RAFAEL LUÍS GARBUIO

OS MADRIGAIS DE : Um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

RAFAEL LUÍS GARBUIO

OS MADRIGAIS DE CARLO GESUALDO: Um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, como par- te dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutor em Música, na Área de Concentração: Práticas Interpretativas.

Orientador: Dr. Carlos Fernando Fiorini

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pelo aluno Rafael Luís Garbuio, orientado pelo professor Dr. Car- los Fernando Fiorini.

CAMPINAS 2015

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RESUMO

Os seis livros de madrigais italianos compostos por Carlo Gesualdo apresentam uma estreita relação entre a música e o texto. A manipulação efetuada pelo com- positor nos poemas que seriam base para suas peças evidencia sua busca por um determinado formato de texto. Através da observação destas alterações, foi possí- vel caracterizar seu ideal poético e relacioná-lo diretamente com a sua concepção musical, objetivando um entendimento mais abrangente da expressividade deste conjunto de obras. Para chegar a este resultado, foram realizados estudos da con- textualização histórica, concentrados na cidade de e na sua importância dentro da obra deste compositor; do Maneirismo artístico e sua relação com o ma- drigal italiano tardio, e dos vários aspectos da sua escrita musical. Como forma de confrontar estas informações, realizou-se uma análise da relação texto/música sobre dois termos poéticos – amor e morte – através da qual foi possível concluir como se deu o amadurecimento da escrita do compositor e a relevância de seu ideal poético como ferramenta interpretativa.

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ABSTRACT

The six Italian books of Carlo Gesualdo present a close connection be- tween music and text. The manipulation made by the composer in the poems that would serve as basis for his music evidences his search for a certain text format.

Through the analysis of these changes it was possible to characterize his poetic ideal and relate it directly to his musical conception, aiming a more comprehensive understanding of the expression of this group of works. To reach this result, the historical context was studied, especially the one of the city of Ferrara and its im- portance in the work of this composer. Also, the various aspects of his musical writ- ing, the Mannerism and its relation to the late Italian were approached. In order to confront this information, it was done an analysis of the relation text / mu- sic on two poetic terms - love and death - through which we concluded how was the maturing process of the composer’s writing, and the relevance of his poetic ideal as an interpretive tool.

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SUMÁRIO

RESUMO ...... vii

ABSTRACT...... ix

AGRADECIMENTOS ...... xvii

LISTA DE FIGURAS ...... xix

INTRODUÇÃO ...... 1

1. ASPECTOS HISTÓRICOS ...... 9

1.1. Ferrara ...... 9

1.1.1. Desenvolvimento político da cidade de Ferrara ...... 11

1.1.2. As Influências musicais e culturais da primeira metade do século XV ..... 15

1.1.3. O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez ...... 17

1.1.4. O mecenato de Ippolito d`Este e as influências de Adrian Willaert ...... 21

1.1.5. A permanência de Cipriano da Rore ...... 23

1.1.6. Carlo Gesualdo ...... 25

1.1.7. A saída da corte d`Este da cidade de Ferrara ...... 28

1.2. A Arte do Maneirismo ...... 29

1.2.1. Termo e conceito de Maneirismo ...... 31

1.2.2. Características do Maneirismo ...... 35

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1.2.3. Música do Maneirismo ...... 38

1.3. O Madrigal Italiano Tardio ...... 41

1.4. Considerações ...... 53

2. O IDEAL POÉTICO ...... 57

2.1. Os poetas de Gesualdo ...... 59

2.2. O madrigal como estilo poético ...... 69

2.3. O ideal poético de Gesualdo ...... 71

2.4. Considerações ...... 95

3. A MÚSICA ...... 99

3.1. Estrutura Harmônica ...... 100

3.2. Reflexões sobre a linguagem modal de Gesualdo e seu tempo ...... 108

3.3. Cadências ...... 113

3.4. A Escrita Cromática ...... 123

3.5. Considerações ...... 135

4. TEXTO E MÚSICA ...... 139

4.1. Amor e Morte nos madrigais de Gesualdo ...... 147

5. UM ESTUDO INTERPRETATIVO ...... 175

5.1. – Considerações sobre a interpretação ...... 176

5.2. Luci Serene e Chiare – Uma análise em perspectiva ...... 196

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CONCLUSÃO ...... 211

BIBLIOGRAFIA ...... 217

APÊNDICE ...... 225

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À minha Beatriz, inspiração para tudo que faço. Com amor.

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AGRADECIMENTOS

À FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo finan- ciamento desta pesquisa;

Ao Prof. Dr. Carlos Fernando Fiorini, por toda a dedicação, competência e amiza- de com que orientou o meu trabalho de pesquisa desde o mestrado.

Ao grupo de pesquisa Camerata Anima Antiqua, cuja importância para este estudo está muito além dos ensaios que me concedeu fazer com alguns madrigais de Gesualdo.

À Professora Dra. Mila De Santis da Università degli Studi di Firenze, por propor- cionar um estágio que me desvendou muitas características da poesia do Renas- cimento.

À Professora Concetta Anastasi e ao Conservatorio Luigi Cherubini di Firenze, por me permitir dois meses de imersão total na obra de Carlo Gesualdo que resulta- ram em dois Concertos públicos à frente do Coro do Conservatório que foram mui- to valiosos para mim.

Ao Professor Marco Mangani da Università degli Studi di Ferrara, pelo interesse que demonstrou por esta pesquisa e pelos comentários precisos que fez sobre o assunto.

Aos funcionários da Biblioteca Berenson em Firenze, pela gentileza e atenção com que me receberam.

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A todos os funcionários da Biblioteca do Instituto de Artes da UNICAMP, especi- almente a Silvia, que sempre me auxiliou.

Aos amigos mais experientes que sempre se colocaram a disposição para me aju- dar na trajetória da pós-graduação, especialmente, Alexandra van Leeuwen, Dani- ela Lino e Fábio Scarduelli.

Aos meus pais, que mesmo de longe estiveram presentes em todos os momentos.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Veduta del Castello Estense ...... 11

Figura 2 - Il Perdono di Carlo Gesualdo ...... 25

Figura 3 - O Rapto da Sabina ...... 35

Figura 4 - Dalle odorate spoglie - Livro II - c. 1 a 3 ...... 103

Figura 5 - Ancidetemi pur, grievi moartiri - Livro III - c. 7 a 11 ...... 104

Figura 6 - Io Parto – Livro VI - c. 1 a 5...... 105

Figura 7 - Moro, Lasso Al Mio Duolo - Livro VI - c. 1 a 3 ...... 107

Figura 8 - Ma se avverrà ch’io moia - Livro II - c. 18 a 21...... 115

Figura 9 - Arde il mio cor - Livro IV - c. 19 a 21 ...... 116

Figura 10 - Che fai meco, mio cor – Livro V - c. 30 a 31 ...... 117

Figura 11 - Dolce spirto d’Amore - Livro III - c. 7 a 8 ...... 118

Figura 12 - Tirsi Morir Volea - Livro I - c. 21 a 22 ...... 119

Figura 13 - Se così dolce è il duolo - Livro II - c. 12 a 13 ...... 120

Figura 14 - Mercè grido piangendo - Livro V - c. 30 a 33 ...... 121

Figura 15 - Occhi del mio cor vita - Livro V - c. 43 a 45 ...... 122

Figura 16 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 8 a 9 ...... 126

Figura 17 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 11 a 12...... 127

Figura 18 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 29 a 32 ...... 128

Figura 19 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 17 ...... 129

Figura 20 - Cor mio, deh, non piangete - Livro IV - c.12 e 13 ...... 130

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Figura 21 - Ancide sol la morte - Livro VI - c.37 e 38 ...... 131

Figura 22 - Resta di darmi noia - Livro VI - c.7 e 8 ...... 132

Figura 23 - Itene, o miei sospiri - Livro V - c.19 e 20 ...... 133

Figura 24 - Gioite voi col canto - Livro V - c.22 e 23 ...... 134

Figura 25 - Amor, pace non chero – Livro I – c. 1 - 2 ...... 148

Figura 26 - Nè tien face o saetta – Livro II – c. 9 - 10 ...... 149

Figura 27 - Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14 ...... 150

Figura 28 - Candida man – Livro II – c. 27 - 30 ...... 151

Figura 29 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III - c. 25 – 31 ...... 152

Figura 30 - Che fai meco, mio cor – Livro IV – c. 5 – 7...... 154

Figura 31 - Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 4 ...... 155

Figura 32 - Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c.1 - 2 ...... 157

Figura 33 - Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48 ...... 159

Figura 34 - Baci soavi – Livro I – c. 19 – 21 ...... 160

Figura 35 - Ma se avverrà ch’io moia – Livro II – c. 11 – 13 ...... 161

Figura 36 - Come esser può ch’io viva – Livro I – c. 33 - 34...... 162

Figura 37 - Languisco e moro – Livro III – c.13 – 18 ...... 163

Figura 38 - Languisco e moro – Livro III – c. 25 – 28 ...... 164

Figura 39 - Ivan dunque o crudele – Livro IV – c. 24 - 29 ...... 165

Figura 40 - Mille volte il dì moro – Livro VI – c. 42 - 48 ...... 167

Figura 41 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36...... 168

Figura 42 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3...... 170

Figura 43 - Crudelissima doglia – Livro III – c. 31 – 33 ...... 171

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Figura 44 - S’io non miro non moro – Livro V – c. 27 – 30 ...... 172

Figura 45 - Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 - 45 ...... 173

Figura 46 - Baci, soavi e cari – Livro I – c. 1 – 5 ...... 177

Figura 47 - Amor, pace non chero – Livro I – voz I – c. 1 – 2 ...... 179

Figura 48 - Amor, pace non chero – Livro I – voz 1 – c. 1 – 2 ...... 180

Figura 49 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – voz I – c. 26 - 31 ...... 180

Figura 50 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – c. 25 – 31 ...... 181

Figura 51 - Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48 ...... 182

Figura 52 - Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14 ...... 183

Figura 53 - Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 3 ...... 184

Figura 54 - Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c. 1 - 2 ...... 185

Figura 55 - Io Parto – Livro VI – vozes: II,III,IV e V c.1 - 3...... 186

Figura 56 - Si gioioso mi fanno i dolor miei – Livro I – Voz I e II - c. 17 - 21 ...... 187

Figura 57 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36...... 189

Figura 58 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3...... 190

Figura 59 - Luci serene e chiare – Livro IV – c. 47 – 52 ...... 192

Figura 60 - Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 – 45 ...... 194

Figura 61 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 3 - 6 ...... 200

Figura 62 - Luci serene e Chiare – Livro IV - c. 13 - 18 ...... 200

Figura 63 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c.1 – 2 ...... 206

Figura 64 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 6 ...... 207

Figura 65 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 18 – 19 ...... 207

Figura 66 - Luci Serene e chiare – Livro IV - c. 6 -7...... 208

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Figura 67 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 11 - 12 ...... 209

Figura 68 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 1 a 3 ...... 210

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La poesia è musica allo stadio embrionale

Pietro Misuraca

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INTRODUÇÃO

O Renascimento artístico produziu um dos repertórios musicais mais ri- cos de toda a história. Os compositores daquele período tiveram o papel de trans- formar a música dos ambientes religiosos da idade média, essencialmente monó- dica e modal, em uma polifonia complexa e sofisticada que fizesse jus ao novo ambiente do Renascimento. No caminho que esta música percorreu entre os mo- tetos de Dufay (ca.1400-1474) até os madrigais de Monteverdi (1567-1643), é possível identificar um desenvolvimento compreensível, cujos avanços técnicos eram coerentes a cada passo. Mas como todo desenvolvimento histórico, há pon- tos em que o caminho esperado surpreende, apresentando fenômenos inespera- dos. A obra do compositor italiano Carlo Gesualdo pode ser apresentada como um destes momentos, em que seu perfil estético é inovador até mesmo para os pa- drões do nosso tempo. O compositor, que nasceu em 1566 e faleceu em 1613, traz em sua bi- ografia elementos pouco comuns. Membro de uma das famílias mais ilustres do século XVI, Gesualdo combinava o poder que tinha de fato, alcançado através de sua riqueza e dos nobres títulos que possuía, com a fama de ser um “príncipe compositor”, fama esta que o tornou um dos homens mais conhecidos de seu tempo. Soma-se a isto o enredo biográfico que se envolveu após ter cometido um famoso “crime de honra”, quando assassinou sua primeira esposa, Maria D’Avalos, conhecida como a mais bela dama do reino de Nápoles, e seu amante, o também nobre, duque Fabrizio Carafa (IUDICA, 1993, p.79). Todos estes ele- mentos fizeram de sua biografia um ícone do século XVI a qual é preservada por inúmeros registros documentais. Apesar de todo o peso desta história pessoal, foi em sua obra como compositor que Gesualdo se afirmou como um marco do Re- nascimento e mais de 400 anos depois de sua morte ainda é uma fonte de estu- dos a ser explorada.

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O catálogo de suas obras contempla dois livros de motetos, Sacrae Cantiones, de 1603, um livro de motetos para a semana santa, intitulado Respon- soria de 1611, e os seis livros de madrigais italianos publicados originalmente en- tre 1594 e 1611. São nestes últimos que encontramos a parte mais extensa e sig- nificativa de sua produção. Algumas composições avulsas de sua juventude, e outras instrumentais, são encontradas em edições independentes, mas sua fama foi mesmo conquistada através de sua obra madrigalesca. Somando os seis livros, têm-se ao todo 125 madrigais italianos com- postos para cinco vozes, com apenas duas exceções que foram escritas para seis partes. Encontramos neles todas as principais características da escrita polifônica do Renascimento e a relação estreita entre música e a poesia humanista. Mas, apesar desta caracterização estar de acordo com o repertório daquele período, o contato direto com estas obras se mostra complexo, tanto para o intérprete quanto para o ouvinte. A escrita musical utilizada e desenvolvida pelo compositor se torna um desafio aos músicos de nosso tempo, graças ao virtuosismo técnico e a uma linguagem única e sofisticada. Foram estas inovações da linguagem que transfor- mam a obra em um ponto fora do caminho natural da música do Renascimento, ao mesmo tempo em que a coloca como uma referência daquela fase artística. O discurso harmônico que a música promove é a característica mais marcante em uma primeira abordagem. Sua escrita cromática, que é constante nas obras, vai se intensificando ao longo dos livros e o caracterizando como um repertório repleto de efeitos sonoros. Estas construções musicais inesperadas es- tão intrinsecamente ligadas à expressão textual das peças. Gesualdo elabora sua música a partir do poema utilizado, mas também se diferencia dos demais compo- sitores do período por manipular previamente estes textos, alterando-os até en- contrar a forma que julgava ideal para sua música. Esta busca por um poema que lhe agradasse constitui o seu ideal poético. A partir destes elementos da obra e sua inserção no período em que foi composta, propomos um estudo que estabelecesse uma relação entre o ideal poé- tico e a escrita musical dos madrigais. O objetivo deste estudo é identificar, atra-

2 vés deste ideal, as intenções expressivas do compositor e como ele as colocou na sua música, ampliando a compreensão desta linguagem e as possibilidades inter- pretativas. Desde o início desta pesquisa ficou clara a importância de se contex- tualizar historicamente o período referente à obra de Gesualdo, levando em conta mais o entorno ao compositor do que seus eventos pessoais. Grande parte da bi- bliografia existente sobre o assunto se dedica mais aos fatos biográficos do que as questões relevantes ao seu ambiente artístico. No entanto, o universo no qual Ge- sualdo estava inserido apresenta as maiores contribuições para o estudo de sua obra, especialmente através da convergência existente entre a escrita musical empregada e o ambiente artístico da cidade de Ferrara em fins do século XVI, que se revelou a chance de interagir esta obra com um universo exterior maior. Gesualdo se ligou à cidade de Ferrara durante um período importante de sua vida como compositor, e muito de suas características estilísticas que eram vistas como incomuns e, em alguns casos, relegadas a excessos e excentricida- des, fazem mais sentido quando inseridas na rotina musical e poética daquela ci- dade. Orientado por esta evidência, relacionamos o desenvolvimento artístico da corte da cidade com o desenvolvimento da escrita madrigalesca de Gesualdo. O período em que a obra foi composta, fins do século XVI, traz uma particularidade, a diferenciação de um segmento artístico dentro do Renascimen- to, intitulado como Maneirismo. Suas origens estéticas estão nas artes plásticas, especialmente na escultura e na arquitetura, mas a relação que faz com a lingua- gem musical e poética resulta em conceitos que auxiliam na compreensão geral deste repertório. O madrigal italiano é considerado a principal expressão do Ma- neirismo na música, principalmente pela liberdade artística que este gênero confe- ria aos compositores. Sua linguagem experimental e harmonicamente ousada está de acordo com os principais conceitos que caracterizam esta corrente estilística. No caso específico dos madrigais de Gesualdo encontramos uma relação ainda mais intensa, pois as definições da música do Maneirismo e de seus madrigais se confundem. Incluir esta obra em um universo estético maior que o próprio compo-

3 sitor e poder compará-lo com elementos de outros compositores e outras lingua- gens, mostrou-se valioso para este estudo. Apesar do interesse que este caráter experimental da obra e seus ele- mentos estilísticos inovadores despertam, foi mesmo na relação construída entre a música e a poesia que encontramos a parte mais importante desta pesquisa. Toda a música do Renascimento foi construída através desta relação, em que as ima- gens descritas pelo texto poético eram retratadas na música. No entanto, Gesual- do foi além que os demais compositores de seu tempo por assumir para si o do- mínio do texto. Foi possível, através de comparações documentais, comprovar e observar as alterações que o compositor operou em alguns textos que escolheu para ser base de seus madrigais. Estas comparações demonstraram que sua atu- ação nos textos foi aumentando, desde pequenas alterações de termos e inver- sões de frases até reescrever, ele mesmo, os poemas inteiros. Ficou cada vez mais evidente que esta busca por uma forma específica de poema que o fazia al- terá-los, em alguns casos de forma drástica, era motivada por uma predileção tex- tual que tinha. Conhecer esta sua preferência poética e conseguir caracterizá-la esteticamente nos revelou muito sobre suas intenções musicais. A falta de relações externas ao compositor contribuiu para a relevância de se investigar este ideal poético. Sua posição de nobre lhe conferia uma situa- ção distinta entre os demais compositores, pois ele não necessitava ter laços em- pregatícios ou de servilismo com nenhuma instituição. Até mesmo sua relação com a doutrina católica e sua produção de música sacra era distinta, pois o com- positor estava próximo dos mais altos cargos dentro da hierarquia da igreja e tinha garantido sua independência de escolhas. Esta situação permitia a ele elaborar um repertório que não precisava seguir um tipo de tendência estética específica, tornando-se cada vez mais pessoal e dedicado a seus próprios anseios artísticos. A partir da caracterização de seu ideal poético foi possível chegarmos até esses seus anseios. A obra composta por Gesualdo não se revela unicamente pelos ele- mentos estilísticos e poéticos. A própria linguagem musical empregada pelo com-

4 positor nos apresenta características desafiadoras. Todo o repertório do Renasci- mento se localiza em meio à transição dos sistemas de composição modal/tonal. Muitos dos avanços técnicos que os compositores daquele período propiciaram à arte musical se deram na direção desta transição, que só iria se concretizar efeti- vamente a partir do século XVII. Seus madrigais se distanciam deste processo transitório por não apontar, em sua estrutura harmônica, o caminho natural do to- nalismo que viria na sequência. Gesualdo os constrói utilizando elementos dos dois sistemas, mas ino- va ao utilizar em conjunto a eles construções musicais que não se alinham a ne- nhum deles, e reserva a estes trechos as passagens de maior expressividade e tensão narrativa. O uso recorrente da escrita cromática e o aumento de sua impor- tância ao longo dos livros estão diretamente relacionados com esta inovação. A caracterização deste terceiro sistema utilizado vem sendo desenvolvida pela mu- sicologia especializada desde a década de 60 do século XX e foi denominado, pelo estudioso Edward Lowinsky, como “harmonia do século XVI”, ou “atonalismo triádico” (1961). Mas o desenvolvimento de seu estudo ainda merece atenção, por ser um segmento musical bastante restrito a alguns compositores daquelas déca- das finais do século. O uso que o compositor fez da tradição modal em seus madrigais expli- ca muito de sua técnica. São inúmeros os trechos em que se observa construções genuinamente modais, em que o uso de cadências características e processos imitativos equilibrados e simétricos não deixam dúvidas de seu domínio sobre esta linguagem. O mesmo se observa em outros trechos claramente tonais, ou pelo menos, próximos do que poderia ser considerado assim naquela época. O que interliga estes trechos e nos revela as intenções do compositor é a relação com a narrativa poética. A música concebida pelo compositor se utiliza da aproximação e do afastamento das resultantes musicais esperadas, sejam elas modais ou tonais, como forma de chamar a atenção de seu ouvinte, ou seja, como uma ferramenta retórica.

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Diante destes elementos, necessitava-se de uma abordagem interpreta- tiva em que os resultados provenientes destas reflexões pudessem atuar em con- junto. Para isto, os livros de madrigais foram primeiramente reorganizados em três fases cronológicas que evidenciam como se deu o amadurecimento deste estilo. A partir desta reorganização, concentrou-se o estudo na interação entre a música e o texto. Direcionando o estudo especificamente para a questão textual, encon- tramos as bases para caracterizar o ideal poético do compositor que se mostrou uma importante ferramenta para o entendimento de suas intenções artísticas. Sua caracterização foi possível mediante a análise das alterações efetuadas por ele ao longo de seus livros de madrigais. Gesualdo tinha por prática adaptar o poema que iria utilizar como base para suas obras, adequando-o às suas preferências textuais. Este processo, denominado aqui de manipulação textual, foi se aprofun- dando ao longo do amadurecimento do compositor a ponto de se observar, na fa- se central, que o poema utilizado estava tão alterado do seu original que se torna- ra outro texto. Identificou-se nesta análise das alterações que existia uma coerên- cia estética que evidenciava uma predileção poética do compositor. A caracteriza- ção destas preferências estéticas nos permitiu traçar o ideal poético do composi- tor. Dentro deste ideal poético encontramos alguns temas recorrentes. No geral, são temas estreitamente ligados ao universo amoroso, cuja conceituação apresenta uma simplicidade inicial, porém, seu uso por parte de Gesualdo os tor- nam complexos ao longo da obra. Estes temas principais se traduzem a partir de dois termos poéticos: amor e morte. Ambos os termos apresentam paradoxos conceituais que foram larga- mente utilizados pelo compositor em sua elaboração musical. O termo amor traz em si a dualidade de ser a fonte de alegrias e prazeres, o amor correspondido, ao mesmo tempo em que se torna a origem de todos os tormentos sentimentais, quando se configura como o amor trágico. Aliado a isto, temos a origem primeira do termo morte como sendo a interrupção da vida, e também sua vertente mais

6 utilizada pelo compositor, que é a morte como expiação do sofrimento, ou a “morte desejada”. Amparado pela infinidade de imagens e cenas narrativas dúbias e complexas que estes dois termos renderam à narração poética, Gesualdo constrói as bases de seu universo amoroso. Através da análise do uso destes termos foi possível identificar determi- nadas ferramentas musicais utilizadas pelo compositor para se alcançar efeitos expressivos e também diferenciar com mais propriedade o amadurecimento de sua escrita e caracterizar individualmente cada uma das três fases de sua compo- sição. Criou-se, assim, um conjunto básico de informações que podem servir co- mo parâmetros para futuras incursões por estas obras. A observação de alguns trechos característicos que são recorrentemente identificados na obra também nos permitiu que algumas considerações sobre questões interpretativas pudessem ser feitas. Os madrigais que compõe os seis livros de Gesualdo são obras com- plexas que representam um período artístico marcado pelo virtuosismo técnico e expressivo. Os resultados oriundos das discussões e observações que contem- plam esta pesquisa permitiram o aprofundamento de uma visão interpretativa que ressalte o valor artístico deste conjunto de obras.

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1. ASPECTOS HISTÓRICOS

Os madrigais italianos de Carlo Gesualdo (1566-1613), compostos na fase final do período do Renascimento, apresentam características específicas a este momento histórico que exigem um olhar diferenciado. Sua contextualização histórica e estilística será abordada neste capítulo. Inicialmente, será apresentado um levantamento histórico sobre a cida- de de Ferrara, local onde Gesualdo passou o período mais importante de sua vida como compositor e recebeu importante influência artística. Também conterá uma reflexão acerca do estilo artístico no qual sua obra se insere. Por se tratar do final do Renascimento, um período de transformações sociais e estéticas, a arte produ- zida neste momento recebe uma classificação diferente, denominada Maneirismo. A inclusão do repertório de Gesualdo neste segmento artístico e a identificação desta estética na música do compositor também são tratadas neste texto. O Madrigal Italiano é o gênero musical ao qual o compositor mais se dedicou. Sua importância para a música do período e suas diferenças da forma mais tardia, que Gesualdo utilizou, serão discutidas e analisadas.

1.1 Ferrara

O desenvolvimento da arte do Renascimento foi financiado em grande parte pela estrutura de mecenato que se construiu na época. A sociedade passava por uma profunda transformação saindo das pequenas estruturas do feudalismo e organizando-se em polos maiores, o que resultaria nos estados modernos do sé- culo XVIII. A figura do mecenas, dotado de dinheiro vindo das trocas comerciais cada vez mais crescentes e lucrativas, transforma-se na principal opção de patro-

9 cínio cultural. A igreja católica que sempre foi a responsável por patrocinar e em- pregar os artistas continua, neste tempo, seu papel de preponderância, mas as diversas crises políticas e religiosas envolvendo seus dirigentes somadas a refor- ma protestante e a consequente contra-reforma tomaram parte considerável de sua atenção no período e favoreceram o fortalecimento de outras vias de desen- volvimento artístico. Encontramos, então, nos séculos que formam o período do Renascimento as famílias de mecenas que promoveram o desenvolvimento artís- tico do período. Essas famílias patrocinavam a classe artística e preenchiam o espaço de poder que ficara vago entre a decadência do senhor feudal e o que viria a ser o rei dos estados modernos. Seu domínio avançava no campo político e econômico transformando as cidades importantes em pequenos estados auto-suficientes com governo local e estruturas completas de corte e exército. Assim, desenvolveram- se situações como a da família Medici que governou a importante cidade de Flo- rença entre o século XV até o XVIII, ou da família Sforza que governou Milão entre 1395 até sua tomada pelos Espanhóis em 1540. O poder conquistado por essas cortes extrapolava os limites da cidade envolvendo questões maiores como o co- mércio de toda a região Italiana e mesmo o poder papal, pois, muitas famílias ad- quiriam o poder e prestígio de nomear papas de sua linhagem. Estes fatores resul- tavam em grandes rivalidades entre elas e verdadeiras guerras entre as cidades vizinhas. Mas para o estudo do desenvolvimento artístico do período, em especi- al, o desenvolvimento da música do Renascimento, a corte da família d`Este em Ferrara chama atenção pelo prestígio e sofisticação que alcançou. Nesta cidade localizada ao norte da península italiana encontraremos, nos anos de dominação d`Este, uma lista de compositores, escritores, poetas e pintores que, juntos, con- tam a historia da arte do Renascimento. Para o estudo específico da música, iden- tificamos uma linha estilística desenvolvida dentro da cidade que vai do início do Renascimento com o compositor Guillaume Dufay (ca. 1400-1474) até o apogeu da escrita madrigalista tardia com o italiano Carlo Gesualdo.

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1.1.1. Desenvolvimento político da cidade de Ferrara

Figura 1 - Veduta del Castello Estense1

A presença da família d`Este em Ferrara data por volta de 1240, quan- do a cidade ainda era um pequeno povoado situado no Vale do Pó. Sua localiza- ção conferiu ao povoado, desde os primeiros tempos, uma importância política considerável, mas as estruturas sociais que organizavam o período não permitiam o desenvolvimento da localidade. A situação começa a mudar no século XIV quando as trocas comerciais que se expandiam em todas as cidades italianas propiciaram um excedente financeiro que seria o diferencial para transformar esta, e outras cidades, em pólos de importância política comparável a um estado.

1 MIGLIARI, Giuseppe (1822-1897) – acervo particular

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A corte da família d`Este governou efetivamente a região por mais de dois séculos, e foi a responsável por transformar a cidade em um ducado impor- tante e respeitado, a ponto de no final do século XVI ter sido anexada aos estados papais depois de disputas políticas e econômicas. O fator que mais chama aten- ção no caso específico de Ferrara foi o desenvolvimento artístico e intelectual que ocorreu. O ambiente esteticamente avançado que se alcançou foi resultado de expressivos investimentos que a corte promoveu desde o início de seu reinado. A construção desta estrutura intelectual privilegiada começou antes da ascensão ao poder dos d`Este, pois data do início do século XIV, com a criação de uma universidade e uma biblioteca (LOCKWOOD, 2009, p.10). Nota-se a impor- tância destes fatos se levado em consideração o período a que ele remonta, uma vez que a obtenção de livros na época era privilégio de poucas organizações, e a difusão do conhecimento estaria quase que exclusivamente a cargo da igreja cató- lica e seus membros, sendo a presença de uma universidade e uma biblioteca em Ferrara um fato relevante para sua história. O primeiro importante estadista d`Este a governar a cidade foi Niccolò III (1393-1441), assumindo sua função em 1420, quando a cidade ainda não se constituía em ducado. Sob sua tutela os primeiros músicos chegaram à região, entre eles alguns importantes instrumentistas de sopros, principalmente trompetis- tas, mas foi com a contratação do compositor Guillaume Dufay que a corte de Fer- rara começou a fazer parte da história da música. Também data de seu governo a chegada de Guarino de Verona (1374-1460) que seria o primeiro dos grandes no- mes humanistas que se mudariam para a Ferrara e ajudariam a construir a fama da cidade, entre eles destacam-se (1544-1595) e Ludovico Ariosto (1474-1533). O sucessor de Niccolò III foi seu filho Leonello (1407-1450), que dirigiu a cidade por apenas nove anos, entre 1441 e 1450. Mas esse tempo foi o suficien- te para que ele fundasse o grupo Cappella di Corti, grupo de cantores que influen- ciariam o desenvolvimento da música vocal de Ferrara assim como o gosto da corte por essa formação musical. Sua criação foi importante para o desenvolvi-

12 mento dos dois principais gêneros musicais do Renascimento em Ferrara, o mote- to e o madrigal italiano. A manutenção e desenvolvimento da Cappella pela família d`Este também influenciou nas contratações dos melhores cantores que haviam disponíveis no momento, e, portanto, ajudou na consolidação de um ambiente musical de alto nível técnico. Com a morte de Leonello, assume o poder Borso d`Este (1413-1471) que governaria a cidade entre 1450 e 1471. Foi em seu período que o título de ducado foi concedido à cidade, tornando Borso o primeiro duque de Ferrara. Esse período evidencia um predomínio de instrumentistas na corte, em detrimento dos cantores que lá haviam. Destaca-se a contratação de Pietrobono Del Chitarino (1417-1497), lutenista, considerado na época o melhor instrumentista de seu tem- po (EINSTEIN, 1971, p.8). No entanto, foi com a ascensão de Ercole I (1431-1505) em 1471 que Ferrara conheceria o seu apogeu político, econômico e, consequentemente, artís- tico. O duque, que era um intelectual muito interessado nas artes e dedicou parte de seu tempo em viajar e conhecer outras culturas, foi o responsável por transfor- mar a corte da cidade em um disputado centro artístico. Uma das passagens mais significativas de sua biografia é a viagem que fez até Paris onde conheceu a mú- sica realizada na igreja de Notre Dame. Este contato fez com que, posteriormente, Ercole criasse o primeiro coro duplo de Ferrara, com homens e meninos, além de atrair e contratar para sua corte os músicos Jacob Obrecht (1457-1505) e Josquin Des Prez (ca. 1445-1521), concentrando assim o que temos de mais significativo em todo o período. Na sucessão de Ercole I nos deparamos com duas figuras importantes, Alfonso I (1476-1534) que governará a cidade entre 1505 e 1534, e Ippolito I (1479-1520) que ficou conhecido como Cardeal Ippolito, por entrar para o colégio dos cardeais em Roma. Neste período Ferrara adquiriu mais prestígio e importân- cia política, além de atrair compositores como Antoine Brumel (1460-1513) e Adri- an Willaert (ca.1490-1562). Destaca-se também o casamento de Alfonso I com

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Lucrezia Borgia, conhecida personagem do período com importantes ligações ar- tísticas. Os dois últimos representantes da família d`Este a ter o controle da ci- dade foram Ercole II (1508-1559) entre 1534 e 1559 e Alfonso II (1533-1597) entre 1559 a 1597. E foi nestas últimas décadas do século XVI que a cidade se afirmou como exemplo de centro musical avançado, desenvolvendo experimentações harmônicas que resultariam em correntes estéticas específicas dentro da música do Renascimento. Estas correntes artísticas de tão avançadas e específicas a es- ta época que são, acabam gerando dificuldades na sua classificação nos dias de hoje. Os compositores mais importantes dessa fase final são Cipriano da Rore (1515-1565), Luca Marenzio (1553-1599), (1545-1607) e Car- lo Gesualdo, que juntos, edificaram o que hoje conhecemos como Música do Ma- neirismo. Em 1598 o papa Clemente XVIII alega a ilegitimidade da sucessão ao trono dos d`Este e não reconhece mais o governo da família no ducado. Seus exércitos papais passam a sitiar a cidade e exigir a renúncia da família que aban- dona a cidade e passa a residir em Modena, cidade que fazia parte do ducado. Com a saída dos d`Este Ferrara deixa de ser um centro de intelectuais e no desenvolver da arte barroca não exercerá mais o papel de protagonismo ar- tístico que tinha. Mas a trajetória dos compositores que ali estiveram e o desen- volvimento da música que produziram são suficientes para traçar uma linha lógica que demonstra o desenvolvimento técnico do Renascimento. Além disso, a suces- são dos compositores que residiram em Ferrara entre os séculos XV e XVI e suas respectivas obras são importantes indícios do caminho musical que propiciaria o surgimento da música tardia do Renascimento, em especial, a obra de Carlo Ge- sualdo.

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1.1.2. As Influências musicais e culturais da primeira metade do século XV

A primeira parte do século XV foi importante para a cidade de Ferrara por preparar as bases de sua vida cultural. A corte da família d`Este ainda se es- tabelecia como governo na cidade e já apresentava indícios do desenvolvimento que imprimiria. O primeiro governante, Niccolò III, demonstra seu interesse para com as propostas humanistas quando confia a educação de seu filho, Leonello, a Guarino de Verona. Esse famoso humanista da época inaugurou em Ferrara o estudo das línguas clássicas, em especial o grego, além de fornecer ao sucessor do trono uma ampla formação em gramática, retórica e moral filosófica (LOCKWOOD, 2009, p.30). Para o cronista da segunda metade do século XV Johannes Ferrarien- sis, Leonello tinha uma formação cultural rara, e isso contribuía para o desenvol- vimento do círculo intelectual da cidade (LOCKWOOD, apud FERRARIENSIS, 2009, p.30). Em 1436 outro fato mudaria o ritmo intelectual da cidade, pois nesse ano iniciou-se os contatos entre Niccolò III e o Papa Eugenio IV (1383-1447) para organizar a transferência do Concilio da Basiléia, iniciado em 1431, para Ferrara. A mudança da sede do Concílio se deu no ano seguinte, 1437, mediante o inves- timento financeiro que Niccolò III aceitou fazer, mas já em 1439 houve nova mu- dança para Florença. O encontro ecumênico, que visava à reconciliação da igreja romana com a igreja ortodoxa grega, não apresentou resultados significativos nos seus propósitos, mas foi importante para a vida cultural da cidade. A presença em Fer- rara de Guarino foi decisiva para a escolha da cidade como sede do evento, uma vez que ele foi o principal intérprete entre os lideres gregos e os integrantes da igreja católica. Durante as negociações e organizações do concílio, Ferrara rece- beu pela primeira vez a visita do compositor Guillaume Dufay, em maio de 1437 (idem, p.33).

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Um importante traço da cultura italiana no século XV foi a presença constante de artistas vindos de outras regiões, e durante várias décadas deste século suas cidades não produziram nenhum músico de expressão genuinamente italiano. Porém, absorveu e estimulou nomes vindos de outras partes do continen- te, especialmente os músicos vindos do reino da Borgonha, ou franco-flamengos, como eram conhecidos. Esses compositores representam a principal corrente de composição do Renascimento. Por esse motivo temos como o primeiro nome im- portante a ter relações com a corte d`Este, o compositor borgonhês Guillaume Dufay. O local de nascimento de Dufay não é conhecido, mas a base de sua educação foi dada na cidade de Cambrai, que fazia parte dos países baixos até ser anexada ao reino da França em 1678. Dufay iniciou sua vida musical como menino cantor e logo passou a viver nas cidades italianas, incluindo Roma e Flo- rença, como se tornou comum aos compositores franco-flamengos (BROWN, 1976, p.27). Sua obra é considerada a principal expressão da transição do Medie- val para o Renascimento por conter elementos da nova relação entre música e texto que marcaria esta transição estilística. Apesar de sua estreita ligação com Ferrara, o compositor nunca residiu oficialmente na cidade, mas seu contato com os membros da família d`Este era muito próximo, sendo inúmeras as obras que o compositor dedicou a seus integrantes. O mais conhecido exemplo é a balada C`est bien raison, que Dufay dedicou a Niccolò III. As características da escrita musical de Dufay representam bem a mú- sica do início do Renascimento e também o desenvolvimento da polifonia neste momento. Temos a base do moteto isorrítmico com um maior controle das textu- ras homogêneas e a presença de tríades, ou seja, com o intervalo de terça pre- sente. Esse procedimento que é novo, tendo em vista a escrita medieval, abriu possibilidades para um direcionamento harmônico que seria desenvolvido pela escrita dos franco-flamengos. Também encontramos em Dufay uma maior liberda- de com os contextos rítmicos, elaborando contornos suaves e mais independen- tes. Seu controle das dissonâncias tornou-se uma importante característica desta

16 fase do Renascimento. O compositor escreveu chansons, motetos e missas, al- gumas das quais bastante executadas até hoje. Seu estilo de composição ficou conhecido como um exemplo da primeira geração dos franco-flamengos. Diante do conhecimento que temos das estreitas relações de Dufay com a corte de Ferrara, e a existência de inúmeras obras dedicadas por ele aos integrantes desta corte, podemos assumir suas características musicais como in- fluências musicais presentes nos primeiros anos da família d`Este na cidade de Ferrara e, assim, traçar o panorama musical da primeira metade do século XV.

1.1.3. O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez

Os anos em que Ferrara esteve sob o governo de Ercole I, entre 1471 e 1505, representariam a fase mais movimentada, política e artisticamente. O du- que, que era filho de Niccolò III, recebeu sua educação em Nápoles e teve grande instrução nas artes militares e políticas, mas desde cedo demonstrou seu interes- se pelas ideias humanistas, o que ajudaria a torná-lo um dos nobres mais impor- tantes para o Renascimento Italiano (TUOHY, 2002, p.534). Ercole assume o trono de Ferrara após a morte de seu meio irmão Bor- so, que havia feito um curto governo em Ferrara priorizando a música instrumen- tal. Os seus primeiros anos de governo foram marcados pelas crises políticas e guerras enfrentadas por Ferrara, em especial a guerra com a República de Vene- za, entre 1482 e 1484. Mas foi nos últimos anos de sua vida que Ercole propiciou os fatos mais relevantes para a vida intelectual de Ferrara. A maturidade do duque representa a fase de maior tensão espiritual de sua vida. Alguns fatos demonstram claramente seu descontentamento com a igre- ja católica, instituição na qual ocupa um papel de destaque, por ser um nobre. Sua aproximação pública com o padre dominicano e reformador Girolamo Savonarola (1452-1498) foi relevante para a tomada de posição de Ercole contrária ao papa

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Alexandre VI. Savonarola nasceu de uma importante família de Ferrara, mas, após iniciada sua vida como religioso, tornou-se uma figura conhecida por propor refor- mas no sistema católico de então. Entre os anos de 1490 e 1493 Ercole realiza importantes casamentos com seus filhos, resultando em alianças políticas com as cortes dos Gonzaga e dos Sforza. É nesse período que acontece o casamento de seu filho Alfonso com Lucrecia Borgia, filha do papa Alexandre VI. Essa contradição de casar Alfonso com a filha do papa não aconteceu de forma tranquila, visto seu descontentamen- to com o pontífice, mas foi resultado de um longo processo político que seria im- portante para a cidade de Ferrara. Esse fato demonstra o conflito entre o homem e o estadista. Lucrecia Bórgia acabou exercendo um grande papel na disputa política de Ferrara, e por conta de sua personalidade e das lendas que se formou em tor- no dela transformou-se em uma das figuras mais conhecidas de todo o Renasci- mento. Nascida em 1480, filha ilegítima do espanhol Rodrigo Bórgia, Lucrecia passou a ser conhecida quando seu pai tornou-se papa, em 1492. Por conta dos inúmeros episódios caricatos de sua trajetória, a maior parte dizendo respeito a sua vida íntima, a fama de Lucrecia crescia como sendo uma mulher frívola e de pouca moral, mas quando, em 1501, se torna esposa de Alfonso d`Este e muda- se para a cidade de Ferrara, o que vai chamar a atenção de todos na corte é seu refinamento e sua cultura. Durante o período em que foi duquesa contribuiu para o avanço intelectual da cidade, e atraiu personagens importantes ligados à cultura. Destacam-se a vinda para a cidade dos escritores Ludovico Ariosto e Erasmo de Roterdã (1466-1536), autor da famosa obra “Elogio da Loucura”, de 1509. No cenário musical temos na Ferrara da última década do século XV o apogeu da produção musical da corte. A Capella di corti que o duque mantinha no palácio era, nesse período, uma das maiores de toda a Europa, rivalizando em importância e tamanho com a capela papal. Um dado importante para se entender a posição privilegiada desse grupo de cantores formado na corte de Ferrara é o fato conhecido de o duque assistir e participar diariamente da missa, como era

18 esperado de um nobre católico. Mas se tem conhecimento de que Ercole também participava diariamente do ofício das Vésperas, que se realizava no final do dia, e muitas vezes tomava parte no coro, o que nos demonstra o interesse que tinha pelo grupo formado dentro de seu palácio (LOCKWOOD, 2009, p.150). A existência de um grupo de cantores com esse prestígio possibilitou o desenvolvimento da música vocal. Ciente disso, Ercole se empenhou para trazer o já famoso compositor e mestre de capela Josquin Des Prez para Ferrara como uma demonstração do poder artístico e econômico, pensando também na relevân- cia que teria no cenário musical a partir de então. Sua contratação definitiva aconteceu entre 1503 e 1504 e, apesar de ter sido por um período relativamente curto, representa o auge musical e a sedimen- tação das pretensões artísticas alimentadas pela família d`Este. Josquin está no ponto central de toda a música do Renascimento, junto com seus contemporâneos mais famosos, Jacob Obrecht (1457-1505), Heinrich Issac (ca. 1450-1517) e Pier- re de La Rue (1452-1518). Esses compositores formam o que é conhecida como a terceira geração dos franco-flamengos, e temos com eles a fase principal da poli- fonia (TUOHY,2002). O avanço e desenvolvimento que a música dessa geração atingiu são descritos como a junção, bem-sucedida, da escrita polifônica trazida pelos compositores do Norte com a melodia italiana. A produção do grupo é bastante numerosa e temos o advento do mote- to como forma preponderante, assumindo o papel que antes teria sido da missa. A característica que mais demonstra o desenvolvimento desta em relação às gera- ções anteriores é a expressividade que a música alcançou. O enlace entre música e texto, que marca a música de todo o Renascimento, assume agora a importân- cia que manteria até o fim desse período. Alguns autores, como Howard Brown em seu livro Music in the Renais- sance (1976, p.384), atribuem essa expressividade que a música de Josquin ad- quiriu ao procedimento de se compor apoiado em um cantus firmus de motivos melódicos mais curtos do que se fazia antes, o que garantia ao compositor mais liberdade para arquitetar a estrutura da música. Temos assim um repertório em

19 que as vozes assumem características mais independentes e, portanto, mais ex- pressivas. Desenvolve-se nesta época o que conhecemos como ponto de imita- ção, ferramenta pela qual o discurso musical alcança efeitos de contrastes tanto melódicos quanto de texturas. Muitas obras de Josquin poderiam servir de exemplo do tipo de compo- sição musical representativa para este período em Ferrara, mas a missa composta por ele em homenagem ao duque Ercole, Missa Hercules Dux Ferrarie, se destaca dentre as demais. Ercole encomendou a Josquin uma obra que fizesse referência direta a ele. Para tal objetivo, Josquin compôs, provavelmente entre 1503 e 1504, a missa que tem como base de composição um soggeto cavato que solmiza as letras latinas do nome do duque Ercoles. A técnica do soggetto cavato foi inaugurada por Josquin Des Prez nesta missa, o que por si só já a coloca em uma posição de destaque na história da mú- sica. Basicamente, a técnica consiste na relação das sílabas de uma palavra a partir do processo de solmização proposto por Guido de Arezzo (ca. 995-1050), que usou como base o hino latino de São João Batista (MENGOZZI, 2010, p. 1-9). Após a missa em homenagem ao duque muitas outras obras do próprio Josquin e de outros compositores passaram a utilizar esta técnica. Entre eles des- taca-se Adrian Willaert em seus motetos em homenagem ao duque de Milão, Francesco II Sforza. O próprio duque Ercole recebeu outras obras em sua home- nagem, repetindo a técnica desenvolvida por Josquin, destacando-se a de Cipria- no da Rore. O exemplo da missa composta por Josquin e toda a sua importância como compositor no período do Renascimento nos ajuda a traçar um panorama dos acontecimentos musicais em Ferrara no período de governo do duque Ercole I. Podemos resumir essas características como a polifonia franco-flamenca, o pensamento humanista (através da preocupação com o texto) e a melodia italiana. Tendo o compositor Josquin Des Prez como o exemplo mais significativo e famo- so, sua ligação com a corte de Ferrara demonstra a maturidade artística que a corte d’Este havia desenvolvido naquele momento.

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1.1.4. O mecenato de Ippolito d`Este e as influências de Adrian Willaert

Duas figuras que representam bem a vida social e cultural de Ferrara na primeira metade do século XVI são as do compositor Adrian Willaert e de seu primeiro mecena, o cardeal Ippolito d`Este. Ippolito nasceu em 1479, filho do duque Ercole I, e sua participação na vida política e cultural de Ferrara foi intensa, apesar de não ter sido duque. Sua posição frente à igreja católica e também a de patrono das obras de artes o torna- ram uma figura central do período. Sua entrada para o colégio dos cardeais o con- feriu a posição de destaque que o cargo tinha. O gosto pelo luxo e requinte repre- senta a marca maior de sua biografia, um bom exemplo disso foi a reforma que ele empreendeu no Palazzo San Francesco em Ferrara, tornando-o uma das obras de arquitetura mais importantes da cidade. Ippolito também ficou conhecido por ter sido um grande viajante e, desta forma, ter tido contato com as principais tendên- cias artísticas da Europa de seu tempo (LOCKWOOD,1985, p.85-112). A maior contribuição musical de Ippolito para Ferrara foi o compositor franco-flamengo Adrian Willaert (1490-1562), com o qual manteve intenso contato e assumiu o patrocínio do início de sua carreira. O local de nascimento de Willaert ainda é causa de discussão entre os historiadores, mas o fato conhecido é de ser um compositor franco-flamengo edu- cado em Paris, como não era raro acontecer. Ainda jovem transferiu-se para Ro- ma, na primeira década do século XVI, e o contato com o coro da capela papal e as composições específicas para este grupo foram decisivas na sua formação musical. Mas sua ida para o serviço do cardeal Ippolito d`Este foi o divisor de sua trajetória. Ippolito passou a levar Willaert em suas viagens, o que colocou o com- positor em contato com diversas correntes musicais diferentes da italiana, incluin- do seu contato com a Hungria onde, provavelmente, residiu entre 1517 e 1519. Após a morte de Ippolito, em 1520, Adrian Willaert se integra ao serviço do duque

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Alfonso I em Ferrara, onde permanece até 1525. No ano de 1527 assume o posto em que ficaria até o final de sua vida e desempenharia a função mais importante de sua carreira, a de mestre de capela da catedral de São Marcos, em Veneza. A importância de Willaert para a história da música pode ser atestada, por exemplo, pela importância de seu discípulo Giosefo Zarlino (1517-1590). Além de compositor, Zarlino transformou-se em um dos mais importantes teóricos do Renascimento. Em seus escritos temos a possibilidade de um maior entendimento da escrita de seu tempo, em especial na obra Instituzioni Armoniche de 1558, quando documenta muito dos processos técnicos da música do período como, por exemplo, as possibilidades de sistemas de afinação utilizados na época2. Willaert também foi o principal responsável por desenvolver a ligação entre música e texto, que seria imprescindível no desenrolar do período. Foi o primeiro compositor que temos notícia de ter a preocupação em colocar as sílabas do texto exatamente abaixo das notas a que deveriam ser cantadas na partitura, o que nos demonstra sua preocupação com a articulação exata do texto da música. Uma das obras mais importantes do compositor foi sua publicação de- nominada Musica Nova, de 1559, na qual combina dois gêneros importantes do Renascimento, o madrigal e o moteto. A utilização desses dois gêneros na mesma publicação não era comum no século XVI, mas os 27 motetos escritos a partir de textos bíblicos, em especial do velho testamento, e os 25 madrigais feitos sobre sonetos de Petrarca chamam atenção por demonstrar a habilidade do compositor na relação entre música e texto. A maior parte das obras está escrita para cinco ou seis vozes a cappella, mas também constam uns poucos exemplos para 4 vo- zes que, juntos, representam o que de mais característico e relevante Willaert pro- duziu. A ligação de Adrian Willaert com o cardeal Ippolito d`Este representa a manutenção, pela corte de Ferrara, de sua privilegiada situação com a vanguarda da produção musical no início do século XVI.

2 "Gioseffo Zarlino", in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie. 20 vol. London, Macmillan Publishers Ltd., 1980.

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1.1.5. A permanência de Cipriano da Rore

A contratação de Cipriano da Rore por Ercole II, em 1546, demonstra a evolução do tratamento dado aos compositores pela corte de Ferrara. Sua perma- nência na cidade por mais de treze anos e todos os benefícios documentados que recebeu do duque, tais como prêmios e licenças para viagens, demonstram a im- portância que seu papel de compositor representava para a família. O período em que esteve a serviço dos d`Este mostra a sedimentação da estrutura artística que a corte havia montado na cidade, e a relevância de sua contratação para o desen- volvimento musical foi ainda mais importante. Cipriano da Rore foi pupilo de Adrian Willaert, o que o coloca em conta- to com o que teve de mais importante na geração pós-Josquin. A formação musi- cal que recebeu garantiu a ele um estilo de composição com o domínio da polifo- nia no seu estilo mais alto, como era conhecido o estilo desenvolvido por Palestri- na (1525 – 1594) em Roma. Mas o que o torna indispensável na transição do alto Renascimento para os madrigalistas do fim do século é sua escrita musical repleta de elementos textuais e retóricos. Apesar de ter composto um bom número de motetos e canções sacras, são seus madrigais a cinco vozes que demonstram maior domínio da escrita. Ne- les o compositor desenvolveu procedimentos pouco comuns até o momento, e que depois dele se tornariam quase que uma norma de composição, como por exem- plo, a escrita para cinco vozes e as alterações cromáticas. Mas, como escreveu Alfred Einstein em seu livro The Italian Madrigal, todos os procedimentos musicais importantes encontrados na escrita dos madrigalistas tardios do Renascimento foram antecipados por Rore, por isso a importância de sua presença na corte de Ferrara (EINSTEIN,1971). Suas características musicais englobam várias técnicas juntas: vão da escrita imitativa até a homofonia, dos resultados triádicos simples até as passa- gens mais cromáticas, e também comportam estilos quase de declamação silábica

23 ao uso requintado de melismas. Essa amplitude de procedimentos caracteriza bem seu papel de transição entre as duas últimas gerações de compositores do Renascimento. Mas é no trato com o texto que Rore mais se destacou. Sua habilidade em capturar e refletir na música as imagens citadas no texto tornam seus madri- gais importantes documentos dos reflexos do humanismo na música, além de res- saltar a importância da poesia e da retórica textual. Um dos exemplos mais conhecidos dessa escrita é seu madrigal O Sonno. Nesta obra, identificam-se claramente todas as influências que o composi- tor recebeu de Willaert e seus contemporâneos no trato das palavras do texto. Ao mesmo tempo, identifica-se a presença constante de cromatismos e efeitos har- mônicos mais drásticos, que se tornaria a base das composições a partir de então. Portanto, ele mantém as características do que era feito antes e desenvolve as tendências do que viria a partir dele. Com Alfonso II no governo da cidade a situação de Rore muda a ponto de o compositor deixar a cidade para não voltar mais. Em 1563 assume por um curto período de tempo o posto que havia sido de seu mestre Willaert na catedral de São Marcos em Veneza, mas na época Cipriano da Rore já havia escrito seu nome na história do desenvolvimento da música do Renascimento, em especial pelos anos que passou em Ferrara.

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1.1.6. Carlo Gesualdo

Figura 2 - Il Perdono di Carlo Gesualdo3

De todos os elementos musicais e personagens que foram descritos até agora nenhum é tão simbólico e característico para Ferrara como Carlo Gesualdo. Sua estada na cidade, assim como sua obra e a posição que ocupou, o distingue de todos os outros compositores, transformando-o no mais importante produto da vida musical de Ferrara. Em 1594 Gesualdo se casa com a sobrinha do duque Alfonso, dona Leonora d´Este, e muda-se para Ferrara para fazer parte da família (WATKINS, 1973, p.37-39). Só por isso já temos uma situação atípica, pois sua ida para cida-

3 BALDUCCI, G. (1560-1631) Igreja de Santa Maria delle Grazie, Gesualdo, província de Avellino, Italia.

25 de não se deu através da intenção da corte em tê-lo a seu serviço, mas sim com o compositor se tornando membro dela. A sua origem nobre também deve ser nota- da, pois Gesualdo ainda era pouco conhecido como compositor nesta fase de sua vida, mas já bastante conhecido como o príncipe de Venosa, principado onde nas- ceu. Todos esses fatos são importantes para mostrar a relação diferente que o compositor tinha com a música, que não representava para ele uma obrigação ou um meio de ascensão social, mas uma atividade de escolha pessoal que exercia. Também devemos levar em conta sua ligação com a igreja católica, que foi se es- treitando com o passar dos anos e se revelando um elemento que iria refletir dire- tamente na sua produção musical. O compositor teve, desde a infância, uma relação muito próxima com as altas hierarquias da igreja. Sua mãe era sobrinha de papa e seu tio, Carlo Borro- meu, tornou-se cardeal de grande relevância na época e, depois de morto, foi transformado em santo pela igreja com o auxílio do compositor (idem, p.4-6). So- ma-se a isto, as tragédias pessoais de Gesualdo que o colocaram grandes desvi- os psicológicos, como nos descrevem seus biógrafos, especialmente o norte ame- ricano Glenn Watkins autor do livro Gesualdo – The Man and His Music, publicado pela primeira vez em 1973. Todos esses elementos pessoais refletiram no desen- volvimento de seu estilo de composição, deixando-o cada vez mais afastado dos procedimentos comuns e esperados pelos ouvintes da época e propiciando a ela- boração de uma música cada vez mais pessoal e distinta. Muita importância se dá à biografia de Gesualdo atribuindo aos tristes acontecimentos de seu primeiro matrimônio - que resultariam no assassinato da esposa e de seu amante - fatos que deixariam marcas em sua escrita musical. No entanto, a ida de Gesualdo para a cidade de Ferrara em 1594 se revela um evento com especial importância para sua obra, pois as influências que ali teria e o con- texto musical da cidade influenciariam sua formação e seu estilo. A mudança para cidade acontece por ocasião do seu segundo casamento, mas também foi motiva- do pelos assassinatos cometidos por ele. Sua posição de príncipe exigia, pelos costumes da época, alguma ação que limpasse sua honra diante do adultério pu-

26 blicamente conhecido de sua primeira esposa. No entanto, os assassinatos come- tidos por ele chocaram e assustaram seus súditos, exemplo disto é a quantidade de poemas e lendas que se seguiram ao episódio, de forma que, mesmo não tido retaliações legais por seus atos, era importante sua saída de Nápoles, onde resi- dia na época. O repertório publicado por Carlo Gesualdo após sua ida a Ferrara está compreendido em dois livros de motetos sacros, um livro contendo os responsó- rios fúnebres para a semana santa e mais seis livros de madrigais. Nestes últimos encontramos o que de mais ousado e experimental foi composto no período, por conter grande parte dos elementos musicais desenvolvidos até então pelos com- positores que passaram por Ferrara. O compositor segue a tendência antecipada por Cipriano da Rore de colocar a música a serviço do texto, demonstrando e re- criando as imagens sugeridas por ele. Gesualdo está no auge da transição dos sistemas modal para o tonal e, portanto, no longo processo de experimentações com as combinações de sons que resultaria no tonalismo do século XVIII. Mas estas experimentações sonoras caíram no gosto da cidade e de seus músicos formando uma atmosfera musical de muita expressividade e resultados sonoros incomuns. Desta forma, Gesualdo transformou-se no mais experimental de todos os compositores do Renascimento, deixando em seus madrigais e motetos as inovações que o tornariam conhecido. A escrita do compositor é repleta de passagens cromáticas e dissonân- cias sem preparação. Sua forte relação com o texto faz com que Gesualdo promo- va efeitos sonoros que acabam rompendo com a continuidade ou progressão harmônica em nome de ressaltar uma ou outra palavra. Este procedimento resul- tou em um repertório de difícil execução, por promover relações harmônicas pouco comuns. A classificação da obra de Gesualdo também se tornou um tema com- plicado para os autores contemporâneos. Assim como era comum em todo o Re- nascimento, encontramos na escrita trechos predominantemente modais e polifô- nicos em contraste com outros mais tríadicos, que poderiam ser descritos como

27 próximos ao sistema tonal. No entanto, no caso de Gesualdo, esses trechos mais triádicos não apresentam relações fortes entre as tríades a ponto de traçar uma progressão harmônica que seja reconhecível, dificultando assim sua classificação como tonal. A maior importância de Gesualdo para Ferrara está no fato de não ter sido uma experiência isolada. Encontramos a figura conhecida do madrigalista Luzzasco Luzzaschi (1545-1607), que antes da chegada de Gesualdo já elaborava na cidade a obra que influenciou e preparou a chegada do príncipe de Venosa. Luzzaschi, que nasceu e morreu em Ferrara, era conhecido desde a juventude por seu domínio do órgão. Temos documentado o contato que teve com o archicem- balo microcromatico desenvolvido por Nicola Vicentini (1515–1575), o que deve ter contribuído para sua formação musical. Seus sete livros de madrigais a cinco vo- zes influenciaram diretamente a música de Carlo Gesuado (ATLAS, 1998, p.562- 564). A obra de Gesualdo chama atenção por vários motivos, mas principal- mente por seu alto valor artístico e seu caráter único. Este repertório é indispensá- vel para o entendimento da evolução musical em Ferrara durante o governo da família d’Este e a consequente relação com o desenvolvimento da música no Re- nascimento, por apontar o auge da sofisticação e desenvolvimento técnico que esta música alcançou.

1.1.7. A saída da corte d`Este da cidade de Ferrara

Com a saída de Ferrara da família d´Este, em 1598, coloca-se fim a um período de prosperidade artística pouco visto em outros lugares. A partir do início do século seguinte a cidade não teria mais a importância e o requinte intelectual daquela época, mas a produção musical desenvolvida nos anos em que a corte permaneceu lá são suficientes para marcar a história da música. A anexação da cidade aos estados papais seria o ponto final de um processo iniciado desde o governo de Ercole I. A relação entre a corte d`Este e o poder papal vinha se dete-

28 riorando cada vez mais, e as razões para isso são, em geral, políticas, devido ao crescente interesse que o ducado exercia. Em 1598 o duque Alfonso II morre e não deixa herdeiros legítimos. O sucessor direto seria seu sobrinho Cesare d`Este, que era neto de Alfonso I. O fato é que ele era fruto de seu segundo relacionamento iniciado após a morte da esposa legitima Lucrecia Borgia, com Laura Diante (WATKINS,1973, p.77-80). Mas esse segundo casamento jamais foi legitimado pela igreja. Essa situação era o pretexto que o papa Clemente VIII (1536-1605) precisava para declarar ilegítima a sucessão na corte de Ferrara e confiscar as terras em benefício dos estados papais. Cesare chegou a se declarar Duque de Ferrara a revelia do papa, mas recuou diante da excomunhão e da ofensiva que o exército papal promoveu, siti- ando a cidade e ordenando sua rendição. No mesmo ano de 1598 a família d`Este se transfere para Modena que torna-se a nova capital do ducado. Ferrara não deixa de ter o título de ducado, mas nunca mais obteve o prestígio e a importância política econômica e, principalmente, artística dos anos sob o domínio da corte d`Este. A corte, agora sediada em Modena, continua a ter relações importantes com toda a política europeia e realizar os importantes contra- tos de casamento que necessita para continuar influente. Sua permanência em Modena se deu até o século XVIII. Por fim temos a anexação da herança dos d`Estes a um novo ramo, os Austria-Estes, a partir do casamento de Maria Beatriz d`Este com o Arquiduque Fernando Carlos, em 1771.

1.2. A Arte do Maneirismo

A fase final do Renascimento desenvolveu um estilo artístico que se di- ferenciou do que havia sido produzido até então. A sofisticação técnica e intelec- tual alcançada pelos artistas do final deste período promoveu uma revisão da es- tética vigente, que tinha suas bases na observação e imitação do que se conhecia da cultura clássica. A partir desta modificação estética é que se identifica um novo

29 ideal artístico presente em muitas expressões da época, caracterizando um estilo denominado como Maneirismo. A arte maneirista se distingue da anterior por colocar a técnica e o vir- tuosismo à frente do ideal renascentista de se retratar a natureza, o que gera uma produção de alto valor artístico e muitas confusões ideológicas. Classificar as obras tardias do Renascimento em um estilo à parte não é uma prática totalmente contemporânea. O primeiro teórico a identificar o Maneirismo, e também nomeá- lo, foi o pintor e escritor Giorgio Vasari (1511-1574) ainda no século XVI. Vasari descreveu a arte de seu tempo como sendo repleta de leveza e sofisticação (SHEARMAN,1978, p.20). Mas, desde então, os conceitos que definem o Manei- rismo despertam muitas discuções e debates que vão desde questões de classifi- cação das obras até se o estilo existe ou não. Por ter sido uma arte produzida em um curto intervalo de tempo entre dois importantes períodos artísticos, o Renascimento e o Barroco, as obras hoje classificadas como maneiristas foram reféns de uma contextualização inadequada. O olhar que se tinha até meados do século XX sobre essa produção era de um estilo carregado de excessos e excentricidades que marcavam o final de um perí- odo, estereótipos que deixaram parte deste acervo ao largo dos estudos aprofun- dados sobre a arte do século XVI. De acordo com esta visão, cultivou-se durante muito tempo uma preferência pelas expressões artísticas mais conhecidas e ca- racterísticas do Renascimento, e mesmo do Barroco inicial, em detrimento àquelas produzidas no limiar desses períodos. De acordo com o estudioso John Shearman que dedicou seu trabalho “O Maneirismo”, de 1978, a tentar entender esse estilo a partir de várias visões diferentes, a expressão artística que o caracterizou foi afe- tada pela falta de entendimento. Falta essa, que prejudicou sua aceitação:

Tão grande é a confusão existente em nosso emprego atual do termo que uma reação perfeitamente natural dos historiadores da arte é afirmar que o Maneirismo não existe. (1978, p.13)

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Esta afirmação foi feita por Shearman no final da década de 60, antes da maior parte dos estudos realizados sobre o assunto. Mas o prefácio deste mesmo livro traz uma conclusão interessante, a de que nunca antes as obras ma- neiristas tiveram tanto valor atribuído como naquele momento. Esta informação é relevante por mostrar que, mesmo estando no início dos estudos sobre este seg- mento artístico, já era possível identificar um aumento do interesse. Portanto, te- mos a comprovação de que as obras maneiristas necessitam de um entendimento específico a elas para serem mais facilmente acessadas e apreciadas por nossos contemporâneos. Neste contexto, temos a música produzida no período como uma situa- ção ainda mais delicada. Alguns centros artísticos importantes da Europa, em es- pecial ao norte da península Italiana, desenvolveram um repertório musical que se distingue dos demais. Estas obras eram construídas sobre o virtuosismo técnico desenvolvido pela polifonia vocal renascentista e resultaram em um estilo à parte da música do Renascimento. Mesmo sem ter rompido com os procedimentos an- teriores, esta música apresenta dificuldades em ser classificada simplesmente como música do Renascimento. Muitas de suas características contrastam ou, pelo menos, se afastam do repertório mais conhecido dos renascentistas. A acei- tação de um subgrupo estilístico denominado música do Maneirismo contribui re- levantemente para seu entendimento, pois propõe uma conceitualização específi- ca a este estilo. No entanto, tendo a arte musical parâmetros mais abstratos do que as visuais, a aceitação e entendimento dos conceitos do repertório maneirista são ainda mais complexos.

1.2.1. Termo e conceito de Maneirismo

O termo que o nomeia deriva da palavra italiana maniera, que pode ser traduzida como “maneira” ou “estilo”. O próprio uso do termo já traz consigo uma série de questões quanto a seu valor e emprego, pois o conceito de estilo é mais amplo do que parece. Costuma-se utilizá-lo sem valor absoluto como, por exem-

31 plo, quando dizemos que tal obra tem o “estilo clássico”, ou “estilo barroco”. Mas na conceituação utilizada neste caso a palavra “estilo” passou a ter um significado absoluto, pois atribui-se às obras terem ou não estilo. Desta forma já identificamos um segundo problema conceitual quando analisamos que ter estilo, ou ser estilo- sa, também pode ser entendida de forma pejorativa ou positiva, dependendo da época. Um exemplo famoso desta diferença de valor atribuída ao termo “estilo” é a carta que o pintor Rafael Sanzio (1483 - 1520), juntamente com o escritor Bal- dasare Castiglione (1478 - 1529), escreveu para o Papa Leão X, em 1519, onde falavam e analisavam a arquitetura dos prédios de Roma. Nesta correspondência, as duas importantes personagens renascentistas descreviam os edifícios como sendo “privados de toda graça, sem nenhum estilo4“ (SHEARMAN,1978, p.15). Fica claro que, para eles, a conceituação de ter estilo era uma qualida- de necessária às abras de arte, assim como o próprio Vasari que enumerava “esti- lo” como uma das cinco qualidades essenciais que deveriam ser desenvolvidas pela arte do século XVI. Mas temos também o lado oposto do conceito, que muitas vezes coexistia temporalmente, pois, apesar da tendência do século XVI de apre- ciar a existência de estilo nas artes, havia os que atribuíam a ela um artificialismo desnecessário que corresponderia hoje ao depreciativo conceito de estilização. Um exemplo disso é o teórico do século XVII Giovanni Bellori (1613 – 1696), que atribui ao que ele chama de “vicio da maniera” a destruição da boa pintura entre o intervalo de tempo que vai dos pintores Rafael a Rubens (1577 – 1640) (idem, p.16). Além do problema conceitual causado pela denominação escolhida por Vasari no século XVII, também encontramos discuções contrastantes quanto à inserção do Maneirismo dentro do Renascimento, e até mesmo sobre como classi- fica-lo.

4 privi di ogni gratia, senza maneira alcuna

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Uma das ideias levantadas por Arnold Hauser em seu livro, Mannerism: The crisis of the Renaissance and the Origin of Modern Art (Maneirismo: A crise do Renascimento e a origem da Arte Moderna), é sobre a relação da arte produzida no Renascimento e a arte da Antiguidade. Os clássicos antigos haviam se forma- do dentro de um mundo relativamente mais simples. Para esses artistas, alguns conceitos complexos como o interesse pelo outro mundo, o subjetivismo e o dua- lismo entre corpo perecível e alma imortal, ainda não eram conhecidos ou tratados de formas mais concretas. Vale levantar como exemplo os rituais funerários da Roma antiga, ou mesmo do Egito dos faraós, quando estas ocasiões eram trata- das com ações práticas que não davam muitas margens a dúvidas sobre sua efi- cácia. Já o homem do Renascimento vivia em um mundo que havia sido pre- cedido pelo Medieval, que, entre outras coisas, desenvolveu a força do pensamen- to cristão e todos os seus dogmas relacionados à culpa e ao pecado. Portanto, o artista do Renascimento tinha que lidar com um mundo muito mais complexo espi- ritualmente do que seus pares da Antiguidade (HAUSER, 1965, p.19). Quando a sociedade do Renascimento acreditou poder retornar a um ideal estético baseado na perfeição estilística do mundo antigo, criou uma situação que se mostrou conflitante. A origem do Maneirismo foi justamente o colapso que a busca pela estética clássica sofreu, pois, o artista do Renascimento não poderia exteriorizar a harmonia que existia entre o saber técnico e o natural do mundo an- tigo, visto que seu universo filosófico era mais complexo. A partir dessa constata- ção, o Maneirismo é explicado por Hauser como sendo a crise da arte do Renas- cimento causada pela incompatibilidade destes paradigmas. Isto, somado às mu- danças politicas sociais e às crises do século XVI, tornou o final deste período um tempo de inquietação para os artistas. Mesmo quando se ocupa em estudar as características técnicas do Maneirismo, Hauser retorna a essa definição:

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Em contraste com a perspectiva amplamente uniforme e equilibrada da Renascença, o Maneirismo caracteriza-se por um senso de vida antitético e ambivalente que se expressa em estruturas formais aparentemente ir- reconciliáveis. (HAUSER, 1965, p.118)

A contribuição desta visão desenvolvida por Arnold Hauser para o estu- do e entendimento da arte maneirista está na reavaliação que se faz desta estéti- ca em relação à arte do Renascimento. A partir dela, a ideia de arte maneirista não será mais discutida com conceitos de declínio do valor artístico do Renasci- mento, mas como uma revisão de seus conceitos iniciais. Baseado nesta visão, a arte do Maneirismo passou a ser vista como a exteriorização de uma estética mais realista do século XVI.

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1.2.2. Características do Maneirismo

Figura 3 – O Rapto da Sabina5

5 BOLOGNA, G. (1529-1608) Loggia de’Lanzi, Firenze, Italia

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A discussão sobre o Maneirismo não fica apenas na questão do termo e dos conceitos utilizados, mas também sobre o que é e como é sua arte. A diferen- ça de interpretação sobre as características de ter ou não estilo acabaram resul- tando em um equívoco histórico ou, pelo menos, uma lacuna nos estudos, pois os estudiosos e artistas posteriores ao século XIX se acostumaram a olhar para a arte produzida no final do Renascimento com a conceituação de um período estili- zado demais, ou artificioso demais, como já foi descrito neste texto. Somente na segunda metade do século XX surgiram os primeiros estudos específicos sobre o tema e lançou-se um novo olhar a respeito dessas obras, solidificando o conceito, pelo menos, em alguns campos artísticos. No setor das artes plásticas, em especial a pintura e na arquitetura, aceitou-se mais facilmente dar uma denominação diferente ao que foi produzido naquele momento, visto a existência clara de uma estética comum a estas obras. Este fator possibilitou a aplicação de conceitos específicos a este estilo e gerou um maior entendimento e, consequentemente, uma maior aceitação. Os conceitos gerais atribuídos à arte do Maneirismo são a heterogeneidade, o estilo palaciano e, por vezes, elitista, a distorção da realidade e, principalmente, o paradoxo como ferramenta inerente à estética. Estes adjetivos são encontrados facilmente em qualquer texto ou estudo que se proponha a discutir a arte maneirista, mesmo sendo eles bastante abstratos e amplos. As duas principais características que se aplicam a toda arte maneirista são justamente aquelas que praticamente impedem qualquer caracterização mais ampla: o contraste e o paradoxo. Não sendo o Maneirismo uma expressão advin- da da ruptura total com os procedimentos anteriores, temos seu início repleto de virtuosidade técnica. Desta forma, desde o princípio a obra de arte maneirista, seja em qualquer campo das artes que esteja, apresentava uma excelência que a tor- nava difícil, artificiosa e, por vezes, exclusiva. E diante desta virtuosidade constan- te, as obras maneiristas são quase sempre únicas e muito personificadas na figura de quem a constrói. Deparamo-nos, então, com a situação de termos muitos Ma- neirismos distintos, quase que um Maneirismo específico a cada representante.

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Constatações como esta podem ser entendidas como aplicáveis a qualquer expressão artística de qualquer período, pois, sendo uma obra artística e tendo valor, pressupõem-se características únicas que a distingue das demais. Mas, ao se aplicar tal definição às obras do Maneirismo, sua abrangência se am- plia, por se tratar de uma expressão cuja coerência estética é dificilmente percebi- da. Como acontece a muitos exemplos de grupos heterogêneos demais, alguns conceitos e entendimentos amplos acabam não servindo a nenhum ou a todos ao mesmo tempo. Desta forma, a reflexão feita pelo estudioso Gustav Ho- cke sobre a literatura maneirista em seu livro sobre o tema, “Maneirismo na Litera- tura”, acaba tornando-se útil para todas as demais expressões maneiristas:

Disso decorrem as relações de tensão na literatura maneirista: cuidado artístico da sagacidade logística e impulso demoníaco-vital à expressão; busca intelectual esgotante, demasiado esgotante e delírio nervoso em metafóricas cadeias associativas; cálculo e alucinação, subjetivismo e oportunismo frente às convenções (anticlássicas); beleza delicada e ex- travagância assustadora; fascinação embriagadora e evocação quase oracional; propensão à estupefação e onirismo histérico; castidade idílica e sexualidade brutal; crendice grotesca e santa devoção. Estas tensões se tornam visíveis em toda arte maneirista e, em especial, em suas for- mas e motivos básicos. (HOCKE, 2005, p.17)

Descontados os excessos dramáticos e literários percebidos na citação acima, o que, aliás, é esperado de um texto que trata de literatura maneirista, as observações feitas por Hocke tem por mérito se aplicar a qualquer vertente artísti- ca do Maneirismo e também levantar conceitos importantes sobre o tema. Ao falar sobre a “busca intelectual esgotante”, o “cálculo e alucinação” e, por fim, a “beleza delicada e extravagância assustadora”, o autor consegue, na opinião deste pes- quisador, resumir eficazmente o que pode ser considerado o ponto chave da esté- tica maneirista: a utilização dos recursos intelectuais disponíveis através da apli- cação precisa dos conhecimentos técnicos para alcançar os efeitos mais inusita- dos e perfeitos que o artista julgar necessário.

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E ainda sem esquecer que se trata de um comentário destinado à litera- tura, esta citação faz muito sentido quando se tem como objeto de estudo a músi- ca que representa este estilo. Basta usar como referência alguns madrigais tardios do século XVI para atestarmos a relação com a citação acima, especialmente os compostos por Carlo Gesualdo.

1.2.3. Música do Maneirismo

Assim como nas demais artes, a música produzida a partir da segunda metade do século XVI se distinguiu do repertório anterior. Algumas características básicas da música – como as resultantes harmônicas e o tratamento textual – fize- ram com que este repertório não se encaixasse facilmente no mesmo segmento das obras de Josquin Des Prez, Machaut, Palestrina e outros compositores, mes- mo quando se leva em consideração as diferenças cronológicas e geográficas en- tre eles. Esta produção baseou-se principalmente no virtuosismo da linguagem, utilizando a técnica polifônica que havia sido apurada ao longo de todo o Renas- cimento em prol de uma estética musical mais ousada. Por conta destes elemen- tos, o repertório em questão exige um entendimento específico a ele, mas sua classificação não encontrou um consenso até hoje. A música traz consigo uma diferença com relação às demais artes que enfraquece a aceitação do Maneirismo – a falta de exemplos sólidos da produção anterior ao Renascimento, devido ao caráter temporal desta arte. Enquanto na pintura e na escultura é possível avaliar e comparar a produção das diversas fases do Renascimento com o patrimônio que se tem das culturas clássicas, na música isso não é possível, dada à inexistência de exemplos antigos. A dificuldade gerada a partir disto é que um dos pontos mais aceitos sobre o Maneirismo é de ser o pe- ríodo da arte renascentista em que a busca pelo ideal clássico da antiguidade foi substituída por sua própria desconstrução em meados do século XVI. Como na música não existe a relação com a produção clássica, geram-se as dúvidas quan- to à definição de o que é sua vertente no Maneirismo.

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Este impasse frente à aceitação ou não do estilo, e também a simplifi- cação de alguns teóricos que as classificavam apenas como composições tardias de um período, fez com que o repertório de alguns compositores italianos do final do século XVI e início do século XVII fossem menos executados e, também, me- nos apreciados que de outros. Mas a partir de estudos mais aprofundados, estas composições passaram a ser submetidas a algumas ferramentas de análise espe- cíficas a elas, principalmente quanto ao resultado harmônico da escrita emprega- da pelos compositores, que resultaram em uma redescoberta destas obras. Um dos principais exemplos destes estudos, que será recorrentemente utilizado por este pesquisador, é o livro Tonality and Atonality in Sixteenth-Century Music (Tonalidade a Atonalidade na Música do Século XVI) de Edward Lowinsky. Na medida em que o autor desenvolve mecanismos para se definir e analisar me- lhor este repertório, ele acaba se deparando com o conceito de Maneirismo e atri- bui a ele a chave para o entendimento completo desta música. Destaca-se tam- bém na década de 70, a autora Maria Rika Maniates, em seu livro Mannerism in Italian music and culture (Maneirismo na Música e na Cultura Italiana), com impor- tantes contribuições ao tema. Neste livro, a autora define o Maneirismo musical a partir de visões con- temporâneas a seus compositores, muitas vezes, bastante conflitantes. O ponto de interesse destas definições para este estudo é a revelação de que o movimento musical do Maneirismo trazia consigo uma autoconsciência dos envolvidos, se não dos próprios compositores, pelo menos dos teóricos e estudiosos do entorno a eles. Um exemplo disso é o poeta, humanista e teórico musical Henricus Glare- anus (1488-1563). Para ele, a música de seu tempo poderia ser dividida em quatro estágios principais: a infância, a partir de 1450; a juventude, por volta de 1480; a maturidade, depois de 1495; e o que ele denomina de idade velha, a partir de 1520 (MANIATES,1979, p.117-118). Descontando o juízo de valor que se tem nesta definição – o teórico defendia a polifonia do período de Josquin como sendo o ideal de escrita e tudo que se seguiu a partir dela ele considerava como o declí- nio do estilo – temos um importante atestado da existência de uma fase final da

39 música renascentista que pode ser reconhecida por nós pelos parâmetros atribuí- dos ao movimento maneirista. Outro exemplo trazido pela autora e que contrasta com Glareanus é o do teórico e compositor franco-flamengo Adrianus Petit Coclico (1499-1562). Ten- do sido pupilo de Josquin Des Prez e estudioso da produção musical de seu perí- odo, Coclico dividia os compositores do Renascimento em quatro grupos: os theo- rici (primeiros inventores da escrita polifônica); os mathematici (que desenvolve- ram complicados contrapontos); os praestantissimi (segundo ele, os mestres maio- res, grupo que inclui Josquin); e, finalmente, os poetici (mestres da expressão mu- sical) (MANIATES, 1979, p.120). O próprio Coclico se inclui neste último grupo e, ao contrário de Glareanus, não credita a esse segmento o declínio da perfeição musical, mas a um novo estilo de se fazer música com mais refinamento e elegân- cia. As duas definições trazidas pela autora Maria Rika Maniates constam de personalidades importantes do período, mas que não conheceram a fase mais tardia dessa expressão. Certamente, quando nos referimos aos exemplos de mú- sica do Maneirismo, nos apoiamos mais nos exemplos extremos que temos no final do século XVI e, até, no início do XVII. Por isso, adequando essas definições para o Maneirismo musical como um todo, podemos defini-lo como um repertório que utilizou o conhecimento técnico para promover efeitos sonoros ao longo de todas as obras, tornando, assim, a escrita experimental. Ao utilizarmos o distanciamento que hoje temos do século XVI e ten- tarmos, com base nos estudos realizados, traçar uma caracterização geral do re- pertório voltaremos à questão dos inúmeros Maneirismos que existem. Acabaría- mos por privilegiar o estilo próprio de alguns compositores em detrimento de ou- tros sem conseguir uma classificação adequada. Por isso, esta caracterização ge- ral pode ser substituída pela utilização da obra de alguns compositores como exemplos desta expressão e seu desenvolvimento. Os dois primeiros compositores que podem resumir muito dos conceitos importantes com suas obras são Cipriano da Rore (1516-1565) e Giaches Wert

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(1535-1596). Neles já encontramos o estilo de composição com a intensidade dramática do Maneirismo através de uma música apoiada na escrita cromática. Como ponto central do repertório, temos a obra de Luca Marenzio (c.1533-1599) que além das características acima, apresentou um grande domínio em criar ima- gens e cenas sonoras, utilizando a música como elemento textual. Os dois últimos compositores que passaram a representar a fase mais extrema do estilo são Luzzasco Luzzaschi e Carlo Gesualdo. Através deles, o Maneirismo musical de- senvolveu a tal ponto a escrita cromática e a representação das imagens textuais que o repertório é, por vezes, descrito por Lowinsky como “inquieto e desconfortá- vel”. Por fim, vale destacar que a música desenvolvida pelos artistas manei- ristas teve como principal meio de propagação o Madrigal Italiano. Foi através deste gênero, que surgiu e se desenvolveu no Renascimento, que o Maneirismo influenciou a música. A liberdade oferecida por este gênero, e o importante apoio da literatura maneirista, permitiu o desenvolvimento desta estética.

1.3. O Madrigal Italiano Tardio

O gênero madrigal é considerado o principal meio pelo qual se desen- volveu a música do Renascimento. Foi através da liberdade que sua forma ofere- cia aos compositores que a linguagem musical, que hoje associamos ao repertório renascentista, se edificou. Qualquer investigação ou pesquisa acerca do repertório produzido neste período necessitará de um conhecimento preliminar sobre este gênero. Para o estudo específico dos madrigais do compositor Carlo Gesualdo, faz-se necessário uma especificação ao que conhecemos como madrigal italiano. Os exemplos que temos das décadas finais do século XVI e início do XVII nos apresentam características específicas que os distinguem de quase tudo o que foi feito antes. Para esse segmento, onde se encontra toda a obra de Gesualdo, da- mos o nome de madrigal italiano tardio.

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Definir a origem do madrigal é uma das discussões mais amplas do es- tudo desta época, pois são inúmeras as expressões e formas musicais que contri- buíram para o seu aparecimento. Até mesmo o próprio madrigal do século XIII, que não deve ser confundido com o madrigal característico do Renascimento, consta como sua influência (EINSTEIN,1971, p.116). O fato de encontrarmos for- mas parecidas que eram classificadas no mesmo grupo, torna difícil esta defini- ção. Por exemplo, muito do que se classificou como frottola pode também ser re- conhecido, em uma análise mais aprofundada, como strambotta, capitolo, ode ou soneto (WATKINS,1991, p.111). O mesmo ocorre com o madrigal, que, devido à extensão de suas características, acaba resultando em situações mais complexas. No entanto, para o entendimento da fase final desse repertório, podemos conside- rar duas formas como suas origens, a frottola e a canzona. A necessidade de se encontrar a origem do gênero está na contribuição que ela pode dar à análise de suas características. Os exemplos de gêneros de música secular que temos no período se desenvolveram dentro e fora do ambiente palaciano. Este intercâmbio entre a cultura popular e a nobre refletiu-se nas com- posições, que apresentam características musicais amplas. Quanto mais informa- ções sobre o repertório precedente tivermos, maiores serão as condições de in- vestigação sobre o próprio gênero. Para isto, utilizaremos duas visões diferentes de dois autores para respaldar essa definição. Howard Brown, em seu livro Music in the Renaissance (Música no Re- nascimento), propõe uma definição prática e concisa sobre o assunto. Para ele, o madrigal pode ser considerado uma canzona com apenas uma estrofe (1976, p. 218). Através dessa definição, assumimos todas as características musicais da canzona como referências sobre o início do gênero que pesquisamos. Já o autor Alfred Einstein em seu livro sobre o madrigal italiano, The Ita- lian Madrigal (O Madrigal Italiano), também considera a canzona como uma das origens, mas se atém à frottola como a principal antecessora do madrigal. Para Einstein, foi através da transformação que a frottola sofreu ao longo do período que surgiu o madrigal como o conhecemos. Esse gênero consistia em uma com-

42 posição com uma voz principal acompanhada por uma linha de baixo e duas vo- zes de preenchimento. Com o desenvolvimento da polifonia e, principalmente, a influência do moteto, essas vozes intermediárias e a linha do baixo passaram a ter mais importância, tornando-se, então, uma composição a quatro vozes (1971, p.121). Todo esse processo, chamado por Einstein de “desintegração do estilo da frottola”, ocorreu durante o século XV. Mas seus desdobramentos para o estabe- lecimento da escrita madrigalesca aconteceram de forma efetiva na primeira parte do século XVI. A transformação da melodia principal acompanhada em uma escrita mais equilibrada entre as vozes privilegiou maior liberdade das resultantes triádi- cas da escrita contrapontística. Essas resultantes eram antes submetidas aos pro- cedimentos do sistema modal, o que limitava seu emprego. Com a independência que cada voz passou a ter em relação às demais, o discurso musical de cada uma tornou-se mais elaborado. Intensificam-se, assim, procedimentos que não eram tão comuns antes, como a utilização de terminações de frases diferentes uma das outras e a utilização de notas estranhas ao modo escolhido. Deste último proce- dimento, resultaria mais tarde a transformação da escrita modal, dando lugar à música tonal. Desde o início do madrigal até o auge de sua escrita tardia não houve um abandono total da escrita modal, mas uma aproximação com procedimentos tonais. Como descreve Einstein: “Já não existe mais um genuíno modo mixolídio, mas uma aproximação com a tonalidade de Sol Maior” (1971, p.119). Este processo de desenvolvimento musical rumo ao sistema tonal dos séculos posteriores ampliou os recursos musicais. Como já foi dito, a linguagem modal estabelecia parâmetros musicais limitados à expansão do que hoje cha- mamos de harmonia. Estas limitações não permitiriam o desenvolvimento de uma escrita musical tão repleta de efeitos sonoros, como na escrita madrigalesca. Lo- go, o processo de transição entre os sistemas composicionais, que se intensificou na escrita do madrigal, traduz-se como uma expansão dos procedimentos musi- cais que este repertório requeria.

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Uma maneira efetiva de se entender a forma tardia é observá-la através da comparação com a escrita anterior do Madrigal. Apesar de ser o mesmo gêne- ro, o resultado desses dois tipos de escrita são bastante diferentes e apresentam visões estéticas distintas. De acordo com o que observa Brown, os compositores representantes às gerações anteriores ao madrigal tardio, como a geração de Jo- squin Des Prez, por exemplo, representam o que ele define como “a idade da ino- cência” do madrigal (1976, p.228). Já a geração seguinte avançou e transformou essa forma de composição em algo virtuosístico. Vale destacar a necessidade em se definir a nomenclatura adequada para esse estudo. Alguns autores, como Glenn Watkins, referem-se ao madrigal produzido antes da escrita “tardia” simplesmente como madrigal italiano, já dife- renciando da geração final chamada por ele de madrigal tardio. Outros autores, como Howard Brown e Alfred Einstein, referem-se à escrita tardia como madrigal virtuosístico, também diferenciando da escrita anterior. Mas o próprio Howard Brown define as gerações de madrigalistas até a metade do século XVI (segundo ele temos duas gerações até esse período) como a do madrigal clássico (1976, p. 224). Diante disso, esse trabalho irá optar por referir-se à escrita madrigalesca anterior à fase final como madrigal tradicional, e a fase final que é o objetivo maior de estudo, como sendo madrigal tardio. Podemos classificar essa nova estética como uma ampliação das con- quistas feitas pelo humanismo neste gênero. Na maioria das vezes essa amplia- ção vem acompanhada do exagero nos procedimentos. Medir ou definir exata- mente o que é, e quanto é esse exagero, torna-se uma tarefa difícil, mas a consta- tação de que os procedimentos musicais mais inusitados são usados além dos limites esperados é um consenso entre os estudiosos do período. Na fase central do Renascimento encontramos a obra e os escritos de Adrian Willaert, um dos primeiros a propor uma junção mais cuidadosa entre o sentido do texto e a condução musical6. Desta forma, Willaert preparou as bases

6 Ver pág. 18.

44 do que iria se desenvolver no madrigal tardio, mas em seu tempo o aprofunda- mento da temática dos textos e sua expressividade não estavam em estágio tão avançados. Estes quesitos seriam largamente desenvolvidos na segunda metade do século XVI, estando em acordo com a transformação do madrigal. Mesmo esse procedimento, que remete à época de Willaert, foi bastante usado pelos madriga- listas tardios, cuja produção colocava o sentido do texto como parte inerente à música. Temos, então, um exemplo do exagero como procedimento comum neste repertório. O ponto de partida desta nova escrita acontece por volta da década de 40 do século XVI, e os motivos se aproximam do advento da estética maneirista. Até esse momento, não identificamos na obra dos compositores mais representa- tivos uma predileção por este gênero. Se utilizarmos como exemplo Josquin Des Prez, o compositor mais relevante do auge do Renascimento, perceberemos que, apesar de ter composto alguns madrigais, sua dedicação foi mesmo a chanson francesa (ROWLAND, 1964, p.25). Acompanha o exemplo de Des Prez outros de seus contemporâneos, como Alexandre Agricola (1446-1506), Jacob Obrecht (ca. 1450-1505) e Heinrich Isaac (ca.1450-1517). O caso da chanson também auxilia no entendimento deste estudo, pois sua importância no século XV assemelha-se ao que viria a ser posteriormente o madrigal. A liberdade formal que oferecia aos compositores tornava-a o gênero mais propagado naquele momento. Porém, sua linguagem musical se adequava mais aos temas pastoris, heroicos e até humorísticos, o que se tornou menos atra- tivo para a estética do final do período. Soma-se a isso as questões culturais de um gênero francês servindo à expressão cultural cada vez mais forte das cidades italianas. Por esses motivos temos a substituição da chanson francesa pelo ma- drigal italiano na maior parte da produção dos compositores a partir das décadas iniciais do século XVI. Existe uma diferença significativa entre o madrigal tradicional e a forma tardia no que diz respeito ao número de vozes da polifonia. O madrigal tradicional tinha, geralmente, sua escrita construída para quatro vozes. Evidentemente, que

45 em uma expressão artística tão ampla como este gênero, torna-se difícil fazer uma generalização como esta, visto os inúmeros exemplos famosos de madrigais tradi- cionais para mais de quatro vozes. No entanto, em comparação com sua forma tardia o predomínio era de quatro vozes na composição. Por outro lado, podemos analisar a forma tardia com a mesma generali- zação, atribuindo a ela o predomínio de composições para cinco ou seis vozes, concluindo que o madrigal tardio apresentava maior número de vozes em sua poli- fonia. Mas a importância desta discussão na caracterização do gênero está na diferença estrutural de escrita. Na fase tradicional encontramos a influência da escrita estritamente para vozes masculinas. O que também nos incorre em uma generalização, pois existem exemplos de compositores que recorriam à escrita feminina na fase tradicional. Porém, o comum era manter a tradição advinda da igreja católica de manter o canto com uma preponderância da voz masculina. Já na fase tardia do gênero, esta tradição se tornou menos importante, visto a ascen- são das cortes mais avançadas da época, como a de Ferrara, como polos de de- senvolvimento artístico e influenciando as demais localidades. Nestas localidades, a tradição do canto feminino sempre esteve presente. Esta característica encon- trou eco na composição madrigalesca. Portanto, em sua fase tardia, o madrigal passou a comportar com mais frequência a escrita para vozes mistas. O resultado prático deste evento, que o torna importante para esta pesquisa, é que o uso das vozes mistas privilegiava maior distanciamento entre as vozes da composição, tornando a escrita do madri- gal tardio com uma maior extensão da tessitura vocal. Esta característica interferiu diretamente no resultado sonoro por oferecer aos compositores maiores possibili- dades timbristicas e expressivas. Também temos uma diferença na elaboração das sessões da obra. A prática de dividir o madrigal em duas partes, comum na fase tradicional, continuou presente na escrita tardia, mas tornou-se recorrente o madrigal em apenas uma parte. O tamanho da composição passou a ser diretamente atrelado às necessi- dades narrativas que o texto impunha. Ou seja, o tamanho e a forma de apresen-

46 tação da música dependiam da integração da música com o texto. Usando como exemplo a própria obra de Gesualdo, percebemos um predomínio de madrigais escritos em duas partes até o seu quarto livro. Já nos dois últimos, o quinto e o sexto, a predominância é de madrigais escritos em uma única parte. Coincide com esta característica o fato de termos nos dois últimos livros os textos dos madrigais com atribuição anônima, que podem ter sido escritos sob a orientação do compo- sitor ou, até por ele mesmo. Portanto, com o domínio completo da concepção da obra, o compositor encontrou no madrigal a uma só parte o modelo que julgava ideal. O tratamento polifônico também difere do madrigal do século XV, tor- nando-se mais virtuosístico. Como o madrigal tardio trata-se de um estilo que não surgiu de uma interrupção brusca dos procedimentos anteriores, mas de um apro- fundamento do que já se fazia, temos na questão da polifonia uma análise elucida- tiva. Durante todo o período do Renascimento os compositores desenvolve- ram a escrita polifônica, na prática e na teoria. Aspectos técnicos como o equilíbrio da escrita, o tratamento dos saltos melódicos das linhas e o controle rigoroso dos intervalos harmônicos formados pelo enlace das vozes, foram sendo cuidadosa- mente aperfeiçoados e desenvolvidos. Com a transformação feita pela escrita dos tardios, que não romperam com essa tradição, deparamos com uma técnica poli- fônica já apurada e virtuosística alcançada por uma prática estabelecida desde o início do período. A preocupação com equilíbrio e simetria se transforma, a partir da me- tade do século XVI, em instrumento para se alcançar expressivos e inesperados efeitos sonoros. Os compositores utilizavam a desconstrução dos procedimentos polifônicos como forma de elaborar seus discursos musicais em coerência com o texto escolhido. Soma-se a isso um ininterrupto processo de experimentações harmônicas desenvolvidas por esses compositores, que resultaram em um reper- tório com frequente ocorrência de dissonâncias.

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Os procedimentos musicais que resultam em passagens dissonantes não são exclusivos à fase tardia. Durante toda a escrita do gênero madrigal a dis- sonância esteve presente e fez parte de seu desenvolvimento. A diferença da dis- sonância da escrita tradicional do madrigal para com a tardia está na sua impor- tância e abrangência, que passou a ser fundamental para esta nova estética. A preocupação com o discurso polifônico se manteve, mas a necessi- dade em se ressaltar passagens ou palavras importantes da narração poética le- vava os compositores a provocarem sessões dissonantes em pontos específicos. Dessa forma, temos a escrita dissonante utilizada como recurso retórico, o que aumentou sua ocorrência em comparação com a escrita anterior. O ambiente so- noro gerado por essa escrita tornava-se carregado de dramaticidade, o que gera- va, quase sempre, um resultado sonoro mais sombrio. A própria temática presente nos madrigais também serve de parâmetro para compararmos as duas fases. No decorrer do século XV até meados do XVI encontramos principalmente temas bucólicos e pastoris sendo tratados na escrita madrigalesca. A concepção musical mais descritiva do madrigal tradicional era melhor desenvolvida através de temas mais leves e cotidianos, muitas vezes com conteúdo que se aproximava até do enfoque humorístico. Como já foi dito com relação à chanson francesa, essa temática menos densa atraia mais a atenção dos compositores e representava bem aquele momento do Renascimento. Com o desenrolar do século XVI e o advento da estética do final do período, essa temáti- ca foi substituída por temas mais profundos e dramáticos. Mesmo a temática amo- rosa, presente em todos os momentos da escrita do madrigal, passou a ter um tratamento mais passional que anteriormente, dando aos compositores a liberdade para desenvolver com mais profundidade as imagens melancólicas que passam a fazer parte dos textos. Este desenvolvimento da temática amorosa refletiu-se nos inúmeros exemplos de madrigais cuja temática gira em torno do erotismo. Esses exemplos ficaram conhecidos como madrigais eróticos e foram comuns na fase final do Renascimento.

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Com esse aprofundamento da temática poética também se observa uma renovação dos poetas. O modelo Petrarquiano de poesia resiste às transfor- mações da escrita tardia, pois são comuns ainda trechos e citações de sua obra. Mas temos pelo menos dois nomes que se tornaram importantes nesta fase, am- bos representaram com suas obras o ideal estético do madrigal tardio. São eles: Torquato Tasso (1544-1595) com seu poema épico Gerusalem Liberata; e Giam- battista Guarini (1538- 1612), com sua pastoral Il Pastor Fido. A diferença desta nova poesia é o ambiente mais sombrio e emocional que continha, traduzindo me- lhor o resultado musical da escrita tardia. (BROWN, 1976, p.343). A partir disso, podemos considerar como a melhor forma de caracterizar a escrita do madrigal tardio a sua relação entre música e texto. Essa relação era importante desde a origem da escrita, mas, com as transformações e desenvolvi- mentos que resultaram na escrita tardia, passamos a observar a escrita musical a serviço da expressão do texto poético. Esta constatação não diminui a importância da linguagem musical na escrita do madrigal tardio em comparação com o texto, mas demonstra o quanto a relação entre as duas ganhou importância. O autor Allan Atlas em seu livro dedi- cado à música do Renascimento, , nos dá uma importante de- monstração do consenso que existe em torno desta definição ao intitular o trigési- mo oitavo capítulo de seu livro de “Música a serviço das palavras”7 (ATLAS,1998, p.619). Este capítulo trata especialmente das características alcançadas pela mú- sica italiana do final do século XVI e se utiliza do madrigal e de sua relação textual como linha condutora. Para isso, o autor elenca informações que vão desde Willa- ert até Monteverdi para comprovar suas alegações. Podemos considerar essa característica como influência direta do pen- samento humanista, que estava no auge de sua abrangência. O madrigal apresen- tou-se como a alternativa mais interessante para se trabalhar a relação entre mú- sica e texto.

7 Music in the Service of Words.

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Outro fator relevante na investigação está na origem dos principais ma- drigalistas tardios. É fato que toda a arte do Renascimento tem como base a pe- nínsula italiana – no caso da produção musical essa constatação se faz ainda mais pertinente. Porém, a maioria dos nomes representativos até então eram de compositores franco-flamengos. Já a última geração de madrigalistas, que são os responsáveis pela produção de madrigais tardios, é basicamente nativa das cida- des italianas. Mais do que um indício histórico, essa constatação nos traz elementos importantes na investigação musical, por retratar o amadurecimento da música italiana e quanto o madrigal se tornou uma expressão genuinamente italiana. As características culturais das cidades italianas, como a tradição poética vinda de Dante e Petrarca, encontram nesta fase final da estética do Renascimento o seu apogeu. Indicar um ponto preciso de transformação da escrita do madrigal para sua forma tardia não é possível, por se tratar de um processo longo e contínuo. Além disso, temos a produção madrigalesca das cidades italianas muito desiguais, sendo possível identificar fases diferentes praticadas ao mesmo tempo em centros artísticos distintos. Mas levando em consideração os aspectos mais importantes para esse estudo, podemos eleger a obra do compositor Cipriano da Rore como o início da produção tardia do madrigal. O compositor foi aluno de Adrian Willaert e, ao mesmo tempo, o primeiro a escrever de forma representativa o madrigal com características mais maduras. Por isso, torna-se um ponto de referência por fazer a ponte entre os dois estilos estéticos8. A partir de Rore, outros compositores passaram a contribuir com a nova estética do madrigal. Alguns representam com sua produção o momento de tran- sição das escritas, por terem madrigais que se assemelham com a escrita tradici- onal, mas em seu desenvolvimento passam a apresentar características que iden- tificam a escrita tardia. Como forma de exemplificar os compositores que apresen-

8 Ver página 21.

50 taram características tardias em seus madrigais, mesmo não sendo exclusivamen- te caracterizados por essas características, utilizaremos dois exemplos extremos. O primeiro que seria a transição para a escrita tardia e o segundo exemplo que transporia o limite pós-tardio. O franco-flamengo representa bem o primeiro caso, por ter desenvolvido ao longo de sua obra características que a aproximariam da escrita tardia, em especial, seus últimos anos de composição. (BROWN, 1976, p.343-348). Já o exemplo de , (1567-1643), que foi um dos nomes mais importantes do Renascimento, nos revela outro caso. Através de seus madrigais Monteverdi contribuiu para o desenvolvimento da escrita, mas sua obra caminhou para a transição entre o Renascimento e o Barroco. Por este motivo, os madrigais de Monteverdi foram mais importantes para a sedimentação da chama- da seconda pratica, do que da escrita tardia do madrigal. Esses compositores que apresentaram em suas obras tendências à es- crita tardia, mas não se apresentam diretamente como madrigalistas tardios estão em acordo com a afirmação feita acima de que a produção de madrigais nas cida- des italianas era desigual. Certamente, se o objetivo deste estudo fosse entender porque os citados compositores foram menos sensíveis às transformações que resultariam na escrita tardia, uma das respostas principais seria o ambiente musi- cal onde eles viveram. Wert, apesar de ter tido contato próximo com a corte de Ferrara, dedicou considerável parte de sua carreira às cortes de Milão e, em es- pecial, à corte de Mântua (EINSTEIN,1971, p. 511-519). Monteverdi, firmou seu prestigio musical após assumir o cargo de diretor musical da Basílica de São Mar- cos em Veneza. Depreende-se disso, que estes centros musicais não tinham um papel importante no desenvolvimento do madrigal tardio, como aconteceu com a cidade de Ferrara. Como representantes diretos da escrita tardia temos três nomes princi- pais: Luca Marenzio, Luzzasco Luzzaschi e Carlo Gesualdo. A ligação principal entre esses compositores é a corte da família d’Este na cidade de Ferrara, que

51 tornou-se neste período o principal centro cultural da escrita tardia do madrigal italiano. Além das comparações da escrita tardia com o madrigal tradicional e suas características musicais, outros fatores históricos ajudam no entendimento do gênero. Quando se analisa o processo de transformação que o madrigal teve na fase final do período como sendo um fenômeno resultante de uma nova socie- dade que se construía, obtemos mais parâmetros para uma análise eficiente da música. Temos como aceita a definição de que o madrigal é a junção entre a tra- dição melódica italiana com a polifonia trazida pelos compositores franco- flamengos. Mas quando nos detemos nas características da forma tardia, deve- mos levar em consideração outras características inerentes à cultura italiana do século XVI. Os exemplos tardios que conhecemos não deixam dúvidas de se tra- tar de um tipo de composição bastante sofisticada. Os elementos técnicos que o caracterizam, como a escrita cromática, por exemplo, estabelecem um alto padrão de qualidade musical necessária aos cantores que iriam executa-los, bem como da audiência que iria apreciá-lo. Desta forma, concluímos que a transformação do madrigal acompanhava também uma transformação intelectual do público para o qual essa arte servia. Deparamo-nos aqui com a definição de Musica Reservata, que se refere a um repertório de caráter exclusivista, refinado e de difícil acesso, que está diretamente relacionado com o madrigal tardio (MANIATES,1979, p.270- 274). Este termo foi utilizado pela primeira vez por Adrianus Petit Coclico (1499-1562), como uma forma de descrever o estilo de Josquin Des Prez (MANIATES,1979, p.260). Mas seu entendimento para a música do Renascimento passou a ser mais abrangente, por se referir a um novo ambiente social para o qual as composições estariam destinadas. Nestes ambientes a música secular obteve significativa importância. Sua função de entretenimento ganhou destaque com as transformações que o humanismo promoveu na época. A busca por um conhecimento mais abrangente do mundo, que fosse menos apoiado nas doutri- nas religiosas, continua sendo o centro do pensamento renascentista. Com isso, a

52 produção artística dedicada à contemplação estética, independente da espirituali- dade, passou a ter um papel mais relevante. A produção musical destinada a satisfazer esse público, que se tornou mais requintado e mais exigente, relativizou o predomínio da arte sacra nos ambi- entes nobres. Assim, encontramos uma música mais intelectualizada, que exigia dos ouvintes uma prévia formação intelectual e, como contrapartida, exigia cada vez mais um apuramento técnico das composições e execução. A esse repertório, aplicamos o conceito de Musica Reservata. Relacionando essas caraterísticas com as transformações promovidas pelo Maneirismo, encontramos o ambiente propício para o desenvolvimento do madrigal tardio. Ressalta-se a estreita relação que existe entre o movimento artís- tico do Maneirismo, o conceito de Musica Reservata e a classificação deste reper- tório como sendo madrigal italiano tardio. Essas três expressões pertencentes ao final do Renascimento são causa e efeito uma das outras, podendo, até mesmo, serem considerados aspectos diferentes do mesmo fenômeno.

1.4. Considerações

A partir do que foi dito neste capítulo sobre o Maneirismo Musical, con- clui-se que o entendimento desta estética não conheceu até agora um consenso que permita aprofunda-lo. Isso poderia se tornar uma razão para não colocar o estudo de seus conceitos e problemáticas no plano central de uma pesquisa. No entanto, mesmo as perguntas ainda sem respostas, ou com respostas inconclusi- vas sobre este tema, acabam por aproximar o ambiente, dito maneirista, da obra madrigalesca elaborada por Carlo Gesualdo. Como exemplo desta convergência nos contextos temos a questão da autoconsciência dos artistas. Conforme já citado neste capítulo, a autora Maria Rika Maniates se apoia em visões contemporâneas do século XVI para atestar que havia nos compositores uma percepção de que o repertório desenvolvido por eles era distinto do feito no passado imediato do mesmo século. Esse fato é utili-

53 zado como evidência da existência de uma estética distinta dentro do período do Renascimento. Soma-se a isto um interessante relato feito pelo teórico, escritor e pintor italiano Lodovico Dolce (1508-1568), quando uma de suas tragédias mais conhecidas, “Le troiane” (1566), foi editada pela primeira vez. Na ocasião, o autor, segundo consta no prefácio do livro “Maniera” E Il Madrigale de Don Harràn, pediu desculpas aos leitores por ter incluído no texto os versos de uma canção do com- positor Claudio Merulo (1533-1604). Segundo Lodovico, aquele tipo de poema não era para ser lido, apenas para ser musicado. O fato é que a canção de Merulo a que se refere Ludovico foi composta para um intermezzo dentro da tragédia do escritor e seu texto pode ser considerado como um claro representante da poesia da segunda metade do século XVI. Esse simples relato de época, somado a outros semelhantes, nos indica que mais do que conscientes de sua estética existia também uma inquietação por parte dos compositores e artistas em geral a respeito de sua própria arte. Como consta nesse mesmo prefácio de Harràn, é fato que, para aqueles poetas e com- positores, os poemas da segunda metade do século XVI não estavam à altura da tradição Petrarquista de antes e suas obras musicais também não estariam à altu- ra de seus predecessores. Diante disto e das demais características desta estética musical, alguns autores, como a própria Maria Rika Maniantes, atribuem a este momento alguns conceitos que remetem a uma crise de identidade dos artistas do final do século, tendo alguns autores denominado o evento como “desvios psicológicos”, atribuin- do uma contaminação das crises sociais que temos nas cidades italianas à classe artística, especialmente aos madrigalistas. Deixando de lado certos exageros na análise pessoal deste grupo de artistas, estamos diante de um cenário muito próximo do compositor Carlo Gesu- aldo, cuja biografia atesta reais sentimentos de culpa e conflitos. Portanto, ao inse- ri-lo neste contexto sua obra passa a fazer mais sentido. O próprio gênero do ma- drigal italiano tardio se encaixa nas características do maneirismo e acaba se con- fundindo com outros parâmetros da estética. Ainda utilizando os escritos da autora

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Maniantes, temos em seu artigo Mannerism: Effeteness or virility? (Maneirismo: Frivolidade ou virilidade?), que consta na edição de 1977 da revista especializada no assunto The Musical Quarterly, a conclusão de ser o Madrigal Italiano Tardio o exemplo mais forte de maniera na música (1977, p.284). Mesmo não se atendo aos motivos elencados pela autora para respaldar tal afirmação, este pesquisador concorda com a opinião e a embasa a partir de elementos já tratados neste texto. O madrigal é um gênero que se desenvolveu dentro do ambiente da corte e ao longo de sua trajetória foi se afastando de duas vertentes importantes da música do Renascimento: as expressões populares e a igreja. Portanto, tornou- se cada vez mais um gênero secular, ou mundano, como preferem os autores es- pecializados neste assunto, e excludente. Seus conceitos principais foram se ali- cerçando no paradoxo, na antítese e na união de ideias que, a rigor, se excluiriam. Esta forma de organizar seu universo de ideias acabou criando uma linguagem rebuscada, em que a busca pelo refinamento dos detalhes se sobressaia a qual- quer intenção de ser entendido. Temos, portanto, a criação de uma estética que acabou se caracterizando como um código secreto, difícil de ser entendida. Ao falarmos sobre sofisticação técnica, código secreto e estilo nobre, podemos estar nos referindo ao maneirismo musical e ao gênero tardio do madri- gal italiano, mas, curiosamente, podemos também estar tratando, com estes mesmos conceitos e termos, do ambiente musical da cidade de Ferrara. Certa- mente o desenvolvimento desta estética em conjunto com este gênero só poderia ter se desenvolvido da forma como aconteceu graças a um ambiente que tenha permitido tais eventos. Desta forma, temos nesta linguagem requintada e exclu- dente e neste ambiente palaciano com as mesmas designações, a conjunção per- feita entre a estética maneirista e o madrigal italiano, especialmente sua forma tardia. Mas ao pensarmos nos madrigais de Carlo Gesualdo e todos os elementos importantes que o revelam - dados biográficos do compositor, elementos musicais e texto - concluímos ser no ambiente maneirista que entenderemos com mais cla- reza está obra.

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Portanto, para este pesquisador, os elementos históricos e estéticos que caracterizam a arte maneirista, o madrigal italiano tardio e o ambiente musical da cidade de Ferrara são informações fundamentais para se entender os madri- gais de Gesualdo. A sequência deste estudo, que se dará a partir dos elementos textuais e musicais da obra, terá sempre como pano de fundo as reflexões propos- tas por este primeiro capítulo da tese.

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2. O IDEAL POÉTICO

O estudo do gênero madrigal durante o período do Renascimento de- monstra a cada etapa a ligação estreita que existiu entre música e poesia. Esta ligação nos auxilia no entendimento da escrita musical por demonstrar quais eram as intenções do compositor, além de ser importante nos aspectos interpretativos da obra. De acordo com documentos e tratados contemporâneos aos composito- res do final do Renascimento é possível assumir que este seja um fenômeno consciente, ou seja, os compositores e tratadistas da época sabiam que sua pro- dução musical se alicerçava na relação poética de uma forma mais profunda que anteriormente. A diferença com a produção madrigalesca anterior à fase final do período é o grau de importância que a escrita poética passou a ter nas composi- ções. Dois desses documentos são especialmente importantes para esta pesquisa por indicar esta autoconsciência e esclarecer determinadas característi- cas. Através das informações registradas por eles, pode-se atestar a importância que o significado das palavras tinha para este tipo de composição e a preocupa- ção dos compositores em retratar musicalmente este sentido. O primeiro é o tratado escrito pelo humanista e cardeal veneziano Pie- tro Bembo (1470-1547) intitulado Prose dela volgar lingua, publicado pela primeira vez em 1525. Bembo, que era membro de uma nobre família da Itália, dedicou essa obra a discutir e entender a língua italiana e sua relação com a música. Para tal objetivo, o humanista usou como modelo a poesia de Petrarca (1304-1374) e a prosa de Boccacio (1313-1375). Segundo o autor, a poesia de Petrarca tornou-se um modelo de escrita poética no século XVI e a partir dela elaboraram-se as bases para uma boa escrita musical. Essa escrita, considerada por Bembo de boa qualidade, precedia três estágios principais; o som, o número (ritmo) e a variação, sem as quais não se atingia um bom resultado (BEMBO, p.321). Portanto, a base para essas composi-

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ções era o texto escolhido. Como bem define o escritor Pietro Misuraca em seu livro sobre Carlo Gesualdo que também trata a relação textual através dos escritos de Pietro Bembo “a poesia é a música em estado embrionário”9 (MISURACA, 2000, p.14). De acordo com a visão de Bembo, a escolha das palavras, o cuidado com seu ritmo e sua disposição nos versos musicais seriam os ingredientes fun- damentais para se alcançar a persuasão na música. Persuasão, para ele, é uma virtude musical oculta que tem o propósito de fazer todos sentirem e pensarem a mesma emoção descrita pelo compositor: “... aquela oculta virtude que, estando em qualquer voz, move os demais a sentirem aquilo que leem. ”10 (BEMBO, p.342) O segundo documento que traz contribuições para o entendimento da escrita madrigalista do período é o tratado escrito por Gioseffo Zarlino (1517-1590) em 1558, já citado por essa pesquisa, intitulado Instituzione Armoniche11. Consi- dera-se esse tratado um dos documentos mais importantes sobre a prática musi- cal do Renascimento, principalmente pela associação que Zarlino faz entre a mú- sica e a harmonia resultante da escrita:

É necessário que agora façamos um estudo da Harmonia e do ritmo se- melhante à natureza do material que tenha a oração; [...] portanto, não será permitido ao músico acompanhar estas duas coisas, a harmonia e a palavra, sem esse propósito. [...]. Pelo contrário, precisa-se utilizar a harmonia alegre e o ritmo rápido nas matérias alegres; e nas tristes, har- monias tristes com ritmos graves, onde cada coisa se faz com proporção. (ZARLINO, 1558, p.339)12

9 “La poesia è musica allo stadio embrionale”. 10 “...quella occulta virtú che, in ogni voce dimorando, commuove altrui ad assentire a ciò che egli legge.”. 11 Ver página 19. 12 “Fa dibisogno che ancora noi faciamo una scielta di Harmonia, e di un Numero simile alla natura dele materie, che sono contenute nella Orazione; [...] Così non sarà lecito al Musico di acompagnare queste due cose, cioè l’Harmonia, e le Parole insieme, fuori di proposito. [...] Per il contrario bisogna usar le harmonie alegre, e li numeri veloci nelle materie alegre; e nelle meste le harmonie meste, e li numeri gravi; accioche ogni cosa sai fatta com proporzione”.

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Fica claro que o autor está se referindo ao sentido das palavras e da poesia quando fala de “matéria natural”. Portanto, este documento trata de forma direta da necessidade de se retratar na música as imagens propostas pelo texto. Estes documentos e relatos tratam de forma geral o repertório da pri- meira metade do século XVI, desconhecendo, então, as mudanças significativas que ocorreriam no gênero madrigal a partir da segunda parte daquele século. No entanto, a base que respaldou estas mudanças são justamente a escrita poética e sua relação com a escrita musical retratadas nos documentos, o que os confere importância neste estudo. Com base na reflexão sobre esses documentos, podemos aceitar que as características da poesia escolhida pelos madrigalistas para uma determinada composição são as fontes mais importantes de informações sobre o entendimento musical daquela obra. Além de ser uma ferramenta indispensável nas escolhas a serem feitas no momento da interpretação deste repertório. A partir disso, conclui-se que o estudo dos madrigais de Carlo Gesualdo requer uma reflexão cuidadosa sobre o texto poético. Mais do que entender sua relação com os poetas, faz-se necessário um entendimento de como era a poesia de seu tempo e o que o compositor buscava nos textos que escolhia, com o pro- pósito de elucidar sua escrita musical.

2.1. Os poetas de Gesualdo

No caso específico de Gesualdo a relação música/texto assume contor- nos ainda mais relevantes, pois se trata de um dos poucos traços de relaciona- mento que encontramos entre o compositor e o ambiente para o qual compunha. Não se deve esquecer que Gesualdo teve uma vida como compositor diferente da maior parte dos exemplos conhecidos entre seus pares, pois não mantinha ne- nhuma relação de servilismo com a nobreza ou o clero. Sua posição de nobre con- feria a ele o privilégio de compor para seu próprio prazer – ou para sua própria fé,

59 no caso das composições sacras. Como não existia uma relação patronal entre ele e alguma entidade que pudesse nos dar pistas sobre suas preocupações e possíveis intenções artísticas, tem-se na relação com a poesia e com os poetas com quem trabalhou o principal caminho para encontrar indícios que nos ajudem na interpretação e análise da obra. Na medida em que escrevia os madrigais que constituiriam seus livros, Gesualdo amadurecia sua relação com o texto a ponto de eliminar a figura do poe- ta. Suas últimas obras tem a poesia com atribuição anônima, o que sugere que possa ter sido o próprio compositor que escreveu ou orientou a escrita do poema. Este grau de interação entre o compositor e a poesia promoverá maior liberdade artística para o desenvolvimento de seu madrigal. Porém, mesmo quando o com- positor escolhia um texto escrito por outro poeta para ser a base de suas compo- sições, ele exercia uma relação de integração com aquele tema e com as esco- lhas feitas pelo poeta. Esta integração se caracterizava mais do que uma escolha de tema, mas como uma comunhão de ideias. A relação de Gesualdo com os poetas em muitos casos suplantava a esfera musical. Sua posição social e sua entrada para a família d’Este, após seu segundo casamento, tornavam-o muito atraente para poetas que almejavam uma ligação com a nobreza. Dessa forma, a oferta de textos e poemas dedicados a ele era numerosa. Algumas ocasiões são bastante representativas desta abundância de material literário sobre sua vida pessoal, como, por exemplo, sua segunda núpcia, com Leonora d’Este, que foi registrada em diversos poemas e novelas épicas, além da documentação detalhada sobre o evento, registrado pelos cronistas da época. E, anterior a isso, o evento trágico dos assassinatos da primeira esposa de Gesualdo e seu amante que pode ser considerado um dos episódios mais bem documentados de todo o Renascimento. Exemplos notáveis de literatura contem- porânea aos fatos são: Vies des Dames Galantes, de Pierre de Bourdeilles (c. 1540-1614), que retrata o sentimento popular relacionado à tragédia pessoal do príncipe, e as crônicas, repletas de detalhes, de Spaccini (1588-1636) em seu Mo-

60 numenti di Storia Patria dele Provencie Modenesi, hoje com seus manuscritos ca- talogados na biblioteca Estense, em Modena. Estes exemplos de literatura oficial são modestos frente aos incontáveis registros populares sobre os fatos. A posição de poeta no período do Renascimento indicava uma situação artística importante nas esferas da nobreza. Toda corte com tradição ou preten- sões artísticas cultivava uma produção literária e poética. Com esta produção é que se perpetuavam as nobres personagens da família e criava-se um ambiente heroico que sustentava esta posição. No caso específico de Gesualdo, encontra- mos uma situação privilegiada devido à fama das duas famílias as quais ele per- tencia. Porém, mesmo diante da oferta insistente de textos e poetas, o compositor apresenta uma lista de colaboradores presentes em seus seis livros de madrigais aquém do que se esperaria. O autor Glenn Watkins cita esse fato em seu livro:

À luz dos conhecimentos de Gesualdo e sua íntima relação com os mais importantes poetas de seu tempo, em especial Torquato Tasso, é decep- cionante que só podemos atribuir poucos textos de Gesualdo a ele. (1991, p.125)13

A explicação para este fato está na exigência artística do compositor, que não esperava pelo grande poema heroico, e tão pouco a tradição trovadores- ca de Petrarca, mas procurava por textos compactos que representassem a com- plexidade dos temas com os quais construía sua música. Ao longo de seus livros de madrigais, identificamos a presença de oito poetas. São eles: Guarini, Tasso, Gatti, Celiano, d’Avalos, Pocaterra, Arlotti e Ma- rino, alguns dos quais com numerosos exemplos de parcerias, principalmente Tasso e Guarini. Mas certamente, foi em seus textos cuja autoria é desconhecida, podendo ter sido escritos sob sua tutela ou mesmo pelo próprio compositor, que Gesualdo atinge a maturidade na questão textual.

13 “In light of Gesualdo's known and intimate connection with the most important poetic personalities of the time, and Torquato Tasso in particular, it is disappointing that we are able to attribute to them so few of Gesualdo's text.”

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De todos esses poetas que colaboraram com a obra de Gesualdo, Tor- quato Tasso (1544-1595) apresenta a situação mais representativa. O poeta, filho de uma rica família, apresenta em sua biografia o enredo esperado de um dos mais importantes poetas do Renascimento, repleto de glórias e fracassos pesso- ais. Tasso se tornou conhecido desde os oito anos de idade, quando recebeu uma ampla formação intelectual pelas mãos dos padres Jesuítas de Nápoles. Sua de- voção e capacidade intelectual despertou a atenção dos que o cercavam. As su- cessivas tragédias pessoais, como a pobreza repentina do pai e a misteriosa mor- te da mãe, conduziram Tasso para a carreira poética, aliando-se às famílias de mecenas da Itália. Data de 1565 sua primeira estada na cidade de Ferrara, junto à corte da família d’Este. E foi com essa família que o poeta construiu sua relação pessoal mais intensa e conturbada (FINUCCI, 1999, p.1-12). A partir de muitas idas e vindas à cidade, Tasso encontrou nas duas princesas da família, Lucrezia Borgia e Leonora d’Este, seus principais mecenas e protetoras. Entre 1565 e 1570 o poeta passou a fase mais tranquila e produtiva na cidade, período em que pôde, além de estar a serviço da corte, concluir suas mai- ores obras. Pouco tempo depois disso, Tasso publica pela primeira vez sua obra mais conhecida e importante: “Gerusalem Liberata”. Esta obra se apresenta como um dos mais importantes poemas épicos de todo o Renascimento. Sua narração descreve o combate imaginário entre cris- tãos e muçulmanos no final da primeira cruzada, durante o cerco de Jerusalém. Sua elaboração iniciou-se quando o poeta contava com apenas quinze anos, mas certamente foram os anos tranquilos que passou em sua primeira estada na cida- de de Ferrara que permitiram a conclusão do ambicioso poema. Por esse motivo, a primeira edição da ode foi dedicada ao Duque Alfonso II, que dirigia a cidade na época. Mas a relação entre as duas figuras renascentistas sempre foi marcada por incontáveis conflitos e tensões, a ponto de na reedição da obra, o poeta ter supri- mido a homenagem ao Duque, bem como todas as citações que se referiam a ele no texto.

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A relação de Tasso com Gesualdo se dá a partir desses conflitos e da necessidade que o poeta tinha em manter seus laços com a família. A curta vida do poeta foi marcada por diversas crises psicológicas que, em algumas ocasiões, resultaram em internações em manicômios e casas de saúde. Devido a isso, sua situação financeira e profissional foi se deteriorando ao longo da vida. Próximo de seus últimos anos, Tasso viu no segundo casamento de Carlo Gesualdo, e sua consequente entrada para a família d’Este, a chance de se reestabelecer na corte que bem conhecia e não era mais bem-vindo (MARTINES, 1988, p.303). Neste ponto, encontramos uma relação artística bastante distinta. Por se tratar de um compositor reconhecido em vida como um dos grandes madrigalis- tas de seu tempo e de um poeta com a mesma fama entre seus pares, ambos sa- biam da importância artística do outro. As sucessivas investidas de Torquato Tas- so, colocando-se à total disposição do Príncipe de Venosa, evidencia seu empe- nho em conquistar a confiança e a amizade do futuro membro da família d’Este. Exemplos ilustrativos desse empenho encontramos em forma de poe- mas e cartas escritos por Tasso. Na ocasião das festividades do matrimônio, Tas- so não figurava como autor de nenhum dos poemas editados por em honra à ocasião (WATKINS,1973, p.58-59), reflexo de seu rompimento com o duque Alfonso. Mesmo assim, escreveu uma Ode independente cujo título é “Las- cia, o figlio d’Urani, il bel Parnaso” (GUASTI, 1858, p.57-58) quando rende respei- tosas honras ao príncipe e sua futura esposa. Ainda mais ilustrativa é a primeira das muitas cartas escritas pelo poeta destinadas ao Príncipe (idem). Nesta, que data de junho de 1594, o poeta diz:

Desde que me alegrei com Vossa Excelência na ocasião de seu casa- mento, e com os poucos versos onde demonstro o melhor de minha habi- lidade, devoção e respeito, eu retornei a Nápoles com a intenção de me purificar e iniciar o tratamento... (GUASTI, apud TASSO, 1858, p.57)14.

14 "Since I rejoiced with Your Excellency on the occasion of your marriage, and with a few stanzas demonstrated to the best of my ability my devotion and respects, I have come to Naples with the intention of purging myself, and have already commenced the treatment..."

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Apesar dos inúmeros relatos que tentam atribuir a relação dos dois ar- tistas como sendo uma amizade verdadeira ou algo bem próximo disto, encontra- mos uma incompatibilidade estética facilmente identificada nos estilos de cada um, que resultou em uma convivência fria e certa obrigação por parte de ambos de se tolerarem. O estilo de Tasso, que o fez reconhecido em seu tempo, está de acordo com a literatura que representa o Renascimento. Seu objetivo primeiro no trato das palavras era o efeito conceitual atingido por suas escolhas de termos. Esse alinhamento ao ideal estético se soma ao gosto pessoal do poeta pelo grandioso, pelo eloquente, tornando sua obra repleta de extravagâncias. Suas influências são inúmeras, mas a origem está na poesia de Petrarca, com o qual Tasso cons- truiu seu estilo (MANIATES, 1979, p. 71-73).

“Ecco mormorar l’onde E tremolar le fronde, A l’aura mattutina e gli arboschelli, E sovra i verdi rami i vaghi augelli E rider l’oriente; Ecco già l’alba appare E si specchia nel mare, E rasserena il cielo, E la campagna imperla il dolce gelo, E gli alti monti indora; O bela e vaga Aurora, L’aura è tua messaggera, e tu de l’aura Ch’ogni arso cor restaura.”

O poema acima faz parte dos inúmeros dedicados pelo poeta a Laura Peperara, uma integrante da nobreza de Ferrara e também cantora da corte. Tor- nou-se conhecido por ter sido utilizado posteriormente pelo compositor Claudio

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Monteverdi em seu madrigal homônimo. Nele, identificamos a presença do Petrar- chismo, no trocadilho feito com o nome da personagem, em l’aura mattutina, ao mesmo tempo em que encontramos onomatopeias que remontam ao canto dos pássaros e sons naturais presentes no texto pastoril. A escolha dos termos e pala- vras demonstra a preocupação por efeitos e imagens grandiosas como a manhã e sua aurora. Diante de tais características, nota-se um afastamento de estilos entre Tasso e Gesualdo. O poeta primava por um estilo vibrante carregado de imagens naturais que convergiam sempre para o pictórico, mas muitas vezes com conteúdo superficial. Já o compositor trabalhava por um texto mais enxuto e profundo, me- nos atento aos fatos exteriores, mas sim às questões internas de cada ser. Pode- se atribuir a este distanciamento uma parceria artística menos intensa do que se poderia esperar. Mas é importante um entendimento cuidadoso sobre essa rela- ção, pois, apesar das diferenças estéticas e do distanciamento, Torquato Tasso foi o poeta mais presente na produção madrigalesca do compositor. Dos madrigais escritos por Gesualdo que são possíveis de se fazer uma atribuição precisa de autoria ao poema, Tasso figura com o maior número. Os madrigais “Mentre Madonna il lasso” e “Ahi, tropo saggia”, ambos presentes no primeiro livro, foram retirados da coleção de poemas de Tasso “Rime per ”. Os madrigais “Fè tien face o saetta” e “Non è, questa la mano” foram construídos sobre poemas avulsos de Tasso escritos em 1563 e 1585. Dois foram retirados do “Rime per Laura Preparata”, escritos entre 1563 e 1567, são eles: “Se taccio, il duolo s’avanza”, “Felice Primavera” (primeira parte) e “Danzan le Ninfe” (segunda parte), ambos, também contidos no primeiro livro. Gesualdo utilizou po- emas que constavam na coleção “Rime d’occasione d’encomio”, que datam entre 1565 e 1569. São eles: “Caro, amoroso neo” (primeira parte) “Ma se tale ha costei” (segunda parte) e ainda “Bella Angioletta”. E, por fim, temos o poema “Gelo há madonna il seno” extraído de um texto de Tasso intitulado “Rime amorose extra- vagante”, de data desconhecida.

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Destaca-se que Torquato Tasso é um dos poetas mais importantes pa- ra o Madrigal Italiano tardio. Se sua presença na obra de Gesualdo, mesmo com as ressalvas apontadas nesta pesquisa, figura como a mais presente dentre os poetas utilizados, sua parceira com outros compositores, como Luca Marenzio, por exemplo, foi bem mais constante e produtiva. Encontramos madrigais construídos até mesmo sobre trechos de sua obra Gerusalem Liberata, como fez o compositor Giaches Wert. Depois de Tasso, o poeta mais presente nos livros de madrigais de Ge- sualdo é Guarini, conhecido poeta do Maneirismo literário e ferrarense de nasci- mento. Battista Guarini nasceu em 1538 e construiu uma carreira sólida e próspe- ra, apesar das sucessivas redes de intrigas na corte de Ferrara das quais foi víti- ma. Sua ligação com o ambiente musical foi constante ao longo de toda a sua vi- da. Mais do que um poeta cuja obra foi amplamente utilizada por madrigalistas, Guarini pode ser considerado um grande entendedor da linguagem musical, como diz Alfred Einstein em seu livro sobre o Madrigal Italiano: “...Guarini esteve cons- tantemente sob o feitiço da música, um feitiço do qual não pode escapar” (1971, p.539)15. Seu estilo poético apresenta-se mais polido e suave do que o de Tasso, e a atmosfera que buscava em seus textos ficou conhecida como maniera dolce. Sua riqueza de contrastes e metáforas tornavam seus textos propícios para a es- crita dos madrigais tardios, por serem apoiados na literatura maneirista. A produ- ção do poeta contemplava desde a escrita leve do ambiente pastoril até o estilo dramático. E neste segundo ambiente é que encontramos a obra mais importante e conhecida do poeta, Il pastor fido. Neste poema, que ficou classificado como uma “tragicomédia”, escrito em forma livre e com procedimentos incomuns à escrita da época, Guarini home- nageava as núpcias do Duque de Savoya e Catarina de Áustria. Sua edição defini- tiva data de 1602, embora o início do projeto tenha se dado doze anos antes. A

15 “... Guarini was almost continuously under the spell of music, a spell from which he could not escape.”

66 obra é repleta de imagens retóricas e conceitos paradoxais que a transformaram em um estilo único na época.

Non più guerra! Pietade! Occhi miei belli, Occhi miei trionfanti, à che v’armate? Contr’um cor ch’è già prese e vi si rende! Ancidete i rubelli, Ancidete chi s’arma e si difende, Non chi, vinto, v’adora; Volete voi ch’io mora? Morrò pur vostro; e del morir l’affanno Sentirò, sì, ma sarà vostro il danno,

Este curto trecho retirado do poema, demonstra alguns aspectos inova- dores da escrita de Guarini. A assimetria das linhas, que apresentam tamanhos diferentes ao longo do trecho, a falta de um esquema poético mais claro e a repe- tição de palavras iniciais em algumas frases fazem dele uma obra singular do Re- nascimento que apontava para as fases seguintes da poesia. Mas além das grandes obras, Guarini dedicou parte de sua produção a poemas que serviriam como base para peças musicais. Ele esteve, ao longo de sua carreira, a serviço de duas cortes com profundas tradições musicais, a corte de Ferrara e mais tarde a de Florença. Ressaltam-se também seus laços familia- res com Lucrezia Bendidio e , ambas integrantes da corte ferrarense e reconhecidas como requintadas cantoras, o que o colocava ainda mais em con- tato com o universo musical. De suas inúmeras obras utilizadas pelos madrigalistas da época a mais importante é seu poema erótico “Tirsi Morir Volea”, utilizada por vários composito-

67 res16. Atribui-se a essa construção literária aplicada à musica algo similar a um libreto de cantata ou mesmo de ópera. De acordo com Einstein, temos em “Tirsi Morir Volea” uma ópera prematura, ou, como em suas próprias palavras: “opera before the opera” (EINSTEIN,1971, p.539). Além de “Tirsi Morir Volea”, presente no primeiro livro de madrigais de Gesualdo, o compositor ainda utilizou o poeta para construir seus madrigais: “Baci soavi” (primeira parte), “Quanto há di dolce” (segunda parte), “Frenò Tirsi il desio” (segunda parte do “Tirsi Morir Volea”), todos no primeiro livro. No segundo livro encontramos os madrigais “O come è gran martire” e “O mio soave ardore”. Te- mos ainda “Voi volete ch’io mora” no terceiro livro e “T’amo mia vita” no quinto li- vro. Faz-se necessário considerar a importância desse último madrigal, “T’amo mia vita”, presente no quinto livro do compositor. Nesta fase final da escrita de Gesualdo praticamente todos os madrigais foram construídos sobre textos anônimos ou feitos pelo próprio compositor, conforme já dito neste texto. No en- tanto, mesmo nesta fase de extrema liberdade textual, o compositor optou por in- cluir um texto de Guarini, o que exemplifica a proximidade de seus estilos. Mesmo não sendo o poeta mais presente na obra de Gesualdo, pode-se atribuir a Battista Guarini o poeta cujo estilo esteve mais próximo do compositor Carlo Gesualdo. Os demais poetas que estão presentes nos madrigais de Gesualdo figu- ram com apenas um madrigal cada. Esta participação pouco representativa no catálogo do compositor não desmerece a importância de cada um, mas deixa cla- ro que não houve uma interação significante de Gesualdo para com suas obras. Chama mais atenção para esse trabalho a abstenção de poetas como Ludovico Ariosto (1474-1533) e o próprio Petrarca na obra do compositor. Estes nomes tive- ram importância central na poesia do Renascimento e também na construção filo- sófica do humanismo. Certamente podemos considerar que Gesualdo possuía um bom conhecimento da obra de ambos, visto sua condição de nobre letrado. Mas

16 Ver página 67.

68 diante de suas intenções musicais e de seu ideal estético, preferiu não trabalhar com textos destes dois expoentes do período. Também se deve ressaltar a possibilidade da existência de outros poe- tas que não foram identificados em sua obra devido as alterações efetuadas pelo compositor na obra original.

2.2. O madrigal como estilo poético

Ao se tentar definir as características principais do gênero madrigal, es- pecialmente quando se identifica e reconhece as especificidades ao final do sécu- lo XVI (o madrigal italiano tardio), conclui-se tratar de uma expressão baseada na liberdade formal. Conforme discutido neste trabalho, o gênero em questão passou a ser a ferramenta mais utilizada pelos compositores do período justamente por conceder a eles toda a liberdade que a estética maneirista requeria. O ponto de convergência que nos permite identificar este gênero mes- mo diante de toda a heterogeneidade que apresenta é a estreita relação que exis- tiu entre a música e o texto poético. A relação íntima com o sentido e as imagens do texto tornou o madrigal italiano tardio um exemplo de repertório basicamente expressivo. Mas não podemos esquecer que, na concepção de suas obras, os madrigalistas lidavam com uma organização que precedia a ideia musical, que era justamente a forma, ou métrica, do poema escolhido para ser a base. Diante dis- so, faz-se necessário um estudo sobre como eram os poemas utilizados nos ma- drigais do século XVI. Como já foi abordado no capítulo 1 deste trabalho, o madrigal italiano tem sua origem em formas correlatas do século XIV, em especial a frottola e a canzone. No caso dos poemas, a origem se dá quase que da mesma forma. Po- rém, o entendimento dos termos e de seu desenvolvimento se torna um pouco mais complexo, visto a similaridade que apresentava entre formas distintas e da confusão sobre a definição de suas características.

69

O que torna sua definição tão complexa é termos formas muito pareci- das sendo utilizadas ao mesmo tempo. O autor Don Harrán escreveu em seu arti- go que compõe o livro Il madrigale tra cinque e Seicento, sob a cura de Paolo Fabbri (Bologna, 1988) intitulado Tipologie metriche e formali del madrigale ai suoi esordi, que até o século XVI a forma poética chamada madrigal era tão vasta que se caracterizava mais pelo seu conteúdo do que por sua forma (HARRÁN, 1988, p.96). Com o aumento considerável que teve a produção madrigalesca no início deste século, naturalmente estas formas foram se desenvolvendo e ocorreu uma divisão principal em três grupos: o soneto, a canzone e o madrigal. Para o repertório dos compositores tardios, em especial Carlo Gesual- do, a forma poética do madrigal certamente se apresenta como a mais atraente dentre as três. Esta preferência não exclui poemas que se aproximam de outras formas, que também são encontrados em seu repertório, mas, em sua maioria, o texto poético utilizado era em forma de madrigal. Portanto, a partir de agora neste texto, o termo madrigal se referirá a duas expressões artísticas distintas: o madri- gal enquanto gênero musical e o madrigal como forma poética, que aqui será de- nominado como madrigal poético. Não por acaso, a principal característica da forma poética do madrigal é justamente a liberdade e a amplitude de suas características. Esta liberdade em sua forma é tão clara que levou o teórico Pietro Bembo a defini-lo em seu tratado Le prose della volgar língua (1525, cit. p.152) como sendo de “rime libere” (rima livre). A estrutura do poema pode ser caracterizada com apenas três parâme- tros: tamanho do poema, extensão dos versos e rimas. A primeira delas se refere a quantos versos ele apresenta no total. A média está entre 5 e 15 versos, no en- tanto, vários são os exemplos que nos apresentam poemas com mais ou menos versos. Existe uma tentativa do século XVI, do poeta Girolamo Ruscelli (1560) de fixar a extensão do poema do madrigal em 12 versos (RUSCELLI, p.86), mas este número apresenta muitas diferenças e acaba servindo apenas como um parâme- tro inicial.

70

O segundo parâmetro para se analisar o madrigal poético é quanto à extensão dos versos. Esta característica provém claramente da tradição do século XIV de uma construção poética baseada no hendecassílabo, verso com 11 síla- bas, e do setenário, 7 sílabas (HARRÁN, 1988, p.106). Esta tradição, vinda do poema do trecento, manteve-se praticamente intacta no madrigal poético do sécu- lo XVI e se apresenta como uma das poucas características não variáveis desta expressão. O que temos de mais específico à prática utilizada no final do XVI é uma convenção de alternar livremente estes dois tipos de versos, porém, identifi- ca-se com clareza uma tendência a encerrar o poema com uma rima de hende- cassílabos. Evidentemente que exceções são facilmente encontradas. Por último, o esquema de rimas do poema se torna uma característica relevante, e mais uma vez a flexibilidade em seu uso é a principal descrição. Basi- camente os poemas apresentam três rimas, que podem estar dispostas em versos de sete ou onze sílabas. Como por exemplo, um esquema rítmico de abB- CcAAbbC. Também encontram-se poemas que apresentam versos sem rimas ou versos isolados. Nestes casos eles estão normalmente localizados no início do poema. Por exemplo, o seguinte esquema: aBbCcdDEE. Há ainda uma forma de organização em que os versos vêm organizados em duplas de rimas: aa bB dD EE. Mas a forma mais comum de rimas seria algo que mescle todas as anteriores, caracterizada pelo esquema: ABCCbDDEDEFF (HARRÁN, 1988, p. 196).

2.3. O ideal poético de Gesualdo

Apesar de muito dos poemas utilizados por Gesualdo para a construção de seus madrigais serem de autoria desconhecida, existem entres eles alguns que foram utilizados por outros madrigalistas ou se tornaram mais conhecidos na épo- ca que tiveram suas origens reconhecidas. Essas obras, que estão principalmente nos primeiros livros, nos possibilitam identificar as mudanças que o compositor promoveu ao colocá-los em sua música através da comparação do original com a

71 versão utilizada. As alterações promovidas por Gesualdo serão denominadas co- mo sua manipulação textual e serão analisadas nesta pesquisa pela importância que podem ter neste estudo. Esta investigação se torna importante ao observarmos que a manipula- ção foi se aprofundando ao longo da obra. Enquanto nos primeiros casos identifi- camos pequenas alterações nos textos originais, nos livros seguintes o compositor os altera de tal forma que só podemos atribuí-los a algumas fontes baseando-nos em temáticas e características conhecidas de alguns poetas da época. No entanto, este aprofundamento se deu a partir de algumas coerên- cias estéticas que possibilitam a identificação de anseios textuais presentes ao longo de toda a obra, o que nos permite dizer que o compositor perseguia um ide- al poético. Ou seja, para ele o texto que seria a base de um madrigal deveria ter determinadas características e estilos textuais. Como os primeiros livros de madrigais tiveram suas obras escritas a partir de textos de poetas contemporâneos ao compositor, sua liberdade em mani- pular os versos era limitada, pois se via obrigado a seguir uma narração proposta pelo poema que já era conhecida de muitos. Mas mesmo nesta situação inicial encontramos um primeiro indício a ser levantado: a filtragem que Gesualdo pro- movia nos textos recebidos por ele para escolher quais mereceriam um madrigal seu. Como discutido anteriormente, a relação do compositor com o poeta Torquato Tasso, por exemplo, era baseada em muitos interesses e poucos con- sensos, por isso, torna-se uma fonte de informações para este assunto. Uma pas- sagem documental é relatada no artigo escrito pelos autores Elio Durante e Anna Martelotti no livro sobre a cura de Luisa Curinga, La musica del Principe – Studi e prospectiva per Carlo Gesualdo (2008). Neste texto, os autores relatam que após o primeiro encontro entre o poeta e o compositor, em 1592, houve uma troca de correspondência entre ambos na qual Gesualdo pede que o poeta tentasse ade- quar mais seus poemas a um modelo que melhor o serviria nos madrigais. O poe- ta, por sua vez, relata sua dificuldade em adequar seu estilo às exigências do

72 compositor, mas se diz muito disposto a tentar. A sequência deste episódio é o envio de 40 poemas pelo poeta Tasso a Gesualdo, para serem analisados e utili- zados pelo compositor. Destes poemas, apenas um foi aproveitado. Podemos atestar com essa história que Gesualdo tinha um modelo poé- tico ideal para sua música, mas que provavelmente ainda era inconsciente por sua parte, pois as cartas enviadas por ele a Tasso se mostravam evasivas quanto às explicações sobre como gostaria que fossem os poemas. Através desta mesma história podemos ter o passo inicial da investigação, pois este único poema apro- vado pelo compositor foi dividido em duas partes e se transformou nos madrigais Se così dolce è il duolo (primeira parte), e Ma se avverà ch’io moía (segunda par- te), que são respectivamente o quinto e o sexto madrigal do segundo livro, e tam- bém o único texto que Tasso escreveu especialmente para o compositor que fez parte da obra de Gesualdo:

Primeira Parte

Se così dolce è il duolo Deh, qual dolcezza aspetto D’imaginato mio nuovo diletto.

Segunda Parte

Ma se avverà ch’io moia Di piacer e di gioia Non ritardi la morte Sì lieto fine e sì felice sorte.

Mais do que ressaltar o cuidado com que o compositor escolhia seus textos e também a não convergência de ideias entre estes dois personagens, a escolha representa a primeira característica presente no ideal poético do composi-

73 tor, o gosto pelo oxímoro17. Baseado nos conhecimentos que já temos sobre a obra de Gesualdo, podemos dizer com segurança que a oposição conflitante entre os termos dolce e duolo (doce e dor), presentes desde as primeiras linhas do po- ema, foi suficiente para convencer o compositor que este texto merecia um madri- gal. Demonstrando então, a primeira evidência do ideal poético do compositor. Além disto, observa-se que apesar de ser um poema curto para os padrões de Tasso, apenas sete versos, Gesualdo opta por dividi-lo em duas par- tes, demonstrando também sua predileção pelo poema mais curto. Seguindo nesta investigação, temos como mais elucidativas as modi- ficações que Gesualdo promoveu em textos utilizados por ele cujos originais são conhecidos. Encontramos estes madrigais especialmente nos primeiros livros, e conseguimos através deles fazer a análise completa da manipulação, que vai des- de a estrutura do poema, como a divisão em duas partes realizada no exemplo anterior, até eliminações de versos, alterações de palavras e mudanças na ordem apresentada das frases. Como primeiro exemplo de alterações, partiremos de um dos textos mais conhecidos e utilizados pelos madrigalistas do século XVI, Tirsi Morir Volea. Este poema aparece como um dos textos mais musicados do século XVI. Sua primeira utilização documentada data de 1578, pelo madrigalista Leonar- do Meldert (1535-1610) (EINSTEIN, 1971, p.542). No entanto, acredita-se que dois anos antes, em 1576, o compositor Luzzasco Luzzaschi já teria feito o seu madrigal sobre o mesmo texto, que viria a ser publicado tardiamente, em 1604, em seu VII livro de madrigais. Até a década final daquele século, o poema era credita- do ao poeta Torquato Tasso (1544-1595), por ter sido publicado anteriormente em Rime del Signor Torquato Tasso, em 1578. Somente em 1598 teria sua publicação definitiva em Rime del molto Signor Cavaliere Battista (Venezia, 1598), do poeta Battista Guarini. Nesta edição, sua autoria estaria correta, desfazendo o engano

17 O termo oxímoro tem sua definição dada pelo dicionário Aurélio como uma figura de estilo que contém duas palavras aparentemente contraditórias ou incongruentes. Também pode ser definida como paradoxismo.

74 que já era do conhecimento dos contemporâneos ao poeta (DURANTE/MARTELLOTTI, 2008, p.191). O poema obteve grande sucesso em sua época e se tornou um impor- tante exemplo de poema erótico. Para termos uma ideia dessa popularidade, bas- ta analisarmos o número de obras musicais construídas a partir dele. De todos os poemas de Guarini este apresenta o maior número de utilizações por composito- res, são ao todo 27 madrigais escritos por diferentes compositores (VASALLI/POMPILIO, 1997, p.221). O que tornou este texto popular foi o jogo erótico que o poeta cons- truiu. A história narra o encontro amoroso entre um pastor e sua ninfa, e a palavra “morte” é utilizada como uma alegoria orgástica ou a consumação do ato sexual dos personagens.

Tirsi morir volea, Gl’occhi mirando di colei ch’adora, Quand’ella, che di lui non men ardea, Gli disse: Oime ben mio, Deh non morir ancora, Che teco bramo di morir anch’io. Frenò Tirsi il desio, C’hebbe di pur sua vit’allhor finire; Ma sentia morte in non poter morire E mentre’l guardo suo fiso tenea Ne begl’occhi divini; E’l nettare amoroso indi bevea; La bela Ninfa sua, che già vincini Sentia i messi d’Amore, Disse, com occhi languidi e tremanti: Mori cor mio, ch’io moro. Cui rispose il Pastore:

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Et io, mia vita, moro. Cosi moriro i fortunati amanti, Di morte si soave, e si gradita, Che per anco morir tornaro in vita.

A manipulação que Gesualdo promove no texto chama atenção por suas diferenças quando comparada ao uso dos demais compositores contempo- râneos a ele que também aproveitaram este texto. Assim como a maioria dos de- mais, Gesualdo não utiliza o poema todo, aproveitando-o até o nono verso e divi- dindo-o em duas partes. Temos a partir dele os madrigais 12 e 13 do primeiro livro do compositor:

Madrigal XII

Tirsi morir volea, Mirando gli occhi di colei ch’adora, Quand’ella, che di lui non men ardea, Gli disse: Oime ben mio, Deh non morir ancora, Che teco bramo di morir anch’io.

Madrigal XIII

Frenò Tirsi il desio, C’hebbe di pur sua vit’allhor finire; Sentendo morte in non poter morire

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Depreende-se desta alteração que, além de diminuir o tamanho do texto mantendo uma de suas características, Gesualdo altera completamente o sentido final da narração. Quando o compositor corta os últimos 12 versos, toda a alegoria erótica à questão orgástica que está atrelada ao termo morte acaba sen- do desfeita, pois são nos últimos versos do poema de Guarini que este aspecto se configura. Ao mesmo tempo, quando o encerramento da obra passa a ser a frase Sentendo morte in non poter morire o ponto central do texto transforma-se na “morte dolorida” ou na “morte desejada”, temática esta que faz parte de toda a obra do compositor. Além disso, outras duas discretas alterações promovidas pelo compositor no original podem conter mais uma característica estética do composi- tor: a predileção pela linguagem culta e o afastamento do tom popular em seus madrigais. Logo na segunda linha do poema Gesualdo inverte a ordem das pa- lavras. Esta mudança pouco interfere no sentido do texto, mas ilustra sua liberda- de perante ele:

Texto original de Guarini Texto do Madrigal de Gesualdo Gl’occhi mirando di colei ch’adora. Mirando gli occhi di colei ch’adora.

E na última frase musicada por ele, há uma diminuição da sentença:

Texto original de Guarini Texto do Madrigal de Gesualdo Ma sentìa morte in non poter morire. Sentendo morte in non poter morire.

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Segundo Elio Durante e Anna Marttelloti, quando Gesualdo inverte a ordem das palavras na segunda frase do texto, ele reorganiza a ordem do objeto de uma maneira mais formal. E quando transforma as duas palavras Ma sentìa em apenas uma, Sentendo, garante mais peso na ideia que encerrara o madrigal in non poter morire (2008, p.191). Destaca-se que temos a primeira parte do texto no décimo segundo madrigal escrito sobre os versos 1 a 6. Já o décimo terceiro, que compreende a segunda parte do texto, escrito sobre os versos 7 a 9. A segunda parte de madrigal tem ao todo 31 compassos, quase o mesmo tamanho da primei- ra parte, que consta de 35 compassos. Temos então uma segunda parte bem mais apoiada em repetições de palavras e frases do que o primeiro. Portanto, o compositor teve liberdade para um desenvolvimento maior das imagens textuais que surgiriam a partir dos três últimos versos, o que colabora com a ideia de ter dado mais peso à frase final do poema. O conhecimento que Gesualdo tinha sobre a obra de Guarini pode ser uma explicação para a liberdade que o compositor teve em fazer estas altera- ções, mas sua preocupação em estreitar cada vez mais a relação da música com o sentido do poema e, mais do que isso, colocar a música a serviço das palavras, pode nos dar uma dimensão da importância do texto na análise de sua obra. No segundo livro nos deparamos com outro exemplo significativo na relação textual dos poemas utilizados. Extraímos deste a dificuldade em atribuir autoria aos textos utilizados pelo compositor. Este tema foi amplamente discutido pelo autor Glenn Watkins em seu livro sobre Gesualdo, quando é feito um levan- tamento sobre os textos e seus respectivos autores (1973, p.125-132). O décimo segundo madrigal deste livro é Sento che nel partire con- cebido sobre o texto de Alfonso d’Avalos. O poeta, membro de uma importante família Napolitana, era conhecido entre os madrigalistas da época. Sua fama se deu principalmente pelo texto do madrigal Il bianco e dolce signo, de Jacob Arca- delt, que se tornou um madrigal muito conhecido na época. O texto de d‘Avalos utilizado como base por Gesualdo para seu madrigal foi Ancor che col partire, que

78 também serviu a Cipriano da Rore para construção de seu madrigal homônimo em 1548: Anchor che col partire Io mi sento morire Partir vorrei ogn’hor ogni momento Tantè il piacer ch’io sento De la vita ch’aquisto nel ritorno, E cosi mill’e mille volt’il giorno Partir da voi vorrei Tanto son dolci gli ritorni miei.

O poema original tem como base um ideal amoroso bastante inocen- te, ou até mesmo fútil, de um desejo pela despedida antevendo o prazer do reen- contro. Apesar de ter obtido sucesso na primeira metade do século, para os ma- drigalistas mais tardios esta temática agradaria menos, dado as características que já foram discutidas sobre a segunda parte daquele século. Temos documen- tado que em 1575 um compositor de Bolonha chamado Agostino Veggio18 teria publicado um madrigal baseado neste mesmo texto, mas já com alterações signifi- cativas (CURINGA, 2008, p. 192):

Ahimè nel mio partire Il core gionge al morire Ond’io meschino ogn’hor, ogni momento Grido: “Morto mi sento”, Ché più non spero far a voi ritorno E così dico mille volte al giorno:

18 Existem poucas informações sobre este madrigalista. Sabe-se que esteve a serviço do Duque de Parma, e que sua produção musical se concentrou na segunda metade do século XVI. Mas não existem registros precisos sobre sua data de nascimento e morte.

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“Partir io non vorrei Poi ch’il partir accresce i dolor miei”.

Apesar de não alterar o esquema rítmico dos versos e manter rigoro- samente as palavras finais de cada linha, preservando assim a prosódia do texto, o madrigal publicado em Bologna altera consideravelmente a ideia central do tex- to. Nesta nova versão, o final que redimia a dor com o prazer do reencontro foi banido do texto, e o sentido geral da obra passa a ser a dor e o sofrimento. Quando Gesualdo constrói seu madrigal baseado neste poema, a segunda versão está certamente mais próxima de seu ideal estético, mas, mesmo assim, o compositor imprimiu suas características em algumas sutis, mas revela- doras, alterações:

“ Sento che nel partire Il cor giunge al morire Ond’io misero ogn’hor, ogni momento Grido: “Morir mi sento”, Non sperando di far a voi ritorno; E così dico mille volte il giorno: “Partir io non vorrei Se col partir accresco i dolor miei”.

As alterações promovidas por ele conferem ao seu texto uma atmos- fera mais próxima do ambiente da poesia palaciana do que do tom popular evi- denciado na primeira e na segunda versão como, por exemplo, a mudança que faz entre os termos meschino (terceiro verso) para misero (última versão). Por fim, podemos confrontar o resultado final entre a versão inicial de d’Ávalos, o original,

80 e a utilizada por Gesualdo para compararmos através das traduções, o quão pes- soal se tornou o sentido da poesia:

Alfonso d’Avalos Sempre que parto Eu me sinto morrendo Gostaria de partir sempre, todos os momentos. Tanto é o prazer que sinto, vida que adquiro no retorno, E assim milhares e milhares de vezes por dia Eu gostaria de partir, de você, Tão doces são os meus retornos.

Gesualdo Sinto que ao partir Meu coração fica a ponto de morrer, Onde eu, miserável que sou, a cada momento Grito: ‘Sinto-me morrendo, Não espero voltar para você. E assim digo mil vezes ao dia: Partir eu não quero, Se ao partir, aumenta a minha dor.

Com estas alterações o compositor conseguiu manipular o poema a ponto de construir um madrigal com uma temática mais dolorosa do que o texto inicial pressupunha, mantendo assim as características típicas de sua obra que são: o conflito e a dor presentes no texto e, consequentemente, refletidos na mú- sica.

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Outro exemplo está no segundo livro com o poema de Torquato Tas- so, Se taccio il duol s’avanza. Este texto foi publicado pela primeira vez em 1582 em Scielta dele Rime del Sig. Torquato Tasso (1582, p.88). Fora dedicado à Laura Preparata, importante figura da corte d’Este em Ferrara:

Se taccio il duol s’avanza, Se parlo accresco l’ira, Donna bella e crudel, che mi martira. Ma pur prendo speranza Che l’humità vi pieghi Ché nel silenzio ancor son voci e prieghi. E prego Amor che spieghi Nel mio doglioso aspetto Con lettre di pietà l’occulto affetto.

Na versão de Gesualdo os últimos três versos são cortados, encer- rando o poema na frase Ché nel silenzio ancor son voci e prieghi. Com esta sim- ples alteração o compositor reforça a ideia do oxímoro silenzio e voci (silêncio e voz), além de conferir uma atmosfera bem mais dolorida e cruel. Nota-se que com este corte as palavras amor, pietà e affetto (amor, piedade e afeto) são retiradas do madrigal, enquanto que as anteriores duol, ira, crudel, prieghi se mantém. Ainda no segundo livro encontramos outra alteração, esta se torna significativa pela simplicidade com que demonstra o interesse do compositor. O madrigal Non mi toglia il ben mio, o quarto deste segundo livro, é construído sobre um texto de atribuição anônima mas que já tinha sido utilizado por Rore em 1565 (CURINGA, 2008, p. 195). O texto utilizado por Rore era:

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Non mi toglia il ben mio. Chi non arde d’amor come faccio io. Ma perchè non fia mai chi molto o poco Agguagli il mio gran foco, Se non è ingiusto Amore, Io sol havrò della mia donna il core. Dunque lasci il ben mio, Chi non arde d’amor come faccio io.

Já na versão utilizada por Gesualdo, o poema se transforma em:

Non mi toglia il ben mio Chi non arde d’amor come faccio io. Se non è ingiusto Amore, Io sol havrò della mia donna il core. Dunque lasci il ben mio, Chi non arde d’amor come faccio io.

Quando o compositor retira de seu madrigal os versos 3 e 4 do ori- ginal, mais do que adequando o texto a seus padrões de tamanho, ele está alte- rando o esquema de rimas presentes nas palavras finais dos versos. No original as terminações propõem uma simetria clara com: io-io; o-o; e-e; io-io. Retirando os dois versos centrais, Gesualdo consegue alterar a ordem, quebrando um pouco a simetria que tornava o poema previsível. Os exemplos descritos até agora foram todos construídos baseados nas alterações que o compositor promoveu sobre textos conhecidos da época. Mesmo os que não trazem a atribuição de sua autoria, já tinham sido utilizados por outros madrigalistas, o que nos concede a chance de fazer a comparação. Tam- bém se deve ressaltar que esses exemplos dizem respeito aos dois primeiros li-

83 vros de madrigais, portanto, ao período anterior à chegada do compositor à cidade de Ferrara. Mesmo se tratando de uma parte inicial da sua produção, esses exemplos já nos dão alguns indícios de como seria o ideal poético de Gesualdo nesta primeira fase. Sua importância extrapola este período, pois o compositor desenvolve seu estilo e, consequentemente, seu ideal poético, sem uma ruptura, mas com uma expansão das ideias iniciais. Colaborando com essa visão, temos a citação do autor Wilhelm Weismann em seu artigo I madrigal di Carlo Gesualdo di Venosa publicado no livro Carlo Gesualdo – Principe di Venosa, sobre a cura de Ennio Speranza em 1998:

Os primeiros livros são aparentemente pouco significativos no que diz respeito ao estilo madrigalesco de Gesualdo, mas na verdade são indis- pensáveis para se entender os demais; não só por indicarem o ponto de partida, mas por que – e este é o motivo determinante – Gesualdo não abandonará mais o modelo proposto no primeiro livro, será um contínuo processo, quase dramático, de individualização. (WEISMANN,1998, p. 87)19

Ficou claro que o compositor, através de seus cortes de palavras, troca de termos e remanejamento de frases, buscava um texto que fosse mais conciso nas ideias, com divisões claras em sua estrutura, que tivesse uma exten- são curta para que as imagens musicais pudessem ser trabalhadas. Também fi- cou evidente a resistência do compositor em aceitar o jogo semântico, a rima po- pular, a temática erótica e suas metáforas. Por outro lado, ficam evidentes sua predileção pelo oxímoro, pelas ideias conflitantes e pela temática da dor e da mor- te. Portanto, podemos caracterizar o ideal poético de Gesualdo em seus dois primeiros livros como sendo um texto literário sério e escrito de forma culta,

19 Questi primi libri, per quanto aparentemente poco significativi rispetto allo stile madrigalistico di Gesualdo, sono invece indispensabili per la conoscenza dello sviluppo sucessivo; non solo perchè ci indicano il punto di partenza, ma perchè – questo è il motivo determinante – Gesualdo non abbandonerà più il modello di madrigale proposto nel I Libro, pur sottoponendolo a un continuo processo, quasi dramatico, di individualizzazione.

84 normalmente baseado na obra de poetas conhecidos, em especial Guarini e Tas- so. Por fim, podemos caracterizar esta primeira fase como uma busca pelo texto que se distanciasse do poema tradicionalmente petrarquiano, mas ainda baseado nos poetas tradicionais do período. Quando nos atemos aos dois livros centrais do compositor, III e IV, identificamos o aprimoramento do que já estava em curso. Provavelmente a che- gada do compositor à cidade de Ferrara, local onde esses livros foram compostos e publicados pela primeira vez em 1598, ofereceu ao compositor as ferramentas poéticas e estéticas para aperfeiçoar o modelo que já buscava. As maiores ocorrências nesta fase central são de textos com atribui- ções anônimas, mas, assim como ocorria na primeira fase, é possível fazer a liga- ção com poemas já utilizados por outros compositores e, desta forma, consegui- mos analisar as mudanças propostas pelo compositor. Como primeiro exemplo, temos o madrigal Cor mio deh non piagete, do quarto livro. O poema em que foi baseado foi publicado no livro Rime de Guarini. Seu original constava da seguinte forma:

Cor mio, deh, non piangete, Ch’altro mal io non provo, altro martire Che ‘l veder voi del mio languir languire. Dunque non vi dolete, Se sanar mi volete, Chè quell’affetto che pietà chiamate S’è dispetato a voi non è pietate.

Conforme consta no texto de Elio Durante e Anna Martellotti (1998), é bem provável que este texto tenha sido entregue ao compositor pelas próprias mãos do poeta, o que lhe conferia toda a liberdade para exercer sua manipulação

85 livremente. Porém, em vez disso, Gesualdo operou pequenas alterações, como nos mostra o texto final do madrigal:

Cor mio, deh, non piangete, Ch’altra pena non sento, altro martire Che ‘l veder voi languir del mio languire. Dunque non m’offendete Se sanar mi volete, Chè quell’affetto che pietà chiamate Se é dispietato a voi non è pietate.

Chama atenção a alteração feita pelo compositor no verso 3, de “voi del mio languir languire” para “voi languir del mio languire”. Com esta alteração ele restabelece a ordem natural das palavras e conquista uma fluidez que será melhor aproveitada na escrita musical. E também quando no verso 4 altera o sentido de “non m’offendete” para “non vi dolete”, está adequando a frase para obter um sen- timento mais pessoal. No terceiro livro encontramos o madrigal Ahi disperata vita, o segun- do deste volume. Este texto também de atribuição anônima possui um importante documento na sua utilização feita pelo madrigalista Paolo Bellasio (1554 - 1594) em 1582 (CURINGA, 1998, p.203). Comparando-o com a versão de Bellasio encontramos logo na primeira frase a alteração de “Ahi disperata vita Che fuggendo il tuo bene precipitosa cadi in mille pene” para “ Ahi disperata vita Che fuggendo il mio bene Miseramente cade in mille pene”. O que chama atenção na alteração é que o sentido geral do texto não se altera, mas o compositor inclui os termos Mio e Miseramente. A raiz semântica deste segundo termo, misero, é sem dúvida uma das chaves principais da retórica textual de Gesualdo. Presente ao longo de toda a sua obra, este termo vai se tornando mais importante à medida que amadurece o seu estilo. Já o termo mio exprime um sentimento individualista e, segundo Weismann (1998), uma ideia egocêntrica que toma conta do estilo poético do compositor a partir da segunda fase.

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Como exemplos para expandir esta última ideia, do individualismo que cresce na obra, temos o madrigal Meraviglia d’Amore, que consta como o dé- cimo do terceiro livro. O poema, que é atribuído a Ridolfo Arlotti (? - 1613)20, apre- senta em seu último verso a frase “Che quanto strugge l’un l’altra restaura”. Já no madrigal de Gesualdo esta frase vem como “Che se mi strugge l’un l’altra restau- ra”, mais uma vez colocando a frase de uma forma mais pessoal. Por fim, o que mais caracteriza o procedimento poético desses livros é a presença de poemas inéditos, mas com indícios de terem sido baseados em outros mais conhecidos. Faz-se necessário relembrar que na corte da família d’Este Gesualdo passaria a ter contato com muitos poetas e, o que eles chama- vam de “artesãos” da palavra. Estes aprendizes que se dedicavam a estudar e a produzir textos poéticos sob a supervisão de alguns nobres, eram totalmente des- conhecidos e escreviam exclusivamente para a produção madrigalista da cidade. Esta situação criava um ambiente em que se torna impossível saber quem ou quais destes aprendizes poderia estar auxiliando o compositor a reescrever ou mesmo a escrever poemas novos para a sua obra. Por esse motivo, torna-se rele- vante quando um dos poemas de atribuição anônima pode ser relacionado com outro, mesmo que desta relação se depreenda alterações mais drásticas. Um exemplo deste procedimento está no madrigal Se vi miro pietosa, o quarto do terceiro livro. O madrigal não traz atribuição a nenhum poeta, mas seu texto traz sensíveis semelhanças a um texto de Arlotti intitulado Se lieto e se pie- toso.

20 Data de nascimento desconhecida.

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Arlotti Se lieto e se pietoso, Veggio il mio sole, mi rallego e vivo; Se turbato e sdegnoso, Resto di vita e d’allegrezza privo. Ond’il mio cor è sempre Vario in sì varie tempre; Miser, ch’è del suo stato in dubbio ogn’hora O che viva o che mora;

Gesualdo Se vi miro pietosa, O bel Idolo mio, viva il mio core; Se turbata o sdegnosa, Ahi, che languendo more. E pur sempre v’adora, O che viva, o che mora.

As principais diferenças com a versão original de Arlotti são a conci- são, o tom mais dramático e o uso constante da partícula mio. Portanto, pode-se inferir que Gesualdo se baseou no poema de Arlotti e construiu o seu. Por fim, nos atemos aos exemplos que se referem à característica mais relevante desta fase: a aproximação cada vez maior com o estilo Guariniano. O terceiro madrigal do quarto livro, Io tacerò ma nel silenzio mio, e a sua segunda parte, In van dunque, o crudele, com todas as características clássicas do poema de Gesualdo (as ideias recorrentes da dor e da morte e a presença constante de palavras como mio e sospiri) são também uma citação retirada do famoso poema Il Pastor Fido, de Battista Guarini. O texto utilizado e, provavelmente, construído por Gesualdo é:

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Io tacerò, ma nel silenzio mio Le lagrime e i sospiri Diranno i miei martiri. Ma se avverà ch’io mora Griderà poi per me la morte ancora. In van dunque, o crudele, Vuoi che ‘l mio duol e ‘l tuo rigor si cele, Poi che mia cruda sorte Dà la voce al silentio ed a la morte.

Em um trecho da tragicomédia do poeta ferrarense encontramos a narração poética: Poi che col dir t’offendo, I’ mio morrò tacendo; Ma grideran per me le piagge e i monti (...) Per me piangendo i fonti, E mormorando i venti Diranno i miei lamenti; Parlerà nem mio volto La pietate e ‘l dolore E se fia muta ogn’altra cosa, al fine Parlerà il mio morire, E ti dirà la morte il mio martire.

Mesmo se descontarmos as informações que temos sobre a relação entre o poeta Guarini e o compositor Gesualdo, mas aplicarmos à versão utilizada pelo compositor os procedimentos já descritos acima, como a diminuição do texto, a substituição de algumas palavras e a reordenação dos termos, já encontraría- mos indícios suficientes para atestar que o texto deste madrigal foi baseado no poema de Guarini. Porém, o interesse maior desta constatação para esta pesquisa

89 não é simplesmente atribuir uma autoria em mais um texto atribuído a um anônimo nos livros de madrigais, mas constatar a última e talvez a mais importante caracte- rística do ideal poético da fase central de Gesualdo, a aproximação ao estilo Gua- riniano. Assim como este exemplo, podemos relacionar o madrigal A voi mentre il mio core, o segundo do quarto livro com outra passagem do mesmo po- ema Il Pastor Fido. Também podemos relacionar o madrigal em duas partes, Il sol qual hor più splende, do quarto livro, com o canto XVI do poema Gerusalem libera- ta (CURINGA, 1998, p. 205), entre outros exemplos do mesmo tipo que são con- senso entre os autores Anthony Newcomb, Glenn Watkins e Elio Durante. Diante disso, podemos caracterizar o ideal poético de Carlo Gesual- do em seus livros centrais como sendo: relevantemente influenciado pelo ambien- te artístico da cidade de Ferrara, o que resulta em textos construídos sobre outros de poetas desconhecidos ou, como disse Arnaldo Di Benedeto em seu livro Tasso, minori e minimi a Ferrara (1989), “poetas menores”. Um maior experimentalismo poético onde sobressai uma busca pelo individualismo do texto, evidenciado prin- cipalmente pelo uso constante do termo mio. Por fim, sem que isso se torne para- doxal com as ideias anteriores, a determinação do estilo de Guarini como sendo o mais próximo dos ideais estéticos do compositor. Ao analisarmos estes mesmos procedimentos nos últimos dois livros de sua obra, V e VI, encontramos indícios suficientes para ressaltar o caráter de continuidade e exagero, ao contrário de uma ruptura advinda com o amadureci- mento de seu estilo. Ressalta-se que os madrigais que compõe esta última fase, mesmo tendo sido publicados pela primeira vez em um período posterior a estada do compositor em Ferrara, foram seguramente compostos durante os anos em que lá esteve. Podemos atribuir aos poemas destes madrigais, quase em sua totali- dade de atribuição anônima, que foram concebidos pelos poetas aprendizes da corte sob a orientação do compositor ou mesmo feitos totalmente por ele. A cons- tatação de ser uma produção ainda do período de Ferrara nos dá uma valiosa

90 contribuição, ao mesmo tempo que confirma esta ideia. O ambiente artístico mo- vimentado da cidade permitia que outros madrigalistas utilizassem os mesmos textos ou também se baseassem neles, de forma que continuamos a ter uma base para comparação sobre o que Gesualdo fazia com os poemas que iria utilizar e, a partir disso, como eram seus anseios nesta fase. Um primeiro exemplo está no quinto livro, Itene, o mieie sospiri, ma- drigal III. No ano de 1596 o compositor Luzzasco Luzzaschi publica em seu sexto livro o madrigal Itene o mie querele. As semelhanças deste com o texto utilizado por Gesualdo vão além do título e não deixam dúvidas de ser o mesmo texto usa- do como base.

Luzzaschi Itene mie querele Precipitose a volo A lei che m’è cagion d’eterno duolo. Ditele per pietà ch’ella mi sia Dolcemente crudele, Non crudelmente ria Ch’I dolorosa stride Cangerò lieto in amorosi stridi

Gesualdo Itene, o miei sospiri Precipitate ‘l volo A lei che m’è cagion d’aspri martiri. Ditele, per pieta, del mio gran duolo; C’ormai ella mi sia Come bella ancor pia, Che l’amaro mio pianto Cangerò, lieto, in amoroso canto

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A alteração promovida logo na primeira frase do texto, e consequen- temente em seu título, já traz consigo uma característica do compositor. Quando ele altera o termo querele para sospiri está transformando uma ideia que pressu- põe uma ação ativa, reclamações, para outra que denota uma ação mais passiva, suspiros. Esta condição passiva do narrador pode ser encontrada ao longo de to- dos os seis livros de madrigais, mas certamente se intensifica na última fase. O próprio termo sospiri, que representa bem esta condição, é numericamente mais encontrado nos últimos livros do que nos iniciais. Para uma reflexão mais ampla sobre esta questão da passividade buscada pelo compositor, podemos observar a comparação entre as traduções do texto original e do texto reconstruído pelo com- positor. Luzzaschi Ide minhas queixas Apressando-as em voar A ela que é a causa de minha eterna dor Dizei-a por piedade, que ela seja para mim. Docemente cruel Não cruelmente malvada Como um doloroso grito Eu transformarei-a alegremente em grito de amor.

Gesualdo Ide, oh meus suspiros. Precipita-se em voo Diga a ela que é a causa dos meus ásperos martírios Diga-a, por piedade, de minha grande dor Que agora ela se torne Tão piedosa quanto é bela, Que o amargo de meu pranto Transforme-se, alegremente, em amoroso canto.

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As alterações nos dois versos finais podem ser entendidas como uma busca por palavras que soassem melhor na gramática musical do compositor. Por este motivo, substituiu os termos stridi e gridi, por pianto e canto em busca da musicalidade que mais o agradasse. Para demonstrar como o estilo poético do compositor se tornou ainda mais direto e enxuto na fase final, temos o décimo sexto madrigal do quinto livro, Deh coprite il seno. Este texto, de atribuição anônima, tem uma relação importante com outro texto cujo manuscrito se encontra na biblioteca Estense di Modena, em que a correlação da temática e o desenvolvimento principal da narração permite concluirmos que foi a base para Gesualdo.

Original Copri il candido seno Che s’io ‘l veggio ben mio Per soverchia dolcezza il cuor vien meno. Ma, folle, che dich’io? Deh, no ‘l coprir, deh no, che s’io no ‘l veggio Sì possente e sì forte Sento il martir che mi conduce a morte! E se morir pur deggio È pur meglio morire Di dolcezza, ben mio, che di martire.

Gesualdo Deh, coprite il bel seno, Che per troppo mirar l’alma vien meno! Ahi, no l’coprite, no, che l’alma avezza A viver di dolcezza Spera, mirando, aìta Da quel bel sen che le dà morte e vita.

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A parte às semelhanças da narrativa que garantem a relação entre estes dois textos, o que chama atenção na versão do compositor é a forma como ele se apropria do texto. Ao contrário do que fazia nas fases anteriores, adaptando as sentenças e alterando as palavras em prol do sentido que gostaria, aqui ele utiliza apenas a ideia principal de duas frases, a primeira, “Copri il candido seno”, e a quinta, “ Deh, no ‘l coprir...”. Baseando-se nestas duas frases, constrói seu poema cujo tema central continua sendo a oposição entre morte e vida. Seguindo nesta que será a principal característica da fase final de sua composição, encontramos vários textos em que se pode relacionar uma ideia ou uma frase com outros textos já existentes. É importante notar a diferença com o que se fazia na fase anterior, quando todo o texto era baseado em uma narração já existente. Aliada a esta característica está a comprovação do estreitamento en- tre o ideal poético de Gesualdo com o poema de Guarini, visto que muitas das re- lações que se pode fazer nesta fase são direcionadas a escritos deste poeta. Alguns exemplos podem comprovar esta última constatação como, por exemplo, o madrigal S’io non miro non moro, o segundo do quinto livro. O po- ema anônimo se baseia na constante ideia da morte e está diretamente relaciona- do com o verso Io mi sento morir quando non miro, de Guarini (Rime..., 1598, n.55). Outro exemplo é o madrigal Alme d’Amor rubelle, o décimo primeiro do sex- to livro. Neste exemplo encontramos a simbólica passagem “frenare i venti”, cuja tradução seria “refrear os ventos”. Não por acaso encontramos em um diálogo em Le Dame, de Guarini, a frase “ Tu, la cui armonia lusinga e frena I più rapidi venti” em que a ideia de refrear os ventos já estava presente. No madrigal Moro, lasso, al mio duolo, o décimo sétimo do sexto li- vro encontramos as rimas vita/aìta e sorte/morte. Apesar de serem termos caros a Gesualdo e não se mostrarem estranhos a seu estilo, é importante sabermos da existência do poema escrito por Guarini Voi volete ch’io mora. Neste poema en- contramos os seguintes versos:

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Voi volete ch’io mora, Né mi togliete ancora Questa misera vita; E non mi date incontr’a morte aìta [...] Che ‘n sì dubbiosa, sorte Assai più fero è il non morir, che morte

A partir destas características levantadas podemos concluir que a terceira e última fase de composição do compositor apresenta, além das mesmas características já encontradas no ideal poético das fases anteriores, um distanci- amento maior do poema original. Isto pode ser interpretado como uma maior inde- pendência textual do compositor ou ainda como um indício de que a sua busca por um ideal poético para seus madrigais já havia surtido efeito e agora ele sabia bem para qual texto desejava escrever sua música. Também é importante a comprova- ção de que a poesia de Guarini se torna ainda mais a base para seu modelo poé- tico, podendo ser o estilo deste poeta considerado o mais próximo do compositor.

2.4. Considerações

A importância de um entendimento textual amplo dentro do estudo dos madrigais de Gesualdo vai além dos motivos já mencionados. Conforme já discu- tido neste estudo, a falta de alguns parâmetros externos ao compositor que pode- riam conter informações estéticas, como por exemplo, os desejos musicais de um empregador ou de uma entidade eclesiástica, torna a linguagem de Gesualdo ain- da mais complexa. Alia-se a isso o fato de encontrar-se sua obra no limiar entre dois períodos estéticos, Renascimento e Barroco, e todas as inovações e nega- ções técnicas que isto resulta; além da transformação contínua entre os sistemas de composição modal e tonal que encontrou na época de Gesualdo um ponto ex- tremo. Todos esses elementos dificultam o entendimento e, ao mesmo tempo,

95 conferem ao texto dos madrigais um dos únicos meios de se fazer um entendi- mento mais profundo da linguagem musical. No entanto, como grande parte deste estudo é baseado em suposições e aproximações documentais, visto a falta de uma documentação que elimine as dúvidas, algumas considerações podem ser feitas visando à eliminação de enga- nos e verdades antecipadas. O primeiro aspecto é refletirmos sobre o quanto a prática de manipular os textos utilizados é específica a Gesualdo. Como este texto demonstrou, cogita- se que outros compositores procederam de forma semelhante em alguns momen- tos. Como, por exemplo, o compositor bolonhês Agostino Veggio que pode ter uti- lizado em seu madrigal, composto em 1575, um texto alterado do mesmo poema que viria a ser a base para o madrigal Sento che nel partire, de Gesualdo. Temos também, indícios de manipulações menores ou mais superficiais, como por exem- plo, a diminuição do poema Tirsi Morir Volea feito por todos os compositores que construíram madrigais sobre ele. A partir da bibliografia e da documentação que conhecemos deste perí- odo, receia-se que a dúvida sobre a especificidade ou não desta prática permane- ça sem um esclarecimento definitivo, mas podemos refletir sobre ela no que se refere à obra de Gesualdo. Mesmo encontrando indícios de prática similar por outros compositores do Renascimento, devemos levar em conta que na época específica de Gesualdo, final do século XVI, os compositores tinham a sua disposição poetas especializa- dos na forma poética do madrigal. Entre estes poetas temos figuras ilustres e bem exploradas pela bibliografia especializada como Torquato Tasso e Battista Guarini, para usarmos exemplos próximos de Gesualdo. Por isso, é pertinente dizermos que era mais fácil e mais comum os poetas se ocuparem em escrever textos que agradassem a determinados compositores, como o próprio Tasso tentou fazer com Gesualdo, do que compositores que estivessem atentos em alterar e manipu- lar os poemas já escritos. O que contribui para assumir esta prática como uma especificidade da obra de Gesualdo.

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Ocupando-se ainda desta característica, vale refletirmos sobre a impor- tância interpretativa que pode conter. Ao analisarmos determinadas passagens que foram alteradas do poema original pelo compositor, e buscarmos uma visão ampliada delas com o intuito de encontrar a própria visão que o compositor tinha daquele madrigal, estamos diante de uma ferramenta interpretativa importante. Ferramenta esta que pode vir a suprir a falta de informações que a escrita musical da época continha, devido a seu sistema ainda rudimentar de documentar a práti- ca. O ponto mais importante para esta pesquisa é percebermos que no caso de Gesualdo o procedimento de manipulação do texto original é tão presente ao lon- go de sua obra, que pode ser considerado como um mecanismo inerente à escrita do compositor, o que comprova a importância desta investigação. Além disto, ressaltam-se algumas características musicais dentro da obra de Gesualdo. As duas características que, para este pesquisador, são as mais importantes neste aspecto, se completam e se explicam. São elas: a utiliza- ção de “poetas menores” ou “artesãos da palavra”; e a tendência ao poema mais “egocêntrico”. Quando o compositor, a partir de seus livros centrais, passa a prio- rizar poetas sem expressão histórica em detrimento à obra de outros conhecidos está buscando espaço dentro do texto poético a experimentações que seriam mais difíceis dentro de um estilo já cristalizado. Ao mesmo tempo, ocupa este espaço conquistado dentro da narração poética com termos e imagens textuais extrema- mente pessoais e íntimas. Desta forma, evidencia-se uma liberdade artística conquistada a partir destas duas características, permitindo a ele elaborar em sua fase central de composição e, especialmente, na fase final, uma obra tão distinta do repertório corrente que chega a ser considerada excêntrica. Tornando estas constatações poéticas como a base para se entender a linguagem do compositor. Por fim, ressalta-se a escolha de Guarini como o poeta mais próximo ao estilo de Gesualdo. Como demonstrado neste texto, a inclusão do madrigal T’amo mia vita baseado no poema homônimo do poeta no quinto livro de Gesualdo con- firma que o estilo de Guarini encontrou espaço na obra do compositor, mesmo em

97 sua fase mais íntima. Somente por este exemplo citado acima, já se comprovaria a importância deste poeta dentro da obra de Gesualdo. Pois, mesmo estando na fase de maior liberdade poética como na fase final de sua composição em que a totalidade de seus madrigais foi construída sob textos anônimos, o compositor de- cidiu incluir uma poesia de Guarini. Mas se expandirmos a pesquisa para aproxi- mações mais profundas, perceberemos que muitos dos textos anônimos conser- varam características textuais que se assemelham à obra de Guarini, em especial, a sua obra Il Pastor Fido. Sendo Guarini um dos poetas mais conhecidos do Re- nascimento, e tendo suas características como um contraponto ao estilo grandioso e alegórico do petrarquismo, esta aproximação com a obra de Carlo Gesualdo nos confirma o ideal poético aqui traçado.

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3. A MÚSICA

A escrita musical empregada por Gesualdo ao longo de seus livros de ma- drigais traz um paradoxo técnico que, se identificado previamente, pode ajudar na compreensão de sua linguagem. Este paradoxo é o fato de apresentar caracterís- ticas específicas e distintas das demais contemporâneas, apesar de ser baseada em procedimentos comuns ao seu tempo. Ou seja, a escrita musical de Gesualdo não se revela através de recursos inéditos, mas pelo uso diferenciado e exacerba- do das ferramentas conhecidas de sua época. Na busca de identificar estas ferra- mentas é necessário englobar certos aspectos no estudo e criar, a partir delas, um ambiente musical mais amplo. Para elaborarmos uma visão analítica deste repertório que seja eficiente é necessário antes de tudo redefinirmos os conceitos à sua realidade. Esta necessi- dade se impõe por termos toda a amplitude de ferramentas teóricas para analisar um repertório ligada a sistemas previamente conhecidos. Por exemplo, ao assu- mirmos determinada obra como sendo modal, tonal, atonal, serial ou mesmo ou- tros sistemas existentes, prevemos um conjunto de procedimentos que facilitam o entendimento. No entanto, os madrigais de Gesualdo apresentam uma situação distinta, pois, apesar de não serem construídos sobre práticas inéditas, apresen- tam características de sistemas conhecidos e antagônicos (modal e tonal, por exemplo) que são agravadas pelo uso constante da linguagem cromática e disso- nante do compositor, criando uma situação em que a análise exige um olhar espe- cífico a cada obra. É necessário ter o cuidado de não assumir previamente concei- tos tradicionais como único meio de entendimento, sob a pena de não se alcançar explicações úteis. Portanto, esta pesquisa estabelecerá uma visão analítica deste repertório, extraindo informações técnicas dentre as principais ferramentas com- posicionais utilizadas pelo compositor e, especialmente, no uso conjunto das mesmas.

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3.1. Estrutura Harmônica

A partir do conhecimento que temos da música do Renascimento, podemos aceitar que o pensamento do compositor, tal como seus contemporâneos, priori- zava mais uma visão horizontal da escrita do que a verticalidade que hoje tenta- mos identificar. A tradição polifônica do período estava enraizada na música mo- dal, apesar das características harmônicas que conhecemos. O autor Daniel Rowland em seu livro sobre a música do período, Mannerism – Style and Mood, destaca que a prática modal era essencialmente melódica e a partir do procedi- mento de se justapor duas ou mais vozes é que surge o pensamento harmônico e, ao mesmo tempo, o início da substituição do modalismo (1964, p.37). Entendemos disso que as resultantes harmônicas identificadas na música do Renascimento tinham um caráter de resultado e não de causa, ou seja, os compositores arquite- tavam mais as melodias do que as harmonias. Fica também evidente que, com poucos exemplos de obras importantes do final do século XV ou início do XVI, já encontraremos indícios suficientes para con- tradizer a afirmação acima, pois, a realização vertical dos madrigais e motetos é clara. O que temos é a caracterização do, já citado, processo de transição que a escrita sofria na época, quando os compositores demonstravam cada vez mais interesse em manipular os resultados harmônicos de suas escritas, mesmo estan- do ainda comprometidos com a tradição modal. O processo transitório descrito é identificado nos madrigais de Gesualdo, em que nos deparamos com trechos que podem ser considerados modais e outros que já são claramente orientados pelo pensamento tonal. Mas a simples identifi- cação destes dois sistemas pouco auxilia no entendimento desta linguagem, que se demonstra bem mais complexa a cada passo do processo analítico. A dificuldade maior imposta pelo compositor reside em dois pontos princi- pais; o primeiro é o fato de utilizar estes dois sistemas composicionais, modal e tonal, ao mesmo tempo em que emprega largamente o recurso da escrita cromáti-

100 ca, dificultando seu entendimento. E o segundo é proporcionar passagens musi- cais em que não se configura claramente nenhum destes dois, criando um terceiro sistema de composição, cuja definição e entendimento merecerão maiores cuida- dos neste estudo. O mais importante neste momento da reflexão harmônica é ampliar a visão dos procedimentos que encontraremos. Colaborando com este pensamento, te- mos o autor Glenn Watkins que diz:

O lado cromático deste estilo próprio tem uma dimensão racional e uma irracional, ou seja, inclui progressões harmônicas que podem se relacio- nar tanto com o antigo sistema modal ou com um sistema de desenvolvi- mento funcional, assim como muitas outras que são difíceis de explicar através de qualquer sistema teórico concebido antes ou depois. (WATKINS, 1991, p.107-108)21

A relevância maior desta afirmação de Watkins é assumir que há trechos em que as resultantes harmônicas da escrita polifônica não permitem uma apro- ximação convincente nem com a prática modal nem com os procedimentos tonais. São estes trechos que acabam sendo os mais característicos na obra do composi- tor e dificultam a classificação e o entendimento do repertório. Portanto, estamos diante do primeiro problema na análise dos madrigais de Gesualdo: como se deve classificar a escrita destes trechos? Esta dificuldade foi uma das responsáveis pelo repertório de Gesualdo ter ficado muito tempo relegado à classificação simplista de “extravagâncias de fim do período” sem um entendimento e uma classificação pertinente (HAAR, 1998, p.94). Uma das tentativas mais aceitas de se propor uma forma de classificação para estes trechos foi dado por Edward Lowinsky em seu já citado trabalho Tona-

21 The chromatic side of this style itself has both rational and a irrational dimension, i.e., it includes harmonic progressions which can be reconciled with an older modal order or a developing function- al system, as well as many others which are difficult to explain by any theoretical system devised before or after.

101 lity and Atonality in Sixteenth-Century Music (1961) (Tonalidade e Atonalidade na música do século XVI), quando a escrita passa a ser considerada como “atonali- dade triádica” (1961, p.38-50). A explicação dele vem ao encontro da comparação que se faz entre o repertório do final do período, em especial a obra de Gesualdo, e os exemplos de atonalismo no século XX. Para este autor, a harmonia do século XVI transformou-se em uma complexa organização musical sem centro tonal defi- nido, porém, tendo como base a escrita triádica. Esta base triádica é que a dife- rencia do atonalismo do século XX. Certamente, a opção do autor de classificar a obra de Gesualdo como ato- nal pode causar uma série de complicações conceituais e entendimentos dúbios, principalmente por se tratar de um repertório cuja base modal não foi abandonada. No entanto, ao assumir estes trechos como sendo uma organização musical sem centro tonal definido ele nos ajuda a classificar este que seria o terceiro sistema utilizado pelo compositor. Portanto, para esta pesquisa, utilizaremos a nomencla- tura de Lowinsky e classificaremos os trechos não tonais nem modais de Gesual- do dessa forma. Atentando diretamente aos procedimentos modais, encontramos uma escri- ta que foi diminuindo sua presença na medida em que o compositor elaborava seus livros de madrigais. O amadurecimento de sua escrita cromática e o aprofun- damento do experimentalismo de sua obra foram tornando menos comuns os tre- chos essencialmente modais. Mas alguns princípios deste sistema, como as ca- dências, por exemplo, continuaram presentes ao longo de todos os livros. Gesualdo utilizava nos trechos essencialmente modais as práticas mais tra- dicionais desta escrita. Dos doze modos utilizados na época, os mais encontrados na obra de Gesualdo são: o Dórico, o Frígio, o Lídio e o Mixolídio. Normalmente sua escrita modal está mais associada aos trechos imitativos, pois a homofonia apresenta, geralmente, muitas notas alteradas, o que dificulta a manutenção de uma característica modal. Um trecho tipicamente modal de Gesualdo consta na figura seguinte, extra- ída de seu segundo livro. O início do madrigal “Dalle odorate spoglie” apresenta as

102 principais características modais da escrita do compositor que são: o predomínio da escrita imitativa; o menor uso de notas alteradas em comparação com todo o restante de sua obra; e um maior equilíbrio da polifonia. O modo utilizado neste madrigal é o Dórico, que o compositor mantém claramente até o final da obra. Es- tas características são encontradas frequentemente nos dois primeiros livros.

Figura 4 - Dalle odorate spoglie - Livro II - c. 1 a 3

Já nos trechos que se aproximam das práticas tonais, observamos caracte- rísticas mais amplas que merecem algumas considerações. Apesar de encontrar- mos passagens com claras características tonais, inclusive com relações que hoje consideraríamos de dominante/tônica (V-I), estas não são as mais comuns. O que mais encontramos são trechos em que a base da escrita são as tríades perfeitas, maiores ou menores, mas a diferença está nas relações entre elas, que não são tão fortes como estamos acostumados no repertório acertadamente tonal. A se-

103 quência sugere algumas relações entre elas, porém, estas não apresentam uma função, ou ainda, não caracterizam uma organização tonal como a que conhece- mos hoje. Na figura abaixo, retirada do décimo sexto madrigal do terceiro livro, identi- ficamos uma situação bastante comum em sua obra. A sessão inicia-se com a tríade maior sobre a nota Dó e encerra-se com outra tríade, também maior, sobre a nota Mi. Durante o trecho, alternam-se relações de quintas e graus conjuntos que, por vezes, tendem a demonstrar relações tonais, porém, estas relações são sempre enfraquecidas pela sequência seguinte.

Figura 5 - Ancidetemi pur, grievi martiri - Livro III - c. 7 a 11

Colaborando com este exemplo, vale relembrar uma frase de Edward Lowinsky, já citado nesta tese, dizendo que o cancelamento harmônico que cada

104 frase de Gesualdo promove na frase anterior tinha o intuito de “criar um estado de suspensão torturante” (LOWINSKY, 1961, p. 43). Por fim, nos deparamos com a situação harmônica mais característica de Gesualdo, as passagens que não se aliam diretamente a nenhum dos dois siste- mas de composição, aqui considerado como o terceiro sistema, ou, atonalidade triádica. Na figura abaixo temos um exemplo claro deste tipo de escrita. O início do madrigal “Io Parto”, que foi extraído do sexto livro de madrigais do compositor, apresenta uma escrita cujas relações entre as tríades não permitem quaisquer tentativas de um caminho harmônico esperado.

Figura 6 - Io Parto – Livro VI - c. 1 a 5

A sequência inicial, que vai de uma tríade maior sobre a nota Mi para outra, menor, sobre a nota Ré, deixa claro a não preocupação do compositor com as relações harmônicas. Isso fica ainda mais evidente por se tratar de um trecho em

105 que o ritmo harmônico é relativamente lento, tendo praticamente cada compasso escrito sobre a mesma tríade. Cabe aqui fazer uma distinção entre os dois últimos exemplos. No exemplo de número 5 discorríamos sobre o segundo sistema de escrita do compositor, o mais próximo do tonal. Tínhamos como característica a escrita triádica sem fortes relações tonais, ou seja, as tríades se relacionavam, normalmente entre progres- sões de quartas e quintas, mas quando se analisava o todo da frase não encon- trávamos um caminho harmônico explicável. Já no último exemplo, figura 6, e em todos que se referem ao terceiro sistema, a principal marca é justamente a falta de relação entre as tríades, nesta não relação é que se caracteriza este sistema. Outro exemplo consta do último livro do compositor, o madrigal Moro Lasso, Al Mio Duolo. Os três primeiros compassos da obra apresentam uma situação harmônica tão complexa que fica impossível sugerir um centro, seja modal ou to- nal. Ao longo de todo o madrigal observa-se o uso frequente desta linguagem complexa, o que torna este madrigal mais um exemplo de harmonia do século XVI, ou seja, uma complexa organização harmônica sem centro definido.

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Figura 7 - Moro, Lasso Al Mio Duolo - Livro VI - c. 1 a 3

O que aproxima estes dois últimos exemplos e, de certa forma, nos oferece uma explicação coerente sobre este terceiro sistema que nos permite a sequência do estudo, é a questão expressiva do compositor. Certamente o propósito de Ge- sualdo nestes casos era fazer uma interação consistente entre a música e o senti- do do texto. Para isso, utilizava cadências harmônicas inusitadas, causando efei- tos sonoros que se afastavam dos que eram esperados, resultando em uma escri- ta experimental. Diante destas características, podemos concluir que o compositor utilizava estes três sistemas distintos de organização musical: o modal; o mais próximo do tonal; e o que não se encaixa em nenhum destes, denominado aqui de atonalida- de triádica. Para este estudo, mais importante do que constatar quais eram os três sistemas utilizados em seus madrigais é entendermos como estes sistemas impli- cam no entendimento da obra. Podemos considerar que o compositor manipulava estes sistemas de forma a causar maior ou menor estranhamento no resultado

107 sonoro e, assim, desenvolver o texto do madrigal. Ou seja, Gesualdo construía sua narração através da aproximação ou afastamento de procedimentos musicais conhecidos e, para isso, utilizava estes três sistemas de construção harmônica.

3.2. Reflexões sobre a linguagem modal de Gesualdo e seu tempo

Ao assumirmos que a estrutura harmônica da escrita de Gesualdo contem- plava os três tipos de sistemas de composição citados, certamente atribuiremos ao sistema modal o ambiente mais comum para este repertório. No entanto, é jus- tamente na questão modal que os madrigais deste compositor apresentam os maiores desafios para seu entendimento. Não há dúvida de que a música do Renascimento se construiu a partir do sistema modal, no entanto, quando se avança na escrita polifônica do fim do perí- odo, as certezas que envolvem esta classificação se tornam menos claras. O prin- cipal ponto desta dificuldade é descobrir até onde se deve considerar as práticas modais dentro das resultantes verticais da polifonia. Este problema se estende durante todo o período, mas sua importância se impõe de forma especial a partir dos madrigalistas tardios. No caso especíifico de Gesualdo, temos o incremento do uso recorrente e exacerbado da escrita cromática em todos os momentos de sua composição, o que torna o entendimento modal ainda mais complexo. Para avançar nesta ques- tão e tentar extrair conceitos que sejam aplicáveis à obra deste compositor, faz-se necessário analisar uma questão teórica que vem sendo discutida pela musicolo- gia moderna há, pelo menos, 60 anos: o que ocorreu entre a estrutura modal do gregoriano e o estabelecimento da escrita tonal? Esta transição se deu de forma contínua e evolutiva ou foi uma ruptura causada em um determinado momento? Apesar dos avanços musicológicos não terem respondido de forma consensual estas e outras perguntas que a reflexão nos impõe, a bibliografia especializada

108 que temos até o momento propõe parâmetros que podem nos auxiliar no entendi- mento da obra de Gesualdo. A primeira intervenção relevante sobre o tema foi feita pelo musicólogo alemão Heinrich Besseler em 1950. Em seu trabalho intitulado Bourdon und Fauxbourdon (Leipzig, 1950), Besseler propunha uma visão totalmente evolutiva da transição modal/tonal. Segundo ele, os compositores do século XV já haviam “intuído” o futuro desenvolvimento da estrutura harmônica para o tonalismo, mas faltava naquele momento determinadas ferramentas que possibilitassem este de- senvolvimento. Estas ferramentas podem ser entendidas hoje como a noção fun- cional que temos entre as tríades que compõe uma obra tonal (MANGANI, 2004, p. 20). Baseado nesta visão, podemos entender que todo o repertório produzido entre os séculos XV e XVII caminhou em direção ao estabelecimento do novo sis- tema. Apesar da visão evolutiva ter dominado o cenário musicológico durante a segunda metade do século XX, quase contemporaneamente a Besseler o também alemão Bernhard Meier construía em seu trabalho Die Harmonik im cantus-firmus- haltigen Satz (1952) (A Harmonia contida no Cantus firmus) a primeira revisão ao conceito, não sem fazer várias criticas e apontar problemas. Como salienta o autor Marco Mangani em seu artigo Le “strutture tonali” della polifonia (2004, p. 21) (A “estrutura tonal” da polifonia), Meier propõe uma visão mais positivista da questão, incluindo no pensamento evolucionista mais conceitualizações históricas. Sua principal crítica à análise de Besseler encontra-se no uso de conceitos musicológi- cos distantes da realidade do século XVI, ou seja, sua análise deste repertório foi embasada em procedimentos modernos, não promovendo uma contextualização histórica mais aprofundada, o que resultou em definições baseadas em tendências anacrônicas do repertório. Um exemplo citado por Meier é o fato de o primeiro au- tor ter conferido a linha do contratenor uma função similar a um baixo contínuo, mesmo que, no caso do repertório em questão, esta linha não tivesse nenhuma função de sustentar as tríades resultantes (MANGANI, 2004, p.21). Para Meier, esta visão limitava o entendimento de Besseler e resultou em uma análise inefici-

109 ente. À parte a estas críticas, Meier presta uma importante contribuição ao tema elaborando parâmetros para a análise do repertório modal, especialmente quando descreve e explica a função de conceitos como o exordium (perfil melódico do modo) e repercussa (nota mais importante do modo). Poucos anos depois, já na década de 60, temos os trabalhos do autor Carl Dahlhaus que também contribuiu para o avanço desta questão. Entrando na dis- cussão proposta por Meier e ampliando a revisão dos conceitos propostos por Besseler, Dahlhaus propõe uma visão evolutiva que inclui diversos outros parâme- tros em sua explicação e entende este processo evolutivo de forma muito mais extensa do que os demais musicólogos. O primeiro fator que o diferenciou das demais visões foi ter considerado como ponto inicial do processo de transição a mudança de função e disposição das cadências, que passam a ter, segundo ele, uma função central na música do pós-modalismo. Mas, de todos os avanços efe- tuados na discussão e da sólida conceituação teórica proposta por Dahlhaus em seu trabalho Untersuchungen über die Entstehung der harmonischen Tonalität (1990) (Estudos sobre a origem da tonalidade harmônica), o principal para esta pesquisa foi estabelecer que os primeiros indícios concretos da dualidade mai- or/menor estão nos motetos de Josquin Des Prez e que o ponto preciso da mu- dança de sistema está nos madrigais de Monteverdi. Estas marcações temporais que Dahlhaus fez na discussão posta, contribui por nos ajudar a situar a obra de Gesualdo dentro deste processo e atesta, de cer- ta maneira, que, apesar da transição entre os sistemas modal/tonal ser a explica- ção para a maior parte das características que tornam a obra de Gesualdo tão dis- tinta em seu tempo, este compositor pode ser considerado como à margem de todo o processo aqui discutido, pois, ao mesmo tempo em que Monteverdi assina- la, segundo a visão de Dahlhaus, o final do processo transitório, Gesualdo está no auge da afirmação de seu estilo pessoal (a partir do livro III) em que o caminho natural trilhado por todo este processo de transição musical foi completamente abandonado por ele.

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Seguindo com esta rápida incursão na bibliografia sobre o assunto, não de forma cronológica, pois os estudos configuram linhas de pensamentos que se opuseram de forma desigual no tempo, mas propondo uma linha de entendimento do tema, temos os trabalhos do americano Harold Powers. Segundo Marco Man- gani, este último autor escreveu os estudos mais conhecidos, citados e, talvez, menos entendidos sobre este assunto (MANGANI, 2004, p. 24). A dedicação de Powers à estrutura modal vai além da questão sobre seu desenvolvimento. É dele a definição que existe no dicionário New Grove do verbe- te Mode (POWERS, 1980), em que o autor faz uma análise minuciosa do assunto, envolvendo questões que vão desde os aspectos históricos até as explicações semânticas sobre o termo. Sua visão sobre a discussão que estamos tratando atravessou fases mais e menos radicais sobre a questão evolutiva e, no geral, apresentou-se sempre como contrária à visão estabelecida por Meier. Mas nas inúmeras revisões do seu próprio pensamento, Powers elaborou parâmetros im- portantes. O primeiro a ser destacado nesta pesquisa foi reconhecer que Meier contribuiu para o tema quando encontrou no repertório do século XVI uma consci- ência por parte dos seus compositores das características de modos autênticos e plagais. Para ele, esta consciência demonstra de forma objetiva que a polifonia vocal detinha um conhecimento das categorias do sistema dos oito modos equiva- lente ao que temos hoje. (POWERS, 1992/1, 20 n. 24). Mas o conceito deste autor que mais auxiliará na pesquisa sobre os madri- gais de Gesualdo é defender que as características ligadas ao modo escolhido são mais amplas do que as visões anteriores demonstravam. A aplicação prática disso é dizer que a identificação do modo de um madrigal, ou qualquer outra peça polifônica do século XVI, não se faz de uma forma simplista como a análise musi- cal está acostumada, por vários motivos, sendo um deles o fato de não ser possí- vel reconhecê-lo em todos os exemplos. Powers sintetiza seu pensamento dizendo que nenhum teórico pensaria em negar que a sexta sinfonia de Beethoven está em Fá Maior, pois, o sistema tonal, como conceito teórico, é um fator indiscutível na composição musical. Mas a

111 classificação de uma obra polifônica a uma determinada categoria modal é uma operação longe de ser óbvia, e não é raro encontrar fortes discrepâncias neste propósito entre os teóricos do século XVI. (POWERS, 1981, p.432-433) Ao assumir, depois de anos de pesquisas e avanços neste tema, que a questão modal de tão complexa pode resultar em opiniões divergentes e sem con- senso, Powers contribui por atestar que a escolha do modo e sua identificação pela musicologia moderna é mais complexa do que normalmente vem sendo tra- tada. Este pensamento vem ao encontro do estudo específico da obra de Carlo Gesualdo, pois, em inúmeros momentos, a tomada de decisão sobre qual é o mo- do base de um madrigal implicaria em pequenas adaptações e desconsiderações que podem não ser a melhor forma de analisá-lo. Como forma de encerrar esta discussão dentro desta pesquisa, e ainda se baseando na bibliografia especializada sobre o assunto, temos o artigo Counter- point and Modality in Gesualdo’s Late Madrigals escrito por Marco Mangani e Da- niele Sabaiano na edição especial Gesualdo 1613 – 2013 da revista italiana Philomusica on line. O objetivo do artigo era comprovar se existia ou não uma or- ganização modal que fosse compreensível por nós nos últimos dois livros de ma- drigais de Gesualdo. A constatação foi que sim, é possível encontrar uma organi- zação modal consistente nas últimas fases do compositor. Mas, além disso, os autores opinaram dentro desta pesquisa sobre a discussão tratada neste texto e contribuíram para seu entendimento. Segundo eles, após dez anos de pesquisa sobre o tema, conclui-se que nenhuma das visões aqui retratadas devem ser totalmente aceitas, pois todas ten- taram enxergar na música do século XVI, auge do experimentalismo do renasci- mento, um sistema de composição consistente o bastante para se tornar padrão entre os compositores, o que torna estas visões falhas. Ou seja, para eles será impossível responder às duas questões iniciais deste capítulo: o que aconteceu entre a estrutura modal do gregoriano e o estabelecimento da música tonal; e se o processo de transição modal/tonal se deu de forma evolutiva ou de forma abrupta,

112 pois estas duas questões se dirigem a uma expressão artística com poucos pon- tos de coerência entre os diferentes compositores. Para o pesquisador desta tese, a constatação mais importante feita por esta dupla de autores, e que será aceita nesta pesquisa, é que a identificação do modo básico sob o qual Gesualdo escreveu determinado madrigal não é uma informa- ção determinante no seu entendimento, pois, se a preocupação expressiva exerci- da pelo compositor em sua obra podia alterar quaisquer outros parâmetros e sis- temas musicais utilizados na concepção da obra, inclusive as ferramentas ligadas à tradição modal, o mais importante na análise deste repertório é identificar quais eram os seus objetivos expressivos e, assim, desvendar a gramática de sua músi- ca.

3.3. Cadências

Apesar da discussão proposta acima sobre a importância, ou não, da identificação do modo base nos madrigais de Gesualdo, para a continuidade deste estudo se faz necessário avançarmos em características presentes ao longo de todos os madrigais, independente do sistema utilizado pelo compositor ou hoje identificado. Um dos elementos musicais mais importantes nos madrigais de Ge- sualdo, e diretamente relacionados com as características textuais da narração proposta pelo texto, são as cadências. É através delas que a pontuação da narra- ção se dá, criando respirações, interrupções e mesmo ligações condizentes com determinadas passagens. Por este motivo, elas se tornam importantes no enten- dimento técnico desta obra. Além disso, o estudo das cadências no repertório re- nascentista extrapola o entendimento textual. Foi através de padrões de combina- ções sonoras nos finais de frases ou seções musicais que grande parte do desen- volvimento da estrutura harmônica deste repertório aconteceu. As cadências finais ajudavam a concluir uma seção harmonicamente e acabavam por fortalecer as relações modais, ou tonais, de toda uma obra.

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A importância do entendimento sobre as cadências fez com que o mú- sico e teórico alemão Joachim Burmeister (1564–1629) dedicasse um capítulo de seu estudo sobre as figuras retóricas da música do século XVI, Musica Poetica (1606), a este tema. A definição inicial dada pelo autor é de que:

A cadência é uma passagem musical que consiste em três partes, são elas: o início, o meio e o fim. É usada para terminações de seções (ou se- ja, períodos) da melodia e para terminações harmônicas em si22. (BURMEISTER, 1606, p. 107)

Ainda utilizando as definições propostas por Burmeister, podemos divi- dir as cadências em dois tipos, as melódicas e as harmônicas. A primeira consiste em um movimento cadencial proposto por uma voz da polifonia que se destaca das demais, enquanto que a segunda são movimentos comuns de todas as vozes que realizam a ação. Aplicando estes conceitos de forma específica aos madrigais de Gesualdo, identificamos a presença constante destes procedimentos, mas acabamos tendo necessidade de mais algumas ferramentas de análise para fazer um estudo amplo do repertório. O autor Massimo Sandro, em seu livro Il Madrigale, propõe uma visão mais distanciada do repertório do Renascimento, atentando para outra importante classificação de cadências, as conclusivas e as de passagens. De acordo com o autor, as cadências conclusivas são repousos propostos pelo compositor para tre- chos do texto poético que apresentam pontos finais, enquanto que as de passa- gens, ou transitórias, são repousos breves utilizados no que corresponderiam às vírgulas da narração poética (SANDRO, 2005, p. 35). Ainda de acordo com seu estudo, a duração do repouso é o que determina se a cadência é transitória ou definitiva, e também demonstra a força, ou relevância, desta cadência. Esta defini-

22 “ A cadence is a musical passage consisting of three parts (or pitches), namely, the beginning, the middle, and the end. It’s used for terminating the affections (that is, the periods) of melodies and for the harmony itself”

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ção, que pode parecer óbvia, demonstra para este estudo importantes considera- ções para a realização prática e interpretação dos madrigais. Exemplificando estas duas vertentes nos madrigais de Gesualdo, temos os dois exemplos seguintes. O primeiro, retirado do segundo livro de madrigais, apresenta uma cadência conclusiva, e o segundo uma cadência transitória, extraí- do do quarto livro:

Figura 8 - Ma se avverrà ch’io moia - Livro II - c. 18 a 21

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Figura 9 - Arde il mio cor - Livro IV - c. 19 a 21

Atentando diretamente para os aspectos técnicos das cadências, Ge- sualdo nos apresenta uma situação parecida com a questão harmônica, utilizando os procedimentos tradicionais, mas também criando situações distintas só encon- tradas em sua obra. Dos procedimentos tradicionais, podemos utilizar as definições de Bur- meister para nos auxiliar no entendimento. Segundo ele, temos quatro cadencias melódicas principais: Discant, Alto, Tenor e Bassus. Ressalta-se que elas podem ser encontradas em outras vozes que não as que levam seus nomes, e todas con- sistem em passagens melódicas de uma única voz dentro da trama polifônica que garantem o movimento cadencial. A cadência Discant consiste em encerrar um período com uma passa- gem melódica de três notas, sendo a primeira mais longa que a segunda, o que resulta em uma síncopa, e a segunda estando a uma distância de semitom da úl- tima, como demonstra a figura abaixo retirada do quinto madrigal do quarto livro de Gesualdo:

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Figura 10 - Che fai meco, mio cor – Livro V - c. 30 a 31

Na cadência Alto, encontramos o período encerrado melodicamente com três notas iguais, como conferimos na passagem abaixo retirada do terceiro livro, sétimo madrigal:

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Figura 11 - Dolce spirto d’Amore - Livro III - c. 7 a 8

Temos ainda a cadência Tenor, que consiste em três notas se movendo por graus conjuntos, como no décimo segundo madrigal do primeiro livro:

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Figura 12 - Tirsi Morir Volea - Livro I - c. 21 a 22

Por último, a cadência Bassus com a primeira das três notas estando a uma oitava de diferença da última. Entre elas temos uma nota com distância de uma quinta justa. O exemplo abaixo foi retirado do sétimo madrigal do segundo livro de Gesualdo:

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Figura 13 - Se così dolce è il duolo - Livro II - c. 12 a 13

Tendo ainda os procedimentos melódicos listados por Burmeister como ponto de comparação, e considerando que são eles os mais utilizados por Gesu- aldo, nos deparamos com situações bastante distintas, quando o compositor de- monstra utilizar os procedimentos mais tradicionais para elaborar efeitos inusita- dos. A cadência final do madrigal “Mercè grido piangendo”, um dos mais conheci- dos de seu quinto livro, nos apresenta uma situação deste tipo. A escrita é primor- dialmente horizontal, mas a resultante harmônica da imitação também promove uma ação cadencial. O que mais chama atenção é a utilização de um motivo me- lódico que parece ser a junção de duas, ou mais, cadências elencadas acima ao mesmo tempo. O motivo, que se repete em todas as vozes, por quatro compas- sos, é formado por três notas com intervalos que vão desde um semitom até uma terça menor, e o efeito é bastante dissonante.

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Figura 14 - Mercè grido piangendo - Livro V - c. 30 a 33

A importância do exemplo acima para este estudo é a constatação de que Gesualdo utilizava o conhecimento que tinha dos procedimentos esperados na escrita madrigalesca, e utilizava em abundância, para criar situações inespera- das e, assim, pontuar de forma expressiva determinadas passagens. Discorrendo sobre essa mesma cadência descrita acima, o autor Watkins diz que é por trechos como este que Gesualdo foi descrito por alguns críticos como sendo um “cavaleiro que tropeça em um labirinto de modulações23” (1991, p.185). Temos ainda as cadências harmônicas, que são as que realizam o mo- vimento cadencial em uma ação conjunta de todas as vozes, sem movimentos individuais importantes. As mais encontradas nos madrigais de Gesualdo são também as mais tradicionais – perfeitas, imperfeitas e plagais. Nos exemplos, que se afastam das mais comuns e são encontradas com certa frequência ao longo dos livros de madrigais, temos uma derivação da cadência Frígia, mas com a linha do baixo caminhando por intervalos de semitons.

23 Cavalier stumbling about in a maze of modulation

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A cadência final do nono madrigal do quinto livro, Occhi del mio cor vita, é um bom exemplo deste procedimento. A sensação auditiva causada por esta cadência se aproxima também do sistema tonal. De acordo com Watkins, passa- gens como esta podem ser caracterizadas com uma trama harmônica construída sobre uma escala tonal, mas descaracterizada pelo uso de intervalos “extravagan- tes” (WATKINS, 1991, p. 188-189).

Figura 15 - Occhi del mio cor vita - Livro V - c. 43 a 45

O entendimento das cadências mais utilizadas pelo compositor em seus madrigais, mesmo que de forma ampla, tem significativo valor para este estudo. Sua importância vai além da questão analítica da obra, pois interfere diretamente no processo de interpretação prática das obras. A consciência de seu uso garanti- rá aos intérpretes uma adequação entre suas escolhas interpretativas e a intenção narrativa do compositor.

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3.4. A Escrita Cromática

A escrita cromática de Gesualdo não causa apenas dificuldades práti- cas, mas também teóricas. Sendo assim, antes de analisarmos a linguagem cro- mática do compositor, propriamente dita, faz-se necessário uma reflexão sobre o uso das alterações e suas implicações na música do século XVI. Seu uso está presente desde o início do Renascimento, basta obser- varmos os inúmeros exemplos de frottole e villancicos do período que encontra- remos passagens cromáticas (LOWINSKY,1961, p.3). Mas durante esta fase inici- al as alterações cromáticas tinham um papel estrutural na escrita como resultado direto do uso da musica ficta – prática de utilizar notas alteradas com o objetivo de expandir a escala (SANDRO, 2005, p.70). Com o desenvolvimento do Renasci- mento e o aprofundamento da transição modal/tonal, a harmonia do século XVI passou a utilizar a escrita cromática com outros propósitos, principalmente como ferramenta expressiva. Para entendermos a importância deste tipo de escrita para o desenvol- vimento da música do século XVI, observamos as pesquisas do próprio Edward Lowinsky. Segundo o autor, as alterações cromáticas tiveram um significante pa- pel no desenvolvimento da música, pois, para ele, foi através da ampliação da es- cala pelos procedimentos cromáticos que se abriram as possibilidades da música tonal. Com esta expansão, cada um dos doze tons passou a ser base para uma tríade, o que revolucionou a forma de composição.

Embora o movimento cromático atuasse como um poderoso contragolpe à consolidação tonal, em um senso mais amplo ele expandiu as possibili- dades para o conceito de tonalidade. Um elemento indispensável para a definição da tonalidade moderna foi a abertura de todos os espaços har- mônicos da escala permitindo que cada um dos doze tons cromáticos pu- desse se tornar a base para uma nova tríade e cada tríade passa a ter uma relação com as demais.24 (LOWINSKY, 1961, p.43)

24 Although the cromatic movement acts as a powerful counterthrust to tonal consolidation,in a larg- er sense it open the way to a wider concept of tonality. One element indispensable in a definition of

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Para o estudo específico da linguagem cromática nos madrigais de Gesualdo, a explicação de Lowinsky traz algumas considerações importantes, principalmente a sua conclusão de que esta escrita foi usada como forma de can- celamento da sensação de repouso dentro da música, causando um permanente estado de inquietação utilizado como recurso expressivo.

Cancelar em cada frase as implicações tonais da frase precedente, criar um estado de suspensão torturante, recusar a procura por um lugar de repouso – estas são as mais definitivas tendências descobertas. Cons- tantes alterações entre intervalos maiores e menores, contínuas mudan- ças de centro harmônico e cromatização completa da escala – estes são os principais meios de alcançar a instabilidade tonal que Gesualdo preci- sava para expressar o tumulto de seu próprio mundo25. (LOWINSKY, 1961, p. 43)

A partir desta visão podemos entender as alterações cromáticas de Ge- sualdo como a utilização de um procedimento que se desenvolveu tecnicamente ao longo de todo o período como uma forma pessoal de exagero e extravagância, quando o compositor conscientemente fazia uso dos recursos que dispunha para elaborar um ambiente harmônico que refletisse seu ideal estético. O compositor desenvolve a tal ponto este procedimento que dificulta a contextualização de seu estilo no repertório do século XVI. Desde as primeiras alterações nos modos eclesiásticos até a fase final do período renascentista, os compositores utilizavam principalmente três altera- ções: Dó#, o Fá# e o Sol#. Estas, somadas ao Sib, que sempre esteve presente, possibilitava o que hoje entendemos como as “sensíveis” de todos os modos utili-

modern tonality is the opening of the whole harmonic space so as to allow each of the twelve tones of the chromatic scale to become the basis of a triad, and each triad to enter into relationship with each other triad. 25 To cancel in each frase the tonal implications of the precending frase, to create a state of tortured suspense, to refuse the searching mind any place to rest – these are the most definite tendencies discoverable. Constant alternation between major and minor intervals, continued shifts of the har- monic center, and complete chromaticization of the scale...- these are the chief means of attaining that tonal instability wich Gesualdo needed to express the turmoil of his world.

124 zados, visto que no modo Frígio não ocorria o Ré#, devido a suas especificidades, e o Jônio e o Lídio já apresentam o intervalo de semitom abaixo da finalis natural- mente. Descontadas as práticas de ajustes dos tons feitos diretamente na execução, que podem ser explicadas através do conceito de chiavette26, a inclu- são de dois bemóis a esta lista de alterações mais frequentes deu-se somente na fase mais tardia do século XVI. Mas nos livros de Madrigais de Gesualdo a situa- ção era outra. Com exceção do sustenido sobre a nota Si e dos bemóis nas notas Fá, Dó e Sol, todas as outras alterações foram usadas, no geral, sem muita eco- nomia, o que tornou sua escrita bastante. Para ampliar o entendimento deste uso exagerado da escrita cromática é necessário estabelecer alguns parâmetros de como se encontra este tipo de escrita na obra deste compositor. Quanto mais tardio é o repertório do século XVI, maiores são as chan- ces de encontrarmos passagens onde as alterações melódicas e a escrita cromá- tica parecem ser “caídas do céu”, ou seja, sem explicação nenhuma (HAAR, 1998, p.94). Para estes casos, que são os mais comuns na obra de Gesualdo, a explica- ção fica mais simples, pois trata-se de passagens em que o compositor buscava um efeito sonoro mais inusitado. Mas, em outros momentos, a forma como o cro- matismo é atingido provém de um mecanismo mais esperado, coerente com a prá- tica do período. Aplicaremos os conceitos técnicos elaborados pelo autor James Haar em seu livro The Science and art of Renaissance Music aos madrigais de Gesualdo como forma de identificar seus procedimentos mais frequentes. Haar considera como o mais comum a voz do baixo se mover por in- tervalos de quintas ou quartas, o que é conhecido como ciclo de quintas (1998, p.94). Este procedimento tem uma importância relevante no estudo, pois, segundo a autora Maria Rika Maniates, foi uma das primeiras formas de se alcançar a nova sonoridade do século XVI (1979, p.183). Nos livros de madrigais de Gesualdo este

26 Sistema de transposição por claves utilizado na prática vocal dos séculos XVI e XVII. Ver Giu- seppe Paolucci, Arte Pratica di Contrappunto, 1765.

125 procedimento é facilmente localizado e, certamente, apresenta-se como uma das formas mais comuns de alcançar as alterações cromáticas. O exemplo abaixo foi retirado do décimo quinto madrigal do quarto livro. Nele percebemos a progressão em intervalos de quintas da linha do baixo resultar em um cromatismo melódico. Segundo Haar, apesar da aparência tonal deste procedimento, a forma como era empregada na música do século XVI – deslocado de uma sequência lógica de relações tonais – torna-o basicamente colorístico, ou seja, seu emprego tinha como intuito promover no enlace das vozes uma sonori- dade específica procurada pelo compositor (1998, p.94).

Figura 16 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 8 a 9

Ainda neste madrigal, encontramos o mesmo procedimento resultando em uma alteração cromática diferente, também muito ocorrente na escrita de Ge- sualdo. Temos o ciclo de quintas na linha do baixo provocando um cromatismo melódico entre as notas Dó # e Ré que estão em vozes diferentes. Esta ocorrência

126 que gera o movimento cromático em vozes diferentes, torna-se na obra de Gesu- aldo um dos itens que mais dificultam sua execução.

Figura 17 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 11 a 12

O segundo procedimento cromático mais comum consiste na linha do baixo movimentando-se por intervalos de tom ou semitom, ascendente ou des- cendente. Apesar de ser uma prática que também apresenta características pró- ximas à escrita tonal, Haar defende seu uso ainda como “decoração colorística” (1998, p. 95). No exemplo abaixo, retirado do nono madrigal do terceiro livro de Ge- sualdo “O mal nati messaggi”, temos o baixo realizando o mesmo efeito duas ve- zes seguidas. O movimento descendente de um intervalo de semitom gera dois movimentos cromáticos, o do próprio baixo e o da voz superior. Ressalta-se que, na segunda ocorrência deste procedimento, a voz do baixo desempenha a função que, dentro do sistema tonal, chamaríamos de primeira inversão.

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Figura 18 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 29 a 32

No mesmo madrigal encontramos um procedimento parecido, quando a linha do baixo progride por intervalo de tom inteiro e provoca o cromatismo na voz superior a ele.

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Figura 19 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 17

Estes procedimentos não são comuns só na obra de Gesualdo, mas, neste caso, seu emprego é diferenciado por não estar associado necessariamente a progressões harmônicas. A alteração da terça da tríade também é um processo cromático impor- tante. Através dela, temos um efeito sonoro muito característico dos madrigais de Gesualdo, que é ouvirmos a mesma tríade duas vezes, mas alternando entre mai- or e menor. Este cromatismo acaba sendo menos aparente, pois a mudança mai- or/menor chama mais atenção do que o intervalo cromático que a produz. Identificamos três formas principais que Gesualdo utilizava para esta al- teração. A primeira, e mais frequente, é a mudança da terça de uma tríade entre o fim de uma frase e o início de outra. Este procedimento foi bastante utilizado por ser um recurso útil para se alterar o ambiente harmônico durante a narração do texto do madrigal. No exemplo abaixo, retirado do nono madrigal do quarto livro, temos as frases “Che’l veder voi e voi languir” separadas por uma vírgula. A primeira se en-

129 cerra sobre uma tríade menor de Mi, enquanto a segunda se inicia sobre a mesma nota Mi, mas agora com uma tríade maior.

Figura 20 - Cor mio, deh, non piangete - Livro IV - c.12 e 13

A segunda forma deste procedimento é alcançar a alteração cromática através do salto de uma voz, como nos demonstra a figura seguinte, retirada do sexto livro de madrigais.

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Figura 21 - Ancide sol la morte - Livro VI - c.37 e 38

Com o salto da voz II27, altera-se a terça da tríade e promove um cro- matismo entre duas vozes diferentes. Este procedimento também resulta em uma falsa relação melódica. A terceira forma mais comum deste tipo de alteração consiste na mes- ma voz alterando a terça da tríade sem que as demais vozes da polifonia se mo- vam. Este tipo de escrita deixa o efeito da escrita cromática mais destacada que os demais e foi constantemente utilizado pelo compositor, como demonstra a figu- ra abaixo também retirada do sexto livro.

27 Nesta pesquisa, será utilizada a nomenclatura de voz I, II, III, IV e V para se referir às linhas da polifonia, sendo a voz I a superior.

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Figura 22 - Resta di darmi noia - Livro VI - c.7 e 8

O último procedimento a ser ressaltado como frequente na obra de Ge- sualdo é o movimento da voz do baixo por intervalos de terça, ascendentes ou descendentes, maiores ou menores.

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Figura 23 - Itene, o miei sospiri - Livro V - c.19 e 20

Na figura acima, apreendemos o salto descendente de terça menor do baixo que resulta em alterações cromáticas em quase todas as vozes da polifonia. Com este mesmo princípio, encontramos nos madrigais situações um pouco mais complexas quando Gesualdo coloca as alterações em vozes diferentes, como na próxima figura:

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Figura 24 - Gioite voi col canto - Livro V - c.22 e 23

Temos a opinião de Michael Budick em seu artigo Phrase painting and goal orientation in two late Gesualdo Madrigals quando atribui a progressão cro- mática baseada na terça como sendo a prática mais incomum da escrita de Gesu- aldo (1982, p. 17).

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3.5. Considerações

As conclusões alcançadas pelos questionamentos feitos neste capítulo, sobre a estrutura musical dos madrigais de Gesualdo, tiveram o objetivo de contri- buir para um maior entendimento técnico de sua escrita. No entanto, algumas considerações mais pontuais ainda podem ser feitas. O primeiro ponto que chama atenção deste pesquisador é uma citação efetuada pelo autor Edward Lowinsky em seu estudo sobre o repertório tardio do século XVI:

Os madrigalistas, em seus esforços de emprestar maior nobreza à músi- ca secular, se voltaram da inspiração na música popular para o moteto polifônico. Portanto, houve um retorno à modalidade28. (LOWINSKY, 1961, p. 38)

Lowinsky escreve esta frase no capítulo que se propõe a explicar seu conceito de tonalidade flutuante. Para ele, mesmo a escrita triádica mais próxima da tradicional, dentro do repertório tardio do século XVI, acaba gerando uma sen- sação de tonalidade que não se sustenta. Sua hipótese é que este retorno ao mo- dalismo, explicitado na frase transcrita, seria uma das explicações para esta flutu- ação. Mas o que mais chama atenção é a constatação de que, para ele, exis- tiu um retorno às tradições modais no final do Renascimento. E a razão para isto seria uma tentativa de conferir maior nobreza ao repertório, afastando-o das ex- pressões populares e se aproximando do moteto polifônico. No caso de Gesualdo esta afirmação encontra uma reflexão mais profunda. O compositor tinha como característica justamente seu afastamento das tendências mais comuns (como consta no capítulo 2 desta tese), ao mesmo tempo em que era a própria represen- tação da nobreza dentro da música tardia, visto sua posição pessoal, o que nos leva a perguntar se Gesualdo deve ser considerado como a causa ou o efeito des-

28 The madrigalist, in their efforts to lend nobility to secular music, turned from popular sources of inspiratio to the polyphonic motet. Hence, they returned modality.

135 te processo, ou melhor, sua música foi influenciada por este processo ou influen- ciou esta constatação de Lowinsky? Como forma de ampliar esta discussão, retomamos outra questão im- portante: qual a posição do compositor dentro do processo de transição mo- dal/tonal? Para esta pesquisa, este aspecto é bastante revelador por atestar o quão avançado, ou distinto dos demais, seus madrigais estavam dentro do reper- tório renascentista. Primeiro, temos a constatação feita por Dahlhaus, citada no item 3.2 deste capítulo, que situa os madrigais de Monteverdi como o ponto preciso do final da transição. Conforme já discutido, esta suposição coloca a obra de Gesualdo como anacrônica a esse processo, pois, mesmo sendo contemporânea a de Mon- teverdi, não apontava para as tendências tonais que se afirmavam. Colaborando com essa ideia, temos ainda a consideração feita pelo próprio Lowinsky, que atri- buiu esse ponto de transformação modal/tonal à obra Balletti de Giovanni Giaco- mo Gastoldi (1550-1609) (LOWINSKY, 1961, p.77). Essa diferença de pensamento entre os dois autores, Dahlhaus e Lowinsky, contribuem para esta pesquisa ao atestar que, independente do marco histórico, o repertório da última década do século XVI encontrava o sistema tonal, o que comprova a distinção dos madrigais de Gesualdo dentro de seu próprio tempo. Seguindo no estudo de Lowinsky, o autor pondera que somente no sé- culo XX a obra de Gesualdo começou a ser entendida, pois, os frutos “semeados” da atonalidade no século XVI começaram a frutificar na era pós-romântica (LOWINSKY, 1961, p.77). Temos ainda, o artigo dos autores Marco Mangani e Daniele Sabaiano, Counterpoint and Modality in Gesualdo’s Late Madrigals (Con- traponto e modalidade nos últimos madrigais de Gesualdo) que se inicia com a pergunta: foi Gesualdo um compositor moderno ou tradicional? Todas estas questões podem ser respondidas por pontos de vistas dife- rentes. Por exemplo, se utilizarmos a opinião de Dahlhaus, Gesualdo escrevia a partir dos parâmetros do Renascimento, sendo, portanto, um compositor tradicio-

136 nal. Para este autor, o revolucionário era Monteverdi (DAHLHAUS, 1967). Já Lowinsky se posiciona totalmente diferente quando atesta que a música de Gesu- aldo era “intrinsicamente” moderna (1961, p.38-50). Mais uma vez encontramos nestas oposições de conceitos musicológicos mais do que uma referência a ser seguida, e sim uma comprovação de estarem estes madrigais à parte do repertó- rio contemporâneo a ele. Diante disto, este pesquisador ressalta como consideração final à análi- se da estrutura musical deste compositor a necessidade de considerar seus ma- drigais como não pertencentes a nenhum segmento musical específico. Portanto, no momento de sua análise, ou entendimento especificamente musical, estas obras devem ser individualizadas de qualquer outra corrente musical e entendidas a partir de sua própria gramática.

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4. TEXTO E MÚSICA

O estudo realizado nesta pesquisa sobre a obra madrigalesca de Carlo Gesualdo abrangeu, até este ponto, reflexões sobre o contexto artístico no qual estava inserida; o ideal poético que permeou a concepção dos madrigais; e uma análise geral das principais características técnicas da escrita musical do composi- tor. A partir desta base teórica, será possível aplicar estes conhecimentos de for- ma conjunta em trechos da obra com o intuito de formular maior entendimento in- terpretativo. O primeiro passo para esta etapa será reorganizar alguns conceitos já utilizados e que merecem algumas considerações. Baseado na cronologia das publicações dos madrigais e nas diferenças estéticas, a obra de Gesualdo passou a ser dividida em três fases distintas. Alguns musicólogos dedicados a este período, como Glenn Watkins e Pietro Misuraca, utilizaram esta forma de divisão e a defenderam através da coerência que apre- senta. Para Watkins, o ponto preciso da divisão das fases é a cidade de Ferrara. Já o autor Pietro Misuraca, em seu livro Carlo Gesualdo, Principe di Venosa (2000), considera a fase central da obra como sendo a “revolta” de Gesualdo ou o surgimento de seu estilo próprio (2000, p. 89), o que também coincide com seu contato com a cidade. Os parâmetros desta divisão consistem em agrupar os seis livros em três fases: a primeira, os livros I e II, publicados pela primeira vez em 1594; a segunda, os livros III e IV, de 1596; e a terceira e última os livros V e VI, de 1611. A cidade de Ferrara ocupa lugar de destaque por ser o principal ponto da divisão cronológica das publicações. Conforme os dados biográficos do com- positor nos atestam, Gesualdo se mudou para esta cidade no ano de 1594 levan- do em sua bagagem os madrigais que formariam os dois primeiros livros, portanto, estas obras foram compostas nos anos anteriores a sua ida. Já os madrigais que comporiam sua segunda fase, entre 1594 e 1596, foram todos escritos na cidade de Ferrara. Também nos é documentado que após 1596 o compositor se retira da

139 cidade e vai viver seus últimos anos entre o principado em que nasceu e seu cas- telo de Nápoles, onde publicaria seus últimos dois livros em 1611 e faleceria dois anos depois, em 1613. Baseado nesses fatos, temos o ano de 1594 como o marco principal de seu desenvolvimento, pois a influência que o compositor receberia em sua breve passagem pela nova cidade marcaria seu estilo a partir de então29. Conforme destacou Misuraca, os madrigais compostos nos anos em que o compositor esteve permanentemente em Ferrara, sua segunda fase, repre- sentam seu estilo mais puro. Como o processo de seu desenvolvimento artístico não contemplou uma ruptura de seus métodos, esta fase intermediária apresenta as mesmas características musicais e textuais dos primeiros livros de forma mais desenvolvida. Por outro lado, a fase final de sua composição esteve marcada pe- los exageros expressivos que caracterizam suas últimas obras, de forma que en- contramos nos livros centrais um equilíbrio na escrita que nos auxilia no entendi- mento. A prática constante do compositor de alterar os textos escolhidos como base de seus madrigais, deixando-os nos moldes de seus anseios artísticos, nos serve como parâmetro para entendermos a influência exercida pela cidade sobre sua obra. Na opinião deste pesquisador, este aspecto é a primeira influência ferra- rense na obra de Gesualdo. Existem dois indícios principais: primeiro, o contato direto com dois poetas importantes do período que mantinham estreitas relações com Ferrara, Tasso e Guarini; segundo, o fato de ter a sua disposição as “oficinas da palavra”, que eram grupos de aprendizes de poetas mantidos pela corte d’Este com o objetivo de formar novos escritores. Gesualdo conhecia Tasso e Guarini antes de sua ida a Ferrara, ou pelo menos, conhecia suas obras, a ponto de já ter utilizado poemas de ambos em seus primeiros madrigais. No entanto, o contato que passou a ter com essas figu- ras importantes do Renascimento e suas obras aumentou consideravelmente após sua integração à corte de Ferrara. Tasso não morava mais naquela localidade no

29 Ver capítulo I.

140 ano de 1594, mas se empenhou em aproximar-se do compositor neste período, enquanto que Guarini era por excelência o poeta de Ferrara, sendo sua obra qua- se que inseparável daquele ambiente. Estar mais próximo destes poetas conferiu maior liberdade ao compositor em escolher e manipular seus textos, aprofundando significativamente sua forma de conceber os textos dos madrigais. A manutenção pela família d’Este dos grupos de aprendizes de poetas, as “oficinas da palavra”, pode ter sido o fator mais relevante da influência exercida por Ferrara. O compositor havia demonstrado em seus primeiros madrigais a dis- posição e o cuidado que tinha em adequar os poemas utilizados a seus propósitos artísticos, o que nos permite imaginar o quão estimulante pode ter sido passar a ter a sua disposição poetas que poderiam escrever sob sua orientação, construin- do textos ou mesmo adaptando outros a partir dos parâmetros colocados por ele. Não é uma coincidência o fato de termos muitas das poesias da segunda fase com atribuição anônima, cuja origem e autoria dos poemas só puderam ser ates- tadas a partir de comparações feitas posteriormente ao período de sua publicação com outras obras que traziam semelhanças significativas, comprovando, assim, a prática de alterar tanto o texto a ponto de deixá-lo quase irreconhecível. Se retrocedermos à primeira fase, também será possível encontrar tra- ços desta manipulação textual, evidenciando que esta busca por um tipo de poe- ma ideal existia desde o início da carreira do compositor. A diferença principal é que neste primeiro momento as alterações eram menos drásticas, quase sempre limitadas a sutis alterações de termos ou readequação do tamanho do poema ori- ginal. O que chama atenção é que mesmo nesta fase mais comedida da manipu- lação já é possível observar uma relevante inquietação estética do artista que o distinguia de seus pares. Basta relembrarmos o caso do poema Tirsi Morir Volea, do primeiro livro, em que as alterações promovidas ainda não tinham a abrangên- cia que iremos encontrar na segunda fase, mas já eram suficientes para tornar

141 este madrigal o mais distinto de todos os inúmeros exemplos que temos de madri- gais homônimos compostos por compositores contemporâneos à Gesualdo.30 A diferença de abrangência da manipulação textual entre as duas pri- meiras fases pode ser entendida como um processo natural de amadurecimento artístico do compositor. No entanto, o exemplo do madrigal Tirsi Morir Volea nos oferece um indício de que pode ser mais do que isso, pois a intenção artística do compositor e sua disposição em alterar significativamente os textos em prol de um ideal poético já estavam lá, o que lhe faltava eram as ferramentas para alcançar seus objetivos. Portanto, a influência exercida pela cidade de Ferrara foi o fator que lhe permitiu construir novas fases de sua composição, oferecendo a ele as ferramentas que necessitava. Há outros indícios não ligados à questão textual que também contribu- em para o entendimento desta divisão estética da obra. Uma das características musicais mais marcantes dos madrigais de Gesualdo é o uso constante da escrita cromática. Se concentrarmos nosso olhar nos madrigais da segunda fase, encon- traremos o auge do domínio do compositor na utilização deste recurso expressivo. Nessa fase, Gesualdo já a utiliza como recurso retórico e difere da primeira fase por transformar as resultantes cromáticas como causa e não efeito, ou seja, en- quanto na primeira fase os madrigais apresentavam passagens cromáticas como resultado da elaboração polifônica das vozes, na segunda esta situação se inver- te, pois a elaboração polifônica passa a ser pensada a partir das resultantes cro- máticas. O que temos é a preocupação expressiva se tornando mais aparente em sua obra, evidenciada pela intenção cada vez mais clara do compositor de promo- ver efeitos sonoros como forma de ilustrar as narrações propostas pelos textos dos madrigais. Assim como na questão textual, podemos atribuir esta diferença na uti- lização técnica deste recurso como um processo natural de amadurecimento da escrita do compositor, mas há outros elementos que devem ser considerados.

30 Ver página 67

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Uma passagem biográfica relembrada por Pier Giorgio Dall’Acqua, em um dos artigos que formam o periódico Il Madrigale cujo título da edição V de 2008 é Carlo Gesualdo – L’uomo, l’artista. Due città insieme per il Principe (p.18), atesta que de todas as homenagens e cerimônias feitas pela corte da família d’Este ao príncipe compositor na ocasião de sua chegada, nenhuma causou tanto efeito quanto a demonstração que Luzzasco Luzzaschi fez do Clavi-cembalo cromático, instru- mento que fazia parte do acervo da família. Podemos considerar que Gesualdo já conhecia a obra de Luzzasco Luzzaschi e também sabia da existência de instru- mentos que privilegiavam a execução de trechos cromáticos antes de sua ida a Ferrara, mas também podemos avaliar o efeito que pode ter exercido à concepção musical do compositor ter apreciado pessoalmente esta execução privada e, con- forme atesta o texto de Dall’Acqua, ter passado parte considerável daquele dia tocando, ele próprio, este instrumento (DALL’ACQUA, 2008, p. 18). Se a liberdade artística concedida pela corte de Ferrara é a explicação para as diferenças estéticas entre o início e o meio da obra do compositor, esta mesma liberdade pode ser considerada a responsável pelo aprofundamento des- tes mesmos elementos, tornando seus últimos livros muito mais carregados de efeitos inusitados e repletos de exageros harmônicos. Além das ferramentas para a construção de suas obras, Gesualdo teve em Ferrara uma audiência diferenciada, que estava acostumada com o repertório dissonante e harmonicamente avançado. Quando se recolhe de volta a Nápoles para passar os últimos anos de sua vida, o compositor se depara com uma situa- ção completamente oposta, pois, além de perder aquela audiência especializada, ele passa a não ter audiência nenhuma. Os últimos anos de sua vida foram mar- cados pelo profundo isolamento que se impôs e pelo deterioramento de sua situa- ção psicológica. Se já podíamos atestar que o compositor compunha desde o iní- cio de sua vida sem o interesse em agradar a ninguém, nesta fase final podemos dizer com certeza que ele compunha para si mesmo. Um indício desta situação é a obra Responsoria, conjunto de motetos publicados em 1611 em que o composi- tor elabora os textos fúnebres da cerimônia das trevas da igreja católica. A ceri-

143 mônia para a qual o compositor destinou seus motetos não era mais comum na prática religiosa desde o fim da idade média, no entanto, Gesualdo, valendo-se de suas prerrogativas de príncipe, realizava na capela de seu castelo esta cerimônia de forma privada (GARBUIO, 2011, p.22). Este distanciamento do convívio social pode esclarecer alguns aspectos dos dois últimos livros do compositor, tanto se observarmos pela questão textual quanto pelo olhar exclusivamente musical. Enquanto nos livros centrais de sua obra prevalecem os poemas que foram baseados em outros pré-concebidos por poetas conhecidos da época, na fase final o que prevalece são textos totalmente anônimos, sem traços de relação com outras obras. Diante da análise do ideal poético, apurado no segundo capítulo desta tese, acreditamos que a maior parte destes poemas foi escrita pelo próprio compositor. Deve-se ressaltar que esta opi- nião também é compartilhada por estudiosos da obra de Gesualdo, como os pró- prios autores já citados Glenn Watkins e Pietro Misuraca. Também na questão musical, temos em sua saída da cidade de Ferrara um fato tão relevante quanto sua chegada, pois, após o contato direto com os elementos já retratados neste texto e o desenvolvimento técnico adquirido pelos livros centrais, Gesualdo pôde elaborar em seus últimos trabalhos os madrigais que refletissem mais profundamente sua atual situação emocional. A forma como o compositor os constrói evidencia um distanciamento quase total com o mundo externo. Se na fase central a escrita cromática pode ser analisada como um recur- so fartamente utilizado pelo compositor como forma retórica, ou mesmo como re- curso para chamar a atenção do ouvinte para determinadas passagens da narra- ção poética, na fase final a intenção é oposta. Neste período de sua vida o com- positor não mais se importava com o receptor da obra. São inúmeras as passa- gens musicais dos madrigais da terceira fase em que o predomínio da escrita cromática e dissonante acaba deixando a música com o que chamamos de efeitos sonoros, passagens com mudanças abruptas de resultantes harmônicas. A análise musical dessas obras se torna mais complexa devido à quan- tidade de relações pouco compreensíveis dentro da gramática musical que conhe-

144 cemos. Esta caracterização da fase final é coerente com a sua situação biográfica e colabora com a ideia de encontrarmos na música de Gesualdo o distanciamento social que ele viveu em seus últimos anos. Diante deste quadro, temos na análise textual a chave para o entendi- mento desta linguagem, pois é através dela que podemos esclarecer os mecanis- mos pelos quais o compositor discorre suas ideias e seus anseios artísticos. A forma encontrada para realizar este entendimento é concentrar a análise em con- ceitos expressivos utilizados pelo compositor ao longo e sua obra. Estes conceitos são representados por palavras que trazem mais do que um significado pontual, mas uma ideia que tenha sido desenvolvida pelo compositor em momentos e sig- nificados distintos. A primeira palavra a ser analisada será amor. Este termo está presente em grande número ao longo de todos os livros do compositor e abrange tal gama de humores que nos possibilita uma análise mais profunda de seu encaixe dentro da retórica do compositor. Encontram-se distinções em seu uso desde a forma mais simplista – o amor como algo bom ou o amor como algo ruim – até utiliza- ções mais complexas quando não se pode atribuir facilmente se está colocado como algo positivo ou negativo. Além disso, sendo o conceito de amor recorren- temente utilizado por muitos outros compositores e artistas de todos os períodos, ele apresenta uma abertura para comparações com outras obras que enriquece- rão esta visão. Destaca-se, também, que o dilema amoroso esteve presente em toda a biografia do compositor, pois todas as suas tragédias pessoais que conhe- cemos estão ligadas de alguma forma a este tema, como por exemplo, seu primei- ro casamento encerrado de forma trágica, e também a depressão que o seguiu após sua segunda núpcia que também não foi bem-sucedida. Esta característica aponta a importância com que o assunto foi tratado por ele em sua própria obra. O segundo termo analisado é a palavra morte, que traz semelhanças em sua abrangência com o termo amor, mas, em alguns aspectos, com maior aproximação à tragédia. Este termo também possibilita utilizações contrastantes, como a morte em seu estado negativo e doloroso ou a morte como redenção e

145 absolvição. Por ter sido muito utilizado por Gesualdo, este termo, assim como o primeiro, pode conter significados desde os mais nítidos e superficiais até interpre- tações abstratas e profundas, como a morte representando sensações que não estejam ligadas à morte física. Neste ponto nos deparamos com uma das imagens mais recorrentes e desenvolvidas por Gesualdo e que não poderia ser desconsi- derada nesta análise final: a morte desejada. O compositor recorre ao sentimento conflitante de desejar a morte como forma de encerrar seus tormentos, geralmente tormentos amorosos. Esta característica está presente em todas as suas fases, mas de forma mais explicita na última. Estes dois termos também nos ajudam a identificar como a temática dos madrigais foi se alterando na medida em que seguiam as fases da composi- ção. Basta analisarmos os números abaixo:

Livros I II III IV V VI

AMOR Utilizações 13 9 9 12 11 12 Fases I II III 22 21 23 Livros I II III IV V VI Utilizações 11 2 21 13 22 22 MORTE Fases I II III 13 34 44

Tabela 1 – Número de utilização dos termos amor e morte

Estes dados foram coletados pelo próprio pesquisador desta tese. Não foram computadas as repetições de cada termo dentro da frase musical, apenas sua colocação na frase textual. Porém, foram aceitas as variações que respeitasse o significado expressivo, por exemplo, o termo amor como: amore, amoroso e etc.

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Enquanto o uso do termo amor se mantém praticamente inalterado ao longo das três fases, o termo morte apresenta um aumento considerável, eviden- ciando que a temática geral dos madrigais vai se tornando mais trágica na segun- da e na terceira fase. Além disso, se levarmos em consideração que a temática representada pelo primeiro termo é comum aos madrigais amorosos de todos os compositores e que, ao contrário, o termo morte representa um conceito menos recorrente, temos mais um indício de que a obra do compositor se afasta da práti- ca comum do gênero e se torna cada vez mais destinada ao próprio compositor. Baseando-se nesta leitura, a junção destes dois conceitos nos possibilita uma compreensão maior da expressividade da obra do compositor.

4.1. Amor e Morte nos madrigais de Gesualdo

O termo amor traz consigo uma dubiedade que foi explorada pelo com- positor. É possível atribuir a esta palavra uma atmosfera plácida de contentamento e felicidade, quando se insere em um contexto de amor correspondido e feliz, ou uma atmosfera torturante e dolorida de um amor infeliz. Gesualdo trabalhou estas duas vertentes do significado construindo passagens musicais condizentes a elas. No início do nono madrigal do primeiro livro temos a palavra amor utili- zada com o sentido feliz do termo. Na frase que abre a obra, o narrador se refere a sua interlocutora como sendo o seu amor, e lhe diz que não deseja a paz. Esta informação em conjunto com o restante do texto, pressupõe o interesse do narra- dor naquele sentimento, estando inclusive disposto a abrir mão da paz por ele. Observa-se que a escrita homofônica e a pausa que interrompe a frase demonstra musicalmente a própria paz a que o texto se refere.

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Figura 25 – Amor, pace non chero – Livro I – c. 1 - 2

Apesar da alteração melódica na tríade sobre a nota Mi, este trecho não se caracteriza como dissonante. O que temos é uma instabilidade na escala do modo escolhido, gerando algumas alterações pontuais. Estas alterações presen- tes na primeira fase diferem das demais por não serem usadas como recurso retó- rico. Outro exemplo desta palavra utilizada com uma atmosfera de paz e feli- cidade está no segundo livro em seu madrigal Nè tien face o saetta. Assemelhan- do-se com o exemplo anterior, o compositor utiliza a palavra para se referir à inter- locutora, ou seja, a amada.

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Figura 26 – Nè tien face o saetta – Livro II – c. 9 - 10

Mais uma vez observamos a escrita homofônica demonstrando um sen- timento de tranquilidade da narração. Chama atenção a forma como o discurso musical coloca a palavra amor como um vocativo. A vírgula colocada antes dela conduz a uma prosódia textual que representa um discurso entre pessoas com intimidade, o que denota um tratamento carinhoso. Este ambiente tranquilo é re- produzido pela música que traz poucas alterações e está concentrado na região média das vozes, o que garante um resultado sonoro equilibrado. O ritmo sobre o qual a palavra é escrita contribui para o efeito textual ao acentuar sua sílaba tôni- ca. Voltando ao seu primeiro livro, encontramos um exemplo que se encai- xa na segunda forma de utilização deste mesmo termo. O sétimo madrigal trata da narração de um sentimento que confere dor e tormentos ao narrador. Em uma das passagens, a interlocutora do narrador também é chamada de amor, mas agora sendo descrita como vil e perigosa. Neste contexto, a escrita musical é apresenta-

149 da com movimentos rítmicos mais rápidos sugerindo uma tensão no ambiente cri- ado pelo texto. A técnica polifônica utilizada no trecho está em acordo com a tradi- ção do Renascimento, pois temos como principal característica a simetria e o equi- líbrio da escrita. O intervalo de tempo entre as entradas das vozes na frase Vile ape Amor é sempre de duas semínimas, assim como a forma destas entradas, que intercala dupla de vozes com apenas uma voz. Também fica clara as relações do motivo rítmico das vozes, pois, nas três superiores são iguais e nas duas inferi- ores mantém alguma relação. Através desta similaridade rítmica, obtém-se um fácil entendimento do motivo principal.

Figura 27 – Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14

O equilíbrio contrapontístico demonstrado pelo exemplo acima tam- bém está em acordo com a clareza da seção textual. O contraponto só irá apre- sentar outro trecho, ou seja, outra frase, quando todas as vozes tiverem encerrado a frase anterior, demarcando o início e o fim desta sessão.

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Ainda no segundo livro temos o exemplo do madrigal Candida man, o décimo quinto. Nele, observamos o uso mais constante de algumas alterações melódicas, mas mantendo as características do contraponto em acordo com os exemplos acima.

Figura 28 – Candida man – Livro II – c. 27 - 30

Nota-se que aqui a palavra amor é utilizada com sua variação amore, e o sentido do texto a coloca de forma pessimista. A descrição do sentimento do narrador como sendo miserável pressupõe uma condição dolorosa deste senti- mento. Para retratar este ambiente, o compositor utiliza as alterações e explora regiões agudas, principalmente da voz I. Mas o equilíbrio e a simetria do contra- ponto são mantidos e as alterações melódicas não caracterizam ainda uma escrita cromática, nem mesmo dissonante. Os elementos observados nos quatro exemplos até aqui retratados são comuns na primeira fase do compositor. Percebemos que é maior a intenção

151 do compositor de explicar e demonstrar os conceitos daquele texto que escolheu do que se aprofundar nas relações psicológicas da narração. Já na segunda fase de sua obra temos algumas diferenças importantes, principalmente no que diz respeito às relações harmônicas da escrita e na expressividade da narração. No quinto madrigal do terceiro livro temos uma escrita também base- ada na polifonia, mas a técnica contrapontística empregada é menos equilibrada. A frase na qual o termo está inserido, Cibo Amor le ministra onde non pera, é tra- tada de forma seccionada. Percebe-se que o compositor a divide em duas semi- frases, a primeira Cibo Amor le ministra e a segunda onde non pera. A diferença com que se fazia na primeira fase é a não divisão destas duas frases em seções distintas. Enquanto a voz I inicia a segunda semifrase, as demais ainda estão en- volvidas na primeira, o que gera uma sobreposição textual, algo não encontrado antes. Além disto, o tratamento do contraponto é menos simétrico que antes. As entradas não apresentam uma ordem rítmica clara e o motivo principal do trecho não traz uma homogeneidade capaz de identificá-lo com facilidade.

Figura 29 – Del bel de’bei vostri occhi – Livro III - c. 25 – 31

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Se nos primeiros livros Gesualdo utilizou a técnica contrapontística para unificar a música e o sentido do texto, nesta segunda fase percebemos a utiliza- ção das resultantes harmônicas da escrita como ferramenta. Fica aparente o au- mento de notas alteradas nesta escrita, resultando em um efeito sonoro mais ins- tável utilizado como recurso expressivo. Nota-se que neste primeiro exemplo da segunda fase, figura 29, a palavra em questão está mais destacada da textura musical do que em todos os exemplos anteriores. Mesmo se compararmos à figu- ra 27 deste texto, quando temos um processo imitativo da escrita, encontramos diferenças importantes. Naquele exemplo, a palavra faz parte de um motivo rítmi- co que abrange toda a frase, sendo este motivo que se sobressai no trecho. Já no último exemplo encontramos um processo contrapontístico mais complexo, em que mais de um motivo melódico são identificados. A palavra amor tem um motivo específico a ela dentro da trama polifônica, resultando em um relevo individual que evidencia um enlace textual mais aprofundado do que antes. O que temos de con- creto é esta palavra cantada com as notas mais agudas da linha e em movimentos ascendentes, garantindo assim que se destaque das demais. Outro exemplo para esta fase está no quinto madrigal do quarto livro, Che fai meco, mio cor. Em uma das passagens textuais a narração traz a ideia de que o narrador irá, a partir daquele momento, seguir os caminhos que o seu amor mandar, deh, vanne omai là dove Sue grazie Amor. Este texto nos dá a ideia de um caminhar sem destino predefinido, ou mesmo, sem o controle da direção. A música proposta pelo compositor para este trecho vai ao encontro do sentido do texto utilizando uma sequência de tríades sem relações harmônicas fortes entre elas. Assim, o caminho tomado não corresponde a nenhuma expectativa previa- mente feita.

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Figura 30 – Che fai meco, mio cor – Livro IV – c. 5 – 7

A utilização das relações harmônicas, ou a falta delas, em uma sequên- cia de tríades como ferramenta retórica pode ser vista como uma sofisticação da linguagem musical, além de atestar que a música desta fase apresenta-se mais experimental do que fora nos dois primeiros livros. Basta colocarmos em compa- ração este último exemplo com a figura 28 deste texto para percebermos a dife- rença. Naquela ocasião Gesualdo já utilizava algumas alterações melódicas para retratar o sentimento infeliz de um “amor miserável”, como trazia o texto. Mas não sem garantir a cadência esperada ao final, com o que hoje chamaríamos de uma tríade de “dominante sem fundamental” antecedendo a “tônica”, dando a sensação de resolução à frase. Neste exemplo da figura 30 a situação é oposta, pois mesmo se nos ativermos a um pensamento modal não encontraríamos relações explicá- veis, pois a frase não apresenta um centro definido. Ou seja, o compositor utiliza justamente a falta destas relações esperadas como elemento retórico, afastando-

154 se dos procedimentos mais comuns à prática musical e explorando novas possibi- lidades expressivas. Ainda colaborando com a característica experimental da segunda fase temos o exemplo retirado do décimo nono madrigal do quarto livro, em que se ob- serva mais uma vez a sobreposição textual.

Figura 31 – Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 4

O que torna este exemplo ainda mais distinto do que o da figura 29 é o fato de os dois grupos imitativos, que trazem frases diferentes, terem o motivo rít- mico-melódico com algumas semelhanças. Os dois intervalos ascendentes que caracterizam o início das frases são próximos, e a finalização de cada motivo traz relações entre eles. O resultado sonoro deste trecho é peculiar, pois possibilita uma percepção dúbia em que parece se tratar de uma imitação ao mesmo tempo em que parece existir uma relação de continuidade entre as frases. Para tornar esta característica ainda mais distinta temos o uso do termo amore em contraste com o termo core. As semelhanças sonoras, e no caso desta narração as seme-

155 lhanças semânticas, entre estas duas palavras sugerem uma relação proposta pelo compositor para confundir o ouvinte, sendo mais um indício de seu experi- mentalismo. Assim como já observado na figura 28 deste texto, este último exemplo nos traz a percepção de um relevo maior no qual se insere a palavra amor. Se anteriormente identificávamos o contraste de sessões homofônicas com sessões mais contrapontísticas (figura 27) como forma de ressaltar a narração do texto, aqui percebemos este contraste utilizado dentro do motivo da frase. O uso de figu- ras rápidas no início da frase seguido de figuras lentas na palavra amore resulta em uma expressividade natural conferida ao termo. Portanto, percebemos uma preocupação expressiva mais acentuada nesta segunda fase do que tínhamos na primeira. Esta expressividade é alcançada principalmente pela escrita motívica que ressalta algumas palavras específicas da narração. As observações relacionadas ao uso do termo e suas relações com o motivo rítmico e melódico feitos nas figuras 29 e 31, nos levam a concluir que, nesta segunda fase, temos um entendimento mais individual de algumas palavras dentro da trama polifônica. Com esse novo recurso, foi possível aprofundar mais a relação da música com o texto, relacionando ou afastando motivos de acordo com o significado, por vezes subjetivo, da narração poética. Porém, o experimentalismo desta fase seria ainda mais desenvolvido na fase seguinte, como veremos na se- quência. Quando nos atemos à última fase de suas composições, encontramos os exemplos mais amplos. Os dois últimos livros têm seus madrigais concebidos sobre textos escritos, possivelmente, pelo próprio compositor, como já foi descrito neste trabalho. Mas a importância deste fato não deve ser esquecida nesta análi- se, pois isto conferiu ao compositor a liberdade que precisava para apresentar seu estilo mais pessoal. Nestas obras tardias encontramos quase sempre os mesmos procedimentos utilizados anteriormente, mas de forma aprofundada, muitas vezes revelando um uso exacerbado.

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O décimo primeiro madrigal do sexto livro tem seu texto iniciado com a frase Alme d’Amor rubelle. O compositor apresenta esta frase de forma contrapon- tística entre as duas vozes superiores. No entanto, as demais vozes entram na polifonia a partir do final do primeiro compasso já cantando a segunda frase do texto, Che con leggiadri suoni. Temos aqui mais do que a sobreposição de frases, que já havia sido notada na segunda fase (figuras 29 e 31), temos um discurso textual diferente entre algumas vozes. Esta nova forma de distribuir as frases de- monstra uma independência que o compositor confere às vozes que integram sua polifonia.

Figura 32 – Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c.1 - 2

São vários os parâmetros pelos quais podemos analisar esta mudança na condução textual de seus madrigais. Um deles é a percepção de que Gesualdo passa a tratar as vozes, ou pares de vozes, como personagens distintos dentro de sua narração, o que aumenta suas possibilidades de exploração deste texto e, portanto, estreita a relação com a música. Também podemos ir além nesta análise e aceitarmos que o compositor passou a considerar cada cantor de sua polifonia

157 como um personagem dentro de sua trama poética, aproximando-se ou, talvez, influenciando-se pelas novas práticas musicais propostas pela ópera italiana que estava se estabelecendo na época. Ressalta-se que a escrita dos madrigais de Gesualdo, bem como de seus contemporâneos, apresentam características que nos permitem supor que foram elaborados para cantores solistas. O que tornaria ainda mais independente cada uma das vozes, e conferiria mais liberdades ex- pressiva e dramática à escrita do compositor. Ao contrastar este exemplo com os demais relacionados ao termo amor identificamos uma mudança importante ocorrida na escrita do compositor ao longo das três fases. Na primeira, o uso do termo se insere completamente à frase. Mesmo quando se utiliza uma escrita imitativa, o motivo principal abrange um segmento da frase maior que a própria, ou seja, não temos um relevo independen- te. Na segunda fase este relevo individual do termo está presente, e através dele foi possível que Gesualdo avançasse na questão expressiva. E por fim, na terceira fase, existe mais que um relevo, mas sim uma independência das vozes que can- tam o termo, o que gerou questões expressivas bem mais complexas. Quando nos atemos a questão contrapontística da terceira fase, encon- tramos no décimo sexto madrigal do sexto livro uma situação distinta, por se tratar de um uso rítmico. A frase final do madrigal, Amor vince ogni core, está em acordo com todo o texto da obra que desenvolve a ideia da batalha amorosa. Ao longo do madrigal encontramos termos como “sangue”, “vitória” e “beijos”. Para retratar, ao final, a vitória do amor nesta batalha, o compositor descreve uma situação em que contraponto é mais rápido e rítmico.

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Figura 33 – Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48

Fica evidente, neste exemplo, que o motivo rítmico empregado para a palavra amor é criteriosamente mantido em toda a seção. O mesmo não acontece com o padrão melódico utilizado, pois observamos o intervalo descendente inicial com muitas variações. Temos desde um intervalo de terça maior até o intervalo de segunda menor usada no mesmo motivo. Esta falta de padrão melódico, muito comum na terceira fase, resulta em dificuldades técnicas na execução, principal- mente por conta das falsas relações que gera. A intenção do compositor era, cer- tamente, causar este efeito sonoro instável. Desta forma, temos a “batalha” referi- da pelo texto, exemplificada na sonoridade do madrigal. Apesar destes exemplos apresentados já demonstrarem como se deu o amadurecimento da escrita textual do compositor, temos na palavra morte um elemento revelador. Sua utilização foi constante desde os primeiros madrigais e aumentou ao longo dos livros, acompanhando o processo de amadurecimento da relação com o texto. Assim como no caso da palavra amor, observamos uma du-

159 biedade em seu sentido. O compositor trabalha o conceito de morte como sendo algo punitivo e trágico ou o assume como uma solução para o sofrimento, nestes casos a morte passa a ser um desejo. Temos como exemplo o madrigal do primeiro livro, Baci soavi e cari. A palavra morte é utilizada nesta obra como atestado de bem estar, pois o narrador diz que, por causa do amor, não sente as dores da morte. Diante desta situação, a música passa a ser elaborada de forma equilibrada a partir dos conceitos tradicio- nais da polifonia, como é a característica da primeira fase do compositor.

Figura 34 – Baci soavi – Livro I – c. 19 – 21

Ainda na primeira fase, temos um exemplo oposto do uso do termo morte. A narração deste trecho descreve que a morte será inevitável, seja por ale- gria ou por dor, e que, portanto, Non ritardi la morte. Percebemos maior ocorrência de notas alteradas, mas assim como na figura 25 deste texto, não temos na disso- nância e na escrita cromática a característica principal desta passagem. O que mais chama atenção é a utilização de uma textura homofônica em que a palavra

160 morte é construída através de notas graves, sendo este o principal recurso ex- pressivo empregado, o que comprova a raiz na tradição polifônica desta fase.

Figura 35 – Ma se avverrà ch’io moia – Livro II – c. 11 – 13

Exemplo semelhante nos mostra o madrigal Come esser può ch’io viva, que traz em sua narração a ideia sempre contrastante de morte e vida. Mes- mo diante de uma atmosfera pessimista trazida pelo texto, a escrita musical conti- nua a seguir os parâmetros da primeira fase.

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Figura 36 – Come esser può ch’io viva – Livro I – c. 33 - 34

Ressalta-se que a nota mais grave de todo o trecho está na sílaba áto- na do termo morte. A utilização da região vocal como elemento retórico (figuras 35 e 36) estará presente ao longo de todas as fases no uso desta palavra. O que de- monstra desde já uma mudança considerável com o termo amor, cuja expressivi- dade não requeria do compositor o uso de ferramenta semelhante. Mas avançando para os madrigais da segunda fase, encontramos exemplos mais distintos do uso deste termo. O quarto madrigal do terceiro livro traz o assunto desde seu título, Languisco e moro. Em sua parte central, o texto desenvolve a frase Sì dolorosa morte. O compositor contrasta neste ponto a escri- ta homofônica que vinha desenvolvendo com um trecho imitativo, e mais uma vez recorre às regiões mais graves das vozes. A voz I, que seria a mais aguda, está em pausa, garantindo o contraste sonoro com a sessão anterior e também a pos- terior. Além deste contraste temos o motivo melódico que foi destinado à frase em questão como fonte de análise. O caminho ascendente composto por intervalos de segundas maiores e menores, cuja nota mais aguda é sempre reservada para a

162 sílaba tônica da palavra morte, gera um efeito sonoro que representa o sentido da palavra dolorosa.

Figura 37 – Languisco e moro – Livro III – c.13 – 18

Apesar do contraste de textura já ter sido amplamente utilizado na pri- meira fase, aqui seu uso fica ainda mais acentuado devido à condução melódica dispensada à frase em que consta o termo. Da forma como foi escrita, a palavra morte se torna o apoio principal de toda a seção. O que garante mais um efeito expressivo conferido à execução musical através da escrita empregada por Gesu- aldo. No entanto, ao fim do mesmo madrigal temos a frase dolce è morire, conclusão alcançada após a reflexão amorosa do poema. Para este caso, a mani- pulação musical da palavra condiz com o novo sentido, e o predomínio é de um contraponto menos estreito e mais lento.

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Figura 38 – Languisco e moro – Livro III – c. 25 – 28

O quarto madrigal do quarto livro, Ivan dunque o crudele, se ocupa em descrever um sentimento de crueldade. Em seus últimos compassos a frase Dà la voce al silenzio ed a la morte, que pode ser traduzida como “Dá voz ao silêncio e à morte” é construída visando encerrar a obra com um efeito sonoro mais pesado e sombrio, explorando as regiões graves das cinco vozes. Destaca-se a nota mais aguda a ser cantada pela voz superior na palavra voce, e que, a partir disto, as regiões vocais passam a ficar mais graves, principalmente na última vez em que a frase ed a la morte é cantada.

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Figura 39 – Ivan dunque o crudele – Livro IV – c. 24 - 29

Este exemplo nos mostra como o compositor passou a utilizar mais os efeitos sonoros para exemplificar o texto. Além das ferramentas utilizadas anteri- ormente para ilustrar o texto, como o contraste entre polifonia/homofonia; gra- ve/agudo; lento/rápido; observamos efeitos sonoros mais elaborados, como por exemplo, o fato de termos no último compasso uma escrita que manipula as resul- tantes harmônicas em prol do ambiente sonoro proposto pelo texto. As três vozes intermediárias apresentam notas longas enquanto as vozes extremas (I e V) reali- zam movimentos paralelos com intervalos de terça. O fato de termos as cinco vo- zes realizando notas longas com o predomínio de intervalos consonantes, em es- pecial terças e sextas, contrasta com a polifonia mais rápida que prevalecia ante- riormente no madrigal, o que resulta em um trecho cujo resultado sonoro torna-se “vazio”. Desta forma, Gesualdo exemplifica o conceito trazido pelo texto de ir da “voz” ao “silêncio” da morte. Podemos realizar uma compreensão mais ampla deste último exemplo, se o colocarmos em perspectiva com a utilização do termo anterior, amor, nesta

165 mesma fase de composição. A figura número 30 deste texto trouxe um exemplo de madrigal do mesmo quarto livro em que identificamos a utilização de uma se- quencia final de tríades resultantes sem relações harmônicas fortes. Diante do significado daquele trecho do texto poético, a falta de relações harmônicas estava em acordo com o contexto. Comparando-o com o exemplo da figura 39 constatamos o mesmo procedimento, o uso das resultantes harmônicas como forma de representar na música o significado do texto. O que os diferenciam é a importância dos termos para a narração e, mais ainda, para a obra de Gesualdo. Quando o compositor se ocupou da palavra amor, figura 30, manipulou as resultantes e as colocou em acordo com o texto, mas sem a necessidade de um resultado sonoro mais drásti- co, por conta do significado do termo. Já no caso acima, figura 39, o compositor utilizou, além do recurso das resultantes harmônicas, a região vocal das vozes, demonstrando sua ocupação maior em criar um ambiente sonoro mais sombrio e dramático, visto que agora se tratava de um termo que também apresentava uma carga dramática maior. Se na fase intermediária encontramos indícios da escrita baseada nos efeitos sonoros, na última temos a percepção de ser toda a música baseada neles. São desta fase os textos mais dramáticos e trágicos de toda a coleção de madri- gais, o que gerou um material farto de exemplos. Ao final do sétimo madrigal do sexto livro, encontramos um trecho que descreve a morte como sendo piedosa, ou talvez, esperada, por ser a possível expiação do sofrimento do narrador. Neste contexto, as cinco vozes realizam de forma desencontrada uma polifonia sobre um motivo melódico baseado em inter- valos dissonantes que privilegiam as regiões graves das vozes, conferindo à sono- ridade um aspecto escuro e instável. Para conseguir este efeito sonoro identifica- mos a ocorrência de muitas dissonâncias entre as vozes mesmo na linha melódica de cada voz, não faltando os intervalos cromáticos que se tornam constantes nes- ta fase.

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Figura 40 – Mille volte il dì moro – Livro VI – c. 42 - 48

O que temos de mais inusitado neste exemplo é a forma como o com- positor anula os possíveis apoios melódicos das frases, tornando-as extremamen- te instáveis e dissonantes. Como, por exemplo, a voz II, em que o motivo melódico se inicia com a nota Dó e logo na primeira repetição do termo se reinicia com a nota Si b, uma oitava abaixo. Além disto, a frase segue com uma sequencia de notas com intervalos cromáticos que impedem quaisquer intenções de centro me- lódico. As últimas quatro notas desta voz, Mi b, Ré b e Ré natural e Si b, nos dão uma amostra do quão instável esta escrita se torna, pois impossibilitam tentativas de se encontrar um centro bem delimitado. Somando a isto as inúmeras dissonân- cias causadas pelos intervalos que se formam de forma vertical - entre as vozes - temos um trecho cuja sonoridade é bastante peculiar. Mesmo quando comparado ao exemplo mais expressivo que temos neste texto, a figura 39, este último de- monstra o aprofundamento da expressividade da fase final de sua composição. A principal diferença entre as escritas destes dois exemplos (figura 39 e figura 40) esta no total abandono de um centro de repouso harmônico.

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No madrigal Moro, Lasso al mio duolo, que também integra o sexto li- vro, podemos identificar a complexidade que a relação textual desenvolveu na obra de Gesualdo. Na figura abaixo, o texto escrito pelo compositor trata dos con- ceitos de sorte e morte conjuntamente. Percebe-se que, da forma como o texto discorre, a sorte a que se refere traz um conceito negativo, pois é tratada como uma sorte dolorosa. Já a morte acaba assumindo características menos doloro- sas, pois o narrador anseia por ela. Desta forma, o cromatismo melódico que pon- tua as duas palavras na voz I é descendente para a palavra sorte e ascendente para a palavra morte. Também chama atenção o fato de a palavra sorte ser can- tada em homofonia por quatro vozes, enquanto que para a palavra morte não é permitida nenhuma coincidência rítmica, o que confere a ela características mais instáveis.

Figura 41 – Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36

A parte a outras peculiaridades deste madrigal que serão tratadas a se- guir, somente este uso dos termos sorte e morte retratado acima já se torna rele-

168 vante para esta pesquisa. O que temos registrado com esta passagem é o grau de aprofundamento que a relação entre a música e o texto de Gesualdo alcançou em sua terceira fase de composição, abrangendo um tipo de jogo retórico interno ao discurso que exige uma apreciação cuidadosa para ser identificado. Assim como já foi observado na figura 37 que corresponde à segunda fase de composição, a palavra que antecede o termo sorte, neste caso dolorosa, também recebe um tratamento especial. A sequência de intervalos ascendentes que mescla graus conjuntos e semitons alcança o ápice na sílaba tônica desta palavra. Em seguida promove intervalos descendentes em que trata do termo sor- te, que neste caso está em contraste com o termo morte. A diferença para com o exemplo da figura 37 é que aqui o compositor mescla mais de uma ferramenta retórica, o que amplia sua condução expressiva da música. Encontramos nos primeiros compassos deste mesmo madrigal um exemplo representativo da escrita tardia de Gesualdo. A variação do termo morte, sendo aqui moro (forma antiga da primeira conjugação do singular do verbo mo- rire), demonstra a escrita cromática que se tornou típica do compositor. A diferen- ça deste cromatismo para o que vemos mais comumente nas primeiras fases está no uso do cromatismo de forma harmônica e não só melódica, ou seja, mais do que promover intervalos de semitons dentro das linhas melódicas, a escrita musi- cal contempla muitos procedimentos cromáticos entre todas as vozes, gerando assim um efeito sonoro mais impactante. Ressalta-se também o caráter “escuro” do trecho, privilegiando as regiões graves das vozes. Este recurso foi muito explo- rado em quase todas as fases de sua composição, mas temos neste exemplo um uso mais exagerado. Até mesmo a voz superior foi suprimida do trecho, da mesma forma como já fora identificado na figura 37 deste texto.

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Figura 42 – Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3

Através dessa escrita o compositor consegue elaborar uma passagem musical que se caracteriza pelo caráter exótico da música. Os primeiros três com- passos chamam atenção de quem os ouve devido à sonoridade agressiva que gera. A escrita que combina intervalos melódicos cromáticos com resultantes har- mônicas também cromáticas causa um efeito fora do esperado. Na sequência des- tes primeiros compassos o madrigal passa a construir um centro modal sobre a escala do modo eólio com centro na nota Mi, o que mantém o impacto, pois as tríades inicias sugerem um caminho modal que não será confirmado na sequência da frase. Certamente estes elementos causados por trechos como este foram de- vidamente programados e esperados por Gesualdo, que se utiliza desta estranhe- za sonora como recurso dramático. Utilizando como forma de comparação, temos um exemplo bastante pa- recido com a figura acima, mas neste caso, presente no terceiro livro, portanto na segunda fase.

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Figura 43 – Crudelissima doglia – Livro III – c. 31 – 33

A figura demonstra uma escrita dispensada à frase doloroso al core muito próxima da identificada no trecho do madrigal Moro Lasso, a diferença estru- tural é que nesta fase intermediária o compositor utilizava a escrita predominan- temente homofônica e cromática, mas com as resultantes triádicas sugerindo o que hoje chamaríamos de uma relação funcional, diferenciando-a do exemplo an- terior. Um exemplo que vai ao encontro desta ideia agressiva da terceira fase, está no segundo madrigal do quinto livro, S’io non miro non moro. Neste caso, o poema do madrigal é encerrado com a repetição da palavra morte, e a sensação de quem o ouve é de que esta palavra está sendo gritada, ou mesmo clamada pelo narrador.

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Figura 44 - S’io non miro non moro – Livro V – c. 27 – 30

O que temos neste trecho que colabora com o “desespero” do texto é a sequência da escrita cromática e das falsas relações melódicas geradas por ela, diluídas entre as vozes. Gera-se assim uma finalização sonora instável e disso- nante. Ainda nesta fase temos um exemplo revelador sobre até que ponto chegou a escrita cromática de Gesualdo. No quarto madrigal do quinto livro o compositor dedica os últimos doze compassos a descrever a variação do termo morte com intervalos cromáticos ascendentes e descendentes que elaboram um processo imitativo que descreve o sentido da morte. A frase completa deste trecho O d’amarti o morire, reserva um início homofônico para o verbo inicial, amarti, e segue construindo o termo morire com um contraponto assimétrico e extenso.

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Figura 45 – Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 - 45

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Este trecho não apresenta apenas a escrita cromática como ambienta- ção textual, mas certamente está nos intervalos cromáticos a ferramenta principal utilizada pelo compositor. O que mais chama atenção neste exemplo é sua exten- são, em que se identifica um processo ininterrupto desta ferramenta musical na terceira fase de sua composição, ou seja, Gesualdo coloca a expressividade e a dramaticidade que julga necessária à frente de qualquer outro requisito musical, até mesmo do equilíbrio formal de seus madrigais.

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5. UM ESTUDO INTERPRETATIVO

Os temas e as reflexões propostas por esta pesquisa tiveram o intuito de ampliar o entendimento que temos sobre a linguagem empregada pelo compositor nestes madrigais. Para atingir tal propósito, foram identificados e relacionados os aspectos históricos e estilísticos com as características estritamente técnicas da linguagem musical empregada. O ponto principal desta investigação se concentrou na intrínseca relação existente entre a concepção musical dos madrigais e o texto utilizado, relação esta que foi evidenciada a partir da compreensão do ideal poético do compositor. Os resultados obtidos nos permitem um aprofundamento no entendimento expressivo dos madrigais e, con- sequentemente, uma abordagem interpretativa mais adequada das obras. Entendemos que uma interpretação musical adequada, especialmen- te no caso dos seis livros de madrigais de Gesualdo, ao logo dos quais o composi- tor revela o seu ideal poético, seria aquela que evidenciasse as ligações existentes entre a música e a poesia, mesmo em seus momentos mais sutis, dei- xando claras ao ouvinte as nuances que fazem as palavras se expressarem atra- vés da música. Diante disto, faz-se necessário discutir como alcançar este objetivo na interpretação musical. Como forma de avançar nesta reflexão, o quinto capítulo da tese é dedicado a alguns trechos dos madrigais que tenham características expressivas relevantes e recorrentes ao longo dos seis livros, utilizados como referências para obra toda. Estas características foram analisadas de forma ampla e servem de base para propostas interpretativas que permitem interagir efetivamente as constatações adquiridas pelo ideal poético e a execução musical propriamente dita. As passagens musicais são as mesmas do capítulo anterior, no qual a interação música/texto era o propósito principal, visando, assim, aliar ainda mais a intepretação prática dos madrigais com o seu entendimento poético. Também consta neste capítulo um estudo em perspectiva de uma única obra. Seu propósito foi concentrar os aspectos interpretativos adquiridos ao

175 longo desta pesquisa em um madrigal inteiro, de forma a elaborar uma abordagem interpretativa adequada e especifica à esta obra. Devido a sua posição central dentro dos seis livros, o madrigal Luci Serene e Chiare, do quarto livro, foi o escolhido para ser submetido a esta análise em perspectiva. A escolha dos aspetos a serem ressaltados foi feita baseada na relevância interpretativa de cada um. A partir desta abordagem, a proposta interpretativa deste madrigal é um pos- sível caminho como referência para as demais obras dos seis livros.

5.1. – Considerações sobre a interpretação

As edições originais dos livros não traziam indicações práticas quanto à dinâmica a ser empregada, nem mesmo sugestões de andamentos ou quaisquer outros detalhes de interpretação, o que é comum ao repertório do período. O que hoje entendemos como a interpretação adequada deste repertório consistia na prática corrente da música daquele período. Os executantes estavam imersos em um universo estético que condizia com os madrigais, portanto, não eram necessá- rias indicações expressivas na partitura. No entanto, para sua execução nos dias de hoje, esta falta de informação acrescenta mais uma dificuldade a este repertó- rio já considerado virtuosístico, resultando em entendimentos musicais pouco ex- pressivos ou mesmo adoções de parâmetros anacrônicos. Mesmo questões práticas que podem ser consideradas básicas, como a divisão das vozes, acabam se tornando problemáticas nos dias atuais. Os origi- nais do compositor não traziam uma indicação precisa sobre para que tipo vocal as linhas da polifonia estavam determinadas. A informação que temos é a disposi- ção das cinco vozes na edição e as claves para as quais foram escritas, como nos mostra a imagem seguinte:

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Figura 46 – Baci, soavi e cari – Livro I – c. 1 – 5

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Esta figura foi retirada da reedição da segunda edição dos livros feita pelo editor genovês Simone Molinaro (1565 – 1615) em 1613. Esta reedição feita em forma de fac-símile é de 1987, e foi realizada pelo Studio per edizioni scelte, de Firenze, cidade onde o exemplar foi consultado por este pesquisador. Esta edi- ção de 1613 é considerada mais importante do que as originais feitas nos anos anteriores por ter sido a primeira vez que os livros de madrigais foram compilados juntos e com a autoria atribuída à Gesualdo, além do fato de as anteriores não terem sido preservadas. Observa-se que o compositor dispôs as cinco vozes com quatro claves diferentes. A voz I, escrita na clave de Sol sugere ser a voz do So- prano, a voz II está escrita na clave de Dó na segunda linha, podendo ser conside- rada como a voz do Alto, as duas inferiores a ela clave de Dó na terceira linha, o que pressupõe serem cantadas por duas vozes de Tenor. A última linha, escrita sob a clave de Fá, escrita para a voz do Baixo. O problema é que estas constata- ções quando confrontadas com aspetos estruturais das linhas, como tessituras e equilíbrio sonoro, por exemplo, indicam que não é um assunto fácil de ser resolvi- do, dependendo de observações mais complexas do que estas colocadas neste texto. O fato é que de reflexões como esta dependem questões como a escolha do grupo que irá interpretar os madrigais, o que demonstra sua importância. Por- tanto, temos aqui um indício de o quanto esta falta de informação torna mais difícil a execução deste repertório nos dias atuais. Diante disto, as informações e carac- terísticas evidenciadas pela análise poética tornam-se ainda mais importantes pa- ra alcançar uma interpretação expressiva e adequada. O primeiro ponto a ser considerado é o quanto o ritmo natural do texto nos auxilia nesta interpretação. Apesar de Gesualdo ter sido um dos primeiros compositores a incluir em suas edições originais barras de compasso, como nos comprova os fac-símiles das edições de 1613 (Figura 46), sua fluência musical está completamente atrelada à prosódia textual. A acentuação das palavras dentro das frases pontua a música e completa a estrutura polifônica construída pelo com- positor. Por este motivo, na medida em que alguns termos passam a assumir um

178 relevo mais destacado dentro de determinada frase, encontraremos novas formas de pontuação textual, na qual as frases se tornam mais complexas. Se compararmos três utilizações da palavra amor dos exemplos apre- sentados por este mesmo capítulo, entenderemos na prática como esta utilização interfere na melhor forma de se interpretar estes mesmos exemplos. O madrigal Amor, pace non chero tem na prosódia de sua frase textual um exemplo do dis- curso utilizado pelo compositor.

Figura 47 – Amor, pace non chero – Livro I – voz I – c. 1 – 2

Esta figura apresenta-se como a utilização mais clara da prosódia do texto na obra de Gesualdo. A pausa colocada após a palavra Amor ajuda a refor- çar a tonicidade das palavras e colocá-las de acordo com a escrita musical. A úni- ca dúvida que poderia surgir no momento da condução fraseológica seria sobre a palavra non, que por ser composta de apenas uma sílaba poderia ou não ser apoiada na execução musical, mas é justamente sobre esta palavra que o compo- sitor altera a melodia ascendentemente, o que garante a compreensão de seu apoio natural. Uma interpretação que se ocupe da fluência adequada do texto respei- taria o efeito causado pela pausa e concordaria com as silabas tônicas apresenta- das pelo texto, resultando em uma expressividade condizente com a música. No entanto, a presença das barras de compasso na edição de 1613 e também nas posteriores, acaba gerando alguns problemas no entendimento expressivo, como demonstra a figura abaixo.

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Figura 48 – Amor, pace non chero – Livro I – voz 1 – c. 1 – 2

A barra de compasso colocada entre os dois primeiros compassos pode induzir que a execução não apoie a sílaba tônica da palavra pace e também inter- ferir na acentuação da primeira palavra, Amor, pois conduziria o acento do primei- ro tempo do compasso à primeira sílaba da palavra, o que alteraria completamen- te a prosódia do texto. Por este motivo, a análise poética cuidadosa e o respeito às características naturais do texto são ferramentas indispensáveis para uma in- terpretação adequada, mesmo nos exemplos mais simples da interação entre mú- sica e texto na obra de Gesualdo. Mas temos situações mais específicas em que o entendimento interpre- tativo exige uma atenção maior, quando o destaque atribuído a algumas palavras tornam a prosódia do texto menos organizada e exigem algumas escolhas de quem as interpreta.

Figura 49 – Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – voz I – c. 26 - 31

Ao contrário da situação anterior, a frase textual Cibo Amor le ministra onde non pera, apresenta uma dinâmica mais complexa. A escrita musical propõe três apoios ao texto, não sem deixá-los com uma hierarquia de importância. As três palavras destacadas são: Amor, ministra e pera, todas destacadas por uma nota longa em sua sílaba tônica e com a mesma atingida pela nota mais aguda da

180 palavra. No entanto, o termo Amor se destaca como o ápice da frase, apresentan- do a nota mais aguda de todo o trecho. Quando a situação descrita acima é analisada através da polifonia completa das cinco vozes percebe-se que o alcance deste detalhe interpretativo se torna maior, pois o apoio conferido à palavra em questão será feito em todas as vozes da polifonia em momentos distintos, o que resultará em um efeito interpreta- tivo que alterará significativamente a interpretação deste trecho.

Figura 50 – Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – c. 25 – 31

Uma vez respeitado o apoio sobre a palavra Amor em todas as vozes, cria-se dentro da polifonia outro desenho melódico que fora arquitetado pelo com- positor, e foi através deste desenho que se concebeu o ambiente para esta narra- ção poética. Identifica-se uma subdivisão de sessão dentro deste trecho, entre os compassos 28 e 29, que só é alcançado através do relevo da palavra Amor. Neste caso, não seria possível uma interpretação adequada sem respeitar esta caracte- rística.

181

Esta mesma situação é encontrada no madrigal Amor vince ogni core, da terceira fase em que o termo Amor apresenta o mesmo tratamento da anterior, recebendo destaque maior que as demais.

Figura 51 – Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48

Neste caso, o relevo é repetido inúmeras vezes pela polifonia do trecho e o intervalo melódico descendente que o forma é alterado constantemente. Esta escrita confere ao trecho uma instabilidade sonora que representa a batalha a que se refere o texto. Portanto, temos a mesma situação da segunda fase agravada pelo uso de outro efeito sonoro. Mais do que orientar a dinâmica do trecho, esta característica revela qual o contexto geral que a interpretação deste madrigal deve seguir. Outra consideração importante a ser feita é sobre a necessidade de re- lacionar a análise poética com a divisão estética que se faz da obra localizando cada madrigal dentro de uma das três fases e considerando suas implicações in-

182 terpretativas, pois algumas características inerentes às fases podem ser significa- tivas no momento da interpretação, como por exemplo, a divisão das seções den- tro da estrutura musical dos madrigais. No primeiro livro temos o predomínio de divisões textuais como as do madrigal Vile ape, Amor, em que a frase é apresentada separadamente dentro do discurso musical. O compositor vale-se da prática corrente do Renascimento de contrastar as seções através do uso de polifonia e homofonia.

Figura 52 – Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14

Já no livro quatro, encontramos com mais frequência situações com uma diferença estrutural na construção, a própria frase está dividida em duas par- tes, que são cantadas simultaneamente por vozes distintas dentro da polifonia.

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Figura 53 – Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 3

A condução interpretativa deste segundo exemplo requererá maiores cuidados para que a narração poética seja respeitada do que no exemplo da figura 52. O deslocamento causado pela divisão da frase em duas partes tende a disso- ciar o discurso musical do textual, o que comprometeria sua expressão. Avançando no entendimento deste último exemplo, nos deparamos com a frase completa Se chiudete nel core, Il pargoletto Amore, que resume a ideia geral do poema centrado na palavra pargoletto, cuja tradução em português é o adjetivo “infantil”. O sentido deste verso atribui um rótulo de infantilidade ao senti- mento amoroso que se revela cruel. A partir disso, o compositor dedica os dez primeiros compassos da obra a repetir as duas frases, assinalando a semelhança de sonoridade entre as palavras core e Amore. O efeito desta rima, que pode ser considerado infantil, só será interrompido quando a frase seguinte passa a traba- lhar o conceito de crudele, transformando completamente a estrutura polifônica do madrigal. Em uma interpretação que esteja embasada por esta análise poética, os termos iniciais serão cantados de forma a ressaltar o efeito sonoro entre as duas

184 palavras e a frase seguinte será apresentada com uma sonoridade contrastante, em que predomine uma emissão vocal mais escura que construa sonoramente o significado do termo crudele. Nos madrigais da terceira fase esta situação se aprofunda, tornando a interação das linhas polifônicas ainda mais complexas, como nos demonstra a figura abaixo, em que dois trechos do texto são cantados ao mesmo tempo por dois grupos distintos de vozes.

Figura 54 – Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c. 1 - 2

Podemos considerar que a escrita contrastante que o compositor utili- zava na primeira fase para diferenciar duas seções textuais agora é empregada no mesmo trecho e ao mesmo tempo. Os dois grupos de vozes apresentam o mesmo processo imitativo entre si, o que caracteriza ambos. No entanto, a diferença de escrita entre eles não é tão óbvia quanto as existentes na primeira fase, o que tor- na o entendimento mais complexo. Também observamos uma diferença estrutural quanto ao ponto de imitação empregado nesta passagem, que é feito de forma

185 mais abrupta do que o comum. O resultado disto é tornar o trecho mais dinâmico e, neste caso, com um discurso musical mais drástico. Somente uma interpretação cuidadosa que ressalte estes detalhes, poderia revelar a expressividade proposta pelo compositor. A indicação para se interpretar este trecho, valorizando a profun- didade do discurso musical, é ressaltar o caráter predominantemente melódico da imitação do primeiro grupo enquanto valoriza-se o caráter mais rítmico do segundo grupo, tornando claro este diálogo. A diferença estrutural que existe entre o discurso da segunda e da ter- ceira fase é que a escrita musical deixa menos óbvia a interação poética presente nos madrigais, tornando o papel da interpretação mais importante para seu enten- dimento. O sexto madrigal do último livro, Io Parto, nos oferece uma situação que exemplifica esta complexidade.

Figura 55 – Io Parto – Livro VI – vozes: II,III,IV e V c.1 - 3

Temos nos três primeiros compassos da obra trazidos pela figura acima um discurso textual em que a primeira frase é proferida por uma personagem, Io Parto, enquanto que a sequência sugere a voz do próprio eu lírico da narração, e non più dissi. Apesar da pausa que separa as duas sentenças narrativas, não

186 existe uma mudança significativa na escrita que reproduza na música a alternân- cia dos personagens. A base da escrita musical (homofonia, movimentos harmôni- cos lentos, região vocal predominantemente grave e ritmo) se mantém ao longo dos compassos. Situação diferente encontramos nos madrigais da primeira fase, quando a escrita musical se incumbiu de deixar evidente a diferença do discurso. Como exemplo, temos o décimo madrigal do primeiro livro, Si gioioso mi fanno i dolor miei:

Figura 56 – Si gioioso mi fanno i dolor miei – Livro I – Voz I e II - c. 17 - 21

Neste caso, a condução musical apresenta dois motivos melódicos dife- rentes, o primeiro representando a frase E fra me dico poi e o segundo consta de uma imitação na frase consequente Se tal gioia. Ressalta-se que neste exemplo não há dois personagens diferentes falando, seria o próprio eu lírico falando con- sigo mesmo, mas, mesmo assim, a escrita musical colabora para o entendimento. Já no caso da figura 55 a situação é inversa, pois o texto só será coerentemente entendido se a interpretação da obra respeitar esta análise poética e promover diferenças sonoras entre estes compassos iniciais, respeitando a orientação do discurso. Além das implicações que cada fase de composição incidiu sobre o processo interpretativo dos madrigais, temos nas imagens retratadas pelo signifi- cado dos textos outra importante fonte de parâmetros, principalmente nos casos

187 em que estes significados não são explícitos. O ponto a ser considerado é como a complexidade dos termos poéticos se refletiu na concepção musical dos madrigais e a importância desta interferência no momento de sua interpretação. O termo morte é suficiente para nos dar uma dimensão da relevância desta característica no entendimento expressivo. Sua utilização propiciou ao con- junto da obra os momentos de maior dramaticidade e de resultados sonoros mais distintos, podendo ser considerado o conceito chave da poética de Gesualdo. Apesar de estar presente o tempo todo nos livros de madrigais, seu sentido estrito – interrupção da vida – quase nunca foi utilizado, especialmente quando se refere a um fato concreto, a morte física como um evento consumado. A explicação para isto é que o compositor utiliza o termo morte como uma alegoria, deixando-o mais ligado ao sofrimento do que à morte física. Os sentimentos retratados nestes po- emas estão diretamente ligados ao drama amoroso, sejam eles positivos ou não. Não se identifica menções a outros temas sem que tenham ligação explícita com a temática amorosa. Inserido neste universo narrativo, o conceito de morte assume o papel de antagonista do encontro amoroso. Normalmente Gesualdo utiliza a ideia da morte em duas situações prin- cipais: quando há fim do amor ou quando este é tão infeliz que a morte acaba se transformando na única forma de redenção daquele sentimento. Neste caso en- contramos o conceito da morte desejada, tão cara à estética deste compositor. Nas duas formas a ideia da morte é retratada como uma ação futura, um desfecho previsível ou desejado àquela situação. Diante deste uso metafórico do termo, en- contramos passagens com construções poéticas em que a morte acaba assumin- do uma posição reconfortante dentro da trama por ser considerada a melhor op- ção pelo eu lírico da narração, o que torna este uso o oposto do esperado. A melhor forma de orientar a interpretação destes trechos é considerar o significado que foi atribuído ao termo naquela passagem textual, pois esta com- plexidade poética foi explorada na construção musical das obras através da dubi- edade dos significados. Retomemos o exemplo do madrigal Moro, Lasso ao mio

188 duolo (terceira fase), em que a orientação melódica das palavras estabelecem re- lação com o significado especifico que elas têm naquela narração.

Figura 57 – Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36

Se analisada separadamente, a frase musical acima seria caracterizada por uma escrita cromática presente nas finalizações das frases e pela falta de um centro harmônico definido. No entanto, quando inserida no contexto do poema que o madrigal apresenta, as possibilidades interpretativas aumentam. O texto completo é:

Moro, lasso, al mio duolo E chi mi può dar vita, Ahi, che m’ancide e non vuol darmi aita! O dolorosa sorte, Chi dar vita mi può, ahi, mi dà morte!

O poema retrata um sentimento de dor e de sofrimento constante. Dian- te desta infelicidade, a sentença final, mi dà morte, precedida pelo vocábulo ahi, pode ser considerada como um pedido pela morte. O motivo para este pedido se- ria a sorte dolorosa que confere o sofrimento ao narrador do poema. Cabe a res- salva que o termo sorte, presente em muitos madrigais de Gesualdo, tem sua utili- zação sempre empregada como um sinônimo de destino, geralmente atrelado a um sentimento infeliz. Voltando a este poema, o termo morte sendo utilizado como a expiação do sofrimento, ou ainda, como o desejo do eu lírico. E o termo sorte empregado como a causa da tristeza, o que explica a orientação melódica do

189 cromatismo utilizado nestas duas palavras, sendo um descendente e o outro as- cendente. Uma vez identificado este detalhe interpretativo, toda a orientação das dinâmicas e articulações deste trecho poderão privilegiar esta leitura expressiva, construindo na música a profundidade do texto. Ainda mais importante neste madrigal é avaliarmos que o termo morte, empregado no início do madrigal com a variação Moro, representa dentro do uni- verso musical de Gesualdo o auge da dor metafísica. Conforme nos demonstra a figura abaixo, encontramos uma aplicação musical do sentido alegórico da morte que pode ser considerada a síntese da escrita de Gesualdo.

Figura 58 – Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3

A sequência das seis tríades apresentadas nos três primeiros compas- sos (C#, Am, B, G, E, Am), da forma como estão dispostas, conferem ao resultado sonoro do trecho uma atmosfera de tensão que é resultado direto da junção entre a escrita cromática que permeia o encadeamento das vozes com a falta de rela-

190

ções harmônicas funcionais entre estas mesmas tríades resultantes. Se a interpre- tação dispensada a este trecho levar em conta que o sentimento retratado é o mais doloroso entre todos do universo estético do compositor, as decisões quanto à forma de apresentação dos intervalos e da orientação sonora das vozes estarão em acordo com o ambiente sonoro previsto pelo compositor. Mas está na característica mais marcante da obra de Gesualdo, a dis- sonância, a consideração mais importante sobre a interpretação destes madrigais. Conforme já foi discutido por este trabalho, foi através deste recurso musical que o compositor construiu a maior parte das inovações e desenvolvimentos de seu esti- lo. Mediante a análise de seu uso é que podemos encontrar os melhores cami- nhos para a interpretação destas obras. Sua principal contribuição na análise in- terpretativa é auxiliar na identificação dos pontos de maior dramaticidade das obras e permitir que estes pontos sejam ressaltados de forma expressiva. Se utilizarmos o madrigal Luci serene e chiare, do quarto livro, teremos um exemplo elucidativo sobre esta questão. O madrigal inteiro é construído a par- tir de um discurso musical bastante claro. Apesar de estarmos na segunda fase, Gesualdo trabalhou este texto com seções musicais bem definidas, inclusive ten- do, pela primeira e única vez em todos os seus outros madrigais, repetido total- mente uma seção musical com outro verso do poema (a repetição se dá do com- passo 11 ao 22, quando está repetindo a escrita musical dos primeiros dez com- passos). Esta prática tão comum a outros compositores e única em Gesualdo, tor- na-se, por isso, reveladora. Quando se repete a mesma seção musical em uma estrofe seguinte do texto, assume-se que o ambiente dispensado a aqueles dois trechos da narração são os mesmos. O fato de Gesualdo ter se limitado a fazer tal ação em apenas um madrigal ao longo de todos os seis livros, demonstra que pa- ra este compositor cada estrofe textual exige uma ambientação diferente. Esta característica está diretamente relacionada com a estética dos po- emas utilizados por Gesualdo (ver capítulo II). Sua preferência por poemas de cur- tas dimensões resulta em uma narração poética em que cada frase assume uma

191 importância central dentro do enredo, importância esta que exige uma ambienta- ção musical especifica a ele. No madrigal, Luci serene e chiare, encontramos toda a narração poética desenvolvida em 46 compassos, em que as seções musicais são divididas de for- ma bem definidas e a condução dos motivos melódicos e rítmicos não apresentam dúvidas sobre as dinâmicas que devem ser utilizadas para interpretá-los. Mas o compositor reserva os últimos 6 compassos do madrigal para desenvolver a frase more e non langue, como demonstra a figura abaixo.

Figura 59 – Luci serene e chiare – Livro IV – c. 47 – 52

O que torna este exemplo importante é que todo o discurso interpretati- vo que deve ser feito para se alcançar uma execução adequada está cuidadosa- mente descrito pelas próprias dissonâncias que se formam entre as vozes. A quantidade de efeitos sonoros causados por elas é suficiente para tornar o trecho difícil de ser executado, mas fácil de ser interpretado, pois os parâmetros para es- ta interpretação já estão contidos na própria escrita, basta ressaltá-los.

192

O que deve ser analisado cuidadosamente é a importância que uma escrita como esta assume quando colocada em perspectiva dentro da obra com- pleta de Gesualdo. Neste capítulo foi relembrada a predileção do compositor por poemas curtos e foi apontada como explicação para isso a importância que cada frase desempenha dentro da trama narrativa. Esta constatação revela que Gesu- aldo trabalhava seu texto de forma concisa, conferindo a cada frase e a cada pa- lavra um tratamento musical individual. No caso acima, encontramos nos últimos seis compassos a constante repetição da frase more e non langue através de uma escrita repleta de dissonâncias e cromatismos reforçando a ideia trazida pelo sen- tido do texto. Se relembrarmos a tabela que consta no início deste capítulo, em que se quantifica o número de vezes que o compositor utilizou os termos amor e morte ao longo dos seis livros, constataremos o cuidado com que esta escolha foi feita. Conforme a reflexão já feita, o aumento do uso do termo morte em compara- ção com o termo amor tem a ver com o recrudescimento do ambiente musical mais pessimista e trágico nos últimos livros. Mas estes números levantados não contabilizavam as repetições que se fazia dos termos dentro de uma mesma ses- são musical. Retomando um exemplo já utilizado neste capítulo, podemos identifi- car a repetição insistente do termo como recurso interpretativo.

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Figura 60 – Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 – 45

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O madrigal que contém o trecho retratado por esta figura, Dolcissima mia vita do quinto livro, é construído basicamente a partir de duas ferramentas: a escrita cromática e escrita triádicas sem relações. Ao longo do madrigal observa- se o predomínio de homofonia, com poucos trechos de imitação, predomínio este que deixa de existir nos últimos compassos, como podemos observar na figura acima. Esta homofonia foi utilizada por Gesualdo na repetição de algumas pala- vras, que acabaram realizando no poema uma transformação, em que algumas palavras assumem importância frente às outras e acabam sendo destacadas.

Dolcissima mia vita, mia vita, A che tardate la bramata aìta, aìta? Credete forse ond’ardo, ond’ardo, Sia per finir perchè torcete il guardo, perchè torcete il guardo? Ahi, non fia mai che brama il mio desire. O d’amarti, O d’amarti o morire, o morire, o morire, o morire, o morire.

A transcrição acima foi feita a partir da disposição das palavras do po- ema no madrigal. A sequencia foi retirada da voz I, mas é acompanhada por todas as outras vozes da mesma forma. Nota-se que o compositor trabalhou a repetição de palavras no final das frases desde o início, havendo sempre um destaque na escrita musical. Com exceção do quinto verso, todos os demais repetem a pala- vra, ou o grupo de palavras, ao final. No entanto, a repetição, que sempre aconte- ce apenas uma vez, é feita quatro vezes ao final com o verbo morire. Ao todo, ca- da voz canta esta palavra cinco vezes o que gera uma repetição total de vinte e cinco vezes, ao longo de onze compassos. Levando em consideração o cuidado com que Gesualdo tinha com a escolha e a organização dos termos poéticos em seus madrigais, e também com o protagonismo que os conceitos relacionados ao tema da morte ocupam em sua obra, a repetição musical proposta por este madri-

195 gal evidencia o quanto a mesma pode ser explorada no momento de sua interpre- tação.

5.2. Luci Serene e Chiare – Uma análise em perspectiva

O madrigal Luci Serene e Chiare é a obra que abre o quarto livro de Gesualdo. Suas características cronológicas e estilísticas nos permitem considerá- lo o ponto central da obra do compositor. A data de sua primeira publicação, 1596, o confirma como um resultado direto da época ferrarense de Gesualdo e seus elementos musicais o coloca como o auge da sua segunda fase de composição. Muitos são os elementos que diferenciam este madrigal dos demais. Um deles é o fato de apresentar, pela primeira e única vez dentro dos 125 madri- gais que compõe os seis livros, a repetição de uma seção musical com um texto diferente. Entre os compassos 11 e 22, encontramos a sequência narrativa do po- ema sendo retratada com a mesma música elaborada nos primeiros 11 compas- sos, apenas com algumas alterações estruturais. Este procedimento, que é tão comum a outros compositores, torna-se excepcional no caso de Gesualdo, visto a cuidadosa atenção que o compositor conferia a relação existente entre a música e o texto. Certamente, havia uma razão para que ele destinasse a mesma concep- ção musical a dois trechos poéticos distintos. Outra característica encontrada neste madrigal que chama atenção diz respeito ao poema utilizado como base do madrigal. Gesualdo escolhe o texto homônimo de Ridolfo Arlotti e, ao contrário do que encontramos frequentemente, não faz nenhuma alteração no poema original, utilizando-o da forma como o poeta o concebeu. O que torna mais relevante esta constatação é o fato de ser justa- mente nesta fase de sua composição, a segunda, que Gesualdo atingiu o máximo de sua manipulação textual. O mais frequente neste momento são poemas tão alterados que nos permite dizer que o compositor escreveu outro texto baseando- se em um previamente conhecido. Os motivos pelos quais o compositor se abste-

196 ve de seu constante processo de adequação textual e utilizou na íntegra as esco- lhas narrativas efetuadas pelo poeta estão diretamente relacionadas com a coinci- dência de características estéticas entre o seu ideal poético e o texto escrito por Arlotti, o que transforma esta obra em uma importante fonte de informações inter- pretativas da obra de Gesualdo. Ridolfo Arlotti é um poeta essencialmente ferrarense. Seu local de nas- cimento, bem como a data exata em que se deu, são informações pouco compro- vadas. O que sabemos é que em 1568 ele recebeu o título de doutor em leis pela Universidade de Ferrara (The Biographical Dictionary, vol. III, 1844, London). Esta ligação com a cidade será constante até o final de sua vida, em 1613, tendo per- mitido, possivelmente, o convívio com Gesualdo no período em que o compositor esteve em Ferrara. Esta suposição biográfica, pode nos indicar os motivos que teriam facilitado a escolha deste poema para ser a base de seu madrigal do livro IV. O texto em questão é o único do poeta que foi aproveitado por Gesual- do em seus livros. Pouco tempo depois desta utilização, em 1603, Claudio Monte- verdi constrói o seu madrigal sobre o mesmo poema, confirmando a importância deste texto para a história do madrigal italiano. Sua estrutura consta de três terce- tos formados por um setenário (7 sílabas) e dois hendecassílabos (11 sílabas), e a temática poética desenvolvida por sua narração é muito condizente com o univer- so artístico de Gesualdo:

Luci serene e chiare, Voi m’incendete, voi, ma prova il core Nell’incendio diletto, non dolore.

Dolci parole e care, Voi mi ferite, voi, ma prova il petto Non dolor nella piaga, ma diletto.

O miracol d’amore! Alma che tutta foco e tutta sangue Si strugge e non si duol, more e non langue.

197

Tradução31

Luzes serenas e claras, Vós me incendiastes, vós, mas prova o coração No incêndio me deleito, sem dor.

Doces e caras palavras, Vós me feris, vós, mas prova o coração Sem dor na ferida, mas deleite.

Oh milagre do amor! Alma que é toda fogo e toda sangue. Se extingue e não sofre, morre e não esmorece.

Sua característica mais aparente é o uso constante do oxímoro, em que ideias opostas como diletto e dolore (deleite e dor) são articuladas na mesma fra- se, garantindo ao compositor oportunidades de trabalhar musicalmente esta opo- sição conceitual. Podemos afirmar seguramente que foi esta característica que mais contribuiu para a escolha feita por Gesualdo de abrir seu quarto livro com um madrigal concebido sobre este poema. Mas existem outras características ineren- tes ao texto que se aproximam do ideal poético do compositor, que podem, inclu- sive, levantar a questão se Arlotti não o escreveu destinado ao compositor. Uma destas características é o próprio tamanho do poema. Por mais que a forma poética do madrigal em fins do século XVI apresentasse certa conci- são de tamanho, desenvolver toda a narração amorosa em apenas três tercetos não era o mais comum. Utilizando como exemplo a obra de Guarini, o poeta mais próximo de Gesualdo, chegamos seguramente a um número mínimo de versos maior do que três. Portanto, podemos concluir que o fato deste poema ter origi- nalmente este tamanho reduzido o coloca como uma exceção. Também observamos o uso de uma linguagem amorosa bastante culta e afastada de qualquer tom popularesco ou mesmo de alusões eróticas. No

31 A tradução do poema foi realizada pelo próprio pesquisador.

198 lugar disto, encontramos uma simetria tanto na forma como no conteúdo, que foi bastante explorada pelo compositor. Se nos concentrarmos na última frase dos dois primeiros tercetos, en- contraremos a primeira simetria conceitual:

Nell’incendio diletto, non dolore. Non dolor nella piaga, ma diletto.

À parte a simetria óbvia de serem dois hendecassílabos cujas sílabas tônicas são coincidentes, temos, principalmente, a simetria dos conceitos. Os ter- mos diletto e dolore se alternam como causa e consequência nas duas frases, fazendo com que as ideias paradoxais de dor e de prazer também se alternem no final dos dois versos iniciais, resultando em uma compensação entre estas ideias. Portanto, ao final dos dois primeiros tercetos deste poema, estas sensações estão equilibradas, garantindo assim um farto material poético para ser elaborado no terceto final do madrigal. Diante desta constatação, torna-se mais importante o fato de serem exatamente nestes dois tercetos que Gesualdo repetiu a elaboração musical pela primeira vez em toda a sua obra, repetição esta que reforça o equilí- brio conceitual do poema na música. Analisando estes dois tercetos, encontramos algumas alterações dentro da repetição musical que trazem relações com esta simetria conceitual. Elas con- sistem, basicamente, em um estreitamento do processo imitativo, antecipando a entrada das vozes na imitação e também a ampliação da seção em dois compas- sos de escrita.

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Figura 61 – Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 3 - 6

Trecho relativo a este na segunda utilização:

Figura 62– Luci serene e Chiare – Livro IV - c. 13 - 18

200

A comparação destes dois trechos não deixa dúvidas de que houve a repetição de uma mesma seção musical, pois, as alterações efetuadas acentuam as mesmas características musicais. Porém, quando o compositor estreita a en- trada das vozes dentro do processo imitativo na segunda vez em que a seção é cantada, diminuindo o intervalo de tempo que era de duas semínimas, no c. 3, pa- ra apenas uma semínima, no c. 13, ele faz com que a mesma construção melódi- ca utilizada anteriormente resulte, agora, em intervalos distintos no plano vertical da música. Em geral, estas resultantes verticais ficam mais dissonantes do que fora na primeira vez. Como exemplo, observamos que na primeira intervenção desta imitação o par de vozes que efetuam a segunda entrada da frase Voi m’incendete (c. 3) resulta em intervalos de terças e sextas com a primeira voz do trecho. Na seção correlata, do compasso 13, o par de vozes que efetua o mesmo papel do anterior gera um intervalo de segunda maior. Muitos são os caminhos pelos quais podemos entender esta alteração efetuada pelo compositor, até mesmo o argumento de que ele alterou pelo simples fato de não repetir o trecho de forma exatamente igual. No entanto, quando volta- mos ao sentido poético destes dois tercetos encontramos uma explicação que fica mais coerente com tudo que já sabemos a respeito da obra de Gesualdo. As duas frases poéticas que são repetidas com estas alterações estru- turais na música trazem sentidos correlatos, mas, na verdade, antagônicos:

Voi m’incendete, voi,ma prova il core Voi mi ferite, voi, ma prova il petto

A primeira frase está se referindo às “Luzes serenas e claras”, que, em um sentido menos literal, podem ser entendidas como os “olhos serenos e claros” da amada. Segundo a frase em questão, estes olhos incendeiam e colocam à pro- va o coração do narrador. Já a segunda frase está se referindo às “doces e caras palavras”, outra alusão à amada. Mas neste caso indica que esta continua a colo-

201 car o coração do narrador à prova, mas agora a acusa de feri-lo. Entre a ideia da primeira frase de incendiá-lo, no sentido amoroso, e o da segunda frase de feri-lo, temos uma diferença considerável, sendo a segunda muito mais agressiva do que a primeira. Neste contexto, podemos entender que, na medida em que a narração poética avança para o segundo terceto, o ambiente narrativo se torna mais tenso e, portanto, a música deve acompanhar este movimento. Este tipo de compreensão da escrita de Gesualdo, fundamentada prin- cipalmente em hipóteses, utiliza como parâmetro os conhecimentos prévios que temos. O fato de sabermos e termos documentado o cuidadoso processo de ma- nipulação textual que ele efetuou em sua obra, nos permite considerar este tipo de coincidência entre o sentido dos versos e a gramática musical como indícios segu- ros destas interpretações. O uso destas informações não se aplica apenas no campo analítico, mas especialmente na questão prática da interpretação da obra. Se as escolhas interpretativas adotadas para a prática deste madrigal estiverem orientadas por esta compreensão da escrita, teremos que a execução do trecho entre os compassos 13 e 19 conterá sensíveis diferenças de dinâmica com relação ao trecho entre os compassos 3 e 6. Isto, somado à natural diferenci- ação causada pelas alterações que já constam na escrita destes trechos, resultará que, mesmo em um trecho musical repetido pelo compositor o resultado sonoro será bastante distinto, com as dissonâncias e resultados cromáticos mais aparen- tes e reforçados pela execução. Ou seja, a simetria conceitual encontrada no sen- tido dos dois primeiros tercetos do poema será também reproduzida na execução musical da obra, e o paradoxo conceitual entre prazer e dor estará, desta maneira, representado nesta execução. Em termos estruturais, as escolhas feitas por Gesualdo para colocar em música este poema também nos demonstram alguns indícios expressivos impor- tantes. O primeiro deles é ter feito um madrigal em quatro seções baseado em um poema com apenas três versos, pois a análise musical nos revela uma forma biná- ria que pode ser identificada como AA’BB’. Sendo:

202

A: compassos 1 a 10 A’: compassos 11 a 22 B: 23 a 34 B’: 36 a 52

Destaca-se que as seções A e A’ são as que trazem a repetição musi- cal que é única na obra do compositor. Na seção final do madrigal (B’) o compositor efetua outra repetição, mas desta vez de texto e música, o que nos permite considerá-la como algo nor- mal, sendo mais uma adequação para manter o padrão de suas obras que, no geral, trazem esta forma. No entanto, atesta-se numericamente que as seções vão aumentado de tamanho ao longo da escrita de forma relevante, e este aumento se deve exclusivamente à ampliação de compassos finais em que os motivos rítmico- melódicos são repetidos mais vezes do que a anterior. A repetição da seção B no final do madrigal está ampliada em 5 compassos, pois, passa de 13 para 17 com- passos. Por conter o mesmo material musical e textual, esta ampliação de 5 com- passos ao final é significativa. Temos também a constatação de que as duas primeiras seções so- mam 22 compassos, enquanto que as duas seguintes, B e B’, somam ao todo 30 compassos. No entanto, as seções A e A’ versam sobre dois tercetos diferentes, enquanto que as seções finais estão relacionadas exclusivamente ao terceto final, ou seja, a maior parte do madrigal está dedicado a um único verso do poema. Confrontando este aspecto com a análise poética do madrigal, encon- tramos uma explicação possível para esta estrutura, pois o último terceto do texto representa a conclusão final da narração poética e, portanto, o ápice da narração poética. Os dois primeiros versos descrevem de uma forma quase indagativa co- mo determinados aspectos da trama amorosa, como as “luzes serenas” e as “do- ces palavras”, acabam resultando em deleite e dor ao mesmo tempo. E a música elaborada pelo compositor explora este paradoxo que o texto propõe, enquanto

203 que o último verso traz de forma mais afirmativa o que seria a explicação para es- ta situação complexa. Sua primeira frase, O miracol d’amore, funcionaria como o resumo de toda a questão, respondendo às indagações anteriores e atribuindo a este “mila- gre amoroso” o entendimento de todas as questões propostas. A sequência do terceto descreve a “alma” amorosa como sendo toda constituída através de fogo e sangue, e encerra a narração dizendo que morre, mas não se desfaz. Portanto, o terceiro e último verso do poema explica, de uma forma simbólica e subjetiva, o dilema colocado pelos primeiros versos. Este último terceto contém duas palavras que, juntas, assumem posi- ção de destaque dentro desta obra, sendo esta mais uma explicação que colabora em considera-lo o ápice narrativo do madrigal. São elas: amor e morte, em suas variações mais frequentes na obra do compositor:

O miracol d’amore! Alma che tutta foco e tutta sangue Si strugge e non si duol, more e non langue.

Não seria por acaso que justamente nos trechos em que elas se inclu- em dentro do texto encontramos a seção mais aguda da música (O miracol d’more, c. 23 e c.36), e a seção mais dissonante (more e non langue, c. 34 – 35; e c. 47 – 52). Este destaque musical dado a estes termos reforçam a percepção de serem eles o eixo expressivo principal desta obra. A partir do estabelecimento destes parâmetros para o entendimento do madrigal, em que se utiliza dados musicais, poéticos e, principalmente, os conhe- cimentos que já temos sobre as práticas de Gesualdo, é possível uma proposta interpretativa que esteja mais coerente com a partitura. Ao interpretar esta obra levando em conta o peso poético que cada um dos três tercetos possui, baseado na visão interpretativa demonstrada até aqui, haverá naturalmente uma intensifi-

204 cação das dinâmicas tornando cada uma das seções mais expressivas que a an- terior, garantindo uma unidade conceitual entre o resultado sonoro da execução e a narração poética embutida no texto. Complementando este entendimento, temos ainda o tratamento musical individual dado a alguns termos poéticos que são valiosas fontes de informações expressivas. Por exemplo, a considerável quantidade de intervalos cromáticos que se formam nas resultantes verticais das vozes quando o poema traz o termo dolo- re (ex, c.8 – 10). Ou, então, o melisma reservado à palavra foco, no compasso 25, conferindo à música uma sensação de movimento que condiz com o significado deste termo. Mas temos ainda outros elementos menos aparentes, e em alguns ca- sos, não explicitados na escrita, que serão importantes nas escolhas interpretati- vas desta obra. Um deles está relacionado à finalização das frases musicais, mo- mentos estes, em que o compositor se utiliza das ferramentas mais sutis de sua escrita. É comum na escrita de Gesualdo as finalizações desiguais das vozes, em que a última sílaba de uma mesma palavra é proferida com atrasos entre as vozes. Nos trechos com o predomínio da escrita homofônica, este aspecto fica mais ressaltado. A primeira frase do madrigal Luci Serene e Chiare é um claro exemplo:

205

Figura 63 – Luci Serene e Chiare – Livro IV - c.1 – 2

Assim como os demais elementos expressivos, esta forma de finali- zar as frases também vai se intensificando durante a narração poética do madri- gal. Percebemos isto ao comparar a finalização existente no compasso 6, e na seção correlata a ele, no compasso 19.

206

Figura 64– Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 6

Figura 65 – Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 18 – 19

Podemos avaliar através desta comparação o exagero com que o com- positor efetua a finalização no compasso 19, deixando uma das vozes (Voz III) encerrar a frase sozinha. Este tipo de finalização não é comum no repertório, por conferir muito relevo a um momento do discurso poético que, ao contrário, é quase

207 sempre discreto. Certamente, a interpretação destas finalizações deve procurar realçar esta característica não comum da escrita, e não tentar disfarça-la como algo menor. Caracterizando assim, o “estranhamento” e a assimetria que o com- positor conferiu a estes trechos. Outros elementos interpretativos importantes são as pausas que a nar- ração poética do compositor efetua, algumas descriminadas na partitura e outras não. As que estão inclusas na escrita e que podem ser divididas em dois grupos: as internas às seções, cuja função é ressaltar a frase seguinte, como por exemplo:

Figura 66 – Luci Serene e chiare – Livro IV - c. 6 -7

E ainda, as frases entre as seções, que tem a função clara de dividi- las dentro do madrigal:

208

Figura 67 – Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 11 - 12

Temos também pausas que não estão escritas na partitura, mas que são importantes para a interpretação do madrigal. Por exemplo, entre os compas- sos 2 e 3 da obra, temos uma escrita contínua, sem pausas. No entanto, as frases que se sucedem apresentam um caráter contrastante significativo, que fica mais evidenciado quando separados por um intervalo de tempo maior do que o descrito. Este procedimento garante um entendimento mais cuidadoso das informações poéticas, e ressalta musicalmente o sentido do texto da frase seguinte. Portanto, mesmo não estando escrita, a pausa entre as frases é um importante elemento interpretativo deste trecho.

209

Figura 68 – Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 1 a 3

A partir desta última consideração, sobre as pausas que não estão es- critas na partitura, é que se conclui a importância do entendimento poético para a interpretação dos madrigais de Gesualdo. A sofisticação de sua linguagem, aliada a itens como: o distanciamento histórico que temos do período; e a escrita musical empregada que ainda era pouco detalhista, resultam em um repertório de difícil acesso, tanto para o músico quanto para o ouvinte. Diante disto, o trabalho de en- tendimento musical feito a partir dos conhecimentos poéticos que temos, como fora feito neste texto, se mostra o caminho mais adequado para a interpretação expressiva desta obra.

210

CONCLUSÃO

Os temas levantados e discutidos nesta pesquisa possibilitaram uma série de considerações sobre a escrita dos madrigais de Carlo Gesualdo. Diante disso, algumas conclusões podem ser realizadas. A característica musical mais comumente atrelada a estes madrigais é a escrita dissonante e recorrentemente baseada nas resultantes cromáticas das linhas, no entanto, o que verdadeiramente os torna distintos do repertório mais conhecido daquele período é a relação intensa que existiu entre a escrita musical e o ideal poético que o permeava. A existência de um ideal poético que seja sólido o suficiente para ser reconhecido e analisado influenciando a escrita musical do compositor, coloca esta obra madrigalesca como uma referência única na virada dos séculos XVI e XVII. Apesar da linguagem musical ousada empregada pelo compositor ser realmente uma característica constante na estrutura das obras, sua concepção poética apresenta-se como a propulsora de todas as intenções musi- cais, sendo, portanto, mais importante estruturalmente que qualquer outra caracte- rística técnica. Este ideal poético, por sua vez, encontra-se atrelado a um ambiente es- tético distinto que se delineou nas décadas finais do século XVI, intitulado nas demais artes como o movimento artístico do Maneirismo. As dificuldades na acei- tação destes conceitos estéticos no campo musical prejudicaram o entendimento dos madrigais de Gesualdo, pois a contribuição que a inserção destas obras em um movimento artístico maior faria nos estudos seria valiosa para as pesquisas futuras. Se analisarmos a recente bibliografia que existe sobre o Maneirismo rela- cionando-o com a obra musical de Gesualdo, atestamos o quão inicial este tema se encontra. Estudos relevantes sobre isto, como os efetuados por Arnold Hauser e Mari Rika Maniates que datam das décadas de 60 e 70 do século XX, só tiveram sequência com autores como Giovanni Iudica e Susan McClary na primeira déca- da do século XXI, ou seja, evidenciam a escassez de material sobre o assunto e a

211 lacuna de três décadas em seu desenvolvimento. Muitos destes autores, como o próprio Hauser que foi o primeiro estudioso moderno a tratar a fundo o conceito do Maneirismo artístico, não se ocuparam especialmente da música, mas aprofunda- ram de tal forma a discussão estética que aproximaram suas análises aos concei- tos musicais. Situação oposta é a de Iudica, que não se dedicou especificadamen- te ao movimento maneirista, mas atestou claramente ser esta a corrente estética de Gesualdo e, assim, acabou unindo em seu discurso as duas discussões em uma só, Gesualdo e Maneirismo. Algumas características biográficas do compositor e a inserção de sua obra dentro do contexto político que o envolveu também foram responsáveis em parte por atrasar este processo. O fato de Gesualdo ter sido uma figura política importante do século XVI tornou sua vida pessoal conhecida e muito documenta- da. A bibliografia resultante dos fatos pessoais que o tornaram uma personagem alegórica da época é incontestavelmente maior do que a dispensada à sua obra. Esta dicotomia entre o homem e o compositor resultou em entendimentos superfi- ciais sobre sua estética, pois se atribuiu uma excentricidade a sua escrita musical, em grande parte respaldada e contaminada por sua tumultuada biografia, que pre- judicou análises mais amplas de seu contexto artístico. A partir deste processo houve por muito tempo a classificação simplista de sua obra apenas como estética de “fim de período” e todas as suas características inovadoras e sofisticadas sen- do relegadas a exageros e estranhezas pessoais do compositor. Este fato, soma- do a real dificuldade técnica imposta pela escrita empregada pelo compositor, fez com que estes livros de madrigais não figurassem com frequência nas salas de concertos. Até mesmo os estudos direcionados exclusivamente à gramática musi- cal destas obras apresentam longos períodos sem maiores desenvolvimentos. O marco inicial de um entendimento mais aprofundado foi realizado por Edward Lowinsky na década de 60. Mesmo tendo passado pelo cuidadoso trabalho de Glenn Watkins, que esmiuçou a vida e a obra de Gesualdo e editou a primeira versão de seu livro sobre o assunto na década de 70 do século XX, os parâmetros

212 sobre a harmonia do século XVI ficaram estacionados desde então. Trabalhos de equivalente importância tratando a questão harmônica só foram retomados na primeira década do século XXI, especialmente os dirigidos por Piero Gargiulo e Marco Mangani (2004), este último, dedicado ao entendimento específico da estru- tura harmônica de Gesualdo. A comprovação deste espaço a ser preenchido nos estudos está na nova edição dos livros de madrigais que vem sendo preparada. Todas as edições feitas até hoje se basearam na de 1613, que tinha como editor o senhor Simone Molinaro32. O fato é que este editor também era um compositor e poderia ter to- mado decisões que extrapolassem seu papel de editor, alterando detalhes que podem ser relevantes ao entendimento musical. Esta reflexão foi levantada pelo professor da Universidade de Ferrara, e já citado neste texto, Marco Mangani que compõe o grupo de pesquisadores atualmente dedicados a uma nova edição críti- ca destes livros de madrigais. O projeto visa elaborar uma edição que investigue as possíveis alterações e proporcione novas alternativas de execução. Esta pro- posta só se viabiliza nos dias de hoje por conta dos avanços que a musicologia atual conheceu, mas ao mesmo tempo evidencia o quão inicial está o estágio, vis- to que mediante os resultados desta nova edição podemos ter alterações significa- tivas na compreensão destes madrigais. Outra importante fonte de desenvolvimento está nos registros fonográfi- cos realizados recentemente. Em 2010 o grupo europeu The Kassiopeia Quintet fez o registro completo dos seis livros de Gesualdo. No ano de 2014, foi a vez do grupo italiano Delitiae Musicae lançar o seu registro da mesma obra, gravado ao longo dos três anos anteriores. Chama atenção o fato destas gravações recentes terem se tornado referências mesmo se utilizando de visões interpretativas distin- tas. O registro do The Kassiopeia foi realizado a partir de um grupo misto de solis- tas, em que vozes masculinas e femininas se dividem na escrita a cinco vozes a cappella. Já o grupo Delitiae Musicae interpreta os madrigais somente com vozes

32 Ver página 170.

213 masculinas e o uso, eventual, de cravo ou órgão. Estas visões diferentes sobre a concepção da obra são respaldadas pela falta de um parâmetro assertivo sobre como deveriam ser feitas, o que contribuem para futuras experiências e pesquisas sobre o assunto. Mesmo quando comparamos estes dois registros com outros mais antigos, como por exemplo, o realizado pelo maestro italiano Rinaldo Ales- sandrini ao longo da última década do século XX e também pelo grupo La Venexi- ana sob a direção de Claudio Cavina, percebemos o desenvolvimento da concep- ção artística que ainda está na busca de uma forma ideal de interpretação. Após a pesquisa e a observação deste repertório de forma ininterrupta durante os últimos quatro anos, este pesquisador acredita que muito ainda deve ser relacionado no entorno do compositor para que se possa entender melhor sua linguagem. Os caminhos que devem ser percorridos na sequência deste trabalho é relacionar a linguagem empregada nestas obras seculares, e essencialmente amorosas, com a obra sacra do compositor. O conjunto de Canções Sacras, que constituem dois livros, e os motetos que formam a obra Responsorie, de 1611, apresentam a linguagem musical de Gesualdo a partir de uma forma textual pré- definida, não permitindo ao compositor manipular o texto de suas composições. Disto resulta que o ideal poético que fora investigado por esta pesquisa deverá ser analisado de outra forma e, certamente, renderá informações e novas característi- cas que podem contribuir para o entendimento geral da obra do compositor. O ponto principal para o desenvolvimento futuro deste tema será a con- junção dos elementos aqui levantados de forma a se entender melhor os últimos anos do Renascimento musical. A visão preponderante até hoje, de Carlo Gesual- do como um compositor à parte de seu tempo representando um segmento único e específico daqueles anos, poderá ser ampliada para uma visão em que este mesmo compositor assuma o papel de representante de uma linha estética maior. Para isto, aquele momento artístico que resultou do ápice musical do Renascimen- to deve ser ainda objeto de várias pesquisas e investigações que nos apresente respostas para muitas perguntas que estão colocadas e, principalmente, para as que ainda estão por serem feitas.

214

Diante disto, conclui-se que, apesar dos avanços já conquistados, este trabalho de buscar um entendimento mais profundo sobre a obra de Carlo Gesu- aldo ainda está no começo.

215

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223

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APÊNDICE

Livro I33

I - Prima Parte: Baci soavi e cari Primeira Parte: Beijos suaves e ternos

II - Seconda Parte: Quanto ha di dolce Amore Segunda Parte: Quanto têm de doce Amor

III - Madonna, io ben vorrei Minha senhora, eu bem gostaria

IV - Come esser può ch’io viva se m’uccidi? Como posso continuar vivo se me mata?

V - Gelo ha Madonna il seno Minha senhora, há gelo em seu peito

VI - Prima Parte: Mentre Madonna Primeira Parte: Enquanto, minha senhora

VII - Seconda Parte: Ahi, troppo saggia nell’errar Segunada Parte: Ah, muita sabedoria no erro

VIII - Se da sì nobil mano De suas nobres mãos

IX - Amor, pace non chero Amor, paz eu não quero

X - Sì gioioso mi fanno Quão alegre me faz

XI - O dolce mio martire O meu doce martirio

XII - Prima Parte: Tirsi morir volea Primeira Parte: Tirsi queria morrer

33 Consta neste apêndice os títulos de todos os madrigais dos seis livros do compositor com suas respectivas traduções.

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XIII - Seconda Parte: Frenò Tirsi il desio Segunda Parte: Tirsi conquistou seu desejo

XIV - Mentre, mia stella, miri Enquanto, minha estrela, observa

XV - Non mirar, non mirare Não olhar, não olhar

XVI - Questi leggiadri odorosetti fiori Estas graciosas e perfumadas flores

XVII - Prima Parte: Felice Primavera! Primeira Parte: Feliz Primavera!

XVIII - Seconda Parte: Danzan le Ninfe Segunda Parte: Dançam as Ninfas

XIX - Son sì belle le rose São tão belas as rosas

XX - Bella Angioletta Belo pequeno anjo

Livro II

I - Prima Parte: Caro, amoroso neo Primeira Parte: Cara, amorosa mancha

II - Seconda Parte: Ma se tale há costei Segunda Parte: Embora ela tenha estas falhas

III - Hai rotto e sciolto e spento a poco a poco Você quebrou e soltou e extinguiu pouco a pouco

IV - Prima Parte: Se per lieve ferita Primeira Parte: É tão leve a ferida

V - Seconda Parte: Che sentir deve il petto Segunda Parte: O que deve sentir meu peito

VI - In più leggiadro velo No mais frágil véu

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VII - Prima Parte: Se così dolce è il duolo Primeira Parte: Se tão doce é a dor

VIII - Seconda Parte: Ma se avverrà ch’io moía Segunda Parte: Mas se acontecer que eu morra.

IX - Se taccio, il duol s’avanza Se me calo, a dor avança

X - Prima Parte: O come è gran martire Primeira Parte: Oh, como é grande o martírio

XI - Seconda Parte: O mio soave ardore Segunda Parte: O meu soave ardor

XII - Sento che nel partire Sinto na partida

XIII - Prima Parte: Non è questa la mano Primeira Parte: Não é esta a mão

XIV - Seconda Parte: Nè tien face o saetta Segunda Parte: Não tem face nem flecha

XV - Candida man qual neve Mãos candidas como a neve

XVI - Prima Parte: Dalle odorate spoglie Primeira Parte: De suas perfumadas vestes

XVII - Seconda Parte: E quella arpa felice Segunda Parte: E aquela feliz arpa

XVIII - Non mai non cangerò Nunca mais eu mudarei

XIX - All’apparir di quelle luci ardenti No aparecer daquelas ardente luzes

XX - Non mi toglia il ben mio Não me tire o meu bem

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Livro III

I - Prima Parte: Voi volete ch’io mora Primeira Parte: Vós quereis que eu morra

II - Seconda Parte: Moro o non moro Segunda Parte: Morro ou não morro

III - Ahi, desperata vita Oh, vida desesperada

IV - Languisco e moro Definho e morro

V - Del bel de’bei vostri occhi Na beleza de seus olhos

VI - Ahi, dispietata e cruda Ah, impiedosa e cruel

VII - Dolce spirto d’Amore Doce espirito do Amor

VIII - Prima Parte: Sospirava il mio core Primeira Parte: Sospirava o meu coração

IX - Seconda Parte: O mal nati messaggi Segunda Parte: O malfadadas mensagens

X - Veggio sì dal mio sole Vejo sim o meu sol

XI - “Non t’amo” – o voce ingrata! “Não te amo” – Oh voz ingrata!

XII - Prima Parte: Meraviglia d’Amore Primeira Parte: Maravilha do Amor

XIII - Seconda Parte: Ed ardo e vivo Segunda Parte: Eu ardo e vivo

XIV - Crudelissima doglia! Cruelíssima dor!

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XV - Se piange, ohimè, la donna del mio core Se choras, ai de mim, a senhora do meu coração

XVI - Ancidete pur, grievi martiri Me mate, graves martirios

XVII - Se vi miro pietosa Se eu te vejo piedosa

XVIII - Deh, se già fu crudele Ah, se já foi cruel

XIX - Dolcissimo sospiro Docíssimo suspiro

XX - Donna se m’ancidete ( a sei voci) Senhora, se me mata (a seis vozes)

Livro IV

I - Luci serene e chiare Luzes serenas e claras

II - Tal’hor sano desio Na hora um sincero desejo

III - Prima Parte: Io tacerò Primeira Parte: Eu silenciarei

IV - Seconda Parte: In van dunque, o crudele Segunda Parte: É, pois, em vão, o cruel

V - Che fai meco mio cor O que fará comigo, meu coração

VI - Questa crudele e pia Esta cruel e piedosa

VII - Prima Parte: Hor che in gioia Primeira Parte: Como acreditava na alegria

VIII - Seconda Parte: O sempre crudo Amore Segunda Parte: O amor sempre cruel

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IX - Prima Parte: Cor mio, deh, non piangete Primeira Parte: Meu amor, não chore

X - Seconda Parte: Dunque non m’offendete Segunda Parte: Então, não me ofenda

XI - Sparge la morte Espalha-se a morte

XII - Prima Parte: Moro, e mentre sospiro Primeira Parte: Morro, e então suspiro

XIII - Seconda Parte: Quando di lui la sospirata vita Segunda Parte: Quando seu último suspiro de vida

XIV - Mentre gira costei Enquanto ela se transforma

XV - A voi, mentre il mio core A você, enquanto meu coração

XVI - Prima Parte: Ecco, morirò dunque Primeira Parte: Então, eu morrerei

XVII - Seconda Parte: Ahi, già mi discoloro Segunda Parte: Ah, já me empalideço

XVIII - Arde il mio cor Arde o meu coração

XIX - Se chiudete nel core Se fechares o coração

XX - Prima Parte: Il sol, qual or più splende Primeira Parte: O sol, igual ou mais brilhante

XXI - Seconda Parte: Volgi, mia luce Segunda Parte: Volta, minha luz

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Livro V

I - Gioite voi canto Alegra-te com seu canto

II - S’io on miro non moro Se não vejo não morro

III - Itene, o miei sospiri Voe, minhas queixas

IV - Dolcissima mia vita Minha doce vida

V - O dolorosa gioia O alegria dolorosa

VI - Qual fora, donna, un dolce “oimè” d”Amore Que uso, minha senhora, um doce “ai de mim! De Amor

VII - Felicissimo sonno Oh feliz sono

VIII - Se vi duol il mio duolo Se ti dói a minha dor

IX - Occhi del mio cor vita Olhos, vida de meu coração

X - Languisce al fin Definho ao fim

XI - “Mercè” grido piangendo “Misericordia” grito chorando

XII - O voi, tropo felici Oh, pessoa afortunada

XIII - Correte, amanti, a prova Corra, amantes, ao teste

XIV - Asciugate i begli occhi Enxugai os belos olhos

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XV - Tu m’uccidi, o crudele Vós me matai, o cruel

XVI - Deh, coprite il bel seno Oh, cobri-te o belo seio

XVII - Prima Parte: Poichè l’avida sete Primeira Parte: Uma vez que a sede é insaciável

XVIII - Seconda Parte: Ma tu, cagion Segunda Parte: Mas tu, causa

XIX - O tenebroso giorno O dia sombrio

XX - Se tu fuggi, io non resto Se tu fugires, eu não permaneço

XXI - T ’amo, mia vita Te amo, minha vida

Livro VI

I - Se la mia morte brami Se anseia a minha morte

II - Beltà, poi che t’assenti Oh beleza, desde que se ausentou

III - Tu piangi, o Filli mia Tu choras, minha Filli

IV - Resta di darmi noia Deixe de me aborrecer

V - Chiaro risplender suole Claro e resplendente sol

VI - “Io parto” e non più dissi “ Eu partirei” e não mais disse

VII - Mille volte il dì moro Mil vezes eu morro

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VIII - O dolce mio tesoro O meu doce tesouro

IX - Deh, come in van sospiro Oh, como suspiro em vão

X - Io pur respiro in così gran dolore Eu ainda respiro nesta grande dor

XI - Alme d’amor rubelle Almas rebeladas do amor

XII - Candido e verde fiore Alva e verde flor

XIII - Ardita Zanzaretta Ousada mosquitinha

XIV - Ardo per te, mio bene Ardo por você, meu bem

XV - Ancide sol la morte Só a morte pode matar

XVI - Quel ‘no’ crudel Que cruel “não”

XVII - Moro, lasso, al mio duolo Morro, definhando, do meu sofrimento

XVIII - Volan quasi farfalle Voam como borboletas

XIX - Al mio gioir il ciel si fa sereno Na minha alegria o céu se faz sereno

XX - Tu segui, o bela Clori Vós seguis, o fada Clori

XXI - Ancor che per amarti Embora por te amar

XXII - Già piansi nel dolore Já chorei pela dor

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XXIII - Quando ridente e bela Quão bela e feliz

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