jornais desde o surgimento dos quadrinhos. Elementos estimulantes do riso69, como a incompletude, a falha e a fissura, abrem espaços para os deslocamentos de significados, caracterizando novas formas de relação entre os textos e trazendo para a esfera cotidiana os elementos de heroísmo, que são reelaborados segundo novos parâmetros.

69 “Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as idéias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as idéias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa “carnavalização” da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico” (Bakhtin, 1999, p. 43). 161

Figura 49

X-Men #245 – invasores de outro planeta chegam à Austrália. O clima é de paródico. No segundo painel, o homem na churrasqueira se preocupa com a chegada de tantos turistas à cidade. No painel 4, um motorista reclama com um dos invasores pelo congestionamento causado por seu tanque, enquanto no painel seguinte um dos alienígenas toma cerveja australiana batendo papo com um homem que diz também ter estado no exército – “Você sabe, eu também estive no Exército!”

162

Figura 50

O astro de televisão interdimensional Longshot combate as harpias alienígenas assassinas de forma pouco convencional – acaba seduzindo uma delas com sua conversa.

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Figura 51 Wolverine joga pôquer com o comandante dos invasores. Bêbado, aposta sua vida no jogo – “Que tal deixar esse jogo realmente interessante? Eu aposto minha vida. Você ganha, você me mata. Eu ganho...” 164

Figura 52

Destrutor mede forças com os “conquistadores”, demonstrando a superioridade de suas rajadas de plasma, no painel 6 – “Estas não foram rajadas. Isso é uma rajada”. 165

Figura 53

Os super-heróis voltam para casa contando histórias sobre suas aventuras. Wolverine beija a colega Tempestade. 166

Bakhtin (1998, p. 423) nos explica que uma das características do herói épico é não só sua completude absoluta, como também o fato de ser “completamente exteriorizado”:

Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância. Todo o seu potencial e todas as suas possibilidades são realizadas até o fim, na situação do seu ambiente social, em todo o seu destino, e até mesmo na sua aparência; à parte este destino definido e esta situação precisa, não resta nada dele. Ele se tornou tudo aquilo que poderia tornar-se, e não poderia ter se tornado outra coisa que não fosse isto. Ele está completamente exteriorizado no sentido mais elementar e quase literal da palavra: nele, tudo é aberto e se manifesta a alta voz, o seu mundo interior e todos os seus traços externos, comportamentos e ações estão situados num único nível.

Geralmente, o super-herói conhece a si mesmo tanto quanto ao seu mundo e seu destino (ou alguém os conhece por ele e o orienta), estando pronto ao desafio do presente absoluto em que vive, no qual a história pouco significa e a experiência, frente à essência, é pouco relevante. Seus questionamentos e dúvidas surgem no cotidiano, quando se cogita que, nesse mundo exteriorizado e bem definido, algo pode ser levemente diferente, contradizendo as certezas do universo. Ainda que tais eventos sejam usados muitas vezes para revelar a grandiosidade do personagem, ou sua extrema vilania, não deixam de ser capazes de gerar novas analogias. Nos gibis do Quarteto Fantástico de números 48, 49 e 50, de 1968, a família de super-heróis enfrentou Galactus, o Devorador de Mundos, em sua primeira de muitas aparições. Foi quando surgiu um dos super-heróis mais poderosos do universo Marvel, o Surfista Prateado. Arauto de Galactus, ele procura planetas que sirvam de alimento para seu mestre, e seu aparecimento antecipa a chegada do ser cósmico, levando os povos que conhecem sua fama ao desespero. Sua vinda à Terra acontece em meios às aventuras do Quarteto, que pouco sabe daquele ser prateado que voa em um “pranchão” e parece ter poderes incalculáveis. Depois de uma breve tentativa de luta entre o grupo e o Surfista, o ser prateado desaparece e o Quarteto se prepara para enfrentar Galactus, a verdadeira ameaça, que chega logo em seguida. Enquanto isso, o Surfista encontra Alicia, namorada do herói Coisa, um dos membros do Quarteto, uma moça cega e frágil. Ela percebe sua chegada e supõe que precise de ajuda.

Alicia - O rosto de um homem! Mas... Diferente... Muito diferente de qualquer rosto que eu tenha sentido antes! Surfista - Homem? Eu sou mais do que um homem! Eu sou o Surfista Prateado! Eu sou o arauto de Galactus! Alicia - Surfista Prateado? Galactus? Eu... Temo que não esteja entendendo... 167

Surfista - Que importa? O entendimento não pode alterar os caminhos do destino! Alicia - Eu nunca tinha ouvido alguém falar assim... Tão estranhamente! Há certa nobreza em sua voz! Surfista - Nobreza? A palavra não tem significado para mim! Você não pode ver. Todos os terrestres são assim? Alicia - Claro que não. Então... Você não é realmente desse mundo! É incrível! Surfista - Incrível? Não, é extremamente crível! A terra é apenas um ponto cintilante. Uma pedrinha insignificante.

Nessa cena, que dura uma página (Figura 54), ficamos sabendo do caráter nobre do Surfista que, junto ao seu incrível poder, o torna um ser aparentemente completo, característica acentuada pela sua aparência – tem o corpo completamente revestido por uma armadura de prata invulnerável, em lugar da pele. Enquanto o Quarteto enfrenta Galactus, atrapalhando-o de todas as formas possíveis, já que vencê-lo é impensável, na casa de Alicia o Surfista usa seu poder para criar objetos e alimentos.

Surfista - Depois que o Grande Galactus tiver acabado, tudo será reduzido a pura energia! Alicia - Você... Você vai mesmo! De alguma louca, inacreditável e terrível maneira você vai! Sua intenção é destruir a Terra! Surfista - Destruir é meramente uma palavra! Nós simplesmente mudamos as coisas! Nós mudamos elementos em energia... A energia que sustenta Galactus! Pois somente ele importa! Alicia - Não! Não! Nós todos importamos! Todo ser vivo... Todo pássaro e toda fera... Este é nosso mundo! Nosso! Talvez nós não sejamos tão poderosos quanto seu Galactus... Mas nós temos corações... Nós temos almas... Nós vivemos... Respiramos... Sentimos! Você não pode ver isso? Você é tão cego quanto eu??? Surfista - Nunca havia eu ouvido tais palavras... Sentido tal coragem ou conhecido este estranho sentimento... Essa nova emoção...! Há uma palavra que algumas raças usam... Uma palavra que eu nunca havia entendido... Até agora! Alicia - Então você não é somente um monstro sem alma! Você também tem emoções! Eu sabia! Eu senti desde o princípio! Surfista - Não! Não diga mais nada! Não crie ilusões! Eu sou o que eu devo ser! Eu sirvo Galactus! Alicia - Mas olhe! Olhe a cidade abaixo de você! Olhe as pessoas! A cada uma delas é permitido viver, ser feliz. Cada uma delas é... Humana! Surfista - Humana? O que tal palavra pode significar para mim? E, mesmo assim, eu nunca havia visto uma espécie tão de perto! Nunca havia eu sentido esse novo sentimento... Essa coisa que alguns chamam... Piedade! Alicia - De acordo com a rádio, nosso planeta inteiro está em grande perigo! Mas eu tenho a forte sensação de que de alguma forma você possui o poder para nos salvar! Surfista - Eu? Desafiar Galactus?? É impensável! Alicia - Então você poderia ficar parado e ver um mundo ser destruído? Como... Como eu pude estar tão errada sobre você... Quando eu senti nobreza... Quando eu pensei que você possuía.... Compaixão! Surfista - Talvez, humana... Você não estivesse totalmente errada! Talvez pela primeira vez na história... Eu tenha encontrado alguma coisa... Alguma coisa que valha a pena proteger! (Figura 55) 168

Figura 54

Alicia Masters encontra o Surfista Prateado e lhe oferece ajuda, enquanto o Quarteto Fantástico enfrenta Galactus. 169

Figura 55

Convencido pelas palavras de Alicia a olhar para si mesmo e para a humanidade de outra forma, o Surfista se apressa em ajudar o Quarteto e impedir que Galactus destrua o planeta. 170

O Surfista Prateado voa pela janela do apartamento de Alicia e se junta ao Quarteto Fantástico na luta contra Galactus, que é afastado da Terra. A coragem da espécie humana de enfrentar um destino certo e terrível, mesmo sendo uma “espécie pequena, frágil e inferior”, leva o Surfista Prateado ao questionamento e a algum tipo de reflexão sobre si e o mundo. Fora isso, ele foi estimulado pela moça com palavras essenciais, como “destino”, “nobreza”, “corações”, “almas”, “emoções”, etc.70 Suas dúvidas sobre si mesmo e seu destino são motivados quando ele entrevê que pode haver mais nos humanos do que acreditou a princípio. E é numa cena fora de qualquer batalha, próxima ao cotidiano, que ele passa por tal experiência. O ser humano mostra um texto paralelo à sua clara insignificância frente ao Universo – sua bravura, sua coragem, suas emoções, sua fé. Ao mesmo tempo, representa um jogo de elevação e rebaixamento dos super-heróis: são, mesmo com poderes, humanos, e, por isso, mortais, mas se elevam num momento crítico, enfrentando Galactus como enfrentariam qualquer outro desafio, até mesmo com mais coragem. Pouco lhes importa o tamanho do perigo ou o determinismo – nenhum destino pode ser mais determinado do que seu próprio heroísmo. Além disso, durante o processo restaurador, é normal o super-herói encontrar um momento de dificuldade a ser superado, um entrave, um desânimo, algo maior que ele próprio ou, ao menos, que assim pareça por algum tempo. Tal adversidade é logo superada pela determinação do personagem, mas, ainda assim, algum espaço pode ser aberto, dando margem para possíveis deslocamentos. O Surfista Prateado vê o texto paralelo em si mesmo: seu poder imenso, sua nobreza galáctica, seu destino absoluto, sua responsabilidade imutável e sua razão perfeita são “rebaixados”, caracterizando um ser sem liberdade, de vontade limitada e sem compaixão; e os humanos, fracos e imperfeitos, são profundamente valentes e repletos de sentimentos nobres. Pergunta-se, talvez, com esse movimento, se seu destino poderia ser menos absoluto, suas responsabilidades menos determinadas e suas certezas menos exatas. Assim como conceitos ou palavras altamente especializados e abstratos não dão grande espaço para o desenvolvimento de figuras de linguagem, como metáforas, a elevação promovida pela identidade, pela total coincidência consigo mesma, tende a eliminar os

70 Em 1968, em plena Guerra Fria, cabia aos estadunidenses salientar os aspectos emocionais da humanidade, tendo em vista que a propaganda era a de que os soviéticos possuíam apenas atributos intelectuais e técnicos, como lógica, racionalidade, inteligência, etc., e os usavam de forma maquiavélica, sendo incapazes de sentimentos e compaixão. Alicia em momento algum menciona que o ser humano pensa ou tem consciência, mas sim que possui emoções, coração e alma, sendo tais elementos dignos de valor por parte do alienígena “insensível”, tal qual um homem-máquina. 171

espaços por onde outros discursos poderiam se mover, gerando novas significações, tensões e relações. Não por acaso, o Surfista só percebe o novo e o diferente ao vislumbrar que a humanidade não corresponde plenamente ao seu exterior. E esse “choque”, esse atrito, leva-o a se questionar sobre si mesmo. Tal rebaixamento de sua superioridade, antes absoluta, abre espaços, “brechas”, onde novas relações podem se desenvolver, assim como deslocamentos. O presente absoluto cede à possibilidade do processo. A completa exterioridade, que inibe os textos paralelos, é colocada em jogo e desestabilizada. Ao se questionar sobre si mesmo, suas responsabilidades e seus limites, o Surfista Prateado está se perguntando se não pode haver um pouco de espaço, mesmo diante de seu aparente acabamento e rígido destino, para algum movimento, alguma mudança e, consequentemente, alguma possibilidade de liberdade. 172

173

4

OS SONHOS COTIDIANOS

Não é logo que se muda a mente dos deuses que são para sempre.

Odisseia, Canto III, Verso 147, 2003, p. 55.

Sandman é o nome de um personagem do folclore anglo-saxão que significa, literalmente, “homem da areia” ou “homem das areias”. Em linhas gerais, manifesta-se como intermediário entre a vigília e o sono. Ao acordar, podemos notar aquelas pequenas secreções entre as pálpebras, chamadas remelas. Diz-se que elas são, na verdade, a areia que o Sandman soprou em nossos olhos para nos fazer dormir. Ou, ao menos, nos olhos dos anglo-saxões. Personagem ligado à noite e ao sono, não se trata de um ser necessariamente relacionado ao medo e ao terror, como aparece no conto de E. T. Hoffman (1815). Em geral, é um personagem esperado com ansiedade por aqueles que querem dormir. Contudo, tem uma aura de mistério – está ligado, de forma dupla, à escuridão: pela ausência da luz durante a noite, quando as incertezas costumam aumentar pela diminuição do alcance e da clareza de nossa visão e também pelo eclipse de nossa consciência que, entre o adormecer e o despertar, parece desaparecer. Quando sonhamos, temos uma percepção pouco consciente – praticamente nunca sabemos que estamos sonhando – de mundos estranhos que contrariam a lógica e geram prazer, medo ou mero estranhamento. Os sonhos são dimensões efêmeras que habitamos todas as vezes em que dormimos. Móveis e plásticas, tais dimensões assumem formas que nem sempre encontramos em nossa imaginação, ainda que façam parte de nosso inconsciente. No mundo onírico, podemos nos mover no tempo e no espaço sem os limites do mundo desperto, mas também sem as possibilidades de escolhas conscientes que julgamos ter quando estamos despertos. Os sonhos, algumas vezes, têm aspectos caóticos e incontroláveis, não sendo raros aqueles que se tornam pesadelos repentinamente. É neste momento que o despertar nos traz alívio. 174

A dificuldade de encontrar sentido no mundo onírico parece ser algo que perturbou o homem desde muito tempo. Sonhos, de forma isolada, podem adquirir sentido. Mas os sonhos, noite após noite, se contradizem, abordam temas extraordinários sem linha condutora clara, diferentemente de alguns aspectos da realidade, que têm uma relação um pouco mais cristalina entre causa e efeito. Porém, de forma geral, queremos atribuir aos sonhos, da mesma forma que à vida, um sentido que ultrapasse as aparências efêmeras. Se a humanidade e as diferentes culturas construíram, ao longo do tempo, variadas formas de se relacionar com os sonhos, os distintos contextos científicos, da mesma forma, procuraram meios de interpretar tais eventos diários, cotidianos, que apresentam uma imensa diversidade de imagens, sensações e elementos. Sonhos não são completos. São fragmentos de imagens, sensações e informações. Possuem muitos personagens e nem sempre o sonhador se faz presente. A autoria dos sonhos pode ser perturbadora exatamente por ser indefinida e fluida. O mundo criado por Neil Gaiman para contar a história do Sandman, também chamado Sonho, Morfeus, Oneiros ou Tecedor de Formas, possui algumas dessas características: mobilidade, diversidade e modificações. A princípio, Sandman foi um personagem da era de ouro dos gibis de super-heróis (década de 1930) do universo DC, um detetive noir chamado Wesley Doods, que andava pela noite com uma máscara e uma pistola de gás sonífero. Saía pelas ruas lutando contra o crime e deixando os bandidos desacordados, aguardando a chegada da polícia. Convidado a criar histórias para a DC no selo de revistas adultas Vertigo, em 1987/1988, o autor usou apenas o nome do personagem em suas criações no universo da publicação, reorganizando uma série de elementos, a fim de propiciar a narrativa de diversas histórias. Sonho, de Neil Gaiman, é um dos Perpétuos, seres irmãos que seriam a representação de certas constantes dos seres vivos: o destino, a morte, o sonho, a destruição, o desejo, o desespero e o delírio. Sua história foi contada em 75 edições. Ao revelar que a série teria um fim, ao contrário do que acontece com a maioria dos gibis – que só cancelam um título por razões comerciais ou financeiras –, o autor comentou:

(...) no número 75 acaba a história que começou no número 1. É bom que a história termine senão acaba virando uma soap opera. As únicas histórias que realmente importam são as que têm um fim.71

71 GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior. 175

Alguns títulos de Sandman são ligados entre si, num conjunto de histórias que formam séries menores de narrativas dentro da série. A essas sequências de histórias relacionadas dá-se o nome de arcos ou sagas, como é comum na tradição dos quadrinhos estadunidenses. Outras edições contam histórias isoladas, episódios que não fazem parte de narrativas maiores. Todas, de alguma forma, estão preocupadas em mostrar aspectos dos sonhos e da imaginação. Em muitas delas, o personagem Sonho aparece bem pouco, se levarmos em consideração que os quadrinhos deveriam falar sobre ele; afinal, quando um gibi tem o nome de Lanterna Verde ou Quarteto Fantástico, as páginas são dominadas, de forma absoluta, por tais personagens. A seguir, faremos um breve resumo da história de Sonho para facilitar a posterior análise. As oito primeiras edições trazem o arco chamado Prelúdios e Noturnos e mostram Sonho sendo aprisionado em 1916 por uma ordem mística inglesa. Após conseguir sua liberdade, Sonho procura suas ferramentas – seu elmo, sua algibeira e seu rubi dos sonhos – que lhe foram tomadas por seus captores e, posteriormente, levadas ou negociadas. Em Sandman #9 conhecemos Morte, irmã mais velha de Sonho, com quem ele passa um dia conversando sobre o tempo em que ficou cativo e sobre suas motivações diante da recém-adquirida liberdade. A seguir, em Sandman #10, conhecemos, pela boca de um narrador de uma tribo provavelmente africana, a história de uma princesa ancestral que, por não aceitar o amor de Sonho, é condenada por ele a ficar presa 10.000 anos no Inferno. O arco Casa de Bonecas vai do Sandman #11 ao Sandman #16 e mostra a busca de Sonho por sonhos e pesadelos que fugiram do Sonhar, assim como sua procura por Rose Walker, uma jovem que representa perigo para o reino dos Sonhos. Em meio a essa série, Sandman #14 é um pequeno interlúdio, no qual vemos a amizade de Sonho com um jovem do século XIV que não acredita na morte. É também nessa história que ocorre o primeiro encontro entre Sonho e Shakespeare, momento em que um pacto entre eles é firmado. Após esses relatos, foram escritas três histórias autônomas, que receberam o nome de Terra dos Sonhos. Sandman #17 trata de Calliope, a musa das epopeias e de Homero, feita prisioneira por um jovem escritor que a usa como inspiração para suas obras épicas. Sandman #18 relata uma reunião de gatos ansiosos pelas palavras proféticas de uma gata que diz ser possível aos felinos se livrarem do jugo dos humanos, pois assim lhe contou o Gato dos Sonhos. Em Sandman #19 vemos a primeira apresentação pública, ao ar livre, nos campos da Inglaterra, da peça Sonho de Uma Noite de Verão. O público é o povo das fadas. E em Sandman #20 é contada uma história sobre máscaras, morte e antigos deuses egípcios. 176

A seguir, temos o arco Estação das Brumas. De Sandman #21 ao Sandman #28 é contada a história sobre a ida de Sonho ao Inferno para libertar Nada, aquela mesma princesa condenada por ele milhares de anos antes. De Sandman #29 a Sandman #31 são contadas histórias isoladas, reunidas sob o nome Espelhos Distantes. A primeira versa sobre a recuperação, durante a Revolução Francesa, da cabeça de Orfeus, que seria filho de Sonho com a musa Calliope. A segunda, sobre a interferência de Sonho junto ao Império Romano, sendo mensageiro da vontade de um deus. O terceiro episódio fala de um homem que, no século XIX, se declarou imperador dos Estados Unidos. O arco Um Jogo de Você vai de Sandman #32 a Sandman #37. Ele narra as aventuras oníricas de Barbie, uma jovem que é procurada por seus sonhos de infância para salvar a Terra de um tirano chamado Cuco. A seguir foram lançadas mais três histórias autônomas denominadas Convergências. Sandman #38 retrata um avô que conta histórias para sua neta sobre lobos, lobisomens e noites de caçada. Sandman #39 mostra o encontro de Sonho e Marco Polo. E no #40 conhecemos Daniel, um bebê gerado no mundo dos sonhos que sonha com os habitantes do Sonhar – Caim, Abel e Eva – e suas conversas numa sala de estar. O arco Vidas Breves ocupa os episódios de Sandman #41 a Sandman #49. Mostra Sonho e sua irmã mais nova, Delírio, viajando à procura de outro de seus irmãos, chamado Destruição, que deixou seu reino há muito tempo e parece não querer ser encontrado. Sandman #50 se passa em Bagdá, na época das Mil e Uma Noites, e mostra um acordo entre o califa e Sonho. A seguir, temos o arco Fim dos Mundos. De Sandman #51 ao Sandman #56, seres presos numa taverna por conta de uma terrível tempestade se entretêm contando histórias. Sandman #57 a Sandman #69 mostra o arco Entes Queridos. Daniel, o menino gerado nos sonhos, desaparece. Sua mãe, Lyta Hall, atribui seu desaparecimento à intervenção de Sonho, que tempos antes lhe avisara que um dia viria buscar o garoto. Fora de si, ela invoca as Fúrias, que perseguem Sonho, levando-o à morte. De Sandman #70 a Sandman #73, no arco chamado Despertar, são apresentados os funerais de Sonho, nos quais todos os sonhadores se fazem presentes, e os primeiros momentos da vida de Daniel como novo senhor do reino dos sonhos. Sandman #74 relata o encontro de Daniel com um sábio chinês exilado no deserto. E em Sandman #75 vemos Shakespeare escrevendo sua última peça, A Tempestade, encomendada por Sonho como parte do acordo firmado entre eles anos antes. 177

4.1 Elementos do Cotidiano

No capítulo anterior, procuramos demonstrar como os quadrinhos de super-heróis estadunidenses desenvolveram formas de apropriação e tradução de alguns elementos míticos e épicos ligados ao caráter heroico, tal como foram analisados por Bakhtin. Nas histórias de Sandman, estes elementos também estão presentes, mas de outras maneiras, com articulações e gramáticas diversas. O novo e a diferença, na maior parte das vezes, devem-se mais à forma de organização do que ao surgimento de algum elemento isolado inédito e sem precedentes. Sonho é conhecido como Rei dos Sonhos ou Príncipe das Histórias. Sendo regente de um reino, seu comportamento apresenta certo ar aristocrático. Possui um elmo que, de certa forma, faz as vezes de uma coroa, já que é o símbolo de sua regência sobre os sonhos. Quando vai ao Inferno durante o arco Estação das Brumas, usa-o para tratar assuntos pendentes com Lúcifer, por se tratar de uma visita oficial. Sonho vive num castelo que é o centro do Sonhar e pode ser movido para qualquer lugar de sua dimensão; onde estiver o castelo, estará o centro do reino, porque é este o centro dos sonhos. Tal ar aristocrático é um elemento presente nas histórias épicas.

(...) se tradicionalmente o herói épico era um paradigma de virtudes aristocráticas e militares, Ulisses é tudo isso e ainda mais, é o homem que suporta as experiências mais duras, as fadigas, a dor e a solidão. (CALVINO, 2009, p. 51)

Calvino ressalta nessa passagem as inovações que a Odisseia pode ter trazido em relação ao gênero épico tradicional da antiguidade grega. Cita o herói épico tradicional como exemplo da nobreza entre seus contemporâneos. Tal elemento aparece algumas vezes nos quadrinhos de super-herói estadunidenses. Há, sim, super-heróis que são reis de países distantes, como o Pantera Negra72. Mas a maior parte deles não tem ligação direta com altas estirpes familiares ocupando cargos de poder. Os heróis, normalmente, possuem pais ou famílias lendárias, heroicas ou extraordinariamente ricas. Bruce Wayne/Batman é filho de um bilionário altruísta que morreu ao defender a família de um assalto. Kal-el/Clark Kent/Superman, cujos pais adotivos terrestres são sitiantes, donos de uma pequena propriedade rural no estado do Kansas, é filho de fato de um grande cientista de Krypton, chamado Jor-El. Peter Parker/Homem-Aranha descobre, já adulto, que seus pais, mortos quando ele era muito criança, foram espiões que deram a vida

72 O Pantera Negra é um personagem da Marvel, criado em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby. 178

pelos Estados Unidos, ou seja, pela liberdade e pela democracia. Diana/Mulher-Maravilha é filha da rainha das Amazonas, sendo ela própria a princesa de sua ilha escondida. Vez ou outra descobrimos que algum personagem possui ligações relevantes de ancestralidade com algum personagem importante da história, o que lhe confere, muitas vezes, certo grau de predestinação, o que não deixa de ser também atributo concernente aos nobres. Os feitos dos super-heróis também se aproximam daqueles dos heróis épicos, ao enfrentarem os inimigos com destemor, comandarem seus grupos com grande inteligência e carisma ou vencerem inimigos poderosos com grande habilidade marcial. Algumas linhas de estudo atribuem ao herói épico a característica de trafegar pelas esferas reais e míticas ao mesmo tempo, elaborando certa mediação entre tais regiões. Se for o caso, Sonho trafega por dois planos: o dos Sonhos, lugar do mítico e do imaginário, e a realidade desperta, que poderíamos chamar, também, de esfera cotidiana.

É nesse aspecto que ganha relevância a figura do herói épico e da heroína épica, aqui tomados como sujeitos épicos. Desde as primeiras manifestações do discurso épico, esse e essa se revelaram como sujeitos em descolamento, aos quais era atribuído o papel de circular entre os planos históricos e maravilhoso e atuar em ambos de modo a agenciar o fato e o mito. (SILVA; RAMALHO, 2007, p. 229)

Contudo, se os deuses agem durante a Ilíada e a Odisseia intervindo sobre os destinos humanos, somos nós, leitores, que trafegamos pelos mundos mítico e histórico, se é que podemos chamar o palco das viagens de Ulisses e das batalhas de Aquiles dessa forma. O herói, consciente de uma realidade que não diferencia o mundo dos deuses e das criaturas mágicas do mundo dos homens mortais, não vê dualidade em tal existência, sabendo que dela fazem parte tanto os ciclopes e as sereias quanto os soldados e as cortes régias. O mundo mítico, palco do extraordinário e local dos deuses e dos heróis sobre-humanos, não abrange a Guerra de Troia com o cavalo de madeira idealizado por Ulisses? Haveria idealização mais fantástica do que essa? Seria a intervenção de Atenas algo mais extraordinário do que o artifício dos gregos para tomar Troia? Calvino afirma que os relatos míticos da Odisseia seriam provenientes de extratos mais antigos, orais, presentes nos contos populares folclóricos (talvez de forma semelhante às histórias de assombrações e seres fantásticos que povoam os “causos” populares orais do interior do Brasil).

Antes da Odisséia (incluindo-se a Ilíada), Ulisses sempre fora um herói épico, e os heróis épicos, como Aquiles e Heitor na Ilíada, não têm aventuras fabulares daquele tipo, na base de monstros e encantos. Mas o autor da Odisséia deve manter Ulisses 179

longe de casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para os familiares e para os ex-companheiros de armas. Para conseguir isso, deve fazê-lo sair do mundo conhecido, entrar em outra geografia, num mundo extra-humano, num além (não por acaso suas viagens culminam na visita aos Infernos). Para tal extrapolação dos territórios da épica, o autor da Odisséia recorre a tradições (estas, sim, mais arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas. Portanto, constitui a novidade da Odisséia ter colocado um herói épico como Ulisses às voltas “com bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de homens”, isto é, em situações de um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas “no mundo da antiga fábula e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas (CALVINO, 2009, p. 51)

Então, seriam os elementos extraordinários e mágicos estranhos ao épico até a elaboração da Odisseia, fazendo apenas depois dela parte da tradição da epopeia? Embora haja indicações importantes nesse sentido, tanto a ideia de épico como a de saga, no Ocidente, ficaram marcadas pela apresentação de mundos reais e míticos que se comunicam de alguma forma, tornando o herói relevante em ambas as dimensões, por seus feitos sem comparação73. A intervenção dos deuses nos feitos humanos, ademais, acentua o caráter grandioso e único dos eventos relatados, situando-os como capazes de mobilizar forças que estão além dos homens. Fatos épicos parecem ser aqueles que merecem a atenção dos deuses. Diante de tais questões, talvez não seja interessante considerar a presença dos elementos místicos divinos ou mágicos como determinantes para a constituição do herói épico. A passagem por diferentes mundos e a divisão entre real e fabular podem ser inexistentes para o personagem, sem estranhamentos, e somente dignas de ser consideradas como dimensão apartada do real por leitores de determinadas épocas. Além disso, vale dizer que Sonho não é um deus. E os mundos divinos assumem outras características nos contextos de Sandman. Os deuses nascem no Sonhar e, quando conseguem muitos adoradores, adquirem poder suficiente para deixar os sonhos e encontrar uma nova morada, um templo no mundo desperto ou numa dimensão. Antes de morrer, quando estão quase esquecidos, voltam ao Sonhar para a travessia final. Outra característica atribuída modernamente aos épicos diz respeito à presença de certo caráter grandioso, relatando eventos que, como já comentamos, seriam decisivos na história dos homens e dos deuses, destinados a grandes consequências históricas. Filmes estadunidenses como Ben-Hur ou Cleópatra foram classificados genericamente como filmes épicos, ainda que suas histórias não sejam sobre heróis épicos tradicionais. Provavelmente o foram pela grandiosidade das épocas relatadas, assim como por seus orçamentos sem comparação para a indústria cinematográfica da época.

73 Os jogos de video game e os livros que são associados aos “épicos” geralmente tem em seus enredos elementos fantásticos, míticos ou mágicos. 180

Consideremos também a grandiosidade presente nos quadrinhos, com as lutas dos super-heróis contra seres de outros mundos em batalhas capazes de decidir a existência do universo. Em Sandman, também vemos alguns momentos eloquentes. Citaremos dois, ligados de certa forma entre si, com o objetivo de entender como tais eventos de grande magnitude são retratados. Durante o primeiro arco de histórias, Prelúdios e Noturnos, Sonho é aprisionado por mais de 70 anos e, depois de liberto, começa sua busca pelas ferramentas que lhe foram roubadas por seus captores – seu elmo, sua algibeira e o rubi dos sonhos. Seu elmo, construído a partir dos ossos de um deus morto, foi negociado com um demônio, motivo pelo qual Sonho deve ir até o Inferno para recuperá-lo. Ele considera tal missão a mais difícil das três. A história (Sandman #4) começa com Sonho nas “praias noturnas do sonho”, reflexivo, até mesmo um pouco melancólico, preparando-se para descer aos infernos.

Sempre fui solitário, mas aqui, nas praias noturnas de sonho, a solidão flui sobre mim em ondas que envolvem e arrastam meu espírito. Jogo areia nas águas escuras. Os grãos queimam enquanto caem e me trazem de volta um passado distante. Quando meu rosto era altivo e os olhos cheios de orgulho. É hora de enfrentar o abismo. É hora de reclamar o que me pertence. (Sandman #4, p. 1. Figura 56)

Há certos elementos sendo anunciados nesses pensamentos: a chegada de um momento crítico, a descida a um local grandioso e tenebroso como o Inferno, uma missão importante a ser cumprida. Talvez até mesmo um ato heroico pudesse ser visto em tal discurso, mas a menção sobre a altivez e o orgulho, que se mostram mais como memória do que como admissão de culpa ou castigo, afasta tal ideia, improvável para um ser que lamenta a perda de suas “majestades”. Essa reflexão só poderá ser entendida muito posteriormente na série. De toda forma, a descida de Sonho aos infernos está envolta em alguma grandiosidade, com uma dramaticidade preparatória. Por outro lado, tal discurso acontece não no abismo citado em sua fala ou mesmo numa paisagem impressionante, tal qual poderia convir ao momento e à fala do personagem. Estamos diante de um tipo de cais de madeira (Figura 56), com cordas. Não vemos uma ambientação com maiores toques dramáticos, como poderia sê-lo se Sonho estivesse no alto de uma montanha encarando um precipício, ao fundo do qual se levantassem labaredas ou mesmo uma luz escarlate para indicar o hábitat dos demônios, conferindo à cena um tom mais, digamos, épico. Há apenas Sonho sentado no cais, manipulando suas areias. É muito mais uma cena bucólica do que propriamente grandiosa, como poderia ser o momento de preparação para tal empreitada. 181

Figura 56

Em Sandman #4, Sonho olha para o abismo e pensa em sua solidão e desamparo antes de descer ao Inferno para reclamar seu elmo. 182

Já diante dos portões do Inferno, que lembram os de cemitérios, só que com corpos e gosma pendurados nas grades, Sonho encontra o demônio Etrigan, um personagem do universo DC que é relatado como tendo sido o demônio do mago Merlin. É curiosa a introdução desse personagem nas portas do Inferno, num momento, até certo ponto, cerimonioso, considerando-se as forças envolvidas. O mundo dos super-heróis aparece repentinamente, quebrando certo aspecto mais compenetrado da jornada. É interessante notarmos também que Etrigan não aparece exatamente como um personagem do universo dos super-heróis. Ele fala em versos, como é o padrão dos demônios “superiores” do Universo DC, e segue ao cerimonial para receber o rei dos Sonhos. Enquanto caminham pelo Inferno, Etrigan comenta sobre a natureza do lugar e sobre as mudanças que ocorreram por ali desde a última vez que Sonho os visitou. Um dos locais pelos quais eles passam é o Bosque dos Suicidas, relatado por Dante na Divina Comédia. Tal menção recria a tensão do grandioso, como acontece novamente quando Sonho, Lúcifer e os outros reis do Inferno (que é governado por um triunvirato), sobem ao alto de uma colina (Figura 57) para avistar o demônio que está em posse do elmo. Ao ser procurado por Sonho, o demônio – Choronzon – afirma que adquiriu o elmo de acordo com as regras dos demônios. Então, um desafio é lançado para se estabelecer com quem deve ficar o elmo. No mundo dos super-heróis, isso é pouco comum. Em vez de um acordo, haveria algum tipo de ação, provavelmente uma batalha física, para resolver a contenda. O desafio escolhido por Choronzon é a realidade e o lugar, o “Clube do Inferno”. No inferno, os jogos de barganha e o humor andam juntos com a crueldade. Surge um clube com um palco, com versões grotescas de demônios se divertindo num bar como se fosse um sábado à noite. As vestimentas mudam. Em vez das roupas em forma de túnica, Sonho agora está vestido com um terno negro e chapéu. O desafio em questão, cujo palco é a realidade, se dá com os dois escolhendo formas – um diz ser um lobo, o outro um caçador, outro uma mosca que derruba o caçador de seu cavalo, o outro uma aranha que captura a mosca e assim por diante até o momento final, quando Sonho vence o desafio e recupera o seu elmo. A grandiosidade da batalha no inferno pelo elmo de Sonho é a toda hora questionada por outros elementos que insistem em procurar um lugar na narrativa. Certo contexto clássico ligado ao inferno, evidenciado na narrativa com a citação de Dante, cede espaço a outros elementos, como o desafio numa espécie de cabaré demoníaco. Além disso, podemos ver que 183

os desenhos (Figura 58) rompem as barreiras dos quadros, os personagens explodem (Figura 58, canto superior esquerdo) sobre outros espaços, quebrando delimitações e invadindo imagens de outras figuras, compondo exageros junto ao grotesco de um Inferno colorido e diversificado. Tal visita de Sonho aos infernos possui aspectos grandiosos, mas também alguns elementos épicos traduzidos para formas maleáveis, ambíguas, que parodiam a gravidade do momento. O clássico, o moderno, o universo dos super-heróis, a figura mitológica de Lúcifer, o enfrentamento através do jogo e as imagens exageradas são articulados para narrar a história de como Sonho recuperou seu elmo das regiões infernais.

Figura 57

Sonho e Lúcifer avistam, do alto, os demônios do Inferno em busca daquele que se apoderou do elmo. O grotesco domina as formas demoníacas. 184

Figura 58 Sonho e o demônio Choronzon se preparam para duelar no “Clube do Inferno” pela posse do elmo. Figuras grotescas vestidas a caráter para o evento podem ser vistas nas mesas. Sonho também está vestindo roupas de “inferninhos” dos anos de 1920, 1930. 185

Ao final dessa história, Lúcifer jura destruir Sonho, que desdenhou de seu poder, dizendo, diante de todos os demônios, que o Inferno só tem sentido porque seus habitantes sonham com o Céu – outra passagem apropriada da Divina Comédia de Dante. A vingança de Lúcifer terá lugar em edições posteriores. No arco Estação das Brumas, a história começa com uma reunião de família convocada por Destino (Figura 59), o mais velho dos irmãos, um homem vestindo uma túnica, corpo coberto por um capuz, cego, acorrentado a um livro no qual tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá está escrito. Ele o faz porque estava escrito, em seu livro, que tal evento deveria acontecer, pois assim lhe fora avisado pelas Moiras, as senhoras do destino às quais, segundo a mitologia grega, até os deuses estão submetidos. Nessa reunião, estão presentes seis dos sete irmãos Perpétuos: o próprio Destino, Morte, Sonho, Desejo, Desespero e Delírio. Apenas está ausente o irmão pródigo, Destruição, cujo paradeiro é desconhecido pelos presentes, os quais apenas sabem que ele deixou seu reino e suas responsabilidades há séculos. Desejo, que é homem e mulher ao mesmo tempo, e qualquer outra coisa também, porque Desejo é “tudo o que qualquer um deseja”, provoca Sonho, que parece com ele ter certas querelas não resolvidas, trazendo à tona, durante o jantar, o nome da princesa Nada, a mortal condenada milênios antes ao Inferno por Sonho, por não ter aceitado a vida eterna de deusa ao lado dele, alegando que mortais e imortais não deveriam se relacionar, sob pena de grandes tragédias para a humanidade. Humilhado e constrangido, Sonho se lembra da história e aceita, após alguma hesitação, que pode ter errado ao enviá-la para o reino de Lúcifer. E decide que a única coisa que pode fazer, diante da constatação, é resgatá-la de sua prisão. Para isso, terá que ir novamente ao Inferno e enfrentar Lúcifer, que lhe jurou vingança, como citamos acima. De forma dramática, Sonho convoca no Sonhar uma audiência, ocasião em que explica o que vai fazer e avisa que muita coisa pode dar errado, como sua prisão ou destruição no Inferno. Dá ordens, faz recomendações, visita um amigo humano em sonhos, com quem toma um cálice de vinho. Envia, para avisar Lúcifer de sua chegada, Caim, que vive em seu reino junto ao irmão Abel. Caim tem a marca do Criador e ninguém pode lhe fazer mal. Lúcifer, contudo, ignora a marca de Caim e o tortura, mandando que avise seu mestre de que “está ansioso” por sua chegada. O segundo título desse arco termina com Sonho se dirigindo ao Inferno com grande dramaticidade (Figura 60). 186

Figura 59

Na primeira edição de Estação das Brumas, os Perpétuos se reúnem nos jardins de Destino. No painel 2, Destino; no 3, Morte; no 4, Sonho; no 5, Desejo; no 6, Desespero e nos painéis 7, 8 e 9, Delírio.

187

Figura 60

Com todas as pompas, Sonho se prepara para ir novamente ao Inferno durante o capítulo 1 de Estação das Brumas. Usa seu elmo, que faz as vezes de estandarte e coroa. Lucien, seu bibliotecário, o observa. Caim está caído ao seu lado quando o vemos atravessar um portal. Antes de partir, Sonho fala sobre caminhos e escolhas: “Fazemos o que devemos... Algumas vezes podemos escolher a trilha que seguimos. Algumas vezes nossas escolhas são feitas por nós. E, algumas vezes, não temos qualquer escolha”.

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Ao chegar ao Inferno (Figuras 61 e 62) trajando suas vestes reais e seu elmo, após descer por aquele mesmo abismo, encontra um lugar abandonado, vazio, onde entra sem resistência alguma e não avista nenhuma alma atormentada, demônio ou prisioneiro. Desconcertado pela ausência, flutua pelos céus alaranjados, chamando por Lúcifer, Estrela da Manhã, que finalmente aparece. Os acontecimentos que se seguem, vão, aos poucos, desconstruindo a dramaticidade que se apresentava até então. A grandiosidade dos cenários continua, mas agora são vastos vazios desabitados e desolados, onde a ameaça é a ausência e não a proximidade de um embate, dando certo ar de broma à preparação anterior. O próprio Lúcifer confirma com suas falas:

Sonho - Lúcifer. Onde está ela? O que você fez? Onde a escondeu? Lúcifer - Olá, Sonho. Tire esse elmo idiota e vamos conversar. Sonho - Não serei enganado por você, Lúcifer Estrela da Manhã. Lúcifer - Ora, doce Morpheus, está com medo? Sonho - Sim. Lúcifer - Muito bem. Então prometo que enquanto estivermos dentro do Inferno, não farei nada para prejudicá-lo. Pronto. Agora tire seu elmo. E eu contarei o que aconteceu à sua amada... E aos outros. Assim melhorou muito. Você ainda quer saber o que está acontecendo? Sonho - Sim. Lúcifer - Não é óbvio, Rei dos Sonhos? Eu me demiti. (Sandman #23, p. 7. Figura 63)

A gravidade de Morpheus, com seu tom ameaçador, contrasta com o tom de galhofa de Lúcifer, que insiste no aspecto ridículo do elmo de Sonho e, procurando explicar o que se passa no Inferno, responde que se demitiu de seu destino eterno e imutável. Sonho fica confuso e perdido (Figura 64), sem saber como agir diante de situação meio jocosa e inesperada. Lúcifer o convida para acompanhá-lo enquanto termina de esvaziar o Inferno, que deve ser fechado com sua partida. Eles sobrevoam paisagens grandiosas até que chegam à última alma penitente. Lúcifer anuncia sua liberdade, manda que se vá com os outros. Mas esse homem, acorrentado a um rochedo, com a pele completamente rasgada, se nega a ir. E justifica seu tormento e a razão de não poder deixar o Inferno.

Breschau - Sou Breschau, da Livônia. Arranquei as línguas dos que falavam contra mim e matei os bebês nos ventres das mulheres de meus inimigos, para que não se tornassem guerreiros contra mim. Tomei minha mãe à força e estrangulei minha irmã quando ela rejeitou meus avanços. À noite, meu nome passou a ser sussurrado pelas mães para fazer com que seus 189

filhos as obedecessem. Eu sou Breschau, aquele que se banhava no sangue de crianças. Eu sou Breschau, aquele que forçou os verdadeiros profetas a andar sobre placas de ferro em brasa e riu enquanto eles dançavam. Eu sou Breschau! Quando minha concubina me traiu, arranquei seu nariz e o usei pendurado em meu pescoço. Quanto à mulher, mandei costurá-la ao amante. Deixei-os no deserto para serem comidos por corvos e ri enquanto ouvia seus gritos. Eu sou Breschau e este é meu castigo. Lúcifer - Você deve ir. Breschau - Não me ouviu demônio? Eu matei... Lúcifer - Ouvi. Você matou certo número de pessoas que agora já estariam mortas mesmo. E daí? Você esteve acorrentado a essa rocha por mais de mil anos. Não se torturou bastante? Breschau - Não sou eu que estou me torturando. É a vingança do Senhor... Você não ouviu? Eu... Lúcifer - ... “Sou Breschau”. Sim, eu sei. Mas ninguém mais se lembra de Breschau. Ninguém. Duvido que um em cem mil mortais vivos pudesse mostrar onde ficava a Livônia num mapa. O mundo esqueceu você. (Sandman #23, p. 10-11)

Figura 61

Sonho chega ao Inferno, no segundo capítulo de Estação das Brumas. A paisagem é vasta e grandiosa, lembrando algumas cenas que pudemos ver nos gibis de super-heróis. Porém, os elementos da construção do Inferno são notavelmente mais proliferantes e expansivos. 190

Figura 62

Sonho, ao encontrar um Inferno vazio, flutua na imensidão desolada, gritando por Lúcifer. 191

Figura 63

Lúcifer aparece, destrata Sonho e vê seu rosto amedrontado por baixo do elmo. Notemos os suores no quadro 7 e os sorrisos e gracejos do anjo caído. 192

Figura 64

Ao receber a notícia de que Lúcifer está se “demitindo” do Inferno, Sonho mostra total desconcerto. O anjo caído o convida para caminhar com ele enquanto acaba algumas tarefas. Vencida a condição de oposição, ambos tocam o chão, no último painel. Não são mais monarcas em guerra com suas insígnias e estigmas – rebaixados, podem estabelecer algum diálogo. 193

A alma atormentada enumera suas atrocidades e comunica sua necessidade de castigo de forma acentuada, firme, mas Lúcifer rebaixa tais atos, anunciados como eternos, à dimensão temporal, à história e, finalmente, ao esquecimento. Nem mesmo os elementos ligados à justiça, próprio de alguns contextos míticos, permanecem íntegros. Ele continua, então, conversando com Sonho em cenários vastos e desolados (que diz ser como um reflexo do Céu num lago negro), explicando seus motivos: diz que está cansado, que bastaram os dez bilhões de anos que passou ali, que foi tempo demais e que todos, afinal, mudam; que era demasiado tempo fornecendo um local para os mortos se torturarem – “todos uns masoquistas”; que estava cansado das intrigas, das lutas dos demônios insignificantes por poder e status; por ser responsabilizado pelos mortais em relação aos pecados praticados por eles em suas “vidas medíocres”. (Sandman #23, p. 18) Ao final desse capítulo, Sonho, desconcertado, ainda tenta buscar informações sobre a princesa Nada, mas sem sucesso. Lúcifer dá a chave do Inferno a Sonho e parte, sabendo que tal dádiva não tornará sua vida mais fácil. O deslocamento de expectativas dos leitores, habituados às batalhas dos super-heróis contra poderosos inimigos, através da apropriação de elementos épicos e seu rebaixamento e ressignificação a partir da ironia, da malícia e do aspecto trivial das falas de Lúcifer, criam um Inferno tedioso, um rei dos Sonhos confuso e um anjo caído que decide que já pagou sua pena pela traição primordial que um dia realizou contra seu criador. Lúcifer se torna um vilão muito diferente dos usuais. Irônico, não é honrado ou virtuoso. Mas também não reconhece em si qualquer razão para prolongar seu castigo, supostamente, eterno. Decide então partir, ir ver o pôr do sol em alguma praia, quem sabe construir uma casa. (Sandman #23, p. 22) A grandiosidade do Inferno e da preparação para uma batalha de vida e morte, anunciada anteriormente, com imagens que parecem encaminhar a eventos decisivos, nos quais virtudes e honras serão confirmadas, fica relativamente ridicularizada. O Inferno não é tão grandioso quanto parece: é apenas vasto e desolado. Não há hordas demoníacas a serem enfrentadas ou porteiros anunciando visitantes importantes – há somente Lúcifer fazendo as vezes de zelador de uma dimensão bastante aborrecida, segundo suas próprias palavras. A ironia não é só de Lúcifer para com Sonho; manifesta-se também ao vermos como parecem tolos todos os preparativos e discursos de Sonho diante de um inferno vazio e sem tormentos. O momento de encontro de Lúcifer e Sonho talvez seja o melhor exemplo que podemos citar (Figura 63). Sonho usa seu elmo, símbolo de si mesmo, pois ele não é meramente o rei dos Sonhos, ele é o próprio Sonho. O elmo é como sua coroa, indica sua posição nobre, de rei de 194

si mesmo, ou seja, de rei dos Sonhos. Contudo, pronto para um embate, vestido em suas armas, encontra um Lúcifer nu, sorridente, que denuncia o ridículo daquele elmo feito a partir dos ossos de um deus morto e há muito esquecido. Diz a Sonho para tirar o “elmo idiota”. Ele quer conversar. No contexto clássico de descida aos infernos, o elmo é profundamente cabível, relevante e efetivo como símbolo. Mas a familiaridade com que Lúcifer se dirige a Sonho e a forma contemporânea de falar, fora do tempo clássico e mítico, tornam o elmo, a cerimônia e a pompa fora de lugar, e, de repente, vemos que, realmente, o elmo está ridículo naquela situação. E, após retirá-lo, vemos o rosto confuso de Sonho, o suor escorrendo por sua face, por medo e tensão, totalmente fora de lugar em relação à imagem clássica de realeza, poder e heroísmo míticos. Lúcifer, especialista em quedas desde que foi expulso do Paraíso, esboça um sorriso irônico na gravidade esperada para aquele momento. O que mais impressiona Sonho talvez não seja a decisão inusitada de Lúcifer em abandonar seu reino. Seu estranhamento pode vir do fato de o anjo caído decidir que pode mudar de vida e seguir em frente em seu propósito. Após bilhões de anos, acabou por ficar entediado de sua prática e está enfastiado de cumprir o papel que lhe foi atribuído. E, apesar de aproveitar o momento para se vingar de Sonho, dando-lhe a chave do Inferno (o que lhe trará, sem dúvida, alguns problemas), não houve um grande evento que o tenha levado à mudança. Parece ter sido mera questão de observação, tempo, alguma reflexão e oportunidade. Se alguns elementos comuns aos épicos são apropriados e traduzidos em Sandman, podemos notar que enquanto alguns são modificados para dar novas formas de elevação e nobreza à história de Sonho, o que efetivamente acontece, há outros que primam pelos rebaixamentos e deslocamentos que subvertem o sentido tradicional e a expectativa média, criando textos paralelos, o que por si só se contrapõe ao estilo predominante na série cultural de quadrinhos de super-heróis que, como vimos, possuem certo acabamento e exterioridade em comum com heróis de gêneros narrativos clássicos. Veremos mais adiante que a mudança – desconhecida entre os épicos super-heroicos – é um tema recorrente em Sandman, de tal forma que parece ser um ponto de referência de toda a história, articulada pelo autor ao longo dos 75 episódios do gibi. A revista #27 nos traz outras indicações desse diálogo com os gêneros clássicos, sobretudo com o épico. O número traz uma história que não faz parte dos arcos, chamada Calliope, ambientada no tempo presente, ou seja, após a libertação de Sonho da prisão física e mística em que ficou por décadas. 195

A história começa mostrando o escritor Richard Madoc, que escreveu um primeiro livro de extremo sucesso e, depois disso, mais nada. Simplesmente não consegue escrever nada que lhe pareça bom. Pressionado por seus editores e prevendo o fim de sua breve carreira, procura uma forma de resolver seu problema. Ele faz uma troca com outro escritor, já bem idoso, que fez muito sucesso no passado e é considerado o grande autor épico do século XX, chamado Erasmus Fry. Entrega-lhe um bezoar, objeto com supostos poderes mágicos de cura. Em contrapartida, ele lhe dá poder sobre uma moça que manteve presa por sessenta anos no sótão de sua casa. Diz que seu nome é Calliope, que foi a musa de Homero e que, dessa forma, deverá servir ao jovem escritor também. Conta que a prendeu na Grécia, enquanto a jovem se banhava numa fonte. Richard Madoc volta a prendê-la, violentando-a diversas vezes. Em pouco tempo, começa a produzir grandes obras épicas. Dia após dia, produz romances, poemas, peças e filmes. Aclamado como o maior autor épico desde o real Byron e o fictício Fry, seu sucesso não conhece limites. Espirituoso, cativa as audiências dos talk shows e ganha prêmios notáveis. Sucesso de público e de crítica, não passa pela sua cabeça libertar a musa, apesar de seus incansáveis pedidos por liberdade. Durante a história, ficamos sabendo que no passado Calliope e Sonho foram amantes e tiveram um filho, Orfeus. O romance não parece ter acabado bem. Ela não pretende ter a ajuda do Perpétuo, porém, diante de sua falta de escolha, deseja que mesmo ele, a quem odeia, possa vir em seu socorro, já que “muitos deuses morreram e aspectos de outros deuses foram perdidos para sempre”. (Sandman #17, p. 9) Sonho acaba por intervir, exigindo a libertação da musa, que acontece após alguns percalços em meio às “negociações” por histórias e ideias. Ao final da história, Sonho pergunta a Calliope o que ela fará, agora que está livre.

Não sei. Voltar às mentes da humanidade, eu suspeito. Meu tempo acabou. E esta era do mundo não é minha era. (Sandman #17, p. 23)

A menção ao épico através da presença de Calliope na história é significativa diante das proximidades das histórias de super-heróis com alguns elementos heroicos desse gênero clássico. E não é gratuita a sequência de sucessos do jovem escritor após receber Calliope como cativa: lançamentos concorridos e prestigiados, flertes com o mercado cinematográfico, escalada social, prêmios teatrais, entrevistas, direção de filmes blockbusters, mudança para uma casa clássica, com bustos e beirais gregos. Com tal fama e perfeição, Madoc é, ele mesmo, um personagem épico. 196

Ao ser libertada, a musa diz que não faz parte “desse tempo”. Provavelmente está certa, se pensarmos que o épico é o gênero do passado absoluto, apartado do cotidiano do tempo presente (BAKHTIN, 1998, p. 412). Mas, como ela frisa, voltará às mentes da humanidade, talvez como o eco de tempos muito distantes a serem atualizados e traduzidos em novas formas de criação artística. O estilo de vida do famoso “Ric” Madoc não deixa de ser “ridículo”, com seu glamour de piadas de premiação do Oscar, com sua caracterização como um escritor “da moda”, um tanto quanto decadente e presunçoso por ser absolutamente contemporâneo – sem passado e, consequentemente, talvez sem futuro –, de forma semelhante ao riso de Lúcifer diante de Sonho flutuando no Inferno com vestes esvoaçantes e seu elmo ancestral. Tais leituras, porém, só são possíveis ao estabelecermos relações de atrito com outros textos que possam promover uma desestabilização da estrutura já configurada, tal qual acontece no relato da carreira épica de Madoc e sua posterior “queda” pública (Figuras 65 e 66) devido a um fluxo de ideias novas enviadas diretamente do mundo dos sonhos, por Morpheus, para dentro de sua cabeça. No segundo painel da Figura 66 (canto superior direito) tal quebra fica evidenciada ao ser mostrado o rosto do escritor com traços fortes e angulados, com um efeito de fragmentação, como um espelho partido, enquanto as ideias surgem de forma desenfreada. Quanto mais o modelo autodescritivo atua tentando eliminar os textos paralelos e criando uma aura de seriedade e conformidade ao redor do objeto, maior é a possibilidade e a intensidade da paródia74. Em A Queda, de Albert Camus, vemos que o ridículo não está na pequenez, no egoísmo ou nas tolas vaidades do narrador – que interessam pouco, por serem bastante familiares à humanidade – mas no fato do personagem-narrador haver acreditado por tanto tempo, com convicção absoluta e seriedade inabalável, de que era virtuoso, admirado, bem-sucedido, repleto de amigos, bom e generoso – exemplo para toda a gente.

Eu havia sonhado, isso agora ficava claro, em ser um homem completo, que se fizesse respeitar tanto na sua pessoa como no seu ofício. Meio Cerdan, meio de Gaulle, se prefere. Em suma, queria dominar em todas as coisas. Eis o motivo pelo qual eu me dava certos ares superiores e recorria a todos os requintes para mostrar antes a minha habilidade física que meus dotes intelectuais. Mas, depois de apanhar em público sem reagir, já não me era possível acariciar esta bela imagem de mim mesmo. Se eu fosse o amigo da verdade e da inteligência que pretendia ser, que me importaria esta aventura já esquecida por aqueles que a tinham presenciado? (CAMUS, [s.d.], p. 44-45)

74 “Textos que na obra estabelecem um diálogo, um espetáculo teatral cujos portadores de textos – os actantes de que fala Greimas – são outros textos, daí o caráter polifônico, estereofônico, diríamos, incorporando um neologismo que certamente teria agradado a Bakhtin, da obra barroca, de todo código barroco, literário ou não” (SARDUY, 1979, p. 69). 197

Figura 65

Em “Calliope”, o escritor Ric Madoc tem uma vida perfeita com suas histórias épicas, seus lançamentos disputados, suas relações com a alta sociedade inglesa e com os estúdios de Hollywood, suas palestras espirituosas nas universidades, suas mansões, suas entrevistas para a televisão, seus best-sellers, suas peças teatrais. Ele é, de fato, “a loucura das multidões” – nome de sua mais nova peça, como vemos no último painel à direita. 198

Figura 66

Após se recusar a libertar Calliope, Ric Madoc é castigado por Sonho, recebendo o que ele mais deseja: ideias em abundância. Ocorre, assim, a queda pública do escritor de sucesso. Sua fragmentação pode ser vista no painel 2. A perfeição de sua existência “inspirada” se parte. 199

Notemos que, em algumas tradições religiosas, a revelação espiritual ou mística costuma promover a elevação do ser. De forma diversa, em outros espaços, revelações são mecanismos de queda, havendo pouco de sublime ou essencial, tangendo para o visceral e para a existência. Sonho com seu elmo e seus motivos altivos, bem como Ric Madoc e a fama de sua literatura irretocável, guardam alguma semelhança, principalmente no momento em que Lúcifer provoca o rei dos Sonhos para que ele tire seu símbolo de realeza e poder e em que o escritor é “devorado” em plena rua pelas mesmas ideias que julgava estarem sob controle.

Na verdade, trata-se de uma dessacralização, isto é, exatamente a retirada do objeto do plano distante, a destruição da distância épica e de qualquer plano longínquo em geral. Neste plano (o plano do riso), pode-se contornar o objeto por todos os lados de maneira irreverente; e mais, o dorso, a parte posterior do objeto (e, do mesmo modo, as suas entranhas, que não convém mostrar) adquirem um sentido particular neste plano. O objeto é quebrado, desnudado (o seu arranjo hierárquico é retirado): despido ele é ridículo, como também é ridícula a sua roupa “vazia”, retirada e separada de sua pessoa. Ocorre a operação cômica do desmembramento. (BAKHTIN, 1998, p. 414)

Tais “entranhas”, lugar dos subtextos e de elementos maleáveis, escamoteadas pela retidão exigida pelo suposto “acabamento”, são o espaço para a queda e para o ridículo, sem que o texto que realiza a operação de “desnudar” se eleve no processo. Trata-se muito mais de um riso provocado pelo movimento e não pelo posicionamento – o ridículo que Lúcifer aponta não diz respeito a Sonho estar suando “frio” de medo enquanto ele próprio está tranquilo, mas à enorme distância entre o elmo de face imutável e cerimonioso e as “entranhas” do rosto de Sonho, tenso e inseguro diante da familiaridade e do ar trivial do anjo caído. De forma semelhante, pouco nos interessa um Ric Madoc sem ideias e apagado. Nós já o conhecíamos assim, o vimos no começo da história incapaz de escrever – o espaço de tensão corresponde ao movimento de “desmembramento” do escritor, antes envolto por admiração e honrarias de todos os cantos, irrepreensível em seus gestos, falas e obra, e então tomado por um caos de ideias que julgava controlar com autoridade inquestionável. Retirada a musa, despido do abraço dela, ele é ridículo. Sua literatura, separada de sua imagem, seria também ridícula? Devemos mencionar o fictício Erasmus Fry que, na velhice, pouco depois de entregar Calliope a Madoc, comete suicídio, praticamente esquecido, suplicando para que os editores republiquem seus antigos livros, fenômenos cult em tempos anteriores. Apesar de haver interferido na libertação de Calliope com sucesso, Sonho não é um herói, como também não é um protagonista muito presente. Não há altruísmo ou motivos elevados em seus atos. Sua ética e sua moral não correspondem aos de qualquer grupo ou 200

segmento específico e podemos quase sempre procurar motivos em suas ações e posturas que ele próprio, não raramente, desconhece – coisas que os super-heróis admitem bem pouco, tendo posturas mais retas, conscientes, coerentes e unívocas. Sob esse aspecto, os personagens de Sandman, sobretudo Sonho, não são exteriorizados como os super-heróis, como também não possuem um acabamento sólido, pois, entre outras coisas, é evidente que eles não se conhecem. E tampouco são felizes, no sentido melodramático do termo. Quanto ao protagonismo, há bastante espaço para outros personagens. Em muitas histórias, como em Calliope, Sonho aparece pouco – sua presença não ultrapassa quatro das vinte e três páginas da história. Veremos coisas semelhantes em outras edições: no arco de histórias Um Jogo de Você, de seis edições – cerca de 120 páginas – Sonho aparece brevemente em duas páginas no primeiro capítulo do arco, em nove páginas do quinto capítulo e em sete da última parte, totalizando dezoito páginas com sua participação. Tal protagonismo ausente acontece em jogo constante com outros protagonismos ocasionais, procedendo à inclusão de vozes que, de outra forma, seriam meras participações de suporte à história do rei dos Sonhos, modelizadas e normatizadas por sua presença solar que faria orbitar os outros elementos. Lembremos que é bastante raro um super-herói não ser o protagonista das histórias que acontecem em sua própria série. Tal diferença não é gratuita, mas faz parte de uma estratégia de criação de espaços: quanto menos Sonho estiver presente, maior a variedade de histórias que poderão ser contadas. Ainda assim, ele nunca está realmente ausente, já que também é conhecido como o príncipe das histórias. Pensar apenas em termos de presença/ausência e protagonismo/anonimato não parece muito adequado. O que podemos considerar como certo é que são contadas diversas histórias ao longo das 75 edições de Sandman. E algumas delas envolvem Sonho mais ou menos diretamente. Outras o mencionam apenas de relance em dois ou três painéis de uma página qualquer – como um sonho breve, difícil de ser recordado ao despertar.

4.2 Sonho e a Mudança

Se certos textos relacionados ao super-heroísmo se baseiam na permanência dos personagens centrais ou em ciclos de restauração de determinadas características, além de em certo olhar constante e imutável do personagem sobre si mesmos e sobre o mundo, como já discutimos, o personagem Sonho e a narrativa de Sandman como um todo seguem por 201

caminho um pouco diferente, estabelecendo relações diversas daquelas observadas nos textos sobre super-heróis. A história começa com Sonho sendo feito prisioneiro por uma ordem ocultista inglesa, que pretendia, na verdade, capturar sua irmã mais velha, a Morte. Tomam suas ferramentas – o elmo, o rubi e a algibeira das areias. Durante setenta anos ele fica preso numa redoma de vidro e cercado por símbolos antigos que impedem qualquer tipo de ação. Fica completamente isolado do mundo. Não responde a uma única pergunta que lhe fazem. Assiste ao envelhecimento de seus captores, à sucessão das gerações, à mudança das roupas. E apenas observa, calado, os homens que o vigiam e tomam estimulantes para prevenir o sono e a possibilidade de sonhar. Seu isolamento é completo (Figura 67). Num momento de descuido, escapa de seus captores e volta a seu reino, o Sonhar, não sem alguma dificuldade. Ao chegar, é recebido por Caim e Abel, habitantes de seu mundo e personagens da primeira história – sobre o primeiro assassinato. Vemos que ambos ocupam seu tempo em repetir tal ato, dia após dia, todas as noites, sendo que Abel sempre revive, mantendo a inocência e a confiança no irmão, que maquina formas diferentes e mais cruéis de matá-lo. Ambos ajudam Sonho a se fortalecer para chegar ao seu castelo, no coração do Sonhar, mas avisam-no de que muita coisa mudou desde sua partida, décadas antes. Seu castelo se encontra destruído e os habitantes do Sonhar, dispersos. Ainda fraco, Sonho começa uma jornada em busca de seus instrumentos roubados. No Inferno, para onde segue em busca do elmo, é recebido pelo demônio Etrigan, com quem conversa:

Etrigan - E se eu mudei, o que dizer de você, ó rei? Sonho - Eu estive... Ausente... Mas será que mudei...? (Sandman #4, p. 7)

Após recuperar a algibeira e o elmo, ele vai em busca do rubi, que diz conter muito de seu poder. Para recuperá-lo, enfrenta um ser humano, um supervilão do universo DC que controla os sonhos e os pesadelos. Neil Gaiman se apropriou desse personagem, o Senhor Destino, cujo poder é atribuído ao fato de ele haver tomado para si o Rubi dos Sonhos tempos antes. Encontram-se e, após batalharem entre imagens oníricas confusas, o vilão destrói o rubi. Sonho recupera o poder que estava contido na pedra e, assim, assume total controle de seu reino e dos sonhos novamente. Diz:

Fazia tanto tempo... Eu tinha esquecido... Eu tinha esquecido quanto poder coloquei nessa jóia. Quanto me foi negado... (Sandman #7, p. 21)

202

Figura 67

Sonho observa seus captores em Sandman #1. 203

No número seguinte, enquanto conversa com sua irmã Morte, temos outra afirmação de Sonho sobre o rubi:

E, acreditando que esmagava minha vida, ele destruiu o rubi. Ele destruiu. Isso me libertou. Mais do que isso... Libertou tudo de mim que havia na pedra. Recuperei tudo. (Sandman #8, p. 8)

Tal fala de Sonho no oitavo título da série, chamado O som de suas asas, pode ser mais significativa do que parece. Não parece se tratar apenas de um relato sobre uma vitória difícil. Essa história, a de #8, é a primeira após o arco Prelúdios e Noturnos, que relatou a prisão, a libertação e a busca inicial de Sonho. Alguns críticos consideram a história dessa edição a primeira “realmente” autoral, crendo que as anteriores, do citado arco, foram como uma primeira experiência de apresentação do personagem e avaliação de alguns caminhos que a narrativa poderia explorar. O próprio Gaiman confirma tal avaliação:

Só queria fazer uma história em que Sandman e Morte vagassem por Nova York, e nada acontecesse... Eu não sei. Foi provavelmente a primeira história de “Neil Gaiman”. As outras sete, você sabe, elas eram bastante competentes, mas você olha para ela e vê de onde elas vieram. Você pode me ver fazendo coisas como Alan Moore, você pode me ver fazendo várias outras coisas. Eu acho que o episódio #8 foi o primeiro episódio que começou a soar como eu mesmo.75

Nesse número, Sonho está alimentando pombos, sentado numa praça, de cabeça baixa, alheio ao mundo ao seu redor. Garotos jogam bola próximo a ele. Uma moça jovem se aproxima e se senta ao lado dele. Ela veste roupas pretas e tem a pele pálida como a de Sonho. É sua irmã Morte, que puxa papo com ele, sem muito sucesso, falando sobre Mary Poppins e outras amenidades. Frente ao silêncio do irmão mais novo, ela vai direto ao ponto e pergunta qual o problema, pois é óbvio que há algo errado e ela quer saber o que se passa. Diz não ser do feitio do irmão tal comportamento. Sonho começa então a se explicar, parecendo mais estar divagando sobre seus próprios pensamentos do que estabelecendo um diálogo com a irmã.

Sonho - Eu não sei o que está errado, mas você tem razão. Há algum problema, sim. Quando me capturaram e me aprisionaram naquela caixa, eu só tinha

75 Trecho da entrevista concedida por Neil Gaiman a J. C. Vaughn em 1996, publicada na revista Fan. Tradução livre. No original: “Just doing a story in which the Sandman and Death wandered around New York, and nothing happened... I don’t know. It was probably the first “Neil Gaiman” story. The other seven, you know, they’re very competent, but you can look at them and you can see where they came from. You can see me doing Alan Moore, you can see me doing various other things. I think issue eight was the first issue that started to sound like me” (GAIMAN apud MURPHY, 2006, p. 18). 204

um pensamento: vingança. Quando me libertei, meu raptor original tinha abandonado a trilha dos mortais. Eu me vinguei de seu filho. Me senti... bem, eu acho. Mas não foi tão... satisfatório quanto eu esperava. Nesse ínterim, meu mundo de sonhos se desmoronou. Eu precisava de minhas ferramentas roubadas e espalhadas pelo mundo. Uma a uma, achei todas elas. (...) Sabe, até então eu estava obcecado. Tinha uma verdadeira missão, um propósito além de minha função... e então, de repente, a busca terminou. Me senti exausto. Desapontado. Esmorecido. Isso faz sentido? Eu tinha certeza de que, assim que tivesse tudo de volta, ia me sentir bem... Só que, dentro de mim, me senti pior do que quando comecei. Eu me sinto um nada. Bem, você perguntou. Sinto, mas talvez não tenha uma resposta. (Sandman #8, p. 8)

Após esses esclarecimentos, Morte o repreende por não haver pedido ajuda e por estar ali, sentado, com “auto-piedade, porque seu joguinho acabou e você não tem culhões pra achar outro!” (Sandman #8, p. 9). Ela então o convida para caminhar, pois tem trabalho a fazer e não pode ficar ali parada. Ambos visitam vários lugares, presenciando a morte de diversas pessoas. Sonho pensa em sua irmã, no medo que a humanidade sente dela e como sua chegada pode ser, na verdade, uma “dádiva”. Sonho acaba a história feliz, após haver concluído que:

Minha irmã tem uma missão a cumprir, assim como eu. Os Perpétuos têm responsabilidades. (Sandman #8, p. 20)

Ele, após sua prisão e libertação, a busca por seus objetos, a destruição do rubi dos sonhos, uma ferramenta que lhe privava de seu poder e que havia se tornado talvez um tipo de prisão e de limitação, expressa melancolia e ausência de motivação. O encontro com sua irmã, a Morte, a qual enaltece, devolve-lhe um sentido: assumir suas responsabilidades como regente dos sonhos, tal qual parece sempre ter feito antes de seu aprisionamento. Porém, na citada conversa com o demônio em sua ida ao Inferno, quando nota que a dimensão de Lúcifer mudou, Etrigan sugere que Sonho também pode ter mudado. Se um dos pontos para a permanência dos super-heróis é a ausência de questionamentos sobre si e sobre o mundo, ou seja, uma ideia de acabamento, ao se perguntar sobre si mesmo Sonho abre o espaço para o movimento, para a possibilidade de mudança76. Ainda assim, é sugerido que ele deve se centrar em suas responsabilidades, em realizar as tarefas que parece sempre ter feito.

76 Mudança pode ser entendida, de forma geral, como desorganização/reorganização de determinado sistema, através da variação dos fluxos de informação e de sentido. Segundo Lotman (1994), os textos culturais sofrem alterações ao estabelecerem relações com textos e códigos diversos – quanto maiores forem as diferenças e a abertura de tais textos, maior será a probabilidade de modificações e geração de novos sentidos –; Morin (1998) atribui às variações e interações entre as brechas e rupturas nos imprintings (determinismos da cultura) e ao desenvolvimento de desvios (efervescência dialógica da cultura, ruídos, acaso) a possibilidade de mudanças culturais. 205

As referências sobre mudança e permanência, sobre tal jogo de forças, tal atrito de tendências, assim como a discussão sobre as possibilidades de que as coisas se mantenham ou mudem, aparecem várias vezes no decorrer das edições de Sandman. Os símbolos de Sonho desaparecem cedo na série. O rubi dos sonhos é destruído no primeiro arco. O elmo, após o mencionado encontro com Lúcifer no terceiro arco, Estação das Brumas, praticamente desaparece, surgindo de forma breve em um único episódio. O mesmo se passa com a algibeira. É importante lembrar que, no caso dos super-heróis, eles são praticamente inseparáveis de seus símbolos: armas características, uniformes, ideários, etc. Não é exagerado dizer que, sem eles, não há heróis. Quando liberta Calliope de seu cativeiro, esta lhe diz:

Você mudou, Oneiros. Nos velhos tempos, você me deixaria lá, apodrecendo para sempre, sem mexer um fio de cabelo. (Sandman #17, p. 23)

Quando lemos histórias sobre como Sonho se portava no passado, temos um personagem diferente daquele que se apresenta no tempo “presente”. No passado, vemos que ele condenou Nada, uma mortal que não aceitou viver com ele, ao Inferno. Seu filho, Orfeu, pediu inutilmente sua ajuda para resgatar Eurídice do Hades. Além disso, por haver lhe desobedecido e tentado libertar sua amada, Sonho avisa ao filho que nunca mais se veriam, negando-se inclusive a ajudá-lo a morrer, mesmo quando o viu desmembrado pelas Mulheres do Frenesi, como vingança por tê-las feito chorar durante sua visita ao submundo. Em Sandman #50, após ser invocado pelo califa de Bagdá Haroun Al Raschid e ouvir dele a história de um pescador que libertou um gênio e convenceu que este retornasse à sua garrafa, Sonho diz:

Na história, ele convenceu o gênio a voltar à garrafa. Mas o gênio era um tolo, orgulhoso e solitário. Não sou nenhuma dessas coisas. (Sandman #50, p. 22)

Mesmo que deseje acreditar nisso, sabemos que Sonho é solitário e profundamente orgulhoso, além de tolo. Por vaidade e orgulho ferido, Sonho condena Nada ao Inferno e ignora o sofrimento de seu filho. Também o vemos desconcertado em vários momentos. Em Sandman #16, confuso com certos acontecimentos, diz a uma mulher que não compreende o que está ocorrendo, ao que ela responde:

Claro que não. Você não é muito esperto, mas eu não deveria incomodá-lo com isso. (Sandman #16, p. 13) 206

Essa não coincidência de discursos, a variação entre as formas altas que Sonho procura manter e as formas baixas denunciadas a todo momento pela narrativa, por seus atos e pela relação com outros personagens, promovem espaços de questionamento, deslocamento e possíveis alterações. Tais diferenças geram movimentos de sentido – de formas e significados, aceitando a contradição e o conflito como integrantes do sistema, e não como elementos antagônicos a serem excluídos das relações. Lembremos que, nas narrativas de super-heróis, são os supervilões os representantes de tais elementos “instáveis” e, dessa forma, representam também ameaça à ordem, à permanência e à estabilidade. Logo, a variabilidade, a diferença e o incompleto como componentes maléficos classicamente ligados ao irracional e à barbárie (que não podem corresponder ao princípio de identidade) são refugos e ruídos da civilização, da cultura e da sociedade que devem ser evitados, rechaçados ou destruídos – quanto maior a ameaça promovida pelo supervilão, maiores as medidas de contenção que devem ser realizadas pelo super-herói. No começo do século XVII, Sonho tem um último encontro com Shakespeare. Essa história é contada no último número da série. Sonho, em determinada ocasião, fez uma espécie de pacto com o escritor. Ele daria vida a histórias que seriam lembradas “por toda uma era” e, em troca, Shakespeare deveria escrever duas peças para ele. Um delas teria sido Sonho de uma noite de verão, escrita como homenagem ao povo das fadas, que decidira deixar nossa dimensão. A segunda e última, A tempestade. Essa peça é considerada como a última escrita por William Shakespeare e foi encenada pela primeira vez por volta de 1611. Conta a história do mago Próspero, duque de Milão desterrado, e de sua filha Miranda, ambos exilados numa ilha desabitada. Por meio de sua magia e com a ajuda de um espírito dos ares, chamado Ariel, Próspero provoca o naufrágio de um navio, trazendo os viajantes à sua ilha. Entre eles estão seus inimigos, responsáveis pelo seu desterro. Vemos Shakespeare impaciente, cansado, ansioso por acabar a peça. Deseja “aposentar a pena”. Sair de cena. É uma história em que nada importante parece acontecer. Vemos o dramaturgo escrevendo, conversando com a família, ouvindo queixas da mulher e da filha, caminhando pela vida com algum amigo, falando de peças passadas, dos tempos de Londres e de apresentações para a corte. Shakespeare, no final de sua vida, parece se perguntar se teve uma vida ou se viveu para as palavras e para as histórias. Sabe que fez um pacto com algum ser misterioso para que tivesse como escrever grandes histórias, mas não sabe quem é esse ser, se um demônio ou outro qualquer. Ouve sua filha falar de suas ausências constantes, sua mulher tratá-lo como 207

um “tolo”, insinuando a todo o momento suas infidelidades passadas, amigos se gabando de haverem tido vidas mais intensas e com mais experiências do que ele. Ainda assim, não demonstra arrependimentos, apenas certo cansaço. Certo desejo de mudar. Sonho surge em seus sonhos enquanto ele ainda está no processo de escritura da obra.

Shakespeare - Eu o conheço, senhor, não? Sonho - Conhece. Shakespeare - Mas o senhor mudou desde a última vez que o vi. Sonho - Eu, não, mas você, bom Will... (Sandman #75, p. 30)

Quando Shakespeare termina a peça, eles se encontram novamente nos sonhos, por razão do término do pacto. Já que a segunda peça prometida a Sonho está pronta, eles se sentam para tomar vinho. E conversam:

Shakespeare - Então, por que esta peça? É algo muito tópico. Eu me inspirei no naufrágio do Sea-Venture, nas Bermudas, ano passado. A história é apenas um conto de fadas como os que os pais contam para os filhos. Há muito de mim nela. Um pouco de Judith. Coisas que vi, coisas que pensei. Roubei uma fala de um dos ensaios de Montaigne. E encerrei com um final feliz, direto e barato. Por que não quis uma tragédia? Algo grandioso, algo sombrio, a história de um herói nobre com uma deficiência trágica... Sonho - Eu queria um conto de finais graciosos. Queria uma peça sobre um Rei que submerge seus livros, quebra seu cajado e deixa seu reino. Sobre um mago que se torna um homem. Sobre um homem que volta suas costas para a magia. Mas esta magia rosca eu aqui renuncio... Quebrarei meu cajado e enterrá-lo-ei muitas braças debaixo da terra; e em profundezas maiores do que alcança a sonda de medição, eu mergulharei meu livro... Shakespeare - Mas... Por quê? Sonho - Isto não lhe diz respeito, Will. Shakespeare - Não me diz respeito? Eu lhe dei vinte anos, escrevi suas peças. E ainda que tenha me “aberto a porta”, fiz minha parte. Eu redigi cada palavra e fiz os atores falarem. Concedi a suas histórias as formas com que serão lembradas. Eu fiz por merecer uma resposta à minha questão. Por quê? Sonho - Porque eu jamais deixarei minha ilha. Shakespeare - O senhor vive numa ilha? Sonho - Eu sou... A meu modo... Uma ilha... Shakespeare - Mas isso pode mudar. Todo homem pode mudar. Sonho - Eu não sou um homem. E eu não mudo. Eu lhe perguntei se você se via refletido na sua história. Shakespeare - Sim. Sonho - Eu não. Eu não posso. Sou o Príncipe das Histórias, Will; mas não tenho uma história própria. E jamais terei. (Sandman #75, p. 34-38. Figura 68)

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Figura 68

Em Sandman #75, A tempestade, Sonho e Shakespeare tomam vinho no Sonhar e o anfitrião afirma que ele próprio, a seu modo, é uma ilha. E que não muda.

209

Sonho não desejou a história de um herói, ainda que trágico, talvez como Hamlet, desajustado em seu próprio destino. Quis algo diferente – a história de um rei isolado numa ilha, dominando seres de magia, e que, um dia, consegue dar as costas para tais coisas e partir, buscando ter uma vida diferente. Essa história com Shakespeare acontece ao final da série. Já conhecemos o final da história de Sonho. Incapaz de mudar tanto quanto gostaria, ou deveria, ele morre. Em seu funeral, Lucien, o bibliotecário do Sonhar, conversando com o corvo Matthew, pondera:

Lucien - Às vezes, talvez uma pessoa deva mudar ou morrer. E, no fim, houve talvez limites de quanto ele poderia se deixar mudar. (Sandman #71, p. 19)

Durante a leitura de Sandman, vemos que Sonho muda consideravelmente após sua prisão. Alguns personagens comentam suas mudanças, como já citamos aqui. Curiosamente, é a busca por seu irmão pródigo, que se escondeu de toda a família após deixar seu reino e suas responsabilidades, que desencadeia a série de eventos que culminarão na morte de Sonho. Destruição é mostrado em alguma ilha grega ou em alguma metrópole acompanhado por um cão falante. Passa todos os seus dias tentando pintar, esculpir, escrever, etc. Tenta criar algo belo, ou seja, que dure e permaneça. O cão, contudo, não parece acreditar nos talentos do dono, sempre fazendo críticas severas a seu desempenho criativo. Agente da mudança, Destruição, cansado de suas responsabilidades, deixou seu reino. Queria fazer algo diferente de destruir as coisas para que novos elementos pudessem surgir. Se a destruição, nesse contexto, existe para que possam ocorrer mudanças, Destruição mudou para que as coisas pudessem permanecer.

Eu gosto das estrelas. Acho que é a ilusão da perpetuidade. Quer dizer, elas estão sempre se queimando, piscando e desaparecendo. Mas, daqui, eu posso fingir... Posso fingir que as coisas duram... Posso fingir que as vidas duram mais do que momentos. Deuses vêm e vão. Mortais lampejam, reluzem e se apagam. Mundos não duram, estrelas e galáxias são coisas transitórias e fugidias que piscam como vaga-lumes e se desfazem em pó e frieza. Mas eu posso fingir. (Sandman #48, p. 14- 15)

Depois de encontrar Destruição e vê-lo partir novamente, negando-se a voltar à velha vida em seus próprios domínios, onde regia as mudanças através do fim das coisas, Sonho visita Orfeu, seu filho, e concede aquilo que ele espera há tanto tempo: ser capaz de morrer. Ao fazê-lo, Sonho derruba sangue de sua própria família e desperta a vingança das Fúrias (as Erineas da Grécia Clássica, personificação da vingança, encarregadas de castigar os crimes de 210

sangue). Com isso, é questão de tempo até que as três mulheres cheguem a ele e acabem com sua existência. Tal evento ocorre no arco seguinte, Entes Queridos, que se encerra mostrando a morte de Sonho, que é levado por sua irmã mais velha, Morte (Figura 69).

Sonho - Desde que matei meu filho... O Sonhar não tem sido o mesmo... ou talvez eu já não era mais o mesmo. Eu ainda tinha minhas obrigações... Mas até mesmo a liberdade do Sonhar pode se tornar uma prisão para mim, minha irmã. Morte - Destruição simplesmente partiu, pegou seu símbolo, disse que não era mais responsável pelo reino da Destruição, que não era mais do seu pecúlio... E desapareceu no sempre. Você podia ter feito isso. Sonho - Não. Eu não podia. Morte - Não. Você não podia. É verdade.

Após sua morte, um novo aspecto de Sonho surge. Também se chama Sonho, mas não usa os outros nomes pelos quais o antigo era chamado – Morpheus, Tecedor de Formas, etc. Ao invés das roupas negras e do ar introvertido, parece mais atencioso com aqueles que estão próximos, usa vestes brancas, usa uma esmeralda, tal qual o antigo Sonho possuía o rubi dos sonhos, no começo da série. Sabe que é “mais velho que as estrelas”, mas que, ao mesmo tempo, é muito recente, acaba de surgir e tem muito a aprender. Parece mais jovem e menos rígido – é capaz de sentar na entrada de seu palácio e acariciar os guardiões do portão: um grifo, um dragão e um pégaso. Em suma, demonstra gentileza e até mesmo certa humanidade, para surpresa dos habitantes do Sonhar (Figura 70). Enquanto o funeral de seu “antecessor” acontece, ele não participa, isolando-se no palácio. Diz que não seria adequado estar presente. Caim, Abel e o bibliotecário Lucien, frente à confusão de alguns participantes do velório de Sonho, que não entendem bem quem é o “jovem” que também é Sonho e reside no palácio, comentam:

Eblis O’Shaughnessy - Senhor bibliotecário... O jovem de branco... Quem era? Lucien - Ele é Sonho dos Perpétuos. Eblis O’Shaughnessy - Ele é...? Mas o velório... Foi dito a mim que Sonho dos Perpétuos faleceu. Lucien - Sim. Eblis O’Shaughnessy - Então... Quem morreu? Caim - Ninguém morreu. Como se pode matar uma idéia? Como se pode matar a personificação de um ato? Eblis O’Shaughnessy - Então, o que morreu? Quem estamos velando? Abel - Um ponto de vista. (Sandman #71, p. 4)

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Figura 69

Na última edição de Entes Queridos, Sonho aguarda sua morte após ser ameaçado pelas Fúrias. Sua irmã, Morte, conversa com ele pela última vez. 212

Figura 70

O novo aspecto de Sonho, Daniel, conversa com o corvo Matthew durante o arco Despertar. O Sonhar, como tudo ao redor, muda com ele. Tem um aspecto mais leve e jovial do que o Sonho que o precedeu.

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As referências à mudança são vastas e ultrapassam a própria narrativa sobre a “vida” de Sonho. Desde as primeiras histórias observamos que o tema da mudança é abordado, assim como a questão da permanência. O Inferno mudou. O bosque dos suicidas, segundo Sonho, não é mais o mesmo. Contudo, Lúcifer afirma que o Inferno é eterno, que a guerra contra o Céu é sem fim e que isso não vai mudar. Algumas histórias depois, ele abandona o Inferno, a guerra contra o Criador, corta suas asas e parte, por estar cansado de cumprir um papel durante tanto tempo. Destruição, irmão mais novo de Sonho, faz um percurso parecido. Cansado de suas funções, de suas responsabilidades, que afirma, inclusive, serem um pouco ilusórias – já que, em sua opinião, tudo se resolve no Universo, com ou sem a presença dos Perpétuos –, decide deixar seu reino e partir para outra vida, em algum outro lugar, estimulando seus dons artísticos, desenvolvendo atividades criativas, podendo “fingir” que as coisas permanecem. Quando Sonho está com Shakespeare, na última história, ele demonstra buscar algo parecido. Ele desejaria fazer o que Próspero, o personagem da peça A tempestade, fez: quebrar seu cetro, dar as costas para seu poder e seu passado, deixar sua ilha e ser um homem com uma história entre os homens, como se fosse, ele mesmo, um homem. Contudo, ele afirma que nunca será capaz de tal coisa. Ele não mudará. Sonho aparece nas histórias como um personagem introspectivo, melancólico, insatisfeito, ocasionalmente amargurado. Sua rigidez, sua resistência às mudanças, contradizem as próprias características dos sonhos: a fluidez, a mutabilidade, a efemeridade. As imagens incontroláveis e instáveis dos sonhos são objeto da responsabilidade de Sonho. Ele vê os homens e suas histórias, porém não se sente livre para ter uma história própria, como comenta com Shakespeare na passagem citada. Os Perpétuos, seres sem fim que regem domínios que representam algumas características dos seres vivos, agem sobre coisas que mudam a todo o momento. Destino, acorrentado a um livro que possui a história passada, presente e futura de todo o Universo, é cego e não vê que as palavras surgem nas páginas à medida que ele passa seus olhos vazios pelas folhas amareladas em branco, além de viver num lugar que é um jardim-labirinto imenso, cujas passagens se alteram conforme a pessoa avança pelos caminhos; Morte trata da passagem, da vida transitória, sem saber o que há para além da escuridão de seu reino – os deuses nascem e morrem nos sonhos, nada dura; Desejo, que não se contenta com menos que “tudo”, por ser cruel e preservador, nunca vê as vontades serem satisfeitas, mas somente mudando e permanecendo; Desespero, que habita todos os espelhos, sabe que as imagens 214

angustiadas não duram muito, pois ninguém consegue mirar a si mesmo durante muito tempo; Delírio é qualquer coisa que não seja substância, constância, integridade – ela está sempre “entre lugares” (Sandman #48, p. 4); e Destruição, o próprio agente da mudança, deixou seu reino, cansado de sempre assistir a transições. Nessa posição, Sonho contradiz a figura do herói clássico e do super-herói, apresentados como seres acabados e aptos a cumprir um grande destino.

Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade. Ele não pode se tornar inteira e totalmente funcionário, ou senhor de terras, comerciante, noivo, rival, pai, etc. (...) A mesma zona de contato com o presente inacabado e, por conseguinte, com o futuro, cria a necessidade de tal não coincidência do homem consigo mesmo. Nela sempre permanecem as virtualidades irrealizadas e as exigências não satisfeitas. Há um porvir, e este porvir não pode deixar de se referir à imagem do homem, de ter suas raízes nele. (BAKHTIN, 1998, p. 425)

Procuramos demonstrar certo inacabamento em Sonho a partir dos subtextos que emergem em meio aos discursos de conhecimento absoluto sobre si mesmo. Se ele afirma que não muda, por outro lado os personagens que se encontram com ele nas histórias sempre comentam sobre possíveis mudanças, sobre como ele parece diferente. Em diversos momentos ele aparece como senhor de si, das situações, todo-poderoso para resolver grandes problemas. Tais momentos estão sujeitos a intromissões e desestabilizações: a jovem que diz, ao final do arco Casa de Bonecas, que ele não compreende o sentido das coisas por não ser muito esperto; Lúcifer frustrando sua busca heroica por redenção no Inferno; sua irmã Morte afirmando que ele sempre buscou colocar um fim em sua própria vida, ainda que não admitisse ou notasse isso; Destino afirmando a falta de significado de seus sofrimentos românticos; sua solidão e falta de esperança, mesmo vivendo num mundo repleto de sonhos. Em busca de mudança, constata, talvez, que não consegue ultrapassar seus próprios limites, só lhe restando a mudança extrema e final, ou seja, a morte, que dá origem a outro Sonho, a outro ponto de vista. O Sonho que foi amigo de Shakespeare não experimentará a existência para além do isolamento de sua ilha. As discussões sobre o destino, o livre-arbítrio e as escolhas aparecem em alguns momentos. Quando está para partir para o Inferno, no arco Estação das Brumas, o bibliotecário Lucien pergunta-lhe se não há outro meio, se Sonho não pode desistir de enfrentar Lúcifer e os demônios:

Lucien - Milorde... Eu imploro que reconsidere. Por favor, não é tarde demais... Sonho - Fazemos o que devemos, Lucien. Algumas vezes podemos escolher o 215

caminho que seguimos. Algumas vezes nossas escolhas são feitas por nós. E algumas vezes não temos escolha alguma. (Sandman #22, p. 23)

Tal declaração, um tanto grave e, de certa forma, imponente/impotente, repleta de responsabilidade, senso de dever e certa escravidão aos próprios padrões, é alvo de novas relativizações, ao mostrar, no número seguinte, Lúcifer, o eterno traidor condenado em sua guerra com o Céu, decidindo deixar para lá o poder, a culpa, o castigo e aquela existência aparentemente imutável desde a origem do tempo. No arco Um Jogo de Você, Sonho tem uma participação pequena. A personagem principal é Barbie, uma jovem que acaba de se separar de seu marido Ken e não sabe bem o que fazer da vida. Um dia, ela está indo para o trabalho e um bicho grande, parecido com um cachorro ou um urso, está sendo perseguido pela polícia. Para sua surpresa, trata-se de um antigo personagem de sua infância, de seu mundo imaginário, no qual ela se imaginava como uma princesa. Antes de ser morto pelos policiais, o bicho peludo diz a Barbie que ela deve voltar à Terra para salvá-la do Cuco. Somente, ela, a princesa Barbie, pode ajudá-los. Não sem alguma aventura e a morte de alguns seres imaginários de seu reino, Barbie, que conseguiu voltar à Terra, encontra o Cuco, que é ela mesma quando criança, ou quase ela. O Cuco diz que Barbie a criou e que são “quase” a mesma pessoa. Então, o Cuco lhe diz que Barbie teve uma infância chata e desinteressante, porém bem imaginativa.

Cuco - Meninos e meninas são diferentes, sabia disso? Meninos têm fantasias nas quais são mais rápidos, espertos ou capazes de voar. Eles escondem seus rostos em identidades secretas e ouvem as pessoas que os desprezam admirando seus feitos notáveis. (...) Meninas, por outro lado, têm fantasias diferentes. Muito menos complicadas. Os pais delas não são seus pais. Suas vidas não são suas vidas. Elas são princesas. Princesas perdidas de terras distantes. E um dia, o rei e a rainha, seus verdadeiros pais, virão buscá-las de volta e serão todos felizes para sempre. Pequenos cucos. Barbie - Eu sonhei isso? Não me lembro... Cuco - Claro que sonhou. Você criou uma terra mágica e a povoou com seus brinquedos. (...) Barbie - Meus brinquedos! Tinha me esquecido deles. Cuco - Não, não tinha. Não no fundo. E eles nunca te esqueceram. Barbie - Isto é real? Ou é só minha imaginação? Cuco - Se me disser a diferença, talvez eu possa te dizer. (Sandman #35, p. 5 e 6)

O Cuco conta que precisa deixar a Terra, por isso quer que Barbie cumpra um determinado pacto, necessário para que a Terra acabe e ele fique “livre para voar”. Por fim, com o pacto cumprido, Sonho aparece para destruir a Terra. A Terra que Barbie habitou quando criança em sua imaginação, onde o Cuco ficou preso, é uma ilhota nos limites do 216

Sonhar. Compete a Sonho dar um fim à Terra. O Cuco é liberto e pode voar para outros lugares que não aquela Terra, aquela ilhota nos sonhos. Vemos, nas imagens de sua partida, que a liberdade e a mudança são elementos muito próximos. O Cuco se torna uma ave multicolorida, gigante e livre (Figura 71). Ao voltar ao mundo desperto, Barbie fica sabendo que sua melhor amiga, Vanda, morreu durante sua ausência. Transexual, a família nunca a aceitou, sempre se referindo a ela por seu nome de nascença, Alvin. No funeral, Barbie encontra a família de Vanda. Encontra a tia do rapaz, que pede que ela tome cuidado ao falar com os pais de Alvin, afinal, eles não são tão “abertos” quanto ela é. Tratando Vanda sempre como Alvin, avisa que no caixão ele estava lindo, de cabelo cortado bem curto e terno, e complementa:

Tia de Vanda - Deus te dá um corpo. É seu dever cuidar dele direito. Ele te faz um menino, você se veste de azul. Ele te faz uma menina, você se veste de rosa. Você não deve sair mudando as coisas. (Sandman #37, p. 14)

Se fica evidente, na narrativa, que Barbie deveria ter “permitido” que o Cuco voasse no tempo certo, que a Terra deveria ter sido abandonada de forma “adequada”, e que a permanência do Cuco como uma Barbie criança aprisionada foi a causa de todos os problemas, também fica evidente, na reprovação da conservadora tia ao comportamento e à vida de Alvin/Vanda, que mudanças são pouco aceitáveis num mundo criado de forma acabada, afinal, na visão da tia, as coisas são como deveriam ser, a partir da vontade divina. A mudança, geralmente, é um elemento de subversão das totalidades e dos acabamentos, colocando em jogo, assim, o próprio conceito de identidade. Na história Ramadan (Sandman #50), numa Bagdá do passado, que remonta às eras das Mil e Uma Noites, o califa Haroun Al Raschid tem a mente perturbada. Observa as maravilhas de sua cidade, repleta de gente de todo o mundo, verdadeira joia das Arábias, e sente angústias que não confessa a ninguém. Um dia, sobe ao alto de seu palácio e invoca Sonho, ameaçando libertar demônios e gênios terríveis caso ele não venha. Sonho aparece, não muito contente pela forma como foi chamado. Conversam. O califa convida Sonho a ver a cidade do alto, voando com ele num tapete. No mercado, diante das maravilhas e dos pregões dos mercadores, ouvindo histórias fantásticas, Haroun Al Raschid pergunta a Sonho:

Califa - Olhe ao seu redor, Rei dos Sonhos. O que vê? Sonho - Vejo um lugar extraordinário. Califa - Realmente... Uma terra de milagres. Quer comprar de mim? Sonho - Não desejo ser rei de qualquer terra mortal. 217

Figura 71

Barbie e Thessaly observam o Cuco voando para além da Terra, a ilhota do Sonhar que Sonho acabou de destruir. Nos painéis números 1 e 2, vemos a transformação do Cuco de “criança Barbie” para um grande pássaro de plumagens coloridas.

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Califa - Não. Você me entendeu mal. Esta é a maior cidade com a qual Allah, que ele seja louvado do nascer do sol até o poente à noite e também nas horas antes do amanhecer, julgou por bem abençoar o mundo. E esta era é a era perfeita. Quanto irá durar? Por quanto tempo as pessoas vão se lembrar? Eu já vi o mundo, Rei dos Sonhos. Cavalguei através dos desertos, vi rochas, velhas muralhas e estátuas fustigadas pelo vento nas desoladas terras de areia. Então, os ventos e a areia retornaram e os vestígios de cidades, palácios e deuses desapareceram cedendo lugar a outra era, esquecidos e olvidados. É isso que vai acontecer, não? Sonho - Pode ser. Califa - Mas apenas Allah sabe, não? (Sandman #50, p. 27-28)

Sonho recebe a cidade do califa e a leva para o Sonhar. Ao final, vemos um contador de histórias, que também é um mendigo, contar a um garoto, entre os escombros de uma Bagdá destruída pela guerra, as maravilhas de uma cidade magnífica que existiu há muito tempo naquele mesmo lugar, com aquele mesmo nome. O menino, faminto e deficiente em razão das explosões, anda pelas ruínas maravilhado com as imagens daquela Bagdá fantástica, rezando a Allah para que ela ainda exista “nas trevas dos sonhos”. No arco Fim do Mundo, que mostra viajantes, pegos de surpresa por uma tempestade, abrigados numa taverna onde contam histórias enquanto esperam o clima melhorar, um dos contos se passa numa cidade de serviços fúnebres, uma necrópole. O narrador conta seu encontro com Destruição, um dos raros viajantes a passar um dia pela cidade:

Destruição - É um lugar importante. Quando o espírito voa e a fagulha de vida desaparece, os rituais de despedida são necessários. Todos os rituais nos ajudam a dizer adeus. Nós temos que dizer adeus. Esses ritos também têm outras funções. É uma temeridade sermos assombrados pelos que já amamos. É uma temeridade assombrarmos os que amamos. Litargo não mudou muito desde a última vez em que estive aqui. Scroyle - A Necrópole Litargo não muda. Destruição - Tudo muda... Esta não é a primeira Necrópole, sabia? (Sandman #55, p. 16)

Os sonhos, muitas vezes referidos como contrários à realidade, são apresentados não como mais estáveis ou permanentes que o real, ou como mais caóticos, instáveis e misteriosos. A Bagdá das Mil e Uma Noites e o Cuco existem nos sonhos. Não são, com isso, mais ou menos reais na lógica de Sandman. Ao que parece, existir nos sonhos ou no mundo desperto não configura realidade, mas diferentes formas de existência, de organização e de relação. O real não é necessariamente mais verdadeiro que o imaginário. Ou que o sonhado. Jorge Luís Borges, numa conversa sobre sonhos com Osvaldo Ferrari (2009) diz que não se trata de que os sonhos sejam mais ou menos reais do que outras coisas, mas de que eles 219

são “mais íntimos”. A relação de proximidade e os elementos com os quais os sonhos se relacionam possuem algumas características e singularidades que criam outras formas de organização de certos conhecimentos. Sonho não possui a mesma estabilidade dos super-heróis. Também não possui os estandartes morais e éticos ligados ao bem, à ordem e à justiça. Seus símbolos, o rubi e o elmo, instrumentos semelhantes aos dos referidos super-heróis, desaparecem ainda na primeira metade da história77. O rubi não é refeito a partir de seus fragmentos, como o Capitão América fez com seu escudo durante as Guerras Secretas; o elmo desaparece após o encontro com Lúcifer – a máscara não volta a seu rosto como voltou ao do Homem-Aranha, com todos se esquecendo de que ele era Peter Parker, preservando dessa forma sua identidade secreta. Após sua prisão, depois de tantos séculos, Sonho não é mais o mesmo, apesar de tentar afirmar o contrário e de duvidar de que tenha mudado. Situada na mesma série que produziu, ao longo de décadas, centenas de super-heróis que mudaram pouco ao longo do tempo, mantendo determinados padrões de bem, ordem e justiça, a discussão sobre os movimentos de mudança e permanência em Sandman dialoga com toda uma tradição de gibis e com certas formas culturais. Tal jogo de forças, presente nos textos como um todo, de diversas formas, apresenta-se em diferentes tons, nuances e graus, de acordo com os contextos culturais em que tais textos estão inseridos, e é também o jogo do escritor que fica ligado a certa produção, certo personagem, e deseja se libertar. Talvez possamos ver no último capítulo da série, A Tempestade, não somente Próspero quebrando seu cetro e abandonando a ilha e a magia, ou Shakespeare deixando seu compromisso com os sonhos e as palavras, como também o autor de Sandman, Neil Gaiman, abandonando aquele universo, aquele personagem, e se tornando livre para outras realizações78. É difícil identificar as origens (se é que cabe tal termo) da melancolia, do descontentamento e da amargura de Sonho. Independentemente de suas constantes decepções amorosas, as histórias sugerem, seja por sua aparência gótica dos anos 1980, seu comportamento fechado ou seus atos, certo desencanto, ainda que poucos estejam tão próximos dos mundos encantados quanto ele. Mas, para um ser que é o próprio sonho, encantamentos dos mundos de fantasias podem vir a ser repetitivos e pouco interessantes. Nesse caso, talvez, o dia a dia seja o lugar do extraordinário, e não os sonhos. Assim, ele vive num mundo desencantado.

77 O elmo só será usado novamente em Sandman #68, aparecendo de forma breve, em apenas poucos painéis ao longo de 5 páginas. 78 No artigo “Prospero framed in Neil Gaiman’s The Wake” (In: SANDERS, 2006, p. 79-92), Joan Gordon discute as aproximações entre Shakespeare, Sonho e Neil Gaiman em A Tempestade. 220

Citamos a cena em que Sonho está sentado numa praça, alimentando os pombos, e sua irmã Morte se aproxima para conversar, depois de muito tempo – ele havia ficado mais de setenta anos preso. Ele está desanimado, sem perspectivas ou objetivos. Está insatisfeito e infeliz, apesar de haver conseguido sua liberdade, vingar-se do filho de seu captor e recuperar suas ferramentas. Nessa passagem, Sonho comenta que se sente exausto e desapontado. Diz sentir-se “um nada”. Contudo, após seguir com sua irmã e vê-la “trabalhar”, acompanhando a morte de diversas pessoas, sente-se mais tranquilo e reconhece que tem responsabilidades a cumprir. Ao que parece, Sonho se sentia sem propósito. Havia perdido o “sentido” de sua existência. Mesmo com sua prisão a humanidade continuou sonhando, apesar de alguns contratempos. Após sua jornada, teve seu maior símbolo destruído, o rubi dos sonhos. E notou que, com a destruição de sua ferramenta, de seu apetrecho de trabalho, sentiu-se mais forte. Notando que havia se privado da consciência de si mesmo e de seu poder até o rubi ser destruído, sentiu-se mais livre. Talvez livre de seus deveres. Após caminhar com Morte, pareceu recuperar tal crença e se apegou novamente às suas responsabilidades, que, apesar de não estarem explícitas, podemos presumi-las relacionadas ao desempenho do papel de regente dos sonhos e do Sonhar. Resta saber se ele voltou a acreditar em tal “cargo”, de rei e senhor dos Sonhos, ou se apenas resolveu, despretensiosamente, seguir com seus afazeres, seu dia a dia, assim como Morte, cujas tarefas ele acompanhou. Talvez ambas as hipóteses sejam possíveis. Mais tarde, ao final do arco Casa de Bonecas, Sonho visita seu irmão/sua irmã Desejo.

Quando o último ser vivo deixar este Universo, nossa tarefa estará encerrada. E nós não os manipulamos. Elas nos manipulam. Eles! Somos seus brinquedos. Seus bonecos, se preferir. (Sandman #16, p. 23)

Durante o arco Vidas Breves, Sonho encontra-se com a antiga deusa suméria do amor Ishtar, que é dançarina num clube de striptease; ganha a vida e um pouco de veneração nesse “pequeno templo do desejo”. Ela diz:

Eu sei como surgem os deuses, Roger. Nós começamos como sonhos. Então saímos dos sonhos para a terra. Nós somos idolatrados, amados e sorvemos muito poder. Então, um dia, não resta mais ninguém nos adorando. No fim, cada pequeno deus ou deusa faz sua última jornada de volta aos sonhos... E, o que vem depois, nem mesmo nós sabemos. (Sandman #45, p. 21)

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Em seu encontro com Shakespeare, Sonho diz que ele é como uma ilha. Solitário, diversas vezes ouviu, durante as histórias , sobretudo de sua irmã Morte, que deveria se “relacionar” mais com as pessoas, conhecer a humanidade, ser menos fechado. Isolado dos outros seres por ter um temperamento intransponível e ser conhecedor de todos os deuses, que sempre passam de alguma forma pelo Sonhar, sente-se sem propósito. Possui apenas suas responsabilidades como forma de se apegar à existência, porém há indicações de que sua fé em seus deveres tem falhado em tempos mais recentes. Sua prisão por “mortais” representou uma queda daquela situação anterior, quando parecia repleto de certezas sobre sua condição nobre, isolada e poderosa. Tal deslocamento abrupto – do poder da liberdade absoluta para a impotência e o aprisionamento completos – parece haver trazido à tona dúvidas que, outrora, ele parecia ignorar completamente. Daí a sensação, após sua busca por tão importantes ferramentas, de esvaziamento e falta de sentido quando de seu encontro com sua irmã Morte. Para um personagem que se acreditava acabado, nada pode ser mais absurdo do que o questionamento dos absolutos que sempre pareceram reger não somente o mundo, mas ele mesmo.

O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã. Esta é, a partir de então, a razão da minha liberdade profunda. Farei aqui duas comparações. Os místicos encontram primeiramente uma liberdade para se entregar. Abandonando-se aos seus deuses, aceitando suas regras, eles também se tornam secretamente livres. Na escravidão espontaneamente aceita, recuperam uma independência profunda. Mas o que significa essa liberdade? Podemos dizer em suma que eles se sentem livres em relação a si mesmos e, sobretudo, mais libertos que livres. Da mesma forma, o homem absurdo, totalmente voltado para a morte (tomada aqui como a absurdidade mais evidente), sente-se desligado de tudo o que não é a atenção apaixonada que se cristaliza nele. Saboreia uma liberdade em relação às regras comuns. (CAMUS, 2009, p. 70)79

O absurdo, intimamente ligado à morte, ao jogo entre certeza e incerteza, à construção de significados e às situações-limite, surge para Sonho ao longo de toda a narrativa, em sua busca por se posicionar em meio aos absolutos que não pode abandonar e nem aceitar. E se a certeza da morte num mundo sem significados “elevados” pode ser absurda, poderíamos aplicar raciocínio semelhante em relação à certeza de uma permanência perpétua e sem qualquer sentido “maior”. Ainda assim, Sonho não consegue se desapegar da

79 Há uma sutil ligação de Sandman com o escritor Albert Camus (1913-1960): as semelhanças visuais de Sonho com Robert Smith, vocalista da banda inglesa de rock gótico The Cure que teve seu apogeu na década de 1980, são notáveis, apesar de os criadores do personagem nunca haverem declarado qualquer inspiração direta. O primeiro sucesso do grupo foi a canção “Killing an Arab” (1978), baseada numa passagem do romance “O Estrangeiro”, de Camus. Outro ponto que merece nossa atenção é que Sonho volta ao jogo da vida, assumindo certas responsabilidades de forma mais “leve”, a partir da história com sua irmã Morte. A morte, em Camus, é o elemento máximo do absurdo e a consciência motivadora de certas mudanças em relação à existência a ao próprio cotidiano (CAMUS, 2009). 222

segurança de um estado aparentemente permanente e das “regras comuns” que segue como administrador (e personificação integral) de uma dimensão onírica, destino ao qual não parece se ajustar, assumir ou rejeitar. Sonho declara várias vezes, alternando sentimentos de tristeza e orgulho, que não muda nem tem uma história. Ironicamente, sua narrativa acaba por ser uma história sobre as dificuldades, os limites e as possibilidades de mudança num universo pretensamente acabado e absoluto.

4.3 As Várias Formas e as Identidades

Após receber de Lúcifer a chave do Inferno e voltar confuso para seu reino, Sonho é incomodado em sua autocomiseração pelo anúncio de seus guardiões de que há muitos seres diante dos portões do palácio – seres antigos e, alguns deles, poderosos. A notícia de que a dimensão infernal estava vaga e de que Sonho era o protetor de tal território se espalhou rapidamente pelas dimensões e, por diferentes razões, todas aquelas “pessoas” haviam vindo de longe para requisitar o Inferno para si próprias. Sonho os recebe na sala do trono, dizendo:

Dou as boas vindas a todos no Coração do Sonhar. Ofereço minha hospitalidade. (Sandman #24, p. 24)

Ao final do arco Estação das Brumas, Sonho afirma, após ser desafiado pelo demônio Azazel, que:

Não foi sábio tentar me ferir, Azazel. Em outro lugar, talvez, mas não aqui. Este é o meu lar, Azazel, meu local de poder. Este é o Coração do Sonhar. A realidade aqui responde aos meus desejos; ela é o que eu quero que seja... Nem mais, nem menos. (Sandman #27, p. 18)

Quando vemos pela primeira vez o Sonhar, durante o arco Prelúdios e Noturnos, somos informados de que o castelo de Sonho pode ser movido para qualquer lugar no reino. E que, onde quer que ele esteja, está também o centro do reino de Sonho. Tais elementos nos indicam a importância da ideia de centralidade. Em alguns momentos, realmente, indicações de valoração clássica do núcleo e do centro aparecem na série, normalmente ligadas ao poder dos regentes de diferentes reinos. Esse discurso, muito 223

embora aponte certos contextos culturais aos quais a série está relacionada, no caso, certo ocidente e certos aspectos culturais com algumas formas binárias de organização do pensamento e do conhecimento, há outros elementos em jogo que devemos considerar para ver qual o tratamento dado à identidade, como conceito e forma de representação de mundo. Sonho, ainda que seja “o mais idiota, mais egocêntrico, mais estarrecedor arremedo de personificação antropomórfica” (Sandman #8, p. 10), isto é, ainda que tenha algo de humano ou de semelhante ao ser humano, ele é também outros seres, tem outros nomes e existe de outras formas que não a do sujeito parecido com Robert Smith, vocalista da banda de rock The Cure. Em Prelúdios e Noturnos, Sonho vai procurar informações sobre o paradeiro de seu rubi com os super-heróis da Liga da Justiça. Encontra-se com o último marciano, Ajax, que vive em refúgio na Terra (Figura 72). Ele reconhece Sonho – não como os humanos o veem, mas como um ser com feições muito diferentes, envolto em chamas e fumaça, com olhos rasgados e traços que lembram, vagamente, os do alienígena. Sonho é chamado por ele de Lorde L’Zoril, “um antigo deus, muito antigo” (Sandman #5, p. 16). L’Zoril diz por que está ali:

Eu procuro um rubi, último dos marcianos... Conhecido por sua raça como D’Orilar, a Pedra das Ligações. (Sandman #25, p. 16)

A forma de Sonho não é fixa. Enquanto regente dos Sonhos, ele tem a forma com a qual é sonhado pelos sonhadores. Não se trata de assumir determinada forma. Sua forma é aquela mesma, porque é definida pelas relações e não por uma essência que se mantém de forma perpétua, independentemente de tempo e lugar. Quando tais dimensões fazem diferença, significa que estamos no terreno da existência, da variabilidade e da diversidade. Em Sandman #9 sabemos, por uma história contada por um habitante dos desertos, como a princesa Nada, há muitos milênios, conheceu um estranho, um forasteiro, e se apaixonou por ele. Ela descobre, ao procurá-lo, que seu nome é Kai’ckul, o Senhor dos Sonhos. Trata-se de um homem vestido com roupas à moda dos habitantes da cidade onde vive Nada, com cabelos trançados e pele negra, assim como a princesa (Figura 73).

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Figura 72 O super-herói marciano Ajax, do Universo DC, encontra Sonho, que busca por seu rubi. Diferentemente de seu colega, ele o vê como uma face inumana incandescente e o chama de Lorde L’Zoril. 225

Figura 73

Nesse antigo conto/mito tribal, Sonho é retratado como um jovem estrangeiro por quem a princesa Nada se apaixonou milênios atrás. Sonho tem a pele negra, cabelos trançados e usa roupas conforme a cultura local. 226

Em outra história, sobre gatos que vão a um cemitério ouvir as falas de uma gata que profetiza o final do jugo dos humanos sobre os felinos, Sonho tem outras formas. É chamado de Gato dos Sonhos e é um grande felino de pelos negro-azulados e olhos vermelhos (Figura 74). Vive não em um palácio, mas numa toca, dentro de uma profunda caverna situada no meio de uma floresta (Sandman #18). Em Estação das Brumas, Sonho confirma sua hospitalidade, anunciada por ocasião dos visitantes que aparecem no Sonhar. Recebendo cada um dos seres ali presentes, para ouvir seus pedidos e ofertas em relação ao Inferno (Sandman #26), ele nunca realiza uma audiência é igual à outra (Figura 75). O deus viking Odin o chama de Tecedor de Sonhos. A sala do trono tem velas organizadas em forma circular no chão e Sonho está sentado num rochedo, que lembra uma runa. Susano-O-No-Mikoto, deus do panteão de Nippon, uma divindade tempestuosa japonesa, diz que precisa do Inferno para se expandir. Os deuses de seu reino estão adaptando-se aos tempos modernos, já que o culto a eles diminuiu consideravelmente. Avisa que já contam com outros altares e ícones, como Marilyn Monroe, por exemplo. Durante o encontro, Sonho veste um quimono e está sentado sobre uma base de madeira, enquanto cerejeiras aparecem ao fundo, com flores amarelas. Na audiência com Lady Bast, a deusa egípcia dos felinos, o trono do rei dos Sonhos adquire características egípcias e seus olhos se assemelham aos de gatos. Se a hospitalidade, como discutimos anteriormente, é a abertura ao estrangeiro não somente nos termos de seu próprio reino, mas concedendo a liberdade para que aquele que chega modifique o lugar onde se encontra, podemos observar que o Sonhar não é estático, tampouco Sonho é imutável. Os lugares, os seres, os nomes e as formas se modificam de acordo com os sonhadores, os visitantes e as culturas, não havendo parâmetros fixos, ainda que não estejam ausentes traços distintivos gerais, como o brilho pontiagudo no olhar de Sonho, os guardiões à porta do palácio, a biblioteca infinita e labiríntica80, o discurso sempre envolto em balões escuros, com letras brancas, amplificando a sensação de introspecção e a densidade de Sonho dos Perpétuos.

80 A pesquisadora Leonora Soledad Souza e Paula, em seu artigo “Imaginary places and fantastic narratives: reading Borges through Sandman” (In: SANDERS, 2006, p. 135-145), estabelece diálogos entre certos contos de Jorge Luís Borges e as narrativas de Neil Gaiman, notando as aproximações entre os jardins-labirintos onde vive Destino e o conto O jardim dos Caminhos que se Bifurcam, e entre a Biblioteca do Sonhar com O livro de areia e A Biblioteca de Babel. “O contínuo movimento de apropriação cultural em que leituras e releituras circulam para construir textos artísticos não envolve necessariamente subordinação do presente ao passado. (...) Mais que simples influência, a transformação da tradição atua como deslocamento de elementos formais, e não como despersonalização de estilos anteriores”. 227

Figura 74

A gata profetisa encontra o Gato dos Sonhos em sua toca no meio da floresta, em meio a um sonho.

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Figura 75

Sonho, em Estação das Brumas, recebe os reclamantes da dimensão vazia do Inferno em audiências particulares. À esquerda, seu encontro com o deus nórdico Odin, sentado em rochedos. Acima, à direita, seu encontro com uma divindade tempestuosa nipônica em meio a cerejeiras em flor. Abaixo, com a deusa egípcia felina Bast. Os olhos de Sonho se tornam como os dela – como os de um gato – e seu trono toma formas egípcias.

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Há mais nomes pelos quais ele é chamado pelas diferentes culturas e povos: Titânia e Alberon, rainha e rei das fadas, o chamam de Modelador; Calliope o chama de Oneiros (Oneirói), tal qual eram chamados na Grécia antiga os irmãos que eram os Sonhos – Morpheus (representante das imagens humanas), Icelos (representante das imagens de feras) e Phantasos (representante das imagens dos elementos) –, filhos da Noite, segundo Hesíodo, e irmãos de Hypnos (Sono), Thanatos (Morte) e Geras (Velhice); Sonho é chamado de Morpheus por Lúcifer e outros demônios. Não recusa nenhum nome, assim como não recusa nenhuma fé.

Sonho - Você me chamou. E eu vim. Al Raschid - Então, você é o Mestre do Sono, o Príncipe das Histórias, aquele a quem Allah concedeu o domínio sobre aquilo que não existe, não existiu e jamais existirá? Sonho - Você sabe quem chamou, Haroun Al Raschid. Al Raschid - Vinho! Vinho para nosso convidado. Sonho - Este mês é o Ramadã, ó rei, quando os fiéis jejuam do nascer ao pôr- do-sol. O profeta não alerta contra o vinho? Al Raschid - E você comunga a fé, meu pálido visitante? Sonho - Eu comungo todas as fés à minha maneira, e não desejo tomar vinho com você. (Sandman #50, p. 21)

Não se trata de tolerância para com todas as religiões, fés, culturas ou tradições, mas de comungar delas. Como já foi discutido, a tolerância faz parte da lógica binária, de uma cultura de identidades e oposições. Toleramos aquilo que de alguma forma nos desagrada ou não é confortável. Toleramos aquilo que não somos nós, mas que temos de suportar porque, afinal, existe. O termo usado por sonho é “comungar”, que indica uma ação partilhada, compartilhada, sem ser idêntica, podendo, mesmo, guardar certos conflitos que não excluem, evidentemente, a relação. As roupas de Sonho reforçam esse entendimento. Encontra o califa Haroun Al Raschid vestindo uma túnica adornada com desenhos de vários objetos celestes, com muitas cores e arabescos, coisa que Sonho faz poucas vezes, usando normalmente roupas monocromáticas e negras. As vestes, ademais, têm elementos, como os tecidos sobrepostos, que lembram as do próprio califa (Sandman #50, p. 21. Figura 76). Outra ocasião em que os trajes de Sonho são dignos de menção é durante seus sucessivos encontros com Robert “Hob” Gadling (Figura 77). Ambos se conhecem numa taverna nos século XIV. Morte está com Sonho, levando-o para ver como vivem os mortais de maneira mais próxima, em seu próprio ambiente. Ouvem então Hob Gadling dizendo que a morte é uma idiotice, que as pessoas só morrem porque pensam que têm de morrer, e que ele não morrerá. Aparentemente, Morte gosta da ideia, assim como Sonho, que promete encontrar Hob a cada cem anos naquele mesmo lugar, querendo, talvez, observar como será sua existência com o passar do tempo. 230

Figura 76 Sonho é convocado pelo califa de Bagdá. Sua túnica lembra as vestes árabes, com estampas ricas em cores e desenhos.

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Figura 77

Sonho e seu amigo imortal Hob Gadling através dos séculos. Desde a Idade Média até o pós-punk londrino.

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Ao longo dos seiscentos anos em que os dois se encontram, os cabelos de Sonho e de Hob mudam, assim como suas vestes e mesmo seu comportamento. Sonho, de uma nobreza sutil dos anos 1300, já assume, no século XVI, ares aristocratas, e aparece com alguma afetação própria das cortes francesas por volta dos anos 1600. Próximo da Revolução Francesa, perde os babados da roupa e as golas exageradas para vestir algo mais sóbrio, porém o cabelo ganha um pequeno rabo de cavalo. No século XIX é um inglês típico, sendo suas roupas próximas daquelas que podemos ver Sherlock Holmes ou o doutor Watson usando em filmes antigos quando caminham pela neblina de Londres, mas em vez da boina típica, Sonho usa uma cartola. E, no século XX, possivelmente na década de 1970, vemos um Sonho pós-punk encontrar-se com um Hob que lembra um yuppie. Tais mudanças, que aparecem em diversos números de Sandman, em diferentes situações, e valorizam as diferenças sem destruir certas estabilidades, como a pele pálida, a forma de falar, os balões negros ou o brilho angulado nos olhos escuros. A construção aproveita tanto os exageros quanto as sobriedades das épocas pelas quais trafegam os personagens, traduzindo certos elementos para o contexto da história e das discussões que a obra pretende realizar. Nesse caso, do jogo de mudanças e continuidades através dos tempos. Se há indicações de que as coisas mudam continuamente, de forma muitas vezes violenta, com cortes súbitos – o aparecimento de lenços, chaminés, as revoluções, a industrialização, o surgimento das cidades, as navegações, a moda, os altos e baixos da vida, etc., coisas que Hob vai conhecendo com o passar dos anos –, há índices de continuidade, como, por exemplo, as conversas sobre guerras, economia e doenças que aparecem tanto no século XIV como no século XX, assim como locais “perpétuos”, em algumas culturas, de convivência, de troca de ideias, ofensas e gracejos – tavernas, casas de chá, estalagens ou bares, nos quais as pessoas estão sempre bebendo algo. Outro ponto de diversidade hospitaleira são os momentos em que vemos as três mulheres, sempre representadas por uma jovem e bela donzela, uma senhora de meia-idade com feições maternas e uma idosa bruxa de aspecto repugnante. Elas simbolizam diferentes entidades, porém possuem o traço característico de serem consideradas a representação tríplice e lunar da deusa, presente em algumas culturas. Na Grécia, de forma geral, ela recebe o nome de Hécate, divindade relacionada à lua e de aspecto triplo, associada também às Moiras, as três mulheres que teciam tanto o destino dos homens quanto dos deuses e sobre as quais nem Zeus tinha poder; ou ainda Erineas (Fúrias, em grego), também chamadas, por eufemismo, de Eumênides (as Bondosas), encarregadas de punir as transgressões dos mortais através da vingança, sobretudo os crimes de sangue. Em Sandman, elas recebem diversas denominações, formas e nomes, de acordo com os contextos em que se fazem presentes: elas são 233

apresentadas como oráculos ambíguos, mensageiras irônicas e algozes inevitáveis (Figura 78). Em Prelúdios e Noturnos elas são oráculos, chamadas de Três-Em-Uma e de Hécate; apresentam-se como Tisiphone, Alecto e Magaera, e também como Diana, Mary e Candy. O jogo entre os nomes gregos clássicos e os ingleses corriqueiros faz as representações transitarem entre o alto e o baixo, retirando-as da tradição e jogando-as no cotidiano, ao qual retornam, modificadas, com a menção celta e, portanto, pagã, dos nomes de Mildred, Mordred e Morgaine. A três permitem e estimulam o procedimento de proliferação e enumeração de seus nomes, assumindo desde aspectos ligados à cultura pop até imagens de padrões clássicos (Sandman #2, p. 20). Também aparecem como oráculos, vítimas, mensageiras e vingadoras. São chamadas de Damas Cinzentas, Três Irmãs e Trioditis. Diferentes personagens, mitos e fatos históricos, com suas éticas e estéticas características, são apropriados e traduzidos para a construção da obra, que conta com diversos fragmentos, nem sempre vitais para o enredo, mas contributivos para a história, as formas e as ambiguidades da obra. As relações trafegam do clássico ao pop, sem se tornarem polarizadas, o que significaria a destruição dos textos paralelos e ameaçaria o inacabamento pretendido com o elogio à mudança. Como já mencionamos, estamos em um ambiente que tende à hospitalidade, onde combinações, jogos e tensões são bem recebidos, não por “enriquecerem” a obra, mas por serem o que a constituem. Não há algo a ser enriquecido, pois não há um núcleo mais ou menos estável que recebe sucessivas camadas de elementos sem se modificar, ou melhor, mantendo integridade e permanência junto ao exotismo de enfeites bem montados. Contudo, há a questão sobre certa totalidade que podemos encontrar em Sandman, ou melhor, a tendência à totalidade. Já mencionamos que, no Sonhar, há um centro. Tal centro não é fixo, pois depende de onde está situado o castelo de Sonho. Apesar da movimentação, sempre há um centro de poder. Porém, a mobilidade e as metamorfoses do palácio – que ora é uma toca de gato, ora a caverna de uma raposa, ora uma construção romana ou ainda um castelo gótico – relativizam o conceito de centralidade. Fora isso, tal centro não é ordenador das outras regiões do Sonhar. Sabemos disso por ocorrências significativas se darem em outros lugares que não o castelo – nas periferias, onde ficam as ilhotas; na Casa dos Mistérios de Caim e Abel; nas praias do Sonhar, onde estão as areias que Sonho usa para moldar pesadelos. Outro ponto importante é o caráter labiríntico do castelo, as salas e passagens que aparecem e desaparecem, as constantes reformas e as mudanças de decoração dos salões e corredores, de acordo com os humores de seus habitantes e as culturas a que pertencem os convidados. Se não há uma destruição do centro, há uma suavização da rigidez imposta pelo conceito. O centro do Sonhar é o lugar onde estão os sonhos, matéria fluida e plástica, sujeita a variações repentinas e imprevisíveis, ainda que pareçam sólidas ao sonhador. 234

Figura 78

As várias formas, faces e nomes da deusa tríade em Sandman – vítimas, inglesas clássicas, bruxas neoceltas, oráculos e vingadoras. 235

As três mulheres bruxas poderiam ser interpretadas como uma ideia única que assume muitas formas na série. Isso lhes conferiria certo aspecto ligado ao princípio de identidade. Porém, elas não são reconhecidas por aqueles que a veem nem como a mesma e nem como diversas. Tal questão, simplesmente, não é abordada. Quando há a declaração – ligada à ideia de tolerância – de que todos os deuses são, na verdade, o mesmo deus, é porque se considera que a redução das multiplicidades e das formas levará a um princípio comum, seja o bem, o amor, a justiça, o eterno, a ordem ou a estabilidade. As possíveis tensões e contradições se dissolvem em nome de um princípio de unidade final. Podemos considerar que as três mulheres são as três bruxas, assim como as clássicas, as gregas, as vingadoras, as mensageiras, as oraculares, as que ajudam Sandman, as que o perseguem, as que são assassinadas – não há um aspecto regendo todos os outros, subordinando outras manifestações ou totalizando a diversidade. Nessa situação, especificamente, o autor faz uso de elementos relacionados a aspectos mítico-lunares, usualmente ligados a essa trindade feminina, para aumentar o grau de variações possíveis em seu processo de apropriação e tradução, talvez por possuírem signos mais abertos a tais processos. Não sem razão, Neil Gaiman minimiza a participação de personagens míticos ou fictícios que tenham relação com aspectos solares – em uma de suas únicas menções a tais representações, relata que o deus solar egípcio Rá, um ser pouco amistoso, usa como máscara o próprio Sol (Sandman #20, p. 23) e, em outra, apresenta Sonho negando ser Apolo, pois não é “nenhum deus solar” (Sandman #30, p. 19). Personagens como Loki, o astuto deus nórdico das muitas formas e das trapaças, e o Puck, um ser das fadas, travesso e falante, que Shakespeare utiliza em Sonho de Uma Noite de Verão, têm maior participação, apontando, ao menos, certa preferência do autor. Com aparências, nomes e ações que diferem umas das outras, as três mulheres, que são mais de três, apesar de “andarem” em trio, podem, contudo, ser totalizadas e identificadas com uma espécie de aspecto único que assume diferentes formas, que seriam menos valiosas para a experiência do que a essência fixa. Para tal procedimento, contudo, a razão do leitor deve ser instrumentalizada para a busca do princípio de identidade, tendo em vista que a obra não é produzida somente pelo autor, mas pelos processos comunicativos, sociais e históricos. São formas que utilizamos para organizar e produzir conhecimento sobre o mundo, participando em sua construção.

Vê-se aí a grande ligação entre os sistemas digitais (...) e as dicotomias que dividem o mundo em identidades e não-identidades. Instaura-se, então, o aprisionamento da mente nos duplos vínculos, oposicionalmente binários, que obrigam sempre à 236

escolha entre o 1 e o 2, pai ou filho, alto ou baixo, erudito e popular, etc., que são ordens diversas em que a identidade ou a não-identidade se manifestam. (PINHEIRO, 1995, p. 22)

O Sonho de vestes negras que morreu e o Sonho de vestes brancas que surgiu são o mesmo Sonho, no fundo? Ou aparentam ser o mesmo, mas são de fato completamente diferentes? Provavelmente, algo anterior a tais afirmações assertivas:

Tudo é muito novo pra mim, Matthew. Este lugar. Este mundo. Eu existi desde o início dos tempos. Esta é a verdade. Sou mais velho do que mundos, sóis e deuses. Mas amanhã encontrarei meus irmãos e irmãs pela primeira vez. E estou com medo. (Sandman #71, p. 9)

Eles não são o mesmo e não são opostos. Estão “aquém da identidade e da oposição”81, o que abre espaços para a criação, já que a organização do personagem não tem de ser inédita, do ponto de vista do Sonho que acompanhamos até sua morte, e nem subordinada diretamente ao ente falecido. Isto torna Sonho um personagem aberto ao aproveitamento de diversos elementos, através de traduções e incorporações, sem negar ou afirmar o antigo ou o novo personagem. Inscrito, a princípio, na série das histórias de super-heróis, tais personagens, símbolos de um heroísmo ilimitado, não aparecem de forma contundente na obra, como também não são negados em favor de uma utilização pretensiosa de elementos “altos”, como poderiam ser considerados certos fatos históricos, temas mitológicos ou referências literárias. Quando aparecem, sofrem transformações tradutórias que não destroem suas trajetórias como vilões ou heróis, mas também não os resguardam de interagir com mitos, ironias e universos mais facetados, o que, consequentemente, desloca os ideários de justiça, bem, mal, e outras constantes dos universos heroicos/vis. O Doutor Destino, cujo nome verdadeiro é John Dee, é um vilão do Universo DC, criado em 1961, que pode manipular os sonhos, tornando-os reais ou prendendo as pessoas em mundos oníricos. Neil Gaiman utilizou esse personagem ao atribuir a ele a posse da pedra dos sonhos, o rubi de Sonho, de onde provinha o seu poder. Antes da criação de Sandman, John Dee já fazia tudo isso. Já tinha uma pedra que lhe fora dada por sua mãe, Ethel, que teria pertencido ao Sandman e que podia ajudá-lo a manipular os sonhos e as mentes dos adormecidos. Por ocasião do surgimento da série Sandman, John Dee estava preso num local para criminosos loucos chamado Asilo Arkhan, após ter sido derrotado pelos heróis do

81 Referência ao título do livro de Amálio Pinheiro, Aquém da identidade e da oposição: formas na cultura mestiça. Piracicaba: Unimep, 1994. 237

Universo DC da famosa Liga da Justiça, que também lhe tomaram a pedra dos sonhos. Passava seus dias preso, delirando com outros criminosos famosos, como o Curinga, o Espantalho, etc., e tinha o corpo deformado, com o rosto na forma de uma caveira (Figuras 79 e 80). A partir destas informações, John Dee foi tratado menos como um vilão e mais como um psicótico cuja mente foi ainda mais arruinada e deturpada pelo poder do Rubi dos Sonhos. Enquanto Sonho procura por sua pedra, Dee foge do hospício e, nu, com o rosto deformado, rende uma mulher e a faz dirigir até onde o rubi está guardado. No carro, os dois conversam, após as ameaças de praxe. Ela lhe oferece um casaco, ele agradece a gentileza e fala da origem de seu nome, conta que foi médico, que foi sua mãe quem o batizou; ela lhe oferece sanduíches, então conta ser enfermeira, pergunta se ele tem AIDS, mas ele não sabe do que se trata e ela se surpreende, perguntando por onde ele andou nos últimos cinco anos; conversam sobre a Liga da Justiça, que passou a ser internacional, para admiração de Dee, que conta ser cientista e um filósofo hermético, descrevendo então as complexas operações que realizou na pedra. Chegam ao seu destino e se despedem com carinho. E, então, ele atira nela, após a confirmação de que seu marido não faz parte da máfia. Temos, então, um Senhor Destino que não é mais um supervilão. Não é mais exatamente o Senhor Destino. Agora ele é Dr. Dee, um louco com a pedra dos sonhos sob seu controle. Por sentir que “alguém” virá atrás dele, entra numa lanchonete 24 horas e aguarda, mantendo todos presos lá dentro e espalhando pesadelos por toda a humanidade. Mas são pesadelos diferentes – se antes os pesadelos quase derrotavam ou prendiam os heróis, agora as pessoas são levadas a grandes atrocidades: assassinatos, agressões e mutilações. Na lanchonete, ele manipula a mente dos presentes, criando passatempos em que as pessoas se agridem, contam segredos terríveis e realizam seus sonhos mais primitivos. É uma história de terror bastante forte, provavelmente a mais intensa de toda a série. Ao contrário do que poderia ser esperado nas tradicionais histórias de super-heróis estadunidenses, a volta do Doutor Destino não é meramente o retorno de um vilão, renovado por novos poderes, desejo de vingança ou uma nova roupa e um plano-mestre, com modificações em seu passado em nome de um presente absoluto. Ele tem um rosto mais sombrio, não usa qualquer máscara ou uniforme, nem capa ou capuz, não tem seus equipamentos ou mesmo a genialidade maléfica dos grandes criminosos. Psicótico, cruel, inocente e vítima, ao ver que perdeu o poder sobre a pedra e que Sonho o venceu, fica desconcertado e diz que quer descansar. Sonho observa que é difícil imaginar o tamanho dos danos causados pela pedra à mente de Dee. 238

Figura 79

Acima, o Doutor Destino do universo dos super-heróis da DC em sua concepção tradicional.

Figura 80 Doutor Destino em Sandman: mais sombrio, perturbado e, ao mesmo tempo, inocente. 239

O Doutor Destino não parece ser mais um supervilão. Os símbolos se foram, assim como seu título de vilania, levando junto tais elementos centrais. A crueldade sem motivos, gratuita, é acompanhada de carência, solidão e delírios. John Dee pode ser uma ameaça, mas foi Sonho quem fez a pedra. Quem criou tal armadinha foi ele próprio. Dee, de certo modo, também é uma vítima do poder que nem mesmo Sonho compreendia antes de a pedra ser destruída. Outro exemplo é a utilização dos personagens Hector Hall, Lyta Hall, Brute e Glob. Houve um personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby, em 1974, chamado Sandman, de uniforme e capa, que teve apenas seis edições. Tratava-se de um super-herói auxiliado por dois pesadelos, Brute e Glob, que, utilizando tecnologias, entrava na “Corrente dos Sonhos”, ou “Fluxo dos Sonhos”, e defendia as crianças contra terríveis pesadelos que as perseguiam durante o sono. Seu pior inimigo era o Mago do Pesadelo (Figura 81). Em 1988, um gibi recuperou o herói. Segundo a história, o Sandman de 1974 não aguentou a solidão da Dimensão dos Sonhos, ficou louco e cometeu suicídio. Hector Hall assumiu o papel de Sandman, com o mesmo uniforme e os mesmos assistentes, Brute e Glob. Hector na verdade havia morrido, mas enganou o Destino e foi parar nos Sonhos. Sua esposa, Lyta Hall, conhecida como a super-heroína Fúria, foi visitada várias vezes pelo marido em sonhos, até que Hector descobre que ela espera um filho seu e a transporta para a Dimensão dos Sonhos. Em 1990, no arco A Casa de Bonecas, Gaiman se apropria de todos esses personagens, traduzindo-os para a narrativa de Sonho, sem retirá-los do mundo super-heroico. Não houve necessidade de destruir esse contexto. O recurso foi introduzir elementos, a princípio, de paródia, como mecanismo de reelaboração dos sentidos e dos significados dos textos anteriores. Brute e Glob, em Gaiman, são pesadelos que fugiram do Sonhar durante a ausência de setenta anos de Sonho. Esconderam-se na mente de um menino que sofre abusos e é mantido preso num porão. Para criar um mundo de sonhos só deles, bloquearam o acesso da criança ao Sonhar e trouxeram um homem para ser o Sandman. O primeiro se matou – Stanford, o Sandman criado em 1974. Então, eles resolveram pegar um morto, Hector Hall, para ver se, desencarnado, ele aguentava o “trabalho”. A Dimensão dos Sonhos passou a ser o interior da mente de um garoto que, por sofrer violências, se refugiava em sua própria imaginação, criando barreiras “naturais”, onde Hector, Brute, Glob e Lyta Hall encenavam lutas do Sandman e de sua esposa contra diversos monstros e o menino era, além de protegido, um assistente de valor para aventuras fantásticas. Gaiman coloca nessas passagens elementos infantis que contrastam com a vida miserável vivida pelo garoto, o que acentua a crueldade cometida pelos pesadelos (Figura 82). 240

Figura 81

O Sandman como super-herói tradicional, nos anos de 1970, à direita, e nos anos de 1980, à esquerda. As mesmas cores e nomes foram usados por Neil Gaiman para retratar um fantasma vaidoso que se acreditava um herói com uma grande missão, mas que em realidade era apenas um fantoche dos pesadelos. 241

Figura 82

O super-herói clássico Sandman na série de Sonho. Gaiman não subestima (como todo bom criador de horror) as perturbadoras crueldades contidas nos universos infantis. 242

Sonho acaba por intervir, retirando todos da mente do rapaz. Após punir os pesadelos, envia o espírito de Hector para a morte. Sua esposa, Lyta, fica enfurecida com Sonho, que mal lhe dá atenção, apenas avisando que o bebê que ela espera lhe pertence, pois foi gestado nos sonhos. Gaiman ainda usará Lyta Hall, que como super-heroína se chama “Fúria” e está ligada às figuras mitológicas das três mulheres, como a desencadeadora da vingança das Erineas contra Sonho. Gaiman modifica alguns dos elementos das histórias anteriores do personagem Sandman, transformando o super-herói em um peão submetido àqueles que considerava seus assistentes – na verdade pesadelos – sem eliminar sua história, apenas reconfigurando algumas de suas facetas. Seu uniforme amarelo e vermelho muito vivos, em contraste com o clima sombrio dos sonhos e do Sandman, do qual ele é paródia, recordam as vestes espalhafatosas dos palhaços e dos bobos da corte. E Lyta se torna uma mulher alienada, passiva frente a um marido maravilhado pelas aventuras infantis vividas ao lado dos companheiros, cheio de si por sua suposta importância, nobreza e relevância – provavelmente, da mesma forma que Sonho dos Perpétuos (Figura 83). Finalmente, devemos notar os aspectos gráficos, que sugerem formas menos fixas e tradicionais de elaboração e que variam de acordo com as histórias, os temas e os personagens envolvidos no quadros. Mike Dringenberg desenhou alguns números de Sandman. No #13, fez uso de imagens trabalhadas em tons monocromáticos, em mosaico, em meio às cores mais vivas dos quadros, para contar a história dos Colecionadores, serial killers que realizam uma convenção num hotel do meio-oeste americano para debater ideias, métodos e relações de sua atividade com outros campos, como a religião e a política. Elabora, dessa forma, representações realistas ambíguas, relacionando quadros com traços que destacam a anatomia ao tom vermelho pastel, com variações de intensidade e sombras, procurando representar memória, pensamento e fantasias dos assassinos, frente a conversas corriqueiras que acontecem nos corredores do congresso (Figuras 84 e 85). A representação dos reinos habitados pelos Perpétuos contribui para desenvolver certas características dos personagens. O reino de Destino, repleto de jardins labirínticos e móveis, possui também características mais ortogonais, com cores mais sóbrias. Certa neblina suave, que nunca deixa de existir em seu reino, encobre parcialmente as vastidões das planícies desérticas, com construções que indicam solidez. Mas, em um ponto ou outro, vemos pequenas brumas e algumas curvas que quebram os traçados angulados, retirando um 243

pouco da exatidão constantemente proclamada por Destino. Guiado pelo livro, busca, de fato, ser o que está escrito. Porém, aspectos das artes gráficas e dos textos relativizam o discurso supostamente onisciente do personagem, demonstrando que sua rigidez pode esconder dúvidas sobre seus próprios limites, sobre o quanto conhece os labirintos de seus jardins (Figuras 86 e 87).

No entanto, eu vejo as coisas como são, foram e serão. E ele (Sonho) foi o senhor das coisas que não são, não foram e jamais serão. (Sandman #72, p. 05)

Figura 83

Sonho desfaz a fantasia heroica, após se divertir ao ouvir o discurso patético e vaidoso do super-herói Sandman que, ironicamente, se parece muito com o seu próprio – ao menos na presunção. 244

Figura 84

A história dos colecionadores aparece no arco Casa de Bonecas. Os serial killers fazem uma conferência. Em meio às histórias, memórias de seus assassinatos e frustrações. 245

Figura 85

Cena de assassinato em meio aos painéis com diálogos sobre religião e estilos de matança. 246

Figura 86

Destino, no Prelúdio de Estação das Brumas. Sua dimensão é como o pensamento que envolve a ideia de “destino” – ortogonal, precisa, escrita num livro. Porém, há brumas em todo canto e aparentes lacunas no livro, que o mais velho dos Perpétuos não percebe devido à cegueira. Ou percebe? 247

Figura 87

Sonho observa os jardins de Destino em roupas clássicas, no mais rígido dos reinos perpétuos. O sol lusco-fusco ao longe, as brumas abaixo, entre jardins ortogonais atravessados por diagonais curvadas. O entardecer – a zona do crepúsculo, na qual a realidade se altera. 248

O reino de Delírio, a mais jovem dos Perpétuos, é bastante diverso do reino de Destino. Se Destino afirma saber todas as coisas, em balões com letras clássicas, pois tudo está escrito em seu livro, ao qual está aprisionado desde sempre, Delírio comenta que ela é um entrelugar, semelhante ao reino do Sonhar, que algumas vezes assume o caráter de um lugar intermediário entre o mundo dos vivos, desperto, e o mundo dos mortos. Não é incomum que Sonho convide pessoas mortas a viver em seu reino, sob a forma de corvos ou auxiliares diversos, para adiarem um pouco a ida para “as terras sem sol” (Figuras 88 e 89). Delírio, que possui olhos de cores diferentes e tem a fala representada por fontes que mudam de tamanho dentro de balões de cores variantes, vive num lugar que não é propriamente um lugar, mas uma “sensação” – um emaranhado de cores espalhadas pela página, com imagens fragmentadas que valorizam o espaço de interrupção entre elas. A única indicação de centro, em seu reino, é um relógio de sol que, segundo ela, parou de funcionar há muito tempo. Ele apresenta a inscrição “Tempus Frangit”, algo como “o tempo se quebra” em latim, um trocadilho com “Tempus fugit”, que poderíamos traduzir como “o tempo voa”. Podemos notar que há uma preocupação de que as linguagens gráficas contribuam para a construção dos significados, utilizando, para isso, técnicas diversas, que são colocadas em relação e, com isso, geram efeitos que, isoladamente, não seriam possíveis de serem produzidos de maneira semelhante. O aproveitamento do recorte, do traço realista, das cores, da elaboração de fontes como recurso gráfico para conferir maior efeito sobre as expressões “orais” dos personagens, é bastante usado nas narrativas. Todas as capas de Sandman foram feitas pelo artista gráfico Davi McKean. Merecem um estudo à parte e apenas as citaremos para salientar que não somente os roteiros de Gaiman construíram Sandman. Frente à tradicional predominância que costuma ser dada a um aspecto ou outro de determinada obra, que muitas vezes acaba se sobrepondo e obstruindo as demais, devemos chamar a atenção para a construção do gibi por procedimentos de relação. McKean combina diversos elementos gerando efeitos bastante interessantes. O excesso de fragmentos – letras estilizadas, colagens, arames, madeira, negativos fotográficos, técnicas de desenho, etc. – conferem às capas aspectos incertos e cambiantes – oníricos – com sobreposições e combinações estéticas que focalizam o efeito e não apenas o prenúncio do que poderá ser encontrado nas páginas edição em questão (Figuras 90 e 91). 249

Figura 88

Sonho chega à dimensão de Delírio. Recortes, cores, mosaicos, palavras soltas, fotos, objetos, brinquedos, etc., formam um mosaico típico da mais jovem dos Perpétuos.

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Figura 89

No centro do reino de Delírio, um relógio de sol quebrado com a inscrição, em latim, “o tempo é frágil”. 251

Figura 90

Capa de McKean para um dos títulos de Casa de Bonecas: uso de recortes, fotos, sobreposições e fragmentos. Destaque para os olhos dentados no rosto sorridente.

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Figura 91

Essa capa de Convergências, de Dave McKean, utiliza a colagem, a combinação de objetos, fotos e desenhos para formar uma atmosfera de sonho e fantasia. Acima, uma boneca da irmã de Sonho, Morte.

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É provável que um dos aspectos mais interessantes de Sandman tenha sido a variação das técnicas gráficas usadas nas revistas. A proliferação delas e das formas de representação, mais ou menos distantes dos gibis de super-heróis, que costumam valorizar certo realismo, fazem deslizar algumas separações mais tradicionais entre artes e mídia massiva, aproximando as artes plásticas do suporte quadrinesco. Diferentes artistas contribuíram para a criação dos personagens, alterando a percepção das narrativas, ao mesmo tempo em que procuravam formas de contribuir com as ideias do escritor da série, cujos roteiros para as histórias eram bastante detalhados. Nesse sentido, interessa menos quem pode ter tido o controle criativo de Sandman – atribuído tradicionalmente à Neil Gaiman, e mais as contribuições e as combinações que, de forma contínua, reelaboraram significados e trajetos da história. Elementos considerados mínimos de certo ponto de vista tradicional, como a capa do gibi, mais valorizada por seu apelo comercial, tal qual uma embalagem, tem grande efeito sobre a constituição da obra, se a sintaxe dos conjuntos constituintes é elaborada de forma adequada. No caso da arte de McKean, as capas se tornaram tão (ou mais) complexas que a história, pois nelas já encontramos diversos elementos que serão valorizados em Sandman – a tradução de diferentes textos para a composição quadrinesca, a ênfase à apropriação de fragmentos, o jogo com as instabilidades e certo elogio à diversidade. As capas de McKean devem ser lidas a partir das relações entre os pedaços que as constituem, sendo o centro aspecto cambiante, pelo uso da técnica em função da liberação do olhar.

4.4 As Fronteiras do Sonhar

Segundo Lotman, todos os textos culturais, as culturas e, mais especificamente, os ambientes de processos semióticos em que a cultura está imersa – as semiosferas – possuem limites, regras, fronteiras. A ideia de fronteira, contudo, se refere mais a um ponto de contato, trocas e tradução entre sistemas sígnicos distintos do que exatamente a um local de separação e corte. A fronteira é o local por excelência dos mecanismos tradutórios, porque somente por meio desse movimento de reelaboração dos códigos externos é que se tornam possíveis o aproveitamento e a mudança dos textos culturais “internos”, a partir da relação com os textos de outras esferas, externas. 254

Já discorremos anteriormente sobre a capacidade tradutória das periferias, tendo em vista que a distância dos centros de poder autodescritivos, isto é, que possuem princípios de identidade mais rígidos e fechados, propicia as trocas e mudanças culturais, por se tratar de sistemas mais maleáveis e abertos. De certa forma, as tensões decorrentes entre os elementos rígidos de centro e os elementos maleáveis de regiões periféricas são inevitáveis em determinadas culturas. As opções de como tratar tais instabilidades vão desde seu escamoteamento, uma forma de apagar a visibilidade das problemáticas presentes; uma atitude tolerante para com as diferenças, que vão provocando mudanças em ritmo lento em tal sociedade, sendo “controladas”, na medida do possível; posturas acolhedoras em relação à diferença, tornando o tráfego tradutório mais dinâmico, chegando mesmo à relativização do centro e da periferia ao suavizar tais espaços ao ponto em que as regiões não são mais distinguíveis claramente – o central e o periférico, o interno e o externo, o fora e o dentro perdem a força de categorias fixas, implodindo tais conceitos e realizando novas formas de organizações de informação, conhecimento e, consequentemente, visão de realidade. Em Sandman #39, a história se chama Regiões Brandas. O ano é 1273. Marco Polo, então com 19 anos, está perdido no deserto de Lop, durante viagem com o pai e o tio às terras de Kublai Khan, neto de Gengis Khan. Viajam pela Rota da Seda, um emaranhado de caminhos terrestres e marítimos que conectavam diversas regiões, desde o Extremo Oriente até a Europa, passando pelo Egito, a Índia, a Pérsia, etc. Marco Polo procura seus parentes e sua caravana, porém nada encontra. O deserto muda e nunca é o mesmo. As areias assumem muitas formas – um labirinto sem paredes que o separa dos outros viajantes. Ele ouve vozes que o confunde: “uma vez construí uma ferrovia, agora está pronta, irmão, pode...” ou ainda “lembre-se de que a cidade é um lugar engraçado. Algo como um circo ou esgoto”. Finalmente, ouve alguém chamar seu nome. Acha que é seu pai. Mas trata-se de um desconhecido que também não sabe onde está. Diz que deve estar sonhando, pois se encontrava numa cela em Gênova. Ao saber que está no deserto de Lop, declama um texto que, segundo ele, é uma narrativa de viagem de seu colega de cela, que ele anota em latim enquanto o outro as narra. Trata-se de Rustichello da Pisa, que vinte anos mais tarde dividiria uma cela com Marco Polo, também preso. Evidentemente, o último ainda não o conhece, mas Rustichello vê que deve tratar-se de um sonho com seu companheiro de cela. Acabam por encontrar, sentado e tomando vinho confortavelmente, um homem vestindo um paletó do início do século XX – 255

um sonho que diz estar ali para pensar e relaxar. Após alguma conversa, tal cavalheiro explica o que se passa, esclarecendo as características do lugar onde estão:

Vocês estão em uma das regiões brandas. Havia mais delas, nos velhos tempos. Quanto eu era apenas uma jovem vizinhança, havia regiões brandas por toda parte. Bem, não toda parte, mas eram bem mais vistas do que agora. Mesmo no seu tempo, elas eram mais comuns do que hoje. Às vezes penso que a perda delas é culpa sua. Sua, de Hwen T’Sang, de Ibn Battuta... De todos vocês. Os exploradores, e os que vieram através de vocês, congelaram o mundo em padrões rígidos. (...) Nas regiões brandas, a fronteira entre sonhos e realidade é erodida, ou ainda não se formou... (...) Aqui, nas regiões brandas, onde a geografia do sonho penetra no real. (...) Não restam muitas agora... Esta região ainda é branda. Por isso estamos todos aqui juntos. (...) Há outra na Austrália Central, algumas ilhas no pacífico, um campo na Irlanda, uma montanha ocasional no Arizona. (Sandman #39, p. 16-17)

Nessas regiões brandas, diversos tempos convergem e se distanciam, dimensões se encontram, caminhos são criados, espaços se dobram, pessoas, sonhos e espíritos se cruzam. Durante essa narrativa, vemos Marco Polo, seu futuro companheiro de cela, Rustichello, o sonho-lugar Fiddler’s Green e até mesmo Sonho, que encontra Polo ali, de passagem, ao voltar para o Sonhar após deixar seu cativeiro. A região branda – essa fronteira suave entre os tempos, as dimensões e os lugares – não fica num local exatamente desolado, apesar de ser um deserto. Trata-se de uma rota comercial que interligou a maior parte das civilizações durante séculos, a Rota da Seda. Isso não é, evidentemente, gratuito. Os locais de comércio, desde as rotas, os portos, os mercados, etc., sempre foram pontos de “fronteira” – lugares de novidades, de trocas culturais, tecnológicas, materiais, de tradições, histórias, etc. Pontos para onde convergiam, nos hábitos cotidianos do comércio, da troca, das viagens, da conversa e da barganha, os elementos extraordinários, como histórias assombrosas, religiões e tradições exógenas, povos de diversas cores, cabelos, formas, adereços e bugigangas, objetos prodigiosos nunca vistos em determinada região ou por determinada gente. Fronteiras, rotas comerciais, mercados, são, de fato, regiões que tendem a ser mais brandas, menos rígidas e organizadas de forma pouco centralizada. Quando descrevemos a Rota da Seda como um “emaranhado”, não é mera figura de linguagem: tratava-se realmente de uma grande diversidade de rotas que se encontravam em diversos pontos, com centros distribuídos por todas as regiões. Como Fiddler’s Green diz a Marco Polo, as regiões brandas tendem a desaparecer com padrões rígidos. Podemos traçar um paralelo com a ideia de Lotman de autodescrição a partir do centro, que tende a diminuir as trocas e a variabilidade das culturas. Regiões de 256

troca, “suaves” e “brandas”, de encontro e tradução, requerem certa distância do centro, centros fracos, ou bastante móveis e relativos, ou, ainda, sistemas em que as “regiões” das culturas se encontram em tal jogo relacional que termos como interno/externo, centro/periferia, perdem a capacidade de dar conta da configuração da realidade, ou seja, da organização do conhecimento. Vemos outra região branda em Sandman #74, na história que narra a viagem do exilado Mestre Li, antigo conselheiro do Imperador da China, castigado por seu filho ter participado de uma conspiração contra o suserano. Mestre Li, no deserto, rumo ao exílio, encontra Sonho numa tenda; conversam, separam-se. Durante sua andança pelas regiões brandas, encontra elementos de outros tempos e culturas: um boneco de parque de diversões vestido de marinheiro numa caixa de vidro; uma máquina de pescaria mecânica, da qual tira a miniatura de uma ponte para atravessar uma profunda fenda que encontra no caminho (Figuras 92 e 93). As regiões brandas não se referem apenas à narrativa. A própria arte da história de mestre Li é uma região branda, com o traço e as fontes que fazem referências à estética chinesa, com seus jogos de luz e sombras, baseados no nanquim, fazendo uso de objetos “modernos”, como os aparelhos de parque de diversão que já citamos. A ideia de regiões suaves, maleáveis, móveis, flutuantes, que fazem cruzar pessoas, tempos, lugares, dimensões, acentuam a importância dos lugares de fronteira, que marcam limites como também marcam pontos de encontro e tradução. Anteriormente, em Sandman #30, há referência ao papel das fronteiras de uma forma diversa: Sonho conversa com o imperador romano Octavius Augustus, a pedido de Terminus, deus dos limites. Na história, Augustus sofreu abusos de seu pai adotivo, Julio César, e secretamente odeia não somente o imperador assassinado, mas a própria Roma, que considera obra dele. Terminus pede a Sonho que aconselhe Augustus sobre como acabar com o Império. Para que os outros deuses de Roma não interfiram, Sonho diz que Augustus deve vestir-se de mendigo e sair pelas ruas da cidade uma vez por ano, assim estará seguro para planejar seu intento longe das vistas das divindades que zelam pela expansão do Império. A definição de limites para o Império, o fim das expansões e das conquistas, é o legado de Augustos, seu testamento. Ele faz a vontade do deus Terminus, porque é a sua própria vontade. Ele encontrou uma forma de acabar com Roma. Tais elementos são indicações sutis sobre como as fronteiras podem agir: como lugares de passagem ou de interrupção, como pontos de encontro ou de isolamento. Como determinação ou possibilidade. 257

Figura 92

Em viagem para o exílio, mestre Li entra em uma região branda e vê objetos que não são de seu tempo. A técnica de nanquim aproxima as duas eras.

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Figura 93

Após “pescar” uma ponte de brinquedo, Mestre Li a utiliza para atravessar um precipício no deserto. 259

Já dissemos que as fronteiras não precisam necessariamente estar distantes do centro. Algumas formas de relação podem subverter os tradicionais conceitos binários de centro/periferia, criando fluxos que acabam por diluir distâncias e modificar os conceitos, configurando proximidades entre o próprio e o alheio, o interno e o externo, o central e o periférico que sejam tão extremas que propiciem grande aceleração na elaboração de novos textos e significados. Em Sandman #50 é contada a história da Bagdá das Mil e Uma Noites. Assim ela é descrita:

Saiba então que este é um conto de Baghdad, a Cidade Celestial, a jóia das Arábias, e que aconteceu no tempo de Haroun Al Raschid, Rei dos Reis, Príncipe dos Fiéis. Havia sábios, filósofos, alquimistas, geógrafos, geomantes, matemáticos, astrônomos, tradutores, arquivistas, juristas, gramáticos, cádis e escribas. Em sua corte estavam os mestres dos Hebreus, que eram os primeiros dos três povos dos livros e os maiores monges dos pálidos Cristãos (uma gente suja, que venerava o estrume seco a quem chamavam de Papa) e, como você deve imaginar, ele tinha os maiores eruditos do Alcorão, a palavra de Allah, conforme foi revelado ao Seu profeta Maomé, cento e oitenta anos antes. Assim, seu palácio era um lugar de Sabedoria. Em seu harém havia mulheres infiéis e fiéis, de peles alvas como a areia do deserto, amarronzadas como as montanhas vistas à noite, amarelas como a fumaça e negras como a obsidiana. Todas eram adeptas das artes do prazer. Também havia muitos meninos belíssimos, de faces ainda imberbes, com negros olhos libertinos e libidinosos, saborosos como o damasco colhido no orvalho. Assim, seu palácio era um lugar de Prazer. Havia magos e astrólogos que interpretavam a vontade de Allah a partir das danças de estrelas distantes; feiticeiros da China e da Mongólia com altos chapéus de pele e mangas cheias de segredos; ascetas beduínos, que conheciam os segredos dos anjos, dos djinns e dos homens. E havia poetas e músicos, homens de senso elevado e gosto apurado. E havia estranhos prodígios naquele lugar – homens com cabeças de animais, animais que falavam feito homens e maravilhas mecânicas que simulavam a vida, cantavam e se moviam quando ordenadas. Assim, seu palácio era um lugar de Maravilhas. (Sandman #50, p. 3-5)

Essa Bagdá, de forma semelhante à Bagdá que podemos conhecer ao lermos os livros das Mil e Uma Noites, tem suas maravilhas à vista dos homens, na convivência urbana, pelo grande fluxo de gente que ali se reúne nas ruas, nas casas, na corte, nos mercados, vindos de terras distantes, para participar de um verdadeiro encontro de objetos, ideias, pessoas, costumes, tradições, etc. É diferente, por exemplo, dos romances de cavalaria europeus, muitos escritos em épocas próximas à compilação das Mil e Uma Noites, aproximadamente do século XI ao XIII. Em tais histórias, são nas ermidas, na solidão, nos lugares muito distantes das cortes e dos palácios dos cavaleiros, que o extraordinário pode ser encontrado. A demanda do Graal, que representa a busca dos cavaleiros pelo cálice da última ceia, faz os cavaleiros vagarem pela 260

terra, num misto de aventura e purgação de seus pecados e, longe de casa e do cotidiano, acabam por vislumbrar maravilhas e horrores sem igual. Ainda que aventuras em lugares distantes e desconhecidos também estejam presentes nos contos de Sherazade, como nas histórias do marujo Simbad, notáveis jornadas se dão principalmente nos cenários urbanos, em casas, nos mercados, nas ruas ou no próprio castelo. Nessa mesma história, o califa chama Sonho. Ambos seguem para o mercado para tratar de certos assuntos. E escutam, em meio à multidão, os pregões dos comerciantes:

Comerciante #1 - Nobres senhores! Estariam interessados em bombons finos? Não saborearão outros iguais, pois eu, Hassan, o doceiro, os fiz com especiarias, mel variado e vinhos finos, a partir de uma receita divulgada a mim por um mercador que naufragou numa ilha habitada somente por pequenos homúnculos... Comerciante #2 - Excelsos senhores, não dêem ouvidos a ele! Ele é um ladrão, um mentiroso e, além do mais, mágico! Um mês atrás, me vendeu um asno que comeu feno da melhor qualidade, cereais e frutas verdes. Então, certo dia, este filho de uma cadela (que lhe venderia a cidade de Baghdad, a mãe de sua esposa e sua mão direita se o senhor lhe desse a oportunidade) veio à minha casa dizer que o asno era, na verdade, uma bela donzela enfeitiçada por sua irmã ciumenta, que era uma bruxa, e desejava comprá-la de volta. (Sandman #50, p. 26)

O extraordinário se encontra nas ruas, no falar das gentes, na proximidade de tantas culturas num mesmo espaço e tempo, com intenso fluxo de trocas. A impressão que temos dessa cidade é de um lugar de hospitalidade, com sábios de todas as fés, mágicos de vários povos, conhecimentos variados, da filosofia à mecânica. E tal diversidade está presente ali mesmo, formando uma trama marcada pelas relações entre os diversos elementos. Centro e periferia, nesse contexto, são regiões muito mais próximas, a ponto de podermos questionar se tais denominações são cabíveis ou mesmo necessárias.

4.5 A Amargura e o Riso

Se nos quadrinhos tradicionais de super-heróis podemos observar elementos do cotidiano colaborando na reelaboração de certas narrativas e códigos mais rígidos em novas e diferentes formas de composição, em Sandman observamos uma potencialização de tal operação. Por isso, as características de Sandman, ainda que nos pareça evidente o papel do 261

cotidiano na obra e nos quadrinhos em geral, parecem contar com outras formas de construção que atuam com maior amplitude e profundidade. A diversidade das histórias, das narrativas, das imagens e dos discursos não pode ser explicada completamente apenas pela temática evidente de movimento e mudança, presente de diversas maneiras ao longo dos gibis. A temática do absurdo em Sonho, com suas angústias e amarguras, que cremos estar relacionada às motivações do personagem por mudanças capazes, talvez, de projetá-lo para além de suas “funções” perpétuas e “banais” e de lhe possibilitar a construção de uma história que lhe seja própria e significativa, também não nos parece que, sozinha, poderia agir como forma de operação de todos os elementos da série, por mais que – e disso não temos dúvida – possa servir de fio condutor desde aquele momento, no primeiro arco, quando o rubi dos sonhos foi destruído, passando imediatamente para a história do passeio de Sonho e Morte pelas ruas de Nova York e se estendendo para as discussões sobre liberdade, possibilidades e escolhas que se desenrolam em diversos outros episódios. Outro mecanismo tradutório parece estar presente: uma forma operatória que permite a reelaboração dos diversos elementos (dos quadrinhos de super-heróis tradicionais, dos elementos clássicos e dos traços de horror e fantasia da série), que não exclui e, pelo contrário, potencializa os movimentos de mudança, a relativização das formas absolutas e de identidade, além de colaborar na discussão sobre as relações entre a liberdade, a morte e o absurdo das certezas instransponíveis e imutáveis, que demonstramos estarem presentes ao longo da série. Por fim, ma não menos importante, tal operatório não poderia ser estranho ao cotidiano. Deveria, antes, estar bastante ligado às dinâmicas do dia a dia da cultura, afinal, já constatamos tal presença na série na qual Sandman se inscreve, os quadrinhos de super- heróis, com a qual está em constante diálogo e da qual, usualmente, se torna texto paralelo. Verificando o movimento, de um lado, do acabamento e das polarizações dos personagens super-heroicos e, do outro, dos processos de deslocamento, abertura e inacabamento presentes nas histórias de Sonho, parece-nos evidente a presença de elementos carnavalizantes na obra, conforme estudados e desdobrados por Bakhtin em relação à sua presença nos gêneros literários. A complexidade do carnaval, “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que (...) apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos” (BAKHTIN, 2008, p. 139), vai muito além das possibilidades do presente estudo. Por isso, limitaremos nosso diálogo à carnavalização presente da literatura, conforme entendida pelo autor russo, e na presença de certos elementos em Sandman. 262

O carnaval, como festa em que se vive num tempo diferenciado, altera a ordem habitual da vida e do mundo, promovendo familiaridade com o que antes parecia distanciado por fronteiras intransponíveis. É o momento em que os governantes são insultados e enaltecidos como grandes sábios tolos; os santos proferem impropérios contra os deuses; a sensualidade perturba a elevação do espírito. Durante o carnaval, festa que se desenvolve, de diversas formas, ao longo de todo o Ocidente, tudo deixa de lado a “ridícula vaidade” de acreditar ser exatamente o que parece ser (de forma monológica e unívoca), rebaixando os absolutos à familiaridade entre os homens.

A ação carnavalesca principal é a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. Esse ritual se verifica em formas variadas em todos os festejos de tipo carnavalesco. Aparece nas formas mais apuradas: nas saturnais, no carnaval europeu e na festa dos bobos (nesta, em lugar do rei, escolhiam-se sacerdotes bufos, bispos ou o papa, dependendo da categoria da igreja); em forma menos apurada, aparece em todos os outros festejos desse tipo, incluindo-se os festins com a escolha de reis efêmeros e reis da festa. Na base da ação ritual de coroação e destronamento do rei reside o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. O carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova. Assim se pode expressar a idéia fundamental do carnaval. Contudo salientemos mais uma vez: aqui não se trata de uma idéia abstrata, mas de uma cosmovisão viva, expressa nas formas concreto-sensoriais vivenciáveis e representáveis de ação ritual. (BAKHTIN, 2008, p. 141-142)

Por suas formas fluidas e móveis, o carnaval tende a escapar ao tempo ritual de sua realização e “contaminar” diversos aspectos da vida, sendo uma forma de operar a mobilidade e a renovação, notadamente das formas artísticas e dos movimentos do cotidiano. Não se trata, é claro, de identificar as formas artísticas os rituais carnavalescos, mas sim de perceber a penetração de formas semelhantes e modificadas, traduzidas, que estejam relacionadas à cosmovisão carnavalesca. Bakhtin demonstra como, por meio das tradições e dos movimentos de gêneros literários, diferentes aspectos carnavalizantes estão presentes, em suas formas artísticas, em toda a poética de Dostoiévski, em tal intensidade que, no autor, conduziram à elaboração de formas radicalmente dialógicas de escritura e ao romance polifônico, do qual uma das características é a pluralidade de discursos e de ideias que guardam independência e autonomia, sem se confundir com a fala do autor e sem chegar à síntese dialética usual (BAKHTIN, 2008). Em Sandman, a carnavalização está presente de diversas formas. A imagem do destronamento simbólico provavelmente é a mais evidente: Sonho perdendo seu elmo ao ficar desconcertado frente à alteração completa da ordem infernal; o escritor de épicos destronado em “praça pública”, local por excelência da festa carnavalesca. Outras formas de 263

destronamento, mais sutis e reduzidas, também estão presentes, como nos momentos em que Sonho é confrontado por discursos que atestam suas atitudes ridículas ou injustas, que o “destronam” de sua vaidade e orgulho. Ao discutir a presença de elementos carnavalizantes da cosmovisão na literatura, sobretudo na obra de Dostoiévski, Bakhtin enumera uma variedade de formas de manifestação: a ênfase nas mudanças, o destronamento, o rebaixamento, a paródia, o riso (ainda que bastante reduzido, quase irônico), a familiaridade que aproxima e humaniza, o escândalo que subverte as regras sociais comuns, o sonho que revela novas possibilidades, os “bobos sábios” e os “bobos trágicos”, a ambiguidade, as imagens infernais e divinas satirizadas, a aproximação de oximoros (o ateu e o crente, a virtuosa e a prostituta), os excessos, a imagem do banquete e a sensualidade, etc. (BAKHTIN, 2008, p. 139-206). Ao mesmo tempo, esclarece que “quando as imagens do carnaval e o riso carnavalesco são transpostos para a literatura, em graus variados eles se transformam de acordo com as metas artístico-literárias específicas” (BAKHTIN, 2008, p. 189). Em Sandman, as figuras do destronamento e da mudança são bastante presentes; o caráter mutável de tudo é acentuado e ressaltado em diversos episódios, personagens e na própria forma de construir determinada unidade da obra. A seguir, procuraremos identificar, de forma breve, algumas imagens de caráter carnavalizante. Morte, irmã de Sonho, é uma mulher não somente atraente e simpática, como também bastante familiarizada e humanizada, a ponto de sempre falar sobre seu animal de estimação, um peixe dourado. Tal familiaridade e proximidade são, de certa forma, destronamentos que retiram a gravidade de certos elementos classicamente distantes e os aproximam dos campos de relação. Devemos chamar a atenção para o fato de que enquanto Sonho, Destino e todos os outros Perpétuos possuem balões de diálogos estilizados e com fontes próprias (Sonho com os balões negros e letras brancas, Destino com os caracteres em itálico), Morte é a única que apresenta balões comuns, como os da maior parte dos personagens humanos. A irmã/o irmão ambivalente de Sonho, Desejo, vive no Limiar (segundo Bakhtin, esse espaço limite/fronteira está presente na literatura carnavalizada – a confissão às portas da morte, a revelação na situação-limite) e tudo o que há no Limiar é uma gigante imagem de Desejo, onde o Perpétuo/a Perpétua vive. Vemos o personagem caminhar pelas aortas, pelos labirintos dos ouvidos, pelo coração, no cristalino dos olhos. Essa corporeidade, ou esse corpo amplificado e não orgânico, repartido, como se estivesse destroçado, dilacerado, também é típica da “anatomia carnavalesca” (BAKHTIN, 2008, p. 187). 264

Desespero, gêmea de Desejo, é uma figura fisicamente grotesca, excessiva, anã e até mesmo tumorosa, (Figura 59, painel 6), fazendo parte daquela tradição de corpos carnavalescos de corcundas, bufões, anões e gigantes. Em Estação das Brumas, temos muitas imagens carnavalescas. A história se inicia com Destino reunindo a família para conversar e iniciar algo, que ele mesmo desconhece, mas que se revelará com a ida de Sonho ao Inferno para libertar Nada. Nesse episódio, a cena do banquete durante a reunião familiar já remete à carnavalização do encontro, culminando na situação de “escândalo” entre Desejo e Sonho, que tira a ordem “normal” do evento, com o riso irônico de Desejo provocando Sonho e trazendo à tona seus fracassos amorosos enquanto comem frutas. Quando Sonho recebe os diversos seres para discutir com quem deve ficar o Inferno, o faz num banquete, no qual deuses ficam bêbados, demônios grotescos e deuses estúpidos flertam entre si e sonhadores vestindo pijamas servem vinho e outras iguarias. Thor, o deus do trovão nórdico, está presente. Ao invés da forma nobre e apolínea do super-herói do universo Marvel, ali ele é um deus brutamontes, com um corpo exageradamente musculoso e seu martelo encantado, Mjolnir, é um instrumento pequeno e desprezível. As aproximações e imagens carnavalescas se prolongam e chegamos ao final desse arco com os anjos observadores que não tocam o chão sendo feitos “reis” do Inferno por seu Criador, frustrando as chances dos outros visitantes que reclamavam para si o Inferno. No epílogo do arco, após apresentarem tristeza e revolta por seu destino, esses anjos, Remiel, aquele que está (sugestivamente) acima dos Elevados, e Duma, o anjo do silêncio, encontram uma “verdade profunda” no Inferno – a reabilitação dos pecadores, chegando mesmo a vislumbrar a perfeição do plano do criador, discursando, inclusive, sobre ele aos castigados, enquanto estes são torturados pelos demônios. Lúcifer, por sua vez, tendo abandonado o Inferno, aparece numa praia, tomando sol e, por fim, elogiando Deus com um sorriso sarcástico: “Os pores do sol são maravilhosos, seu velho bastardo. Satisfeito?” A inversão e a relativização de polos absolutos, tal qual acontece com os anjos e Lúcifer, é própria do carnaval, guardando relações estreitas com os destronamentos e coroações que alteram a ordem comum do mundo. Da mesma forma, as imagens infernais são muito desenvolvidas nos contextos carnavalizantes, assim como as conversas reveladoras com o diabo (BAKHTIN, 2008, p. 179), como aquela, já referida, que Sonho tem com Lúcifer quando vai ao Inferno resgatar Nada. Os personagens também se apresentam como “tolos sábios” diversas vezes, alternadamente e nunca de forma absoluta. Destino diz “verdades” chocantes à Sonho em 265

determinadas passagens, como no arco Vidas Breves, mas ao mesmo tempo é “destronado” por Delírio, que diz haver coisas que ela sabe que não estão escritas nem mesmo no pesado livro ao qual o irmão mais velho está acorrentado. Ou nos momentos em que Sonho profere seus julgamentos e discursos de forma pretensamente absoluta, repleto de justiça e razão, e acaba confuso e constrangido por um comentário simples e ambíguo que parece conter, mais do que meramente uma “verdade” melhor, outra “verdade”, que opera como elemento de rebaixamento do discurso absoluto proferido anteriormente. Mas não se trata, somente, da presença artística de imagens em que podemos encontrar formas carnavalizantes. Trata-se, antes, da própria cosmovisão do carnaval articulando diversos elementos da obra. Podemos observar seus contornos nas características que já discutimos, como o já citado “destronamento”, nas elaborações e traduções que são realizadas a partir dos quadrinhos de super-heróis, tornando ambíguos e mais complexos personagens que antes se apresentavam de forma monológica e absoluta. Podemos notar também a carnavalização nas regiões brandas ou zonas suaves – soft places, aqueles locais em que o tempo, o espaço e a realidade deixam de ser absolutos e os sonhos se encontram com os viajantes, para além das determinações dos mapas e das cartografias rígidas, familiarizando o que se encontra hierarquicamente distanciado. As presenças, importantes no enredo, de Puck – personagem de Sonho de Uma Noite de Verão, também conhecido como Robin Goodfellow (bom companheiro), baseado numa antiga figura da mitologia inglesa ligada à trapaça e à esperteza, uma personificação do “sábio tolo” – e do deus da trapaça nórdica Loki – complexa personificação da trapaça e da mudança de formas – também estão ligadas à cosmovisão carnavalesca. Seres não solares, relacionados aos elementos e à queda de intensidade da luz do dia, fazem parte dos contextos ambíguos e em transformação. Em Sandman, no arco Entes Queridos, tais seres têm papel relevante nos eventos que desencadeiam a morte de Sonho. Podemos citar, ainda, a deusa suméria do amor e da fertilidade, dançarina num clube periférico de striptease, Ishtar. Ela é procurada por Sonho e Delírio, que buscam informações sobre Destruição, o perpétuo da mudança. Ela foi amante do perpétuo pródigo no passado e a boate é seu “templo” de veneração na atualidade, onde ainda consegue ser “cultuada” após o colapso dos povos que lhe prestavam adoração. O próprio tema maior de Sandman dialoga diretamente com o núcleo da cosmovisão do carnaval: “a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. O carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova” (BAKHTIN, 2008, p. 142). 266

Dessa forma, fica mais evidente o caráter libertador da morte do Sonho “anterior” e do “renascimento” de um “novo” Sonho com outro ponto de vista, menos rígido e absoluto em suas posições. Renovado, e não restaurado, é outro Sonho, afinal, já se passou a era da musa Calliope e dos heróis épicos absolutos e monológicos. O Sonho que renasce da morte carnavalesca é mais humanizado e familiarizado.

Em termos gerais, as lendas carnavalescas diferem profundamente das lendas heróicas épicas: fazem o herói descer e aterrissar, familiarizam-no, aproximam-no e humanizam-no. (BAKHTIN, 2008, p. 151)

Alguns detalhes chamam a atenção no enredo que envolve, de forma mais direta, a morte de Sonho: a ação central das míticas “três mulheres” lunares; a participação de figuras lendárias da trapaça, da transformação e da mudança; e, de forma notável, a origem do novo Sonho a partir da transformação de Daniel, o filho de Lyta Hall que foi gestado nos sonhos. O “sucessor” de Sonho não é seu filho ou um personagem ligado a qualquer nobreza ou linhagem especial – ele simplesmente foi gestado nos sonhos. Devemos lembrar que nos movimentos de carnavalização dos gêneros literários o sonho, a ilusão e os delírios são temas importantes e sempre presentes, assim como nas imagens carnavalescas como um todo. Carnavalizada, a morte de Sonho é um movimento de morte/vida indissociável – nos termos de tal cosmovisão, o símbolo de mudança mais amplo e radical, uma retirada brusca do engessamento e da estabilidade de um estado certo e impossível. Em certa medida, absurda. O absurdo, ligado ao irredutível e à certeza, é um estranhamento profundo diante do “mundo comum” em que vivemos sem, aparentemente, levarmos em consideração aspectos fundamentais da condição humana, preponderantemente a morte e outras consciências sobre a existência. O absurdo é também a indiferença do mundo – do universo – frente ao olhar e às perguntas dos homens. A sensação de que o “mundo comum” não nos diz respeito, assim como não dizemos respeito algum a ele. Afinal, o cotidiano possui esta ambivalência: espaço das relações e dos movimentos que ao mesmo tempo se encontra repleto das rotinas, das regras sociais e das angústias da repetição diária. A visão carnavalesca, segundo Bakhtin, rompe com tal lógica – a lógica da vida comum que distancia os homens e o mundo. Subverte, através de formas próprias, as condições de ordem que são aparentemente indiferentes ao humano.

O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. 267

Não se contempla e, em termos rigorosos, não se representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l’envers”). (BAKHTIN, 2008, p. 140)

Dostoiévski, Kafka e Camus são considerados escritores do absurdo. Haveria uma linha de motivos e temas, assim como determinada forma de elaboração e visão, comuns a esses escritores. Bakhtin, ao estudar a poética de Dostoiévski, analisa o conto Bobók (1873), segundo ele, “menipéia quase na rigorosa acepção antiga do termo” (2008, p. 157)82. A narrativa é sobre as vozes que um escritor frustrado, que acabou dormindo sobre uma sepultura, ouve, vindas lá de baixo da terra, vozes dos mortos em diálogo, que continuam tendo uma “vida” no submundo da mesma forma que quando estavam vivos, referindo-se a seus cargos, posições sociais, privilégios e obrigações. Destaquemos a seguinte passagem citada por Bakhtin:

Basta, e estou certo de que todo o resto é absurdo. O principal são os dois ou três meses de vida e, no fim das contas, bobók. Sugiro que todos passemos esses dois meses da maneira mais agradável possível, e para tanto todos nos organizamos em outras bases. Senhores! Proponho que não nos envergonhemos de nada! (...) Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na Terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, porque o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história. Eu, sabei, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos! (DOSTOIÉVSKI apud BAKHTIN, 2008, 160-161)

O mais significativo, para nosso estudo, em tal conto satírico, é a relação, sem dúvida carnavalizada, entre a morte e a libertação das “cordas podres” de certa ordem da vida, de certas premissas. Comenta Bakhtin (2008, p. 160) que

Cria-se com isso uma situação excepcional: a última vida da consciência (dois – três meses até o sono completo), liberta de todas as condições, situações, obrigações e leis da vida comum é, por assim dizer, uma vida fora da vida. Como será aproveitada pelos “mortos contemporâneos”? A anácrise, que provoca a consciência dos mortos, manifesta-se com liberdade absoluta, não restrita a nada.

Passando ao largo de inúmeras questões e elementos que o conto de Dostoiévski e a leitura de Bakhtin nos trazem, interessa-nos ressaltar a relação literária/artística entre

82 Menipeia é um gênero sério-cômico da antiguidade clássica fortemente relacionado, segundo Bakhtin (2008, p. 121-139), ao folclore carnavalesco e ao diálogo socrático, entre inúmeras outras características importantes. O autor relaciona diversos elementos desse gênero à poética de Dostoiévski, sobretudo à prática e ao desenvolvimento do discurso dialógico. 268

liberdade e morte. Parece que é disso mesmo que se trata. Não podemos, evidentemente, crer em uma leitura que identificasse a morte literal com a obtenção de maior liberdade. Essa é apenas parte da construção artística, que também encontramos em Sandman. Trata-se, principalmente, da familiaridade com a morte e o mundo, que subverte sua certeza e inevitabilidade, sendo capaz de promover também a relativização das estruturas rígidas, das repetições monológicas, da prisão por “cordas podres”. A experiência do limiar, do limite, como ponto de crise e transição radical é própria do absurdo, em que se decide, diante do extremo silêncio do mundo e da ausência de significados, pelo salto para a morte, através do suicídio, ou participar alegremente das representações da vida. Ao mesmo tempo, o limiar tem uma aplicação muito semelhante nas formas carnavalizadas: “o alto, o baixo, a escada, o limiar, a sala de espera e o patamar assumem o significado de ponto em que se dão a crise, a mudança radical, a reviravolta do destino, onde se tomam as decisões, ultrapassa-se o limite proibido, renova-se ou morre-se” (BAKHTIN, 2008, p. 195-196. Grifos do autor). Nessa região fronteiriça é que vemos se passarem as histórias de Sandman. Sonho, em suas angústias e amarguras, parece próximo aos textos de Camus sobre o absurdo, com os tratamentos específicos que o escritor dá ao tema da liberdade e do sentido da existência humana diante da morte. Contudo, o contato de Sonho com o absurdo de sua própria existência, sem história e sentido, solitária, parece estar relacionado de forma mais profunda com a mudança e a alteração da ordem “comum” e distante do mundo em que vive, questões bastante evidentes e amplas na obra, assim como na cosmovisão carnavalesca exposta e discutida por Bakhtin. Lembremos, ainda, que Sonho é um personagem fora de época, um “tolo romântico”, um desajustado. A excentricidade e o desajuste são temas recorrentes nos movimentos carnavalescos (BAKHTIN, 2008, p. 140), além de serem uma condição indissociável para a apreensão (ou para a sensação) do absurdo do filósofo argelino83. Se a construção da obra nos parece carnavalizada, Sonho, como já dissemos, é um personagem próximo do absurdo e da angústia, respondendo à ausência de sentido e

83 “Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por que” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. (...) Um grau mais abaixo e surge a estranheza: perceber que o mundo é “denso”, entrever a que ponto uma pedra é estranha, irredutível para nós, com que intensidade a natureza, uma paisagem pode se negar a nós. (...) Os homens também segregam desumanidade. Em certas horas a lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, sua pantomima desprovida de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia” (CAMUS, 2009, p. 27-29). 269

possibilidades com a solidão, a amargura e um desejo de morte84. Por outro lado, a cosmovisão carnavalizada lida com tal situação de maneira profundamente diversa: com o riso e a paródia renovadores.

Todas as formas do riso ritual estavam relacionadas com a morte e o renascimento, com o ato de produzir, com os símbolos da força produtiva. O riso ritual reagia às crises na vida do sol (solstícios), às crises na vida da divindade, na vida do universo e do homem (riso fúnebre). Nele se fundiam a ridicularização e o júbilo. (...) O riso carnavalesco também está dirigido contra o supremo; para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem universal. O riso abrange os dois pólos da mudança, pertence ao processo propriamente dito de mudança, à própria crise. No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negação (a ridicularização) e a afirmação (o riso de júbilo). É um riso profundamente universal e assentado numa concepção do mundo. É essa a especificidade do riso carnavalesco ambivalente. (BAKHTIN, 2008, p. 144-145)

Esse riso, em suas formas mais contidas e irônicas, parece estar presente no pensamento do absurdo, olhando o mundo como um grande jogo de representações, nessa vida que se dá no limite entre a morte e a profunda liberdade. Entretanto, tal possível diálogo entre tais dimensões que se entrecruzam (a cosmovisão carnavalizada e determinadas filosofias e formas literárias) é muito complexo e extenso. Evidentemente, não há intenção de abordar tal discussão para além dos nossos interesses específicos neste estudo. Nosso objetivo foi apenas relacionar planos aparentemente muito distanciados para colaborar com a compreensão de determinados movimentos da obra. É plausível conceber a presença de certas formas e temáticas em Sandman a partir das formas carnavalizadas presentes no gênero romanesco, questão bastante abordada por Bakhtin, a partir de seus estudos da poética de Dostoiévski e, posteriormente, de seu vasto trabalho a respeito da carnavalização dos gêneros literários. Dessa forma, o conhecimento prévio ou independente da cosmovisão do carnaval não seria uma condição necessária para que as obras literárias apresentem ou não aspectos carnavalizados.

Mas o carnaval, suas formas e símbolos e antes de tudo a própria cosmovisão carnavalesca, séculos a fio se entranharam em muitos gêneros literários, fundiram-se com todas as particularidades destes, formaram-nos e se tornaram algo inseparável deles. É como se o carnaval se transformasse em literatura, precisamente numa poderosa linha determinada de sua evolução. Transpostas para a linguagem da literatura, as formas carnavalescas se converteram em poderosos meios de interpretação artística da vida, numa linguagem especial cujas palavras e forma são dotadas de uma força excepcional de generalização simbólica, ou seja, de generalização em profundidade. Muitos aspectos essenciais, ou melhor, muitas

84 O desejo pela morte é evidente, mas não mais que suas tentativas em mudar e representar um papel no mundo. Sonho apresenta essa ambiguidade até o final da história. Ele se encontra sempre entre a angústia de um esperado fim e o riso de uma possível renovação. 270

camadas da vida, sobretudo as profundas, podem ser encontradas, conscientizadas e expressas somente por meio dessa linguagem. Para dominar essa linguagem, ou seja, para iniciar-se na tradição do gênero carnavalesco na literatura, o escritor não precisa conhecer todos os elos e todas as ramificações dessa tradição. O gênero possui sua lógica orgânica, que em certo sentido pode ser entendida e criativamente dominada a partir de poucos protótipos ou até fragmentos de gênero. Mas a lógica do gênero não é uma lógica abstrata. Cada variedade nova, cada nova obra de um gênero sempre a generaliza de algum modo, contribui para o aperfeiçoamento da linguagem do gênero. Por isso é importante conhecer as possíveis fontes do gênero de um determinado autor, o clima do gênero literário em que se desenvolveu sua criação. (BAKHTIN, 2008, p. 181. Grifos do autor)

Neil Gaiman, autor de Sandman, como já citamos, foi um dos muitos autores contratados pelas editoras estadunidenses de quadrinhos de super-heróis na década de 1980. Pretendia-se renovar certas estruturas a partir de autores que não estivessem, necessariamente, envolvidos pelos quadrinhos em toda sua formação, ou seja, que não fossem os habituais leitores dos gibis de super-heróis os criadores dos mesmos. Até então, a indústria parecia apresentar tal tendência. Segundo alguns pesquisadores, a diferente formação literária de autores britânicos e sua menor exposição aos quadrinhos estadunidenses de super-heróis, com suas fórmulas e estruturas pouco variáveis, foram fatores importantes para que tais escritores desenvolvessem estilos diferenciados e inovadores (SANDERS, 2006, p. 3-22). Assim, é razoável pensarmos que os elementos carnavalizantes em Sandman podem ser provenientes dos gêneros literários, com os quais Gaiman pode ter entrado em contato através da leitura de diversos autores. Porém, somente um estudo pormenorizado poderia nos situar de maneira mais adequada na vasta paisagem dos percursos criativos. Sabemos, contudo, que Gaiman deve ter lido, por exemplo, Hoffmann (1776-1822), autor romântico alemão de fantasia e horror, que escreveu o famoso conto Der Sandmann (O Sandman), sobre o mesmo personagem folclórico ligado ao sono e aos sonhos que depois serviria como uma das bases para as elaborações do autor britânico. Na história de Hoffmann, o personagem apareceria à noite para roubar os olhos das crianças. Em Gaiman, há um pesadelo chamado Coríntio que tem dentes no lugar dos olhos e que come os olhos de suas vítimas. Bakhtin comenta que Dostoiévski “encontrou a combinação da carnavalização com uma idéia do tipo romântica (e não racionalista, como em Voltaire e Diderot) em Edgar Poe e sobretudo em Hoffmann” (BAKHTIN, 2008, p. 183). Trata-se, é claro, apenas de um exemplo para explorar possibilidades. Porque devemos levar em consideração que, além de estarem presentes em certos gêneros e tradições 271

literárias, elementos carnavalescos também se encontram, de formas muito variadas, na música, no teatro, nas festas, nas histórias de horror, na dança e em outros textos culturais e, inclusive, por sua natureza “concreto-sensorial”, nos próprios movimentos da cultura e do cotidiano. 272

273

CONCLUSÕES E DESLOCAMENTOS

Alguns arcos e histórias de Sandman são cansativos, com narrativas que se prolongam de forma acentuada. Dois dos últimos conjuntos de histórias – Vidas Breves e Entes Queridos, compostos, respectivamente, por 7 e 13 títulos – não apresentam o vigor narrativo e as articulações de Casa de Bonecas ou de Um Jogo de Você, caracterizando-se por texto em excesso e certa perda da complexidade na relação entre os elementos verbais e os figurativos. Porém, eles interessaram aos leitores, de forma geral, por conter os componentes que colaboram para contar a história de Sonho. Com efeito, quanto mais fragmentados e labirínticos os quadrinhos se revelaram, mais interesse causaram. A mais premiada das histórias não pertence a um arco; foi um título isolado – Sonho de Uma Noite de Verão. Nela, os espelhos que refletem a si mesmos e a falta de desenlace – afinal, falamos de uma história sobre uma apresentação teatral – são os elementos proeminentes da história. Sandman não foi uma série original ou inédita no vasto universo dos quadrinhos. A maior parte das histórias é composta de traduções, interpretações e apropriações de outros contos, romances e poemas; de fatos históricos, eventos do cotidiano, lendas e mitos, notícias sobre serial killers e crimes em lanchonetes; os personagens são figuras do passado, dos gibis ou de livros clássicos. Mesmo a arte de Sandman, por mais interessante que tenha se apresentado, não fundou novos paradigmas nem rompeu com antigas formas de se fazerem gibis. Sob alguns aspectos, muitos elementos de Sandman são bastante tradicionais. Cremos, contudo, que as características mais relevantes da obra não são suas rupturas ou seus movimentos de conservação, mas sua usual capacidade de traduzir/interpretar e combinar elementos de diferentes séries culturais por meio da elaboração de formas narrativas não lineares que privilegiam os fragmentos ao invés de um todo presumivelmente acabado. A inovação trazida é relativa à série cultural de quadrinhos de super-heróis estadunidense. Ela retira o foco do personagem protagonista heroico, que tem permanência épica e acabamento e apresenta movimento inexorável em direção à vitória; a história, presente em outras formas de expressão, segue a lógica do enfrentamento dos elementos de desordem rumo a um desfecho triunfalista e harmonioso, que, às vezes, é combinado a um presente sem processo, no qual o passado é arquivo, e não memória. Além disso, coloca em jogo personagens cuja ausência indica presença e vice-versa, relativizando o protagonismo e o anonimato ao inserir de forma 274

mais contundente o cotidiano no universo dos sonhos de Sandman. Labirintos de histórias paralelas, com ironias e sátiras de si mesmas, aparecem como estalos para desaparecer em seguida, desconstruindo identidades tradicionais – o herói, a mocinha, o bandido, o deus, o demônio – sem atribuir-lhes novos centros de organização. O jogo lúdico/dramático acentua a discussão sobre permanência e mudança, alegoria que a obra explora.

A visão da transitoriedade das coisas e a preocupação em salvá-las para a eternidade estão entre os temas mais fortes da alegoria. (BENJAMIN apud BRETAS, 2008, p. 94)

Tal discussão diz respeito às identidades e aos movimentos da cultura. Se as identidades buscam permanência e ordem onde parece existir, de fato, transição e desordem – as quais não se resolvem, mas adquirem determinadas formas provisórias por meio de atritos e relações de força –, os movimentos da cultura costumam ser negados, em parte, para dar suporte às ficções identitárias e às estabilidades de centro, que conferem, em alguma escala, manutenção de ideologias e de estruturas de poder. Para tal diminuição dos fluxos de informação dos textos culturais, dos signos, dos objetos, das significações e dos processos, a construção de estruturas que solapem a articulação de relações entre os acontecimentos e a memória, instância da qual participa a experiência, é providencial, colaborando para a visão de um mundo estagnado de essências estáveis e permanentes que podem, contudo, ser ameaçadas pela diferença. Nesse caso, justificam-se o afastamento, a vigilância e o isolamento. Na ausência da memória, os arquivos do passado que indicam o “outro” em nós mesmos são apagados, omitidos, desvinculados da história, que se torna um ideal a ser mantido, recuperado, restaurado. O alheio como contribuinte de nossa própria cultura e a mescla cultural como condição para o desenvolvimento de formas de expressão se tornam o absurdo e a ficção delirante. A identidade, instrumento e método de reforço de formas de poder e dominação/segregação, torna-se autorreferência e autodescrição. O princípio de identidade, fundador da ciência clássica/moderna, retoma a dicotomia platônica: o que é, é; o que não é, não é. Descartes rejeita a metamorfose e a mudança como elementos relevantes para o entendimento da realidade: se tudo pode ser reduzido ao essencial, no que se situa a verdade, as formas são meras ilusões destinadas a confundir o pensamento por meio dos excessos e dos equívocos dos sentidos. O que parece não mudar adquire, consequentemente, lugar elevado na organização do Universo. Variações e instabilidades, que fogem ao domínio do inteligível, devem ser excluídas, pois não trazem qualquer contribuição à iluminação do mundo pela razão e ao domínio da natureza pelo homem, assim como ao adestramento de si próprio. 275

A simplificação, por meio de uma álgebra pouco refletida, diminui os campos de significação e de possibilidades pela homogeneização dos elementos. O triunfo da técnica e do método, identificados como formas otimizadas do exercício científico desenvolvido pelo pensamento ocidental, procura a totalização pela medição e quantificação. O dígito substitui o análogo como forma de elaboração de conceitos e análises. A sensação de frescor de áreas da ciência como a física quântica, que em experimentos mentais e paradoxos procura investigar os fenômenos, não é mera curiosidade frente ao que parece diferente ou exótico; antes, é vislumbre de formas de relativização dos autoritarismos dos métodos cartesianos tradicionais. A ficção e o sonho libertam-se do terreno do delírio e do ilusório e se deslocam para a participação nas confabulações científicas sobre a matéria, as sociedades e o homem. Com base em tais reflexões, podemos dizer que, além de uma boa história, Sandman colabora, com suas imagens e significações, com a compreensão de movimentos que podem promover mudanças por meio do desvelamento da provisoriedade das identidades, dos deslocamentos dos textos culturais e das noções de separação, encontro e fronteira, além de propiciar a observação de formas de tradução/interpretação de mitos, fábulas e ritmos urbanos em uma forma relativamente nova de linguagem – os quadrinhos – que se situa no campo das leituras cotidianas, de rua, de forma semelhante ao jornal e às revistas, mídias encontradas nas bancas que se situam nas ruas, nas calçadas, ao lado das padarias e dos bares, em locais de passagem. As histórias de super-heróis, que também apresentam elementos cotidianos variados, têm estruturas normativas mais rígidas, personagens mais especializados, significações com menor ritmo de mudança e de deslocamentos. Os protagonistas, essenciais, são seres do espetáculo e de um presente absoluto, aparentemente acima das irregularidades das mesclas e da experiência, apesar de ter formas que remetem ao lúdico e à máscara. Entretanto, como podemos deixar de considerar as alterações e deslocamentos que observamos a partir da introdução do cotidiano nos gibis dos heróis? Para irmos ainda mais longe, outros estudos seriam necessários para compreendermos a relação dos gibis com os espaços cotidianos: como se modificam os sentidos e as centralidades que constroem novas formas de significação para os personagens e heróis por meio de leitores que circulam pela cidade nos metrôs, nos ônibus, nas escolas, nos espaços públicos, etc.? Isso também é aplicável às traduções, muitas vezes de grande qualidade, feitas para a televisão e para o cinema. O gibi, que se pega na mão e se dobra, que pode ser recortado e copiado, é totalmente diferente da tela de projeção, na qual os super-heróis criam novas formas de vida. Nossa intenção é dar continuidade à pesquisa observando os movimentos dos quadrinhos como 276

mídia em culturas com tendências ao alheio e à mobilidade, como as latino-americanas, assim como as apropriações e traduções pelas quais passam os personagens dos quadrinhos estadunidenses ao serem levados pelos proliferantes fluxos urbanos e cotidianos que os processam e os reconstroem sob novos parâmetros, normatizações, imagens e simbologias. Não se trata, entretanto, precisamos ser claros, de ter o público um poder tal que torne indiferentes os processos de criação e produção dos gibis estadunidenses de super-heróis, mas das passagens, entrecruzamentos e reconstruções dialógicas às quais todos os textos da cultura estão sujeitos a participar com diferentes velocidades e taxas de interação. A complexidade das relações deve ser considerada anteriormente a qualquer posicionamento apocalíptico ou integrado. Sandman, em certo sentido, por se situar em tal série de gibis adquire, por proximidade, nuances de texto paralelo de tais produções, por relativizar e aproximar bem/mal, sonho/realidade, ordem/caos, altruísmo/egoísmo, austeridade/ridículo. Ao fazer isso, confere certo movimento a todo sistema, assim como outras obras com elementos diferenciados, antes de Sandman, também o fizeram, porém sem o grau de rebaixamento promovido pelos personagens dos sonhos, em suas idas e vindas, em suas mudanças, angústias, dramas, risos e interesse pelos universos cotidianos, que, não por acaso, parecem exercer certo fascínio sobre os deuses imortais, talvez tão sedentos pelas aventuras humanas quanto nós, mortais, o somos por suas fabulosas vivências nas dimensões eternas e lendárias. Cremos que, na série específica que procuramos investigar, Sandman ofereceu contribuições relevantes. Outras investigações sobre as posteriores e possíveis apropriações de tais contribuições podem colaborar para uma melhor compreensão sobre os comportamentos e tendências dos gibis. Podemos, ainda, investigar como espaços de inovação tendem a ser construídos para a criação de textos que, por vezes, contradizem os sistemas sem formar novas centralidades descritivas e normatizantes. Se, de forma geral, as mídias massivas privilegiam a repetição de fórmulas mais ou menos consagradas, evitando inovações e elementos diferenciados, há uma razão funcional muito evidente para isso: a redundância – repetição da informação – confere confiabilidade de aceitação e recepção. Os aviões modernos, por exemplo, objetivando um funcionamento perfeito, livre de ocorrências inesperadas, falhas e acidentes – que poderíamos chamar de ruídos ou de acaso – possuem sistemas redundantes, ou seja, mecanismos que operam da mesma forma, dando conta das mesmas tarefas e informações. A redundância faz parte dos movimentos da cultura – ou, ao menos, da maior parte das culturas. Porém, por mais que algumas produções primem por conservar determinada 277

ordem ou sentido ou, ainda, significação, em determinadas produções e manifestações, sejam elas artísticas ou midiáticas, sempre há incorporação de elementos alógenos e diferenciados ou relação com eles, os quais geram novas configurações de linguagens e elementos e acabam por ultrapassar as expectativas e os modelos. A forma como tais eventos serão conduzidos, se negados e evitados ou se aceitos, incentivados e desenvolvidos, dependerá de fatores socioculturais que, em jogo, determinarão os movimentos posteriores. Uma maior ou menor “hospitalidade” em relação ao acaso, ao acidente e ao alheio é característica cultural, histórica e social em constante processo de desenvolvimento/configuração, e não apenas uma forma aleatória completamente imprevisível. Podemos tentar conjecturar, a partir das formas organizativas da cultura, se determinados sistemas são mais ou menos abertos e dispostos ao movimento, à mudança, à alteração e à tradução do que outros. Contudo, não faremos previsões exatas, mas projeções sujeitas à experiência. Lotman apresenta tal pensamento ao propor que a cultura é a relação entre elementos homogêneos e heterogêneos, internos e externos à semiosfera, que tem como um de seus traços distintivos sua própria irregularidade. Lembramos que ele sugere, ainda, que as culturas que se alimentam de si próprias, de seus próprios textos, sentidos e formas, tendem a produzir novos textos e significações em ritmo mais lento do que outras que privilegiam a relação com ambientes externos e textos alógenos. Tais culturas, que podem ficar saturadas por textos alheios, e que têm fronteiras mais permeáveis, mais afeitas à tradução e à combinação, aproximam e colocam em atrito os elementos de maneira mais cotidiana. A tendência à variedade, variabilidade e à diferenciação é uma característica mais presente em tais sistemas do que a repetição redundante dos mesmos textos, ao menos em determinadas áreas, normalmente distantes de regiões centrais mais homogêneas que, em razão da necessidade da manutenção de certa ordem e controle, objetivam a conservação da informação, com repetições constantes que reforçam e simplificam ideias e conceitos, além de determinar mais claramente os princípios de identidade e verdade85, excluindo os ruídos, os acasos e as contradições, a fim de construir sentidos unívocos86.

85 “Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje” (FOUCAULT, 2005, p. 17). 86 Lotman vê na manutenção de certa ordem que exclui o ruído, de forma análoga, a busca pela totalização dos sentidos e da manutenção do ordenamento. “Sin embargo, puesto que la cultura es un sistema que se autoorganiza, en el nivel metaestructural ella se describe constantemente a si misma (con la pluma de los críticos, los teóricos, los legisladores del gusto y, en general, de los legisladores) como algo unívocamente predecible y rigurosamente organizado. Estas metadescripciones, por una parte, se introducen en el proceso histórico vivo, lo mismo que las gramáticas se introducen en la historia de la lengua, ejerciendo una influencia inversa sobre su desarrollo, y, por otra, hacen patrimonio de los historiadores de la cultura, que se inclinan a 278

A quantidade de diferentes textos e séries culturais nos quadrinhos estadunidenses de super-heróis é grande. Contudo, como procuramos explicitar, há uma metaestrutura que procura orientar tais elementos de forma monológica, dirigindo os discursos para a manutenção ou a restauração de determinada ordem, usualmente ligada às formas sociais institucionais e legais, por meio de eventos/espetáculos, sempre “únicos e inéditos”, que se desenrolam num presente absoluto, que está apartado da história e subordina o passado em forma de arquivo e não de memória. Dessa forma, os personagens, isolados e ilhados, possuem maneiras usualmente constantes de lidar com os acontecimentos, renovando o ciclo e a aura heroica de infalibilidade e permanência. Completos e finalizados, tais protagonistas passam pelos novos elementos sem alteração. A identidade toma, cada vez mais, contornos muito nítidos, destacando-se da névoa de dúvidas e contradições do mundo – dos jardins labirínticos de Destino. Esses personagens adaptam-se para retornar, altivos, à forma anterior, restaurando o mundo tal como ele é e deve continuar a ser. O discurso de tal centro normatiza as relações com os elementos externos em conformidade com a tendência de estabilidade e permanência87. O presente absoluto, tal qual o passado absoluto épico, é acabado e perfeito “do ponto de vista do seu sentido e do seu valor” (BAKHTIN,1998, p. 409). Por isso, é inquestionável e unívoco. O passado/arquivo adapta-se a ele, assim como o super-herói adapta-se aos elementos novos que aparecem nos gibis. Na verdade, o movimento é contrário: os elementos novos são descritos e subordinados ao discurso do universo dos super-heróis. Normatizados, acabam por tender ao homogêneo. Os elementos novos adaptam-se ao contexto do super-herói, e não o oposto. É certo que, em meio a tal tendência, mudanças acontecem, ainda que sejam sutis e lentas. A questão que se formula é se a lógica é subvertida em razão de tais movimentos. A partir de nossas observações, podemos ver que o cotidiano “periférico” do super-herói se movimenta muito mais ativamente do que o heroísmo “central”. E, apesar de serem forças diversas, observamos como as relações se estabelecem – se em jogo dialógico ou em conformidade harmonizante. Afinal, a tendência à centralidade,

identificar tal metadescripción – cuya función cultural consiste precisamente en el riguroso reordenamiento de lo que en lo profundo del espesor adquirió una excesiva indefinición – con el tejido real de la cultura como tal” (1994, p. 75-76). 87 Em parte, a redundância explica como alterações de arte, linguagem e contexto podem ocorrer sem que tal núcleo seja “corrompido”. Há uma repetição de sistemas de conservação que promovem a estabilidade do sistema diante dos “ruídos” que poderiam criar novos sentidos e discursos. Ao mesmo tempo, os sistemas de repetição não são absolutos – basta notar as novas significações que os bairros, as ruas e os grupos constroem ao se apropriarem de enredos, personagens e imaginários que, a princípio, tenderiam à simplificação e à percepção monológica. 279

aqui exposta, só faz aumentar o interesse pelas diversidades elaboradas no interior da série. E, evidentemente, em outras próximas, como já comentamos. Se os super-heróis tendem ao caminho do acabamento, de forma diversa, Sonho segue pelo caminho da humanização progressiva. Nem herói nem vilão, tem sua identidade desmontada progressivamente pelos ruídos e textos alheios, pelo que desconhece, pela frustração e pelos suores sob seu elmo – secreções que comprometem a pretensa integridade do corpo por revelarem suas fraquezas. Procura a mudança de seu estado fechado em si mesmo: uma ilha destinada à morte, tal qual o Império Romano de Augustus ou a Ilha-Terra de Barbie. Nesse caminho, elementos provenientes dos mitos, da filosofia, dos gibis, etc., colaboram para criar uma atmosfera de certa ambiguidade, na qual, por vezes, Sonho apresenta discursos e atitudes próprias dos super-heróis ou, ao menos, muito próximas. Por vezes quase imperceptíveis, estes traços lembram o uniforme heroico, superpoderes ou uma elevação próxima àquela presente nas certezas e retidão dos seres superiores. Cremos que tal situação, que pode ser lida como continuidade, promover um necessário diálogo. As linguagens não são situadas em oposição e assim, em jogo, sugerem novos significados. Lembremos um comentário de Atlan (1992, p. 193):

Para (Thomas) Khun, a passagem de um paradigma (espírito da época) para o seguinte é feita graças a homens que têm um pé no antigo, enquanto avançam o outro para o novo. Imperceptivelmente, seu discurso de desloca de um discurso integrado no anterior para um discurso criador do novo.

A humanização de Sonho não é completa. A contradição entre o que nele há de eterno e de provisório se mantém em jogo. A resolução do conflito seria uma forma de triunfo da ordem, de “triunfo da vontade” – como a vitória do super-herói, que é senhor de si e de seu futuro predestinado (aquele que não é surpresa, mas conhecido e celebrado) e indubitável. Se há estruturas, como citamos, que privilegiam a redundância (técnica útil para a estabilidade e a permanência) como forma de ordenar e promover a manutenção do sentido, do poder e da ordem do discurso, também há outras mais cambiantes que jogam com os paradoxos, tendendo a promover deslocamentos e inexatidões e deixando lacunas de informação: espaços para movimentos sintáticos, nos quais novos elementos, externos, alógenos, podem ser encaixados, articulados, colocados em relação. A enumeração, outra forma de organização que tende a proliferar ao invés de reduzir à síntese, é utilizada em Sandman em alguns momentos – no excesso de nomes, (Sonho, Tecedor, Oneiros, Morpheus, Sandman, Kai’cull) e no excesso de ideias do escritor de épicos que aprisionou Calliope. São 280

formas que, por diferentes caminhos, combatem os sentidos totalitários, semelhantemente aos textos paralelos, que podem rebaixar os significados unívocos e elevados. Em Sandman, o ridículo colabora na desconstrução da identidade, elemento bastante importante no universo heroico, que não se mantém íntegro diante do riso, estilhaçando-se em fragmentos.

(...) este riso está interessado em deslocar a idéia de uma substância ou essência estáveis, que necessitam de um lugar a ser incessantemente recuperado pelos rituais das linguagens. Ao tirar o ouvinte da estabilidade do discurso oficial – que o prende ao lugar, ao lar, à substância (sejam quais forem os substitutos metafóricos que as sociedades concretas se encarregaram de facilitar) – com sua fala segunda, outra, o riso faz com que riamos do fato de que, lúcidos, tenhamos percebido a não- substância, o não-lar, ou seja, nomadismo, solidão e morte. (PINHEIRO, 1995, p. 36)

Se as graphic novels de super-heróis, surgidas na década de 1980, com seus deslocamentos, promoveram certa relativização do papel dos super-heróis em relação à sua ligação com o estado e o status quo social, Sonho é rebaixado da própria “roupagem de herói” – seu elmo e seu rubi especializados – pelo riso de Lúcifer, que aponta seu ridículo. A diferença é vital; não há o deslocamento por oposição, mas por rebaixamento, tanto que, após Sonho aceitar conversar com Lúcifer, ambos, que flutuavam no céu do inferno, tocam o chão, com os painéis focando seus pés a encontrar o solo. Se não foi proposital, tal imagem é, ao menos, significativa. Cremos, ainda, que certos elementos presentes em Sandman podem ser colocados em diálogo com as discussões concernentes aos processos de mestiçagem, conforme elaborados por estudiosos latino-americanos como Severo Sarduy, Lezama Lima, Octávio Paz, Amálio Pinheiro, Alejo Carpentier e, mais recentemente, por pesquisadores como Laplantine, Nouss e Gruzinski88. A mestiçagem, processo de mescla e articulação entre textos culturais distintos, é diverso das dicotomias binárias provenientes do princípio de identidade presente em certas filosofias e ciências ocidentais e, por isso, acaba por sugerir outra configuração do conhecimento, elaborando relações diversas dos processos de pensamento centrados na superação da contradição pela formula dialética de tese, antítese e síntese, comum às estruturas hegelianas e marxistas.

88 Evidentemente, muitos autores vêm tratando das misturas e das mesclas culturais. A escolha desses dois pesquisadores deve-se ao fato de que trabalham com a mestiçagem, e não com o hibridismo, como Nestor Garcia Cancline, ou com o sincretismo – mais do que diferenças semânticas, tais termos encerram concepções históricas diferentes. Delimitamos também o foco das pesquisas no campo das artes, das linguagens e da cultura, tendo em vista que alguns teóricos enfocam, de forma mais específica, questões políticas e sociais. 281

Os autores latino-americanos que tratam da mestiçagem direcionam seu foco principalmente para determinados elementos históricos, culturais e sociais da América Latina ao elaborarem suas formulações e estabelecerem diálogos e relações. Assim, estão inseridos visceralmente no contexto das linguagens e das manifestações culturais do continente, nas circunstâncias históricas e sociais, que organizam de forma distintiva os textos da cultura e as relações.

Pode-se falar de um paladar brasileiro histórico e – é possível – também tropical ou ecologicamente condicionado; e, como tal, ao que parece, predisposto a estimar o doce e até o abuso do doce. Esse seu gosto de doce é, para outros paladares europeus – nórdicos, boreais, mediterrâneos, greco-romanos, calvinistas, clássicos –, excessivamente doce. Um doce – o da preferência brasileira – como que barroco e até rococó em termos que se transferissem às artes plásticas e da música à arte talvez mais sensual da sobremesa. Aliás, das gentes situadas em terras quentes ou em espaços tropicais, várias se apresentam com predisposição semelhantes à brasileira: árabes e mouros são famosos pelo seu gosto pelos alimentos ou regalos doces e até extremamente doces. (FREYRE, 1997, p. 18)

Se uma visão cosmopolita, multicultural ou, ainda, globalizada tende a festejar a justaposição de textos e formas que convivem sem, contudo, mesclar seus textos culturais, valorizando a quantidade de diferenças que dividem espaços, a mestiçagem configura outro tipo de relação que é baseada na hospitalidade em relação ao outro, que deseja o alheio para devorá-lo e digeri-lo, recriando os textos culturais com novas tensões e elementos. À mestiçagem interessa a forma combinatória, a sintaxe, o mecanismo operatório da mescla, as flutuações e variações da linguagem, a abertura dos conceitos, a reelaboração do centro e da periferia por meio da implosão móvel das fronteiras estáveis.

Já não servem isoladamente, sem readaptações, as aplicações teóricas que examinam as culturas híbridas a partir de binariedades (tradição e ruptura, alto e baixo, centro e periferia...) ainda que seja para invertê-las ou sintetizá-las. As articulações e deslizamentos entre o local/internacional e o internacional/local esquivam-se de qualquer tentativa de explicação dualista ou generalizante. (PINHEIRO, 2004, p. 72)

A mestiçagem, mais que um conceito ou uma alternativa ao princípio de identidade, é uma forma de organização do conhecimento. Por isso, as referências oposicionais são deslocadas, assim como os conceitos fechados e essencialistas, e traduzidas por determinados contextos socioculturais. Nesse sentido, diversos artistas e pensadores observaram a América Latina, procurando dar conta da complexidade gerada a partir do encontro de povos, culturas e técnicas variadas em condições comprimidas de espaço e tempo. A necessidade de traduzir linguagens, culturas, objetos, comidas, roupas com o intuito de organizar a vida num lugar onde ainda não havia sido transformado em linguagem o estranhamento diante das paisagens 282

desconhecidas, excessivas e curvilíneas gerou tal curiosidade pelo outro que as identidades não tiveram lugar ou foram diluídas e reaproveitadas, assim como foram descartadas, por inadequação ao cotidiano e por terem estruturas rígidas pouco afeitas à mescla e à contribuição.

A pluralidade de culturas e de tempos históricos é ainda maior se pensarmos nos países onde confluíram diversas civilizações, como a Espanha: celtas, romanos, fenícios, visigodos, árabes, judeus (...). O México é ainda mais complexo. Em primeiro lugar, porque à rica herança espanhola se deve acrescentar a não menos rica e viva herança índia, com sua pluralidade de culturas, nações e línguas: maias, zapotecas, totonacas, mixtecas, nahuas. Em segundo lugar, porque todos esses elementos heterogêneos, em contínua interação, foram submetidos, desde a independência e até antes, desde o fim do século XVIII, a um processo de modernização que ainda não terminou. (PAZ apud PINHEIRO, 2007, p. 71)

Gilberto Freyre, mapeando certos percursos das mesclas americanas, parece concordar com Octávio Paz ao dizer que

Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição. Sociedade que se desenvolveria defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política. (...) A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas de duas. A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África. (FREYRE, 2005, p. 65-66)

Tais elementos configuraram uma forma específica de organização cujo traço distintivo marcante foi a habilidade de tradução e de apropriação na elaboração de textos culturais móveis, cambiantes e inclusivos. Ainda, segundo Pinheiro:

Quase todo o ocidente se constituiu pela oposição centro/periferia. A América Latina e o Brasil se constituem por um afluxo plural de processos civilizatórios que tiveram que resolver esta pluralidade através de tecidos em movimento, criando novas configurações lógicas, por isso na América Latina nós temos que encontrar o nosso modo de pensar, que nasce da inclusão do alheio, o que nos faz sempre nacionais e internacionais ao mesmo tempo.89

89 PINHEIRO, Amálio. Mestiçagem Latino-Americana. Entrevista concedida ao jornal O Povo, Fortaleza, 10 maio 2008. Disponível em . Acesso em: 08 jan. 2010. 283

Evidentemente, Sandman não faz parte das culturas latino-americanas, tendo sido composto em contextos culturais, a princípio, anglo-saxões. Por isso a dificuldade, apesar dos elementos de mescla, diálogo e mobilidade que cremos presentes na obra de colocá-la em relação imediata com as elaborações da mestiçagem. Fazer isso sem mediações complexas e análises cuidadosas seria, provavelmente, um prejuízo tanto à mestiçagem quanto ao gibi. Contudo, não podemos deixar de sublinhar as possíveis conexões e diálogos, mesmo porque o pensamento mestiço foi fundamental para nortear nossas análises, interpretações e analogias, as quais buscamos selecionar, articular e traduzir a fim de, em conjunto com outros estudos próximos, trabalhá-las com textos e contextos diferentes daqueles em que tais teorias vêm sendo desenvolvidas. Tal tarefa, inclusive, é característica das formas mestiças.

(...) a série de inventos, como armas, meios de locomoção e navegação, etc., saídos da expansão do mundo europeu e renascentista em crescimento contínuo, tinham aqui sido readaptados, para efeitos de tradução científico-civilizatória (a interpretação kuhniana), conforme o aparato local de linguagens e muito provavelmente conforme, juntamente, os influxos arábigo-ibéricos trazidos já dos muitos séculos de convivência peninsular. (PINHEIRO, 1995, p. 51)

Traduções são mecanismos não somente de acesso a textos culturais distintos, recriando-os através de apropriações, interpretações e reescritura, mas também de mediação entre diferentes contextos culturais. A postura tradutória ajuda a evitar usos generalizantes, absolutos e, muitas vezes, simplificadores das concepções teóricas e das visões de mundo. À mestiçagem, novamente, interessam antes os espaços de fronteira, de passagem e de comunicação. Em tal ambiente, centros e periferias se interpenetram por negociações abruptas, proliferação e espelhamento. Formam-se zonas ondulantes de contato, tais como as regiões brandas onde Sonho encontra Marco Polo e Mestre Li – lugares em que os diferentes tempos e espaços articulam montagens com os distintos elementos e conhecimentos. São lugares móveis, cujas cartografias devem ser atualizadas constantemente – rotas de troca, viagem e comércio –, a exemplo dos espaços de mercados livres, nos quais pessoas de diversos lugares, costumes e línguas encontram-se para oferecer e adquirir não somente objetos, comidas, óleos, roupas, tecidos, livros ou utensílios domésticos, mas também linguagem, novos códigos, histórias, canções, ritmos, versos de pregões, ou seja, espaços cotidianos e urbanos abertos ao exercício do encontro e ao convívio com o extraordinário. Nas Mil e Uma Noites, na Bagdá dos grandes mercados e do entroncamento de estradas, aventuras incríveis não se dão somente em lugares distantes e ermos, onde os homens pagam por suas faltas, como ocorre nos romances de cavalaria da Idade Média europeia, mas 284

sobretudo nas ruas da cidade, entre o povo, nas lojas de tecidos, nos açougues, nas casas repletas de frutas e fontes, nos balcões de frente para as ruas, nos palácios e nos haréns. Serge Gruzinski, num trabalho de 1999, analisou as relações de mestiçagem entre os nativos mexicanos e os invasores ibéricos durante o século XVI. Ele observa como elementos indígenas começaram a se fazer presentes nas linguagens e nas expressões culturais dos espanhóis e vice-versa. O pesquisador acompanha, em suas reflexões, os latino-americanos na interpretação de tais fenômenos movediços:

Oras, as mestiçagens quebram essa linearidade. Surgindo na América do século XVI, na confluência de temporalidades distintas – as do Ocidente cristão e dos mundos ameríndios –, elas as colocam brutalmente em contato e as imbricam umas nas outras. Aqui, deixa de valer a metáfora do encadeamento, da sucessão ou da substituição, que serve de base à interpretação evolucionista, pois não apenas o tempo dos vencidos não é automaticamente substituído pelo dos vencedores, como pode coexistir com ele séculos a fio. Ao juntar abruptamente humanidades há muito separadas, a irrupção das misturas abala a representação de uma evolução única do devir histórico e projeta luz nas bifurcações, nos entraves e nos impasses que somos obrigados a levar em conta. (GRUZINSKI, 2001, p. 58)

Chamando a atenção para as condições históricas do encontro de civilizações, Gruzinski tece suas leituras sobre as implicações sociais e culturais dos processos de mestiçagem entre europeus ibéricos e indígenas mexicanos, considerando que a tensão entre os sistemas de linguagens e representações (e não sua resolução harmoniosa) é traço distintivo e estimulador de tais movimentos. Ao final do livro, nas conclusões, coloca em diálogo o filme de uma diretora de Hong Kong, rodado em Buenos Aires, que conta uma história de amor ao som de tangos e o México do século XVI, procurando possíveis relações entre a mestiçagem mexicana e outras formas de organização, tradução e elaboração culturais.

As aproximações que podemos esboçar entre Hong Kong e a Cidade do México não suprimem nenhuma das inúmeras diferenças que as separam. Servem, antes, para marcar os “pólos” de um imenso espaço mestiço em que as questões fazem eco umas às outras. Os pintores da Cidade do México ajudam-nos a abordar os cineastas de Hong Kong antes que, por sua vez, o exemplo chinês incite em retomar o exemplo mexicano. (GRUZINSKI, 2001, p. 318)

Evidentemente, o refletido diálogo proposto por Gruzinski interessa-nos, pois nosso exercício foi semelhante. Se, para o autor, a Cidade do México colabora para compreender os movimentos do cinema de Hong Kong, as elaborações sobre a mestiçagem provenientes dos pensadores e das culturas latino-americanas nos orientaram na observação e na leitura das séries analisadas, contribuindo para uma leitura a partir das tramas, dos encaixes, das traduções, das articulações, dos fragmentos e dos deslocamentos. 285

Laplantine e Nouss, por exemplo, tratam a mestiçagem de forma um pouco diversa em suas obras, como em A Mestiçagem, de 1997. Partem de seus próprios estudos – os do antropólogo Laplantine, realizados principalmente no Brasil, no campo da religião e da doença – para aplicar certo processo algébrico, a fim de estender os campos de aplicação e o estudo da mestiçagem, entendida por eles antes como uma noção proveniente da biologia e não de estudos culturais, linguísticos ou artísticos.

O primeiro problema que a mestiçagem coloca é o do seu deslocamento e alargamento para o exterior da disciplina (a biologia) no seio da qual se constituiu. Se parece ser aceite pela lingüística (as línguas crioulas) e pelo estudo das religiões, penetra muito mais timidamente no campo antropológico (os cruzamentos culturais), hesita no da arte (designando, por exemplo, o barroco) e torna-se problemática, e para alguns até inaceitável, no domínio da ciência e da epistemologia. A ambição desse pequeno livro é contribuir para transformar esta noção em conceito, ou mesmo em paradigma, e mostrar, não apenas a legitimidade, mas também a sua pertinência em campos extremamente diversificados. (LAPLANTINE; NOUSS, [s.d.], p. 8)

Os autores percebem movimentos mestiços desde a Viena de 1900 até os povos do crisol Mediterrâneo, penetrando pela Europa continental às vezes de forma mais tímida, noutras com contundência, e estendendo-se pelas artes e pelas filosofias. Ressaltam, contudo, a especificidade das mesclas nos diferentes contextos culturais e nos diferentes indivíduos.

(...) a mestiçagem é o tornar-se devir mais do que o devir, e pede para ser pensada em si própria na sua incompletude. Transitória, imperfeita, inacabada, insatisfeita, vive continuamente a aventura de uma migração, as transformações de uma actividade de tecelagem e urdidura ininterrupta. Isto significa dizer o quanto esta noção é eminentemente contraditória. Não pode ser invocada como resposta, já que ela é a própria questão que perturba os indivíduos, a cultura, a língua e as sociedades na sua tendência para a estabilização. (LAPLANTINE; NOUSS, [s.d.], p. 86)

Apesar de seus estudos a respeito da mestiçagem terem sido realizados a partir do campo das ciências biológicas, no qual constroem o conceito, as leituras são muito semelhantes às dos autores latino-americanos que se utilizam das noções de texto/tecitura, imperfeição, inacabamento, processo, etc., sem localizá-las num contexto cultural/histórico/social específico. Ademais, os autores franceses percebem na América Latina certas potencialidades diferenciadas.

O que essas Américas – que não são, portanto, apenas latinas – inventaram, foi um estilo de vida, maneiras de ser, modos de ver o mundo, de encontrar os outros, de falar, de amar, de odiar, nos quais a pluralidade é afirmada não como fragilidade provisória, mas como valor constituinte. (...) Isto nos impede que seja ilusório procurar nessas sociedades o tipo de coerência que organiza as sociedades da “tradição” ou as da “razão”. (...) O que nos surpreende nos Latino-Americanos (sic) 286

é, ao invés, a sua capacidade de ser ocidentais e não-ocidentais, intelectuais e sensuais, modernos e tradicionais, ateus e religiosos, cristãos e pagãos, racionais e sentimentais, críticos e líricos e, por vezes, à imagem de Macunaíma, o anti-herói da obra do mesmo nome de Mario de Andrade (Macunaíma, 1928), honestos e mentirosos. Esta aptidão (que encontramos em particular no Brasil) para religar, o que em boa lógica cartesiana se exclui, mas ainda mais o facto dessa mistura não significar confusão e poder viver-se sem separação esquizofrênica uma dupla, tripla, quádrupla identidade, é muitas vezes desconcertante. (LAPLANTINE; NOUSS, [s.d.], p. 32)

De forma semelhante, Gruzinski (2003, p. 412), a respeito da cultura mexicana, escreve que:

Esse estado de equilíbrio instável, de mutação ininterrupta, convida não apenas ao questionamento da noção de tradição como também da noção de coerência, que em geral atribuímos às sociedades e aos edifícios culturais que se nos apresentam. Tive, diversas vezes, a intuição de que a indeterminação, a coexistência de traços contraditórios, a ausência de referências ou seu esfumaçamento, a descontextualizarão de traços e a descontinuidade, de modo geral, eram – até determinado limite – propícias ao surgimento de novos arranjos culturais.

Essas características citadas pelo autor, presentes nos contextos culturais da América Latina, são ressaltadas, em suas resultantes, no prefácio de seu livro A Colonização do Imaginário – Sociedade Indígenas e ocidentalização no México Espanhol (Séculos XVI – XVIII).

Inventado outro olhar, [Gruzinski] mergulha nos mundos construídos pouco a pouco sobre os destroços, acompanha o laborioso e sutil trabalho de fabricação de novos elementos e novas conexões para retecer a rede. Não é relato da destruição nem da resistência, mas de numerosos processos de transformação cultural que caracterizam o mundo colonial. (...) nem decadente nem periférico, o mundo colonial mexicano aparece em seu aspecto mesclado, mestiço, para usar uma palavra cara ao autor. (PERRONE-MOISES, 2006, p. 12)

Esses autores percebem os traços distintivos de determinadas culturas. Se na América Latina os movimentos de mescla, descentramento e mestiçagem são bastante evidentes, Gruzinski cuidadosamente procura ver indícios de semelhança em certos elementos artísticos e culturais de Hong Kong. Laplantine e Nouss partem para uma tentativa de elaboração conceitual, ilustrando-a a partir de exemplos espalhados por diversas culturas e épocas. Em 1975, o escritor cubano Alejo Carpentier (2006, p. 157), em discurso na Universidade Central da Venezuela, apresentou uma de suas visões da América:

História diferente desde o início, já que esta terra americana foi palco do mais extraordinário encontro étnico registrado nos anais de nosso planeta: o encontro do 287

índio, do negro e do europeu de pela mais ou menos clara, destinados, dali em diante, a se misturarem, entremisturarem, a estabelecerem simbioses de culturas, de crenças, de artes populares, na maior mestiçagem já vista...

Lezama Lima, em 1957, explorou a América mestiça, que é também barroca, trazendo à tona a figura do escultor mineiro Aleijadinho, que, aos poucos, parece que foi se tornando um pouco a natureza das pedras e das altitudes das cidades mineiras, mesclando-se aos contornos das serras e das naves das igrejinhas:

Vemos portanto que o senhor barroco americano, a quem designamos como o autêntico primeiro instalado no que é nosso, participa, vigia e cuida as duas grandes sínteses que estão na raiz do barroco americano, a hispano-incaica e a hispana- negróide. Mas vejamos ainda para terminar como se realiza essa imponente síntese do Aleijadinho, nele considerando o mundo lusitano como parte do hispânico. Sua mãe era uma negra escrava. Seu pai um arquiteto português. Quando maduro, o destino o engrandece com uma lepra, que o leva a romper com uma vida galante e tumultuada, para dedicar-se totalmente aos seus trabalhos de pedra. Com sua grande lepra, que se situa na raiz proliferante de sua arte, eriça e multiplica, bate e acresce o hispânico ao negro. (LIMA, 1988, p. 106)

Para os pensadores latino-americanos, o barroco e a mestiçagem do continente estão profundamente ligados, sendo indissociáveis. O barroco não é somente mecanismo operativo de uma mestiçagem de exageros e proliferações, mas uma forma construtiva da cultura, uma gramática de subversão e paródia dos gêneros, periféricos ou centralizados, desordenados ou ordenados, num riso sensual que abdica do respeito a si mesmo e ao outro, porque não há qualquer razão para tolerâncias em seu movimento de inclusão e hospitalidade.

A carnavalização implica a paródia na medida em que equivale a confusão e afrontamento, a interação de diferentes estratos, de diferentes texturas lingüísticas, a intertextualidade. Textos que na obra estabelecem um diálogo, um espetáculo teatral cujos portadores de textos – os actantes de que fala Greimas – são outros textos, daí o caráter polifônico, estereofônico, diríamos, incorporando um neologismo que certamente teria agradado a Bakhtin, da obra barroca, de todo código barroco, literário ou não. Espaço do dialogismo, da polifonia, da carnavalização, da paródia e da intertextualidade, o barroco se apresentaria, portanto, como uma rede de conexões, de sucessivas filigranas, cuja expressão gráfica não seria linear, bidimensional, plana, mas de volume, espacial e dinâmica. (SARDUY, 1979, p. 69)

Essa relação visceral, plutônica, entre o barroco e as mestiçagens latino-americanas dificilmente é desfeita, como tecitura que se estende pelo continente formando mosaicos sem as uniformidades geradas pelos conceitos nacionais e cívicos ao entrelaçar as festas, os pratos, os sons, as cidades labirínticas e as sacralidades de um monoteísmo de santos, arcanjos, lobisomens e diabos que formam um panteão de sublimes profanos. 288

Menos do que um conceito ou um princípio, o pensamento mestiço configura certos procedimentos de organização, marcados pelo caráter móvel e provisório, cujos processos de elaboração do conhecimento tendem, como já foi citado, à proliferação e não à síntese harmoniosa.

Por isso, o mais importante a ser investigado nos processos de mestiçagem são essas intertraduções, uma sintaxe interna nas junturas das dobras encrespadas dos textos, que produz, por exemplo, um poema-som, um poema-tango. (PINHEIRO, 2009, p. 12)

Os textos mestiços, rugosos e com reentrâncias, são afeitos aos encaixes, às incorporações e às interações entre códigos. As mesclas se dão através das lacunas, dos vazios, das incompletudes, assim como pelas disposições peninsulares, elípticas, que quebram a inteireza ideal ao se projetarem para além das margens, estendendo as fronteiras como tentáculos pegajosos em busca do alheio e do alógeno.

O caráter multiplicante, ramificante e fragmentário da cultura se dá aqui por uma proliferação dos processos civilizatórios fronteiriços junto a um grande enfraquecimento das noções binárias de centro e periferia (o que nos obriga a uma revisão e reconfiguração lógico-conceptual), não por uma glorificação da velocidade a partir do paradigma eurocêntrico de modernidade levado a cabo pelas tecnociências. (PINHEIRO, 2009, p. 12)

Se há muitas diferenças no olhar lançado sobre a mestiçagem pelos autores citados, isso se deve muito menos a supostas divergências do que à grande complexidade e variabilidade das culturas que operam através de mecanismos em discussão. Se quisermos ver traços característicos nas diversas falas, diríamos que sobretudo Laplantine e Nouss estão preocupados, a princípio, em definir um conceito de mestiçagem – ainda que reconhecendo a dificuldade da tarefa – a fim de estendê-lo a diversas culturas e regiões. Entre os pensadores latino-americanos, entretanto, a preocupação com o conceito é menor do que aquela com os procedimentos construtivos e os movimentos cotidianos dos textos culturais. Talvez porque, se eles formulassem conceitos mais gerais ou fixos sobre o barroco90 e a mestiçagem, poderiam se perder exatamente esses meandros e sutilezas que dizem respeito aos encaixes, às combinações, aos entrecruzamentos, às traduções em curva. A elaboração de tais conceitos,

90 Sugerimos a leitura de Barroco e de Escrito sobre um corpo, ambos de Severo Sarduy. Porém, dificilmente encontramos uma definição conceitual do barroco latino-americano. É preciso apropriar-se deste conceito pelos seus modos operatórios: a substituição, a proliferação, a paródia, a citação, o erotismo, o espelhamento, etc. “O barroco estava destinado, desde o seu nascimento, à ambigüidade, à difusão semântica” (SARDUY, 1979, p. 57). 289

ademais, não deixaria de ser discurso autorreferente, prática pouco afeita aos mecanismos operatórios barrocos e mestiços.

Nossa idéia corrente de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta: museu clássico antes que jardim barroco. Entendemos que toda sociedade tende a preservar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessária uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Não há retroceder, a forma anterior foi ferida de morte; o máximo que se pode esperar é a emergência de um simulacro inautêntico de memória, onde a “etnicidade” e a má consciência partilham o espaço da cultura extinta. Talvez, porém para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido. (CASTRO, 2002, p. 195)

As especificidades e traços distintivos das obras e culturas mestiças são indissociáveis das operações e procedimentos construtivos das mesmas. Por isso, talvez, haja dificuldade em estruturar definições mais gerais e abrangentes. A leitura se dá sempre por aproximações e distanciamentos, por um “querer dizer” que atua nas dobras, pelo estranhamento do “horror ao vazio” que acomete as identidades que se depararam com o espaço vago onde, tradicionalmente, deveria estar a essência. Se os labirintos clássicos indicavam prisão e isolamento, as cidades labirínticas de traços barroco-mouriscos91 configuram, no cotidiano, a proliferação das possibilidades de encontros e relações. Através dos mecanismos de tradução, montagem e apropriação de Sandman, cremos que abordamos questões e elementos que guardam possibilidades de diálogo com as formas mestiças, sem que uma transposição algébrica fosse necessária. Através de mediações, tais pensamentos e pensadores indicaram caminhos para se observar uma história sobre movimentos e mudanças em um objeto com traços culturais e históricos distintivos, mas aberto ao “outro” e não acabado, ao contrário do geral das produções de sua série cultural. A busca de Sonho pela não coincidência consigo próprio – algo que, provavelmente, ele já encaminhava ao colecionar muitos nomes, formas e representações – demonstra, ao lado de outros elementos, um deslocamento do personagem clássico presente nas histórias em quadrinhos de super-heróis. Sem criar oposições fundantes, super-heróis parodiados e subvertidos participam dos cotidianos do Sonhar. Estão presentes, também, momentos com falas e comportamentos heroicos e altivos. De modo geral, o super-herói participa da história horizontalmente, sem os comuns acessos em ser o paradigma e a referência de qualquer suposta bondade, justiça ou ordem que, como vimos, seria seu papel usual.

91 Mourisco é aquele mouro em movimento de mescla que permaneceu na península ibérica após a reconquista cristã, ao final do século XV. 290

O encanto que os super-heróis tendem a causar é amplamente confortável e desejável em virtude da posição de superioridade que ocupam em um presente sem fantasmas passados ou projetos, temores ou esperanças futuras. Possuem conjuntos de qualidades sedutoras: poder, humildade, constância, imutabilidade, generosidade, carisma, fama92, vitória, etc. Com o uso da violência justificada, ou seja, aquela a serviço da ordem, do bem e da lei, defendem a sociedade, mantendo-a e restaurando-a, permitindo que o universo, assim como tudo que o compõe, permaneça idêntico a si mesmo. Senhores de seus destinos, domam através da razão os seus desejos e realizam o sonho humano de ter enormes poderes sem se corromper93; de ser lúdico sem ser tolo ou ridículo; de usar a máscara para esconder a força e a superioridade e não a fragilidade e a impotência. Cremos que, apesar de qualquer consideração, tais características são anseios humanos legítimos. Representam um desejo ancestral, presente nos primeiros registros escritos dos quais se tem notícia – a busca pelo fim do sofrimento e pela imortalidade94. Contra o esquecimento, a lenda perdura e inspira sem que a morte precise participar da equação. Contudo, o único empecilho à monotonia para esses seres miraculosos é que suas existências se dão num presente absoluto, lugar do espetáculo, no qual a memória reflexiva sobre a irracionalidade e a falta de sentido em repetir sempre as mesmas batalhas não consegue chegar, salvando-os da reflexão do passado que, a bem da verdade, não faz falta, já que o encontro com a Medusa – a monstruosidade da vida que consome a si mesma – não precisa acontecer, pois o tempo não passa, mas permanece. A hesitação e o cuidado de Perseu, que se aproxima do monstro passo a passo, através do reflexo – da reflexão –, ocorre devido ao perigo de um enfrentamento direto transformá-lo em pedra95. Os super-heróis, em um presente-espetáculo em constante ação vertiginosa, não correm tal risco. Olhar para essas diferentes formas de expressão artística, com suas estruturas de mídia e comunicação, dificilmente é um exercício de isolamento, segmentação ou

92 Devemos notar, ainda, que com as identidades secretas eles conseguem manter o anonimato e o distanciamento estratégico do público, desejo confesso de tantas celebridades, que buscam privacidade sem perder a devoção de seus fãs. 93 Sandman faz referência a isso usando John Dee. Após destruir o rubi dos sonhos e acreditando haver matado Sonho, John diz: “Eu consegui. Eu... Eu matei. Seja lá quem fosse, já era... Está morto. O rubi também sumiu. Sinto-me estranho... Diferente. É. Agora, eu governo o mundo dos sonhos. Vou me esconder nos sonhos. Nunca mais vou voltar, nem trocar este lugar pelo mundo onde só me machucam... Lá, as pessoas morrem quando a gente precisa delas. Serei um monarca sábio, tolerante e justo, mas só enviarei pesadelos pros maus e perversos. Ou para qualquer um que eu não goste. Eu sou o rei dos sonhos. De tudo.” (Sandman #7, p. 19). 94 A Epopeia de Gilgamesh, que conta a história do herói sumério do mesmo nome em busca da imortalidade após a perda do amigo Eikidu, data de mais de 2000 a. C., tendo sido encontrada escrita em tábuas de argila. 95 Tal interpretação do mito de Perseu e da Medusa não é nossa; foi ouvida em conversa de amigos sobre suposta palestra televisionada que abordou o tema. Contudo, apesar da insistência, não conseguimos encontrar as referências de autoria dessa leitura da narrativa. Ficam em aberto, então, os créditos aos autores, nossos credores. 291

especialização. A forma de construção dos objetos e de textos da cultura, assim como a das teorias e dos métodos, representa, através de analogias, metáforas e espelhamentos, concepções, crenças, mitologias, princípios, conceitos, parâmetros e reflexões que orientam a organização do pensamento, da cultura e do conhecimento de determinada sociedade, bem como as formas de relações que estabelecemos (ou não) com os textos culturais. Os sonhos, delírios, artifícios e ficções que articulamos são formas de significar a existência, por meio de procedimentos característicos de tecitura dos discursos, que expressam, em jogo, tendências e desejos de permanência e de mudança, em meio às variabilidades dos condicionamentos e às relativas possibilidades de movimento.

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GIBIS

Amazing Spider-Man (Homem-Aranha): #1, #121, #122, #477 a #485

A Morte do Capitão Marvel

A Morte do Superman

A piada mortal – Alan Moore

Batman: The Dark Knight Returns I e II (O retorno do Cavaleiro das Trevas) – Frank Miller

Civil War (Guerra Civil): Amazing Spider-Man #529 a #538, Civil War #1a #7

Captain America (Capitão América): #125

Demolidor – A queda de Murdoch – Frank Miller

Elektra Assassina – Frank miller

Fallen Son - A Morte do Capitão América

Fantastic Four (O Quarteto Fantástico): #48 a #51, #191 a #194

Guerras Secretas: #1 a #12

Guerras Secretas II: [#1] New Mutants #30, [#2] Fantastic Four, [#3] Daredevil #223, [#4] Dazzler #40, [#5] The Thing #30, [#6] Cloak and Dagger (1985 series) #4, [#7] New Mutants #36, [#8] New Mutants #37, [#9] Avengers #266.

Homem-Aranha: A última caçada de Kraven

Iron Man (Homem de Ferro): #224 a #232

Luke Cage – Herói de Aluguel: #1

O retorno do Superman

Silver Surfer (Surfista Prateado): #1 a #10

Spider-Man – The Clone Sage (A Saga dos Clones): Web of Spider-Man #117 a #129, Sensational Spider-Man # a #11, Amazing Spider-Man #394 a #418, Spider-Man #51 a #75, Spectacular Spider-Man #217 a #240, Spider-Man Unlimited (v. 1) #7 a #14.

Spider-Man Anual (Homem-Aranha Anual): #15, #17, #20

Superman: #1 a #30, #300, #420 a #438 299

Superman – Funeral para um amigo

The Amazing Spider-Man: #36 – World Trade Center

The Avengers (Os Vingadores): #1 a #12

Thor – A Saga de Surtur: #1 a #6

Watchmen: #1 a #12 – Alan Moore

X-Men: #1, #2, #98 a #103, #129 a #137, #201 a #270

GIBIS DO SANDMAN

Sandman #1 - Sono dos justos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike Dringenberg. Editora Globo, 1989.

Sandman #2 - Anfitriões imperfeitos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike Dringenberg. Editora Globo, 1989.

Sandman #3 - Dream a little dream of me - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike Dringenberg. Editora Globo, 1990.

Sandman #4 - Uma esperança no inferno - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike Dringenberg. Editora Globo -1990

Sandman #5 - Passageiros - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #6 - 24 horas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #7 - Som e fúria - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #8 - O som de suas asas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #9 - Histórias na areia - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

300

Sandman #10 - Casa de bonecas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo -1990

Sandman #11 - Dia de mudança - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #12 - Casa de brincadeiras - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Chris Bachelo e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #13 - Colecionadores - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.

Sandman #14 - Homens de boa fortuna - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Zulli e Parkouse. Editora Globo, 1990.

Sandman #15 - Dentro da noite - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #16 - Corações perdidos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #17 - Calliope - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #18 - Um sonho de mil gatos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #19 - Sonho de uma noite de verão - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Charles Vess e Steve Oliff. Editora Globo, 1991.

Sandman #20 - Fachada - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Colleen Doran e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #21 - Estação das brumas: um prelúdio - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #22 - Estação das brumas: capítulo 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #23 - Estação das brumas: capítulo 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #24 - Estação das brumas: capítulo 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e P. Craig Russell. Editora Globo, 1991.

Sandman #25 - Estação das brumas: capítulo 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Matt Wagner e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.

Sandman #26 - Estação das brumas: capítulo 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e George Pratt. Editora Globo, 1991. 301

Sandman #27 - Estação das brumas: capítulo 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e Dick Giordano. Editora Globo, 1992.

Sandman #28 - Estação das brumas: epílogo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e George Pratt. Editora Globo, 1992.

Sandman #29 - Thermidor - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Stan Woch e Dick Giordano. Editora Globo, 1992.

Sandman #30 - Augustus - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Brian Talbot e Stan Woch. Editora Globo, 1992.

Sandman #31 - Três setembros e um janeiro - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus. Editora Globo, 1992.

Sandman #32 - 1: Matança na quinta avenida - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus. Editora Globo, 1992.

Sandman #33 - 2: Canções de Ninar da Broadway 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus. Editora Globo, 1992.

Sandman #34 - 3: Lua má nascente - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Collen Doran, George Pratt e Dick Giordano- Editora Globo, 1992.

Sandman #35 - 4: Começando a ver a luz - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus. Editora Globo, 1992.

Sandman #36 - 5: Sobre o mar, até o céu - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus, Brian Talbot e Stan Woch- Editora Globo, 1992.

Sandman #37 - Eu acordei e um de nós estava chorando - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus. Editora Globo, 1992.

Sandman #38 - A caçada - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Duncan Eagleson e Vince Locke. Editora Globo, 1992.

Sandman #39 - Regiões brandas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: John Watkiss. Editora Globo, 1993.

Sandman #40 - O parlamento das gralhas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo, 1993.

Sandman #41 - Vidas breves 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #42 - Vidas breves 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #43 - Vidas breves 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994. 302

Sandman #44 - Vidas breves 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #45 - Vidas breves 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #46 - Vidas breves 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #47 - Vidas breves 7 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #48 - Vidas breves 8 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #49 - Vidas breves 9 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.

Sandman #50 - Ramadã - Argumento: Neil Gaiman; Arte: P. Craig Russel. Editora Globo, 1994.

Sandman #51 - Fim do mundo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, Alec Stevens, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.

Sandman #52 - Fim do mundo 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, John Watkiss, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.

Sandman #53 - Fim do mundo 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli, Bryan Talbot, Dick Giordano, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.

Sandman #54 - Fim do mundo 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Allred, Bryan Talbot, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.

Sandman #55 - Fim do mundo 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shea Anton Pensa, Vince Locke, Bryan Talbot, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.

Sandman #56 - Fim do mundo 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, Gary Amaro, Dick Giordano, Tony Harris, Mark Buckingham, Steve Leiahola. Editora Globo, 1996.

Sandman #57 - Entes queridos: 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel. Editora Globo, 1996.

Sandman #58 - Entes queridos: 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli. Editora Globo, 1996.

Sandman #59 - Entes queridos: 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli. Editora Globo, 1996.

303

Sandman #60 - Entes queridos: 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli. Editora Globo, 1996.

Sandman #61 - Entes queridos: 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli. Editora Globo, 1996.

Sandman #62 - Entes queridos: 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli, Glyn Dillon, Charles Vess, Deam Ormstron. Editora Globo, 1996.

Sandman #63 - Entes queridos: 7 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel - Editora Globo, 1997.

Sandman #64 - Entes queridos: 8 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Teddy Kristiansen. Editora Globo, 1997.

Sandman #65 - Entes queridos: 9 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard Case. Editora Globo, 1997.

Sandman #66 - Entes queridos: 10 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard Case. Editora Globo, 1997.

Sandman #67 - Entes queridos: 11 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard Case. Editora Globo, 1997.

Sandman #68 - Entes queridos: 12 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard Case. Editora Globo, 1997.

Sandman #69 - Entes queridos: 13 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel. Editora Globo, 1998.

Sandman #70 - Despertar - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo, 1998.

Sandman #71 - Despertar 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo, 1998.

Sandman #72 - Despertar 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo, 1998.

Sandman #73 - Despertar: um epílogo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo, 1998.

Sandman #74 - Exílio - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jon J. Muth. Editora Globo, 1998.

Sandman #75 - Tempestade - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Charles Vess. Editora Globo, 1998.

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