Ponto Urbe Revista do núcleo de antropologia urbana da USP

15 | 2014 Ponto Urbe 15

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/2013 DOI: 10.4000/pontourbe.2013 ISSN: 1981-3341

Editora Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo

Refêrencia eletrónica Ponto Urbe, 15 | 2014, « Ponto Urbe 15 » [Online], posto online no dia 30 dezembro 2014, consultado o 23 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/2013 ; DOI : https://doi.org/ 10.4000/pontourbe.2013

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SUMÁRIO

Ponto Urbe 15

Artigos

A percepção na montagem fílmica como processo de ordenação interior: filmes produzidos por jovens em Sapopemba - periferia de São Paulo Eveline Stella de Araujo e Paulo Rogério Gallo

O modo de vida urbano: pensando as metrópoles a partir das obras de Georg Simmel e Louis Wirth Henrique Fernandes Antunes

Copa, Estrela e Coração – as cores e os sentidos de Parintins/AM durante a Copa do Mundo no Brasil e o Festival Folclórico do Boi-Bumbá Ana Letícia de Fiori e Renan Albuquerque Rodrigues

Mobilização Kaingang para a Copa 2014 – notas etnográficas a partir de Porto Alegre Herbert Walter Hermann e Arlei Sander Damo

Medical Drug or Shamanic Power Plant: The Uses of Kambô in Brazil Beatriz Caiuby Labate e Edilene Coffaci de Lima

O Circuito: proposta de delimitação da categoria José Guilherme Cantor Magnani

Circuito: propuesta de delimitación de la categoría José Guilherme C. Magnani

O Cariri e o forró eletrônico. Percurso de uma pesquisa sobre festa, gênero e criação Roberto Marques

A iconoclastia sagrada de Márcia X.: arte contemporânea, performance e religião Paola Lins de Oliveira

Pensando corpo, gênero e sexualidade em contexto sado-fetichista Marcelle Jacinto da Silva e Antonio Crístian Saraiva Paiva

Etnográficas

Sociabilidade e reivindicações na ocupação Copa do Povo Javier Barneche

Concentração da torcida coreana no bairro do Bom Retiro Jung Yun Chi

Relato sobre a Copa do Mundo: os deslocamentos pela cidade em dias de jogos Carolina Gontijo Lopes

Quando o Centro é Itaquera: relatos de múltiplas Copas Giancarlo Marques Carraro Machado

Entre belgas, brasileiros e simpatizantes: etnografia de uma torcida eventual Oliver Van Sluys Menck

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Dossiê: Novos olhares sobre o Rio de Janeiro

Vários Rios: Paisagens, lugares e memórias... Edlaine de Campos Gomes

Espólio Arquitetônico: partilha, circulação e retorno do patrimônio demolido Alberto Goyena

Nas ruas dos cinemas, cinemas nas ruas, cinemas de rua: a cidade como uma questão cinematográfica Márcia Bessa e Wilson Oliveira Filho

Religião, grafite e projetos de cidade: embates entre “cristianismo da batalha” e “cristianismo motivacional” na arte efêmera urbana Christina Vital

O Morro do Pasmado e suas cidades virtuais: do Correio da Manhã à nova militância das favelas Júlio Bizarria

Patrimônios Culturais e Imaginários Urbanos: apropriações do espaço público pelos mercados no Rio de Janeiro Nina Pinheiro Bitar

Memórias anfitriãs: interações, dádiva e hospitalidade em Santa Teresa (RJ) Renée Louise Gisele da Silva Maia

Shopping-chão: identidade e circulação de pessoas e objetos em uma feira de “antiguidades” e “usados” no Centro do Rio de Janeiro Douglas de Souza Evangelista

Outros rios

Salve São Miguel Arcanjo: a Umbanda em Procissão Anderson Soares Gaspar

Festas e espaços em transformação: a Caninha Verde em Vassouras-RJ André Jacques Martins Monteiro

Cir-kula

Lévi-Strauss, Rousseau e o fim da filosofia Pedro Paulo Pimenta

Pajelanças indígena e cabocla no Baixo Amazonas/AM e suas implicações a partir de questão histórica Renan Albuquerque Rodrigues, Deilson do Carmo Trindade, Ignês Tereza Peixoto Paiva e Raimundo Dejard Vieira Filho

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Ensaios fotográficos

São Francisco: arte urbana e história Caroline Kwasnicki Pereira

Tradução

Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França Didier Fassin

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1 Nesta décima quinta edição, a revista eletrônica do NAU, Ponto Urbe, apresenta na seção Artigos nove textos: Henrique Fernandes Antunes trata da relação entre os sociólogos Georg Simmel e Louis Wirth e as metrópoles nas quais pautaram seus estudos; Eveline Stella de Araujo e Paulo Rogério Gallo analisam os processos de montagem em filmes produzidos por jovens de periferia; e Ana Letícia de Fiori e Renan Albuquerque Rodrigues contrapõem a busca de uma brasilidade unida pela Seleção Brasileira de Futebol e a rivalidade constitutiva entre os Bois-Bumbás Caprichoso e Garantido na cidade de Parintins/AM. Herbert Walter Hermann e Arlei Sander Damo descrevem a relação do coletivo indígena Kaingang com a Copa do Mundo em Porto Alegre. Beatriz Caiuby Labate e Edilene Coffaci de Lima apresentam uma etnografia da difusão do kambô e analisam o discurso elaborado sobre o uso da secreção, compreendida por alguns como uma espécie de ‘planta de poder’. José Guilherme Cantor Magnani realiza uma revisão da categoria “circuito” com base nas recentes incursões a campo do Núcleo de Antropologia urbana da USP. Roberto Marques discute como as festas de forró eletrônico desafiam a percepção dos espaços interação palco- plateia, os usos da tecnologia e as figurações de gênero. Paola Lins de Oliveira analisa as relações entre arte contemporânea e religião na obra da artista plástica e performer carioca Márcia X. E, Marcelle Jacinto da Silva e Antonio Crístian Saraiva Paiva refletem sobre como corpo, sexualidade e gênero são articulados no contexto das práticas do sadomasoquismo erótico ou BDSM.

2 A secção Etnográficas apresenta cinco relatos de campo sobre os desdobramentos da Copa do Mundo, realizada no Brasil entre junho e julho de 2014, especificamente na Cidade de São Paulo, onde ocorreu a abertura do evento. Javier Barneche descreve o evento “Vai ter Pagode”, organizado pelo MTST na ocupação “Copa do Povo”, no bairro de Itaquera, em São Paulo-SP. Jung Yun Chi trata da concentração da torcida coreana no bairro do Bom Retiro. Carolina Gontijo Lopes observa os deslocamentos dos citadinos no dia da abertura do evento. Giancarlo Machado relata a expedição etnográfica realizada pelo Núcleo de Antropologia Urbana à região de Itaquera, Zona Leste paulistana durante a Copa do Mundo. Oliver Van Sluys Menck acompanhou a torcida reunida no bar Belga Corner, um ponto de encontro dos belgas em São Paulo para acompanhar os jogos.

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3 Nesse número, a Ponto Urbe traz também o Dossiê “Novos olhares sobre o Rio de janeiro” organizado por Edlaine de Campos Gomes. O artigo de Alberto Goyena os resíduos arquitetônicos de edifícios demolidos como “mecanismo mnemônico de coletividades urbanas”, Marcia Bessa e Wilson Oliveira tratam dos cinemas de rua, Christina Vital analisa imagens de cunho religioso impressas nos muros da Favela de Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, Júlio Bizarria aborda a remoção da favela do Morro do Pasmado, que se localizava em Botafogo, em pleno coração da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, Nina Pinheiro Bitar analisa as transformações que ocorrem o “novo” Mercado Municipal da cidade do Rio de Janeiro e a sua relação com as “revitalizações” que acontecem na cidade. Renée Maia aborda os encontros e relações estabelecidas entre hóspedes e hospedeiros em tipo hospedagens de tipo “cama e café” localizadas no bairro de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro. André Monteiro estuda as transformações ocorridas na transição do século XIX para o XX no município de Vassouras, localizado no Vale do Paraíba Fluminense no Estado do Rio de Janeiro, através da trajetória de uma prática festiva que marcou os antigos carnavais desta cidade: a Caninha Verde. O dossiê conta ainda com um relato etnográfico e um ensaio fotográfico. Douglas Evangelista, em sua etnográfica, aborda a circulação e o consumo de objetos em feiras de usados e antiguidades. Anderson Soares Gaspar, em seu ensaio fotográfico, apresenta o evento umbandista realizado, desde 1966, em homenagem a São Miguel Arcanjo.

4 A seção Cir-kula, destinada a divulgar textos de outras áreas, mas em diálogo com a Antropologia, traz duas contribuições. A primeira, de Pedro Paulo Pimenta, examina como Lévi-Strauss, apoiando-se em Rousseau, avalia a situação da filosofia frente às ciências humanas. A segunda, de uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas, explora a ressignificação efetivada por terapeutas populares da cidade de Parintins/AM a partir de marcos indígenas da região do Baixo Amazonas.

5 A seção Ensaios Fotográficos traz trabalho intitulado São Francisco: arte urbana e história, de Caroline Kwasnicki Pereira sobre o evento realizado na Rua São Francisco, localizada no centro de Curitiba – PR, com o objetivo colorir as portas dos comércios do local, promovendo e valorizando a região.

6 E, por último, a seção Tradução deste número apresenta o texto Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França, de 2005, escrito por Didier Fassin e traduzido por Gleicy Mailly da Silva e Pedro Lopes.

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Artigos

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A percepção na montagem fílmica como processo de ordenação interior: filmes produzidos por jovens em Sapopemba - periferia de São Paulo

Eveline Stella de Araujo e Paulo Rogério Gallo

“Criar é tão fácil ou difícil como viver. E é do mesmo modo necessário.” Fayga Ostrower (2013 [1977]:166)

1 Este artigo1 analisa processos de montagem em filmes produzidos por jovens de Sapopemba, periferia de São Paulo. Ao analisar processos criativos2 na produção fílmica com jovens do Centro de Juventude da Sociedade Amigos do Bairro de Sapopemba pretende-se evidenciar os critérios de inclusão e exclusão das imagens produzidas para a realização dos filmes. A parceria estreita entre roteiro e montagem (Carrière:1996) permitiu analisar o discurso nativo sobre o que “deveria aparecer” nos filmes, a percepção idealizada do socialmente visto, e o que efetivamente é colocado na montagem. Estes revelam “o que eu quero ver no filme que estou produzindo”, ou seja, a percepção do mundo desejado, evidenciando que a prática exige escolhas e definições reveladoras tanto do social quanto do imaginário. Estas escolhas acontecem em meio a uma série de contingências da realização fílmica, sejam elas financeiras, estruturais, e/ ou pessoais.

2 As reflexões de duas antropólogas-cineastas foram fundamentais para pensar o papel desta pesquisadora em campo, visto que a pesquisa realizada tem como propósito a produção de um documentário etnográfico, bem como a produção de conhecimento compartilhado na experiência de produção fílmica conjunta. De Catarina Alves importa a discussão que faz sobre a função do roteiro na produção de filmes etnográficos e os processos de representação. De Rose Satiko são caras suas reflexões sobre a construção do significado na percepção das relações entre pesquisador e pesquisado, e a

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apropriação da linguagem fílmica pelos informantes da pesquisa na construção de narrativas fílmicas a partir dos diversos repertórios vividos, como a música, por exemplo.

3 Rose Satiko pesquisou em contextos relacionados ao trabalho com arte-educação sob condições sociais adversas, como o Projeto Guri, com a produção dos curta-metragens Vírus da música (2004) e Pulso: um vídeo com Alessandra (2006); em outra pesquisa ela atuou com jovens privados da liberdade - internos da Fundação Casa, com a produção do curta-metragem Microfone, Senhora (2003). Uma de suas observações nessas produções é que o aprendizado artístico cria sensibilidades e consciência: “...a prática artística era um meio, para esses jovens, de construção de imagens, sensibilidades e identidades que se sobrepunham a autoimagens e estereótipos ligados ao universo da juventude, da pobreza e as associações constantes deste à criminalidade e à violência urbana” (Hikiji 2009:144). A produção de um filme em conjunto surge como uma possibilidade de diálogo com os sujeitos da pesquisa, inspirada nas propostas de Jean Rouch sobre antropologia compartilhada. Esta perspectiva implicou em processos reflexivos e dialógicos, entre pesquisador e pesquisado, nos quais os sujeitos da pesquisa são construídos na interação para a realização do filme. Pensando sobre a afirmação de Mac Dougall sobre fazer filme ser um “modo de esculpir a experiência”, em Microfone, Senhora (2003) foi esculpida “a criação da visibilidade por sujeitos marcados pela invisibilidade”, no qual um jovem da Fundação Casa torna-se o protagonista do filme a partir da percepção de que poderia ter voz, ao solicitar o microfone da pesquisadora. Em Pulso: Um vídeo com Alessandra (2006) a experiência esculpida foi a ressignificação dos espaços como a casa (negação do espaço pelos adultos) e a rua (interdito referido ao perigo pelos adultos), para casa como uma conquista de espaço para o estudo e a rua como sociabilização da prática artística.

4 Nos filmes Vírus da Música (2004) e Pulso: Um vídeo com Alessandra (2006) a montagem foi regida pelo ritmo musical das narrativas, um entrosamento sensível entre sons e imagens, marcados pela concentração, paciência e repetição tão exigidos na prática musical. Mas, foi a reelaboração de si enquanto sujeitos sociais a partir da relação de colaboração entre os pesquisados e a pesquisadora que marcou o vínculo estabelecido. Rose Satiko comenta que ao elaborar o artigo - Vídeo, música e antropologia compartilhada: Uma experiência intersubjetiva (2009) - “quase que totalmente antes da edição final de Pulso:Um vídeo com Alessandra, o mesmo funcionou como “uma espécie de roteiro conceitual para o vídeo”. O que reforça a necessidade de algum tipo de escrita associado ao fazer fílmico, seja um roteiro ou anotações sobre as decupagens, ou um esboço que organize a montagem. Para Rose Satiko, a mídia visual permite construir conhecimento por ‘familiarização’, compreende-se com isso que a proximidade de universos produzida pelas opções das construções narrativas permite a introjeção do conhecimento pela identificação do mesmo com uma percepção interior de ordenamento do mundo (Ostrower 2013), o que o torna não apenas lógico mas significativo para todos os envolvidos no processo de feitura e visionamento do filme.

5 A escrita, como processo de reflexão e definidora de intenções importantes para a condução do filme, é a fase do processo criativo que revela a ordenação interior do realizador e a coloca em causa com o exterior, na dialogia com seus pesquisados. Revela e organiza o vivido, o imaginário, e a compreensão da percepção que temos sobre ambos.

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6 Nesse sentido, Catarina Alves (2009) reforça a importância do processo de pesquisa preliminar e definição do campo; da escrita do roteiro; da reescrita desse roteiro durante o processo de montagem como metodologia de produção do conhecimento por meio do cinema. Procurando responder a pergunta: “Como escrever um projeto com base numa ação cuja continuidade se desconhece?”, Catarina Alves fornece indicações desse processo de escrita. Ela parte da pesquisa campo e teórica que antecede a gravação para conhecer em profundidade os protagonistas, as tensões que envolvem o contexto de gravação; isso lhe permite projetar numa espécie de “antevisão” às possibilidades de diálogo e conflitos, desenhando um projeto de narrativa possível, que será construído efetivamente na medida em que as imagens são analisadas diariamente após o término das filmagens, proporcionando uma reflexão desta mesma narrativa com suas alterações ou consistências em relação ao projeto inicial. O roteiro como lugar de onde partem as reflexões e para onde elas convergem: “A escrita é um processo importantíssimo no cinema. Para mim, depende um bocado das condições de produção. Por exemplo, no filme O Arquitecto e a Cidade Velha tive dinheiro para estar mesmo a escrever num atelier com tutores e ajuda de colegas. (...) Vai-se pondo tudo no papel, o projecto é algo que vai nascer no papel: vão-se colocando as cenas, vão-se colocando os personagens e os contactos dos personagens, vai-se tentando construir uma série de situações. Depois, há uma pesquisa que envolve ler livros, consultar filmes, tudo isso. Acho que um dossier de documentário deve ser um dossier escrito e bastante completo. A escrita é importante como processo para se chegar aonde queremos, mesmo que depois no momento da rodagem não estejamos agarrados ao guião” (Alves 2011).

7 O roteiro sofre alterações durante o processo de gravação e de montagem de acordo com a dinâmica dos acontecimentos e tensões do campo. Potencializa as possibilidades de construção das narrativas e antecipa soluções para os impasses e desafios da filmagem.

8 Com uma produção fílmica que compreende títulos como Senhora Aparecida (1994), Swagatam (1998), realizados em Portugal e Mais Alma (2001), O Arquitecto e a Cidade Velha (2003), realizados em Cabo Verde, a realizadora entende que a Antropologia Fílmica “deve ser capaz de mostrar o sentido profundo, do interior de uma sociedade, em vez de apresentar as coisas de um modo didáctico, do exterior” (1998: 4). A câmera, para Catarina Alves é muito mais do que um modo de documentar a realidade; é um meio de expressão para examinar em detalhe a vida social, podendo o filme representar o evento observado; ela reforça que a representação fílmica deve estar em constante diálogo com a representação que aqueles que participam do filme têm de si mesmos. Catarina Alves segue as proposições do cinema observacional, na vertente de MacDougall (1998), e adota a noção do filme como um trabalho compósito no cruzamento de perspectivas culturais, pensado a partir de uma reflexividade profunda que se constitua das ambiguidades e do tempo de espera, tornando-os visíveis, trazendo elementos familiarizadores para que o espectador possa se posicionar no contexto apresentado. A câmera, para ela, é um elemento ativo e catalisador da relação triangulada entre o realizador do filme, os personagens e a audiência, a partir de eventos e interpretações significativas.

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Condições da etnografia fílmica em Sapopemba

9 Com essas reflexões, passamos para nossa própria experiência de antropologia fílmica compartilhada, quando em 2012, sugerimos a um grupo de jovens (14-24 anos) do Centro de Juventude da Sociedade Amigos do Bairro de Sapopemba (CJ/SAB- Sapopemba) que produzissem filmes para participar do Festival do Minuto - festival de filmes promovido pela internet com várias categorias, incluindo o Minuto Escola destinado para alunos de escolas públicas. Na época, como parte da estratégia de observação acompanhamos uma formação edição com Movie Maker, ministrada por um professor do próprio CJ. Depois de algumas semanas discutindo e propondo exercícios conjuntos para desenvolver alguma curiosidade sobre o fazer fílmico e também para que os jovens se familiarizassem com a introdução da câmera no dia a dia deles (foi utilizada uma câmera fotográfica digital comum que possui a função ‘filmar’), e contando com um conhecimento básico em fotografia gerado por uma oficina paralela ministrada na mesma época e outra oficina de Graffiti, foi pensado um roteiro colaborativo onde eles indicavam os temas que estavam mais próximos do seu cotidiano numa espécie de brainstorm. Foi assim a primeira experiência concreta de filmagem. Discutimos um roteiro, ou podemos chamar uma anotação de sequência pouco definida de cenas, procurando alinhavar os temas levantados por eles. Dentre esses estavam um jogo de futebol entre amigos, uma briga de marido e mulher, meninos alheios ao fato desenhando em um espaço próximo, a dança e o grafite. Esses temas fizeram parte da encenação final, mas no processo de fomento de ideias ainda estavam presentes na narrativa o parkour (um tipo de corrida que tem como obstáculos as estruturas da cidade), o funk (música e baile) e o UFC (estilo de luta livre popular na televisão). Tal conjunto nos levou a pensar em uma apropriação bastante peculiar de alguns elementos do hip hop agregado a outras expressões locais. Na montagem final dos filmes eles colocaram somente as cenas abaixo:

Fotograma do filme “Junto e Misturado”, com imagens da primeira experiência fílmica coletiva, campo etnográfico em 2012.

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Fotograma do filme “Junto e Misturado”, sobre o desafio dançado entre a garota e o rapaz.

10 Outro fator bastante desafiador foi o acesso e a familiarização com a internet e as redes sociais, pois em grupo ficou estabelecido que teríamos uma conta na rede social Facebook para tirar dúvidas ou comentar sobre os roteiros e processos de filmagem durante o período de produção. O nome escolhido pelo grupo foi CjMinuto, que se tornou também o nome do projeto.

Logotipo desenvolvido pelos jovens do projeto CJ Minuto da turma de 2012 para foto do perfil no facebook.

A imagem da capa foi produzida em parceria com um dos jovens desenhistas do projeto Cine CJ 2014, que fez o sapo, o fundo foi feito pela pesquisadora. https:// www.facebook.com/cj.minuto

11 Três jovens comentaram que não entendiam nada de internet, que não tinham computador em casa e outro disse que não queria conta no Facebook por causa da igreja que ele frequentava; nesses casos acompanhamos a produção diretamente na formação de edição que receberam, até porque o Facebook para a pesquisadora foi pensado mais como uma estratégia de aproximação com os pesquisados, em um ambiente virtual e descontraído, no qual pudessem tratar de qualquer assunto, inclusive filmes. Houve todo o tipo de dificuldade: o sinal da internet bastante instável na região, o próprio

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regulamento do festival que entre outras formalidades trazia questões de direitos autorais de sons e imagens da internet, algo distante ainda da realidade vivida por esses jovens.

12 Apesar da recomendação para gravarem cenas não muito longas, com até 5 minutos cada para facilitar a edição, e que trouxessem os arquivos em todos os encontros para baixá-los no computador, tivemos algumas dificuldades relacionadas à falta de um habitus de produção, como o caso de um dos rapazes que gravou várias imagens no celular e depois de esquecer várias vezes de levar o cabo para baixá-las no computador ainda vendeu o celular com o chip das imagens. Assim, ele acabou gravando tudo novamente e aí sim terminou o filme em parceria com um outro colega do CJ, por sinal um dos melhores produzidos, o filme “Na Rua”. Nesse filme em particular é evidenciado como eles percebem a região onde moram, o lazer, a visualidade do espaço que habitam. Essa vivência me fez lembrar inevitavelmente da experiência vivida por Flaherty, entre os esquimós, quando a segunda versão produzida superou em muito a primeira, perdida em um incêndio acidental.

Fotograma do filme “Na Rua”

Fotograma do filme “Na Rua”

Fotograma do filme “Na Rua”

13 Houve ainda outra situação de produção bastante interessante e que ainda nos debruçamos sobre ela para entendê-la : um outro grupo com 8 rapazes - dos quais três não tinham muito acesso com a internet -, contou que não conseguiram gravar cenas curtas, mas um deles tivera a ideia de gravar sem corte a ida para o jogo de futebol. “Ficou meio grande e nem sei se vai dar para usar porque na hora do jogo ninguém quis gravar”, contou um deles. Pedi para ver a gravação e qual não foi minha surpresa: o

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filme estava pronto assim mesmo do começo ao fim, uma tomada que revelava todos os tipos de habitação, os modos de lazer das diversas idades, as diferenças de paisagem entre vielas, ruas esburacadas e grandes avenidas, as crianças da região e o modo de chamar cada colega para o jogo de futebol. Esse certamente não iria para o Festival do Minuto, mas cogitamos de enviá-lo para o Festival de Curta-Metragem de São Paulo. Eles não entenderam porque havíamos gostado tanto do filme e explicamos então a importância que aquelas imagens tinham por tornarem conhecido um universo em que as pessoas de fora do bairro tinham imensa dificuldade em acessar, principalmente pela cumplicidade entre quem gravou as imagens e o território mostrado. Neste grupo, quatro deles são desenhistas, e dois foram selecionados para um curso de animação no Instituto Criar, em São Paulo. Para o Festival do Minuto eles acabaram produzindo um filme com o nome “Enfim, futebol”, uma alusão ao primeiro filme com a parte do jogo. Mas, dando-se conta da referência preferiram mudar o nome para “Os Donos da Bola”.

14 Abaixo dois fotogramas da sequência sem corte: lazer e moradia no bairro de Sapopemba, pelo olhar dos jovens moradores.

Fotograma da cena sobre as diversas formas de lazer na região de Sapopemba, Zona Leste de São Paulo, gravadas em uma única sequência de 12 minutos, pelo grupo que fez o filme “Os Donos da Bola”, citado acima.

Fotograma da cena de moradia da região da mesma sequência mencionada ao lado. Quando chamavam um colega para o jogo de futebol.

Metodologia

15 A definição dos grupos ocorreu pela afetividade e afinidade: alguns foram formados somente por rapazes, em outros somente por garotas, e em menor número tivemos

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alguns grupos mistos. Para analisar os processos criativos procuramos estabelecer relações entre as narrativas construídas e a intenção inicial da realização do filme, considerando as dificuldades na produção e os processos de escolhas e soluções acionados por eles. Essa triangulação nos permitiu analisar os processos de exclusão das imagens, indicando por oposição os motivos das escolhas. A utilização dos elementos sonoros na composição do filme e as opções de montagem com elementos de corte, transição e outros recursos que deram a dinâmica dos filmes sinalizaram o quanto eles se apropriaram da linguagem fílmica como forma de expressão. Utilizamos para esta análise a noção de percepção desenvolvida por Ostrower (2013) sobre processos criativos, para ela “... a percepção consciente na ação humana se nos afigura como uma premissa básica da criação, pois além de resolver situações imediatas o homem é capaz de a elas se antecipar mentalmente”, estando vinculada, segundo a autora, com ordenações interiores, associadas aos processos afetivos e ao íntimo sentimento de vida, na construção de significados, pois ela considera que há no processo de criação uma integração do consciente, do sensível e do cultural.

16 Ao conversar sobre a intenção inicial dos filmes estimulando um processo de imaginação sobre o mesmo, permitimos aos jovens um deslocamento do real físico do objeto para o real da ideia do objeto e o falar sobre o que se desejava contar no filme projetou uma representação das coisas e dos conteúdos por esses jovens, possibilitando-os avaliar e significar a fala. Esta dinâmica na comunicação é estudada por Habermas (2012) e nos processos criativos, por Ostrower (2013), o que redunda numa dupla reflexividade: uma sobre o tema e outra sobre a representação desse tema. Pesquisar processos criativos é uma forma de acessar e compartilhar formas de ordenação interior, com seus referenciais afetivos e vividos, vê-los transformados da subjetividade para a objetividade em forma de expressão comunicativa e poder compartilhar esses referenciais e amplificá-los das possibilidades vividas pelo contato. Depois da primeira ida a campo, com duração de seis meses entre julho e dezembro de 2012, pudemos acompanhar pela relação mantida no Facebook algumas trajetórias e quão grato foi vê-los envolvidos em sonhos e projetos que os estimulam a intervir ou a melhorar a comunidade em que vivem. Muitos fizeram outras formações no campo das visualidades, outros buscaram na Pedagogia uma aproximação com a arte-educação, para valorização de seus territórios. O que pudemos acompanhar de perto foi a relação de um dos desenhistas com um pesquisador da Faculdade de Saúde Pública com dificuldade para encontrar alguém que desenhasse para ele um avatar cadeirante, necessário para a observação do processo de escolha de avatares por crianças com deficiência. Feita a mediação, o jovem fez o desenho e a pesquisa do meu colega teve continuidade sendo defendida com sucesso. O jovem foi nomeado como desenhista nos créditos da dissertação do mestrado, uma inserção inimaginável, produzida pelo vínculo e pela habilidade em gerar possibilidades de relações entre a universidade e o campo de pesquisa.

17 Em 2014, fizemos nova imersão de quatro meses no campo de pesquisa – de julho a outubro – com a proposta de que alguns jovens das oficinas de 2012 fizessem monitoria, na produção de filmes. Foram duas turmas : uma matutina e outra vespertina, a adesão à nova proposta foi voluntária. O objetivo foi a produção de um curta-metragem com duração entre cinco e quinze minutos, com roteiro discutido em equipe e o monitor fazendo as vezes de um diretor de arte na produção de um filme destinado à exibição em festival e também em blog. Novos desafios e novos contratempos: na turma da tarde

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a jovem responsável pela monitoria abandonou o posto no meio do processo e o monitor da turma da manhã acumulou as duas turmas, contando com o apoio de um colega e dois professores do CJ. A turma da tarde ficou desestimulada e muitos jovens desistiram de participar, o que prejudicou a produção do filme que acabou não sendo concluído, apesar de ter o roteiro pronto com o nome “Skate, rap e grafite”. Um roteiro mais simples foi proposto pelo monitor como forma de não deixá-los sem a oficina, sendo produzido em uma semana. Isso revela a importância de se estabelecer parcerias com vínculos contratuais para se ter alguma segurança no processo. Mas mesmo a turma da manhã na qual foi possível observar maior entrosamento e desejo na realização dos filmes, um dos roteiros sugeridos não foi finalizado - seria nomeado “O Sonho de Will” - , entretanto o ator que faria o papel principal começou a faltar e o filme acabou inconcluso. Sem qualquer tentativa de contornar o problema, a turma preferiu investir no primeiro filme “A esperança” já com o cronograma de filmagem praticamente concluído. Assim, foram realizados dois filmes com a turma da manhã: “A esperança” – sobre Zumbis e a luta pela sobrevivência que misturou a linguagem de cinema com HQ (História em quadrinhos) -, estratégia utilizada para compactar a narrativa, e “Momentos” - com os melhores momentos das gravações alternando com frases sobre a importância do trabalho em equipe -, a turma da tarde produziu um único filme “A Arte”, alternando falas dos jovens respondendo a pergunta “o que é Arte para você?” com fotos e frases. Seguem abaixo as capas dos filmes.

18 A pesquisadora realizou making of da produção de dois filmes: “A esperança” e o filme não finalizado “Skate, Rap e Grafite”.

Fotograma da cena de maquiagem do filme “A Esperança”, sobre zumbis e a luta pela sobre- vivência, turma da manhã, 2014.

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Fotograma do filme não finalizado “Skate, Rap e Grafite”.O making of da turma da tarde foi o filme pensado por eles com as descontinuidades de gravação, cenas inacabadas e performances de alguns jovens cantando.

Os filmes produzidos em 2014 foram exibidos em um festival organizado pela pesquisadora costituído pela produção de 2012, 2014 e outros filmes produzidos na região em oficinas anteriores referentes aos anos de 2006 (Oficinas Kinoforum), 2009 (Cine Tela Brasil), mais um longa metragem de 2010, “Cinema de Guerrilha”, de Evaldo Mocarzel (documentário sobre as Oficinas Kinoforum em Sapopemba). O festival foi nomeado como “Festival Curta Sapo: produção dos jovens cineastas de Sapopemba e filmografia da região”, o nome foi pensado por um dos jovens que afirmou que Sapopemba queria dizer sapo que pula, e com isso ficou definido o nome e a indicação para o desenhista que fez o sapo com a câmera de filmar e na cena da câmera desenhou uma pessoa andando de skate. A partir desse desenho desenvolvi a arte do e com os

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colegas do GEMA – Grupo de Estudos em Metodologia Aplicada- definimos as demais informações do banner . Este festival ocorreu na Fábrica de Cultura de Sapopemba em 16 de outubro de 2014 e no dia seguinte na Faculdade de Saúde Pública-USP, com a presença dos jovens de 2014, do monitor das oficinas, mais a coordenadora do CJ e a jornalista do SAB-Sapopemba.

19 O Festival Curta Sapo teve dupla função : a primeira, um encerramento do projeto e a segunda a possibidade de observação do visionamento. A reação dos jovens ao pediram para ver mais de uma vez o making of indica que queriam saber o olhar da pesquisadora sobre eles e alguns depois vieram comentar que poderia ter incluido outras cenas, e pediram cópia do material, para colocar na internet. Até o momento ainda espero algumas autorizações de imagens não entregues para disponibilizar o filme na internet e me comprometi a levar duas cópias em DVD com todos os filmes de 2012 a 2014, os making of e mais o documentário que está em fase de finalização.

20 O blog teve e tem o objetivo de tornar pública a produção realizada entre os anos de 2012 e 2014 e indicar toda a filmografia da região, funcionando como um arquivo e fazer a divulgação do material em uma escala mais ampla na rede virtual, pois o link do blog além de replicado no Facebook foi divulgado pela assessoria de imprensa da Faculdade de Saúde Pública da USP - http://www.fsp.usp.br/site/noticias/mostrar/ 4210 .

21 Na versão do Festival Curta Sapo na Faculdade de Saúde Pública-USP ainda que o público tenha sido pequeno, houve muito interesse em saber como foi desenvolvido o projeto a partir da noção de cinema como uma prática social, e qual o impacto dessa experiência na vida dos jovens da região; entre outras questões também questionou-se se alguns jovens teriam interesse em produzir mais filmes.

A realização do documentário etnográfico

22 Farei algumas reflexões sobre a nossa própria produção com base nos apontamentos sobre as produções das cineastas-antropólogas Rose Satiko e Catarina Alves. Pensei o filme etnográfico que deriva desta pesquisa em três planos: dos personagens, da narrativa e do design sonoro. Inicialmente, desenhando um plano geral da história e definindo cenas chaves. Depois, pensando nas conexões dos planos e nos significados da montagem proposta. Faço isso depois de refletir sobre o que Eisenstein (2002[1947]: 23) estabelece como imagem e representação. A representação compondo o fragmento e a repetição dessa ideia gerando a imagem, a noção do todo. Para ele, “apesar da imagem entrar na consciência e na percepção, através da agregação, cada detalhe é preservado nas sensações e na memória como parte do todo”, esta característica é válida tanto para o aspecto visual quanto para o sonoro, “uma série lembrada de elementos isolados” (Eisenstein 2002:21). Assim posso “esculpir a experiência” de campo e evidenciar os aspectos mais significativos da pesquisa, como por exemplo, a relação dos jovens com os vários equipamentos, onde estão sempre a editar e mexer no celular ao mesmo tempo; a capacidade performática na música, na dança e no desenho; as negociações do trabalho em equipe e a categoria “zoeira”, ou seja, “fazemos se for divertido” evidenciada no making of da pesquisadora a respeito do filme “A esperança”.

23 A história em si possui assim dois planos: o do enredo ou da narrativa mais explícita do documentário, e a mensagem ou subtexto que se quer fixar a partir dela. Por exemplo, a

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narrativa mais explícita deste documentário etnográfico é o processo criativo dos jovens da periferia de Sapopemba, que será contado a partir de três histórias de produção de filmes; a mensagem que pretendo trabalhar no subtexto é o potencial do grafite como uma extensão das histórias em quadrinhos e a sua capacidade de contar a história social do lugar a partir da lógica alternada entre representação e vazio, ou espaço em branco, que permite o desenvolvimento do imaginário. Esse insight surgiu quando indo de ônibus para o campo, depois de pegar dois metrôs, numa viagem que durava uma hora e 40 minutos, pude observar os grafites do caminho pelo retângulo da janela, com o ônibus chacoalhando acrescido da sonoridade característica da região, como se fosse um desenho animado feito com poucos quadros por segundo e com tremedeira. A ideia pareceu-me perfeita para tradução do campo. Escrevi essas reflexões em meio ao processo de montagem, ou seja, enquanto aguardava a renderização das cenas pelo programa de edição. Uma situação rouchiana de refletir sobre a prática no seu processo mesmo de fazer. Penso que para isso é necessário estar informado da teoria fílmica, dos processos de análise fílmica e dos vários métodos de montagem para afinar a percepção do campo com o potencial narrativo que este possa revelar. Nesta pesquisa não trabalhei com roteiro prévioe ele surgiu durante a análise dos arquivos de imagens, catalogados com palavras-chaves e descrição do potencial de utilização dos planos, com o cruzamento das informações do caderno de campo e da minha memória sobre o vivido. A reescrita, se assim a posso chamar, se deu a partir do enfrentamento com a teoria que justificava cada escolha e cada corte. Esse método pode evidentemente não ser o mais apropriado, mas é adequado para a lógica da descoberta com que o campo foi apreendido, permitindo à pesquisadora uma imersão sem predefinições sobre os participantes da pesquisa, deixando-se impactar e surpreender com o que via. É com essa sensação que espero impregnar o espectador.

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O Arquitecto e a Cidade Velha (2003). 72 min. Direção e realização: Catarina Alves Costa; imagem: João Ribeiro e Catarina Alves Costa; som: Olivier Blanc; montagem: Dominique Paris e Pedro Duarte; música: Tito Paris; mixagem de som: Jean-Marc Schick; étalonage: Philippe Couteax; produção: Laranja Azul; coprodução: Jour J Productions; produção executiva: Catarina Mourão; produtora-associada: Sylvie Randonneix; apoios financeiros: Icam, RTP, Media Distribuição, IA, Instituto para o Desenvolvimento, CNC, UNESCO, DAPA, Ministério dos Negócios Estrangeiros Francês, Voisénart, RAI SAT, Câmara Municipal do Porto. (https://www.youtube.com/watch? v=jAuCJEW1-pw ).

“Na Rua...”, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30233?locale=pt-BR

“Os Donos da Bola”, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30729?locale=pt-BR

“A Arte”, 2014

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“A esperança”, 2014: http://www.youtube.com/watch?v=dNsBKZ7zAjo&feature=youtu.be

“Momentos”, 2014: http://www.youtube.com/watch?v=lJ001o6ortI&feature=youtu.be

Referência dos canais utilizados para a divulgação do Festival Curta Sapo: https://www.facebook.com/cj.minuto http://festivalcurtasapo.blogspot.com.br/ http://www.fsp.usp.br/site/noticias/mostrar/4210 http://www.usp.br/agen/?p=190129

NOTAS

1. Este artigo inclui as considerações feitas ao trabalho intitulado A percepção na montagem fílmica: um processo de ordenação interior apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN, GT- 05: Antropologia da imagem, montagem e conhecimento. 2. Agradecimento à Profª DrªMaria da Penha Costa Vasconcellos pelas primeiras avaliações dos filmes do Projeto CJ Minuto.

RESUMOS

Este artigo analisa os processos de montagem em filmes produzidos por jovens de periferia, centralizando a atenção sobre os processos criativos, de inclusão e exclusão das imagens produzidas para a composição do filme e dos marcadores sociais e culturais utilizados. Considero esses filmes como formas de comunicar e mostrar o mundo em que esses jovens vivem. A parceria entre roteiro e montagem permitiu analisar o discurso sobre o que “deveria aparecer” nos filmes com a percepção idealizada do socialmente visto, e o que efetivamente é colocado nos filmes, à objetivação da percepção. As reflexões das antropólogas-cineastas Catarina Alves, sobre o roteiro na produção de filmes etnográficos e as representações fílmicas; e Rose Satiko, sobre a construção do significado na percepção das relações entre pesquisador e pesquisado, foram importantes para pensar o campo de pesquisa em questão, pois deriva deste campo um filme etnográfico realizado pela pesquisadora.

This article analyzes the assembly processes in films produced by young people from the outskirts, centering attention on the processes of creation, inclusion and exclusion of images produced for the composition of the film and the social and cultural references used. We can see these films as a way to communicate and make visible the world in which these young people live. The close partnership between script and mount allows you to analyze the discourse about what "should appear" in the movies with the idealized perception of the socially seen, and what is actually put into the movies, with the objectification of perception. Reflections from anthropologists, filmmakers Catherine Alves on the roadmap for the production of ethnographic films and filmic representations; and Rose Satiko on the construction of meaning in the perception of the relationship between researcher and researched, thought were important to

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the research field in question, because from him is to able the purpose of conducting an ethnographic film by the researcher.

ÍNDICE

Keywords: cinema, ethnographic film, young people, outskirts Palavras-chave: cinema, filmes etnográficos, jovens, periferia

AUTORES

EVELINE STELLA DE ARAUJO

Jornalista e antropóloga, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da USP, bolsista Capes-DS, integrante dos grupos de pesquisa CERNE-USP e do GEMA-USP. [email protected]

PAULO ROGÉRIO GALLO

Livre-docente da FSP/USP, coordenador do grupo de pesquisa GEMA-USP [email protected]

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O modo de vida urbano: pensando as metrópoles a partir das obras de Georg Simmel e Louis Wirth

Henrique Fernandes Antunes

1 As análises de Georg Simmel e Louis Wirth sobre o modo de vida nas metrópoles foram fundamentais para a constituição da sociologia e antropologia urbana enquanto campo de estudos. No entanto, Simmel e Wirth não apenas pensaram as grandes cidades e suas vicissitudes, mas vivenciaram-nas. Considerando tal afirmação, o presente ensaio não pretende se limitar a apresentar os principais conceitos e argumentos apresentados pelos autores, mas buscará demonstrar que sua produção intelectual foi fruto de uma intensa vivência nas metrópoles, na qual ambos se viram arrebatados pelas transformações e pelos novos problemas que estas apresentavam.

2 Deste modo, o trabalho possui dois objetivos: expor as análises de Simmel e Wirth sobre a vida nas grandes cidades e pensar o papel da relação entre pesquisador e metrópole a partir das experiências dos autores sob impacto das profundas transformações que ocorreram nas primeiras décadas do século XX em Berlim e Chicago. Além da análise conceitual, o ensaio buscará apresentar argumentos que possibilitem atestar que a obra dos autores é intrinsecamente devedora de suas vivências nas metrópoles, as quais não apenas os estimularam, mas forneceram um “laboratório” para o desenvolvimento de hipóteses e teorias sobre a vida nas grandes cidades e suas influências no modo de vida de seus habitantes.

Simmel e as particularidades da vida na metrópole

3 Em um clássico ensaio denominado “A metrópole e a vida mental”, Georg Simmel (1973 [1903]) propõe uma investigação que penetre no significado da vida moderna e que possa dar conta das exigências do modo de vida metropolitano. Para isso, o autor segue um percurso em que procura apontar as especificidades da vida na metrópole e de suas implicações, tendo como um dos eixos principais de análise as formas como a

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personalidade se acomoda nos ajustamentos às forças externas nas grandes cidades e as condições psicológicas que as metrópoles criam (Simmel 1973 [1903]: 11-12). Ao contrário da condição primitiva de luta contra a natureza, o ponto central do modo de vida moderno seria, de acordo com Simmel, uma tensão entre interior e exterior, individual e supraindividual (Waizbort 2013: 316). Assim, um dos problemas centrais da vida moderna estaria circunscrito no conflito entre indivíduo e sociedade. Para Simmel, seria necessário, portanto, investigar o tipo de individualidade que a cidade grande estimula e constitui.

4 Um dos pontos centrais em sua perspectiva parte do princípio que a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste em uma intensificação dos estímulos nervosos, resultado da alteração ininterrupta e brusca entre os estímulos exteriores e interiores. A rápida convergência de imagens em mudança, as descontinuidades presentes na apreensão rápida dos olhares e as impressões súbitas e inesperadas, dariam o tom dessa intensificação particular dos estímulos na vida da metrópole. Contrastando com a vida rural, com seu lento fluxo de estímulos sensoriais e a vida psíquica pautada no aspecto emocional, as metrópoles exigiriam de seus habitantes uma sensibilidade e uma vida psíquica capazes de se adequarem às vicissitudes da velocidade e heterogeneidade de estímulos que estas apresentam (Simmel 1973 [1903]: 11-12).

5 Segundo Waizbort (2013: 317), ao analisar o tipo de individualidade presente nas cidades grandes, Simmel tem em vista a caracterização de um tipo social determinado, em função das experiências a que estão sujeitos os metropolitanos pelo fato de viverem em grandes aglomerados. Ao contrário da lentidão habitual da vida rural e das cidades pequenas, na cidade grande os indivíduos se defrontam com uma variedade incomensurável e fugaz de imagens, as quais se apresentam à consciência ininterruptamente, de modo que a capacidade de atribuir sentido aos estímulos não acompanha a velocidade com que estes se apresentam aos indivíduos. Tal intensificação faz com que a noção de modernidade de Simmel esteja intrinsecamente associada ao movimento e à velocidade, fatores que influenciariam diretamente os processos que ocorrem no plano da consciência. A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. É precisamente nesta conexão que o caráter sofisticado da vida psíquica metropolitana se torna compreensível – enquanto oposição à vida da pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e emocionais. (Simmel 1973 [1903]: 12).

6 A oposição entre campo ou cidade pequena e as cidades grandes refere-se à polarização entre mais o lento e o mais rápido, entre o habitual e o que se recusa a tornar-se habitual devido às rápidas mudanças (Waizbort 2013: 317). Como ressalta Waizbort, a oposição em questão indica que o elemento que as diferencia é, sobretudo, de natureza quantitativa. Contudo, trata-se de uma diferença quantitativa que se torna qualitativa. Partindo dessa indicação, é possível destacar no ensaio de Simmel expressões que fazem referência a tal polarização, como por exemplo, a oposição entre intelecto e sentidos emocionais, cabeça e coração, razão e sentimento. Deste modo, a oposição apresentada por Simmel trata, sobretudo, de distinguir o tipo metropolitano, caracterizado por uma personalidade intelectualizada, calculista e reservada, do

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habitante da pequena cidade, cuja vida seria baseada em relacionamentos emocionais mais profundos (Magnani 2012: 19)1.

7 Seguindo essa linha argumentativa, Simmel aponta a predominância do intelecto sobre as emoções enquanto uma das principais características do habitante da metrópole. O intelecto seria a mais adaptável de nossas forças interiores, sendo fundamental para a acomodação às rápidas mudanças e aos contrastes de fenômenos característicos das grandes cidades. A vida na cidade grande implicaria, portanto, uma predominância da inteligência nos indivíduos, na medida em que a intelectualidade seria um dos principais fatores responsáveis por preservá-los contra os inúmeros estímulos e o poder avassalador das forças sociais (Simmel 1973 [1903]: 12-13). Assim, a cidade grande seria o lugar específico, próprio e adequado da atitude racionalista, a qual preservaria a vida subjetiva, atuando como um mecanismo de defesa diante da ameaça de desintegração devido à intensidade e velocidade dos impulsos nas metrópoles (Waizbort 2013: 318-319).

8 Outro eixo de análise importante para Simmel diz respeito às implicações ligadas ao fato das grandes cidades serem a sede da economia monetária. Para Simmel (1973 [1903]: 13), o domínio do intelecto e a economia monetária estão intrinsecamente ligados e ambos contribuem para tornarem prosaicos os indivíduos e as coisas. Destacando a racionalidade das operações e interações na metrópole, em oposição aos laços emotivos dos pequenos agrupamentos, Simmel argumenta que uma pessoa intelectualizada torna-se indiferente a toda individualidade. Na mesma medida, a economia monetária e o dinheiro fazem com que o indivíduo torne-se um elemento que é por si só indiferente, reduzindo todo aspecto qualitativo a um número, o qual pode ser quantificado e mensurado. A objetividade do intelecto e de dinheiro ignoraria as qualidades individuais, as quais seriam absorvidas pela indiferença, em contraposição ao sentimento e a subjetividade que preservariam a individualidade e a diferença. Assim, a objetividade no tratamento das coisas e dos homens propiciada pelo intelecto condiz com uma configuração histórica na qual a lógica do dinheiro prevalece (Waizbort 2013: 319).

9 Partindo dessa análise conjuntural, Simmel (1973 [1903]: 14) procura demonstrar que a vida moderna se tornou cada vez mais calculista, principalmente a partir da preponderância da economia do dinheiro, com suas determinações numéricas, a redução de valores qualitativos à quantitativos, seus pesos, medidas e cálculos. Simmel argumenta que as condições da vida nas cidades grandes são simultaneamente causa e efeito dessa exatidão calculista, cuja necessidade é criada pela agregação de um grande número de pessoas com interesses diferenciados, mas que devem integrar suas interações em um organismo altamente complexo o qual agrega todas as relações e atividades em um calendário impessoal e estável (Simmel 1973 [1903]: 15). A organização racional do tempo e do espaço seria, portanto, um fator fundamental para o fluxo da vida nas metrópoles, exigindo técnicas próprias e esquemas supraindividuais que organizariam a multiplicidade e variedade em movimento contínuo (Waizbort 2013: 320-321). Deste modo, o estilo de vida moderno, característico das grandes cidades, criaria condições e necessidades específicas de sensibilidade e comportamento, explicitando a necessidade de técnicas e comportamento estilizados, os quais envolveriam um alto grau de objetividade, exatidão, calculabilidade, pontualidade e praticidade.

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10 Na leitura do sociólogo, os mesmos fatores que culminaram na precisão e exatidão do modo de vida metropolitano e redundaram em uma estrutura impessoal, também influenciaram no desenvolvimento de um fenômeno psíquico que estaria incondicionalmente atrelado à metrópole: a atitude blasé. A atitude blasé seria o resultado dos estímulos que são impostos aos indivíduos devido às rápidas mudanças, mas também estaria ligada à intelectualidade metropolitana. Concomitantemente, uma vida que visa uma busca desregrada pelo prazer também tornaria uma pessoa blasé, na medida em que esta causaria uma agitação psicológica até um ponto crítico, de modo que tal intensidade culminaria na falta de reações aos estímulos nervosos. Haveria, portanto, um aspecto fisiológico inerente à atitude blasé (Simmel 1973 [1903]: 16).

11 Um dos elementos centrais em tal atitude consistiria em uma atenuação do poder de discriminar, de modo que os valores das coisas seriam experimentados como desprovidos de substância. Elas apareceriam às pessoas uniformes, planas, foscas, não havendo objeto algum que merecesse preferência sobre outros. Como coloca Waizbort (2013: 328), o blasé é insensível, indiferente, fatigado, saturado, lasso. Seriam essas as características do habitante da cidade grande, pois a enorme quantidade de estímulos com que ele se vê defrontado ao viver na metrópole lhe exige uma incapacidade de responder adequadamente a tal fluxo.

12 Segundo Simmel, tal atitude seria também um reflexo da interiorização da economia monetária e seu aspecto nivelador, que torna o dinheiro o denominador comum de todos os valores. A indiferença da atitude blasé seria equivalente à do dinheiro. Simmel (1973 [1903]: 17) entende que o grande número de intercâmbios monetários e de circulação de mercadorias faz com que as metrópoles constituam a localização por excelência da atitude blasé. Nessa perspectiva, a cidade grande é um local de concentração, seja de dinheiro, de coisas e pessoas, a qual exige do indivíduo o máximo de seus nervos. Em contrapartida, a atitude blasé, a indiferença diante de todos e tudo, resulta em uma desvalorização de todos e tudo e, consequentemente, no sentimento de depreciação da própria individualidade (Waizbort 2013: 329).

13 Tal atitude mental consistiria, para Simmel, em uma forma de adaptação, uma recusa a reagir aos estímulos como forma de acomodação aos conteúdos e ao modo de vida metropolitano, tornando o contato com o estranho uma experiência corriqueira (Waizbort 2013: 323). Essa forma de auto-preservação diante das grandes cidades e que exige determinado comportamento social negativo, estaria atrelada ao que Simmel denominou de atitude de reserva. A reserva não estaria associada somente à indiferença, mas a um estado de aversão, uma estranheza e repulsão mútuas contra qualquer espécie de contato mais próximo. Essa atitude conferiria ao indivíduo da metrópole um grau de liberdade que não pode ser visto sob outras condições. Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto às da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável. Em parte esse fato psicológico, em parte o direito a desconfiar que os homens tem em face dos elementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessária nossa reserva. (Simmel 1973 [1903]: 17).

14 A reserva do habitante das grandes cidades seria, segundo Waizbort (2013: 330), uma forma de estilização do comportamento, uma espécie de transposição da indiferença no que se refere ao comportamento cotidiano e padronizado. Tratar-se-ia de um modo de auto-conservação em um meio hostil, em que as qualidades só têm validade se

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quantificáveis. A atitude blasé e a reserva dotariam o homem metropolitano de uma liberdade que destoa se comparada a pequenez e preconceitos presentes nas pequenas cidades. Tal liberdade seria a contrapartida do círculo social mais amplo no qual os habitantes das grandes cidades estão inseridos. A liberdade se torna, portanto, uma das características fundamentais do tipo metropolitano que, ao tornar-se apenas mais um em meio à massa, liga-se através de conexões muito mais tênues e longínquas ao todo (Waizbort 2013: 332).

15 Por outro lado, o reverso de tal liberdade seria frequentemente experimentado na forma de solidão. Na leitura de Simmel (1973 [1903]: 20) não há uma associação necessária entre a liberdade experimentada pelos moradores da metrópole e uma sensação de conforto ligada a vida emocional. Deste modo, a cidade grande proporcionaria uma nova forma de solidão, mais intensa, e que não existia antes do surgimento dos grandes aglomerados (Waizbort 2013: 324). Os metropolitanos são indiferentes e o princípio da indiferença apaga os traços pessoais, envolvendo os indivíduos em uma multidão que é anônima. O anonimato e a impessoalização seriam a contrapartida de uma objetividade característica do modo de vida moderno das grandes cidades.

16 Para além dos aspectos propriamente psicológicos, Simmel argumenta que a liberdade associada à reserva dos metropolitanos está atrelada também a um desdobramento social de maior amplitude, o afrouxamento da rigidez interna e da unidade dos grupos sociais por causa do crescimento demográfico e a crescente divisão do trabalho. Esse processo dotaria o indivíduo de liberdade e propiciaria um aumento da individualidade no interior da vida urbana. Segundo Simmel, quanto menor o círculo social, mais restritas são as relações com os integrantes do grupo, dissolvendo os limites da individualidade. Por outro lado, um alto o grau de especialização, quantitativa e qualitativa, romperia a estrutura dos pequenos círculos sociais (Simmel 1973 [1903]: 19).

17 Assim, o modo de vida metropolitano seria caracterizado, de um lado, pelo processo de diferenciação o qual conduziria a um crescimento das particularidades individuais. De outro, o indivíduo seria progressivamente objetificado, tornando-se um mero elo em uma enorme organização de coisas e de poderes. Na leitura de Simmel, tal conjuntura é explicitada pela dificuldade por parte dos habitantes da metrópole em afirmarem sua individualidade, chegando a atitudes extremas para preservar sua exclusividade e particularidade, resultando em tendências a adotar peculiaridades, extravagâncias, maneirismos, caprichos, preciosismos, em uma busca progressiva para “ser diferente” (Simmel 1973 [1903]: 22).

18 Em suma, na busca dos elementos que constituiriam a vida mental e o modo de vida nas grandes cidades, Simmel assinala constantemente as tensões entre indivíduo e sociedade, entre interior e exterior, individual e supraindividual. Articulando análises psicológicas e sociológicas, procurou apontar as implicações de alguns dos paradoxos da vida nas metrópoles, como o seu alto grau de proximidade física e distância emocional, a liberdade extrema e a solidão em meio à multidão, o crescimento das diferenças individuais e uma progressiva objetificação do indivíduo. Para além de tais constatações, Simmel (1973 [1903]: 24-25) ressalta o papel estratégico das cidades grandes enquanto arena para as lutas, entrelaçamentos e mudanças nas maneiras de definir o papel do indivíduo no todo da sociedade. Em sua leitura, a metrópole consistiria, portanto, um tipo específico de formação histórica, cujas particularidades

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apresentariam condições peculiares para o desenvolvimento de formas de conferir papéis aos indivíduos. Nessa nova conjuntura histórica, Simmel se exime do papel de juiz, afirmando que independentemente da forma como o fenômeno da metrópole toca o pesquisador, seja de forma simpática ou antipática, não cabe acusar ou perdoar, mas compreender.

Louis Wirth e o urbanismo como modo de vida

19 Louis Wirth foi um dos sociólogos mais proeminentes da Escola de Chicago2, destacando-se principalmente por sua preocupação em desenvolver uma teoria sobre o urbanismo pautada em uma abordagem geral e teórica. De acordo com Wirth (1973 [1938]: 121), somente quando possuísse uma compreensão clara do que caracteriza a cidade enquanto entidade social e estivesse dotado de uma teoria sobre urbanismo o sociólogo poderia desenvolver um corpo unificado de conhecimentos, produzindo efetivamente uma “sociologia urbana”.

20 Contudo, antes de apresentar sua teoria sobre o urbanismo, Wirth inicia sua análise expondo o papel das cidades na contemporaneidade3. O sociólogo indica que o início do que pode ser considerado marcadamente moderno diz respeito ao crescimento das grandes cidades e à concentração em gigantescos agregados. O crescimento das cidades e a urbanização são, para Wirth, alguns dos fatos mais notáveis dos tempos modernos. Tomando os EUA como laboratório de análise, apontou que a mudança brusca de uma sociedade rural para uma predominantemente urbana foi acompanhada por alterações profundas na vida social em todas as suas fases. Segundo Wirth, tais modificações chamariam a atenção dos sociólogos para as diferenças entre o modo de vida rural e urbano, cujo exame configuraria um pré-requisito indispensável para a compreensão de alguns dos problemas contemporâneos mais cruciais da vida social (Wirth 1973 [1938]: 98)4.

21 Apesar da importância do crescimento das cidades, Wirth (1973 [1938]: 99-100) argumentava que havia uma falta de conhecimento sobre o urbanismo e sobre o processo de urbanização. Para suprir tal lacuna, o autor propôs a elaboração de uma abordagem sociológica da cidade que serviria para atentar para as inter-relações existentes entre estas, enfatizando suas características peculiares enquanto uma forma particular de associação humana. Deste modo, o desenvolvimento de uma definição sociológica do que seria uma cidade teria por objetivo selecionar os elementos do urbanismo que o destacariam enquanto um modo de vida distinto de outros agrupamentos humanos5.

22 Para Wirth (1973 [1938]: 100), nenhuma definição de urbanismo poderia ser considerada satisfatória se considerasse apenas os números como critério único. Deste modo, o urbanismo não poderia ser identificado com a entidade física da cidade. Considerar uma comunidade enquanto urbana levando em consideração apenas o tamanho como base para a análise implicaria necessariamente uma perspectiva arbitrária. Na perspectiva de Wirth, tais concepções, as quais partem apenas dos números, da densidade da população e de outras variáveis quantitativas, impediriam de se chegar a um conceito de urbanismo como modo de vida. No entanto, o sociólogo reconhecia que os grandes agregados e a densidade são fatores que não poderiam ser ignorados ao se definir a cidade:

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Para fins sociológicos, uma cidade pode ser definida como um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos. Com base nos postulados que essa definição tão pequena sugere, poderá ser formulada uma teoria sobre urbanismo à luz dos conhecimentos existentes, relativos a grupos sociais. (Wirth 1973 [1938]: 104).

23 Quanto à questão do urbanismo, esta se refere principalmente à acentuação das características que definem o modo de vida associado com o crescimento das cidades e com as mudanças dos modos de vida reconhecidos como urbanos. Wirth (1973 [1938]: 101) chama a atenção para os riscos de se confundir o urbanismo com o capitalismo moderno e o industrialismo. Não se trata apenas de uma relação quantitativa, mas de um conjunto de relações qualitativas que distinguem um modo de vida característico das grandes cidades. Na perspectiva de Wirth, não seriam os traços característicos físicos, como a concentração e densidade, que definiriam uma cidade, mas a capacidade de moldar o caráter da vida social a sua forma especificamente urbana.

24 Nesse sentido, Wirth (1973 [1938]: 105) propôs como problema central para o sociólogo da cidade a investigação das formas de ação e organização social que emergem em agrupamentos compactos que se apresentam relativamente permanentes e com um grande número de indivíduos heterogêneos. O sociólogo procurou expor um número limitado de características que identificassem a cidade, com o intuito de estabelecer proposições essenciais de uma teoria sobre o urbanismo. Para isso, apresentou um conjunto de proposições sociológicas acerca da relação entre a quantidade da população, sua densidade, e a heterogeneidade dos habitantes e da vida social.

25 Partindo desse conjunto de elementos, Wirth (1973 [1938]: 107) argumentou que o aumento do número de habitantes acima de certo limite afetaria necessariamente as relações entre estes e a cidade. Com efeito, grandes números implicariam uma maior quantidade de variação individual, e, quanto maior o número de indivíduos em processos de interação social, maior seria a diferenciação entre eles. As variações presentes em um agregado cujos membros apresentam origens e formações bastante diversas teriam por consequência, segundo Wirth, o enfraquecimento dos vínculos de parentesco e o desaparecimento dos sentimentos comunitários característicos das sociedades tradicionais.

26 Valendo-se da análise de Weber, Wirth assinalou que o grande número de habitantes e a densidade do agrupamento implicariam uma ausência de relações de conhecimento pessoal mútuo entre estes. Tal configuração resultaria, portanto, em uma modificação no caráter das relações sociais (1973 [1938]: 108). Nesse panorama, a concorrência e os mecanismos sociais de controle substituiriam os vínculos de solidariedade presentes em sociedades tradicionais. Na leitura de Michel Agier (2011: 85), o declínio do significado social da família e o abrandamento das relações de parentesco é um dos fatores centrais que resultam no individualismo do modo de vida urbano apontado por Wirth.

27 Wirth (1973 [1938]: 109) também dialoga com a obra de Simmel6, indicando que a multiplicação de indivíduos produz, além do enfraquecimento dos laços de parentesco, uma segmentação das relações humanas. Sua análise parte do princípio que haveria uma maior interdependência entre os cidadãos de uma cidade na medida em que estes ocupariam papéis bastante segmentários. Tal interdependência entre os citadinos seria expressa pelo alto grau de contatos secundários, ao invés de primários. De acordo com Wirth: Os contatos da cidade podem na verdade ser face a face, mas são, não obstante, impessoais, superficiais, transitórios e segmentários. A reserva, a indiferença e o ar

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blasé que os habitantes da cidade manifestam em suas relações podem, pois, ser encarados como instrumentos para se imunizarem contra as exigências pessoais e expectativas de outros. (Wirth 1973 [1938]: 109).

28 Nota-se que Wirth apresenta uma análise convergente com a de Simmel, encarando a impessoalidade, a superficialidade, a indiferença e o ar blasé como mecanismos de defesa dos citadinos com relação às exigências da vida nas grandes cidades. Wirth assinala que o anonimato, o superficialismo e o caráter transitório das relações urbano- sociais explicariam, também, a racionalidade comumente atribuída aos habitantes das grandes cidades. Recorrendo à análise de Simmel, Wirth argumenta que o contato físico estreito de numerosos indivíduos produziria necessariamente uma transformação nas formas através das quais estes se orientam em relação ao meio urbano. As grandes cidades se caracterizariam, na perspectiva dos autores, por contatos físicos estreitos e contatos sociais distantes entre seus membros, configuração essa que promoveria uma tendência de adquirir e desenvolver uma sensibilidade cada vez mais distanciada do domínio da natureza. Segundo Wirth (1973 [1938]: 112), a exposição a um grande número de contrastes, a abrupta transição entre um mosaico de mundos sociais e a justaposição de modos de vida divergentes tenderiam a produzir uma perspectiva relativista, um senso de tolerância de diferenças, os quais seriam pré-requisitos para a racionalidade promovida pelo modo de vida urbano. Depreende-se, portanto, que a perspectiva de Wirth, assim como a de Simmel, aponta para uma relação intrínseca entre o intelecto e a vida citadina.

29 Em contrapartida, Wirth ressaltou que a liberdade e a emancipação com relação aos controles emocionais e pessoais propiciados pela racionalidade implicariam uma perda do senso de participação em uma sociedade integrada, constituindo um estado de vazio social ou de anomia. O triunfo do individualismo e da anomia no modo de vida urbano presente na análise de Wirth, corresponde à fragmentação no plano moral e espacial que substituíram as formas do clã, da linhagem e da família, resultando em estruturas sociais cuja eficácia encontrava-se enfraquecida (Agier 2011: 118). Como assinala Agier, ao valer-se da noção de anomia para apresentar a cidade como o mundo do indivíduo, Wirth desloca o conceito durkheimiano, o qual deixa de ser encarado como explicação dos comportamentos individuais desordenados que podem levar ao suicídio, para tornar-se parte fundamental da cultura urbana (Agier 2011: 64).

30 No que se refere à questão da densidade, Wirth (1973 [1938]: 111) se vale da abordagem de Durkheim (1999 [1893]), apontando que um aumento na densidade populacional também tenderia a produzir uma diferenciação e especialização. Assim, a densidade reforçaria o efeito que as grandes populações exercem sobre a diversificação dos indivíduos, de suas atividades, resultando, consequentemente, em um aumento da complexidade da estrutura social. A especialização dos indivíduos, por sua vez, acentuaria a divisão do trabalho, promovendo um grau extremo de interdependência e um equilíbrio instável da vida urbana, que seria amplificada pela tendência das cidades em se especializar em determinadas funções.

31 Esse arcabouço social ramificado e diferenciado de estratificação social resultaria, por sua vez, em uma maior mobilidade dos indivíduos, sujeitos a um status flutuante no interior de grupos sociais heterogêneos, os quais comporiam a estrutura social das cidades. Assim, a heterogeneidade estaria associada, segundo Wirth, aos interesses variados emanados dos diferentes aspectos e domínios da vida social, de modo que os indivíduos se tornariam membros de grupos bastante particularizados e até mesmo

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divergentes. Além disso, haveria uma rápida substituição dos membros dos grupos sociais, em parte resultado da crescente mobilidade social e da liberdade de circulação dos indivíduos. Na análise de Wirth (1973 [1938]: 113-114), tais fatores transformariam os indivíduos na base das massas fluidas, tornando imprevisíveis e problemáticos o comportamento coletivo nas grandes cidades.

32 Apesar da presença de populações altamente diferenciadas, as grandes cidades também exerceriam, em contraposição, uma influência niveladora e um processo de despersonalização dos indivíduos. A tendência niveladora estaria intrinsecamente associada, segundo Wirth, à base econômica da cidade e ao processo de divisão do trabalho, os quais acarretariam em uma padronização de processos e produtos, e, às instituições sociais de utilidade pública, como as administrativas, políticas, educacionais, culturais. Contribuindo com essa tendência niveladora, destaca-se o surgimento de uma miríade rotinas e de controles sociais associados à padronização temporal e espacial – cujos símbolos por excelência seriam o relógio e o sinal de trânsito – com o intuito de neutralizar a desordem em potencial promovida pela metrópole.

33 Em linhas gerais, o modo de vida urbano apresentado por Wirth caracteriza-se, portanto, pela diversificação, especialização, pelo declínio do significado social da família e enfraquecimento dos laços de parentesco, por contatos físicos próximos e relações sociais distantes, ou seja, pela substituição dos contatos primários pelos contatos secundários, fatores esses que culminariam na corrosão na base tradicional de solidariedade social. A ruptura das estruturas sociais rígidas fez com que as cidades grandes fossem decompostas, segundo Wirth, em uma série de relações segmentárias tênues, produzindo um alto grau mobilidade, instabilidade e insegurança entre os indivíduos. Em contrapartida, o sociólogo destacou que apesar do abrandamento dos laços de associação, o modo de vida urbano envolveria um grau de interdependência maior entre os indivíduos e uma forma mais complexa e frágil de inter-relações mútuas das quais estes não conseguiriam exercer controle algum (1973 [1938]: 118-119).

34 A proposta de examinar o fenômeno do urbanismo a partir de um conjunto de categorias básicas – número, densidade do agrupamento e o grau de heterogeneidade – foi o caminho encontrado por Wirth para elucidar as características da vida urbana. Em sua perspectiva, uma teoria do urbanismo e da cidade propiciaria uma melhor compreensão dos problemas sociais característicos das grandes cidades. Tal compreensão poderia contribuir para a eventual solução de questões como pobreza, habitação, planejamento urbano, dentre outras. A proposta de Wirth de elaborar uma teoria que pudesse alicerçar uma sociologia urbana pautava-se, portanto, em uma preocupação intrínseca com as vicissitudes e problemas sociais que resultaram do advento do modo de vida urbana e do crescimento das cidades a um ponto sem precedentes.

A Berlim de Georg Simmel e Chicago de Wirth: pensando a relação entre sociólogo e a metrópole

35 Após a exposição das análises de Simmel sobre a vida mental na metrópole e de Wirth acerca do modo de vida urbano, cabe agora empreender uma breve reflexão sobre a relação entre os pensadores em questão e o impacto de viverem em grandes cidades –

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Berlim e Chicago – e presenciarem transformações que se tornaram parte de seus objetos de estudo e reflexão.

36 Segundo Waizbort, (2013: 311), a relação de Simmel com a metrópole caracterizou-se como um marco importante para sua obra. Simmel nasceu em 1858 em um dos pontos de maior movimento em Berlim, no cruzamento das maiores ruas de comércio da cidade. Berlim desenvolveu-se consideravelmente ao longo do século XIX, podendo ser considerada uma cidade tardia pelos padrões europeus. Waizbort apresenta-a como uma grande cidade onde tudo era novidade, novos espaços, luz elétrica, pobreza, prostituição, magazines, ruas de comércio, barulho, passagens, trens, bondes, automóveis, dinheiro, política, artes, exposições, estranhos. Em 1920, Berlim já era a segunda maior cidade européia em população, depois de Londres. Porém, mais do que todas as outras cidades européias ela era o modelo da cidade moderna (Waizbort 2013: 313). Ao contrário de Londres e Paris, não havia partes antigas na cidade: Para realizar o seu presente, a cidade ignora e rompe com o seu passado. Tudo é novo. Não há velhos habitantes; a maioria são imigrantes que chegam à cidade em um fluxo ininterrupto; grandes massas afluem, para acompanhar e promover o desenvolvimento. (Waizbort 2013:313)

37 Berlim é descrita como uma metrópole industrial, mas também política, financeira e cultural, comparando-a inclusive com as cidades americanas por sua atualidade. Nas palavras de Waizbort, no início do século XX “Berlim já é a Chicago da Europa” (2013:314). No entanto, a cidade não possuía uma infraestrutura capaz de acompanhar o rápido crescimento populacional. A miséria da população era visível na pobreza das habitações. A prostituição andava de mãos dadas com a industrialização e era contemporânea das massas na cidade grande.

38 Simmel acompanhou as transformações da cidade e esse processo constituiu um elemento central na configuração de sua teoria do moderno. Sua teoria trata, segundo Waizbort, precisamente do seu enfrentamento com a cidade em que vivia, de modo que suas experiências pessoais formaram o material que possibilitou a tentativa de apreender conceitualmente as transformações ocorridas nas grandes cidades. Como aponta Waizbort (2013: 315), “o que é específico de Berlim serve como impulso e ponte para analisar o que é genérico”. Não há dúvida, portanto, de que a sociologia da cidade grande, que Simmel procurou desenvolver, foi um resultado de suas próprias experiências em Berlim.

39 Paralelamente, Chicago passou, como aponta Magnani (2012: 20), por um vertiginoso crescimento a partir dos anos 1920, principalmente por causa de aportes migratórios, os quais acarretaram em uma sequela de problemas. A cidade passava por rápidas mudanças e uma diversidade de grupos heterogêneos disputava os espaços através de uma competição intensa. Chicago tornou-se, por volta da década de 1930, a segunda maior aglomeração dos Estados Unidos e a quinta maior do planeta, com uma população que passava dos três milhões de habitantes (Agier 2011: 63). Segundo Agier, além de um “laboratório” para experiência de contatos interétnicos, Chicago era também um lugar de emergência de problemas sociais novos, como segregação, vagabundagem, desemprego, etc. Esse conjunto de problemas impôs-se como tema urgente de investigação para os intelectuais da Escola de Chicago – como Robert E. Park, Robert Redfield, Louis Wirth, dentre outros – os quais produziram, nos anos 1920 e 1930, uma série de trabalhos empíricos e de instrumentos teóricos que fizeram com

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que fossem considerados, segundo Agier, o grupo “fundador” da investigação urbana nas ciências sociais7.

40 Dentre os sociólogos da Escola de Chicago, Louis Wirth pode ser considerado como o maior teórico de estudos urbanos (Velho 1973: 8). Wirth – que era alemão, mas ganhou notoriedade acadêmica nos Estados Unidos – assimilou a influência de cientistas sociais europeus, principalmente Simmel, para produzir no final da década de 1930 a formulação de sua teoria do urbanismo. Na perspectiva de Otávio Velho, Wirth é o “sociólogo urbano” por excelência, o qual valeu-se do urbano – com sua ênfase na mobilidade, segmentação de papéis e nos grupos secundários – enquanto categoria explicativa preponderante. Além das análises mais gerais sobre o modo de vida urbano, Wirth também dedicou-se a estudos de caso aprofundando-se nas particularidades da cidade de Chicago, como The Ghetto (Wirth 1956), uma etnografia sobre o bairro judeu (Magnani 2012: 21). O sociólogo, assim como os demais representantes da Escola de Chicago, não limitou-se, portanto, a problematizar e teorizar acerca da metrópole, mas se permitiu empreender uma imersão em suas peculiaridades, adentrando profundamente no cotidiano por vezes caótico que a cidade apresentava.

41 Partindo desse breve recuo enfocando a relação entre pesquisador e metrópole, é possível concluir que Simmel, Wirth, assim como os demais pesquisadores da Escola de Chicago, buscaram compreender as profundas mudanças sociais nas metrópoles em que vivam e as quais lhes afetavam profundamente a partir de suas próprias experiências. O impacto das profundas transformações na Berlim e Chicago das primeiras décadas do século XX não apenas os estimulou como propiciou um “laboratório” para os pensadores em questão problematizarem e desenvolverem teorias de fôlego sobre as metrópoles e suas influências no modo de vida de seus integrantes. Assim, a tentativa de empreender teorizações gerais, mas sem deixar de lado os dados e impressões etnográficas provenientes das metrópoles em que viviam, possibilita atestar a longevidade de suas análises, assim como a contribuição de tais pensadores para a posterior consolidação da sociologia e da antropologia urbana.

Considerações finais

42 O escopo do presente ensaio foi apresentar brevemente as análises de Georg Simmel sobre a “vida mental na metrópole” e de Louis Wirth acerca do “urbanismo como modo de vida”. Em um primeiro momento, expus os principais pontos do ensaio de Simmel. Em seguida, apresentei os argumentos de Wirth e sua teoria sobre o urbanismo. Em um plano geral, o exame dos temas centrais de tais obras nos permite apreender alguns pontos de convergência acerca das análises de Simmel e Wirth. Ambos os autores partiram de uma polarização entre mundo rural e a cidade grande enquanto elemento explicativo, apontando que a vida nas grandes cidades acarretava um enfraquecimento dos laços de parentesco, bem como uma segmentação das relações humanas, ressaltando como resultado de tal conjuntura, uma maior interdependência entre os cidadãos. Na concepção dos autores, a interdependência seria expressa pelo alto grau de contatos secundários, ao invés de primários, por contatos físicos próximos e relações sociais distantes.

43 Wirth encarava, assim como Simmel, a impessoalidade, a indiferença e a atitude blasé como mecanismos de defesa, fruto das exigências da vida nas grandes cidades. Para os autores, o anonimato, o superficialismo e o caráter transitório das relações urbano-

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sociais estariam intrinsecamente ligados à racionalidade comumente atribuída aos habitantes da metrópole. Deste modo, ambos compartilham a perspectiva de que a vida nas grandes cidades contribuiu para o desenvolvimento de uma sensibilidade cada vez mais distanciada do domínio da natureza. Além disso, tanto Wirth como Simmel atentaram para os contrastes entre individualidade e despersonalização, liberdade e interdependência, proximidade física e distância emocional.

44 Outro ponto em comum que foi ressaltado no presente trabalho diz respeito a um aspecto mais amplo, a saber, a relação entre os sociólogos e as metrópoles em que viviam. Pretendeu-se demonstrar que as análises dos autores eram devedoras de suas experiências nas metrópoles, dos problemas e transformações que vivenciaram ao longo de suas trajetórias de vida. Assim, foi ressaltado que a emergência de uma sociologia e antropologia urbanas foi, em grande medida, fruto dessa relação entre pesquisador e metrópole. Contudo, tal relação já foi apontada anteriormente. Como destacou Otávio Velho (1973: 8), a concepção de uma sociologia urbana não surgiu inicialmente de uma preocupação com a elaboração de uma teoria, mas da necessidade de enfrentar problemas práticos ligados ao vertiginoso crescimento das grandes cidades, o qual acompanhou o processo de industrialização e de desenvolvimento capitalista, sobretudo nos Estados Unidos a partir da massa de contingentes europeus que imigraram para o país no final do século XIX e início do XX. Tal crescimento – que resultou em uma série de fenômenos desconhecidos até então, principalmente em termos da escala e abrangência, como sub-habitação, delinquência, problemas de planejamento urbano – possibilitou a um conjunto de pesquisadores que tomaram a metrópole como objeto de estudo, tentar elaborar análises que pudessem apresentar respostas aos desafios práticos, constituindo, assim, a sociologia urbana enquanto campo de estudos.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. De acordo com Magnani (2012: 18), esta oposição, expressa na obra de Simmel a partir da distinção entre a vida rural e metropolitana, remete a outra importante polarização presente na obra de pensadores que trataram o fenômeno das grandes cidades como objeto de pesquisa, a saber, a diferenciação entre “comunidade” e “sociedade”. Como aponta o antropólogo, é possível encontrar nos trabalhos de autores como Émile Durkheim, Ferdinand Tönnies, a utilização do termo “comunidade”, ou outro termo equivalente, mas sempre em oposição ao de “sociedade” (idem). Frúgoli (2005: 137), por sua vez, aponta as polaridades solidariedade mecânica/orgânica (Durkheim), tradicional/racional (Weber), comunidade/sociedade (Tönnies), como distintas versões da polarização entre tradicional/moderno. 2. Em uma conferência, Howard Becker (1996) expôs algumas das principais contribuições da Escola de Chicago, apresentando brevemente a trajetória de seus principais representantes. 3. Cabe lembrar que o período ao qual Wirth está se referindo trata-se das décadas iniciais do século XX. 4. Apesar de chamar a atenção para as diferenças entro os modos de vida rural e urbano, Wirth (1973 [1938]: 99) ressalta que a cidade foi fruto do crescimento e não de uma geração instantânea, de modo que esta não seria capaz de eliminar completamente os modos de associação humana que predominavam anterior mente. O sociólogo frisa que boa parte da população das cidades foi recrutada do campo. Tal fator implicaria na impossibilidade encontrar uma variação descontínua e abrupta entre os tipos urbano e rural. É necessário destacar que Wirth encara a sociedade urbano-industrial e a rural como tipos ideais de comunidades, a partir dos quais seria possível obter uma perspectiva de análise de modelos básicos de associação humana. 5. Wirth (1973 [1938]: 104) argumenta que não havia, até as décadas iniciais do século XX, um conjunto de hipóteses e postulados associados a uma definição sociológica da cidade. De acordo como o sociólogo, as obras que mais se aproximam de uma definição de cidade e de uma teoria do urbanismo dizem respeito a um ensaio de Max Weber (1999 [1922]), intitulado na tradução brasileira de A dominação não-legítima - tipologia das cidades, e, um artigo de Robert E. Park (1973 [1925]), A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humanos no meio urbano. Segundo Wirth, apesar das importantes contribuições de tais obras, estas não constituem um arcabouço ordenado e coerente de teoria sobre a cidade e o urbanismo. 6. É necessário destacar que a obra de Simmel foi apresentada aos pesquisadores da Escola de Chicago por meio de Robert Ezra Park, que foi aluno de Simmel na Alemanha.

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7. A Escola de Chicago se destacou, segundo Magnani (2012: 20), pelos estudos empíricos baseados em temas específicos, como prostituição, delinqüência, minorias étnicas, criminalidade os quais foram agrupados sob a rubrica de ‘patologia social’. Vale destacar também a influência dos sociólogos europeus, como o próprio Simmel e Durkheim, tendo em vista a preocupação teórica dos autores da primeira e segunda geração de Chicago em relação à temas como anomia, coesão e consenso.

ÍNDICE

Keywords: Georg Simmel, Louis Wirth, urbanism Palavras-chave: Georg Simmel, Louis Wirth, urbanismo

AUTOR

HENRIQUE FERNANDES ANTUNES

Doutorando PPGAS/USP. [email protected]

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Copa, Estrela e Coração – as cores e os sentidos de Parintins/AM durante a Copa do Mundo no Brasil e o Festival Folclórico do Boi-Bumbá

Ana Letícia de Fiori e Renan Albuquerque Rodrigues

De fatos sociais totais e iconoclashes

1 Ao introduzir para turmas de graduação o clássico Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss (1925), e seu conceito de fato social total, cunhado pelo antropólogo francês tendo em vista o kula trobriandês e o potlatch kwakiutl, tornou-se algo tradicional fazer o seguinte exercício de pensamento com alunas e alunos: perguntar qual seria um fato social total para a sociedade brasileira. Uma resposta frequente, que permite algumas comparações didáticas, tem sido “Copa do Mundo”.

2 É possível seguir este exercício para pensar o fato social total brasileiro da Copa do Mundo se apresentando em sua potência máxima, com a realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014, o que não ocorria desde 1950. Ao considerarmos a definição de Mauss (1925: 187) de fatos sociais totais como fenômenos nos quais se exprimem de uma só vez, com qualidades estéticas e morfológicas, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas, morais, políticas, familiares, econômicas, abre-se um leque de possibilidades de abordagens etnográficas para a Copa do Mundo de 2014. Exercício semelhante foi realizado, por exemplo, por Gastaldo (2014), analisando a Copa do Mundo como fato social total a partir da microperspectiva dos espectadores que se reuniram para assistir a jogos das Copas de 2006, 2010 e 2014 em locais públicos.

3 Esta e outras perspectivas analíticas permitem investigações que acompanhem as transformações em diferentes escalas promovidas pela realização da Copa do Mundo em todo o país, e em especial nas 12 cidades-sedes que passaram por processos abruptos de reconfiguração da paisagem urbana, de seus cotidianos, das iniciativas de fomento de atividades econômicas ligadas direta ou indiretamente com o megaevento,

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das estratégias e negociações em diferentes arenas políticas, e do envolvimento heterogêneo da população nas cidades-sedes ou alhures.

4 Em especial, a resposta de aprendizes de antropologia à provocação e sua prontidão em classificar a Copa do Mundo como fato social total na sociedade brasileira, também dirigem a atenção para reiteradas performatizações do Brasil como o “país do futebol”, em especial em época de Copa do Mundo, que resultam em uma proliferação de imagens, veiculando noções de identidade nacional, matrizes interpretativas, léxicos, valores, desejos, afetos e pulsões.

5 A tentativa midiática e política de construção de uma união em que povo brasileiro e torcida são sinonimizados como “comunidade imaginada”, na expressão de Benedict Anderson (1983), de modo que as diversidades regionais são ao mesmo tempo exageradas e neutralizadas como temperos de uma só brasilidade, (re)unida pela seleção, foi por sua vez ao encontro de outras imagens, menos unívocas.

6 Um desses encontros ocorreu com os protestos anti Copa e anti Fifa, intensificados a partir das jornadas de junho de 2013, promovendo o iconoclash de tais construções, que promoveram ambiguidades na experiência da Copa (c.f. Toledo 2014). Lembremos da distinção que Bruno Latour (2002) faz entre o iconoclasm, o ato iconoclasta de destruição, em que se sabe o que se está destruindo e as motivações de quem destrói um ícone; e iconoclash, quando os atos e seus efeitos são ambíguos, entre a criação e a destruição, e nos fazem hesitar. Ao trazer o iconoclash para pensar a Copa do Mundo no Brasil e as guerras de imagens que a circundaram, Toledo chama a atenção para o modo como o esporte e as organizações nacionais foram capturados por discursos políticos e o cotidiano das crises do Brasil, agregando demandas heterogêneas sob os brados de “Fora FIFA” e “Copa para quem?” e produzindo presenças intensas nos espaços urbanos, com manifestações, pichações, além de outras redes e ajuntamentos. As hesitações, ambiguidades e iconoclashes indicadas por Toledo fazem também hesitar interpretações holísticas sobre o fenômeno da Copa que uma classificação como fato social total poderia denotar, sem contudo nos fazer desprezar a magnitude do megaevento, que atravessa diferentes escalas de fenômenos.

7 Nesse sentido, outras interferências, tão ou mais inusitadas, se deram no curso do megaevento quando a Copa se justapôs a imagens cujo endereçamento original talvez não fosse a realização e os efeitos do evento futebolístico. Ao seguir estes outros encontros de imagens e seus iconoclashes, este artigo propõe abordagem sobre o evento futebolístico a partir de pontos de vista marginais.

8 Em Parintins, cidade do Baixo Amazonas, na fronteira do Amazonas com o Pará, com cerca de 70 mil habitantes, a Copa do Mundo veio ao encontro de outro megaevento, de caráter anual e sempre realizado no município, capaz de igualmente mobilizar grandes paixões e recursos, articulando esferas da vida social: o Festival Folclórico do Boi- Bumbá de Parintins.

9 A proposta buscou discutir efeitos da justaposição desses dois “fatos sociais totais” e o iconoclash daí advindo: o Festival Folclórico que polariza Parintins entre os bois Caprichoso (azul e preto) e Garantido (vermelho e branco) e a Copa do Mundo que (supostamente) uniria os parintinenses a todos os brasileiros na torcida pela seleção canarinho, colorindo as ruas de verde e amarelo e tornando uníssona a intenção de torcer pelo Brasil na competição. Ambos os eventos foram acompanhados por uma

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antropóloga “visitante”, durante trabalho de campo de seu doutorado, e por um professor “local” do curso de comunicação da UFAM.

Da Copa do Mundo no Brasil e na Amazônia

10 A escolha do Brasil como país sede da Copa do Mundo de Futebol se deu ainda em 2007, acordada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA, na sigla em francês) de Joseph Blatter e pelo então presidente Lula, em um momento em que se louvava a ascensão política, econômica e social do país.

11 Como recapitulou Damo (2014), tratava-se de megaevento cujo sucesso envolveria boa articulação de prefeituras, governos estaduais e União; projetos e investimentos públicos e privados; além de certa conivência do Congresso, das agências de fiscalização, da imprensa e dos movimentos sociais quanto aos maus usos dos recursos e às obras mal projetadas e executadas. Um cenário não efetivado, embora a Copa tenha também recebido avaliações positivas em seu término. Entretanto, durante o planejamento, execução e realização da Copa, o tripé “oportunidade, investimento e legado” preconizado pela FIFA e incorporado aos discursos oficiais não foi recebido sem contestação pela população, e as medidas impopulares tomadas pelas três esferas de governo eclodiram nos protestos realizados em junho de 2013, mês de realização da Copa das Confederações, “evento teste” para o mundial.

12 Protestos iniciados por movimentos sociais e partidos políticos de esquerda, tendo como pauta a tarifa de ônibus e o direito à cidade, tornaram-se polissêmicos e adquiriram feições “anti FIFA” e “anti Copa”, enquanto exigiam “padrão FIFA” para escolas e hospitais, generalizando as pautas para os crônicos problemas de saúde, educação e infraestrutura que foram entendidos como prioritários em relação aos investimentos aplicados nos preparativos para a Copa. Toledo (2014) afirma que a FIFA foi capturada e ressignificada em discursos políticos diversos ao penetrar no cotidiano das crises no país, com a particularidade de ter o futebol se tornado uma espécie de idioma para alcançar críticas de ordem política, econômica e social.

13 O caráter excludente de uma Copa elitizada tornou-se ferida aberta nas sensibilidades da população, resignada a ainda acompanhar os jogos em telões ou telinhas, e que em muitos casos não sentiu o impacto econômico positivo que a Copa traria em suas atividades profissionais e de subsistência. Não obstante, a ocupação de pessoas e imagens no espaço público gerou uma série de efeitos. De acordo com Toledo: […] Movimentações em torno da Copa ou motivadas por ela fizeram uma multiplicidade de agentes coabitarem espaços contíguos, ambiguizando os sentidos mais corriqueiros entendidos como demandas políticas (convicções ideológicas, de classe, valores como cidadania, justiça, trabalho, lazer, direitos sociais, direito à cidade,etc.). Daqueles francamente contrários ao megaevento esportivo, passando pelos torcedores, quase torcedores, não torcedores, o que se tem observado é a profusão e produção dessas intensas presenças no espaço urbano a despeito das articulações pelas redes, que produzem e conferem uma velocidade sem precedentes aos ajuntamentos. E valores culturais como nacionalismo, identidade brasileira, aderência inconteste ao futebol foram tiradas do sossego antropológico e da inércia representacional para serem recolocados, ou melhor, reagrupados, mais uma vez, no fluxo ininterrupto das sacralizações e dessacralizações que propagaram, mundo afora, alguns dos indícios e, sobretudo, as imagens de que algo se reconfigurou no Brasil (Toledo 2014).

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14 Nestes jogos de múltiplas capturas, a FIFA conseguiu imprimir algumas de suas marcas, imagens e regras. É possível mencionar a promulgação das Leis Gerais da Copa e a liberação de venda de bebidas alcoólicas nos estádios, desde que fossem da empresa patrocinadora. A Federação também promoveu nas 12 cidades-sede seus Fifa Fan Fests, espaços com acesso livre (com regras da FIFA) para assistir a jogos por telão e a shows, uma atração criada pela FIFA em 2006, durante a Copa do Mundo na Alemanha. Durante os jogos da Copa, milhares de torcedores se dirigiam aos Fan Fests para assistir aos jogos em clima de grandes festas de rua, muitas vezes criando seus próprios trajetos de lazer para além dos planejados pelas empresas organizadoras, como foi o caso do eixo Fan Fest – Vila Madalena, na capital de São Paulo.

15 Em termos de iconografia da Copa, em 2010 foi divulgada a marca da Copa do Mundo no Brasil, criada pela agência Africa e escolhida por um grupo de “notáveis”. A marca foi imediatamente alvo de pilhéria por remeter a um rosto encoberto por uma mão (um gesto de impaciência, vergonha ou desaprovação condensado na gíria de internet “facepalm”, ver Perin 2010). A bola oficial da Copa, da marca Adidas, foi batizada de Brazuca a partir de sugestões de diferentes regiões em um concurso organizado pela Rede Globo. Para mascote da Copa, por sua vez, foi escolhido o Tatu-bola Fuleco, personagem criado pela agência de publicidade 100% Design. O portal governamental da Copa do Mundo na internet indicava que o animal escolhido relacionava-se ao propósito de realizar uma Copa “ecologicamente correta”, o que implicaria também em uma doação da FIFA a uma ONG de preservação da espécie. Assim como a marca, Fuleco foi também alvo de pilhérias e contestações, questionando a escolha do animal, o desenho e especialmente o nome. Fuleco remetia a “fuleiro”, “furreca”, gírias para indicar coisas mal feitas e sem valor. “Fulecar” seria um verbo que indicaria o ato de perder todo o dinheiro em um jogo (o que era consonante ao questionamento dos gastos públicos com a Copa e as exigências da FIFA). Circulou-se o boato, na imprensa internacional, que “fuleco” seria também uma palavra para ânus em português. O mascote esteve notavelmente ausente da Cerimônia de Abertura da Copa do Mundo, o que foi atribuído ao baixo valor destinado pela entidade para a preservação do tatu- bola, de modo que a FIFA teria preferido escondê-lo (ver Vasco 2014).

Figura - Marca da Copa do Mundo da FIFA 2014.

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Figura - Fuleco, mascote oficial da Copa do Mundo da FIFA 2014.

16 Também ligada aos discursos ambientalistas da Copa do Mundo no Brasil esteve a realização da Copa em território amazônico. Única cidade-sede da Região Norte, Manaus ganhou (frente à candidatura de Belém do Pará) o direito de sediar jogos da Copa mesmo sem ter um cenário de futebol profissional consolidado, sob a alegação de que se tratava de uma “cidade indígena”. Para tanto, foram veiculadas junto a imagens da floresta, imagens do Peladão Indígena, chave do maior campeonato de futebol amador do Brasil, de modo a preencher uma lacuna no mosaico da brasilidade que se buscava construir (c.f. Chiquetto 2014).

17 Entre os impactos da Copa na capital amazonense, registraram-se i) desalojamento de dezenas de famílias para a demolição do estádio Vivaldão e construção da Arena Amazonas, um imenso estádio padrão FIFA cuja arquitetura evoca um cesto indígena, ii) reformas no aeroporto e nos equipamentos turísticos da cidade e iii) escolha da orla de Ponta Negra como local para o Fan Fest, onde foram montados espaços de lazer e assim os definiram para uso no entorno de uma praia artificial, às margens do Rio Negro.

18 As promessas de oportunidade comercial e turística e do legado que a Copa deixaria para Manaus alimentaram expectativas de parte da população, consonante com as eternas promessas de se desenvolver ecoturismo internacional de porte para a Amazônia. Ao mesmo tempo, as regras firmadas para interrupção das partidas em paradas técnicas quando o calor ultrapassasse os 32ºC colaboraram para as representações da cidade como selvagem, subdesenvolvida e inóspita. Comentários depreciativos de um dos dirigentes da seleção inglesa ao saber que estrearia na Arena Amazonas acerca do calor (ver Diário do Nordeste 2013) e da imprensa inglesa acerca das condições do estádio (ver Extra 2014) apareceram como sintomáticos de um preconceito não dissipado contra a cidade.

19 As promessas dos impactos positivos dos legados infraestruturais e do incremento da atividade turística também atingiram o interior do estado, em especial a cidade cujo impacto econômico regional decorre principalmente do turismo, Parintins (Schor e Oliveira 2011). Ela está situada no Baixo Amazonas, em um arquipélago à margem direita do Rio Amazonas, a 420 km por via fluvial de Manaus. É o segundo município mais populoso do Estado, “com 69.890 habitantes na área urbana e 32.143 na área rural, perfazendo um total de 102.033 habitantes em 2013” (Souza 2013: 1: 32).

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20 A população parintinense, de modo semelhante ao que ocorreu ao redor do país, enfeitou ruas, pintou calçadas, arrumou a frente das casas em verde e amarelo. As lojas da cidade se recobriram de produtos para torcedores e propagandas evocando o evento. Sem espaços de Fan Fest em Parintins, assistir a Copa do Mundo em espaços públicos como bares e telões (na Praça dos Bois) a princípio não indicava qualquer diferença substantiva em relação a Copas anteriores realizadas em outros países. A diferença estaria no encontro da Copa com o Festival Folclórico.

Do Festival Folclórico do Boi-Bumbá de Parintins

21 O Festival Folclórico do Boi-Bumbá de Parintins adquire suas feições atuais por meio de uma série de transformações estruturais a partir dos anos 60. O folguedo se distancia do formato do auto do boi presente em outros festejos do bumba-meu-boi pelo Brasil e passa a ser uma disputa polarizada entre os bois Garantido e Caprichoso, que anualmente produzem um enredo a ser apresentado durante três noites no último fim de semana de junho. O espetáculo é abrigado por um enorme teatro de arena, o Bumbódromo, construído em 1988 e modernizado em 2013, no qual os bois se apresentam e são avaliados por um corpo de jurados a partir de cerca de 20 quesitos, que incluem figuras tradicionais como “sinhazinha da fazenda”, “cunhã poranga” e “rainha do folclore”; elementos que enfatizam a regionalidade e uma (certa) indianidade como “pajé” e “ritual indígena”; elementos musicais e narrativos como “levantador de toada”, “tribos” (alas coreografadas) e “batucada ou marujada”; e um julgamento da performance da torcida, aqui denominada “galera”, que é munida de uma série de adereços e instruída, antes de cada noite, a compor coreograficamente o espetáculo junto com os brincantes da arena. (cf. Braga 2002). Tais feições do Boi de Parintins são mobilizadas nas reivindicações de que o Festival Folclórico de Parintins seria um ícone da identidade cabocla, mestiça, amazônica e amazônida, ou seja, de uma brasilidade para além das representações comumente produzidas no sudeste.

22 Trata-se, pois de uma identidade que se produz em uma oposição binária entre os bois. É costume apresentar a cidade como dividida ao meio entre as torcidas de Garantido e Caprichoso, vinculando-os a uma territorialidade urbana cujo limite é a enorme catedral no meio da cidade. Assim, o lado leste até o bairro portuário da Francesa seria o domínio do boi Caprichoso e o lado oeste, nucleado na Baixa do São José seria o domínio do boi Garantido. Esta divisão é evidenciada pelas fachadas das casas pintadas de azul ou vermelho e mesmo no cuidado em que as propagandas que ostentam as cores de ambos os bois têm em seguirem geograficamente esta divisão. Este cuidado é tomado tanto pelos pequenos estabelecimentos comerciais locais quanto pelas grandes marcas que patrocinam o evento, como a Coca-Cola, a Vivo e o Bradesco, que tingem suas logomarcas de acordo com a política cromática da cidade. Não se pinta a metade azul de um anúncio voltada para o lado vermelho da cidade. Ou seja, a divisão binária é reproduzida em diferentes escalas, em todas evidenciando a oposição entre os dois Bois. Consagram-se e sacralizam-se as cores azul e preto e a estrela como símbolos do Caprichoso e as cores vermelho e branco e o coração como símbolos do Garantido.

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Figura - Propaganda do Bradesco, um dos patrocinadores do Festival Folclórico de Parintins.

23 As referências aos bois e suas cores são parte do cotidiano da cidade, com preferências e aversões que lembram as das torcidas de times de futebol. Os assuntos referentes aos Bois e sua administração são pauta constante dos veículos midiáticos da cidade e nas rodas de conversa, dada a importância econômica do festival e sua vinculação histórica com certas famílias proeminentes da cidade, cuja tradição imbrica-se com a tradição folclórica sempre invocada.

24 É na época do Festival que se veem as maiores transformações em Parintins. As iniciativas pública e privada realizam melhorias infraestruturais e reparam as regiões centrais da cidade, num perímetro que vai do Porto ao Bumbódromo, incluindo as praças da Prefeitura e da Catedral, que abrigam a maior concentração de barracas de souvenir e alimentação. Os currais dos dois Bois1 também recebem atenção especial, pois é neles que são realizados os últimos ensaios, grandes festas com maior ou menor grau de abertura para o público, e é deles que partem as passeatas dos bois pela cidade, trazendo para as ruas o festejo com os Bois-Bumbás que de outra maneira estariam confinados ao bumbódromo.

25 Os bairros mais populares e periféricos de Parintins2 também se incluem nos preparativos para o Festival ao pintar ruas e fachadas, hastear bandeiras, acender fogueiras para a passagem do Boi e tocar em seus aparelhos de som incessantemente as toadas tradicionais ou aquelas que serão apresentadas no presente Festival. Tais preparativos são tornados visíveis pelo concurso promovido pela Rede Alvorada, que transmite imagens da decoração para as televisões locais e elege a rua mais bem enfeitada, premiando seus moradores com uma quantia em dinheiro.

Do País do Futebol na Terra do Folclore, ou do tatu- bola que visita o curral dos bois

26 No ano de 2014 o festival ocorreu em meio à Copa, nos dias 27, 28 e 29 de junho, quando já não havia mais jogos em Manaus. Por questões referentes aos direitos de transmissão

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do festival e dos jogos, os Bois acabaram excluídos da programação oficial da Copa (ver Portal do JJ 2014). Os diretores dos Bois, por sua vez, declararam à imprensa que não fariam alusões diretas ao megaevento esportivo (ver Seixas e Mendonça 2014).

27 Assim, para as apresentações de 2014, o Boi Garantido escolheu como tema geral de sua apresentação a “Fé” e o Boi Caprichoso “Tawa Paiera” ou “aldeia mística”. Houve, contudo, uma busca por integrar conceitos de identidade nacional e patriotismo aos temas e enredos nos quais mitos, grafismos e outros diacríticos indígenas3 são incorporados a uma estrutura cênica pré-estruturada. Uma das principais toadas (música-enredo) do Boi Garantido chamava-se “brasilidade”. Além disso, Garantido e Caprichoso incorporaram algumas imagens da Copa e transfiguraram-nas para situações de preparação em currais e arena, espaços comuns do folclore local, tecendo correlações entre futebol e folguedo. Cada bumbá programou parte de sua performance pré-arena para nela incidir o tema Copa do Mundo de Futebol.

28 Era afinal ano de Copa do Mundo no Brasil, acendendo as expectativas de incremento de renda e público para o Festival de Parintins, que atrairia torcedores brasileiros e estrangeiros a Manaus para assistir aos jogos. Para tanto, o Festival Folclórico do Boi- Bumbá de Parintins tinha que se enquadrar como evento possível no calendário da Copa, uma das atrações paralelas para o público do megaevento. Mas para além das expectativas econômicas, havia a necessidade de fazer os enredos se encontrarem de alguma maneira, unindo a morte e o renascimento do boi e os rituais e lendas indígenas em cena à espetacularização nacional do evento futebolístico. Unir a experiência do megaevento regional ao megaevento global realizado em solo brasileiro.

29 A ocorrência concomitante do Festival e da Copa no mês de junho levaram a uma proliferação de imagens que mobilizavam sentimentos de pertencimento, rivalidade, disputa e torcida, sobrepondo os aspectos paradigmáticos das seleções mundiais e da iconografia dos bois. Um jornalista de Manaus cogitou que na inauguração da Arena Amazonas pelo jogo Itália x Inglaterra, por exemplo, os torcedores do Boi Caprichoso haveriam de torcer pelos italianos enquanto os do Boi Garantido torceriam pela seleção inglesa. Esta e outras tentativas de correlação direta entre as cores das seleções de futebol e a política cromática de rivalidade em Parintins friccionavam as imagens dos eventos, gerando espaço para ambiguidades e controvérsias.

30 Isto era perceptível nos esforços coletivos de decoração das ruas. De um lado ao outro, eram suspensas pequenas bandeirolas em tiras, que costumam ser mantidas por muitos meses após o festival. Costumeiramente, são hasteadas bandeiras azuis nas ruas do lado Caprichoso e vermelhas e brancas do lado Garantido. Em ano de Copa, surgem também as cores da seleção brasileira : verde, amarelo, azul e branco. Fato suficiente para que o Boi Caprichoso, de modo jocoso, reivindicasse maior legitimidade e brasilidade, pois sua cor já se encontrava nas cores do Brasil. Argumento repetido nas provocações nas ruas e no Bumbódromo, consonantes com o aspecto de desafio e rivalidade que rege o festival. Os fãs do Garantido, hesitantes em erguer bandeiras azuis nas suas ruas, criaram por sua vez decorações em verde, amarelo, branco e vermelho, cores que também preencheram as formas do Fuleco, o escudo da Confederação Brasileira de Futebol, as bandeiras e corações pintados no asfalto das ruas e nos muros das casas. As estrelas que encimam o escudo da CBF (seis com a expectativa do hexacampeonato) igualmente evocavam o Boi Caprichoso, cuja fronte exibe uma estrela, contra argumentado pela torcida do Garantido que encerrava sua brasilidade e sua torcida em seu próprio símbolo, o coração.

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Figura - Rua ornamentada para o concurso da Rádio Alvorada. Crédito: Gustavo Saunier

Figura - Rua enfeitada para o Concurso da Rádio Alvorada. Crédito: Gustavo Saunier

31 Da mesma maneira, o padrão FIFA, suas disciplinas e etiquetas que com data para começar e terminar no Brasil, foi subvertido pelos tipos e preços de produtos relacionados à Copa e associados aos bumbás. Chapéus regionais adornados pelo personagem Fuleco e bolsas a tiracolo com imagens gravadas do mascote da Copa em conjunto a dos bois eram oferecidos como representação da competição na Amazônia.

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Produtos oficiais e oficiosos de uma competição oficial mas repleta de expedientes igualmente oficiosos.

32 A produção regional artesanal, golpeada pelo afluxo de produtos industrializados com os motivos da Copa, esforçou-se em se adaptar à demanda esperada para não se obliterar diante de novas cores, marcas e símbolos. Um esforço percebido por vezes como incongruência entre a busca pela regionalidade amazônica como valor agregado aos produtos e os motivos globalizados. Por outro lado, é possível pensar que, ao dispor símbolos do Boi e da Copa lado a lado, ao colocá-los em relação, o que resultou foi menos uma conciliação ou um englobamento de uma parte a outra, e mais um contato hesitante, cujas regras e protocolos deveriam ser negociados. Ao invés da união, a afirmação e evidenciação das diferenças entre o tatu-bola boleiro e os dois bois bumbás.

33 No auge da rivalidade anualmente renovada na cidade por um espetáculo agonístico e internamente disjuntivo, não parecia haver solo fértil para o discurso de conjunção de uma comunidade imaginada da torcida brasileira, devotada à seleção. Na Copa das Copas, as outras seleções eram visitantes no país do futebol, que as recebia para enfrentarem o Brasil e se contagiarem de brasilidade fora dele. Em Parintins, Fuleco era o visitante, instado pelos parintinenses a também assumir-se Garantido ou Caprichoso para poder adentrar o seu curral.

De vitórias e derrotas

34 Contrariando as expectativas de que o festival pudesse ser subsumido aos motivos da Copa do Mundo em Parintins, tornou-se perceptível que a efervescência das galeras pela disputa entre os Bois sobrepujava as torcidas pela seleção. Apesar da ubiquidade de televisores e telões sintonizados nos jogos em todas as partidas da Copa, nem mesmo os jogos da seleção brasileira promoviam reuniões concentradas de espectadores. Já nos dias do festival, centenas de jovens membros das fieis galeras amanheciam nas filas para garantir seu lugar nas arquibancadas, enquanto torcedores mais velhos e/ou de maior poder aquisitivo procuravam os cambistas para adquirir ingressos para as numeradas e camarotes e outros tantos aglomeravam-se em qualquer lanchonete, quiosque ou carrinho em que houvesse transmissão do espetáculo. Nos arredores dos bumbódromos, cantos e gritos de guerra eram entoados sob o sol forte ou as pancadas de chuva características da estação. A última noite do festival quase foi cancelada por uma tempestade precipitada pouco antes do início do espetáculo, danificando diversas alegorias e atrasando em mais de duas horas as apresentações. A galera do Caprichoso, Boi que iniciaria as apresentações, cantava e dançava enquanto esperava debaixo de chuva; já a galera do Garantido, proibida de se manifestar no turno do Boi contrário, esperava paciente e estoicamente.

35 Com a mesma intensidade emergiu a indignação pela perda de pontos do Boi Caprichoso em função da falta de uma autorização para uso de fogos de artifício, o que assegurou uma ampla margem de vitória ao Boi Garantido, vitória esta celebrada com uma grande festa em seu Curral, que durou todo o dia 30 de junho. Lutos e efusividades públicas, dramatizadas e discutidas nas ruas. Já os desastrosos jogos da semifinal e da disputa pelo terceiro lugar, em que a Seleção Brasileira perdeu por 7x1 para a Alemanha no dia 8 de julho e por 3x0 para a Holanda no dia 12 de julho, eram sentidos de modo mais íntimo, entre olhares trocados em frente aos televisores das casas e das lanchonetes. Comentava-se, com algum estarrecimento decerto, mas com resignação.

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Os parintinenses pareciam pouco permeáveis seja ao discurso catastrófico seja às tentativas de reconciliação com a Seleção Brasileira de futebol promovidas pela grande mídia.

36 A melancolia com a Copa tornou-se outra. A competição de futebol reforçou por efeitos opostos o que se esperava: em vez de aumentar a quantidade de turistas que se dirigiram a Parintins, integrando a paixão nacional pelo esporte junto ao acompanhamento da apresentação de Garantido e Caprichoso, houve baixa significativa. As demandas projetadas em termos de supervalorização do produto Copa geraram resultados apenas razoáveis. Varejistas, donos de pousadas e hotéis e mototaxistas queixavam-se do baixo movimento durante os dias em que normalmente são feitas as reservas que sustentarão o orçamento de muitos ao longo do ano.

37 O clima de festa e torcida retornou dois meses após o Festival e a Copa. Nos dias que antecederam à eleição do novo presidente do Boi Garantido, em 31 de agosto de 2014 (após o festival, portanto), a cidade foi novamente revestida de banners, bandeiras e adornos feitos pelos especialistas em alegorias que Parintins transformou em produto de exportação. Circulavam carros de som ecoando jingles de campanha em ritmo de toada e cabos eleitorais percorriam casas em busca de sócios do Garantido que pudessem votar nos candidatos de uma das sete chapas concorrentes, em uma campanha eleitoral que se confundia e ao mesmo tempo se sobressaía à campanha eleitoral político-partidária em curso, haja vista que personagens proeminentes dos Bois concorriam ou apoiavam candidatos a deputado estadual e federal. Embora não houvesse correlação direta entre a polarização dos Bois e dos partidos em campanha nas eleições brasileiras, em meio ao emaranhado de coligações e alianças regionais, é possível que alguma fricção houvesse entre a política cromática dos Bois vermelho e azul e a polarização eleitoral entre PT e PSDB.

38 Entrementes, a principal pauta das campanhas para a diretoria do Garantido era o equilíbrio das contas e a administração da enorme dívida acumulada pelo Boi Garantido, que compromete o pagamento de muitos empregados pela agremiação folclórica (soldadores, alegoristas, empurradores dos carros etc.). A sucessão de alegadas más gestões e a arrecadação inferior às projeções soaram como derrotas e o prenúncio de um futuro difícil para o Boi bicampeão, cuja sorte não é lá muito diferente da do Boi Caprichoso.

De totalidades que colidem

39 Pensar a Copa do Mundo e sua recepção fora dos grandes eixos urbanos e para além dos temas clássicos de uma Antropologia do Esporte permite um efeito de iluminação mútua entre objetos.

40 Imagens da Copa e do Boi aparentemente são geradas pelo mesmo ímpeto de torcida e de produção de uma efervescência coletiva, para ficarmos nos termos caros à escola sociológica francesa. Porém, quanto maior o esforço pela união dos temas dos Bois no verde e amarelo unificador da Seleção, mais evidente a diferença complementar mas irreconciliável do vermelho e azul de Garantido e Caprichoso. Como obedecer ao chamado da união pela brasilidade na Copa do Mundo contra adversários estrangeiros se a adesão às suas cores destruía justamente a rivalidade constitutiva local do festival? ostentar o azul brasileiro seria para o Garantido destruir sua oposição ao Caprichoso? pintar o círculo da bandeira brasileira de vermelho seria uma espécie de crime contra a

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pátria? e quanto ao mascote da FIFA? ninguém sabia ao certo, enquanto os processos de dessacralização do vermelho, do azul e dos símbolos brasileiros prosseguiam em seu iconoclash.

41 Sobressaíam assim os artifícios empregados tanto para a construção da unidade quanto da rivalidade e, por conseguinte, as engrenagens e as mediações de ambos os “fatos sociais totais”. Se nos protestos “anti-Copa” perguntava-se “Copa para quem?” denunciando os processos de desigualdade e exclusão impulsionados pelos preparativos para o megaevento, em Parintins a pergunta era outra, talvez: “Qual será a nossa Copa?”, contestando a pretensão de integração nacional que permeia sempre os discursos colonialistas sobre a Amazônia com a afirmação de sua regionalidade, paradoxalmente uma regionalidade financiada pelo grande capital e que busca se transformar em mercadoria de exportação para visitantes de fora da região ou do país.

42 Diante de ambos os “fatos sociais totais”, atitudes de crença e ceticismo, paixão e indiferença, sustentavam a ambiguidade em meio à cacofonia que se produziu e que deixou vestígios no curso dos próximos meses (cf. Latour, 2002, p. 32). Curiosamente, imagens e símbolos que se deterioravam, lavados pelas chuvas, pelo sol forte e pela falta de manutenção das ruas de Parintins que foram alagadas durante a cheia e encheram-se de buracos em 2014. E este progressivo apagamento talvez seja o que coloque novamente as imagens em seu fluxo, liberando os Bois-Bumbás do encontro com a brasilidade homogeneizante das Copas e o Fuleco de sua afiliação temporária a uma das galeras. Pelo menos, até a Copa do Mundo na Rússia, em 2018. Image 1000000000000A20000005B0AC89693E.jpg Figura - Barraca de lanches na Praça dos Bois, em agosto de 2014. Créditos: Ana Fiori

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NOTAS

1. Em 2014 a Cidade Garantido, o enorme curral do boi branco de coração vermelho, foi alagada na forte cheia. Os ensaios ocorreram então no “curral velho”, ou “curralzinho”. O revés serviu ao tropo de superação evocado nos discursos dos dirigentes e do levantador de toadas na arena, e como resposta às alegações do “contrário” Boi Caprichoso de que sua apresentação, em especial na última noite (que atrasou em duas horas por conta de uma forte tempestade) teria sido prejudicada pelas chuvas. 2. Para a conformação dos bairros de Parintins, por meio de loteamentos e ocupações, e sua composição socioeconômica, ver Souza 2013. 3. Esta incorporação de elementos indígenas às apresentações dos Bois gera tensões entre representações do índio genérico, suporte simbólico essencial para um enredo de brasilidade que se alicerça no “mito das três raças” como constituinte da nação, e a exigência de fidelidade às cosmologias das etnias retratadas, que devem ser comprovadas por meio de pesquisas realizadas pela equipe criativa de cada Boi. Os “equívocos” que cada espetáculo comete em relação aos grupos indígenas evocados é categoria de acusação entre os torcedores mais intelectualizados de cada Boi e em tese pode levar a uma nota mais baixa por jurados “especialistas”, antropólogos e etnomusicólogos, entre outros.

RESUMOS

Este artigo visa uma análise da justaposição dos eventos da Copa do Mundo da FIFA no Brasil e do Festival Folclórico do Boi-Bumbá na cidade de Parintins/AM. A partir de breve recapitulação da realização da Copa no Brasil e exposição dos contornos do Boi- Bumbá, contrapõe-se a busca de uma brasilidade unida pela Seleção Brasileira de Futebol e a rivalidade constitutiva entre os Bois- Bumbás Caprichoso e Garantido. Para tanto, desloca-se o conceito de Copa do Mundo como “fato social total”, classificação que poderia estender-se ao festival, para apreender os iconoclashes produzidos por tropos conjuntivos e disjuntivos, e o englobamento das cores e da iconografia da Copa pela política cromática de Parintins.

This article analyzes the justaposition of the FIFA's World Cup in Brazil and the Boi Bumbá Folcloric Festival in the city of Parintins, state of Amazon. After a brief summary of Brazil World Cup realizations and a synopsis of Boi Bumbá outline, this article compares the intended Brazilianess united by the support to Brazilian Football Team and the constitutive rivelry between the Boi Bumbás Caprichoso and Garantido. Therefore, the conceptualization of the World Cup, a conceptualization that would equally fit the Festival, is desplaced in order to grasp the iconoclashs produced by connective and disjunctive tropes and also by the aggregation of colors and iconography of the Cup into the chromatic policy of Parintins.

ÍNDICE

Palavras-chave: Festival Folclórico de Parintins, Copa do Mundo, iconoclash, megaeventos Keywords: Boi Bumbá Folcloric Festival, World Cup, iconoclash, mega event

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AUTORES

ANA LETÍCIA DE FIORI

Doutoranda PPGAS/USP. [email protected]

RENAN ALBUQUERQUE RODRIGUES

Professor Centro de Estudos Superiores de Parintins – Ufam. [email protected]

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Mobilização Kaingang para a Copa 2014 – notas etnográficas a partir de Porto Alegre

Herbert Walter Hermann e Arlei Sander Damo

Introdução

1 Este texto, com viés claramente etnográfico, não se encaixa no modelo de etnografia convencional, na qual um pesquisador relata sua experiência de campo. Mas tampouco é uma narrativa experimental, com pretensões inovadoras. Trata-se, efetivamente, de um texto dialogado, no qual confrontamos certas expectativas que estavam na origem do empreendimento investigativo com a fluidez do tempo, a interlocução com pessoas e a concretização (ou não) de certos acontecimentos.

2 Uma das diferenças substantivas da etnografia – e aqui poder-se-ia falar nos mais variados estilos – em relação a outras formas de trabalho de campo nas ciências sociais tem a ver com a maneira como uns e outros lidam com o que convencionamos chamar de “hipóteses”. Hipóteses são suposições baseadas em teorias vigentes ou, se o termo teoria é demasiado incômodo a certas antropologias, então poderíamos substituí-lo por interpretações, simplesmente. No caso de boa parte das ciências sociais, vai-se a campo para testar hipóteses, razão pela qual as expressões “aplicar questionário” e “coletar dados” aparecem com relativa frequência, ao passo que nas etnografias, sobretudo as contemporâneas, tais termos parecem incongruentes.

3 De modo geral, a etnografia, desde suas origens modernas, sempre demonstrou uma abertura para o diálogo com seus interlocutores ou, num espectro mais amplo, para com “a realidade do campo”. Daí porque a produção textual se caracteriza pela constante reformulação das hipóteses originárias, um processo que só é concluído, não raro a fórceps, com os últimos ajustes do texto. Aquilo que para outros pesquisadores poderia ser considerado um erro de concepção capaz de comprometer a pesquisa, para os etnógrafos é parte da rotina. Isso é tão evidente na antropologia que as exposições sobre os resultados de uma investigação seguidamente começam com relatos, quase

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sempre anedóticos, de como o pesquisador foi surpreendido pelos seus interlocutores, seja porque seu plano estava equivocado, porque estes não tinham o menor interesse de conversar sobre os temas propostos, porque ocorreram eventos extraordinários que forçaram a mudança nos rumos do trabalho e assim por diante. Partimos para o campo com convicções que, sabemos de antemão, serão confrontadas. Em certos casos, vamos a campo justamente com esta finalidade e, por isso mesmo, retornamos com novas perspectivas. Talvez esta não seja uma exclusividade da etnografia, sendo o nosso diferencial o fato de não fazermos segredo sobre a bricolagem interpretativa.

4 Tendo em vista tais horizontes, nosso texto é bastante convencional. Na origem supúnhamos ser interessante acompanhar a maneira como os coletivos ameríndios se envolveriam com a realização da Copa do Mundo no Brasil, mas muitas das nossas expectativas não se confirmaram. Na verdade, o envolvimento dos indígenas seria um viés para abordar a recepção dos megaeventos em território nacional e estava contemplado no espectro de um projeto bem amplo, cujo propósito era etnografar a mobilização da sociedade brasileira em relação à realização da Copa do Mundo 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Por envolver diversas cidades – incluindo-se sedes e subsedes – a Copa era o principal foco do projeto, articulado em torno de 4 eixos principais, a saber: [1] da construção e reforma dos estádios; [2] da produção discursiva; [3] dos eventos satélites; [4] da contestação.1

5 O texto a seguir, subdividido em quatro partes, fala de coisas que aconteceram durante a Copa, e das que não aconteceram; fala do envolvimento sobretudo de um núcleo familiar Kaingang, incluindo suas expectativas, desejos e realizações e mostrando a partir desses uma intensa relação para além do próprio núcleo, relações essas com outros Kaingang e fóg e seus dispositivos.

6 No fim das contas, o texto evidencia uma questão importante, de como um coletivo ameríndio, que reivindica abertamente tal identificação, dialoga com a cidade, com as formas contemporâneas de espetáculo, com a presença da alteridade – neste caso não só de brasileiros, mas de outros estrangeiros, e por esses englobamentos busca visibilizar sua presença e destacar sua condição de protagonista na criação, e transformação, dos locais onde são engendradas e compelidas suas vidas.

Por que os “índios” poderiam se interessar pelos megaeventos?

7 Diversas etnografias contemporâneas destacam o enorme apreço que os coletivos ameríndios têm pelo futebol (Vianna 2001; Fassheber 2006). Isso pode ser comprovado pela adoção do jogo como uma atividade regular no cotidiano das aldeias; pelo engajamento às agremiações clubísticas tradicionais (com a assistência e a audiência dos certames nacionais e internacionais); pela apropriação de nomes de futebolistas de destaque às crianças; pelo uso ostensivo de vestimentas alusivas a clubes e à seleção brasileira, entre outros. As etnografias já realizadas entre esses coletivos destacam o interesse pelo desempenho do time da CBF, cuja participação em competições internacionais revela-se uma ocasião muito peculiar para manifestar a identificação com a nação brasileira.

8 Todavia, sendo a Copa realizada no Brasil, era de se esperar algo mais, ou ao menos diferente. Levando-se em consideração as formas discursivas mais estereotipadas sobre

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o Brasil no exterior, era razoável crer que os coletivos autóctones pudessem despertar o interesse da mídia internacional, ansiosa por retratar elementos exóticos da natureza e da cultura local. Pensando em outros megaeventos de ampla repercussão nacional e internacional, como a Rio 92, a Rio + 20 e, sobretudo, a malsucedida comemoração dos “500 anos do Brasil”, era esperado que ao menos alguns coletivos se mobilizassem para protestar contra a leniência do Estado na demarcação de territórios e no atendimento de outras reivindicações cuja agenda é sabidamente extensa. Como o projeto original era amplo, quaisquer eventos envolvendo a mobilização dos coletivos ameríndios poderiam ser incorporados à investigação, afinal este “deixar-se conduzir pelos nativos” é previsto em qualquer manual de etnografia. O eixo dos “eventos satélites” do projeto sobre os megaeventos no Brasil havia sido especialmente pensado para dar guarida aos acontecimentos imprevistos ou às margens dos jogos propriamente ditos – de fato, o que faz um evento “mega” é a articulação, em diferentes planos, de uma multiplicidade de eventos em torno de um centro (Damo & Oliven 2014).

9 Embora o espectro de questões fosse efetivamente extenso, estabelecemos um plano de investigação compatível com as possibilidades etnográficas. Em relação aos coletivos ameríndios, a estratégia incluía um monitoramento, via noticiário e contato com outros pesquisadores, sobre a mobilização em curso ou com potencial de ocorrer em diferentes partes do Brasil2. Simultaneamente, articulamos uma estratégia de aproximação com os coletivos que estavam mais próximos, no caso aqueles que transitam pela cidade de Porto Alegre3. Como a cidade foi desde sempre cogitada e mais tarde confirmada como uma das sedes, supúnhamos que haveria intenso fluxo de turistas no período da Copa. A convicção era reforçada pela candidatura oficial de 6 subsedes no Estado, onde ficariam hospedados jogadores e comissões técnicas. A aproximação antecipada com coletivos Kaingang e Mbyá-guarani estava focada, fundamentalmente, na observação da produção e comercialização de artesanato, embora eles tivessem cogitado, em algum momento, a possibilidade de realizar turismo étnico e até protestos.

10 Embora a presença de coletivos ameríndios seja invisibilizada nas representações do gaúcho e, sobretudo, dos sul-riograndenses, há diversos aldeamentos no estado, além de territórios reivindicados, inclusive na capital. Distintamente da Porto Alegre descrita como uma cidade fundada por portugueses e alavancada por alemães, outros dados historiográficos e etnográficos pautados sobre este território enfatizam que se não fossem os conhecimentos pretéritos dos indígenas, a penetração dos colonizadores teria sido diferente daquela que se efetivou. A geografia política da cidade ainda abriga este conhecimento até mesmo na designação de locais que tornaram-se “bairros ou logradouros como: Ipanema, Nonoai, Itapuã, Iguatemi, Ubirici, Jarí e em uma centena de ruas” (Catafesto de Souza 2008:15) cobertas por uma camada de asfalto.

11 Atualmente existem ao menos sete aldeamentos4 e outras formas de presença indígena na cidade, como acampamentos em vilas e nas proximidades de morros com mata remanescente, que além de abrigar famílias de coletivos Kaingang, Mbyá-guarani e Charrua, são locais de referência fundamental para as parentelas que habitam as regiões do planalto e serrana, o que acaba por formar um intenso corredor comunicacional indígena entre o interior e a capital do estado, e vice-versa.

12 Em Porto Alegre, os aldeamentos estão localizados no eixo sul-leste e foram (re)constituídos em distintos momentos. No caso Kaingang, isso ocorreu a partir de 1990, como aponta Aquino (2008). A aldeia mais recente fica na região leste da cidade e está sob o domínio Charrua. Há ainda outras duas aldeias sob domínio Kaingang e

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outras quatro sob domínio Mbyá-guarani, todas relativamente próximas umas das outras.

13 É fundamental informar que há outros locais de presença indígena na cidade, não organizados sob o formato de aldeamento, mas conectados embora dispersos, sob a chancela de núcleos familiares e extensos. As fronteiras da geografia política do município são claramente diluídas na circulação ainda mais intensa de pessoas em aldeias e acampamentos na região metropolitana (RMPA). Dois casos evidentes ocorrem entre os indígenas de Porto Alegre e aldeia Kaingang Por Fi, no município de São Leopoldo, e a aldeia “Kaingang-Mbyá” da Estiva, no munício de Viamão.

14 Segundo as estatísticas oficiais o Rio Grande do Sul conta com uma população indígena de 32.989 pessoas (entre Kaingang, Mbyá-guarani e Charrua), algo em torno de 0,3% da população. Porto Alegre exerce papel substancial nessa estatística, pois é o terceiro munícipio com a maior população indígena no Sul do Brasil : ao todo são 3.308 pessoas (Brasil, 2012), perfazendo aproximadamente 0,22% da população da cidade e 10% dos indígenas que habitam o Rio Grande do Sul.

15 Trata-se, pois, de uma cidade com indígenas em carne e osso, e de uma presença destacada muito além dos dados estatísticos. O Parque da Redenção, um dos cartões postais da cidade, abriga aos domingos o tradicional e concorrido Brique da Redenção – sobre os quais retornaremos adiante. Passear pelo Brique aos domingos pela manhã é algo que quase todos os porto-alegrenses fazem ou fizeram, sobretudo os de classe média. Numa cidade que carece de belezas naturais, o Brique é um dos lugares para onde os porto-alegrenses conduzem seus hóspedes quando desejam mostrar sua cidade. Numa das extremidades do parque, a mais concorrida delas, vem crescendo nas duas últimas décadas a presença de feirantes Kaingang e Mbyá-guarani. Impossível, pois, passear pelo Brique sem cruzar com eles e, sobretudo, sem notar que a produção artesanal vem se sofisticando, ao adequar-se às demandas do mundo dos brancos. Basta circular pelo local às vésperas de datas comemorativas, como Páscoa e Natal, por exemplo, e ver-se-á uma série extensa de adereços confeccionados com taquara e cipó adequados às demandas do mercado porto-alegrense.

16 Esta abertura poderia ser estendida aos turistas no período da Copa, razão pela qual a aproximação etnográfica foi realizada principalmente com os Kaingang. A pesquisa inicialmente pensou os espaços de comercialização de artesanato como “portas” de acesso ao universo indígena. Os Kaingang estavam nestes espaços em quantidade mais significativa e de forma mais recorrente que os demais coletivos indígenas e assim os contatos iniciais reverberaram mais rapidamente em interlocuções.

17 À sua maneira e já habituados à presença de antropólogos, os “nativos” passaram a negociar sua própria participação na pesquisa, pensando-a como plataforma possível de estar na Copa conduzindo, em parte, os próximos passos e questões do trabalho de campo.

A presença indígena no Brique da Redenção e em outros locais

18 Os dias ensolarados, sobretudo no inverno, ajudam a lotar praças e passeios públicos nos finais de semana porto-alegrenses, sendo o Brique da Redenção um desses espaços. A administração municipal de Porto Alegre, no ano de 1978, sob inspiração do Mercado

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de Pulgas de San Telmo, em Buenos Aires, articulou com duas dúzias de artesãos uma feira ao ar livre numa das quatro avenidas que circundam o Parque da Redenção. A iniciativa ganhou força com o passar dos anos e em 2005 o Brique foi alçado à condição de patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Sul.

19 Atualmente, 172 expositores devidamente cadastrados pela Associação dos Artesãos do Brique (AAB) dispõem seus boxes na calçada central da Avenida José Bonifácio, em 750 metros disponíveis. Aos sábados também há comércio no local, incluindo-se uma tradicional feira de produtos agroecológicos. No entanto, o domingo é o único dia em que a avenida é fechada ao trânsito de veículos. Entre os 172 expositores há uma variedade de itens que podem ser encontrados, sejam utilitários, colecionáveis, lúdicos, decorativos ou alimentícios.

20 A disposição dos expositores fica de frente para uma das vias da avenida, aquela mais próxima ao parque, sendo a outra usada como backstage. Na área de fluxo, além de passantes, artistas de rua apresentam uma série de pequenos espetáculos, movimentos sociais organizam panfletagens ou abaixo-assinados, partidos lançam candidatos ou arregimentam filiados e assim o Brique adquire um colorido que transcende o aspecto comercial.

21 Um dos acessos possíveis ao Brique ocorre via Parque da Redenção, mas outros caminhos são possíveis, o principal situado num dos extremos, que dá para o bairro Bom Fim, um mercado público de mesmo nome e uma série de outros estabelecimentos comerciais, religiosos, médicos e até de segurança. Nessa extremidade, que recebe o maior fluxo de pedestres, estão os artesãos indígenas, não “oficializados” pela AAB, mas devidamente legitimados pelo poder público municipal. Diferentemente dos artesãos não indígenas, os Kaingang, Mbyá-guarani e Charrua, expõem suas mercadorias no leito da rua. A presença dos Charrua é menos frequente, ao contrário dos Mbyá e Kaingang, sobretudo destes últimos, os mais numerosos5.

22 À sombra de árvores e sob resguardo de cestos de cipó, balaios de taquara, colares de sementes, filtros de sonho, DVDs6 e outros artefatos não indígenas (fóg) pode-se encontrar alguns ilustres Kaingang, como o casal João Padilha e Iracema Rã Ga Nascimento7 protagonistas, e testemunhas, desse local (Jaenisch 2010; Eltz 2011).

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Fotografia 1 - O artesanato do núcleo familiar de João Padilha e Iracema, à esquerda na foto, ganhou o reforço no último ano de uma estrutura de metal, ao estilo dos boxes fóg. Somente o artesanato em cipó e taquara fica em contato direto no asfalto; o restante está mais próximo dos olhos e mãos dos passantes. Autor: Herbert W. Hermann.

23 Expondo seu artesanato Kaingang a céu aberto se colocam em frente aos artesãos fóg, e seus boxes, e ao lado de outros Kaingang, ajudando a conformar e restringir caminhos possíveis. Ali, em aproximadamente três metros de asfalto, de costas para um posto de combustível, passam os domingos comercializando e dialogando com várias audiências, uns mais atentos aos entendimentos da vida e a luta Kaingang, outros nem tanto.

24 Atualmente, os Kaingang podem ser encontrados com regularidade em diversos espaços da cidade, além do Brique. Assim, estabelecendo relações de troca, material e simbólica, articulações entre os próprios indígenas e entre os fóg, como o caso do pesquisador que era convocado de maneira contundente a “oportunizar” acessos. Além de feiras, calçadas, ruas, praças e parques é possível encontrá-los em quatro espaços específicos: nas cercanias da Lomba do Pinheiro, Morro do Osso, Morro da Glória e Morro Santana, territórios afastados do centro da capital, onde comercializam artesanato e cultivam alianças externas, e próximos aos matos restantes da cidade, um domínio privilegiado vinculado desde o repertório de nomes, até de plantas e animais de reconhecida importância sociocultural e cosmológica para o coletivo (Silva 2002).

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Ilustração 1 – Mapa da presença Kaingang em Porto Alegre. Elaborado pelos autores.

25 A presença Kaingang nos arredores do Morro Santana, local de residência do núcleo de João Padilha e Iracema, remonta a meados da década de 1980 e é formado por uma rede de núcleos familiares distribuídos por habitações na Vila Jardim Protásio Alves e Vila Safira (Aquino 2008; Silva et. al. 2008).

26 A partir desse ambiente de encontros na cidade os primeiros contatos foram iniciados, pessoas acessadas e diálogos permitidos. Não tardou para que o local de negociação per se fosse apenas um dos locais de diálogo na pesquisa, convites para visitar suas casas e outros em e além de Porto Alegre; os capões de mato na proximidade das aldeias e acampamentos; e os órgãos do poder público. Naquele instante, primeiro semestre de 2013, o assunto Copa do Mundo não era recorrente nas conversas. As intenções apreendidas eram múltiplas, iam desde o não envolvimento (alguns negando ou mesmo com postura contrária ao megaevento) até aqueles que pretendiam “pedir um espaço perto do estádio para vender [artesanato] e ver os ingressos para os indígenas8”, como o casal Padilha, ou outros Kaingang que pretendiam “criar um roteiro na Aldeia Lomba do Pinheiro9 para receber os turistas, para vender só nosso artesanato, com nosso preço”, palavras soltas de planos ainda vagos.

27 Os encontros no Brique renderam, em maio de 2013, um convite singular de João e Iracema: a primeira visita a FUNAI, algo novo apenas para o pesquisador convidado, pois como registrado a posteriori tinha certa recorrência. O convite partira da pauta Kaingang que também envolvia a Copa do Mundo, quiçá o menos importante de todos os assuntos a serem tratados. A ida era motivada por outros quatro pedidos: (1) custeamento de um depósito para o artesanato indígena comercializado pelos Kaingang em Porto Alegre; (2) a construção de um banheiro na Loja Indígena que está localizada ao lado do Brique da Redenção; (3) um computador com acesso à internet no ambiente dessa loja; e (4) a criação de um site para divulgar o artesanato Kaingang para os turistas que viriam para a Copa.

28 O acompanhamento ocorreu no mês subsequente e o ponto de encontro acordado foi o centro da cidade, perto do escritório da FUNAI, em uma esquina de intenso tráfego de pessoas e veículos, um caminho conhecido por João e Iracema, mas nem por isso apreciado.

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Sala aberta, sem recepção, passamos pelo primeiro funcionário que nos cumprimenta sentado e ali permanece. João sem receio adentra o local, eu [Herbert] e Iracema o acompanhamos. Ele procura o coordenador do escritório, que é encontrado na última das quatro minúsculas salas juntamente com uma dezena de indígenas. A princípio a reunião “já vai acabar” e somos depositados na primeira sala que passamos. Não há cadeiras no recinto, alguns cestos de cipó e de taquara, um escaninho em desordem, um computador antigo e uma impressora ocupam o ambiente. Nas paredes, imagens de projetos anteriores, apoiados pelo órgão, um deles com os Kaingang da Emã Por Fi [Aldeia Kaingang em São Leopoldo/RS, na Região Metropolitana de Porto Alegre] que Iracema me esclarece ter parentes, alguns deles inclusive nas imagens. Mal entendidos a parte, o tempo passa e permanecemos de pé. O celular do funcionário público insiste em tocar interrompendo constantemente a fala de João e Iracema. Antes sorridente, o casal começa a irritar-se; eu, apenas ouvinte, sou motivo de curiosidade do indigenista, que a todo instante me dirige o olhar como quem pergunta “quem é você? O que pretende?”. Enfim, cria-se uma comunicação tensa. A postura séria e impositiva de João, no início do diálogo, dá lugar a uma fala irônica frente aquela situação. Inúmeros subterfúgios são acionados pelo funcionário, mas a estratégia principal é a postergação. Os trinta minutos que lá permanecemos, 25 esperando o atendimento e os demais sendo “atendidos”, são furiosamente questionados por Iracema. No elevador, reflexões deles são elucidativas de suas angústias do “diálogo” com órgão. O que era uma visita para “solução de problemas” reverberou num emaranhado de tarefas e procedimentos que estaria a cargo do casal, alguns extremamente complicados pois envolviam conversas e entendimentos com outros Kaingang, não tão “próximos”. (Trecho do diário de Campo do dia 18 de junho de 2013 – Herbert W. Hermann)

29 Alguns domingos se passam e o descontentamento permanece, nenhum pedido foi contemplado, o que só corrobora a percepção do casal de que se não cobrarem nada acontece. Paralelamente outros diálogos e outros convites se intensificam no final de 2013, um destes de uma das lideranças da Aldeia da Lomba do Pinheiro para que os auxilie a captar recursos para criação de um roteiro de turismo dentro da aldeia.

30 A proposta não surtiu o efeito desejado pelo interlocutor, pois outros arranjos internos e externos eram fundamentais. Não apenas quanto a “buscar um recurso” como salientou outras vezes, mas também em virtude do planejamento e das negociações junto às instituições que estavam aquém da pesquisa ou dos esforços possíveis dos pesquisadores em empreender um projeto dessa magnitude. Simultaneamente à proposta sobre os roteiros de turismo na aldeia, o cacique articulava o englobamento do megaevento a partir de um intenso diálogo junto a organizações indígenas10 e das relações estabelecidas junto à Prefeitura de Porto Alegre11, principalmente em assegurar o protagonismo desses Kaingang frente aos demais.

31 Entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014 o campo arrefeceu em virtude das viagens realizadas por alguns interlocutores da Aldeia da Lomba do Pinheiro, principalmente para visitar os parentes nas aldeias do interior do estado e vender artesanato em cidades como Gramado e Tramandaí, a primeira localizada na serra e a segunda no litoral, sendo ambas muito visadas pelos turistas no período.

32 João Padilha e Iracema, em contrapartida, estavam acessíveis e ainda com o anseio de visibilizar os Kaingang durante a Copa do Mundo. Certos boatos os preocupavam, o principal era o de que não poderiam comercializar artesanato nem mesmo no Brique durante a Copa. O alarde que os angustiava fora iniciado pelos (des)entendimentos dos artesãos fóg com quem comercializam guirlandas e cestos de cipós, base para outros artesanatos não indígenas. Havia uma (in)compreensão sobre a Lei Geral da Copa que

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estava na esfera das (im)possibilidades de comercialização de produtos apartados da lista de patrocinadores oficiais da FIFA, afinal o Brique para muitos destes artesãos fóg estava a cinco quilômetros do local das partidas em Porto Alegre, o Estádio Beira-Rio.

33 Não eram raras as situações que os Kaingang solicitavam esclarecimentos sobre os desdobramentos da Copa, e o boato sobre a interdição do Brique foi um destes. Algumas cópias desses documentos foram distribuídas aos interlocutores mais próximos e como João relatara “vamos guardar [a cópia da Lei Geral da Copa] pra gente não ser logrado”. Experientes em lidar com os laudos antropológicos, dissertações e teses, documentos de identificação pessoal, cartas denúncia12 e inúmeros outros documentos necessários na relação com os fóg, os dispositivos legais eram perspectivados pelos interlocutores como mecanismos de comprovação de acessos frente às inúmeras restrições que poderiam ser impostas.

O Edital Vitrines Culturais na perspectiva Kaingang

34 Em março de 2014 um site que monitorávamos, o Portal da Copa, noticiou: “Edital prevê seleção de 60 mil peças artesanais para exposição e comercialização na Copa”13. Uma leitura rápida suscitou a imaginação de que o edital poderia ser uma saída às reiteradas solicitações Kaingang de inserção do artesanato perto do estádio, pois o acompanhamento via órgãos oficiais não surtia o efeito desejado. O edital coordenado pela Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura (SEC/MinC) em parceria com a Secretaria da Micro e Pequena Empresa (SEBRAE) tinha por objetivo convidar “os artesãos brasileiros a participarem de seleção nacional de peças artesanais para compor os estoques dos espaços do projeto Vitrines Culturais [...] durante a Copa do Mundo FIFA 2014” especialmente o “artesanato tradicional, indígena” (Brasil 2014:1-7). Informados a respeito, os interlocutores Kaingang mais próximos mostraram-se interessados, mas a efetiva participação no edital exigiria um esforço cooperativo.

35 A “disposição” Kaingang para colaborar com nosso projeto previa não apenas a troca de saberes, mas enredava a pesquisa em demandas de ação com o coletivo indígena. A constante exigência Kaingang apresentava, por um lado, uma expertise indígena em usar o fazer antropológico em termos próprios, e por outro, a possibilidade de uma reflexão sobre a condição etnográfica e do papel do antropólogo em campo. Observando outras experiências e aportes éticos e epistemológicos, engajados (Albert 1995) o entendimento era de que fazer valer o “pedido” Kaingang colocaria em jogo uma antropologia implicada, com os sujeitos e o contexto do qual fazem parte, como nos coloca o autor: [...] le grand mérite de l’a ‘anthropologie impliquée’ est sans conteste, au delà de son évidente pertinence éthique et politique, de contribuer à dissoudre la sempiternelle opposition entre anthropologie théorique et anthropologie appliquée au profit de l’idée, infiniment plus attractive et productive, d’une recherche anthropologique fondamentale intellectuellement et socialement investie dans la situation historique des sociétés qu’elle étudie et susceptible de mobiliser ses compétences en faveur de leur conquête de l’autodétermination (Albert 1995:118).

36 Assim, indo de encontro a posições que entenderiam a solicitação Kaingang como um “poluidor” da etnografia, tendo em vista que a condição “por excelência” e o afastamento necessários à observação participante estariam comprometidos, apostamos que, antes pelo contrário, tal condição de pesquisa implicada ofereceria uma

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problematização da posição (hegemônica) entre pesquisador e pesquisados, sujeito e objeto e outras dicotomias que reforçam assimetrias ante refletir sobre estas.

37 Nestes termos, o intercurso da pesquisa, composto também na relação entre o edital e o casal Kaingang, aclarou sobre possibilidades da antropologia em incentivar diálogos e refletir com outros sujeitos (Peacock 1989) destacando a intencionalidade, os desejos e suas posições na complexa rede de relações sociais (Ortner 1996) sem apartá-las necessariamente do contexto político e histórico no qual os grupos, e o(s) pesquisador(es), estão inseridos (Albert 1995).

38 Concretamente, a primeira preocupação estava em “traduzir” o edital e demonstrar todos os meandros caso o casal Kaingang optasse pela inscrição, pois suas expectativas poderiam ser correspondidas apenas parcialmente. O objetivo Kaingang era comercializar o artesanato “à sua maneira”, e não apartado de seus criadores, como o documento estipulava. Além disso, havia diversos procedimentos burocráticos, desde o preenchimento do edital, a certificação da condição de artesãos14 e até a comprovação de que o artesanato inscrito para seleção teria “[...] significados que condensam na vida social dos que os produzem, considerando aí saberes tradicionais investidos ao longo do tempo” (Brasil 2014:1). O objetivo explícito do edital era reunir o(s) artesanato(s) num espaço (des)contextualizado ao encontro do entendimento essencialista que visa valorizar o status simbólico indígena como patrimônio nacional brasileiro (Carneiro da Cunha 2009).

39 Naquele momento, o edital era entendido pelos interlocutores como uma alternativa concreta de lançarem-se em espaços interditos. Como dito por eles posteriormente, não eram apenas os aspectos econômicos (da venda de artesanato aos turistas) ou de serem “incorporados” (como “índios brasileiros”) ao megaevento, mas também os modos de seu acionamento cosmopolítico (Stengers 2005) em relação a visibilização dos e entre os Kaingang, tanto em termos da possibilidade de fala junto a outros sujeitos, quanto da própria presença de um artesanato Kaingang específico noutros espaços, como na proximidade do estádio onde ocorreriam as partidas de futebol. A Copa do Mundo entrava no registro de mais uma possibilidade, não determinante, de fazer valer suas próprias lógicas no trato com a alteridade, mesmo que a possibilidade desenhada pelo edital, em certa medida, circunscrevia o artesanato como objeto da “cultura material brasileira”.

40 Assim, o edital e as demandas objetivadas para cumprimento de prazos e produção documental adentraram na rotina de pesquisa de março até julho de 2014. Os diálogos com o casal, simultaneamente às exigências normativas do dispositivo, de certa forma reconfiguraram os encontros que ocorreram, também, em três outros locais: a casa onde residem e onde foi negociado o preenchimento documental para inscrição; a mata do Morro Santana onde foram coletados os cipós e taquaras necessários à confecção do artesanato; e os órgãos públicos ligados ao edital, responsáveis locais do projeto Vitrines Culturais. Com base nesses três locais pode-se pensar o engendramento do edital na vida do casal Kaingang.

41 No espaço da casa ocorreu a primeira leitura do edital. Um apanhado de dúvidas tornou incerta a participação no projeto. Em suma, as dúvidas levantadas eram de duas ordens: (1) relativas à descontextualização do artesanato Kaingang, que o enfraqueceria como agente de comunicação com a alteridade; e (2) da dependência junto ao pesquisador que os acompanhava, que ainda deveria passar por avaliações.

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42 A primeira dúvida decorria da própria incerteza do edital e da imprecisão das informações sobre o Vitrines Culturais. Sabia-se que as cidades-sede Manaus/AM, Recife/PE, Salvador/BA, Belo Horizonte/MG, Rio de Janeiro/RJ, São Paulo/SP e Porto Alegre/RS disponibilizariam espaços para a exposição e comercialização das peças selecionadas dentro da FIFA Fan Fest ou em “espaços culturais qualificados”. A condicionante, por parte dos interlocutores, era a garantia de que o artesanato ficaria apenas em Porto Alegre, pois a proximidade facilitaria a organização do artesanato à sua maneira e poderia incorrer em esclarecimentos aos turistas e jornalistas estrangeiros, a quem poderiam fornecer detalhes sobre a vida Kaingang na atualidade.

43 Outro ponto agravante foi a exigência, categórica e expressa no edital, da inclusão dos artesãos no Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB), algo entendido como complexo e que reforçaria a dependência junto ao pesquisador fóg que os acompanhava, que ainda deveria ser testado para saber se era de confiança.

44 Assim, para não restringir sua participação no Vitrines Culturais o casal chegou ao consenso de que era factível adotar mecanismo para minimizar tais danos e repercussões negativas no futuro. A primeira decisão foi selecionar o artesanato que tem por base o cipó e a taquara, que eram mais fortes (em sentido metonímico), como os Kaingang. Outro ponto acordado foi a integração do pesquisador em todas as etapas do processo: inscrição, envio e retirada das peças. Não menos importante foi a decisão de reforçar o domínio da “causa indígena”, convocando-o a outros eventos e vivências e orientando-o sobre com quais Kaingang dever-se-ia dialogar ou não.

45 Negociadas as pendências, pode-se iniciar os procedimentos junto a Casa do Artesão15 e o início do preenchimento das fichas de inscrição, uma para cada peça incluída na proposta. Um dos pontos definidos é que haveria duas propostas, uma com o artesanato em cipó confeccionado por João e outra para o artesanato em taquara confeccionado por Iracema. Com o auxílio de outros estudantes16, não vinculados ao projeto sobre megaeventos e convocados pelo casal para auxiliar no preenchimento das fichas de inscrição a geração documental obedeceu suas escolhas, desde as peças que seriam inscritas, suas respectivas quantidades e o valor de face para comercialização.

46 Conquanto o pesquisador e os estudantes sugerissem a inscrição de outras peças, principalmente de menor tamanho, Iracema refutava as sugestões argumentando que “não tem problema, vamos mostrar nossa cultura, se não vender lá depois levamos pro Brique”. Definitivamente o aspecto econômico não era o definidor de suas escolhas.

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Fotografia 2 - Com aproximadamente 15cm de altura por 30cm de diâmetro a bandeja de taquara Kainrú era uma das três peças encaminhadas na proposta de Iracema. Posteriormente como foi visto no espaço dedicado à comercialização, as peças de Iracema e João estariam entre as maiores, mas nem por isto seriam as mais evidentes. Autor: Herbert W. Hermann.

A peça é formada a partir do trançado feito com vários Vãnj (Taquaras), podendo ser Vãnj Hjathu (conhecido no sul do Brasil como Taquara Mansa), Vãnj Chjn (Taquara Cricíuma), ou Vãnj Chá (Taquaruçu), pois suas fibras possuem distintas qualidades: flexibilidade, resistência, dureza. O coletivo indígena Kaingang concebe o mundo a partir das características antitéticas e complementares ligadas aos gêmeos ancestrais Kamé e Kainrú. A partir desse conhecimento classificam fenômenos, seres, coisas, ideias e pessoas associadas cada qual aos demiurgos. O princípio do dualismo Kaingang é identificável também no artesanato: os traços compridos, associados à metade Kamé, e os traços redondos, associados à metade Kainrú, são marcas indeléveis passíveis de classificação. A bandeja de taquara Kainrú não é apenas um objeto material, pois condensa valores e compreensões de mundo ainda hoje repassada pelos antigos aos mais jovens. Por ser uma peça com a marca redonda (padronagem estética visível na lateral) a bandeja de taquara é classificada como Kainrú. A peça em questão foi confeccionada com o Vãnj Hjathu (Taquara Mansa), sendo que algumas tiras foram tingidas com anilina verde e vermelha, pois as tintas naturais (retiradas de certas plantas) atualmente são escassas, e com a finalidade de preservá-las os compostos sintéticos são utilizados. A taquara foi coletada pelo companheiro da artesã no Morro Santana, área com capão de mata na cidade de Porto Alegre. A escolha das taquaras é baseada nos conhecimentos dos antepassados que ensinaram sobre as variedades indicadas para cada objeto a ser criado (Descrição da Bandeja de Taquara Kainrú – Ficha de Inscrição Edital Vitrines Culturais, abril de 2014)

47 As propostas Tú anj kré ninin iãn kré Kanhgág (Revigorando a cultura Kaingang) com o artesanato de João e de Iracema foram ambas rejeitadas, com a única justificativa de que a pontuação recebida estava abaixo da linha de corte. A primeira fase de seleção estaria a cargo de uma comissão julgadora, formada por 12 representantes ligados aos órgãos de cultura e de turismo, que estipulariam uma nota (de 0 a 70 pontos) a partir dos seguintes critérios: qualidade técnica no processo de produção; processo criativo e

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valor cultural; capacidade técnica e de produção; comerciabilidade; e responsabilidade socioambiental. Contudo, não bastasse a falta de clareza sobre os critérios de pontuação elencados, o veredito estaria condicionado a posterior aprovação pela FIFA.

48 Quando informados da rejeição das propostas, Iracema alertou para a incompatibilidade de julgamento das mesmas, pois no contexto local há uma imensa contribuição dela e dos seus parentes no “registro da cultura Kaingang” e que houvera um equívoco dos organizadores do edital. A compreensão do casal era de que os organizadores estavam interessados somente nos “índios da Amazônia” e que mais uma vez se justificava a visibilização da presença Kaingang no Sul do Brasil pelos próprios Kaingang e seus aliados.

49 Todavia, acontecimentos externos ligados a outros Kaingang, e amplamente divulgados pela mídia17, incrementaram a sensação de que a não seleção no Vitrines Culturais decorria também de uma retaliação velada aos Kaingang e que naquele momento a aprovação de projetos que os envolvesse seria vetada.

50 A situação com os Kaingang da região do planalto (interior) preocupava sobremaneira João e Iracema tendo em vista que ainda articulam em Porto Alegre alianças para demarcação da Borboleta, uma área no município de Salto do Jacuí/RS que é reclamada desde a década de 1980 como área de ocupação tradicional Kaingang.

51 Imersos também nesses assuntos, nem por isso suspenderam os trâmites para reverter o resultado negativo obtido na primeira fase de seleção das propostas. A partir de diálogos junto ao casal um engenhoso argumento foi criado tendo como base uma série de materiais sobre os Kaingang em que eram figuras centrais ou mesmo coprodutores, tais como: o documentário Nën ä ëg vëjën nïm tï (A mata é que mostra nossa comida); a tese de doutorado em Antropologia Social Mrûr Jycre: a cultura do cipó de Ana Elisa de Castro Freitas; e uma publicação da FUNAI cujo título é: Objetos- sujeitos: a arte Kaingang como materialização de relações, todos evidenciando o protagonismo e a relevância de João Padilha e Iracema e seu artesanato no cenário local.

52 O acionamento e manipulação de objetos fóg pelos Kaingang como objetos de poder, quando devidamente ressignificados, não é algo recente (Freitas 2005:140). Em suas pesquisas, a autora encontrou colares (jãnka) de chefes (p’aí) Kaingang do século XIX que combinavam materiais heteróclitos incluindo diversas peças alóctones, como cartuchos de bala, e materiais extraídos do mato, como dentes de cateto (ogxé), o que não seriam indícios de “perda cultural” dos Kaingang, mas o exercício de sua criatividade e predação do Outro, daquilo que Fausto (2006) sublinha como a tradição da transformação dos coletivos indígenas.

53 Gordon (2006) etnografou contemporaneamente algo similar entre os Xicrin- Mebêngôkre, sobre o consumo dos objetos alóctones e concluiu que a reposição contínua de novos elementos adquiridos no exterior destina-se antes a “absorver a diferença do estrangeiro objetivada em sua cultura material, seu conhecimento, seus saberes, sua expressividade técnica e estética” (p.98). Os objetos alóctones ao entrarem no sistema local transformam-se em valores distintivos constituintes das pessoas. Poder-se-ia pensar o investimento Kaingang nestes termos?

54 A recusa inicial do projeto Vitrines Culturais18 à participação Kaingang transladou-se para um acolhimento, após a composição do recurso com os “documentos fóg da cultura Kaingang” e na lista final das propostas aprovadas foram incluídas duas das oito peças inscritas para o edital: a bandeja de taquara kainrú, de Iracema; e o canudo comprido e

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redondo (der rhor thej) de João. Faltando um mês e meio para início da Copa restavam outras pendências para efetivar a participação e a principal delas era o número de registro no SICAB, encaminhado em abril e sem retorno. Após uma manhã inteira na Casa do Artesão, e com a mediação de um representante do órgão indigenista municipal (Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e Direitos Específicos), o registro no SICAB foi obtido.

55 Na tarde do mesmo dia o casal coletaria o cipó e a taquara, no Morro Santana19, para a confecção das peças. Além da matéria-prima, Iracema, já iniciada no xamanismo Kaingang, valeu-se da ocasião para coletar folhas de plantas (remédio de erva) que ativaria em Faxinalzinho/RS, na viagem que realizaria com aliadas da causa indígena. O empreendimento fora motivado após um sonho20 que Iracema tivera com a mãe do cacique preso e que teria solicitado a ela que levasse remédio de erva para acalmar os parentes do interior, que sofriam com a prisão de suas lideranças.

56 O mês turbulento ainda traria mais surpresas aos interlocutores. A participação destes na Copa do Mundo não estaria restrita ao edital que o grupo de pesquisa auxiliara. O arranjo da Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e Direitos Específicos (SAPIDE), da Secretaria de Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo (SDR) e da Fundação Nacional do Indío (FUNAI) junto aos organizadores do Acampamento Farroupilha Extraordinário para Copa do Mundo (AFECM)21 visava conceder um espaço para comercialização de artesanato, e nada além disso. João Padilha e Iracema, além de outras lideranças indígenas em Porto Alegre, foram chamados e contrariando as expectativas (e anseios) dos órgãos, preferiram montar um acampamento, dentro do Acampamento Farroupilha, do que dispor seu artesanato dentro de um box no pavilhão de artesanato.

O acampamento Kaingang na Copa do Mundo

57 Quase como reflexo da atual situação fundiária indígena no Sul do Brasil, os Kaingang, com alguma luta, recebem 30m² dos 65 hectares utilizados pelo Acampamento Farroupilha Extraordinário para Copa do Mundo (AFECM), em Porto Alegre. De mais a mais, foram devidamente avisados de que o espaço não era apenas para seu uso, mas também de outros, Mbyá-guarani e Charrua se estes assim desejassem. Além de artesanato indígena e os documentários em DVD providenciados pelo SAPIDE, nada mais deveria ser comercializado. Em contrapartida, um toldo seria emprestado pela SDR, com montagem sob responsabilidade dos Kaingang.

58 Um dia após a abertura oficial da Copa, uma sexta-feira chuvosa em Porto Alegre, João Padilha e Iracema são localizados no AFECM. Além deles, outro casal Kaingang arrumava o ambiente. Valdemar Vicente Tokfyn e sua companheira desembarcaram no local vindos da Terra Indígena Kaingang de Iraí, distante 500 km da capital.

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Fotografia 3 - Iracema ao centro e João à esquerda não cessam a trama em cipó, um pouco mais contentes após a doação da lona prateada e o empréstimo da barraca pelo indigenista do SAPIDE. A companheira de Valdemar, à esquerda, ainda preocupada com a situação, pois estava reticente sobre a vinda a Porto Alegre para venda do artesanato. Autor: Herbert W. Hermann.

59 A presença desses outros Kaingang incrementou, no dia anterior, contendas entre os funcionários públicos “responsáveis” pela presença indígena no AFECM. Por um lado, os defensores da presença de núcleo familiares Kaingang do “interior”; por outro, os defensores de que o espaço seria legítimo apenas aos núcleos familiares residentes em Porto Alegre. O principal receio do órgão público municipal era que a estrutura disposta não oferecesse condições para a permanência temporária de qualquer família no local, pensado apenas como espaço de venda e não como alojamento.

60 A vinda a Porto Alegre não foi por acaso, ou intuição comercial, mas houvera um convite meses antes por parte de funcionários ligados a SDR, que se encaminharam a aldeias do planalto convidando os artesãos Kaingang a comercializarem na Feira da Agricultura Familiar Sabor Gaúcho (FAFSG)22, em Porto Alegre, que comporia junto com o Quiosque Brasil Orgânico Sustentável23 a estrutura no Cais do Porto chamada de Paradouro Gaúcho.

61 O ex-cacique de Iraí, Valdemar, além da companheira trazia consigo um de seus filhos; o casal venderia artesanato no AFECM e o filho cuidaria do box cedido a estes no FAFSG. A comercialização nos dois espaços exigiu da família empenho na confecção de mais de uma centena de filtros de sonhos, casinhas para passarinho, arcos e flechas (de tamanho reduzido), colares de semente e tantos outros artefatos em cipó e taquara. Cristiano, o filho do casal, que ficara encarregado de vender no espaço cedido no Paradouro Gaúcho relatara que: Eles [SDR] foram lá em casa e falaram com o pai [Valdemar] para vender artesanato aqui em Porto Alegre. A gente vem porque é bom pra vender, mas dessa vez tá bem fraco.

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Eu [Herbert] passei no acampamento e falei com teu pai e tua mãe e eles vão dormir lá e tu vai dormir onde? Uma missionária convidou eu e o Merongue [representante dos Mbyá-guarani de Mato Preto] pra ficar lá na casa dela, na Glória [bairro na zona sul], é bom porque ela dá café da manhã. O ruim é que tamo almoçando quando vendemos alguma coisa.

Fotografia 4 - Funcionários do SDR inspecionavam o Paradouro Gaúcho duas vezes por semana, como observado certa vez, preocupados com a “apresentação do espaço” e do “material de divulgação”. Autor: Herbert W. Hermann.

62 A expectativa de realizar boas vendas era elevada antes do megaevento, o que estimulou o casal João e Iracema a chamar parentes do interior para compor o quadro de artesãos Kaingang no AFECM, como relatou Zilio24 dias após sua vinda para comercializar na Copa do Mundo. Com a presença de sua irmã no AFECM, Iracema sentiu-se compelida a passar mais tempo no local, enquanto seus filhos e o filho de sua irmã passavam as tardes e parte das noites no espaço da Fifa Fan Fest, assistindo aos jogos e, sempre que possível, indo às festas no centro da cidade.

63 Assim que as partidas iniciaram, alguns ingressos começaram a circular entre os Kaingang, uma parte expressiva deles obtidos pelo cacique da Aldeia da Lomba do Pinheiro em virtude de seu diálogo junto a uma organização indigenista, outra parte negociada diretamente pelos próprios Kaingang. Um dos pontos-chave na interlocução dos pesquisadores com João Padilha e Iracema ocorreu em virtude da disponibilização de dois ingressos para os filhos mais velhos do casal.

64 O segundo jogo da Copa em Porto Alegre era esperado com expectativa25, inclusive por Katumé e Karindé, que enfim poderiam ir pela primeira vez ao estádio e ver de “perto” os jogadores que acompanham pela televisão26. Trajando uma camisa de futebol de um clube chileno, disponibilizada há um ano pelo pesquisador27, Katumé surgira no Brique da Redenção com roupas “novas” para ir ao jogo. A escolha não era fortuita e estava ancorada nas observações que fizera da transmissão televisiva no domingo pretérito, afinal, como relatara, “vou estar sozinho lá”, mesmo que acompanhado pelo

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pesquisador. A invisibilização foi um recurso utilizado, a ponto de solicitar a camisa do Sport Clube Internacional que o pesquisador trajava.

65 Enquanto percorriam o Caminho do Gol28 Katumé solicitou ao pesquisador que realizasse fotografias suas para “colocar no face[book]” posteriormente.

Fotografia 5 - O abraço de boas vindas de Katumé ao estrangeiro quase custou dez dólares ao pesquisador, mas após reiterados pedidos ao australiano a cobrança foi suspensa. Autor: Herbert W. Hermann.

66 Capturando uma ínfima parte da conversa, o instante imagético mostra o abraço de aproximação de Katumé ao estrangeiro (exótico), mas o que a imagem não permite evidenciar foi o desenrolar dessa aproximação. Avistado de longe por Katumé, o australiano foi acompanhado de perto por um quilômetro, percebendo-o como amigável, pois concedia fotos a aqueles que solicitavam; o Kaingang troca palavras em português com o estrangeiro, não obtendo resposta alguma. Intrigado com o ocorrido, questiona sobre o silêncio do estrangeiro e se seria possível a realização de uma foto. Após trocas de palavras em inglês entre o pesquisador e o personagem australiano é dissolvida a intenção do segundo em cobrar “ten bucks” (dez dólares) pela foto com Katumé. Após a foto, o caminho é percorrido no mais absoluto silêncio. A indisponibilidade de acompanhar Katumé dentro do estádio era um dos principais complicadores, pois havia apenas um ingresso e o pesquisador o aguardaria nos portões que cercavam o estádio. Durante o tempo que permaneceu dentro do estádio utilizou a filmadora do projeto de pesquisa para registrar lances da partida e principalmente os

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jogadores que em outras ocasiões citara.

Fotografia 6 - Das 13 imagens capturadas por Katumé dentro do estádio a mais apreciada era essa em que o futebolista Robben bate palma ao público presente. Autor: Katumé.

67 O que poderia passar despercebido num primeiro momento, como apenas mais uma imagem qualquer de um futebolista, e observado cuidadosamente pode revelar a íntima relação dos indígenas com o futebol. No canto inferior esquerdo está Robben, jogador da seleção holandesa, o centro da imagem deveria deslocar-se para o jogador altamente valorizado pelos jovens Kaingang devido a sua habilidade com a bola. Durante as visitas na casa de João Padilha e Iracema, Katumé e os irmãos deixavam a trama em cipó para outro momento para acompanhar os jogos televisionados. Costa (2013) enfrentou situação parecida em seu trabalho de campo no Alto Xingu, com os Kalapalo, que tratavam de ligar os geradores no horário dos jogos de futebol televisionados.

68 O (re)encontro ocorreu somente após o final da partida num dos portões externos. Indagações sobre sua experiência são respondidas com uma ou duas palavras durante o caminho de volta, bem menos excitante. Nas proximidades do AFECM o interlocutor reflete: [...] eu [Katumé] prefiro ver o jogo na televisão, mas a coisa boa é que tem muita mulher bonita, tinha uns piás [homens jovens] atrás de mim que não pararam de mexer com duas gurias [mulheres jovens] na minha frente, mas gostaram, parece uma festa né? Todo mundo tirando foto de celular, com roupa nova, relógio bonito.

69 Iracema aguardava o filho e não deixa de indagá-lo sobre sua primeira experiência assistindo a um jogo de futebol no estádio, assim como o pesquisador recebe palavras rápidas, o interesse de Katumé se dirige a Maurício, filho da irmã da mãe, e em Kaingang risadas e muita empolgação são externalizadas, quando questionados pelo pesquisador sobre o motivo das risadas prontamente respondem “vamos ver as gurias no telão [Fifa Fan Fest]”. Pelo visto a festa iria longe.

70 Solicitando sua camiseta do Universidad e devolvendo a do Inter se despede momentaneamente de todos, pois pretende assistir a outros jogos e ver outras pessoas sob a companhia de Maurício. Zilio, Nilda e Iracema, sem indagá-los sobre o horário de retorno, continuam a compartilhar o chimarrão em volta da fogueira, abastecida com os galhos caídos das árvores que foram apanhados no próprio acampamento.

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71 No dia seguinte, a cinza que encobria os tocos de madeira chamuscados suscitou algumas confissões dos mais jovens. Assim que os portões da Fifa Fan Fest se fecharam, tarde da noite, Katumé e Maurício acompanharam a multidão de estrangeiros e locais, rumo à Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto Alegre, aproveitando o ensejo para se divertir e se visibilizar, de outra forma, no espaço festivo da rua29. Oh Herbert porque não foi com a gente lá no telão [Fifa Fan Fest]? Tava bom, tava uma festa. Quando acabou a gente foi junto com a banda [provavelmente dos torcedores holandeses] na Cidade Baixa. A piazada tava tudo louca, confundiram nós com os Chileno daí a gente falou em Kaingang e não entendiam nada, as gurias tavam querendo os turistas, a gente enganava elas falando Kaingang e elas achando que a gente era chileno (Risos) Mas que horas vocês voltaram pro acampamento? Era de manhã, mas antes da gente voltar pra cá [AFECM], a gente foi no centro a pé, entrou nos baile, em várias festas. Era quase cinco horas quando encontramos umas índias [Kaingang] de Farroupilha que vieram pra cá, pra fazer festa. Uma delas tinha recebido o dinheiro da demissão e tava com bastante, daí ficamo lá, dançando com elas, se divertindo e elas pagando cerveja pra gente. O Maurício foi com duas delas pro [Aldeia] Morro do Osso e eu vim com uma pra cá.

72 A jovem ainda dormia na barraca montada embaixo do toldo do acampamento Kaingang, um tanto encabulada recusava a sair, mesmo com os pedidos insistentes de Katumé para que fosse à Aldeia do Morro do Osso e entregasse o cartão de passagem dele para Maurício, pois estava sem dinheiro e dependia do transporte coletivo para retornar ao AFECM.

73 O artesanato enviado para o Vitrines Culturais retorna em igual quantidade, após duas ou três visitas mal sucedidas à Casa do Artesão e outras tantas ligações e e-mails aos organizadores do edital. Bandejas de taquara kainrú, canudos e outros artefatos em cipó ainda podem ser encontrados aos domingos no Brique. Valdemar e sua companheira permaneceram cinco dias no AFECM, enquanto Cristiano ficou três a mais que seus pais, sempre no espaço FASFG, no Cais do Porto. Com as vendas aquém da expectativa, em ambos os locais30, no início da segunda semana não foram mais localizados em Porto Alegre. A Copa em termos econômicos foi um desastre para os Kaingang. Durante as três semanas que comercializaram no AFECM, João e Iracema arrecadaram apenas 60 reais, com a venda de duas peças de cipó compradas por um dos piquetes que compunham o acampamento. João e Iracema venderam menos também no Brique, que teve menos movimento durante a Copa do que nos finais de semana convencionais. Um dos concorrentes era o espaço da Fifa Fan Fest que lotava aos domingos com o público que (geralmente) frequentava o Brique. Segundo o levantamento realizado a partir dos diários de campo o melhor domingo de vendas de João e Iracema durante a Copa não superou o pior domingo de vendas do mesmo período no ano anterior.

Considerações finais

74 Talvez tenhamos superestimado, na origem, as possibilidades dos megaeventos, um pouco mistificados pela publicidade – oficial e não oficial – e até pela literatura acadêmica. Como no filme dos uruguaios César Charlone e Enrique Fernández “O Banheiro do Papa”, a Copa gerou mais expectativas e controvérsias do que realizações concretas. Em muitos aspectos, o envolvimento dos coletivos ameríndios com a Copa ficou aquém das nossas expectativas, mas não por desinteresse deles. Pelo menos no

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caso de Porto Alegre, alguns aspectos objetivos contribuíram para o esvaziamento dessa interação, mas nem por isso deixaram de ser significativos.

75 O modelo de disputa da primeira fase da Copa adotado pela FIFA, exigindo que as delegações se deslocassem permanentemente – nenhuma equipe jogou duas vezes na mesma cidade na primeira fase -, forçou-as, por questões logísticas, a se estabelecerem em subsedes mais centralizadas, notadamente na região Sudeste. A localização geográfica de Porto Alegre, situada num dos extremos do país, fez com que apenas uma das 6 subsedes credenciadas no Rio Grande do Sul fosse utilizada, e mesmo assim por uma seleção que não avançou na competição – a equatoriana. À exceção de uma noite ou duas, durante a passagem dos holandeses e argentinos pela cidade, Porto Alegre foi apenas uma cidade onde os turistas estiveram para assistir aos jogos, deslocando-se do aeroporto ao hotel e dali até o estádio, e depois fazendo o caminho inverso. O clima frio e chuvoso de inverno, a distância do mar e a ideia de que a cidade e o estado, bem como seus habitantes, tenham proximidade com a Europa em nada contribuiu para atrair turistas, afinal este não é o imaginário de Brasil veiculado entre os estrangeiros.

76 As intensas manifestações ocorridas durante a Copa das Confederações, um ano antes, tornaram ambíguos os significados do megaevento junto ao espectro mais amplo da população. Os protestos que ocorreram em Porto Alegre às vésperas e mesmo durante a Copa estavam atravessados pelo que havia ocorrido um ano antes e neles as demandas dos coletivos ameríndios não se sobressaíram. No fim das contas, eles acompanharam a Copa realizada no Brasil como se ela tivesse sido realizada em qualquer outra parte do mundo, salvo exceções.

77 Neste caso, a etnografia iniciada com os coletivos Kaingang, Mbyá-guarani e Charrua no Brique da Redenção, foi simultaneamente se abrindo e se fechando. Fechando-se na medida em que fomos levados – especialmente Herbert, que conduziu o trabalho de campo propriamente dito – a estreitar os laços com os Kaingang, mais numerosos e mais afeitos ao comércio de artesanatos, e na sequência com uma família de lideranças. De outra parte, o olhar foi sendo ampliado, pois de um interesse pontual, circunscrito à produção e comercialização artesanal, avançamos para uma série de questões envolvendo o deslocamento constante das lideranças Kaingang pela cidade, seja em termos de espaços físicos – como os locais de coleta de matéria-prima ou de venda de mercadorias -, de relações políticas – na FUNAI, Prefeitura, Casa do Artesão etc. – e mesmo através de um mundo que não tem propriamente uma existência real, como é o caso da burocracia, com a qual foi preciso lidar no momento em que o casal João Padilha e Iracema foi informado e auxiliado a participar do edital do MinC.

78 Nossos interlocutores revelaram suas habilidades e também suas dificuldades em lidar com a modernidade representada, neste caso, pela cidade, pela burocracia e pela promessa não cumprida de um megaevento. Talvez porque a convivência com os fóg lhes tenha preparado o espírito a não apostar em promessas, João e Iracema mostraram-se resignados diante do fracasso das vendas, incluindo-se as mercadorias que foram disponibilizadas para tal a partir do edital Vitrines Culturais. Em todo caso, João e Iracema sempre trabalharam com a hipótese de que a mobilização, se fracassada no plano comercial, poderia render-lhes dividendos políticos e assim consolidar sua liderança. A visibilização da “causa” Kaingang sempre foi um motivo importante em suas ações, embora o diálogo tenha ficado restrito, em grande medida, aos interlocutores convencionais. Melhor sorte tiveram Katumé e Karindé, que estiveram entre os privilegiados com acesso aos jogos e outras atividades que o evento

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proporcionou. Também eles manipularam sua identidade Kaingang, mas num registro um tanto diverso de seus pais.

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NOTAS

1. O projeto “Megaeventos Esportivos no Brasil – uma perspectiva etnográfica” possui financiamento do CNPq, através do Edital 18/2012 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. 2. A ONG Centro de Apoio Sócio Ambiental do Brasil (Casa-BR) em parceria com a Oscip Guarany Teko Ñemoingo apresentou em 2013 dois projetos ao governo do Paraná para visibilizar a cultura indígena durante a Copa. Disponível em: http://www.gazeta24horas.com.br/portal/?p=25402). 3. A pesquisa de campo foi realizada entre março de 2013 e setembro de 2014. 4. Nem todos os aldeamentos são reconhecidos plenamente pelo poder público municipal, por ainda ser objeto de contenda e disputa de múltiplos interesses, como o caso da Aldeia Kaingang do Morro do Osso (Emã Topë Pën), que enfrenta o desabono da “vizinhança” dos bairros nobres e dos preservacionistas do Parque Natural do Morro do Osso (PNMO – Lei complementar nº 334/1994), onde constituíram a aldeia (AQUINO, 2008). 5. O número de artesãos indígenas pode variar exponencialmente conforme a época do ano. Eventos como a Páscoa, e sua proximidade com a Semana do Índio, e o Natal atraem várias dezenas de famílias vindas do planalto (interior) para a região da bacia do lago Guaíba (capital e cidades da Região Metropolitana). Registrou-se no final de semana da Páscoa de 2013 aproximadamente 70 núcleos familiares indígenas comercializando apenas no Brique, um número expressivo se comparado aos modestos 15 a 20 núcleos que comercializam na maior parte do ano. Outro dado importante é que destes, dois terços ou mais se autodenominam Kaingang. 6. Nën ä ëg vëjën nïm tï (A mata é que mostra nossa comida) é um dos documentários, também, vendido pelos Kaingang nas feiras e eventos que participam. Realizado em 2010 com o apoio institucional do Núcleo de Políticas Públicas para os Povos Indígenas (atual Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e Direitos Específicos) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre tornou-se ao lado das cestas e outras peças artesanais uma evidência inconteste da capacidade criativa dos Kaingang em relacionar-se com a alteridade, especialmente não indígena. No decorrer do artigo será mostrado como este material foi utilizado como uma “arma” e possibilitou, na perspectiva dos próprios Kaingang sua entrada em espaços interditos pela FIFA.

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7. Aquino (2008) nos relata que em 2002 cerca de dezenove famílias kaingang residiam no terreno de não mais de 750m² e dali deram início à formação da Aldeia da Lomba do Pinheiro na zona leste de Porto Alegre. 8. Entre abril de 2013 e o início da Copa do Mundo inúmeras vezes fomos questionados sobre os ingressos gratuitos que seriam doados pela FIFA aos indígenas; o receio era ficar de fora, pois “não vai ter ingresso pra todo mundo” (João Padilha). A Lei Geral da Copa (nº 12.663) aprovada em 05 de junho de 2012 em seu capítulo V, artigo 25, parágrafo 12 estabelecia que “os ingressos [...] para indígenas serão objeto de acordo entre o poder público e a FIFA” o que aconteceu no final daquele ano, quando o então secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke, anunciou que a entidade iria doar 50 mil ingressos a beneficiários do Bolsa Família e indígenas. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/noticia/2012/11/valcke-anuncia-que-fifa-distribuira-50- mil-ingressos-gratuitos-para-a-copa-2014-3965440.html 9. No início de 2003, após muito diálogo, o poder público municipal adquiriu uma área de 7 hectares na Lomba do Pinheiro para ocupação Kaingang e homologou como área de interesse cultural pela prefeitura. O território é composto por uma aldeia que abriga 40 famílias nucleares que estão ligadas por laços de parentesco e reciprocidade com a aldeias do planalto e outras cidades do interior do RS. 10. O atual cacique faz parte do quadro de jovens lideranças da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ARPINSUL) que tem por objetivo desenvolver meios para a valorização indígena. 11. A conquista da “primeira cozinha comunitária construída em uma aldeia do Estado” (vide notícia a seguir) é elucidativa desse movimento englobante da Aldeia da Lomba do Pinheiro. Notícia PMPA: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php? p_noticia=159994&ALDEIA+KAIGANG+RESGATA+TRADICAO+COM+COZINHA+COMUNITARIA. Acesso em: 30 de agosto de 2014. 12. No final da reunião do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), em 2013, houve um intenso movimento das lideranças indígenas participantes em mobilizar os indigenistas a pôr no papel os discursos proferidos em nome de suas áreas (comunidades), durante a reunião. Neste caso a autoria do documento era coletiva, mesmo que a fala tenha sido proferida pela liderança. 13. O edital Vitrines Culturais foi divulgado na última semana de fevereiro no Portal da Copa, um dos sites que eram monitorados antes do megaevento esportivo. Todavia, o conhecimento do edital e comunicação deste aos Kaingang ocorreu apenas em março o que possibilitou inscrever apenas as propostas de João Padilha e de Iracema. Notícia em: http://www.copa2014.gov.br/pt- br/noticia/edital-preve-selecao-de-60-mil-pecas-artesanais-para-exposicao-na-copa. Acesso em 28.03.2014. 14. O capítulo terceiro, artigo sétimo, parágrafo único do edital expressa a necessidade do cadastro do artesão no Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB); sem este documento a condição da própria inscrição seria vetada. 15. Ligada à Fundação do Trabalho e Ação Social (FGTAS) e Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul (STDS) a Casa do Artesão era o ponto de referência no RS para os trâmites junto ao projeto Vitrines Culturais organizado pelo SEC/MinC. 16. Graduandos em Ciências Sociais e ambos bolsistas de iniciação científica vinculados ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT), da UFRGS. 17. No dia 28 de abril de 2014 foi noticiada a morte de dois agricultores no noroeste do Rio Grande do Sul após desentendimento sobre o bloqueio de uma estrada pelos Kaingang, acusados sem prova de assassinato. O conflito fundiário na região do município de Faxinalzinho/RS foi acentuado nos últimos anos em função do posicionamento titubeante do Ministro da Justiça e da FUNAI para dar continuidade ao processo de levantamento fundiário para indenização dos agricultores situados nessa zona, o que restringe os demais procedimentos necessários para a demarcação da terra indígena. Vide notícias: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/

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2014/04/dois-agricultores-sao-mortos-em-suposto-confronto-com-indigenas-no- norte-4486655.html. 18. Divulgado em 12 de maio de 2014 em: http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/ asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/minc-publica-resultado-final-do-edital-artesanato-nos- jogos-2014/10913. 19. É uma área do patrimônio da União, sob responsabilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De acordo com a lógica preservacionista que acentua a dicotomia natureza e cultura, foi definida em 2003 que a área seria uma Unidade de Conservação e que não seria permitido o trânsito de humanos no local. Atualmente, e após longo debate e investimentos por parte de cientistas sociais e dos indígenas, a circulação e o manejo vegetal são permitidos; vide a concessão de uma Carteira emitida pelo NIT/UFRGS. 20. O sonho como gatilho cosmopolítico Kaingang foi descrito em outras pesquisas (JAENISCH, 2010; ELTZ, 2011). Aquino (2008) traz um relato contundente sobre a relevância do sonho na vida Kaingang, em virtude da retomada do Morro do Osso em 2003. O estabelecimento e luta Kaingang para legitimação de sua presença transcorreram, também, a partir de um sonho da kujà (xamã) Lurdes Nïmpre da Silva com “um pajé que havido morrido em uma ‘guerra’ entre índios e brancos” (p.63) no passado e ainda vagava naquele local, o que desencadeou uma série de ações por parte dos demais Kaingang. 21. No dia da abertura da Copa do Mundo no Brasil o espaço organizado conjuntamente entre o governo municipal e estadual já recebia seus primeiros visitantes. http:// diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/dia-a-dia/noticia/2014/05/acampamento-farroupilha- extraordinario-para-a-copa-ja-recebe-os-primeiros-ocupantes-4511407.html. 22. Realizado com recursos do Programa Estadual de Agroindústria Familiar da Secretaria de Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo do RS (SDR) e com apoio do SEBRAE e Secretaria do Turismo. Entre os expositores da agricultura familiar três boxes de aproximadamente 3 m² cada foram cedidos à “sustentabilidade” indígena, um para cada coletivo ameríndio no Rio Grande do Sul. Além dos Kaingang de Iraí, o segundo ficou com um núcleo familiar da Aldeia da Lomba do Pinheiro e terceiro sob os cuidados dos Mbyá-Guarani. Disponível em: http:// www.copa2014.rs.gov.br/conteudo/3992/paradouro-gaucho-destaca-roteiros-turisticos-durante- a-copa-do-mundo. 23. Sob a chancela do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). 24. Zilio Jagtyg Salvador, casado com Nilda Nascimento, irmã de Iracema, foi o primeiro cacique da Aldeia da Lomba do Pinheiro e uma das principais figuras no reconhecimento da presença Kaingang na cidade de Porto Alegre. Após divergências com outros Kaingang perde o cacicado e muda-se para a Terra Indígena da Serrinha, onde reside até hoje. A T.I. Serrinha fica a caminho do município de Faxinalzinho/RS. 25. Em parte devido a organização da Orange Square pela Federação de Futebol Holandesa e anunciado pela mídia local um mês antes da partida: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/ noticia/2014/05/holandeses-farao-concentracao-em-porto-alegre-antes-de-jogo-da-copa.html. 26. Desde a primeira visita à casa de João e Iracema é difícil manter um diálogo com seus filhos, pois a concorrência da SPORTV, do pacote que assinam de TV fechada, é imbatível. Gentilmente, convidavam para ver as partidas de futebol e não deixavam de enfatizar os melhores jogadores (fortes e habilidosos). CAE... 27. Entre os itens disponibilizados durante a pesquisa os mais valorizados eram as camisas de futebol de clubes do exterior. A camisa do Club Universidad do Chile disponibilizada por Herbert em 2013, durante os contatos iniciais com os Kaingang no Brique, era avistada com regularidade compondo os trajes de Katumé.

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28. A prefeitura de Porto Alegre preparou um trajeto de 3,5 quilômetros ligando o Centro Histórico da capital até o estádio Beira-Rio. http://placar.abril.com.br/blogs/los-gringos/ 2014/06/30/caminho-do-gol-e-a-nova-sensacao-de-porto-alegre/ 29. A noite do “arrastão” holandês e australiano em Porto Alegre foi amplamente noticiada na mídia. Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/06/apos-jogo- banda-holandesa-faz-arrastao-pelas-ruas-de-porto-alegre.html. 30. Cristiano vendeu em média 20 reais por dia no FASFG e no AFECM e em apenas dois dos cinco dias ocorreram vendas. Somadas as expectativas de vendas em Gramado, que num sábado e domingo poderia superar mil reais.

ÍNDICE

Keywords: Kaingang, Porto Alegre, World Cup, spectacle, city Palavras-chave: Kaingang, Porto Alegre, Copa do Mundo, espetáculo, cidade

AUTORES

HERBERT WALTER HERMANN

Mestrando do PPG em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Correio eletrônico: [email protected].

ARLEI SANDER DAMO

Doutor em Antropologia Social e professor do PPG em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Correio eletrônico: [email protected].

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Medical Drug or Shamanic Power Plant: The Uses of Kambô in Brazil Remédio ou Planta de Poder: Os Usos do Kambô no Brasil

Beatriz Caiuby Labate and Edilene Coffaci de Lima

1 Since the middle of the last decade, the use of the secretion of the arboreal frog Phyllomedusa bicolor, called kambô in Portuguese, has been spreading in the large cities of Brazil. Kambô is traditionally used as an invigorating stimulant by Indian hunting groups of the southwest Amazon; among them, the Katukina Yawanahua, and Cashinahua. It has attracted dual interests in urban centers, both as a “scientific remedy,” where its biochemical properties are extolled, and as a “medicine of the soul,” where what is most valued most is its “Indian origins.” The use of the secretion has become widespread, particularly in clinics and in alternative therapies offered in the environment of the Brazilian ayahuasca religions, that is, among adepts of the Santo Daime and the União do Vegetal (UDV) and their multiple offspring branches (for more information on these religions, see Labate 2012). The “applicators” (“aplicadores” in Portuguese, used in here to refer to the ones who apply the substance onto others) are quite different from each other: Indians, rubber tappers and former rubber tappers, holistic practitioners, ayahuasca leaders, and physicians. In this paper, we present a brief ethnography of the diffusion of kambô, especially analyzing the discourse that these various applicators have employed on the use of the secretion, understood by some as an animal analog of a “teacher plant” or “plant of power” (Goulart, Labate and Carneiro 2013; Shepard 2005), similar to peyote and ayahuasca.

2 Before proceeding, we offer a brief description of the application of the kambô secretion. The frog, known popularly as “giant waxy monkey tree frog” or “giant leaf frog” and described by some scientists as “green tree frog” (Daly et al, 1992) is captured and tied up. Then its skin is stimulated and it expels a secretion (his defense mechanism), which contains dermorphin, deltorfin and dermaseptines, among other peptides (idem). The secretion is collected and transferred to a “stick” or a “pallet.” The application is made by superficially burning a person’s skin surface with a sharp instrument (the titica vine, among Indians) and then depositing the kambô secretion,

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partially diluted in water to prevent crystallization, in the burn, called a “point.” The number of “points,” as we will show below, varies greatly among users.1

Methodology: Among Indians, Therapists, and Doctors

3 As result of our previous studies, we already knew of kambô: One of us has been familiar with the Katukina and their use of the green frog secretion for more than twenty years, the other has followed from a greater or lesser distance the introduction of the use of the secretion into the ayahuasca religions for about fifteen years. We formally started this study and began closely monitoring the urban expansion of kambô in March of 2005.

4 The research presented in this article is the result of more recent interviews with applicators of the secretion, and also of attending events and observing public lectures on kambô. Interviews were made with applicators from different backgrounds: two Indians; two therapists from Amazonia, based in Acre; four New Age therapists; and four doctors from Cruzeiro do Sul (in the state of Acre), São Paulo and Curitiba. By “Amazonian therapists”, we refer to the various non-Indian applicators of kambô based in Acre, usually in the region of Cruzeiro do Sul, who travel throughout Brazil and, more recently, also abroad, promoting kambô applications. The term “Amazonian therapists” (or “Amazonian healers”) is not a native category, and is used in only a geographical sense here to differentiate these subjects from urban therapists in southern and southeastern Brazil. Although it is likely that there are differences between them in terms of their conception of kambô, this is beyond the scope of this article.

5 We have attempted to obtain systematic information on the urban spread of kambô among applicators (people who apply the substance) rather than users (recipients) of the secretion, although we had contact with a number of people who received the application in urban centers. We chose to focus on this because the introduction of the kambô secretion to the menu of alternative therapies is still recent, and it has been particularly interesting to focus on those who are building a corpus of justifications to legitimize its use. In the future, however, it would be intriguing to extend the investigation to the heterogeneous population that has felt compelled to experience the secretion of this green frog.

Frogs and Toads: On Fables, Medicines, and Poisons

6 Frogs have played an important role in various cultures and historical periods. We shall argue that the expansion of the use of kambô should be understood within this broader context, wherein the frog takes on a variety of roles: a poison, a fertility aid, a magic potion, a diabolical force, medicine, an amulet, and so on. We will also see how knowledge of varieties (species and genera) of frogs and their uses permeates a logic of disputes and exchanges in the emerging field of the urban expansion of the use of kambô.

7 According to Rudgley (1993), although it is not possible to determine precisely whether the classical Maya culture utilized the psychoactive properties of frogs, it is certain that ancient Mayan art included subjects with mushrooms, frogs, and water lilies. In

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Mesoamerica, carved stones, pottery, and sculptures shaped like mushrooms and frogs have been discovered, as well as pestles decorated with motifs of frogs. The association of frogs with rain and agriculture is well established, explaining the importance of the frog in the imaginary of this civilization.

8 In another study, Rudgley (1999) stated that there are indications that the Chinese also knew of the poisons of frogs: Their flesh was considered by the ancient Taoists to be good for longevity. There are also reports of the use of frog poison as an ingredient in the manufacture of explosives in the seventeenth century. In traditional Vietnamese medicine, a type of frog is used to treat children with fevers.

9 Frogs also played an important role in prehistoric European mythology, where they were linked to the different types of mushrooms, as can be seen in the English term “toadstool”; literally, “stool of toad,” figuratively: “frog excrement” (Carneiro 2005: 154, gives the translations “toad stool” or “toad feces”). This term refers to non-edible and poisonous mushrooms and is represented by a toad squatting on a mushroom (Rudgley 1999; see also Ginzburg 1991).

10 The use of frogs in in the sixteenth and seventeenth centuries was common; there are also alchemical sources reporting their use there since the thirteenth century. It was believed that frogs had magical properties, and their psychoactive properties were known and used by witches and alchemists. They were used as amulets in strange recipes (Rudgley 1999), and Ginzburg (1991) suggests that the Witches Sabbaths of the Middle Ages, with their profusion of flying goats, werewolves, etc., imply the consumption of vegetable substances or unguents, possibly spindly rye and the Amanita muscaria mushroom. Ginzburg states that in Northern Italy, Germany, Ukraine, and Poland, the toad is called a “fairy,” “witch,” or “wizard,” and that, according to various indications, the toad, “like the Amanita muscaria mushroom and deambulatory anomalies, was in many cultures a symbolic link with the indivisible” (Ginzburg 1991: 264), although it cannot be confirmed whether this was a result of the function of the psychoactive properties contained in the secretions of its skin.

11 In Brazil, in the well-known novel by Mário de Andrade, Macunaíma, an important incident is depicted in which the eponymous hero received the muiraquitã from his companion, Ci, the Mother of the Forest. This Amazonian amulet is made of greenish stone or wood and usually has the shape of a frog (but can also have other shapes, such as a turtle or fish). It has been said that the muiraquitã “represents the memory of Ci, or rather, her Empire, the forest or, in other words, the tradition— which was stolen by a stranger” (Moraes, n.d.). We shall see that such an interpretation of the work of Mario de Andrade is not far away, in general terms, from the debate surrounding the current expansion of kambô beyond villages in the state of Acre.

12 The broad dissemination and popularization of kambô in the urban centers has raised a series of accusations about who is the rightful owner of the knowledge of the green frog and the kambô. There is no doubt that this knowledge originated among the indigenous peoples of the southwest Amazon and spread across the world, both through Amazonian and urban therapists and scientists (Lima 2005; about the internationalization of kambô use, see Lima 2014). Given such a transnational context, especially with regard to scientists, one of the first accusations was of biopiracy; made by the Indians themselves, but also by indigenists, journalists, and various other professionals who take part in debates on social and environmental issues. This accusation, which has also been called “bioparanoia” (Carneiro da Cunha 2009), is that

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genetic resources located in Brazilian territory, and originating among the “Brazilian Indians,” have been “stolen.”

13 While it is necessary to recognize that indigenous knowledge on kambô has actually not yet been recognized by scientists within the current legal framework, what interests us here are the accusations that have proliferated between the Indians and the Amazonian and urban therapists. This indicates, firstly, that there is a market and a network of services which form a common field.

14 There are recurring claims in the discourse of various users of kambô in different contexts, such as “there is a frog which has a much stronger poison, which can be dangerous,” and vague reports about alleged accidents or deaths involving the use of the “wrong frog,” or as the result of the misuse of kambô. Especially among urban users, and even among scholars, there seems to be an objective confusion between the Phyllomedusa bicolor and the Chaunus sp. (formerly Bufo sp.), which will be discussed below. Thus, a medical doctor from Curitiba we interviewed said kambô contains bufotenine, and another urban applicator of kambô in São Paulo mentioned that kambô frogs also exist in the United States.

15 According to Rudgley (1993), the Chaunus marinus species (formerly Bufo marinus) is found throughout Central and South America and also in the Caribbean, Florida, Hawaii, Australia, and the Philippines. It contains bufotenine2 and bufotalina: very toxic substances. Another species described by Rudgley (1999) is the Bufo alvarius, also known as the Colorado River frog or the Sonoran Desert frog, and is found in Mexico, Texas, and Arizona. It contains high concentrations of bufotenine. Its secretion, used as an hallucinogen, can be licked, sucked, or inhaled in cigarettes or snuff. Its effects are reportedly extremely strong. Besides individual experimental use by “frog suckers” in the 1960s in the United States, the cult of the “Church of the Toad of Light” appeared, where the poison of the frog was treated as a sacrament (Rudgley 1999: 274-276). Jonathan Ott (2004) has described the use of the smoked secretion of the Chaunus marinus (formerly Bufo marinus), which produces effects similar to Bufo alvarius.

16 There is a record of the use of Chaunus marinus (formerly Bufo) among the Machiguenga, near the area which interests us here, who mix the eggs of this frog with tobacco juice to produce a drink with hallucinogenic and purgative properties used by shamans and healers. This infusion, according to Shepard Jr. (2005: 197), caused one death among the Indians and is currently little used.

17 Besides the objective confusion between genera and species of frogs, or perhaps precisely because of it, it is plausible to think that the reference made by various types of applicators, and even users, to a frog whose secretion is “stronger” or “more dangerous” seems to increase the symbolic force of kambô and its applicator. This happens either because one must be careful not to poison oneself, or because the contact with kambô may represent a kind of initiation, with the future prospect of possible contact with more powerful and mysterious substances. Thus, knowledge of the type of frog or its correct form of use may function as an accusatory category relative to other groups in the competition for the emerging market.

18 Continuing with allegations in the field, we note that among the Indians, particularly among the Katukina, in addition to accusations of “biopiracy,”—a term used interchangeably to refer to the appropriations that both scientists and therapists make of the kambô secretion, regarded as “illegal”—one frequently hears the concern that non-indigenous applicators may end up using kambô incorrectly and may “kill

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someone.” The fear, some say, is that the blame may ultimately fall on them, the experts in the traditional use of the green frog (“sapo verde,” another name kambô is known by in Brazil). So much so that in July 2005, we heard among the Katukina that kambô applicators living in Cruzeiro do Sul were using the cururu frog (Bufo/Chaunus marinus) in place of the kambô, and they said this was dangerous.

19 If some are accused of using the wrong frog, others are criticized for mystifying the origin of the frog and the technique of extracting its poison. In an exclusively urban context, a therapist who, after meeting Genildo, the grandson and direct successor of Francisco Gomes (see below), went to Cruzeiro do Sul to acquire more knowledge about kambô. He then complained that the knowledge was not fully shared. In his words: “It is as if it were a treasure, a gold mine, and they were afraid that other people knew about it.” His complaint was based mainly on the fact that they did not let him see how the kambô secretion was collected. The therapist implied that, in hiding the collection technique, the applicators from Acre are trying to create a “market reserve.”

20 The disagreement over the price of the palettes containing the secretion, the percentage charged for the application, the form of transmission of the knowledge, the original discovery of kambô, or the establishment of contact with sources in Acre, are only some of the recurring themes in the disputes between urban and Amazonian applicators. Mutual accusations persist: It is common for therapists to try to delegitimize the secretion of others or doubt their knowledge. Thus, some urban applicators have said that they do not guarantee the origin of the secretion used by other therapists. Conversely, the development of more powerful techniques in the use of the secretion will be mentioned. This is the case with two kinds of snuff used by an applicator from the North of Brazil (one with kambô mixed with tobacco and the other with pure kambô) that, as he announced to his customers who followed the Santo Daime religion, “reached parts of the body Daime (ayahuasca) cannot reach.” Another urban therapist mentioned that there were more potent ways of consuming the kambô secretion that were known only to a few and could not be tried by a beginner. While it is a fact that ways of sucking and ingesting kambô secretion have been recorded among the Katukina (Lima 2005) and among the Yawanawa (Pérez Gil 1999), we understand these claims as part of a stratification of the emergent “psychoactive and ceremonial market” among urban contemporary spiritual and ritual seekers (Labate 2011).

21 Perhaps part of the fascination of the contemporary use of kambô derives from the fact that it involves using the secretion of a frog, an animal which is repugnant to many, a creature which has a strong symbolic profile, an imaginary that mixes, as we have seen, many references. Following the relationship between frogs and mushrooms, we can observe that, in the same way that the genus Amanita contains hallucinogenic (Amanita muscaria and pantherina), edible (Amanita caesarea), and poisonous (Amanita phalloides, virosa, and verna) species (Carneiro 2005: 115-116), there are several genera and species of frogs with different features, effects, and uses. Applicators and users are navigating a grey area, on a continuum between poison, hallucinations, numbness, stimulation, and healing, that accords them courage and recognition. Here, the use of kambô has much in common with the consumption of psychoactive substances in general, where the idea of “risk” is always present, whether in the type of substance, dosage, form of intake or context of use (for a discussion of the concept of risk in medical discourse, see Fiore 2007).

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The Spread of Kambô

22 According to Lopes (2005), the first applications of kambô in a large city were made in São Paulo in 1994. The now-dominant version recounts that a single rubber tapper, Francisco Gomes, who died in 2001, and who had lived near the Katukina on the River Liberdade in the state of Acre in the 1960s, was primarily responsible for the urban spread of kambô. Lopes (2005) traces the journeys made by Francisco Gomes in the first half of the 1990s, applying kambô outside Acre. Although not explicitly mentioning the UDV, the script and the characters cited in the paper indicate that Francisco accompanied a nuclei of the institution through Brazil, passing through cities including Porto Velho in the state of Rondônia (where the UDV was founded), Pocinhos do Rio Verde in the state of Minas Gerais, and Campinas and São Paulo in the state of São Paulo.3 Lopes also mentions that Francisco was in Camanducaia in Minas Gerais, where there is a Santo Daime church. The kambô secretion is used regularly in Camanducaia. In 2004, Isabel Santana de Rose (2005) reported the presence of two visitors from Cruzeiro do Sul in the state of Acre, possibly relatives of Francisco Gomes, who applied kambô after the healing session (“trabalho de cura”) to frequenters of Céu da Mantiqueira. In 2006, we personally witnessed the application of kambô to the members of the community by a young leader from Juruá, a Santo Daime member.

23 As one of his sons, Ivanir Gomes, told us, Francisco Gomes was a man versed in the “knowledge of the forest,” who knew many plants and prayers and, even after leaving the rubber tapping area and moving to Cruzeiro do Sul, he used to treat people in the Upper Juruá. To preserve his knowledge, in 2002, after his death, his family set up the Juruaense Association of Extraction and Alternative Medicine (AJUREMA), which has among its aims the promotion of kambô, its conservation, and scientific research that explores its therapeutic potential. This scientistic concern, which appears in AJUREMA, may be the influence of the Gomes family’s association with the UDV. As is public knowledge, the UDV is concerned with the promotion of scientific studies to investigate the effects of the consumption of ayahuasca and legitimize its safety (Labate and Melo 2013). As a matter of fact, beyond Gomes’ relationship with the UDV, we have noticed that the concern for scientific validation of the therapeutic potential of kambô is common in many urban contexts where it is applied.A large part of what has been recently published on the topic formalizes the version telling that Gomes was a pioneer in the expansion. This version is also confirmed by the Katukina, and first appeared in 2001 in the magazine Outras Palavras, published by the government of Acre (Lopes 2001). This story started a long series of articles in regional and national newspapers and magazines on the use of the green frog, the knowledge of which had previously been restricted to academic publications (see Lima and Labate 2010). The apex of this journalistic publicity on the use of the green frog was when The New York Times, on May 30, 2006, published an article about the way the Katukina use it (Prada 2006). A few days later, on June 13, the Reuters news agency also published a story on kambô, and also launched a short documentary film (Reuters 2006).

24 Given the increasing demand for the use of the green frog secretion in urban centers, in late April 2004, the National Health Monitoring Agency (ANVISA) published an ordinance prohibiting the advertising of kambô, which was mainly being publicized on the Internet. However, up to now, while advertisement is explicitly prohibited, there is no legislation regulating the use of kambô.

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25 The news reports described something occurring in reality: Beyond the borders of Acre, many people began to try or use regularly the secretion of the green frog. Through diffusion mainly by holistic and New Age practitioners and the members of the Brazilian ayahuasca religions, especially the UDV and the Santo Daime, as well as by neo-ayahuasqueros (Labate 2004), kambô quickly reached an unforeseen level of popularity. Today, it is not difficult to find people who apply the kambô secretion in Sao Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, and Brasilia; these cities receive regular visits from applicators who are former rubber tappers and Indians. There seems to be a rise in the number of New Age therapists who apply kambô, and a large number of the urban clients of the secretion of the green frog participate directly or indirectly in these networks. We have also personally witnessed the application of kambô in countries like Germany, Holland, France, and the United States among followers of the Brazilian ayahuasca religions and practitioners of alternative therapies.

From the Forest to the Cities: The Applicators

26 As we mentioned earlier, it was in 1994 that the late rubber tapper, Francisco Gomes, first applied kambô to residents of a large city, São Paulo. Since then, this clientele has greatly increased and, with it, the number of applicators. Virtual discussion forums (like Orkut and Facebook) are not totally reliable sources of information; however, it is important to note that, in 2007, there were two forums to discuss kambô on Orkut: one called “Kambô,” and another called “Kambô Milagre Indígena” (Kambô Indigenous Miracle). On March 13, 2007, “Kambô” totaled 459 participants and “Kambô Milagre Indígena,” 602. On November 08, 2013, on Facebook, “Kambô Chile” totaled 501 participants, and “Kambogayahuasca Panacea (kambô+iboga+ayahuasca),” 621.

27 One way or another, it is possible to say that almost all kambô applicators working today relate directly or indirectly to Francisco Gomes. The obvious exceptions are the Katukina Indians themselves, from whom he learned to make use of the secretion, and other indigenous populations such as the Cashinahua and the Yawanahua that make use of the secretion and had no contact with Gomes. All other applicators, whether holistic therapists, psychologists or doctors, either learned to make the applications from Gomes and his children and grandchildren or from applicators who learned from him; that is, they are disciples of his disciples. We shall now describe these urban applicators, examining their discourse on the properties of kambô.

28 The most important and active applicator of kambô in Brazilian cities, a female follower of Santo Daime, met Francisco Gomes around 1999 in Camanducaia in the state of Minas Gerais. She received kambô applications from him and she claims that these cured her of infertility. Later, she tried to contact him in Acre to learn how to make applications, only to learn that Francisco Gomes had died. She then searched for his family members who, by this time, had already set up the Juruaense Association of Extraction and Alternative Medicine (AJUREMA) (Leandro Lopes, personal communication, 2005). Relatives of Francisco Gomes passed on knowledge of kambô to her, establishing certain conditions including the transfer of part of the profit from the kambô applications she made to AJUREMA. Approximately a year later, the partnership between this therapist and AJUREMA was broken, and she began to interact directly with some Katukina Indians who, in turn, met her through the relatives of Francisco

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Gomes in Cruzeiro do Sul. She then began to take two of them on regular trips to Sao Paulo and other cities to participate in kambô sessions (see also Lima and Labate 2010, 2012; and Martins 2006).

29 In her materials advertising the kambô applications, she states that the secretion of the green frog acts “on the general perception, intuition, dreams, the third vision, the unconscious, and the blockages that impede the flow of vital energy.” The same phrase appears in the leaflet from the period when this therapist worked with AJUREMA. Thus the vocabulary used suggests that kambô has been going through a process of “shamanization” in urban cities for a while. We use “shamanization” precisely because, among the Indians themselves, particularly the Katukina, shamans have no more status to apply kambô than other members of the tribe (Lima 2005; Lima and Labate 2012; Martins 2006). Such an orientation is not, however, homogeneous, because in the same material an attempt can be seen to approximate kambô to Western medicine. First, the folder lists over 30 diseases for which it could be effective, such as low immunity, headaches, gastritis, diabetes, blood pressure, cirrhosis, labyrinthitis, epilepsy, impotence, and depression, among others. Further, the leaflet contains a section with the title “Scientific Study” that states, “doctors who have taken and studied kambô claim that it can be effective in the treatment of serious diseases... because it boosts the immune system.” In February 2007, an Internet advertisement appeared praising the benefits of applying kambô, stating that the World Health Organization (WHO) recognizes the use of the substance, due to “scientific evidence and its great efficacy.” The emphasis on the supposed healing properties of kambô, even with the alleged seal of an international body, demonstrates the way in which kambô is now becoming a therapeutic drug.

30 Maybe because all applicators are directly or indirectly related to the staff at AJUREMA —in other words, to the family of the rubber tapper Francisco Gomes—explanations about the effectiveness of kambô tend to be repetitive, as is the information contained in brochures and other kambô promotional material. AJUREMA can certainly be seen as a center for spreading the use of kambô beyond the villages, helping to create a hybrid culture around kambô from the combination of conceptions of Indians, rubber tappers, the Santo Daime religion, alternative medicine, and esoteric urban schools. This process certainly is not closed or fixed. We shall now describe some of the dominant concepts and practices, focusing on those in cities that seem to support the building of a shared knowledge on kambô.

Panema and Depression

31 One of the concepts at stake in this study concerns the definition of “panema.” In the Upper Juruá and throughout Amazonia, panema is seen as a condition of bad luck in hunting (Da Matta 1973). All the urban applicators we spoke with mentioned the use of kambô by the Indians as an anti-panema antidote, providing their own definitions of the term. Thus, an urban applicator, familiar with the use of kambô for ten years, describes panema as a kind of “sadness, negativity, something from the soul, which brings people down… it is really like depression.” Thus, kambô “brings a realignment” to overcome such negative conditions. At the first Brazilian Shamanism Forum, held in São Paulo in March 2005, the previously mentioned female therapist from Santo Daime defined panema as “Indian depression,” a term also used by a doctor who is the leader

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of a neo-ayahuasquero group in San Paulo. The very idea that kambô is used for hunting contains specific meanings. In the words of a psychologist who organizes sessions for a “doctor of the forest” in Acre, “the prey comes to the hunter, possibly through kambô irradiation, maybe because of the peace it brings, a factor which harmonizes with the forest. You become part it, so the prey approaches you.” Needless to say, this is very far from the native idiom on hunting.

32 It should be remembered that, in recent decades, depression has been seen as one of the great epidemics of our time, now even be considered by the World Health Organization (WHO) as the leading cause of incapacity in developed countries (Carneiro 2008). In the perspective of the new urban applicators and their clients, kambô, therefore, represents a hope for healing in a scenario of the growing ineffectiveness of the resources of Western medicine.

33 The reinterpretations around the usefulness of kambô are not exclusive to urban therapists. In Brasília in early 2005, the son of a rubber tapper living in Cruzeiro do Sul mentioned, in conversations with a researcher interested in “experiencing” the substance, the close coexistence he had enjoyed until the age of nine with the Katukina, from whom he had acquired his knowledge of kambô. His understanding of the panema is not very different from that of the therapists in the big cities: It is, in his words, a “bad energy,” a “type of evil eye,” and kambô is something that “releases the bad energy and replenishes the body with good energy.”

34 The discourse of a Cashinahua Indian who occasionally applies kambô in large cities may help clarify the broader meaning that “panema” is acquiring in its new urban habitat. According to this Kaxinawa, kambô “in the villages is used for panema [bad luck in hunting], and in the city to cure diseases. Many people come after kampu [Cashinahua spelling] because of diseases.” He himself took kambô in São Paulo because, he said, “I had problems. I was depressed. City life is very hard. I really missed the village.”

35 In summary, the urban, Amazonian, and indigenous therapists all give the same answer: that kambô helps overcome various negative conditions. In different ways, the applicators repeat the fact that kambô acts positively against imbalance, negativity, the evil eye, evil energy, damaged auras, feeling down, and sadness. And in their perspective, it can provide so many benefits because it comes from the remote Amazonian forests, places where purity, harmony, and originality exist; antidotes to the ills of modern society, where disorder, imbalance, pollution, and chaos prevail.

Diseases of the Body and Diseases of the Spirit

36 In addition to the lack of definition of what is meant by panema, the discourse of all the applicators we talked to is marked by a certain oscillation between different interpretations of the results that can be expected from kambô. Thus, one of the therapists mentioned above, after defining panema as a kind of “negativity,” said kambô “works” for allergies, headaches, migraines, stomach ailments, neuralgic and muscular pains, hypertension, diabetes, heart disease, and depression.

37 Another therapist says it takes “shamanic experience” to apply kambô and “knowledge of the things of the forest.” Then he said that kambô “acts in the bloodstream, increases red blood cells and platelets.” In the list of the successes of treatment with

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kambô, he mentioned three supposed cases of healing cancer sufferers. In July 2012, we heard similar claims in Petaluma, California.

38 The discourse vacillates between, on one hand, a spiritual or New Age explanation, and, on the other, a scientistic or medical interpretation of the diseases. Precisely because they fluctuate, they highlight that what is at stake here is a definition of “cure” that is alien to Western medicine. Both lines of interpretation are not mutually exclusive and are often confused. Thus, in the words of a therapist: “The cure is in the spirit, in the soul. Kambô operates on the level of the soul. People are being transformed and healed. It is a remedy, perhaps one of the greatest. It heals pain.” This discourse is part of what Luiz Eduardo Soares called “the new religious consciousness”; a kind of cultural and religious experimentalism; a revival of the intellectual, political and existential interest in “alternative therapies, esoteric disciplines or practices” by the intellectualized middle-classes of big urban centers (Soares 1999: 122).

Treatment with Kambô

39 There is clearly an urban tendency to conceive of kambô as a “treatment,” and there are recommendations on the number and frequency of applications: generally speaking, three applications with varying intervals. In the Céu de Mantiqueira Santo Daime community in Camanducaia, in the state of Minas Gerais, the Cruzeiro do Sul applicators from the state of Acre who visit the site recommend that kambô be applied once a month for three consecutive months (Rose 2005: 99).

40 There is controversy among applicators on the need for the three applications. According to a young Santo Daime leader and son of a rubber tapper who currently lives in Crôa (around 30 k from the Indigenous Territory on the River Campinas, in Acre, where the New Life Health project has been established, which includes kambô among its “remedies”), the number of applications depends on the patient and the problem. And a UDV doctor, who met Francisco Gomes in the second half of 1990 and participated directly in the expansion of kambô, said that Gomes never mentioned that kambô should be taken three consecutive times.

41 Regardless of the recommendation to follow a system of three applications, there seems to be agreement that the number of “points” made by the Katukina Indians, which can reach more than a hundred in the same application, is not suitable for urban users. According to an urban therapist, “one thing is to apply it to Indians, and it is another thing in the city. Urban dwellers cannot handle so many jabs, they are not Indians. The Indians are not so worried and can concentrate better. The more focused the person, the more harmonious the effect.” The differences between Indians and non-Indians are believed to be due to their different ways of life and perhaps to their own “nature.” Here we have the conception that the Indians, forest dwellers, are stronger and more resilient, and more balanced and able to interact with nature and its powers.

The Indianization of the Therapists and the Whitening of Kambô

42 The recognition of kambô as “indigenous knowledge” is unanimous among applicators and stimulates a desire for closer ties with the Indians. It's almost like the ongoing

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process of the Indianization of non-indigenous people: A number of applicators end up by identifying as “Indians” and eventually presenting themselves as such. It seems to be a metonymic process from which contact with kambô, part of indigenous culture, makes the person an Indian. Thus, a former rubber tapper from the Upper Juruá said: We already have a strong interaction with the Cariús [the whites]. Some people say I'm an Indian naturalized white, but I still have a very strong bond with the Indians. I still have blood, culture. I was raised in the village. When I was nine we moved to two miles from the town. At that time the Indians of that region were spread out. Until 12 years I spoke the Indian language. When I entered school my classmates mocked me. I spoke Tupi.

43 There is a therapist who claims to know “everything of Indians.” In his own words, “I'm inside the village, I know everything, because I'm already kind of half Indian.” During the process of the growth in the use of kambô in big cities, a resident of Crôa began to recognize himself as an Indian. As stated in promotional material distributed on the Internet, he was “a grandson of the Punhanawa Amazonian Indians.”

44 Conversely, one can say that kambô goes through a “whitening” process in order to be incorporated into the menu of alternative therapies provided in the metropolis. Thus, a doctor, who is also a kambô applicator, as he says, visited the Katukina and has been to Cruzeiro do Sul. He told us the indigenous use of kambô is “very raw” (primitive) and greater “subtlety” is required. By subtlety, he means fewer applications. For him, this “excessive” use causes the “kambô peia” (a kind of physical and spiritual punishment) i.e., vomiting and malaise, which should not be necessary.4

45 This doctor, like some other therapists, has combined kambô with other therapies available in their clinics. He applies kambô on meridional points: according to Chinese medicine, channels present in our body through which vital energy circulates. Further, he uses kambô simultaneously with a “brainwave synchronizer,” bee stings, herbal medicine, acupuncture, and orthomolecular medicine.

46 Another therapist, an acupuncturist of Japanese origin, helped a Cashinahua Indian to combine kambô applications with moxibustion; in this case, the aim was to leave a smaller scar (ironically, the scar is a quality appreciated by Indians as an indelible sign of strong will, courage, strength, and masculinity). A Spiritual Shamanic Institute announced on the Internet in June of 2006 that it promotes “the application of kambô for just R$30 [US$15], a package deal that includes a course to open the crown chakra for just R$20 [US$10], adding up to a total of R$50 [US$25].” According to our fieldwork, an application of kambô in São Paulo in 2013 ranged from R$100 to R$180, in California it costs from $50 to $80, and in Europe it costs from 40 to 100 euros. In 2010 in the Alto Juruá region, a pallet5 with the secretion was sold for R$200 (Carvalho 2013). In São Paulo, a palette ranges currently from R$200 to 5,000 (Denizar Camurça, personal communication, 2013). A Brazilian who applies kambô in Europe told us in November 2013 that he usually buys palates paying from 400 to 1,000 reals.

47 The doctor’s discourse mentioned above offers us a good idea of what we are calling the process of “whitening” of the use of kambô: “It no longer needs any heavy application, better to be light; the Indian doesn’t know everything; someone with medical knowledge, preferably a doctor, but with spiritual openness, handles the urban context better.” The Indian “does not know everything,” but he knows a lot. The question now is how to find the most appropriate way of using kambô to attend to clients in the cities.

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48 The re-creation of the known forms of application, mainly from the use made by the Katukina and the AJUREMA staff, is continually developing. Among the Katukina, for example, women and old men apply kambô to their legs, on their calves, while the young men usually apply it to their chest and arms. Among urban users, the location of the applications is not necessarily guided by this procedure, and some say that the location of the application in no way affects the results.

49 However, for a number of applicators, it is important to do exactly what the Caboclos (mixed-Indians) or Indians say, even though it may seem not to make sense or their motivations are not easily understood. We empirically found a broad diversity with regard to the guidelines for the implementation of the secretion: time, fasting or drinking large amounts of fluids, and restrictions for certain people. Here, we return to the issue discussed above, the extent to which indigenous or Caboclo knowledge of the green frog is valued. At least, the establishment of ties with the “Acre origin” of kambô seems to be of universal importance. One of the therapists, for example, made a point of saying he had had personal contact with kambô: Unlike others, he stressed, he had personally collected the secretion. All the applicators we met emphasized that they had been to Acre to get to know the cultural and ecological origins of kambô. This directly connects to a discussion on the “search for the origins” of kambô, to some extent in a religious sense. Again, this is similar to the Santo Daime followers, whose visit to Céu do Mapiá represents a certain “initiatory pilgrimage,” which confers legitimacy and knowledge on the official members (fardados) (Labate 2005).

50 Indeed, there seems to be a double movement, which values both “traditional” knowledge, sometimes identified with the Indians, and sometimes with the generic category of “doctor of the forest,” generally referring to persons of Caboclo origin from the North of Brazil, but which also seeks to surpass these traditional values. Some seek to “Indianize” or “Cabocloize” themselves; and Indians may want to modernize themselves. While a medical doctor applicator highlights the “purity” and “strength” of the Upper Juruá forest, he often resorts to computational metaphors to talk about the effects kambô produces on bodies. He says that kambô “reformats the hard disk and reinstalls the software. Kambô is like the defragmentation of the computer disk, it scans the lymphatic system.” He continues by saying that kambô is for “biological immunity” and “spiritual immunity.” He ends by using another strong expression, saying, “Kambô is like a biological exorcism.” In this way, it is possible to bring together, in the same formulation, the idea of magic (demons, spirits, religion) with medicine (remedy, body, biology).

From Panacea to Placebo

51 Various therapists with whom we spoke revealed an unmistakable enthusiasm for kambô and the potential healing power of the secretion. All of them also seemed to know, though seldom in detail, of scientific studies on the biochemical properties of the green frog and emphasized that the interest of local and foreign researchers in kambô only confirms what they themselves had known for a long time: the effectiveness of its use.

52 It should be emphasized, however, that some people who were involved in the growth of urban kambô as applicators or popularizers do not have the same enthusiasm for the applications. At least one of these people invoked New Age and Santo Daime ideas and

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conceptions, such as the concepts of “strength” and “subtlety” differently from the other interviewees, to question the effectiveness of kambô in cities. Thus we hear that a medical doctor from Curitiba, influenced by New Age ideas in his practice, tried using kambô with patients suffering from cancer, HIV, and autoimmune diseases (such as amyotrophic lateral sclerosis, multiple sclerosis, and systemic lupus erythematosus). After a while, he excluded kambô from the range of therapies offered at his clinic. As he explained to us, he had at least three reasons for dropping kambô as a therapy. Firstly, the “side effects,” such as vomiting, trembling, and tachycardia were excessive for patients who already had serious problems. Secondly, the results were limited, if compared to those obtained by the use of other therapies used in his clinic, such as phytotherapy, oxidative therapies, hormonal therapy, and homeopathy. Finally, and most importantly, he stressed that he believes the “strength” of kambô gets lost on the way from the forest to the cities. In his words: When you take the therapy out of its context, it loses strength. With the Indians it must have a different strength. There should be more things, prayers, shamanism. Isolating the method and placing it in the urban environment is not enough, it makes it lose its strength. It's like buying marijuana from the dealer. Kambô has become commercial in the urban environment and is now even more detached from its original context. The “strong interest in healing” of the applicators is missing. This is something subtle, but it should be there. The applicator is fundamental and has to be linked to ancestry, and if this is not so there remains only the biochemistry. The elemental is not present. Merely the chemical and biochemical effect impoverishes it. (2007)

53 The idea that there must be some “subtlety” again appears, but with another meaning: The subtlety here seems to cover a whole cosmological system, and should occur, according to our interlocutor, only when the applications are made with no commercial interest.

54 The medical doctor’s discourse, even if by way of a negative opposition, shows that kambô appears both as a “medicine of science” and a “medicine of the soul.” One does not exist without the other, and he believes marketing weakens the “medicine of the soul” and, as a “medicine of science,” Kambô offers no “amazing” results. To highlight the absence of more significant results, he mentions that Francisco Gomes, the rubber tapper who began the expansion of kambô in the cities, died in 2001 from complications caused by cancer. If it had been as successful as Gomes had said, kambô would have rid the old rubber tapper of his disease.

55 The same caution regarding the healing power of kambô, although supported by different arguments, is present in the speech of another doctor from São Paulo: Kambô is very strong. A person can have a glycemic peak, may be hypertensive, have strong reactions. It may be dangerous to apply kambô. I think it risky for anyone, even for Shimbam (as Francisco Gomes was called by the Katukina) and for the Indians, although they are more used to it, and it is part of their culture. We need to promote clinical studies to investigate the therapeutic and collateral effects with rigorous scientific research, double blind tests, etcetera. (2007)

56 This caution is also repeated in the speech of the doctor, Glacus de Souza Brito, who told an Época magazine journalist that “You cannot know how people with heart and neurological problems will be affected. There have been no reports of deaths, but I have many reservations as to the urban use of the procedure without the accompaniment of the indigenous experience” (Aranha 2006). In an interview, Glacus Brito told us that he had witnessed many applications of kambô but, after a long time, he had not reached

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“any conclusion” about its effectiveness: “I cannot tell whether or not it heals.” At that time, there was no register of deaths resulting from the use of kambô, but, since then, there have been two deaths supposedly caused by its use: one in 2008 in Pindamonhanga, in the interior of the state of São Paulo, and the other in Chile in 2009. The research on the real causes of the deaths, however, were not announced, and therefore one can not know if they were, in fact, related to the use of kambô.

57 It is no coincidence that the three most cautious, or least enthusiastic, statements we heard on the therapeutic use of kambô were made by medical doctors. There has always been a certain opposition between doctors and urban therapists, which is explicit in the discourse of a doctor mentioned above who suggested that double blind tests should be made to test the effectiveness of kambô. A certain hegemonic conception of medicine seems here to wish to prove itself or prevail, but it has been hidden because all of these doctors have, in different ways, been impacted by the New Age referential and, in the case of two of them, use alternative medical practices in their clinics. Once again, doubts, ambiguities, and tensions surround kambô.

Final Considerations

58 In April 2006, the Katukina of the River Campinas Indigenous Territory, through the Katukina Association of Campinas (AKAC), released a document prohibiting Indians from their villages from working with urban therapists and forbidding these therapists to use pictures and the name of Katukina and the AKAC (Circular 001/AKAC of April 6, 2006). It is noteworthy that this came about as the result of an intense process of infighting; for a long time, a number of Katukina had been expressing their dissatisfaction with the partnership other members of the tribe had established with a number of urban therapists. The document was also a result of pressure from other indigenous groups who have knowledge of kambô in the context of a government meeting on the “Kampo Project” in February 2006 in Rio Branco, state of Acre. This was an initiative of the Ministry of Environment (MMA) to establish a group of researchers, such as molecular biologists, herpetologists, and anthropologists to study the commercial potential of kambô and the environmental and socio-environmental impact of its dissemination. As a result of the lack of agreement with scientists, this initiative wound down and ended in 2007 (Martins 2006; Lima 2009; Carneiro da Cunha 2009).

59 Some therapists have taken note of the document, but not expressed public opinions. One, who has no ties to the Katukina, told us that “it sounds like something from white people”; that is, the document may well have been written by non-indigenous and not by Katukina, thereby patronizing the Indians. Another, who worked with the Katukina but refused to be interviewed, said the letter was “window dressing,” a strategy of the Indians, whose (mysterious) reasons would not be easily understood by non- indigenous. Here the opposition is reversed, but in both cases the same refusal to accept the self-determination of the Katukina is insinuated.

60 Another therapist, who is close to some members of the Katukina and also did not want to be interviewed, said the document was part of a “natural balance” due to the “great interest and greed” that kambô has awakened, and probably other arrangements would soon be made, in which only the “applicators that are inside the story” (like she herself) would have space to work. Another applicator, from the North of Brazil,

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praised the decision of the Katukina and emphasized that this was a result of the misuse some were making of kambô.

61 The reaction of various urban applicators to the document replicates the logic of disputes we have seen here, where there is a changing and dynamic link between applicators of various origins. It also expresses the varying viewpoints on who would be the “authentic” guardians of knowledge of kambô: a continuum ranging from wise shamans to unsophisticated Indians. It is clear that there is a dispute over the kambô market in which documents, fragments of discourse by anthropologists, biologists, journalists, and Indians are quickly used as a source of self-legitimation, accusation, and production of new meanings. Hitherto, Amazonian and urban therapists have been quick to create their own “cosmologies” around kambô.

62 The AKAC document was insufficient to contain the urban growth of kambô and the continuity of partnerships between some Indians and urban therapists. However, it is important to consider that in the early years of the urban spread of kambô, the various indigenous groups who knew about the traditional use of the secretion were not present; they only began to participate in later years. In the mid-1990s, or even before, Francisco Gomes, when he learned to make use of indigenous knowledge and practices, certainly did not predict the paths that kambô would take, or imagine that it would attract so many disciples, both inside and outside his family.If kambô has spread throughout Brazil, as our title indicates, it is also true that it has gone beyond its borders. One frequently hears about kambô being used alongside power plants such as ayahuasca and iboga in places like the USA and Europe, not to mention the neighboring countries of South America. Another unexpected development includes the application of dermorphine, a powerful painkilling compound found in kambô, to racehorses in the USA, as a means to enhance performance. Summarizing, the green frog seems to follow its path immersed in controversies. Moving along ambiguities and ambivalences, posing as either as a mysterious power “plant” or a potent medicine, or as both at once, as the Katukina themselves put it, mixing some annoyance with pride, “kampô is out there in the world.”

BIBLIOGRAPHY

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NOTES

1. On the application of kambô among indigenous populations in Acre, see Souza et al. (2002). For more information about the use among the Katukina, see Lima (2005). 2. According to Carneiro (2005: 154), bufotenine (5-Meo-DMT) is a substance with hallucinogenic properties, similar to DMT, contained in certain plants such as Anadenanthera peregrina, and the Bufo alvarius frog. Bufotenine, acting as a transmitter in the brain of mammals, was also identified (idem). According to Rudgley (1999), this substance is five times more potent than DMT and is prohibited in the United States. 3. The close link of Francisco Gomes with the UDV became clearer after his death, when a UDV “nucleus” (religious temple) bearing his name was opened in Cruzeiro do Sul: Master Francisco Gomes Nucleus. 4. It is possible to establish an analogy here between the changing conceptions of vomiting in the context of the indigenous and mestizo use of ayahuasca, and in the Brazilian ayahuasca religions, with the latter tending to be moralizing, and clothed in the language of Christian redemption (Labate 2004). For a personal account of the use of kambô, see Labate (2012). 5. A palate can generate approximately 50 to 100 applications; there is no standard size of palate. Some have two sides, and some are single sided.

ABSTRACTS

The secretion from the frog Phyllomedusa bicolor, known in Portuguese as kambô, has traditionally been used as a stimulant and an invigorating agent for hunting by indigenous groups such as the Katukina, Yawanawa, and the Kaxinawa in the southeast Amazon. Since the mid 90s, its use has expanded to large cities in Brazil and, since the late 2000s, abroad to Europe and the US. The urban diffusion of the use of kambô has taken place via healing clinics offering alternative

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therapies, by way of members of the Brazilian ayahuasca religions, and through travel, mainly by Amazonian rubber tappers, the Katukina, and the Kawinawa Indians. In this article, we present an ethnography of the expansion and reinvention of the use of kambô. We describe the individuals who apply the substance, who are a diverse group, including indigenous healers, ex- rubber tappers, holistic therapists, and doctors. We argue that the frog secretion has a double appeal among this new urban clientele: as a “remedy of science,” in which its biochemical properties are stressed; and as a “remedy of spirit,” in which its “indigenous origin” is more valued, as if kambô was a kind of shamanic power plant analogous to peyote and ayahuasca.

Desde a metade da última década, em grandes cidades do Brasil, começou a se difundir o uso da secreção da perereca Phyllomedusa bicolor. Um pouco mais tarde, partir da segunda década deste século, tornou-se possível alcançar informações sobre tal difusão em cidades europeias e norte- americanas. Tradicionalmente usada como revigorante e estimulante para caça por grupos indígenas do sudoeste amazônico (entre eles, Katukina, Yawanawá e Kaxinawá), tem havido um duplo interesse pelo kambô: como um “remédio da ciência” – no qual se exaltam suas propriedades bioquímicas – e como um “remédio da alma” – onde o que mais se valoriza é sua “origem indígena”. A difusão urbana do kambô tem-se dado, sobretudo, em clínicas de terapias alternativas e no ambiente das religiões ayahuasqueiras brasileiras. Os aplicadores são bastante diversos entre si: índios, ex-seringueiros, terapeutas holísticos e médicos. Neste artigo apresentamos uma etnografia da difusão do kambô, analisando sobretudo o discurso que esses diversos aplicadores têm elaborado sobre o uso da secreção, compreendida por alguns como uma espécie de ‘planta de poder’, análoga ao peiote e a ayahuasca.

INDEX

Keywords: kambô, katukina, alternative therapies, Brazilian ayahuasca religions, New Age Palavras-chave: kambô, katukina, terapias alternativas, religiões ayahuasqueiras brasileiras, Nova Era

AUTHORS

BEATRIZ CAIUBY LABATE

Beatriz Caiuby Labate é Professora Visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós Graduação em Antropologia Social (CIESAS), em Guadalajara, e Professora Associada do Programa de Política de Drogas do Centro de Pesquisa e Ensino em Economia (CIDE), em Aguascalientes, México. [email protected]

EDILENE COFFACI DE LIMA

Edilene Coffaci de Lima é professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, onde participa do Núcleo de Estudos Ameríndios e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. É pesquisadora do CNPq – PQ 2. [email protected]

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O Circuito: proposta de delimitação da categoria

José Guilherme Cantor Magnani

Introdução

1 Uma das mais recentes experiências de campo do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU/USP), realizada por integrantes de um de seus coletivos de pesquisa, o Grupo de Etnologia Urbana (GEU), na Amazônia – mais precisamente em Manaus e em alguns municípios vizinhos – levantou a necessidade de revisar as categorias pedaço, mancha, trajeto, pórtico e circuito, habitualmente empregadas por pesquisadores do Núcleo.

2 Nessa expedição, em contato com membros do povo Sateré-Mawé e suas “aldeias urbanas” 1, de início a noção de circuito aparecia como a mais adequada para descrever a forma como se inserem na cidade. Esta escolha permitiu uma primeira identificação e entendimento do seu sistema de residências no contexto urbano e logo a percepção da intensa movimentação – os trajetos – entre elas e no espaço mais amplo da cidade. De imediato, porém, percebeu-se a necessidade de repensar o uso costumeiro dessas categorias, uma vez que o contexto original de sua aplicação tinha sido a cidade de São Paulo – por certo de história, características e escala muito diferentes das de Manaus e de outras cidades amazônicas.

3 E, o que é mais importante, as pessoas com as quais se estava travando esse contato não eram os habitantes da cidade, em geral, nem os moradores de periferia – como, aliás, havia sido quando da elaboração da primeira categoria da “família”, o pedaço – mas um segmento muito especial: os índios. Os integrantes do GEU, nessa sua primeira incursão pela Amazônia, foram recebidos pelos Sateré-Mawé e convidados por alguns deles a visitar uma de suas comunidades no bairro da Redenção, zona oeste da capital manauara.

4 Estávamos, desta forma, entrando em contato com “índios urbanos”, uma das expressões usadas em determinada literatura para designar a presença indígena nas

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cidades e as precárias condições de vida, trabalho e sobrevivência a que são submetidos, na periferia dos centros urbanos, como quaisquer outros moradores de baixa renda.

5 Nessa pesquisa, contudo, o GEU estava interessado em encarar o fenômeno sob outro prisma, buscando elementos de reflexão em campos que, apesar de histórica e teoricamente separados, a Etnologia Indígena e a Antropologia Urbana, poderiam contribuir para fundamentar uma perspectiva inovadora.

6 Assim, em vez de circunscrever a presença indígena no contexto habitual do processo de periferização urbana, analisar sua instável inserção no mercado de trabalho, seu confinamento em regiões de risco e carente de serviços e equipamentos básicos, optou- se por outro enfoque, com outras perguntas.

7 Buscava-se entender qual era a concepção de cidade desses grupos indígenas e que transformações sua presença acarretava na própria dinâmica urbana: como estabelecem, aí, seus vínculos, estratégias e alianças? Quais são seus trajetos no tecido urbano e que instituições acionam na busca de manutenção de um modo de vida diferenciado?

8 Antes, porém, de mostrar os alcances (e limites) das categorias da etnografia urbana para pensar estas questões e sua adequação – uma vez submetidas a um oportuno processo de revisão – a esse e a outros contextos que não a cidade de São Paulo, convém lembrar as circunstâncias em que foram elaboradas, com base nos recortes habituais das pesquisas desenvolvidas no NAU, ao longo de sua trajetória.

Antecedentes

9 A categoria circuito surgiu na continuidade de um estudo pioneiro de práticas de lazer na periferia de São Paulo, quando a de pedaço – inicialmente aplicada no contexto da vizinhança, no bairro – foi testada em regiões do centro da cidade, pelos primeiros integrantes do NAU, nos idos da década de 1990 (Magnani & Torres, [1996] 2008). A necessidade de adequá-la a esse novo contexto exigiu ajustes e abriu pistas para a elaboração de novas categorias como trajetos, manchas e pórtico.2

10 Assim, uma das primeiras incursões a campo, na Galeria do Rock, no centro da capital paulistana, mostrou que naquele pedaço os frequentadores, vindos de várias partes da cidade e até de outros municípios, não necessariamente se conheciam (por laços de vizinhança, parentesco, trabalho, religião, como no contexto do bairro) mas se reconheciam, seja pela exibição de marcas estampadas nas camisetas, nos cortes de cabelo ou na postura corporal, evidenciando seus gostos musicais, o pertencimento a determinadas galeras, a preferência por esta ou aquela banda etc.

11 A seguir, pesquisas levadas adiante por membros do NAU nas regiões do Bixiga e da esquina da Avenida Paulista com a Rua da Consolação ainda sobre modalidades de lazer ensejaram a elaboração das demais categorias – mancha, trajeto, pórtico 3 – que permitiram identificar e descrever práticas, equipamentos, lugares de encontro e passagem com marcada inserção na paisagem urbana, e acessíveis na escala do andar.

12 Mas a novidade que circuito introduziu nessa “família” de categorias, em virtude de sua capacidade de vincular domínios não necessariamente marcados pela contiguidade espacial, como ocorre nas demais, foi a de ligar pontos descontínuos e distantes no tecido urbano, sem perder, contudo, a perspectiva de totalidades dotadas de coerência

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– mesmo na vastidão da cidade de São Paulo – e desta forma construir unidades analíticas mais consistentes.

13 Assim, por mais afastados que diferentes pontos do circuito de futebol de várzea, por exemplo, pudessem estar uns dos outros, era possível reconhecer que formam um conjunto, são claramente identificados por seus usuários, permitem a realização de atividades em comum ao longo do tempo, como torneios e festivais.

14 De forma que, ao realizar uma etnografia bem localizada, neste ou aquele campo em algum bairro, escapa-se do perigo da fragmentação ou do estudo de caso isolado – é a “tentação da aldeia” – pois esses pontos fazem parte de um conjunto mais amplo, no qual é possível o estabelecimento de relações em outro nível, com outros parceiros (mas todos identificados com o circuito em causa), que vão além das fronteiras restritas de cada recorte. E, por outro lado, evita-se cair em outra tentação: tomar a cidade como algo já dado e como unidade explicativa.

Referências

15 Na realidade, talvez fosse melhor substituir “totalidade” (pelas conotações funcionalistas que carrega) por um termo mais neutro, conjunto que, no campo da matemática, é formado por todos os elementos que compartilham determinado atributo. Como se sabe, a teoria dos conjuntos (Cantor, 1874), complexa e controversa – em suas primeiras formulações, fora taxada de naif – aqui está tomada mais como evocação do que como o quadro de referência para fundamentar a categoria circuito.

16 Sem a pretensão de adentrar mais profundamente em tal campo, cabe assinalar que, se na formulação canônica, um objeto é ou não inequivocamente membro de determinado conjunto, a variante “teoria dos conjuntos fuzzy” (Zadeh, 1965), introduz a variável grau de pertinência. Desta forma a resposta torna-se mais flexível, como no caso de se alguém pertence ou não ao conjunto das “pessoas altas”: entre 0 e 1 pode haver, por exemplo, a posição 0,75.

17 Deixando de lado a matemática e voltando ao exemplo mais chão do futebol de várzea: aquele trecho de terra que, na vazante, serve de campinho para uma pelada de fim de semana, na margem do rio Solimões, em Manacapuru (AM), pode ser incluído em determinado circuito – o do futebol, ou então o do lazer – conforme seu “grau de pertinência” 4 determinado pelo recorte, pela pergunta, pelos objetivos da pesquisa em curso: se se trata de um estudo sobre jogos que fazem parte do calendário de algum torneio, essa pelada fica de fora; se a pesquisa for sobre formas de lazer vicinal, entra. And so on.

18 Outro autor que pode ajudar para compor o quadro de referência – também como evocação – é Howard Becker e a noção de “mundo”, tal como é discutida em uma de suas obras mais conhecidas, Art Worlds (1982). Nesse livro, o termo é utilizado para incluir não só os artistas propriamente ditos, nas diferentes áreas – música, artes plásticas, teatro etc. – mas outros atores, cujas práticas e especialidades contribuem para a produção final da obra ou peça. Trata-se de uma rede complexa, responsável pela feitura das obras, tradicionalmente vistas apenas como produto da criação individual de cada artista. Na verdade, a arte é, segundo o autor, resultado de uma “ação coletiva”, nela incluindo-se até mesmo recursos materiais como o papel, a tela, o instrumento

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musical etc. com seus produtores, oficinas e ferramentas – e isso, muito antes da moda dos “não humanos” ....

19 Assim, a obra artística pode ser vista no contexto de vários círculos concêntricos, a partir de um mais restrito (o dos próprios artistas) até outros, sucessivamente mais abrangentes: o grau de pertinência, para usar o termo anteriormente citado, varia. A vinculação entre esses diferentes círculos, desde aqueles que englobam elementos sem envolvimento direto, até os mais centrais, se dá através do termo convenção que define, segundo Becker, as regras comuns para a ação coletiva.

Aplicações

20 Penso que essas duas referências – as noções de conjunto/grau de pertinência e a de convenção – mutatis mutandis, podem contribuir para um melhor entendimento do alcance de circuito. Assim, se o que está em pauta é o “mundo dos skatistas”,5 dele não fazem parte apenas os atletas reconhecidos dessa modalidade, mas os iniciantes, os fabricantes dos equipamentos, os editores de revistas especializadas, os donos de lojas, as promotores de feiras, os espectadores nos locais de treino e nos momentos de encontro, etc.

21 O mesmo pode ser dito de pichadores, do hip-hop, da capoeira, dos motoboys, dos saraus da periferia, surdos, etc 6. É a “convenção” – o atributo escolhido – e seu “grau de pertinência” que determinam a inclusão ou exclusão de elementos no circuito. Assim, se o que está sendo considerado, no caso do skate, é apenas o esporte com suas habilidades, regras, equipamentos, o que interessa são os pontos onde é praticado e não onde o skatista estuda, que igreja frequenta, etc. – circunstâncias que poderão ser levadas em conta em outros contextos, se a convenção escolhida for outra, como se verá mais adiante.

22 O circuito passa, assim, a abrigar diversas classes de atores, inclui os espaços onde ocorrem suas práticas e se pauta pelo calendário de sua realização. Não se trata apenas de identificar pessoas, objetos, locais, estilos e marcas que estão em relação por compartilharem determinados interesses, valores, práticas: o que torna vivo o circuito é a movimentação dos atores, que pode ser apreciada, por exemplo, nos eventos, celebrações, rituais coletivos etc. Um evento local mobilizará pessoas, objetos, etc., de forma diferente de um evento de âmbito nacional.

23 A tradicional festa junina dos surdos em São Paulo, por exemplo, no Instituto Santa Teresinha, no bairro da Saúde, tem um grau de mobilização diferente em comparação com a missa semanal dos surdos nesse mesmo Instituto: não se trata apenas de eventos de natureza diferente, um profano e outro religioso, mas de alcances muito variados. No primeiro caso, agrega não só os surdos, mas suas famílias, amigos, professores, intérpretes, pesquisadores; no segundo, só os surdos católicos. Ambos, contudo, fazem parte de um circuito surdo mais amplo da cidade de São Paulo, que é o que lhes dá inteligibilidade, algum grau de coerência – são todos surdos, afinal – ou vinculados, de uma forma ou outra, a esse “atributo”.

24 Outro caso particular, que pode agregar uma nova dimensão ao alcance do circuito é oferecido pelos straight edges, cujo “mundo” não é constituído apenas por uma determinada prática, como nos casos anteriores referidos aos segmentos jovens. Eles não se caracterizam por um atributo, mas por vários: gosto musical, restrições

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alimentares (são veganos), discurso político, estilo de vestimenta, marcas corporais. Trata-se, aqui, de um “modo de vida compartilhado” e não apenas do desempenho ou habilidade em determinada prática, como única medida do grau de pertinência.

25 Tudo indica que o mesmo ocorre com os integrantes de outra “cena”, black metal: os gostos, valores, universo semântico, pontos de encontro, vestuário das diversas “hordas” conformam um verdadeiro estilo de vida, exclusivista e cuidadosamente elaborado, de forma a não serem confundidos com outros grupos com os quais às vezes são aproximados em virtude de uma aparente coincidência de preferências musicais.7 Vejamos, agora, algumas aplicações mais em detalhe.

Os surdos

26 Voltando aos surdos: trazer à baila o “mundo surdo”, mas tratá-lo como circuito, abre ainda mais o campo de possibilidades, já vislumbrado com a perspectiva do “modo de vida”. Se o circuito dos brechós, por exemplo, congrega vendedores e compradores de um determinado tipo de roupa, dificilmente se poderia dizer que apresentam um modo de vida (talvez uma vaga evocação “hiponga”...). O mesmo ocorre com os frequentadores do circuito dos cineclubes e salas de projeção de filmes cult – na Mostra Internacional de Cinema costumam exibir – nas longas filas de espera, antes das sessões – alguns comportamentos específicos, mas passageiros...

27 Os surdos, contudo, exibem atributos de identificação mais duradouros. Não me refiro, por certo, à condição fisiológica da surdez, instaurada no corpo, que admite graus diferentes, mas antes a marcas que exibem como constitutivas de uma identificação de ordem cultural: a língua de sinais e a “cultura surda” que, para alguns, fundam a “comunidade surda”.8

28 Contudo, não foi só a categoria de circuito que o grupo de pesquisas do NAU sobre os surdos mobilizou em seu estudo: começamos com a de pedaço, depois mancha e trajetos e, finalmente, quando o “mundo” dos surdos começava a fazer sentido de forma mais coerente e articulada, a de circuito. Vale, pois, a pena expor todo o processo, para apreciar a inter-relação entre essas categorias.

29 Assim, quando da nossa primeira incursão a campo, numa festa junina de rua organizada pela ADEFAV (Associação para Deficientes da Audio-Visão) no bairro paulistano do Cambuci, o ambiente era claramente de pedaço: todos se conheciam: alunos, professores, terapeutas, familiares. Alguns eram de fora, como nós, mas logo estavam integrados, dado o espaço onde ocorria a festa, a rua defronte à instituição.

30 É interessante observar a modulação dessa categoria pois, na sequência, fomos a uma festa na sede da Associação dos Surdos de São Paulo e aí, em espaço fechado, a experiência foi outra: era um pedaço de surdos que se só comunicavam em língua de sinais. Esta era a “convenção”, delimitando o “grau de pertinência” e quem não a conhecia... ficava de fora.

31 Já na festa junina no Instituto Santa Teresinha a situação foi diferente. Escola especial para surdos, de orientação católica, constitui o epicentro de uma mancha que inclui quadra poliesportiva, ruas adjacentes, arredores, bares da vizinhança, esquinas, pontos de ônibus, todos tomados por surdos, tanto nas festas – quando sua presença é massiva – quanto no cotidiano. Mas também por seus professores, funcionários do colégio, familiares, intérpretes, pois esta é uma característica da mancha: não se restringe aos

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“chegados”, permite o imprevisto, encontros inesperados, ainda que todos de uma forma ou outra estejam ligados ao mundo dos surdos.

32 A pesquisa seguiu seu curso e novos pontos foram sendo conhecidos, como a DERDIC (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação), ligada à PUC/SP, a Escola Municipal de Educação Especial Hellen Keller, entre outras. Seguindo os atores nesses espaços, começou a tomar forma um circuito. Mas, note-se, esses eram os trajetos de nossos primeiros contatos, os surdos mais intelectualizados, que frequentavam a universidade ou circulavam em meios acadêmicos, antenados com questões e eventos do movimento surdo, ciosos de sua diferença, a “cultura surda” e sua língua, libras.

33 À medida que o estudo prosseguia, porém, alargou-se o horizonte: começamos a entrar em contato com surdos de periferia, não proficientes na língua de sinais, os frequentadores de igrejas, os oralizados, implantados... Assim, confirmava-se aquela observação de que são os trajetos que instauram as diferentes dimensões do circuito. Pois, além das associações e das escolas especializadas, começavam a aparecer outros pontos de encontro e sociabilidade como praças de alimentação em shopping centers, igrejas, bares (inclusive de surdos gay) etc. E mais uma vez constatava-se que a convenção e os graus de pertinência, a partir dos trajetos dos atores, permitiam determinar tal ou qual dimensão ou abrangência dos circuitos.

34 Concluindo, sem entrar na complexidade e meandros dessa questão em particular, aquilo que inicialmente parecia um só bloco, indistinto – os surdos, em suas festas – revelou, na verdade, uma notável diversidade. Lá estavam todas as nuanças: surdos usuários de libras, surdos oralizados, surdos-cegos, surdos com aparelhos auditivos ou implantes cocleares, professores, familiares intérpretes, pesquisadores, religiosos.

35 Esses atores se conectam, fazem escolhas, exibem e exercitam suas diferenças nos pedaços, ampliam o leque de contato nas manchas e, em seus trajetos pela cidade, configuram o circuito surdo. Este, por sua vez, pode ser desdobrado, para efeitos de análise, em diferentes sub-circuitos: o religioso, o educacional, etc. Desta forma, reconhecido e descrito o circuito surdo na paisagem da cidade e redimensionado em vários sub-circuitos que se intercomunicam, a impressão de uma certa homogeneidade ou mesmo indiferenciação, ainda presentes na ideia de “mundo”, cede lugar a uma maior complexidade: como foi mostrado mais acima, o sub-circuito pedagógico, por exemplo, composto basicamente pelas escolas, centros de aprendizado e/ou terapia, no mês de junho se ajustam a outro sub-circuito, o do lazer.

Religião: o candomblé

36 Avançando um pouco mais, esta reflexão pode ser aplicada a outro conjunto, o circuito do candomblé. 9 Os adeptos dessa religião muitas vezes se reconhecem como membros do “povo de santo”, da “nação” angola e similares. O modo de vida compartilhado aqui inclui não só adesão a crenças e práticas religiosas, mas hierarquia, obrigações entre pais, mães e filhos de santo, “irmãos de barco”, tabus alimentares, interditos sexuais, marcas corporais, uso obrigatório de determinados adereços e vestimentas fora e dentro do terreiro. Circuito, neste caso, permite juntar, num mesmo conjunto, terreiros e ilês ligados por filiações entre seus participantes; identificar conflitos e observar passagens de membros de um para outro; registrar obrigações e quebra de lealdades, acompanhar fofocas e maledicências, disputa e, alianças.

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37 A identificação de sub-conjuntos no interior do circuito principal, formados por procedências e tradições (ketu, ijexá, bantu), ancestralidade (filhos e netos de santo de um mesmo babalorixá ou ialorixá) etc. tanto quebra a aparente homogeneidade (e preconceito) muitas vezes atribuída a esses cultos (macumba, magia negra, etc.) como, por outro lado, evita a fragmentação, pois só fazem sentido se subsumidos e articulados no interior de um conjunto mais alargado, o circuito principal.

38 Mais uma vez, a escolha do nível de abrangência e do grau de pertinência vai depender das perguntas que se fizerem. Conforme essas perguntas, por exemplo, a umbanda pode fazer parte do circuito do “povo de santo”, como um sub-circuito, ou então constituir um novo circuito10, mas fazendo intersecção com aquele. A propósito, cabe uma referência à pesquisa de Rita Amaral: (...) O povo-de-santo na cidade, como mostrou Rita de Cássia Amaral (2002 ), tem seu circuito e modo de vida correspondente, mas é possível, por exemplo, dependendo dos objetivos da pesquisa, delimitar e considerar apenas o circuito dos ilês africanizados, ou estendê-lo para os demais, incluindo ou não os terreiros de ascendência angolana e até os de umbanda; saindo do terreno propriamente religioso, esse circuito pode abranger a capoeira, as escolas de samba, os afoxés e também escolas de dança, exposições de arte africana, restaurantes, e assim por diante. Em cada um desses recortes está-se em contato com o mesmo sistema simbólico e de trocas – continua sendo o universo do povo-de-santo –, mas a cada ampliação (ou redução) do âmbito, sem que se perca a referência com um campo reconhecido pelos usuários, está-se trabalhando com questões diferentes, definidas de acordo com os propósitos, as perguntas e a literatura acionados pela pesquisa. (apud Magnani 2012:98).

Religião: o neo-esoterismo

39 E já que se está falando em religião, cabe uma incursão a outro campo em que a categoria de circuito revelou-se particularmente produtiva para organizar os pontos – espaços, lojas, livrarias, templos, consultórios, clínicas, academias – onde ocorrem, segundo calendários específicos, as práticas que denominei de “neo-esotéricas”, tal como está descrito em Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na Metrópole (Magnani, 1999).

40 Tais práticas, diferentemente do que ocorre nas religiões convencionais, à primeira vista se apresentam de forma altamente fragmentada: seu exercício, sem a tutela de um corpo sacerdotal investido de autoridade sobre os adeptos, sem normas litúrgicas e princípios doutrinários impostos a todos, pareciam o resultado mais da criação individual de seus membros do que de um marco regulatório comum: daí a denominação, na mídia, de “religião pós-moderna”, “religião self-service”, centrada na experiência e em iniciativas pessoais.

41 Traçar o circuito neo-esotérico na cidade de São Paulo foi um desafio: sem entrar nas particularidades desse universo, descrito em detalhes na obra acima citada, cabe observar que essa foi a categoria, entre outras, que permitiu começar a perceber um certo grau de regularidade e coerência nesse campo à primeira vista tão heterogêneo. Reconhecido o primeiro circuito, o principal, ficou viável identificar inúmeros sub- circuitos, com “graus de pertinência” mais específicos: o dos terapeutas holísticos (especialistas em massagem ayurvédica, tui-ná, shiatsu, acupuntura, reiki, shantala, quiropraxia, etc.); o das práticas corporais (lian-gong, yoga, tai-chi-chuan, qi-gong, danças circulares, biodança, hologinástica); dos rituais de cura (rituais tântricos,

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temazcales ou saunas sagradas, roda da medicina, rituais xamânicos, relaxamento Kum Nye); dos sistemas divinatórios, dos cursos, workshops, etc. etc. – todos com lugar reconhecido (e em contato) no circuito mais geral.

42 Isso tudo para não falar dos trajetos, característicos desse circuito: o neo-esoterismo já foi classificado como “nomadismo religioso”, “sincretismo em movimento” (Amaral 1999), haja vista a facilidade com que as pessoas transitam de um ponto a outro, sem dramas de consciência ou compromissos de lealdade. Assim, de um conjunto de práticas visto como um amontoado de crendices criadas ao sabor da improvisação de uns e da esperteza de outros, chegou-se à descrição de um universo com diferentes graus de coerência, articulação e de trocas, claramente localizado na paisagem da cidade.

Os Sateré-Mawé

43 Mas é possível ir ainda mais longe. Longe mesmo, até o Médio e Baixo Amazonas! Falar, por exemplo, em um circuito Sateré-Mawé, implica que se está diante não apenas de um modo de vida diferenciado que compartilha práticas, gostos ou crenças religiosas, mas de um povo, com regras de parentesco (não apenas “espirituais”, como no caso do candomblé), assentamentos, cosmologia, religião, sistemas de cura, história, língua, rituais. Qual o rendimento da categoria circuito, neste caso?

44 O progressivo contato do Grupo de Etnologia Urbana do NAU com os Sateré-Mawé e o conhecimento de seu modo de vida permitiram em determinada etapa da pesquisa delinear, numa primeira aproximação, o que denominamos de circuito Sateré-Mawé em Manaus e arredores: quatro comunidades em Manaus (Y’apyrehy, Waikiru, Waranã, Hywi), uma no município de Iranduba, (Sahu-Apé), mais a sede da AMISM (Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé), também em Manaus. Mais tarde foram agregadas as Casas de Trânsito de Parintins e Barreirinha e, na continuação, algumas aldeias da terra indígena em Ponta Alegre, na margem do rio Andirá.

45 Delimitar esse circuito permitiu ir além das fronteiras da cidade e distinguir sub- circuitos, como o do ritual da Tucandeira e o do artesanato, que dizem respeito a todo o povo sateré, onde quer que seus membros estejam. O mesmo pode ser dito do futebol: os Sateré-Mawé participam da liga indígena do circuito do futebol amador em Manaus, o “Peladão”, e membros de várias de suas comunidades se preparam para o torneio, disputam e acompanham os jogos. Este evento aciona, mobiliza, põe em contato determinadas pessoas, não de forma aleatória, e sim no interior de um conjunto, segundo determinadas regras.

46 Seguindo a mesma lógica, o ritual da Tucandeira organizada em Y’apyrehy, por sua vez, traz este ou aquele cantador da T.I., formigas de outro ponto, ferroáveis de outros, vizinhos do bairro, assim como a mídia, pesquisadores e turistas. Ou seja, estabelece também pontos de intersecção não duradouros; terminado o evento desfaz-se a rede. Outra festa, em outro dia, numa outra comunidade: novas alianças.

47 O mesmo ocorre com o artesanato: é outro sub-circuito, englobado pelo principal mas que articula outros pontos como a praça Tenreiro Aranha, o Mercado Municipal, o Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas – INPA, terrenos baldios e parques onde se pode colher algumas sementes, aldeias na terra indígena: produz-se assim outra configuração no interior do circuito principal.

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48 Assim como esse sub-circuitos, a configuração que foi denominada de circuito principal (que os engloba) foi estabelecida a partir de um determinado ponto de vista, de uma convenção, que orientou o inicio da pesquisa. Neste caso foi escolhido o processo de chegada e inserção dos primeiros Sateré–Mawé em Manaus, resultado de migrações, invasões, deslocamentos, ou seja, seus trajetos realizados em determinados períodos de tempo; foram esses trajetos que terminaram configurando aquele sistema de residências, inicialmente as cinco aldeias, mais a sede da AMISM, as Casas de Trânsito.

49 Neste caso, circuito e trajeto permitiram romper com a ideia corrente de “índios na cidade”, ou “índios urbanos”, pois na verdade eles estão o tempo todo circulando entre diferentes pontos nos domínios tidos como como unidades discretas – cidade, floresta, rio.

Conclusão

50 A partir do que foi discutido até aqui e com base nos conceitos e referências mobilizados acima – convenção (Becker), graus de pertinência (teoria dos conjuntos), unidades de circulação, modos de vida – pode-se tentar estabelecer os elementos mínimos constitutivos do circuito e, a partir daí, uma definição. Tais elementos são: i) a prática ou atividade que está sendo considerada, podendo variar desde um plano mais geral como “O skate na cidade de São Paulo”, ou mais especifico: “O skate no centro da cidade”; “O neo-pentecostalismo na cidade”, ou “Os neo- pentecostais na zona leste”; “O Peladão, liga de futebol amador em Manaus”, ou “A chave indígena na liga de futebol amador”. ii) as unidades que compõem o circuito, individuais ou coletivos: “Os jogadores que circulam pelos times de várzea”, ou “Os times que atuam na cidade; ou ainda “As ligas que congregam os times”. “Os ogans que frequentam os terreiros de determinada linhagem religiosa”; ou “Os terreiros da tradição ketu”; ou “As federações que congregam diferentes linhagens”, etc. iii) a delimitação espacial e temporal coberto pelo circuito: “Os espaços de lazer dos surdos na cidade de São Paulo”; “A sociabilidade dos surdos durante o período das festas juninas”, etc.

51 Daí se segue: circuito seria “a configuração espacial, não contígua, produzida pelos trajetos de atores sociais no exercício de alguma de suas práticas, em dado período de tempo”.

52 Isso posto, algumas observações merecem, mais uma vez, serem enfatizadas. A primeira delas é que o circuito apresenta, além da conhecida inserção espacial, uma dimensão temporal, característica que não aparecia nas primeiras formulações da categoria. Assim, por seu intermédio, é possível identificar e descrever um conjunto de pontos localizados espacialmente ao longo dos quais determinadas pessoas, objetos, mensagens se movimentam durante certo período de tempo. É esta dimensão espaço-temporal que, entre outras, diferencia o circuito das costumeiras aplicações da noção de rede.

53 São os trajetos que acionam essa movimentação, produzindo configurações no interior do circuito: podem ser mais amplas ou mais restritas, mais duradouras ou efêmeras – uma festa, uma invasão, a apresentação da Tucandeira ou de danças “típicas” num colégio, uma exibição de skate, uma batalha de rap. Desta forma, são os trajetos que instauram os circuitos, e são eles que põem determinados segmentos em movimento, produzindo novas configurações.

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54 Cabe notar que, assim como pedaço, mancha, trajeto e pórtico, circuito é um termo de uso comum. O circuito dos cinemas tal como consta nos cadernos especializados dos jornais, por exemplo, nada mais é do que uma lista com os endereços, a programação, os preços e algum comentário sobre os filmes em cartaz. O mesmo pode ser dito do “Circuito das Águas” – cidades que oferecem tratamento de saúde com base na propriedade terapêutica de suas fontes. E assim por diante.

55 Mas, ainda que remeta a esse significado convencional – conjunto de elementos relacionados espacialmente em razão de um atributo comum, que seria o sentido mais trivial do termo11 – circuito, como categoria, vai além de um aspecto meramente enumerativo. Como foi mostrado, seu rendimento analítico deriva da relação que mantém com as demais categorias da “família” e de sua resiliência, o que permite que seja aplicado em contextos diferentes, de amplitudes variadas, para descrever suas dinâmicas e desvendar suas lógicas.

56 Cabe aqui uma referência ao conceito de lugar antropológico, 12 “simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa” (Augé, 1994:51). Em Da periferia ao centro (2012), comento a conveniência dessa expressão: (...) quem já estudou terreiros de candomblé, grupos de jovens, escolas de samba, torcidas organizadas de futebol, o circuito gay etc. sabe muito bem sabe que, nestes e em outros casos análogos, há recortes ou unidades cujas fronteiras e graus de pertencimento são vivamente experimentados pelos integrantes do grupo. Tomando como exemplo a categoria de pedaço, é evidente, por parte de seus integrantes, uma percepção imediata, sem nuanças ou ambiguidades, a respeito de quem pertence ou não a ele: trata-se de uma experiência concreta e compartilhada. O analista, por sua vez, também percebe tal experiência e a descreve: essa modalidade particular de encontro, troca e sociabilidade supõe a presença de elementos mínimos estruturantes que a tornam reconhecível em outros contextos. Assim, uma unidade consistente em termos da etnografia é aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, é identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais. Para os primeiros, é o contexto da experiência, e para o segundo, a chave de inteligibilidade e o princípio explicativo. Uma vez que não se pode contar com uma unidade dada a priori, postula-se uma a ser construída a partir da experiência dos atores e com a ajuda de hipóteses de trabalho e escolhas teóricas, como condição para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo. (op. cit., 2012:269)

57 O mesmo pode ser dito a respeito do circuito. Os Sateré-Mawé – tal como os skatistas, os straight edges, os adeptos do black metal, as iaôs e ogans, os participantes de times de futebol de várzea, os surdos, os pichadores etc. – conhecem muito bem os circuitos em que desenvolvem suas atividades, cultivam seus modos de vida e estabelecem suas relações. O etnógrafo, por sua vez, identifica esses circuitos, pode descrevê-los e os reconhece como a instância que engloba o recorte específico que constitui o objeto de sua observação mais detida.

58 Em ambos os casos, o circuito não é dado de antemão, mas construído: são os trajetos dos atores sociais que criam, mobilizam e o tornam vivo, assim como é o observador que circunscreve, põe em contato e articula determinadas dimensões desse circuito no curso de sua etnografia. Não fosse pela conotação funcionalista, teríamos aí uma “totalidade” duradoura e dotada de algum grau de coerência interna – e não uma mera sucessão de eventos aleatórios.

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59 A flexibilização da variável “espaço”, muito marcada nas versões anteriores da categoria, abre um novo e promissor campo para sua aplicação, ainda incipiente: é o “mundo da net”, com suas incontáveis possibilidades e combinatórias, abertas à criatividade individual e coletiva. Pedaços, trajetos e circuitos, etc. “virtuais” têm, nesse domínio, suas convenções, graus de pertinência e atores que se alternam entre os modos on e off. Recorte, contudo, que está a pedir mais trabalho de campo.

60 E, por fim, uma última consequência, a partir da discussão dessa proposta de revisitar a “família” de categorias e em especial a de circuito, na área especifica da Antropologia Urbana: a dissolução da cidade enquanto uma totalidade dada, discreta, com papel explicativo ou definidor de comportamentos, práticas, situações – a violência, o individualismo, a segregação etc. – perspectiva tão a gosto da mídia e arraigada no senso comum.

61 Em seu lugar, categorias como pedaço, trajeto, mancha, pórtico e circuito permitem conduzir o olhar e o trabalho etnográfico em busca de regularidades evitando duas posições opostas: uma, a “tentação da aldeia”, que significa permanecer na zona de conforto dos limites do recorte inicial – tal ou qual prática, este ou aquele grupo, recorte empírico, equipamento ou instituição – ou a de apelar direta e imediatamente para fatores explicativos de ordem macro.

62 Como instrumentos de análise no sentido referido mais acima, ao mesmo tempo unidades de sentido e de inteligibilidade, essas categorias permitem reconhecer e descrever as múltiplas passagens entre diferentes domínios de abrangência, orientando o olhar de forma que não se situe tão “de perto” a ponto de se identificar com uma visão particularista e fragmentária, mas também nem tão “de longe”, focado no plano das generalidades.

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NOTAS

1. O GEU/NAU, a convite dos professores Marta Amoroso e Marcio Silva, fez parte, entre 2008 e 2012, do projeto “Paisagens ameríndias: habilidades, mobilidade e socialidade nos rios e cidades da Amazônia” no âmbito do Procad, Programa Nacional de Cooperação Acadêmica, que prevê intercâmbio entre um programa de pós graduação consolidado e outro, de implantação mais recente: neste caso entre o PPGAS da USP e e da UFAM. O eixo da pesquisa que coube ao NAU foi “Tempo livre e lazer nas cidades amazônicas com ênfase nas populações indígenas”. Segundo o projeto, o objetivo era fazer uma etnografia de formas de lazer e modalidades de uso do tempo livre nos espaços de socialidade da população indígena nas cidades da Amazônia como modo de abordagem inovadora dos processos de incorporação da vida urbana pelas populações nativas. 2. Para uma exposição mais pormenorizada destas categorias, ver Magnani (2012: 86-98). Cabe, contudo, uma rápida revisão: Pedaço designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público (a rua) onde se desenvolve uma sociabilidade que instaura laços de pertencimento e exclusividade entre seus membros, em torno de determinados gostos, símbolos e práticas. Manchas são áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática predominante. Mais ancorada na paisagem, acolhe um número maior e mais diversificado de usuários viabilizando possibilidades de encontro e não relações de pertencimento, com no pedaço: em vez da certeza, a mancha acena com o imprevisto, pois ainda que sejam conhecidos o padrão de gosto ou pauta de consumo aí imperantes, não se sabe ao certo o que ou quem vai se encontrar. A noção de trajeto aplica-se a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade ou no interior das manchas e levam de um ponto a outro através dos pórticos , marcos de transição na paisagem pois configuram passagens: já não se está no pedaço ou mancha de cá, mas ainda não se ingressou nos de lá. Finalmente, circuito designa o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, espaços e equipamentos que não mantém entre si uma relação de contiguidade espacial, de forma que a sociabilidade que possibilita – por meio de encontros, comunicação e manejo de códigos – é mais diversificada e ampla que na mancha ou pedaço.

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3. Para apreciar mais em detalhes esses ajustes e pistas (Galeria do Rock, Bixiga, esquina da av. Paulista e Consolação e uma passagem entre Bixiga e rua Augusta) cfr. Magnani ([1996]2008:39:46). 4. Não no sentido de relevância, importância, mas de “pertencer a “. 5. Atual tema de doutorado de Giancarlo Machado. 6. Temas, entre outros, de pesquisas do NAU. 7. Comunicação pessoal do pesquisador do NAU Lucas Lopes de Morais que defendeu sua dissertação de mestrado sobre o tema no PPGAS da USP em 2014. 8. Veja-se, a propósito, a discussão de César Augusto A. Silva sobre esses termos em Cultura Surda, 2012. 9. Tema, entre outros, de interesse e estudo por parte do Grupo de Estudos de Religião na Metrópole GERM/NAU 10. Neste caso, se umbanda for tomada como circuito principal, abre-se novo leque, podendo incluir os terreiros, a prática da capoeira (versão angola) , lojas de produtos para o culto, as federações, etc. 11. Trivial mas não desprezível pois permite uma primeira identificação e localização desses pontos como resultado dos trajetos dos atores sociais, ao longo de determinado período de tempo. Na continuação, a partir dessa primeira aplicação pode-se estabelecer novos recortes de análise ou identificar pontos de intersecção com outros circuitos, como foi feito no caso dos Sateré e o circuito de seu sistema residencial. 12. Que por sua vez remete ao conceito de “lugares de memória”, de Pierre Nora (1984).

ÍNDICE

Palavras-chave: antropologia urbana, método etnográfico, circuito, cidades amazônicas Palabras claves: antropologia urbana, método etnográfico, circuito, ciudades amazónicas

AUTOR

JOSÉ GUILHERME CANTOR MAGNANI

USP

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Circuito: propuesta de delimitación de la categoría

José Guilherme C. Magnani Tradución : Diana Paola Gómez Mateus

Introducción

1 Una de las más recientes experiencias de trabajo de campo del Laboratorio del Núcleo de Antropología Urbana (LabNau/USP), realizada por integrantes de uno de sus colectivos de investigación, el Grupo de Etnología Urbana (GEU) en la Amazonia – más precisamente en Manaos y algunos municipios vecinos – levantó la necesidad de revisar las categorías de pedaço, mancha, trayecto, pórtico y circuito, habitualmente empleadas por investigadores del Núcleo. 1

2 En esa expedición, en contacto con miembros del pueblo sateré-mawé y sus “aldeas urbanas”2, en un principio la noción de circuito parecía la más adecuada para describir la forma como ellos se inscriben en la ciudad. Esta elección permitió una primera identificación y comprensión de su sistema de residencias en el contexto urbano y en seguida permitió la percepción de su intensa movilización – los trayectos – entre las residencias y por el espacio más amplio de la ciudad. Sin embargo, de inmediato se notó la necesidad de repensar el uso habitual de esas categorías, una vez que el contexto original de su aplicación había sido la ciudad de São Paulo – ciertamente, de historia, características y escala muy diferentes de las de Manaos y de otras ciudades amazónicas.

3 Y lo que es más importante, las personas con las cuales se estaba entablando ese contacto no eran los habitantes de la ciudad en general ni los habitantes de la periferia – como, de hecho, había sido en el momento de la elaboración de la primera categoría de la “familia”, el pedaço – era un segmento muy especial: los indígenas. Los integrantes del GEU, en su primera incursión por la Amazonia, fueron recibidos por los Sateré- Mawé e invitados por algunos de ellos a visitar una de sus comunidades en el barrio de la Redenção, al oeste de la capital de Manaos.

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4 De manera que estábamos entrando en contacto con “indígenas urbanos”, una de las expresiones usadas en determinada literatura para designar la presencia de indígenas en las ciudades y las precarias condiciones de vida, trabajo y sobrevivencia a las que son sometidos en la periferia de los centros urbanos, como cualesquiera otros habitantes de bajos recursos económicos.

5 No obstante, en esta investigación el GEU estaba interesado en observar el fenómeno desde otra perspectiva. Entonces, buscó elementos para reflexionar en campos que a pesar de estar separados histórica y teóricamente, podrían contribuir para fundamentar una perspectiva innovadora: Etnología Indígena y Antropología Urbana.

6 Así, en vez de circunscribir la presencia indígena al contexto habitual del proceso de periferización urbana, analizar su inserción inestable en el mercado de trabajo, su confinación en regiones de riesgo, sin servicios ni equipamientos básicos, se optó por otro enfoque, con otras preguntas.

7 Los investigadores del GEU buscaron entender cuál era la concepción de ciudad de esos grupos indígenas y qué transformaciones su presencia causa en la propia dinámica urbana: ¿Cómo establecen allí sus vínculos, estrategias y alianzas? ¿Cuáles son sus trayectos en el tejido urbano y qué instituciones accionan en la búsqueda de manutención de un modo de vida diferenciado?

8 Antes de mostrar los alcances (y los límites) de las categorías de la etnografía urbana para pensar estas cuestiones y su adecuación a este contexto, muy distinto al de la ciudad de São Paulo, conviene recordar las circunstancias en las que las categorías fueron elaboradas a partir de las investigaciones desarrolladas en el NAU a lo largo de su trayectoria.

Antecedentes

9 La categoría de circuito surgió durante un estudio pionero sobre las prácticas de “lazer” 3 en la periferia de São Paulo en la década de 1990 (Magnani & Torres [1996] 2008), cuando la primera de las categorias, pedaço, – inicialmente aplicada al contexto de la vecindad, en los barrios – era probada en regiones del centro de la ciudad, por los primeros integrantes del NAU. La necesidad de adecuar la categoría de pedaçoo al contexto de las prácticas de lazer en la periferia de São Paulo, exigió ajustes y abrió pistas para la elaboración de nuevas categorías como trayectos, manchas y pórtico4.

10 De manera que una de las primeras incursiones a campo, en la Galería del Rock, en el centro de la capital paulistana, mostró que en aquel pedaço los frecuentadores, venidos de distintas partes de la ciudad, inclusive de otros municipios, no necesariamente se conocían (por lazos de vecindad, parentesco, trabajo o religión, como ocurre el contexto del barrio); pero sí, se reconocían – sea por la exhibición de marcas estampadas en las camisetas, los cortes de cabello o por la postura corporal, haciendo evidentes sus gustos musicales, su pertenencia a determinados grupos o la preferencia por esta o aquella banda, etc.

11 Las nuevas investigaciones de miembros del NAU en las regiones de Bixiga y de la esquina de la Avenida Paulista con la calle de la Consolação, aún sobre modalidades de lazer, dieron oportunidad para la elaboración de las demás categorías: mancha, trayecto, pórtico5, permitiendo identificar y describir prácticas, equipamientos, lugares de

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encuentro y lugares de paso: todas con marcada inserción en el paisaje urbano y accesibles en la escala del caminar.

12 Sin embargo, la novedad que circuito introdujo a esa “familia” de categorías, en virtud de su capacidad de vincular dominios no necesariamente marcados por la continuidad espacial, como ocurre en las demás categorías, fue la de unir puntos descontinuos y distantes en el tejido urbano. Sin por eso, entretanto, perder la perspectiva de totalidades dotadas de coherencia – inclusive en la grandeza de la ciudad de São Paulo – y de esta forma construir unidades analíticas más consistentes.

13 Así, por ejemplo, por más lejanos que diferentes puntos del circuito de fútbol amateur puedan estar unos de los otros, era posible reconocer que forman un conjunto, que son claramente identificados por sus usuarios y que permiten la realización de actividades en común a lo largo del tiempo, como torneos y festivales.

14 De forma que al realizar una etnografía bien localizada, en este o aquel campo en algún barrio, se escapa al peligro de la fragmentación o de encerrarse en los límites del caso aislado – es la “tentación de la aldea” – pues esos puntos hacen parte de un conjunto más amplio. En éste es posible establecer relaciones en otro nivel, con otros aliados (identificados con el circuito en cuestión), más allá de las fronteras restringidas de cada caso. Y, por otro lado, se evita caer en otra tentación: tomar la ciudad como algo ya dado y como unidad explicativa.

Referencias

15 De hecho, tal vez fuera mejor reemplazar “totalidad” (por las connotaciones funcionalistas que sugiere) por un término más neutro, conjunto. En el campo de la matemática, el “conjunto” es formado por todos los elementos que comparten determinado atributo. Como se sabe, la teoría de los conjuntos (Cantor, 1874), compleja y controversial – en sus primeras formulaciones, fue tildada de naif – aquí está tomada más como evocación que como cuadro de referencia para fundamentar la categoría de circuito.

16 Sin la pretensión de entrar más profundamente en tal campo, cabe señalar que, si en la formulación canónica un objeto es o no inequívocamente miembro de determinado conjunto, la variante “teoría de los conjuntos fuzzy” (Zadeh, 1965) en cambio, introduce la variable grado de pertenencia. De esta forma la respuesta se torna más flexible, como en el caso de si alguien pertenece o no al conjunto de las “personas altas”: entre 0 y 1 puede haber, por ejemplo, la posición 0,75.

17 Dejando de lado la matemática y volviendo al ejemplo más cercano del fútbol amateur: como clasificar aquel espacio en el márgen del rio Solimões, en la ciudad de Mancapuru (AM) que, cuando el agua baja, sirve de campo improvisado para un partido de fin de semana? Dos alternativas: puede ser incluido sencillamente en el circuito de fútbol o entonces en el circuito de lazer, conforme su “grado de pertinencia”. Éste será determinado por la pregunta y por los objetivos de la investigación en curso: si se trata de un estudio sobre los juegos que hacen parte del calendario de algún torneo, ese partido no será considerado; pero, si la investigación es sobre las formas de lazer y entretenimiento de fin de semana en la vecindad, entra. And so on.

18 Otra referencia que puede ayudar para componer el marco de análisis – también como evocación – es la noción de “mundo”, tal como ha sido discutida por Howard Becker en

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Art Worlds (1982), una de sus obras más conocidas. En ese libro, el autor utiliza el termino para incluir no sólo los artistas, propiamente dichos, en las diferentes áreas: música, artes plásticas, teatro, etc., sino otros actores, cuyas prácticas y especialidades contribuyen para la producción final de la obra o pieza de arte. Se trata de una compleja red, responsable por la creación de las obras, las que tradicionalmente han sido vistas apenas como producto de la creatividad individual de cada artista. De hecho, el arte es, según el autor, resultado de una “acción colectiva”, en la que se incluyen hasta los recursos materiales como el papel, la tela, el instrumento musical, etc. Al lado de sus productores, talleres y herramientas – y esto, mucho antes de la moda de los “no humanos”…

19 De modo que la obra de arte puede ser vista en el contexto de varios círculos concéntricos, a partir de uno más restringido (el de los propios artistas), hasta otros sucesivamente más amplios: el grado de pertenencia, para usar el término anteriormente usado, varía. El vínculo entre estos diferentes círculos, desde aquellos que engloban elementos sin relación directa, hasta los más centrales, se da por medio del término convención que define, según Becker, las reglas comunes para la acción colectiva.

Aplicaciones

20 Pienso que esas dos referencias – las nociones de conjunto/grado de pertenencia y la de convención – mutatis mutandis, pueden contribuir para una mejor comprensión del alcance de circuito. De esta manera, si lo que está en pauta es “el mundo de los skaters”6, por ejemplo, de él no hacen parte apenas los atletas reconocidos en esa modalidad, sino los iniciantes, los fabricantes de los equipos, los editores de revistas especializadas, los dueños de las tiendas, los promotores de ferias, los espectadores en los locales de entrenamiento y en los momentos de encuentro, etc.

21 Lo mismo puede ser dicho de los grafiteros [pichadores], del hip-hop, de la capoeira, de los mensajeros de moto [motoboy], los encuentros de poesía [saraus] en la periferia, los sordos, etc.7. Es la convención – o atributo escogido – y su grado de pertenencia que determinan la inclusión o exclusión de elementos en el circuito. Por lo tanto, si lo que está siendo considerado, en el caso del skate, es únicamente el deporte con sus habilidades, reglas y equipos, lo que realmente interesa son los puntos donde es practicado, y no donde el skater estudia, que iglesia frecuenta, etc. Dichas circunstancias podrán ser llevadas en cuenta en otros contextos, si la convención escogida es otra, como se verá más adelante.

22 El circuito comienza así a abrigar diversas clases de actores, incluye los espacios donde ocurren sus prácticas y se guía por el calendario de su realización. No se trata apenas de diferenciar personas, objetos, locales, estilos y marcas que están en relación por compartir determinados intereses, valores o prácticas: lo que le da vida al circuito es el movimiento de los actores, que puede ser apreciado, por ejemplo, en los eventos, las celebraciones o los rituales colectivos, etc. Un evento local movilizará personas, objetos, etc. de forma diferente de un evento nacional.

23 La tradicional fiesta de San Juan [festa junina] de los sordos en São Paulo, por ejemplo, en el Instituto Santa Teresinha, en el barrio Saúde, tiene un grado de movilización diferente en comparación con la misa semanal de los sordos en ese mismo Instituto: no se trata apenas de eventos de diferente naturaleza, uno profano y el otro religioso, sino de alcances muy variados. En el primer caso, la fiesta agrega no solamente los sordos,

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sino sus familias, sus amigos, los profesores, los intérpretes y hasta los investigadores. En el segundo caso, la misa convoca solamente a los sordos católicos. Ambos, sin embargo, hacen parte de un circuito de sordos más amplio en la ciudad de São Paulo, que es el que les da inteligibilidad y algún grado de coherencia – todos son sordos – o vinculados, de una forma u otra a ese “atributo”.

24 Otro caso particular, que puede agregar una nueva dimensión al alcance de la categoría de circuito es ofrecido por los straight edges cuyo “mundo” no está constituido solamente por una determinada práctica, como en los casos anteriores referidos a los segmentos jóvenes. Ellos no se caracterizan por un solo atributo, sino por varios: el gusto musical, las restricciones alimenticias (son vegans), el discurso político, el modo de vestir y las marcas corporales. Se trata aquí de un “modo de vida compartido” y no apenas del desempeño o habilidad en determinada práctica, como única medida del grado de pertenencia.

25 Lo mismo acontece con los integrantes de otra “escena”, el black metal: los gustos, los valores, el universo semántico, los puntos de encuentro y el vestuario de las diferentes “hordas” conforman un verdadero estilo de vida exclusivista y cuidadosamente elaborado, para no ser confundidos con otros grupos a los cuales a veces son aproximados, en virtud de una aparente coincidencia de preferencias musicales 8. Veamos ahora algunas aplicaciones en detalle.

Los sordos

26 Traer a colación el “mundo de los sordos” para tratarlo como circuito abre aún más el campo de posibilidades, ya vislumbradas con la perspectiva del “modo de vida”. Si el circuito de las tiendas de ropa de segunda [brechó], por ejemplo, congrega vendedores y compradores de un determinado tipo de ropa, difícilmente se podrá decir que constituyan un modo de vida (tal vez una vaga evocación hippie). Lo mismo ocurre con los frecuentadores del circuito de los cineclubes y salas de proyección de filmes cult quienes, tal vez durante la “Muestra Internacional de Cine de São Paulo” puedan exhibir en las largas filas de espera antes de las sesiones, algunos comportamientos específicos, pero pasajeros…

27 En el caso de los sordos, en cambio, es posible percibir atributos de identificación más duraderos. No me refiero, por cierto, apenas a la condición fisiológica de la sordez, instalada en el cuerpo, que admite grados diferentes, sino a marcas que se exhiben como constitutivas de una identificación de orden cultural: la lengua de señas y la “cultura sorda”, que para algunos, funda la “comunidad de los sordos”9.

28 No obstante, la categoría de circuito no fue la única que el grupo de investigaciones del NAU sobre los sordos movilizó en su estudio: comenzamos con la de pedaçoo, después la de mancha, los trayectos y finalmente, cuando el “mundo” de los sordos comenzaba a hacer sentido de forma más coherente y articulada, la de circuito. Vale la pena exponer todo el proceso, para apreciar la interrelación entre estas categorías.

29 Así, al momento de nuestra primera incursión en campo, en una fiesta de San Juan de calle organizada por la ADEFAV – ”Asociación para deficientes de la audio-visión” en el barrio paulistano Cambuci, el ambiente era claramente de pedaço: todos se conocían, los alumnos, los profesores, los terapeutas y los familiares. Algunos eran de fuera, como nosotros, pero en seguida estaban integrados, dado el espacio donde ocurría la fiesta: la calle frente a la institución.

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30 Es interesante observar la modulación de esta categoría, porque, en seguida, fuimos a una fiesta en la sede de la Asociación de Sordos de São Paulo, y allí, en un espacio cerrado, la experiencia fue otra: era un pedaço de sordos que sólo se comunicaban en lengua de señas. Esta era la “convención” que delimitaba el “grado de pertenencia” y quien no la conocía… quedaba por fuera.

31 Ya en la fiesta de San Juan en el Instituto Santa Teresinha la situación fue diferente. La escuela especial para sordos de orientación católica constituye el epicentro de una mancha que incluye el campo polideportivo, las calles adyacentes, los bares vecinos, las esquinas y los puntos de bus, todos estos lugares con presencia de sordos tanto en las fiestas – cuando su presencia es masiva – como en el cotidiano. Pero también por sus profesores, los funcionarios del colegio, los familiares y los interpretes; pues esta es una característica de la mancha: no se circunscribe a los que pertenecen a un circulo restringido, como ocurre en el pedaço: permite el imprevisto, los encuentros inesperados, aunque todos de una forma u otra estén relacionados al mundo de los sordos.

32 La investigación siguió su curso y nuevos puntos fueron siendo conocidos, como la DERDIC – “División de educación y rehabilitación de los disturbios de la comunicación” , vinculada a la Pontificia Universidad de São Paulo - PUC/SP y la Escuela Municipal de Educación Especial Hellen Keller”, entre otras. El hecho de seguir a los actores por estos espacios permitió vislumbrar un nuevo circuito. Pero nótese que esos eran los trayectos de nuestros primeros contactos, los sordos más intelectualizados, que frecuentaban la universidad o circulaban en medios académicos ligados a cuestiones y eventos del movimiento sordo, celosos de su diferencia, de la “cultura surda” y de su lengua brasileña de señas, “libras” 10

33 Así, a medida que el estudio proseguía se alargó el horizonte: comenzamos a entrar en contacto con los sordos de periferia, los no proficientes en la lengua de señas, los frecuentadores de iglesias, los oralizados, los que tenían implantes. De esta forma, se confirmaba la observación de que son los trayectos los que instauran las diferentes dimensiones del circuito. Más allá de las asociaciones y de las escuelas especializadas, comenzaban a aparecer otros puntos de encuentro y sociabilidad como las plazas de alimentación en los centros comerciales, las iglesias y los bares (inclusive bares de sordos homosexuales), entre otros. Una vez más se constataba que la convención y los grados de pertenencia, identificados a partir de los trayectos de los actores, permitían determinar la dimensión o amplitud de los circuitos.

34 Para concluir, sin entrar en las complejidades de esta cuestión en particular, aquello que inicialmente parecía un bloque sin distinción – personas sordas en sus fiestas – reveló, en realidad, una diversidad notable. Allá estaban todos los matices: los sordos usuarios de libras, los sordos oralizados, los sordos-ciegos, los sordos con aparatos auditivos o implantes cocleares, los profesores, los familiares, los intérpretes, los investigadores y los religiosos.

35 Estos actores de conectan, eligen, exhiben y ejercitan sus diferencias en los pedaços, amplían el abanico de contactos en las manchas y en sus trayectos por la ciudad; configuran así el circuito de sordos. Este circuito, a su vez, se puede desdoblar, para efectos del análisis, en diferentes sub-circuitos: el religioso, el de la educación, el deportivo etc.

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36 De esta forma, reconocido y descrito el circuito sordo en el paisaje de la ciudad y redimensionado en varios sub-circuitos que se intercomunican, la impresión de una cierta homogeneidad o inclusive de una indiferenciación, aún presente en la idea de “mundo” cede lugar a una mayor complejidad: como fue mostrado antes, el sub-circuito pedagógico, por ejemplo, compuesto básicamente por las escuelas, centros de aprendizaje y/o terapia, ahora, en el mes de junio, se ajustan a otro sub-circuito, el de las fiestas.

Religión: el Candomblé

37 Avanzando un poco más, esta reflexión puede ser ampliada a otro conjunto, el circuito del candomblé11. Los adeptos de esta religión muchas veces se reconocen como miembros del “pueblo de santo” [povo de santo]12, de la “nación” Angola y similares. El modo de vida compartido aquí incluye no solamente la adhesión a creencias y prácticas religiosas, sino a una jerarquía, obligaciones entre padres, madres e hijos del santo, “hermanos de barco”, tabús alimenticios, prohibiciones sexuales, marcas corporales, uso obligatorio de determinados adornos y ropas fuera y dentro del terreiro 13. Circuito, en este caso, permite reunir, en un mismo conjunto, terreiros e ilês14 vinculados por filiaciones entre sus participantes, identificar conflictos y observar traslados de miembros de uno a otro espacio de culto ; registrar obligaciones y quiebra de lealtades, acompañar chismes, disputas y alianzas.

38 La identificación de sub-conjuntos al interior del circuito principal, formados por procedencias y tradiciones (ketu, ijexá, bantú), ancestralidad (hijos y nietos de un mismo babalorixá o ialorixá15) etc. quiebra la aparente homogeneidad (y prejuicio) muchas veces atribuida a esos cultos, llamados peyorativamente como macumba o magia negra y, por otra parte, evita la fragmentación porque sólo hace sentido si son subsumidos y articulados al interior de un conjunto más alargado, el circuito principal.

39 De nuevo, la elección del alcance y del grado de pertenencia va a depender de las preguntas que se hagan. Conforme estas preguntas sean hechas, por ejemplo, la umbanda puede hacer parte del circuito del “pueblo de santo”, como un sub-circuito, o, en cambio, constituir un nuevo circuito16, que se intersecta con aquel. A propósito, cabe una referencia a la investigación de Rita de Amaral: […] El “pueblo de santo” [povo-de-santo] en la ciudad, como mostró Rita de Cássia Amaral (2002), tiene su circuito y modo de vida correspondiente, pero es posible, por ejemplo, dependiendo de los objetivos de la investigación, delimitar y considerar apenas el circuito de los ilês africanizados, o extenderlo a los demás ilês, para incluir no sólo los terreiros de ascendencia angolana sino los de umbanda. Saliendo del terreno propiamente religioso, ese circuito puede incluir la capoeira, las escuelas de samba, los afoxés y también escuelas de danza, exposiciones de arte africana, restaurantes y así en adelante. En cada uno de esos campos se está en contacto con el mismo sistema simbólico y de intercambios – continua siendo el universo del pueblo-de-santo. A cada ampliación (o reducción) del ámbito, sin que se pierda la referencia a un campo reconocido por los usuarios, se está trabajando con cuestiones diferentes, definidas de acuerdo con los propósitos, las preguntas y la literatura accionados por la investigación. (apud. Magnani, 2012: 98)

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Religión: el neo-esoterismo

40 Y ya que se está hablando de religión, cabe una incursión en otro campo en que la categoría de circuito se reveló particularmente productiva para organizar los puntos – los espacios, las tiendas, las librerías, los templos, los consultorios, las clínicas y las academias – donde ocurren, según calendarios específicos, las practicas que denominé “neo-esotéricas”, tal como está descrito en Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na Metrópole (Magnani, 1999).

41 Tales prácticas, de manera diferente de lo que ocurre en las religiones convencionales, a primera vista se presentan de forma altamente fragmentada: su ejercicio, sin la tutela de un cuerpo sacerdotal investido de autoridad sobre los adeptos, sin normas litúrgicas y principios doctrinarios impuestos a todos, parecía más el resultado de la creatividad individual de sus miembros que de un marco regulatorio común; de ahí la denominación en los medios de comunicación de “religión pos-moderna”, “religión self-service”, centrada en la experiencia e iniciativas personales.

42 Trazar el circuito neo-esotérico en la ciudad de São Paulo fue un desafío. Sin entrar en las particularidades de ese universo, descrito en detalle en la obra citada anteriormente, cabe observar que la categoría de circuito, entre otras, permitió comenzar a percibir un cierto grado de coherencia en ese campo que a primera vista parecía tan heterogéneo. Reconocido el primer circuito, el principal, se hizo viable identificar inúmeros sub-circuitos, con “grados de pertenencia” más específicos: el de los terapeutas holísticos (especialistas en masaje ayurvédica, tui-ná, shiatsu, acupuntura, reiki, shantala, quiropraxia, etc.) el de las prácticas corporales (lian-gong, yoga, tai-chi- chuan, qi-gong, danzas circulares, biodanza, hologimnástica), de los rituales de cura (rituales tántricos, temazcales o saunas sagradas, rueda de medicina, rituales shamánicos, relajamiento kum Nye), de los sistemas adivinatorios, de los cursos, de los talleres, etc. Todos con su lugar reconocido (y en contacto) en el circuito más general.

43 Todo esto para no hablar de los trayectos, característicos de ese circuito: el neo- esoterismo ya fue clasificado como “nomadismo religioso” o “sincretismo en movimiento” (Amaral, 1999). Esto, dada la facilidad con la que las personas transitan de un punto a otro, sin dramas de consciencia o compromisos de lealtad. Así, de un conjunto de prácticas visto como un amontonado de creencias creadas por la ingenuidad de unos y de la sagacidad de otros, se llegó a la descripción de un universo con diferentes grados de coherencia, articulación y de intercambios, claramente localizado en el paisaje de la ciudad.

Los Sateré-Mawé.

44 Pero es posible ir más lejos. Mucho más lejos ¡Hasta el Medio y el Bajo Amazonas! Hablar, por ejemplo, de un circuito sateré-mawé, implica que se está frente, no solamente, de un modo de vida diferenciado, que comparte prácticas, gustos o creencias religiosas, sino de un pueblo, con reglas de parentesco (no apenas “espirituales” como en el caso del candomblé), asentamientos, cosmología, religión, sistemas de cura, historia, lengua y rituales ¿Cómo se comporta la categoría de circuito en este caso?

45 El contacto progresivo del Grupo de Etnología Urbana del NAU, con los Sateré-Mawé y el conocimiento de su modo de vida permitieron en determinada etapa de la

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investigación, delinear en una primera aproximación lo que denominamos circuito sateré-mawé en Manaos y sus alrededores. Se identificaron cuatro comunidades en Manaos (Y’apyrehy, Waikiru, Waranã y Hiwy), una en el municipio de Iranduba (Sahu- apé), más la sede de la AMISM (Asociación de las Mujeres Indígenas Sateré-Mawé), también en Manaos. Más tarde fueron agregadas las casas de tránsito de Parintins y de Barreirinha, ciudades ya en las cercanías del estado de Pará, y en seguida, se incluyeron algunas aldeas en la tierra indígena de Ponta Alegre, en el margen del rio Andirá.

46 Delimitar ese circuito permitió ir más allá de las residencias en la ciudad y reconocer sub-circuitos, como el del ritual de iniciación masculina denominado Tucandeira y el de la artesanía, rasgos característicos de todo el pueblo sateré, donde quiera que sus miembros estén. Lo mismo se puede decir del fútbol: los Sateré-Mawé participan de la liga indígena del circuito de fútbol aficionado en Manaos, el Peladão17, para el cuál miembros de varias comunidades se preparan, disputando y acompañando los juegos. Este evento acciona, moviliza, pone en contacto determinadas personas, no de forma aleatoria sino al interior de un conjunto, según determinadas reglas.

47 Siguiendo es lógica, el ritual de la Tucandeira organizado en Y’apyrehy, a su vez, trae este o aquel cantante de algún resguardo indígena, las hormigas (que son colocadas dentro de los guantes), así como los candidatos al ritual, desde varios puntos, atrae los vecinos del barrio – además de periodistas, investigadores y turistas. O sea, establece también ejes de intersección no duraderos; cuando se termina el evento se deshace la red. Otra fiesta, en otro día, en otra comunidad: nuevas alianzas.

48 Lo mismo ocurre con la artesanía: es otro sub-circuito, englobado por el principal pero que articula otros puntos como la plaza Tenreiro Aranha, el Mercado Municipal, el “Instituto Nacional de Investigaciones Amazónicas” – INPA, terrenos baldíos, parques donde se puede recoger semillas y aldeas en la tierra indígena: se produce así otra configuración al interior del circuito principal.

49 Así como os sub-circuitos, la configuración que fue denominada circuito principal, (que los engloba) dependió de un determinado punto de vista, de la convención adoptada en la investigación . En este caso, fue elegido el proceso de llegada e inserción de los primeiros Sateré-Mawé en Manaos, por medio de migraciones, invasiones, desplazamientos, es decir, los trayectos de miembros de este pueblo realizados en determinados períodos de tiempo. Fueron dichos trayectos que configuraron aquél sistema de residencias formado inicialmente por las aldeas urbanas, más la sede de la AMISM y las casas de tránsito, como fue mostrado más arriba.

50 Como s se puede ver, circuito y trayecto permitieron romper con la idea corriente de “indígenas en la ciudad” o “indígenas urbanos”, porque en realidad, ellos estuvieron y siguen todo el tiempo circulando entre diferentes puntos en los dominios considerados como unidades discretas como la ciudad, el bosque o el rio.

Conclusión

51 A partir de lo que fue discutido hasta aquí y con base en los conceptos y referencias movilizados arriba – convención (Becker), grados de pertenencia (teoría de conjuntos), unidades de circulación, modos de vida – se puede intentar establecer los elementos mínimos que constituyen el circuito, y , a partir de ese ejercicio, proponer una definición. Tales elementos son:

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La práctica o actividad que está siendo considerada. Puede variar de un plano más general como “el skate en São Paulo” a uno más específico: “skate en el centro de la ciudad”, “el neo-pentecostalismo” o “el neo-pentecostalismo en la zona este”; “El peladão, liga de fútbol aficionado en Manaos” o, “la clave indígena en la liga de fútbol aficionado”. Las unidades que componen el circuito, sean individuales o colectivas: “los jugadores que circulan por los equipos en la periferia”; “los equipos que actuam en la ciudad” o, inclusive, “las ligas que congregan a los equipos”. “Los ogans 18 que frecuentan los terreiros de determinado linaje religioso”; “los terreiros de tradición ketu” o “las federaciones que congregan diferentes linajes” etc. La delimitación espacial y temporal cubierta por el circuito: “los espacios de encuentro y lazer de los sordos en la ciudad de São Paulo”, “la sociabilidad de los sordos durante el período de las fiestas de San Juan” etc.

52 De aquí se puede concluir que un circuito seria “la configuración espacial, no contigua, producida por los trayectos de los actores sociales en el ejercicio de alguna de sus prácticas, en dado período de tiempo”.

53 Dicho eso, algunas observaciones merecen ser enfatizadas, una vez más: la primera de ellas es que el circuito presenta, más allá de la reconocida inserción espacial, una dimensión temporal, característica que no aparecía en las primeras formulaciones de la categoría. Así, por medio de ella, es posible identificar y describir un conjunto de puntos localizados espacialmente a lo largo de los cuales determinadas personas, objetos o mensajes se mueven durante cierto período de tiempo. Es ésta dimensión espacio-temporal que, entre otros, diferencia el circuito de las acostumbradas aplicaciones de la noción de red.

54 Los trayectos accionan ese movimiento y producen configuraciones al interior del circuito. Las configuraciones pueden ser más amplias o más restringidas, más duraderas o efímeras: una fiesta, una invasión, la presentación de la Tucandeira o de bailes “típicos” en un colegio, una exhibición de skate o una batalla de rap. Por lo tanto, son los trayectos que instituyen los circuitos. Además, los trayectos ponen determinados segmentos en movimiento y pueden producir de esta manera nuevas configuraciones.

55 Cabe notar que, así como pedaço, mancha, trayecto y pórtico, circuito es un término de uso común. El “circuito” de las salas de cine, por ejemplo, tal como consta en los cuadernos especializados de los periódicos, no es nada más que una lista de direcciones con la programación, los precios y algún comentario sobre los filmes en cartelera. Lo mismo puede ser dicho del “circuito de las aguas” – ciudades que ofrecen tratamientos de salud con base en la propiedad terapéutica de sus fuentes. Y así en adelante.

56 Pero aunque remita a ese significado convencional – conjunto de elementos relacionados espacialmente a razón de un atributo común, que sería el sentido más trivial del término 19 - circuito, como categoría va más allá de un aspecto meramente enumerativo. Como fue mostrado, su ventaja analítica deriva de la relación que mantiene con las demás categorías de la “familia” y de su resiliencia, lo que permite que sea aplicado en contextos diferentes, de distintas amplitudes, para describir sus dinámicas y revelar sus lógicas.

57 Cabe aquí una referencia al concepto de “lugar antropológico”20, “simultáneamente principio de sentido para aquellos que lo habitan y principio de inteligibilidad para quien lo observa” (Augé, 1994:51). En Da periferia ao centro (2012), comento la conveniencia de esta expresión:

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[…] quien ya estudió los terreiros de candomblé, los grupos de jóvenes, las escuelas de samba, las hinchadas organizadas de fútbol, el circuito gay etc. sabe muy bien que, en estos y en otros casos análogos, hay campos o unidades cuyas fronteras y grados de pertenencia son vivamente experimentados por los integrantes del grupo. Tomando como ejemplo la categoría de pedaço, es evidente, por parte de sus integrantes, una percepción inmediata, sin matices o ambigüedades, a respecto de quien pertenece o no a él: se trata de una experiencia concreta y compartida. El analista, a su vez, también percibe tal experiencia y la describe: esa modalidad particular de encuentro, intercambio y sociabilidad supone la presencia de elementos mínimos estructurantes que la tornan reconocible en otros contextos. Así, una unidad consistente, en términos de etnografía, es aquella que es experimentada y reconocida por los actores sociales, es identificada por el investigador, de modo que esta unidad puede ser descrita en sus aspectos categoriales. Para los primeros, es el contexto de la experiencia, para el segundo, es la clave de inteligibilidad y un principio explicativo. Una vez que no se puede contar con una unidad dada a priori, se postula una a ser construida a partir de la experiencia de los actores, con la ayuda de hipótesis de trabajo y elecciones teóricas, como condición para que se pueda decir algo más que generalidades sobre el objeto de estudio. (op. Cit, 2012:269)

58 Lo mismo puede ser dicho sobre el circuito. Los Sateré-Mawé – tal como los skaters, los straight edges, los adeptos del black metal, las iaôs y ogans, los participantes de equipos de futbol aficionado, los sordos, los grafiteros etc. – conocen muy bien los circuitos en que se desarrollan sus actividades, cultivan sus modos de vida y establecen sus relaciones. El etnógrafo, a su vez, identifica esos circuitos, puede describirlos y los reconoce como la instancia que engloba el objeto de su observación más detallada.

59 En ambos casos, el circuito no es dado de antemano, sino construido: son los trayectos de los actores sociales que lo crean, lo movilizan y le dan vida, así como es el observador que circunscribe, pone en contacto y articula determinadas dimensiones de ese circuito en el curso de su etnografía. Si no fuese por la connotación funcionalista, tendríamos allí una “totalidad” duradera y dotada de algún grado de coherencia interna y no una mera sucesión de eventos aleatorios.

60 La flexibilización de la variable “espacio” mucho más marcada en las versiones anteriores de la categoría abre un nuevo y promisorio campo para su aplicación aún incipiente: es el “mundo de la internet” con sus incontables posibilidades y combinaciones, abiertos a la creatividad individual y colectiva. Pedaços, trayectos y circuitos, etc. “virtuales” tienen ese dominio, sus convenciones, grados de pertenencia y actores que se alternan entre los modos on y off. Tema de estudio que, todavía, pide más trabajo de campo.

61 Y, por fin, una última consecuencia, a partir de la discusión de esa propuesta de revisitar la “familia” de categorías y en especial la de circuito, en el área especifica de la antropología urbana: la disolución de la ciudad en tanto una totalidad dada, discreta, con papel explicativo o definidor de comportamientos, prácticas, situaciones – la violencia, el individualismo, la segregación etc. – perspectiva tan a gusto de los medios de comunicación y arraigado en el sentido común. En su lugar, categorías como pedaço, trayecto, mancha, pórtico y circuito permiten conducir la mirada y el trabajo etnográfico en busca de regularidades evitando dos posiciones opuestas: una, la “tentación de la aldea”, que significa permanecer en la zona confortable del objeto bien delimitado– tal o cual práctica, este o aquel grupo, recorte empírico, equipamiento o institución – o, la de apelar directa e inmediatamente a factores explicativos de orden macro.

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62 Como instrumentos de análisis en el sentido antes referido, al mismo tiempo que son unidades de sentido e inteligibilidad, esas categorías permiten reconocer y describir los múltiples pasajes entre diferentes dominios de amplitudes distintas, orientando la mirada de forma que no se sitúe tan “cerca” a punto de identificarse con una visión particularista y fragmentaria, pero también no tan de “lejos”, enfocada en el plano de las generalidades.

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NOTAS

1. Se hace necesario, de pronto, una aclaración respecto a una de esas categorías, “pedaço”: su traducción literal es “pedazo”; sin embargo, como se trata, aquí, de una “categoría nativa”, de uso corriente en el contexto de la investigación por mis interlocutores, prefiero mantener la grafía en portugués. Tiene el significado de sitio de encuentro, de sociabilidad, un poco en el sentido de “street corner”, tal como se lee en William Foot-Whyte (1943). En la nota 4, hay más detalles sobre las categorías. 2. El GEU/NAU, por invitación de los profesores Marta Amoroso y Marcio Silva, hizo parte entre 2008 y 2012 del proyecto “Paisajes amerindios: habilidades, movilidad y sociabilidad en la Amazonia” en el ámbito del Programa Nacional de Cooperación Académica - Procad, que prevé el intercambio entre un programa de posgrado consolidado y otro de implantación más reciente: en este caso el intercambio se realizó entre el Programa de Posgrado en Antropología Social de la USP y el programa de la UFAM (Universidade Federal do Amazonas). El eje de la investigación de responsabilidad del NAU fue “tempo livre e lazer nas cidades amazônicas con ênfase nas populações indígenas”. Según el proyecto, el objetivo era hacer una etnografía de modalidades de uso del tiempo libre en los espacios de sociabilidad de la población indígena en las ciudades de la Amazonia como un modo de aproximación innovadora a los procesos de incorporación en la vida urbana de las poblaciones nativas. 3. Aunque la traducción de “lazer” al castellano sea “ocio”, prefiero mantener la grafía en portugués, cuyo correlato en inglés es leisure y en francés, loisir. 4. Para una exposición pormenorizada de estas categorías ver Magnani (2012: 86-98). No obstante, cabe una rápida revisión: pedaço designa aquel espacio intermedio entre lo privado (la casa) y lo público (la calle) donde se desarrolla una sociabilidad que establece los lazos de pertenencia y exclusividad entre sus miembros, en torno de determinados gustos, símbolos y prácticas. Manchas son áreas contiguas del espacio urbano, dotadas de equipamientos que marcan sus límites y viabilizan una actividad o práctica predominante – cada cual con su especificidad, compitiendo o complementando. Anclada al paisaje, acoge un número mayor y más diversificado de usuarios viabilizando posibilidades de encuentro y no de relaciones de pertenencia, como en el pedaço: al contrario de la certeza, la mancha va de la mano con el imprevisto, porque aunque el patrón de gusto o pauta de consumo imperantes sean conocidos, no se sabe con seguridad qué o quién se va a encontrar. La noción de trayecto se aplica a flujos recurrentes en el espacio más amplio de la ciudad o al interior de las manchas y llevan de un punto a otro a través de los pórticos, marcos de transición en el paisaje, porque configuran pasajes: ya no se está en el pedaço o en la mancha de aquí, pero aún no se ha ingresado en los de allá. Finalmente, circuito designa el ejercicio de una práctica o la oferta de determinado servicio por medio de establecimientos, espacios y equipamientos que no mantienen entre sí una relación de contiguidad espacial, de forma que la sociabilidad que posibilita – por medio de encuentros, comunicación y manejo de códigos – es más diversificada y amplia que en la mancha o el pedaço. 5. Para una apreciación en detalle de esos ajustes y pistas (Galería del Rock, Bixiga, esquina de la av. Paulista y Consolação y un pasaje entre Bixiga y la calle Augusta) ver Magnani ([1996] 2008: 39-46) 6. Actual tema de doctorado de Giancarlo Machado, miembro del NAU. 7. Temas, entre otros, de las investigaciones del NAU. 8. Comunicación personal del investigador Lucas Lopes de Morais, quien defendió su disertación de maestría sobre ese tema en el Programa de Posgrado en Antropología Social /USP en 2014. 9. Ver, a propósito de este asunto, la discusión de César Augusto A. Silva sobre esos términos en Cultura surda, 2012. 10. N. De T. “libras”: Língua Brasileira de Sinais .

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11. Tema, entre otros, de interés y estudio por parte del grupo de Estudios de la Religión en la Metrópolis GERM/NAU 12. N. De T. En las religiones de matriz afro, el conjunto de las personas devotas se autodenomina “povo-de-santo”. 13. N. del T. Terreiro, es el nombre que se da al templo donde se celebran los cultos afro- brasileros. 14. N. del T. [del iorubá “casa”]. Casa donde se realizan los cultos de Candomblé. 15. N. del T. Babalorixá e ialorixá, “padre de santo” y “madre de santo”, líderes espirituales de los terreiros y casas de Candomblé 16. En este caso, si la umbanda fuese tomada como circuito principal, se abre un nuevo abanico que puede incluir sus terreiros, la práctica de la capoeira (versión angola), tiendas de productos para el culto, las federaciones etc. 17. N. de T. “Peladão” tiene como referente el término “pelada”, partido de fútbol que se juega en un lugar improvisado, por lo general de tierra, por aficionados. 18. N. De T. Ogan: miembro masculino de un terreiro ou ilê con funciones rituales específicas como el toque de tambor, el sacrificio de animales a los orixás, etc. 19. Trivial pero no despreciable porque remite a una primera identificación y localización de esos puntos como resultado de los trayectos de los actores sociales, a lo largo de determinado período de tiempo. A partir de esa primera aplicación se pueden establecer nuevas formas de análisis o maneras de identificar puntos de intersección con otros circuitos, como fue hecho en el caso de los Sateré-Mawé y el circuito de su sistema residencial. 20. Que a su vez remite al concepto de “lugares de memoria” de Pierre Nora (1984).

RESÚMENES

Circuito es parte de una “família de categorias” que incluye pedaço, mancha, trayecto y pórtico, desarrolada a lo largo de investigaciones realizadas por el Núcleo de Antropóloga Urbana – NAU/ USP. El contexto a partir de cuál dichas categorías surgieron y al cuál siempre fueron aplicadas es él de las grandes metrópolis, intentando describir, con base en el método etnográfico, su dinámica y las regularidades de los arreglos de sus moradores en su cotidiano. Sin embargo, recientes incursiones a campo, entre las cuáles se destacan investigaciones en ciudades de la región amazónica, con marcada presencia indígena, plantearon la posibilidad de rever esa categoría, principalmente por la introducción de la variable “tiempo”, una vez que a formulación original privilegiaba su carácter espacial.

Circuito faz parte de uma “família de categorias” que inclui pedaço, mancha, trajeto e pórtico, desenvolvida ao longo de pesquisas realizadas pelo Núcleo de Antropóloga Urbana – NAU/USP. O contexto a partir do qual tais categorias surgiram e ao qual sempre foram aplicadas é o das grandes metrópoles, buscando descrever, por meio do método etnográfico, sua dinâmica e as regularidades dos arranjos de seus moradores em seu cotidiano. No entanto, recentes incursões a campo, entre as quais se destacam pesquisas em cidades da região amazônica, com marcada presença indígena, colocaram a possiblidade de rever essa categoria, principalmente pela introdução da variável “tempo”, uma vez que a formulação original privilegiava seu caráter espacial.

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ÍNDICE

Palavras-chave: antropologia urbana, método etnográfico, circuito, cidades amazônicas Palabras claves: antropologia urbana, método etnográfico, circuito, ciudades amazónicas

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O Cariri e o forró eletrônico. Percurso de uma pesquisa sobre festa, gênero e criação

Roberto Marques

Uma versão preliminar do texto fora apresentada no XI Congresso Luso-Afrobrasileiro de Ciências Sociais, em Salvador, em 2011.

1 Eram três horas da tarde. Pisar no chão de terra batido do Parque de Exposições Agropecuárias, em Crato, era para mim então pisar no Cariri que deveria ser etnografado. Eu estava em “meu campo”. Não importava que já me encontrasse nessa (micro-)região ao sul do estado do Ceará desde o dia anterior. Que tivesse sido conduzido às 13h30 do aeroporto em Juazeiro do Norte, para a casa onde passaria a residir na cidade de Crato, passando pelo shopping center local. Por esse misto de ingenuidade e operação mental que torna a antropologia possível, somente naquela tarde quente de julho me sentia pisando no Cariri1.

2 A Exposição Agropecuária, em sua 56ª edição, foi o local escolhido para iniciar meu trabalho de campo. Ali, a partir do comércio de gado, caprinos, cavalos, produtos agrícolas, artesanato, peças de couro, miçangas e, posteriormente2, de shows para um grande público circulam pessoas de todos os municípios, distritos e sítios da região, como também os filhos que se ausentam do Cariri.

3 Essa variedade de público me impressionou desde minha primeira visita à Expocrato em 1995. Todos pareciam ter um motivo para ali estar. Eu mesmo já participara do evento como professor recém-chegado à região, como organizador e vendedor em barraca de petiscos e bebidas, como público de shows vespertinos de grupos de reisado, ou shows noturnos de rock, MPB, música eletrônica e, naquele ano, voltava por uma demanda de minha formação recente como antropólogo.

4 Ali, circulando, vi ex-alunos que costumavam vagar bêbados nas festas dos anos anteriores, agora acompanhados por suas esposas e filhos. Naquele momento, pareceu- me que o Parque de Exposição guardava a mesma magia com que outrora eu descrevera

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a Praça da Sé, em frente à Igreja Matriz (Marques 2004: 18-19): esse girador a partir do qual a memória da cidade parece ser acionada de forma automática. Um moto-contínuo a conferir identidade ao local. Não à toa utilizei a imagem de “girador”: caminhar em círculos concêntricos, alcançando os passos derradeiros com as próximas pisadas.

5 O parque de diversões, a venda de artesanato e brinquedos de material sintético, os leilões de gado fazem do parque, no período da tarde, um lugar frequentado majoritariamente por pais e mães acompanhados de seus filhos; senhores com chapéus na cabeça; jovens com postura de vaqueiro; acadêmicos; moças olhando o artesanato. O parque se mescla com os currais de exposição e venda de gado. É comum andar entre os estábulos e olhar o gado, ainda que não se tenha nenhuma intenção de compra ou venda. Apenas para admirar. Ao gado e às relações locais que o fazem tomar lugar ali, exposto. Admirar o gado é também localizar-se em relação a gramática textualizada nessa grande festa.

6 Aqueles estábulos de tijolo e cimento cobertos por telhas de amianto tornam-se local de convívio de criadores, cuidadores de gado e do público da exposição. Em frente a cada stand, o nome da fazenda de onde vem o gado e um grande baú, com pesticida, escovas para pelos, apetrechos de couro e objetos pessoais do tratador da fazenda festejam essa proximidade do homem com os animais que ele cria.

7 O público infantil se encanta com o gado. Saindo da roda gigante, dos carrinhos de bate- e-volta, passeiam com os pais pelos cercados dos criadores, posam para fotos nos arredores dos estábulos, com chapéu de palha e segurando um chicote de couro ao lado de um bode empalhado.

8 Era esse o fluxo de pensamento que me embalava ali, naquele lugar. Pensamento apropriado, permitindo pensar as coisas mesmas a partir das mesmas coisas. Um girador. Fluxo contínuo de pensamentos que se apoiam, conferindo densidade e sintonia àquele espaço.

9 De repente: uma avestruz. O último cercado em um bloco de estábulos era de um criador de avestruz. Dois ou três cuidadores transportavam dois bichos, com cerca de dois metros de altura e encapuzados, em meio à multidão. As pessoas ao redor pareciam tão surpresas quanto eu com a impertinência daqueles bichos.

10 Lembrei que no início dos anos 2000, os fazendeiros da região começaram a investir nessas aves. Um suposto “mundo rural” parecia revelar transformações a partir de redes outras que não aquelas adivinhadas a partir de suas relações com o “urbano”. Relações pouco afeitas a figurações canônicas ou repetidas.

11 Isso, por si só, parecia exigir a descrição de cenas, trânsitos, confluências e formas expressivas presentes ali como experimento sensível para perceber vínculos inesperados. Rio ironicamente de mim mesmo. Das armadilhas estabelecidas, de como a percepção parece ser guiada por elementos que compõem o todo, sobretudo quando este todo se antecipa como dado através do observador, tornando um desafio a premissa de Malinowski (1984) de tudo anotar: tudo o que for ordinário, tudo o que for extraordinário, com igual disposição. Pensava um pouco sobre as linhas de força que conferem ao pressuposto do observado o estatuto de verdade, quando uma nova impertinência irrompeu o espaço sonoro da festa: pelos alto-falantes instalados no parque, uma música ressoava alto. Ao contrário do que acontecera minutos antes em presença da avestruz, dessa vez só eu me assustei:

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Jogaram uma bomba no cabaré/Voou pra todo canto pedaço de mulher/Foi tanto caco de puta voando pra todo lado/Dava pra apanhar de pá, de enxada e de colher!/ No meio da rua tava os braços de Teresa,/No meio fio tava as “perna” de Raqué,/Em cima das telha os “cabelo” de Maria /No terraço de uma casa tava os peito de Zabé! /Aí eu juntei tudo e colei bem direitinho fiz uma rapariga mista, agora todo homem quer! /Pode jogar uma bomba lá no cabaré,/Que eu junto os cacos das puta /Pra fazer outra mulher! (Bomba no Cabaré; Gabriel Morais)

12 Afastado do Cariri por apenas dois anos, meus sentidos já me pregavam peças! Por um lado, reconhecia as “mesmas coisas” que paulatinamente me ambientavam ao Cariri e à pessoa que ali me acostumara a ser desde 1995, quando passei a morar em Crato como professor universitário. Ao mesmo tempo, o excesso de placas e lojas de artigos de R$ 1,99 no comércio da distinta cidade de Crato, a falta de cerimônia com que se esbarrava e se roçava o corpo uns dos outros nas ruas do centro da cidade e nas filas dos bancos, os corpos malhados nas academias pelas ruas causavam-me estranheza, convidavam- me a construir um outro lugar imaginário que confluísse o corpo ali presente e a variedade de imagens impertinentes instaladas pelo meu deslocamento recente.

13 Com “Bomba no Cabaré” essa construção de objetos que se relacionam, mas não se encaixam por sua dessemelhança atingiam também as relações de gênero que eu me propunha a estudar. Quando tocada pelos alto-falantes, quando ocupando o espaço da tradicional exposição agropecuária, e, sobretudo, por não ser motivo absoluto de admiração pelos demais ouvintes aquela música requeria uma imediata reformulação do que vinha pensando até então sobre gênero e criação no Cariri.

14 A letra fala da experiência de colagem de pedaços dessemelhantes para construir um novo produto. A partir da ação de um sujeito indeterminado expresso pelo verbo na terceira pessoa do plural “jogaram”, o agente junta, cola cacos de putas (Maria, Isabel, Raquel) e faz um produto misto, desejado por todos.

15 São esses produtos/espaços/corpos mistos que procurarei caracterizar aqui, conforme apresentado em minha produção recente (Marques 2011a; 2011b; 2012).

16 Parto do princípio que o forró eletrônico, ritmo difundido na década de 1990 em Fortaleza pelo empresário Emanuel Gurgel, pode ser agregado a temas usualmente visitados para se falar do Cariri tais como: romarias, religiosidade e cultura popular, família, feira, comércio, mundo rural e industrialização. Tal possibilidade se dá não pelas ideias de origem, particularidade ou tipificação, mas pelos temas da circulação e agência. Pela possibilidade criativa dos participantes das festas, em sua relação com a paisagem sonora presente nos palcos; alto-falantes; carros em movimento, estabelecerem contatos a partir da gestão de si nos espaços de saturação característicos da festa.

17 É possível perceber isso, a princípio, a partir da descrição dos múltiplos ambientes das festas de forró eletrônico na Expocrato: dois palcos, picadeiro para participar ou assistir a festa como espetáculo; barracas de venda de bebidas e petiscos, restaurantes à margem da festa e a tenda eletrônica, onde se ouve música eletrônica com D.J.s, efeitos de gelo seco e luzes estroboscópicas, em um cenário que remete diretamente ao ambiente urbano, permitindo, no entanto, que se volte ao ambiente de origem dos participantes dando apenas 10 a 15 passos atrás.

18 Essa variedade de cenários em um ambiente que recebe informações comuns vindas das caixas de som no Parque de Exposição possibilitou que um de meus colaboradores na

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pesquisa caracterizasse da seguinte forma o contato entre pessoas durante as festas de forró aqui descritas: Se um conhecido seu lhe encontra em frente ao palco [lugar mais exposto a um público geral], ele fala com você de uma determinada maneira; se encontra com você na tenda [eletrônica], fala de outra maneira, se encontra você em um outro lugar, durante a mesma festa, já falará de outra.

19 Essa diversidade de ambientes é ainda mais evidente em festas de forró eletrônico que ocorrem constantemente em datas comemorativas em municípios de pequeno porte, com cerca de 20.000 habitantes, como é o caso de Porteiras, Campos Sales ou Farias Brito3.

20 Neles, durante as festas de emancipação do município, vaquejadas ou festas do santo ou santa padroeira, o afluxo de filhos ausentes do município morando em outras cidades, turmas de outras cidades guiando seus carros e motos e a convivência com os jovens moradores da cidade em um momento de ebulição social recriam, momentaneamente ou não, as relações fugazes e anônimas características de uma imagística do mundo urbano e suas possibilidades criativas.

21 A circulação do ritmo através das bandas e dos carros com potentes aparelhagens de som possibilitam a experiência de relacionar-se com “o de fora”, experiência de excitação repetida de forma cotidiana nos postos de gasolina, calçadões e praças ou nas ruas pela mera passagem dos chamados “carros-pancadões”. Carros com aparelhagens de som acopladas, emitindo forró em sons “estourados”, agenciando paisagens sonoras pelo reconhecimento de pares, agregando pessoas em torno do som e estabelecendo novos contatos por preferências comuns e populares.

22 Nesse Cariri instaurado pelo som e circulação, a tensão constante entre o mesmo e o outro; entre festa e cotidiano possibilita a criação de novas cidades na mesma cidade, esgarçando o conhecido a partir de jogos dinâmicos com o outro que, de certa maneira sempre esteve potencialmente ali.

23 Se em oposição ao forró de pé de serra, que remete à formação difundida na década de 1940 por Luiz Gonzaga de triângulo, zabumba e pandeiro (Vieira 2000), o forró eletrônico é chamado de forró comercial ou forró pop, é sua conexão com espacialidades distintas que possibilita múltiplas invenções de si em territórios de luz e sombra, roçando a ideia de alteridade ao tempo que se conecta com a segurança do “local”; do “nosso”, com aquilo “que todo mundo conhece”.

24 A intervenção dos carros com sons “estourados” que rasgam o cotidiano com os estilhaços sonoros da festa produzem essa sensação de modificação do espaço pela ação de alguém, homem-máquina, agenciador de paisagens.

25 Tal descrição nos remete à ideia de Bakhtin retomado por James Clifford (2002) ao descrever o texto, ou como diríamos, a festa como um produto de formação híbrida, em que várias vozes tomam corpo por vezes a partir dos mesmos personagens, pela imaginação de uma gramática ou intencionalidade adivinhada em sua gestão de si na relação com o outro.

26 Nessa paisagem, oposições como: tradicional x moderno; pessoalidade x impessoalidade; cultura x mercado; artista x performer são acessadas ou não a partir da interação com o outro. Abandonamos assim a possibilidade de descrever a ideia de Nordeste, comunidade ou Cariri como territórios da pessoalidade, da conduta como resultado da observação contínua por pares moralmente rigorosos.

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27 Em nossa pesquisa, tais observações tomam corpo ainda em outro espaço chamado Restaurante Guanabara. A fim de evitar a ideia de que essa forma de pensamento é simplesmente uma recepção passiva do mercado pop pelo Nordeste, demonstramos como essa gestão de si em territórios de luz e sombra está também presente nesse bar sem portas inaugurado há 54 anos na cidade de Crato (Marques 2011b).

28 Sendo um bar de fim de noite, sem portas e sem público distinto, o Guanabara se beneficia de sua proximidade com o bairro do Gesso, zona de prostituição próxima ao centro de Crato, da presença de famílias tradicionais da cidade e da popularidade de um bar de fim de noite para onde todos vão, à medida que os outros estabelecimentos vão fechando suas portas.

29 Como nos diz Neto, um de nossos entrevistados: (...) tem gente que chega ali com problema, gente que chega ali animado, chega gente ali que está a fim mesmo de... não tá a fim de prostituta de...por exemplo eu não vou! Eu não vou atrás [de prostituta]! Eu vou escutar a história de um, escutar a história de outro.(...) É a diversidade em si: entra negro, entra homossexual (...) Isso é que é o bonito daquilo ali!...O cara que tem o maior preconceito do mundo ele chega lá, nas madruga...de repente ele está conversando com uma pessoa que ele teria preconceito se estivesse bom, mas lá! Já com “umas” na cabeça...Isso é que eu acho legal! (...) Porque aquilo ali é cultural dentro do Crato.

30 Ao mesmo tempo em que podemos observar e descrever os ambientes como ambientes de mistura, de “putaria”, como disseram alguns de meus colaboradores durante a pesquisa (Marques 2011a), pode-se observar como tal mistura toma a fala, as intenções, os gestos das pessoas ali presentes, materializando-se no corpo de forma surpreendente por ações voluntárias e involuntárias.

31 Dessa forma, retomamos a ideia de Nigel Rapport (1997: 02) para quem “não há possibilidades de processos de organização social afora pela consciência individual”. Nela, as imagens do que é nosso, do que sou eu; do que sou eu na relação com o outro são atualizadas por gestos e narrativas, valendo-se da variedade de posições possíveis na festa, ou no bar.

32 Essa tensão entre agência e pessoalidade; rural e anônimo; típico e deslocalizado é certamente uma das potências criativas do forró eletrônico. Trotta (2009) chama a atenção para uma face bastante visível dessa tensão. Para o autor, na descrição de uma suposta impertinência das festas de forró eletrônico, recorre-se constantemente à descrição do erotismo exacerbado nas letras das canções ou nas performances no palco. O debate sobre forró eletrônico, sua dinâmica e impertinência se engendra e assume a forma de um debate moral sobre posições de gênero; diferença e limites morais.

33 Observa-se, portanto, uma tecnologia de gênero particular implicada na tecnologia da festa. Tecnologia incorporada e materializada a partir de escoamentos, interditos e proximidades.

34 Assim, da mesma forma como não há grupos exclusivamente femininos bebendo em mesas em postos de gasolina ou em bares no cotidiano das cidades no Cariri, também não há mulheres dirigindo carros com sons “estourados”. Ao mesmo tempo, devido as possibilidades de saturação nas festas ou em suas citações cotidianas, é difícil apreender os personagens ali ambientados a partir de lugares padronizados por categorias tais como gênero, classe social, etnia e geração.

35 Estamos, portanto, diante de um impasse: ao tempo que essas categorias ocupam um lugar central na descrição das festas de forró eletrônico, seja em tom positivo ou como

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acusação de sua impertinência, elas não parecem apreender as dinâmicas desempenhadas pelos agentes em ato.

36 Procuramos avançar metodologicamente a partir de um tratamento etnobiográfico4 (Gonçalves et ali 2013), conforme poderemos perceber a partir de algumas situações de campo descritas a seguir.

37 Na minha primeira “domingueira”5 no Crato Tennis Clube, ainda em 2007, fui acompanhado por Emerson e Márcio. Emerson que costumava ir aos pagodões6 em um restaurante na praça central da cidade de Crato, agora frequentava ocasionalmente as festas de forró no clube. Marcio e Emerson e eu nos encontramos na porta do clube, onde tomamos, cada um, um Cuba Libre. Tendo bebido durante toda a tarde, Márcio e meu amigo já estavam altos.

38 Na parte interna do salão, Márcio alternava alvos de aproximação: ora passava a mão na parte inferior das nádegas de qualquer moça que estivesse passando, ora esbarrava com força nos corpos dos homens. Quando o homem se voltava para ele, tomando satisfação, Márcio oferecia o seu copo para que o outro bebesse, bebia do copo do seu iminente adversário e assim se irmanavam. Em um quarto de hora, Márcio passou a mão em pelo menos sete moças e esbarrou em no mínimo cinco homens. Ao final, desolado, olhava para mim e para nosso amigo em comum e dizia: - “Aqui não se arranja mulher não!”- Enquanto isso, Emerson ria e me confidenciava: -“Passamos a tarde juntos, Marcio beija como uma princesa!”.

39 Naquela mesma noite, ainda no Crato Tennis Clube, vi uma jovem dançando animadamente, absolutamente sozinha. Em sua dança, levantava a perna esquerda à altura da cintura, dava três ou quatro passos para um lado e alternava para o outro, quando parava, jogava os ombros alternadamente. Enfim, a moça repetia os gestos das dançarinas no palco. Não dançava com ninguém, coreografava sua dança como se ela mesma fizesse parte do espetáculo.

40 As performances de ambos podem ser lidas como maneiras de incorporar/unificar informações e adequá-las a um cenário que possibilita determinada forma de marcação de gênero. Essa forma de explicitar a diferença, que toma por ícones do feminino e masculino a dançarina no palco e o carro-pancadão, é provavelmente o conteúdo mais criticado negativamente quando se fala em forró eletrônico. Crítica duplamente informada pelas ideias ocidentais de identidade e equidade de gênero. Nelas, o forró eletrônico é percebido como um estilo musical com consistência temática que giraria em torno da hierarquização do feminino ao masculino. Essa relação é expressa em músicas como Locadora de Mulher; Dinheiro na mão, calcinha no chão ou Bomba no Cabaré.

41 Não é nosso objetivo aqui mostrar a inexistência de tal imagística de gênero7. Ao contrário, provavelmente, à medida que, alçada ao palco e utilizada como índice das relações supostamente características do forró eletrônico, essa seja sua face mais verdadeira. Parafraseando Strathern (2006: 44), poderíamos dizer que é a forma cultural assumida para expressar pensamentos, a partir de determinada maneira de por marcadores em ação.

42 Ao mesmo tempo, para que sejamos fiéis a essa forma de pensamento faz-se necessário pensá-la a partir das conexões com as características das festas de forró desenvolvidas até aqui: espacialidades múltiplas; utilização de territórios de luz e sombra; apropriação narrativa da festa por seus participantes e, finalmente, jogos de alteração de si.

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43 A consideração desses elementos em conjunto pode possibilitar uma percepção de gênero no Cariri distinto daquela gerada pelas imagens unificadoras de “Cariri como mundo rural” ou “mulher no mundo rural”.

44 Para Trota (2009: 192), há duas possibilidades de leitura das letras erotizadas do forró: distinção tradicional do papel masculino-feminino ou discurso de empoderamento da mulher, “no qual as mulheres controlam sua sexualidade e seu prazer, independente da submissão e da sujeição exclusiva ao poder patriarcal”.

45 Pelas relações até agora descritas, penso podermos borrar tal polaridade, ainda que consideremos seus termos. Esclareço: a música explicita uma ação instantânea sobre o corpo do outro, dançarinas no palco chamam o olhar para si espetacularizando o gesto de agir sobre seu par. Por outro lado, a alternância dos sujeitos descritos lembra que para que essa relação se estabeleça são necessários dois sujeitos e que eles podem/ devem alternar ações.

46 Se à mulher cabe viver a sua sexualidade, se ela é também agente nas relações entre masculino e feminino8, esse empoderamento ganha corpo no palco e na plateia de formas muito variadas, considerando os termos da oposição, ou “distinção tradicional”, mas tornando no mínimo problemática sua descrição como “sujeição ao poder patriarcal”. Tal nuança pode ser percebida, por exemplo, na seguinte canção: Já tomei porres por você (por você)/Já virei noites pensando em você/Já dormi abraçado com uma foto sua/Beijando e pedindo pra sonhar com você/ Ele: quem disse que o homem tem seu jeito de amar/diferente da mulher pode até se enganar/o coração da gente fica dominado/tudo se transforma/o importante é amar!/já chorei noites por você (por você)/já virei noites pensando em você/já dormi abraçado com uma foto sua/beijando e pedindo pra sonhar com você Ela: quem disse que a mulher tem seu jeito de amar/diferente do homem pode até se enganar/eu sei que quando rola sentimento/tudo se transforma o importante é amar/já tomei porres por você (por você)/já virei noites pensando em você/já passei o dia inteiro alugando minhas amigas/só falando em você... Jeito de Amar ( já tomei porres por você), Rita de Cássia

47 Nela, o argumento de que homens e mulheres têm “jeitos de amar” diferentes é tomada como um “erro”. Tal ideia é desenvolvida a partir das ações dos personagens na canção: masculino e feminino, encarnados no palco a partir da dupla de cantores, aproximam- se em situações em que haja envolvimento entre as partes (“quando rola sentimento”), mas se diferenciam na forma de expressá-lo: ora tomando porres, ora dormindo com uma foto, ora “alugando” as amigas.

48 Longe de expressar a ideia usual de equidade, os autores empoderam a mulher, aproximando-a dos ideais ocidentais de igualdade, ao tempo que insinuam que a diferença na forma de expressar o desejo advém do convívio entre polos de natureza distinta.

49 Ao contrário do que poderia parecer, pelo uso e citação de letras de músicas ao longo do texto, não acredito que a análise das canções possa levar a uma compreensão das festas no que diz respeito a esse tema ou a qualquer outro.

50 A experiência de saturação e variedade espacial, desenvolvida ao longo da pesquisa que esse texto divulga, é um elemento fundamental para a compreensão das possibilidades criativas das festas e para a compreensão dos cenários aqui etnografados. As ideias expressas na canção, a parafernália tecnológica, a coreografia das dançarinas, a música alta, a possibilidade de diferentes formas de fruição no ambiente da festa não confluem para um conjunto de representações coesas e linearmente hierarquizadas, senão para a

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própria composição da festa: cacos de representação advindas de diferentes corpos buscam um agente/autor. Ainda assim, acredito existir algum ganho na citação de conteúdos das músicas interpretadas no palco à medida que nos possibilitam avançar na tentativa de percepção da triangulação palco-plateia-antropólogo.

51 Nesse espaço estriado, o palco ocupa um lugar fundamental. Distância e presença; o lugar nenhum- aqui, o palco possibilita a ação de algo “fora dali”, dando sentido àquela performance, relacionando alteridade e alteração.(Taussig 1993).

52 Em todas as situações evocadas, as relações entre marcadores ocupam lugar semelhante à descrição que fizemos acima sobre a parafernália tecnológica que acompanha a festa de forró: o “estrangeiro” que se conecta com o “nosso”, enxurrada de imagens que potencializa trânsitos e identificações.

53 Goffman (1975) realizou observações bastante interessantes sobre o tema. Para o autor, cabe ao sujeito estabelecer uma conduta coerente entre seus atos em público. Essa coerência descreverá para ele um lugar social, fruto de suas condutas, percepções de suas condutas e comentários sobre elas.

54 Um ponto importante nas contribuições do autor é o fato das tecnologias de observação do sujeito pelo outro excederem as possibilidades de reflexão introspectiva sobre a coerência de sua própria performance.

55 Nas festas aqui descritas, a própria ideia de saturação, a profusão calculada de cenários e deslocamentos convidam os sujeitos a criar personagens para si mesmos.

56 Lembro, por exemplo, um de meus interlocutores que afirmava não gostar das festas de uma banda de sucesso na época porque nessas festas “dava muita gente repetida”. Para ele, a possibilidade de reapresentação de si em ambientes reticentes ao cálculo da coerência de seus atos se confundia com o próprio sentido da festa. Consideramos, portanto, que por vezes, é desejável não apenas para o agente como para o próprio receptor das informações tomar aquele ato individualizado como a verdade do sujeito que se apresenta, não cobrando coerência de seu interlocutor.

57 Nesse sentido, a aproximação por reconhecimento de pares pode ser apenas uma “pegadinha” acatada de bom grado pelo interlocutor, como possibilidade de esgarçamento das vivências de si e do local, engendrando o que chamamos de gestão do anonimato para o esgarçamento do “aqui”.

58 Citemos a esse respeito mais uma situação de campo:

59 Em um grupo de quatro pessoas, Maria foi apresentada ao amigo do namorado de sua amiga. As duas mulheres, com mais de 30 anos, ficaram acompanhadas a noite toda por esses jovens que tinham em torno de 24 anos de idade. A situação exigia que Maria fosse receptiva ao amigo do casal. No entanto, não interessada em iniciar nenhum vínculo afetivo, apenas concordou em passar o telefone para o acompanhante. Alguns minutos após se despedirem, recebe uma ligação: -Você está aonde?- -Na minha casa! responde Maria, surpresa com o telefonema. -Pois abre o portão, que eu estou aqui na frente da sua casa!-

60 Tendo morado há pouco tempo no Rio de Janeiro, Maria comentou comigo admirada: -Eu não sabia que as coisas estavam tão rápidas por aqui! Gostaria de saber o que fiz pra sinalizar que ele poderia ir à minha casa, se nem meu endereço dei a ele!

61 A lógica parece idêntica à outra vivida por mim em uma festa, onde um senhor absolutamente desconhecido se aproximou de forma efusiva e íntima perguntando pela

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“birita”: fingir intimidade para beber junto/ beber junto para ganhar intimidade. No caso de Maria citado acima finge-se intimidade para aproximar-se fisicamente9. Sendo essa aproximação física a forma cultural assumida para por em ação os marcadores a partir das variáveis citadas acima.

62 Esse excesso de informações pode ser pensado como um modelo complexo da região [do Cariri], em que se pode estar implicado (centro) ou assistir-se ao longe (periferia). A variedade de possibilidades, os laços de identificação e múltiplas representações de si permitem perceber-se ali pelo esgarçamento de categorias. Notadamente, pelo esgarçamento do que “ali” significa.

63 Os exemplos poderiam se multiplicar sem chegar a nenhuma síntese. No entanto, vale ressaltar como os destinos das relações são desenhados não por representações sintéticas que descrevem identidades, antes por agências, por vezes híbridas, que convidam a experimentação em territórios de bordas indistintas.

64 Gostaria, por fim, de aproximar algumas situações. Strathern propõe a complexificação das relações de gênero a partir da observação de momentos de unificação ou espraiamento dos marcadores, em momentos distintos das relações homem-mulher; homem-homem ou mulher-mulher. Por outro lado lembra: “A masculinidade idealizada não diz respeito necessariamente apenas aos homens; também não diz respeito apenas às relações entre os sexos” (2006: 112).

65 Ao descrevermos até agora marcadores sociais da diferença imaginados a partir de uma relação masculino-feminino, ao tentar complexificar os espaços criados narrativamente nas festas, bares, postos de gasolina, apontamos para uma impossibilidade de síntese totalizante de tais marcadores, já que são operados a partir de redes em espaços de luz e sombra.

66 Retomando, portanto, nossa entrada em campo no Parque de Exposição, alguns anos atrás, diríamos que os cacos de representações e apresentações de si, dispersos no chão, são recolhidos por narrativas, “apanhados de pá, de enxada e de colher”, formatando personagens desejados, não pelo que são, mas pela multiplicidade daquilo que podem ser pela ação de outrem sobre eles. Esse engenho sobre o outro assume uma imagística de gênero sobrepondo o masculino ao agente e o feminino ao objeto da ação. Tais posições, disputadas pelo cálculo de ponto de vista do narrador e do ouvinte revela uma dinâmica de pensamento operado pela ação sobre personagens e espacialidades, e não pela descrição substantiva de realidades objetificadas.

67 Dessa forma, se na busca de pares na festa, cada pessoa/situação escolhe os limites de sua socialidade a partir de corpos que possibilitem sua agência, e os define por oposição à categoria de “cafuçu”, os espaços aqui descritos mostram relações em que somos todos, potencialmente, “cafuçus”.

68 Relações não identitárias, mas que se fortalecem das noções de agência, de uma imagística de gênero e da posse de bens; relações não hierárquicas, mas que ocasionalmente acionam relações de hierarquia e diferenciação. Relações não ancoradas espacialmente, mas que se beneficiam da ideia de um ritmo típico e um ambiente de experimentação. Os espaços aqui descritos são pródigos, portanto, em acionar vivências e experiências que por seu caráter explícito de maquinação evidenciam limites e a sensação de ultrapassá-los, transformando o Nordeste em um também-Nordeste, por engenho próprio, por gestão de si em territórios concretos de luz e sombra.

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BIBLIOGRAFIA

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Música: Bomba no Cabaré. Gabriel Morais. Forró Mastruz com Leite.

Música: Locadora de Mulher. João Gonçalves.

Música: Dinheiro na mão, calcinha no chão. Jailson Nascimento.

Música: Meu novo namorado. Rodrigo Mell e Elvis Pires.

Música: Jeito de amar (já tomei porres por você). Rita de Cássia.

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NOTAS

1. Provisoriamente, defino o Cariri como uma microrregião ao sul do Ceará composta por 26 municípios, fazendo fronteira com os estados do Piauí, Pernambuco e Paraíba. Como chama a atenção Cortez (2000), há diversas maneiras de delimitar a região, seja por sua formação histórica, por uma suposta unidade natural, ou ainda de forma político-administrativa, como fizemos logo acima. Em geral, os trabalhos desenvolvidos na região consideram o chamado “Triângulo Crajubar”, formado pelos municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha como centro administrativo, político, econômico e cultural da região. Sobre as dificuldades da delimitação geográfica no trabalho em Ciências Humanas, vide: Foucault 1979: 153- 166; Strathern 1995. 2. Há registros de atrações artísticas na Expocrato desde o início do evento há 60 anos. Almeida Junior, radialista e filho de radialista em Crato, conta que o sistema de alto-falantes usado em suas primeira edições pertencia à diocese. Em minha pesquisa sobre a década de 1970 no Cariri, João do Crato, na época cantor da banda de rock Xá de Flor, de Fortaleza, contou que a banda foi uma das primeiras atrações “de fora” a tocar no evento, que abrigava sobretudo artistas locais e bandas cabaçais. Na década de 1990, as atrações nacionais se apresentavam no evento sem venda de ingressos. Em meados de 2000, produtores de eventos passam a concorrer em licitação para utilizar um espaço exclusivamente destinado a shows, agora com venda de ingressos unitários ou em “pacotes” para todos os dias do evento, camarotes, venda de bebidas e comida, entre outras atrações. 3. Os municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha contabilizam entre 263 e 58.000 habitantes. (IBGE, 2014). A proximidade entre eles permite um fluxo constante entre seus habitantes, o que em períodos de festa potencializa as possibilidades de gestão de personagens de si mesmo a partir de deslocamentos que buscamos caracterizar aqui. 4. Em oposição à tradição antropológica que percebe o sujeito como lugar de materialização de relações sociais que o antecedem, chamamos etnobiografia à tentativa de apreensão a um só tempo do sujeito e os contextos por ele agenciados. Tentamos nos afastar assim da ideia de sujeito exemplar , bem como de uma noção de social fixo, localizado geograficamente e transcendente. Para isso, contamos com a contribuição de autores como Strathern (2006) e da ideia de agência, tal como apresentada por Rapport (1997). 5. Domingueira é o nome das festas que aconteciam aos domingos no Crato Tennis Clube, clube recreativo no centro da cidade, com piscinas, restaurante e dois palcos. O Crato Tennis Clube localiza-se em um lugar bastante central no cidade de Crato, permitindo acesso a praticamente toda sua população, a partir de eventos variados, que vão de bailes de carnaval, formatura às festas de forró aqui descritas. 6. Os pagodões do bar Chopperia, que costumavam juntar muita gente, deixaram de acontecer por pressão da Igreja. A matriz da Sé, também localizada em frente à praça, tinha suas missas mais populares às 19 h. Durante algumas semanas, os cânticos da missa foram entremeados pela letras e batida característica do pagode, até que os eventos dominicais no bar cessaram. 7. É patente que, diante da intenção de agregar diferentes públicos, essa não é a única temática das letras de forró. Provavelmente seja sua marca, à medida que através dela se diferencie de outros gêneros pop como o rock, o reggae, o pagode ou a MPB romântica, irmanando-se ao funk e ao axé baiano. 8. Penso, por exemplo na canção intitulada “Meu novo namorado”, que diz: Não vou negar/Sofri demais quando você me deu o fora/Mas o tempo passa/O mundo gira, o mundo é uma bola/Pintei o meu cabelo, me valorizei/Entrei na academia, eu malhei, malhei/Dei a volta por cima e hoje te mostrei meu novo namorado./Pensou que eu ia chorar por você/Que eu ia morrer de amor/Que eu ia pedir pra voltar,ah, ah, ah, ah, ah, ah/Que eu ia chorar por você,Que eu ia morrer de amor,Que eu ia pedir pra voltar.

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(Meu novo namorado; Elvis Pires / Rodrigo Mell) 9. Como diz um forró de sucesso: “primeiro a gente foge, depois a gente vê”

RESUMOS

Tenta-se aqui apresentar o Cariri, região ao sul do estado do Ceará, a partir das festas de forró eletrônico, popularizadas em todo o Nordeste e no Brasil a partir da década de 1990. Caracterizada pelas ideias de variedade e saturação, as festas de forró eletrônico convidam seu público a criar personagens a partir de deslocamentos entre pares, naquilo que chamamos territórios de luz e sombra. Revisitando a discussão sobre reapresentações de si em épocas de ebulição social, discutimos como as festas de forró eletrônico complexificam a percepção de espaços inventados sob o signo da tradição a partir de temas como: interação palco-plateia; usos da tecnologia e figurações de gênero.

We try here to presente Cariri region (CE) through electronic forró dance parties, popularized throughout brazilian northeast and others regions of Brazil from the 1990´s. These parties can be characterized by the ideas of variety and saturation, inviting the audience to create different characters of themselves by the act of dislocating through the party. That is what we call territories of light and shadows. The electronic forró dance parties invite us to see spaces marked by the idea of tradition in a more complex way, from themes as: stage- audience interaction; technology and gender figurations.

ÍNDICE

Keywords: eletronic forró dance parties, Brazilian northeast, Cariri, party, creativity Palavras-chave: forró eletrônico, nordeste brasileiro, Cariri, festa, criatividade

AUTOR

ROBERTO MARQUES

Roberto Marques é professor adjunto da Universidade Regional do Cariri (URCA), doutor em Antropologia Cultural pelo IFCS/UFRJ (2011). Atualmente cumpre estágio pós-doutoral na mesma instituição, desenvolvendo a pesquisa “Imagens e sons na produção contemporânea do Cariri: um experimento etnobiográfico”, financiada pelo CNPq.

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A iconoclastia sagrada de Márcia X.: arte contemporânea, performance e religião

Paola Lins de Oliveira

O pensamento das religiões instituídas pretende revelar o secreto. O pensamento da arte é outro em relação ao enigma. Ela não é reveladora, mas ativa. É o trabalho da arte que nos tempos e espaços cambiantes pensa ativamente o real como segredo ou como enigma. A arte é um pensamento irreligioso do sagrado. Marc Le Bot (apud Bulhões, 1997: 49,50)

1 Em abril de 2006, dois meses após a estreia da exposição “Erotica – os sentidos na arte”, no Rio de janeiro, uma de suas obras é retirada da mostra. “Desenhando com terços”, um fotograma que apresenta dois pares de terços unidos em duplas formando dois pênis entrecruzados, é de autoria da perfomer e artista plástica carioca Márcia X.. A imagem participava da mostra exibida no Centro Cultural Banco do Brasil, e se tornou objeto de grande debate público1 após ser retirada por ordem do conselho diretor do banco, em resposta a inúmeras reclamações de católicos e a apresentação de uma notícia-crime contra o centro cultural. O argumento de ofensa religiosa utilizado pelos católicos envolvidos no episódio se baseava na separação estrita entre o valor sagrado do objeto religioso e o sentido profano que a artista confere a ele ao aproximá-lo do órgão sexual masculino. Do outro lado, artistas defendiam o direito de Márcia X. à liberdade de expressar sua crítica iconoclasta contra o conservadorismo religioso que opõe o sagrado às dimensões mais cotidianas da vida, sobretudo à sexualidade.

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Desenhando com Terços2

2 A controvérsia pública em torno da exibição da obra “Desenhando com terços” pode ser percebida como um momento-chave na trajetória de uma artista dedicada à manipulação não convencional de elementos que remetem à sexualidade, infância, religião, feminilidade, entre outros temas. Apesar do desfecho negativo resultante da retirada da obra da mostra, dois efeitos podem ser tomados como consequências positivas para a obra de Márcia X.. Em primeiro lugar, ressalta-se o intenso debate promovido e noticiado pelos jornais e outros meios de comunicação (destacando-se os espaços eletrônicos) não somente em torno dos temas trabalhados pela artista em “Desenhando com terços”, mas também sobre como todas as questões ultrapassam a obra e tocam nas relações entre arte, religião, sexualidade e sociedade. Nesse sentido, se o “papel” da arte é suscitar discussão e provocar transformações, como indicam muitos argumentos em jogo, podemos concluir que “Desenhando com terços” é uma obra bem-sucedida. O segundo efeito positivo diz respeito ao aumento da visibilidade da obra de Márcia X.. Tal fato é levantado em diversos comentários, preocupados principalmente em ressaltar a ineficácia da retaliação dirigida à “Desenhando com terços”, pois como afirma Alfredo Nicolaiewsky, autor de uma obra também sob a ameaça de ser retirada de “Erotica”, referindo-se aos católicos mobilizados na querela: “O que esse pessoal conseguiu fazer foi tornar a obra de Márcia e a minha conhecidas no país inteiro. Me parece que o tiro saiu pela culatra”3.

3 Inspirados na constatação da visibilidade direcionada à “Desenhando com terços” durante a controvérsia, procuraremos recompor as trilhas que conduzem a obra ao conjunto mais amplo da produção de Márcia X.. Desta forma, pretendemos simultaneamente mapear sua trajetória e as questões principais com as quais dialoga, e observar como se dá o rendimento da questão relativa à religiosidade e ao sagrado.

4 Para isso, adotamos a perspectiva metodológica de Appadurai (1986), que propõe observar as coisas como “atores sociais” capazes de provocar movimentos e discussões que influenciam e transformam realidades. “Desenhando com terços” provocou um debate intenso que fomentou uma revisão dos limites entre arte contemporânea e religião, entre outros temas. Entretanto, propomos aqui uma interpretação não somente da obra controversa, mas também do modo como a artista se apropria dos elementos religiosos em performances, objetos e instalações. Para pensar os contextos de produção dos objetos, inspiramo-nos ainda nas abordagens de Alfred Gell (1998) acerca da condição “genealógica” dos seres sociais. Sob esse ponto de vista, pessoas e coisas são pensadas como “precipitações” ou “instanciações” nas correntes

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genealógicas da qual fazem parte, havendo a necessidade de se investigar suas linhagens para compreender as singularizações que constituem. Assim, propomos uma incursão à obra de Márcia X. para conhecermos a linhagem na qual “Desenhando com terços” se insere, e em que medida sua obra contém um determinado discurso sobre o sagrado.

5 Na primeira parte do texto, apresentaremos a leitura dos críticos sobre os trabalhos de Márcia X.. Nossa intenção é compreender como as diversas interpretações sobre a obra da artista compõem um repertório de “histórias” que ajudam a construir seu valor cultural (Marcus & Myers, 1995). Para isso, analisamos textos críticos disponíveis no sítio eletrônico da artista (produzidos por ela e por críticos de arte), textos publicados em outras fontes eletrônicas (como jornais e blogs), artigos de revistas especializadas e de livros, e catálogos de exposições4.

6 Na segunda seção, examinaremos a dimensão da religião e do sagrado no trabalho de Márcia X.. É importante notar como os movimentos de transgressão e sacrilégio aparecem em sua obra, marcas de sua relação com o universo das questões religiosas que se conectam com a sexualidade, infância, feminilidade e cotidiano. Nesse sentido, os limites são artificiais e elaborados somente para a análise, porque em suas obras as temáticas se contaminam constantemente. Tais contaminações serão inclusive fundamentais para compreender o modo como a artista pensa a questão religiosa. Partindo do entendimento de que a transgressão e o sacrilégio constituem intenções declaradas em sua obra, lançaremos mão de uma literatura que privilegia a abordagem do sagrado através do deslocamento do foco de sua relação com a transcendência para enfatizar seus desdobramentos no plano da imanência.

7 Nesta frente, basearemo-nos principalmente nas interpretações de Georges Bataille, Roger Caillois e Michel Leiris. Reunidos em torno de uma proposta de “sociologia sagrada”, esses autores partiram do legado de Durkheim acerca da definição do sagrado e ampliaram o escopo de suas implicações para além de sua (suposta) heterogeneidade absoluta em relação ao profano, de modo que suas facetas ambíguas, perigosas e impuras foram ressaltadas. Assim, a imbricação direta entre sagrado e religião postulada por Durkheim é desfeita e o sagrado pode ser percebido como uma força incessantemente intercambiável, ora pura, ora impura. Essas formulações estiveram presentes durante as discussões promovidas por Bataille, Caillois e Leiris sobre o movimento surrealista. Considerando essa dupla inserção, no diálogo com os autores realçaremos a possibilidade do sagrado irromper nos corpos e no cotidiano como força ambivalente capaz de atuar em circunstâncias-limite, na morte, no erotismo, na violência ou nas banalidades, ativado por contágio ou transgressão.

Uma artista iconoclasta: Márcia X. e a crítica de arte

8 As críticas recentes em torno do trabalho de Márcia X. apresentam-na como uma figura importante da arte brasileira contemporânea, por seu tom crítico provocador e por ser considerada “desbravadora no campo da arte de performance e instalações”5. O reconhecimento de sua obra vem conjugado à identificação de um contexto de produção artística adverso para a adoção da performance como linguagem. A década de 1980 vivia a “volta à pintura”, o que deslocava as outras produções plásticas para um território marginal ou mesmo ignorado (Rivitti 2007). Fernando Cocchiarale, em texto

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publicado no Jornal do Brasil quando da morte da artista, reforça esse sentido dissidente que “empresta à sua obra desde seus primórdios um tom iconoclasta”6.

9 Essa recusa à pintura em tela é avaliada por Cocchiarale como o primeiro ato iconoclasta da artista, a partir do qual se seguem outros, relacionados aos temas abordados em seus trabalhos. Note-se que Márcia X. não fazia unicamente performances, tendo trabalhado também com objetos e instalações. Mesmo assim, o investimento na performance ao longo de sua carreira lhe rendeu o título de artista performática (ou performer). Lançar uma luz sobre o histórico da performance como meio de expressão artística pode ajudar a compreender a primeira e contínua intenção transgressora de Márcia X.

10 Segundo a historiadora e crítica de arte RoseLee Goldberg (2006), em seu livro que se pretende uma referência no campo dos estudos da performance7, a arte performática se insere em uma linhagem de produção de atos diversificados conectando literatura, dança, poesia, teatro, improvisações, e agitação política, remontando aos manifestos futuristas italianos e aos dadaístas e surrealistas parisienses. Enquanto recusa aos padrões convencionais para a arte em vigor, as demonstrações ao vivo e públicas ganhavam a força de ato artístico próximo dos espectadores ao mesmo tempo em que impediam a “mercantilização” da arte. Se um objeto de arte é altamente vendável, e portanto distante do público mais amplo que se quer atingir, uma vez que ele circula entre marchands e colecionadores, o ato artístico transforma-se em algo imune ao mercado de venda de obras de arte ao mesmo tempo em que aproxima o artista do seu público. Segundo Goldberg, tais vantagens foram excepcionalmente consideradas por grupos de artistas preocupados com as relações entre arte e sociedade; arte e política, principalmente no que diz respeito ao lugar da obra de arte na sociedade e da aproximação entre a arte e a vida das pessoas. Nesse período a performance passou a ser reconhecida como meio de expressão artística independente, e foi amplamente utilizada por artistas conceituais interessados na ênfase no corpo como meio para a veiculação de ideias. Em um sentido mais geral, tais artistas lideraram ao longo do século XX o processo de ruptura com as tradições artísticas estabelecidas, assumindo uma posição de “vanguarda da vanguarda” (idem:VII).

11 Entretanto, Goldberg ressalta que diante das crises econômicas mundiais e das transformações políticas em curso durante a década de 1970, “o entusiasmo pela transformação social e pela emancipação [foi] consideravelmente sufocado” (idem:144). Entre os jovens artistas formados na arte conceitual, tais transformações acarretaram tanto a revisão do “cerebralismo” da produção conceitual quanto uma reação aos grandes espetáculos de música pop. Ainda que a intenção expressa da arte conceitual fosse a redução do “elemento de alienação entre o performer e o espectador” através do compartilhamento da ação num tempo e espaço comuns (idem:142), muitas obras tendiam a pura abstração já que “raramente se tentava criar uma impressão visual mais abrangente, ou dar pistas para a compreensão da obra através do uso de objetos ou de elementos narrativos” (idem:143). Por outro lado, as imagens espetacularizadas dos ídolos da música pop eram cada vez mais conhecidas e carregavam uma mensagem cultural de rebeldia referida às letras das músicas e aos elementos visuais. A relação com o comércio de arte também mudou: “a instituição da galeria, outrora rejeitada por sua exploração dos artistas, foi reafirmada como um conveniente mercado para a produção artística” (idem:144).

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12 Na obra de Goldberg, o questionamento do lugar da arte na vida social aparece como motivo fundamental para a opção por essa linguagem. A ruptura da produção artística da década de 1970 em relação ao expressionismo abstrato “apolítico” (idem:134) das décadas de 1950-60, assim como as transformações posteriores dos artistas pop na virada para os anos de 1980 são indícios de que a arte de performance se desenvolveu em consonância com momentos de transformação dos movimentos artísticos.

13 Além do contexto adverso de revalorização da pintura, Cláudia Saldanha, crítica de arte e curadora da exposição retrospectiva “Márcia X. Revista”, realizada no Paço Imperial do Rio de Janeiro em 2005, destaca que a artista enfrentou ainda a resistência que a performance sofria, já que “Márcia despontou em plenos anos 80, época em que a palavra performance estava desgastada, graças ao uso excessivo do recurso nos anos 60 e 70”8. Podemos considerar que este desgaste se relaciona com as inúmeras produções performáticas que tendiam tanto à crítica da valorização comercial da produção artística, quanto à apropriação dos instrumentos da economia de mercado. Este “contraste” entre posições em relação ao mercado vincula-se ainda às diferentes maneiras encontradas pelos artistas para lidar com a expansão dos meios de comunicação e consumo de massa, assim como com a tensão permanente entre a alta cultura representada pelas artes plásticas (as Belas Artes) e a cultura popular. Os artistas responsáveis pelo retorno da pintura no início da década de 1980 forjaram suas carreiras de sucesso em harmonia com a mídia, recebendo a alcunha de “artistas- celebridades”, ao mesmo tempo em que ajudavam a consolidar um mercado de bens de alta cultura. Aqueles que optaram pela via da performance estabeleceram um diálogo multifacetado com os meios de comunicação e com o consumo de bens culturais: educados com altas doses de televisão, filmes “pastelões” ou “B” e rock’n’roll, estes artistas realizaram trabalhos misturando todas essas referências. Em alguns sobressai o tom de denúncia da dominação da mídia e do consumo de massa que frequentemente “homogeneízam” diferentes manifestações culturais, e em outros é simplesmente celebratório de um estilo de vida. Para Goldberg, a característica mais marcante dessa geração é a capacidade de fazer convergir as duas “interpretações” em um mesmo trabalho, combinando ainda muito humor e sarcasmo.

14 A obra de Márcia X. se inscreve nessa linhagem que simultaneamente contesta e desfruta de elementos da cultura de massa. Ao longo de seus mais de vinte anos de produção, a artista travou um diálogo intenso tanto com as linguagens da televisão e da comunicação midiática; e também se apropriou de elementos da cultura popular, principalmente de seus objetos de consumo. Da mesma forma, o humor se fez presente nos gestos exagerados, nos figurinos e nas paródias características de materialização de metáforas. Outra herança dos experimentalismos da performance foi a discussão sobre a obra de arte na sociedade, a relação entre arte e consumo, e o papel do artista como produtor de bens culturais. Para o crítico Ricardo Basbaum (2003), tais discussões são pontos norteadores em suas primeiras performances.

15 Em “Cozinhar-te” (1980), trabalho de estreia de Márcia X., a instalação-performance de uma cozinha no espaço do Salão Nacional de Artes Plásticas afinava-se com o grande eixo de aproximação entre arte e vida, recriando, nas palavras da artista, a “cozinha de nossa casa – espaço comunitário-afetivo, onde se preparavam comidas — idéias — fomes” (Legenda de “Cozinhar-te”). Já em “Chuva de Dinheiro” (1983), a discussão sobre o valor monetário da obra é provocada:

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Penso nesse trabalho como uma discussão pop-tropical, via Warhol, de nosso micromercado e das relações valor/obra de arte, tendo como referência o circuito – lugar, na arte contemporânea, em que se opera essa conversão entre valor estético e valor financeiro – conforme este se manifesta por aqui (Basbaum, 2003:51).

Márcia X. e Ana Cavalcanti caracterizadas para a performance Chuva de dinheiro9

Cédula recolhida por um transeunte durante a performance Chuva de Dinheiro10

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16 Se obras de arte são valorizadas na passagem pelo circuito que converte valor estético em financeiro, as “notas obras de arte” de “Chuva de dinheiro” são enviadas diretamente ao público, “transgredindo os mecanismos de intermediação do circuito de arte (que valoriza os trabalhos na medida em que os retêm, forçando sua circulação por caminhos institucionalizados)” (idem:51).

17 A problematização do circuito artístico através do “enxugamento” do percurso entre produção e recepção da arte também aparece na performance “Exposição de Ícones do Gênero Humano” (1988). Nesta, o público era transformado em obra de arte através da estratégia de exibição do registro de suas imagens. Para a captação dos participantes do evento, Márcia X. elaborou a seguinte chamada: Convite extensivo a artistas e habitués (marchands, críticos, galeristas, colecionadores), juntamente com representantes do fenômeno fã-clubista e público em geral, que a partir desta coletiva passarão a figurar num mesmo quadro estatístico e fotogramas de flagrante (apud Basbaum, 2003:55).

18 A intenção era criar um espaço de exibição comum para os diversos “ícones do gênero humano”, constituintes da “vasta fauna composta por aqueles atraídos pelas situações culturais” (idem:55). A presença de membros de fã-clubes de pessoas famosas evidenciava diferentes sintomas de uma mesma histeria coletiva que permanentemente assola (em diferentes gradações) o mundo da arte. Nessa imagem da artista cercada de fãs ressoa um traço peculiar dos anos 80, em que o artista diversas vezes retratou a si mesmo ao modo do ‘artista como celebridade’, isto é, procurando pensar seu lugar de inserção social de modo semelhante aos pop-stars e celebridades do mundo cinema-TV (Basbaum, 2003:55).

19 Nesta performance, Márcia X. coloca em xeque a “supervalorização da subjetividade do artista” característica do período (Rivitti 2007), ao compará-la com a comoção gerada pelas celebridades. A controversa relação entre artistas, mídia e mercado de arte é retomada, pois utilizam-se os meios de captação de imagens flagrantes – fotografia e filmagem – em consonância com a linguagem televisiva e comunicação de massa para produzir “artistas instantâneos”, revelar a fragilidade do súbito reconhecimento público do artista, e abalar sua “aura” de figura singular.

20 A performance “Anthenas da Raça” (1985) já apresentava uma possibilidade de leitura “positiva” da relação entre mídia e arte, quando, inspirada na sentença de Ezra Pound (“os artistas são as antenas da raça”), propunha a assemelhação entre as funções comunicadoras dos dois aparatos. Vendedores de antenas e “artistas-antena” reunidos através de “um ritual duplicado das práticas cotidianas de cada uma destas duplas de ‘funcionários’” (Basbaum, 2003:50) estabelecem a conexão entre os propósitos dos divulgadores da comunicação televisiva e daqueles que aproximam vida e arte, unindo ações cotidianas repetitivas (como escovar os dentes) àquelas consideradas “artísticas” (como ler poemas). O efeito é fulminante: signos de um experimentalismo radical, caros a uma tradição avançada, tornam-se subitamente visíveis e assombrosamente presentes nos vendedores da esquina (camelôs), ao mesmo tempo em que experimentadores avançados se tornam capazes de atualizar uma corrente de links que se estende de Hugo Ball a Maciunas e subitamente se cristaliza na cidade do Rio de Janeiro (Basbaum, 2003:50).

21 Ao construir uma ponte entre o trabalho de Márcia X. e os experimentalismos de Hugo Ball e Maciunas, Basbaum introduz a artista numa linhagem de referências que ajudou a

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consolidar a arte de performance ao longo do século XX. Em sua história da performance, Goldberg destaca a importância de Hugo Ball – pianista e apaixonado por teatro – para o desenvolvimento das atividades dadaístas, principalmente por ter sido um dos fundadores e fomentadores do Cabaré Voltaire, palco de grandes eventos do grupo (idem:45-51). Já George Maciunas, ainda segundo Goldberg, foi o responsável pela produção de uma antologia de obras performáticas de artistas estadunidenses do começo dos anos de 1960 que eram reconhecidas publicamente como “happenings”. Maciunas denominou o grupo de artistas de “Fluxus”. Já o termo “happening” foi forjado a partir da performance paradigmática “18 happenings em 6 partes” de Allan Kaprow, cujo eixo central era a realização de uma série de eventos fragmentados (compreendendo ações como levantar um braço e permanecer imóvel por dez segundos, ler cartazes com falas aleatórias ou pintar telas não imprimidas nas paredes) onde o público se deslocava por um espaço determinado, de acordo com a sinalização de uma campainha (idem: 118-120). Kaprow considerava que era preciso “aumentar a responsabilidade do observador”, proposta evidenciada tanto no programa do evento que apresentava os visitantes como membros do elenco, quanto no convite que trazia a seguinte informação: “você se tornará parte dos happenings; irá vivenciá-los simultaneamente” (idem:118). Apesar da declaração do artista de que o termo happening não tinha sentido, pois deveria apenas indicar “algo de espontâneo, algo que por acaso acontece” (apud Goldberg, 2006:120), todas as obras produzidas depois da performance de Kaprow sob o mesmo signo de indeterminação e “falta de sentido” foram agrupadas pela imprensa sob a designação geral de happenings (idem:122). Podemos notar a forte semelhança entre a proposta do “happening” e as performances de Márcia X. Em “Exposição de Ícones do Gênero Humano” (1988) a participação do observador é radicalizada, tornando-o, no limite, a própria obra de arte. A semelhança entre os métodos de “captação” de espectadores/participantes também é clara: convidar ao espectador a ser coautor do espetáculo/evento em questão.

22 Em artigo supracitado, Fernando Cocchiarale filia o trabalho de Márcia X. à mesma linhagem de artistas mencionados por Ricardo Basbaum, diferenciando sua intenção de ruptura com as convenções formais em torno da arte figurativa: Voltadas exclusivamente para a radicalização de uma arte em ruptura com a representação mimética clássica, essas vanguardas [do começo do século 20] restringiam sua radicalidade ao campo especializado da investigação plástico- formal, típica da busca pela autonomia da arte. Márcia filia-se a uma outra genealogia: a da tradição inaugurada pelo Dadaísmo (1915-16) e por Marcel Duchamp, desdobrada pelo grupo Fluxus (1962), e, no Brasil, por Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, Antonio Manuel, Nelson Leiner e Tunga, dentre outros, cuja ênfase está na atitude e na ação do artista e não somente na produção de objetos. Daí a intensa atividade performática desde o início de sua trajetória (Texto crítico “Uma obra iconoclasta”).

23 Em “Triciclage” (1986), esse legado acumulado ao longo de um século de arte performática é encarnado, tornado vivo e literal. Nessa performance, Márcia X. e Alex Hamburguer invadiram o concerto em homenagem a John Cage pedalando velocípedes. Segundo Basbaum, “a ação foi precisa, pontual; M.X.&A.H. avisavam: ‘estamos atentos, sabemos que as linguagens da arte conquistam sua densidade experimental à custa de disponibilidade invasiva e excessiva, que não espera por permissão oficial’” (idem:49).

24 A invasão e o excesso somente tinham efeito porque se tratava de uma homenagem a John Cage, figura-chave para o revigoramento da arte performática no período após a

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Segunda Guerra Mundial, quando muitas atividades se concentraram nos Estados Unidos. Goldberg ressalta que as concepções musicais de Cage – concentradas no manifesto “O Futuro da Música” – influenciaram a primeira geração de artistas estadunidenses envolvidos na produção de atividades performáticas, incluindo Allan Kaprow e outros que tiveram a oportunidade de participar do curso de composição de música experimental do “New School for Social Research” de Nova Iorque, ministrado por Cage em meados da década de 1950. Seu experimentalismo musical baseava-se na valorização do ruído como elemento onipresente e fascinante, podendo se tratar do barulho de um caminhão, da chuva ou da estática entre estações de rádio.

25 Altamente influenciado pelos procedimentos dadaístas e surrealistas de composição, e pelos ready-made de Duchamp 11, Cage defendia as noções de acaso e indeterminação para a produção de peças musicais com “estruturas rítmicas improvisadas” que apresentariam resultados diferentes dependendo das situações em que fossem executadas: ‘Uma peça musical indeterminada’, escreveu ele, ‘por mais que soe como se fosse totalmente determinada, é fundamentalmente privada de intenção, de modo que, em oposição à música de resultados, duas execuções dela serão diferentes. ‘Basicamente, a indeterminação permitia ‘flexibilidade, mutabilidade, fluência etc.’, e também levava à noção de música não-intencional’ de Cage. Tal música, dizia ele, deixaria mais claro ao ouvinte que a ‘audição da peça é ação própria dele – que a música, por assim dizer, é dele mais que do compositor’ (idem: 114).

26 A idéia de composição conjunta entre artistas, espectadores e circunstâncias locais parece ter funcionado como uma brecha na obra de Cage, por onde Márcia X. e Alex Hamburguer investiram sua “disponibilidade invasiva e excessiva”. A indeterminação e acaso – para Cage, únicos condicionantes para uma ação performática – foram experimentados pelos artistas, que através da ação de pedalar velocípedes em um palco com pianos, rebatizaram o espetáculo “Winter Music” como “Música para dois velocípedes e pianos” (Basbaum, 2003:49).

27 No final da década de 1980, Márcia X. começou a trabalhar com objetos, enfatizando suas potencialidades de composição espacial. “Soap Opera” de 1988 é uma instalação- performance, já que em conjunto com a parede de 3.600 barras de sabão vermelhas e idênticas, um vídeo de 17 minutos é exibido-realizado no local (VI Salão Paulista de Arte Contemporânea). As imagens compilavam “a montagem de uma feira de automóveis, o ensaio de um grupo de rock progressivo e as gravações de ‘SOAP OPERA’, com locuções em italiano, português e inglês, acontecendo simultaneamente no ‘Prédio da Bienal’” (Legenda de “Soap Opera”)12. Produzida em conjunto com Aimberê César, os artistas explicam a intenção: A partir da metáfora ‘soap opera’, que nos EUA são as nossas ‘novelas’, o vídeo cria uma fusão de linguagens artísticas – performance, pintura, coreografia, opera, documentário, etc... – vistos por uma ótica desestabilizadora. Aliados à forma pseudo-ingênua da câmera, os cortes narrativos, cores, texturas, reverberações procuram evidenciar a dualidade acaso X intenção, realidade X realidade eletrônica, gerando 17 minutos de expectativas e inesperados (idem).

28 A vídeo-performance retoma a discussão sobre os meios de comunicação massificados, mas ressalta seu potencial enquanto linguagem que ao ser manipulada em uma direção específica (compor um quadro de imagens aleatórias de outras linguagens artísticas) pode provocar “desestabilização” na maneira de se observar as imagens reproduzidas. Por outro lado, ao explorar as bases da construção da linguagem áudiovisual, revela sua artificialidade. A instalação de milhares de barras de sabão idênticas e vermelhas

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compõe o impacto da produção (materializada) serial e massificada, e também brinca com o nome da obra, já que “soap” significa “sabão” em inglês. O jogo de cores, o excesso e o humor também são marcas de “Baby Beef” com suas muitas línguas vermelhas distribuídas em paredes também vermelhas. Para Basbaum, as línguas – ou bifes – mostradas àquele que as observa aludem à questão do “gosto”, da materialidade e da pintura, pois na instalação vê-se a “carnalidade da pintura transformada em beef mal-passado, o sublime consumido como um problema de gosto, paladar” (2003:52).

Soap Opera (1988)

Baby Beef (1988)

29 Basbaum considera que “Soap Opera” e “Baby beef” marcam um momento novo na obra da artista:

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Talvez por [uma] série de injunções, as duas proposições possam ser vistas como exercícios críticos de "pintura expandida", pintura para além da tela, cujo sentido envolve a mobilização de uma superfície de cor criando uma área de atuação (Yves Klein), a apropriação de objetos banais (Pop) e a figura do artista em performance, combinando corpo e obra através da música” (em Baby a presença dos Mutantes é invocada em um vídeo documental; a ária ‘La Donna é Mobile’ permeia Soap...) (idem:52).

30 A ideia de “pintura expandida” também circulava entre os artistas que contestavam a arte como uma simples tela pintada, característico dos happennings e de toda sorte de “arte viva” produzida nos anos de 1960, como lembra Goldberg. Enquanto Maciunas acompanhava os movimentos artísticos estadunidenses, Yves Klein estava na França desenvolvendo suas criações monocromáticas (principalmente baseadas na busca pelo “azul perfeito”) até o trabalho que marcaria sua carreira: As antropometrias do período Azul, de 1960. Nele, os pincéis eram substituídos pelos modelos que pintavam seus corpos (com seu “Azul Internacional Klein”) e marcavam essas impressões de tinta diretamente sobre o papel, ao som de uma orquestra e com os convidados observando (Goldberg, 2006:135-137). No mesmo sentido que para Klein a pintura assim desenvolvida permitia a “experiência imediata” dos corpos na interação com a pintura (idem), Márcia X. procurava construir uma “referência ampliada à questão-pintura” (Basbaum, 2003:53) envolvendo diferentes elementos visuais que enfatizassem a ação, o gesto, a presença do corpo na produção da arte.

31 No deslizamento da produção de Márcia X. das performances para a dedicação aos objetos na década de 1990 o corpo continuará no centro de suas preocupações, mas ele se transforma: deixa de ser o corpo da artista performer para ser outros. Nesse percurso, a performance “Lovely Babies” (1992) pode ser interpretada como o trabalho de transição entre visões e usos do corpo, já que nele a artista interage com bonecas motorizadas que ao mesmo tempo em que parecem ter sido seus seios e “pênis” ganham vida própria para realizar movimentos sexualizados. Se antes a relação estava na inserção do corpo da artista na obra como meio de abolir os muros entre arte e vida, a partir de agora a intenção passa a ser despertar as potências vitais e sexuais do corpo, suas forças cinéticas e mecânicas, desmembrá-lo, infantilizá-lo e também torná-lo objeto.

32 A série “Fabrica Fallus” (1992-2005) e “Kaminhas Sutrinhas” (1995) são seus investimentos mais vigorosos na produção de objetos e também emblemáticos desse novo olhar sobre o corpo. Sobre as obras, Márcia X. comenta: No princípio dos anos 90, realizei instalações e performances que têm como principal estratégia transformar objetos pornográficos em objetos infantis e objetos infantis em objetos pornográficos, fundindo elementos que estão situados por convenções sociais e códigos morais em posições antagônicas. “Fabrica Fallus” é o nome da série de trabalhos em que utilizo pênis de plástico comprados em sex shops acoplados a toda sorte de enfeites femininos, apetrechos infantis e religiosos. Muitas destas peças são dotadas de movimento e som, interagindo com o público. “Os Kaminhas Sutrinhas” é uma instalação composta de 28 caminhas de bonecas dispostas no chão da galeria. Sobre cada uma delas, uma dupla ou trinca de pequenos bonecos se movimenta. Os bonecos foram originalmente projetados para engatinhar; unidos por finíssimos cabos de aço, eles se encaixam uns nos outros e através da movimentação de braços e pernas criam um repertório de ações sexualizadas (Texto crítico da artista “Márcia por Márcia”13).

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Kaminhas Sutrinhas (1995)

Fabrica Fallus (1992-2005)14

33 Nesses trabalhos, a artista explora as temáticas da sexualidade, infância e religião através do embaralhamento e da mistura entre os diferentes elementos. Bonequinhas infantis são desprovidas de suas funções lúdicas e condicionadas a agir como máquinas sexuais, assim como vibradores elétricos são acoplados a diversas parafernálias

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infantis, femininas, coloridas e divertidas. Estes últimos também são “sacralizados” seja através da fixação de medalhinhas, de pequenas frases como “Deus é amor”, ou mesmo da sua disposição em um espaço em destaque sugerindo uma analogia com as imagens religiosas. Uma “estratégia de desregramento”, como indicou o crítico Luiz Camillo Osório, que como efeito provoca, instiga e gera reações apaixonadas, mas nunca indiferença15: Podemos ver aí uma espécie singular de performance em que elementos surrealistas, pop e cinéticos se combinam, revelando um erotismo bizarro e muito humor. A sala repleta com objetos pornográficos é um tanto exagerada, mas a contenção, por sua vez, não poderia ser exigida desse tipo de trabalho (texto crítico “Márcia X. Revista”).

34 Celia Rabinovitch (2004) destaca que André Breton, em seu texto “A Crise do Objeto”, propunha que os objetos fossem considerados em suas infinitas potencialidades latentes sempre renovadas de acordo com as transformações que sofressem. A autora comenta que essa crise surrealista do objeto elaborada formalmente por Breton foi, na verdade, precipitada pelas atividades dadaístas de Duchamp, desviando objetos produzidos em escala industrial de seus contextos ordinários para colocá-los em galerias e museus. Com isso, permitia-se que os objetos “se tornassem veículos para a imaginação, impregnando-os de significância indefinida” (Idem: 173).

35 A utilização de materiais banais é uma característica marcante na obra de Márcia X., e que também a aproxima dos ready-made de Duchamp. Os penduricalhos baratos, coloridos, artificiais, comprados no Saara, área de comércio popular da cidade do Rio de Janeiro, – “paraíso do kitsch”, nas palavras da artista – ajudam a compor um repertório ao mesmo tempo diferente daquele normalmente executado por artistas plásticos “mais ‘sérios’”, mas também aproxima sua obra do público em geral, como lembra Reynaud16. “O trabalho de Márcia X. é pop e popular”, porque dialoga e se apropria de elementos dessa cultura, menos em seu sentido tradicional do que àquele vinculado ao consumo de massa, dos materiais banalizados do uso cotidiano. Para Luana Tvardovskas17, o uso excessivo desses objetos de consumo combinados com aparatos sexuais brinca com o infantil, e com as relações de gênero, com muita ironia, mas também com agressividade, denunciando a “banalização do desejo na atualidade”.

36 Para o crítico Sérgio Bessa (1996), além do excesso, a articulação com mecanismos que conferem movimento completam o tom agressivo conferido aos objetos produzidos pela artista. Dando vazão ao movimento como elemento próprio da “fisiologia” do objeto, Márcia X. permite que ele seja experimentado não somente como representante da fluidez de uma forma estética, mas como “um corpo vivo” (idem: 81). Dessa forma, ele se torna livre para causar espanto tanto àqueles que reconhecem a alusão ao movimento sexual18, quanto àqueles mais acostumados com o padrão de relacionamento “inerte” entre espectador e obra de arte, pois, “afinal de contas, o que esperamos de um objeto de arte é no mínimo que ele se mantenha estático, impassível ao nosso olhar. Quando os objetos começam a se mover, isto possui um efeito desorientador. Eles se tornam ameaçadores, vertiginosos” (idem: 82). O efeito é semelhante àquele dos objetos surrealistas produzidos com manequins e bonecas: um estranhamento, uma sensação de mistério resultante da confusão entre o que é inanimado e animado simultaneamente (Rabinovitch, 2004).

37 Da performance aos objetos, e da discussão do papel social da arte até os tabus da sexualidade, infância e religião, muitas transformações ocorreram. No entanto, pode-se

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perceber que a questão corporal se manteve vigorosa nos objetos – em sua maioria, corpos dotados de movimento – assim como a relação entre arte e vida, mantida através dos objetos de uso cotidiano, e da discussão das convenções sociais que envolvem a sexualidade, religião e infância.

38 A partir do ano 2000, Márcia X. volta a dedicar-se à performance, mas sem romper com as questões que vinha trabalhando durante os anos anteriores. Inclusive, os objetos passam a fazer parte das performances, interagindo com a artista e também compondo instalações. Em alguns trabalhos, as ações realizadas alteram os espaços com determinados objetos que depois permanecem em exposição, como no caso de “Desenhando com terços”, apresentado pela primeira vez em 2000: No trabalho “Desenhando com Terços”, utilizo centenas de terços católicos para construir desenhos de pênis no chão. O público acompanha o desenvolvimento deste processo que só termina quando o chão fica totalmente coberto pelos desenhos. A instalação completa adquire a aparência de uma grande trama abstrata e permanece em exposição (Texto crítico da artista “Márcia por Márcia”).

Desenhando com terços

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Desenhando com terços

39 Para alguns críticos, “Desenhando com terços” marca uma nova fase na carreira de Márcia X., não somente pela retomada da performance, mas porque, como afirma Luiz Camillo Osório, “de início suas performances são mais irreverentes e ruidosas, aos poucos vão ganhando densidade e contenção” (Texto crítico “Márcia X. Revista”). Esta contenção, entretanto, não diminui o efeito de incômodo resultante dos temas tratados, e “Desenhando com terços” é um bom exemplo disso. Em sua crítica dedicada à performance, Adolfo Montejo Navas19 ressalta a amplitude de sua ação principalmente em territórios onde o catolicismo monopoliza a moral e as condutas (espirituais, sexuais, sociais). Navas chama a atenção para o fato de que reações “apaixonadas”, sensibilizações, são atributos da obra principalmente porque ela enfatiza pela “ausência” a relação entre duas dimensões da experiência humana supostamente antagônicas: (...) o que aqui está à vista é tão importante como o que não está. Seu verdadeiro cerne passa sinuoso entre os batimentos do corpo delatado, construído, e a ideologia também é construída sobre ele. Extremos e extremidades então são colocados como epígonos potenciais. Aqui um objeto simbólico (religioso) recebe um deslocamento estético, estabelece um salto de sentido, e não se trata mais da função e sim da visão (idem).

40 Através do procedimento de “desenhar” com o objeto religioso, não mais importa sua função, de instrumento para a oração, mas a imagem construída do órgão sexual masculino. Navas lança ainda a analogia entre a construção do pênis feita pela artista e sua construção ideológica anterior, realizada pelos ditames morais religiosos. Para Basbaum a performance “arranca de um dos símbolos religiosos algo que está ali inscrito (o perigo da carne) e que os imperativos morais da religião preferem ocultar, privilegiando o espírito desencarnado” (2003:56). Márcia X. mantém o princípio de justaposição de elementos contrastantes, mas com menos ironia e mais delicadeza e

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introspecção. Para Basbaum, trata-se de “uma manobra quase singela, em meio à grande concentração, rigor e devoção (...)” (idem:56).

41 Essa atitude de contenção permeará as novas performances desenvolvidas pela artista, que se aprofundará nas questões da religiosidade assim como se aproximará do universo cotidiano feminino. Como destaca Márcia X., “Desenhando com terços” (2000), “Pancake” (2001), “Ação de Graças” (2002) e “Cair em si” (2002) compilam uma série de ações corriqueiras que interagem com objetos de uso do dia a dia apresentados de maneira deslocada e repetitiva, (...) reunindo componentes característicos da religiosidade brasileira e de obsessões culturalmente associadas às mulheres, como sexo, beleza, alimentação, rotina, consumo e limpeza. Nestes trabalhos, imagens e ações habituais parecem contaminados pela lógica dos milagres, contos da carochinha, sonhos e pesadelos (Texto crítico da artista “Sobre as performances”20).

42 A crítica política e social direta, pública, articulada em discursos e objetos “agressivos”, é substituída por uma atmosfera íntima, difusa e delirante, do não dito, semelhante às práticas rituais religiosas extáticas. Em “Pancake” (2001), Márcia X. despeja quilos de leite condensado sobre sua cabeça formando uma espécie de “corpo-escultura”, que, para Freyberger (2004), mistura a ideia de maquiagem e comida com elementos mais masculinos, como a marreta usada pela artista para abrir as latas de leite condensado. Para Tvardovskas (2008), “Pancake” questiona os limites da beleza feminina, pois se a maquiagem busca embelezar, pode deformar se usada em excesso.

Pancake (2001)

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Pancake (2001)

43 Em “Cair em si” e “Ação de Graças”, ações cotidianas são levadas ao limite. Na primeira performance, a repetição da tarefa exige concentração: encher centenas de copinhos de vidro transparente ininterruptamente num mesmo ritmo utilizando uma concha de metal. Segundo Cecília Cotrim21, a performance provoca primeiramente uma sensação de sonolência, mas depois, diante da iminência de um acidente com os copos “arranjados em pilhas desequilibrantes” e o acelerar sutil da ação, a angústia preenche o espaço, prefigurando o desfecho final: a demolição dos conjuntos de copos provocada pela artista. Assim como, em “Cair em si”, um momento “ápice” leva ao fim o movimento repetido, sugerindo um “acordar”, “Ação de Graças” concentra-se no corpo inerte da artista sobre uma grama verdinha, sonhando, revirando a cabeça de um lado para o outro e com galos nos pés. De repente ela acorda e lava os galos com a água de uma bacia, aludindo ao despertar de um delírio.

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Cair em si (2002)

Ação de Graças (2002)

44 Os componentes visuais das performances dessa nova fase (cenário, objetos, figurino etc) ajudam a criar o universo íntimo feminino examinado detalhadamente por Márcia X.:

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O uso de roupas brancas, camisolas e saias pregueadas, contribui para evocar enfermeiras, freiras, noivas, estudantes, filhas de Maria, boas meninas e boas moças, agindo no limite entre a consciência, o sono e o transe religioso (...). Sabão em pó, grama, terços católicos, bacias, são materiais e objetos muito comuns, mas ao serem usados de forma deslocada, como os galos nos quais enfio meus pés (galos de verdade cravejados de pérolas) em “Ação de graças”, levam-nos a perceber como são absurdas imagens até então consideradas corriqueiras e inofensivas (Texto de Márcia X. “Sobre as performances”).

45 Goldberg (2006) destaca que o uso de objetos íntimos e a atmosfera pessoal caracterizaram um grupo de performances produzidas a partir de meados dos anos de 1970 até hoje, chamadas “autobiográficas” (2006). Com conteúdos verdadeiros ou falsos, esses trabalhos eram muito eficazes em estabelecer uma conexão com o público, pois compartilhavam um sentido de intimidade de maneira muito forte. Por esse motivo, muitas artistas mulheres encontraram nessa modalidade de performance um meio para expressar questões ligadas ao universo feminino, o que constituiu um conjunto de trabalhos frequentemente chamados de “arte feminista”. Simultaneamente, esses trabalhos autobiográficos eram muito atraídos pela fantasia, as maquinações imaginárias e os sonhos, elementos que conferiam um sentido de individualidade à obra, mas ao mesmo tempo ampliavam o repertório de possibilidades interpretativas. Para Heloisa Buarque de Holanda (2003), Márcia X. se enquadra na geração de artistas contemporâneas que lidam com o legado feminista, porém, de uma maneira diferente da “investigação das subjetividades femininas”22 característica das feministas dos anos de 1970. Essas mulheres não mais vasculham suas questões interiores, buscando compreender quem são, mas voltam-se para o mundo e todos os seus problemas de violência e “desestabilização sóciocultural”. E é justamente através da fragilidade dos pequenos materiais delicados do cotidiano (bonecas, balas, pérolas, alfinetes etc) que essas artistas irão tratar temas muitas vezes pesados e violentos, promovendo entre outras coisas a “reciclagem de acervos materiais e simbólicos”.

46 Os últimos trabalhos da carreira de Márcia X. apresentavam novas questões ainda não definidas pela artista e pelos críticos, mas que também parecem marcadas por um sentido “espiritual”. No texto de apresentação da exposição “Márcia X. Revista” (2005), Saldanha comenta os últimos trabalhos da artista, recém-falecida: As últimas performances realizadas por Márcia são introdutórias a uma nova fase, mais espiritual e menos irônica. Em Alviceleste, a artista tingiu-se com o azul Klein da caneta tinteiro, meio escrito, meio celeste, integrando assim sua existência terrena, material, a uma instância etérea, celestial. Na última de suas performances – Cadeira Careca / La Chaise Chauve – Márcia X. e Ricardo Ventura barbearam uma chaise longue de Le Corbusier nos pilotis do edifício Gustavo Capanema, no centro do Rio.

47 Tentando ler as pistas de obras como “Alviceleste” (2003) e “Cadeira Careca / Le Chaise Chouve” (2004), podemos considerar uma reaproximação com trabalhos das vanguardas da performance, como na obra supracitada As antropometrias do período Azul de Yves Klein, e da arte-arquitetura de Le Corbusier e da arte surrealista da alemã Meret Oppenheim, criadora da obra Le Dejeuner em fourrure23. Por outro lado, a permanência na contenção, o simbolismo religioso das cores azul e branco remetendo ao céu, em “Alviceleste”, seguidos pelo preto fúnebre que a artista usa em “Cadeira Careca”, quando já estava em tratamento contra um câncer, são elementos que sugerem uma transição para uma abordagem religiosa menos carnal e mais “espiritual”.

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48 É impossível precisar os novos rumos que Márcia X. tomaria em sua carreira e se estes continuariam a abordar, e de que maneira, questões religiosas ou espirituais. Entretanto, para os críticos de arte, é notável a força que essas temáticas ganham em suas obras, principalmente no que diz respeito às suas relações com os tabus sexuais. Fábio Cypriano24 e Fernando Cocchiarale sublinham o adicional de incômodo e o potencial corrosivo dessas obras com elementos religiosos. Cocchiarale considera esta uma intenção declarada na obra da artista: A partir dos anos 90 sua obra passa a investir na demolição sistemática de valores estéticos, éticos e políticos do machismo e da face mais opressiva da instituição religiosa do catolicismo. Isto é, parodiava a sexualidade reduzida por um lado ao consumismo (Fábrica fallus, Kaminhas-sutrinhas, por exemplo), e, por outro, sua interdição pura e simples (En nombre del Padre e Desenhando com terços), como valores opressivos da condição feminina (Texto crítico “Uma obra iconoclasta”).

49 Lúcio Cavalcanti destaca que no cenário das artes plásticas brasileiras de celebração da alegria privilegiada pela pintura, os temas-tabu trabalhados por Márcia X. de maneira direta, ao mesmo tempo violenta e engraçada, ajudaram a fixar uma “estética do mal estar”. Para Sant’Anna e Segantini (2007), os mesmos elementos que incitam o sentimento de “mal-estar” – “humor, estranhamento, sarcasmo e provocação” – configuram uma “estética do grotesco” semelhante à carnavalização da vida pública analisada por Bakhtin. Estas características da obra de Márcia X. assemelham-se aos elementos de provocação, ironia e ambiguidade que, segundo Annatereza Fabris, distinguem os trabalhos de vanguarda, desde dadaístas e surrealistas até as performances do Grupo Fluxus (Fabris apud Amaral, 2008:209). Para ela, o eixo principal de todos esses trabalhos baseava-se em uma intenção transgressora (idem).

50 Ana Cristina Chiara (2007), em um artigo no qual lança pontes entre o trabalho de Márcia X. e da poeta carioca Ana Cristina Cesar, considera que o sentido “religioso” abordado por ambas as artistas está diretamente conectado com a dimensão física dos corpos, sempre apresentados de forma luminosa, quente, “fragmentada”. O “corpo incandescente” designado pela autora aparece como um suporte para experiências cotidianas que são vividas com intensidade e em excesso, sempre pautadas por um deslocamento da consciência intelectualizada, expulsa para um lugar estrangeiro, e a irrupção do desejo iluminador. Esta força luminosa toma o corpo como uma afecção, febre, inflamação, introduzindo um estado de êxtase ou transe: Em Márcia X. o excesso de presença reverterá o corpo incandescente em febre sexual, fervor religioso, transe místico, violenta saída de si e entrada num estado em que a zona de virtualidade do corpo paradoxal torna-se uma presença fulgurante, manifestação ectoplástica, despossessão de si (do ego, da consciência) para entrar num estado de intensificação sensorial em favor do corporal, da matéria, da carne, que se manifesta na linguagem (visual, gestual, espacial) pela significância e não pelo sentido (idem: 329).

51 O “corpo incandescente” especialmente em Márcia X. é morada do êxtase e do fervor religioso, mas de uma maneira invasiva e descontrolada, que não deixa margem para a consciência com suas regras morais e racionalizações. Para Chiara, a devoção e o ritual são elementos das performances da artista que conectam corpo material e espiritual num mesmo jogo místico-erótico, ocupado com o momento, o instante vivido e não com o passado ou o futuro. Tal entrega deliberada ao êxtase configura uma “religiosidade profana e blasfema” (idem:329) que contraria e desafia o domínio da moral religiosa. Por outro lado, a encenação artística encerra um sentido de liminaridade, de ambiguidade, onde duas ações se dão simultaneamente: o estabelecimento de um

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distanciamento crítico via transgressão das proibições sexuais, e a imersão no domínio do sagrado que ultrapassa os impedimentos morais, a consciência, traduzindo uma abdicação do sujeito, da individualidade e da subjetividade. Algo análogo a uma “entrega sacrificial, violenta e exaustiva de seu corpo e mente a um ritual de dispêndio, como diria Bataille, de gasto de si mesmo” (idem: 331).

52 Esta leitura da obra de Márcia X. pela via do sagrado é prefaciada por diversos críticos de arte, mas sem que haja entretanto um desenvolvimento, como promove Chiara. Com uma obra muito ampla, com temas e linguagens plurais, as interpretações muitas vezes dão pouca ou nenhuma importância ao modo como a relação se estabelece, somente constatando uma intenção geral transgressora como força norteadora. Na seção que segue, apresentaremos algumas aproximações entre as questões gerais trabalhadas pela artista relativas ao corpo, sexualidade, infância, segredo e cotidiano, em relação com a religião e o sagrado.

Sobre o sagrado na obra de Márcia X.

53 O corpo que Márcia X. captura em imagem estática distingue-se daquele (seu) corpo inserido nas performances, não somente pela presença ou ausência evidente de movimento, mas por uma completude assumida ou negada. A artista-performer que insere sua figura-imagem na obra desmembra corpos ao representá-los em objetos. Se o corpo da artista aparece completo no jogo ocultamento-revelação e purificação presente nas performances, os objetos iconizam verdadeiros processos de dissecação do corpo, à moda surrealista (Moraes, 2002). Línguas, bonecos acéfalos e pênis encontram novos sentidos ao figurarem em contextos distintos do original corpo humano. A ênfase dada ao pênis detona a forte conexão erótica que atravessa a obra da artista.

54 De indicador da ação sexual, confirmado por seu invariável estado de ereção, o pênis- fetiche ganha cores, adereços e, por vezes, formas humanas (braços, olhos). Depois objetificados pelo desmembramento, os pênis são deslocados para a assunção de novas identidades através de sua imiscuição com elementos cuja associação não seria imediata ou até mesmo cogitada.

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Sem título, Série Fábrica Fallus, (1992-2005)

55 Neste plano, o diálogo com os surrealistas é intenso. Através do mecanismo da colagem, lógica do encontro de “duas realidades distantes em um plano não pertinente” (Max Ernst apud Moraes, 2002:44), seria possível desviar “(...) cada objeto de seu sentido, fazendo-o escapar tanto de seu destino quanto de sua identidade previsíveis, a fim de despertá-lo para uma realidade nova e desconhecida” (Moraes, 2002:44). Pênis eretos e medalhas com imagens religiosas poderiam, então, encerrar um encontro surrealista.

56 Para Bataille, a “alteração” sofrida pela figura humana nas mãos dos artistas é semelhante às modificações corporais verificadas em manifestações sagradas (Moraes, 2002). Tanto na arte quanto nos ritos sacrificiais, “(...) [expressa-se] uma decomposição parcial análoga à dos cadáveres, e ao mesmo tempo a passagem a um estado perfeitamente heterogêneo” (Bataille apud Moraes, 2002:164), condição que remete à definição durkheimiana do sagrado. As inúmeras mutilações rituais apresentadas por Bataille “(...) deixam entrever um processo de ‘transfiguração sagrada’ cujo principal traço reside no ‘poder de libertar elementos heterogêneos e de romper a habitual homogeneidade do indivíduo’” (Moraes, 2002:164). A violência, característica desta ruptura, ganha destaque na experiência surrealista onde a desfiguração violenta e terrível do corpo humano sinaliza para a indestrutibilidade do “homem trágico” (Moraes, 2002:152) do pós-guerra. Na obra de Márcia X., no entanto, a violência parece obscurecida sob a forma de marcas corporais (distensões, dilatamentos, corrosões etc) e deslocada para a agência concedida aos objetos. Os pênis de “Fabrica Fallus” liberam agressividade por meio de sua recusa à passividade expressa na movimentação pelo espaço.

57 Na abordagem batailliana da “transfiguração sagrada”, a proximidade com a morte não se dá pela trilha da sacralização de um corpo frio e imóvel, mas no ardor do corpo mutilado pelo sacrifício e em seu paroxismo que lança pontes com o erotismo. É neste

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corpo convulsivo e agoniado que está a “confirmação da vida até na própria morte” (Bataille apud Moraes, 2002:53). Não há, neste ponto, espaço para a “escapatória idealista da consciência surreal” bretoniana (Moraes, 2002:154) que procurava refúgio na figura feminina redentora dos males do mundo. Segundo Moraes, ao negar a feminilidade como objeto de adulação e elevação, Bataille a posiciona no contexto real da mutabilidade retirando-a do plano ideal que a aprisiona enquanto projeção do belo, do puro ou do sagrado reverente. Da mesma forma, Márcia X. não encara seus pênis (somente) como ícones sagrados: eles são santos, mulheres, brinquedos ou simplesmente máquinas; longe de serem idealizados, ou mitificados, cada nova série de pênis indica uma nova aproximação esdrúxula bloqueando possíveis congelamentos de sentido. Entretanto, isto não impede que a artista reconheça no sexo masculino um potencial criativo e lúdico; a representação da virilidade como força ativa e movedora, como sugere Basbaum (2003).

58 Os processos de objetificação do corpo humano se dão paralelamente nas artes modernas e no sacrifício para Bataille, e essa redução do corpo à coisa (...) se opera, em ambos os casos, como negação profunda das relações utilitárias do mundo profano. Princípio da arte e da religião, o consumo inútil realiza-se fora dos ciclos de atividade produtiva, assegurando o retorno da coisa a uma ordem íntima que é partilhada por todos os homens (Moraes, 2002:164-165, grifos nossos).

59 O imaginário infantil é tema recorrentemente tratado na obra de Márcia X. e também apresenta pontos de contato com a discussão sobre o sagrado. Seja por meio da manipulação dos brinquedos e objetos mecânicos usados pelas crianças, seja pela criação, em suas performances, de uma atmosfera lúdica no universo cotidiano, remetendo a sonhos, “contos da carochinha”, ingenuidades e perigos (Texto de Márcia “Sobre as Performances”). Quando trabalha com objetos infantis (bonecas, bonecos, caminhas), Márcia observa as potencialidades físicas e mecânicas latentes e as explora por meio de associações imprevistas. A função pedagógica da brincadeira de bonecas de introduzir as meninas no universo feminino maternal é deslocada para uma quase pedagogia sexual – implodida por estar longe da intenção de domesticar a sexualidade. Ao lembrar que corpos territorializam múltiplas potências, a artista desvela sua ambiguidade (androginia, agressividade e sexualidade) e atenta para o caráter fundamentalmente artificial de sua representação.

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Os Kaminhas Sutrinhas (1995)

60 Brinquedos são objetos úteis, se considerada a sua finalidade de educação e conformação de uma conduta domesticada para a passagem das crianças ao mundo adulto. Esta passagem, se pensada em termos bataillianos, pode ser caracterizada pelo consumo útil desses objetos, o qual retira as crianças da ordem íntima onde se encontravam anteriormente e as insere no contexto profano das coisas apartadas dos homens e destes entre si (Bataille, 1975). A arte de Márcia X. atenua as funções pedagógicas dos brinquedos revelando-lhes a ambiguidade através de vinculações com sexo e agressividade, por exemplo. Livres da necessidade de consumo útil (adestramento), os objetos infantis instilariam diversas sensações que reconduziriam seus espectadores à esfera mais intensa e íntima de cada um. As imagens, por provocarem um misto de repúdio e atração, poderiam ser pensadas nos termos da “dialética do sagrado” de Roger Caillois na qual sua ambiguidade se retroalimenta: Toda a força que o encarne [o sagrado] tende a dissociar-se: a sua primeira ambiguidade resolve-se em elementos antagônicos e complementares aos quais se refere, respectivamente os sentimentos de respeito e aversão, de desejo e de pavor que a sua natureza essencialmente equívoca inspirava. Mas logo que esses polos nascem da distensão desta, provocam cada um por seu lado, precisamente na medida em que possuem o caráter do sagrado, as mesmas reações ambivalentes que os tinham feito isolar um do outro (Caillois, 1988:37).

61 E é do universo infantil que as imagens e memórias mistas de fascínio-pavor preludiam a aproximação com o sagrado na vida adulta. Caillois traça um paralelo entre os sentimentos suscitados pelo fogo, na criança, e pelo sagrado, nos adultos: “mesmo receio de nele se queimar, mesmo desejo de o acender; mesma emoção perante a coisa proibida, mesma crença em que a sua conquista proporciona força e prestígio – ou ferimento e morte em caso de fracasso” (Caillois, 1988:36-37). A negação mesma que reside nas origens latinas da palavra “sagrado” é sintoma de uma relação próxima entre pares de opostos; negações que sucedem afirmações, para Michael Taussig (1997). Nessa

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interação, há o perigo iminente em ativar a atração e repulsão simultaneamente, algo semelhante à eletricidade (Taussig, 1997:349). Como perigos e poderes que absorvem a subjetividade da criança, fogo e eletricidade despertam o sagrado em seu universo íntimo, como propõe Leiris (1995). O sagrado desperto no cotidiano é o sagrado pessoal de Leiris e deve ser procurado nos objetos, lugares, circunstâncias que despertam... esta mistura de temor e de apego, esta atitude ambígua que determina a aproximação de uma coisa ao mesmo tempo atraente e perigosa, prestigiosa e rejeitada, esta mistura de respeito, de desejo e de terror que pode passar pelo sinal psicológico do sagrado (Leiris, 1995:102-103, tradução pessoal).

62 Este sagrado reside, principalmente, nos “fatos mais humildes tomados de empréstimo da vida cotidiana e situados fora do que constitui hoje em dia o sagrado oficial (religião, pátria, moral)” (Leiris, 1995:103, tradução pessoal). E para acessá-lo, o autor recorre à infância como o tempo das descobertas fascinantes e repulsivas. Sonhos, segredos e revelações marcam profundamente a subjetividade aflita e fascinada pelo extraordinário. Como marcas que subvertem a ordem cotidiana, pequenas ações, coisas e lugares que, antes corriqueiros, porventura se tornassem perigosos e atrativos, permitiriam a entrada em um universo excepcional. A intimidade que repousa nessas ações do cotidiano emerge como sinais que iluminam, também, a experimentação do cotidiano na obra de Márcia X.. Por detrás das obras e as lapidando, há uma busca incessante pela contaminação com os símbolos de um “imaginário social”25 condensado em lugares, tanto quanto para Leiris (1995). Pontos de convergência de atração e repugnância, a relevância desses lugares-tabus, como fontes de uma experiência criadora, aparece em Márcia X. quando esta comenta suas andanças pelo Saara (área de comércio popular no centro da cidade do Rio de Janeiro): Comprar materiais no Saara para fazer esculturas, instalações e performances significa me apropriar de aspectos simbólicos destes materiais, combinando objetos, imagens e ideias deste universo, associando meu imaginário a elementos do imaginário social relativo a sexo, religião, infância, morte, masculino e feminino (texto crítico “Natureza Humana”).

63 Nas incursões pelo centro da cidade, Márcia X. pretendia Tomar a cidade como uma experiência impregnante, que envolve todos os sentidos, participando do fluxo das multidões e dos objetos [que] leva[m] a refletir a cultura que lhes é própria. Usar elementos tão conhecidos e acessíveis acaba por estabelecer com o público uma relação imediata. O movimento e o som conferem características performáticas aos trabalhos, potencializando esta proximidade (idem).

64 E, nos trabalhos realizados a partir dos anos 2000, a artista condensa as intenções de expressar suas experiências de cotidiano, sexualidade, religião, vida e morte.

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Ação de Graças (2002)

65 Em “Ação de Graças” (2002), permanecendo deitada na grama, vestida com uma camisola branca e com os pés enfiados em galos, Márcia X. movimenta a cabeça de um lado para o outro como se oscilasse entre o êxtase e o sofrimento resultante de pesadelos – “réplicas escuras das poluções” (Leiris, 1995:105, tradução pessoal). Os galos nos pés mostram o absurdo de certas associações no universo infantil, tais como o uso de pantufas representando bichos. Cravejados de pérolas, com coroas nos pés e nas cabeças, os galos, distantes das bacias e colocados nos pés, ilustram os deslocamentos de sentido de ações e objetos que fascinariam a intimidade da vida cotidiana, infantil para Leiris, e ampliada por Márcia X. para o universo feminino. Mesclando imagens que se comunicam com ambos os universos, Márcia X., ao dar relevo ao papel da experiência na composição de suas obras, evidencia as vivências femininas e infantis no cotidiano. As ações desdobram-se em repetições que revelam a atmosfera de “obsessões”, marca do cotidiano para a artista. Assim como a figura feminina de Márcia X., vestida de branco, em “Cair em si” (2002) segurando os longuíssimos cabelos castanhos avermelhados com uma das mãos e a pesada concha de metal com a outra, em um vai e vem de gestos [des]controlados da panela aos copinhos, gestos que iam enchendo copinhos de vidro transparentes, daqueles bem simples, arranjados em pilhas desequilibrantes. Mas toda essa monotonia do mesmo gesto repetido, do andar cuidadoso, desenrolava-se rumo à disrupção iminente. A duração sendo atravessada por uma sutil aceleração. Sutil mas quase histérica. Como se um acorde dissonante, ou uma respiração brusca, ou algo em estacato fosse surgir cortando uma palavra demasiadamente longa para o ritmo da poesia (Texto crítico de Cecília Cotrim “x-ia-s-mas”)26.

66 Em seguida, a artista recolhe os feixes que prendiam os copos em suas orelhas como brincos, destruindo toda a sua conformação, misturando líquidos derramados e cacos

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de vidro. Algo de súbito, como um relance, que a desperta de um sonho. E a tomada de consciência, o acordar, dá sinais de revelação.

67 A obra de Márcia X. é marcada por uma atitude permanente de ultrapassar os limites e lançar pontes entre as esferas da sexualidade, infância, religião e intimidade. Acionando a tremenda força criativa da transgressão (Taussig, 1997), a artista assume os detalhes da vida íntima como brechas para o conhecimento das fronteiras que cria e reafirma em sua obra. Esta revelação dos segredos da intimidade assemelha-se ao modo como a linguagem era apreendida na infância de Leiris, assim como narra o autor: Quero falar de certos fatos de linguagem, de palavras ricas em prolongamentos, ou palavras mal ouvidas ou mal lidas que despertam bruscamente um tipo de vertigem no momento em que se percebe que elas não são o que tínhamos acreditado até então. Tais palavras cumpriram muitas vezes, na minha infância, a função de chaves, seja que por sua sonoridade fossem abertas surpreendentes perspectivas, seja que, ao descobrir que as aleijáramos anteriormente, apreendê-las subitamente em sua integridade fizesse, em alguma medida, figura de revelação, como o rasgar súbito de um véu ou a irrupção de alguma verdade (Leiris, 1995:113, tradução pessoal).

68 De modo análogo ao dos surrealistas, Márcia X. estaria tomando para si a tentativa de representar a transgressão através da elaboração da contradição expressa na imagem (Taussig, 1997). Talvez tocada pela “iluminação profana” que acomete os surrealistas (Benjamim, 1994), a artista desloca os objetos e elementos dos seus contextos originais discordantes para dotá-los de um novo sentido desconcertante. A obra é ativada em seu poder transgressor na tensão consequente do encontro de contrários irreconciliáveis: “é neste lugar carregado aberto pela transgressão que encontramos um ritual empoderador e sagrado, causado e causador deste ‘espaço’” (Taussig, 1997:350, tradução pessoal). A transgressão, em chave batailliana, efetua e atualiza a consumição pela chama do sagrado.

69 A sacralização realizada na transgressão compreende o deslizamento do mundo profano dos interditos para o mundo sagrado de múltiplas possibilidades, marcado pelo extraordinário. A primeira idade do mundo, fértil e desordenada, tal como descreve Caillois, é atualizada a partir da transgressão da festa (Caillois, 1988:103-106). Esta permite traçar uma linha que, deixando a existência humana profana de contenção e esterilidade, conduza à sua infância, tempo da prodigalidade, da fartura e do caos. A “passagem de um estado comum a um estado mais privilegiado, mais cristalino, mais singular” (Leiris, 1995:115, tradução pessoal) é evocada na intimidade da vida cotidiana tanto por Márcia X. quanto por Leiris (1995). A investigação da intimidade, por sua vez, revela e impõe a força distintiva do sagrado: ao lado dos objetos, dos lugares, dos espetáculos que exerciam sobre nós uma atração tão especial (a atração de tudo que aparece separado do mundo corrente...), eu encontro as circunstâncias, os fatos por assim dizer imponderáveis, que me deram a percepção aguda da existência de um reino distinto, reservado, sem medida comum com o resto, e separado da massa do profano com [a mesma] crueza ofuscante e insólita ... (Leiris, 1995:112-113, tradução pessoal).

70 As diferenças entre o cotidiano sobrenatural e mágico de Leiris e os intensos transbordamentos de sexualidade na obra de Márcia X. qualificam o relevo dado por esta à transgressão. O sagrado enquanto “sistema sutil de distinção de minúcias, de pontos de agulha e de detalhes de etiqueta” (Leiris, 1995:116, tradução pessoal), aflorado na intimidade, é sobredeterminado pela potência criativa da transgressão, encarnada em sacrilégio. A promiscuidade reprimida nas relações entre infância,

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sexualidade e religião, ao ser materializada por Márcia X., corresponde a um sacrilégio de elementos anteriormente puros.

71 É nesse sentido que Márcia X. lança mão dos terços católicos para formatá-los em pênis, em “Desenhando com terços”. A performance consiste na atividade de cobrir um determinado espaço com desenhos de pênis formados por terços, que ora se entrecruzam, ora somente se tocam ao serem colocados lado a lado. Na legenda da performance27, salienta-se que o seu tempo de duração depende do tamanho do espaço disponível, chegando a consumir “vários dias (até um mês)”. Durante a performance28, a artista permanece em silêncio e seus gestos são contidos, limitando-se a desenrolar os terços emaranhados em montes ou ao redor do pescoço, cortar seus fios para arranjá- los em duplas, e em seguida posicioná-los no chão. Como propõe Basbaum (2003), a ação é desempenhada com contenção e se aproxima de uma postura de devoção. A caracterização da artista também contribui para essa interpretação religiosa: cabelos muito compridos e soltos, um camisolão branco que cobre braços e pernas, e os pés descalços. Em seu texto crítico supracitado “Sobre as performances”, Márcia X. afirma que, dentre outras performances, “Desenhando com terços” dialoga com o universo feminino e com elementos da religiosidade brasileira. Sua principal intenção é mostrar comportamentos religiosos associados ao universo feminino contaminados pela obsessão, pesadelo, delírio e êxtase. Em “Desenhando com terços”, o rigor e a repetição da ação aludem menos ao corpo extático ocupado pelo sagrado (incorporado) que ao comportamento padronizado da religião instituída. Sentada sobre os calcanhares e manipulando os terços meticulosamente, Márcia X. se assemelha à devota católica que manipula seu terço em oração. A dedicação física e calculada, durante um longo período e distribuída em um espaço determinado, lembra ainda o sacrifício da devota que sobe os trezentos e oitenta e dois degraus da Igreja de Nossa Senhora da Penha para pagar uma promessa. A postura ascética da performer provoca um efeito de contraste quando se observa isoladamente cada figura formada pelos terços. Isto porque, como ela ressalta, “a extensão do desenho evidenci[a] a abstração resultante da trama” (Legenda de “Desenhando com terços”).

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Desenhando com Terços (2000-2003)

72 Dentre os registros da performance “Desenhando com terços”, encontramos a fotografia retirada da mostra “Erotica – os sentidos na arte”. Nela os pênis formados por terços são extraídos da trama composta na performance e também subtraídos da atmosfera religiosa criada pela artista. Com isso, produz-se um enquadramento unívoco e que encarna o sacrilégio em uma imagem eficiente:

73 Contrariando o conceito weberiano de “desencantamento do mundo”, Taussig (1997) defende que o sagrado não é apagado na modernidade. Enquanto um espaço situado de transgressão, o sagrado não desapareceu, mas foi “a si mesmo transgredido” (idem:12). Para Taussig, Paradoxalmente essa transgressão da transgressão pode ser vista como o último ato sagrado, mas um no qual o sacrilégio se torna o lugar onde o sagrado é mais provável de ser experienciado na modernidade, sacrilégio sendo (...) um espaço carregado de sacralidade negativa caracterizada pelo encontro de extremos em ondas intermináveis de proliferação metonímica (Taussig, 1997:360-361, tradução pessoal).

74 Como lembra Navas (idem), o ato de desenhar pênis com terços desloca o sentido do objeto de sua função de instrumento para contagem das preces para aquilo que se vê: a forma construída do pênis ereto e ejaculante. A postura contida e devotada de Márcia X. contrasta com as imagens construídas que dissipam protagonismos, acentuando e fundindo terços e falos. A ação implica estabelecer e desestabilizar fronteiras, atenuando as margens e aproximando as distâncias. Assim, o contraste entre a reverência religiosa de Márcia X. e a imagem dos terços fálicos se resolve na sacralização por sacrilégio, já que o objeto religioso encarna a sexualidade que lhe é negada pelas regras morais religiosas e o membro sexual é contaminado pela sacralização (negativa) operada pelo terço.

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NOTAS

1. Os personagens e os argumentos envolvidos no episódio foram analisados detidamente no primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado (Oliveira, 2009). 2. A imagem da fotografia pode ser encontrada no site do Canal Contemporâneo. Link: http:// www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/marcia.jpg. Consultado em 9.01.09. 3. A declaração foi feita à jornalista Nahima Maciel, do Correio Brasiliense, no dia 28/04/08. Link para a publicação online: http://www.direitos.org.br/index.php? option=com_content&task=view&id=1270&Itemid=2. Data da consulta: 2/11/06. A obra do artista traz a imagem de um homem com uma das mãos na cueca ao lado de uma estátua de São Jorge. 4. Foram consultados vinte textos críticos disponíveis no sítio eletrônico de Márcia X. (dez deles são textos primeiramente publicados em jornais e revistas especializadas); quinze textos publicados em outras fontes eletrônicas (cinco em blogs, dois em sítios eletrônicos, um em revista e cinco em jornais); cinco textos de catálogos de exposição que contava com alguma obra da artista; cinco artigos publicados em periódicos e um em uma coletânea de artigos sobre arte. 5. Crítica de Beth Ferreira para o Portal BITSMAG. Link: http://www.bitsmag.com.br/conteudo/ estilo/arte_index.htm. Data da consulta: 17.03.08. 6. O texto de Fernando Cocchiarale está disponível no sítio eletrônico oficial de Márcia X.. Link: http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=30. Data da consulta: 27.07.07. 7. A obra “A Arte da Performance: do Futurismo ao Presente” é uma versão revista e ampliada do livro Performance: Live Art 1909 to the present publicado em 1979. Na publicação Caderno VideoBrasil dedicada à performance, João Paulo Leite indica o livro de Goldberg como a “primeira história da performance”. O texto de Leite está disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/ videobrasil/up/arquivos/200607/20060712_125717_Cronologia_Perf_CadernoVB_P.pdf. Data da consulta: 2.10.08. 8. A conversa foi reproduzida na crítica “Vestígios da irreverência” assinada por B.T. e publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 12.11.05. Versão online disponível em: http:// jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernob/2005/11/11/jorcab20051111002.html. Consultado em 2.10.08. 9. Imagem retirada da Revista Polêmica Imagem. Link: http://www.polemica.uerj.br/pol16/ cimagem/p16_art_marcia2.htm. Consultado em 2.10.08. 10. Esta imagem e todas as outras que seguem foram retiradas do sítio eletrônico de Márcia X.. Link: http://www.marciax.art.br/ . As consultas foram feitas no mês de julho de 2007. 11. Cage recomendava, entre outros estudos: “uma maneira de escrever música: estudar Duchamp” (apud Goldberg, 2006:114). 12. Legenda de “Soap Opera” disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http:// marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=1&sObra=8&sText=10. Data da consulta: 27.07.07. 13. Texto crítico disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http://marciax.uol.com.br/ mxText.asp?sMenu=3&sText=16. Data da consulta: 27.07.08. 14. Fotografia retirada do catálogo do Evento Multidisciplinar Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, Itaú Cultural, São Paulo (2005), acervo pessoal. 15. Texto crítico originalmente publicado no Jornal O Globo e disponível no sítio eletrônico da artista (s/d). Link: http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=46. Data da consulta: 27.07.07.

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16. Texto crítico “Sem título” retirado do sítio eletrônico da artista. Disponível em: http:// marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=32. Data da consulta: 27.07.07. 17. Jornal da Unicamp, Ed. 403 (4 a 10 de agosto de 2008). “Arte: substantivo feminino” por Luiz Sugimoto. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2008/ ju403pag4.html. Consultada em 2.10.08. 18. Bessa afirma que “na história das artes plásticas (...) o ‘movimento’ sempre teve uma conotação sexual implícita”, e lembra os trabalhos de Duchamp Nu descendo a escada e Grande Vidro como exemplos de imagens que ao jogar com o movimento, aludem à sexualidade (idem:82). 19. Texto crítico do autor “Desenhando com terços” disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=15. Data da consulta: 27.07.07. 20. Texto crítico disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http://marciax.uol.com.br/ mxText.asp?sMenu=3&sText=26. Data da consulta: 27.07.07. 21. Texto crítico “x-ia-s-mas” disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http:// marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=34. Data: 27.07.08. 22. Artigo publicado na Revista Eletrônica Labrys, estudos feministas. Link: http://www.unb.br/ih/ his/gefem/labrys3/web/bras/heloisa1.htm. Consultado em 2.10.08. 23. Na critica para o Portal BITSMAG, Beth Ferreira afirma que a performance “Cadeira careca” é uma homenagem a Le Corbusier e a Meret Oppenheim, criadora da obra Le Dejeuner em fourrure, um conjunto de xícara, pires e colher cobertos de pelo. 24. Texto “Márcia X. explora possibilidades múltiplas do erotismo” publicada originalmente no Jornal Folha de São Paulo, (s/d). Disponível no sítio eletrônico de Márcia X. Link: http:// marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=45. Data da consulta: 27.07.07. 25. Texto crítico de Márcia X. “Natureza Humana” disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=44. Data da consulta 27.07.07. 26. Texto crítico disponível no sítio eletrônico da artista. Link: http://www.marciax.art.br/ mxText.asp?sMenu=4&sText=34. Data da consulta: 27.07.07. 27. A legenda de “Desenhando com terços” está disponível em seu sítio eletrônico. Link: http:// marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=2&sObra=26&sText=23. Consultada em 13.05.07. 28. Um vídeo com a performance realizada na Casa de Petrópolis - Instituto de Cultura, em julho de 2000, está disponível no site da artista. Link: http://marciax.uol.com.br/video/ desenhando.html. Consultado em 13.05.07.

ÍNDICE

Palavras-chave: arte contemporânea, sagrado, iconoclastia, Márcia X., performance Keywords: contemporary art, sacred, iconoclasm, Márcia X., performance.

AUTOR

PAOLA LINS DE OLIVEIRA

Doutora em Antropologia Cultural (PPGSA/UFRJ) [email protected]

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Pensando corpo, gênero e sexualidade em contexto sado- fetichista Thinking body, gender and sexuality in sado - fetishist context

Marcelle Jacinto da Silva e Antonio Crístian Saraiva Paiva

Introdução

1 Este artigo tem como fio condutor parte do meu material etnográfico proveniente de dissertação em andamento, cujo objetivo é compreender o universo de práticas sócio- sexuais sado-fetichistas ou BDSM (sigla que se refere a um conjunto de práticas eróticas que envolvem jogos de poder, dominação e submissão, sadismo e masoquismo eróticos) especificamente roteiros sexuais em que predominam práticas de feminização masculina, por meio de narrativas autobiográficas reais ou ficcionais acessadas em blogs pessoais e entrevistas via e-mail, Facebook e presencialmente, nos últimos cinco anos, no Brasil. O recorte que trazemos para este artigo busca problematizar e discutir sobre corpo, gênero e sexualidade no contexto dessas experiências, pensando em algumas possibilidades de relação dessas categorias com o processo de feminização e a dinâmica dessas experiências de vestir-se de outro gênero no contexto das práticas sado- fetichistas.

2 O material coletado provém de trabalho de campo em espaços online (blogs, sites e Facebook) sobre a temática, realizado no período de abril de 2013 a agosto de 2014. Foi feita observação e frequência em blogs, participação em comunidades e páginas do Facebook, bem como mantive contato com praticantes de BDSM e da prática de feminização através de meu perfil e e-mails que as pessoas disponibilizavam em seus blogs e/ou páginas pessoais. Foram entrevistados seis praticantes de feminização, sendo uma entrevista presencial e por e-mail, uma entrevista por e-mail e quatro apenas pelo Facebook, e coletado material de um blog pessoal de um praticante cujo acesso não foi possível devido a não disponibilidade de e-mail para contato. As falas,

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principalmente das entrevistas, giram em torno da vida pessoal e a necessidade de um cuidado com o corpo como gestão do segredo e do anonimato, pelo fato de muitos serem adeptos dessas práticas sem o consentimento/conhecimento de sua família, especialmente suas parceiras.

3 Com o intuito de problematizar o objeto, as práticas de feminização masculina no BDSM, trazemos alguns trechos de entrevistas realizadas por e-mail com interlocutora que chamarei de Prissy, que se identifica como submissa lésbica e transexual, a fim de situar o objeto e a mobilização de convenções de gênero e sexualidade no contexto sado-fetichista em questão pensando a dimensão fabricável do corpo e a relação do sujeito com seu corpo, em sua experiência particular. Prissy, interlocutora da pesquisa, possui um blog onde relata suas experiências como sissy maid (do inglês, maid significa empregada doméstica e sissy efeminado). Conheci o blog de Prissy antes de conhecê-la através do Facebook. Tive, portanto, acesso primeiramente ao material de seu blog e posteriormente entrei em contato através do Facebook, solicitando sua participação em minha pesquisa de mestrado e - caso aceitasse - que conversássemos por e-mail. As experiências narradas por Prissy se assemelham em muitos pontos com as dos outros praticantes de feminização entrevistados ou com as narrativas autobiográficas disponíveis nos blogs; no entanto, a feminização toma um lugar diferente na sua vida, como um estilo de vida. Conversamos por e-mail entre dezembro de 2013 e maio de 2014 e, eventualmente, através do Facebook até agosto de 2014. Os trechos que compõem este artigo são provenientes de entrevistas realizadas em dezembro de 2013, abril e agosto de 2014.

Enredos, cenários e jogos de in/conversão e feminização (forçada ou voluntária) do masculino

4 A apropriação com sentido erótico da categoria sadomasoquismo e/ou a adesão ao acrônimo BDSM estão presentes no Brasil desde pelo menos o início da década de 1990. É preciso ressaltar que há um “trânsito de categorias e classificações entre diferentes atores sociais” (FACCHINI e MACHADO, 2013, p. 198), termos e nomenclaturas nativas que possuem carga erótica: dominação, submissão, disciplina, feminização adquirem teor erótico nessas relações especificamente, as práticas englobadas pelo acrônimo BDSM. Num primeiro momento, essa presença no Brasil pode ser notada por meio da produção de literatura erótica, pela comunicação de praticantes em revistas e classificados eróticos. De acordo com Facchini e Machado (2013) o marco da difusão do sadomasoquismo erótico no Brasil está ligado às figuras de Wilma Azevedo e Glauco Mattoso, autores de livros em formato autobiográfico, de relatos reais e/ou ficcionais (no caso de Wilma Azevedo, há uma mescla de ambos) a partir da década de 1980.

5 Desde esse início no contexto brasileiro, notam-se esforços voltados a dar atenção a noções como a de consensualidade, classificando assim as práticas sadomasoquistas no plano erótico, inserindo-as no circuito de relacionamentos possíveis. Além disso, e nesse sentido, lançando atenção para uma (des)identificação com categorias patologizantes, como “anormais” e “perversos”, frutos de categorização dos discursos médico-científicos, notadamente das ciências psi, psiquiatria, psicologia, psicanálise, e sexologia. Com o desenvolvimento da internet e de ferramentas de interação mediadas por computadores, têm se multiplicado sites, blogs, salas de bate papo, listas de discussão, comunidades em redes sociais e espaços de interação presencial, como

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grupos, festas ou clubes, revelando os contornos do que os adeptos chamam de meio, comunidade ou, eventualmente, de movimento (FACCHINI e MACHADO, 2013, p. 198-199).

6 No início dos anos 2000 já havia muitas páginas online voltadas para BDSM, com divulgação de material diverso (locais de encontro, manuais) indicadores do que é ou não seguro fazer, discussão sobre a filosofia que acompanha as práticas, relatos eróticos e fotos. Mas a interação online não se esgota em si mesma, dando margem à interação off-line entre praticantes e também à formação de grupos (FACCHINI e MACHADO, 2013, p. 204-205).

7 As práticas BDSM são “práticas eróticas estigmatizadas e vividas em segredo” que passam por um movimento de “legitimidade ainda em construção” com base na necessidade de “gerir coletivamente os riscos num contexto marcado pela condição de segredo por meio do qual o BDSM se insere na vida de seus praticantes” (FACCHINI e MACHADO, 2013,p. 213- 220). É interessante chamar atenção para o fato de que também pela proliferação de material disponibilizado em sites e blogs é através de relatos em formato autobiográfico que se dá parte dessa tentativa de desvincular o estigma e legitimar as práticas como sadias, seguras e consensuais. “É através da possibilidade que os praticantes de BDSM têm de manter contato na Internet que se veicula o discurso de legitimação, descriminalização e despatologização das práticas sexuais associadas ao BDSM” (ZILLI, 2009b, p. 4). Outros estudos brasileiros ressaltam essa importante interlocução entre as dimensões online e off-line acionadas pelos praticantes, como Leite Júnior (2000), Brittes (2006), Silva (2012) e Freitas (2012). A articulação entre momentos online e off-line de sociabilidade (Parreiras, 2008) no meio continua sendo muito importante, de modo que ambas as modalidades se alimentam e se influenciam mutuamente. Com relação a essa articulação, um ponto relevante diz respeito à popularização da internet e ao que se pode observar em espaços de interação presencial de adeptos nos últimos anos: não se trata apenas da popularização (no sentido de não serem mais espaços frequentados majoritariamente por pessoas de estratos altos e médios como no início da década de 2000), mas também do crescimento do número de pessoas que frequenta espaços presenciais de encontro ou comunidades online (FACCHINI e MACHADO, 2013, p. 205).

8 Houve, portanto, ampliação de espaços de debate sobre as práticas BDSM, a criação de fóruns e listas de discussão, sites e blogs, servindo como forma de socialização sem fronteiras das experiências, de redes de contatos e discussão sobre regras e convenções do sadomasoquismo erótico. Por ser um meio que se caracteriza pela facilidade de comunicação, pela promessa de anonimato e pela oportunidade de contatar indivíduos que partilham interesses em comum, a Internet tornou-se ideal para a formação de grupos identitários que criam diversos tipos de comunidades virtuais. Além disso, os discursos sobre o BDSM encontram-se num contexto de suporte à própria ideia de um grupo identitário, pois reproduzem a noção de pertencimento através da informação de técnicas, conceitos e definições (ZILLI, 2009a, p. 483-484).

9 As práticas BDSM são baseadas em um conjunto de argumentos, jogos, cenas e personagens (ZILLI, 2008). Para citar algumas regras fundamentais na elaboração do discurso sobre o caráter erótico e consensual das práticas BDSM, há o lema SSC (são, seguro e consensual) que é a base do BDSM, para desvincular qualquer imaginário negativo relacionado ao termo “sadomasoquismo”, bem como para impulsionar uma conscientização coletiva de que as práticas devem ser realizadas de forma sadia, principalmente em relações individuais1. Essa questão está diretamente relacionada à

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patologização dos termos sadismo e masoquismo pelas ciências psi, remetendo à intenção de formação de um “campo de ética” (LEITE JR., 2000, p. 23) no meio BDSM. Outro ponto importante na caracterização como prática sadia e responsável do BDSM é a safeword.

10 O lema SSC significa praticar o sadomasoquismo em plena sanidade mental, o que geralmente inclui abstenção de bebidas alcoólicas e qualquer outro tipo de droga, um estímulo à segurança de ambas as partes, desde que seja assegurada a consensualidade dos participantes, e a safeword ou palavra de segurança, é mobilizada como dispositivo que pode ser acionado por ambos os praticantes, no momento mesmo da prática, para avisar quando esta deve ser interrompida, se um dos praticantes chega ao limite físico ou psíquico. A safeword “realça o aspecto tido como essencial de qualquer relação BDSM, que é a comunicação. A comunicação permite a negociação, que por sua vez, abre portas para o consentimento – sem o qual não há BDSM” (ZILLI, 2009a, p. 491).

11 O consenso que caracteriza o BDSM como prática consensual parte de “um ideal de consentimento, entendido como um exercício de vontade entre os parceiros em fazer parte dessas relações” (ZILLI, 2008, p. 2) e é nesse sentido que Gregori (2005) o classifica como “um jogo erótico de poder e confiança”. O consentimento é central nesses jogos eróticos de poder, e seu significado e aplicação podem também ser negociados. Gregori (2005) afirma que “tudo parece estar sendo cuidadosamente montado para encenar uma situação que simula a violência, mas que, simultaneamente, a afasta ou neutraliza”, e afirma ainda que é um processo no qual há “neutralização, domesticação ou ressignificação dos traços e conteúdos violentos envolvidos” nas práticas (GREGORI, 2008), as quais são como se fossem paródias, no sentido de que são ambíguas e “performs social power as both contingent and constitutive” (MCCLINTOCK, s/d, p. 91).

12 Os blogs, sites e páginas do Facebook (grupos, páginas, perfis), apenas uma parte do material suporte online de informações sobre o tema, são palco para subidentidades no BDSM, personagens que se insurgem/voltam contra “a definição estritamente psiquiátrica/patológica da sua sexualidade através de uma política de afirmação identitária, expressa por um discurso de legitimação de objetivos bem definidos” (ZILLI, 2009a, p. 483-490). Através de material disponível nessas páginas online tentamos apreender um pouco do universo do BDSM, onde as pessoas identificam-se como praticantes de BDSM, ou como praticantes de feminização masculina, relatam experiências vivenciadas segundo as convenções desses grupos, apropriando-se e jogando com estratégias e convenções sociais. A seguir, quatro pontos importantes para situar o contexto do qual partem as narrativas, como forma de ilustrar os cenários acionados: o FemDom, a inversão de papéis, a feminização forçada e a sissy maid.

13 O primeiro deles, o Femdom, ou ainda Female Domination ou Fêmea Dominante, é o universo de práticas de dominação feminina, o qual designa tendências de dominação da dominadora sobre outra pessoa, que pode ser um homem ou mulher. Na Internet existem sites que situam e identificam as práticas que constituem esse universo. Há diferenciação de papéis nas cenas e enredos, no sentido de que são adotados títulos relacionados às tendências e personalidades dominadoras e/ou sádicas das praticantes, afim de que se diferenciem das submissas e/ou masoquistas. “A divisão de papéis e o uso de ‘fantasias’ se ligam à ideia da atividade BDSM como uma ‘cena’ interpretada por ‘atores’, onde o objetivo ideal é causar prazer através da aplicação intensa de gatilhos sensoriais que causarão/elevarão a excitação sexual dos participantes” (ZILLI, 2009b, p. 5). Títulos como Dominadora/Domme, Mistress, Sádica, Rainha, são nomenclaturas que

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remetem e identificam as preferências e as práticas associadas, geralmente ligadas às relações D/s (Dominação/submissão), jogos de controle, físicos e/ou emocionais; práticas que envolvem o sadismo, que causam dor, sofrimentos físico e psicológico no dominado2 . Estes diversos personagens de fato formam subidentidades na cultura BDSM. Assim, as pessoas identificam-se com certo “alinhamento” de sua preferência – e poderão buscar textos, discussões e material erótico mais específico sobre seus gostos. [No entanto,] Às vezes as fronteiras entre identificação com um personagem e outro é difusa (ZILLI, 2009a, p. 490).

14 No Femdom, geralmente não acontece o sexo com penetração, ou seja, o homem submisso não usa seu órgão genital para penetrar a dominadora. O submisso é alguém, tratado como um ser inferior às mulheres, às quais devem prestar reverências, ser disciplinado e entregar-se às vontades da figura feminina dominante3: há uma passagem do corpo sujeito ao corpo objeto4. Isso acontece quando a pessoa, no caso, o homem submisso, sente prazer com situações humilhantes, deseja ser inferiorizado, através de xingamentos e práticas de degradação, como “chuvas dourada, prateada e marrom”, práticas de feminização, principalmente feminização forçada, a objetificação (uso do sujeito como uma cadeira ou móvel de decoração) e ainda jogos nos quais o submisso é tratado como um cachorro e/ou cavalo (chamados de petplay); também faz parte da humilhação erótica a possibilidade de vivenciá-la de forma privada ou exibição pública, online e off-line. O submisso pode ser masoquista, ou não. Masoquista é aquele que encontra prazer na dor, física e/ou psicológica, em jogos que variam de nível, pesado ou leve. A relação que pode se estabelecer na junção de um submisso e uma dominadora é geralmente chamada de D/s, necessariamente quando há o desejo de jogos de controle do outro, quando o submisso deseja ter seus movimentos e comportamento controlados.

15 De acordo com o material etnográfico, alguns homens fantasiam serem possuídos sexualmente por uma mulher, através da inversão e/ou crossdresser, outros desejam ver- se ou imaginar-se forçados a serem travestidos de mulher, submetidos e humilhados, encontrando na feminização forçada a fantasia ideal para satisfazer seu desejo. Nesse sentido, a inversão de papéis e a feminização são tipos de humilhação nas quais a dominadora ocupa o papel convencionalmente/supostamente designado ao homem, enquanto este ocupa o lugar reservado convencionalmente à mulher, lugar da passividade e submissão. A efeminação aparece aqui como uma forma de regressão, já que o corpo do homem é a referência do corpo perfeito e rijo (LAQUEUR, 2001, p. 19), portanto, é encenada uma situação de degradação física, psíquica e moral.

16 A feminização, prática que tem várias facetas e contextos, envolve fantasias de submissão e dominação física e/ou psicológica, acentuando mais a dominação psicológica. O processo de feminização é um processo, sem medo de ser redundante: aos poucos, alguns elementos são adicionados à performance, ao corpo, e vão constituindo a personagem feminina no corpo masculino transformado. Um tipo de feminização exclusiva do BDSM é a feminização forçada, cujo objetivo é domesticar a masculinidade do homem, discipliná-lo. “A domesticidade denota tanto um espaço quanto uma relação social de poder” (McClintock, 2010, p. 63-64). A feminização pode ser definida como “manifestação mínima, a obrigação que a Dominadora impõe a seu submisso de se vestir como mulher, completamente ou apenas algumas peças íntimas femininas”5. O termo “feminização forçada” por si é carregado de significados relacionados a degradação, humilhação, imposição e inferiorização, situações que são claramente humilhantes para o submisso e, teoricamente contra sua vontade. “Nesse caso, ao fazê- lo tornar-se mulher, a Dominadora o despersonaliza, o obriga a desmontar toda a

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construção cultural de gênero, ao modo como ele culturalmente aprendeu a se ver com o homem e obrigá-lo a, apesar do pênis, ser uma mulher”6. A Dominadora, então, “manipula as próprias representações culturais dos gêneros para se impor ao próprio sexo orgânico que o corpo do submisso apresenta. Por esse motivo, há quem veja a feminização como o termo final de todo o processo de submissão7.

17 Por fim, a sissy maid ou “empregada doméstica Sissy”, é um tipo de “submissão masculina que está associada à servidão pessoal. Essa fantasia se tornou um dos símbolos representativos da servidão masculina no BDSM”8. Mas não é apenas um traje, e não apenas um fetiche pois em algumas situações, pode se tornar um estilo de vida. “Uma empregada sissy pode ter o pênis trancado em um dispositivo de castidade para impedir a liberação sexual, tendo de suportar uma vida de abstinência sexual9”. Essa fantasia mobiliza um processo de feminização, forçada e/ou voluntária, que é um treinamento – o jogo de sissificação ou sissification – compreendendo uma série de rituais, os quais possuem elementos de servidão doméstica e pessoal, disciplina, idolatria, e, em alguns casos, é resultado (ou condicionante) de uma relação 24/7, o que significa dizer que há a servidão integral do submisso/escravo sissy, 24 horas por dia, 7 dias por semana, havendo portanto, uma entrega total à dominadora10. A sissy está ligada ao BDSM, aqui no Brasil é muito tratado como feminização forçada, que é basicamente o nome da prática aqui, agora que o termo sissy está tomando força e lugar. Sabemos que apesar de muito desenvolvimento o BDSM ainda esta engatinhando aqui no Brasil. As pessoas que realmente tem uma vida ligada ao BDSM de forma real e não como uma prática fetichista passageira ainda vivem em guetos, se escondem. Falo isto olhando para mulheres e homens, mulheres que são Domes ou submissas ou homens que são Dons ou submissos. Agora vem uma sissy. Um homem, geralmente hétero que tem uma alma feminina e que se submete a uma mulher ou a quem ela quiser se degradando e se humilhando de uma forma inimaginável (Prissy em entrevista via e-mail, em abril de 2014).

18 Prissy, uma interlocutora da pesquisa, é uma sissy maid. Para ela, BDSM e feminização “nasceram juntos”, desde “a mais tenra infância” ela veste-se “femininamente e fantasiava ser uma empregada, uma serviçal. Passei uma infância sonhando em ser raptada e forçada a tudo”. Juntamente do desejo de feminizar-se e ser subjugada, Prissy viu-se estranhando o próprio corpo e seu desejo: ela atualmente identifica-se como “uma transexual, sou mulher, me vejo como mulher, detesto meu pênis, nunca tive prazer em me relacionar eu no papel masculino. Fui criada em um mundo masculino me vendo e me sentindo mulher”. Cresceu pressionada a agir como homem e por isso, afirma ter de casar com uma mulher. Apesar disso, “não gosto de homem, o que seria natural, gosto de mulheres e ainda sou extremamente submissa”. Sou passiva se ela [minha Dona] desejar, mas não toco no que tenho entre as pernas. Uso um cinto de castidade na alma. A minha entrega é o meu cinto de castidade... Não me toco mais. Masculinamente falando para me aliviar ela me ordenha, massageando a próstata, ou às vezes me faz bater uma punheta rápida aos pés dela e lamber meu gozo... A falta de prazer como o mundo enxerga é a minha sina. Meu prazer é servir (Prissy em entrevista via e-mail em abril de 2014).

19 Alguns pontos na experiência de Prissy diferem um pouco do ideal BDSM mencionado neste artigo: primeiro, o desejo de feminizar-se para ela é natural, portanto algo voluntário, já que desde criança identifica-se com o gênero feminino; segundo, Prissy relatou em entrevista que no Brasil, há pouco material sobre sissy maid, definindo seu blog como um dos poucos que contém material “real” sobre o tema; terceiro que feminização e BDSM são estilos de vida e não apenas fetiche erótico, o que também não

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significa que não haja sofrimento físico e/ou psíquico; por último, o consenso aparece relativizado de uma forma particular em sua relação D/s, 24/7. Por ser “uma escrava real”, considera que como escrava não pode querer nada, portanto, para ela não existe a safeword, por exemplo, já que sua vontade é a vontade de sua Dona. Sou a perfeita sissy. Um homem, geneticamente falando, mas que na verdade é uma mulher, que gosta de mulheres e é submissa por isto mesmo se entrega a uma, torna-se escrava no real sentido da palavra de uma mulher. Sim ultrapassa a fronteira do BDSM do são seguro e consensual. Uma sissy real como eu quer se entregar apenas. Uma sissy torna-se literalmente propriedade de uma mulher, torna-se seu brinquedo e ela faz o que bem entender com a sua sissy (Prissy, em entrevista via e-mail, em maio de 2014).

20 A experiência de Prissy se define como um “estilo de vida não-convencional” (RUBIN, s/ d, p. 25), ocupa o lugar no qual sadomasoquismo, fetichismo e transexualidade são vistos como incapazes de manter relação com afeição, amor, gentileza (RUBIN, s/d, p. 16). No entanto, ela enfatiza a presença de amor, entrega e confiança em uma relação que, de acordo com a escala de hierarquia sexualmente legítima ressaltada por Gayle Rubin, estaria do lado dos prazeres ilegítimos, maus, anormais. “Todos esses modelos assumem uma teoria dominó de perigo/risco sexual. A linha parece se posicionar entre a ordem e o caos sexuais” (RUBIN, s/d, p. 16). “Muitos dos discursos sobre o sexo sejam eles religiosos, psiquiátricos, populares ou políticos, delimitam uma porção muito pequenina da capacidade humana sexual como consagrada, segura, saudável, madura, legal ou politicamente correta” (RUBIN, s/d, p. 15-16). Certamente, o cuidado com o corpo, com a apresentação de si na Internet, ocultação de seu estilo de vida diante da família, até mesmo da identidade de gênero diante dos filhos, é resultado da opressão sexual operada por modelos de normalidade e sexualidade socialmente aceita.

Pensando corpo, gênero e sexualidade em contexto sado-fetichista

21 No contexto da pesquisa de Arent (2009) no clube de strip-tease para mulheres, as performances masculinas também seguem repertórios que reforçam convenções de gênero e “encenações de práticas (hetero)sexuais”. No entanto, os corpos dos “sedutores” “procuram veicular um repertório de masculinidade expresso na linguagem corporal baseada na atividade. A representação do papel ativo nas práticas sexuais encenadas no palco favorece a caracterização da virilidade, sempre fortemente realçada” (ARENT, 2009, p. 150), chamando atenção para a ambiguidade e contradição das práticas sadomasoquistas por nós estudadas. Esses estereótipos reiteram a noção do “o homem como ativo, o que penetra no coito anal, ou a mulher passiva, a que se deixa esfregar”, que nesse sentido, “não ameaçam a ordem social” (LAQUEUR, 2001, p. 67), como eventualmente o BDSM. Nesse contexto, como no da minha pesquisa, “a dicotomia ativo/masculino e passivo/feminino vigora hegemônica” (ARENT, 2009, p. 154), mas ao contrário, o eixo sádico e ativo parte do corpo feminino e a passividade e submissão do homem.

22 No mesmo caminho, sobre a performance drag, Butler (2013) afirma que “brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado”, assim como na feminização forçada. “Mas estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de

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gênero e performance de gênero”. Prissy, que não se identifica como drag, porém em alguns momentos se identifica como trans e travesti, é um caso dentre muitos casos particulares, que mexe ainda mais com as dimensões ressaltadas por Butler. Imitando o gênero, a drag, “revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (BUTLER, 2013 p. 196). Há uma paródia do gênero, no sentido de que “a noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da própria ideia de um original” (BUTLER, 2013, p. 197). Rubin (1993, p. 12), por sua vez, fala do travestismo permitido em Mohave, no qual “uma pessoa não podia ser um pouco de ambos os gêneros – ele(a) poderia ser masculino(a) ou feminino(a), mas não um pouco de cada”. Em sua fala, Prissy aciona elementos dos dois gêneros, o que dá margem para mais ambiguidades.

23 A partir daí, podemos visualizar formas diferentes de captura de corporeidades, reforçando a relação entre vivência do corpo, subjetividade, sexualidade e gênero, categorias que atravessam a mobilidade corpórea, seja ela online e/ou off-line: essas duas dimensões da realidade enredam vários níveis e potencialidades de corpo. Foucault (2004, p. 260-264) chama atenção para o fato de que a sexualidade é um dos domínios da criatividade humana, pela inegável “possibilidade de utilizar nossos corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de prazeres”. O corpo e a sexualidade também são terrenos de resistência por serem perpassados por relações de poder. “A resistência vem em primeiro lugar, e ela permanece superior a todas as forças do processo, seu efeito obriga a mudarem as relações de poder” (FOUCAULT, 2004, p. 268). Pode-se dizer que o S/M é a erotização do poder, a erotização das relações estratégicas. O que me choca no S/M é a maneira como difere do poder social. O poder se caracteriza pelo fato de que ele constitui uma relação estratégica que se estabeleceu nas instituições. No seio das relações de poder, a mobilidade é o que limita, e certas fortalezas são muito difíceis de derrubar por terem sido institucionalizadas, porque sua influência é sensível no curso da justiça, nos códigos. Isso significa que as relações estratégicas entre os indivíduos se caracterizam pela rigidez. Dessa maneira, o jogo do S/M é muito interessante porque, enquanto relação estratégica, é sempre fluida. Há papéis, é claro, mas qualquer um sabe bem que esses papéis podem ser invertidos. Às vezes, quando o jogo começa, um é o mestre e, no fim, este que é escravo pode tornar-se mestre. Ou mesmo quando os papéis são estáveis, os protagonistas sabem muito bem que isso se trata de um jogo: ou as regras são transgredidas ou há um acordo, explícito ou tácito, que definem certas fronteiras. Este jogo é muito interessante enquanto fonte de prazer físico. Mas eu não diria que ele reproduz, no interior de uma relação erótica, a estrutura de uma relação de poder. É uma encenação de estruturas do poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um prazer sexual ou físico (FOUCAULT, 2004, p. 270-271).

24 Dentro do quadro que apresentamos, a encenação das relações de poder coloca homens e mulheres em lugares sociais específicos, só que invertidos, lançando atenção para a questão da diferença sexual, “tipos de relações de sexualidade estabelecidos no opaco passado humano, ainda dominam nossas vidas sexuais, nossas ideias sobre homens e mulheres” (RUBIN, 1993, p. 20). De acordo com Thomas Laqueur (2001, p. 89), “No século XVI havia ainda, como houve na antiguidade, apenas um corpo canônico e esse corpo era macho”. Houve um tempo em que “Em vez de serem divididos por suas anatomias reprodutivas, os sexos eram ligados por um sexo comum”, e a mulher era entendida como um homem invertido, menos perfeito (LAQUEUR, 2001, p. 42).

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25 Os estudos de McClintock (2010) e Lynda Hart (2003) “analisam variadas expressões do S/M como escolhas e práticas sexuais que só podem ser inteligíveis como encenações que, na verdade, colocam em suas cenas, nos cenários e em seus personagens aspectos que fazem parte das contradições que emergem no interior das dinâmicas do poder social”. Assim, as autoras sugerem que “consideremos o seu lado contestatório” no sentido de que as práticas sadomasoquistas “problematizam os modelos que supõem como naturais, inatas ou normais, as fronteiras que demarcam as diferenças entre homens e mulheres, em particular, entre comportamento sexual masculino (ativo) e feminino (passivo), bem como fronteiras que separam o prazer da dor, o comando e a submissão” (GREGORI, 2008, p. 9-10), também, como ressalta Butler, corpo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero.

26 Sob a perspectiva de Gregori (2008, p. 2), a relação entre erotismo e gênero constitui uma relação de “prazer e perigo”, ou ainda, como a autora chama, de “limites da sexualidade”. O perigo se refere a “aspectos como o estupro, abuso e espancamento como fenômenos relacionados ao exercício da sexualidade”. O prazer, pela “promessa na busca de novas alternativas eróticas em transgredir as restrições impostas à sexualidade tomada apenas como exercício de reprodução”. Quando Gregori fala nos “limites da sexualidade” se refere aos movimentos de ampliação e restrição de normatividades sexuais, da domesticação do que em outros tempos poderia ser considerado anormal ou abusivo. Os limites da sexualidade, portanto, são inteligíveis apenas se concebidos em contextos precisos e, no que concerne às práticas ocidentais e suas normatividades, é preciso considerar o peso desempenhado pela heterossexualidade, tomada como modelo compulsório (GREGORI, 2008, p. 3).

27 Nessa linha, McClintock afirma que o S/M é uma economia da conversão, convertendo, por exemplo, homem em mulher, adulto em criança e vice-versa (MCCLINTOCK, s/d, p. 87), a qual "performs social power as scripted, and hence as permanently subject to change. As a theater of conversion " (MCCLINTOCK, s/d p. 89), “organized primarily around the symbolic exercise of social risk… Since S/M is the theatrical exercise of social contradiction...” (MCCLINTOCK, s/d p. 90). Para Foucault (2004, p.263-264) é um campo de “invenção de novas possibilidades de prazer utilizando certas partes estranhas do corpo – erotizando o corpo”. Assim, as práticas S/M ressaltam que “nós podemos produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos, utilizando certas partes estanhas do corpo, nas situações mais inabituais etc.”. É, também, “a primeira vez que as pessoas utilizam as relações estratégicas como fonte de prazer” (FOUCAULT, 2004, p. 271). No contexto sadomasoquismo, por exemplo, não é “anormal” que um homem seja passivo e submisso. “Indeed, male passivity is by far the most common phenomenon” (MCCLINTOCK, s/d p. 93).

28 Aqui cabe a importância do conceito de gênero, como “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2013, p. 59). Nesse contexto, vale atentar para o que Rubin designa “sistema sexo/gênero”: “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (RUBIN, 1993, p. 2).

29 Nos enredos e cenas BDSM, assim, a dominadora assume a posição atribuída ao macho, atuando como penetradora, utilizando acessórios, como uma cinta atada ao corpo com

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um pênis artificial acoplado, comumente chamado de strap-on. Assim sendo, a única relação sexual disponível para o submisso é o sexo anal. Alguns desses jogos eróticos envolvem o controle do gozo masculino através do uso do cinto de castidade, um dispositivo que pode ser em acrílico, couro, por exemplo, e uso de dildos, plugs anais, fist fucking e pênis de material sintético 11. Sendo assim, fala-se que a inversão pode ser exercida como uma forma de dominação psicológica, e também um dos passos no processo de feminização e/ou humilhação eróticas por ser uma troca que tem como objetivo a humilhação, mas também “a quebra da resistência psicológica do escravo, visto que o homem foi ensinado durante toda a sua formação que a ele cabe o papel de dominador, simplesmente por possuir entre as pernas aquilo que é o símbolo do poder: o pênis”12.

30 É importante dizer que, de acordo com narrativas que fazem parte do material etnográfico, nem todo submisso é masoquista, mas necessariamente, no contexto do BDSM, todo feminizado é submisso, e a maioria passa pela despersonalização, também usada como forma de humilhação. “No caso da despersonalização e, em particular, da feminização forçada, cabe à Dominadora o processo de desmontagem”13, e também da montagem14. “O corpo se estuda em compensação pelos privilégios, nomeia-se precisamente diante do espelho” (VIGARELLO, 2006, p. 135).

31 Alguns submissos que se travestem relatam a sensação de “caráter liberador” da ridicularização e humilhação, ressaltando o lado do sadomasoquismo como espaço de “experimentação”, além de ser transgressor e provocar rupturas de papéis e identidades de gênero, e também “papéis de sexo, tanto na Dominadora com strap-on, como no submisso travestido”15. A experimentação se dá pelo fato de as pessoas estarem “reinventando as representações culturais para delas, obterem um novo prazer”, mais próximos da criatividade do que da normatividade16.

32 Ao invés de transformarem o devir mulher em espetáculo, como as drags, o que esses homens desejam é serem submissos a Senhoras, serem humilhados e usados em situações rotineiras, uma alusão ao universo que vivem, só que ao contrário, exercendo papéis que usualmente não exercem. Apesar de manterem níveis de exibicionismo, nem sempre fazem para um público, mas para práticas em parceria ou exibição de forma que seu anonimato seja mantido; a situação só se complementa quando há a relação de dominação e submissão, ou seja, só quando a “fabricação do corpo” (VENCATO, 2005, p. 231) tem como finalidade práticas BDSM.

Considerações Finais

33 Rubin (s/d, p. 45) aponta os anos 1980 como um período de grande sofrimento sexual ao passo que também foi um período no qual se abriram novas possibilidades, e também houve grande movimento de liberação e repressão de grupos e minorias sexuais. Por isso mesmo, um período a partir do qual se fez necessário o encorajamento do processo de criatividade erótica, visto que o terreno da sexualidade é também político e de resistência, assim como o gênero. Foucault (2004) lembra que o início dos anos 1960 trouxe consigo um processo de liberação, que beneficiou as mentalidades mas ressalta a necessidade, assim como Rubin, de uma estabilização baseada no potencial criativo: [...] criação de novas formas de vida, de relações, de amizades nas sociedades, a arte, a cultura de novas formas que se instaurassem por meio de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e

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nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa (FOUCAULT, 2004, p. 262).

34 É preciso lutar contra um sistema de opressão sexual que trata o sexo e comportamentos eróticos não convencionais com suspeita, visto que “atos sexuais são sobrecarregados com um excesso de significância” e inscritos em um “sistema hierárquico de valores sexuais”, no qual “heterossexuais maritais e reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica” (RUBIN, s/d, p. 13-14), Casais lésbicos e gays estáveis, de longa duração, estão no limite da respeitabilidade, mas sapatões de bar e homens gays promíscuos estão pairando um pouco acima do limite daqueles grupos que estão na base da pirâmide. As castas sexuais mais desprezadas correntemente incluem transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadores do sexo como as prostitutas e modelos pornográficos, e abaixo de todos, aqueles cujo erotismo transgride as fronteiras geracionais. Indivíduos cujo comportamento está no topo desta hierarquia são recompensados com saúde mental certificada, respeitabilidade, legalidade, mobilidade social e física, suporte institucional e benefícios materiais. Na medida em que os comportamentos sexuais ou ocupações se movem para baixo da escala, os indivíduos que as praticam são sujeitos a presunções de doença mental, má reputação, criminalidade, mobilidade social e física restrita, perda de suporte institucional e sanções econômicas. Um estigma extremo e punitivo mantém alguns comportamentos sexuais como baixo status e é uma sanção efetiva contra aqueles que as praticam. A intensidade deste estigma está enraizada nas tradições religiosas do ocidente. Mas muito do seu conteúdo contemporâneo deriva do opróbrio médico e psiquiátrico (ibid).

35 A feminização masculina, objeto central em meio ao universo que apresentamos, mobiliza negociações de feminilidades, reinventando os corpos ao transformá-los através da “performatividade” de gênero, e do “desejo de ser objeto do desejo” (ARENT, 2009, p. 166). “A questão é, pois, como ir despojando-nos, desconstruindo-nos, des/re/dobrando-nos, reconfigurando-nos?” (PAIVA, 2000, p. 34).

36 O material da pesquisa está diretamente relacionado às práticas sadomasoquistas, como: fantasia de submissão, servidão, dominação e humilhação eróticas, com claros elementos fetichistas. Tivemos acesso a relatos de praticantes que transitam entre os gêneros e que, de alguma forma, mantêm vida dupla, uma realidade “em segredo”, que , ainda correndo o risco de serem reconhecidos por pessoas que fazem parte de seus círculos pessoais, compartilham em ambientes online suas experiências, fotografias, vídeos, porque a exibição de suas experiências é um continuum – o exibicionismo acaba sendo um fetiche complementar. Alguns se “montam” apenas para práticas sexuais com parceiros que nem sempre são namorados e cônjuges, outros para masturbação e práticas solitárias, para exibicionismo online e/ou off-line. As famílias têm papel crucial no reforço da conformidade sexual. Muito da pressão social é trazida para suportar a negação aos dissidentes eróticos dos confortos e recursos que a família possui. A ideologia popular sustenta que não se espera da família produzir ou acolher a não conformidade sexual. Muitas famílias respondem tentando reformar, punir ou exilar membros que sejam ofensores sexuais... Qualquer coleção aleatória de homossexuais, trabalhadores do sexo ou pervertidos diversos pode fornecer histórias de partir o coração sobre rejeição e mau tratamento por famílias horrorizadas (RUBIN, s/d, p. 27).

37 A família está presente na fala de Prissy como um dos motivos para que se mantenha o “segredo” sobre seu desejo e sua identidade de gênero: A única pessoa com que transei na vida foi a minha ex esposa, tanto no papel masculino quanto feminino. Depois de um longo caminho fui me descobrindo. Há 5

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anos que não transo de forma alguma. Nem me masturbo... Meu sonho realmente seria fazer a cirurgia de transgenitalização, mas tem muitos problemas associados. Primeiro tenho família e 2 filhos. Uma de 13 outro de 9, ambos crianças. Eu realmente quero e nunca descarto nada, mas primeiro tenho que dar um passo por vez, estou realmente me assumindo profissionalmente e só atenderei como a mulher que sou. (Prissy em entrevista via Facebook, em agosto de 2014)

38 Há um aprendizado e uma interiorização de estereótipos. “O corpo e seus vários eus... constroem uma erótica como percepção dilatada pelo desejo que percorre inédito, o obscuro, o marginal, costura carne e espírito” (VILLAÇA, 2007, p. 87). Na prática de feminização, há uma inversão que parodia os gêneros, separando o que é próprio do masculino e do feminino, reforçando convenções inteligíveis como socialmente atribuídas ao homem e à mulher, o que produziria a humilhação e o prazer na reiteração de estereótipos e da “diferença da experiência social de homens e mulheres” (RUBIN, 1993, p. 3). A prática coloca de ponta-cabeça convenções de gênero, como a domesticidade relacionada às mulheres (RUBIN, 1993, p. 2), mas também a que afirma que: “Masoquismo é ruim para os homens, essencial para as mulheres. Um narcisismo adequado é necessário aos homens, impossível para as mulheres. Passividade é trágica ao homem, enquanto quem a falta de passividade é trágica numa mulher” (RUBIN, , p. 21), de acordo com a psicanálise.

39 Há, ainda assim, a persistência de um modelo de heterossexualidade compulsória, que inverte o homem em mulher e a mulher em homem, e se o homem aceita ou é forçado a aceitar a penetração do ânus pela mulher, é na condição de “mulherzinha” ou puta, e não de “viadinho”, muito embora também sejam termos utilizados nessas relações com o intuito de humilhação. Inutilizando assim o pênis, o homem seria menos homem, despojado de sua masculinidade, pois ele é usado como mulher, condição humilhante e degradante por isso mesmo. Por sua vez, a mulher não se torna um homem, não se traveste de homem, mas personifica aquelas características convencionalmente masculinas: virilidade, agressividade e, mais importante, a atividade. Quem necessariamente deve mudar de gênero é o submisso. Há, portanto, repetidamente, a presença de normas e divisões de gênero e heterossexualidade obrigatória” (RUBIN, 1993, p. 13).

40 Estudar as práticas que constituem o corpo é pensar no que o atravessa e na vivência de corpo. Como vivenciamos o corpo em diferentes cenários? O corpo é fabricável (LE BRETON, 2012, 247), manipulável. “Cada corpo afeta e é afetado pelo outro, produzindo turbulências e transformações irreversíveis em cada um deles. A alteridade, essa condição e afetar e ser afetado, é a referência a partir da qual a subjetividade se faz e refaz permanentemente” (LIBERMAN, 1997, p. 374- 375). As narrativas, assim, evidenciam uma consciência do próprio corpo, que “aparece mais ou menos conscientemente a partir de um contexto social e cultural particularizado por sua história pessoal” (LE BRETON, 2012, p. 231). Partem também da perspectiva de que há um investimento no corpo, e que o corpo é suporte das experiências. Corpos que possam sair da dureza do contato e da obstrução de seus afetos e produzir estados emocionais os mais variados que, expressos, levam a novos questionamentos, à fabricação de outros corpos. O corpo serviria, assim, como elemento mobilizador de um estado de pesquisa, quando tomado, ele mesmo, um campo de experimentação permanente (LIBERMAN, 1997, p. 375).

41 Os blogs com temática central nas práticas sado-fetichistas são lugares antropológicos que concentram material profícuo acerca de corporalidades, subjetividades e

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sexualidade, também como fórum de socialização de saberes e experiências, agindo como concentração de conhecimento social em/na rede. Possibilitam processos de reinvenção de si como um elemento fundamental que auxilia a configuração das “identidades”, “reais” ou (re)inventadas. Essa afirmação se faz sentir na importância que as informações compartilhadas nos blogs têm para os próprios adeptos do BDSM, como para a possibilidade de estudos científicos como este. Nossas lutas sobre significado são também nossas lutas sobre diferentes modos de ser: diferentes identidades. Questões de identidade estão intimamente ligadas a questões de experiência, subjetividade e relações sociais. Identidades são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações sociais. A subjetividade – o lugar do processo de dar sentido a nossas relações com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária e contraditória do sujeito-em-processo ganha significado ou é experimentada como identidade. As identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que constituem o sujeito. Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma multiplicidade relacional em constante mudança (BRAH, 2006, p. 371).

42 As experiências que surgem a partir desse estudo podem apontar para recusas de um “disciplinamento machista”, mas também podem ser outra forma de reiterar, inconscientemente, as desigualdades entre gêneros, ou ainda, apenas uma forma de jogar com hierarquias, como uma erotização das hierarquias (FACCHINI e MACHADO, 2013), remetem “a processos de [res]significação dos fatos, nos quais o próprio sujeito pode adquirir novos significados” (FACCHINI, 2009, P. 315). A experiência é um lugar de formação do sujeito e também “lugar de contestação: um espaço discursivo onde posições de sujeito e subjetividades diferentes e diferenciais são inscritas, reiteradas ou repudiadas” (BRAH, 2006, p. 360- 361).

43 Contudo, são indicadores de estereótipos que são reforçados, reconfigurados constantemente em várias esferas da vida cotidiana, nas quais a transgressão da normatividade é também transgressão das regras da “normalidade”. Aqui, há ressignificação e afrouxamento, inversão de papéis, rompimento de convenções cultural e socialmente aceitas e vice-versa. Como exemplo, podemos tomar a prática da inversão de papéis, sob a qual podemos pensar seguindo a linha de pensamento proposta por Preciado (2002, p. 27): El ano presenta três características fundamentales que lo convierten em el centro transitorio de un trabajo de deconstruccíon contra-sexual. Uno: el ano es um centro erógeno universal situado más allá de los limites anatómicos impuestos por la diferencia sexual, donde los roles y los registros aparecen como universalmente reversibles (¿quién no tiene ano?). Dos: el ano es uma zona de passividad primordial, um centro de produccíon de excitacíon y de placer que no figura em la lista de puntos prescritos como orgásmicos. Tres: el ano constituye um espacio de trabajo tecnológico; es uma fábrica de reelaboracíon del cuerpo contra-sexual posthumano.

44 Por que ser feminizado é degradante? Porque faz parte do imaginário de construção cultural da masculinidade virilidade, atividade, enquanto do lado do feminino, submissão, masoquismo – as mulheres, em decorrência do parto, da defloração, aguentam mais dor do que os homens, portanto, são acostumadas ao sofrimento e à humilhação (RUBIN, 1993, p. 19). Esses são os lugares convencionalmente aceitáveis para ambos os gêneros.

45 Finalizamos com a ideia de que, ao passo que o “sexo” é uma “tecnologia de dominação heteronormativa que reduz o corpo às zonas erógenas em função de uma distribuição

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assimétrica de poder entre os gêneros, associando certos afetos com determinados órgãos e certas sensações com determinadas reações anatômicas” (PRECIADO, 2002, p. 22, tradução minha), as práticas de feminização no contexto BDSM subvertem essa tecnologia: “Las prácticas S&M, así como la creación de pactos contractuales que regulan los roles de sumisión y dominación han hecho manifiestas las estructuras eróticas de poder sub-yacentes al contrato que la heterosexualidad ha impuesto como natural” (PRECIADO, 2002, p. 28). Assim como “o negócio do desejo e da fantasia”, para Arent (2009, p. 168), é “movido pela dança”, aqui desejo e fantasias são guiados e movidos pela inversão de convenções de gênero e a erotização de hierarquias.

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NOTAS

1. Disponível em: < www.senhorverdugo.com/origem-do-ssc.html>. Último acesso em: 03/06/2013. 2. Ver Dominação Feminina no BDSM, disponível no link: http://bdsmcave.blogspot.com.br/p/ femdom.html?zx=1adaa6c22d922c18. Acesso dia 13 de agosto de 2014. 3. Ver Apresentação, disponível no link: Link: http://submissoreal.blogspot.com.br/2009/10/ apresentacao_28.html. acesso em: 12 de agosto de 2014. 4. Le Breton (2012, p. 249) fala o contrário, “passagem do corpo objeto ao corpo sujeito”. Não deixa de ser relevante para a discussão, mas acredito que no caso das performances estudadas, acontece o contrário. 5. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013. 6. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013. 7. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013. 8. Ver Sissy e Feminização forçada, disponível no link: http://submissoreal.blogspot.com.br/ 2010/11/sissy-e-feminizacao-forcada.html. acesso em 12 de agosto de 2014. 9. Ver Sissy e Feminização forçada, disponível no link: http://submissoreal.blogspot.com.br/ 2010/11/sissy-e-feminizacao-forcada.html. acesso em 12 de agosto de 2014. 10. Ver Treinamento de um escravo sissy, disponível no link: http://submissoreal.blogspot.com.br/ 2013/07/treinamento-de-um-escravo-sissy.html. acesso em: 12 de agosto de 2014.

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11. Ver Inversão de papéis- como fazer, disponível no link: http://www.avidasecreta.com.br/ inversao-de-papeis-%E2%80%93-tudo-o-que-eu-queria-saber-e-so-aprendi-na-marra/. Acesso em 4 de maio de 2014. 12. Ver A inversão de papéis, disponível no link: http://fsexuando.blogspot.com.br/2011/02/ inversao-de-papeis.html. acesso em: 8 de maio de 2013. 13. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013. 14. “[montar é] um verbo constantemente usado no vocabulário dos drag queens, que significa o ato de montar a personagem, criando todos os aspectos que irão compô-la, desde seu codinome, sua indumentária, maquiagem, comportamento, modo de falar, etc. Ao se montar, o drag transforma-se em sua personagem” (JATENE, Izabela da Silva. Tribos urbanas em Belém: Drag queens – rainhas ou dragões? Belém, 1996, mimeo, p. 9, apud VENCATO, 2005, p. 232). 15. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013. 16. Ver Feminização forçada, Travestismo e Disforia de Gênero, disponível em: http:// www.ifetiche.com.br/v1/index.php/artigos/79-fetiches/76-feminizacaoforcada. Acesso em 8 de maio de 2013.

RESUMOS

Este artigo tem como fio condutor parte do meu material etnográfico proveniente de dissertação em andamento, a qual tem como foco narrativas sobre repertórios de experiências com/em práticas sócio-sexuais de sado-fetichismo, mais especificamente práticas de feminização no BDSM, cujos protagonistas relatam em blogs pessoais e entrevistas suas experiências e performances eróticas, reinventando seus próprios corpos e performatizando estereótipos de gênero. Propomos discutir como os atores se engajam no processo de feminização, como pensam e elaboram suas experiências de vestir-se de outro gênero, como vivenciam performances de gênero inseridas no contexto das práticas do sadomasoquismo erótico ou BDSM, e como corpo, sexualidade e gênero podem ser problematizados a partir da observação dessas narrativas.

This article has the thread of my ethnographic material from dissertation in progress, which focuses on narrative repertoire of experience with / in social and sexual practices of sado- fetishism, specifically male feminization, whose protagonists report on personal blogs and interviews their experiences and erotic performances, reinventing their own bodies and performing gender stereotypes. We propose to discuss how actors engage in feminization process, how they think and prepare their experiences to dress up another gender, such as experience included gender performances in the context of BDSM or erotic sadomasochism, and as the body, sexuality and gender can be problematized from the observation of these narratives.

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ÍNDICE

Palavras-chave: corpo, gênero, sadomasoquismo Keywords: body, gender, sadomasochism

AUTORES

MARCELLE JACINTO DA SILVA

Mestranda no PPGS/UFC-Universidade Federal do Ceará, Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS/UFC). E-mail: [email protected]

ANTONIO CRÍSTIAN SARAIVA PAIVA

Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, PPGS/ UFC, Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS/ UFC). E-mail: [email protected]

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Etnográficas

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Sociabilidade e reivindicações na ocupação Copa do Povo

Javier Barneche

1 Chegou o momento tão esperado por todos. O dia 12 de junho era a data da cerimônia de abertura e o dia do jogo entre Brasil e Croácia, que daria começo ao maior evento dos últimos tempos, a Copa do Mundo 2014, “A Copa das Copas” como o poder político se encarregou de difundir.

2 Mas vale ressaltar que o fato de a Copa do Mundo acontecer no Brasil imprime a ela certas caraterísticas particulares. Tanto pelo forte conteúdo simbólico e espiritual que tem o futebol para o povo brasileiro, como pela determinada situação social, política e urbana das cidades-sede dos jogos. Essas características fizeram com que o evento não fosse somente uma possibilidade de festejo para a população e de grandes negócios para um punhado de pessoas, mas também foi a condição para que inumeráveis reivindicações sociais tivessem maior visibilidade. Isso pode ser visto nas reivindicações concretas de moradia, quanto para aqueles que queriam discutir o lugar que ocupa o Estado na realização do evento e no destino de importantes investimentos públicos. No primeiro caso são bem conhecidas as manifestações “Copa: sem povo tô na rua de novo”, organizadas pelo Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) com uma composição social com um claro predomínio dos setores populares, e no segundo caso as manifestações “Não vai ter Copa”, organizadas por movimentos como “Movimento Passe Livre” (MPL), “Território Livre” e “Juntos” entre outros que em sua composição social predomina a classe média urbana.

3 A cidade, vista a partir dessa perspectiva, parecia se encontrar profundamente divida. Por um lado, as grandes celebrações na Arena Corinthians, na Fifa Fan Fest e nos telões colocados pela prefeitura em vários pontos da cidade para a exibição dos jogos. Por outro, a cidade se encontrava fortemente mobilizada através dos movimentos supracitados.

4 No dia 12 de junho eu tinha vontade de conhecer outra realidade social e outra torcida além das celebrações mais institucionalizadas organizadas pelo estado ou pela FIFA. Foi por isso que decidi comparecer ao evento “Vai ter Pagode”, organizado pelo MTST no

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terreno que fora recentemente ocupado, conhecido como “Copa do Povo” em Itaquera. A ocupação ficava cerca de 3,5 quilômetros da Arena Corinthians, palco da cerimônia e do jogo de abertura.

5 Segundo o evento difundido pelas redes sociais, aconteceria na Copa do Povo um campeonato com equipes que representariam as seleções das categorias em luta no país: metroviários, garis, rodoviários, estudantes, professores e o pessoal da ocupação. Fiquei curioso porque o convite não mencionava onde as pessoas assistiriam o jogo. De qualquer jeito tinha certeza que em algum lugar isso aconteceria.

6 Acordei às 9 horas ao som das que vinha da Rua do Arouche (Vila Buarque), onde morava no momento. Quando saí com destino ao metrô encontrei a rua lotada de vendedores ambulantes. Pelo fato da proibição da Lei Geral da Copa, que proibia a comercialização de produtos em um raio de 2 quilômetros dos estádios, estas pessoas tiveram que procurar outros espaços para vender suas mercadorias.

7 Ao chegar ao metrô consegui perceber uma dinâmica bem diferente do cotidiano. Os vagões tinham muitos turistas que, apesar dos avisos estarem também em inglês, encontravam-se ainda um pouco confusos.

8 Estação por estação, desde o Centro até a periferia, era possível ver como mudava a paisagem da cidade, tendo uma presença cada vez maior de casas autoconstruídas e conjuntos habitacionais (a maioria produzida pela COHAB e resultado da politica habitacional dos anos 1970). Quanto mais para o leste o trem chegava, mais evidente era a configuração dos “bairros- dormitórios” onde, com a expansão da cidade nas últimas décadas, foram morar as famílias de baixa renda.

9 Ao passar pela Estação Carrão, aproximadamente às 10 horas da manhã, pude ver pela janela uma concentração de manifestantes. Segundo a convocatória difundida pelas redes sociais, lá aconteceria outra manifestação contra a Copa - “Não vai ter Copa” – que tinha como objetivo chegar o mais perto possível do estádio.

10 Tive que descer na Estação Artur Alvim. Em decorrência do evento, os ônibus não se aproximavam da estação Cortinhians-Itaquera. Ao descer percebi um grande movimento e uma presença ostensiva da polícia. As cores do Brasil encontravam-se em todo lugar: nas ruas, nas bandeiras penduradas, nas roupas das pessoas, na maquiagem das mulheres e crianças. Já se podia sentir uma considerável agitação. Caminhei por uma rua bem pequena até chegar ao ponto de ônibus, onde peguei o micro-ônibus (conhecido também como lotação) com direção ao “Parque do Carmo”.

11 Uma vez que desci, pude observar que a ocupação ficava bem perto do ponto de ônibus. A questão relativa à mobilidade urbana é bem importante na hora de escolher ocupar um terreno, porque a luta dos Sem Teto não é só para ter uma casa para morar, mas também para poder aproveitar os serviços que a cidade oferece.

12 O espaço onde acontecia o campeonato era bem perto da entrada do acampamento. Lá foi possível ver uma bandeira vermelha de uns cinco metros de comprimento com o nome da ocupação. No local encontravam-se em torno de 200 pessoas, dentre elas o pessoal da ocupação, as equipes convidadas e os jornalistas.

13 Os jogos aconteciam em espaço bem perto da rua, o campo ficava no meio, num extremo tinha um galpão com outra bandeira da ocupação e no outro uma torrezinha de comando onde um locutor organizava os jogos e colocava as músicas.

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14 Os jogos duravam dez minutos. O primeiro que assisti foi Professores versus Metroviários. Enquanto isso, preparavam-se as mulheres da ocupação que, dividas em duas equipes, também participariam do campeonato.

15 Simultaneamente aos jogos, os organizadores colocavam músicas que animavam a multidão toda. Até os jogadores e jogadoras às vezes acompanhavam algumas músicas com o movimento de seus corpos. Entre pagode e funk, ouvi uma música que chamou poderosamente minha atenção: era o música da “Copa do Povo”, e desde o primeiro momento todos se puseram a dançá-la. A música dizia: “MTST, a luta é para valer Queremos moradia para nosso povo viver Não temos nada contra a Copa do Mundo Mas viver no Brasil sem moradia é um absurdo”.

16 Durante todo o tempo o ambiente era descontraído, o pessoal dançava, falava com os vizinhos e também com jornalistas que presenciavam o campeonato. Além das mulheres, também tiveram lugar no campeonato as “Ronaldinhas” ou as “Gatinhas”, conforme a fala do locutor. Esta era uma equipe de homens que, para o jogo, decidiram se fantasiar de mulheres com saias e roupas brilhantes e coloridas. Ao aguardarem para entrar em campo, as “Ronaldinhas” improvisaram um maracatu que animou muito o momento. Com uma lixeira pública, que virou tambor, vários integrantes se dispuseram a tocar e outros tantos a dançar ao ritmo do som.

Acervo pessoal

17 Minutos antes de entrar em campo, as “Ronaldinhas” se encontravam dançando e fazendo uma fila que incluía todas as pessoas que estivessem nas imediações. Entre os

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jogos podiam-se ver crianças (meninos e meninas), que ocupavam todos os lugares por onde a bola passava.

Acervo pessoal

18 Eram 14h25min e já com fome comecei a procurar onde poderia comer alguma coisa. Perguntei para um jovem onde era possível almoçar. Ele me respondeu surpreso: “Você não comeu ainda? Vem!”.

19 Essa foi minha primeira oportunidade de sair de onde acontecia o campeonato e entrar na ocupação de fato. No caminho perguntei qual era o nome do jovem e desde quando ele ficava na ocupação. Chamava-se Lucas e estava no local desde o primeiro dia. Ele aproveitou para me perguntar o que eu fazia da vida. “Sou estudante de Ciências Sociais”, falei para ele, que respondeu com um “Ah ta!”. Quando chegamos à cozinha da ocupação, Lucas disse para a cozinheira: “Dá um prato de comida para o jornalista!”. Sem demorar muito a mulher me deu um prato com bastante comida. Arroz, feijão, tomate, ovo cozido e molho de carne. A comida estava muito quente e bem temperada.

20 Ao meu lado , encontrava-se um menino, João, que também estava comendo. Começamos a conversar, logo perguntei em que parte da ocupação ele morava. Ele me contou uma interessante história: Eu: Onde é que você mora? João: Lá em cima (apontando com sua mão para a parte da ocupação que encontra- se em maior altura). Onde estão as serpentes. Eu: Tem serpentes? Como assim?

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João: Tem! E são muitas. Elas estão aqui desde antes que a gente chegou. Às vezes atacam. Faz pouco tempo atacou um amigo meu e os pais dele acabaram matando ela; cortaram a serpente em dois! Eu: As serpentes são perigosas... João: Não gostam de que a gente esteja aqui. Este lugar era delas. Mas a gente não vai desistir, vai ficar!

21 O relato do João ficou muito tempo dando voltas em minha cabeça. É que no fundo terminou sendo uma parábola da luta dos sem-teto, da resistência, mas na perspectiva de um menino sem teto, com o próprio universo simbólico dele.

22 Com o estômago cheio voltei para o lugar onde rolava o campeonato. Eram 16h00 quando um dos militantes do MTST disse que não seria permitido ligar a única TV disponível na ocupação para ver o jogo. Então comecei a perguntar ao pessoal presente onde pensavam assistir o jogo. Muitos deles falaram que foram convidados para assistir na casa de parentes ou “na outra casa”, fazendo referência às casas que compartilhavam com outras famílias antes de chegarem à ocupação.

23 O lugar estava ficando vazio e até pensei que não conseguiria assistir ao jogo. Mas apareceu André, um jovem da ocupação que, com tom apressado, me perguntou: André: E ae gringo! Vai assitir o jogo ou não? Eu: Gostaria, sim! Mas onde será que a gente consegue?

24 André fez um gesto para que eu o seguisse. Daí ele me disse: “Vamos para o bar do Velho, ele tem uma tv grande que pega bom sinal”. O bar do Velho ficava a poucos metros da ocupação, a lona da loja era metade verde e metade amarela e, por parecer tão nova, pude deduzir que tinha sido colocada por motivo da Copa.

25 Quando chegamos, o bar estava com as persianas fechadas. André não demorou em batê-las, até que alguém abriu a porta sem perguntar quem estava batendo. Foi uma mulher que trabalhava no bar que nos deixou entrar. Não fez falta perguntar quem era Velho, consegui identificá-lo atrás do balcão, com uns óculos olhando com atenção uma carta que parecia ser de um serviço. Eu queria me apresentar a ele e falar um obrigado por poder ver o jogo lá, mas o André, com pressa, falou: “Vamos! Que ele não gosta de assistir o começo”.

26 Fomos para o pátio, que ficava no fundo do bar. Lá havia 15 pessoas, a maioria da ocupação e os outros vizinhos “históricos” do bairro; como se apresentou uma mulher logo que cheguei. As pessoas usavam, em geral, roupas comuns e sem alusão a nenhuma equipe de futebol. Apenas um dos dois meninos que se encontravam no local tinha a camiseta azul de treino do Corinthians. Depois, no segundo tempo do jogo, apareceu no local um militante do MTST com a camiseta vermelha do movimento.

27 A televisão ficava contra uma parede de material sem reboco. A antena fazia um grande esforço para sintonizar a “Band” e assim podermos ver o jogo. O volume sumia inexplicavelmente de vez em quando, mas, pela reação do pessoal lá, parecia que todos já estavam acostumados.

28 O Bar do Velho pode ser considerado um pedaço, para usar um termo de Magnani (1998). Já que apesar de ser um lugar privado com fins lucrativos, torna-se um ponto de encontro para um particular grupo de pessoas que pertencem a uma mesma rede de relações (Magnani, 2002:21): O termo, na realidade, designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada

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nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. (Magnani, 1998: 116).

29 O fato do Bar do Velho fechar suas persianas durante os jogos da Copa reforçou a utilização desse espaço por uma rede de relações restrita, deixando fora aqueles que não conhecem o código para entrar: bater as persianas.

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30 Quando o jogo estava começando, o pessoal estava bebendo cerveja Skol em garrafa. Dois jovens preparavam o churrasco: o Pássaro e o Croata. Até então ninguém os chamava dessa forma, esses apelidos foram colocados ao longo do jogo.

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Acervo pessoal.

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31 Nos primeiros momentos do jogo as pessoas já se reuniram ao redor da televisão. Podia- se escutar “Vai Brasil” enquanto os jogadores entravam no campo. Havia pessoas da ocupação que não se conheciam direito. Uma mulher perguntou para um homem em qual setor da ocupação ele ficava. Em seguida respondeu: “do G, lá em cima”. A ocupação se divide em setores e cada setor tem uma letra e um número, para se diferenciar e organizar as atividades e tarefas coletivas.

32 O jogo começou e a seleção brasileira tinha a posse da bola. Nos primeiros minutos o pessoal se encontrava um pouco disperso e ainda falando, até que a Croácia marcou o primeiro gol, aos 11 minutos. A partir desse momento, as pessoas ficaram mais atentas ao jogo. Foi com o gol de Neymar, aos 30 minutos aproximadamente, que elas entraram em um efusivo festejo. E cantar: “Eu sou brasileiro com muito orgulho com muito amor!”

33 E depois seguiram cantando: “Não tenho casa, eu sou sem teto e a Copa no Brasil me revolta

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Não quero Copa, Copa, Copa, Copa no Brasil eu quero um teto”

34 A música original desta última é conhecida como “Lepo, Lepo”. Em tal versão não há nenhuma referência à luta dos sem tetos, nem às reivindicações deles. A letra original da música foi mudada e ressignificada pelos militantes, que a preencheram com um forte conteúdo reivindicativo.

35 As pessoas encontravam-se mais relaxadas com o empate. Depois do gol de Neymar, pude perceber que elas focaram decididamente a interação.

36 Uma mulher começou a me falar sobre o seu filho, que era um “jogador de futebol desde que nasceu”, segundo os seus próprios termos. O filho está tentando dar certo nos testes de futebol para poder jogar profissionalmente, mas, de acordo com a interlocutora, o pai do menino acha que ele tem muitos “vícios de várzea”.

37 Depois um homem começou falar comigo. Perguntou-me de que país eu era e se eu viera para cá pelo fato da Copa. Não demorou em me mostrar fotos que havia feito com seu telefone, através das quais era possível apreciar muitas bandeiras desenhadas na rua de sua casa, no bairro de São Mateus, na região de Itaquera. Os desenhos foram feitos pela família do homem e pelos seus vizinhos. Nas fotos constavam membros dessas famílias pintando a rua e posando ao lado das bandeiras já terminadas. “Essa que está lá é minha filha, a mais pequena. É a primeira Copa para ela”, disse-me entusiasmado.

38 No momento do intervalo um jovem começou a juntar dinheiro para comprar mais cervejas, sem nenhuma contribuição sugerida. No intervalo também entrou na cena “O croata”. Ele era um dos homens que faziam churrasco no começo do jogo. A partir de então ele estava com a palavra “Croata” escrita em vermelho sobre seu peito descoberto. O homem começou a ser o centro da atenção da torcida do bar. Era notório que ele não tinha nada ver com a Croácia, entretanto, ele se dispôs a brincar torcendo pela Croácia, numa incrível interação com o pessoal que misturava brincadeira e mandinga.

39 Com o churrasco já pronto, o segundo tempo de jogo começou. Logo houve um pênalti para a seleção brasileira. Uma mulher encontrava-se de joelhos, com as mãos apertadas ao jeito de rezar e depois ao jeito de fazer um teto. Outros homens tinham os braços elevados fazendo tremer as mãos. Outra pessoa que fazia o churrasco tinha colocado um chapéu como as cores do Brasil e recebeu, então, o apelido de Pássaro. Neymar fez o gol e as pessoas do bar começaram a festejar, cantar e chorar. Nada parecia importar

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nesse momento do que o jogo que ocorria. Podia-se sentir a alegria, a euforia, a felicidade de todos os presentes.

Acervo pessoal.

40 A torcida do bar começou a cantar as músicas vibrantes. A Copa do Mundo tinha começado e o Brasil estava ganhando. O gol de Oscar selou a vitória. “O croata” ficou banhado em cerveja pelos outros torcedores. Voltaram os gritos, as pessoas se abraçavam e saltavam: “Brasil eoooo, Brasil eooo”

41 E depois cantaram: “Um, dois, três, quatro, cinco mil ou dá nossa casa ou não tem Copa no Brasil”

42 Eufóricos, felizes, o Brasil ganhava o primeiro jogo da Copa do Mundo com decisão e grandeza. E além da vitória, além do jogo, a prática de torcer criou um espaço singular de interação, de troca entre as pessoas. Um espaço de sociabilidade onde as pessoas se dispunham a ficar juntas, a falar da vida delas, a torcer, a cantar, a comer e beber. Nada de mal parecia ameaçar esse momento único que era deles e que eles viviam. Como diz a música de Milton Nascimento e Fernando Brant1: “Nesses noventa minutos De emoção e de alegria Esqueço a casa e o trabalho A vida fica lá fora Dinheiro fica lá fora A cama fica lá fora A família fica lá fora A vida fica lá fora O salário fica lá fora E tudo fica lá fora” (Nascimento, 1994).

43 De fato, os problemas ficaram fora. Em toda minha observação participante não consegui perceber uma só lágrima de tristeza, um só olhar desolado. No futebol, no momento em que os jogadores entram em campo, as diferenças entre torcidas, as desigualdades sociais parecem se dissolver. Os problemas concretos e materiais

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parecem se afastar até mesmo para os moradores da ocupação Copa de Povo, que ainda sem ter o direito humano da moradia garantido, podem conquistar essa exuberante felicidade que pude observar e descrever neste trabalho. No contexto do jogo foi criado um singular espaço de interação, de troca de experiências e de reforço dos laços sociais, aquilo que Simmel chamaria de sociabilidade. O autor fez uma interessante distinção entre o que ele chama de socialização e sociabilidade. Para ele o primeiro termo refere- se à união e interação dos indivíduos que perseguem interesses e objetivos concretos, como podem ser as relações comerciais. O segundo termo pode ser entendido como a abstração do conteúdo material e teleológico do primeiro termo. No sentido da sociabilidade, a relação social não é um meio para atingir um fim, mas é um fim em si mesmo. As pessoas entram em contato sem perseguir interesses concretos, mas só pelo fato de se relacionarem, de compartilharem experiências, vivências e sonhos. Para o autor, é nesta relação de sociabilidade que os indivíduos conseguem se liberar da realidade objetiva, dos problemas que os afetam. É nesse sentido que a sociabilidade proporciona um sentimento de alívio da realidade objetiva, embora seja momentânea. Então tudo fica lá fora, mas tudo?

44 O futebol tem um forte poder emocional e espiritual sobre a população, sem dúvida. Ele também cria valiosos espaços de interação entre as pessoas, seja praticando o esporte ou mesmo assistindo jogos de maneira coletiva, onde se desenvolve um importante repertório simbólico da população em forma de canções, mandingas, vestimentas e comidas.

45 Muito se tem falado da utilização interessada deste poder por parte de governos para eclipsar problemas sociais ou de outra natureza. De fato o futebol pode desviar a atenção de uma população sobre algumas questões, mas pode ser muito ambicioso pretender ocultar completamente esses problemas com o esporte. A Copa do Povo é um excelente exemplo disso. O que podemos ver no âmbito da ocupação com o campeonato “Vai ter pagode” e nas canções entoadas durante o jogo no bar do Velho é que, se por um lado o esporte faz os problemas ficarem “lá fora” – pelo menos em seu conteúdo angustiante –, não tem o mesmo efeito sobre as reinvindicações, que persistem adotando novas formas.

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NOTAS

1. A música tornou-se popularmente conhecida pela interpretação do Wilsom Simonal nos anos 1970.

AUTOR

JAVIER BARNECHE

Estudante de Sociologia da Universidade de Buenos Aires. [email protected]

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Concentração da torcida coreana no bairro do Bom Retiro

Jung Yun Chi

1 Terça-feira, dia 17 de junho de 2014, Praça Coronel Fernando Prestes, Bom Retiro, São Paulo.

2 Após o término do primeiro tempo do jogo entre Brasil e México, que antecedeu a partida da Coreia do Sul contra a Rússia, minha irmã e eu aproveitamos o intervalo para sair de Alphaville, onde moro, a 25 km do centro de São Paulo. Como era de se esperar, a estrada estava vazia – a viagem de casa ao Bom Retiro, que leva 40 minutos normalmente, nos tomou 25 minutos e conseguimos parar o carro na Rua Três Rios aos 5 minutos do segundo tempo. A rua comercial agitada que liga a praça do metrô com o início da Rua José Paulino,conhecida como o centro nacional de produção e venda de roupa, estava vazia com suas lojas de portões fechados. O que podíamos ver eram os botecos e restaurantes cheios com as pessoas assistindo o jogo. A metade delas estava vestida de verde e amarelo e a outra metade, evidentemente de origem coreana, estava de vermelho, a cor da torcida coreana apelidada de “diabos vermelhos”.

3 Caminhamos três quarteirões até chegar ao local de concentração na Praça Coronel Fernando Prestes, que o pessoal costuma chamar de “praça do Metrô Tiradentes” ou “praça do Dom Bosco”. É a praça por onde se chega ao Bom Retiro vindo de metrô, delimitada pela Avenida Tiradentes e por edifícios institucionais de grande porte – Instituto Dom Bosco, junto com a Igreja da Nossa Senhora Auxiliadora (onde são distribuídas refeições gratuitas diariamente aos moradores de rua), o Quartel do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Casa da Memória Paulistana (a Sede do DPH – Departamento de Patrimônio Histórico e o Arquivo Histórico Municipal estão instalados no Edifício Ramos de Azevedo, antiga Escola Politécnica) e o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (Edifício Paula Souza, também parte da antiga Escola Politécnica). A praça é uma espécie de calçadão de 200 metros de extensão por 50 metros de largura, pavimentado por mosaico português e sombreado por enormes árvores pau-ferro. Ela pontua o fim da Rua Três Rios no encontro com a Avenida Tiradentes.

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4 Desde a entrada, podíamos ver um enorme palco montado no fundo da praça e um telão no centro, ainda apagado. No centro da praça, estava montada a plateia, de cadeiras de plástico enfileiradas, já cheia de pessoas vestidas de camiseta vermelha e que preferiram garantir um bom lugar ali a assistir o jogo do Brasil. Ao lado esquerdo da plateia, havia uma fileira de barracas de comida coreana e vários grupos de pessoas estavam comendo e batendo papo enquanto aguardavam o início do jogo. A maioria das pessoas vestia a camisa da torcida coreana e era de origem coreana, evidentemente. Fiquei surpresa por já encontrar tantas pessoas por lá e era de se esperar que o local lotasse assim que acabasse o jogo do Brasil – provavelmente, a quantidade de pessoas da torcida coreana que tinha encontrado nos bares das redondezas ao caminhar pela rua estava por ocupar a praça.

5 Logo que chegamos, encontrei Thiago, mestrando em Antropologia com quem assisto as aulas do Prof. Magnani às quartas-feiras. A ideia de fazer o campo naquele dia havia sido dele, que estuda os grupos de jovens brasileiros que escutam o K-pop (a música pop sul coreana) e ensaiam as coreografias imitando os artistas coreanos. Cumprimentei-o, apresentei minha irmã e já entreguei para ele a camisa vermelha da torcida dizendo que era “o disfarce do antropólogo”. Ele agradeceu e vestiu a camisa. Depois de uma breve conversa, começava a minha primeira experiência etnográfica – pendurei minha máquina no pescoço, tirei da mochila o caderno de campo e, de caneta na mão, saímos a andar pela praça.

Plateia da torcida na Praça Coronel Fernando Prestes às 18:00, ainda faltando alguns minutos para acabar o jogo do Brasil

6 Ao lado do palco, do outro lado das barracas de comida, havia uma tenda com o controle técnico de som e imagem, que também servia de base para as equipes de reportagem das emissoras coreanas. Toda a plateia estava cercada por tripés de câmeras operadas por pessoas com as credenciais da FIFA. Chamou a minha atenção um grupo de cinco meninas de uniforme usando a camisa da torcida, minissaia branca, meias brancas e capacete de motociclista no outro lado da praça, que estavam sendo entrevistadas. Elas imitavam o grupo coreano Crayon Pop, de cinco meninas de

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aparência de boneca que pulam e dançam de capacete e uniforme de saia curta aos ritmos das músicas como “Bar Bar Bar” ou “Bing Bing” e que fazem um sucesso enorme entre a criançada. Atravessamos a plateia para assistir a entrevista e nos demos conta de que eram quatro meninas brasileiras e uma de ascendência coreana. Thiago ficou interessado em conversar com as meninas, quando resolvi continuar andando sozinha pela praça.

7 Normalmente, eu não teria a coragem de estar com uma máquina fotográfica a tiracolo pelas ruas do bairro, por medo de ser assaltada. Mas eu sabia que a praça era um lugar seguro no meio de um bairro violento, por causa da constante presença da Polícia Militar que mantém a vigia na porta do quartel. Por isso, chamou-me atenção o policiamento ainda mais reforçado, com diversas viaturas e um furgão da Base Comunitária Móvel, além de muitas duplas de policiais espalhadas por toda a praça. Então, aproximei-me da Base Comunitária para falar com um dos policiais. Bastou perguntar se ele sabia quem tinha encomendado aquele reforço policial todo e ele respondeu e muito mais. Disse que eles estavam lá atendendo ao pedido do cônsul coreano e que estavam desde cedo dedicados a expulsar e manter afastados os moradores de rua. Num dia normal, a praça sempre tem muitos moradores de rua que vivem da comida que ganham na igreja e dormem nos bancos da praça aproveitando a sombra das árvores, mas eu não conseguia ver nenhum deles naquele momento. Eles tinham sumido! O policial, com a expressão de orgulho do dever cumprido, ainda acrescentou que a decisão de manter a tela apagada durante o jogo do Brasil também tinha sido tomada para evitar que juntassem pessoas indesejadas. Os brasileiros, imaginei.

Policiamento reforçado na Praça.

8 Do outro lado da praça, na primeira barraca da fila, estavam sendo distribuidos picolés importados da Coreia e bastões infláveis para a torcida. Alguém subiu no palco, pegou o microfone e fez o anúncio, em coreano, de que as camisas da torcida estavam esgotadas, mas que haveria mais no próximo jogo. Vendo o tamanho da estrutura do palco e da plateia e a quantidade de artigos gratuitos que estavam sendo distribuidos, fiquei

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curiosa para saber quem estava patrocinando aquilo tudo, mas ninguém soube me informar.

Barracas de comida coreana

9 Na frente da barraca, voltei a encontrar Thiago, junto com um grupo de jovens brasileiros. Numa conversa anterior sobre nossos temas de mestrado, ele comentou que esses jovens tinham grande dificuldade em interagir com os coreanos apesar do seu interesse sobre a cultura coreana e, de fato, eles estavam isolados desde o começo do evento num canto da plateia. Agora estavam todos concentrados ao lado do palco. O jogo do Brasil tinha acabado e eles estavam se preparando para subir e iniciar a apresentação de dança. Thiago apontou para um menino e disse que ele tinha sido o vencedor do último concurso de dança do K-pop de Osasco. Era possível sentir o clima de tensão nos rostos dos meninos. Thiago foi falar com um deles e aproveitei para fotografá-los. Logo sentiram a minha presença e começaram a fazer poses para mim. Provavelmente acharam que eu estava fotografando para algum material de jornal ou revista.

10 Durante a apresentação, que durou cerca de meia hora, a plateia foi se enchendo até que se via a praça completamente tomada pela torcida coreana. As últimas pessoas que chegaram se acomodaram em pé nas laterais da plateia e em cima dos canteiros de jardim. A apresentação dos grupos de K-pop foi seguida pelo ensaio da torcida, que fez a plateia repetir o grito oficial (“Dae – Han Min Guk” – Coreia em coreano – grito seguido por cinco palmas) até o momento do início do jogo.

11 O primeiro jogo da Coreia do Sul na Copa do Mundo de 2014 foi na Arena Pantanal de Cuiabá e terminou com o resultado de 1x1 contra a Rússia, o país que sediará a próxima Copa. Após a finalização do jogo, a torcida ainda permaneceu por um tempo na praça antes de dispersar-se. Havia rodas de conversa animada por todo o local. Enquanto eu e a minha irmã estávamos conversando com um rapaz que pedalava conosco nos finais de semana (frequentamos os encontros semanais de um grupo de ciclistas coreanos evangélicos, que faz trilhas de bicicleta todos os sábados porque o domingo é o dia de culto), fomos abordadas por um repórter da emissora coreana KBS (uma das maiores da

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TV aberta coreana) para uma entrevista. Como não somos fãs de futebol, o repórter ficou bastante insatisfeito com a qualidade da fala que não continha nenhuma análise futebolística sobre o jogo. Logo, encontramos um amigo coreano que medita conosco no templo budista coreano todas as terças-feiras e resolvemos sair da praça para tomar um chá com a monja que nos esperava no templo.

As meninas esperam a sua vez para apresentar a dança ensaiada no ritmo do K-pop.

Na expectativa do primeiro gol.

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RESUMOS

Este relato sobre a concentração da torcida coreana no bairro do Bom Retiro durante a Copa do Mundo foi realizado durante o curso “A Dimensão Cultural das Práticas Urbanas”, ministrado pelo Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani na FFLCH / USP. E é o fruto da minha primeira experiência etnográfica realizada para a pesquisa do mestrado, “Bom Retiro: o multiculturalismo na paisagem paulistana”, que propõe descrever a maneira como diferentes comunidades culturais do bairro se apropriam dos espaços públicos.

ÍNDICE

Palavras-chave: Copa do Mundo, Bom Retiro, espaço público, coreanos, torcida

AUTOR

JUNG YUN CHI

Mestranda em Paisagem e Ambiente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e graduada como arquiteta urbanista pela mesma instituição. Pesquisadora do Laboratório Paisagem Arte e Cultura – LABPARC. [email protected]

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Relato sobre a Copa do Mundo: os deslocamentos pela cidade em dias de jogos

Carolina Gontijo Lopes

1 Entre as questões enunciadas pela mídia e aquelas decorrentes da experiência brasileira em sediar megaeventos, questiona-se como seria o deslocamento dos torcedores durante a Copa do Mundo de 2014. Os jornais, durante todo período anterior ao evento, apresentaram grandes problemas e preocupações, como exemplo, questionaram os próprios planos de mudanças urbanas propostos pelos governos e pela Federação Internacional de Futebol (FIFA). Foram frequentes as notícias que buscavam prever como seriam os deslocamentos dos estádios de futebol aos aeroportos, ou às regiões hoteleiras ou aos espaços de lazer.

2 O distanciamento desse tipo de atividade turística a nível nacional frente às difusas e confusas informações midiáticas ampliou as sensações duvidosas da população quanto ao que iria acontecer entre os meses de junho e julho de 2014. As reportagens sobre os deslocamentos na Copa envolviam diferentes questões como: a incapacidade dos aeroportos brasileiros; o ineficiente transporte público municipal das cidades sedes; e as incertezas geradas pela implementação de “trem-bala”, “monotrilho”, “trólebus” e “VLT”1. Enquanto em São Paulo, duas situações singulares motivaram meu relato sobre os deslocamentos dos citadinos no dia da abertura da Copa do Mundo nessa metrópole. São elas: a escolha da implementação do estádio-sede da Copa na região leste da cidade; e a greve dos metroviários no mês de junho.

3 Ao sediar a abertura da Copa do Mundo, a Zona Leste suscitou conflitos urbanos entre torcedores e território. O deslocamento em massa de uma elite brasileira, os torcedores que assistiriam aos jogos dentro do estádio, a um território que cotidianamente ela não frequenta e até mesmo evita percorrer, constitui um dos fatores geradores desse conflito. A zona leste, também conhecida como “ZL”, é um território que apresenta altos índices de vulnerabilidade social e possui as maiores aglomerações habitacionais do munícipio. Tal configuração social incide na paisagem local gerando uma imagem de insegurança, violência e marginalidade. A aproximação desses torcedores com essa

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imagem de lugar, além de outras disputas em torno da escolha do estádio sede da abertura da copa, gerou especulações, principalmente pelas mídias, acerca da eficiência do transporte nesse dia2.

4 Por outro lado, na semana anterior a abertura da Copa no Brasil, em São Paulo, quando se iniciou a greve dos metroviários, a sensação que se expandiu é a de que: “Não vai ter copa!”. As dificuldades em circular pela cidade ocasionaram naquele período muitas incertezas aos moradores da cidade, ao poder público e aos próprios gestores da Copa. As especulações em torno da Zona Leste e as incertezas geradas, mediante as possíveis consequências desse movimento por melhores condições trabalhistas, instigaram essa imersão em direção ao deslocamento das pessoas nos possíveis percursos para assistir a abertura da Copa em Itaquera.

De casa à Estação da Luz

5 No dia 12 de junho de 2014, saímos de casa, eu e Paul3, ao meio-dia, em direção ao Itaquerão. Almoçamos nas proximidades do Largo da Batata, em Pinheiros, onde os bares locais já mudavam as disposições de mesas, cadeiras e televisores para receber os torcedores interessados em ver o jogo. Tais mudanças não me impressionaram, visto que é frequente acontecer essas alterações em outras Copas.

6 Pegamos o metrô na Estação Faria Lima por volta das 12:30. Ali comecei a perceber: A copa era no Brasil! E o jogo era em São Paulo! Nos guichês havia grandes filas e a maioria das pessoas estava vestida com a camiseta amarela da seleção brasileira.

Figura : Torcedores no saguão de entrada do metrô, na Estação Faria Lima no dia 12 de junho de 2014. Fonte: da própria autora

7 Dois fatos que diferenciam do cotidiano e definem o início da Copa na minha observação são as filas grandes de pessoas indo passear e o uso da camiseta da seleção.

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As pessoas que usam cotidianamente o metrô naquela estação e naquele horário passam rapidamente pelo saguão e em ritmo de trabalho, bem como vestem roupas de trabalho.

8 Logo após passar pelas catracas na Estação Faria Lima uma fila formada por seguranças do metrô também indicou o começo da Copa. Usualmente ao passar pelo saguão não se depara com tantos seguranças de prontidão, mas pode-se entender que, tanto pela Copa, como pelos últimos tumultos ocasionados no metrô da cidade, a vigilância do local deveria ser alterada.

Figura Seguranças no saguão de entrada do metro na Estação Faria Lima no dia 12 de junho de 2014. Fonte: da própria autora

9 Entramos no vagão do metrô e seguimos pela linha amarela juntamente com outros torcedores brasileiros. Na primeira parada, Estação Paulista, entraram muitas pessoas e ali já comecei a identificar os estrangeiros, como argentinos, colombianos, e ainda, os brasileiros que entrariam ou não no estádio. Durante o percurso, no próprio vagão já havia interação entre pessoas de diferentes lugares que se juntavam para fazer fotos e se conhecer. A princípio eram argentinos com argentinos, argentinos com colombianos, colombianos com colombianos, e por fim, os brasileiros entraram na brincadeira e também fizeram fotos.

10 Nesse ritmo de descontração, seguimos pela linha amarela do metrô até a Estação da Luz. Percebemos que algumas pessoas desceram na Estação da República, mas somente mais tarde entendi que eram as que iriam entrar pelo portão oeste/norte do estádio. Estava tão entusiasmada com as brincadeiras no vagão que acompanhei o maior fluxo sem questionar para onde estavam indo e acabamos assim tendo acesso apenas ao portão leste/sul.

11 Íamos assistir ao jogo no entorno do estádio do Itaquera junto da pesquisadora Letícia, entretanto, mudamos a rota porque decidimos seguir com o “Expresso Copa” que forneceu acesso apenas à Estação Itaquera, portanto, não tínhamos acesso livre pela rua à Estação Arthur Alvim que levava aos portões leste/sul, onde estariam os outros pesquisadores. Repensamos nossos planos e decidimos conhecer um canal de acesso ao estádio, depois voltaríamos para assistir ao jogo na Fan Fest no Vale do Anhagabaú e em um bar próximo, e ao final, passar pela Estação da Luz. Assim, seria possível acompanhar os torcedores que utilizariam o “Expresso Copa” para ir e voltar do estádio, bem como o fluxo de pessoas no seu entorno.

12 A Estação da Luz, que se localiza na área central de São Paulo, foi responsável pelo embarque e desembarque do “Expresso Copa”. Para elaboração do nosso trajeto escolhemos a Luz como referência, principalmente, por pertencer ao percurso oficial do evento e pelo reconhecimento da história dessa área central paulistana. Usualmente

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são as classes populares que circulam por essa região estigmatizada como “cracolândia” pelo uso do crack nas ruas e a qualquer momento do dia4. Tais fatores despertaram o nosso interesse em observar esse encontro entre as histórias de um lugar e as passagens de torcedores em um momento único.

Da Luz à entrada permitida aos torcedores com tíquetes

13 Ao descer na Estação da Luz, quase às 13h30, notamos um encontro muito grande de pessoas, em sua maioria vestidas com a camiseta da seleção brasileira e seguindo para o “Expresso Copa” da CPTM. À medida que aproximava da plataforma do trem as pessoas se animavam, ouvia-se as vuvuzelas e as músicas de torcidas, via-se as trocas de olhares entusiasmados e o encontro de muitos com o espaço desconhecido, que até, muitas vezes, acabava-se ficando despercebido.

14 Observei que esse percurso, para além do momento específico da Copa, cotidianamente é realizado pelos moradores da Zona Leste que seguem sentido Itaquera. Ao notar um momento de inversão, ou seja, pessoas que em sua maioria nunca estiveram nesta plataforma e seguindo esse sentido, resolvemos ficar na Estação e olhar a chegada de cada torcedor individualmente, em grupo de amigos, em família, torcedor brasileiro de São Paulo e das outras regiões, torcedor estrangeiro da América Latina e dos outros continentes.

Figura Torcedores seguindo da linha amarela para o trem “Expresso Copa” na Estação da Luz Fonte: da própria autora

15 A grande, ao subir pela escada rolante e sair na estação, se admirou com tanta beleza, era nítido que o olhar de estranhamento não era apenas para o momento da Copa, também envolvia entrar na Estação da Luz e seguir em um trem sentido Itaquera. O

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clima era de festa na Estação da Luz, ocupada em sua maioria por torcedores, para tanto, não se via os frequentadores cotidianos.

16 Neste momento de encontro dos torcedores com a estação há uma nítida ressignificação deste lugar. Mesmo que num tempo restrito, ou seja, apenas no período da Copa, a circulação na plataforma, nos corredores e nas escadas rolantes da estação de trem ignorou os sentidos negativos daquela região. Foi único poder ver as crianças identificando o espaço, muitas certamente não sabiam andar de trem e talvez, ainda não conheciam aquele transporte coletivo. Já as mães, ciente de certos significados do andar de trem no Brasil, ficavam imensamente preocupadas com os filhos e, ainda mais, em meio a muitos torcedores e na Luz.

17 Entretanto, essa troca entre espaço da população mais pobre com a população mais rica envolveu alguns conflitos para além do estranhamento entre alguns torcedores com o espaço e com a festa. Estava bem cheio o vagão, não era possível andar de um lado para o outro, mas era possível não se encostar em outro passageiro. Observei que a minoria no vagão era de moradores de Itaquera que seguem nesse sentido cotidianamente. Eles não faziam parte dos torcedores que iriam até o estádio ou ao seu arredor para participar da festa, e sim, estavam indo para casa.

18 No vagão do “Expresso Copa”, ficamos próximos à porta e foi ali que identifiquei esses dois moradores de Itaquera. Um rapaz entre 18 e 24 anos e uma mulher entre 30 e 35 anos. Durante o percurso, ele encostou na porta do trem e ficou mexendo em seu celular, enquanto a mulher foi de costas para o interior do trem, com o rosto praticamente colado no vidro da porta e não interagiu. Entre esses dois nativos havia uma turma de moças que iriam ver o jogo dentro do estádio. Elas, com idade entre 20 e 24 anos, vestidas com camisetas da seleção, fizeram todo o percurso conversando entre si e ignorando o entorno. Até mesmo observei que houve alguma troca do rapaz com elas, mas a conversa não foi longa.

19 A ocupação do “Expresso Copa” possuía similaridades com um ônibus particular de turismo. A atitude blasé5 que muitas vezes está presente entre os passageiros de transporte público era inexistente, o clima era de descontração entre os passageiros que iam se divertir dentro do estádio. E os nativos observados, não somente seguiram sem muita interação, como não foram vistos pelas pessoas que ali se reconheciam, trocavam e brincavam entre si. O trem andava e cada vez mais parecia que as emoções da Copa nas pessoas superavam as preocupações com a “ida a Zona Leste”.

20 O percurso a pé da Estação Itaquera até os portões leste/sul do estádio era um caminho único a ser seguido, sem acesso aos bares e a população do entorno do estádio. Caso saíssemos desse canal, não poderíamos voltar sem apresentar o tíquete para o jogo. Apenas os moradores locais entravam e saiam no canal por portões especiais de acesso.

21 No canal de acesso ao estádio o fluxo de pessoas alterou-se bastante, quanto mais próximo ao horário do jogo, menos pessoas com tíquetes passavam. A imagem da figura 4 foi realizada um pouco antes do início do jogo e a maioria das pessoas presentes na fotografia não entraram no estádio. Ao permanecer nesse canal de ligação entre o “Expresso Copa” e os portões de acesso Leste/Sul, observei dois tipos de torcedores: aqueles que passavam e iam diretamente para a festa dentro do estádio e aqueles que passavam, retornavam e ficavam na festa no entorno do estádio.

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Figura Torcedores no canal de acesso ao Estádio do Itaquera. Fonte: da própria autora

22 Dos torcedores que seguiam para entrar no estádio, muitas vezes, paravam e faziam fotos com aqueles que estavam mais próximos ou no seu caminho. Entretanto, nesse percurso do canal, o momento de tirar fotos juntos, cantar músicas em diversos idiomas e descobrir um pouco mais do outro foi uma experiência que envolvia muito mais as pessoas que não entraram. Muitos torcedores foram para aquele canal para ver pessoas diferentes, se sentir próximo a Copa, aparecer na televisão, ver de perto o que é essa festa e tantos outras motivações, como a minha: chegar o mais perto possível do Estádio do Itaquera no dia da abertura da Copa.

23 Andamos até o portão em que uma voluntária pronunciava: “Tíquetes na mão para seguir!”. Voltamos e achei estranho, vi que outras pessoas foram além daquele ponto, mesmo sem entradas. Na dúvida, perguntei a um policial que informou ser possível chegar até o estacionamento, mas existia a possibilidade da regra ter sido alterada no decorrer do dia e ao final da nossa conversa, sugeriu: “tenta ir, vai que consegue passar pela primeira checagem de tíquetes e ir até ao estacionamento”. A sugestão foi bem interessante por ser do policial, mas mesmo com ela, não conseguimos passar pela primeira barreira.

24 Ficamos duas horas nesse local, vimos muitas práticas diferentes e interações das mais diversas formas. Destacando-se os grupos de imigrantes do Haiti e Perú, ambos passaram pelo canal em grande quantidade, levando suas bandeiras e fazendo muitas fotos.

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Figura Torcedores haitianos e peruanos posando para foto. Fonte: da própria autora

25 A figura 5 mostra o local onde permaneceram. Nessa extremidade do canal, os imigrantes aos poucos foram se estabelecendo, muitos não se conheciam e nem mesmo falavam o mesmo idioma, mas ficavam ali e juntos. O portão de acesso ao estádio já não permitia subir até o estacionamento e nesse lugar ficamos sem grandes preocupações e identificamos algumas práticas do outro.

26 Aos poucos observei que alguns jovens que estavam sozinhos e muitas vezes, não se juntaram ao nosso lugar, principalmente aqueles do sexo masculino e, em sua maioria, negros, eram convidados a se retirar da festa no canal. Em alguns momentos os políciais pediram de forma bem sútil e em outros, principalmente em grupos maiores, eram expulsos de maneira menos velada.

27 Aos poucos percebemos que nesse local não se assistiria ao jogo, por isso resolvemos seguir em direção a Fan Fest no Vale do Anhagabaú, centro de São Paulo.

Os sem-tíquetes no sentido Fan Fest / Vale do Anhangabaú

28 O Vale do Anhangabaú recebeu as instalações da FIFA Fan Fest. Essa infraestrutura, realizada pela primeira vez na Copa do Mundo na Alemanha de 2006, tem o intuito de reunir pessoas para assistir aos jogos da Copa. A instalação envolveu uma grande área cercada, com uma estrutura de palco, um telão e portões de entrada e saída das pessoas. Além de assistir às partidas de futebol, aqueles que passavam pelo local também poderiam assistir a shows musicais. O evento era gratuito, mas na entrada havia uma revista das pessoas que limitava o porte de bebidas alcóolicas, garrafas, coolers, fogos de artifício, capacetes, armas, sprays, artefatos explosivos e outros objetos similares. Aberto das 10 até 24 horas, o local possuía policiamento intenso e apenas os patrocinadores podiam vender seus produtos.

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Figura Torcedores assistindo ao jogo na Fan Fest no Vale do Anhagabaú Fonte: da própria autora

29 Ao chegar, percebemos a revista realizada pelos seguranças privados no portão de entrada. Observei que algumas pessoas retornaram por transportar objetos proibidos, entretanto, nós não tivemos o mesmo problema. Passamos pela revista e por uma grande multidão de pessoas e fomos em direção ao telão, ou melhor, em direção aos espaços mais vazios. A partida acabava de começar e a única área mais vazia, não permitia ver a tela por inteiro. Ficamos todo o primeiro tempo, nós e muitos outros, assistindo ao jogo pela metade porque havia árvores que cobriam a tela.

30 Durante o primeiro tempo, observei que algumas pessoas estavam ali pela festa, para encontrar e conhecer outras pessoas, enquanto outras queriam ver o jogo e não conseguiam. Entre aqueles que buscavam ali a sociabilidade era possível ver novamente muitas trocas entre os estrangeiros e os brasileiros, mesmo sem haver um idioma em comum. Um grupo de adolescentes, jovens moças com idade entre 16 e 18 anos, chamou a atenção pelo interesse em saber de um escocês onde se localizava seu país, como era sua língua e outros costumes. Uma conversa que a princípio ocorreu pela paquera, aos poucos as curiosidades entre ambos, levou a muitas revelações que não somente as jovens desconheciam, como também o próprio rapaz. Ao final desse encontro, fizeram fotos e continuaram a conhecer outras pessoas.

31 Enquanto aqueles que queriam ver e estavam no local onde o telão inviabilizava a visão, ao final do primeiro tempo, saíram do local e foram para outros lugares. Novamente enfrentamos outra fila para sair do local juntamente com outras pessoas que não se identificaram com essa forma de assistir os jogos no FIFA Fan Fest.

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Da Fan Fest ao botequim na Praça da Sé

32 Da Fan Fest fomos em direção a Estação de metrô Sé em busca de um local para continuar acompanhando o jogo. Paramos em um bar na Praça da Sé que estava bem vazio e onde, durante o segundo tempo, chegaram tantos torcedores, que impediam a circulação na rua. Como estavam vazias, tal fato não acarretou nenhum problema.

Figura Torcedores assistindo ao jogo em um bar na Praça da Sé. Fonte: da própria autora

33 Sentamos em uma mesa que aos poucos se tornou coletiva. As pessoas começaram a se sentar juntas, mesmo sem se conhecer, à medida que chegavam outras ao bar. Nós dividimos a mesa com uma moça e um senhor, não houve muita conversa apenas comentários sobre o jogo. Ali todos ficaram em silêncio vendo e ouvindo a partida, em alguns momentos ouvia-se reclamações e via-se as caras de espanto. Em certo momento do jogo, até mesmo um ônibus que circulava durante a partida parou ao lado do bar e o motorista ficou vendo o jogo. Ao final da partida, o local esvaziou rapidamente. As pessoas que ali estavam foram em direção a estação de metrô e nós também.

O retorno para casa

34 Ao final do jogo na Praça da Sé, fomos correndo para estação da Luz de metrô para observar o fluxo dos torcedores que retornavam do estádio. Queríamos ouvir se vinham cantando e comemorando a vitória, se viriam rápido, ou não, e dentro do possível identificar quem eram as pessoas que assistiram a abertura da Copa dentro do estádio.

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Figura Torcedores na estação da Luz retornando para casa após o jogo. Fonte: da própria autora

35 O sentido inverso continua, agora vêm do Itaquera os torcedores que assistiram ao jogo dentro do estádio e vão para o Itaquera as pessoas que assistiram ao jogo no centro da cidade, ou mesmo, apenas retornavam do trabalho. O corredor do metrô na Luz viveu um momento de encontro muito diferenciado, torcedores do estádio e torcedores da cidade se encontraram e não se tocaram. Separados por fortes grades de ferro, ambas as multidões passaram pela Luz, mas cada um do seu lado e no sentido de sua casa.

36 A primeira família que passou no sentido Itaquera-Luz causou muito espanto. Havia uma criança, uma mulher, homens e 4 seguranças negros e bem grandes. Passaram rapidamente pelo corredor do metrô no sentido dos pontos de táxi; não os acompanhei, mas pelo horário que passaram por nós é possível dizer que saíram mais cedo do

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estádio, antes do término do jogo. Seguindo, começou a aparecer um volume maior de torcedores em ambos os sentidos e ao contrário do esperado, fizeram um grande silêncio.

37 Os torcedores em ambos sentidos voltavam para casa após a vitória do Brasil sobre o time da Croácia. Não havia cantos, nem versos e gestos comemorativos, a passos largos e, muitas vezes, rápidos que apenas demostravam o retorno para casa.

38 De um lado, identifiquei o fluxo de torcedores que voltavam de um dia de lazer e do outro, o fluxo era de torcedores-trabalhadores que voltavam de um dia trabalho com horário reduzido para assistir ao jogo. O deslocamento do primeiro envolveu sair cedo de casa indo em direção a Itaquera e depois o retorno ao final do dia. Os incluídos nesse percurso para participar desta prática de lazer representam uma minoria da população, enquanto o deslocamento no sentido contrário, daqueles que saíram cedo de Itaquera sentido Luz e voltam da Luz, ao final do dia, sentido Itaquera é maioria e fazem isso cotidianamente. Enquanto o segundo grupo contou com uma redução na frota de transporte público para se deslocar durante o jogo, fato este que prejudicou o cotidiano do seu trabalho, o primeiro teve preferência no deslocamento para realizar sua prática de lazer.

Algumas reflexões finais

39 A experiência de observar os deslocamentos durante a abertura da Copa na cidade de São Paulo identificou contradições, conflitos e formas de sociabilidades não cotidianas. Esses deslocamentos refletem o cenário de desigualdade social da sociedade brasileira em um contexto de megaevento internacional. Ao mesmo tempo em que na Fan Fest, nos bares, nos arredores do estádio as sociabilidades entre as pessoas quebravam barreiras sociais, ao entrar no “Expresso Copa” e nos corredores e saguões da estação da Luz a segmentação é evidenciada. Compreendo os significados da Copa do Mundo na vida cotidiana dos torcedores que preparam sua casa para receber amigos, ou se encontram em bares, ou trocam figurinhas ou fazem suas apostas, e tantas outras práticas de lazer em torno desse evento, entretanto, não corroboro com os processos de espetacularização do futebol promovidos pela Copa do Mundo.

BIBLIOGRAFIA

FRÚGOLI JR., Heitor. 2012. “Dossiê Luz, São Paulo, Introdução”. Ponto Urbe v.11.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. 2009. “Etnografia como prática e experiência”. Horizontes Antropológicos n. 32, pp. 129-156.

SIMMEL, Georg. 1997 [1903]. “A metrópole e a vida do espírito”. In: C. Fortuna (Org), Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de sociologia. Celta: Oeiras. pp. 31-44.

TOLEDO, Luiz Henrique. 2012. “Notícias de Itaquera: questões urbanas em torno do espetáculo futebolístico”. 36º ANPOCS, Águas de Lindóia, outubro de 2012.

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NOTAS

1. Os referidos transportes públicos e coletivos foram algumas das políticas públicas propostas anteriores a Copa para garantir com segurança o tráfego de pessoas e cargas durante o evento, nem todas foram alternativas elaboradas para todas as sedes do evento e algumas ainda, não se efetivaram. 2. O trabalho de Luiz Henrique de Toledo (2012) que apresenta um relato sobre a construção do estádio em Itaquera mostra narrativas de atores sociais envolvidos nesse processo. Dentre eles é relevante para minha observação relatos que repudiam a construção do estádio em Itaquera alegando problemas de deslocamento em dias de jogos. 3. Paul Hecker é pesquisador com interesse no trabalho informal e nos processos de formalização do trabalho no Brasil. 4. Maiores informações da região da Luz encontram-se no “Dossiê Luz”, organizado pelo professor Heitor Frúgoli Jr. (2012). 5. A atitude blasé é uma das categorias que Simmel (1903) define para debater a condição de vida nas metrópoles. Resultante da metropolização, a atitude blasé se constitui da “incapacidade de reagir a novos estímulos com as energias adequadas” (Simmel 1997 [1903]: 35).

RESUMOS

Em março de 2014 o NAU - Núcleo de Antropologia Urbana da USP – São Paulo, propôs incursões etnográficas com a finalidade de acompanhar a Copa do Mundo de Futebol no Brasil. Cada pesquisador (a) que integrou a proposta fez incursões pela cidade de acordo com seu interesse de pesquisa e assim, alguns(mas) agiram individualmente e outros (as), em duplas, trios e grupos. No momento, como pesquisadora visitante integrei-me à proposta com intuito de observar os deslocamentos dos citadinos no dia da abertura da Copa do Mundo em São Paulo. As reflexões das (não) regularidades dessa prática em dia de megaevento me levaram a escrever o seguinte relato. Acompanhei o deslocamento de citadinos que iriam assistir ao jogo dentro do estádio do Itaquerão e também, daqueles que ficaram fora dele. Minha experiência etnográfica manteve o foco nos percursos daqueles que assistiram ao jogo dentro do Itaquerão; o contraponto do relato é constituído pelo deslocamento daqueles que assistiram ao jogo fora do estádio, ou seja, que realizaram o percurso como o outro.

In March 2014 the Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) proposed short ethnografic study trips to the Football World Cup in Brazil. Each researcher that took part in this proposal made short trips through the city in accordance to his or her research interest and thus, some made individual trips and others went on in doubles, trios or groups. At the moment, as a visitant researcher I took part in this proposal with the intuition of observing the differences in transportation and locomotion of the city’s inhabitants on the day of the World Cup opening in São Paulo. Reflecting on the practices (none) regularities during a mega event lead me to write this report. I accompanied the locomotion of the audience that would watch the game inside the Itaquerão Stadium on their way to the premise as well as of those that stayed outside. My ethnographic experience maintained its focus on the trajectory of those who watched the game inside the Itaquerão; the report’s counterpoint consists of the locomotion of those who watched the game outside the stadium, that is, who realized the trajectory as the other.

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AUTOR

CAROLINA GONTIJO LOPES

Doutoranda em Sociologia – Cidades e Culturas Urbanas Centro de Estudos Sociais (CES) - Universidade de Coimbra (UC) [email protected]

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Quando o Centro é Itaquera: relatos de múltiplas Copas

Giancarlo Marques Carraro Machado

Apresentação

1 “Não vai ter Copa!”. O esbravejo exaltado de uma parcela da população tomou conta dos protestos contra a FIFA e os poderes públicos. “Copa para quem?”, um questionamento mais ponderável, mas não menos contestador, também figurou na indignação popular que colocou em xeque o legado do maior espetáculo futebolístico. Uma considerável parte do encanto da Copa do Mundo de Futebol se diluiu antes mesmo de seu começo. O futebol traz à tona uma série de questões que vão muito além das quatro linhas: gastos exacerbados, corrupção, especulação imobiliária, soberania nacional, articulações políticas etc.

2 O Núcleo de Antropologia Urbana (NAU), com a intenção de acompanhar os múltiplos processos que repercutiram a partir dos jogos da Copa do Mundo na cidade de São Paulo, mobilizou-se para fazer expedições etnográficas que contaram com a participação de inúmeros pesquisadores, os quais conjuntamente partilharam das mesmas situações e produziram relatos construídos a partir de olhares distintos.

3 Com a Copa do Mundo em andamento, o Prof. Dr. José Guilherme Magnani propôs uma expedição à região de Itaquera, Zona Leste paulistana. Pesquisadores do NAU e discentes da disciplina “Dimensão Cultural das Práticas Urbanas” (PPGAS/USP) foram convidados a participar dessa atividade coletiva que percorreria três locais pré- selecionados, a saber: o estádio Itaquerão, o SESC Itaquera e a Ocupação “Copa do Povo”. Vislumbrava-se, com efeito, observar os impactos do megaevento em três lugares que, apesar de se situarem próximos, possuem diferenças que se expressam na produção de discursos, formas de sociabilidade e apropriações da cidade.

4 Este presente relato visa apresentar algumas considerações pessoais a partir da minha participação na mencionada expedição etnográfica, ocorrida no dia 14 de junho de 2014.

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A cidade e os seus tapumes

5 Estação Vila Madalena do metrô, 9 horas da manhã. Encontro Rodrigo Chiquetto, pesquisador do NAU, para irmos juntos à Zona Leste. Da linha verde para a linha amarela para, então, pegarmos a linha vermelha com destino à estação pretendida: Arthur Alvim. Não tenho familiaridade com todas as estações dessa linha, mas, com a realização da Copa do Mundo, percebi que era quase impossível ficar confuso quanto ao trajeto até Itaquera. Havia placas em vários locais que indicavam a melhor maneira de se chegar ao Itaquerão (também chamado de “Arena de São Paulo” para o evento da FIFA; de “Arena Corinthians” pelo time da casa; ou, de forma jocosa, de “Gambazão” pelos torcedores rivais). Em pleno sábado de manhã, ao contrário do que esperava, o trajeto de metrô foi realizado com certa tranquilidade em vagões relativamente novos, que acomodaram, ao menos no período em questão, os passageiros que iam em direção ao novo centro futebolístico paulistano.

6 Aproveitei o deslocamento para observar pelas janelas algumas transformações que a Copa do Mundo propiciou ao caminho entre a região central da cidade e a Zona Leste. Esse meu anseio foi frustrado por algo inesperado: vários tapumes foram colocados ao longo do trajeto entre certas estações, o que impedia a visualização da paisagem urbana. Tal fato me deixou intrigado e logo me fez pensar na construção de uma São Paulo “para turistas ver”, com a ocultação de determinados espaços degradados e com a visibilidade estratégica de espaços “maquiados” a partir do investimento de grandes empresas, como a Nike, Brahma, Coca-Cola, dentre outras. Quando já não se via mais tapumes, apareciam inúmeros prédios com enormes grafites alusivos à Copa. Nas janelas dos apartamentos situados nas bordas da linha férrea imperava o verde e amarelo das bandeiras do Brasil. À proporção que o metrô avançava, o clima do megaevento se tornava cada vez mais envolvente. Se em outras regiões da cidade manifestava-se certo rancor futebolístico, ao menos em direção à Zona Leste parecia que sim, “vai ter Copa!”.

7 Chegamos à estação Arthur Alvim com alguns minutos de atraso. Passamos pelas catracas e seguimos em direção ao terminal de ônibus, onde encontramos o Prof. Magnani e seus alunos e alunas da pós-graduação. Com o grupo formado – aproximadamente 20 pessoas – seguimos as placas que indicavam um setor do Estádio Itaquerão. O trajeto foi feito a pé e iniciou-se pelas calçadas da Radial Leste. Nos conjuntos habitacionais da região, novos grafites gigantescos coloriam a paisagem e contrastavam com o tom cinzento característico de outras construções e equipamentos. Passamos por baixo de um viaduto, caminhamos mais alguns metros e finalmente chegamos a um dos portões do estádio, que estava fechado. Não tivemos acesso a esse espaço, que estava sob o total controle da FIFA. Optamos em prosseguir o trajeto até a outra entrada do estádio, situada nas proximidades da estação Corinthians-Itaquera do metrô.

8 Enquanto caminhava, dois policiais militares perguntaram se o nosso grupo era composto por estrangeiros. Fiquei receoso com essa abordagem, tendo em vista o aumento da truculência policial que se estabelecera na cidade nos últimos tempos. Disse a eles que éramos estudantes da USP, e que no grupo havia alguns “gringos” (um alemão, uma argentina, uma cubana e uma chilena), além de pessoas oriundas de outras regiões do país. Contrariando o meu temor a priori, os policiais foram muito simpáticos,

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me deram panfletos com várias dicas sobre o estádio e a região, e ainda se colocaram disponíveis para eventuais orientações. Agradeci a gentileza e lhes desejei um bom trabalho.

Diante os portões fechados do Estádio Itaquerão

9 O fluxo de pessoas na estação Corinthians-Itaquera do metrô era mais intenso que o da estação Arthur Alvim. A partir de tal local foi possível chegar rapidamente ao estádio Itaquerão, o qual se impõe na paisagem em razão de sua magnitude. Apesar de ter sido a minha primeira visita à região, foi possível perceber que a construção do estádio trouxe uma série de melhorias – e também transtornos – para Itaquera, agora completamente transformada para receber os milhares de turistas presentes na cidade para acompanhar os jogos da Copa do Mundo.

10 O estádio tornou-se a principal atração turística da Zona Leste. Não aconteceu nenhum jogo no dia da realização da expedição etnográfica ora relatada, e, mesmo assim, encontrei muitas pessoas circulando pelo entorno com a intenção de ver o espaço que serviu como palco de abertura do megaevento. Camisetas verdes e amarelas, de seleções internacionais, de times brasileiros: Itaquera se rendeu ao futebol. Prossegui a caminhada rumo ao estádio com a expectativa de ver o seu interior. Observei duas evangélicas que distribuíam panfletos com mensagens religiosas. Vendedores ambulantes, que diziam ser credenciados, vendiam churrasquinhos, bebidas, picolés, salgadinhos. Os preços não eram exacerbados. Uma garrafa de água mineral, por exemplo, custava R$2,00, valor mais em conta comparado ao cobrado em várias “padocas” da Zona Oeste.

11 Em frente aos portões do estádio (que estavam fechados) havia um considerável número de pessoas que se aglomeravam para tirar fotos. Elas se reuniam com bandeiras e artefatos alusivos à seleção de seus respectivos países. O grupo formado por colombianos era o mais expressivo e animado. Os presentes tiravam muitas fotos e entoavam cantos que comumente faziam nas arquibancadas. Pessoas de distintas nacionalidades também queriam tirar fotos com esses colombianos, que eram simpáticos e pacientemente posavam com todos. Em um dado momento observei a junção dos mesmos com chineses, nigerianos e brasileiros. No local também havia chilenos e uma mulher grega. Uma senhora idosa vestia vários acessórios com referência ao Corinthians, o “time da casa”. E, ao lado de um jovem, zombava dos estrangeiros e até mesmo dos brasileiros, e dizia repetidamente que “Aqui é Corinthians!”. A filiação clubística, nesse caso, superava a torcida pela seleção nacional.

12 O grupo de pesquisadores não permaneceu por muito tempo em frente ao estádio. Embora a ocupação espontânea por parte dos turistas, o local não oferecia muitos atrativos para quem o visitasse. Voltamos para a estação Corinthians-Itaquera, onde havia um túnel repleto de enfeites, mensagens e propagandas da Coca-Cola. Após descermos uma escada, atravessamos a Radial Leste e fomos para a estação de ônibus. Esse rápido percurso possibilitou-me ver diversas viaturas e policiais militares.

13 Já na estação pegamos um ônibus com direção ao SESC Itaquera. O trajeto ficou marcado por uma série de contrastes. Após visualizar toda beleza estratégica dos arredores do Itaquerão, adentramos por ruas com muitos comércios e moradias populares. Grafites em várias paredes enalteciam a realização da Copa do Mundo. Bandeiras brasileiras e corinthianas adornavam automóveis e casas de uma região onde

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a Copa do Mundo deixou o seu legado (para o bem ou para o mal). Chegamos ao SESC Itaquera depois de encarar o transporte público lotado.

Dribles no SESC Itaquera

14 O percurso entre o metrô e o SESC Itaquera foi feito de modo relativamente simples, tendo em vista que o ônibus possui uma parada em frente ao destino pretendido. Regiane, funcionária da instituição, facilitou a entrada dos pesquisadores ao local. Após a equipe passar pela entrada (onde peguei a programação “SESC na Copa”), todos os presentes foram em direção a um espaço onde estava hospedada a exposição “Drible”.

15 O SESC Itaquera é a segunda maior unidade – em termos espaciais – da cidade de São Paulo, perdendo apenas para o SESC Interlagos, localizado na Zona Sul. Em razão de sua extensão, é comumente denominado de “unidade campestre” por ter algumas características que o distingue dos demais, como muitas árvores, lagos, gramados etc., o que propicia certo clima bucólico a tal lugar, assemelhando-se a um amplo parque. E por falar em parque, é importante mencionar que o SESC Itaquera possui o maior parque aquático da instituição, com piscinas que comportam simultaneamente milhares de pessoas.

16 Através de uma considerável caminhada foi possível avistar os vários tipos de espaços de lazer: parquinho infantil, sala de jogos, sala de internet, quadras de futebol, tênis, vôlei, dentre outros. Os espaços mais cheios eram as quadras, onde adolescentes e jovens praticavam seus esportes prediletos. Chegamos ao espaço da exposição e permanecemos durante um breve tempo do lado de fora, onde constavam algumas fotos e banners com referência ao futebol e a Copa do Mundo. Também havia um táxi amarelo – que fazia parte da exposição – com as portas abertas e som ligado. As pessoas entravam nele para ouvir histórias e causos do universo do futebol.

17 A exposição “Drible”, conforme informações de um jornal distribuído aos visitantes, pretendia “refletir sobre as características culturais que influenciam o jeito brasileiro de jogar futebol”. A sua cenografia apresentava imagens de grandes dribladores brasileiros, quadros, pôsteres, vídeos, e também reconstituía espaços de sociabilidade onde temas pertinentes ao futebol são debatidos, como um botequim e uma barbearia. Um dos espaços mais disputados eram os pebolins. Diversas crianças se reuniram em torno deles para jogar partidas acirradas. No instante em que presenciei tais partidas, constatei que uma garotinha vencia com facilidade todas as demais crianças oponentes.

18 Após conhecer a exposição, o grupo de pesquisadores foi almoçar no restaurante do SESC, cujos valores cobrados variavam de acordo com determinadas categorias de usuários. Eu não sou associado à instituição, portanto, paguei o valor mais caro (em torno de R$20 o quilo da comida). O local não estava cheio, fato que nos proporcionou fazer a refeição com tranquilidade. Em seguida, Regiane procurou o contato de um representante da ocupação “Copa do Povo”, que se disponibilizou a buscar os participantes da expedição etnográfica. Enquanto o transporte não chegava, todos resolveram subir a pé a ladeira que dava acesso à saída.

19 Alguns minutos após uma lenta caminhada, finalmente chegou Rodrigo, que nos levaria à ocupação. Entramos em uma espécie de furgão pela porta traseira. Os pesquisadores se acomodaram da melhor forma e não se incomodaram com o pouco espaço disponível. O trajeto entre o SESC e a ocupação foi bem curto. Funk ostentação deu o

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tom musical a essa carona recebida. O professor Magnani aproveitou a ocasião para dar alguns informes aos seus alunos da pós-graduação. Regiane não pôde nos acompanhar nessa etapa da expedição, pois teve que ficar no SESC em virtude de seus compromissos profissionais.

Seguindo as trilhas da ocupação “Copa do Povo”

20 O furgão chegou à ocupação “Copa do Povo” por volta das 14 horas. Ele foi estacionado em uma espécie de pátio principal, onde aconteciam as reuniões e onde havia uma quadra de futebol improvisada. Todos os pesquisadores entraram em um barraco para conhecer algumas lideranças locais. Fomos muito bem recebidos por Serginho e Zezito, que relataram o histórico da ocupação e das ações do MTST em bairros periféricos. Após os relatos abriu-se um espaço para perguntas. Foram feitos vários questionamentos sobre o cotidiano da ocupação, da relação com a vizinhança, das articulações políticas, do impacto da Copa do Mundo na região, dentre outros aspectos. As lideranças adotaram um tom político moderado em relação ao megaevento, e diziam não ser contra o mesmo, mas apenas críticos à forma como os investimentos estavam sendo feitos.

21 Os pesquisadores saíram do barraco e foram para a quadra. Diversas crianças jogavam bola, ao passo que alguns adultos as observavam. Bruno, um jovem morador com participação ativa nos rumos políticos da ocupação, colocou-se à disposição para nos mostrar todo o local. Guiados por aquele que conhece todas as trilhas – forma como os caminhos entre as barracas são chamados – iniciamos uma caminhada com a intenção de melhor entender as apropriações de um espaço que até então estava sendo vítima da especulação imobiliária.

22 Conforme caminhávamos, Bruno revelava detalhes sobre a disposição das barracas no interior da ocupação. Segundo ele, cada uma é identificada com um número, e, em conjunto, formam um determinado grupo. A ocupação possui oito grupos, que se dividem por todo o espaço apropriado. Cada qual conta com uma cozinha e um espaço de sociabilidade, onde são promovidos encontros entre os moradores e onde também são discutidos assuntos pertinentes ao cotidiano da moradia. Antes de levar os pesquisadores aos demais espaços, Bruno disse que precisava passar em sua “mansão”: uma pequena barraca de lona, com um colchão e poucos apetrechos. Em seguida paramos na cozinha do G1 (primeiro grupo) e lá conhecemos Dona Brasília, uma simpática senhora que demonstrava sua fé em Deus para conseguir uma residência. Ela falou do funcionamento da cozinha comunitária, dos horários das refeições, de como os mantimentos são obtidos etc. E também nos levou ao seu “apartamento”, forma como ela se referiu à sua barraca, cujo espaço era mais aconchegante se comparado aos demais.

23 Bruno relatou que a participação na ocupação pressupõe o ingresso em atividades em prol da coletividade. Ele, por exemplo, atua como segurança no período noturno. Essa função lhe exige transitar por várias trilhas para verificar se não há nada de errado com as barracas. É preciso apaziguar conflitos e ficar atento com certas ocorrências (como velas ou fogueiras que, se esquecidas acesas, podem causar um incêndio). A ocupação ainda não possui eletricidade e rede de esgoto e, malgrado essas precariedades, os moradores tentam usar a criatividade para tornar o habitar menos penoso. Caminhar pelas trilhas estreitas pode parecer confuso, mas, ao atentar para pequenos sinais, é

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possível notar que os moradores utilizam referências que facilitam as suas respectivas localizações. Há bandeiras (não só do MTST, mas do Corinthians e do Brasil, por exemplo), garrafas pet, e outros acessórios pendurados em barracas. Creio que esses objetos podem auxiliar aqueles que ainda estão se acostumando com a vivência em tal contexto, diminuindo o risco de ficarem perdidos.

24 Após conhecer a cozinha do G1, fomos para a do G2, G5, G6 e G8 respectivamente. A maioria delas possui uma infraestrutura melhor que a das barracas, pois são feitas de madeiras (e não lona) e algumas possuem telhados de amianto. As cozinhas configuram centralidades em uma ocupação que, a princípio, aparenta ser caótica e desordenada. Embora cada uma corresponda a um grupo (o que pressupõe a distribuição de um número limitado de refeições), as pessoas circulam por entre elas, onde é possível ficar a par das “fofocas” e dos demais acontecimentos da “Copa do Povo”. Com efeito, essas cozinhas são espaços que possibilitam a manutenção de vínculos com base na localização da barraca, ao passo que também contribuem para a ampliação de redes de relações ao permitir o encontro entre pessoas provenientes de outros grupos. Isso revela, pois, um importante aspecto da dinâmica relacional do lugar visitado.

25 Na cozinha do G5 fazia muito calor, visto que o teto ainda era de lona. A cozinheira deste espaço estava no local havia quase um mês. Ela dormia na própria cozinha, em um colchão fino debaixo da mesa. Já a cozinha do G6 me chamou a atenção por se situar em um espaço arborizado, com bancos de madeira ao redor, incluindo ainda uma área para fumantes. Também percebi que os banheiros são improvisados, com sanitários masculinos e femininos. Finalizamos o trajeto no interior da ocupação na cozinha do G8. Bruno conhecia praticamente todos os habitantes e sempre era muito cordial com todos. Na área externa da última cozinha visitada – um amplo espaço cuja vista permitia ver boa parte de toda a ocupação – acontecia um churrasco promovido por vários jovens. Todos foram simpáticos conosco, inclusive, nos ofereceram carnes e bebidas. Enquanto acontecia o churrasco, alguns artistas faziam grafites com frases que questionavam a realização da Copa do Mundo.

26 Após um tempo nesse local (onde havia crianças, jovens e adultos), retornamos por um sinuoso caminho até o espaço central da ocupação. O prof. Magnani e todos os pesquisadores se despediram de Bruno e agradeceram-lhe pela recepção, pela atenção e pelo apoio nessa caminhada proveitosa que revelou o cotidiano daqueles que lutam por melhores condições de moradia. Saímos da ocupação e fomos para o ponto de ônibus mais próximo. O trajeto até o metrô Corinthians-Itaquera demorou em torno de 20 minutos. Ao chegar a tal local, o grupo de pesquisadores se dispersou. A expedição etnográfica terminou por volta de 16h30min.

Considerações finais

27 A expedição etnográfica percorreu três lugares da região de Itaquera: o estádio Itaquerão, o SESC Itaquera e a ocupação “Copa do Povo”. Apesar das diferenças evidentes entre os mesmos, o futebol e a realização da Copa do Mundo trouxeram questões que perpassam os discursos e a atuação de cada um. O estádio Itaquerão estava sob comando da FIFA, logo, todo o seu entorno seguia regras provisórias que estavam sujeitas aos interesses da confederação de futebol, a qual se tornou motivo de polêmica e protestos em nosso país em virtude de seu posicionamento que não levava em conta os anseios populares. Já o SESC Itaquera, importante equipamento de lazer frequentado

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por muitos moradores da Zona Leste, elaborou toda a sua programação de modo a contemplar a realização do megaevento futebolístico. O foco da instituição, conforme evidenciando no caderno “SESC na Copa”, era “entender a Copa do Mundo no Brasil como um momento propício para refletir sobre o futebol, e valorizar os aspectos culturais nele presentes, como possibilidade de desenvolvimento de pessoas e comunidades”. Por fim, a Ocupação “Copa do Povo” colocou em xeque os legados que o maior espetáculo do mundo estava promovendo em nosso país. Ao deslocar a proeminência da FIFA para o povo, o MTST adquiriu visibilidade por se apropriar de um terreno em uma região agora mais valorizada (Itaquera) e por tocar em questões que o próprio universo futebolístico impõe para além dos gramados, como, por exemplo, o direito à cidade e à moradia.

28 A experiência coletiva de trabalho de campo foi muito produtiva pois promoveu múltiplos olhares para lugares e situações presenciadas simultaneamente por um corpo de quase vinte pesquisadores. Embora a rápida permanência em tais contextos, é válido esse esforço conjunto de troca de impressões, ainda que levando em conta os interesses pessoais e de pesquisa de cada um dos presentes. Por fim, a Copa do Mundo proporcionou um frutífero debate político em torno das apropriações da cidade que deve ser encarado com rigor por nós, antropólogos urbanos. Prestemos atenção, pois, nesses embates, articulações e mediações que se dão entre as várias frentes envolvidas com a realização da Copa do Mundo.

AUTOR

GIANCARLO MARQUES CARRARO MACHADO

Doutorando em Antropologia Social / USP. Pesquisador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU). [email protected]

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Entre belgas, brasileiros e simpatizantes: etnografia de uma torcida eventual

Oliver Van Sluys Menck

1 Domingo, dia 22 de junho de 2014, 13 horas. Segundo jogo da Bélgica na Copa do Mundo 2014, válido pela primeira fase da competição, contra a Rússia. Fui acompanhar o jogo no bar Belga Corner (um dos dois bares apresentados pelo Consulado Belga em São Paulo, como ponto de encontro dos belgas em São Paulo para acompanhar o jogo). Como o bar era no Itaim (moro no Rio Pequeno), saí de casa por volta das 11h20.

2 Para minha sorte, assim que entrei no ônibus, ainda na Corifeu, notei uma mulher loira que conversava em português com forte sotaque. Tímido, escutei um pouco a conversa, ela era belga e estava indo exatamente para “um bar belga no Itaim”, tive quase certeza de que ela faria o mesmo trajeto que eu. Fui falar com ela ao trocarmos de ônibus na Vital Brasil. Assim conheci Greet, uma belga de Gent, que mora há dois anos em São Paulo - próxima à entrada de pedestre “da banca de frutas” - e faz seu pós-doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Abordei-a perguntando se era belga, “agora não dá pra esconder, né? Você também é?”. Disse que não, que sou terceira geração de belgas no Brasil, mas quase não tenho contato com família “de lá”. Apesar disso, morei em Liège em 2013 e estava a caminho do Belga Corner para torcer pelos “diabos vermelhos” e para (tentar) fazer uma etnografia junto a essa torcida. Acho que ela só prestou atenção no “torcer pelos diabos” e logo me perguntou porque não estava “nem com uma peça de roupa em amarelo, vermelho...?”. Tinha esquecido ao sair de casa, respondi, mas cabe ressaltar que, de fato, uma boa parte da torcida reunida no Belga Corner não veste algo que remeta ao futebol belga. Ao invés disso, usam-se, simplesmente, camisetas que tenham pelo menos uma das cores da bandeira belga.

3 Ao meio-dia estávamos no cruzamento da Rebouças com a Faria Lima para pegar um terceiro ônibus que nos levasse até algum lugar próximo ao bar. Greet estava um pouco perdida e nervosa, me disse que não saía muito da região da USP e por isso não conhecia bem São Paulo, “é tudo muito longe, e muito tempo pra chegar”. A diferente percepção do espaço e do tempo (sobretudo o gasto com deslocamento) é diretamente

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ligada à gigantesca cidade de São Paulo e ao pequeno país que é a Bélgica. Sugeriu que fossemos a pé. Recusei essa opção, logo passaria um ônibus que nos deixaria a 500 metros do bar, no início da 9 de Julho. O ônibus chegou e entramos nele. Ela ria de seu nervosismo e me disse que não se acostumaria nunca com as distâncias em São Paulo, que se não demorasse 5 minutos andando até o ICB trabalharia em casa. Ao descermos do ônibus, reparou em meu caderno e me perguntou “porque você trouxe um caderno pra ver um jogo de futebol?”. Repeti o que havia dito sobre a etnografia, o que arrancou risos dela e um comentário irônico, como se lesse minhas anotações: “Foi gol. Os belgas gritaram. Eles cantam”. Ri também “é mais ou menos isso, mas com um pouco mais de atenção... e detalhes”. Contei que durante o ano que morei em Liège estive realizando um trabalho de pesquisa parecido com os Inferno 96, torcida organizada do Standard de Liège, e que isso me familiarizara um pouco com a(s) forma(s) de torcer na Bélgica.

4 Ao chegarmos ao bar, passou por nós um carro bastante chamativo. Decorado para a Copa do Mundo, as calotas estavam pintadas de verde e amarelo neon e os retrovisores e janelas tinham bandeirinhas do Brasil, o capô do carro, por sua vez, vestia uma enorme bandeira belga. Greet: “É de uma amiga minha, belga, Silvie. Já vi o carro em Mogi, fomos lá pra ver um treino [da seleção belga]”. Em frente ao bar, ela me apresenta a quatro amigos seus que me cumprimentam em flamengo achando que sou belga. Sem entender nada, me apresento em português. Greet adiciona que sou descendente de belgas, que morei em Liège. “Você fala 'liégeois', então?” me pergunta Peter repetindo uma piada comum sobre o forte sotaque da região onde morei, todos riem. Como o jogo ia começar logo, as equipes entravam em campo, entramos nós também, no bar. Eles tinham uma mesa grande reservada e me chamaram para assistir junto deles, embora o bar não tivesse mais cadeiras.

5 Instalados à mesa e acompanhando a transmissão da Rede Globo, começou a tocar o hino belga em flamengo. Enquanto uma parte da mesa cantava de forma entusiasmada em flamengo (essa parte era majoritariamente masculina, as poucas mulheres que acompanhavam demonstravam nítida timidez, se entreolhando como se temessem fazer muito barulho), três moças cantarolavam qualquer coisa em qualquer ritmo rindo entre si. Eram a mulher e a filha de Peter, com uma amiga delas, as três não falavam (ao menos naquele momento) nenhuma das línguas oficiais da Bélgica e se divertiam com esse pertencimento um pouco distanciado à torcida belga. Esse humor era bem aceito e não era hostil, longe disso, elas compunham a torcida de forma irreverente. Tanto compunham que acompanharam as palmas entusiasmadas para duas figuras que apareceram no telão. Greet fez questão de virar para mim, excitada, e explicar: “são o rei e a 'reina'”.

6 A monarquia não é pouca coisa na Bélgica, nem no Belga Corner. Não somente a coroa belga está no toldo do bar e no uniforme dos trabalhadores como a sinalização do banheiro masculino e feminino é feita com fotos (de gala, provavelmente divulgadas por veículos oficiais), respectivamente, do rei e da rainha. Outra referência era feita na decoração interna do bar, uma bandeira belga erguida na parede com o perfil do atual rei e de seu pai sobrepostos em amarelo e vermelho no terço preto da bandeira; já no terço amarelo (o central na bandeira) há um brasão cujo topo é a coroa belga e no meio lê-se “Albert II / Filip” sobre a data 21 – 07 – 2013. Esta data é a de uma festa anual, a festa da Bélgica, e neste ano de 2013 foi o dia escolhido por Albert II para abdicar de seu trono em nome de seu filho alegando incapacidade de seguir na função devido à sua

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idade avançada; esta atitude foi, na época, razão de certa comoção nacionalista no pequeno país.

7 Quanto ao resto da decoração, o bar segue uma estética “sóbria” recorrente em bairros abastados da cidade, como o Itaim. Paredes de tijolo, piso, mesas, cadeiras e balcão de madeira. A decoração colocada para acompanhar a Copa do Mundo fazia referência à Bélgica e ao Brasil. Pequenas bandeiras destes dois países estavam dispostas como bandeiras de festa junina. Ainda havia a decoração permanente do bar, estantes com garrafas de cerveja, com alguns livros e quadros e com letras de madeira onde podíamos ler “Belga Corner”. Havia três pequenas estátuas de anões de aproximadamente 50 centímetros nas cores da bandeira belga, um dos símbolos recorrentes no turismo da cidade de Bruxelas.

8 A organização do bar parecia a mesma de dias normais. As mesas, tanto no primeiro quanto no segundo andar, não tinham sido retiradas para o jogo, pelo contrário deveriam ser reservadas caso quisesse se sentar (felizmente, o grupo que eu acompanhava havia feito a reserva pois são clientes fiéis da casa). Do lado de fora, em uma pequena varanda no térreo e na calçada, um grupo de 30 clientes aproveitava que havia mais espaço, menos barulho e permissào para fumar. A única modificação aparente na disposição do espaço do bar (além dos telões) era que a varanda “dos fundos” (atrás do telão do térreo) ao lado dos banheiros estava inutilizada contando com duas melancólicas mesas vazias e uma bandeira do Brasil pendurada na parede.

9 O jogo começou e o pessoal da mesa de trás me pediu para sair dali, pois impedia a visão deles. Mudei de lugar e me agachei perto de Peter para conversar e acompanhar o que conseguisse do jogo no telão. Peter Puyneers é um belga de Tienen que mora no Brasil há 20 anos. Casado com uma brasileira, tem uma filha de 17 anos e pretende continuar por aqui. Sophie, a filha, não se enxerga de maneira alguma como belga, “nem falo francês, holandês, nada disso! Só 'tô lá no Belgian Club”. Seu pai, no entanto, faz questão de me falar que pensa em “mandar” ela para estudar por um ano na Bélgica, “como você fez”. Ela me olha com uma expressão que parece dizer “não dê ideias” e mudo rapidamente de assunto. Pergunto então sobre o Belgian Club. Trata-se de um clube, “organizado por mim”, diz Peter, que reúne “a colônia belga aqui de São Paulo, você deveria fazer parte. Fazemos festas, encontros, jogamos bola, bebemos cerveja, torcemos pros diabos... e somos simpáticos”. Após essa apresentação, ele ri bastante.

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10 Nesse momento, Greet me convida para ficar ao seu lado e acompanhar em pé o jogo, com visão melhor para o telão. Pulando algumas cadeiras, fico ao lado dela, espremido entre três cadeiras e a parede. O bar está bem mais cheio que no jogo anterior (uma terça-feira), embora não tenha subido para ver como estava o andar superior, somente no andar de baixo já havia umas 100 pessoas (entre o espaço interior e o exterior). Fora isso, a diferença era que instalavam uma televisão na varanda em frente ao bar para que pudessem acompanhar o jogo da varanda e da calçada.

11 Como a televisão estivesse sendo instalada durante o jogo, Sara, uma brasileira que morara três anos na Bélgica, reclamou do barulho da furadeira. Greet, ao seu lado, ri e diz “já são muito brasileiros aqui”. Sara é uma brasileira simpática e barulhenta, bastante animada em seu torcer individual, não torcia coletivamente deixando sua voz morrer quando mais pessoas começavam a cantar e não participando nunca de cantos “de tribuna”, chamados no segundo tempo. Nos momentos mais mornos do jogo, onde quase todos calavam, era ela quem fazia barulho, puxava cantos “simples e quase intuitivos” (como: “Va-í! Va-í!”, “Mais um! Mais um!”, “Olê-olê-olê-oláááááá Bélgicaaaa Bélgicaaa”), e reiteradamente reclamava “ninguém canta aqui. Vamos lá, gente!”. Outra coisa me chamou atenção em Sara: ela utilizava várias expressões em francês mesmo no meio de uma conversa em português com pessoas que não falam essa língua. Confesso que achei esse vício de linguagem um pouco pedante.

12 Ainda durante o primeiro tempo, em lance perigoso da seleção belga, me empolguei, como quase todo mundo no bar. E, vendo minha reação, Greet diz: “Dá pra ver que sua torcida é sincera, bem de coração”. Essa assertiva me causou bastante prazer, embora eu estivesse me desviando um pouco da observação etnográfica que estava fazendo. Respondo que tem a ver com “sempre ter gostado de futebol, sempre ter ido ao estádio”, o que é uma meia verdade. Prestando atenção na torcida em geral do bar, percebo que a maioria é composta por brasileiros (que também são os que faziam mais barulho, nesse momento em que, jogo empatado em 0 x 0, a torcida está mais ligada à expectativa criada por lances de jogo). No grupo em que me encontrava, éramos umas 20 pessoas, das quais 4 belgas e o resto brasileiros agregados ao grupo mas sem ter nada a ver com a Bélgica e sem nunca ter conhecido o grupo, como um casal de amigos brasileiros trazidos por Eliana, uma brasileira, para conhecer o bar. Éramos, a maioria, torcedores ocasionais, talvez por isso a falta de adereços que remetessem diretamente ao futebol belga.

13 Aos 30 minutos do primeiro tempo, vi pela primeira vez Marina e Helena, amigas minhas que moraram em Liège também durante 2013. Elas faziam sinais para chamar minha atenção para o outro lado do bar. Chamaram-me para dar uma pequena entrevista e aparecer na TV. Um pouco desinteressado, convido Greet que está ao meu lado, mas ela também nega o convite, “vim pra ver o jogo”. Quando termina o primeiro tempo, vou para fora encontrar essas duas amigas e ver se converso com outras pessoas.

14 Acabei conversando com elas e com duas pessoas que já havia conhecido. Um belga, Tjobbe, que há alguns anos já conhece o Brasil. É a terceira vez que vem pra cá, “dessa vez é para ficar”. Já havia vindo fazer um intercâmbio, uma segunda vez para estudar e, como começara a namorar, veio essa terceira vez para se casar e por aqui ficar, plano que funcionava até então. Contei que havíamos morado em Liège, o que o fez torcer o nariz (vinha da região de Charleroi, cidade vizinha que cultiva uma certa inimizade com Liège, inimizade expressa também no futebol) e se virar para conversar com o grupo

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que o acompanhava. Além disso, conversei também com Helena e Marina e com uma terceira mulher, também brasileira, namorada um belga, e que por isso estava lá. Elas falavam sobre se mudar para o exterior, “muito melhor do que aqui”, segundo Marina e Fabíola. Helena e eu discordávamos. De fora, víamos a janela do segundo andar onde, de tempos em tempos, apareciam dois homens loiros que cantavam para seus amigos, que tinham saído para fumar, em flamengo. Tentei filmar e fotografar, mas não consegui, na foto abaixo vemos uma bandeira vermelha terminando de voltar para dentro do bar. Marina me contou que eram um grupo superanimado de belgas que vieram só para ver a Copa, “você TEM que falar com eles”.

15 O segundo tempo começou e eu voltei para dentro do bar para ver o restante do jogo. A mesa estava bastante animada, o marido (belga) de Sara havia aparecido no telão. Ela também tinha ingresso, mas havia passado para um amigo ir junto do marido. Preferia ver o jogo “com as meninas” no bar : falando apontou para Greet, Eliana e uma amiga dela, turca, que visitava o Brasil (a maioria dos presentes à mesa também eram mulheres). Nesse momento, Peter e os outros belgas conhecidos do grupo, acompanhavam o jogo do balcão conversando entre si em flamengo. Perguntei sobre como estavam acompanhando a Copa. Alguns membros do Belgian Club haviam conseguido ingressos para todos os jogos da Bélgica, mas a maioria acompanharia do bar e iriam ao estádio somente no jogo contra a Coréia do Sul no Itaquerão (a maioria já tinha seus ingressos garantidos, outros esperavam e alguns poucos nem havia tentado).

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16 A seleção belga voltou melhor para o segundo tempo, a animação do grupo do andar de cima aumentava e contagiava o bar inteiro. Como algumas pessoas tinham se sentado, impedindo-me de voltar para onde estava antes, fiquei no balcão ao lado da mesa em que antes me encontrava. Saindo dos cantos em português, o grupo de Peter começou a puxar uma variação em inglês: “Olê-olê-olê-olêêêê, Belgiuuuuuum Belgiuuuuum”. Sophie e sua mãe, para zombar de Peter, tentaram sem sucesso sobrepor o canto em português, meio esparrado (sic), “olê-olê-oláááááá, Bélgicaaaaa, Bélgicaaaa”.

17 Um rapaz acompanhava os cantos em inglês e mostrava nítido nervosismo tentando pedir alguma coisa no bar. Puxei conversa em francês, tentando ajudá-lo. Chamava-se Pierre e vinha de Chimay (“como a cerveja”) e ficaria no Brasil por três meses, por isso o fraco português. Estava acompanhando o jogo com uma espanhola e um chileno que trabalhavam com ele. Fazia 20 minutos que tentava pedir três Jupilers e um suco de laranja, mas não conseguia nem chamar a atenção de alguém no bar. Reclamava da demora, relacionando-a diretamente à “bagunça brasileira”. Em 5 minutos, falei com o barman e resolvi o problema; longe da “bagunça brasileira” tratava-se de um simples problema de comunicação, pois não havia uma língua comum na qual se expressar, lembrei-o ainda de uma “bagunça de bares”, “em Liège, no Carré [bairro boêmio da cidade] é a mesma coisa”. Ele riu sem insistir.

18 No balcão, aproveitei para observar o cardápio do bar que estava restrito devido ao jogo e a grande quantidade de pessoas que aí se encontravam. Acompanhando o clima excepcional de encontro e comemoração, vendiam-se somente pratos e bebidas “típicos” da Bélgica e do Brasil. Para comer, todas as opções giravam em torno de 25 reais e podíamos escolher entre diferentes pastéis ou “pittas” (sanduíche no pão árabe com a mesma carne do churrasco grego, comida que atualmente se populariza na Bélgica como opção barata de lanche, é tida como algo que foi “trazido” nas últimas décadas pela imigração árabe para esse país) ou ainda uma porção de fritas com maionese (opção de lanche sempre ligada à nacionalidade belga). Para beber, além de água, suco e refrigerante (aos quais não prestei muita atenção), havia cerveja belga, brasileira e da casa. Para efeito de comparação com outros lugares, a garrafa das cervejas brasileiras (seja Brahma ou Original) custava 8 reais, já as cervejas belgas custavam por volta de 20 reais a garrafa de 330ml. A exceção das cervejas belgas era a

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Jupiler, marca que patrocina a seleção belga e a primeira divisão do campeonato belga de futebol (Jupiler Pro-League); a marca busca assim se associar a um futebol popular, de maneira um tanto machista (seu slogan é “Jupiler: os homens sabem porquê”). Esta é, na Bélgica, uma “cerveja de base” mais barata e popular, é para ser consumida em quantidade e sem grande cerimônia. Normalmente, não é vendida no Belga Corner, foi trazido um carregamento especialmente para a Copa do Mundo. Era de longe a cerveja mais vendida, ao preço de 8 reais a latinha de 330ml.

19 Com latinhas na mão e mudando para um assunto mais agradável, continuei conversando com Pierre, ele me disse que torcia para o Anderlecht, hoje o arquirrival do Standard de Liège (o time que adotei na Bélgica). Aproveitei então para experimentar e puxei uma música em flamengo, que acreditava ser própria ao Standard, “Waar is het feest? Heer is het feest!”. Para minha surpresa todos acompanharam... O canto continuou por algum tempo e logo mudou: “Tous ensemble! Tous ensemble! Eh-Eh!”. Eu também acreditava que este canto era do Standard, tanto mais que este canto está inserido no novo hino que o clube lançou em 2009 após o bicampeonato da Jupiler Pro-League (primeira divisão belga).

20 Nessa crença, ignorei, entretanto, que a dinâmica de cantos na Bélgica é fundamentalmente diferente da dinâmica aqui no Brasil, ignorei, por exemplo, que já tinha escutado, e estranhado, o refrão onomatopeico desse hino (“Eio-Póporeeeio! Pó- po-pó, pó-po-re-e-io!”) em jogos da seleção belga. Na ocasião em que ouvi esse trecho em um jogo da seleção, perguntei para alguns amigos se eram todos torcedores do Standard no estádio e me responderam que essa música havia ultrapassado em muito as barreiras clubísticas da Bélgica e havia sido sucesso nos clubes noturnos do país. Ao perguntar a Pierre, “Porque vocês estão todos cantando músicas do Standard?!” ele simplesmente me respondeu: “São músicas dos diabos! Não do Standard”. Esses cantos “de tribuna” tomaram conta do bar nos últimos 15 minutos de jogo, após o gol belga. O jogo acabou com a vitória belga, Pierre me pediu para tirar uma foto dele com seus amigos e aproveitei para tirar uma minha com eles também. Olhando a foto agora, percebo dois belgas que estavam “na mesa de trás” e que aproveitaram para aparecer.

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21 Fui ao banheiro e tive um desagradável encontro com uma brasileira. Ao entrar na fila do banheiro, a moça me parabenizou por ser “belga, mas não furar fila”. Fui seco, “não sou belga e não suporto esse tipo de colocação”. Ela claramente não esperava essa reação, e, ainda tentando me agradar, disse para um colega que a acompanhava, visivelmente constrangido: “Olha que branquinho, que bonito”. Para não ser mal- educado e evitando conflito, puxei conversa com seu colega sobre o próximo jogo da Bélgica. Logo chegou minha vez e fui ao banheiro sem me direcionar novamente à moça.

22 Voltando para a mesa onde estava o grupo ao qual me juntara, sentei-me conversando com Greet e Eliana. Eliana é uma brasileira que se aproximou do Belgian Club por causa de seu ex-marido, um belga com o qual foi casada por 12 anos (estão separados há 2 anos). Ainda assim ela continua frequentando as atividades do grupo, “adoro eles, 'tô sempre junto. Me sinto em casa, são um povo muito acolhedor”. Perguntei se já pensara em ir para lá, mesmo que antes da separação: “Jamais!”. Já Greet admitiu que quer voltar, que veio por um tempo para seu pós-doutoramento, mas que assim que esse termine e tendo uma oportunidade em uma universidade belga, voltará. O jogo terminara já havia meia hora e o grupo ia sair do bar. Após me ofereceram uma última cerveja que havia sobrado, convidaram-me para sair de noite e ir dançar, encontro que acabou não dando certo.

23 Fui para a varanda encontrar Marina e Helena. Qual não foi minha surpresa quando encontrei as duas lá fora conversando em francês cada uma com um belga, “do grupo animado lá de cima”, disse Marina. Com um pouco de resistência do rapaz, entrei na conversa de Stéphane e Helena. Ele me disse que veio somente para acompanhar a Copa do Mundo e visitar alguns lugares do Brasil. Ele ficaria três semanas aqui e seu amigo, duas; os roteiros incluíam as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Porto Alegre e Foz do Iguaçu (as três cidades do Sudeste receberam jogos da Bélgica na primeira fase, mas os dois torcedores não estariam in loco em nenhuma das ocasiões). A intenção era fazer turismo, acompanhando a festa da Copa do Mundo sem ir aos jogos. Logo fomos embora tendo trocado telefones com os dois belgas

AUTOR

OLIVER VAN SLUYS MENCK

Estudante de graduação: Bacharelado e Licenciatura em História, FFLCH / USP. [email protected]

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Dossiê: Novos olhares sobre o Rio de Janeiro

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Vários Rios: Paisagens, lugares e memórias...

Edlaine de Campos Gomes

1 O Rio de Janeiro é foco de análise de uma extensa lista de pesquisas, provenientes das mais diversas áreas. Sua paisagem é repetidamente acionada como valor cultural, entranhado no imaginário coletivo e, muitas vezes, utilizada como contraponto às mazelas da metrópole. Em 1º. de julho de 2012 se tornou a primeira cidade do mundo a receber o título da UNESCO de Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural (IPHAN, 2012). Paisagem e mazelas podem estar associadas ou dissociadas, dependendo por quem e para quem se constrói a narrativa sobre a cidade. Há certa homogeneização, pelo cenário que a comporta. Em um sobrevoo, abre-se a lente e, em perspectiva panorâmica, o “Rio continua lindo”, apesar da expressiva diversidade e desigualdade que, mesmo ao longe, estão lá, expostas ao olhar. Vale aproximar a lente, colocar outros óculos ou servir-se de vários deles, para problematizar paisagens, lugares, memórias desses diversos Rios.

2 Os temas dos artigos que compõem este dossiê estão interligados, não apenas pelo fato de as pesquisas terem sido realizadas a partir da perspectiva do Rio de Janeiro como ator, e não somente como cenário. A cidade passou e passa por transformações urbanas em toda sua constituição histórica, organizadas ou não pelo poder público. Trata-se de uma trajetória marcada por revitalizações, construções, demolições, remoções. Poderia escolher vários eixos de leitura para apresentá-los, como a metodologia adotada pelos autores, os olhares impressos na e da cidade, a produção de memória de pessoas, lugares e objetos, que interagem no processo de construção de identidades e paisagens locais. Os artigos possuem, cada um a seu modo, riqueza própria, capaz de instigar reflexões sobre os argumentos desenvolvidos pelos respectivos autores. Constituem olhares sensíveis sobre a dinâmica urbana, em seus distintos aspectos intercambiáveis. A cidade aparece polifônica, conflituosa, continuamente transformada e transformadora. Não é só cenário ou paisagem.

3 Para abordar esse processo de transformações, o texto de Alberto Goyena contribui para a reflexão sobre o complexo “mecanismo mnemônico de coletividades urbanas”, ao analisar a trajetória e de que maneira são tratados os resíduos arquitetônicos de

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edifícios demolidos. O desmonte parece ser o fim, mas o entulho, paradoxalmente, continua como o caminho de combate ao desaparecimento. Narra a presença de “garimpeiros urbanos”, atores sociais que fomentam a circulação desses materiais, dando prosseguimento e ressignificando seus usos e trajetórias. Na mesma direção, o relato etnográfico de Douglas Evangelista aborda a circulação e o consumo de objetos. O autor observa feiras de usados e antiguidades, que ocorrem no centro da cidade, denominadas shopping-chão. Aponta um complexo manejo e fluxo de objetos garimpados, inseridos em um circuito de trocas e classificações, além de interações marcadas por sua “proveniência duvidosa”. Estas também são afetadas pelas reformas urbanas atualmente em curso na cidade, particularmente na área central.

4 Neste mesmo contexto pode ser incluída a questão dos cinemas de rua, tema de Marcia Bessa e Wilson Oliveira, que estão em fase de resistência ao risco de extinção. No entanto, ao passo em que cada vez mais se ausentam da paisagem urbana do Rio, aparecem novos tipos de projeção na cidade, caso do fenômeno chamado live cinema, que utiliza equipamentos urbanos, como monumentos, prédios, muros, como telas. Tais inovações imprimem uma nova geografia e experiências concernentes ao lugar/hábito cinema. Os usos de alguns destes como tela é foco do debate empreendido por Christina Vital, que, a partir de imagens de cunho religioso impressas nos muros da Favela de Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, analisa projetos religiosos de cidade em contexto de disputa por espaço, memórias, fiéis. Há tensão social e religiosa. Aqui também nota- se uma geografia da cidade, demarcada pela arte efêmera urbana, como no caso dos novos tipos de projeção de imagens e seu potencial de extrapolar as salas de cinema, só que demarcada pelos grafites religiosos disseminados por vários locais da cidade. O tópico destruição (incluindo desmonte, descarte, circulação e agências) assume relevo, como nos artigos anteriores. Imagens de santos e orixás, em formato de estátua ou em pinturas/grafites, se deterioram com o tempo e, também, pela intolerância religiosa. São apagadas ou substituídas por orações, mensagens e imagens com temática bíblica.

5 No mesmo eixo da destruição pode-se incluir o texto de Júlio Bizarria, que aborda a remoção da favela do Morro do Pasmado, que se localizava em Botafogo, em pleno coração da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Em 1950, após os moradores serem retirados com seus pertences, ela foi destruída pelo “fogo controlado” providenciado pelas políticas de estado, que previa a extinção das favelas por meio da remoção de seus habitantes para conjuntos habitacionais longínquos. Há décadas não está mais na paisagem, considerada hoje como patrimônio, mas sua memória permanece, ainda que dispersa nas lembranças de seus ex-moradores e nas páginas dos jornais da época. Outro tipo de remoção é analisado por Nina Bitar. Aqui o Mercado Municipal da cidade do Rio de Janeiro emerge, no contexto de “revitalizações” que marcam a história da cidade. A remoção de mercados municipais para áreas afastadas dos grandes centros urbanos é apontada como prática comum em diferentes países. O “original” localizava- se na Praça XV, região central, e foi quase que integralmente demolido, em 1962, com a finalização do Elevado da Perimetral. Atualmente este está em processo de demolição, numa nova onda de reformas pela qual passa novamente o Rio de Janeiro. No mesmo ano, o Cadeg (Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara, hoje dedicado em grande parte ao mercado das flores, este nome permaneceu, mesmo após a criação do Estado do Rio de Janeiro, em 1975) – foco da pesquisa - foi inaugurado, mas somente em 2012 foi decretado como o “novo” mercado municipal. Localizado em Benfica, Zona

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Norte, próximo do centro da cidade. Com um novo processo de “enobrecimento”, hoje é valorizado, como integrante dos “pólos” gastronômico e turístico.

6 Renée Maia contribui ao debate, com a perspectiva das interações sociais implicadas na noção de hospitalidade no turismo, tomando como foco de análise a escolha por Santa Teresa. O bairro pode tanto ser apresentado em sua face aprazível, turística, artística e boêmia, como na figura do “perigo”, da insegurança e pobreza A produção de discursos é profícua e, muitas vezes, é possível identificar tensões e confluências entre versões locais e externas, positivas e negativas, sobre ele: “um lugar de artista, de drogado, de vagabundo, do marginal”, “um lugar da noite, da farra, da insegurança”. Entretanto, também, é visto como um oásis de tranquilidade dentro da metrópole, com características de cidade pequena: “aqui todos se conhecem”, “aqui ainda se pode contar com os vizinhos”, é “tranquilo”. Vale referir que ambos os perfis são afetados pelas intervenções e projetos urbanísticos promovidos pela gestão pública no decorrer dos anos, mas permanecem reproduzidos nas falas e percepções sobre o lugar, que também pode ser analisado como liminar, pois está situado no limite entre o Centro e a Zona Sul da cidade. Centro-periferia, morro-asfalto, deterioração-revitalização, são interfaces críticas, constantes em sua classificação, mencionadas em discursos variados, produzidos sobre o Rio de Janeiro.

7 Na seção “Outros Rios” constam um artigo e um ensaio fotográfico. Foram incluídos com o intuito de expandir a noção de Rio de Janeiro, já que não só a cidade recebe esse nome, mas também o estado. Da mesma maneira que objetos e grafites religiosos preenchem as ruas da cidade do Rio, uma procissão ganha as de Mauá, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Gaspar apresenta em seu ensaio fotográfico esta que, curiosamente, não é um evento católico, mas da Umbanda, realizada em homenagem a São Miguel Arcanjo, desde 1966. No registro da diversidade religiosa e ocupação do espaço público, discussão também empreendida por Vital, o ensaio coloca em evidência uma manifestação religiosa que exemplifica a complexidade e a riqueza do campo religioso brasileiro. Feiras, procissões, projeções, arte urbana, festas, mercados e objetos traduzem relações e interações sociais no espaço urbano. De certa maneira, estão no fluxo dinâmico das cidades, nos quais o efêmero e o duradouro estão em constante tensão. É neste sentido que André Monteiro analisa a conformação da prática festiva chamada Caninha Verde, em Vassouras (estado do Rio de Janeiro), cidade ligada, histórica e economicamente, ao Rio de Janeiro. Por meio de narrativas de praticantes da Caninha Verde, que envolve músicas e dança, são contextualizadas transformações e permanências nos espaços festivos e nas formas de sociabilidade locais.

AUTOR

EDLAINE DE CAMPOS GOMES

Docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Pesquisadora Associada do NAU-USP e Jovem Cientista do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). [email protected]

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Espólio Arquitetônico: partilha, circulação e retorno do patrimônio demolido

Alberto Goyena

Introdução

1 Que destinos são dados aos restos e fragmentos das habitações desfeitas? Quem negocia o espólio das nossas antigas residências, lugares de trabalho, escolas, hospitais, estádios, prisões, pontes, viadutos e patrimônios? No que se transformam? O que há nesse entulho que se acumula em caçambas coletoras nas esquinas das cidades ditas modernas? Que categorias sensíveis organizam a matéria que compõe esse resíduo, produto final das obras de demolição?

2 Nos arredores das fábricas urbanas de fundição de metais, há homens e mulheres carregando restos arquitetônicos em burros sem rabo. Como os terão adquirido? Em feiras de antiguidades, vendem-se troços e retalhos de fachadas, madeiras e telhas de demolição. Quem terá desviado o fluxo dessas peças para esses locais? E o que aconteceu com as outras, com suas semelhantes, em termos de um todo arquitetônico? Supomos que se encaminhavam para um lixão, aterro ou para as encostas de rios e baías, tornando-os um tanto mais rasos. Contudo, uma série de triagens, ancoradas em distintas sensibilidades, faz por vezes com que a matéria demolida ressurja, de forma tão imponderável quanto inusitada, no seio de uma nova construção arquitetônica. Que papel ocupam garimpeiros, garis e demolidores nessa determinação?

3 Embora a ideia de preservação, monumentalização e patrimonialização, seja correntemente oposta à da demolição, voluntária ou involuntária de estruturas arquitetônicas, certo é que ambas participam ativamente na elaboração de seleções e descartes que constituem os processos de transformação urbana. De fato, como veremos, o percurso do entulho é constantemente interrompido por triagens e desvios, contribuindo para a ideia de que o fluxo da matéria descartada vaza em todos os nós de seu processo de decomposição. São assim oferecidos renovados fragmentos tanto para a

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indústria da construção civil quanto para as feiras de antiguidades, agências e institutos do patrimônio.

4 Em recentes estudos antropológicos, a categoria patrimônio tem sido largamente debatida, proporcionando tanto pesquisas mais afirmativas a respeito da importância dos processos de preservação – postulando-os como intrinsecamente valiosos para a construção ou manutenção de identidades coletivas – quanto estudos mais críticos apontando para o caráter eminentemente seletivo – ou mesmo falseador, petrificador e desubstancializador – das iniciativas de patrimonialização1. Contudo, existem também abordagens mais agnósticas, para retomar a formulação de Christoph Brumann, que propõem uma suspensão das querelas sobre autenticidade e legitimidade dos patrimônios, em prol de uma retomada do trabalho etnográfico de seguimento dos materiais em seus fluxos de transformação. Também para antropólogos como Arjun Appadurai (1986), Bruno Latour (2008) e Tim Ingold (2013), estudos sobre cultura material ganham rendimento quando objetos são pensados como portadores de uma vida social e considerados sob uma ontologia que prefere os processos de transformação aos produtos finais, os fluxos e transbordamentos aos estados fixos da matéria. Com esse marco teórico em mente, acompanho aqui alguns processos de deslocamento e (des)valorização do espólio arquitetônico carioca2.

Incêndio no sobrado

5 Na tarde de quinta-feira, dia 18 de março de 2010, o Largo de São Francisco de Paula, na área central do Rio de Janeiro, estava repleto de gente apreensiva, observando, contemplando, rindo, lamentando e empunhando aparelhos fotográficos na direção de uma de suas laterais, aquela que dá acesso à Rua do Teatro. Não se tratava contudo nem da expectativa pela saída de recém-casados pelos portões da Igreja de São Francisco, nem de uma acalorada congregação ou manifestação política. De fato, esse largo que resultou da drenagem de uma lagoa3 no século XVIII, foi palco para a coroação de Dom João VI, abrigou comícios durante a república velha, foi local de encontro de estudantes durante o período da ditadura militar e de manifestantes durante os mais recentes protestos das chamadas “jornadas de junho”4, passava naquela tarde de março por uma agitação toda outra. Em alguma medida, era o próprio cenário que estava em transformação.

6 Um grande incêndio tomava conta de um antigo sobrado, o número 21 do logradouro. Em pouco tempo, passavam também a arder em chamas os números 19 e 23, todos eles inscritos, desde os anos oitenta, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Cultura, no marco da política de preservação arquitetônica que delimitou as áreas do chamado Corredor Cultural do Centro da Cidade5. Adjacente à construção que ocupava o número 19, está a igreja de São Francisco de Paula, construção que teve sua pedra fundamental lançada em 1759 e que é tombada, em âmbito federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

7 Na lateral perpendicular à Rua do Teatro, localiza-se o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Assim que tomaram conhecimento das proporções do incêndio, funcionários da universidade ordenaram a evacuação do prédio, somando ao agrupamento crescente de pessoas no largo, uma boa cota de alunos, secretárias, seguranças, funcionários e professores da universidade.

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Para mim, que assistia a um seminário de antropologia do espaço6 no quarto andar do instituto, o evento era uma boa oportunidade para começar a fazer algumas anotações que poderiam ser úteis para uma pesquisa que iniciava naquele ano, tendo a demolição como tema central.

8 Quando desci a escadaria da universidade, o corpo de bombeiros já havia estacionado seu caminhão na esquina do largo e uma dezena de homens pesadamente uniformizados pulverizava algum composto líquido por cima das chamas crescentes. Por volta das 16 horas, ouviu-se um grande estrondo. Seguiu-se a ele o ruído alarmante de um desabamento que era muito mais sonoro do que visual. Não só as altas chamas, mas uma densa cortina de fumaça tornava difícil a apreciação visual daquilo que parecia ser a queda de uma laje. De tão quente, o ar que envolvia a construção fazia barreira aos curiosos. Não tardou para que novas chamas se fizessem notar na empena de um quarto número do logradouro, o sobrado 25, onde funcionava a Casa Colibri de alimentos e comércio de animais domésticos, aves e peixes para criação e consumo.

Figura - Incêndio na Rua do Teatro. Fotografia de Antônio de Moraes Regly, 2010

9 O prédio aqui em foco chamava-se Bazar Franciscão, conglomerava os números 19 a 23 do logradouro e era de fato muito frequentado pelos alunos do IFCS. Em sua sobreloja havia toda uma biblioteca de papéis em branco à espera de duas fotocopiadoras, aparelhos que terão imprimido centenas de trabalhos de fim de curso, além de cópias de trechos de livros de filosofia e ciências sociais, dissertações e teses apresentadas aos distintos departamentos do instituto. Decerto, mais de uma pesquisa terá ardido em chamas naquela tarde. No andar de baixo, funcionava um grande bazar onde eram comercializados diversos materiais construtivos – havia madeiras, metais, cimentos, rejuntes, ferramentas de construção e também artefatos de cozinha, jardinagem e tantas outras variedades.

10 Atento às conversas do público que assistia ao incêndio e seguia o trabalho do corpo de bombeiros, ouvi quem lamentasse a perda de mais um antigo sobrado do centro da cidade. “Com o tombamento desses sobrados, só um incêndio mesmo para dar vazão à

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especulação imobiliária”, comentava um passante7. Havia quem criticasse o trabalho dos bombeiros e quem especulasse sobre possíveis causas para a tragédia. “Isso aí é mais um curto-circuito!”, “a prefeitura tem que fazer melhores vistorias nesses estabelecimentos!”. Havia quem, atônito, comentasse em voz alta que vinha comprar algo no bazar, encontrando-o naquele singular estado. Vi também gente dançar e rir para todo aquele laranja incandescente, porque parece que sempre há mais de um pirômano a se deleitar nesses eventos urbanos. Outros, ainda, tiravam fotografias e filmavam, nem sempre olhando pelo visor, estendendo telefones celulares para o alto, registrando o momento sabe-se lá com que finalidade8. Como bem escreveu Caio de Menezes, em nota publicada na noite daquela quinta-feira no Jornal do Brasil, o fogo na Rua do Teatro foi mesmo de cinema.

11 Por volta das oito da noite, o incêndio parecia controlado e, embora ainda saísse muita fumaça do sobrado, ao olho leigo, já não parecia haver riscos para os prédios adjacentes. Quando os bombeiros e funcionários da Defesa Civil partiram, deixaram uma faixa amarela restringindo a passagem pela Rua do Teatro. Uma viatura da Polícia Militar permaneceu estacionada no largo. No dia seguinte, as aulas retomaram na universidade e os pedestres que passavam pela região desaceleravam seu passo, quando não o detinham, para observar o que restava daquela fachada: um avarandado de ferro fundido por despencar e um jogo de janelas desvidradas que se abriam para uma cobertura destelhada. A metade que ficara de pé dava uma dimensão da parte ausente, tornada um amontoado aparentemente caótico de materiais retorcidos.

12 No intuito de seguir de perto esses primeiros dias logo após um desabamento, retornei ao local durante o final de semana para perceber com surpresa que um grupo de pessoas sem uniforme identificável andava pelos escombros. Pareciam procurar alguma coisa. Calçados apenas com finas sandálias de borracha, como para moldar-se melhor ao solo disforme que desbravavam, faziam prova de resistência ao calor e às pontas mal recortadas pelo fogo. Tão ágeis e firmes quanto calejados, moviam-se com uma segurança lenta pela fumegante mistura de um terreno rugoso, irregular, espinhoso e ainda em brasas.

13 O escombro é mesmo um terreno traiçoeiro, uma sorte de antítese do trabalho arquitetônico de alisamento e classificação do espaço. Lá, cada passo é passo em falso, buscando se reequilibrar, agarrado na matéria já deslocada que o sustenta. Um resto de tijolo empurra uma viga, fraqueja uma ripa, esfarela e afunda. Quase irreconhecíveis, as portas que até dois dias antes ainda separavam um recinto do outro, fundiam-se agora com os cimentos arrebentados das lajes, canos de cobre furados e arqueados, arames e chapas retorcidos, gigantescos pregos e parafusos tortos, muitos na vertical.

14 Agachados, munidos de chibancas e cavadeiras, esses três homens remexiam os escombros do sobrado, triavam, retiravam camadas de tijolo, blocos de cimento, areia, cinzas e restos metálicos. Mas andavam também com grandes sacos brancos de farinha, enchendo-os com objetos saídos de sua escavação, como quem recolhe batatas largadas no campo e as põe em uma cesta9. De tempos em tempos, carregavam os sacos até a calçada e colocavam-nos em um burro sem rabo, móvel projetado sobre duas rodas de automóvel com uma plataforma de carga de uns dois metros de largura e um par de braços para tração humana. Ali estavam outro homem e uma mulher sentada na plataforma, revirando os achados. Revezavam-se entre a tarefa de entrar no escombro e aguardar perto do burro sem rabo. Quando um ia, outro chegava, como para descansar o corpo daquele calor que emanava do antigo sobrado. Juntei-me aos que esperavam ou

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vigiavam os achados e me apresentei a eles como estudante interessado em demolições e desabamentos.

Figura - Garimpo nos escombros. Fotografia A.G., 2010

15 Eu já trabalhei em duas firmas de demolição, mas agora estou por conta própria. Aqui nestes sobrados velhos tem muito material que já não se encontra mais. Madeiras de lei, metais caros. É uma pena que aquela pedra da fachada tenha se partido na queda. Se não, tirava uns quinhentos nela, conheço um colecionador”. (Russão)

16 O que eu estou fazendo? Sou garimpeiro. Estou nisso faz dez anos. Já trabalhei com empresa de demolição também. Deste sobrado já levei ferro, cobre, deu uns 15 quilos de cobre. Dão 200 reais para 18 quilos de cobre, lá no ferro velho. Agora estamos querendo tirar aquele cano de lá... (...) Nós puxamos o burro mas não somos burros!” (Carlos)

17 Segundo a categoria nativa, eram garimpeiros. Não da sorte que extrai metais preciosos de uma serra distante, mas do tipo urbano, que percebe e recebe pelo valor das coisas aparentemente arruinadas ou carbonizadas. Carlos me explicou que em uma cidade como o Rio de Janeiro, sobretudo em sua área central e mais antiga, há frequentes acidentes e desabamentos de estruturas arquitetônicas. 10 Segundo o garimpeiro, como existe também um mercado e grande interesse por fragmentos de materiais antigos, sejam eles construtivos ou decorativos – como avarandados de ferro fundido, azulejarias, madeiramentos ditos de lei ou, ainda, pedras talhadas de uma fachada – a atividade de garimpo urbano contava com uma conjuntura favorável, tornando-se rentável viver do comércio do que chamarei aqui de espólio arquitetônico11.

18 Você acha de tudo numa casa velha, até cofres cheios já achamos. Se der azar vai estar cheio de cruzeiros. Mas ai você vende o cofre. Dá pra ganhar dinheiro no garimpo, sustentamos uma família com isso. Mas temos que dar o couro em troca da peça. (Carlos)

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19 Com os escombros do sobrado ainda em brasas, acompanhei uma posterior entrada de Carlos, sua nova invasão àquele sobrado interditado pela Defesa Civil da cidade, com vigas retorcidas, restos de muro arqueado e uma fachada arruinada que parecia querer despencar. Embora a viatura da Polícia Militar ainda permanecesse estacionada no largo, não nos foi oferecida nenhuma resistência. Segundo me confidenciaram os garimpeiros, “agora fazem vista grossa, mas depois passam aqui pra ver o que achamos e levar alguma coisa para o bolso deles” (Russão).

Figura - Chibancas e Cavadeiras. Fotografia A.G., 2010

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20 Munidos de um ímã, os garimpeiros andavam pelo sobrado encostando-o nos metais. Disseram-me que para vender diferentes tipos de material a ferros-velhos, era fundamental saber como identificá-los. Detiam-se pois sobre uma peça e conversavam sobre a melhor forma de retirá-la. Algumas peças deviam ainda esfriar, esperar sua hora de ser removida. Nos sacos de plástico reforçado depositavam diferentes achados que brotavam de suas escavações, objetos antes à venda nesse bazar e agora disponíveis para quem tivesse a “coragem de fuçar nos escombros” (Marques). Embora pudessem apresentar um aspecto descartável para alguns, os objetos recolhidos – e sobretudo as próprias estruturas do sobrado – ainda tinham alto valor de troca para os garimpeiros12. Tem vários tipos de sucatas, lá no ferro-velho eles compram de tudo, por quilo, seguindo uma tabela que dá o preço de mercado de cada material (Carlos). Se o ímã grudar, é aço ou ferro. Se não grudar aí pode ser cobre, latão ou alumínio... ou prata! O latão é mais pesado que o cobre, mais amarelado. Daqui já tiramos estanho também, é um metal bem flexível (Russão).

21 “Mas o ferro-velho nem sempre aceita tudo”, ponderava a garimpeira Silvana, “tem muita peça que eles rejeitam, como cobre de fiação, bueiros...”. De fato, explicaram-me, as peças que chegam à fundição com alguma marca do poder público ou sem aspecto degradado não são aceitas na balança, levantando a suspeita de terem sido retiradas ainda em serventia e constituindo crime contra o patrimônio público. Para burlar essa restrição, confidenciam-me esses garimpeiros, eles por vezes fragmentam a peça em pedaços menores, tornando menos identificável a sua procedência13.

22 No caos do escombro, tudo parece fora de lugar, uno pelo vão livre formado por paredes tombadas. Esfarela-se a diferença clara entre exterior e interior, piso e cobertura, estrutura e ornamento. Como a inesperada flora que encontra espaço entre uma pedra e outra nas calçadas, surgiam dessa massa cozida em tons de preto, cinza e terracota, um pedaço de alicate, um balde azul, uma ponta de martelo, chaves de fenda, tesouras, cadeados em U para bicicletas e um monte de vinis, alguns ainda redondos. Havia coisas que, apesar de mutiladas, podiam ser reconhecidas, outras ainda exigiam certo debate.

23 “Tem muito engenheiro que não conhece a madeira”, dizia Carlos, “mas nós estamos acostumados a reconhecer pelo cheiro e olhar”. Aproximou-se de uma viga, tomou do bolso uma faca, raspou a madeira, cheirou e disse, “isso aqui é pinho de Riga, vamos levar, ainda está boa”. Enquanto seguia a Russão e Carlos, que me guiavam e ensinavam a andar no escombro e faziam sua descrição e estudo do sobrado, outro garimpeiro, Marques, passou por nós. Ele voltava para a calçada com seus achados nas costas, dizendo: “Somos um grupo de leões tentando abater uma presa!”.

24 No dia seguinte, puseram-se a executar o plano que haviam imaginado para a retirada de um cano de cobre agarrado nos tijolos frouxos do muro lateral do sobrado. Golpearam, desparafusaram, equilibraram e arrancaram. Instantes depois saiam andando com uma peça arqueada que devia medir mais de três metros em direção ao burro sem rabo. Puseram-na lá. Parecia mesmo, retomando a metáfora de Marques, uma ossada de baleia. “É para você ver que quem sabe tirar direto não precisa de maquinaria”, acrescentou Russão, expressando uma ideia recorrente entre os garimpeiros, segundo a qual não haveria engenharia mecânica à altura das distinções sensíveis executadas pelo olhar, tato e olfato das triagens que lhes são próprias.

25 Comprei-lhes água, alguns salgados e reparti cigarros também. Noutro dia, pediram refrigerantes, disseram que era melhor para trabalhar na “quenturia”. Durante as

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pausas, aproveitava para conversar sobre as vicissitudes de sua atividade. Disseram-me que moravam em prédios invadidos, no Estácio. Explicaram que sua lógica de garimpo respondia a uma série de leis, entre as quais a premissa de que “o primeiro que vê a coisa, leva”. Já com as peças maiores, eles colaboravam, dividindo os ganhos em partes iguais. “É um trabalho que, no começo, dá muita vergonha. Os curiosos atrapalham bastante, chamam atenção da polícia” (Carlos). Enquanto Russão me fazia sua leitura do incêndio, Marques retornava com mais um saco repleto: “Aqui é tudo luvas de borracha e pedras de amolar. Vi um faqueiro e parece que tem um monte de panelas lá nos fundos”.

26 Quanto às possíveis causas do incêndio, os garimpeiros apostavam em um curto- circuito no andar de cima, onde funcionava o escritório do bazar, ponderando, contudo, que, geralmente, os proprietários destes imóveis estavam assegurados, e que o incêndio era uma boa oportunidade para fazer novos lucros com o terreno. “Agora está bom para abrir um estacionamento!”, exclamou Silvana. E foi isso mesmo que aconteceu, alguns meses depois, naquela esquina do Largo de São Francisco de Paula.

27 Passei mais de quatro dias com esses homens e mulheres que me confidenciariam algumas vicissitudes de seu trabalho, riscos, métodos, precauções, lucros e esquemas organizativos. Sempre atentos a incêndios ou desabamentos no centro da cidade, essa rede de garimpeiros põe logo em marcha seus saberes e contatos quando um prédio começa a dar indícios de uma queda iminente. Entre o desabamento e a chegada das empresas de demolição ou limpeza urbana, existe sempre uma fresta de tempo mal vigiada que é quando se desenvolve, mais ou menos na surdina, toda sua atividade. Embora eu tivesse conhecido apenas um pequeno grupo, explicaram-me que existe uma associação informal de garimpeiros urbanos buscando crescer e se organizar em cooperativas, tal como o trabalho cada vez mais articulado e expressivo dos catadores de lixo14. “Lixo?” – retrucavam – “é matéria prima!”.

Figura - Estacionados no bazar. Fotografia A.G.,2014

28 Como vimos, mais de um garimpeiro havia sido trabalhador na indústria da demolição, transmitindo a outros garimpeiros sua experiência e aprendizados como antigos funcionários de empresas privadas ou divisões públicas especializadas em demolição. Não por acaso moviam-se com tal destreza pelos escombros, retirando com maestria

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uma viga portante, sem que lhes caísse no corpo uma cobertura enfraquecida. Conquanto pudesse parecer algo desordenada, sua atividade requer do grupo que detenha avançados saberes, rigorosamente estruturados em função de um exame das partes externas e internas de um corpo estrutural em decomposição. “O Marques pensa que somos leões, mas eu acho que garimpar está mais para urubus”, brincou Russão. Seja qual for a metáfora, certo é que o garimpo urbano ocupa um lugar de destaque, ainda que ofuscado e ilegal, nos processos de reciclagem arquitetônica de cidades como o Rio de Janeiro.

29 Como explicitavam aqueles homens e mulheres, a vida de uma construção arquitetônica segue depois de seu desabamento. Sobretudo para quem lida com fragmentos e resíduos, a desconstrução da arquitetura, seja ela voluntária ou acidental, representa uma proliferação altamente rentável de matéria-prima em potencial. Dos metais e madeiramentos levados a fundições e ferros-velhos aos objetos colecionáveis encontrados nas entranhas de uma construção (como, segundo eles, moedas antigas, placas, pedras talhadas, quinquilharias, raridades, fotografias e até mesmo cápsulas do tempo), há um fluxo de materiais arquitetônicos transitando constantemente entre o descartado e o resgatado, sofrendo oscilações de preço segundo um mercado complexo voltado para os materiais julgados obsoletos.

30 Encontramos, assim, um primeiro destino e uma primeira classificação do espólio arquitetônico, operados por uma rede informal de demolidores autônomos em contextos que, como declaravam os garimpeiros, poderiam ser os de um incêndio, mas também o de desabamentos ou de situações de “abandono” de um imóvel (estado que lhes pode render uma habitação). Deparamo-nos, assim, diante do amontoado de escombros, com diversos metais que compuseram certa vez as vigas e calhas de uma dada arquitetura, com seus canos internos, balaústres, peitoris, grades e gradis, portões e corrimãos. São peças levadas a grandes fábricas, onde esse material é vendido, e logo derretido e fusionado. Cada uma dessas peças perde aí seu nome e sua história, como elemento construtivo ou decorativo de uma habitação, para retornar ao seu estado de elemento químico dito “puro”, ou seja, para tornar a ser apenas ferro, cobre, bronze, aço, zinco. Voltam, pois, à cidade, como matéria-prima, para retomar um lugar novo na arquitetura urbana.

31 Mas os garimpeiros não contam apenas com a tabela de preços das fundições e ferros- velhos. Vimos que se trata de uma rede com contatos que se estendem, inclusive, a grupos de colecionadores e antiquários. Por seu tipo de acabamento ou raridade, comentavam eles, algumas dessas peças são desviadas do curso que leva à sua fundição. É uma seleção feita por garimpeiros que redireciona certos objetos e os desvia daquele destino incandescente, conduzindo-os a feiras de antiguidades e esbarrando no mundo dos objetos que, inversamente, não se desfazem de seu nome e de suas camadas de sedimentação histórica, mas se valorizam com eles.

Da arquitetura do entulho

32 Separados os metais, madeiramentos e demais objetos com valor de troca, uso ou peças colecionáveis, ainda há na pilha de escombros de um incêndio um emaranhado complexo e multiforme de matéria arruinada, destroçada e entulhada que ainda se presta a outros usos e configurações. São porções de cimento, fragmentos de pedras, bocados de argila, putrefações de madeira e cacos de vidro. Essas peças são levadas para

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os chamados “lixões”, ou então para “aterros sanitários”. Aquilo que é descartado pelos garimpeiros, será recolhido por companhias públicas de limpeza urbana.15

33 Meu passo seguinte neste estudo que busca acompanhar o percurso dos resíduos arquitetônicos foi então visitar uma das sedes da Comlurb, empresa de limpeza urbana, coleta domiciliar, varrição e limpeza de logradouros públicos, áreas verdes, lagoas, areias das praias, túneis, viadutos, assim como de limpeza e higienização de hospitais municipais do Rio de Janeiro. Quem me recebe em sua sala na sede da companhia, no bairro da Tijuca, é Ângela Fonti, arquiteta e presidente da Comlurb em 2010. Pergunto a ela sobre o incêndio no Largo de São Francisco. Ângela me conta que é da alçada da companhia se encarregar de dar seguimento a esse “escombro”, categoria dos garimpeiros que passa a ser denominada, neste novo contexto, de “entulho” ou, mais precisamente, de “resíduos de construção e demolição” – RCD.16 Quando começou a construção de prédios altos, nas décadas de quarenta e cinquenta, os demolidores trocavam seu trabalho pelos materiais das construções antigas. Ninguém cobrava para demolir, pagavam para revender as madeiras, mármores, ferragens e telhas desse casario... Mas os materiais antigos eram de outro patamar de qualidade. Não se tira hoje de um prédio moderno o que se achava em um sobrado daqueles (Ângela Fonti).

34 Como ressaltam estudos recentes voltados para o tratamento de resíduos sólidos no Brasil, conduzidos por pesquisadores de distintos centros universitários de tecnologia, geociências e infraestrutura, existiria mesmo “pouca informação sistematizada sobre o estado da arte nacional do gerenciamento e reciclagem de RCD” (Miranda, Ângulo e Careli 2009). Talvez por serem valiosos de menos – ou quem sabe valiosos demais –, os resíduos urbanos não se apresentam de forma clara ao interessado. Tal obscuridade levanta discussões ditas “ambientais” a um primeiro plano, quiçá deixando para os bastidores as acirradas disputas que ocorrem pelo manejo do espólio arquitetônico carioca. Só em 2002 foi homologada a resolução Conama 307, definindo que grandes geradores públicos e privados são obrigados a desenvolver e a implantar um plano de gestão de RCD, visando a sua reutilização, reciclagem ou outra destinação ambientalmente correta. Com isso, a reciclagem ganhou uma força extra. Iniciaram- se as implantações de planos de gerenciamento de RCD em canteiros, e normas técnicas foram elaboradas por comitês técnicos e publicadas pela ABNT em 2004 (Miranda, Angulo e Careli 2009).

35 Como escreve a pesquisadora Lícia Salgado, estima-se que, até 2010, 50% dos RCD eram despejados irregularmente nas encostas e margens de rios. O transporte e “transferência de propriedade” do espólio arquitetônico certamente tem um custo e não é todo elemento construtivo fragmentado que tem um valor de uso e de troca imediato. Nesse sentido, comentava Ângela Fonti, haveria construtores e construtoras “irresponsáveis”, que durante muito tempo deram destinos “ambientalmente incorretos” a esse tipo de resíduos. Nessa direção, dizia ela, a criação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010) em sintonia com a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998), teria sido de fundamental importância para o controle do tratamento de RCD.

36 Com os “avanços” dos meios arquitetônicos de produção, comentava Ângela, “há cada vez menos material que pode ser diretamente reutilizado ou facilmente revendido”. Enquanto os tijolos maciços, por exemplo, de sobrados como o do Largo de São Francisco parecem ter um mercado visível de compradores, o tijolo oco moderno,

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atravessado por canais longitudinais, não pode ser retirado de um muro sem que sejam estraçalhadas suas finas camadas de cerâmica. Assim, tampouco detêm um valor de mercado que tornasse rentável o investimento em sua retirada minuciosa. Nesse cenário, não pareceria haver nenhum incentivo para que não sejam dispostos em locais irregulares.

37 Desde as últimas décadas do século XX, prosseguia Ângela Fonti, “seguindo as diretrizes da ECO 92 e da Agenda 21, o Brasil tem buscado reorganizar sua política de tratamento de RCD”, tentando implementar metas de redução, reutilização e reciclagem de resíduos gerados em construções, reformas, reparos e demolições. Assim, o que era antes “reutilizado”, precisa agora ser “reciclado”.

Figura - A reciclagem de resíduos de construção e demolição no Brasil 1986-2008” (Miranda, Angulo e Careli 2009)

38 Segundo Antônio Candeias, professor de engenharia da Uerj, as adaptações historicamente operadas no tratamento dos resíduos sólidos no Rio de Janeiro, que se iniciam com um jogar na rua e logo passam para um jogar no mar, ganham na segunda metade do século XX uma política de delimitação de áreas específicas para o despejo desses resíduos. São locais ditos “lixões urbanos”, entre os quais o Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias.17 Segundo ele, entre resíduos domiciliares e resíduos arquitetônicos, Gramacho chegou a receber 85% dos materiais descartados pela cidade do Rio de Janeiro, ou seja, segundo estimativas divulgadas pelo autor, oito mil toneladas diárias de um “resto” tão diversificado quanto misturado.

39 Com a aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos em 2010, declarava Fonti, o Governo do Estado estipulou uma meta – até 2014 – para a substituição dos ditos “ultrapassados lixões” pelos novos “aterros sanitários”.18 Vale o esclarecimento: enquanto os “lixões” representaram uma estratégia de manejo dos resíduos calcada na

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delimitação de zonas para o seu depósito, não incluíam aí uma prática “rigorosa” de classificação e tratamento, formando grandes pirâmides de um material variado e permitindo o derramamento descontrolado de chorume.19 Em contrapartida, os “aterros sanitários” inaugurariam um novo tipo de tratamento dos resíduos, marcado pela impermeabilização dos solos e captação dos gases liberados pela decomposição da matéria orgânica. Importante frisar, como remarca a pesquisadora Maria Raquel Passos Lima, os novos aterros também renovam os acordos, limites e formas de controle sobre o trabalho dos catadores.

40 Como explica Ângela Fonti, um aterro sanitário requer entulho para seu funcionamento. Quando um caminhão de lixo descarrega resíduos urbanos em um aterro, segue-se a esse despejo e triagem de restos de plásticos, papéis, couros, algodões, louças, alimentos, uma segunda descarga de entulho (RDC) entregue por uma caçamba de coleta urbana. Essa camada de entulho, classificada segundo uma tipologia de reciclagem e granulometria, assim recobre e estabiliza a formação das novas estruturas “arquitetônicas” dos montes de espólios.20

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Figura – Lixões e aterros. Desenho de Pólita Gonçalves.

41 Mas a Comlurb não trata apenas, no que concerne à arquitetura, de escombros e cascalho. Até os anos setenta, acrescenta Ângela, a demolição mesma de arquiteturas públicas no Rio de Janeiro era função dos departamentos de limpeza urbana. “Como as demolições na época eram só de construções de até três pavimentos, os departamentos de limpeza urbana se encarregavam do trabalho”. Nesse sentido, em termos de coleta, não se fazia distinção entre o “lixo das habitações” e as “habitações como lixo”. Além do mais, prossegue, resíduos de demolições tinham alto valor de troca e era de interesse do poder público apropriar-se desse material.

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Hoje, nós temos um serviço de teleatendimento, um serviço gratuito de retirada de entulho, para que esse material não vá parar em terrenos baldios. Temos duas estações de transferência, os aterros de Gericinó e Gramacho, que precisam desse entulho para fazer o recobrimento do lixo. E temos, na rodovia Washington Luiz, quilômetro zero, um lixão de entulho que se presta como cantaria ecológica (Ângela Fonti).

42 Com vimos, a crescente preocupação com o meio ambiente, expressa em leis e normas de manejo dos resíduos sólidos, tem levado a Comlurb a incentivar os atuais empresários da construção e demolição a rebritar, granular e reutilizar tanto quanto possível os resíduos arquitetônicos, apesar da queda do valor de troca dos materiais construtivos. Embora o recobrimento dos aterros sanitários seja uma alternativa para os RDC, o ideal, destaca a ex-presidente da companhia, seria multiplicar as possibilidades de reaproveitamento desse material na própria construção civil, como brita miúda para empenas, revestimento de paredes, em pavimentação, base e sub-base de estradas, assim como para calçamentos e meio fio, “como se faz em outros países”. Acontece que nosso resíduo material, no Rio, tem muito tijolo de argila que serve para sub-base, mas nem tanto para a construção civil. Itaboraí produz muita telha e tijolo a preços competitivos, o que se torna a opção primeira das construtoras. Em São Paulo o material construtivo é o tijolo de concreto, com o qual se pode fazer brita miúda, que é material nobre da construção civil. Com isso se podem fazer calçadas e não gastar brita, que é granito, mineral que deve ser retirado de reservas naturais (Ângela Fonti).

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Figura – Esteiras de espólios. Fotografias de duas estações espanholas de tratamento de resíduos sólidos, Guipuzcoa e Valladolid (2014)21

43 Assim como os garimpeiros urbanos, que no passado haviam trabalhado diretamente na indústria da demolição, a arquiteta e ex-presidente da Comlurb também havia antes estado às voltas com a produção de entulho, e não propriamente com seu tratamento. Em décadas anteriores, lembrava ela, havia sido funcionária da Secretaria de Urbanismo do Rio de Janeiro. “Nos anos setenta eu mesma assinei diversas licenças para demolir e tive até a oportunidade de apertar o botão de detonação das primeiras implosões da cidade, como a do prédio da antiga Polinter, que ficava na Avenida Presidente Vargas”. “Foi uma experiência e tanto”, exclamava ela, recomendado que procurasse falar sobre isso com o arquiteto Augusto Ivan Pinheiro, do Instituto Pereira Passos, e com um engenheiro muito conhecido no ramo da demolição, o “Manezinho”. Eu estava no dia da implosão daquele prédio. Estava invadido. As pessoas foram tiradas de lá. O prédio ficava na frente do Palácio Itamaraty. Eu apertei o botão com a Ângela. Foi uma longa negociação com o Ministério das Relações Exteriores, que estava muito preocupado com seu patrimônio oitocentista. Mas deu tudo certo. A

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engenharia de explosivos é realmente uma obra de arte (Arquiteto Augusto Ivan Pinheiro). Implodir perto do Itamaraty foi um grande problema, veio até uma comitiva de engenheiros lá de Brasília. Fizemos uma reunião com o embaixador, para prestar esclarecimentos. Ele estava reticente com a obra. Então disse a ele que não se preocupasse, que eu mesmo mandaria alguém encapuzar e colocar fita crepe no busto do barão do Rio Branco. Expliquei que com a técnica da implosão, a poeira e vibração seriam menores do que uma demolição convencional. Aí eu falei: “Não posso garantir que não vai tremer, mas os sismógrafos da USP vão monitorar isso. Filmamos um lustre do palácio durante a implosão, quase nem tremeu (Engenheiro de explosivos Manoel Jorge Dias).

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Figura – Implosão na Avenida Presidente Vargas (1995). Fotografias cedidas por A.Fonti.

44 Segundo acrescentou Augusto Ivan Pinheiro em conversa posterior no Instituto Pereira Passos (IPP), licenças para demolir dependem fundamentalmente de duas variáveis. Primeiramente, é preciso verificar que o solicitante seja de fato proprietário do imóvel que pretende demolir. Em segundo lugar, faz-se um estudo do imóvel, verificando se está enquadrado em alguma área de proteção, se é tombado ou encontra-se sob tutela. Imóveis cuja construção é anterior a 1938 – data de fundação do Iphan – são encaminhados para avaliação do Departamento Geral de Patrimônio Cultural (DGPC).

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Contudo, apesar de ser dada uma licença para demolir, também existe a possibilidade de que seja levantado um registro iconográfico para o imóvel. De fato, como pude ver no IPP, existe um arquivo fotográfico de prédios registrados demolidos, uma sorte de livro de tombo às avessas. A Cidade Nova [bairro central do Rio de Janeiro] foi devastada, era um casario imenso... Quando estávamos fazendo garagens subterrâneas, se encontravam os baldrames das casas, a construção de pedra, que é uma das mais primitivas, por baixo da casa. Lá apareciam muitos objetos com valor arqueológico. (Augusto Ivan). Os anos sessenta e setenta eram uma época em que as pessoas queriam se livrar das construções antigas, mas artistas como o próprio Burle Marx visitavam os ferros- velhos e galpões de demolidoras para comprar granitos para suas esculturas. O sítio de Guaratiba tem muitas obras cuja matéria-prima vinha desse casario. (Ângela Fonti)

45 Se parte do espólio de uma construção arquitetônica demolida é levada por garimpeiros, o restante, como vimos, é encaminhado para lixões ou aterros sanitários, entre outros locais irregulares. Mas os arquitetos envolvidos em demolições também fazem seu garimpo, transformando fragmentos em monumentos, ao modo de metonímias de um todo destruído e resgatado por aqueles diretamente envolvidos com o entulho. Assim, por exemplo, ocorreu ao Edifício Andorinha (1934-1986), que ficava na esquina da Rua Graça Aranha com a Almirante Barroso, no centro da cidade. Ele teve um de seus fragmentos mais representativos monumentalizado após um incêndio – um painel de pastilhas do escultor brasileiro Belmiro de Almeida (1858-1935). Ocorreu um grave curto-circuito no Andorinha e ele pegou fogo em 1986. Foi uma grande tragédia. Era uma demolição particular. Na época eu era subsecretária de Obras. Quando as chamas foram apagadas pelos bombeiros, notamos que o painel das andorinhas, que ficava no hall de elevadores, estava praticamente intacto. Eu estava com o engenheiro João Affonso Saint-Martin e nós pensamos em retirar o painel para que não fosse destruído e levado para um lixão. (Ângela Fonti).

46 Em 1999, quando se faziam obras ditas de “revitalização” na Rua do Lavradio, no centro da cidade, acompanhando o processo de delimitação de corredores culturais e de valorização da região do bairro da Lapa, Ângela Fonti comenta que o arquiteto Augusto Ivan teria sugerido que o painel fosse reerguido na Rua do Lavradio em memória do incêndio e vítimas no Edifício Andorinha. Essa peça escultórica, que passou mais de treze anos guardada em uma cobertura de gesso em uma usina de asfalto, na Avenida Francisco Bicalho, retornava a um lugar de centralidade visual, como uma peça que é recolhida da reserva técnica de um museu e pendurada em salão nobre.

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Figura - Edifício Andorinha. Fotografia de 1986, acervo digital O Globo. Figura - Painel das Andorinhas. Fotografia de Halley Pacheco de Oliveira, 2013

O retorno dos demolidos

47 No centro do Largo de São Francisco, sobre um pedestal hexagonal, repousa uma estátua de bronze, forjada pelo escultor francês Auguste Rochet. De pé, um homem faz um gesto retórico, levantando o braço como quem cede a palavra ou interpela uma confirmação. Trata-se de um dos conselheiros da coroa portuguesa, José Bonifácio de

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Andrada e Silva, um dos personagens principais do processo de construção do Estado brasileiro como nação independente. Seu monumento fora inaugurado no Largo de São Francisco por ocasião das comemorações do cinquentenário da independência do Brasil, a 7 de setembro de 1872, contando com a presença do imperador do Brasil, D. Pedro II. Encomendada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que se encarregava do projeto pedagógico de narração, por intervenções pontuais na cidade, de uma história nacional oficial, a estátua foi esculpida nos moldes de representação esculturais do Romantismo europeu, exaltando ideais nacionalistas e civilistas22.

48 O IHGB ocupou até 1968 algumas das repartições que conformavam o edifício do Silogeu Brasileiro, demolido por uma companhia de limpeza urbana para o alargamento da Rua Augusto Severo, na área central do Rio de Janeiro. Ironicamente, o instituto ao qual compete colecionar, metodizar e arquivar a história nacional foi, ele mesmo, como documento arquitetônico que é, dispersado em fragmentos diversos. Uma parte de seu espólio foi levada para uma fundação.

Figura – Edifício do Silogeu Brasileiro. Fotografia de 1966, do arquivo de Paulo Pacini23

49 A dois quarteirões de um dos maiores cemitérios do Brasil, o cemitério do Caju, funciona uma das sedes da Fundação Parques e Jardins. Criado em 1893, o órgão é hoje vinculado à Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Prefeitura do Rio de Janeiro e a ele compete a administração dos parques municipais urbanos, o paisagismo, a arborização e a manutenção de praças e seu mobiliário urbano, como bancos, balanços, estátuas e chafarizes. Além das mudas que crescem nesses espaços da cidade e das novas mobílias urbanas confeccionadas por carpinteiros, à espera de serem transplantadas para um novo endereço, a fundação em questão é também o depósito ou “saguão de espera”, das estátuas mancas, estátuas de homens tornados infames, bustos desfigurados, cavalos de bronze decapitados. Há também antigos postes de luz fabricados para lâmpadas de tungstênio, relógios sem ponteiro, ponteiro sem relógio, bueiros com inscrições de repúblicas distantes, grades com brasões imperiais,

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aparelhagens de redes de comunicação obsoletas, portões, murais e tantos outros restos pinçados a meio caminho entre os aterros sanitários, lixões, fundições, ferros-velhos e demais destinos que acometem os restos arquitetônicos.

50 Precisamente no início dos anos setenta do século passado, a Fundação Parques e Jardins do Rio de Janeiro recebeu, na íntegra, a fachada de um palacete oitocentista. Naquela época, declarava o engenheiro a cargo da demolição, “as caçambas que hoje vemos nas calçadas ainda não haviam sido implementadas para a coleta de entulho”. Assim, em um caminhão basculante com carroceria de madeira, chegaram, pedra por pedra, como em um quebra-cabeça, o conjunto da fachada do recém-demolido Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) com as bases, colunas, colunatas, capitéis e frontão, tudo em fragmentos tão indivisíveis quanto possível.

51 Depois das conversas com Ângela Fonti, fui, por recomendação dela, encontrar um antigo engenheiro carioca, no Gabinete do Secretário da Divisão de Vistorias Estruturais, no prédio da Prefeitura. Quem me recebe para comentar a demolição do IHGB é o engenheiro João Affonso Saint-Martin. “No primeiro mandato de Antônio Chagas Freitas como governador do estado da Guanabara”, relembra o engenheiro, “foram realizadas grandes intervenções no bairro da Lapa que buscavam dar visibilidade aos arcos do antigo aqueduto colonial, criando-se, assim, um novo espaço aberto no centro da cidade, o Largo dos Arcos, que dava também destaque às novas construções na região, como o prédio da Petrobrás e a nova Catedral Metropolitana. Na época eu trabalhava na DLU, que era o Departamento de Limpeza Urbana e que depois viraria a Comlurb. Estava tendo obras grandes na Lapa. Aí um dia o Emílio Ibraim me ligou, dizendo que a rua Augusto Severo seria duplicada, que passaria a ser uma via de mão dupla. Mas havia esse prédio no caminho. Era recortar o passeio público ou derrubar o IHGB. Então o Emílio Ibraim, que era o secretário de obras do Chagas Freitas, me chamou para que fizéssemos a demolição... Acontece que a fachada era tão bonita, com pedras tão bem trabalhadas, que me pareceu que seria uma lástima jogar aquilo no caminhão de entulho. Mandei para a Fundação Parques e Jardins. Tiramos a fachada inteirinha, pedra por pedra. O que o Parques fez com isso eu não sei. Dizem que sumiu. Eram dois pavimentos que foram abaixo na picareta. Tiramos primeiro o telhado e depois arriamos as paredes. Chegamos no piso, de madeira, também retirado. O piso era todo de madeiras grandes, com sarrafos. É o que se chama tábua corrida, com vinte centímetros de largura. Tinha pranchetas pregadas naquelas vigas que se apoiavam nas paredes de alvenaria grossa, principalmente as estruturais. Era tudo de tijolo maciço, pedras e cascalhos. Foi uma demolição totalmente manual e o material foi todo vendido. Como antigamente tinha uma argamassa que colava levemente as pedras e os arcos de autossustentação, a obra não precisou de maquinaria. Na verdade, as escavadeiras só chegaram depois dos anos setenta, quando surgiram os cimentos modernos, do tipo Portland, que são muito potentes (J. A. Saint-Martin).

52 Depositadas no galpão da Fundação Parques e Jardins, as peças numeradas da fachada foram depois remontadas pelo engenheiro à frente do desmonte do antigo IHGB. Embora coubesse a ele apenas a tarefa de demolição do prédio, sua sensibilidade estética e histórica levou-o, por iniciativa própria, a proceder a um trabalho que complexificou a demolição, produzindo mais um desses desvios nos fluxos dos fragmentos arquitetônicos. Assim como o que havia ocorrido com a fachada da Academia Real de Belas Artes – prédio projetado em 1819 pelo arquiteto Grandjean de Montigny, demolido em 1938 e cuja fachada havia sido retirada minuciosamente, e posteriormente remontada em uma alameda do Jardim Botânico –, João Affonso Saint-

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Martin pensava que também a fachada do IHGB poderia ser devolvida à cidade na forma de algum tipo de monumento.

53 Embora a chamada “arquitetura moderna”, no espirito da carta de Atenas, pregasse uma primazia da “funcionalidade e salubridade” das construções em detrimento do culto da história e da estética do pitoresco –24 recomendando que se “descartassem as velharias”, diria Le Corbusier –, visto de perto, o espólio arquitetônico parece produzir constantes disputas. Lideradas por distintos grupos sociais, as querelas pelo espólio revelam zonas de contato entre os objetos classificados como entulho e sua revalorização como matéria-prima, coleções, monumentos ou patrimônios. Se a ideia de permanência na arquitetura é uma ficção, também o é a da tábula rasa, pois, decerto, a matéria demolida e fragmentada não desaparece do tecido urbano, mas segue um percurso criativo e dinâmico capaz de mostrar o quanto é sólido o postulado segundo o qual a consciência do desaparecimento arquitetônico desperta também o interesse patrimonial (Gonçalves 1996; Veschambre 2013).

54 Ainda que a ideia de preservação, monumentalização ou patrimonialização de construções arquitetônicas seja correntemente oposta à da demolição, voluntária ou involuntária, dessas estruturas, ambas participam ativamente na elaboração das seleções e descartes materiais que constituem os processos de transformação urbana. Como vimos, o percurso do entulho é constantemente interrompido por triagens e desvios, contribuindo para a ideia de que o fluxo da matéria descartada vaza em todos os nós de seu processo de decomposição, oferecendo sempre novos fragmentos tanto para a indústria da construção civil quanto para as feiras de antiguidades, agências e institutos do patrimônio.

55 O diálogo com aqueles diretamente envolvidos com o tratamento dos materiais descartados e com a circulação dos julgados obsoletos desdobra um universo de relações, seleções, (des)valorizações e trocas de fragmentos arquitetônicos que complexificam os debates sobre as relações entre demolição e esquecimento, preservação e memória.25 Conquanto a produção de entulho possa ser associada a um apagamento dos rastros construtivos, ela é portadora de metonímias em potencial, de partes que revelam ausências e são capazes de alimentar os mecanismos mnemônicos de coletividades urbanas. Entre a visibilidade no espaço público e a suposta perda para um aterro ou “lixão”, nunca parece ser definitivo o apagamento dos fragmentos. Se a possibilidade de retornar à cidade é um imponderável, certo é que em boa medida dependerá também da sensibilidade de garimpeiros, garis e demolidores.

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NOTAS

1. Os livros Antropologia e Patrimônio Cultural: diálogos e conceitos contemporâneos (2007) e Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos (2012), organizados respectivamente por Manuel Ferreira Lima Filho, Cornelia Eckert, Jane Felipe Beltrão e, no segundo tomo, por Izabela Tamaso e Manuel Ferreira Lima Filho, reúnem contribuições de dezenas de pesquisadores dedicados ao conceito de patrimônio no contexto das reuniões brasileiras de antropologia (RBA/ ABA), fornecendo um vasto cenário de debates a esse respeito. 2. Gostaria de registrar aqui meus agradecimentos aos garimpeiros, arquitetos e engenheiros que contribuíram com esta pesquisa em andamento. Ângela Fonti, Augusto Ivan Pinheiro, João Affonso Saint-Martin, Vera Dias e aos garimpeiros urbanos que, por praticarem uma atividade ilegal, aparecem aqui com nomes fictícios. 3. “A Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, compunha-se inicialmente de um terreno pantanoso, que custou a ser drenado e ocupado. A região, com baixa elevação, recebia as águas do Morro de Santo Antônio, e aproximadamente onde é o Largo de São Francisco havia uma grande lagoa, chamada de Lagoa da Pavuna. Durante muito tempo, o único caminho que ali chegava seguia pela encosta do Morro de Santo Antônio, e foi origem da futura rua da Carioca. Com a drenagem após principalmente a metade do século XVIII, o terreno, apesar de bastante desvalorizado, começou enfim a ser ocupado.” (Pacini 2013) 4. Para uma discussão e reflexões sobre as mobilizações sociais ocorridas no segundo semestre de 2013, motivações, repressão e apontamentos etnográficos, ver o volume 13 (1) de Junho 2014 da Revista Enfoques, disponível em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/ index 5. “Idealizado a partir da constatação de que o centro da cidade estava sofrendo um desgaste progressivo de suas funções originais, em virtude da hegemonia crescente das atividades financeiras, o projeto Corredor Cultural tem como objetivos preservar e revitalizar determinados ambientes urbanos de valor tradicional, envolvendo a população neste processo de discussão e intervenção nos espaços abrangidos pelo projeto”. Ver Decreto 4141 de 1983 e Lei n.1139 de 16 de dezembro de 1987 da Legislação do Patrimônio Cultural: disponível em http:// www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/legislacao.shtm 6. Ministrados pelo Prof. José Reginaldo Gonçalves, os seminários Antropologia do Espaço: Arquitetura, Urbanismo e Preservação Histórica tinham como fio condutor uma discussão voltada para o entendimento e trânsitos entre concepções de espaço e arquitetura em diferentes contextos socioculturais. 7. Como bem ressalta Veschambre : « le changement d´usage, lorsqu´une activité économique ou une fonction sociale apparaissent obsolètes, sont généralement l´occasion d´une redistribution des cartes, de conflits d´appropriation des espaces ainsi laissés vacants. C´est précisément au moment de ces mutations économiques et sociales, dans une situation de vacance, de désaffectation de ces espaces, que se jouent la réaffirmation ou la remise en question des pouvoirs qui s´y exerçaient au préalable et dans le même temps le type de traitement de ces héritages, entre logique de la table rase et logique de la conservation. C´est en effet l´occasion de s´approprier, ou de se réapproprier des espaces, afin d´en tirer des bénéfices symboliques, en terme d´image de marque, et/ou des bénéfices économiques liés à de nouvelles activités ». (Veschambre 2005: 06) 8. O desabamento de uma construção arquitetônica é mesmo um evento muito fotografado. Implosões e incêndios constituem cenas marcadas por uma experiência de transição que é ao mesmo tempo arquitetônica, mas também intima e pessoal. Nas palavras do arquiteto chileno Alberto Sato; “Es difícil evitar el sobresalto provocado por una explosión, y cuando va acompanhado del espectáculo del desmoronamento de um edifício, a esa primera emoción se agrega um goce íntimo: el de haberse librado del passado. (…) El interés por el tema de la

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demolición resulta de los enfoques, ideas y realizaciones nacidas de la angustia por la deflagración de un estatuto que se creía unitário” (Sato 2005: 58). 9. Faço aqui referência ao documentário Les glaneurs et la glaneuse [Os catadores e Eu, 2010] de Agnès Varda. O filme acompanha uma série de catadores franceses explorando aspectos históricos, éticos, estéticos e simbólicos dessa atividade, tanto em contextos rurais quando urbanos. 10. Retomando os postulados em The Philosophy of Money, Appadurai dirá que “the economic object does not have an absolute value as a result of the demand for it, but the demand, as the basis of a real or imagined exchange, endows the object with value: ‘the difficulty of acquisition, the sacrifice offered in exchange, is the unique constitutive element of value, of which scarcity is only the external manifestation, its objectification in the form of quantity’. In a word, exchange is not a by-product of the mutual valuation of objects, but its source. (Appadurai 1986: 04) 11. Espólio é uma palavra de origem latina, spolium, e remete às partes não comestíveis de um alimento, são os restos de um animal ou aquilo que se desprende ou cai de uma estrutura vegetal ou mesmo arquitetônica. Seus sentidos figurados são muitos, sendo o termo também sinônimo de fraudes, roubos e saques mais ou menos belicosos e ao conjunto de bens materiais passados como herança de uma geração à outra, podendo assim constituir coleções. 12. A este respeito escreveu Erving Goffman: “Tomando um recente estudo sobre o comércio de ferro-velho, onde são fornecidos dados sobre a impressão que os negociantes julgam oportuno dar: ‘o vendedor de ferro-velho está vitalmente interessado em sonegar ao público em geral a informação sobre o verdadeiro valor financeiro do ferro-velho. Deseja perpetuar o mito de que o ferro-velho não tem valor e que os indivíduos que com ele negociam estão arruinados e são dignos de pena’. Estas impressões têm um aspecto idealizado, pois para que o autor seja bem- sucedido deve apresentar o tipo de cena que leva a cabo os estereótipos extremos dos observadores sobre a pobreza infeliz. (Goffman 2009: 45) 13. Tabela de preços dos materiais segundo garimpeiros em março de 2010. Valores em reais por quilograma : Ferro: 0,20 / Chumbo: 2 / Alumínio: 2,5 / Aço: 5 / Cobre: 9 / Bronze: 15 /Cedro: 20 / Garapa: 25 / Ipê: 30 / Peroba e Canela: 40 /Pinho de Riga: 40 / Jacarandá : 40 / Papelão: 0,15 / Janelas : 150 / Portas: 200 / Grades: 300 14. Segundo Sergio Adeodato, em artigo publicado na Editora Horizonte em 2007, “O Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou uma linha de crédito especial para equipar as cooperativas de catadores. Entre os quase 100 projetos apresentados, cerca de 30 deverão ser contemplados com os recursos, que giram em torno de R$ 170 milhões. Aos poucos, o trabalho dos catadores é reconhecido como uma profissão e valorizado. Na Cooperativa Nova Conquista, no bairro do Itaim Paulista, em São Paulo, cada um dos 85 cooperados ganha em torno de R$ 800 mensais. Ali, nada é dispensado: além dos materiais tradicionais, como latas de alumínio, papéis diversos, vidros e plásticos, os trabalhadores recolhem até os rótulos de embalagens, como de garrafas de óleo para cozinha e de potes de margarina. “Há comprador para tudo”, afirma Josefa Lourenço dos Santos, 66 anos, hábil na separação dos tipos de papel para a reciclagem. Um bazar, dentro do galpão da cooperativa, exibe raridades encontradas no lixo urbano: pôsteres antigos de cantores famosos, chuveiros elétricos, roupas, eletrodomésticos e diversos objetos de decoração.” Ver mais em : http://horizontegeografico.com.br/exibirMateria/180/garimpeiros- urbanos#sthash.IOH5KZoG.dpuf 15. A Companhia Municipal de Limpeza Urbana – Comlurb – é a maior organização de limpeza pública da América Latina. Sociedade anônima de economia mista, tem a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro como acionista majoritária. 16. Agradeço a Maria Raquel Passos Lima, antropóloga que conduziu pesquisa em Jardim Gramacho, por suas sugestões bibliográficas e conversas sobre os tratamentos de resíduos no Rio de Janeiro.

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17. CANDEIAS, A. H. Gerenciamento de resíduos da construção civil, palestra disponível em: http:// www.eng.uerj.br/publico/anexos/1303618227/AntonioCandeiaspalestraentulhoUERJ2011- fen50anos.pdf. 18. Em nota da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), “um dos eixos principais de atuação do Governo do Estado para a erradicação dos lixões municipais até 2014 é o Programa Lixão Zero, que, coordenado pela Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), integra o Pacto do Saneamento e o Plano Guanabara Limpa. O programa Lixão Zero é anterior à lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos e prevê o encerramento dos lixões até 2014 e sua remediação até 2016”. Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/sea/exibeconteudo?article-id=926885. 19. Segundo definição do Departamento de Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR), “o chorume é um líquido escuro contendo alta carga poluidora, o que pode ocasionar diversos efeitos sobre o meio ambiente. O potencial de impacto desse efluente está relacionado com a alta concentração de matéria orgânica, reduzida biodegradabilidade, presença de metais pesados e de substâncias recalcitrantes. A decomposição dos resíduos sólidos depositados em aterros sanitários é um processo dinâmico comandado por organismos decompositores de matéria orgânica, sendo em sua maioria bactérias heterotróficas, aeróbias e facultativas”. Disponível em: http://www.quimica.ufpr.br/tecnotrater/chorume.htm. 20. Segundo Candeias, há quatro classes de RDC: “Classe A – são os resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados, tais como: solos provenientes de terraplanagem, cerâmicas, argamassa e concreto. Classe B – são os resíduos recicláveis para outras destinações, tais como: plásticos, papel, papelão, metais, vidros, madeiras e outros. Classe C – são os resíduos comuns para os quais não foram desenvolvidas tecnologias ou aplicações que viabilizem sua recuperação, tais como gesso. Classe D – são os resíduos perigosos oriundos do processo de construção, tais como: tintas, solventes e óleos ou aqueles contaminados por resíduos tóxicos” (Candeias 2007). 21. Fontes: http://www.biurrarena.com/plantas-rcd.php e http://www.recso.es/reciclados.php?art_id=22. 22. Segundo Vera Lucia Dias Oliveira, pesquisadora dos monumentos públicos cariocas, a estátua de José Bonifácio é o segundo corpo de bronze inaugurado no Rio de Janeiro, sendo o primeiro o do próprio Pedro II e seu cavalo, na atual praça Tiradentes. Tratava-se de uma prática de revestimento urbano do final do século XIX, ancorado em um programa político e pedagógico francês, que confeccionava e exportava as peças de bronze a distintas cidades, com seus personagens locais desejados. No Brasil a comissão de escolha desses “imortais” era orquestrada justamente pelo IHGB, órgão institucional criado em 1838 cujos objetivos são mantidos até a atualidade, adaptados às conjunturas nacionais e internacionais, segundo o qual é primordial “coligir [reunir em coleção o que anda disperso], metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a História e a Geografia do Brasil” (http://www.ihgb.org.br/ihgb.php) 23. Construído durante o século XIX para ser uma maternidade, acabou ficando sem função após a inauguração da unidade de Laranjeiras (hoje pertencente à UFRJ), e foi abandonado. Ao terminar a obra, foi decidido que o prédio abrigaria, além do IHGB, também a Associação Brasileira de Letras, a Academia de Medicina e o Instituto dos Advogados, todos ainda sem sede própria. Como não se sabia qual nome dar ao prédio, cunhou-se a expressão Silogeu Brasileiro, que significa “casa de estudos em conjunto”. Aos poucos, as outras entidades foram obtendo casa própria, só ficando o IHGB, até que, finalmente, nos anos 1970, pôde se mudar para o prédio atual, ao lado do desaparecido Silogeu. (Paulo Pacini. Disponível em: http://www.jblog.com.br/ rioantigo.php?itemid=22016). 24. Como declarava nos anos trinta o arquiteto suíço Le Corbusier, “se eliminarmos de nossas almas e mentes todas as concepções ultrapassadas em relação à casa, e olharmos a questão de um ponto de vista crítico e objetivo, chegaremos à ‘casa-máquina’, a casa da produção de massa, salubre (também moralmente) e bela, assim como as novas ferramentas e instrumentos que acompanham a existência moderna” (Le Corbusier 1986: 07).

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25. Faço aqui referência à colocação de Dario Gamboni, para quem: “Destruction does not suffice – any more than does preservation – to guarantee permanence. But it can contribute to it, and this is enough to challenge the equation between memory and material survival” (Gamboni 2006: 168).

ÍNDICE

Keywords: demolition, solid waste, rubble, heritage, urban renewal Palavras-chave: demolição, resíduos sólidos, escombros, patrimônio, transformações urbanas

AUTOR

ALBERTO GOYENA

Mestre em Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro onde, atualmente, é doutorando (PPGSA/IFCS/UFRJ). Pesquisador vinculado ao Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (LAARES/PPGSA/IFCS/UFRJ)www.laares- ufrj.com e-mail: [email protected]

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Nas ruas dos cinemas, cinemas nas ruas, cinemas de rua: a cidade como uma questão cinematográfica

Márcia Bessa e Wilson Oliveira Filho

Introdução

1 Começando sua trajetória de entretenimento tecnológico nos teatros, salões1, galpões, parques e feiras de variedades; consolidando suas histórias (e sua história) nos pequenos ou médios cinemas, simples2 ou elegantes salas, palácios cinematográficos3 ou poeirinhas; saindo das ruas e tornando-se mais uma loja nos shoppings centers; otimizando custos e multiplicando lucros nos multiplex4; o cinema vai se buscar nos centros culturais, nos museus, a céu aberto... Em qualquer lugar e alicerçado por constantes avanços tecnológicos: um outro cinema emerge. Existem diferentes formas de ruptura com o hábito cinema5 (MACIEL 2009). A situação cinema não é mais a mesma, o lugar do cinema não é mais o mesmo, os filmes não são mais os mesmos. O cinema extrapola a tela. A tela em transe... A interatividade surge nessas tantas metamorfoses. A participação do espectador torna-se cada vez mais ativa. Ou melhor, a presença do participador6 pode ser agora imprescindível para a (in)completude da obra. O incógnito e, na grande maioria das vezes, passivo – objetivamente falando – espectador das salas de cinema tradicionais passa a integrar (e/ou interferir) o (no) espaço da obra audiovisual em muitas práticas interativas e intermidiais pós-cinema7.

2 O espaço físico onde a experiência cinema é projetada, e toda estrutura montada ao seu redor, vem sofrendo significativas transformações desde seus primórdios até a contemporaneidade. A trajetória de existência dos cinemas de rua acompanha de perto as transformações suscitadas pelas inovações tecnológicas audiovisuais aplicadas à exibição cinematográfica. O locus do cinema vem sofrendo transformações nos lugares e tecnologias da projeção audiovisual e na espectadorialidade. O lugar onde o cinema é exibido influencia, reflete, acrescenta e modifica a experiência cinematográfica.

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3 Com relação à continuidade da experiência cinema, tal como ela é vivida dentro das salas de cinema tradicionais, o cineasta/Vj8 Peter Greenaway apresenta um prognóstico um tanto quanto pessimista para o espaço sala de cinema tradicional, mas amplia os horizontes tecnológicos pós-cinema: Uma das razões pelas quais digo que o cinema está morto é a enorme transformação tecnológica. [...] Já temos 113 anos de cinema em celulóide, se considerarmos que o cinema começou em 1895. Isso representa três gerações de pessoas: os inventores, os consolidadores e os que extrapolaram seu uso. [...] Acho que posso precisar, e acredito que isso seja significativo, a data da morte do cinema. O cinema morreu no dia 31 de setembro de 1983, que é reconhecido oficialmente como o dia no qual o controle remoto foi introduzido nas salas de estar do mundo. É isso. É este o momento-chave, porque antes disso o cinema era passivo. Você se sentava no escuro, olhava para uma única direção, ficava diante da tela. E, quando é um filme convencional, deve ficar sentado na mesma posição durante 120 minutos. Esta definição de como apreciar um espetáculo audiovisual chegou ao fim. [...] Deve haver um futuro para o cinema, algum tipo de metacinema, devemos encontrar um nome novo para ele. Devemos considerar duas idéias. Uma é interatividade, e a outra é multimídia. [...] Não precisamos mais de teatros, salas de concerto, festivais de cinema ou salas de cinema, porque estamos agora nos movendo para uma era de atividade ambiental (GREENAWAY 2009: 85-86).

4 No século XXI olhamos para a cidade e assistimos ao desmantelamento e a erosão de diversos espaços públicos e de algumas práticas de sociabilidade. As profundas transformações porque passa a exibição cinematográfica fazem parte de uma crise ainda mais ampla do cinema, de seu sistema como um todo. Um colapso da instituição cinema, seu declínio e remanejamento. O cinema, que vivenciara ao longo de sua trajetória de existência, diversas crises conjunturais, depara-se agora com um momento de conflito estrutural: a migração das salas para dentro dos shoppings centers. A produção de filmes decresce drasticamente e a exibição sofre um grande redimensionamento – muitos cinemas encerram suas atividades. Entretanto, o consumo de filmes aumenta fortemente, só que por meio da televisão (COSTA, 1989). Nos primeiros anos da década de 1990, os exibidores começam a reagir em diversas frentes, adquirindo excelentes equipamentos de projeção, bem superiores aos aparelhos de televisão. Mundialmente, muitos cinemas e casas de espetáculos adotam novos processos – o Omnimax, o 360 graus, a projeção de sessenta quadros por segundo. Nesse momento, os embates tecnológicos entre esses novos cinemas parecem estar ainda muito parelhos. A interatividade do espectador vira moda, ensejando uma corrida do público em busca das novidades.

5 O problema não é mais pensar a morte do cinema, como a partir de metade da década de 1970 se difunde nas publicações cinematográficas, mas refletir, compreender e acompanhar as formas de sua transformação; além de analisar maneiras de preservar a memória dos meios exibidores passados em suas relações com a urbanidade e a frequentação.

Mapeando cinemas de rua cariocas

6 A cidade do Rio de Janeiro já contou com 168 (1952) salas de exibição cinematográficas habitando as calçadas de suas vias públicas (ruas, praças e avenidas). Hoje somamos oito9 cinemas nas ruas da capital fluminense, sendo: dois ex-palácios cinematográficos divididos em salas menores – Roxy (Copacabana) e Leblon (Leblon); um movie palace

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recém-fechado para reformas, que funcionava em regime de sala única, mesmo comportando remodelações e acréscimos de serviços – Odeon (Cinelândia/Centro); dois cinemas de rua10 inaugurados no século XXI – o independente Cine Santa (Santa Teresa) e o Cine Carioca Nova Brasília (na comunidade Nova Brasília/Complexo do Alemão); um multiplex da empresa Espaço de Cinemas – Espaço Itaú de Cinema (Botafogo) e dois mini multiplex administrados pelo Grupo Estação, que estão lutando contra a falência – Estação Rio e Estação Botafogo (Botafogo). Apenas um11 desses cinemas relacionados acima manteve a macroestrutura original de quando foi inaugurado. A maioria está em funcionamento apesar de reformas e ameaças de fechamento. Algumas salas nascidas já nas últimas décadas do século passado – período de potencialização de crise do mercado exibidor urbano carioca – presentam um conceito híbrido entre rua e centro comercial. Outras, vão na contramão do confinamento dos shoppings centers, insistindo em marcar território nas ruas da cidade como novíssimas salas. Isto quer dizer que ainda há espécimes raros de cinemas de rua em funcionamento em algumas calçadas da capital fluminense. Conseguiram manter-se vivos no espaço citadino em oposição a uma clara tendência nacional de migração para o interior de centros comerciais. Não conseguiram conservar, no entanto, na grande maioria dos casos, sua estrutura física original. A disposição das multisalas venceu essa batalha.

7 As salas de cinema estão sumindo das ruas cariocas. A biografia de inúmeras dessas salas, ao longo da história da exibição cinematográfica nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, nos mostra o quanto sua existência pode ser efêmera. A especulação imobiliária, a falta de segurança urbana, o trânsito automobilístico caótico, o número reduzido de vagas para estacionamento dentre tantas outras batalhas travadas pelas grandes cidades contemporâneas, além de problemas inerentes a própria indústria cinematográfica nacional, podem acarretar o fechamento daquelas salas de projeção de filmes em um curto período de tempo. Nesse processo desaparece também um outro tipo de experiência fortemente marcada pelo espaço arquitetônico do cinema que definia um ritual específico.

8 As salas de exibição cinematográfica, cujos prédios ainda estão em funcionamento, enquanto cinemas nas ruas do Rio de Janeiro, resistem nas calçadas da cidade; sobrevivendo aos impactos das mudanças que sofreram para se manterem vivas na configuração do espaço citadino e refletindo transformações pelas quais passaram as ambiências em seu derredor. A edificação, sustentação, reformulação e destruição dos cinemas de rua cariocas, cultiva possíveis relações estruturais com determinadas disposições físicas e modelos de vida social. Os cinemas de rua podem ser assim encarados como formas espaciais de apropriação da própria cultura citadina, onde tais estruturas materiais podem assumir, no decorrer de sua trajetória de existência, as feições de sujeitos não-humanos ou objetos-humanizados; gerando implicações significativas sobre a memória e a vida de comunidades e indivíduos. Esses espaços culturais acompanham a sobrevivência, a revitalização ou a degradação de certas áreas urbanas.

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Cine Roxy, 2013. Die-hard Copacabana cinema (Fonte: Time Out - http://www.timeout.com.br/rio-de- janeiro/en/film/venues/178/roxy).

9 O Roxy (1, 2 e 3) sofreu reformas e recebeu incrementos técnicos nos anos 1990, permanecendo em funcionamento. A Prefeitura do Rio de Janeiro reconheceu o cinema como um “marco referencial na cultura cinematográfica da cidade" (PORTAL BRASIL, 2013). Segundo Francisco Ribeiro Pinto (1995), o desmembramento do Roxy em três salas menores – contendo em torno de 1.100 poltronas no total –, se comparado ao antigo cinema de 1.700 lugares, possuía despesas operacionais inferiores e ainda lucrava duas vezes mais. O Leblon (1 e 2), após sua divisão, já assistiu a mudança de formato de sua sala de projeção e continua exibindo filmes. Após passar por uma ameaça recente de transformar-se em magazine, o Leblon fechará suas portas para reformas e reabrirá ainda como cinema de rua.

Cine Odeon Petrobras, 2008 (Fonte: TimeOut – http://www.timeout.com.br/rio-de- janeiro/ cinema/venues/249/odeon-petrobras)

10 O empenho da Petrobras em reabrir o Odeon pode ser considerado um marco do renascimento de um antigo palácio cinematográfico. Aberto em 1926 – e reaberto em 2000 – o cinema Odeon contou com o decisivo patrocínio da BR Distribuidora e da Prefeitura do Rio de Janeiro. O cinema – que foi fechado para obras em junho passado – era responsável por atividades que movimentavam o cenário cinematográfico carioca: palco de maratonas e festivais.

11 Iniciativas como as do Cine Santa Teresa12 e do Cine Carioca Nova Brasília13, em acreditar nos cinemas de sala única fora dos shoppings centers, se dão de forma isolada, provando que é cada vez mais difícil a comunhão entre rua e cinema. O Cine Nova Brasília é a primeira sala de cinema já construída em uma favela em todo o mundo. Em parceria com educadores e produtores cariocas, o Cine Santa transformou a relação público/ cinema num convívio de crescimento sociocultural. É necessário salientar aqui que o desequilíbrio financeiro do meio exibidor reside em maior escala na operacionalização

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das salas e não em sua construção. O modelo de negócio desenvolvido por estas duas salas – cada uma a seu modo – representa uma revolução em nosso mercado exibidor. São cinemas que interagem cultural, social, artística e politicamente com a comunidade em que se inserem. Pretendem ampliar seu leque de ações nestes campos visando atingir um maior número de pessoas e levar à população das cidades (principalmente as periféricas) mais opções de cultura, contribuindo assim, com iniciativas que visam mitigar desigualdades e proporcionar lazer, qualidade de vida e consciência social.

Cine Santa Teresa, 2009 (Fonte: Olhares – http://olhares.uol.com.br/cine-santa-teresa- foto2974746.html)

12 Alguns desses cinemas que atualmente nascem ou renascem nas ruas tiveram que se render à fórmula do multiplex – multiplicados em várias salas – para acompanhar a tendência do mercado cinematográfico, do setor de exibição ou às exigências dos novos hábitos do espectador contemporâneo. O Grupo Estação14 (link: http:// www.grupoestacao.com.br/index.php) – que acabou de assinar um acordo de renegociação de suas dívidas, para tentar escapar da falência – administra seis cinemas no Centro e Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. O Estação Botafogo, com três salas de projeção, foi o primeiro a ser inaugurado – em 1985, ainda um cineclube. A partir da época de sua estreia começou a figurar como referência na exibição de cinema de arte no Brasil: “[...] Formou uma geração de cinema – público, críticos e formadores de opinião” (GRUPO ESTAÇÃO 2013). O Espaço Itaú de cinema (ex-Unibanco Arteplex) mudou de nome em função da fusão de seus patrocinadores – os bancos Itaú e Unibanco (2008). A parceria do Unibanco com o cinema datava de quase duas décadas. Em 2001, surgiu o conceito Arteplex, que significa cinema de arte em formato multiplex.

Estação Sesc Botafogo, 2012 (Fonte: TimeOut –http://www.timeout.com.br/rio-dejaneiro/ cinema/venues/241/estacao-botafogo)

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Espaço Itaú de Cinema, 2012 (Fonte: Lugar Marcado –http://lugarmarcado.wordpress.com/ 2012/04/15/espaco-itaude-cinema/)

13 Com uma tipologia variada em suas formas arquitetônicas e organizações espaciais e econômicas15 as biografias dos cinemas de rua testemunham histórias de sobrevivência, fechamentos, reformas, reestruturações e renascimentos. Envolvem processos de produção, circulação e consumo da (e na) vida sociocultural citadina carioca. Os cinemas de rua ainda em funcionamento na cidade podem representar suportes de uma memória da recepção cinematográfica da capital fluminense, amparando-nos numa análise mais específica da problemática das projeções audiovisuais no espaço urbano.

14 O processo de extinção dos cinemas de rua no espaço urbano das principais capitais brasileiras convoca e rememora em nossa pesquisa a trajetória cíclica do circuito exibidor nacional. Mas a conjuntura crítica que marcou a época em que os cinemas de rua começaram a desaparecer por aqui não era só mais uma crise, era uma crise estrutural. A partir dos anos 1950, e ao longo das décadas subsequentes, a presença cada vez maior das novas tecnologias audiovisuais começou a desfigurar (ou transfigurar) as feições, significações e ofertas de salas de cinema nas ruas; levando à desvirtuação do modelo e à obsolescência de sua estrutura. Podemos somar a isso, a penetração crescente da televisão no cotidiano da população, a entrada em cena do videocassete e das TVs por assinatura; ocasionando ainda uma redução drástica do público de cinema. Estes, juntamente com outros importantes fatores – a especulação imobiliária, os processos de desenvolvimento e ocupação urbanos, a própria mentalidade dos exibidores e os donos dos imóveis que abrigavam cinemas, a ausência de uma atuação do Estado para uma política de defesa destes equipamentos e a violência urbana –, acabaram por levar muitos cinemas de rua a encerrarem suas atividades. A partir dos anos 1980, o parque exibidor nacional sofreria a maior modificação desde os primórdios de sua existência: a substituição por salas em shopping centers.

15 Nem a simplificação das salas, a divisão de seus espaços internos, as inovações tecnológicas constantes, os fechamentos e as outras formas de utilização dos cinemas de rua poderiam prever que eles sairiam das ruas. Essa proposta já se pronunciava desde as décadas de 1950/1960, com a entrada dos cinemas em áreas comuns a prédios destinados especificamente a outras atividades e em galerias comerciais. Variadas tipologias de salas anteriores continuaram residindo no espaço urbano por excelência, nas vias públicas, nas ruas, nas calçadas citadinas. Mas, com notada intensificação a partir de meados dos anos 1980, o cinema abandonaria as ruas para integrar grandes centros de compras.

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16 Histórias, memórias e curiosidades ainda permanecem em diversos espaços que se transformaram nos mais variados comércios como estacionamentos, boites, farmácias, magazines, supermercados. Mas, sobretudo, em igrejas evangélicas. Nesses lugares não há mais filmes, funcionários e cartazes das próximas estreias, mas continuam na lembrança de seus antigos espectadores da vivência dos espectadores certamente eles não saíram. A memória relativa aos cinemas de rua é mesmo uma ilha de edição, como profetizava o poeta Waly Salomão (2001, p. 77): com todos os recursos possíveis.

Extrapolando a tela cinematográfica

17 Novos recursos trazem novas possibilidades para o cinema. Para além das slas, um outro cinema passa a habitar a cidade. A imersão de espectadores na impressão de realidade fílmica ocasionada pelas especificidades do cinema como híbrido de arte e tecnologia – o pecado original de seu nascimento, segundo Tarkovski (1990) –, trabalhada antecipadamente por Bazin16, enseja desdobramentos que podem nos levar a análises atualizadas sobre as perspectivas experimentais pós-cinema radicalizadas pelas novas mídias na fruição cinematográfica. Podemos pensar os conceitos contemporâneos de pós-cinemas, a partir das tecnologias desenvolvidas já na década de 1950, como possibilidades de extensão das próprias potencialidades técnicas do cinema. Estender o termo experimentalismo em sua radicalização no momento contemporâneo – de intensa transformação tecnológica a partir das imagens e sons digitais – a fim de investigar como esses avanços alteraram o conceito tradicional de cinema e, consequentemente, o estatuto autoral e espectatorial; criando e fundindo noções anteriormente mais fixas e rígidas, para redefinir novos perfis espectatoriais que cruzam processos interativos e intermidiais, diferentes suportes e plataformas em novos cenários pós-cinema (VIEIRA, 2013). As novas tecnologias aplicadas ao cinema 17 (ele mesmo uma tecnologia) – desde o cinema falado; o filme colorido; o technicolor18; as telas panorâmicas (anos 1950); o Dolby Stereo; o som digital; o 3D; a diversificação de programação; transmissões ao vivo; o ressurgimento de supertelas, o 4D; a interatividade; as difusões por chips, DVDs, cabo, internet, satélite ou banda larga, projeções ao vivo etc. – podem ser todas encaradas como desdobramentos da própria essência objetiva do cinema: o registro da imagem e a reprodução do movimento. A história do cinema é experimental: experimentar suportes para a imagem, formatos de projeção, de sonorização. Pesquisar os dispositivos de produção e exibição dos filmes é um contínuo na experiência do cinema. Também a pesquisa nas formas de contar e montar as narrativas fílmicas por meio de estruturas temporais lineares ou não lineares construiu a história do cinema. O que ocorre no século XXI, com a aceleração produzida pelas novas tecnologias da imagem, é apenas a potencialização dessas pesquisas. O cinema contemporâneo é parte desta complexa rede de transformações, a partir dessas novas possibilidades tecnológicas. Novas conexões entre técnicas distintas tornaram o cinema um híbrido de imagens passadas e futuras que se combinam em narrativas experimentais (MACIEL 2009: 40).

18 Para Luiz Gonzaga Assis de Luca (2011: 169), a película cinematográfica de 35 mm mostrou-se um formato “tão avançado que permitiu que nele fosse incorporado o som, a cor, a compressão anamórfica (Cinemascope), o Dolby Stereo e todos os sistemas de som digital”. Em 1953, com O manto sagrado (The Robe), da 20th Century Fox, foi lançado o Cinemascope (link: http://www.widescreenmuseum.com/widescreen/cscope-ac.htm). A proporção da tela pulou de 1.33.1 para 2.35.1. Somava-se a isso o som estereofônico19.

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A exploração da terceira dimensão imagética já era há muito tempo um grande interesse de técnicos e produtores de cinema. Desde a década de 1910, começaram as primeiras experimentações com projeção tridimensional fundamentadas nos processos das fotografias estereoscópicas. Os sistemas 70 mm de exibição cinematográfica deram origem a vários equipamentos usados nos parques de diversões. O Todd-AO (link: http://in70mm.com/todd_ao/index.htm) foi um desses pioneiros aparelhos. Ficou praticamente padronizada a nova proporção de tela 2.2:1 desde seu surgimento. Lançado em 1952, o Cinerama (link: http://salasdecinemadesp.blogspot.com.br/ 2008/06/o-cine-comodoro-cinerama-parte-1.html) alcançou êxito no início dos anos 1960. Partindo de experimentos que utilizavam um sistema complexo, que operava inicialmente com onze projetores simultâneos (conhecido como Vitarama), o Cinerama e seus três projetores 35 mm sincronizados inauguraram a era das telas panorâmicas; modificando o formato de exibição cinematográfica dali para a frente. O Roxy (1938) foi o primeiro cinema carioca a apresentar o Cinerama (em sua versão 70 mm)20, com um único projetor, chamado Super Cinerama. A partir de 1959, tanto o Comodoro quanto o Roxy, passaram a exibir o Super Cinerama em suas gigantescas telas de 146 graus de curvatura. Na década de 1960, a adoção de salas de projeção 70 mm indicava uma autoconfiança arriscada de alguns exibidores frente às incertezas que o futuro do cinema reservava e à expansão da penetração da TV nos lares. Com suas imensas telas, ótima definição de imagem, alto brilho e som estéreo, a manutenção dos equipamentos e a importação dos filmes era difícil e cara. Em fins dos anos 1970, a utilização do 70 mm começou a decrescer, mas sua atuação ainda seria requisitada em parques de diversões, em grandes auditórios de museus e em salões de exposições.

Comparativo das bitolas 70 e 35mm, 2010 (fonte: Ricinema – http:// rlcinema.blogspot.com.br/2010/10/capitulo-2-bitolas-e-formatos.html)

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Cinerama system, 2013 (Fonte: The art of consciousness – http:// theartofconsciousness.wordpress.com/realidade-simulada/)

19 As salas de exibição cinematográfica que começaram a ser construídas a partir da década de 1960 traziam consigo uma série de novas necessidades e exigências não experimentadas pelos cinemas que fizeram sucesso entre os espectadores até os anos 1950. Os exibidores sabiam das reais necessidades de incremento das instalações e de renovação tecnológica, mas as justificativas para a não execução das reformas eram muitas. No começo da década de 1980, as grandes salas que ainda existiam pareciam ter voltado a representar aqueles elefantes brancos de outrora – grandes, vazios e sem serventia aparente – só que agora ultrapassados. Segundo Sérvulo Siqueira,“[...] Na época do senssurround, do sistema Dolby-Stereo, das lentes anamórficas, esses cinemas ainda permanecem – como verdadeiros animais pré-históricos – com suas raquíticas caixas de som e seus velhíssimos projetores a carvão” (1981, p. 39). A evolução eletrônica compactou os aparelhos, criou circuitos integrados e dava a entender que não havia mais lugar para os grandes e antigos cinemas de rua. Muitos cinemas passaram a ceder seus lugares para shoppings centers, edifícios comerciais e prédios de apartamentos.

20 Mas o cinema continuaria habitando as ruas… Vimos surgir desde as décadas de 1960-70, ainda que de forma descontínua e rara, as mais diversas salas de projeção – em centros culturais, museus, escolas, cursos de línguas e condomínios fechados – e manifestações de novos cinemas”21 pela cidade: expanded cinema22, projeções ao ar livre (na praia, na favela), exibições em lonas culturais, movimento de imagens no metrô… E live cinema23 (ou cinema ao vivo) num galpão, numa pista de dança e, até mesmo, num antigo cinema de rua24.

21 As projeções, em seus diferentes suportes, celebram também a memória do cinema. Os “mundos midiáticos [...] são laboratórios abertos” (ZIELINSKI 2006: 304) que possuem uma breve história. Projetar não só nas telas, mas nos corpos, objetos, construções, em resíduos ou ruínas interagindo com o público mostra que o cinema ao vivo é a ressonância de experimentações importantes da projeção ao longo do tempo. A própria exibição de um filme precisa de um projecionista que comanda as trocas de rolos, as nuances de som e o controle de luz do ambiente. Muito além dessas atribuições, artistas diversos se desafiaram a pensar novas possibilidades além da conhecida sala escura.

22 Em trabalhos que buscam novas telas e superfícies de projeção, a aproximação entre cinema e performance são evidentes nas projeções de Jeffrey Shaw – nos quais o

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“tempo do filme projetado se superpunha ao tempo da performance material” (SANTAELLA, 2005, p. 262) – e, mais detidamente, nos trabalhos de Stan VanDerBeek em domo. Como em Moviedrome, work in progress dos anos 60, de VanDerBeek – cuja insatisfação com seus trabalhos em teatro e artes plásticas levaram-no ao trabalho multimídia (SUTTON, 2003) –, que primordialmente refletia imagens sobre novas superfícies (que não a tela chapada) e recebia espectadores sem lugares marcados ou horas específicas de uma sessão cinematográfica. Ilustrações em tempo real, material de found footage25 e luzes rotatórias compunham essa projeção esférica de VanDerBeek.

Moviedrome, de Stan VanDerBeek, 2014 (Fonte: Arts at MIT – http://arts.mit.edu/wp-content/ uploads/MovieDrome157-web.jpg.)

23 Além das imagens projetadas em superfícies além da tela, o trabalho fundador de Anthony Mccall, Line describing a cone (1973), apresentava uma projeção em cima de uma cortina de fumaça (link: https://www.youtube.com/watch?v=8vr_lYSTfIo). Não havia imagens, somente o efeito do feixe de luz combinado à fumaça no projetor. Aquele fenômeno da poeira se formando pelas lentes do projetor era o tônus de uma obra precursora de live cinema, que levava em conta a arquitetura midiática e “a abstração e a desmaterialização associadas à projeção” (DOANE 2009: 162, tradução nossa)26.

24 Essas performances antecedem e ao mesmo tempo acabam por criar o live cinema e nos conectam com momentos do cinema nos quais a performance era mais que uma atuação para a tela. Um novo espaço de projeção, uma nova cidade iluminada, que como aponta Youngblood nos anos 70, ainda não tinha sido realizada, mas que já sinalizava para “tendências recentes na aplicação de tecnologia avançada ao que poderia ser chamado de ‘estética funcional’ indicam uma transformação no design urbano, a convergência gradual de funcionalidade e beleza, o mundano e o misterioso” (YOUNGBLOOD 1970: 387. Tradução nossa)27 hoje parece fazer parte do cotidiano da urbe… Eletrificada, digitalizada, conectada por imagens e sons.

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Cine-fantasma, 2013 (Fonte: SRZD – http://www.sidneyrezende.com/noticia/ 204357+cine+fantasma+relembra+e+defende+ci nemas+de+rua).

25 No Rio de Janeiro contemporâneo, podemos pensar a própria sala de cinema como tela. Como uma nova forma de experimentação em superfícies e espaços urbanos, o Coletivo ETA AQUARÍDEA projetou performances de live cinema na fachada do cinema Centímetro (VIMEO 2013). O Centímetro é uma pequena sala de cinema de rua, localizado em Conservatória/RJ e construído com restos do Metro-Tijuca (demolido em 1977, para dar lugar a um magazine). O projeto Cine-Fantasma: assombrações dos cinemas de rua (2012), da cineasta Paola Barreto, compõe-se de uma série de vídeo-intervenções urbanas que faz projeções em fachadas de prédios que já abrigaram salas de cinema cariocas. Imagens de arquivo, fragmentos de filmes e planos captados ao vivo (no próprio lugar da projeção) intencionam ativar a “memória da cidade e cruzando imaginários urbanos”. O fim dos cinemas de rua – “e as implicadas mudanças em espaços comuns nos bairros” (2012) – é discutido pelos artistas num diálogo com os transeuntes. [...] No Rio de Janeiro, bairros como a Tijuca e o Méier, que construíram parte de sua identidade cultural e arquitetônica em torno de salas com capacidade para mais de mil espectadores, assistiram a transformação gradual de seus cinemas em lojas de departamentos, estacionamentos ou igrejas. A Cinelândia, região da cidade que deve este nome à quantidade de salas que um dia abrigou, conta hoje com apenas três cinemas em funcionamento. A migração dos cinemas da rua para o interior dos shopping centers vem sendo anunciada por grupos econômicos como garantia de conforto e segurança. Percebe-se que neste discurso está embutida não só uma ideia de elitização do hábito de ir ao cinema, mas também certo pensamento sobre a vida na cidade. Uma cidade ultra vigiada e dependente de automóveis (e estacionamentos...), onde as ruas deixam de ser espaço de permanência para se tornar mera passage (CINE-FANTASMA, 2012).

26 A sala de projeção do cine Odeon foi um dos primeiros espaços a exibir a experiência do Live cinema28 (link: http://www.livecinema.com.br) na capital fluminense. Ressaltamos a importância desse palácio cinematográfico, que se rende (ou rendia) a novas experiências audiovisuais na contemporaneidade. O espaço que o Odeon abre para essas, dentre outras, novas práticas audiovisuais nos chama atenção por conjugar a tradição do cinema nas calçadas da Cinelândia com manifestações tecnológicas e em rede da arte contemporânea. Nesse sentido, pensamos que essas novas experiências desenvolvidas e apresentadas no interior do Odeon podem perpetuar a estrutura desse grandioso cinema no imaginário carioca. Assim, situamos, não só uma memória desse cinema como um autêntico cinema de rua, mas também pensamos numa forma de vocação cinematográfica daquele espaço – sobretudo como cinema lançador? –, que se relaciona com movimentos artísticos contemporâneos. Se o cinema nasce como uma mescla de

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outras artes, o Odeon radicalizou essa mistura, sendo de crucial importância para manifestações pós-cinema.

A cidade contemporânea e o cinema

27 Já se fala de um cinema contemporâneo nos anos 1960, a reboque dos movimentos vanguardistas e de marcantes eventos político-sociais deflagrados nessa década (RAMOS, 2008) e que se estenderam pela primeira metade dos anos 1970. Assim como a contemporaneidade no campo das artes figurativas e da literatura, falamos em um cinema contemporâneo29 baseando-nos na premissa da instauração de um novo tipo de relação da história do cinema com a sua tradição: “uma relação que pode ser de nostalgia, de irônica revisão, de releitura, de repensamento, de regressão” (COSTA 1989: 134). O cinema, na segunda metade da década de 1980, caminhava para sua inserção no complexo e articulado universo da instituição audiovisual e da imagem eletrônica. Isso motivava um velocíssimo progresso nos avanços tecnológicos e uma certificação de novos padrões de produção e de consumo de filmes.

28 A globalização fez com que as comunicações não mais esbarrassem em fronteiras geográficas. Tecnologia de ponta, rapidez e fluxo contínuo de dados viabilizaram uma espécie de revolução eletrônico-digital. A percepção do tempo ficou ainda mais acelerada. Essa nova organização comunicacional proporcionou “grandes mudanças nos padrões perceptivos, na produção artística e subjetiva, nas formas de ocupação espacial e temporal e na relação com os diversos domínios do meio urbano” (CAIAFA 2007: 19). Os avanços dos meios de comunicação alastraram-se, em níveis distintos, por todo o mundo. Enraizados em interesses político-econômicos, viabilizaram profundas mudanças no modo de vida humano. Esse novo estilo de vida contemporâneo potencializou a qualidade e a quantidade de informações a que os habitantes da cidade tinham acesso. A informação, no mundo globalizado, alavancada pela informática, é o grande vetor de produção e interação contemporâneos. A cidade contemporânea é a cidade da informação, que, muitas vezes, prescinde da convivência urbana concreta para subsistir.

29 Nessa urbe informatizada, a “ocupação coletiva gera heterogeneidade, de alguma forma misturando os habitantes e em diferentes graus dessegregando os meios fechados e familiares” (CAIAFA 2007: 19). A circulação de pessoas nas cidades demanda ainda o estabelecimento de determinados padrões de comunicação e subjetividade. Essas experiências urbanas foram afetadas pelos novos meios de comunicação. Esses inventos tecnológicos são frutos técnicos do capitalismo. Mas não podemos esquecer que vieses criativos também podem surgir desses novos processos midiáticos; para tanto, é necessário que busquemos direcionamentos diversos dos domínios políticos e econômicos.

30 Nas cidades contemporâneas, a banalização do espaço urbano se intensificou, ancorada em padrões de sucesso internacional, revitalização de áreas centrais e portuárias e investimento em políticas de turismo. O espaço público foi mercantilizado. Em vista dos projetos de especialistas, os habitantes, que vivem o cotidiano daqueles espaços, acabam convivendo com a naturalização de tudo, a banalização da miséria e a desigualdade. O espaço público na cidade contemporânea tem desempenhado um papel da ação política; sendo “analisado sobre a perspectiva crítica de sua incorporação como mercadoria para o consumo de poucos, dentro da lógica de

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produção e reprodução do sistema capitalista na escala mundial” (SERPA 2007: 9). Assim, poucos desfrutam desse espaço comum fabricado na contemporaneidade. A cidade da informação é um organismo voltado para dentro, para um coletivo partilhado privativamente – em casa, no escritório, no computador. Uma espécie de cidade virtual.

31 Uma outra faceta da cidade contemporânea é espetacularização de determinadas estruturas com vistas a combater o esvaziamento, a degradação e a segregação urbanas através de iniciativas grandiloquentes que visam a lógica da mercadoria capitalista. É na intersecção entre a cultura e a economia que se criam as bases para a edificação da “cidade-espetáculo” (SÁNCHEZ 2007: 25). Segundo Fernanda Sánchez (2007: 27), o cruzamento entre cultura e economia, está evidenciado em táticas urbanas especificamente contemporâneas. Alguns bens são transformados em emblemas dos novos programas da renovação urbana. Na verdade, todas as intervenções parecem representar apenas chamarizes ou propagandas da cidade-espetáculo. Esta tipologia citadina necessita fomentar o patriotismo, o orgulho, o sentimento de pertença, a paralisação de conflitos e a neutralização das diferenças para manter-se firme e forte. A civilização pós-industrial vê-se face a face com as megacidades, onde a periferia apresenta em geral grande índice de exclusão social e as áreas ao redor do centro histórico se degradam pelo abandono do uso residencial e das antigas estruturas industriais obsoletas em lastimável estado de conservação. Acentua-se a desigualdade de distribuição de bens de consumo (LIMA 2007: 13).

32 Nas metrópoles contemporâneas observamos transformações em serviços e comércios tradicionais. Mesmo que ainda existam fisicamente, diversas estruturas têm seus postos urbanos enfraquecidos por uma nova topografia. As identidades e os sentimentos de pertencimento vão sendo fragmentados, dispersados e diminuídos nessas megacidades. Como afirma Marcel Roncayolo (1990: 161), “a representação da cidade não escapa às determinações mais amplas e, especialmente, à ideia que as sociedades têm de seu próprio espaço e do espaço em geral”. Os novos ditames da globalização encampam a tudo e a todos. Os pontos de referência dessas verdadeiras anticidades passam a ser os aeroportos, os museus, os grandes centros culturais e os gigantescos shoppings centers.

33 No Rio de Janeiro, a questão da degradação dos espaços públicos parece acompanhar de perto o desenvolvimento da contemporânea cultura capitalista urbana, que começou a se delinear depois da década de 1960. A individualização da vida e o enfraquecimento de uma convivência coletiva ocasionaram a agonização do espaço público. Os antigos pontos de encontro e de influência mútua – logradouros, como praças e ruas – foram transformados em meros locais de trânsito. Consequentemente, e de forma gradual, ocorre a decadência física dessas áreas urbanas. O poder público, que desde o início do século XX, que vinha mantendo uma política ancorada no sanitarismo, na renovação urbana e na especulação imobiliária assiste, muitas vezes inerte, a chegada do tal progresso; destruindo antigas e deterioradas construções que dão lugar a modernos e altos prédios comerciais. Como afirma Lefebvre (2000), para haver espaço público concreto essas áreas precisam ser preenchidas com trocas, encontros, imagens e símbolos que permeiem a vivência dos moradores daquela região. “É o espaço apropriado pela imaginação e pela memória, que recobre o espaço físico utilizando simbolicamente seus objetos” (LIMA 2007: 17).

34 Determinadas iniciativas de renovação urbana vêm provocando ainda uma gentrificação – isto é, um aburguesamento de espaços públicos, afastando a população pobre que habita ou frequenta aqueles locais –, incentivo ao uso do capital privado e especulação

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imobiliária. A espetacularização das estruturas citadinas obedecem às experiências de reconstrução contemporâneo-urbanísticas, ao jogo atual de interesses políticos e à ligação estabelecida entre as organelas governamentais e as mídias. Na metrópole contemporânea o espaço da circulação e da contaminação urbanas tendem a desaparecer. As classes média e alta migram para áreas afastadas. E com elas vão junto muitas atividades, empregos e a convivência no espaço público. O automóvel particular faz a ligação entre a cidade central e os bairros satélites. As cidades começam a se esvaziar. Para Caiafa, atualmente, “[...] A rigor não existem mais cidades, mas conjuntos de áreas metropolitanas” que congregam regiões periféricas com baixa densidade populacional. “As atividades se concentram em áreas despovoadas à beira de auto-estradas e a figura central são os shopping centers” (CAIAFA 2007: 22). A entrada em cena do automóvel privado facilitou o despovoamento dos espaços públicos na medida em que evitava a convivência coletiva e encurtava as distâncias – tirando a atratividade do percurso e transformando-o somente em itinerário para alcançar o destino. A televisão contribuiu sobremaneira para esse processo de esvaziamento urbano, conferindo maior grau de independência entre bairros distantes (e ambientes familiares) e o corpo central da cidade. Não precisávamos mais ir até a cidade para ver um filme, por exemplo. As salas de cinema também se esvaziaram. Um movimento de desurbanização surgiu em consequência disso e delineou uma geografia fragmentada para a cidade contemporânea. A nova estrutura metropolitana, que Janice Caiafa tão bem nomeia de anticidade, parece afinar-se muito mais com a atuação da televisão no meio privado e com a comunicação mediada pela internet do que com os destinos do cinema.

35 As grandes, luxuosas e modernas salas dos anos 1930/40/50 representaram a inovação arquitetural, artística e técnica; simbolizando a própria modernidade da época. A quantidade e qualidade dessas salas de exibição resumiam o progresso que se esperava para o Brasil (ALMEIDA 2000). A revista Cinearte (1926-1942) chegou a mencionar em alguns de seus artigos que a evolução do Brasil se mensurava pelo montante de cinemas funcionando em seu território. Foi nas décadas de 1940 e 1950 que o cinema se transformou efetivamente num bem de consumo de massa. A relação com o cinema atualmente também não é mais a mesma. O cinema atraía multidões e a frequência (mesmo oscilando) se mantinha constante. Ir ao cinema era o passeio mais comum, um hábito, nas décadas do auge dos cinemas de rua brasileiros. Notava-se a separação de classes sociais na opção pela tipologia de sala, comportamentos diferenciados, faixas etárias, identificação com filmes e cinematografias... Mas mesmo escolhendo cinemas diferentes, todos se encontravam na rua. Hoje com a ausência hábito de ver cinemas pela cidade e/ou de ir ao cinema fica bem mais difícil procurar por opções de salas de exibição.

36 Muitas das experiências associadas ao cinema estavam intimamente ligadas às próprias salas de exibição. Esses cinemas eram também um fator de atração. No imaginário do espectador das décadas de 1940 e 1950, por exemplo, os palácios cinematográficos complementavam – reproduzindo no espaço sala de cinema – a atmosfera fantástica dos filmes hollywoodianos. A história e a maneira como ela era contada e mostrada na tela relacionavam-se com o espaço em que essa fábula era exibida. Foi a vivência de um tempo, de uma sociedade e de uma cidade específicos.

37 O fim do século XX e o início do século XXI fazem interagir os diversos meios e linguagens para uma nova concepção de espaço e tempo que parecem possibilitar novas

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configurações ao locus do cinema. Pensando a cultura contemporânea, “as formas híbridas podem ser muito férteis. Conjugam-se arte com ciência; corpos com máquinas; público com privado; ocidental com oriental, gerando novas estruturas, objetos e práticas” (FEITOSA 2006: 113). Os híbridos entre memória e cinema, tecnologia e tradição, maquínico e orgânico estão mais próximos do que imaginamos. Aproveitamos para propor aqui mais um híbrido: o espaço dos cinemas de rua e as novas possibilidades do audiovisual – notadamente o live cinema. O cinema ao vivo que invade o parque exibidor e a cena contemporânea como um todo parece potencializar o caráter mnemônico da arte cinematográfica tanto pela recuperação de imagens e sons a serem reeditados quanto pela sensorialidade que trabalha na fronteira entre lembrança e esquecimento.

Plateia do Cine Palácio na década de 1940, 2010 (Fonte: História do Cinema Brasileiro – http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br/cinema-palacio-–-rio-de-janeiro-rj/)

38 O trabalho dos VJ's30 desenha os pontos, as linhas e as superfícies que o cinema em seu pouco mais de um século prendeu sobretudo às narrativas. O live cinema nos parece nesse sentido um cinema de camadas, uma arqueologia. Arquivo e biblioteca audiovisual presentificados. Parece-nos uma nova configuração em rede ou híbrida das artes. Os performers do live cinema remontam filmes e criam novas narrativas. O palco divide com a tela um novo momento da sétima arte. O cinema ao vivo configura-se diante da emergência de uma nova relação do homem com as imagens e sons em movimento. Se o cinema sempre esteve associado ao registro de algo, hoje em dia ele se faz registro, ele se faz a partir do registro presente das imagens recriadas em uma apresentação ao vivo que redimensiona temas como autoria e gosto, ética e estética, ficção e realidade, questões que atravessaram a história da arte e hoje se encontram em um novo momento. Trata-se de um momento revolucionário devido a uma nova leitura da techné, com que o espaço físico do cinema também precisa estar antenado. A cidade é agora um espaço de desconstrução de antigas formas de consumir cinema em meio à extinção dos cinemas de rua.

Cinema ao vivo pela cidade

39 O cinema ao vivo ou live cinema se delineia em meio a diversas manifestações do audiovisual contemporâneo. Ao criarem e recriarem sons e imagens em tempo real na presença do público, não só em salas de exibição, mas em museus e em superfícies espalhadas pela cidade, os performers dessa atividade reinventam os lugares do audiovisual. O performer audiovisual em tempo real conecta através de sua obra, desdobrada de arquivos e memórias audiovisuais, linguagens e práticas do cinema e de outras artes. Entender essa conexão é compreender que o cinema ao vivo é um

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acontecimento plurisensorial, mnemônico e performático. A prática audiovisual em tempo real – que recentemente ficou conhecida como cinema ao vivo (live cinema) – flerta com (e amplia) uma noção importante para a história contemporânea do cinema: a hibridação entre meio e mensagem e entre interior e exterior. Buscamos compreender algumas performances de live cinema para apontar alguns vetores sobre como o fenômeno da projeção ronda novamente a cidade, estendendo o cinema para além das salas. Entre fenômenos como o mapping, projeções nas recentes manifestações brasileiras, “assombrações” em fachadas de antigos cinemas entre vários outros projetos, um outro território emerge para as imagens.

40 Em 2010, o Cristo Redentor recebeu uma série de imagens da cidade do Rio de Janeiro projetadas sobre a estátua e ao final da “sessão” – comandada por Fernando Salis – se deu um abraço imagético como reverência a cidade (Link: http://vimeo.com/16287133). No penúltimo dia de 2011, os United Vj`s projetaram na fachada do Centro Cultural Banco do Brasil imagens e textos das poesias de Augusto de Campos (Link: http:// www.unitedvjs.com.br/archives/1061). Em evento contra a comemoração do Golpe Militar, em março de 2012, imagens do jornalista Vladimir Herzog foram projetadas na fachada do Clube Militar – também no Rio de Janeiro –; apontando para uma vídeo- intervenção que descomemorava o Golpe de 64 de forma criativa e critica proposta pela artista Moana Mayall (Link: http://moanamayallarte.wordpress.com/trabalhos/2012- sem-titulo-da-serie-videoposter/). As manifestações de junho de 2013 usaram as projeções nos mais variados suportes, de panos ou carrocerias de carros a fachadas de prédios do poder público, o projetor era mais uma ferramenta na luta de uma nova cena política que se desenhava pela cidade. Esses são alguns dos diferentes momentos nos quais a cidade do Rio de Janeiro se tornou tela para artistas que compreendem que a urbe faz o cinema ganhar novas possibilidades. O audiovisual proposto nesse live cinema – nessa performance de sons e imagens em tempo real – nos leva a pensar num geocinema, um cinema feito nas ruas, mas nos leva também a indagar o que acontece com o hábito cinema (MACIEL 2009) que a sala escura consolidou.

41 Se a exibição cinematográfica em película precisa de um projecionista e de comandos instituídos secularmente, as técnicas de live cinema desafiam a projeção através de tecnologias e técnicas diversas. Uma delas, o vídeo mapping, aplicado por alguns Vj’s e demais artistas de performances audiovisuais, consiste na projeção em fachadas, no mapeamento de superfícies arquitetônicas e outras construções, ou ainda mesmo em objetos, lendo as superfícies como informação; pensa-se a imagem como um dado, gerada pelos computadores e manipulada em real time por um performer ou coletivo. Através de um software e de projetores potentes a arquitetura vira tela, demarcando uma nova possibilidade para o cinema para além da sala de exibição ou do interior dos museus e galerias. Os coletivos de Vj’s – como o United Vj’s, de Spetto (link: http:// www.unitedvjs.com.br/about), ou o Coletivo Projetação – fazem das fachadas, muros, monumentos e afins suas telas (link: https://www.facebook.com/ plataformaprojetacao?hc_location=timeline). O mapping se assemelha à navegação inteligente e criativa precipitada tanto por cineastas como Peter Greenaway – no seu cinema de banco de dados ou em sua enciclopédia audiovisual iniciada em seus curtas estruturalistas dos anos 60 e levada ao extremo em projetos que envolvem performances audiovisuais em tempo real – quanto também nas potências da web propostas por Pierre Lévy. Assim, um conceito cartográfico emerge: Um intelectual coletivo entrega-se a navegações em um universo informacional móvel: um cinemapa surge dessa interação. No cinemapa, o universo informacional

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(ou o banco de dados) não é estruturado a priori [...]. Não é regulado tampouco por médias ou distribuições estatísticas à maneira mercantil. O cinemapa desenvolve o espaço qualitativamente diferenciado dos atributos de todos os objetos do universo informacional (LÉVY 2007: 163-164).

42 As imagens e as coisas projetadas “transformam-se, perdem e adquirem atributos o tempo todo” (LÉVY 2007: 163-164) na atual sociedade da informação e nessas projeções ao vivo. O cinemapa e o mapping são sintomáticos de uma cultura audiovisual que repensa as questões do espaço, da arquitetura, das superfícies de projeção. Mapear é preciso. Retomando uma temática benjaminiana – as projeções mapeadas são como “ passagens”, “casas ou corredores que não têm o lado exterior – como o sonho” (BENJAMIN 2006: 450) – e a ideia de que a modernidade pode ser melhor compreendida como inerentemente cinematográfica (CHARNEY; SCHWARTZ 2004: 17), desaguamos na cidade contemporânea permeada e atravessada por sonhos em fluxos e refluxos audiovisuais. Mecanismo que sempre esteve associado ao cinema, o sonho nos leva à poesia de uma nova práxis para o cinema. Pelas passagens também cresciam no início do século XX as salas de exibição cinematográfica – galpões, cine-teatros, pequenos cinemas, palácios cinematográficos ou poeiras – que durante um século transformaram filmes em cinema. Os sonhos tinham um lugar para serem projetados e hoje se deslocam para novos lugares, pela cidade, que se torna cada vez mais tela e teia de sensações e narrativas. Novas aberturas para a arte das imagens em movimento são exploradas por uma [...] nova geração de artistas está explorando as possibilidades da projeção de imagem de fontes como o filme, o vídeo ou os computadores fora do usual contexto do filme e vídeo experimental, menos lidando com paradigmas formais estabelecidos do plano, da tela e da audiência, e brincando com as ambiguidades do espaço, movimento e ontologia (GUNNING 2009: 34, tradução nossa)31.

43 Essas ambiguidades são a tônica de manifestações artísticas contemporâneas que incluem o live cinema e refletem a relação com a tecnologia e o território. O espaço se torna mais uma vez uma questão para o cinema com a explosão da tridimensionalidade, mas também com as projeções em outros espaços da cidade. O movimento, ou aquilo que Gunning (2012) chama de cinemático32, tem como exemplos os artistas aqui mencionados (como a dupla Vj Suave e o Coletivo Projetação) e também obras não específicas de live cinema – como videoinstalações, que por vezes são apresentadas em tempo real –, e algumas outras manifestações que serão detalhadas mais a frente. Para Tom Gunning, essencialmente por ser atração, “o cinema é um meio do movimento”33; assim, noções como campo e suas derivações precisam ser relidas em função dos objetos que se dão nesse cinema que retorna ao movimento. Peter Greenaway e os espaços nos seus filmes, já nos anos 80 e 90 também parecem evidenciar esse cinema desterritorializado e enraizado no espaço como objeto.

44 Espaços novos delimitam uma espécie de geografia para o cinema nos dias de hoje, práticas novas com objetos que se tornam superfícies de projeção e que ganham outros contornos no audiovisual, locais que afirmam que a arte contemporânea se potencializa na rua e esta se torna novamente ambiente de projeção.

45 Arte que conjuga mundos, arte por excelência da cidade, onde a desterritorialização é de imanência, os recortes no tempo são desse tempo presente e porvir. A geo-filosofia, terra que “não cessa de operar um movimento de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI 1992: p. 113-114), ajuda-nos a pensar o cinema que opera uma mudança, um corte no território do que ficou conhecido como cinema – os lugares do faroeste

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(cidades fantasma); os mundos da ficção científica (outros planetas); os castelos dos filmes históricos; as ruínas nos filmes épicos; o palco, o proscênio e o teatro nos primórdios do cinema clássico-narrativo. Da geo-filosofia dos filósofos franceses ao geo- cinema dos performers audiovisuais.

46 Para o geo-cinema, essa não-separação material, esse novo colocar do tempo e do espaço – existencial, defensor do caos, ou que tenta por ao menos alguma ordem no caos do cinema clássico-narrativo – é um lugar geográfico. Um plano imanente cortado por camadas como as projeções ao vivo, como um cinema que se faz a partir dos objetos e da relação do homem com esses. Uma dupla troca de idas e vindas, de afinidades com um cinema em metamorfose. E todavia inquietantes afinidades aparecem, sobre um plano de imanência que parece comum. [...] as ordenadas intensivas em traços contínuos e descontínuos. Mas tais correspondentes não excluem uma fronteira, mesmo que difícil de discernir. É que as figuras são projeções sobre o plano, que implicam algo de vertical ou de transcendente; os conceitos, em contrapartida, só implicam vizinhanças e conjugações sobre o horizonte (DELEUZE; GUATTARI 1992: 120-121).

47 A tela como horizonte, o além da tela como devir. A vertical da tela nos espaços públicos como compósito de informações, onde novos objetos surgem e cortam o plano – como no curta de David Lynch, “Cada um no seu cinema”. Não mais filmes-conceito, mas um novo conceito para filme. Uma natureza cinematográfica e uma construção. Pensar o cinema em função de seus objetos e territórios é pensar a relação entre natureza e artifício. Geo-cinematográfico é o espaço da projeção e a profundidade da tela. Um cenário é também uma construção de um objeto. Todo um cinema de escalas agora deve passear pelas mentes de quem faz e vê cinema. Não só mais um formato como o cinerama, o cinemascope ou um território de pixels e definições – como desejam os amantes tecnológicos da arte cinematográfica –, mas uma relação entre natural e substancial. Nesse sentido, o geo-cinema também desponta para um outro conceito, o de ruína. Uma primeira leitura para entendemos essa dupla relação vem de Simmel em seu texto “A ruína” (1998: 138), “[...] O que erigiu o edifício foi a vontade humana, o que lhe confere sua aparência atual é o poder da natureza, mecânico, rebaixador, corrosivo, demolidor. A natureza fez da obra de arte o material para sua formação, como antes a arte se servira da natureza como substância”. Essa transmutação entre matéria e natureza teve no cinema, ao longo da história, toda uma série de nuances. Primeiro, o cinema tinha nas ruas e nos ambientes abertos seu locus para captação e para a projeção das imagens. Em seguida, o cinema se enclausura em estúdios, vaudevilles ou nickelodeons para então chegar às salas escuras. Os estúdios transformavam a realidade em um universo possível de ser simulado. Os lugares dos filmes eram seus cenários depois que as notícias filmadas dos Lumiére perderam espaço para as trucagens de Méliès – que em dez anos “nunca saiu de seu estúdio” (SADOUL 1963: 58) – ou para o contar de histórias de Porter e Griffith. O estúdio é uma espécie de ruína, se continuarmos a leitura de Simmel, por unir-se ao seu entorno, ao que o cerca... A ruína une-se a paisagem a sua volta, assim como árvore e pedra nela se ligam; ao contrário o palácio, a vila e a casa de campo, mesmo onde eles se conformam melhor ao ambiente de sua paisagem, provêm sempre de outro ordenamento da natureza [...]. Na ruína, nota-se amiúde uma peculiar igualdade com a tonalidade do chão ao seu redor. Cores e influxos de chuva e sol numa “unidade pacífica do copertencer” (SIMMEL 1998: 140, grifo do autor).

48 Temos um co-pertencimento entre autor e espectador, entre cidade e cinema. Há esse cinema de rua em ruína, que se torna tela para exibição de performances audiovisuais –

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como faz Paola Barreto em seu Cine Fantasma, “série de videointervenções urbanas que ocupa espaços públicos ao ar livre, e acontece em locais que já abrigaram, um dia, salas de cinema”. Assim, mixando “imagens de arquivo com trechos de filmes e imagens captadas ao vivo da ação, as projeções em grande formato evaporam-se pelas paredes externas dos edifícios, ativando a memória da cidade e cruzando imaginários urbanos” (link: http://cinefantasma.blogspot.com.br/p/sobre-o-projeto.html). Performance que faz o cinema lidar com suas crises e mais ainda com suas memórias e que coloca a dimensão urbana novamente em jogo para discutir o próprio cinema.

49 O live cinema reiventa o cinema de poesia e a memória do cinema, faz poesia das imagens em movimento, mapeia memórias. A rua torna-se o locus de um cinema que é pensado e praticado em tempo real. Cinemas em fachadas. Novas telas surgem nas cidades que assistem o processo de extinção dos cinemas de rua. Nós pensamos outro cinema que aposta no poder dos arquivos e na sua imperfeição que se dá com o trabalho dos Vj’s. O cinema ao vivo – em suas modalidades diversas: o vjing, o aving e as projeções mapeadas – parece se fundamentar em uma frase que McLuhan frisava em seu método exploratório. “Eu quero mapear novos terrenos no lugar de mapear pontos de referência”34. Os artistas live são exploradores de novas possibilidades para a linguagem do audiovisual percebendo na cidade mais que um laboratório da sociedade como preconizava a Escola de Chicago no início do século XX, mas um laboratório estético de um novo cinema. Se as sinfonias da cidade (cities simphonies) marcaram parte da vanguarda dos anos 20, hoje a cidade é sinfonia para um outro audiovisual mais performático e mnemônico.

Ruínas do prédio do Cine Plaza abandonado, 2009 (Fonte: Rio de Janeiro que eu amo – http:// riodejaneiroqueeuamo.blogspot.com.br/2009/11/blog- post_6475.html).

50 O audiovisual é além de fruído dia após dia em diferentes telas, uma prática amiúde no contemporâneo. Em meio à produção televisiva, à emergência dos games e do vídeo na rede mundial de computadores, às câmeras e às possibilidades de exibição e circulação cada um de nós pode se tornar produtor audiovisual. O cinema mais uma vez parece ser o locus que melhor entende as transformações de si e desse próprio momento em que imperam as imagens e sons nos media.

Considerações Finais

51 Se o hábito cinema cristalizou-se como uma afirmação de uma cultura dominante, disseminando um modelo clássico-narrativo, hoje em dia velhos ambientes dialogam com novas práticas audiovisuais. Construir experiências audiovisuais com o espectador

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e não só para ele, essa parece ser a lógica da arte tecnológica contemporânea. Aqui mais uma vez nos deparamos com a questão da memória lida pelo cinema, como tão bem refletiu Tarkovski: “[...] A memória, porém, é algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais ela nos afeta” (1990: 64). Novas práticas audiovisuais e salas de cinema de rua são alianças importantes nessa cultura de vidro (BENJAMIN 1994) em um momento crucial de nossa experiência urbana imagética, sonora e mnemônica.

52 Antes mesmo da situação imersiva e performática introduzida pelas novas mídias na fruição cinematográfica e as transformações sociais e econômicas dela decorrentes, muitos cinemas de rua já ofereciam ao espectador uma experiência distinta – de realismo imersivo (na origem baziniana do termo), por exemplo, nas histórias das grandes produções hollywoodianas, graças a determinados ambientes de arquitetura e decoração majestosas. Muitas de nossas salas de exibição cinematográficas urbanas procuraram atender às demandas das inovações tecnológicas aplicadas ao cinema a partir da década de 1950. Tentando manter-se em consonância com essas cada vez mais novas exigências técnicas esses cinemas de rua estabeleceram um fundamental paradoxo para sua permanência em atividade na cidade. À medida em que os avanços tecnológicos vão sendo incorporados a essas salas de projeção fílmica suas características tradicionais mais originais começam a se perder. Desde esse início do fim até a contemporaneidade, as intensas e constantes transformações tecnológicas modificaram o conceito tradicional de cinema e de espectatorialidade. Distintas possibilidades para a criação e fusão de outras noções – anteriormente mais fixas e rígidas – redefinem novos perfis espectatoriais, passando por processos interativos e intermidiais, diferentes suportes e plataformas em novos cenários exibidores pós- cinema.

53 Nossas considerações finais explicitam-se na verificação de que: 1) os cinemas de rua tiveram uma participação direta na consolidação de uma determinada imagem para exibição brasileira; 2) na suposição de que a presença ainda hoje de alguns desses cinemas em nossas paisagens citadinas provam o quanto sua existência foi (ou é) marcante na evolução do parque exibidor nacional e da vida urbana; 3) no pressuposto de que os estatutos da recepção cinematográfica modificaram-se diante dos novos regimes de projeção audiovisual introduzidos pelas novas mídias digitais no contemporâneo; 4) e pelo testemunho de que o live cinema performatiza, atualiza e rememora o próprio cinema.

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NOTAS

1. Os music-halls ingleses, os cafés-concerto franceses e os vaudevilles e smocking concerts americanos. Podemos incluir aqui também as penny arcades norte-americanas (chamadas Kermesses, na França), salas contendo uma variedade de máquinas de entretenimento movidas a moedas (SADOUL 1963). 2. Na categoria “pequenos e simples” cinemas podemos alocar também os famosos nickelodeons (1905-1909) norte-americanos. 3. Pela bibliografia pesquisada – em língua portuguesa e inglesa – podem ser utilizadas as terminologias palácio do cinema, movie palace ou picture palace como sinônimos da expressão palácio cinematográfico. 4. Complexos contendo várias salas de exibição concentrados, em geral, em shoppings centers,geralmente associados a um plano de exportação do produto cinematográfico norte- americano. Os multiplex oferecem uma “otimização total do espaço, oferta múltipla de

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filmes, economia de escala na administração, projeto inteligente de automação, oferta de serviços adicionais, além de uma pulverização do risco de fracasso de bilheteria (devido à possibilidade de manutenção de um título em cartaz por um tempo maior) e a alta rotatividade entre as várias salas” (ALMEIDA; BUTCHER 2003: 65). 5. A exibição de filmes que localiza o espectador entre a tela e o projetor. 6. Conceito criado por Hélio Oiticica para caracterizar o espectador como parte da obra. Sem a participação do espectador a obra não existe. 7. Termo popularizado por Arlindo Machado (1997) para designar a contemporânea configuração – híbrida, múltipla e em metamorfose – do cinema em diálogo com meios eletrônicos e digitais. 8. Video Jockey (Vj) é um misto de Disc jockey (Dj) e performer a/v responsável pelo espetáculo no Live cinema. 9. Cinecarioca Nova Brasília (2011), Cine Santa Teresa (2003), Espaço Itaú de Cinema (2011), Estação Botafogo (1995), Estação Rio (2000), Leblon (1951), Odeon (2000) e Roxy (1938). Não contamos as salas com programação erótico-pornográfica, por estarem fora do circuito exibidor comercial. 10. A expressão cinema de rua envolve a sala de espetáculos cinematográficos cuja localização privilegia as calçadas urbanas, tendo suas fachada e entrada ocupando diretamente esses passeios públicos citadinos; categoria que começa a operar precisamente quando surgem cinemas no interior de centros comerciais (década de 1950). 11. Cine Odeon, na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro. 12. O Cine Santa Teresa é um cinema de rua (em formato de sala reduzida) inaugurado em 2003. 13. Um cinema em uma das praças do Complexo de Favelas do Alemão, que contém uma única sala de exibição, inaugurado em 2011. 14. Em 2011, o grupo exibidor fechou uma parceria com o SESC para a administração dos cinemas da cadeia Estação, mas no final de 2012 esse breve acordo se desfez. Segundo Luca (2013), o Grupo Estação está sob a proteção da recuperação judicial, o que evitou seu despejo do Odeon e do Estação Rio; promovido pelas holdings das famílias Severiano Ribeiro (proprietárias dos dois cinemas). 15. Os cinemas de rua atuais possuem, por vezes, tipologias distintas daquelas observadas em épocas anteriores. 16. BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Vol. I. Paris: Editions du Cerf, 1958. 17. E, contemporaneamente, a outras experiências audiovisuais. 18. O filme colorido, grande avanço tecnológico, surgiria em 1933, mas chamaria mesmo a atenção em 1935 com a estreia de Becky Sharp (Vaidade e beleza), de Rouben Mamoulian. Esse lançamento da Technicolor conferiria maior impressão de realidade e definição de imagem. 19. O modelo de equipamento Dolby Stereo CP-50, distribuído a partir de 1977, transformou-se num sinônimo de sistema estereofônico. 20. O primeiro cinema do Rio de Janeiro exibir a projeção em 70 mm foi o Vitória (1942), em 1965, com o filme My fair lady. 21. Chamamos novos cinemas exibições audiovisuais desvinculadas do espaço fechado das salas de exibição cinematográfica (cinemas de rua ou shopping center) enquanto construções arquitetônicas especialmente moldadas para sediar projeções de filmes. 22. Traduz-se, às vezes, por “cinema expandido” a expressão americana expanded cinema (utilizada a partir da década de 1970), que designa formas de espetáculo cinematográfico nas quais acontece algo a mais do que somente a projeção de um filme: danças, ações diversas, “happenings” etc. (AUMONT; MARIE 2003). 23. Performances de imagens e sons em tempo real. 24. O live cinema encontrou acolhimento nas instalações do Cine Odeon Petrobras. Em 2007, no Festival do Rio ocorre a primeira mostra Live Cinema no Rio de Janeiro. Os filmes foram projetados por Vj’s ao vivo em sessões à meia-noite no Odeon BR.

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25. Filmes encontrados ou achados. Para Aumont, trata-se de um quase “gênero” que se aparenta com a colagem ou fotomontagem. “Filmes que, com base em uma coleção de filmes, tentam exprimir uma certa ideia, sempre de ordem histórica, por meio da montagem” (AUMONT 2004: 89). 26. “Abstraction and dematerialization associates with projection”. 27. “Certainly the true “city of light” has yet to be realized. Recent trends in the application of advanced technology o what might be called ‘functional aesthetics’ indicate a transformation in urban design, the gradual convergence of functionality and beauty, the mundane and the mysterious”. 28. Para uma discussão mais aprofundada sobre o Live cinema ver a tese de doutorado de Wilson Oliveira Filho (2014) – PPGMS/UNIRIO. 29. Em nosso texto, utilizamos os termos cinema contemporâneo e pós-moderno com sentidos distintos. Em Antonio Costa, o cinema pós-moderno é o cinema “depois do cinema moderno” (COSTA, 1989, p. 132), um período de transição, de uma superação da tradição em todas as suas manifestações – na criação artística, na pesquisa teórica, na política cultural etc. Em consonância também com o pensamento de Fernão Ramos (2008, p. 10), para quem “o apetite intertextual da modernidade dos anos 1960 vai se dilatando, dilatando, até estourar. Ao estourar, acaba cortando o modernismo com o pós, instaurando uma espécie de modernismo de si mesmo”. E o cinema contemporâneo é distinguido a partir de um pós-pós modernismo. Nomeamos de cinema contemporâneo o cinema que temos de meados dos anos 1980 para cá. 30. Não mais somente os video jockeys, apresentadores de vídeo clipes, mas como observa Spinrad, visual jockeys (2005, p. 13), criadores de visualidades e sonoridades. Os Vj’s são representantes da prática que, ainda sem uma nomenclatura muito definida, se convenciona chamar live cinema. 31. “A new generation of artists is exploring the possibilities of image projection from film, vídeo, or computer sources outside the usual contexts of experimental film and vídeo, thus dealing less with the established formal paradigms of frame and screen and audience, and playing with ambiguities of space, motion, and ontology” (GUNNING, 2009, p. 34). 32. Ao lado dos artistas Synne Bull e Dragan Miletic, que compõem o duo de videoartistas Bull. Miletic, Gunning explorou, em 24 de maio de 2012, esse tema em palestra na universidade de Chicago. A questão do cinemático, do movimento no cinema, nos leva de volta (como concluíram os palestrantes) a enxergar a questão do movimento também fora dos filmes e projetores. Os artistas noruegueses que dividiram com Gunning a apresentação mostraram ao vivo a obra “ Heaven can wait” – um projeto que trata os revolving restaurants (restaurantes no topo de prédios que giram 360º) como um aparato ótico. Na exibição ao vivo, no Film studies Center da Universidade de Chicago, a obra foi apresentada e a audiência viu um filme que circundava o ambiente. 33. “Cinema is medium of a movement”, observação feita por ocasião da entrevista realizada em Chicago durante o período de doutorado-sanduíche (2012.1). 34. "I want to map new terrain rather than chart old landmarks". MCLUHAN, The Playboy interview, In http://www.nextnature.net/2009/12/the-playboy-interview-marshall-mcluhan/ Acesso em 25 dez. 2011.

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RESUMOS

No presente artigo abordamos as projeções audiovisuais pela cidade e uma nova geografia que se desenha através dessas performances em tempo real do que se convencionou chamar de live cinema, num momento em que as salas de exibição cinematográfica passam por situação delicada de quase total erradicação do cenário urbano carioca. Ao mesmo tempo em que o cinema ao vivo pensa a cidade, transformando-a em laboratório audiovisual, a cidade precisa (re)pensar seus cinemas de rua. Sendo assim, nossa proposta é aqui entender dois vetores importantes na exibição cinematográfica: a memória das salas de projeção e um novo lugar para o exercício da arte das imagens em movimento.

In this paper we approach audiovisual projections in the city and a new geography that is drawn through these real time performances o the so-called live cinema, in a moment when the cinema exhibition halls undergo delicate situation of almost total eradication of Rio de Janeiro urban scenario. While the live cinema thinks the city, turning it into an audiovisual laboratory, the city needs to (re)think their street’s movie theater. In this sense, our goal here is to understand two important vectors to cinematographic exhibition: the memory of projection screening rooms and a new place for moving images art practice.

ÍNDICE

Keywords: city, live cinema, street’s movie theater, audiovisual, projections Palavras-chave: cidade, cinema ao vivo, cinema de rua, audiovisual, projeção

AUTORES

MÁRCIA BESSA

Márcia Cristina da Silva Sousa é conhecida profissionalmente como Márcia Bessa. Endereço para acessar o CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6540939615825928. Atualmente, trabalha como diretora na MP2 Produções. [email protected]

WILSON OLIVEIRA FILHO

Endereço para acessar o CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3887403771911100. Atualmente, trabalha como docente na UNESA e na ECO/UFRJ. [email protected]

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Religião, grafite e projetos de cidade: embates entre “cristianismo da batalha” e “cristianismo motivacional” na arte efêmera urbana Religion, grafitti and projects in the city: clashes between “battle christianity” and “motivacional christianity” on the urban ephemeral art

Christina Vital

NOTA DO AUTOR

Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na Mesa Redonda “Pesquisando religião: novos temas, novos métodos, novos desafios”, coordenada por Renata Menezes (MN-UFRJ) e integrada por mim, Emerson Giumbelli (UFRGS), Ronaldo Almeida (UNICAMP) e Carly Machado (UFRRJ) na 29ª RBA/2014. Aproveito para agradecer as contribuições fundamentais a este artigo feitas por Paola Lins, Edilson Pereira e Emerson Giumbelli em diferentes momentos da análise dos dados.

Introdução

1 O cosmopolitismo genuíno, segundo Magnani (2009), seria caracterizado por uma abertura intelectual e estética na direção de experiências culturais diversas. Mais do que uma aceitação da diferença, o cosmopolitismo poderia ser reconhecido por uma valorização dos contrastes, por uma angústia com as uniformidades. “Assim, a presença das diferenças é elemento constitutivo da forma-cidade, em todos os setores – e a religião é um deles – sua aceitação, a convivência com elas, a tolerância, enfim,

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dependem dessa característica, o cosmopolitismo que às vezes, é tomado como sinônimo de um outro termo, hoje muito em voga, a globalização” Magnani (2009:22). Ainda que na análise proposta pelo autor a cidade não seja identificada necessariamente como cosmopolita, é notável que os estudos que privilegiam a observação da diversidade cultural tendam à “oclusão do tema desigualdade- segregação” (Mafra; Almeida 2009:11).

2 Nesse mesmo artigo de Magnani (2009) na coletânea Religiões e Cidades, organizada por Clara Mafra e Ronaldo Almeida, o religioso, como uma dimensão da vida social, comporia inapelavelmente o ambiente urbano moderno. Na perspectiva do autor, a diversidade religiosa na cidade é identificada, respeitada, valorizada a partir da produção de uma territorialidade em parte segmentada, em parte baseada em fluxos. A pesquisa de campo do autor é realizada em São Paulo, mas ele sugere que não somente ali, mas em todas as grandes cidades cosmopolitas do globo, a existência dessa modulação de diversidade seria evidente. No entanto, é através desse mesmo quesito, o religioso, sobretudo a partir dos anos 2000, que podemos identificar em grandes cidades brasileiras dissensos, conflitos, violências, segregação fruto do que se convencionou chamar de “intolerância religiosa”. Trato desse tema no âmbito de outras publicações e pesquisas, no entanto, destaco-o aqui com a finalidade de dizer que é nesse campo conflitivo urbano, é no encontro disputado das religiões nas cidades que construo uma série de questões e tentativas de análise.

3 Nesse exercício de análise do material coletado, além do diálogo com a antropologia urbana e da religião apresentou-se frutífero o diálogo com referências teóricas do campo da sociologia da religião e antropologia da modernidade em dois pontos específicos: as discussões em torno dos secularismos existentes me contrapondo a uma noção mais reificada da secularização, assumindo a combinação entre modernidade e a presença de religiões no espaço público (Asad 2003; Giumbelli 2002, 2008, 2010, 2011; Montero 2006, 2009, 2012; entre outros). Outro ponto diz respeito ao uso das imagens pela religião com a finalidade de estabelecer uma comunicação mediada entre interlocutor e receptor (Latour 2004; Sansi 2005; Musil 2006).

4 Neste artigo pretendo destacar, ainda, o potencial epistemológico e heurístico da religião para a compreensão de dinâmicas sociais operadas nas cidades por diferentes atores tais como traficantes de drogas, evangélicos e pelo Estado, através de um suporte específico, inscrições e imagens religiosas, algumas delas identificadas com a estética do grafite – identificado também como arte efêmera, arte urbana, arte da periferia ou arte do desapego. Não se trata de uma reflexão afinada propriamente à Antropologia Visual, mas em diálogo com as contribuições dela advindas ao considerar que “as imagens não falam por si sós, mas expressam e dialogam constantemente com modos de vida típicos da sociedade que as produzem. Nesse diálogo elas se referem a questões culturais e políticas fundamentais, expressando a diversidade de grupos e ideologias presentes em determinados momentos históricos. Por meio da análise dessas imagens, podemos também melhor entender as mudanças e transformações por que passaram os diferentes grupos sociais e as tendências artísticas que inspiraram tais imagens”. (Novaes 2005: 110,111). Nesse sentido, considero que essas imagens performam uma comunicação mediada religiosa, mas também seus conteúdos e sua produção dizem respeito não só a esse campo específico, mas a outros nelas atravessados.

5 Sendo assim, segui as pistas fornecidas por imagens que foram produzidas, desfiguradas e colocadas outras em seus lugares por traficantes de drogas, por policiais,

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e/ou por jovens artistas na favela de Acari, Rio de Janeiro, desde os anos 1990 até os anos 2010. A partir desse material busquei refletir sobre modalidades de presença das religiões nas favelas, sobre a interface entre criminalidade e religião (Vital da Cunha 2014a), sobre a gestão desses espaços e populações pelo Estado (Vital da Cunha 2014b; Machado 2013; Esperança 2012) e, alvo mais recente de meus interesses, sobre a comunicação entre projetos de cidade e os grafites religiosos presentes em diferentes pontos da cidade. Em termos metodológicos, seguir as pistas dessas imagens exigia uma certa disciplina do olhar, sobre a qual já falaram tantos autores, de Malinowski a Roberto Cardoso de Oliveira, e também uma abertura à consideração visceral dos dados de campo, da aceitação e análise da emergência de combinações e interações antes desconsideradas na bibliografia sobre religião no Brasil, tal como a relação intrínseca entre criminalidade e cristianismo na figura do “traficante evangélico” (Vital da Cunha 2009). Nesse sentido, era preciso avançar contra análises que enfatizavam mais as fronteiras afirmando oposições e perspectivas canonizadas. Em última instância era preciso confrontar as moralidades impregnadas no campo de trabalho, entre os pesquisadores da temática e propriamente as moralidades que me constituíam e que guardavam profunda relação com a autoapresentação dos evangélicos em campo, por um lado, e com a produção acadêmica que lhes reservava um lugar predominantemente positivo1. O negativo, o “erro”, a “imoralidade”, quando observada entre os evangélicos era apresentado predominantemente como residual, como desvio, não como constitutivo de um modo possível de ser evangélico no meio urbano brasileiro na atualidade.

6 Dividi este artigo em três sessões, respeitando as temporalidades que emergiram da própria produção das imagens religiosas na favela de Acari introduzindo, posteriormente, outro conjunto de imagens referentes a grafites religiosos na cidade. Embora esse seja um novo objeto de interesse, guarda uma linha de continuidade com a análise das imagens religiosas da favela lançando luz sobre outras dinâmicas sociais urbanas, a saber, a difusão de projetos religiosos de cidade através de uma intervenção artística específica e as disputas internas ao segmento evangélico entre um cristianismo motivacional e o cristianismo da batalha espiritual.

7 As imagens religiosas na favela em 19902

8 Ao iniciar o trabalho de campo em Acari, conjunto de favelas localizadas entre dois bairros da Zona Norte carioca, em 1996, chamou a minha atenção a profusão religiosa no espaço identificada pela presença de faixas anunciando eventos religiosos, pelas pinturas de santos católicos e entidades da umbanda, assim como pelos altares religiosos com imagens de São Jorge, Zé Pilintra, Escrava Anastácia e pela composição de uma paisagem sonora3 predominantemente evangélica. Embora as imagens religiosas fossem tão presentes, não as tomava como objeto central na análise. Elas emergiam, como caracteriza Milton Guran (2002), como referências para contar sobre dinâmicas sociais locais, não para descobrir, ainda nos termos desse autor4.

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Foto 1: Momento 1- estética medieval (inspiração imagens católicas finlandesas). Imagens de entidades, altares de santos, remissões étnico-religiosas. Sem identificação de autoria. Favela de Acari. Imagem de Marcos Alvito. Ano 1996.

Foto 2: Mural na Favela de Acari – São Jerônimo/Xangô. Favela de Acari. Imagem de Marcos Alvito. Ano 1996.

9 Durante alguns anos em campo depois do impacto inicial, as imagens religiosas, em certo sentido, compunham o cenário local para mim como um monumento5 no sentido que Robert Musil emprega ao termo ao dizer que a enorme visibilidade produzida pela imagem gera o seu efeito contrário passando a torná-la invisível. “Não há nada no mundo tão invisível quanto um monumento. Eles são, sem dúvida, erigidos para serem vistos, na verdade para chamar a atenção. Mas, ao mesmo tempo, eles são impregnados com algo que repele a atenção, fazendo o olhar desviar, como a água sobre uma camada de óleo, sem sequer pausar por um momento” (Musil [1946] 2006:64). No entanto, o acompanhamento do processo de destruição e desfiguração dessas imagens em Acari e a colocação de outras em seu lugar (por traficantes ou por policiais), ensejou uma série

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de reflexões sobre a agência política e social daquelas imagens6, o feixe de relações que lhes atravessava. Nesse sentido, vi operar uma “invisibilidade ativa”, tal como apresenta Giumbelli (2010), pois “com a desfiguração, a estátua move-se de um excesso de invisibilidade para um excesso de visibilidade (Taussig 1999, p. 52 apud Giumbelli 2010, p. 94)”.

10 A partir de então, embora houvesse uma predominância da escrita sobre a visualidade7 a narrativa e as análises se construíram sob a orientação das imagens que foram de modo cada vez mais contundente marcando temporalidades e dinâmicas sociais específicas, mas que, ao mesmo tempo, se relacionavam com dinâmicas supralocais. Assim, passei a observar, como analisa Anderson (2008), a afirmação e ao mesmo tempo a produção, através da obra, de uma identidade8 e de um imaginário coletivos. A eficiência desses símbolos, como nos lembra o autor, se daria no interior de uma lógica comunitária específica na qual caberia pouco questionamento fazendo parecer que certas coisas são como “essenciais, naturais”. Nesse sentido, as imagens reforçavam uma relação intrínseca e também inquestionável (pois explicitada por traficantes de drogas que a si rogavam o domínio no e do local) com o universo religioso plural da umbanda e candomblé, assim como católico e, posteriormente, de modo mais determinante, evangélico. Nesta década, era possível acompanhar, pelas imagens, a presença dos umbandistas e candomblecistas no território, as festas religiosas que contavam com dias de comemoração de São Cosme e Damião, São Jorge, Preto Velho. Essas datas religiosas e de passagem como o Réveillon eram celebradas com fogos de artifício em terreiros e outros pontos de reunião de moradores na favela como praças e quadras esportivas. Referências na literatura e também acadêmicas tratavam da relação existente entre traficantes de drogas e pais e mães de santo nas favelas, uma adesão inquestionada nessa produção e, sendo assim, que emergia de modo naturalizado, romanceado entre criminosos, entidades e orixás. (Lins 1997; Lins, Lourdes da Silva 1990; Barcelos 2005).

11 Com o passar dos anos e do crescimento de templos evangélicos em Acari, fenômeno igualmente identificado em outras favelas e periferias, era possível verificar o decréscimo da pluralidade religiosa nas imagens e na paisagem sonora. Os terreiros em atuação passaram de cinco para somente um. No lugar das entidades foram colocadas pelos traficantes e pelo Estado, na figura dos policiais, imagens de Cristo e o esmaecimento das pinturas religiosas católicas era flagrante. Os canteiros de flores já não eram mais cuidados, dando sinais da perda da força da identidade entre o símbolo exposto e aquela coletividade (criminosa e não criminosa).

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Foto 3: Altar já sem o santo e mural degradado – São Jorge. Favela de Acari. Imagem de Marcos Alvito. Ano 1996.

As imagens nos anos 2000

12 Nos anos 2000 as imagens presentes na favela de Acari faziam clara referência ao universo evangélico. Todas as casinhas de santo e as entidades nela contidas haviam sido destruídas. As pinturas que evocavam a naturalização (ou imposição, outros diriam, já que foram feitas a mando de traficantes locais) de uma afinidade com o universo do catolicismo popular e da umbanda e candomblé foram inteiramente substituídas por pinturas de textos bíblicos. Outdoors com iluminação noturna foram colocados em locais de muita visibilidade interna e externa à favela (sobre a associação de moradores e em uma entrada da favela feita pela Avenida Brasil).

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Foto 4: Momento 2 - referências religiosas textuais com a assinatura de um coletivo. Universo Evangélico. Batalha Espiritual. Favela de Acari. Imagem de Christina Vital. Ano 2008

13 Em termos locais, vivia-se o que se chamava um período de “guerra” (Leite 2000; Soares 1996; Alvito 2001 etc.). Entre os anos finais de 1990 e meados dos anos 2000, as mortes de moradores e de traficantes de facções rivais em conflitos com os traficantes de Acari eram intensas e cotidianamente comentadas. O cenário da favela era composto, entre outros, por traficantes que circulavam com granadas na cintura. Violentos confrontos armados entre policiais e bandidos ganharam força novamente. A possibilidade de invasões de bandos rivais estava sempre nas conversas levadas seja nas casas, seja nos bares locais. No plano mais geral, o do tráfico na cidade do Rio de Janeiro, intensos enfrentamentos armados se davam em torno da cisão interna da facção criminosa Terceiro Comando. Uma nova facção estava em formação, a ADA – Amigos dos Amigos. A disputa em torno dos antigos pontos de venda de drogas do Terceiro Comando se acirrou entre TC (que viria a se chamar TCP – Terceiro Comando Puro), ADA (Amigos dos Amigos) e CV (Comando Vermelho).

14 Esse período foi identificado pelos moradores como de início do controle dos evangélicos seja pelo crescimento no número de fieis e dos seus templos, da publicização da intolerância religiosa na direção dos terreiros e fieis da umbanda e candomblé em Acari, seja pela adesão de vários traficantes, no exercício pleno de suas atividades criminosas, a igrejas evangélicas locais. Jeremias, um “traficante evangélico” passou a regular o comércio de drogas estabelecendo uma periodização sistemática da sucessão de traficantes no comando das “bocas” locais, promovendo unificação do comando dos pontos localizadas em áreas contíguas, mas que eram rivais, diminuindo a letalidade do tráfico nas punições, na “vigília” e na relação com a polícia. Tudo isso fora estabelecido, segundo relatos do próprio Jeremias, a traficantes locais por mim entrevistados à época, após uma revelação feita em um culto evangélico. Assim, concluo, baseado também na experiência de uma das mais importantes chefias do comércio de drogas no Rio de Janeiro, Cy de Acari, Jeremias passa a ser o que designou de “super-homem”, pois se considerava “salvo” pelo evangelho, tinha bens, era respeitado na favela e fora dela e ainda regulava o comércio de drogas local adquirindo altas somas em razão disso.

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Foto 5: Outdoor sobre a associação de moradores do Parque Acari. Ao lado da estrutura de ferro que comportava uma imagem de São Jorge na década de 1990. Favela de Acari. Imagem de Christina Vital. Ano 2006.

15 As pinturas e outdoors apresentavam o domínio local exercido por Jesus e por Jeremias, o chefe do tráfico de drogas de Acari convertido à ADUD. No outdoor colocado sobre a laje da Associação de Moradores do Parque Acari era possível ler “Jesus é o Senhor deste lugar”. Além dessas e de outras tantas mensagens que remetiam a Jesus e a adesão da localidade a ele, predominavam Salmos (25, 91) e outros trechos bíblicos do Antigo Testamento. Os tipos de letra eram, principalmente, retas ou em Old English e as pinturas faziam referência estética a rolos abertos de pergaminhos.

As imagens em 2013

16 A partir dos anos 2010, mais precisamente em 2013, novamente as imagens em movimento marcavam outro momento da relação entre traficantes e evangélicos. Segundo informações obtidas no campo9, o pastor Marcos Pereira, líder da Igreja Assembleia de Deus dos Últimos Dias, que no início dos anos 2000 teria sido responsável pela negociação que resultou na prisão amplamente coberta pela mídia do então mais procurado chefe do tráfico da facção Terceiro Comando e que foi responsável pela conversão desse mesmo traficante a ADUD, estaria descontente com o apoio dado à campanha do seu irmão em Acari. Allan Pereira, irmão do pastor Marcos Pereira, foi candidato a vereador em 2012 pelo PCdoB e não foi eleito. Obteve 3.121 votos. Houve inúmeras controvérsias no próprio meio cristão em torno de sua candidatura por um partido comunista, mas não me deterei nelas nos limites deste artigo (Machado, 2013). Sendo assim, segundo relatos, o estremecimento na relação entre Jeremias e o pastor Marcos Pereira teria sido motivado pela candidatura derrotada de seu irmão a vereador do Rio de Janeiro. Outra versão sobre esse afastamento circula. Nessa emerge o inconformismo de Jeremias diante da negativa do pastor Marcos em lhe restituir os

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bens que colocou em nome do pastor e de seus familiares quando ainda estava envolvido mais diretamente em atividades criminosas na favela10. Em uma ou outra versão o que se tenta justificar é uma nova temporalidade marcada pela perda de influência do pastor Marcos e também de Jeremias na localidade. Não há mais os marcos ostentatórios do domínio da facção, de Jeremias e dos evangélicos da ADUD no local. Ao menos não na forma em que emergiam marcando para fora o domínio que seria exercido internamente. Os outdoors foram retirados. Todos eles. As pinturas com trechos do Antigo Testamento foram substituídos por novas mensagens e eram anunciados através de uma nova estética.

Foto 6: Momento 3 - grafite evangélico. Assinatura e estética urbana. Ajustamento – alegria, magia, cores. Novo testamento, mensagens de incentivo.Favela de Acari. Imagem de Christina Vital. Ano 2013

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Foto 7: Mural. Favela de Acari. Imagem de Christina Vital. Ano 2013.

17 As mudanças entre a estética anterior e a que se apresentava agora na favela eram muitas. Além do amplo uso do Novo Testamento, é possível localizar um conjunto de palavras que juntas formavam uma paisagem motivacional composta por textos, palavras e cores referidas à alegria, ao bem viver, de incentivo à fé, à paz e ao amor. A forma das letras passa a ser arredondada, não mais fonte Old English ou outras identificadas em papiros ou pergaminhos de manuscritos sagrados antigos. A identidade jovem das novas mensagens emergia pela estética referida ao grafite, mas também pelo uso de personagens de histórias em quadrinho.

Foto 8: Mural com personagem Pateta e palavras que remetem a um estado positivo de ânimo. Favela de Acari. Imagem de Christina Vital. Ano 2013.

18 As pinturas agora têm uma assinatura. Na primeira fase das imagens registradas na pesquisa não se localizava identificação de autoria. Na segunda fase havia identificação em somente uma das pinturas, talvez a mais emblemática delas por reunir muitos

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signos presentes nas demais, por estar em uma rua de amplo fluxo de pessoas e que dá acesso ao interior da favela: ela tinha uma assinatura coletiva e que remetia a Jesus e ao mesmo tempo aos traficantes por acionarem uma gramática muito identificada com eles no território (Foto 4). Na terceira as imagens são identificadas com um coletivo de artistas (Os grafiteiros de Jesus) e, algumas delas, com um artista em especial (André Soldado).

19 A nova estética me chamou atenção, o grafite do tipo hall of fame. Mas o fato de ter uma autoria ostensiva me deixava ainda mais intrigada. Anteriormente havia uma invisibilidade na produção. Os moradores não sabiam quem havia produzido as imagens. Quando interpelados, produziam especulações11 em torno de sua confecção. No entanto, no mais das vezes, no cotidiano dos moradores, elas pareciam invisíveis, compunham a paisagem de um modo presente e oculto, tal como já disse acima inspirada pelas reflexões de Musil (2006) e Sansi (2005). Essas imagens suscitaram questões sobre o que mudara em termos políticos, da sociabilidade e das práticas do crime. Os grafites religiosos de 2013 emergiam como ícones de uma nova temporalidade marcada pelo rompimento de Jeremias com a ADUD e o seu distanciamento do local em razão de um novo momento de vida no pastorado da igreja evangélica por ele mesmo fundada no Planalto Central. A violência dos confrontos entre traficantes e policiais e a tensão entre os primeiros com a possível chegada de uma Unidade de Polícia Pacificadora aumentou sendo controlada pela atuação de lideranças locais em interlocução com secretarias de estado e do município, na mediação com moradores e com religiosos e pelos “arregos” cada vez mais expressivos12.

20 Além de observar as dinâmicas internas que marcavam a emergência daqueles grafites evangélicos, um novo feixe de questões se mostrava interessante para mim. Questionava-me sobre as mudanças operadas propriamente no universo religioso supralocal com o uso de novo recurso artístico de evangelização e com outras mensagens, mas também sobre mudanças operadas nas disputas religiosas pela e na cidade. Assim, perguntava-me sobre como um estilo de expressão juvenil até pouco tempo identificado necessariamente à marginalidade, à transgressão, à desordem poderia estar sendo acionado por evangélicos na missão evangelizadora? O que teria acontecido com o grafite e com os evangélicos para essa combinação ser legitimada nas mais diferentes denominações religiosas originando em seu seio crews13 ativas na cidade? Qual a nova aura que recobriria essa prática juvenil permitindo tal relação? Como esses grafites religiosos emergiam no restante da cidade? Se o pentecostalismo da batalha espiritual predomina nos templos (fruto do impacto da terceira onda do pentecostalismo no Brasil, os neopentecostais14), nos grafites urbanos o cristianismo motivacional (incentivando a prática do amor, da fé e da paz) prepondera. O que isso significaria?

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Foto 9: Mural na Rua Jardim Botânico, bairro de mesmo nome. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

Foto 10: Inscrição em muro na Rua Cosme Velho, bairro de mesmo nome. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

21 Os grafites evangélicos buscam produzir territorialidades? Quais? Tratar-se-ia de uma produção de territorialidade religiosa provisória pela via da arte como se produz com eventos religiosos, uma territorialidade efêmera, mas que visa a um impacto duradouro? Mais ainda, seriam os grafites religiosos reveladores de projetos ou de um projeto religioso – evangélico – de cidade? Qual a relação possível entre cidade e projetos religiosos? Como os projetos religiosos de cidade (se é que há vários) se apresentam diante dos demais projetos de cidade tão em voga na atualidade? Como

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pensam e como interagem diante da “cidade negócio” e da gentrificação? Quem o projeto ou os projetos religiosos de cidade procurariam incluir?

Grafite, arte e religião em relação

22 Embora nos limites deste artigo não vá percorrer a história do grafite, vale elencar algumas de suas características com o propósito de analisar as modalidades de uso dessa arte entre os religiosos. São muitos os estudos sobre o grafite no Brasil na atualidade (Campos 2013; Caldeira 2012; Ventura 2009; Gitahy 1999; Ramos 1994; Spinelli 2010; Manco, Art e Neelon 2005; Prades 2009; Ramos 1994). As origens dessas intervenções no espaço urbano são identificadas com os movimentos de contracultura de maio de 1968 que usaram os muros de Paris como suporte de inscrições políticas e poéticas e, principalmente, com a cultura hip hop nova-iorquina dos anos de 197015. De acordo com vasta literatura, o graffiti surge no início da década de 1970 em Nova York (Cooper e Chalfant, 1984; Castleman, 1982); o graffiti norte-americano, atualmente hegemônico, segundo Gari (1995), deriva da cultura hip-hop emergente no período, a qual correspondia à expressão visual de um movimento composto, igualmente, pela vertente musical (djing e mcing) e de dança (breakdance). O graffiti hip-hop é apenas um dos gêneros de graffiti norte-americano, embora se tenha afirmado como o mais popular (Campos 2013:207)

23 O grafite, assim, emerge associado à marginalidade conformando um “território de transgressão” e sua prática ou o “gesto grafite” (Campos 2013), afirma virilidade, criatividade e coragem ao buscar o desafio de chegar a um lugar inusitado construindo códigos que poucos entendem. Os estilos originalmente identificados são os Tag, Throw Up, Masterpiece ou Hall of Fame (também conhecidos como Murais). Segundo Roberto Campos (2013), na atualidade, há muito mais estilos presentes na cena urbana sendo difícil identificá-los segundo essa classificação original. Os writers (no Brasil identificados também como grafiteiros16) atuam sob pseudônimo (“uma espécie de nome de guerra – o tag – que serve como identificador no interior da comunidade”. Campos 2013:210), agindo de forma isolada ou em grupo, as chamadas crews.

24 As expressões legais ou semilegais são aquelas que ocorrem com autorização de entidades públicas ou privadas com jurisdição sobre o espaço. Esses grafites identificados como arte são reconhecidos por “poderes públicos e pelo mercado da arte como bens estéticos legítimos e mercantilizáveis” (Campos 2013:215) no Brasil e no exterior há algumas poucas décadas. Essa mudança de status é identificada como a “reconversão simbólica” do grafite. A reconversão simbólica operada sobre essas linguagens marginais está patente não apenas nas exposições que vêm ocorrendo em museus e galerias por todo o mundo, mas também em eventos que visam uma legitimação da arte urbana como forma de arte pública. [...]se em tempos mais longínquos o reconhecimento social dos writers se resumia a processos de avaliação internos, atualmente, dada a porosidade e a permeabilidade de fronteiras, a carreira nesse mundo poderá ser influenciada por uma série de fatores exógenos. (Campos 2013:215)

25 Mas essa “reconversão simbólica” é feita, principalmente, em torno de um modo específico dessa street art, o grafite no modo hall of fame ou murais. Apesar dessas alterações recentes que ocorrem fora do universo social dos writers, mas, obviamente, em estreita ligação com ele, é fato que desde os primórdios do graffiti encontramos a construção endógena de um discurso que visa à legitimação dessa expressão como forma de arte. O hall of fame, como obra singular, adquire um

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valor simbólico superior a qualquer outra produção visual. Primeiro, porque representa uma peça inédita, fruto de horas de trabalho e de um razoável investimento financeiro. Segundo, porque é a manifestação por excelência do graffiti como arte, um testemunho de virtuosismo técnico e de criatividade – daí que seja enaltecida a raridade da obra. Funda-se uma órbita do sagrado que é respeitada pela comunidade, a mesma que consagra os inspirados com um estatuto simbólico superior. Assim, em determinados lugares as obras são preservadas, contrariando as lógicas internas de um movimento que vive da fugacidade e efemeridade. Todavia, o fame, na medida em que ignora como fator fundamental a transgressão, avizinha-se dos exercícios artísticos convencionais, como o mural. (Campos 2013:216).

26 Em recente matéria publicada na Revista O Globo de 19 de janeiro de 2014 lia-se “Grafite no poder. Com apoio da prefeitura, dez grupos de artistas vão pintar 40 quilômetros de muros da linha 2 do metrô, na Zona Norte”. Em destaque dois grafiteiros famosos na cena carioca, Acme e Airá Ocrespo. Ambos são curadores do projeto que fará intervenção nos muros da Linha 2 do metrô, o GaleRio, da prefeitura do Rio de Janeiro. O projeto é dirigido pelo “Instituto Eixo Rio, autarquia recém-criada pelo poder municipal com o objetivo de ampliar o diálogo com a Zona Norte”, cujo presidente é o rapper Marcelo Deghettu. Sobre o que poderia ser visto como cooptação do grafite ele diz: “A intensão não é encaretar. É fortalecer, profissionalizar. Sempre pergunto: ‘Vocês querem ser uma linha na planilha ou os donos da planilha’? Essa rapaziada tem ideia de rua, mas não de ar condicionado. Tem que materializar isso”. Já Airá Ocrespo revelou ter tido uma relação conflituosa com a proximidade entre grafite e poder público, mas mostrou-se agora mais assertivo: “Já vivi conflitos com isso, mas é um movimento natural. Hoje são poucas as pessoas com uma postura radical. E cresceu um movimento muito forte de um grafite estético”. Enormes painéis ou murais de grafite vão sendo produzidos em favelas valorizando os aspectos estéticos, turísticos e culturais dessas localidades. Assim, foi inaugurado um museu a céu aberto no Morro do Cantagalo, em Copacabana, o MUF – Museu de Favelas, com obras de Acme, e o Caminho de Grafite, uma cobertura com grafite de 50 casas no morro dos Prazeres, em Santa Teresa. Nesse sentido, Teresa Caldeira salienta que “A arte de rua e o grafite estão definitivamente integrados à produção cultural da cidade.” (Caldeira 2012:37). A autora destaca que, se no passado recente, os moradores das periferias buscavam se articular pela via de instituições tais como associações de bairro, sindicatos e comunidades de base católicas, na atualidade, a juventude busca acessar a cidade “acima de tudo nos campos da produção cultural, da intervenção urbana, da vida cotidiana e da circulação de signos” (Caldeira 2012:40).

27 O apelo à aura da arte e as consequências diretas desse fato viabilizaram a utilização do grafite como meio de evangelização entre jovens de diferentes denominações evangélicas nas cidades. No contexto atual, observa-se uma intensa profissionalização do grafite com cursos oferecidos em âmbito estatal e em entidades privadas de incentivo à cultura. Sendo assim, além de identificado como arte – e por causa disso -, o grafite é hoje associado a uma possibilidade de acesso de jovens de favelas e periferias a projetos sociais e a oportunidades que são anunciadas como capazes, inclusive, de catapultá-los ao convívio com elites artísticas e culturais no Brasil e no exterior, tal como vemos ser anunciado em relação a projetos musicais, de dança, modelo e de circo nessas mesmas localidades. No entanto, a adesão de jovens religiosos a essa prática artística urbana como meio de evangelização é ainda vista com reticências por parte da membresia das igrejas que identificam o universo da rua com riscos e perigos de

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diferentes naturezas. Mas essas controvérsias e resistências internas não impedem o crescimento das crews evangélicas17.

28 Embora a percepção dominante sobre o grafite o associasse à transgressão, à ilegalidade, à desordem (noções em oposição à percepção de si e também social dominante em relação aos cristãos, sobretudo evangélicos), podemos perceber/traçar semelhanças entre o que caracterizaria o “gesto grafite” com um ethos cristão, por assim dizer. O grafite é identificado com uma vocação, a atitude abnegada pela propagação de modos de ser e viver que vão no contra fluxo do que estaria posto pela sociedade. O grafite, por isso, deve ser executado com constância e heroísmo, como dizem os writers. Os dividendos dessa “carreira moral”18 seriam, principalmente, “de ordem simbólica, afetiva e social” (Campos 2013:211). No caso dos cristãos, também espiritual.

29 A vida heroica, de superação dos limites da mente e da “carne” tem forte apelo no universo cristão, sendo muito conhecidas as passagens bíblicas marcadas pela resistência de Cristo às tentações a ele impostas ao longo de sua vida apresentada como santa. O heroísmo, a superação de limites, é também um elemento fundamental do “gesto grafite”: O percurso espinhoso é, aliás, um dos ingredientes fundamentais à compreensão de um universo cultural que glorifica uma imagem do writer como herói, personagem que deve transpor todas as resistências para alcançar seus objetivos e conquistar aclamação dos seus pares. Featherstone (2001) entende a vida heroica como o reverso de uma vida cotidiana feita de rotinas e monotonias, que apela aos feitos extraordinários, à ruptura com o banal e com o adquirido: “Se a vida do dia a dia gira em torno do mundano, do garantido e do comum, então a vida heroica aponta para a rejeição desta ordem em favor de uma vida extraordinária que não só ameaça a possibilidade de retornar às rotinas de todos os dias como pressupõe também o risco deliberado da vida em si. [...] A vida heroica partilha de várias formas da qualidade de uma aventura, ou de uma série de aventuras (Featherstone, 2001, p. 16). (Campos 2013:211).

30 Na mesma linha, a vocação cristã e a vocação do grafite exigem pureza. Essa pureza é, muitas vezes, identificada pela negação da sedução financeira, uma negação do que está posto, do que é valorizado socialmente. Para ser puro seria necessário estar comprometido consigo mesmo e com um ideal. Essa atitude é identificada ao sublime no universo grafite, assim como também no religioso cristão. Ou seja, o graffiti legítimo deve estar completamente arredado do mercado, ser realizado em função de uma vocação individual, não estar monetariamente comprometido. Esta visão que opõe a “pureza da arte” à perversão proporcionada pelo mercado não é exclusiva do mundo do graffiti (Simões, Nunes e Campos, 2005). O writer é, assim, visto como uma espécie de resistente, de alguém que atua contra tudo e contra todos em prol da sua vocação artística. Há, por isso, algo de sublime nessa atitude, uma perpetuação do ideal do ser que deve permanecer completamente livre e impoluto perante pressões morais ou financeiras. (Campos 2013:219)

31 No entanto, se as semelhanças entre o “gesto grafite” e o um ethos cristão são identificáveis, algumas diferenças entre intencionalidades e modos de atuação também o são. A bibliografia especializada no Brasil sobre grafite e pichação destaca que a interpretação deles no espaço urbano não deveria se restringir ao significado de suas palavras e imagens, pois parte do impacto deles, sobretudo das pichações, decorreria de serem significantes vazios, tal qual relembra Baudrillard ao tratar da “intuição revolucionária de que são portadores e que viria da percepção de que a “ideologia não

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mais funciona no nível dos significados políticos, e sim no dos significantes, e que é bem aí onde o sistema é vulnerável e deve ser desmantelado” (Caldeira 2012:57). No caso do grafite cristão a comunicação de uma mensagem é um objetivo a ser alcançado. Essa comunicação religiosa é mediada por elementos imagéticos que mostram e ocultam uma mensagem que transforma emissor e receptor, que busca tornar próximo, capturar, nesse sentido. Trata-se de “garantir visualmente que não haja incompreensão da mensagem transmitida, que no ato de fala [neste caso, da imagem] esteja realmente em questão um emissor ou receptor em transformação, e não uma mera transferência de mensagem incorretamente endereçada” (Latour 2004:366). Os grafites evangélicos repetem à exaustão versículos do Novo Testamento, assim como palavras slogans tais como Jesus, Cristo, Jesus Cristo, Rei, King, Cristo Salva, Alegria, Jesus prince of Peace, Paz; Mais amor, por favor; além de formas como coroa, peixe, corações, personagens sorridentes.

Foto 11: Mural na Rua das Laranjeiras, bairro de mesmo nome. Artista Eduardo Denne. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

32 Nesse sentido, operam, de algum modo, uma dupla injunção, como analisou Latour para diferentes iconografias cristãs. A primeira injunção “tem a ver com o tema que todos eles ilustram, e a maioria dessas imagens, como a fala amorosa com a qual comecei, é repetitiva e chega, não raro, a ser entediante”. (Latour 2004: 366). A segunda injunção igualmente fundamental para a leitura das imagens religiosas em questão, assim como para a compreensão da comunicação religiosa de modo mais geral e que ilumina a arte de rua cristã que vem se produzindo “atravessa a tediosa repetição do tema e nos fora a recordar aquilo que é a compreensão da presença que a mensagem carrega. Essa segunda injunção equivale ao tom, à tonalidade de que nos conscientizamos na conversa de amor: original não é o que a pessoa diz, mas o movimento que renova a presença através de antigos dizeres” (Latour 2004: 367). O tom, na análise do autor, é fundamental para compreender como e o que se busca comunicar com a iconografia cristã. No caso dos grafites religiosos, além do tom, as cores emergem como um elemento central na produção do efeito de aproximação e de colocação no presente que

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a comunicação religiosa intenta19. Nesse sentido, o grafiteiro evangélico Ross Tavares disse sobre a pintura que acabara de realizar: “Eu pus um versículo aqui ao lado. Ele fica bem junto. João 17:26. A intenção do grafite é que as cores venham a chamar atenção para que as pessoas possam ver o versículo que está sendo posto na parede. Muitos dizem que não têm tempo para ler bíblia e eu estou aí para espalhar versículos pela cidade e atrair com a arte do grafite. Que Deus possa abençoar a todos que possam contemplar as cores. Que Deus possa abençoar a todos. Vamos colorir essa cidade cinza. Em nome de Jesus”20.

33 O amor, como categoria fundamental que emerge nos grafites evangélicos que predominam na cidade, é afirmado como meio de aproximação com o receptor, mas pode ser visto também, no interior do campo evangélico, como um contraponto à comunicação propriamente neopentecostal que dá ênfase ao medo, ao sofrimento, aos demônios. Nesse sentido, os grafites que anunciam “Só Jesus expulsa os demônios” são criticados por writers evangélicos. Muitos deles, conforme identifiquei, vinculados a denominações históricas. Essa é uma boa pista para pensar sobre embates e novos meios de tematização e publicização das disputas entre esses atores. E no centro da discussão nas redes sociais emerge o amor como forma de aproximar e o medo e a perseguição, de afastar. Sugiro que isso conforma uma oposição entre um “cristianismo da batalha21” e um “cristianismo motivacional22”.

34 Os writers religiosos dispõem sua arte na cidade buscando ampla visibilidade para elas. Diferente de grafites e pichações não religiosos que são realizados, muitos deles, em locais de pouca passagem, de pouca visibilidade como em galerias pluviais, estruturas de pequenas pontes etc, os que têm como missão “semear a Palavra de Deus”, como dizem, devem estar em lugares de fácil acesso ao olhar, de grande circulação. Semear, vale destacar, é uma categoria basilar associada pelos jovens evangélicos à sua prática no grafite.

35 O caráter efêmero do grafite vai sendo burlado, de algum modo, pelo suporte de câmeras, celulares e outros gadgets que registram em forma de fotografia e/ou vídeos as intervenções urbanas. Há, inclusive, sites que catalogam, e assim buscam eternizar, as obras dos mais diferentes artistas de rua23. Muitas elaborações são feitas pelos artistas explicando a relação que têm com a efemeridade da arte que produzem. A conhecida Magrela, de São Paulo, diz que os grafites são “filhos que largam no mundo” 24 e “não importa se o grafite vai estar aqui, já tem a foto e já era”. Entre os writers evangélicos a capacidade de lidar bem com o caráter efêmero de suas obras diria respeito a uma sabedoria propriamente cristã. Nesse sentido, dizem que o grafite é a arte do desapego e faz parte da “batalha” do artista cristão se desapegar. Porém o desapego não significa desdém, descaso ou relaxo, muito pelo contrário. No graffiti dar continuidade a cultura é uma “batalha”, melhorar a técnica, o traço, testar materiais fazem parte do processo. Não dá prá desistir de pintar porque alguém decidiu que vai apagar seus trabalhos na rua, a cultura tem que prosseguir”. Assim como não se apegar a certos cacoetes e guetos cristãos não significa lavar as mãos, muito pelo contrário, significa se alicerçar no que de fato é verdadeiro, no que de fato é Reino. ... Essa cultura do desapego na arte de rua pode nos ensinar algumas coisas sobre Deus e sobre o seu Reino. Nos leva a pensar que se apegar a nomenclaturas, rótulos, cargos, liturgias, milagres e outra série de coisas pode não ser o caminho a seguir. Postado por Johny C25. O Graffiti é a arte do "desapego", e o ideal é que o artista fotografe imediatamente seu trabalho sem se apegar com sua durabilidade. Para não criar uma estética desagradável e vândala para o espectador e o próprio artista que terá sua obra removida, o ideal é que antes de fazer a intervenção o outro trabalho seja

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completamente apagado com tinta. Mas é sempre bom ter atenção, também, para não provocar rixas em locais que existem os "códigos de honra" e se for necessário remover uma obra que esta seja fotografada antes pelo artista que o fará26.

36 A vocação do grafiteiro religioso evangélico é estar comprometido com o desapego para evitar rixas, como visto acima. É preciso desapegar para não se envaidecer, para não perder o foco da missão que realizam através dessa arte: semear (a Palavra de Deus), transformar o outro, transformar a cidade, aproximar. Nesse sentido, no blog de um dos grafiteiros evangélicos citados acima é possível ler: Podemos explorar a parábola do semeador. Seu papel era semear, ele não tinha controle algum do que iria acontecer com a semente. No graffiti podem riscar seu trabalho, apagar... as vezes semente cai em terra de espinhos. Mas essa não deve ser a preocupação do semeador, ele deve semear a boa semente. Para compartilhar as boas novas do Evangelho é possível se certificar de que a semente é boa, e que ela vai chegar ao seu destino que é o solo - ou melhor o coração - para isso você precisa entender a cultura atual, o que faz o povo tão descrente, o que os afasta de Deus, como a mensagem pode ser melhor entendida por uma sociedade tão egoísta, individualista e moralmente caída? busque meios, estude, pesquise antes de sair soltando o jargão “Jesus é a resposta”. Seja criativo, crie estratégias e por fim entenda que às vezes não se tem o domínio sobre a semente. Parábola do semeador. Mateus, 1327.

37 As mensagens encontradas nos grafites religiosos evangélicos, sejam apresentadas em desenhos e imagens, sejam em textos de produção anônima ou versículos bíblicos, têm caráter positivo, como aqueles encontrados em Acari em 2013. Se, como apresenta Teresa Caldeira, o ódio é um termo frequente nas pichações e nas discussões sobre ela, há quem “conteste o próprio ódio. Desde alguns anos, alguém vem pichando os muros da cidade sempre com a mesma frase: odeie o ódio!” (Caldeira 2012:27). Em matéria publicada na Revista O Globo de 20 de abril de 2014 e que foi amplamente divulgada nas redes sociais, lia-se: “Com a cabeça no lugar. Quem é o artista que está por trás do Angatu, figura de sorriso aberto que pode ser vista em grafites espalhados pelo Rio?”. O texto exalta a produção do artista evangélico Rafael Hiran e apresenta algumas das características do personagem criado em 1998 para um congresso religioso sobre felicidade: “O Angatu é um sujeito cabeça. Stricto e lato sensu. Sua figura não passa de um cara com cabelo colorido, nariz proeminente, oito dentes escancarados e um olhar que ora parece ingênuo, ora astucioso. A expressão sorridente intriga. Estaria ele nervoso? Ou não passa de um debochado?”. Angatu é uma palavra do tupi-guarani e que significa alma boa, bem estar, felicidade.

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Foto 12: Angatu. Viaduto Túnel Rebouças – Lagoa, Lagoa Rodrigo de Freitas. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

Foto 12: Angatu na Rua Jardim Botânico, bairro de mesmo nome. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

38 Alguns Angatus aparecem, como na imagem acima, presos a um paraquedas. Investigando os blogs de diferentes artistas evangélicos, em especial de uma artista que pintou ao lado desse Angatu, observei que a produção desse grafite poderia estar inspirada em uma frase de Frank Zappa “Porque a mente é como um paraquedas, só funciona depois de aberta”. Nos limites deste artigo não poderei explorar melhor a relação entre esse cantor e guitarrista nascido nos EUA em 1940 e que marcou o cenário do rock, jazz, estendendo-se por outros gêneros, mas é suficiente afirmar que Frank

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Zappa era identificado pelo seu caráter inovador, vanguardista, politicamente afinado com ideologias de esquerda, à contracultura, ao universo artístico não escolar/ acadêmico. Todas essas noções são mobilizadas constantemente nos blogs dos artistas evangélicos que grafitam a cidade como meio de se divertirem e levarem uma mensagem revolucionária, “contra tudo que está aí”, conformismo, depressão, desilusão. Afirmam a felicidade pela via da arte e também do conhecimento de uma mensagem religiosa específica cristã que emerge do evangelho.

39 Esses e outros grafites propagando amor ocupam a cidade sem estarem associadas ao universo religioso (Ex. #tragamor28). No entanto, se as mensagens de ódio e aquelas de indignação e revolta davam pistas de um novo meio de acesso dos jovens da periferia à cidade, tal qual Caldeira (2012) argumenta, as mensagens e imagens que remetem ao seu oposto, à busca da felicidade, do bem estar, da alegria devem ser também consideradas não como residuais, mas como componentes, talvez fundamentais hoje, indicando pistas de projetos de cidade e de uma modalidade específica de intervenção no urbano, de um acesso específico de grupos de jovens religiosos nesse meio. A importância estratégica das cidades para os evangélicos não é nova. O grande investimento da missão pentecostal nas cidades é uma característica que marca o movimento desde, pelo menos, os anos 1930, período de expansão da Assembleia de Deus no Brasil (Freston 1994) e que se reflete na maior atenção institucional-religiosa às pastorais urbanas que passam a assumir importante papel na “difusão e pregação da fé” 29. E a presença pentecostal tenderia a “reorganizar todo um modo usual de circulação de pessoas e símbolos na metrópole” (Mafra 2009:81).

40 Os jovens evangélicos inseridos no movimento hip hop apresentam afinidade com o discurso de transformação social, de contraposição à segregação sócioespacial a qual são relegados (Novaes 2000; Vianna 2003; entre outros). Nesse sentido, ampliam sua visibilidade no espaço público pela via da arte a partir de um modo específico de agenciamento. Afirmam, como recupera Caldeira (2012), seu direito de transitar pela cidade, de representar a si mesmos e aos seus iguais e de influir nesse espaço público. Contudo, aos sentimentos de injustiça e indignação propõem um posicionamento identificado como “positivo”, espiritual, que visa à semeadura de paz, de amor, de fé e de esperança que atinjam a todos os que com essas mensagens tiverem contato. A proliferação dos grafites evangélicos, além de um objetivo comum aos grafiteiros, pois espalhar a sua arte é um meio de se tornar reconhecido no interior do próprio movimento30, intenciona a produção de uma territorialidade religiosa singular e que pode burlar a transitoriedade pela abnegação na produção constante, fazendo dessa arte efêmera um instrumento de renovada presença do religioso no espaço público.

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Foto 13: Grafite em muro de escola pública na Lagoa Rodrigo de Freitas. Palavras na faixa: paz, amor, saúde, união. No centro do tag uma Bíblia estilizada em vermelho com referência aos pregos que provocaram as chagas de Cristo na cruz. No tag algumas referências ao coração: cor vermelha, a marcação do batimento cardíaco, as válvulas. Imagem de Christina Vital. Ano 2014.

41 A investigação continua em curso. Em termos epistemológicos gostaria ainda de dizer que me solidarizo com uma abordagem caracterizada pela identificação e valorização da presença religiosa na sociedade. Essa abordagem compreende que, na modernidade, em diferentes localidades, classes sociais, entidades, instituições e espaços públicos o religioso assume relevância analítica ao revelar diferentes dinâmicas sociais que confrontam, muitas delas, moralidades e expectativa a respeito dos mais variados objetos de pesquisa. É a partir desse lugar que produzi as análises sobre o material apresentado. Nesses estudos, a religião compunha o enquadramento teórico sendo, ao mesmo tempo, um recurso metodológico a partir do qual pude acessar, nas favelas, universos familiares; o cotidiano dos moradores em seus pedaços; a partir da religião foi colocado em suspenso, ao menos momentaneamente, o silenciamento dos moradores em torno da temática da violência; foi também através do acionamento da temática religiosa que acessei traficantes de drogas no território; pude compreender a formação, composição e operação de redes de proteção e ajuda mútua, assim como também refletir sobre a dinâmica política institucionalizada na favela.

42 Essa abordagem não é propriamente nova. Licia Valladares na década de 1960 fez um levantamento da atuação católica na favela da Rocinha como meio de acessar, pela primeira vez, os moradores. Foi um modo de “entrar” no campo. Também Alba Zaluar, uma referência nos estudos de violência e de favelas, inicia sua carreira produzindo sobre religião. Tampouco é novidade o investimento analítico, principalmente da Antropologia, sobre o intercâmbio de gramáticas entre tradições religiosas socialmente identificadas como opostas. Contudo, a novidade da abordagem a qual me filio, se é que há alguma, é uma aposta radical nas possibilidades de interpretação do religioso e da

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sociedade confrontando moralidades advindas do campo e, muitas vezes, dos próprios pesquisadores que realizam essas análises. É uma disposição específica de olhar, ouvir e escrever, como nos diria Roberto Cardoso de Oliveira (2000), de considerar de modo radical, sem receio analítico, moral e político, para os dados que se apresentam com a finalidade única de acessar combinações, interações, confrontações insondáveis segundo os cânones de nossa área de atuação e reflexão como no caso dos “traficantes evangélicos” ou do acompanhamento de mudanças na dinâmica religiosa e de formulação de projetos de cidade a partir de ações de um ator social presente no subterrâneo das análises que se vêm fazendo sobre esses temas específicos: o jovem grafiteiro evangélico e sua arte (para citar ao menos os casos que eu, particularmente, apresentei aqui).

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NOTAS

1. A bibliografia especializada a partir de meados da década de 1990 apresentava importantes análises sobre as mudanças no campo evangélico destacando, por exemplo, a conversão não como uma ruptura, mas como passagens. Ainda nesse momento, identifica-se o “abrasileiramento” do pentecostalismo, análise que vai ser continuada na década seguinte. É também nos anos 2000 que parte da bibliografia destaca as mudanças nos modos de ser evangélico operadas pela força midiática de diferentes denominações que atuam em grande sintonia com o “espírito do tempo”, ou seja, uma capacidade de adaptação ao que está sendo valorizado em determinada época. No entanto, ouso dizer, essas abordagens de modo proposital ou não, operavam pela via da afirmação de uma moralidade cristã evangélica positiva. 2. Uma discussão minuciosa sobre a relação entre essas duas primeiras fases de imagens religiosas presentes na Favela de Acari com as práticas policiais e de traficantes locais pode ser acessada em Vital da Cunha 2014a. 3. Ver a discussão sobre a conformação de paisagens sonoras éticas de Hirschkind in Machado, 2013. 4. Segundo Guran, a fotografia “para descobrir” corresponderia “aquele momento da observação participante em que o pesquisador se familiariza com o seu objeto de estudo e formula as primeiras questões práticas com relação à pesquisa de campo propriamente dita. É o momento de impregnação, no sentido utilizado por Olivier de Sardan, em que o pesquisador vivencia o cotidiano de uma comunidade e começa a ‘perceber alguma coisa’ (1995, p. 79), sem, entretanto

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saber exatamente do que se trata” (2002:97). Ainda segundo Guran, “fotografar ‘para contar’ corresponderia ao momento em que o pesquisador compreende e, de certa forma, domina o seu objeto de estudo, podendo, portanto, utilizar a fotografia para destacar com segurança aspectos e situações marcantes da cultura estudada e desenvolver sua reflexão apoiado nas evidências que a fotografia pode apontar” (idem). O autor ressalta, ainda, que esta classificação didática da fotografia etnográfica não busca engessar seu papel posto que estas definições ou usos da fotografia vão se imbricando ao longo do trabalho de campo. 5. Guardadas as suas características de serem produzidas extraoficialmente e de buscarem um sentido partilhado, mas não exatamente público ou universal. 6. Remeto aqui a noção de agência dos objetos e de ator em Bruno Latour. Para esse autor, todo aquele que age, produz e cria efeitos sobre o mundo, interferindo, portanto, no curso das coisas é considerado um ator com agência, poder de intervenção. E esses atores podem tanto ser humanos como não humanos. Ver também Gell 1998. 7. Minha produção a partir desse material foi textual: Trabalho de Conclusão de Curso em 1998, Dissertação de Mestrado, em 2002, e Tese de Doutorado, em 2009. 8. A identidade produzida e manifesta em Acari relacionava-se ao universo religioso evangélico e, ao mesmo tempo, ao universo do crime. Ver Vital da Cunha, 2009. 9. Informações obtidas em conversas informais com moradores e com traficantes da favela de Acari em diferentes momentos da realização da etnografia. 10. Uma prática comum entre traficantes que ocupam altos cargos na hierarquia do tráfico de drogas é adquirir bens colocando-os em nome de parentes e amigos para, no futuro, reavê-los. Assim compram táxis, postos de gasolina, propriedades como sítios e chácaras, mercados hortifrutigranjeiros. Esses eram os principais investimentos relatados por traficantes na pesquisa em 2009. 11. Tais especulações pareciam produzidas mais pela minha curiosidade, visto que as imagens religiosas não eram assunto presente nas conversas cotidianas, não era tema que emergia espontaneamente nas rodas de conversa seja em bares ou nas casas dos moradores. 12. Conforme informações obtidas em campo. 13. “No caso brasileiro, de acordo com Spinelli (2007), esse grupo também pode ser designado bonde ou coletivo” (Campos 2013: 210). 14. Freston (1994) para ler mais sobre as ondas do pentecostalismo no Brasil. 15. Nos EUA esse tipo de arte efêmera ganhou grande projeção a partir dos anos 1970/80 insuflada pelo surgimento de um fenômeno artístico, Jean-Michel Basquiat, artista de rua americano que ganhou popularidade ao final dos anos 1970. Teve banda, namorou Madonna, foi artista de cinema, expôs em galerias em Nova Iorque sendo identificado como neo-expressionista. Morreu aos 27 anos em seu estúdio após o uso de um coquetel de drogas (cocaína e heroína) conhecido como speedball 16. “A clara distinção que é efetuada entre graffiti e pichação no caso brasileiro implica, igualmente, uma separação evidente entre o pichador e o grafiteiro, na medida em que cumprem papéis diversificados. No caso do graffiti europeu essa distinção não se verifica, sendo que o termo writer se aplica a todos, independentemente de sua área de atuação principal (ilegal ou semilegal/legal)”. (Campos 2013:210). 17. Um exemplo bastante conhecido é o dos Jesus king Graffite Writers – a arte anuncia a glória de Deus. Em um trabalho enviado em 16/02/2011 no http://youtu.be/TPmdzuZng-0 pode-se ler: “Ta aí um trabalho abençoado de todos os grafiteiros da JESUS KING, nosso senhor continue capacitando cada um de vcs! Graffites de: TR2, JOIA RARA, WILL, DGS, MEGA, HIS, ARCO, EVER ,PAULIST¬A (SOUTH BROTHERS CREW), PARATY e BEIÇA(SOUL CREW). Musicas: Cece Winans & Lauryn Hill-On that day; Kirk Franklin-Jesus. Curta nossa página no Facebook e confira mais informações” O Jesus king Graffite Writers teve início em Belo Horizonte do encontro de duas crews de breaking e um bboy do Paraná sendo eles crews: LaupCrew e Hebreus11 boys e o bboy:

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Paulista South Brothers Crew. Com o passar do tempo foram adicionados vários bboys, graffiteiros e mc’s de diversas localidades do território nacional (PR,SP,RJ,DF,GO...).”. Além deles há a crew Amém, de Fortaleza, ligada ao HGO – Movimento Hip Hop Gospel Organizado. 18. “Segundo Nancy Macdonald (2001), estamos perante uma “carreira moral”, na medida em que a trajetória individual é orientada pela estima pública e pela reputação em vez de qualquer compensação de ordem material” (Campos 2013:211). 19. Para saber mais sobre como é produzida a comunicação religiosa e a condição de felicidade dessa fala ver Latour 2004; 2008. 20. Trecho obtido de decupagem do vídeo “É grafitando que se faz arte” de Ross Tavares, localizado no www.youtube.com em 10 de julho de 14. O texto explicativo do vídeo é: “Enviado em 24/02/2012. Dos guetos nova-iorquinos aos muros pessoenses, o grafite, forma de arte presente nos grandes centros urbanos de todo o mundo, vem ganhando espaço na capital paraibana e reafirmando sua força como expressão artística. No documentário de curta-metragem "É grafitando que se faz arte", Ross Tavares, recifense radicado em João Pessoa há dez anos, conta um pouco de sua história e de como usa as cores e a arte do grafite como um meio de semear a palavra de Deus nos muros da capital paraibana. Essa pintura é assinada pelo promissor e criativo diretor Swami Marques. Sinopse por: Rennam Virginio”. Música do grupo de rap gospel Estratagema de Deus e Apocalipse 16. 21. “Os pentecostais entendem que independente da sua vontade, todos os seres humanos estão imersos em uma jornada agonística, na Batalha Espiritual” (Mafra 2009: 83). Ver ainda Mariz 1999. 22. Esse poderia ser caracterizado preliminarmente como a afirmação do cristianismo pela via do apelo e pelo recurso a mecanismos e técnicas de ação para a promoção de bem estar, de estímulo a estados de espirito positivos como de amor, de paz, de confiança. 23. Ver www.#streetartrio.com.br. “#StreetArtRio é uma iniciativa independente que tem o objetivo de identificar e mapear obras de artistas locais através de ações colaborativas. A ideia é reunir em um só lugar as intervenções registradas principalmente por amantes da Street Art, que fotografam com seus celulares, câmeras e outros gadgets, as obras encontradas pelo Rio de Janeiro, e compartilham nas suas redes sociais. Ao reuni-las, daremos mais visibilidade a essas divulgações, além de identificar os artistas e oferecer ao público a localização da obra, onde poderá vê-la pessoalmente”. 24. Em http://www.youtube.com/watch?v=PeYgM9iAH2s Publicado em 18/09/2012 SAMPA GRAFFITI - Ep. 16: Magrela. © Paulo Taman. 25. Em http://publicativo.blogspot.com.br/2009/05/arte-do-desapego.html Acesso em 03 de julho de 14. 26. Em http://dibolso.blogspot.com.br/2011/10/graffiti-arte-x-vandalismo.html Acesso em 03 de julho de 14. 27. Em http://publicativo.blogspot.com.br/2009/05/arte-do-desapego.html Acesso em 03 de julho de 14 28. #tragaamor é o nome de um conjunto de eventos (#lovessession) que acontecem em lugares paradisíacos da cidade do Rio de Janeiro propagando o amor “em suas diversas dimensões: romântico e sexual/erótico”. 29. Dados do Censo 2000 do IBGE revelam que 87% dos evangélicos estão nas cidades. Ver também Castro, Cunha, Lopes 2006 sobre as pastorais urbanas. 30. “ A notoriedade de uma turma e seus membros vem da reiteração, da capacidade que têm de distribuir o mesmo signo por toda a cidade. Inscrições únicas não duram muito: o que perdura é a presença coletiva delas e sua produção reiterada”. (Caldeira, 2012:63). Destaco uma passagem de

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Teresa Caldeira, mas a identificação dessa prática de produção reiterada no espaço é comum na bibliografia especializada, assim como em entrevistas e vídeos de grafiteiros presentes na internet.

RESUMOS

Neste artigo pretendo refletir sobre relações entre projetos de cidade e religião. Essa reflexão guarda uma linha de continuidade com um debate que venho conduzindo desde os anos 2000 sobre as interfaces entre religião e violência. A base empírica das análises repousa em imagens produzidas, desfiguradas e reproduzidas entre 1996 e 2013 na favela de Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro e no registro fotográfico de grafites presentes em diferentes pontos da cidade. Essas últimas lançam luz ao menos sobre dois aspectos de meu interesse e que trarei aqui de modo ainda exploratório: 1) a confluência de projetos seculares e religiosos de cidade através de uma intervenção artística específica, o grafite; 2) as disputas internas ao segmento evangélico entre o que chamo de um “cristianismo motivacional” e um “cristianismo da batalha”.

In this article I intend to reflect on relationships between religion and city projects. This reflection holds a line of continuity with a debate I've been driving since the mid-2000s on the interfaces between religion and violence. The empirical basis of the analysis rests on produced images, disfigured and reproduced between 1996 and 2013 in the slums of Acari, North Zone of Rio de Janeiro and photographic record of graffiti present in different parts of the city. The latter shed light on at least two aspects of my interest and I will bring here so still exploratory: 1) the diffusion of religious city projects through a specific artistic intervention, the graffiti; 2) internal disputes to the evangelical segment between what I call a "motivational Christianity" and "Christian battle".

ÍNDICE

Keywords: religion, slums, drug dealers, graffiti, city projects Palavras-chave: religião, favela, traficantes de drogas, grafite, projetos de cidade

AUTOR

CHRISTINA VITAL

Doutora em Ciências Sociais PPCIS/UERJ. Professora Adjunta em Antropologia Cultural. Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades.Universidade Federal Fluminense

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O Morro do Pasmado e suas cidades virtuais: do Correio da Manhã à nova militância das favelas The Hill of Pasmado and its virtual cities: from Correio da Manhã to the new favela militancy

Júlio Bizarria

1 Na noite de 24 de janeiro de 1964, uma sexta-feira, no cartão postal da enseada de Botafogo, uma das mais significativas e metonímicas representações do país, uma operação peculiar mobilizava o Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara. Noventa homens, sob comando de dois oficiais majores, cercaram o discreto Morro do Pasmado para, segundo a Secretaria de Serviços Sociais, efetuar uma operação de saneamento: tratava-se do incêndio controlado dos escombros da favela cuja população fora dali removida ao longo dos últimos dois meses. As chamas queimaram até o início da manhã de sábado, dando aos jornais Correio da Manhã e Tribuna da imprensa a oportunidade de noticiá-lo horas depois. O destino de sua população foi a dispersão entre um certo número de conjuntos habitacionais, construídos com o fim de se remover, da zona sul da cidade, a maior quantidade possível de favelas. Às vésperas das celebrações do quarto centenário de fundação do Rio de Janeiro, a zona sul recebia, por influência do discurso hegemônico da cidade, numerosas intervenções urbanas, que buscavam assentar-lhe a vocação turística pela qual se tornou conhecida.

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Figura I: Aspecto contemporâneo da enseada de Botafogo, com destaque para a localização do Morro do Pasmado. Sobre fotografia de Thiago Hirai.

2 A Favela do Pasmado não foi a primeira a ser removida desde que, nos anos 1920, a expressão favela passara ao vernáculo como substantivo comum: a Favela do Largo da Memória, na margem ocidental da Lagoa Rodrigo de Freitas, removida em 1942, já assinalava o novo destino do processo de migração das elites; a do Morro de Santo Antônio, que disputa com o próprio Morro da Providência, outrora Morro da Favella, o título de mais antiga das congêneres, sofreu uma série de remoções parciais, desde as diatribes de Olavo Bilac e Lima Barreto, ou da visita fortuita de João do Rio, até a remoção definitiva, no início dos anos 1950. Enquanto a busca por episódios ainda mais remotos permanece uma entre as possibilidades de investigação, a Favela do Pasmado afirma-se por elementos que não são cronológicos. Embora também tenha subsistido a tentativas de remoção parcial em 1952, extinguiu-se definitivamente com as chamas de seu incêndio controlado. A singularidade grotesca atualizava os bombeiros incendiários de Ray Bradbury1 e inaugurava um período denominado Era das Remoções (BRUM 2012), uma sequência de transferências forçadas de núcleos denominados como favelas e que consistiram no maior deslocamento populacional registrado na história da cidade. O professor Carlos Nelson Ferreira dos Santos, arquiteto, engajado acadêmico e testemunha ocular de importantes episódios envolvendo a Favela do Pasmado, observa, com ampla licença poética, o que se anunciava no horizonte do devir da cidade do Rio de Janeiro: Pouco antes da tentativa de remover Brás de Pina, os cariocas haviam assistido ao espetáculo de uma favela em chamas durante uma noite inteira. Era a do Pasmado, a primeira a ser removida e cujos barracos foram em seguida incendiados como símbolo de uma nova era que se pretendia inaugurar. Era prometida a extinção de todas as favelas do Rio, oferecendo-se aos seus moradores casas seguras, ‘modernas’ e... muito distantes dos lugares onde moravam antes, que, presumivelmente, seriam, quando desocupados, purificados pelo fogo. (SANTOS 1981: 32).

3 O estabelecimento de tal política e sua radicalização, após a insurreição militar de abril, precipitou, entre outros processos, a ampliação do estudo das favelas cariocas: em seara dominada pelos discursos moral, policial, médico e jornalístico, as ciências sociais passaram a pronunciar-se na forma de um bom conjunto de estudos, dos quais alguns se tornaram clássicos2. A problematização categorial, o estudo dos estigmas espaciais associados à condição de favelado, as formas de solidariedade predominantes e os percalços da política de remoção encontram-se com preocupações da literatura mais

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recente, que assiste a uma ressurgência dos discursos que pregam transferências populacionais de favelas do Rio de Janeiro, no bojo das preparações da cidade para sediar, em 2014, a Copa do Mundo de Futebol e a Olimpíada, em 2016. Em boa parte desses estudos, breves menções à Favela do Pasmado, que reconheciam-lhe o caráter paradigmático, contrastavam com a dificuldade em encontrar trabalhos que a considerassem especificamente.

Figura II: Fotografia sem indicação de autoria (provavelmente, de Manuel Gomes da Costa) retratando o incêndio do Pasmado, aparecida no Correio da manhã em 25/01/1964. (p. 3), junto à matéria “Fim do pasmado”.

4 O estudo da Favela do Pasmado era dificultado por uma relativa escassez de fontes documentais. Diante da dificuldade em se encontrar potenciais informantes, uma consequência da intensidade da dispersão provocada pelo processo de remoção, pareceu adequado considerar a análise de alguns posicionamentos da imprensa carioca. Entre os veículos de imprensa selecionados, foi possível descobrir um interesse particular do Correio da Manhã na remoção da Favela do Pasmado, assim como explorar alguns significados da memória daquele episódio (ou de sua ausência) para a militância das favelas cariocas após o início da redemocratização do Brasil, quando empenhou-se em intensa produção memorialística e documental. À guisa de conclusão, postulou-se a hipótese de que a militância das favelas parecia contentar-se com uma convicção difusa, sujeita à transmissão entre gerações, de que houve, naquele tempo, grandes incêndios. A essa lembrança vaga e difusa ousou-se denominar memória diáfana, sugerindo, no que concerne a instrumentalidade política do trauma, um primado da memória sobre a história (BIZARRIA 2014: 125).

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Figura III: O Correio da manhã, em 18/01/1964, p. 3, apresenta “Mudança”, em uma fotografia facilmente encontrável na internet. Note-se a máquina de costurar conduzida por dois homens, ao centro.

5 Entre as singularidades redacionais, políticas e editoriais do Correio da Manhã e o discurso que permeia a nova militância das favelas cariocas, insinuam-se dois conjuntos muito distintos de representações e expectativas para a cidade, e a cuja explicitação empenha-se este artigo. A esses conjuntos simbólicos, que se costuma denominar cidades imaginadas3, preferiu-se, aqui, tomar como virtualidades ou cidades virtuais, o que parece ter um certo número de vantagens, entre as quais a possibilidade de se apreender como esses dois fluxos discursivos impingem à cidade do Rio de Janeiro suas próprias formas, informando-se, simultaneamente, a partir dela. Esse esforço encontra, no magistério de Gilles Deleuze, uma apologia sucinta: Opúnhamos o virtual ao real; agora é necessário corrigir essa terminologia, que ainda não poderia ser exata. O virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual. O virtual possui uma realidade plena, embora virtual. Do virtual, dever-se-ia dizer o mesmo que dizia Proust dos “estados de ressonância: “reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos” e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve mesmo ser definido como uma parte estrita do objeto real — como se o objeto tivesse uma de suas partes no real e aí penetrasse como numa dimensão objetiva. (DELEUZE 1993: 269. Tradução nossa, grifos do autor).

6 Sem deter, deveras, a paternidade das expressões virtual e virtualidade, Deleuze oferece uma acepção suficientemente estrita das categorias. Na forma mais madura de seu pensamento, o filósofo chegará a entrever uma equivalência entre imagem e objeto, que constituirão “o plano de imanência no qual se dissolve o atual” (DELEUZE; PARNET 1996: 180. Tradução nossa).

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O Correio da Manhã e a cidade do cartão postal

7 Com provável atraso da edição matinal, o Correio da Manhã pôde noticiar o incêndio do Morro do Pasmado com a mesma celeridade da Tribuna da Imprensa. Na quarta-feira seguinte, porém, a matéria de capa do quarto caderno, A fogueira de Botafogo, não assinada, de curiosa redação, ocupava praticamente toda a página: Do morro só restam cinzas e a escada íngreme, desconjuntada, apontando para o alto. Não podia ser diferente. Não podia ser diferente4. Que em Bangu e redondezas surjam aglomerações decentes. Que venham abaixo, em cinzas, todas as favelas. Nem por isso a saudade é menor. Nem por isso as lágrimas deixarão de correr, numa tentativa infrutífera de apagar a fogueira. Uma fogueira que iluminou a noite de Botafogo no Morro do Pasmado. (CORREIO DA MANHÃ, 29/01/1964).

8 A presença do curioso epitáfio nas páginas do jornal, em período no qual a imprensa buscava deliberadamente emancipar-se do discurso literário com o qual já vinha em longa comunhão (BARBOSA 2007: 150) exigiu uma explicação, buscada a partir do momento em que a Favela do Pasmado fosse mencionada pela primeira vez em suas páginas. Embora o conhecimento da existência de casebres e barracos na calva do Morro do Pasmado estivesse disponível desde o primeiro levantamento aerofotogramétrico da cidade, entregue à prefeitura do Distrito Federal em 1928, e possivelmente, antes disso, o Correio da Manhã silenciou sobre sua favela até dezembro de 1953, quando é mencionada como súbito acidente urbano5.

9 O Pasmado, sem sua favela, frequentava as páginas do Correio de modo irregular a partir da interventoria de Henrique Dodsworth (1937-1945), quando aparece pela primeira vez o projeto de se construir os grandes túneis que animaram a engenharia carioca pelas décadas seguintes, entre os quais o Túnel do Pasmado. O orgulho por essas obras aparece tanto nas matérias do Correio quanto nos anúncios que estampava, e é importante para se compreender as representações da cidade oferecidas pelo matutino. Até o início das obras do túnel, o Morro do Pasmado aparece, sobretudo, como referência espacial de uma série de anúncios de bens imóveis na região, principalmente em fase de incorporação, que testemunham o aquecimento do mercado imobiliário local como consequência direta da expectativa de valorização fundiária. É a partir da inauguração do túnel que a Favela do Pasmado passa a ter suficiente saturação para ser abordada como objeto de política urbana.

10 As singularidades estilísticas do Correio da Manhã, paradoxais diante da profissionalização do campo jornalístico, explicavam-se por uma contiguidade com o campo literário que se prolongou mais que em outras redações. O próprio Antônio Callado, seu diretor durante boa parte dos anos 1950, viria a desenvolver sua veia literária pelos anos seguintes. Carlos Lacerda, quando a Tribuna da Imprensa era apenas uma coluna no diário da família Bittencourt, também cultivou essa espécie de ambiguidade. Carlos Drummond de Andrade, não menos, assinou regularmente sua coluna pelas iniciais C.D.A, sugerindo de modo irresistível que aqueles textos destinavam-se aos que já o (re)conheciam e esperavam sorver de sua sabedoria em comentários mais ou menos sucintos sobre o noticiário local.

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Figura IV: Anúncio da General Electric, na capa do segundo caderno da edição de 26/03/1952 do Correio da manhã homenageia inauguração do Túnel do Pasmado.

11 Para além dos literatos de frequência regular, o Correio da Manhã publicava textos literários nacionais e estrangeiros, estes sempre traduzidos por autoridades já reconhecidas. A aliança entre o Correio e a literatura, portanto, prolonga-se sobre uma lógica de espelhamento do mundo, que fará seus leitores, identificados às letras e à alta cultura, reconhecerem-se nas páginas de um periódico que acolhe esses valores, reforçando-lhes, desta forma, um senso de distinção. Para os leitores, não seria diferente do tom dos anúncios, nos quais abundavam bens de consumo superiores, apresentados por personalidades reconhecidas naquele estrato social: socialites, literatos, músicos, arquitetos, atores etc. As páginas do Correio são permeadas da mais ampla variedade de bens de consumo que, hoje relativamente acessíveis, eram luxos outrora. Eletrodomésticos, gravatas, vestuário em linho e seda e joias não são, porém, os bens mais frequentemente anunciados: anúncios de incorporadoras e imobiliárias consistem visivelmente na maior parte de área impressa consagrada à publicidade desde a primeira mirada, explicando decisivamente o comprometimento do Correio da Manhã com os interesses dessas empresas e a presença tão frequente da arquitetura e do embelezamento urbano entre os bens culturais que propalava.

12 Ao lado da função de reproduzir elementos de alta cultura, o papel dos bens manufaturados nos anúncios do Correio da Manhã faz parte do esforço de se reproduzir nos leitores uma euforia diante dos elementos da técnica moderna e da inevitabilidade do progresso, um sentimento que caracterizou suas páginas ao longo de toda a década de 1950 (AMOROSO 2012: 195). Havia, assim, entre os jornalistas do Correio da Manhã e seus leitores, uma modulação biunívoca entre produtores e consumidores de bens culturais e materiais: O acordo que se estabelece, assim, objetivamente entre classes de produtos e classes de consumidores só se realiza no consumo por intermédio dessa espécie de senso da

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homologia entre bens e grupos, que define o gosto: ao proceder a uma escolha segundo seus gostos, o indivíduo opera a identificação de bens objetivamente adequados à sua posição e ajustados entre si por estarem situados em posições sumariamente equivalentes a seus respectivos espaços — filmes ou peças de teatro, histórias em quadrinhos ou romances, mobiliário ou vestuário — ajudado, neste aspecto, por instituições, butiques, teatros (de rive droite ou de rive gauche), críticos, jornais e semanários escolhidos, aliás, segundo o mesmo princípio; além disso, por serem definidas por sua posição em um campo, elas próprias devem ser objeto de uma identificação distintiva. (BOURDIEU 2007: 217. Grifos do autor).

13 Ao lado da tendência à profissionalização e à constituição de uma outra missão para o jornalismo, a redação do Correio da Manhã, exercendo sua escrita de transição, indicava suas prioridades axiológicas quando contrastava a visão das favelas cariocas ao urbanismo de cartão postal com o qual flertava: as aspirações de embelezamento urbano, ao lado da consagração do padrão de consumo de seus leitores e da formação da vocação turística da zona sul da cidade criaram um diário que, junto do imperativo orgulhosamente assumido de informar, cuidava também de representar a cidade de forma particular, e o conjunto dessas representações é o que permite aceder à lógica de sua cidade virtual.

14 A cidade do Correio era, acima de tudo, uma conjunção de dois mundos. O primeiro, objetivo sempre confessado de suas páginas, era o mundo do consumo conspícuo, do bom gosto, da arquitetura altaneira e da engenharia ousada, postos em vitrine para o estrangeiro. O segundo, na outra ponta do banquete, desvelava o país subdesenvolvido, a pobreza como imundície, a realidade subsaariana e os bairros de lata cuja eliminação o Correio da Manhã tomava como missão particular. Em Pressa, de janeiro de 1959, ecoando a imagem subsaariana, o apócrifo jornalista comenta a série de reportagens que o colega francês Alfred Luce-Fabre preparava para o Le Monde, observando as constatações mais evidentes ao estrangeiro em sua breve passagem: A pressa com que o jornalista francês percorreu nosso país aumentou, aos seus olhos, a velocidade de nossa evolução. Mesmo assim, não deixou de perceber umas coisas muito verdadeiras, o reverso de nosso desenvolvimento apressado: a especulação imobiliária, devorando capitais que poderiam servir para fins mais urgentes, a decorrente falta de dinheiro no mercado de títulos e, daí, a praga dos altos juros. São mais ligeiras as observações sobre os contrastes sociais: o Túnel do Pasmado na hora noturna do rush, em baixo [sic] os Cadillacs, em cima as cabanas africanas. É coisa que já não nos chama bastante a atenção" (CORREIO DA MANHÃ, 10/01/1959, p. 6).

15 Em tempos nos quais a menção às cabanas africanas não indignaria a muitos, o Correio da Manhã vem reforçar a série dos estereótipos que Janice Perlman (1977) associara aos “mitos da marginalidade”. Aos 26 de março de 1964, no centro superior do caderno principal, uma matéria que ocupa a maior parte da página noticia: “Favelados da Zona Sul bebem por mês o que custariam 113 casas edificadas”. O texto é extenso, mas esclarecedor: ao indicar uma breve estatística do consumo de bebidas alcoólicas nas favelas da zona sul e apresentar a novidade de que os barracos, desprovidos dos mínimos serviços públicos, contavam cada vez mais com receptores de rádio e televisores, o texto, mais uma vez não assinado, estabelecerá tanto a oposição entre a virtude individual da indústria e o vício coletivo do alcoolismo quanto a preferência do bem supérfluo sobre o bem necessário. Esbanja-se a escassez, sugere-se. A respeito do custo de oportunidade associado à construção das casas, o trecho da nota “proliferação”, por si um termo importante, merece ser transcrito:

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Os dados enumerados provam que nem 30% dos favelados precisam realmente morar em locais tão sórdidos. A confusão de miséria e conforto, possibilidades e necessidades, mostra-nos a gravidade crescente do problema. Somente a facilidade de burlar a lei pode explicar a proliferação de favelas e favelados. Famílias que poderiam viver em locais urbanizados — vide rádios, geladeiras e televisão —, correndo dos impostos e alugueis, misturam-se aos marginais das favelas. É formada uma comunidade só, onde o bem ou o mal sobreviverá, pois não há lugar para as duas faces. Mesmo não parando de usar o álcool, os favelados poderiam urbanizar suas favelas. Bastaria para isso que cara um, mensalmente, empregasse a quantia de Cr$ 250, importância que não compra três cervejas. (CORREIO DA MANHÃ, 26/3/1963, p. 3). As riquíssimas relações semânticas oferecidas em um trecho tão curto dão uma ideia da agressividade do Correio da Manhã no ano imediatamente anterior à consumação da remoção da Favela Pasmado, e encerram praticamente todo o repertório de opróbios contra o favelado a que se poderia recorrer. O mais interessante, porém, é a implicação de que, se os favelados não são capazes de parar de usar o álcool — algo tão obviamente distinto do beber — de poupar a mais insignificante das somas, se não são capazes de coexistir com o mal, como o fazem pessoas boas em qualquer outra parte, é necessário que sejam salvos de si próprios — um estado semelhante à infância — pela ação enérgica do estado, que é chamado a coibir a burla da lei e urbanizar as favelas, esperando-se que a população favelada, outrora arredia, viesse a perceber, na benemerência dos seus mais combativos opositores, a redenção de sua severidade.

Figura V. O Correio da manhã, em matéria de capa da edição de 23/03/1959 estampava o seguinte: “Crescem as favelas da cidade não obstante promessas em contrário da municipalidade”, anunciando um libelo que ocuparia quase toda a página.

A matéria contígua, “Árvores: pulmões do mundo”, lembrará, tratando mais dos subúrbios que das favelas, dos argumentos contemporâneos da remoção. A fotografia,

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sem indicação de autoria, apresenta a legenda “Pasmado: descem os barracos”.

Figura VI: a “urbanização do Pasmado” segundo o Correio da Manhã, anunciado em um quarto de página, no caderno de classificados dominical (24/11/1963, p. 5). Fotografia da socialite Anita Gelbert, entre outras quatro personalidades reconhecidas, adquirentes das primeiras unidades.

16 Deveras, um dos mais engenhosos aspectos da abordagem do Correio da Manhã foi o modo como sua editoria para a cidade conseguiu apropriar-se da categoria urbanização para defender sua própria agenda. Aos três dias de agosto de 1963, quando o programa da Secretaria de Serviços Sociais do Estado da Guanabara ainda não oficializara a remoção da Favela do Pasmado, a matéria de capa do quinto caderno apresentava o arquiteto Sérgio Bernardes como autor do “projeto de urbanização do Morro do Pasmado”. Bernardes não era, porém, um dos estudantes de arquitetura do ativismo estudantil6 que subiam aquela favela para auxiliar os mutirões de esgotamento sanitário e arruamento, mas o arquiteto que assinava o projeto do edifício do condomínio Casa Alta de Botafogo, hoje conjugado ao mirante Yithzak Rabin, esdrúxula homenagem.

17 A população da Favela do Pasmado, dispersa entre os conjuntos habitacionais e, depois, entre novas favelas que surgiam na zona oeste, junta-se à de outras populações que sucumbiram ao ímpeto da Era das Remoções. Durante o arrefecimento do regime militar e após o início da redemocratização do país, a militância das favelas, renovada, permite observar uma versão diferente da cidade, que assim como a do Correio da Manhã, subsiste em termos biunívocos com a atualidade da cidade: constituem-na, mesmo sendo por ela constituídas.

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A cidade da militância e seus matizes

18 A militância das favelas, vergada à radicalização do regime militar e à federalização da política de remoções, ajustou-se àquilo que percebera como realidade consumada nos anos 1970. Ao contrário da tese dominante, que buscou atribuir-lhe trajetória descendente, argumenta-se que, com uma cultura política informada pela predicação heteronômica e sistemática, a militância favelada inventou estratégias para a consecução de objetivos pontuais, embora concretos, no sentido da urbanização de várias favelas. No espírito do pragmatismo político que lhe ensinavam os tempos, evitaram a simples ressonância das disputas próprias da Guerra Fria, o que, para alguns deu mostras de uma redução à docilidade: O que percebemos hoje, (1999), na prática, é um movimento favelado esfacelado, a existência de duas federações, a FAFERJ e a atual FAF-RIO. O movimento favelado se desfez e a cidade perdeu com isso grandes parceiros que poderiam estar, nesse momento de grande aflição, discutindo a cidade e contribuindo com seu saber formado a partir das reflexões formadas dentro nas [sic] favelas. (SOUSA 2003: 65).

19 A afirmação parece condescendente, pois a FAFERJ (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) possui uma história de organização política e militância que penetra, a despeito de reconhecidas dificuldades, os anos 1990. Deveras, o novo século é cada vez menos caracterizado pelas grandes federações, cada vez mais favorável a uma dispersão da militância em um conjunto variado de associações de âmbito local. Paralelamente à FAFERJ, organizações como a Rede de Memória da Maré, a Central Única das Favelas (CUFA), a escola de cinema Nós do Morro, o coletivo Favelarte e o Grupo Cultural AfroReggae, para mencionar apenas algumas, opõem-se aos processos de cerceamento e cooptação que o crime organizado desenvolve nas organizações de moradores que consegue capturar.

20 Igualmente, essas organizações são protagonistas de renovados investimentos memoriais e discursivos, dos quais se pode extrair aspectos de sua própria cidade virtual. Luiz Antônio Pilar e Anderson Quack, diretores da CUFA, vêm, desde fins de 2013, apresentando um circuito de exibições, a título de pré-estreias, de seu documentário Remoção (2013). Em 2009, com a colaboração de Carlos Diegues, os moradores de várias favelas cariocas realizaram uma reedição do filme Cinco vezes favela (1962), opúsculo do Cinema Novo. Sem conexão necessária com os episódios originais, o Cinco vezes favela, agora por nós mesmos (2009) foi inteiramente reescrito pelos próprios moradores, e obteve uma significativa passagem pelo circuito comercial. Com o concurso do discurso acadêmico, o documentário Realengo, aquele desabafo (ARAGÃO et al. 2011), recolhe testemunhos de famílias que foram realocadas em conjuntos habitacionais naquele bairro, às margens da Avenida Brasil.

21 Uma característica dessas produções, ainda, é seu caráter transnacional: a CUFA, por exemplo, está organizada em todos os estados federados brasileiros e, segundo informam em sua página eletrônica, dez países. O festival de cinema independente Globale, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em 2013, apresentou os documentários Distopia 021 (RIBEIRO 2012) e Casas marcadas (BARRADAS et al. 2012), no contexto de mostras não competitivas que conjugavam as produções nacionais a reflexões semelhantes de outras partes do mundo. Casas marcadas, um documentário-denúncia que já recebera a menção honrosa no XII Festival Internacional de Cinema de Arquivo, na sede do Arquivo Nacional, também na cidade do Rio, apresenta a luta dos moradores

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do Morro da Providência contra o que considera um verdadeiro urbanismo de exceção. Essa favela, orgulhosa em narrar-se como a primeira do Brasil (é, ao menos, a mais antiga ainda em existência), recebeu recentemente o grafiteiro lusitano Alexandre Farto, que sob seu pseudônimo, Vhils, realizou retratos de famílias removidas nas fachadas de suas próprias casas, marcadas para demolição por funcionários da Secretaria Municipal de Habitação. A curiosa técnica de Vhils e alguns de seus retratos foram, igualmente, representados em documentário independente (MOREIRA 2012).

22 A pluralidade e a intensidade com que surgem esses investimentos memoriais atualiza o furor de memória (memory boom) indicado por Andreas Huyssen (2003: 18), e levanta relevantes questões acerca do significado do relativo hiato que existiu entre as remoções do regime militar e a multiplicação de discursos que se apropriam delas. Primeiramente, a multiplicação dos discursos sobre a memória das remoções parece afastar a hipótese do silêncio como um recomeço, aventada por Marc Augé: [...] uma reinauguração radical, com o re- desde já implicando que uma mesma vida contém vários começos. [...] Sua ambição é reencontrar o futuro pelo esquecimento do passado, criar as condições de um novo nascimento que, por definição, abre-se a todos os devires possíveis sem privilegiar a nenhum. (AUGÉ 2001: 78. Tradução nossa).

23 Preservando o mesmo objetivo de se reencontrar um futuro, a militância política das favelas beneficia-se de um contexto institucional e político que permite que as remoções, enquanto plexo de memórias traumáticas, enquanto possibilidade real a ameaçar várias favelas no presente, sejam enfrentadas, discutidas e reelaboradas. Contra a distopia atualizada e o urbanismo de exceção, a militância política das favelas pode, pela defesa de seus lares e das instituições democráticas, entrever um sentido de utopia para o novo século. Nas palavras de Huyssen: As utopias voltadas ao progresso linear, que dominaram os séculos XIX e XX (comunismo, fascismo, modernização) perderam a legitimidade, e de vez, espera-se. Mas ainda precisamos pensar realmente o futuro, e não há pensamento de futuro sem um sentido do ainda-não, das possibilidades não realizadas, das alternativas às estruturas sociais e econômicas que dominam nosso mundo hoje. Talvez seja o caso de pensarmos a utopia com um “u” minúsculo [...]. (HUYSSEN 2013, In: GANITO; AGOSTINHO 2013. Tradução nossa).

24 O relevante papel político que cabe à militância das favelas e ao concurso de atores políticos que vêm participar da produção memorial das remoções e da defesa do direito à cidade no Brasil permite caracterizá-los como empreendedores morais (BECKER, apud JELIN, 2002, p. 48.). Sua atividade dedica-se à produção de memórias do labor, da solidariedade dos mutirões, da luta contra as remoções, e da religiosidade — católica, protestante ou afro-brasileira, em tanto divergentes, mas resolutamente convergentes no penhor de representações que desafiam decantadas associações entre o favelado e o vício. A cidade da militância, que emerge dessas representações, começa a deixar seu caráter reativo e articula-se para infletir mais decididamente sobre os destinos da cidade atual.

Considerações finais

25 Em sua meditação sobre o que chamara “vazios de Berlim”, Andreas Huyssen mencionava uma campanha publicitária de 1996 que, celebrando o desafio da reconstrução e da reunificação da República Federal da Alemanha, inscrevia “Berlin

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wird” (Berlim se transforma, em português). A chave intransitiva da transformação, porém, fazia com que, “sendo a Berlim de meados da década de 1990 um grande canteiro de obras, um buraco aberto no chão, tenha-se mais razões para se enfatizar o vazio que para celebrar a transformação” (HUYSSEN 2003: 54. Tradução nossa).

26 A cidade do Rio de Janeiro, às vésperas dos eventos internacionais para os quais foi eleita, torna-se, igualmente, um grande canteiro de obras. Destarte, seria adequado pensar os vazios fluminenses como o terreno no qual combatem distintos projetos do que deve ser a cidade no novo século, o próprio objeto atual sobre o qual se arrojam as cidades virtuais, nele formadas: O plano de imanência compreende ao mesmo tempo o virtual e sua atualização, sem que possa haver aí um limite determinável entre os dois. O atual é o complemento ou o produto, o objeto da atualização, mas essa não tem por sujeito outra coisa que o virtual. A atualização pertence ao virtual. A atualização do virtual é a singularidade, enquanto o atual em si mesmo é a individualidade constituída. O atual cai para fora do plano como um fruto, enquanto a atualização o remete ao plano como àquilo que reconverte o objeto em sujeito. (DELEUZE; PARNET 1996: 180-181. Tradução nossa. Grifo nosso).

27 Assim, o estudo das virtualidades que emergem da produção discursiva de atores sociais não interessa apenas por seu valor estético, nem se reduz a uma hermenêutica remota. É a partir das cidades virtuais, entre elas, por virtude de sua realidade, que se constituirá a atualização de uma cidade para o novo século. Mesmo os dois conjuntos de projetos delineados aqui se fragmentam em um caleidoscópio de cidades. Essas cidades virtuais, todas elas, infletirão sobre o futuro com maior ou menor força, serão umas mais, outras menos semelhantes à paisagem que alcançará o olhar. Assim como a Favela do Pasmado, as cidades dos projetos derrotados, preteridos e silenciados subsistirão indefinidamente, soerguendo de suas cinzas para afrontar os projetos que se criam vencedores.

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NOTAS

1. Publicado em 1953, o romance Fahrenheit 451 narra os dilemas íntimos do bombeiro Guy Montag, num futuro distópico no qual, por iniciativa de um governo totalitário, a escrita foi suprimida e os livros proibidos, cabendo à corporação encontrar e incinerar os tomos teimosamente preservados por uma resistência civil, assim como justiçar os culpados por sua conduta supostamente subversiva e antissocial. Oskar Werner viveu o agente Montag na adaptação fílmica de François Truffaut, em 1966. 2. Lícia do Prado Valladares apresenta esses fluxos discursivos anteriormente às ciências sociais (2000) e após (2005), sendo também autora de estudo clássico sobre o processo de remoções (1978) e, em coautoria com Lídia Medeiros, de bibliografia analítica que abrange todo o século XX. O casal Anthony e Elizabeth Leeds (1978) e Janice Perlman (1977; 2010), além do próprio Ferreira dos Santos somam-se ao rol das obras mais conhecidas e frequentemente citadas da disciplina. No novo século, os estudos são chamados a rever e atualizar as obras clássicas, além de investigar decisivas transformações que dão ao discurso remocionista e à resistência da militância das favelas as cores de seu tempo. Por um lado, os discursos que pregam a remoção de favelas na cidade do Rio de Janeiro vêm socorrer-se em novos argumentos: uma interpretação específica da

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segurança jurídica e do direito à propriedade, a segurança pública, o empreendedorismo urbano (SANTOS Jr. 2012) a proteção ao meio-ambiente ou o discurso das áreas de risco geoclimatológico (COMPANS 2007). Por outro, a militância política das favelas não parece mais aglutinar-se em torno de organismos e foros centrais, como foi o caso da Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado da Guanabara, FAFEG, ou de sua sucedânea, FAFERJ: os militantes agora percorrem uma constelação de organizações, ou passam ao largo de todas elas. 3. A expressão cidade imaginada tem um trânsito amplo entre abordagens dos mais variados objetos. Suas remissões incontáveis remontam, possivelmente, a uma extrapolação da categoria proposta por Benedict Anderson em seu Imagined communities (1991). Não sendo possível recolher uma acepção estrita de cidade imaginada, é frutífero observar que os painéis simbólicos que Beatriz Sarlo (2009) apresenta junto à expressão são os mais aproximados do que se pretende realizar neste artigo. 4. A frase, repetida no original, parece mais uma inserção deliberada que um acidente tipográfico. A leitura do Correio da Manhã encontrará singularidades redacionais a cada passo, mormente nas matérias não assinadas, quando o autor permanecia à sombra de sua editoria. 5. Na primeira semana de dezembro do ano anterior o Diário Carioca denunciava uma tentativa de remoção parcial da Favela do Pasmado pela prefeitura de João Carlos Vital. Ao evidenciar que não havia local preparado para receber a população transferida (eram deixados em um descampado no bairro de Cordovil, na Zona Norte), o vespertino logrou sustar a operação de remoção, e a favela subsistiu por mais doze anos. Nenhuma motivação humanitária aí: o Diário Carioca, ainda estreitamente ligado à União Democrática Nacional, buscava desmoralizar qualquer ação da Prefeitura do Distrito Federal, já que seus titulares eram indicados ad nutum pela Presidência da República, ocupada por Getúlio Vargas. Em fins de 1963, Danton Jobim, que já militava na redação desde a década anterior, conseguiu o controle acionário do jornal, guinando-o à esquerda e oferecendo um importante contraponto à cobertura que o Correio da Manhã e O Dia realizaram sobre a remoção definitiva da Favela do Pasmado. Maria Lais Pereira da Silva (2005) apresenta uma síntese dos levantamentos aerofotogramétricos de 1928 e 1964. 6. É razoável afirmar que a categoria urbanização surgiu, no campo urbanístico, à esquerda, como projeto contra-hegemônico: Valladares (2005: 55) registra seu uso mais remoto nos atos do I Congresso Brasileiro de Urbanismo, em 1941. A atualização mais consistente da urbanização conforme sua elaboração originária encontra-se no trabalho desenvolvido por jovens arquitetos ligados ao movimento estudantil e reunidos no escritório experimental Quadra Arquitetos Associados. Entre 1968 e 1970, subcontratados pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO), os arquitetos promoveram a integração da favela de Brás de Pina ao bairro homônimo. Sobre a trajetória do grupo, reporte-se às memórias de Ferreira dos Santos em seu Movimentos sociais urbanos (1980) e ao trabalho primoroso de Stella Pugliesi (2002), que devolve àqueles jovens o protagonismo que não se lhes costuma reconhecer.

RESUMOS

No início de 1964, três meses antes de o governo republicano brasileiro ser derrubado por uma insurreição militar, no início de um regime de vinte e um anos, manchetes celebravam uma operação de saneamento conduzida pela cidade-Estado do Rio de Janeiro: tratava-se de um incêndio controlado, operado pelo corpo de bombeiros local e que consumiu os restos da Favela do Pasmado, cujos habitantes haviam sido transferidos à força para conjuntos habitacionais na

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porção ocidental da cidade ao longo das semanas que precederam o evento. Entre a remoção do Pasmado e a escolha da cidade para sediar a XX Copa do Mundo de Futebol e a XXXI Olimpíada, este estudo procura analisar duas versões do Rio de Janeiro como virtualidades: uma proposta pelo Correio da Manhã, a outra proposta por uma miríade de vozes da militância política das favelas desde o restabelecimento das instituições democráticas.

In early 1964, three months before the Brazilian republic would be overthrown by a military insurrection in the onset of a 21-year regime, headlines celebrated a sanitation operation conducted by the city-State of Rio de Janeiro: it consisted in a controlled fire, operated by the local fire department, and consumed the remains of the Favela of Pasmado, whose inhabitants had been forcibly transferred to housing complexes established in the western portion of the city in the weeks preceding the event. Between the eradication of Pasmado and the City’s being chosen to host of the XX World Cup and the XXXI Olympiad, this study seeks to analyse different versions of Rio de Janeiro as virtualities: one proposed by the Correio da Manhã, the other proposed by a myriad voices from the contemporary favela militancy since the reestablishment of democratic institutions.

ÍNDICE

Keywords: favela, forced evictions, urban studies, social memory, journalism Palavras-chave: favela, remoções, estudos urbanos, memória social, jornalismo

AUTOR

JÚLIO BIZARRIA

Mestre em Memória Social, Programa de Pós-graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

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Patrimônios Culturais e Imaginários Urbanos: apropriações do espaço público pelos mercados no Rio de Janeiro

Nina Pinheiro Bitar

NOTA DO AUTOR

Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN

1 Nos últimos anos diversos mercados populares vieram a ser reconhecidos como patrimônio “material” e “imaterial” pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Conjuntamente ao processo de patrimonialização (Fonseca 2005; Gonçalves 2003, 2007, 2008; Leitão 2010), esses espaços urbanos também passam pela chamada “gentrificação” (Bidou-Zachariansen 2006; Leite 2004; Zukin 1989, 2000b, 2008) ou “enobrecimento”1. Torna-se primordial compreender como tais transformações são reinterpretadas pelos trabalhadores e frequentadores desses locais, revelando em tal processo as diversas formas de se conceber o espaço da cidade.

2 A partir da pesquisa de campo realizada no Cadeg (Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara), o “novo” Mercado Municipal da cidade do Rio de Janeiro, analiso aqui as transformações que ocorrem nesse mercado e a sua relação com as “revitalizações” que acontecem na cidade. Pode-se dizer que os mercados integram de modo singular os espaços, demarcando sobre estes valores e estilos de sociabilidade associados à “memória da cidade”.

3 Os mercados, em certos momentos, foram considerados sob o prisma de determinados urbanismos como um obstáculo à expansão e modernização da cidade. Atualmente eles vêm sendo recuperados como “patrimônios”, expressando concepções urbanísticas

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alternativas, revelando uma nova forma de conceber esses espaços, os quais passam a ser foco de políticas públicas voltadas ao turismo.

4 Locais outrora vistos como “sujos” ou que “atrapalhavam” o desenvolvimento das cidades – motivo pelo qual muitos deles foram remanejados para a periferia das cidades – passam a ser vistos como foco de autenticidade de estilos de relações sociais não contaminadas pela impessoalidade do ambiente “moderno” (La Pradelle 2006). Desta forma, torna-se relevante compreender quais imaginários de cidade são formulados a partir da “valorização” dos mercados.

5 A partir da experiência de pesquisa no Cadeg, Rio de Janeiro, percebi que o mercado passava por um processo de ressignificação, sendo nomeado pela Prefeitura em 2012 como o “novo” Mercado Municipal do Rio de Janeiro2. Focalizo, para isso, os momentos de realocação dos usos sociais desses mercados revelando em tal processo as diversas formas de se conceber o espaço da cidade.

6 Como muitos autores apontam, os mercados que comercializam diversos produtos e estão situados em variados contextos são espaços de trocas não apenas econômicas (Malinowski 1957; Mintz 1961, 1987, 1971, 2008; Mott 1975, 1976; Silva 1971; Garcia 1977, 1983, 1984, 1993, 2010; Geertz 1979; Sigaud 1983; Gell 1982; Clark 1994; Carrier 1997; Ferreti 1985, 2000; Filgueiras 2000; Stoller 2002; Bestor 2003, 2004; Gorberg & Fridman 2003; La Pradelle 2006; Vedana 2008; Rabossi 2004; Zukin 2008; Leitão 2010; Durando 2010; entre outros). Compartilho dessa perspectiva, ao pensar o Cadeg como parte de relações de reciprocidade (Mauss 2003) e que envolvem, segundo a proposta de “fato social total” do autor, variadas características, as quais podem ser estéticas, morais, econômicas, religiosas, jurídicas, entre outras.

7 Muitos estudos também já trataram da relação entre cidades e mercados. Entretanto, pretendo abordar como, através dos imaginários produzidos pelos participantes de um mercado, é possível pensar a relação entre essas categorias. Nessa perspectiva, o mercado é parte constituinte e constituidora da cidade. Desta forma, apresento uma pesquisa sobre "o Rio de Janeiro” e não apenas “no” Rio de Janeiro.

8 Durante a pesquisa acompanhei os diversos agentes que atuam no Cadeg, desde os chamados “fundadores” do mercado aos “produtores” que lá oferecem as suas mercadorias. Essa cadeia permitiu articular as diversas concepções e usos dos espaços em questão, sempre com o foco analítico de entender a natureza das relações das pessoas com os objetos e espaços.

9 Criação de um “novo” Mercado Municipal do Rio de Janeiro

10 O mercado de abastecimento Cadeg é localizado na Rua Capitão Félix, 110, Benfica3, zona Norte do Rio de Janeiro, e possui uma área construída de cerca de 100.000 m2. É situado próximo ao edifício Pedregulho4 e possui características arquitetônicas de sua fachada que fazem referência ao “modernismo” desse edifício. Tal mercado é privado e foi fundado em 1962. Ele foi construído no terreno da antiga fábrica de cigarros Veado (Imperial Estabelecimento de Fumo, a primeira fábrica de cigarros do Brasil). Atualmente é o maior distribuidor de flores do Estado do Rio de Janeiro.

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Interior do Cadeg (Fotografia: Nina Pinheiro Bitar)

11 Ao longo da pesquisa de campo, percebi que alguns dos meus interlocutores construíam narrativas que relacionavam o mercado Cadeg a outras espacialidades e temporalidades. Através de entrevistas com as pessoas que “fundaram” o Cadeg em 1962, os chamados “fundadores”, percebi que eles explicavam a sua relação atrelada a um outro mercado, o Mercado Municipal da Praça XV de Novembro, construído em 1907 no centro da cidade do Rio de Janeiro e extinto em 1962. Eles assim produziriam narrativas também sobre um outro “tempo”, vinculando o Cadeg ao Mercado Municipal.

12 Pode-se dizer que a extinção do Mercado Municipal da Praça XV de Novembro foi decorrência da implantação de novos planos urbanísticos na região do centro da cidade do Rio de Janeiro na década de 60, como a finalização da construção do Elevado Perimetral5, exigindo a sua remoção do local. Além disso, o prazo de cinquenta anos de concessão do terreno do Mercado Municipal pela Prefeitura expirou em 1957, obrigando os comerciantes a saírem do local posteriormente.

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Mercado Municipal atravessado pelo Elevado da Perimetral. Mercados do Rio: 1834-1962. (Gorberg & Fridman 2003)

13 Apesar da demolição do Mercado Municipal, um dos torreões do Mercado onde funcionava o Restaurante Albamar foi mantido, sendo posteriormente tombado na década de 80 e transformado em “resquício” do Mercado Municipal e do “Rio antigo”. Segundo França e Rezende (2010) no momento da demolição do mercado “a clientela ilustre, a pedidos dos funcionários da época, se movimentou junto ao governador Carlos Lacerda para manter o torreão. O resultado foi positivo” (2010:20). Assim, o antigo torreão permaneceu funcionando como restaurante, adquirido pelos seus funcionários. Posteriormente foi reapropriado pelas políticas públicas e transformado em “patrimônio”, através do seu tombamento, representando o extinto o Mercado Municipal e o seu “tempo”: O primeiro mercado do Rio de Janeiro foi projetado na primeira metade do século XIX pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, na beira da antiga praia de D. Manuel, junto do largo do Paço, para disciplinar o comércio de gêneros alimentícios – sobretudo peixe – na zona central. Um novo mercado, bem maior, foi inaugurado pelo prefeito Pereira Passos em 1908, como parte das grandes obras de remodelação urbana. Tinha planta quadrada, com pavilhões longitudinais e cinco torreões octogonais – um maior no centro, com relógio, e quatro menores nos ângulos externos. Em 1933, num desses torreões menores, começou a funcionar o restaurante Albamar. Nos anos 50, o mercado foi demolido para a construção do elevado da Perimetral, mas o torreão do restaurante Albamar sobreviveu, solitário, com sua belíssima estrutura metálica importada da Bélgica e da Inglaterra. O interior foi reformado em 1964 pelo arquiteto Roberto da Costa Soares. (Grifo meu. Inepac. Guia de Bens Tombados. Tombamento Estadual, dia 26 de janeiro de 1983) 6

14 No seu processo de tombamento, narram a origem do Albamar remetendo primeiramente ao primeiro mercado do Rio de Janeiro, o Mercado da Candelária, e posteriormente ao mercado inaugurado por Pereira Passos, o Mercado Municipal. Nesse mesmo período do tombamento, na década de 80, o espaço da Praça XV de Novembro

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também passou por diversos projetos de “revitalização” (Abreu 1987; Colchete Filho 2003; Mesentier 1992) e havia inclusive a proposta de reconstrução do antigo Mercado Municipal no seu local de origem, para resgatar tal “Rio antigo” 7.

15 Após a demolição do Mercado Municipal, no mesmo ano de 1962, foram construídos o Cadeg e também o Mercado de São Sebastião (localizado na Penha, zona norte do Rio de Janeiro). O processo de fechamento do Mercado Municipal e a criação desses dois novos mercados foi repleto de conflitos e disputas. No caso do Cadeg, tratava-se de um mercado privado organizado pelos ex-comerciantes do Mercado Municipal. O Mercado de São Sebastião também foi constituído por ex-comerciantes, entretanto, contava com o apoio dos governos federal e estadual e de segmentos da Igreja Católica, representada por Dom Helder Câmara8, que compreendiam a fundação do mercado como um instrumento de "cristianização" das favelas do seu entorno.

16 Apesar do Mercado de São Sebastião ter recebido o apoio governamental na época de sua fundação, o Cadeg foi nomeado pela Prefeitura da cidade o "novo" Mercado Municipal do Rio de Janeiro em 2012. O ato público conduzido pelo prefeito Eduardo Paes no evento de comemoração dos 50 anos do Cadeg, refletiu o processo de ressiginificação que o mercado vem passando nos últimos anos.

17 Através de entrevistas com os fundadores do Cadeg e de pesquisas de arquivo9, percebi que o antigo Mercado Municipal da Praça XV era um personagem fundamental e que era concebido como a principal fonte de “autenticidade” do Cadeg. Tal processo encontrou ressonância com o seu reconhecimento atual como “novo” Mercado Municipal do Rio de Janeiro.

18 O próprio nome do mercado também sinalizava os marcadores temporais e políticos com a cidade do Rio de Janeiro. Quando o mercado ainda era projetado pelos arquitetos Vigor Artensi e Moacyr Gomes da Costa, em 1959, o Rio de Janeiro era Capital Federal do país. Assim, seu “primeiro nome” foi CADF (Centro de Abastecimento do Distrito Federal). Em 1960, o Rio de Janeiro deixou de ser a Capital Federal, sendo fundado o estado da Guanabara. Ao inaugurarem o mercado, em 1962, o Cadeg foi renomeado e passou a carregar em seu nome “estado da Guanabara”, chamando-se Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara. Em 1975, foi dissolvido o estado da Guanabara e fundados o estado e a cidade do Rio de Janeiro. Contudo, os diretores do Cadeg decidiram permanecer com o nome com o qual o mercado já era reconhecido. Essas mudanças do nome do mercado mostram que há uma relação direta com as alterações nas categorias jurídicas que determinavam as fronteiras espaciais e as concepções de funcionamento das gestões públicas do município e do estado. Isto fica evidente na alteração do nome do mercado: primeiramente, “Distrito Federal”, depois, “Estado da Guanabara”. Por outro lado, a opção por manter em seu nome “Estado da Guanabara”, mesmo após a sua extinção, produziu um demarcador temporal que associava o Cadeg a um momento específico da cidade: o período de sua fundação.

19 Em 2012, por decreto do prefeito, o nome do mercado foi alterado novamente, agora para “Cadeg – Mercado Municipal do Rio de Janeiro”. Esse decreto municipal concretizou juridicamente diferentes concepções de espaços e temporalidades, presentes principalmente nos discursos dos chamados “fundadores” do Cadeg.10 Como a narrativa de origem operada pelos “fundadores” entende o Cadeg como uma “continuação” do Mercado Municipal, as transformações pelas quais a cidade passou estavam ali condensadas metaforicamente no seu novo nome.

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20 O processo de remoção de alguns desses mercados para zonas mais afastadas dos grandes centros urbanos tem sido um caso comum em certos países.11 É o caso do Cadeg, criado a partir da já comentada demolição do antigo Mercado Municipal do centro da cidade. Ocorreu processo semelhante em outros países, como por exemplo o mercado situado em Les Halles, no centro de Paris, demolido em 1969 e transferido para Rugis, na periferia da cidade. Hoje essa área central reúne uma estação de metrô, restaurantes e bares (Vedana 2008). Pode-se dizer que essas transformações fazem parte de um processo mais amplo de reconfiguração ou “gentrificação” de bairros localizados na zona central de cidades (Zukin 1989, 2000b, 2008; Smith 2004; Leite 2004; Bidou-Zachariansen 2006).

21 Muitos mercados permaneceram nos centros urbanos, mas foram reincorporados ou ressignificados a partir desses processos mais amplos de patrimonialização e de gentrificação (Leite 2004). Alguns deles foram alvo de tombamentos e registros por órgãos federais, estaduais e municipais de preservação patrimonial12.

22 O Iphan tombou diversos mercados desde a década de 50 como, por exemplo, o Mercado da Diamantina (MG), o Mercado Modelo (Salvador, BA), o Mercado de São José (Recife, PE), o Mercado do Ver-o-Peso (Belém, PA),13 o Mercado de Carne (Aquiraz, CE), o Mercado Público de Manaus (AM). Já a Feira de Caruaru (PE) é considerada “patrimônio imaterial” pelo Iphan.

23 Já no Estado do Rio de Janeiro14, foram tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) o Mercado Municipal na Praça Duque de Caxias (Angra dos Reis); Largo do Benedito e Adjacências (Mercado do Peixe, Niterói); o Restaurante Albamar (Centro do Rio de Janeiro), único torreão que restou do extinto Mercado Municipal da Praça XV de Novembro. A Prefeitura do Rio de Janeiro, através do Departamento Geral de Patrimônio Cultural (DGPC), também possui a sua pequena coleção de mercados tombados: Cobal do Humaitá e do Leblon, Mercado São José, além do Mercadão de Madureira, em processo de tombamento.

24 Entretanto, uma outra perspectiva é de compreender a categoria “patrimônio” para além de suas expressões jurídicas. A perspectiva é a de pensar o patrimônio como categoria de pensamento (Gonçalves 2003) e de buscar compreender quais os contornos semânticos pode assumir em contextos socioculturais específicos. Pode-se dizer que o processo de formação de patrimônio é traduzido pela categoria “colecionamento”, cujo efeito é a demarcação de um domínio subjetivo em oposição a outro (Gonçalves 2003). Essa categoria pode ser usada comparativamente em outras experiências culturais nas quais não aparece individualizada e com fronteiras bem definidas. Em determinados contextos ela assume diferentes contornos semânticos, podendo não ser separada dos seus proprietários ou constituindo uma extensão moral dos mesmos (Mauss 2003).

25 A ambiguidade é o aspecto definidor da categoria patrimônio, de sua própria natureza, liminarmente situada entre o passado e o presente, material e imaterial, história e memória (Gonçalves 2007). Uma das hipóteses é a de que o patrimônio faria a mediação entre essas esferas. Assim, o patrimônio para além de se configurar como uma expressão emblemática de um grupo social ou nação, é também um processo de construção e reconstrução através das experiências sensíveis individuais e coletivas (Gonçalves 2007). Deste modo, essas duas concepções, do patrimônio como uma forma de expressão emblemática de uma cultura e como uma extensão da experiência, devem ser pensadas, na medida em que os objetos podem representar e constituir subjetividades individuais e coletivas.

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26 O processo de patrimonialização de espaços públicos, em muitos casos, caminha junto com políticas de “enobrecimento” (Leite 2004), fomentando "revitalizações". Entretanto, seus usos são formados cotidianamente pelos agentes que integram o espaço; assim, torna-se interessante compreender como tal processo de ressignificação é percebido pelas pessoas envolvidas nesses contextos. Existem os chamados “contra- usos” (Leite 2004) de espaços que foram alvo de “enobrecimento”, ou seja, por mais que haja uma tentativa de esvaziamento do “sentido público” dos locais enobrecidos, existe também um processo de usos e contra-usos que os reativam como espaços públicos.

O “cotidiano” e a “experiência” no Novo Mercado Municipal

27 O Cadeg faz parte desse contexto de valorização e revitalização de mercados. Entretanto, ao pensarmos que as transformações são processos descontínuos e dificilmente controlados pela implantação de projetos de revitalização e patrimonialização, pode-se apreender como, no cotidiano dele, os seus usos e significados são constantemente reelaborados.

28 As atividades do Cadeg estão passando por um processo de ressignificação e, agora, não somente estão voltadas para o abastecimento da cidade. O Cadeg vem sendo enfatizado como um local de “convívio” e de “lazer”, com a inauguração de restaurantes, lojas especializadas em venda de vinhos, “bistrôs” e palco de festivais gastronômicos. Todo esse processo acarretou uma mudança do público frequentador e dos tipos de comércios que se estabelecem lá.

29 Uma colunista do jornal O Globo descreveu a sua experiência num restaurante de um chef de cozinha recém inaugurado no Cadeg em 2010 como: “[...] estar ali, entre caixas de legumes e perfume de frutas, nos pareceu adorável. Vamos torcer para que mais chefs bacanas se animem em migrar para lá. Comer bem em mercados é tradição no mundo todo. Menos aqui [no Rio de Janeiro]”.15

30 A colunista aponta que a cidade do Rio de Janeiro não contava ainda com um Mercado Municipal. Ela estava certa em relação à vocação do mercado como um polo gastronômico pois em 2010 o Cadeg contava com cerca de 4 restaurantes e aumentou em 2013 para mais de 20 deles.

31 Entretanto, tal perspectiva sobre o Cadeg como um espaço de “lazer e entretenimento” foi, de certa forma, elaborada recentemente. O mercado era visto pelos comerciantes “antigos” como um local predominantemente de abastecimento a atacado de hortifrutigranjeiros para a cidade, cuja função desempenhou até o ano de 1972, quando foi inaugurado a Ceasa (Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro)16, criada como parte de um primeiro plano nacional de abastecimento, no período da ditadura militar, em 1974, no governo de Médici (1969-1974).

32 Um fator fundamental de estruturação do tempo e do espaço do Cadeg, o que muitos comerciantes ressaltavam como as “mudanças” do mercado, foi a criação da Ceasa e o consequente esvaziamento do Cadeg na década de 70. Assim como os fundadores apontavam o Mercado de São Sebastião como o “outro” do Cadeg no período de sua construção com o fim do Mercado Municipal, a Ceasa era apontada como seu grande concorrente. Houve nesse momento um grande esvaziamento do Cadeg, pois muitos comerciantes se mudaram para o novo mercado criado pelo governo. Segundo os

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comerciantes, o Cadeg era o maior abastecedor da cidade do Rio de Janeiro antes da inauguração da Ceasa, cujos principais clientes eram os grandes supermercados. Os comerciantes que permaneceram trabalhando no Cadeg ressaltavam que a década de 70 foi um marco temporal para o abastecimento da cidade e para a ressignificação do mercado.

33 O tempo do mercado era, assim, estruturado em cinco períodos distintos e que remetiam também a outros espaços: fim do Mercado Municipal da Praça XV de Novembro; criação do Cadeg; antes da fundação da Ceasa; depois da Ceasa; e agora como novo Mercado Municipal do Rio de Janeiro.

34 Os comerciantes do Cadeg afirmavam que as transformações do mercado também se refletiam no próprio trabalho deles. Os horários de comércio estavam também sofrendo alterações, com as transformações de uso e de público, além do aumento da venda a varejo. Percebi que a categoria “tempo” era primordial para os trabalhadores. Ela se expressava tanto através dos horários de comercialização quanto no fluxo semanal de trabalho. O fluxo de trabalho semanal pode ser agrupado, segundo a classificação dos trabalhadores, entre “dias de semana” e “sábado”17. Esta era uma distinção fundamental para eles, pois alterava-se o perfil do público e do tipo de venda conforme esses diferentes “tempos”. Estes são dois marcos temporais que estruturavam a vida cotidiana dos comerciantes do Cadeg.18

35 Nos dias de semana, segundo eles, a venda era predominantemente a atacado, principalmente de hortifrutigranjeiros. Os comerciantes começavam a chegar no Cadeg aproximadamente às 22 ou 23 horas, abriam as suas lojas e iniciavam a venda 2 da manhã até às 10 horas. Alguns varejistas de hortifrutigranjeiros, cereais, bebidas, entre outros, permaneciam com suas lojas abertas até o meio dia. Os restaurantes passavam a ter um maior número de clientes, segundo eles, “maior movimento” 19, a partir do meio dia até às 16 horas.

36 Eles reproduziam esse ciclo até sábado, que tinha um horário e ritmo diferenciados. As lojas de venda de bebidas, hortifrutigranjeiros, mercearias, entre outras, ficam abertas no sábado até às 17 horas. Cada comerciante encerrava a sua atividade conforme a “diminuição do movimento”. Os restaurantes fechavam um pouco mais tarde do que nos dias de semana, às 17 horas, e alguns fechavam às 20 horas. O número de pessoas que visitava o mercado era também maior no sábado do que nos dias de semana, sendo percebido visivelmente nos corredores do mercado.

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Clientes comprando produtos a varejo no mercado (Fotografia: Nina Pinheiro Bitar)

37 No sábado, além da venda a atacado, realizada de madrugada, havia no período do final da manhã uma maior procura da clientela pelo comércio a varejo. Os comerciantes também apontavam que os fregueses “mudavam de perfil” nesse período, sendo um público mais voltado para a compra de poucos itens, em menor quantidade, e também que iam ao mercado para “passear” e almoçar. Aos sábados acontecia também a “festa portuguesa” no Cantinho das Concertinas, comandada pelo Carlinhos, uma das principais “atrações” do mercado.

38 Os comerciantes viam as mudanças do mercado, geralmente, de forma positiva. Entretanto, a predominância da venda a varejo com a entrada desse novo público era muitas vezes alvo de críticas. Eles contavam que dez anos atrás, o mercado já estava completamente vazio no início da tarde de sábado. Para os vendedores por atacado, as mudanças do mercado de certa forma alteravam a sua rotina, fazendo-os trabalhar em dois turnos. Eles apontavam que também não era muito lucrativo, já que o foco deles era a venda no atacado.

39 Entretanto, para o setor de vendas de bebidas e restaurantes, o mercado se tornou um espaço valorizado, trazendo um novo cotidiano para o local. Tal cotidiano também era vivido com mudanças no comportamento dos vendedores, que passavam a ser regulados pelos “fiscais disciplinares” do mercado, que faziam com que certas atitudes consideradas “inadequadas” para o novo ambiente construído fossem banidas através de multas.

O mercado dos festivais

40 Em consequência da criação da Ceasa e o esvaziamento causado, o mercado reconfigurou suas atividades gradualmente. Os espaços foram preenchidos com outras atividades que acabaram por modificar a estrutura de funcionamento do mercado, seus

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espaços, tempos e significados. Entretanto, esse processo não faz parte de uma “razão prática” (Sahlins 2003), mas um processo cotidiano de ressignificação do mercado.

41 Tampouco é um processo linear e com ações que caminharam juntas para uma mesma direção. Mas pode-se dizer que há um certo consenso entre os comerciantes ao afirmarem que houve na década de 70 a entrada de outros setores de comércio no espaço “vazio” deixado pela Ceasa, como as flores – que fizeram do mercado o maior abastecedor do Estado –, restaurantes, lojas de venda de bebidas, lojas de artigos de decoração e etc. Gradualmente, o mercado passou a ser um fornecedor para festas e eventos e também continuou abastecendo a cidade com hortifrutigranjeiros porém, em escala menor, para restaurantes, hospitais e pequenos comércios.

42 Com isso, o Cadeg, novo Mercado Municipal passou a ser também, segundo os comerciantes, “visitado” por um outro público, fazendo dele um espaço para ser experimentado, um local de lazer e entretenimento. No ano de 2013, após tornar-se o Mercado Municipal do Rio de Janeiro, foi inaugurada uma nova fase: transformando-se também em um “mercado dos festivais gastronômicos”.

43 O “1o Festival gastronômico: Bacalhau é a nossa aPOSTA” do Cadeg, foi realizado de 18 de novembro a 01 de dezembro de 2013.20 Segundo o website21 do agora “Mercado Municipal do Rio de Janeiro – Cadeg”, o bacalhau era presente em menus dos seus restaurantes, bares e botequins, e por isso era a “estrela principal do 1º Festival Gastronômico” do mercado. Segundo o website, o produto era um “ícone do mercado”, inspirando os restaurantes, sendo 22 participantes, os quais “criaram receitas especiais, entre petiscos e pratos principais”.

44 Os festivais eram uma espécie de competição, mas sem vencedores. Cada restaurante elaborava os seus pratos especiais para o festival. Os participantes divulgavam os seus restaurantes promovendo mudanças nos seus cardápios, e atraindo um maior público, com a presença na mídia.

45 Após a realização do 1 o Festival Gastronômico, o Cadeg promoveu o “Festival de bebidas: Mercado das Taças”, entre os dias 5 e 16 de fevereiro de 2014, que tinha como proposta “celebrar o verão” e “harmonizar” bebidas e comidas no mercado: “além das bebidas, o visitante pode saborear os pratos elaborados exclusivamente para a harmonização com cerveja especial ou espumante e assistir às palestras que vão acontecer no anexo do auditório, nos sábados do festival” (Revista Cadeg. Ano 3 – Edição 11, 2014: 17)22. Eles explicavam que seriam oferecidas bebidas premiadas em concursos, com preços promocionais, e que os chefs elaborariam menus especiais harmonizados. O festival oferecia, por exemplo, a opção de harmonizar os espumantes Rio Sol Brut ou Terranova Brut, vendidos pela loja Arte dos Vinhos, com o prato “Costela de cordeiro à moda do Porto”, vendido pelo restaurante Gruta de São Sebastião; outra opção era comer o prato “Feijão Amigo Lusitano”, no restaurante Barsa, acompanhado do espumante Casa Valduga 130 Brut, oferecido pela loja Griffe dos Vinhos, entre outras opções de combinação de bebidas com comidas, ou seja, entre os restaurantes do Cadeg e as lojas de bebidas.

46 No período próximo à semana santa foi realizado outro festival no Cadeg chamado “Festival Mesa Santa: o encontro de peixes e vinhos”, de 04 a 13 de abril de 2014. Tratou-se de outro evento gastronômico promovido pelo novo Mercado Municipal, Cadeg, “com ênfase nos sabores da Páscoa”. A proposta do festival era de também harmonizar bebidas e pratos, elaborados agora a partir do tema “semana santa”,

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enfatizando pratos utilizando em suas receitas “peixes, frutos do mar, massas, risotos e caldeiradas, respeitando os costumes da Quaresma de não usar carne nas receitas”, segundo o website do Cadeg. Os pratos servidos por nove participantes eram sempre harmonizados com garrafas ou taças de vinhos. Segundo a divulgação do evento, dependendo do prato, seriam combinadas “Chardonnay Malbec, Merlot e Sauvignon Blanc, entre outras”. O Corujão do Cadeg, por exemplo, apresentou o “Cherne à moda com taça de vinho branco Miolo Reserva Chardonnay” pelo preço de 38 reais; já o restaurante Barsa, criou a combinação da “Frigideira de Bacalhau com Garrafa de Los Vascos Chardonnay”, pelo valor de 146 reais para duas pessoas23. O evento também ofereceu dois dias de palestras e workshops gratuitos de sommeliers no auditório do Cadeg, como: “A uva Merlot no Brasil por Duda Nogueira”, “A visão do Chardonnay no Sul, Vinhos Miolo”, entre outros.

47 É interessante observar que os festivais promovem a integração tanto das lojas de bebidas com os restaurantes – pois os festivais promoviam uma combinação de bebidas e comidas –, como também relacionava os espaços das lojas e restaurantes com o auditório e seu anexo, respectivamente localizados no segundo e primeiro andares do mercado. No auditório eram realizadas oficinas e palestras. O mercado passava, assim, a expor a si mesmo, através dos produtos que comercializava.

48 Os festivais gastronômicos fazem parte de um projeto amplo, que engloba políticas públicas direcionadas à melhoria da infraestrutura do bairro de Benfica e seu entorno: o Polo Comercial Largo de Benfica, criado pelo decreto 32.424, assinado pelo prefeito Eduardo Paes em 22 de junho de 2010. Polo de Benfica faz parte do programa Polos do Rio24, que tem como objetivo a “promoção das vocações locais das diversas regiões da cidade do Rio de Janeiro, por meio do estimulo à atividade econômica e consolidação de espaços atraentes de convivência para os cariocas e turistas” (Portal Polos do Rio)25. O programa tem parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico Solidário da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (SEDES), a Fecomércio-RJ, o SEBRAE/RJ, o Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes (SindRio), a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e o Banco do Brasil. A proposta é de promover a “cooperação empresarial, a geração de emprego e renda e a revitalização da cidade”. O programa Polos do Rio, no ano de 2014, contava com 25 polos espalhados pela cidade. Eles eram relacionados à “gastronomia, aos acervos turísticos, ruas especializadas e centros comerciais”, contando com a parceria entre o poder público e a iniciativa privada “na revitalização do tradicional comércio de rua”, segundo o portal.

49 O Polo Comercial Largo de Benfica, polo de número 13, era assim descrito: “tendo a Rua dos Lustres, reconhecida nacionalmente pelo setor de decoração, e o Cadeg, referência de preço e qualidade na venda em atacado e flores, como âncoras deste grupo de empresários, e com efetiva participação das empresas do entorno desta região, o Polo Benfica é, com certeza, um dos principais atores no fornecimento para o setor de gastronomia e decoração, da cidade do Rio de Janeiro” (Portal Polos do Rio). Segundo a Revista do Cadeg, o Polo de Benfica instalou novas sinalizações das principais vias do bairro, indicando o caminho para o novo Mercado Municipal e complementaram: “Os esforços vêm sendo recompensados em cada momento pelos nossos parceiros, que veem no polo Benfica uma referência em trabalho junto a comunidade empresarial, os representantes das autarquias e os gestores municipais, sendo como grande legado desse trabalho a breve implantação do Projeto Bairro Maravilha em Benfica, sendo este um dos maiores projetos de reurbanização do Município do Rio de Janeiro” (Revista

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Cadeg, ano 3, edição 11, 2014: 29). O projeto era uma extensão da revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, área próxima aos bairros de Benfica e São Cristóvão, o qual esperava a irradiação dessas melhorias. 26

Mapa Polo de Benfica. “Projeto Censo dos Polos 2011: Polo de Benfica”. (Fonte: Portal Programa Polos do Rio)

50 A construção do Cadeg em Benfica, Rio de Janeiro estava em diálogo com percepções urbanísticas da cidade. O mercado afastou-se um pouco do centro da cidade e foi construído nesse bairro, próximo a São Cristóvão, local da antiga residência da monarquia e império no Brasil.27 O mercado também preenchia um espaço dessa região outrora valorizada, mas que havia perdido tal status. A escolha do bairro de Benfica para ser a nova sede do mercado também não foi aleatória. Como muitos comerciantes apontavam, São Cristóvão era um “reduto português”, além de ainda estar próximo ao centro da cidade, o que eles consideravam fundamental.

51 O “mercado dos festivais” era, assim, também parte de um contexto mais amplo de revitalização do seu entorno, com a criação do Polo de Benfica. Os eventos tinham também a característica de integração do comércio do bairro, pela proposta de ser um polo gastronômico. O Polo de Benfica, por sua vez, também se integrava a outros espaços da cidade, ao ser parte de um planejamento que englobava um conjunto de polos do Rio de Janeiro.

52 Segundo a Revista do Cadeg (ano 3, edição 11, 2014), na matéria intitulada: “Próxima Parada: diversão”, o Mercado Municipal estava localizado próximo ao bairro imperial, que “guarda pontos turísticos de história e entretenimento”. A revista sugere uma proposta de “roteiro cultural” de visita: “que tal viajar no tempo e conhecer um pouco da Quinta da Boa Vista, onde há 200 anos viveu a Família Real Portuguesa?”. Segundo o roteiro, o percurso de visita sugerido era de começar pelo Observatório Nacional – Museu de Astronomia e Ciências Afins, depois ir para a Quinta da Boa Vista, Estádio do

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Vasco da Gama, ir ao Cadeg e finalizar o percurso no Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas – Feira de São Cristóvão.

53 Segundo a revista, o mercado também estava realizando “visitas guiadas” para escolas, com o propósito de “agregar mais conhecimento” para os visitantes:

54 A visita ao Mercado Municipal de uma cidade é uma das atrações turísticas que não podem faltar no roteiro de quem está conhecendo a região. No Brasil, as cidades de São Paulo, Belém e Belo Horizonte possuem os mais movimentados do país. O mercado Municipal do Rio de Janeiro não fica fora da lista, pois recebe cerca de 10.000 pessoas por dia. [...] Basta agendar o melhor dia e horário para conhecer a história do local, a grande variedade do comércio, a deliciosa gastronomia e ver de perto os produtos mais exóticos, como carne de pato e planta ovo. Suas compras podem se tornar uma experiência cultural única, agregando mais conhecimento para as novas visitas. (Revista Cadeg, ano 3, edição 11, 2014)

55 O Cadeg valorizava a “experiência cultural única” que o mercado poderia proporcionar aos visitantes. Através da visita guiada pelo mercado seriam transmitidos “conhecimentos”, além de ser um local de “entretenimento”. Qual tipo de conhecimento o mercado gerava? Por que ele ainda se fazia presente na cidade e transformou-se em um local visitado por turistas e curiosos como um entretenimento?

Considerações finais

56 No caso específico do Cadeg, foi interessante observar as transformações do mercado a partir de três momentos distintos: o primeiro foi o fim do Mercado Municipal da Praça XV (1907-1962) e criação do Cadeg em 1962 (e também Mercado de São Sebastião); o segundo momento foi de esvaziamento de função e de sentido do Cadeg com a criação da Ceasa em 1974; e por fim, o retorno do Mercado Municipal com a nomeação do Cadeg em 2012.

57 O novo “Mercado Municipal – Cadeg”, passava a assumir um papel para além do abastecimento da cidade e tinha a característica de um polo gastronômico também. Esse processo, como vimos, foi construído através das mudanças que ocorreram no abastecimento do Estado do Rio de Janeiro, que passou por uma transformação na década de 70 com a criação da Ceasa. O Cadeg, assim, desenvolveu outros setores do seu mercado que não eram prioritários até então, como a gastronomia e lojas de bebidas – crescimento que inspirou a criação dos festivais e que continuava incentivando a abertura de novos negócios no Cadeg. Podemos perceber que houve uma mudança no foco do comércio, continuando com a venda a atacado e varejo, como abastecedor de pequenos mercados, hospitais, restaurantes, quitandas, mas que também desenvolvia o seu próprio setor de gastronomia, atraindo, como vimos, um novo público ao mercado.

58 Com esse desenvolvimento do “setor gastronômico” do Cadeg podemos pensar o papel que tal setor desempenhava nos mercados de uma forma abrangente. O Mercado Municipal de São Paulo, por exemplo, era sempre citado como um importante polo gastronômico daquela cidade. No caso do Rio de Janeiro, é importante lembrar que a extinção do antigo Mercado Municipal da Praça XV de Novembro deixou como o seu “resquício”, não por acaso, o restaurante Albamar. Como vimos, ele foi mantido no período da demolição do antigo mercado em consequência do apelo da “clientela ilustre” para que ele não fosse demolido. O restaurante passou, posteriormente, a ser

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uma “memória” do “Rio antigo”, sendo tombado na década de 80 e tornou-se parte de projetos de revitalização do centro da cidade.

59 Os restaurantes aparecem desta forma, associados ao mercado desde a importância do Albamar para o Mercado Municipal da Praça XV de Novembro. Com o esvaziamento do Cadeg, pôde-se perceber que o setor da gastronomia apareceu de forma preponderante no seu movimento de revitalização. Entretanto, as mudanças do Cadeg não aparecem isoladas, mas como parte de um conjunto de fatores que fizeram com que o bairro de Benfica, o seu entorno, e próprio contexto da cidade também passasse por um processo de ressignificação. Torna-se difícil saber quais foram os fatores primordiais para tais transformações e talvez não seja produtivo pensá-los de forma isolada. O que pretendi trazer com este artigo foi o conjunto de fatores que caminharam juntos para a transformação dos espaços e imaginários do mercado. Pode-se afirmar que há um processo transnacional de valorização de mercados como um espaço de entretenimento, lazer e turismo, ressignificando esses espaços através de diferentes usos. Entretanto, na perspectiva adotada os mercados aparecem como agentes e não apenas reflexos de projetos urbanísticos e concepções abrangentes de cidade.

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NOTAS

1. É atribuída a Ruth Grass (1964) a formulação do conceito gentrification, ao apontar as mudanças sociais e econômicas no mercado imobiliário de bairros operários londrinos. Leite aponta que o conceito gentrification pode ser traduzido como “enobrecimento”, mas explica que “a tradução desse neologismo, derivado do inglês gentry, é ainda controversa nos estudos sobre o tema Brasil” (Leite 2004, p. 33 apud Gaspar, 2012, p.14). 2. O Cadeg foi nomeado por decreto pelo então Prefeito da cidade, Eduardo Paes. (Projeto de Lei número 1160/2011) 3. Benfica é um bairro próximo a São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro. 4. “Projetado pelo arquiteto modernista Affonso Eduardo Reidy, em 1947, o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como "Conjunto do Pedregulho”, foi construído para abrigar funcionários públicos do então Distrito Federal. Este edifício compõe a face social da arquitetura de Reidy; a estética e os princípios defendidos por Le Corbusier se fazem sentir no projeto, no cuidado com as tecnologias aplicadas na construção, na economia de meios utilizados e nas preocupações funcionais estreitamente relacionadas às soluções formais: controle da luz e da ventilação e facilidade de circulação”. Disponível em: http://www.capacete.net/files/ roteiro.pdf. (Acesso: novembro, 2013) 5. Avenida Perimetral ou elevado da Perimetral, cuja construção foi iniciada nos anos 50, é um elevado que liga o bairro do Caju até a região da Praça XV, no centro da cidade do Rio de Janeiro. É interessante observar que em 2013 a Avenida Perimetral foi demolida pela Prefeitura do Rio de Janeiro, expressando também novos propósitos urbanísticos de revitalização do Centro da cidade. 6. Disponível em Portal Inepac: http://www.inepac.rj.gov.br/modules.php? name=Guia&file=consulta_detalhe_bem&idbem=255 (Acesso: 28 de outubro, 2013) 7. Projeto elaborado pelos arquitetos Claudio Toulois, Sérgio Magalhães e Flávio Ferreira, o qual fazia parte do plano de revitalização da Praça XV de Novembro. 8. Bispo católico, fundador da Confer^encia Nacional de Bispos, e indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz. Ele participou da idealização da Cruzada, um movimento de criação de conjuntos habitacionais com o objetivo, entre outros, de cristianizar e também impedir o

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crescimento de favelas. (Rabaça e Silva, 2012). Com os recursos obtidos com as vendas de terrenos do Mercado de São Sebastião, Dom Helder Câmara aspirava construir casas para remover os moradores das favelas, na tentativa de frear o crescimento das “favelização”, além de expandir a “cristianização”. (Rabaça e Silva, 2012) 9. Arquivos do Cadeg, Arquivo Nacional, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional e IPHAN. 10. Vale lembrar que o Mercado Municipal da Praça XV de Novembro carregava em seu nome o dia da proclamação da República no Brasil, que nomeava a praça onde era localizado. 11. A criação da Ceasa (Centrais de Abastecimento construídos na década de 70 pela ditadura militar), localizado em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro também faz parte desse processo. 12. Respectivamente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (Iphan); Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e Departamento Geral de Patrimônio Cultural (DGPC), relativos ao Rio de Janeiro. 13. Este mercado também está em processo de registro como “bem imaterial” pelo Iphan. 14. Cito os mercados do Estado do Rio de Janeiro por ser onde minha pesquisa foi situada. 15. Crítica de Luciana Froes referindo-se ao restaurante Barsa. Disponível em: http:// rioshow.oglobo.globo.com/estabelecimentos/criticas-profissionais/barsa-1647.aspx. Acesso em: maio 2013. 16. A Ceasa-RJ é uma empresa vinculada à Secretaria de Estado de desenvolvimento regional, abastecimento e pesca. Localizado em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro. 17. Os restaurantes e poucos comerciantes abriam aos domingos no período da pesquisa. 18. Garcia (1984) apontou em seu trabalho sobre as feiras do agreste paraibano a importância nessa divisão temporal nas vendas. No contexto estudado pela autora os dias de semana eram direcionados para a venda a atacado e os finais de semana para a venda a varejo. 19. Movimento, para eles, era uma clientela comprando constantemente. Quando o espaço de tempo entre um cliente e outro aumenta, está “acabando o movimento”. 20. “O 1º Festival Gastronômico do Mercado Municipal com Polo Benfica é patrocinado pelo Banco do Brasil e Casa Maranguape e tem o apoio da Caixa Econômica Federal, Associação Comercial do Rio de Janeiro, Sebrae, SindRio, Banco do Brasil e Prefeitura do Rio de Janeiro”. (Fonte: http://www.todorio.com/rio/blog/2013/11/18/1-festival- gastronomico-do-cadeg. Acesso: maio, 2014) 21. Disponível em: www.cadeg.com.br/primeiro-festival-gastronomico-do-cadeg-e- polo-benfica-3 (Acesso: maio, 2014) 22. Todas as revistas do Cadeg estão disponíveis no portal do Cadeg: www.cadeg.com.br. (Acesso: setembro, 2014) 23. Informações do site superchefs.com.br/noticias/festival-mesa-santa-o-encontro-de-peixes-e- vinhos. (Acesso: maio, 2014) 24. Decreto 31.473/09 25. Fonte: Portal Polos do Rio. 26. Sobre a revitalização da zona portuária, seus impactos e conflitos, ver Guimarães (2014). 27. A Quinta da Boa Vista, localizada em São Cristóvão, abrigou o Palácio Real ou Paço Real que foi residência da família real de 1808 a 1821 e com a proclamação da independência, em 1822, passou a se chamar Paço Imperial até1889.

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AUTOR

NINA PINHEIRO BITAR

Doutora PPGSA/UFRJ [email protected]

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Memórias anfitriãs: interações, dádiva e hospitalidade em Santa Teresa (RJ)

Renée Louise Gisele da Silva Maia

Introdução

Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida... Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. “Casa Arrumada” - Carlos Drummond de Andrade

1 Elemento central de investigações de processos e produtos culturais, as interações sociais manifestam nas interfaces entre turismo e hospitalidade algumas práticas e funcionamentos ímpares. Este seria o caso, por exemplo, dos encontros entre hospedeiros e hóspedes em estabelecimentos inseridos na interseção entre atividade comercial e intimidade: as hospedagens comerciais domiciliares. Tais espaços privados – bastidores por excelência – são abertos para o acolhimento do outro mediante pagamento financeiro, expondo questões interessantes que perpassam a motivação para esta abertura, as articulações entre pessoalidade e impessoalidade e, ainda, o duplo processo de influência entre sua oferta e o contexto sociocultural e espacial onde estão inseridas.

2 Objetivando compreender as dinâmicas e significados atrelados a interações como estas, elegeu-se como objeto de investigação hospedagens de tipo “cama e café1”, recortando seu campo em unidades situadas no bairro carioca de Santa Teresa. A opção pela delimitação nesta localidade é justificável não somente por esta ser uma prática largamente difundida ali, mas ainda pela oportunidade de problematização das interfaces entre algumas de suas características peculiares e os funcionamentos e significações destas acolhidas.

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3 Para isso, entrevistas semiestruturadas e observação participante foram combinadas como ferramentas metodológicas complementares. A primeira possibilitou o posicionamento das memórias destas interações elaboradas pelos anfitriões como caminho de investigação, assumindo-os como indivíduos que carregam marcas de diversos hóspedes, as quais já fazem parte deles mesmos. Já a segunda, permitiu considerações mais detalhadas sobre as articulações entre diferentes instâncias da vida social, manifestas em discursos, comportamentos e nas formas de relacionamento entre indivíduo e espaço.

4 Busca-se compartilhar, portanto, experiências acerca do desenvolvimento da pesquisa - em especial quanto a definição, negociação e entrada no campo - e resultados encontrados a partir desta investigação de antropologia urbana. Os três momentos de apresentação dedicam-se, respectivamente, à descrição do campo e das questões a ele relacionadas, e à apresentação dos resultados, organizados em torno de dois eixos centrais: o exterior e o interior das casas pesquisadas.

5 Observou-se que os elementos exteriores apresentados no primeiro momento de análise, ou seja, as relações estabelecidas entre estes anfitriões, o espaço público do bairro e seus demais moradores, cristalizam-se em torno de um ethos de cidade pequena – e parecem estar profundamente relacionados com os aspectos interiores (os encontros). A relação entre privado e público parece ser, assim, de mútua influência. Além disso, as instâncias intimidade/ atividade comercial, informalidade/ formalidade – compreendidas a partir da instrumentalização das categorias de casa e rua – são, ao contrário de antagônicas e auto-excludentes, articuladas de maneira dinâmica e intrínseca nas três casas abordadas.

O campo: negociação, entrada e descrição

Figura : Casa das Bananeiras. (Foto de Renée Maia)

6 A partir da definição pelo enfoque em hospedagens de tipo “cama e café” localizadas em Santa Teresa, optou-se pela escolha de unidades cadastradas em redes de hospedagens, em especial pelo fator de viabilização metodológica da abordagem e contato com tais anfitriões/ moradores. Neste sentido, duas redes destacam-se, não só na cidade do Rio de Janeiro, mas no país: a Cama e Café e a Bed and Breakfast Brasil2.

7 No primeiro momento, buscou-se estabelecer um diálogo com os gestores da rede Cama e Café. No entanto, apesar de um progresso inicial (no segundo semestre de 2012) nas negociações para realização da pesquisa de campo em algumas de suas unidades, já no início de 2013 os responsáveis contatados pareciam ter perdido o interesse em participar da pesquisa, interrompendo as comunicações previamente estabelecidas.

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Partiu-se, então, para uma negociação com a rede B&B Brasil, também de grande abrangência e experiência na área. O contato inicial com o fundador e gestor geral da rede – Loris Capogrossi – deu-se através da historiadora e produtora cultural Ana Pimentel, autora da dissertação “Hospedagem Domiciliar no Rio de Janeiro: o espaço de encontro entre turistas e anfitriões” pelo Programa EICOS/ UFRJ.

8 A Rede Bed and Breakfast Brasil iniciou suas operações em 2004 a partir da casa de amigos e de contatos indicados por estes. Atualmente conta com cerca de 300 domicílios cadastrados, espalhados por 18 estados do país, sendo 120 deles na cidade do Rio de Janeiro. A rede disponibiliza um site para a consulta de residências/alojamentos e para realização das reservas. Através deste é possível buscar a opção desejada de hospedagem pelas cidades ou até mesmo bairros de preferência do turista. O site apresenta também uma descrição de cada residência, apontando pontos de referência próximos, e apresentando amenidades oferecidas e restrições colocadas pelos anfitriões como, por exemplo, as de não receber fumantes ou animais.

9 Os primeiros contatos com o gestor foram estabelecidos através de redes sociais e de e- mails. Desde o início o mesmo mostrou-se prontamente disponível e interessado em contribuir. Inicialmente a ideia era trabalhar com entrevistas em profundidade aliadas à revisão bibliográfica como principais ferramentas metodológicas. No entanto, a existência de um contrato de confidencialidade entre a rede e os anfitriões cadastrados impedia o fornecimento de informações ou mesmo dos contatos destes para a pesquisa.

10 Buscando chegar a um acordo, propus que as entrevistas fossem realizadas durante períodos de hospedagem nas próprias residências-anfitriãs, desde que seus moradores tivessem previamente aceitado participar da pesquisa. Tal opção foi bastante interessante, pois acabou possibilitando a realização da observação participante como ferramenta complementar e enriquecedora da coleta de dados.

11 O próprio Loris Capogrossi, atuando como mediador nesta negociação inicial com os moradores, sugeriu três casas - do total de quinze cadastradas neste bairro -, as quais, segundo ele, representariam exemplos bastante distintos entre si, tanto pela forma de operação das hospedagens, como pelo tempo que estavam na rede. As unidades selecionadas foram então: a Cazazen, a Casa das Bananeiras e a Casa das Marias.

12 Com o avanço nas negociações, ficou acordado o período de três dias e duas noites de hospedagem em cada casa. As hospedagens foram pagas por diárias, da mesma forma e sob os mesmos procedimentos que um cliente comum, tendo o responsável pela rede concedido um desconto especial de 15% no valor total em virtude da finalidade das estadias3.

13 É interessante destacar que a prática de atribuir à casa um nome como forma de identificação é comum em redes de hospedagem domiciliar. Assim, cada nome diz respeito a característica das residências que os próprios anfitriões querem destacar, servindo ainda como uma ferramenta para a criação de seus perfis no site da rede.

14 A primeira casa visitada foi a Cazazen e nesta casa, tal nome está relacionado à atmosfera “zen” que os moradores buscam tanto para seu cotidiano, quanto como qualidade a ser oferecida aos hóspedes. Vale salientar que esta residência apresenta a localização mais “isolada” dentre as demais, encontrando-se em uma área cercada por matas e comparativamente mais distante dos atrativos turísticos e estabelecimentos comerciais do bairro.

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Figura 2: Mapa com a localidade das casas visitadas. (Imagem do Google Maps).

15 Nesta casa, residem o casal Anne (arquiteta, com dupla nacionalidade: inglesa e brasileira) e Paulo (brasileiro, filósofo, analista de sistema e ex-guia de turismo) e sua filha de seis anos. As entrevistas com estes anfitriões transcorreram em um clima bastante informal e foram realizadas ao longo de todo o tempo da hospedagem, precisando ser “encaixadas” nos períodos entre uma atividade doméstica e outra – ou mesmo durante uma atividade, como a limpeza da louça ou o acompanhamento das tarefas escolares da filha.

16 O terreno da casa abriga, na verdade, três residências e três famílias distintas. A casa principal pertence à família anfitriã (proprietária do terreno) e é composta de três andares. No primeiro ficam a sala, a cozinha, uma varanda, um grande jardim e a suíte dedicada à hospedagem domiciliar. A casa e esta suíte – que tem formato de chalé – estão separadas pelo jardim. No segundo andar, ficam três quartos da casa - sendo uma suíte – e mais um banheiro social. O terceiro andar é inteiramente composto por um terraço, dedicado a reuniões sociais e momentos de lazer da família.

17 As demais unidades residenciais existentes dentro dos limites do terreno da casa são, na realidade, dois pequenos apartamentos de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, construídos por esta família e hoje são alugados em caráter permanente –aluguel residencial convencional – para “amigos que se tornaram vizinhos ou vizinhos que se tornaram amigos”, como narram os próprios entrevistados. Assim, os moradores também dizem gostar de poder morar em “um clima mais de vila” onde “há sempre alguma companhia”.

18 A unidade de hospedagem4 mais utilizada por eles é constituída por uma espécie de chalé e está localizada dentro do terreno da casa, mas não está estruturalmente anexa ao núcleo domiciliar5. Este espaço não é o único utilizado na oferta de hospedagem, mas foi construído, segundo os entrevistados, para proporcionar maior conforto aos hóspedes, já que anteriormente estes ficavam em quartos dentro da própria casa, compartilhando o uso do banheiro social com os demais moradores.

19 Na Cazazen as hospedagens domiciliares são operacionalizadas de maneira bastante esporádica e não constituem uma complementação significativa para a renda destes moradores. Receberem por volta de dois ou três hóspedes por ano, seja no sistema de

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hospedagem por diária ou por temporada. Oferecem hospedagem domiciliar de caráter comercial há pelo menos 10 anos, mas estão na rede B&B Brasil somente desde 2012, tendo sua entrada sido motivada pela Conferência das Nações Unidas Rio+20.

20 Localizada bem próximo ao Largo dos Guimarães, a Casa das Bananeiras foi a segunda casa pesquisada e recebe este nome em razão de seu pátio adornado por grandes bananeiras. Representante dos casarões históricos que tanto marcam o bairro de Santa Teresa, dispõe de 13 quartos divididos em múltiplos níveis interconectados. Dentre este total, 11 são dedicados à hospedagem comercial e, apesar de estarem todos contidos dentro da casa, nenhum deles dispõe de acesso direto ao núcleo domiciliar. Moram na casa um casal – Leonardo (brasileiro, artista plástico) e Beatriz (brasileira, designer) e seus dois filhos. Nesta casa o funcionamento é bastante diferente do observado na anterior, predominando a operação comercial e a hospedagem por temporadas de, em média, seis meses até um ano. Estes anfitriões fazem parte da B&B Brasil há apenas um ano e meio, mas contam já oferecer estes serviços há aproximadamente cinco anos.

21 As entrevistas foram realizadas em momentos especificamente separados para tal e combinados previamente com os moradores, de acordo com sua disponibilidade. Os entrevistados responderam a todas as questões e apresentaram toda a parte da casa dedicada à hospedagem. As áreas exclusivamente dedicadas ao uso privado da família não foram expostas ou abertas à visitação em nenhum momento da estadia.

22 A terceira residência integrante da pesquisa ou selecionada foi a Casa das Marias, um apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro em um andar subterrâneo de um prédio de quatro andares situado em frente ao renomado Hotel de Santa Teresa. Nesta residência moram um casal – Maria Cláudia (brasileira e assistente social) e Marcos (brasileiro e professor) com suas duas filhas (de onze e seis anos de idade). O nome atribuído a esta residência por seus moradores é uma menção aos primeiros nomes da mãe e suas filhas. O apartamento dispõe de três quartos no total, sendo uma suíte - também estruturalmente separada do núcleo domiciliar e com entrada independente – dedicada à hospedagem comercial.

23 Assim como na casa anterior, as entrevistas foram realizadas em momentos especificamente separados para tal, em especial, no período da noite, após a chegada da anfitriã de seu trabalho e realização de tarefas domésticas. As entrevistas transcorreram em clima informal, mas, inicialmente, a anfitriã demonstrou certa preocupação sobre sua aptidão para responder às questões propostas, julgando ter pouca experiência no oferecimento de serviços de hospedagem. Estão na rede há apenas seis meses e, por isso, teriam recebido apenas um casal de hóspedes franceses até a minha hospedagem. Após uma breve explicação dos objetivos e características da pesquisa e de minha formação profissional, a entrevistada demonstrou estar mais à vontade para a realização das entrevistas.

24 É interessante observar que em todas as casas as unidades de hospedagem encontram-se fisicamente separadas dos núcleos domiciliares. Além disso, quanto ao perfil dos entrevistados, todos declaram pertencer à classe média, têm filhos – que residem na casa pesquisada - e falam pelo menos um idioma estrangeiro. Todos estes aspectos foram levados em conta na problematização dos dados e resultados encontrados.

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“Tem qualquer coisas de roça aqui”: a “casa” na rua

25 Apesar das discrepâncias quanto às dinâmicas, operacionalizações e configurações das casas, a homogeneidade encontrada nas respostas acerca das principais características do bairro e dos elementos de identificação entre anfitriões/moradores e este foi surpreendente, simbolizando uma porta de entrada através da qual os aspectos exteriores da pesquisa foram desenvolvidos.

26 Em todas as três casas pesquisadas, as características apontadas pelos moradores em suas respostas giram em torno da descrição de uma atmosfera de “cidade pequena”, com uma temporalidade desacelerada e formas de sociabilidade mais pessoais e informais. O primeiro dos aspectos enaltecidos é a tranquilidade da vida no bairro, qualidade apontada explicitamente por todos os entrevistados. Beatriz (Casa das Bananeiras) relata: “É muito bom você acordar com esse silêncio. Não sei se você notou, né?! Passarinhos e tal...”. Maria Cláudia (Casa das Marias) também descreve: “Tem o silêncio, ainda, um pouco aqui, assim... é aquela coisa ainda tranquila, né? Então tem isso, tem silêncio, tranquilidade, eu acho bem tranquilo aqui.”.

27 Outro aspecto apontado como característico do bairro e percebido como uma de suas principais qualidades diz respeito às relações entre moradores locais, descritas como mais informais, pessoais, e frequentemente norteadas por noções como as de reciprocidade e solidariedade. Delineia-se nestes discursos um ethos permeado por crenças ou lógicas como: “aqui todo mundo se conhece”, “aqui eu sei quem mora em cima de mim, do meu lado”, “aqui ainda se pode contar com os vizinhos”. Maria Cláudia (Casa das Marias) narra: É, a vantagem é aquilo que eu falei, você tem contato com os vizinhos, né?! As pessoas ainda batem ‘ah, tem um não sei o quê?’. Eu já cansei de pedir, ah, coisa tipo um ovo pra uma vizinha, a outra me pedia a batedeira... Você tem esse contato. Você anda na rua, então, como são as mesmas pessoas, você acaba tendo essa coisa mais, de realmente contato com o vizinho, você conversa, você vai ali tomar um açaí, aí encontra a pessoa. Tem o cinema, aí você encontra com a pessoa. Tem a pracinha, os lugares que eu frequento. Aí você vai tomar uma sopa, encontra com a pessoa, entendeu? Aí você acaba sendo, assim, muito local. E isso é bom, é a parte que eu acho, assim, boa.

28 Ao indicar que através desta dinâmica o morador acaba “sendo muito local”, a entrevistada evidencia outro aspecto interessante: a configuração de espaços como a pracinha, o cinema, a loja de açaí como espaços de sociabilidade, onde as relações entre moradores locais são tecidas e fortalecidas. Neste sentido, é possível interpretar tais espaços de sociabilidade através da categoria de pedaço apresentada por Magnani (1996, 1998, 2002), já que apresentam “uma referência espacial, a presença regular de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles.” (Magnani 2002:17). Além disso, seus usos transcendem a busca por diversão fora da jornada de trabalho, simbolizando, também, oportunidades “de estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que garantem uma rede básica de sociabilidade.” (Magnani 2002:18). Assim, o que define tais espaços são, também, os intrincados processos de significação e apropriação nele imbricados pelas relações ali estabelecidas. Logo, tal configuração de seus usos parece colaborar para a formação e compartilhamento de opiniões, leituras e percepções sobre o bairro, explicando, inclusive, as declarações tão aproximadas acerca das vantagens e desvantagens de morar em Santa Teresa.

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29 A apropriação e o uso destes espaços públicos como pedaços parecem ser influenciados também pela presença de dois outros fatores. O primeiro seria a presença de filhos pequenos (de idades até 11 anos) em todas as famílias entrevistadas; a inserção de crianças no cotidiano familiar parece promover o contato com outros moradores do bairro, como indica Maria Cláudia (Casa das Marias): Quer dizer, no meu caso, eu tive filho aqui, né?! E criança é uma coisa que aproxima muito, porque quando você não tem você meio que entra e sai, né?! Mas quando você tem, você tem que parar, tem que ir na pracinha... Então, depois que ela nasceu eu comecei a conhecer as pessoas de Santa Teresa na verdade, porque você vai na casa de um, aí tem a festinha, tem a pracinha o tempo todo.

30 Já o outro fator diz respeito à combinação da numerosa oferta de eventos e locais destinados ao lazer e práticas culturais, com a identificação destes moradores com tais opções oferecidas em seu bairro, ou seja, é a combinação do oferecimento local com o consumo pelos próprios moradores. A configuração de pedaços abrangeria não só os espaços dedicados ao lazer infantil, mas abarcaria também outros exemplos como bares, rodas de samba e o Parque das Ruínas. É possível traçar, portanto, uma relação de mútua influência nestas configurações: assim como o consumo destes espaços contribuiria para a construção e manutenção de redes de relações locais, tais redes ali perpetuariam ou promoveriam, por sua vez, não somente tais consumos, mas ainda o ethos de cidade pequena descrito pelos entrevistados. “O ‘pedaço’ é ao mesmo tempo resultado de práticas coletivas (entre as quais as de lazer) e condição para seu exercício e fruição”. (Magnani 1996:13).

31 A comparação de Santa Teresa com uma cidade pequena é clara nos depoimentos de Leonardo (Casa das Bananeiras): “Aqui é quase uma roça. Tem qualquer coisa de roça aqui.” e de Paulo (Cazazen): Santa Teresa é um bairro muito informal. Não tem aquela coisa que você tem lá embaixo das pessoas serem distantes, que é uma coisa natural do carioca. Você encontra o cara num bar, ele é efusivo, mas nunca te diz o telefone, nunca te diz onde ele mora. Aqui em Santa Teresa, não. As pessoas convivem em casa, levam em casa, chamam pra casa. Então tem essa meio que cara de cidade de interior, acho que essa é a diferença maior.

32 Tal relato traz à tona duas questões interessantes para esta análise. Em primeiro lugar, os entrevistados parecem não identificar as práticas e comportamentos sociais característicos de Santa Teresa com aqueles encontradas nos demais bairros do Rio. Aparece aqui uma espécie de oposição – ainda que figurativa - entre cidade pequena e metrópole, entre Santa Teresa e “o restante” da cidade. Assim, enquanto o primeiro simbolizaria aspectos como uma temporalidade mais tranquila e propiciadora de relações menos fugazes e, consequentemente, da manutenção dos vínculos sociais entre seus moradores, os demais representariam a “imagem esperada” da metrópole, o impessoal, as temporalidades e lógicas que atropelam, inviabilizam e corrompem as possibilidades de relações mais duradouras.

33 Se pode ser metaforicamente comparada com uma roça, Santa Teresa configuraria, então, uma roça cosmopolita. A transmutação de estrangeiros em locais insere esta figura como elemento constituinte das identidades elaboradas para o bairro. Santa Teresa assume, assim, uma identidade claramente articulada e constituída a partir da interação com a diferença. Logo, o caráter de cidade pequena descrito pelos entrevistados não deve ser entendido como consequência de condições de isolamento geográfico ou cultural, mas justamente como resultado de um processo interacional.

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34 Tal ethos peculiar simbolizaria, portanto, mais uma escolha, intenção ou estratégia, do que como uma consequência natural de uma configuração populacional culturalmente homogênea ou tradicional. O que aproxima e une estes moradores em torno de identificações compartilhadas é justamente a presença de interesses e esforços relacionados à busca pela constituição e manutenção desta atmosfera de vizinhança, familiaridade e informalidade, e não, por exemplo, crenças como a de uma origem compartilhada.

35 Além disso, o caráter positivo atribuído a esta atmosfera de “roça” estaria condicionado pelas possibilidades e até mesmo facilidades de trânsito ou acionamento das instâncias da metrópole. “Quer dizer, e é também onde eu mais consigo me distanciar da cidade – eu sou bem urbano -, mas onde eu mais consigo me distanciar, a roça mais longe que eu consigo ir é Santa Teresa.” – diz Leonardo (Casa das Bananeiras). Beatriz (mesma casa) também destaca as facilidades de acesso a regiões ou bairros como Centro, Flamengo e Glória.

36 Assim, as possibilidades de fácil acionamento e alternância entre estas diferentes instâncias da metrópole e da roça parece ser percebida como estratégica para a articulação instrumental entre o pessoal, o familiar, o informal e seus opostos. A própria deficiência de serviços de transporte limitaria as possibilidades de acionamento e trânsito entre estas duas instâncias, sendo percebida, por isso, como uma das principais desvantagens desta localidade, como é possível observar na fala de Maria Cláudia (Casa das Marias): O acesso às vezes não é tão fácil, né?! É, e teve uma fase que os taxistas “Ah, Santa Teresa não!”. E eu ainda enfrento isso. Eu pego táxi todo dia, porque eu busco minha filha na escola e trago pra cá na hora do almoço e eu ainda encontro motorista de táxi que fala “Ah, Santa Teresa: não!”. E você chama Santáxi, chama Glória [táxi] e você não encontra. Não tem essa facilidade assim, então você tem que programar muito o horário...

37 Neste sentido, sustenta-se que a contraposição entre roça e metrópole pode ser interpretada a partir das categorias de casa e rua (DaMatta 1997), como também das relações comunitárias e relações societárias descritas por Magnani (1996). No entanto, em nenhum destes casos tais dualidades configurariam relações de oposição ou mútua exclusão. Pelo contrário, tais tipos ideais de interação social simbolizariam noções concomitantemente imbricadas nas dinâmicas e organizações de relações nos mais diversos tipos de grupos e sociedades (Magnani 1996), variando-se a predominância de cada uma destas lógicas ou visões de mundo – assim como suas combinações – de acordo com o contexto sociocultural de cada sociedade (DaMatta 1997). Na realidade, trata-se de dois padrões, dois tipos ideais de interação social: sociedade implica relações secundárias, vínculos impessoais, visão racional, atitudes utilitaristas; enquanto comunidade evoca relações face a face, sentimento de solidariedade, obediência à tradição, rígido controle social,etc. Relações “societárias” e “comunitárias” não constituem características exclusivas de uma forma determinada de organização social: coexistem, imbricam-se. (Magnani 1996:24)

38 Dessa forma, a recriação das características de familiaridade, informalidade, reciprocidade e pessoalidade nas relações estabelecidas no espaço público representado por Santa Teresa refletiriam um processo de englobamento, através do qual os domínios espaciais da rua seriam invadidos pela casa. E neste processo, os pedaços desempenhariam um papel fundamental: configurando espaços de transição entre as

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visões de mundo da casa e da rua, funcionariam como elementos de articulação, capazes de expandir as lógicas da vizinhança, do doméstico e do familiar para o espaço público da rua, e embebendo as relações sociais locais em valores como a informalidade, a reciprocidade e a familiaridade.

39 O próprio discurso responsável por evidenciar tais características de casa ou roça nas relações sociais do bairro também pode ser problematizado. Por um lado, Santa Teresa é vendida turisticamente como um bairro marcado pela informalidade, pela arte, pela boemia das rodas de samba, dos bares e eventos culturais, pela riqueza histórica, e pela grande presença de artistas e estrangeiros como moradores locais. Por outro, é um bairro ainda estigmatizado por boa parte da população carioca como uma localidade insegura, violenta, pobre e associada à malandragem. Não é difícil observar discursos de moradores de outros bairros que posicionem Santa Teresa como “um lugar de artista, de drogado, de vagabundo, do marginal”, “um lugar da noite, da farra, da insegurança”.

40 Esta insegurança transcenderia à proximidade de comunidades como as do Fallet e do Fogueteiro, mas representaria ainda uma espécie de “insegurança simbólica” cristalizada em torno do medo do desconhecido, do diferente, do alternativo, do que vai contra o que é assumido e difundido como a “normalidade”. Santa Teresa poderia, assim, ser interpretada a partir de outra categoria: a de região moral6, proposta por Park (1987). Ainda nesta linha interpretativa, o discurso dos moradores entrevistados evidencia uma forma de autoafirmação diante da contra-visão (negativa e acusatória) ainda presente em leituras externas do bairro. O acionamento da atmosfera da roça – a tranquilidade, a informalidade e a reciprocidade nas relações - parecem ser enfatizadas como estratégias de resposta aos estigmas e à consequente marginalização atribuídos à localidade. Tal sentido explicaria também porque, mesmo quando abordadas as desvantagens do bairro, a questão da segurança – seja ela relacionada à violência urbana ou mesmo a questões mais subjetivas ou simbólicas - não foi apontada por nenhum dos entrevistados.

41 Paralelamente, a manutenção e valorização deste ethos de cidade pequena parece funcionar como uma tentativa de conter a aceleração exacerbada do tempo, em um movimento semelhante ao descrito por Huyssen (2000) ao abordar a cultura de memória7. Assim como estratégias contemporâneas de rememoração pública e privada estariam sendo motivadas “pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido” (ibid: 34), a constituição e o uso destes pedaços também funcionaria como uma forma de validação ou reafirmação de identidades individuais e coletivas.

42 A construção destas redes de relações teria, portanto, um papel fundamental na geração de um maior sentimento de estabilidade, pertencimento e identificação para e dentre estes indivíduos. Aqui, memória e identidade relacionam-se diretamente já que, ao interagirem, estes indivíduos não somente compartilham memórias de suas relações particulares, mas constroem novas memórias compartilhadas e constituídas em torno da coletividade “aqueles que fazem parte do pedaço”.

43 Assim, “a identidade social garante esse significado [da identidade individual] e, além disso, permite que se fale de um ‘nós’ em que o ‘eu’, precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades.” (Bauman 2012: 46). No entanto, diferentemente do que defende Bauman (2008b), o que observo em minha investigação é uma estratégia de resposta que busca apoio na identificação coletiva não

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a partir do consumo – ou da mercadorização de indivíduos e relações -, mas da sociabilidade e da reciprocidade.

44 Além disso, o englobamento da rua pela casa evidencia também a representatividade da casa enquanto espaço e instrumento de sociabilidade para os moradores de Santa Teresa. As características destas relações e seus mecanismos de constituição e manutenção corroboram, assim, todo um interesse e busca por relações mais “pessoalizadas”. Em fala já citada8, Paulo (Cazazen) destaca a atmosfera de informalidade das relações estabelecidas ali, opondo-a às relações “efusivas, porém distantes” que seriam típicas dos cariocas, segundo sua percepção. Neste sentido, é interessante observar a diferenciação feita entre a cordialidade e o estabelecimento de relações íntimas, onde a intimidade - simbolizada pelo número do telefone, o endereço, a casa (como espaço íntimo por excelência) – é efetivamente compartilhada, simbolizando um aspecto valorizado e significativo para o estabelecimento do que entendem como relações pessoais – ou mais pessoais.

45 Mas, se as categorias sociológicas da casa e da rua ajudam a situar o funcionamento e as dinâmicas destas relações no bairro, contribuindo até mesmo para a problematização dos discursos que as evidenciam, poderiam elas também auxiliar na compreensão das interações entre anfitriões e hóspedes dentro do domínio privado, da casa? Poderia esta categoria servir ao esclarecimento de questões relacionadas às motivações para o oferecimento deste tipo de hospedagem e a suas formas de desenvolvimento e/ou operacionalização? Na segunda etapa de apresentação dos resultados desta pesquisa, buscarei discutir estes e outros questionamentos, “entrando na casa dos outros” e debatendo, então, as interações aqui enfocadas.

A casa como cenários de encontros (extra)ordinários

46 Chegamos à segunda etapa de reflexão e apreciação dos dados coletados: é o momento de “entrar na casa dos outros”, analisando as peculiaridades, as dinâmicas e os significados dos encontros entre anfitriões e hóspedes nos cenários das hospedagens comerciais domiciliares9. É interessante iniciar esta apresentação destacando que, ao contrário do ocorrido na seção anterior, quando voltamos o foco para o interior das casas e para as interações ali estabelecidas, os depoimentos e as observações realizadas variam de maneira mais significativa. Não somente as formas de operacionalização das hospedagens distinguem-se em cada caso, mas também a maneira como intimidade e atividade comercial são articuladas. Embora em todas as casas as unidades de hospedagem estejam fisicamente separadas do núcleo domiciliar da residência e as definições e articulações do que Goffman (2011) define como regiões de bastidor e fachada10 sejam circunstanciais em todas as casas, cada caso apresenta um perfil performático diferenciado.

47 Na Casa das Bananeiras, o oferecimento permanente de serviços de hospedagem por temporadas mais longas implica em performances de caráter mais comercial e profissional; o papel e a postura predominantes são as do prestador de serviços. Já a delimitação da região de bastidor parece ora incluir todo o núcleo domiciliar, ora “afrouxar” estes limites, restringindo o acesso de hóspedes apenas aos cômodos considerados mais íntimos, como os quartos dos filhos e do casal, e os banheiros (do núcleo).

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48 Já na Cazazen, as performances aproximam-se da amizade. Todos os espaços da casa são abertos para visitação e para livre acesso e uso durante o dia. Assim, a definição das regiões dedicadas ao relaxamento da representação dos moradores ocorre mais em virtude do período do dia ou de um momento na rotina diária da casa do que da delimitação estática de um espaço físico. Fica subentendido, ainda que de maneira velada, que no período da noite, quando os moradores já se preparam para dormir, os hóspedes devem evitar acessar o segundo andar da casa dedicado aos quartos do casal e de sua filha. É interessante destacar que não parece haver diferenciação nesta “articulação regional” para hóspedes pagantes ou não-pagantes (amigos e “amigos de amigos”, como indicam os próprios entrevistados).

49 Por fim, na Casa das Marias a performance de Cláudia (principal responsável pelas hospedagens) pode ser descrita a partir de uma de suas falas: “Ah, eu sou uma mãezona, né?! Eu gosto de saber se tá bem.” Neste desempenho destacam-se, portanto, as características de preocupação e com o cuidado do outro, a empatia pelo hóspede e os esforços no sentido de lhe proporcionar um acolhimento “maternal”.

50 A articulação das regiões neste caso mostra outro aspecto interessante: a percepção e administração dos riscos. Por um lado, Maria Cláudia demonstra insegurança quanto à necessidade de fornecer aos hóspedes a chave que daria acesso irrestrito ao núcleo domiciliar. Por outro, considera seus medos relativamente infundamentados, relatando episódios onde teria, inclusive, oferecido aos hóspedes a entrada nestas áreas – em especial à cozinha, para o preparo de refeições11. Então assim... às vezes eu fico pensando assim...deixar a chave, dar a chave, né?! Você tem que também que transcender, né?! Que a pessoa tá com a chave. Se bem que aqui a pessoa não vai ficar com a chave da minha casa, fica com a chave do portão. Quer dizer, a chave lá [da casa] eu não dou, não tem necessidade. Mas, assim, eu fiquei pensando... falei assim ‘Hmm, será? A chave...tem que ter a chave...’. É, no início eu fiquei um pouco preocupada sim, mas eu pensei ‘Ah, não tem muito o que dar errado, né?!’ Assim, é um turista, né?! Eu fiquei pensando, acho que eu tô numa situação até mais cômoda, né?! Porque imagina, né?! A pessoa vir pra uma casa, não sabe como é que funciona, não sabe: ‘será que é legal? Será que tá limpo?’ Eu já tive em lugares muito ruins, né?! (Maria Cláudia - Casa das Marias)

51 Tal fala introduz alguns dos pontos compartilhados pelos três casos. Em primeiro lugar, embora reconheçam a existência de riscos na prestação destas atividades no ambiente doméstico, entendem também que o turista/hóspede, enquanto “não pertencente” ou “conhecedor” do contexto, estaria vulnerabilizando-se em graus significativamente maiores. Anne e Paulo (Cazazen) narram um episódio que lhes teria “marcado a memória”, onde seus receios quanto a um futuro hóspede teriam se provado infundados, contribuindo para uma percepção atenuada dos riscos envolvidos nesta prestação. Mas, assim... é um risco... porque tudo na vida envolve risco. Mas, é um risco muito tangencial. Qual o risco que envolve? A gente já teve, por exemplo, quando o B&B Brasil nos mandou o Emanuel, que veio de um país da África do qual a gente nunca tinha ouvido falar. Quando a gente recebeu a reserva e tal, eu e ela ficamos pensando ‘Pô, será que é país muçulmano? O que que é esse troço que o cara vem? Quem será esse cara?’. Não por causa do preconceito, mas porque a gente sabe que é um lugar onde ainda tem muito conflito étnico... (Paulo) Será que eu ia ter que andar de burca? (Anne) Será que a Anne ia ter que andar de burca? Ou botar burca? Aí ficamos assim... Aí eu pesquisei na internet o cara! Entrei na internet e procurei... o cara é um diretor de

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uma universidade lá! O cara fez doutorado na Inglaterra, cultíssimo, figura delicadíssima. (Paulo)

52 Paralela a estas percepções está a preocupação com a obtenção de algum tipo de informação prévia sobre os hóspedes vindouros. Beatriz (Casa das Bananeiras) relata: “Ah, a gente teve muita sorte até agora.” Leonardo (mesma casa) completa: “A gente faz uma pequena entrevista pro cara entrar, sabe? A gente dá uma “escaneada” no cara, assim. Mas, até agora isso daí não foi uma coisa importante não. Nunca tivemos nenhum problema.”

53 Parece haver, então, uma estreita relação entre a previsão da situação e preparação das representações. Conforme aponta Goffman (2011), a obtenção ou busca prévia de informações serve à preparação mútua da situação, ou seja, das representações a serem elaboradas e performadas; perpassa, portanto, a própria manipulação das respostas desejadas.

54 Outro aspecto bastante relevante observado nos três casos enfocados diz respeito ao acionamento e permeação de diferentes instâncias da vida social. As lógicas de proximidade e distanciamento, de amizade e relação comercial, de informalidade e formalidade mesclam-se de maneira indissociável, sendo acionadas de acordo com as circunstâncias relacionais. Desta forma, como defendido por Zelizer (2008), teorias e esquematizações como a dos mundos hostis e esferas separadas12 provam-se inadequadas para a interpretação e análise dos dados empíricos encontrados.

55 No entanto, se este embaralhamento de instâncias é compartilhado, suas formas de acionamento e articulação diferenciam-se novamente. Enquanto na Cazazen amizade e consumo parecem combinados de maneira a praticamente impossibilitar a identificação isolada de cada instância, na Casa das Bananeiras sua distinção faz-se mais evidente em virtude de conflitos gerados e percebidos na negociação destas interações.

56 Neste sentido, as falas destes entrevistados ora destacam o caráter de amizade e intimidade desta relação - “Eles meio que viram moradores, né?” (Leonardo), “Ah, tem hóspede que vira amigo. Vai pra show junto, vai pra Lapa. Tem o nosso filho que tem uma banda. Aí a menina sobe pra ver o ensaio. Acho que esse é um diferencial grande pra outros lugares. A gente mais ou menos se envolve, conversa e tal. Quer saber se tá bem.” (Beatriz) -, ora exibem desconforto e insatisfação com o grau de envolvimento que entendem ter com seus hóspedes - “Eu acho que a gente interage às vezes até demais” (Beatriz), “No início a gente até se envolvia mais. Hoje a política é se envolver o mínimo possível com eles, porque senão fica fazendo esse laço afetivo que não é o caso.” (Leonardo).

57 As interfaces entre o doméstico e o comercial são assumidas neste caso como um conflito indesejado, sendo percebidas como autoprejudiciais, e até mesmo demandando estratégias capazes de “dissociar” ou afastar tais esferas. O que eu acho também... porque a gente mora aqui, a gente mora no primeiro andar. Então isso fica um pouco misturado. Talvez se a gente saísse daqui e transformasse tudo isso numa parte mais profissional, neste sentido de hospedagem, talvez seria mais fácil pra gente. Porque a gente ainda tem esse envolvimento... A gente agora já tá pensando nisso [em se mudar]. Até porque pra tentar manter a coisa mais trabalho, mais profissional, a gente se deslocar um pouco do ambiente, pra coisa ficar mais certa... Transformar numa pousada a casa inteira. Aí a gente pensa em Laranjeiras, Flamengo. O Leonardo gosta muito do Flamengo, que é bem próximo daqui. (Beatriz - Casa das Bananeiras)

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58 A interpretação de tais incômodos particularmente apresentados neste caso deve levar em conta a motivação para o oferecimento destas hospedagens, norteada pela necessidade de manutenção e reforma da casa, e para a conquista de mais tempo livre para que os moradores pudessem dedicar às suas profissões de formação. Partiu dessa ideia de manter a casa. Como a casa, é... a gente comprou ela muito assim em ruínas, a gente tinha que gerar uma receita pra manter ela. Começou com isso, Espaço Bananeiras, que tinha uma pizza, tinha forno a lenha, tinha música, e foi a forma que a gente começou. E depois isso aí começou a ser muito trabalho, e a gente não tinha nem tempo dele fazer a arte. Aí pensamos: vamos fazer uma coisa mais tranquila. E mais rentável também, porque era muito interessante o espaço assim, na parte cultural, mas realmente não dava pra manter. (Beatriz)

59 Ainda que operacionalizada em caráter permanente e predominantemente com estadias por temporada, esta atividade assume, na realidade, um caráter de segundo plano quando comparada com as atividades profissionais de formação de cada um. Contudo, mesmo tendo como motivação central o suporte de suas atividades nas Artes Plásticas e chegando em alguns momentos a perceber as hospedagens como uma ameaça aos estes objetivos, Leonardo também demonstra apreciar a oportunidade de conhecer outras pessoas, suas vidas e culturas: “Quem diria, né?! Que a gente ia conviver com todo esse povo, né?! Muito legal... Eu sempre converso um pouquinho com eles, aí é muito legal saber da vida deles, como é que é na Áustria, entendeu? É incrível, né? Tudo limpo...”

60 Assim, mesmo neste caso, onde a motivação está fortemente ligada ao aspecto financeiro da relação, é possível observar a presença de elementos que contrariem as crenças de uma incompatibilidade entre atividade comercial e a dinâmica da dádiva descrita por Mauss (2008). Na realidade, tomando como referência as observações de campo e os depoimentos colhidos nas entrevistas com os anfitriões/ moradores, vamos ainda mais além, sustentando que as dinâmicas, comportamentos e significados observados em todas as casas pesquisadas indicam a presença de funcionamentos e lógicas que aproximam-se da dádiva de Mauss (2008).

61 Conforme indica Godbout (1998: 18), “a dádiva também pretende sujeitar os outros sistemas à sua lei, que consiste em liberar a troca e fazer surgir algo imprevisto, fora das regras.” Assim, este elemento a mais seria responsável por manter viva a relação de troca e reciprocidade, rompendo com equivalências mecânicas e calculáveis do mercado. Nestes termos, é possível afirmar não somente que nenhuma destas relações entre hóspedes e anfitriões em questão ocorre de maneira puramente racional, calculista, mecânica e interessada, mas também que em todas elas existe a presença de elementos que transcendem a equiparação mercadológica.

62 Literal e formalmente, a modalidade de hospedagem de tipo “cama e café” deveria demandar somente o oferecimento de um espaço para alojamento e pernoite – incluído aí um banheiro que pode ou não ser compartilhado – e uma refeição diária de café da manhã. Entretanto, todos os moradores visitados descrevem - explícita e implicitamente – a oferta ou fornecimento de elementos que transcendem esta equiparação decorrente do pagamento. São almoços, jantares, tours pelo bairro, dicas de lazer e viagem, auxílio em atividades básicas como sacar dinheiro no banco, pegar o metrô ou o ônibus correto e enviar correspondências; em suma, um misto de consultoria local e relação de amizade. Beatriz (Casa das Bananeiras) conta: “Já teve

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hóspede que precisou ir no médico aí bate lá em cima e a gente leva e tal.” Maria Cláudia (Casa das Marias) também relata: Assim, quando eles chegavam eles falavam, e como era carnaval e eu estava em casa, aí então eles chegavam da rua “oi!”, aí entravam, eu dava um guaraná, entendeu? Era uma coisa assim. Ficou muito próximo, né?! E como eles não tinham muita experiência com Brasil, então a gente... eu tive que ficar ajudando muito, entendeu? Faz isso, não pega ali, ali você pode pegar um táxi...não, ali você pode ir de metrô. Entendeu? Então, acho que foi assim. Uma orientação, tive que orientar muito, eles não tinham muita noção, né?! Então eu tive que ligar pra escola de samba, sabe aquela coisa assim de turista?

63 Ainda quanto à articulação entre intimidade e atividade comercial, a autenticidade surge como uma categoria nativa ligada à percepção e significação do lar como um refúgio representativo, onde “o ator pode descontrair-se, abandonar a sua fachada, abster-se de representar e sair do personagem.” (Goffman 2011:107). Olha, na minha cabeça lar é refúgio. Adoro ter gente em casa. Se eu puder eu encho a casa de gente. Eu gosto de receber. Eu gosto muito mais de receber pessoas na minha casa do que de ir na casa dos outros. Mas, acho que todo tempo tem a ver com isso. Com essa ideia de que é um refúgio, é um lugar onde eu sou mais autêntico, a máscara que eu preciso usar é a mais leve. Porque eu trabalho de terno, trabalho numa instituição que é extremamente careta, extremamente fechada... [O Tribunal Regional do Trabalho do RJ] Pô, é um negócio que é um outro mundo, é um formalismo extremo. Então aqui a gente pode não ser formal e a impressão que a gente tem é que um turista que vem para um cama e café ele quer exatamente isso: que você seja menos formal, essa coisa de uma rotina de casa, de vida doméstica, né?! Nunca vi ninguém reclamar disso. Criança, bicho, e tal... (Paulo - Cazazen)

64 Assim sendo, as representações configuradas para a plateia representada por chefes e colegas de trabalho - em suma, por indivíduos que para o entrevistado simbolizam o ethos da metrópole, tendo destaque a exacerbada formalidade – podem ser substituídas por performances mais relaxadas, prazerosas, autênticas. Com a abertura da casa seja para hóspedes amigos ou desconhecidos, novas plateias são estabelecidas, e com elas, novas e diferenciadas representações. No entanto, é possível observar na fala supracitada que a combinação entre a percepção da casa como um refúgio e a predisposição para sua abertura estão associadas a um entendimento de que o que estas novas plateias têm como interesse ou expectativa de representação é exatamente aquilo que este anfitrião/morador quer “representar”; são, assim, plateias “eleitas” pelo convite imbricado nas próprias relações de hospitalidade.

65 A autenticidade como categoria nativa representa, portanto, mais do que uma possibilidade, mas também uma demanda. Beatriz (Casa das Bananeiras) também observa esse interesse: Eu acho até que o gringo que vem pra cá, até pra essa casa, tem essa identidade. O gringo que vem pra Santa Teresa, ele quer mesmo ter essa coisa meio da roça. Ele não quer ter muito contato. Ele quer isso, entendeu? Ele não quer um super hostel que tenha tudo perto... Ele quer experimentar talvez até a precariedade, não sei.

66 Dessa forma, a interpenetração entre atividade comercial e intimidade, percebida pelos moradores da Casa das Bananeiras como prejudicial e problemática, passa na perspectiva dos hóspedes a configurar uma de suas principais demandas, estando associada também a sensações ou experiências de “estar em casa fora de casa”. Há, portanto, um grande interesse nesta autenticidade representada pela maior aproximação possível de respostas para questões como “o que é ser local em Santa

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Teresa?”, lógica essa intrinsecamente associada à busca por integração, consumo e experimentação do local, como pode ser observado na fala de Paulo (Cazazen): O turista que vem pra Santa Teresa fica dentro de casa e fica no bairro. Procura conhecer o bairro. O turista que vai pra Ipanema, ele quer uma cama. Ele acorda de manhã e vaza, praia... ele vai pra cidade. E a gente vive essa possibilidade, do cara acordar de manhã, tomar um café muito lentamente, ir se integrando à cidade.

67 Neste sentido, as atividades de lazer realizadas com hóspedes, além de representarem elementos a mais que sinalizariam a coexistência das lógicas da dádiva e comercial, evidenciam também outra característica particular da dádiva: sua capacidade de converter o outro em semelhante. Logo, aplica-se, nestes casos, o funcionamento descrito por Lanna (2000:176): Ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, de ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes. A etnografia da troca dá ainda um novo sentido às etiquetas sociais. Por mais que estas variem, elas sempre reiteram que, para dar algo adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro (por exemplo, de meu hóspede), entender, em maior ou menor grau, como este, recebendo algo de mim, recebe a mim mesmo (como seu anfitrião).

68 Assim, se a dádiva representa um movimento de mistura e aproximação entre os envolvidos, ela pode servir não somente para explicar uma progressiva – ainda que parcial – transformação do hóspede em local. Enquanto marca do ethos deste bairro descrito pelos entrevistados, ela também pode ser compreendida como um importante elemento para a assimilação de estrangeiros como moradores locais. Funciona como uma ferramenta capaz de substituir hostilidade por hospitalidade; o oferecimento da dádiva como símbolo da proposta para o estabelecimento do vínculo é, então, um elemento chave responsável pela intermediação desta entrada do outro no espaço e de sua transição das condições simbólicas de estrangeiro para local.

69 Ainda neste sentido, permeadas pela demanda dos hóspedes por conhecer e vivenciar o autêntico como noção-símbolo do que estaria mais próximo da realidade vivida por seus hospedeiros em Santa Teresa, a realização de atividades de lazer em conjunto ou suas indicações acabam por suscitar nestes moradores/anfitriões questionamentos, revisões e reelaborações de questões como: O que é, para mim, ser um morador de Santa Teresa? Quais são os espaços de lazer e sociabilidade que me representam? E o que é Santa Teresa para mim? A gente que tenta passar pra eles uma visão que seja mais a visão de um habitante do bairro, e não uma visão turística, de vir aqui, olhar as vistas e tal. [...] a gente é que influencia a percepção das pessoas sobre o que é, de fato, o bairro. Então a gente leva pro [Bar do] Gomes, leva o cara ali pra ele ver uma rodinha de gente conversando... é essa coisa que o cara, se vier como turista atrás de uma câmera e não vai ver. (Paulo - Cazazen)

70 Assim sendo, a busca pelo atendimento destas demandas apresentadas pelos hóspedes, parece influenciar tanto a elaboração da representação de si para esta plateia quanto também os processos de identificação destes moradores com o bairro. A interação com o hóspede funciona, portanto, como um importante fator de reedição ou mesmo reafirmação constante destes aspectos.

71 Além disso, o turista é descrito como aquele que traz consigo a capacidade de reavivar tanto o bairro, quanto o olhar que o morador local tem de Santa Teresa, movimentando a economia local e oferecendo-lhe novos ângulos e significados para os mesmos espaços.

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Através de suas interações, promove revisões e releituras dos processos de identificação e significação destes moradores com espaços e localidades de Santa Teresa.

72 Partindo de outro contexto referencial, o turista apresenta motivações diferenciadas e direciona seu olhar “para aspectos da paisagem do campo e da cidade que os separam da experiência de todos os dias. Tais aspectos são encarados porque, de certo modo, são considerados como algo que se situa fora daquilo que nos é habitual.” (Urry 2001: 18) Tais processos ficam claros na fala de Maria Cláudia (Casa das Marias): “Acho que cada pessoa que for vir, acho que afeta sim, porque coisas que eu nem ligava mais e aí o turista ‘ah, que coisa!’, aí você ‘ah, realmente!’. O olhar é renovado [...] aí eu começo de novo a revisitar Santa Teresa.”

73 Também nesta direção, parece haver uma espécie de validação – tanto individual quanto coletiva -, através da formação de um sentimento de orgulho gerado pelo interesse do outro. Uma pessoa que vem lá da Europa ficar na minha casa, sabe assim?! Aquele sentimento: ‘Pô, bacana! Então eu tenho alguma coisa legal para oferecer pra alguém, entendeu? Acho que isso é um sentimento bom, né? [...] É bom você ver que tem um bairro que chama atenção, pela história, pelas coisas antigas, que as pessoas gostam. Acho bacana.

74 Ainda que algumas desvantagens da atividade turística na localidade sejam apontadas13, a grande queixa apresentada refere-se à gestão pública deste turismo e à transformação do perfil e da identidade do bairro. As vantagens do forte ancoramento em relações pessoais, informais e regidas pela lógica da vizinhança – contidas no ethos de cidade pequena descrito anteriormente -, estariam sendo gradativamente sobrepostas por uma identidade turística formatada, vendida e, principalmente, voltada para privilegiar o atendimento do turista. Podemos observar tais colocações no depoimento de Maria Cláudia: Por outro lado, eu fico pensando: o bairro é tão turístico e que ninguém dá, quer dizer, quem pode, eu digo assim, as autoridades, acho que não olham dessa forma, não tem esse olhar. Você vê a tragédia do bondinho, o bondinho não voltou. O descaso e, assim, parece que tudo que fecha aqui se transforma em algo pro turista. Pro morador nada. [...] E o barulho. Nós temos um amigo que mora aqui, aqui nessa rua principal e ele falou que não consegue dormir, por causa do bar que abriu. Então, quem vem acha lindo, piano... mas, pro morador é complicado, porque a pessoa dorme cedo, acorda cedo, e como é que faz com o barulho? Como moradora eu tô um pouco preocupada de estarem fazendo as coisas só para os turistas e pro morador, né? Parece que querem expulsar a gente.

75 A partir destas observações podemos concluir que a atividade turística ocasiona inferências contraditórias na relação estabelecida entre morador e bairro e em seus processos de identificação com o mesmo. Por um lado, promove a releitura e revisão de significações de espaços e a validação de seus valores através do olhar do estrangeiro e de seus interesses. Por outro, compromete a identificação do morador com o bairro, em virtude de sua controversa gestão pública e do favorecimento da substituição de investimentos e infraestruturas voltados para o morador local por aqueles que visam atender às demandas de turistas e visitantes.

76 Por fim, o oferecimento destas formas de hospitalidade pode ser relacionado ao ethos de cidade pequena atribuído ao bairro de Santa Teresa. Entende-se que ambos simbolizariam estratégias alternativas de resposta para o crescente processo de individualização que gradativamente impõe noções como as de racionalidade, utilidade e interesse como explicações hegemônicas para toda e qualquer forma de relação. A

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dádiva, presente tanto nas relações estabelecidas entre moradores locais quanto entre hospedeiro e hóspede serve, então, para se ligar, para se conectar à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para romper a solidão, sentir que não se está só e que se pertence a algo mais vasto, particularmente à humanidade, cada vez mais que se dá algo a um desconhecido, um estranho [...]é fundamentalmente para sentir essa comunicação, para romper o isolamento, para sentir a própria identidade. (Godbout 1998:20)

77 Se autores como Bauman (2008b) sustentam que as lógicas do mercado e do consumo estariam hegemonicamente transformando pessoas em mercadorias, impondo seus funcionamentos como resposta para os “vazios identitários” de indivíduos perdidos na liquidez da modernidade contemporânea, as observações e interpretações deste trabalho empírico demonstram a existência de diversificadas formas de resposta para este movimento de individualização que manifesta-se, ambiguamente, em suas instâncias quantitativa e qualitativa (Simmel 2005). Ainda que aborde um objeto onde a intimidade e o cenário doméstico são, de fato, comercializados, a sociedade é vivida como comunidade através da dádiva presente em suas relações de bairro e, a hospitalidade parece simbolizar, enquanto virtude moral e espiritual, a esfera do “outro mundo” na articulação complementar entre códigos sociais da casa e da rua.

78 Sustenta-se, portanto, que essas formas de hospitalidade podem ser compreendidas como fatos sociais totais por envolverem trocas que, longe de representarem relações estritamente mercadológicas, relacionam-se, também, com outras instâncias da vida social, como a afetiva e até mesmo a espiritual. Como demonstrou Zelizer (2008), as interfaces entre intimidade e consumo não estão, necessariamente, isentas de conflitos e ambiguidades, mas interagem nestas relações como dualidades complementares e indissociavelmente entrelaçadas.

79 Ainda que a gestão pública e o direcionamento da oferta turística possam estar comprometendo esta identidade de cidade pequena percebida e valorizada por estes moradores, os encontros de hospitalidade aqui abordados parecem, por sua vez, fortalecer os processos de identificação destes entrevistados com Santa Teresa, promovendo oportunidades de validação, releitura e ressignificação. As identificações com o bairro mantêm-se, assim, não pela conservação estática das identidades espaciais, coletivas e individuais, mas através de processos dinâmicos que permitem sua flexibilização e reelaboração constantes.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. A nomenclatura “cama e café” vem do termo em inglês bed and breakfast e diz respeito a hospedagens domiciliares onde é oferecido alojamento para pernoite e uma refeição diária – geralmente de desjejum. 2. A rede Bed and Breakfast Brasil será mencionada a partir deste momento pela sigla B&B Brasil. 3. Foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas ao todo, sendo uma delas com o gestor e fundador da rede – por email - e três delas com os anfitriões selecionados - todas realizadas em português, durante as estadias, e gravadas em aúdio mediante a autorização por escrito dos entrevistados. Os períodos de hospedagem em cada casa foram: de 03/06/2013 até 05/06/2013 (Cazazen), de 09/06/2013 até 11/06/2013 (Casa das Bananeiras), e de 17/06/2013 até 19/06/2013 (Casa das Marias). 4. A unidade de hospedagem é o espaço fisicamente delimitado e dedicado especificamente ao alojamento dos hóspedes. 5. O núcleo domiciliar é o espaço interno da casa – delimitado fisicamente por paredes - não dedicado ao oferecimento destas formas de hospitalidade paga. Conforme observamos após a incursão no campo, este espaço pode ser ou não aberto para a entrada e uso dos hóspedes. 6. Este autor entende por região moral, “[...] regiões onde prevalece um código moral divergente, por uma região onde as pessoas que a habitam são dominadas, de uma maneira que as pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse que tem sua raiz diretamente na natureza original do indivíduo.” (PARK, 1987, p.66)

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7. Processo evidenciado a partir dos últimos anos da década de 1970, e marcado pela obsessão pela lembrança e pelo registro, combinados à mercadorização e à globalização de memórias. 8. “Santa Teresa é um bairro muito informal. Não tem aquela coisa que você tem lá embaixo das pessoas serem distantes, que é uma coisa natural do carioca. Você encontra o cara num bar, ele é efusivo, mas nunca te diz o telefone, nunca te diz onde ele mora. Aqui em Santa Teresa não. As pessoas convivem em casa, levam em casa, chamam pra casa. Então tem essa meio que cara de cidade de interior, acho que essa é a diferença maior.” 9. É interessante destacar que serão também mencionadas formas de interação entre hóspede e anfitrião que ocorrem fora deste cenário, como é o caso das atividades de lazer desempenhadas em conjunto. 10. Regiões onde, respectivamente, a representação do eu seria relaxada e apresentada (metáfora do teatro). 11. “Depois eu até falei com eles ‘se vocês quiserem fazer um macarrão, alguma coisa, pode ir lá fazer, não tem problema...’.” 12. Tais teorias pregam, respectivamente, que a interpenetração entre instâncias afetivas e comerciais da vida social seria maculadora para ambas e que estas são esferas claramente delimitáveis e separáveis da vida social. (Zelizer, 2008). 13. O barulho de festas, bares e restaurantes, e a dificuldade em estacionar o próprio carro nas ruas dos bairros nos finais de semana - em virtude do grande número de turistas e visitantes que sobem as ladeiras de carro – foram as principais desvantagens apontadas pelos entrevistados.

RESUMOS

Marcados pelas complexas interfaces entre consumo e intimidade, hospedagens de tipo “cama e café” transcendem lógicas e domínios da hospitalidade. Com o objetivo de compreender os encontros entre hóspedes e hospedeiros decorrentes em estabelecimentos deste tipo localizados no bairro de Santa Teresa, esta investigação buscou descrever e interpretar suas dinâmicas, seus comportamentos e significados. Assumiu as memórias elaboradas por anfitriões como elementos dinâmicos e processuais, tomando suas parcialidades como indicadores a serem problematizados e contextualizados. Observou que, apesar de marcados pela atividade comercial, estes encontros podem ser norteados pela dádiva, concomitantemente sendo influenciados pelo ethos do bairro em questão, e influenciando as relações estabelecidas entre morador e espaço (público e privado). A constituição de relações sociais tanto entre locais quanto entre hóspedes e hospedeiros parece funcionar como uma estratégia de resposta a condições contemporâneas como a fraturação do espaço vivido, a aceleração do tempo e a desestabilização de identidades.

Marked by complex interfaces between consumption and intimacy, bed and breakfast lodging transcend logic and domains. In order to understand the encounters between guests and hosts in this type of establishments located in Santa Teresa, this study aimed to describe and interpret their dynamics, behaviors and meanings. Assumed the memories produced by hosts as dynamic and procedural elements, making their biases as indicators to be problematized and contextualized. Noted that, although marked by commercial activity, these meetings can be guided by the gift, concurrently being influenced by the ethos of the neighborhood in question,

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and influencing the relations between residents and public and private spaces. The creation of social relations both between natives and between guests and hosts seems to work as a strategy to respond to contemporary conditions as the fracturing of lived space, the acceleration of time and destabilization of identities.

ÍNDICE

Palavras-chave: turismo, hospitalidade, casa, dádiva, representação do eu Keywords: tourism, hospitality, home, gift, self representation

AUTOR

RENÉE LOUISE GISELE DA SILVA MAIA

Doutoranda em Memória Social – PPGMS/UNIRIO. [email protected]

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Shopping-chão: identidade e circulação de pessoas e objetos em uma feira de “antiguidades” e “usados” no Centro do Rio de Janeiro

Douglas de Souza Evangelista

Introdução

1 Este texto pretende comunicar minha experiência de campo, compreendida entre os dias 12 a 20 de julho de 2014. Atualmente, as temáticas urbanas têm atraído crescente interesse dos pesquisadores; seja por conta das transformações na paisagem da cidade causadas pelo impacto das intervenções e projetos urbanísticos para acolher os grandes eventos – como é o caso do Rio de Janeiro e as obras de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos - ; seja pelo fluxo constante das dinâmicas sociais que, juntamente com todas as problemáticas enunciadas a partir dessa relação, constituem o cenário perfeito para um fazer antropológico que toma as cidades como “lugares estratégicos para se pensar a cultura em termos de uma organização da diversidade” (Hannerz 1999:154).

2 A cidade aparece não como pano de fundo e cenário para as ações, mas como ator participativo dos processos socioculturais. Ao deslocar o ponto de vista da cidade para os citadinos, a chamada “antropologia da cidade” propõe uma unidade analítica relacional e situacional, partindo dos lugares para as pessoas (Agier 2011:21). É com essa perspectiva que a presente pesquisa procura se aproximar do objeto aqui exposto. Busco compartilhar as inquietações, dúvidas e reflexões sobre minhas incursões em campo, bem como apresentar o tema e seus possíveis aportes teóricos e chaves de interpretação.

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3 Tomei contato com o “shopping-chão” e seus realizadores durante o segundo semestre de 2013, quando cursei a disciplina “Antropologia Urbana”, ministrada pela Profa. Dra. Roberta Sampaio Guimarães (DPCIS/UERJ). Além da bibliografia, vídeos e convidados que compuseram as aulas, fomos estimulados a empreender uma pesquisa como avaliação final. Como morador do Centro do Rio de Janeiro, achei por bem investigar algo relacionado ao meu ambiente. Assim, movido pelas discussões em sala de aula, inicialmente, decidi-me a examinar um trecho recém-urbanizado de uma rua do Centro, a rua da Lapa.

4 A ideia inicial era colher relatos sobre os impactos causados pelo ordenamento urbano. Entretanto, as incursões em campo e as entrevistas coletadas me levaram a um ajuste de foco, permitindo aguçar meu olhar para outro fenômeno inicialmente despercebido. Com o propósito de abranger diferentes percepções, as entrevistas foram conduzidas com frequentadores, moradores da vizinhança, comerciantes locais e moradores de rua; as perguntas foram dirigidas de forma a identificar os diferentes enunciados dos relatos: suas contradições, semelhanças e oposições, assim como o tensionamento existente entre esses atores e os agentes governamentais. Entre as ocupações dos entrevistados, figuravam camelôs, comerciantes, “guardadores” de carro e ambulantes. Dentre essas vozes, os discursos e práticas que mais me chamaram a atenção foram os dos integrantes do “shopping-chão”, comércio informal que trata, basicamente, da venda de objetos coletados no lixo, expostos em lençóis e toalhas nas calçadas. Muitos destes revelaram-se descontentes com a nova “praça”, pois com o controle mais rígido ao comércio informal, tiveram sua principal atividade econômica prejudicada.

As calçadas e o “shopping-chão” - Fotografia do autor

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Feira da Praça XV versus Shopping-chão: “antiguidade”, “quinquilharias”, “trecos” e “cacarecos”

5 Para localizarmos o modo como o “shopping-chão” se inscreve no circuito mais amplo de circulação de pessoas e objetos da cidade, é preciso descrever a origem do termo e suas práticas. O termo usado para designar o comércio informal de objetos de “segunda mão” surge a partir da Feira de Antiguidades da Praça XV. Logradouro público situado no centro da cidade do Rio de Janeiro, a Praça XV de Novembro está localizada entre o Beco dos Barbeiros, as ruas da Quitanda, Primeiro de Março e o centro histórico da Praça Marechal Âncora. Sua principal referência é a Estação das barcas que fazem o trajeto Rio-Niterói. Durante a semana, a Praça XV funciona como qualquer rua de passagem. Entretanto, aos sábados seu cenário é transformado, abrigando a feira de antiguidades que chega a comportar até 400 barracas. Em seus arredores, encontra-se o “shopping-chão”, espécie de anexo da feira desprovido de barracas, cujos objetos, embora antigos e usados, não são considerados “antiguidades” pelos realizadores da feira.

6 Anteriormente localizada sob o viaduto da Avenida Perimetral que ligava a avenida Presidente Vargas ao Aterro do Flamengo, a feira foi recentemente afetada pela derrubada da Perimetral, etapa de um conjunto de projetos urbanísticos voltado para a “revitalização” da região portuária da cidade. O transtorno causado pelas obras, além de dificultar o afluxo de visitantes, foi alvo do descontentamento de parte dos feirantes com relação à mudança estrutural e organizacional do evento. Sem o abrigo proporcionado pelo viaduto, em meio aos canteiros de obras, a feira foi obrigada a se redimensionar de acordo com a nova disposição espacial. Contudo, apesar das mudanças estruturais, os limites sociais, com suas distinções e hierarquias, permaneceram entre a feira de antiguidades e o “shopping-chão”. Este último foi ainda mais prejudicado, pois sem a sombra do viaduto seus vendedores ficaram expostos às variações climáticas: o calor excessivo e as chuvas, tornaram-se mais um empecilho a ser contornado na difícil atividade que começa com a coleta e seleção dos objetos, passa pela avaliação das peças, e termina na venda final, em que o valor é conferido de acordo com o grau de conhecimento e capacidade de barganha do vendedor e do comprador.

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Feira de Antiguidades ainda sob a Perimetral – Fotografia retirada do site https:// v8andvintage.wordpress.com/page/22/

7 Em sua pesquisa, Loretti (2010) examina a Feira de Antiguidades da Praça XV, a partir das implicações políticas e econômicas engendradas pelo retorno dos objetos ao mercado de rua. Assim, sua preocupação é demonstrar como os objetos descartados alçam o status de antiguidades, privilegiando o sistema de classificação produzidos pelos atores sociais envolvidos nesse processo. A autora descreve uma rede de relações que envolve catadores, feirantes e antiquários, constituindo, desta forma, uma escala hierárquica econômica e cultural, em que o antiquário seria o topo dessa pirâmide por desfrutar de maior conhecimento para determinar o valor de cada peça. Na outra ponta, o catador é a base desta escala, pois a ele é relegado o trabalho duro do “garimpo”, atividade de coleta, verdadeira “descoberta” de objetos de valor em meio ao lixo do dia a dia da cidade. Estes objetos, retirados do lixo, retornam ao mercado, ganhando novamente o status de mercadorias ao serem comercializados em diversos pontos da cidade. No entanto, as demarcações quanto a seu valor em comparação com as antiguidades são muitas e evidentes aos compradores, além de extensas a seus vendedores. Essa fronteira simbólica é descrita por ela no seguinte trecho: [...] a presença de vendedores que, sem barracas, ficaram conhecidos por todos aqueles que frequentam a feira pela categoria nativa de “sem terra” ou catadores de lixo. Tal analogia, feita aos trabalhadores rurais “sem terra”, é também identificada nos discursos através do termo “assentamento”, usado pelos feirantes quando se referem aos expositores do “Shopping Chão”, que conseguiram barracas, e portanto foram “assentados” na feira. Assim, uma fronteira configurava-se entre o subir e o descer desta escada. O sentido das fileiras voltava a ser o mesmo, mas já não havia barracas, as mercadorias eram expostas no chão. [...] Tanto o organizador da feira de antiguidades da Praça XV como todos os expositores que dela participam reconhecem a fronteira simbólica, que os separa do mercado chamado de “Shopping Chão”. (Loretti 2010:44)

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8 Logo, pode-se inferir que não só os objetos por eles comercializados são considerados de menor valor, tratados como “lixo”, “cacarecos”, “quinquilharias”, e por isso sem importância e desmerecidos, mas por extensão, as pessoas que com eles lidam também recebem essa denominação pejorativa, em um processo de objetificação dos sujeitos, onde estes encontram-se no mesmo nível que suas mercadorias: menosprezados, sujos, sem “real valor”. O ato de nomeá-los desta forma, indica a lógica de diferenciação operada pelos feirantes e antiquários, bem como tenta esconder a imbricada relação entre estes e os catadores, os chamados “garimpeiros”. Regularmente, os feirantes, antiquários e outros compradores “especializados” percorrem o “shopping-chão” em busca de alguma peça de valor, espécie de joia bruta a ser polida pelo conhecimento de sua procedência. Há casos, inclusive, de “garimpeiros” contratados por feirantes para fornecer peças rentáveis. Por sua vez, em uma relação dialética, parte dessa lógica é apreendida e absorvida pelos catadores que, em busca de novos mercados, e através da experiência adquirida no trato com estes especialistas, se apropriam destes discursos e os utilizam como táticas frente às estratégias do comércio oficial, chegando a se denominarem como “vendedores de antiguidades”.

“Lixo”, “quinquilharias”, “trecos” e “cacarecos” – Fotografia do autor

9 Desta forma, sua relação para com os objetos, além de atividade econômica e meio de vida, atuaria também como processo identitário, posto que na construção dos signos comunicados pela transformação dos objetos “sem valor” em “peças”, e do “lixo” em “antiguidades”, há também a ressignificação de suas próprias noções sobre a atividade que exercem, atenuando assim o sentido marginalizado de seu trabalho. As categorias acionadas durante estas etapas são manejadas por esses atores de acordo com os contextos; colocados em diálogo com os antiquários e compradores, os artifícios por estes empregados são reutilizados em outras situações que não as de negociação em áreas oficiais de comércio de antiguidades. No “shopping-chão” há condições para permuta e solidariedade, e antes de ser um “evento” fixo – apesar de acontecer

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regularmente em alguns pontos da cidade -, trata-se de uma prática móvel e dinâmica, autogestionada, que atua de acordo com o acirramento ou relaxamento da fiscalização por parte da administração pública. Portanto, este tipo de feira alternativa subverte os valores e estatutos conferidos pelas feiras oficiais e as narrativas produzidas por seus organizadores.

“Antiguidades” expostas na Feira da Praça XV – Fotografia de Fernanda Sigilião retirada do site http:// www.naosoogato.com.br/lugares/feira-de-antiguidades-da-praca-xv-2/

10 O que há de singular nessa prática é justamente seu fluxo, os trajetos, mapas e percursos por ela desenhados, envolvendo diversos atores em uma feira móvel, resistente às políticas de ordenamento e domesticação dos espaços e pessoas, e produtora de novas relações e usos dos objetos e espaços urbanos (Certeau 1994:198). Neste sentido, interessa-me o percurso realizado pelos objetos desde o descarte até sua comercialização, as diversas formas de apropriação do discurso oficial por parte de seus realizadores, assim como sua especificidade e originalidade. Uma possível chave de interpretação, seria a utilizada por Kopytoff (2008) na chamada “biografia cultural das coisas”. Segundo o autor, ao se traçar uma biografia cultural dos objetos seria possível perceber suas fases de vida, gradações, sobreposições e recorrências de classificações em determinada sociedade, destacando sua circulação e as ambiguidades das variações de seus status sociais.

11 Essa perspectiva foi explorada com sucesso por Guimarães (2011) em um artigo sobre o uso dos balaios em um cortejo religioso chamado Presente de Iemanjá. Neste texto, a autora demonstra como os balaios podem adquirir diferentes significações de acordo com o contexto em que apareçam. Desde sua manufatura, até seu uso final, diversos são os sentidos a eles atribuídos. Seguindo o próprio itinerário apontado pelas diferentes maneiras da abordagem antropológica da cultura material, os balaios percorrem trajetos variados, tendo no aspecto funcional sua carreira ideal, porém, suas possibilidades de uso são ampliadas de acordo com os suportes em que figurem: como

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objetos decorativos, no caso das lojas e grifes de design de interiores; como obras de arte, em exposições e galerias; como artefatos etnográficos em museus e coleções; e por fim, como objetos ritualísticos usados em cerimônias religiosas (Guimarães 2011:130).

12 As notas de campo podem dar algumas pistas sobre as biografias e suportes das “quinquilharias”, “trecos” e “cacarecos” expostos no “shopping-chão”.

13 Sábado, 12/07/2014, estive na Feira de Antiguidades da Praça XV. A ideia dessa incursão em campo foi identificar potenciais entrevistados e colher os primeiros dados e impressões acerca da hipótese inicialmente formulada de que o uso da palavra “antiguidade” pelos realizadores do “shopping-chão” embutiria em seu sentido uma tentativa de atribuição de valores aos objetos comercializados. “Shopping-chão” é o nome com o qual foi batizado o mercado de “usados” derivado da Feira de Antiguidades da Praça XV, e trata-se da venda de objetos, em geral coletados do lixo ou adquiridos através de doações, trocas e compras. Apesar de ainda ser realizado no mesmo local de origem, seu modelo expandiu-se, transformando-se em uma feira móvel que ocorre em vários pontos da cidade. Mesmo que muitos dos objetos comercializados detenham suas qualidades estéticas e funcionais, o fato de estarem em um suporte muito identificado à atividade dos catadores leva-os à perda de status de mercadorias. Penso que o emprego da mesma categoria utilizada pelos feirantes oficiais, além de dotá-los de certo valor comercial, refletiria uma busca pela chancela não autorizada pelo crivo oficial, ressignificando as práticas e as identidades dos atores envolvidos.

14 Pude constatar a ocorrência da subalternização do comércio informal em relação a feira oficial, pois como se trata de um mercado paralelo ao das “antiguidades”, o fato de ser promovido por catadores e “garimpeiros” além de estigmatizar seus vendedores, desvaloriza as mercadorias ao diferenciá-las negativamente como “lixo”. Entretanto, dois dos entrevistados revelaram-se negociantes profissionais de antiguidades. Um deles, Chiquinho, que junto de sua mulher, Eunice, trabalha no ramo há mais de vinte anos, é proprietário de uma loja em Laranjeiras e tem entre seus clientes “gente do teatro e da Globo”. Sua opção por expor no “shopping-chão”, parece derivar de sua insatisfação com os rumos da organização da feira. O preço para manter as bancas, a possível desonestidade envolvida na produção do evento, e a desorganização foram justificativas utilizadas por ele e por Magno, outro expositor que desistiu da feira. Além destes fatores, indicaram também o transtorno causado pelas obras de “revitalização” promovidas pela prefeitura.

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Sem o abrigo do viaduto, vendedores trabalham sob o sol – Fotografia cedida por Filippo Martucci

15 A Praça XV, assim como diversas outras áreas do Centro do Rio, passa por severas intervenções em sua paisagem. Notei entre as bancas imensas poças formadas pelo difícil escoamento das águas pluviais. Esses fatores em conjunto contribuem, a meu ver, para o descontentamento com a feira oficial nos relatos dos expositores que migraram para o “shopping-chão”. Além de Chiquinho e Magno, fiz contato com dois “garimpeiros”: Édson e Luiz. Ambos foram muito abertos à conversa e demonstraram interesse nas perguntas. Seus relatos, elípticos e por vezes confusos, serviram para o mapeamento inicial de como ocorre a coleta dos objetos que serão postos à venda. Bairros como Copacabana (mencionados por ambos), Catete, Laranjeiras e Botafogo surgem como lugares privilegiados para o “garimpo”.

16 Luiz disse ser um dos fundadores do “shopping-chão” e demonstrou grande desenvoltura e conhecimento acerca das técnicas necessárias para colher, avaliar e negociar as peças. Chamou-me atenção seu senso e percepção sobre os espaços ao descrever os melhores pontos de coleta: “casa antigas de vila são melhores que apartamentos de luxo, prédio novo só tem coisa nova”. Édson contou que tem profissão, trabalha na construção civil, “em obras”, mas que foi demitido e não pôde pagar aluguel, por isso faz o “brechó” para sobreviver. Mora em uma ocupação no Beco do Rato, na Lapa, e não entende o que torna um objeto antiguidade e outro não; para ele, isso é fruto dos “poderosos, são eles que decidem”.

17 Outra preocupação identificada nos discursos dos entrevistados diz respeito à legalidade da origem dos objetos. A categoria nativa “proveniência duvidosa” é descrita pelos vendedores como parte do discurso usado pela Guarda Municipal. Segundo eles, a Guarda usaria o termo como forma de intimidação para facilitar o recolhimento das mercadorias. Assim, nos relatos de Chiquinho e Magno, senti certa vacilação na resposta, pois pensaram que meu interesse seria a proveniência das mercadorias como frutos de ações ilegais, o que prontamente foi esclarecido, mas entendido por Magno

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como uma dificuldade a ser enfrentada em caso de se conduzir uma pesquisa mais profunda sobre o tema. Luiz, por sua vez, me deu uma resposta bem humorada e maliciosa, dizendo que “quando se vai comprar um apartamento em Miami ninguém pergunta ao dono como foi que ele obteve o imóvel”. Édson disse conseguir sempre no lixo. Chiquinho e Magno ressaltaram em suas falas a diferença básica entre sua atividade e a de Édson e Luiz: a compra de peças. Essa afirmação indica certa escala hierárquica entre “lixo” e “antiguidade”, pois a negociação e a compra diferenciam essencialmente as mercadorias. Ainda que ocupem o mesmo espaço não oficial, a hierarquia se faz presente através de diferenciações deste tipo. Mesmo que eventualmente comprem objetos dos “garimpeiros”, os feirantes do “shopping-chão” não consideram que realizem a mesma atividade que estes. Pelo que notei, começam a se estabelecer dois níveis no próprio “shopping-chão”: um formado por ex-expositores insatisfeitos e outro pelos “garimpeiros”.

18 Em outra incursão, no dia 20/07, um domingo, conversei com outros participantes do “shopping-chão”, desta vez, em outro ponto da cidade, na rua da Lapa. Conhecido ponto turístico da cidade, famoso por sua associação à boêmia e malandragem cariocas, a Lapa, ainda que não seja reconhecida como bairro pela administração municipal, pode assim ser entendida, uma vez que se trata de uma “área relativamente grande da cidade, na qual o observador pode penetrar mentalmente e que possui características em comum” (Lynch 1997:74). Pontuada por bares, casas noturnas, centros culturais e restaurantes, sua agitada vida noturna funciona durante toda a semana e atrai milhares de pessoas. Situada geograficamente nos limites entre o Centro e a Zona Sul, a rua da Lapa é uma faixa contígua entre os bairros do Centro e da Glória. Cercada por edificações deterioradas, depósitos de bebidas, hostels, sobrados e pequenos comércios populares, a rua possui dois edifícios residenciais e é em grande parte habitada por moradores de rua, desempregados e trabalhadores informais que residem em cortiços, ocupações ilegais, hospedagens e vagas. Anteriormente utilizado como estacionamento, suas calçadas eram ocupadas por ambulantes e constantemente havia lixo nas esquinas. O trecho em questão, após as obras, foi equipado com novo mobiliário urbano, canteiros, brinquedos e manutenção regular, dando ares de praça ao intervalo entre as ruas Joaquim Silva e Taylor. Essas mudanças na paisagem, por sua vez, terminaram por estimular o convívio e o uso público do espaço, gerando novas relações e usos, e consolidando antigos laços entre os moradores e frequentadores.

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Vista aérea da rua da Lapa antes da reurbanização – Fotografia de Custódio Coimbra retirada de http://oglobo.globo.com/rio/transito-na-lapa-sera-fechado-nas-noites-de-sexta-sabado-partir-de- julho-2991340

19 Cabe dizer que notei uma diferenciação entre os conceitos que anteriormente eu atribuía à localidade dos eventos; o “shopping-chão” é o próprio evento, a feira ilegal; o “brechó” é a prática, o tipo de comércio feito com as peças, sejam elas “lixo” ou “antiguidades”, “peças boas”. Em minha primeira conversa, conheci Marcos, recém- chegado de Tocantins, que me relatou novidades para um possível desdobramento da pesquisa. Afirmou haver gradações no “garimpo”. O primeiro estágio da “escala de valor” por ele citada, seria a cata de latinhas, seguida pela coleta do papelão e por último – o topo, segundo suas próprias palavras – o “garimpo”. Segundo ele, que está há apenas três meses “fazendo o brechó”, a atividade é a mais rentável.

20 Edvan, cujas mercadorias estavam ao lado das de Marcos, apressou-se em me oferecer uma câmera analógica antiga o suficiente para desvalorizá-la, mas recente demais para se tornar antiguidade. Porém, sua técnica de venda ficou clara na demonstração dos prodígios da câmera tais como o zoom automático e a qualidade do fabricante Canon. Este era seu produto mais valioso, e era mantido sob sua proteção em uma bolsa a tiracolo, fato que notei ter importância ao indagá-lo se a venda não seria mais fácil se a câmera estivesse exposta, o que foi rapidamente reprovado por ele. Contou-me ter conseguido alugar um quarto em São Gonçalo apenas com a renda adquirida das vendas no “shopping-chão”.

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Marcos, Edvan e seus “brechós” – Fotografia do autor

21 Além deles, conversei também com Vanessa. Ela sofre de algum tipo de disfunção auditiva, o que se nota em sua própria fala enrolada. Por este motivo, mantém contato visual constante e frequentemente pede para repetir o que foi dito. Durante o tempo que passei com ela, presenciei o que considero uma parte da rede de solidariedade que se forma em torno dessas pessoas: um senhor, mais tarde nomeado por ela como um velho conhecido, deixou uma sacola com itens a serem revendidos. Segundo Vanessa, ele periodicamente doa objetos a ela, e sua esposa, curiosamente, é uma de suas clientes. Desse modo, os objetos circulam da casa dele para Vanessa, e voltam à sua casa – não os mesmos, suponho – através das compras de sua mulher.

22 Outro entrevistado, Russo, possui uma percepção um pouco diferente da “solidariedade” vivenciada por Vanessa. Para ele, o “garimpo” e o “brechó” aparecem como práticas em que imperam a agressividade, de “um contra o outro” constante, todos os dias. Enfatizou a “falsidade”, a “ausência de ajuda mútua” e a “competição” presentes nas atividades. Desconfiado, desdenhou de minhas motivações de pesquisa e afirmou ser mais fácil aprender na prática. Inicialmente se recusou a participar da entrevista por achar que teria que assinar algo, depois ficou mais descontraido e tranquilo e forneceu uma informação importante: disse que suas mercadorias vêm de “contatos”, pois ele não “suja mais as mãos”, ou seja, não faz mais o garimpo dos objetos em sacolas de lixo. Contou-me que sua família o “desconsiderou” por não ter “vencido na vida” , que já foi camelô em Copacabana e que também trabalha na Praça XV e em São Cristóvão, confirmando outros relatos sobre a existência de um circuito desses objetos pela cidade. Seus “contatos” são porteiros, outros vendedores e compradores que oferecem os objetos em uma relação de troca, “tudo é uma troca”, segundo ele. Fez questão de enfatizar a reciprocidade esperada no ramo, já que “ninguém faz nada de graça”.

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23 Conforme vimos, trata-se de um tema extremamente fértil e atual, alinhado às discussões contemporâneas mais amplas sobre a cidade. A riqueza existente na experiência cotidiana dos realizadores do “shopping-chão”, suas relações com os lugares e situações concretas, suas soluções criativas, são os objetivos que movem esta pesquisa. Em busca de um tipo de conhecimento que se desenvolva em sintonia com as práticas observadas em sua dimensão relacional e situacional, as categorias chamadas por Agier (2011) de “lugares, situações e movimentos”, espero explorar com profundidade o tema.

24 A partir dos dados até aqui coletados, minha proposta é continuar observando os vendedores em seus fluxos e trajetórias pela cidade. Se possível, acompanhá-los em suas idas ao “garimpo”, mapeando pessoalmente os lugares preferidos para coleta dos objetos, bem como sua circulação pelos diversos pontos de venda de “usados” e “antiguidades” da cidade. Uma vez retirados do lixo, estes objetos passam a fazer parte de uma complexa rede de trocas e classificações que é produzida pelos processos de interação entre diversos tipos de atores sociais, sendo por isso interessante identificar e seguir o percurso dessas pessoas e objetos, desvelando, desta forma, os circuitos e as práticas simbólicas subjacentes a estes processos.

BIBLIOGRAFIA

AGIER, Michel. 2011. Antropologia da cidade. São Paulo: Terceiro nome.

CERTEAU, Michel de. 1994. “Relatos de espaço”. A invenção do cotidiano. Rio de janeiro: Vozes. pp. 182-198.

GUIMARÃES, Roberta Sampaio. 2011. “Entre vulgarizações e singularizações: notas sobre a vida social dos balaios”. Horizontes Antropológicos, v. 17 n. 36: 125-143.

HANNERZ, Ulf. 1999. “Os limites de nosso auto-retrato: Antropologia urbana e globalização”. Mana, v. 5 n.1: 149-155.

KOPYTOFF, Igor. 2008. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo”. In: A. Appadurai (org.), A vida social das coisas. Rio de Janeiro: Eduff. pp. 89-121.

LORETTI, Pricila Tavares. 2010. Do lixo ao luxo: a valorização de objetos a partir da Feira de Antiguidades da Praça XV. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia, IFCS-UFRJ.

LYNCH, Kevin. 1997. “A imagem da cidade e seus elementos”. A Imagem da cidade. São Paulo: Martins fontes. pp. 51-100.

AUTOR

DOUGLAS DE SOUZA EVANGELISTA

Graduando em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - [email protected]

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Dossiê: Novos olhares sobre o Rio de Janeiro

Outros rios

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Salve São Miguel Arcanjo: a Umbanda em Procissão

Anderson Soares Gaspar

1 A procissão em homenagem a São Miguel Arcanjo vem sendo realizada anualmente desde 1966, sempre no mês de setembro, no sábado próximo ao dia 29, dia de comemoração do santo. É organizada por um grupo de religiosos umbandistas pertencentes ao Centro Espírita São Miguel Arcanjo - CESMA -, localizado no município de Magé, região metropolitana do Rio de Janeiro. Os fiéis ao chegar reverenciam o andor com a imagem do Santo e se reúnem nas dependências do centro espírita antes do início da procissão. Na cozinha a refeição servida no dia da procissão é composta por uma sopa de carnes com legumes que é servida a todos os participantes. Durante o evento reúnem-se centenas de pessoas, entre os filhos, netos e bisnetos de santo do líder religioso, todos pertencentes ao conjunto de terreiros associados ao CESMA.

2 A programação de atividades do terreiro é ampla e diversificada, mas a procissão é o evento de maior representatividade tanto para o “povo de santo” como para a cidade, reunindo centenas de adeptos religiosos de todos os terreiros “associados” no país e mobilizando uma quantidade expressiva de pessoas da cidade, que vão para a rua assisti-la. Estima-se que o número total de participantes ultrapasse mil pessoas.

3 Com as vestimentas próprias do culto e com as “guias” (colares) de suas entidades, os fiéis umbandistas saem às ruas carregando o andor com o Santo Padroeiro. Cada centro espírita vem representado por bandeiras, com emblemas e insígnias específicas, carregadas pelos líderes religiosos de cada terreiro associado. Os demais adeptos levam nas mãos um suporte, chamado de “lanterna” (archote), com uma vela acesa dentro.

4 A procissão percorre grande parte do município, incluindo a quase totalidade da região central da cidade, com saída e retorno no próprio terreiro. Durante a procissão os fiéis cantam alternadamente músicas em homenagem a São Miguel Arcanjo e o Hino da Umbanda. Nas ruas por onde a procissão passa, as pessoas aguardam em seus portões, janelas ou terraços sempre com velas acesas e copos de água.

5 A procissão que foi realizada pela 48ª vez neste ano (2014) amplia-se e ganha cada vez mais expressão regional e parece alcançar, com o passar dos anos, uma importância

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cada vez mais significativa para os rumos desta tradição religiosa no Estado do Rio de Janeiro, transformando-se numa espécie de eixo em torno do qual a religião tem se estruturado, crescido e adquirido reconhecimento institucional. É como se a Umbanda voltada para si de repente se abrisse para a comunidade, reivindicando possuir, ela própria, as condições necessárias para acolher a devoção popular.

6 E a crescente importância adquirida pela Umbanda através da procissão acaba configurando esta última como um evento ao mesmo tempo religioso e social, já que faz parte não somente do calendário religioso do conjunto dos terreiros, mas também da cidade, que fica bastante receptiva à sua passagem.

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AUTOR

ANDERSON SOARES GASPAR

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ)

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Festas e espaços em transformação: a Caninha Verde em Vassouras-RJ Festivities and spaces in transformation: the Canina Verde, in Vassoura-RJ

André Jacques Martins Monteiro

Introdução

1 Atualmente, ao colocar em evidência o termo Caninha Verde, há dúvidas sobre a que se está referindo: a primeira associação é a algum tipo de cachaça. Em um passado não muito distante seria bem mais comum saber do que se trata, ou pelo menos ter alguma outra ideia a respeito. Em princípio, há um consenso entre os folcloristas de que se refere à prática festiva própria da região do Minho, em Portugal. Mas a passagem entre gerações, as mudanças no contexto histórico e social, como também nas festividades e divertimentos, tornaram incertas as origens para muitos de seus brincantes. O senhor Nilton Dias da Rosa, conhecido como Filhinho Santana, o principal expoente desta manifestação cultural no município de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, afirmava que não sabia explicar direito de onde veio a Caninha Verde, mas sabia que era de Portugal, por causa dos versos que eram cantados no bloco de carnaval de que participava desde a sua mocidade.

2 O termo “Caninha Verde” pode expressar múltiplos significados, desde o mais elementar associado à cana-de-açúcar e seus derivados, até uma representação da humildade e a humilhação, relacionada ao martírio de Cristo na figura do Bom Jesus da Cana Verde. São inúmeras narrativas que reportam a contextos diferentes, que perpassam além da religiosidade a literatura, a poesia e, inclusive, as próprias práticas festivas. Podem inclusive representar a flexibilidade, o vazio interior ou estar presentes em lendas que transitavam entre a cultura islâmica e a cultura cristã na península ibérica1. Estritamente referindo-se à festa, a Caninha Verde no Brasil apresenta registros esparsos, por vezes fragmentados, com uma diversidade de espaços, de contextos festivos e de formas de brincar. Apesar da variedade de expressões, são

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recorrentes alguns elementos, dependendo do período e do lugar, como o canto de versos de improviso.

3 Essa condição plural desta prática festiva provavelmente deve-se aos diferentes momentos da migração e interação da cultura portuguesa em contextos regionais distintos do Brasil, que incluem, dentre outros fatores, as formas de interação étnica, a conjuntura histórica, as questões sociais e tantos outros fatores “que a tornaram diferente da Caninha Verde de Portugal” (Giffoni 1973: 54). Ao contextualizar a trajetória desta prática festiva em Vassouras, forma-se uma perspectiva que revela sujeitos, comunidades, modos de vida e memórias que ampliam as versões oficiais em relação à memória desta cidade.

Figura 1 – Apresentação da Caninha Verde de Ferreiros na Praça Barão de Campo Belo, centro da cidade de Vassouras-RJ. 18 jun. 2005. Foto André Monteiro.

O percurso de uma pesquisa e a trajetória de uma prática festiva

4 Além da pluralidade e da polifonia relacionada às expressões da Caninha Verde, outro desafio que fez parte do percurso desta pesquisa foi o fato de seus brincantes terem um conhecimento vago sobre as origens de sua brincadeira. Havia fragmentos de versos que eram passados de geração em geração que, juntamente com a literatura folclórica dispersa entre as manifestações nos mais diferentes pontos do Brasil, apontavam para Portugal como o local de origem da Caninha Verde. Mas, em diversos casos, cada uma destas manifestações era muito diferente uma da outra, apesar de serem nomeadas da mesma forma. Ao longo da pesquisa observou-se que, quanto mais antigo o registro, maior a semelhança dos elementos que compõem a prática festiva entre lugares diferentes. Em cada situação, ao longo do tempo, ocorreu uma trajetória própria de modificações.

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5 O desenvolvimento deste estudo implicou a utilização de diversas fontes, dentre elas os principais periódicos que circularam em Vassouras entre o final do século XIX e meados do XX, como também obras de memorialistas e folcloristas. Mas, devido à especificidade da proposta de estudo, ou seja, entender o percurso que transformou a Caninha Verde na manifestação cultural como é conhecida atualmente em Vassouras, as fontes que oferecem mais detalhes foram as entrevistas com antigos brincantes e pessoas próximas daqueles que já haviam falecido. Nestas entrevistas incluíam-se demonstrações da dança, da cantoria, a preparação de acessórios para o desfile, como também o aprender a dançar a Caninha Verde.

6 A maior parte das entrevistas foram realizadas com o mais antigo representante desta prática festiva em Vassouras, o senhor Nilton Dias da Rosa, conhecido como Seu Filhinho Santana. Nascido em 1918, Seu Filhinho viveu parte de sua infância e juventude na fazenda Monte Alegre, localizada no Morro da Vaca, no referido município, onde ele afirma ter visto pela primeira vez a Caninha Verde, ainda dançada de forma semelhante à quadrilha das festas juninas. Pelos relatos e alguns poucos indícios em periódicos, teriam sido as comunidades próximas a esta fazenda que realizaram a transposição da Caninha Verde do baile de roça na fazenda para a cidade, como bloco de carnaval. Esta versão do percurso de transformações desta prática festiva em Vassouras toma por base a perspectiva e a trajetória do Seu Filhinho Santana.

7 Em sua memória, ele ingressou aos 15 anos no Bloco da Caninha Verde convidado pelo seu pai, devido a sua habilidade em cantar versos de improviso, que realizou com maestria até depois dos 90 anos. Participou efetivamente da Caninha Verde até meados da década de 1980 e, posteriormente, participou esporadicamente até o ano anterior ao seu falecimento, em março de 2012. Além do Seu Filhinho Santana, o relato da senhora Maria de Lurdes de Souza Tavares foi fundamental para este estudo. Nascida em 1916, era filha do proprietário da fazenda Monte Alegre, o senhor Luiz Francisco de Souza, conhecido como Seu Luiz Rosa. Dona Lurdes testemunhou também a Caninha Verde que era dançada nos bailes de roça e a que se apresentava no carnaval, como também vivenciou o cotidiano, o modo de vida e as práticas festivas na fazenda.

8 Outro entrevistado que participou da Caninha Verde, provavelmente no final da década de 1940, foi o senhor Ismar de Souza Gondin, conhecido como Toti. Nascido também na fazenda Monte Alegre em 1930, ele integrou o Bloco da Caninha Verde, comandado por seus dois tios, Aristides de Souza e Alberto José da Motta – o Bingue, os principais mobilizadores do bloco. Seu Ismar afirma que não chegou a conhecer a Caninha Verde que se dançava nos bailes da fazenda.

9 Pertencente a uma geração posterior de brincantes, o senhor José Luiz de Souza Tavares, filho da Dona Lurdes, nasceu na referida fazenda em 1944, e participou da Caninha Verde na década de 1960. Além dele, o senhor Manoel João dos Santos, nascido no distrito de Ferreiros, em Vassouras, em 1932, foi o responsável pela criação de um bloco de Caninha Verde no dito distrito, entre as décadas de 1960 e 1970.

10 Foram também entrevistadas as senhoras Elisa Maria da Silva Conceição, nascida em 1949, e Maria de Fátima da Silva Conceição, nascida em 1959, sendo as duas de Vassouras e filhas do senhor Ivo da Conceição, já falecido, que foi brincante e comandou a Caninha Verde entre as décadas de 1950 e 1960.

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11 Estes entrevistados contribuíram significativamente com informações sobre detalhes de como se brincava com esta prática festiva e sobre os ambientes em que era realizada no carnaval de Vassouras.

12 Uma síntese de alguns aspectos apresentados nesta pesquisa e imagens do que tem sido desenvolvido em Vassouras atualmente em relação à Caninha Verde está disponível no registro da Oficina de Estudos da Preservação, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Rio de Janeiro em setembro de 2012.

A Caninha Verde em Vassouras

Que veio de Portugal Dizem que a Caninha Verde Que ela veio de Portugal Que a Caninha Verde Que ela veio de Portugal Conheci a Cana Verde No dia do Carnaval (Seu Filhinho Santana)2

13 Todas as festas revelam particularidades dos lugares e dos momentos em que estão inseridas e tornam-se peculiares também pelas relações de lugar e de período. Uma festa na fazenda ou na cidade, como um baile de roça ou o carnaval, em meados do século XIX ou no início do XX, apresentariam diferenças que exprimem o contexto no qual se manifestam. No entanto, nestas festas mencionadas, o que poderia haver em comum é que o divertimento delas é mediado por habilidades, caracterizações e modos de brincar, ou seja, formas próprias de cantar, de tocar instrumentos musicais e de dançar, ou mesmo o uso ou não de fantasias e acessórios. Estes elementos juntamente com outras características delineiam parcialmente uma prática festiva. Assim, dentre as diversas práticas festivas nomeadas de Caninha Verde, aquela que foi elaborada no município de Vassouras constituiu suas particularidades devido a sua inserção no divertimento que integrava o modo de vida de determinados grupos sociais menos abastados, que também foram agentes fundamentais da formação, do desenvolvimento e das singularidades desta cidade.

14 São escassos os registros da Caninha Verde nas origens de Vassouras. Sua presença no Vale do Paraíba neste contexto é uma hipótese devido à ação de ocupação desta região pelos colonizadores no século XVIII, com a paulatina abertura dos caminhos que ligavam o litoral a Minas Gerais, com o propósito de escoar a produção de ouro através dos portos de Parati e do Rio de Janeiro (Stein 1990). Ao longo destes caminhos formaram-se ranchos e povoados, que além de ponto de descanso e alimentação dos tropeiros, provavelmente eram locais de descontração e cantoria.

15 Após o declínio do ouro nas regiões de Minas Gerais, o Vale do Paraíba passou a ser ocupado pelas fazendas cafeeiras e, em 1833, a localidade de Vassouras foi elevada à condição de vila. O enriquecimento através do café impulsionou o desenvolvimento local, marcado pela ação de famílias dos pequenos, médios e grandes proprietários de terras e escravistas, al’em dos capitalistas, comerciantes e profissionais liberais, entre outros. Quando foi instituída como cidade em 1857, a riqueza expressava-se na urbanização, nos casarões e palacetes que emolduraram com ostentação seu centro, como também nas casas de vivenda dos grandes fazendeiros (Muniz 2005; Silva Telles 1967; Stein 1990). Logo a ferrovia cortaria diversas fazendas de seu território,

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promovendo a circulação de produtos e pessoas, conectando à Corte e a outros centros urbanos, mas seu trajeto nesta época passaria ao largo do coração da cidade.

16 A composição populacional neste período era diversificada, mas nas elites ou entre os grupos mais abastados, esta diversidade estava restrita aos brasileiros e europeus predominantemente brancos, entre os quais os modelos de divertimento buscavam refletir os ideais de civilização vigentes na Europa e na Corte. Certamente as aspirações destes modelos não eram uma fronteira rígida entre os diferentes grupos sociais, pois havia uma relativa interação em determinadas festividades, evidenciando o paradoxo da proximidade física e o distanciamento social (Burke 1989). Mas a Caninha Verde estava relacionada aos espaços de divertimento de grupos menos favorecidos, imersa em uma esfera ainda mais ampla da diversidade populacional, que envolvia africanos, afrodescendentes e portugueses de diversas origens.

17 Na segunda metade do século XIX, comparando as nacionalidades dos colonos que chegavam a Vassouras, os portugueses – principalmente açorianos – representavam o maior número de imigrantes (Stein 1990). Ao estudar o sistema de colonização neste município, Martins (2007:27) reafirma a análise de Emília Viotti, na qual “só raramente encontravam-se colonos e escravos trabalhando lado a lado: eram colonos portugueses, ilhéus, os únicos a se adaptarem a este tipo de trabalho”. Mas além do trabalho na fazenda, ambientes festivos e religiosos também promoviam a sociabilidade entre negros e portugueses e podem ter representado um dos principais fatores que fomentaram a interação étnica e cultural, da qual a Caninha Verde foi uma provável consequência.

18 Um exemplo disso é encontrado na citação feita pelo brasilianista Stanley Stein (1990:246) do médico francês Louis Couty em 1883, referindo-se “àquelas danças curiosas onde o jongo, a caninha verde ou outras danças especiais são gingadas durante a noite toda por mulatas atraentemente vestidas e sempre limpas” (grifos meus). Neste relato este viajante faz referência a um ambiente festivo, composto por várias práticas culturais, sendo o Jongo de influência marcadamente afro-brasileira, a Caninha Verde de origem portuguesa e as agentes da festa destacadas são mestiças ou “mulatas”. Cabe ressaltar que Seu Luiz Rosa, pai da Dona Lurdes e proprietário da fazenda Monte Alegre, um dos principais lugares onde se ambientaram as transformações da Caninha Verde em Vassouras, era filho de uma negra com um português, segundo memórias contadas na família.

19 Em torno de 1880 tornam-se mais evidentes os sinais de decadência do modelo de produção de café na região, ocasionada pelo esgotamento da terra, pelo desaparecimento do solo virgem, pela escassez de crédito para a lavoura na região e pela forte concorrência do oeste paulista (Stein:1990), dentre outros aspectos. Acrescentando outros fatores de ruptura, tais como a abolição da escravatura e a falência de muitos proprietários de terra, as fazendas perderam muito do seu valor e passou-se a buscar novas funções produtivas. Em 1935 o memorialista Ignácio Raposo, referindo-se a este período, afirma que “Vassouras, que tanta vida revelara nos seus annos de opulencia, começava agora a declinar, diminuída no movimento do seu commercio, da sua industria, das suas artes, vivendo que exclusivamente dos seus productos agricolas” (Raposo 1935:208).

20 Após a abolição, a produção do café manteve-se no município, mas já havia comprometido “toda a terra virgem disponível e continuava seu caminho para o sul de Minas Gerais: Bemposta, Juiz de Fora, Mar de Espanha ou para São Paulo” (Muniz

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2005:30). Dos fazendeiros que haviam hipotecado suas terras, desde os “grandes barões” até os pequenos proprietários, muitos tiveram suas terras tomadas pelos bancos. Alguns “as venderam e procuraram se estabelecer nas novas áreas cafeeiras”, sendo que “outros procuraram diversificar a produção” (Muniz 2005: 30). Segundo Fragoso (1983:144), “assim como a reprodução extensiva transformou as matas em cafezais, o uso extensivo da terra combinado à inexistência de práticas de adubação transformaria as terras de culturas em pasto”. Com o declínio do café, “a criação de gado deixa de ser uma simples atividade acessória à agricultura para se tornar cada vez mais a atividade fundamental da unidade de produção” (Fragoso 1983:150). É provável que neste contexto Seu Luiz Rosa tenha conseguido comprar a fazenda Monte Alegre.

21 Nesse cenário de crise na economia cafeeira, houve certa reconfiguração da população local. Com o baixo preço das terras usadas para pasto, muitos mineiros deslocaram-se para o Vale do Paraíba para implementar a pecuária. Por outro lado, muitas das famílias que habitavam o centro da cidade deslocaram-se para a Capital Federal, “ou retornaram a Minas Gerais, para lá exercerem funções públicas, mediante seus contatos no poder. Com efeito, muitas das casas, na medida em que foram legadas a herdeiros, permaneciam fechadas, sendo utilizadas como casas de veraneio” (Ricci 2000:22). Paulatinamente aumentou o número de “casas de pensão e pequenos hotéis”, devido ao clima de Vassouras ser considerado propício “à cura dos males das vias respiratórias” (Ricci 2000: 22).

22 Estas circunstâncias fomentaram a circulação de pessoas, constituindo diferentes vínculos e perspectivas sobre a cidade daqueles que permaneceram, dos que saíram para reconstruir sua vida em outro lugar, como também daqueles que saíam dos grandes centros urbanos em busca de um modo de vida que a modernidade vigente paulatinamente desconstruía. Se anteriormente a fazenda concentrava a produtividade e a sociabilidade, nesta transição do século XIX para o XX a cidade tendia a agregar estas funções e trazer outras perspectivas de visibilidade e interação social. Isto se reflete no campo do divertimento, quando ocorrem modificações tanto nos bailes de roça, onde determinadas práticas festivas declinam, quanto no carnaval na cidade, que agregava e evidenciava particularidades locais.

23 Enquanto Vassouras declinava economicamente, o Rio de Janeiro havia se tornado o modelo de desenvolvimento, “reforçando o objetivo de ‘civilizar’ o espaço urbano” (Araújo 1993:31) em seus aspectos físicos, funcionais e ideológicos. Nesse conjunto de transformações sociais, “o novo estilo de vida implicou a adoção de formas burguesas de desfrutar as atrações urbanas ou populares, de criar modos de divertimento barato, como se todos quisessem, embora poucos pudessem, estar em todos os lugares ao mesmo tempo” (Araújo 1993:35). A ferrovia aproximou as famílias vassourenses do Rio de Janeiro. Assim, de acordo com Ignácio Raposo (1935:208), "desta data em diante, em vez de promoverem grandes festas em Vassouras, tractaram os fazendeiros de tomar parte nas que se realizavam no Rio".

24 Em uma perspectiva ampla, há um conjunto de transformações na sociedade que se reflete no modo de vida das pessoas, dos grupos sociais e, consequentemente, nas práticas festivas também. Conforme Stuart Hall, ao ingressar no século XIX percebe-se uma nova estruturação da “lei e da ordem”, que vai culminar em transformações significativas no período entre 1880 e 1920. De acordo com o autor, “em algum momento desse período se encontra a matriz dos fatores e problemas a partir dos quais a nossa história e nossos dilemas peculiares surgiram”. Há uma mudança radical no

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âmbito das “lutas políticas”, como também há o surgimento de “tantas formas características daquilo que hoje consideramos como cultura popular ‘tradicional’ que emergiram sob sua forma especificamente moderna, ou a partir dela, naquele período” (Hall 2001:250).

25 Os ideais de modernidade concomitantes a este período de declínio econômico local suscitavam um modelo de vida com tendências urbanas, tornando-se um dos fatores que fizeram com que as cidades ganhassem importância, enquanto a vida na fazenda reportava ao passado e aos costumes. Apesar disso, Stanley Stein (1990:338) sintetizou com profundidade o que este lugar representou como imagem e como memória: “A fazenda de café do século XIX foi mais do que uma unidade de produção e um modelo de vida. Aceitando todas as consequências, ela deixou uma marca indelével nas mentes de todos que deixaram o Vale a fim de cumprir seus destinos em outros lugares”. De certa maneira, esta afirmação não se restringe à distância, pois para quem permanecia, também estava habitando um outro lugar. A Caninha Verde representou também este deslocamento, não tanto no espaço, mas nos sentidos dos lugares e das formas de divertimento.

Um percurso da Caninha Verde

26 Para observar algumas possíveis trajetórias do que era nomeado como Caninha Verde nos bailes de roça para o carnaval, é fundamental observar o contexto da região, impactado pelo declínio da produção do café. Neste sentido, o registro do músico Luciano Gallet tem uma importância particular para este estudo. O autor declara que suas informações foram “recolhidas na Fazenda de São José da Boa Vista, em julho de 1927” (Gallet 1934:65), localizada em Piraí, município nesta época vizinho a Vassouras e que integra o Vale do Paraíba Fluminense. Gallet (1934:67) afirma que tais informações “foram dadas pelo velho preto Antoniozinho, nascido e residente naquela zona, colono da fazenda acima citada”, tratando-se de uma pessoa idônea e que era “acatado naquela zona, onde preenche até funções sacerdotais, na ausência de autoridades religiosas. De origem brasileira, desconhece os usos, termos e cousas africanas”. Seus relatos descrevem várias práticas festivas que naquele momento estavam em desuso, lembrando “com saudade, os velhos tempos, as festas da época e os pagodes que tomou parte” (Gallet 1934:67).

27 Tanto o interesse do pesquisador como o próprio relato do informante indicam mudanças nas formas de entretenimento nas fazendas. Dentre as práticas em desuso descritas, estava a Caninha Verde, que era tocada por um cantador em uma viola de 12 cordas, sendo que este também participava da dança. Quando havia dois cantadores e duas violas era cantado o “verso de mano – como no cateretê”, ou seja, improvisos em parceria. Não se admitia o “desafio”, pois era destinado a inimigos (Gallet 1934:71).

28 O grupo dançante era formado por dois círculos compostos em cada um por dois pares frente a frente, ou seja, quatro pessoas, chamada de “Caninha Verde de Oito”. Caso houvesse mais participantes, formavam-se mais círculos com a mesma estrutura. No desenvolvimento da coreografia, “o Cantador canta o verso e os pares alternam os lugares fronteiros, dansando” (Gallet 1934:72). Ao concluir o verso, “repete só a melodia e os figurantes batem o pé”. O autor descreve a narrativa de Antoniozinho dizendo que, “si os dansarinos forem praticos, no momento do canto (dansa), alternam os pares com outra roda. O cantador alterna à vontade. Quando houver dois cantadores fica um em

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cada roda”. Luciano Gallet (1934:73) transcreve um verso desta Caninha Verde juntamente com a melodia em uma pauta musical. Caninha verde Oh minha verde Caninha Por causa da cana verde Que é meu triste padecer Plantei a cana verde Na beira do Piraí, E a marvada foi ingrata, Plantei ela não brotou.

29 Este relato da Caninha Verde em Piraí, registrado em 1927, fala de uma prática festiva que está em desuso, ou seja, que foi deixando de ser realizada. Nesse período, Seu Filhinho Santana tinha em torno de nove anos de idade e Dona Lurdes, provavelmente, 11 anos. Eles descrevem uma outra Caninha Verde, que em vários aspectos se assemelha com a que Luciano Gallet (1934) relata, sendo diferente daquela conhecida atualmente, que utiliza os cacetes na dança e associada aos blocos de carnaval. Referem-se a uma Caninha Verde que integrava as festas que ocorriam na fazenda Monte Alegre, na qual o pai de Seu Filhinho era colono e cujo proprietário era pai de Dona Lurdes, o senhor Luiz Francisco de Souza, conhecido como Seu Luiz Rosa.

30 A primeira vez que Seu Filhinho relatou ter visto a Caninha Verde, “ela não era ‘batida’, era cantada e dançada”. Segundo ele, era “dançada estilo quadrilha”, fazendo cada qual um verso do tipo improviso e trocando de dama. Conheceu esta dança no salão de baile da fazenda Monte Alegre. “Eu me lembro da Cana Verde quando era dançada no salão da fazenda do Seu Luiz. Eu era moleque... Dançava a Cana Verde cantada, marcada e rodada. Fazia aquela volta [...]. Até minha mãe costumava fazer os versinhos dela”. A toada era a mesma, só não tinha o porrete. Cada vez que rimava o verso, cada um rodava com a dama que tivesse marcando com ele e passava para outra... A dama que tava comigo passava pra outro, a que estava com outro passava pra mim e a gente continuava sambando. Aquilo que se fazia com os porretes, fazia com os pés... No salão, todo mundo batia3.

31 Pode-se imaginar o som produzido com as batidas dos pés no assoalho de madeira deste casarão do século XIX, embalando o ritmo da dança. Continuando a descrição, Seu Filhinho afirmou que “cada um cantava um verso e trocava de dama. E ia fazendo volta. Se quisesse terminar quando cada um tivesse com suas damas, podia também”. Além dos detalhes referentes à forma de dançar, outro aspecto que se diferencia dos registros de Gallet (1934) é o uso da sanfona ao invés da viola.

32 Essa forma de dançar, que também estava em desuso em Vassouras, pertenceu às gerações anteriores ao Seu Filhinho, pois, de acordo com suas lembranças, o Seu Luiz Rosa não chegou a bater a Caninha Verde com o porrete. A geração seguinte é que continuou a Caninha Verde e, provavelmente, foi agente de uma possível transição entre forma dançada e a forma batida. Nessa geração estão os filhos do Seu Luiz Rosa, tais como o Seu Aristides, Seu Durvalino e Seu Jaime, além do Bingue e do Seu Chico Santana – pai do Seu Filhinho – dentre outros.

A Caninha Verde no carnaval

33 A inserção da Caninha Verde no carnaval não é um processo isolado que aconteceu em Vassouras. Como indica o pesquisador Matthias Horing Assunção (1992:14), a Caninha

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Verde “urbanizou-se no Maranhão, tendo versões carnavalescas freqüentes até 1950 e ainda é apresentado ocasionalmente”. Além disso, mesmo que uma parcela significativa dos registros sobre esta prática festiva apresente-se relacionada aos ambientes rurais e o carnaval esteja caracterizado como uma festa urbana, ainda assim não é possível generalizar um deslocamento no aspecto físico do espaço do campo para a cidade. Em alguns casos há indícios de a Caninha Verde já estar integrada às festividades urbanas ou de núcleos populacionais que ultrapassam os limites da fazenda, como o carnaval e Festa da Penha no Rio de Janeiro (Coelho Neto 1945; Morais Filho 1979; Soihet 1998; Tinhorão 2000).

34 As principais referências bibliográficas sobre Caninha Verde em Vassouras tratam do bloco de carnaval. Não foi possível identificar alguma outra fonte escrita que fizesse alusão a esta prática festiva realizada de maneira diferente, como relatada por Seu Filhinho Santana e Dona Lurdes na fazenda Monte Alegre. Há um breve, mas importante estudo elaborado pela folclorista Cascia Frade (1978), impresso em mimeógrafo. Neste estudo a autora faz uma referência às origens na cidade do Minho, cita os registros de Luciano Gallet e faz uma descrição da prática festiva. Frade (1978) apresenta a dança e uma das formas de preparação dos porretes, enumera os instrumentos utilizados e cita exemplos dos versos utilizados nas cantorias. Posteriormente, em um levantamento coordenado pela mesma autora e publicado em 1985, são identificados três tipos de Caninha Verde no Estado do Rio de Janeiro: “a Caninha-Verde, a Cana-Verde valsada e a Cana-Verde marcada (também chamada de coxada ou de mão)” (Frade 1985:49). Esta primeira refere-se à Caninha Verde encontrada em Vassouras. A primeira delas é executada com dançadores formando pares que se defrontam em um círculo único. Batem os bastões de madeira dentro do compasso musical. A música é executada em sanfona de oito baixos com acompanhamento de batidas rítmicas executadas por pandeiro e um pequeno tambor. Apresenta-se no carnaval. (Frade 1985:49).

35 O bloco da Caninha Verde no carnaval de Vassouras era formado, em geral, por quatro diferentes funções de brincantes: os batedores ou dançadores, os improvisadores ou cantores, os músicos e a pessoa que comanda o bloco. Inicialmente com predominância masculina. Os batedores eram compostos de dez a vinte e dois pares de brincantes – como contou Seu José Luiz – que portavam um porrete, ou como se diz em Vassouras, um cacete de um metro e meio em média. A melodia era tocada por um sanfoneiro, um pandeirista e mais um tocador de surdo. Os improvisadores eram aqueles que faziam versos cantados, geralmente sem desafio entre eles, e que podiam estar inseridos no grupo enquanto cantavam como batedores, como músicos ou à parte, acompanhando junto com os músicos. O marcante ou a pessoa que comandava a Caninha Verde em geral ficava separado do grupo, portando um apito para estabelecer as marcações da coreografia em conjunto, o deslocamento, as paradas e o encerramento. Em caso de necessidade poderia substituir algum batedor.

36 Apesar das variações a principal movimentação dos batedores consistia na formação em círculo, onde inicialmente esses brincantes se defrontavam com seu par original. Sob o comando do marcante, os músicos faziam uma introdução da melodia quando era cantado, em geral, um verso de domínio coletivo para o começo da apresentação. Minha Caninha Verde Que veio de Portugal Vamos todos, minha gente

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Desfilar no Carnaval

37 Em seguida, no ritmo da música, os batedores iniciavam a coreografia batendo seu porrete com seu par original, fazendo um giro de corpo pelo lado interno do círculo para ficar de frente para o batedor da dupla que estava ao seu lado. Segundo uma descrição do Seu Manoel4, que se refere a uma didática de ensino da Caninha Verde que ele aplicava, o porrete ficava posicionado à frente do corpo, com uma inclinação média de 45 graus em relação ao eixo do corpo do batedor e segurado pelo meio com a mão direita, que de preferência não devia sair dessa posição. No início, na primeira movimentação dos batedores, a extremidade superior do porrete ficava inclinada para o lado esquerdo, com a mão esquerda, segurando o porrete acima da direita, ficando as duas mais próximas do centro para evitar acidentes. A primeira batida entre os pares era dada com a extremidade inferior, que estava inclinada para o lado direito. A segunda batida era dada com a extremidade superior e a terceira era feita com a parte inferior novamente.

38 Terminada a sequência de três batidas, cada componente do par de batedores virava-se em 180 graus para ficar de frente para o batedor da outra dupla que havia feito o mesmo movimento, formando assim uma outra dupla. Durante o giro de corpo, o batedor trocava a posição do porrete. A mão direita mantinha-se ao centro do porrete e inclinava a extremidade superior para o lado direito. A mão esquerda, que estava acima da direita, segurando o porrete, passava para baixo da mão direita. Além das batidas e do giro de corpo, o grupo formado pelos pares formando um grande círculo, realizavam um giro, habitualmente em sentido horário. Nessa formação, os músicos ficavam posicionados ao centro do círculo junto com o marcante e, em alguns casos, também com os improvisadores, como contou Seu José Luiz5.

39 O ritmo da música era um compasso quaternário. Dessa forma, o batedor dispunha de três tempos para bater o porrete e um tempo para fazer o giro de corpo e ficar de frente para o batedor do lado oposto. Como contou Seu Filhinho, as batidas de todo o grupo deviam ser uníssonas e corresponder com exatidão ao toque do surdo, pois as batidas do porrete compunham a sonoridade da toada. Para isso, era importante que a toada não fosse tocada de forma acelerada, para que houvesse tempo para realizar os movimentos de forma harmoniosa e poder dançar enquanto os executava6.

40 Tanto os improvisos da cantoria como a toada da Caninha Verde assemelhavam-se à do Calango, que, na opinião do Seu Filhinho Santana, o ideal era que estivesse com o andamento mais lento para que houvesse tempo para os brincantes do bloco poderem realizar os movimentos e evoluções. A temática dos improvisos em geral eram as mesmas, mas o foco não era o desafio com outros improvisadores. Nesse sentido, Seu Filhinho asseverava que não devia haver desafio, ou seja, provocações e ofensas nem entre os participantes, nem com o público. Outra diferença é que não havia a preocupação em manter a mesma “linha”. De acordo com Cascia Frade (2008:94), “recebem o nome de ‘linha’: linha do A; linha do ÃO; linha do Antonho; linha da poesia; linha do dinheiro, etc. – designações que indicam a sonoridade das palavras a serem rimadas. São propostas no início da cantoria e deverão permanecer até a última estrofe”. Desta forma, cada um que improvisasse durante uma apresentação da Caninha Verde poderia rimar na forma que conviesse, sem se preocupar com a rima de quem o antecedeu. Dona Fátima lembra um improviso que ouvia em sua infância, nos ensaios da Caninha Verde promovidos por seu pai, o Seu Ivo, no quintal de sua casa: Caninha Verde

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De verde ficou madura Se não fosse a Cana Verde Não havia rapadura7.

41 De maneira geral, os entrevistados afirmam que o importante na cantoria era estabelecer uma relação com o público, e cada improvisador, por vezes, fazia referências, homenagens ou brincadeiras com alguns passantes ou espectadores. Qualquer um do grupo poderia improvisar com uma estrofe após o término daquele que já estava cantando. Seu José Luiz ressaltou que “Seu Filhinho era o mestre disso. Até hoje. Ele escuta pouco, mas tem bastante improviso”. Dona Elisa disse que “Seu Filhinho não perdia uma. Naquele ‘bate-rebate’, você canta uma coisa e ele fala uma coisa mais bonita... No cantar quase todos cantavam”. Sobre os temas recorrentes nos improvisos, ela diz que “normalmente era com relação a ‘moça bonita’, não era?” Dona Fátima complementa: “É... sempre tinha uma ‘moça bonita’ no meio”. As duas concordaram que “Seu Filhinho era mestre em cortejar”. Segue um exemplo: Foi hoje que eu reparei E que os olhos que tem você Foi hoje é que eu raparei Oi, que tem você Foi hoje é que eu raparei Se eu reparasse há mais tempo Não amava quem amei.8 Em outro improviso, Seu Filhinho assim canta: Eu me casava Com uma dúzia de mulher Se eu pudesse eu me casava Com uma dúzia de mulher Eu me casava Com uma dúzia de mulher Três Maria, três Antônia Três Chiquinha e três Zezé.9

42 É possível considerar a brincadeira do bloco Caninha Verde como um mosaico de elementos de práticas festivas, sendo que a música e a cantoria permaneceram, sendo atualizadas em relação à maneira como eram realizada nos bailes de roça. Em relação à dança e ao uso dos porretes existem algumas hipóteses para suas apropriações.

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Figura 2 – Apresentação do Bloco da Caninha Verde – provavelmente na década de 1960 Fonte: Acervo de Elisa Maria da Silva Conceição

Algumas possíveis interações culturais

43 Um dos fatores que poderia ter fomentado diferentes interações culturais a influenciar a Caninha Verde ocorreu na transição do século XIX para o XX. Grande parte das terras das fazendas tornaram-se pasto, com um custo inferior às das cidades mineiras próximas ao Vale do Paraíba, estimulando a vinda de um contingente significativo de pessoas oriundas de Minas Gerais, grande parte motivadas pela pecuária em expansão em Vassouras e nas demais cidades da região (STEIN, 1990). A partir deste panorama, vale observar um registro da Caninha Verde no livro de Jovino Ribeiro de Almeida (2000), intitulado O Grecco e sua história. O Grecco é um bairro de Vassouras, de cujas memórias o autor trata e registra a presença dos participantes da Caninha Verde que ali moravam em torno da década de 1980. Referindo-se à prática festiva, o autor afirma que é “popularmente denominado Bloco da Caninha Verde, ou Bloco do Pau, ou ainda Mineiro Pau. O grupo reúne-se durante o Carnaval, nas Festas Juninas ou em ocasiões especiais” (p. 113). Esta referência indica um ponto relevante em relação às influências que compuseram as transformações desta prática festiva, pois há uma semelhança entre a Caninha Verde de Vassouras e o Mineiro-Pau, que é uma manifestação cultural recorrente em Minas Gerais e em algumas cidades do norte do Estado do Rio de Janeiro, principalmente na coreografia dos grupos com os porretes.

44 Outro aspecto semelhante é que a Caninha Verde e o Mineiro Pau utilizavam a sanfona de oito baixos e o pandeiro como instrumentos musicais. Apesar de poder se apresentar em outras ocasiões, a recorrência principal do Mineiro Pau era no carnaval10. Em tese, seria possível especular sobre essa grande migração mineira na primeira metade do XX, que poderia ter trazido para o contexto festivo de Vassouras o Mineiro-Pau, mas

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nenhum dos entrevistados, nem as demais pessoas com quem tive contato e que testemunharam os carnavais entre as décadas de 40 e 60 fizeram qualquer menção a esta prática festiva11. Em relação ao Bloco do Pau, que o memorialista Jovino Ribeiro Almeida aludia em sua obra, um dos primeiros registros sobre o bloco da Caninha Verde de Vassouras refere-se ao noticiário carnavalesco do jornal Correio de Vassouras, de 15 de fevereiro de 1940: Carnaval em Vassouras Jogo de Pau Foi motivo de grande atracção o bloco “Jogo de Pau” estylo portuguez, que percorreu as ruas da cidade, sob a direcção do folião Alberto José da Motta (Bingue), pela precisão que executaram este difícil jogo.

45 Quando o Seu Filhinho foi perguntado sobre o termo “Jogo de Pau”, utilizado neste periódico, ele afirmou ser uma das denominações para a Caninha Verde. Dona Lurdes disse a mesma coisa. Há uma semelhança com a expressão “Jogo do Pau”, que se refere a uma prática marcial, conhecida em Vassouras como “Briga de Cacete”, que foi tema do documentário Versos e Cacetes : o jogo do pau na cultura afro-fluminense, realizado pelo historiador Matthias Holing Assunção. A partir desse enunciado do jornal, foi pesquisado se haveria alguma relação entre este estilo de luta e a prática festiva. Um indício que apontava para essa possibilidade encontrava-se no relato de Seu José Luiz12 sobre algumas histórias que ouviu em família. Ele contou que seu avô, Luiz Rosa, proprietário da fazenda Monte Alegre, costumava andar com uma bengala de ipê quase de sua altura e era conhecido por suas habilidades com a Briga de Cacete.

46 De acordo com estas memórias familiares, costumava haver uma vez por mês “encontros de cacete”, em que praticantes se deslocavam para outros bairros e distritos para, em grupo, fazerem disputas, como uma forma de esporte ou divertimento coletivo. Um dos lugares citados destes encontros era a fazenda da Estiva, localizada relativamente próxima à fazenda Monte Alegre. Apesar disso, os entrevistados mais antigos não identificavam ou não admitiam nenhuma relação direta entre a Caninha Verde e o Jogo do Pau.

Transformações e continuidades

47 Um dos aspectos que possibilitou a permanência desta Caninha Verde até os dias de hoje é o fato de que, apesar de se constituir como um bloco, nunca esteve restrita ao carnaval. Sua elaboração em Vassouras remonta a um período em que o carnaval comportava uma grande diversidade de expressões culturais, em uma época anterior às tendências de predomínio dos modelos da festa carnavalesca de Salvador ou das escolas de samba do Rio de Janeiro, que em muito esteve relacionado à atuação da mídia televisiva (Assunção 1992). Atualmente, apesar de nunca perder esta característica, o carnaval indica uma retomada da afirmação de sua diversidade.

48 Assim, a Caninha Verde, como outras práticas festivas, tem percorrido novos espaços, seja em escolas, em eventos e em festivais. Eugênio Capute, figura destacada nos campos político e cultural de Vassouras, foi um dos incentivadores tanto da Caninha Verde quanto de outras manifestações culturais nesta cidade, promovendo interações com escolas estaduais na década de 1970 (Vieira 2010). Um dos trabalhos mais significativos, que contribuiu para a continuidade desta prática festiva foi realizado na Escola Municipal São Sebastião dos Ferreiros, localizada em uma área rural de

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Vassouras, no distrito de Ferreiros. Sua então diretora Telma Cristina Barbosa Sant’Anna formou em 1989 um grupo de Caninha Verde, que inicialmente integrava os antigos participantes desta comunidade com os alunos da escola. A continuidade deste trabalho até os dias de hoje tem sido um dos principais fatores que mantém viva a memória desta prática festiva.

49 Outro trabalho desenvolvido integrado com processos educativos tem sido realizado desde 2007 na Escola Municipal Giovanni Nápoli, situada em área urbana da referida cidade, no bairro denominado Grecco. Este trabalho apoiado pela diretora Ilza Carla Brum Bastos Pinto, em diversos momentos contou com a presença do Seu Filhinho Santana, ensinando a Caninha Verde, cantando ou contando histórias para os alunos.

50 Há também a iniciativa de Manoel João dos Santos, conhecido como Seu Manel, e José Luiz de Souza Tavares, que formaram o grupo de Caninha Verde do Morro da Vaca com crianças desta localidade desde 2009, como também desenvolveram atividades no Centro de Convivência do Idoso, mantido pela Prefeitura Municipal de Vassouras. Estes dois brincantes têm grande importância em relação a esta prática festiva nesta cidade. Seu Manel foi o responsável por levar a Caninha Verde para o distrito de Ferreiros no final da década de 1960, cujo grupo se manteve até o início da década de 1980.13 Seu José Luiz desde a mocidade participa desta manifestação cultural e é neto do proprietário da antiga fazenda Monte Alegre, Seu Luiz Rosa. Foi nos arredores desta fazenda que se constituiu esta prática festiva. Seu tio, Aristides de Souza, foi um dos principais agentes no período de criação do bloco da Caninha Verde.14

Figura 2 – Caninha Verde do Morro da Vaca – Morro da Vaca – jun. 2009 Foto André Monteiro

51 Este percurso de continuidades e adaptações a novos espaços revela não apenas transformações locais refletidas nas esferas do divertimento. Em uma perspectiva ampla, ocorrem modificações nos sentidos e significados, tanto da Caninha Verde quanto de outras manifestações culturais, quando mediadas ou representadas pelos

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conceitos de folclore, de cultura popular ou patrimônio imaterial. Há também os efeitos decorrentes das interações com os diversos meios de comunicação social, com as pesquisas acadêmicas, com a inserção nos ambientes educativos e com as políticas públicas para a cultura em diferentes instâncias de governo. Tais circunstâncias repercutem tanto nos grupos de manifestações culturais quanto nas comunidades em que estão inseridos, refletindo nos vínculos entre os sujeitos brincantes, nas interações sociais através da festa e processos de identificação que as práticas festivas fomentam. São aspectos relevantes que necessitam de ainda mais análises e discussões.

Considerações finais

52 As festas compõem um lugar, uma cidade, como um elemento que integra o conjunto de características que a particularizam, tanto quanto seus prédios, praças, jardins e suas ruas. Mesmo representando os aspectos mais efêmeros, intangíveis e sazonais que se instauram no espaço, revelam grupos sociais com seus modos de vida e suas trajetórias. São memórias que manifestam-se não apenas nas lembranças das festas, mas de forma viva e que se fazem presentes a cada vez que se canta, dança e brinca, reafirmando os sentidos dos laços que vinculam sujeitos a um determinado grupo ou comunidade. Cada festa contém a possibilidade de uma perspectiva sobre um lugar, assim esta Caninha Verde revela em sua trajetória uma perspectiva ou um reflexo das transformações na cidade de Vassouras.

53 Nestas transformações, observadas por Gallet (1934) no levantamento que realizou em 1927 em Piraí, e por Seu Filhinho e Dona Lurdes, nas lembranças da infância sobre a Caninha Verde dançada no salão da fazenda Monte Alegre, há uma conjuntura de mudanças nas quais algumas práticas festivas perderam o sentido em seus grupos sociais.

54 Seu Ismar, 12 anos mais jovem que Seu Filhinho, desconhece essa Cana Verde. Existiriam outras práticas nessa conjuntura que – segundo Gallet (1934) – caíram também em desuso, tais como o Cateretê, de que atualmente não se tem notícias de sua continuidade no Vale do Paraíba.

55 Em relação ao possível período em que houve uma provável transição entre a forma “dançada” e a forma “batida”, considerando que Seu Filhinho afirma ter iniciado sua participação no bloco da Caninha Verde aos 15 anos, isto indica que – seja o que for que tenha acontecido, tais como a adaptação ou a “invenção” de uma prática festiva, dentre outras possibilidades – tais processos ocorreram possivelmente em torno da década de 1930. A primeira vez que eu vi não era batida, mas era cantada e dançada, no salão [...]. Aí depois, esse Bingue criou uma aí, e esse filho desse homem, desse Luiz Rosa, chamava-se Aristides, aí ele inventou a de porrete. Aí eles formaram uma e esse Bingue formou outra. Ficaram duas. Teve um carnaval que fundiram as duas15.

56 É provável que esta transformação não se tenha constituído por rupturas bruscas, mas inicialmente por simultaneidade entre as diferentes formas da Caninha Verde, até porque ocupavam espaços festivos distintos. Há considerável pertinência em relação às mudanças que estavam operando nessa sociedade, onde a tendência urbana paulatinamente proporcionava novas influências e novas aspirações, enquanto o declínio produtivo das fazendas desarticulava um dos principais pilares do modo de vida, que é o trabalho no campo.

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57 É possível que os agentes desta mudança, as comunidades do entorno da fazenda Monte Alegre, tenham efetuado de forma não intencional as combinações dos elementos culturais de que dispunham em correspondência ao contexto em que viviam, resultando no bloco da Caninha Verde. Em levantamentos realizados em outras localidades de Vassouras e nas cidades do entorno não foi possível identificar outros grupos semelhantes. Os grupos de Caninha Verde que já existiram, como do Seu Ivo e do Seu Zé Lourenço, ou os atuais como de Ferreiros, do Grecco e do Morro da Vaca, todos vinculados a Vassouras, tem em suas origens a influência do grupo relacionado às comunidades do entorno da fazenda Monte Alegre (Monteiro, 2012). O que há de peculiar e relevante não está necessariamente numa suposta originalidade dos elementos que a compõem, mas está no processo de sua própria hibridação, ou na forma e no contexto em que foi reconfigurada, que inclui a transição de seu espaço festivo da fazenda para a cidade. É fundamental considerar que, em geral, as práticas festivas originam-se parcial ou integralmente de outras práticas festivas.

58 Desta forma, o estudo sobre a Caninha Verde em Vassouras proporciona mais possibilidades do que certezas. Ainda que as lacunas e a imaginação componham as lembranças, as memórias de Seu Filhinho sobre a Caninha Verde talvez indiquem que ele tenha sido testemunha da “invenção” de uma prática festiva, fruto de uma mistura de elementos de outras brincadeiras e expressões festivas. Até que se prove o contrário, esta é uma das versões possíveis.

59 Assim, da mesma forma que alguns poemas lusitanos ressaltam a flexibilidade de uma cana verde, esta prática festiva continua atualizando-se e integrando novos contextos festivos. As memórias relacionadas à Caninha Verde podem ser consideradas narrativas sobre uma maneira de apropriação lúdica do contexto que se transforma, subvertendo e fazendo interagir as imagens que se difundem dos divertimentos urbano e rural. O estudo de tais particularidades locais pode ser um caminho de investigação sobre os processos em que há a convergência da diversidade, da peculiaridade e da globalidade no momento da festa, revelando como as amplas trajetórias dos processos sociais se refletem no que há de corriqueiro no modo da vida, fazendo com que a festa, no entanto, nunca seja corriqueira.

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Entrevistados e filmagem:

Elisa Maria da Silva Conceição nasceu em Vassouras em 27 de dezembro de 1949. Foi entrevistada por André Jacques Martins Monteiro em 23 de julho de 2011, na sede do Vassouras Malha Clube, localizado na Rua Paulo Torres, 771, Centro, Vassouras-RJ. Reside na Rua Santos Dumont, 477, casa 101, Centro, Vassouras-RJ.

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Ismar de Souza Gondin nasceu em Vassouras em 20 de dezembro de 1930. Foi entrevistado por André Jacques Martins Monteiro em 28 de outubro de 2010, em sua própria residência. Reside na Rua do Bingue, 341, Centro, Vassouras-RJ.

José Luiz de Souza Tavares nasceu em Vassouras em 8 de setembro de 1947. Foi entrevistado por André Jacques Martins Monteiro em 22 de outubro de 2011, na sede do Vassouras Malha Clube, localizado na Rua Paulo Torres, 771, Centro, Vassouras-RJ. Reside na Rua Luiz Francisco de Souza, 375, Bairro Ponte Funda/Monte Alegre, Vassouras-RJ.

Manoel João dos Santos nasceu em Vassouras em 6 de dezembro de 1932. Foi entrevistado por André Jacques Martins Monteiro em 28 de outubro de 2011, na Rua Luiz Francisco de Souza, 375, Bairro Ponte Funda/Monte Alegre, Vassouras-RJ. Reside na Rua do Bingue, 1321, Bairro Morro da Vaca, Vassouras-RJ.

Maria de Lurdes de Souza Tavares nasceu em Vassouras em 11 de dezembro 1915. Foi entrevistada por André Jacques Martins Monteiro nas datas: 11 de março de 2009 e 06 de maio de 2010, em sua própria residência. Residia na Rua Luiz Francisco de Souza, 375, Bairro Ponte Funda/Monte Alegre, Vassouras-RJ. Faleceu em 25 de agosto de 2010.

Maria de Fátima da Silva Conceição nasceu em Vassouras em 18 de julho de 1859. Foi entrevistada por André Jacques Martins Monteiro em 23 de julho de 2011, na sede do Vassouras Malha Clube, localizado na Rua Paulo Torres, 771, Centro, Vassouras-RJ. Reside na Rua Mirena, 186, Centro, Vassouras-RJ.

Nilton Dias da Rosa nasceu em Vassouras em 20 de julho de 1918. Foi entrevistado por André Jacques Martins Monteiro nas seguintes datas: 20 de março de 2008 – no Escritório Técnico do IPHAN na Região do Médio Vale do Paraíba, localizado na Rua Dr. Fernandes Júnior, 160, Centro, Vassouras-RJ –, 23 de julho de 2011 e 29 de outubro de 2011 – na sede do Vassouras Malha Clube, localizado na Rua Paulo Torres, 771, Centro, Vassouras-RJ. Residia na Rua Ambrósio Coutinho, 224, Bairro Carvalheira, Vassouras-RJ. Faleceu em 18 de março de 2012.

Filmagem do encontro do Grupo de Calango Itakalango com Nilton Dias da Rosa. Filmagem realizada por André Jacques Martins Monteiro em 24 de junho de 2009, na sede do Vassouras Malha Clube, localizado na Rua Paulo Torres, 771, Centro, Vassouras-RJ. O responsável pelo grupo é Edson Torres da Hora, nascido em Vassouras em 2 de abril de 1951. Reside na Rua Marcolino Andrade Cruz, 7, Itakamosi, Vassouras-RJ. O grupo estava composto por Edson Torres da Hora, tocando surdo; Alberto Leandro de Moura Meireles, tocando acordeom de 80 baixos e; Nielson Moreira Gomes, tocando pandeiro. Houve ainda a participação especial de Fátima Maria Natividade de Amorim, tocando a sanfona de 12 baixos.

Filmagem e entrevistas com informações sobre o porrete da Caninha Verde, realizada no dia 28 de outubro de 2011 em um trecho da mata localizada na antiga fazenda Monte Alegre, próximo ao endereço Rua Luiz Francisco de Souza, 375, Bairro Ponte Funda/Monte Alegre, Vassouras-RJ. Participaram da filmagem José Luiz de Souza Tavares e Manoel João dos Santos.

Arquivo Público Municipal de Vassouras – Escritório Técnico Médio Vale do Paraíba – IPHAN

Periódicos consultado:

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NOTAS

1. LENDA da Caninha Verde. Infopédia [on-line]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. Disponível em: . Acesso em: 8 jan. 2012. 2. Filmagem realizada por André Jacques Martins Monteiro do encontro do Grupo de Calango Itakalango com Nilton Dias da Rosa em 24/06/2009. 3. Entrevista concedida por Nilton Dias da Rosa a André Jacques Martins Monteiro em 23/07/2011. A ideia apresentada pelo Seu Filhinho se sambar tinha o sentido de dançar de forma animada. 4. Conhecido no distrito de Ferreiros, em Vassouras, como Manoel Pelada, por organizar os jogos de futebol, foi o responsável por criar um Bloco de Caninha Verde nesta localidade no final da década de 1960. 5. Entrevista concedida por José Luiz de Souza Tavares a André Jacques Martins Monteiro em 22/10/2011. Nesta entrevista, seu José Luiz realiza uma descrição detalhada da Caninha Verde, tanto em relação a forma como a brincadeira era realizada, como também do contexto em que estava inserida. 6. Filmagem realizada por André Jacques Martins Monteiro do encontro do Grupo de Calango Itakalango com Nilton Dias da Rosa em 24/06/2009. Neste encontro, a cantoria é precedida de um diálogo, no qual o Seu Nilton Dias da Rosa (Seu Filhinho Santana) relata sobre os ambientes em que costumava cantar, como também os sentimentos e motivações na qual a cantoria lhe trazia contentamento. 7. Entrevista concedida por Elisa Maria da Silva Conceição e Maria de Fátima da Silva Conceição a André Jacques Martins Monteiro em 23/07/2011. 8. Filmagem realizada por André Jacques Martins Monteiro do encontro do Grupo de Calango Itakalango com Nilton Dias da Rosa em 24/06/2009. 9. Idem. 10. CENTRO Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Tesauros de folclore e cultura popular brasileira. Mineiro-Pau. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2010c. 11. No ano de 2008 houve a oportunidade de levar o Seu Filhinho à festa do 13 de Maio do Quilombo São José, na cidade de Valença, onde ele assistiu – curioso pela novidade – a uma apresentação de Mineiro-Pau de um grupo parafolclórico de Miracema-RJ. Nesse dia Seu Filhinho comentou a semelhança no uso do porrete, mas chamou a atenção para a diferença na forma da batida, dos usos dos instrumentos e do ritmo acelerado da toada. 12. Entrevista concedida por José Luiz de Souza Tavares a André Jacques Martins Monteiro em 22/10/2011. 13. Entrevista concedida por Manoel João dos Santos a André Jacques Martins Monteiro em 28/10/2011. 14. Entrevista concedida por José Luiz de Souza Tavares a André Jacques Martins Monteiro em 22/10/2011 15. Entrevista concedida por Nilton Dias da Rosa a André Jacques Martins Monteiro em 23/03/2008.

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RESUMOS

O presente artigo é um estudo sobre as transformações ocorridas na transição do século XIX para o XX no município de Vassouras, localizado no Vale do Paraíba Fluminense no Estado do Rio de Janeiro, através da trajetória de uma prática festiva que marcou os antigos carnavais desta cidade: a Caninha Verde. Originada em Portugal e difundida em grande parte do Brasil, esta manifestação cultural, que integra canto e dança, adquiriu particularidades em cada localidade decorrentes de circunstâncias históricas e sociais, como também de interações étnicas e culturais. As mudanças que ocorreram nos espaços festivos e na forma de brincar revelam indícios de transformações no modo de vida de grupos sociais menos abastados desta cidade.

This article is a study of the changes occurring in the transition from the nineteenth to the twentieth century in the town of Vassouras, located in the Vale do Paraíba Fluminense in the state of Rio de Janeiro, through the course of a festive practice that marked the old carnivals of this city: the Caninha Verde. Originated in Portugal and widespread across much of Brazil, this cultural event, which includes singing and dancing, acquired in each locality particularities resulting from historical and social circumstances, as well as ethnic and cultural interactions. The changes that occurred in the festive spaces and the way to play show evidence of changes in the lifestyle of less affluent social groups in this city.

ÍNDICE

Keywords: Caninha Verde, Vassouras-RJ, festive practice Palavras-chave: Caninha Verde, Vassouras-RJ, prática festiva

AUTOR

ANDRÉ JACQUES MARTINS MONTEIRO

André Jacques Martins Monteiro é doutorando e bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, integrando a Linha de Pesquisa em Memória e Espaço. . E-mail: [email protected]

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Cir-kula

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Lévi-Strauss, Rousseau e o fim da filosofia Lévi-Strauss, Rousseau and the end of philosophy

Pedro Paulo Pimenta

Gostaria de agradecer à Profa. Beatriz Perrone-Moisés por uma correção importante ao argumento deste texto, e ao Prof. Renato Sztutman, por suas valiosas observações

1 A célebre conferência sobre Rousseau pronunciada por Lévi-Strauss em 1962, por ocasião dos 250 anos de nascimento do filósofo, pode ser lida como um elogio e também como uma crítica da filosofia. O título mesmo da conferência, posteriormente publicada em Antropologia Estrutural Dois – “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” – leva o leitor a pensar que a invenção da antropologia por Rousseau atestaria a origem filosófica dessa ciência. Lévi-Strauss, embora não desminta essa impressão, tampouco a autoriza, chegando mesmo a sugerir, em mais de uma passagem do texto, que Rousseau seria o fundador da nova ciência precisamente por ter rompido com a filosofia, personificada na figura de Descartes. Muitos anos depois, em O olhar distanciado (1983), Descartes aparece novamente como personificação de um racionalismo tacanho, que perdeu toda relevância com as descobertas e a avanços realizados pelas ciências naturais e reconhecidos pela antropologia estrutural1. Em epígrafe ao livro, encontramos Rousseau: “le défaut des européens est de philosopher toujours sur les origines des choses d’après ce qui se passe autour d’eux”2. O que sugere que o filósofo Jean-Jacques Rousseau se torna antropólogo – no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens – precisamente quando deixa de ser filósofo, ou antes, deixa de ser filósofo ao inventar a antropologia. Não parece fortuito que Lévi-Strauss tenha escolhido iniciar o seu comentário sobre o pensamento de Rousseau com uma passagem do Discurso que se não chega a ser irônica, tem algo de dissimulação – justamente aquela em que se lamenta que os grandes homens do século (d’Alembert, Diderot, Condillac, Buffon) não tenham se dedicado ao estudo dos povos do continente americano...

2 É como se Rousseau dissesse: se tais homens fossem ao Novo Mundo e retornassem com observações ali colhidas, seriam obrigados a rever, parcial ou completamente, as suas

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próprias teorias, senão o seu modo de pensar. Lévi-Strauss, sem dúvida, subscreve essa sugestão, pois não menciona, em parte alguma de sua obra, as digressões dos filósofos da Ilustração sobre o selvagem, americano ou d’alhures, a não ser uma vez, e pejorativamente, quando em Tristes trópicos censura Diderot por uma ingênua e “absurda... glorificação do estado natural”; quanto a “Rousseau, jamais cometeu o erro de Diderot, que consiste em idealizar o homem natural”3. Erro decorrente do despreparo dos filósofos, ou da insuficiência da filosofia, para estudar a vida do homem em sociedade e em suas relações com a natureza. Para redigir “o primeiro tratado geral de etnologia” 4, ou seja, o 2º Discurso, Rousseau teve que superar as limitações do saber a que estava acostumado e pelo qual fora nutrido.

3 Portanto, quando Lévi-Strauss explica que Rousseau “distinguiu, com uma clareza e concisão admiráveis, o objeto próprio do etnólogo, em relação ao do moralista e ao do historiador”5, é preciso prestar atenção ao que implica essa declaração. O moralista e o historiador, no século XVIII, são codinomes do filósofo, e a demarcação das fronteiras entre a etnologia – como ciência modelo das ciências humanas – e esses outros domínios do conhecimento, anuncia a separação da etnologia em relação à filosofia. E como veremos, essa separação não é mera diferenciação, implica que se recuse à filosofia as pretensões e os direitos que, até o século XVIII, foram os seus.

4 Em O totemismo hoje, surgido no mesmo ano que a conferência de Genebra, Lévi-Strauss afirma que se o Discurso sobre a origem da desigualdade deve ser lido como “o primeiro tratado de antropologia geral com que conta a literatura francesa” é porque “em termos quase modernos, Rousseau põe ali o problema central da antropologia, que é o da passagem da natureza à cultura”, passagem que, segundo Lévi-Strauss, só pode ser compreendida teoricamente com a suposição de que o homem natural tomaria consciência de si mesmo, como membro de uma espécie, desde o instante em que lhe acomete um sentimento de “comiseração, ou piedade” (pitié), retirando-o de sua “condição natural” e em que “o afetivo e o intelectual” se misturam de maneira “indissociável”.6 É porque o homem se experimenta primitivamente idêntico a todos os seus semelhantes (dentre os quais é preciso contar os animais, como afirma expressamente Rousseau) que ele adquire, por conseqüência, a capacidade de se distinguir assim como ele os distingue, vale dizer, de tomar a diversidade de espécies como suporte conceitual da diferenciação social. [Temos aqui] a formação de uma perspectiva extraordinariamente moderna sobre a passagem da natureza à cultura, fundada sobre a emergência de uma lógica que opera por meio de oposições binárias e coincide com as primeiras manifestações de simbolismo [...] A apreensão global dos homens e dos animais como seres sensíveis, em que consiste a identificação, comanda e precede a consciência destas oposições, primeiro entre as propriedades lógicas concebidas como partes integrantes de um campo, depois no seio mesmo desse campo entre o humano e o não-humano.7

5 Assumindo essa “aptidão ao sofrimento”,8 reconhecendo-se como parte de um meio, doravante considerado natural, cada indivíduo humano estabelece relações entre si mesmo e outros seres e se torna parte de uma rede de identidades e diferenças. Perderam-se a ingenuidade e a brutalidade do estado de natureza; o homem está pronto para se perder de si mesmo. Como explica Bento Prado Jr., A piedade, insiste Lévi-Strauss, não é apenas a forma de identificação com a humanidade em geral: através dela, o homem redescobre a infra-estrutura vital de sua existência. É sobre esta faculdade primordial que se virão desenhar, num jogo de oposições, os predicados que a ciência deve decifrar. O homem identifica-se, de

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início, pela piedade, com a totalidade da vida, para distinguir-se em seguida, no interior desse campo, do não-humano9.

6 Bento mostra um pouco mais à frente (p. 327) que Lévi-Strauss, mesmo quando vai além da distinção estabelecida por Rousseau, segue uma trilha perfeitamente coerente com os pressupostos do autor do Discurso sobre a desigualdade. Rousseau dissolvera o indivíduo na espécie; Lévi-Strauss dissolve esta no mundo natural. Mas este não é uma totalidade indiferenciada, uma massa de representações confusas. Falta, por certo, a consciência da oposição entre propriedades lógicas que presidem a diferenciação entre o humano e o não humano, estabelecidas mesmo assim por um sentimento que as conhece, ainda que não as represente enquanto tais. Identidade e diferença, proximidade e distância: na oscilação entre essas posições, delineia-se o território em que o etnólogo vai se instalar para decifrar o mundo sob uma nova perspectiva, mais problemática que a da filosofia.

7 Rousseau teria fornecido ainda à etnologia o seu “programa e os seus métodos” 10, e nas mãos do antropólogo essa teoria, que surge como um contra-discurso, é imediatamente posta a serviço de uma explicação sistemática do mundo que não parte mais da confortável subjetividade assumida pelos filósofos. Centrada em fenômenos que a filosofia considera excêntricos, para não dizer anômalos, a antropologia distorce a perspectiva dos modernos e simplesmente anula a distinção entre sujeito e objeto, que se tornou para ela inútil. Assim, numa aula de 1974, Lévi-Strauss, às voltas com o tórrido tópico do canibalismo, recorre a Rousseau para mostrar que esse fenômeno, simbolicamente tão carregado, se deixa explicar por um princípio muito simples que permeia a lógica das relações sociais: Seria difícil compreender que o canibalismo se manifeste tão frequentemente sob uma forma instável e matizada sem reconhecer um pano de fundo no qual a identificação com o outro desempenha um papel. Chegamos assim a uma hipótese central de Rousseau sobre a origem da sociabilidade: hipótese mais sólida e mais fecunda do que a dos etnólogos contemporâneos, os quais – para explicar o canibalismo e outras condutas – apelam a um instinto de agressão. A esse respeito, colocamo-nos a questão de saber se certas condutas humanas não se explicariam melhor segundo o modelo de fenômenos celulares que se processam nas profundidades dos organismos do que as aproximando arbitrariamente de condutas animais muito complexas e diversificadas por uma longa evolução... Numa escala em que se opera uma passagem contínua da comunicação à sociabilidade e desta à predação e à incorporação, a agressão não tem um lugar previamente indicado. Não se pode defini-la de modo absoluto, pois são fatores de ordem cultural que espacejam essa escala e, em cada caso particular, fixam os seus pontos de passagem. Se fosse preciso buscar nesse sentido a base objetiva da identificação tal como Rousseau a concebeu, o problema do canibalismo não se colocaria mais nos mesmos termos. Ele não consistiria mais em investigar o porquê do costume, mas, ao contrário, o modo pelo qual surgiu esse limite inferior da predação à qual talvez se ligue a vida social11.

8 O antropólogo tem confirmada assim a suspeita de que a questão de princípio de sua ciência é lógica, não histórica12, e, pautando-se por Rousseau, qualifica-se a eleger as circunstâncias decisivas, em todo e qualquer tempo e lugar, para que os homens transitem da identificação com a natureza como totalidade para a delimitação de fronteiras entre o mundo social (humano) e o mundo natural (não humano). Nessa hipótese de explicação do canibalismo, Lévi-Strauss faz jus à esperança que Rousseau manifestara no 2º Discurso e que ele mesmo sabia frustrada de antemão: se os filósofos fossem à América, munidos de suas teorias, “veríamos um mundo novo surgir debaixo

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de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso”.13 O que não quer dizer que reconheceríamos nesse mundo o nosso, e sim que não mais nos reconheceríamos em nosso próprio mundo.

9 Fiando-se por esse programa, Lévi-Strauss vai mais longe e parece contrariar, em nome do interesse da antropologia estrutural, as injunções postas a ela pelo fundador dessa ciência. Sabe-se que para Rousseau é um contrassenso querer examinar uma suposta transição do estado de natureza para o estado de sociedade com base numa experiência histórica concreta. Tudo o que se pode fazer é imaginar um estado em que os homens viveriam de acordo com certas regras, ditas naturais, em condições que não os colocariam em relação uns com os outros e não os coagiriam a obrigações e deveres recíprocos, e comparar a ideia que daí surgiria com as informações que se pode colher da experiência social tal como registrada nos anais da história, interpretando esta à luz daquela14. Mas Rousseau pensa, por certo, na grande história, registrada nos livros, consagrada pela tradição; e quanto a um povo que parece alheio às transformações da história, ou parece se encontrar à margem desta? Rousseau nunca esteve entre os selvagens, e Lévi-Strauss, que conviveu com eles, extraiu dessa experiência uma preciosa lição. O que o selvagem tem a ensinar ao homem civilizado é, em certo sentido, algo que este já sabe, uma verdade por assim dizer latente, de que agora ele poderá tomar consciência. E qual seria essa verdade? De acordo com Lévi-Strauss, o que o Discurso sobre a desigualdade oferece é bem menos e bem mais que uma teoria da sociedade; é uma teoria da sociedade mínima, teoria essa que Lévi-Strauss só descobre nesse livro após a dura e reveladora experiência de viver entre os Nambiquara, no interior do Mato Grosso, em 1934: Por trás do véu das leis demasiado elaboradas dos Cadiueu e dos Bororo, eu havia prosseguido minha busca de um estado que – diz Rousseau – “não existe mais, talvez jamais existiu, provavelmente nunca existirá e do qual, porém, é necessário ter noções exatas para bem se julgar nosso estado presente”. Mais feliz que ele, eu acreditava tê-lo descoberto numa sociedade agonizante, mas a respeito da qual era inútil eu me perguntar se representava ou não um vestígio: tradicional ou degenerada, ela me colocava, ainda assim, em presença de uma das formas de organização social e política mais pobres que é possível conceber. Eu não precisava me dirigir à história particular que a mantivera nessa condição elementar ou que, mais provavelmente, a isso a reduzira. Bastava considerar a experiência sociológica que se passava diante de meus olhos. Mas era ela que se esquivava. Eu procurara uma sociedade reduzida à sua expressão mais simples. A dos Nambiquara o era, a tal ponto que nela só encontrei homens.15

10 Não interessa a Lévi-Strauss saber se os Nambiquara não têm história ou foram relegados à sua condição atual por eventos impossíveis de ser reconstituídos. Essa espécie de conjectura, além de ser arriscada, tem pouca utilidade. A inteligência sociológica deve se impor por sua força própria, à revelia de lacunas históricas. No modelo proposto por Lévi-Strauss, o que explica a condição quase que de regressão em que se encontram os Nambiquara é o mesmo que permite explicar a transição da natureza à sociedade, tal como colocada por Rousseau (como problema): o adensamento populacional, o aumento do contato entre os homens. O adensamento populacional impede os indivíduos de vagarem indefinidamente por regiões inabitadas, sem contato com outros que não os de sua família; a reiteração desses contatos permite ao homem duplicá-los com outros objetos que antes só lhe pareciam interessantes na medida em que despertavam nele alguma paixão imediata mais intensa.16 A primeira circunstância é totalmente arbitrária, dependeria, para ser produzida, de determinações naturais; a

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segunda seguir-se-ia necessariamente à primeira, mas estabeleceria as condições necessárias para que surgissem novidades, a organização social propriamente dita e as regras da cultura, concomitantes a ela.

11 A formulação desse modelo permite a Lévi-Strauss arriscar inclusive uma hipótese de cunho conjectural, a respeito não da história do homem, mas de sua pré-história. A ousadia se explica: uma vez estabelecido o ponto de vista do estado de natureza sobre a sociedade, uma vez que o fenômeno social foi submetido ao crivo de uma análise que o examina a partir do que seria sua alteridade, abre-se a possibilidade de pensar a continuidade entre sociedade e natureza pela remissão de hábitos de cultura a condições impostas pelo meio natural. É o que propõe esta conhecida passagem das Mitológicas (II, Do mel às cinzas): O que se pode concluir? Assim como a cozinha encarada em estado puro (cozimento da carne), a aliança encarada em estado puro, isto é, implicando exclusivamente cunhados na relação de doador e tomador, exprime para o pensamento indígena a articulação essencial entre a natureza e a cultura. por outro lado, é com o nascimento de uma economia neolítica, acarretando a multiplicação dos povos e a diversificação das línguas e dos costumes, que surgem, segundo os mitos, as primeiras dificuldades da vida social, resultantes do crescimento da população e de uma composição de grupos familiares mais aventurosa do que a bela simplicidade dos modelos poderia conceber. Há dois séculos, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, era exatamente isso que Rousseau dizia e chamamos muitas vezes a atenção para essas visões profundas e injustamente desacreditadas. O testemunho implícito dos índios sul-americanos, tal como o extraímos de seus mitos, certamente não possui autoridade para restituir a Rousseau o lugar que lhe cabe. No entanto, além de tal testemunho aproximar singularmente da filosofia moderna essas narrativas estranhas, nas quais, baseando-nos em sua aparência, nem pensaríamos em procurar lições tão elevadas, seria um equívoco esquecer que quando o homem, ao raciocinar sobre si mesmo, se vê restringido a formular as mesmas suposições – apesar das circunstâncias extraordinariamente dessemelhantes nas quais exerce sua reflexão –, é grande a possibilidade de que esta convergência, várias vezes repetida, de um pensamento e de um objeto que é também o sujeito deste pensamento, desvende algum aspecto essencial, senão da história do homem, pelo menos de sua natureza, à qual sua história está ligada. Nesse sentido, a diversidade dos caminhos que conduziram Rousseau – conscientemente – e os índios sul-americanos – inconscientemente – a fazerem as mesmas especulações sobre um passado muito distante, não prova nada, sem dúvida, em relação a este passado, mas prova muito em relação ao homem. Ora, se o homem é tal que não pode escapar, apesar da diversidade de tempo e de lugar, da necessidade de imaginar sua gênese de maneira semelhante, esta última não pode ter estado em contradição com uma natureza humana que se afirma através das idéias recorrentes que, aqui e lá, os homens formulam em relação ao seu passado17.

12 Nesse texto extraordinário, a atividade consciente pertence ao indivíduo, a inconsciente ao grupo. Comparemos agora, como quer Lévi-Strauss, o segundo discurso ao mito 90 das Mitológicas:

13 Rousseau: “À medida que cresceu o gênero humano, o esforço se multiplicou junto com os homens. As diferenças de terreno, de clima, de estações, foram forçosamente incluídas em suas maneiras de vida. Anos de colheita estéril, invernos prolongados e duros, verões escaldantes que consomem tudo, exigiriam deles uma nova indústria. À beira do mar e de rios, eles inventaram a linha e a vara de pescar e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas eles fizeram arcos e flechas e se tornaram caçadores e guerreiros. Em países frios eles se cobriram com as peles dos animais que

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mataram. Um raio, um vulcão ou algum outro fenômeno lhes deu a conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno: eles aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, enfim a preparar as carnes que antes devoravam cruas. // Essa aplicação reiterada dos diversos seres entre si mesmos e ao homem engendraria naturalmente, no espírito deste, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos por palavras como grande, pequeno, forte, fraco, lento, medroso, robusto e outras idéias semelhantes, comparadas à necessidade, produziram nele, por fim, quase que insensivelmente, alguma sorte de reflexão, ou de prudência mecânica, que indicava a ele as precauções mais necessárias a sua segurança”18.

14 Mito 90: “No tempo em que os homens comiam apenas orelhas-de-pau e farelo de árvores podres, uma mulher que tomava banho soube por um ratinho da existência do milho, que crescia numa árvore enorme, onde as araras e os macacos brigavam pelos grãos. O tronco era tão grosso que foi preciso ir à aldeia pegar mais um machado. No caminho, os meninos mataram e comeram uma macura e se transformaram em velhos. Os feiticeiros se esforçaram por devolver-lhes a juventude, mas não conseguiram. Desde então, a carne de macura é absolutamente proibida. // Graças ao milho, os índios passaram a viver em abundância. À medida que se multiplicavam, foram aparecendo tribos de diferentes línguas e costumes”19.

15 A enorme diferença entre esses textos começa pelo gênero: o de Rousseau é uma descrição indireta, o dos Kayapó-Gorotire é uma narração direta, reconstituída obliquamente. Estende-se ao estilo: o de Rousseau é retórico, ciceroniano, o dos índios, na pena de Lévi-Strauss, é seco, quase científico em sua objetividade. Aprofunda-se na apresentação, radicalmente distinta: Rousseau é prolixo e saturado, se comparado à elegante concisão dos Kayapó, na voz de Lévi-Strauss. Culmina na linguagem: a de Rousseau é lírica e vaga, a dos índios e do etnólogo é concreta e precisa. E, no entanto, alguma coisa os une, no conteúdo, Lévi-Strauss tem razão, apesar da aparente diferença entre os objetos tratados por cada um. Voltemos a Le totémisme aujourd’hui: “a origem da linguagem não está nas necessidades, mas sim nas paixões, do que resulta que a primeira linguagem deve ter sido figurada”20. Figuração que os indivíduos civilizados efetuam de maneira muito diferente da elaborada por um grupo de selvagens, mas que é, em todo caso, movida por uma necessidade intelectual, comum a todos os homens: “imaginar a sua gênese”. Desse problema se ocupam os homens das Luzes bem como os habitantes do continente americano. Comparados a Rousseau, os mitos ameríndios provam suficientemente a tese de uma identidade comum a pensamento selvagem ou concreto e pensamento civilizado ou abstrato, postulada por Lévi-Strauss em La pensée sauvage e formulada por Rousseau no Discurso sobre a desigualdade.

16 Que Lévi-Strauss tenha recorrido, no volume II de sua obra mais ambiciosa, ao mesmo Jean-Jacques Rousseau que o animara a encontrar, nos Nambiquara, a imagem em negativo do estado de natureza, é sinal de que um ciclo se completou. Trata-se, sem dúvida, de uma derradeira homenagem àquele que foi responsável por libertar o pensamento etnológico das amarras da especulação metafísica. A identificação do discurso de Rousseau no mito dos Kayapó dispensará o antropólogo, doravante, de um ajuste de contas com a filosofia. É que esta, finalmente, se revelou um saber dispensável, frívolo mesmo, que nada tem a dizer que os homens já não saibam em seu íntimo, mesmo quando o que ela tem a dizer é de suma importância – e a filosofia só tem importância, para Lévi-Strauss, nas páginas de Rousseau, onde o mito das origens é recuperado, e onde as consequências do reconhecimento dessas origens são analisadas

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e expostas com rigor, em detrimento dos confortáveis lugares-comuns da filosofia das Luzes. Ao mesmo tempo, o retorno a Rousseau, ao alertar os antropólogos sobre as origens de sua ciência numa certa filosofia, tem a função de protegê-la contra eventuais armadilhas metafísicas, em que poderia cair por falta de reflexão ou por desconhecimento de causa.

BIBLIOGRAFIA

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______1986. C. Minhas palavras, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense.

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Prado Jr., B. 2008. A retórica de Rousseau, São Paulo, CosacNaify.

Rousseau, J. J. 1981. Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, ed. Braunstein, Paris: Nathan.

NOTAS

1. Lévi-Strauss, “Structuralisme et écologie”, in: Le regard eloignée, Paris: Plon, 1983, p. 165. 2. Lévi-Strauss, Le regard eloignée, p. 07. A citação é extraída do cap. 08 do Ensaio sobre a origem das línguas. 3. Lévi-Strauss, Tristes trópicos, tradução Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 368 – 69. Diderot voltará a ser alvo de Lévi-Strauss em Olhar, escutar, ler. 4. Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56. 5. Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56. 6. Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, Paris, PUF, 1962, pp. 147 – 149. 7. Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 149 ; 142 – 6. 8. Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, p. 54. 9. Bento Prado Jr., A retórica de Rousseau, São Paulo, CosacNaify, 2008, pp. 320 – 21. 10. Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

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11. Lévi-Strauss, Minhas palavras, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 142 – 43. 12. Cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 197. 13. Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, ed. Braunstein, Paris: Nathan, 1981, nota j, p. 118. 14. Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, pp. 45 – 56. 15. Lévi-Strauss, Tristes trópicos, p. 299. 16. Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, pp. 146 – 47. 17. Lévi-Strauss, Mitológicas, II: Do mel às cinzas, tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Paulo: CosacNaify, 2007, pp. 284 – 5. 18. Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité, parte II, §§ 04 – 05. O § 05 é citado por Lévi-Strauss em Le totémisme aujourd’hui, Paris : PUF, 1962, p. 147. O § 04, igualmente importante, embora omitido, é pressuposto. 19. Lévi-Strauss, Mitológicas I: O cru e o cozido, tradução Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: CosacNaify, 2006, pp. 200 – 201 (“Kayapó-Gorotire: Origem das plantas cultivadas”; cf. ainda M92). 20. Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 146.

RESUMOS

Trata-se de examinar como Lévi-Strauss, apoiando-se em Rousseau, avalia a situação da filosofia frente às ciências humanas, etnologia à frente. Decidindo-se pelo diagnóstico de que a filosofia estaria um pouco obsoleta, Lévi-Strauss não deixa, porém, de retornar a ela, num exercício ambíguo de demarcação de fronteiras.

The text discusses Lévi-Strauss diagnosis of the obsolence of philosophy so as to show that his own conception of ethnology as the leading human science is as such a formo philosophical reflection.

ÍNDICE

Keywords: philosophy, anthropology, Rousseau, Lévi-Strauss Palavras-chave: filosofia, etnologia, Rousseau, Lévi-Strauss

AUTOR

PEDRO PAULO PIMENTA

Universidade de São Paulo; CNPq

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Pajelanças indígena e cabocla no Baixo Amazonas/AM e suas implicações a partir de questão histórica

Renan Albuquerque Rodrigues, Deilson do Carmo Trindade, Ignês Tereza Peixoto Paiva e Raimundo Dejard Vieira Filho

Breve historicidade do problema

1 Aos primeiros contatos no século XVI, a Amazônia surpreendera navegantes com a população de índios vivendo em povoados extensos. Notícias de grandes aldeias nas margens dos rios, descritas pelos viajantes, dão conta da existência de sociedades estratificadas, com produção de excedentes e comércio intertribal (Loureiro, 2007).

2 Neves (2006) e Prous (2007) apontam para o fato de que a região amazônica nunca foi vazio demográfico, inapropriada para o desenvolvimento de concentrações humanas. Indicam a existência, no Baixo Amazonas, da ilha Tupinambarana, onde hoje é o município de Parintins, Estado do Amazonas, avaliando-o como densamente povoado1.

3 Sobre os Tupinambá, que aparecem em relatos a partir do século XVII, povoaram territórios situados entre os rios Madeira e Tapajós. Porro (1992) escreve que Cristóbal de Acuña relatou a ilha de Tupinambarana como povoada pelos Tupinambá, oriundos de Pernambuco, de onde fugiram dos portugueses, que subjugaram 84 aldeias na região. A partir do nordeste, teriam migrado para a Amazônia meridional, chegando à Bolívia, retornando pelo rio Madeira e fixando-se na ilha.

4 É possível considerar movimentos messiânicos que trouxeram os Tupi em levas para a Amazônia. Cerqua (1980) sugere que a chegada dos Tupinambá em movimento migratório a partir de 1600 gerou ocupação no Baixo Amazonas (fronteira do Amazonas com o Pará), criando submissão ao domínio dos que habitavam a região. Fernandes (1989) afirma que os Tupinambá encontraram as etnias Aratu, Apocuitara, Yara, Godui e

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Curiató vivendo na localidade. Houve o avassalamento deles e depois ocorreram uniões sexuais.

5 Vainfas (1995) diz que a saída de índios do litoral para o interior se inscreve na ideia da busca da “Terra sem Males’, difundida pelos Caraíba. Bittencourt (1924) afirma que os Tupinambá se fixaram na ilha, antes denominada de Maracá, a partir de retorno do Peru, devido a perseguições. Os Sapupé e Maués também residiram no lugar onde hoje é a cidade de Parintins, um pólo do Baixo Amazonas (Bittencourt, 1924). Os Maués são os atuais Sateré-Mawé, também conhecidos como Andirá ou Maraguá, e que vivem na área Tapajós-Madeira (Uggé, 1994). Outrora eram identificados por Maooz, Mabué, Jaquezes, Manguases, Mahués, Mauris, Mawé, Maraguá ou Maraguazes, e tinham ligação cultural com os antigos Tupinambá.

6 Parintins é a área onde a concentração indígena influenciou costumes e saberes, contribuindo para o atual status de etnoconhecimento compartilhado: O etnoconhecimento pode ser identificado como um conjunto de saberes e técnicas existentes nas sociedades ditas primordiais, indígenas, rústicas, rurais e tradicionais, percebido como acervo de elementos constitutivos de suas etnicidades, em oposição ou distantes daquelas reconhecidas como típicas e distintivas das sociedades eurocêntricas e racionais modernas de tipo ocidental (Pinto, 1995: 185).

7 Dentre os Tupi que ocuparam o Baixo Amazonas, havia os Parintintin (Cerqua, 1980) que deram origem ao nome da serra e posteriormente à cidade de Parintins. Pela ferocidade e inimizade, foram expulsos e retiraram-se para o rio Madeira. Eles foram aldeados pelos jesuítas na serra, onde se rebelaram contra a catequização, queimaram casas, destruíram igrejas e fugiram para a floresta (Souza, 1873).

8 Os Parintintin, inimigos dos Mundurucu, que os chamavam de Pariring-ring, viviam na região dos rios Tapajós, Madeira e Maués. Entretanto, há relatos da passagem pela serra de Parintins, e que de lá regressaram para o lugar de origem (Saunier, 2003). Por fim, após séculos de ocupação e desocupação de lugares, etnias que circulavam pelo Baixo Amazonas desapareceram e voltaram a surgir na ilha Tupinambarana.

9 Aos dizimados ou destribalizados, restaram descrições etnográficas e impressões nem sempre fidedignas. Com isso, parte do conhecimento foi interposta com a entrada no Baixo Amazonas de aventureiros, viajantes e cronistas. Tratou-se de complexa reafirmação da sociocultura indígena em função da construção da mestiçagem do caboclo (Cascudo, 1944) – mistura de branco com índio.

10 Tomando como base a historicidade, o artigo pretendeu refletir acerca de implicações e impactos na construção de saberes concernentes a práticas de pajelança cabocla e indígena na região hoje difundidas. Considerou-se que entendimentos ressignificados sobre saberes e fazeres tenderam a influenciar espiritualidades envolventes na preparação de pajelanças indígena e cabocla (Castells, 1999; Hall, 2003).

Os pajés, as religiosidades

11 Ao problematizar a prática da pajelança, infere-se que a partir do processo de ritualização é possível ponderar sobre hierarquias formadas entre pajés – fato que define a atuação deles no cotidiano (Cardoso de Oliveira, 2006). Mauss (1974), nesse caminho, discute a figura do mágico como agente de rituais mágicos, o que, na visão de

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Oliveira (2006), trata-se de processo de iniciação fundamental para a preparação do outro simbólico que incide durante o ritual.

12 Geertz (2008, 2009), sobre o tema, sublinha que aparições de qualquer espécie se dão porque pessoas tendem a manter representações com o divino enquanto seres imersos em símbolos e significados a permearem relações com o outro e o tempo. De modo que cabe a suposição no fato de que parcela das práticas xamânicas na Amazônia foi denominada pajelança cabocla a partir da fragmentação da pajelança indígena com o controle da colonização.

13 A construção da pessoa, a culminar no processo de incorporação mediúnico xamânico, foi alterada significativamente. Além disso, a presença de grupos do continente africano e de matrizes cristãs, que adentraram em comunidades indígenas com densidade de ideologias ocidentais, impactou a mistura de práticas espirituais segundo nomenclaturas ocidentais, alterando a sincronia com o mundo espiritual.

14 A tipologia “pajelança cabocla” foi constituída e passou a dizer respeito a um emaranhado de práticas mágicas baseadas no poder de pajés ou xaboris em conjuntura ao processo de colonização e incorporação de ações icônicas a rituais. Variadas foram as definições que passaram a identificar o suposto: a mais geral percebeu-se pelo poder que iniciados tinham em fazer intermediações na relação com o mundo desencarnado (Galvão, 1995).

15 Sobre o tema, no tocante aos Tupinambá, Carneiro da Cunha (1998) diz que o florescimento do xamanismo caboclo em sua área de domínio deu-se quando “engrenagens do sistema mundial” geraram ameaças à etnia. Almeida (2003), ao resenhar Viveiros de Castro (c.f. 2002), sublinha que o processo ocorreu na medida em que ameaças históricas fomentaram a cadeia dominial da espiritualidade dos nativos e tenderam a basear o fortalecimento da ontologia da predação ameríndia entre não indígenas.

16 Esta última proposição é controversa, porque apesar de ter sido objetivada a partir de atos colonizadores violentos, criva-se como positiva. Langdon (2012) aposta no afirmado ao interpretar a invasão de territórios tradicionais na Amazônia, fazendo referência ao afetamento de grupos locais antes não alinhados às práticas xamânicas a partir do reposicionamento de relações metafísicas construídas no decorrer histórico. O fenômeno da colonização alterou fatores implicados em redes de xamãs e moldou espiritualidades no plano da pessoa não indígena.

17 O conceito de espiritualidade xamânica tende a apontar para sínteses conjuntivas entre o humano e o não humano (Viveiros de Castro, 2006). Enquanto prática, o xamanismo se estabelece como meio para se expandir a atenção, a percepção, a cognição e a consciência em meio a ligações extraterrenas com o cosmos místico para se dispor de dados com significado amplo acerca tanto de coisas do mundo quanto de referências fora dele (Ib., op. cit.; Kripnner, 2007).

18 Por vocação compulsória, a pajelança indígena moldou a força imanente da pajelança cabocla. Nas trocas de saberes com povos não indígenas na Amazônia foi situado esse fenômeno dinâmico, de características simbólicas determinantes e organizadoras do cotidiano espiritual de não indígenas, por meio do qual se dão até hoje expressões ideológicas de povos do bioma, compreendem-se atos e são representados acordos em função de contextos socioculturais.

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19 A espiritualidade, seja indígena ou cabocla, ao ser marcada por rituais espirituais de pajelança, instrumentaliza situações para que pessoas sejam formadas no decorrer de estruturações simbólicas e imateriais. São dois modelos de identidade xamânica marcados por caráter pedagógico e doutrinador, identificados por conhecimentos obtidos com práticas de cura, benzimento, adivinhação e premonição, definidas por comunicações construídas segundo visões cosmológicas (Gennep, 1978).

20 Sobre esse reposicionamento da noção de pessoa em conexão com o divino, infere-se que significações foram formadas ao ponto em que a essência dos sujeitos foi carregada de sentidos não só impostos, mas também escolhidos, dialogados e ponderados pelos próprios não indígenas. Estes passaram a assumir identidades de acordo com cenários e interlocutores diferenciados, multidiversos, dependendo de circunstâncias em que se inseriam, o que repercutiu em cotidianos da espiritualidade coletiva (Oliveira, 2006).

21 Na região amazônica, onde se engendram concepções de mundo efetivadas em misturas de crenças, com trânsitos entre o humano e o animal, a pajelança é entendida como sistema religioso (Arenz, 2000; Celeste, 2004). Se muitas vezes assume-se que concepções espirituais moldam o universo mítico da região, a aceitação de pajés se evidencia por sofrimentos vividos no decorrer da preparação da própria pessoa xamânica em função de seu contato com não humanos (Lévi-Strauss, 2003).

22 Cultural e simbólico (Bourdieu, 1989) na prática da pajelança são marcados por complexidades que envolvem construções sociais cuja manutenção é fundamental para a perpetuação de determinada sociedade via interiorização da cultura por membros da mesma, tendo a existência remetida a diferentes formas simbólicas de interpretações sobre processos de adoecimento e cura, com sentidos espirituais, religiosos, mágicos ou míticos.

23 Pajés indígenas e pajés caboclos, detentores de saberes para projeções, têm importância porque há confiança essencial no poder de seus trabalhos, incutida a partir de herança dos antigos Caraíba Tupinambá, que para Vainfas (1995: 13-14) eram “homens considerados especiais, que tinham o poder de conversar como os mortos, os espíritos dos ancestrais”, que desconcertaram portugueses os quais erroneamente chamaram a manifestação de santidade.

24 No cerne desses posicionamentos, religiosidade e saber tradicional que resistiram ao domínio e à exterminação dos povos indígenas recriaram elementos a partir da introdução de tendências religiosas, fortalendo a pajelança cabocla. A prática se integra em contextos de relações sincréticas, via misturas de papeis em que pajés e curadores podem ser também cristãos católicos devotos e ao mesmo tempo presidirem sessões xamânicas.

25 No Baixo Amazonas, a procura de práticas naturais de cura simbólica é rica herança da tradição indígena, que, aliada com a dificuldade de acesso a médicos não tradicionais – recorrência em cidades do interior amazônico – tem concorrido para que procedimentos sobrevivam com a força de representantes, mesmo com o gradativo avanço de fármacos industrializados e da medicina laboratorial (França, 2002).

26 Em comunidades caboclas onde se praticam trabalhos espirituais de pajelança, há influência da cultura mágica indígena no trato e também da cultura do negro e do branco. Inserem-se elementos conjuminados da afrodescendência e do marco judaico- cristão às atividades dos xamãs indígenas, que dão vida também à pajelança cabocla. Segundo Wagley “até hoje podem se encontrar pajés entre populações mistas da

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Amazônia” (1988: 227). Eles se encontram em comunidades rurais, pequenas cidades e bairros operários de Manaus e Belém.

27 A atividade exercida nessa conjuntura se propõe a resolver casos de origem inexplicada, feitiços, contrafeitiços, eliminação de dores, casos afetivos e de devolução da boa sorte no Baixo Amazonas. Assim como se dá nas metrópoles dos dois Estados citados, massagens, sopros de fumaça de tabaco sobre o corpo do doente e extração de espinhos – osso, pedra ou pequenos animais introduzidos no doente pelo espírito ofendido – são atividades da curanderia cabocla que também estão em uso em ações espirituais indígenas (IB., op. cit.).

28 Presume-se que após cinco séculos de presença do cristianismo e influências do continente africano no cotidiano, a pajelança indígena passou por angulações que naturalmente geraram diversidade de práticas na pajelança cabocla. Poderes sobrenaturais são exercitados em comunidades rurais e ribeirinhas da Amazônia, com adornos de santos combinados com velhos espíritos da selva. O pajé dança, canta e pode carregar tanto ervas, penas ou crucifixo (Gondim, 1925).

29 A religiosidade e o saber tradicional podem ser percebidos em ritos atuais exercitados na região de Parintins, a saber no barracão de umbanda da mãe Bena, de matriz africana, ou no quarto de reza do benzedor Torquato, de linha indígena. Uggé (1994), ao se referir aos Sateré-Mawé, afirma “que sua expressão religiosa está constituída a partir de sincretismo que tem matrizes no animismo primitivo, espiritismo, afro-brasileiro e na fé cristã” (p. 57). Há na primeira elementos da cosmovisão religiosa e da ética tribal.

30 Há procedimentos de cura e adivinhação em comunidades não indígenas que encontram fundamentos em antigos pajés que outrora habitaram a região. Esse conhecimento tradicional tem ganhado importância no campo da pesquisa, haja vista que não é rara a incorporação de saberes locais por outras culturas: Não é possível compreender em todas as suas consequências esse vasto, diversificado e complexo etnoconhecimento que se produziu ao longo de séculos anteriores e posteriores à conquista sem considerarmos suas dimensões cosmológicas, rituais, mágicas e simbólicas que habitam o mundo da vida das comunidades, no sentido de que todos esses significados, usos, técnicas e práticas são partes da totalidade cultural desses povos (Pinto, 1992: 187).

31 A atividade não convencional sobreviveu na marginalidade porque associava práticas de devolução da sanidade corporal e mental a rituais populares. A descrição feita da figura do pajé e da pajelança em ambientes não indígenas, representada de modo reconformado, indica a contribuição do saber tradicional na manutenção do equilíbrio da etnia com a natureza e os aspectos espirituais, concorrendo para a percepção de ritos e gestuais conectados.

32 O saber tradicional tende a se completar, em ambientes não indígenas, mediante a relação de terapeutas caboclos com imaterialidades cotidianas, a saber: folclore, paisagem, imaginação e sistema afetivo comum. Benzedeiros, rezadores, erveiros, puxadores, pegadores e sacacas iniciados na cidade vão além da interação com plantas medicinais. Eles praticam o curanderismo no dia a dia por gestuais e energização. O uso de ervas a partir do etnoconhecimento é componente instado no saber tradicional, assim como a palavra dita soma-se ao processo de relevação de tratamentos ao doente.

33 Plantas servem para fazer emplastros e têm poder de vivificar pessoas, tirando-lhes febres decorrentes da fuga da mãe-do-corpo. Para a restauração do equilíbrio, a pajelança cabocla procede à limpeza das energias negativas oriundas do enfermo

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diretamente do umbigo do paciente, depositando os males retirados em latrinas, fossas, esgotamentos ou terrenos baldios. A ideia de eliminar doenças em áreas onde são postos dejetos humanos pode ter correlação aproximada com a matriz híbrida dos amazônidas (Gomes e Pereira, 2004).

34 Nessa matriz, observam-se mostras de comportamento que sugerem ser conjuntos de males respostas parciais da Terra à capacidade de aprofundar relações com humanos no pós-morte e em decorrência do enterro do corpo. O comprometimento familiar no trabalho de devolução da carne e sublevação espiritual é caráter que fundamenta a eliminação de doenças aos que vivem.

35 Cascas, folhas, raízes e partes de ossos ou espinhas associadas a rezas em fundos de quintais estão presentes na preparação de chás, banhos e unguentos, além do uso de amuletos ameríndios de proteção contra fantasmagoria e encanto de rio. São exercícios tais que contemplam a formação dos enlevos próprios ao processo de espiritualidade exercido mais na pajelança indígena e menos na cabocla (Gurgel, 2010): São esses conhecimentos empíricos, incorporados no herbalismo e transmitidos de geração em geração, que caracterizaram as práticas médicas primitivas. Como todos os povos nativos dos trópicos, os brasilíndios souberam beneficiar-se da enorme diversidade da flora e fauna da sua terra. Os seus vastos conhecimentos da vida vegetal oriundos da sua familiaridade com as plantas capacitaram-nos a utilizar-se daqueles que possuíam propriedades medicinais (Id., op. cit.:61).

36 A crença no pajé se assemelha em muitos aspectos à fé cabocla no terapeuta popular, num sincretismo que intermedeia confiança imanente aos que procuram o trabalho de curandeirismo, de igual modo como ocorre na busca por poderes xamânicos entre aldeados.

Pajelança indígena e cabocla no Baixo Amazonas/AM

37 No Baixo Amazonas, mesorregião do Estado do Amazonas, a leste de Manaus, aspectos universais que dizem respeito a crenças em magia e incorporação são ligados à universalidades do ecossistema amazônico. Não se pretende focar em determinismos ecológicos, mas de propor ênfase na estreita ligação da natureza com o saber local, implicando em diferenciação dos locais ante demais curadores ou curandeiros existentes em regiões do Brasil. Os elementais terra, fogo, água e ar são preponderantes na vertente (Wagley, 1988).

38 Flora e fauna amazônicas influenciam o imaginário popular. Seres aquáticos e criaturas mitológicas, mescla de pessoa e bicho, alimentam simbolismos nesse sentido. Maués (1994) fala em encantados, seres incognoscíveis, representados por formas terrenas não convencionais, manifestos de diferentes maneiras enquanto figuras subaquáticas, reveladas em espécies de peixes, cobras, botos ou arraias. A crença em encantados é fundamentação da pajelança cabocla, popular na Amazônia rural e praticada por populações não indígenas.

39 Terapeutas populares, como pajés, curam e indicam procedimentos que julgam indispensáveis para libertar a pessoa de males que a afligem. Maués e Villacorta (1995, 1998) descrevem o ritual xamanístico contendo três elementos: humano, místico e material. O primeiro inclui um curador; o elemento místico inclui um deus, santo ou encantado; e o terceiro elemento acrescenta canto, dança, chá, pena, maracá, rede e cigarro.

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40 A pajelança cabocla é influenciada por quatro vertentes: indígena, cristã, africana e espírita. Na primeira, há particularidades no uso da natureza e serviços de reza étnica; na segunda, dá-se relação de santos católicos e ritos do cristianismo; a terceira serve à intervenção incorporada de entidades; e a quarta viabiliza a encarnação de animais como almas sábias. Nos quatro atos, podem participar encantados, onças, macacos, cutias e urubus, principalmente, via representação em pessoas. Os seres aquáticos fizeram viagens e aprenderam mistérios sobre a fluidez da correnteza e a voluptuosidade de formas imersas. Os da terra almejam carnes e sangues para fortalecimento.

41 Na pajelança cabocla, santos são representados por imagens. Encantados e animais da terra não possuem essa forma de representação, mas aparecem em ritos como bichos transportadores de pessoas divinas. São denominados de ocaras ou caruanas, criaturas surreais transmorfas, para quem se destinam orações porque sofrem metamorfose e transformam-se em animais que podem fazer males ou coisas boas, dependendo do merecimento da causa a eles invocada.

42 A afinidade de procedimento de pajés caboclos pode ser entendida pelo fato dos espiritualizados nos trabalhos não se identificarem como indígenas, negros, brancos ou mesmo caboclos, considerando-se curadores ou sacacas iniciados. A pajelança cabocla se distingue da indígena, pois mesmo tendo se originado na religiosidade dos tradicionais “hoje se integra em um novo sistema de relações sociais, que incorporou crenças e práticas católicas, kardecistas e africanas” (Maués, 1994: 75).

43 O crédito da pajelança cabocla, em ampla medida, “reside na figura do encantado. Apesar de haver variações nas crenças de região para região da Amazônia” (Maués e Villacorta, 2004: 17). Pode-se entender como variante da pajelança cabocla a própria atuação de terapeutas populares que se utilizam do saber local e das crenças compartilhadas para combater feitiços de encantados, o que não é algo incomum em municípios do Baixo Amazonas.

44 Elemento evidenciado na pajelança cabocla – e que nem sempre está presente na pajelança indígena – diz respeito à panema, termo que para Galvão (1995:81), “passou ao linguajar popular da Amazônia com o significado de má sorte, desgraça, infelicidade e incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas, e para quais existem processos apropriados”. Panema é espécie de inabilidade em relação a atividades do cotidiano, inclusive às produtivas. Não significa o recebimento de feitiços, mesmo que em alguns casos se acredite que o mal possa ter sido causado por feitiçaria. Pode-se contrair panema em razão de fatores costumazes.

45 A mulher menstruada pode passar panema a homens da caçada, pescadores ou agricultores. Ela, no período, é impedida de exercitar atividades produtivas em lavouras familiares ou transitar em ambientes de coletores/caçadores. A menstruação, um “período de azar” nato da mulher, causa o “chumbo frio” aos homens, ou seja, as balas da espingarda não acertam as presas e as tarrafas e malhadeiras voltam “magras” na pescaria.

46 E embora haja inúmeras possibilidades de se contrair panema, segundo terminologias amazônidas em geral, ela pode ser prevenida mediante identificação e enfrentamento espiritual, via banhos e defumações, podendo até mesmo ser utilizadas técnicas simples para eliminar o mal passageiro que, invariavelmente, é portado em alguns momentos da vida por mulheres em dias de suas regras (Colpron, 2005).

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47 Para se prevenir a panema necessita-se proibir mulheres grávidas de se alimentar de carne de caça; às menstruadas, impedi-las de manusear objetos e utensílios de caça e pesca; a homens ou mulheres, proibi-los de atirar ossos ou espinhas de peixe no quintal de casa, onde podem ser alcançados por animais domésticos. Nesse último caso, os ossos devem ser atirados na direção do sol poente, fim da tarde, para que, ao se pôr a luminosidade ela leve consigo a panema e devolva a sorte a parentes e caçadores.

48 O conjunto de comportamentos é apropriado quando se remete à sabedoria cabocla, diferenciando-se, porém, os hábitos indígenas para que indivíduos ou coletivos não sejam acometidos pela panema, má sorte identificada por indígenas como piema, mas com conceituação alterada porque possui componente de mal-estar físico na doença. Um dizer que está próximo, mas não se associada exatamente ao outro, mantendo-se as discrepâncias.

49 Na pajelança indígena, assim como na cabocla, usam-se de saberes para interpretar fatos reais, fenômenos e sonhos, comunicando-se com espíritos via procedimentos para proteger território e pessoas. A função de curandeiros índios e caboclos é ampla, incluindo a contrafeitiçaria para anular panemas lançadas, num diálogo com elementos da natureza para se viabilizar a descoberta das causas de doenças e quebrantos. Ambas as especialidades podem ser usadas em cerimônias para o malefício de outrem (Uggé, 1994).

50 No processo histórico de formação do Baixo Amazonas, a espiritualidade tem sido causa e resposta para doenças e males inexplicáveis, podendo ser o agente um homem ou uma mulher que, consciente ou inconsciente de infortúnios que geram via feitiços ou contrafeitiços, são responsáveis por prejuízos materiais e imateriais em múltiplas escalas.

51 O nível de aceitação e crédito de pajés caboclos pela comunidade urbana está relacionado a resultados positivos obtidos. Esses pajés podem obter hegemonia no seu bairro ou comunidade ou serem desolados por falta de resultados tanto porque atuam como decodificadores de doenças psicofísicas ou causa mortis, fenômenos naturais e infertilidade da terra, e se assim agirem serão respeitados. Se não, caem no esquecimento e se tornam xamãs de si mesmo, com atividades minimizadas ou ridicularizadas.

52 Assim como em aldeamentos étnicos, a pajelança feita em cidades não está livre da necessidade de resultados positivos. Esse crédito junto à população é o limiar na condução de trabalhos espirituais dos iniciados. Em Parintins, cidade mais populosa do Baixo Amazonas, com 70 mil pessoas na zona urbana, existem hoje cerca de 250 médicos tradicionais atuantes, conforme registro atualizado coletado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Ufam (PPGAS/Ufam), de acordo com levantamento preliminar.

53 A mediunidade na pajelança indígena, o potencial para a explicação de sonhos e a celebração de rituais propiciatórios de espíritos bons e maus fomentam a xamãs étnicos intermediações com o mundo extrassensorial. Em rituais de pajelança dos Sateré-Mawé no Baixo Amazonas, por exemplo, podem ser usadas penas de araras e maracás (chocalhos), adornadas por um pequeno bastão inserido em um fruto denominado amuncuré, que é agitado durante as cerimônias para ativar espiritualidades. Já a pajelança cabocla se utiliza mais de banhos, ervas, chás e rezas sincréticas, deixando de evocar cosmovisões geradas por alucinógenos.

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54 Yamã (2005) menciona o uso do paricá na pajelança indígena, mas não na cabocla. O paricá é uma erva alucinógena, extraída de planta do mesmo nome que, transformada em fumo, o tawary, é usada para chegar a estados de transe e possibilitar aproximações ao universo das entidades. A bebida-ritual não se configura como acessório. De fato integra representações dos Sateré-Mawé do Baixo Amazonas e reforça a ligação da etnia com espiritualidades memoriais.

55 Há igualmente o chá de marary na atividade indígena e não na cabocla. Também chamado de ka’apy, a bebida fomenta o encontro com entidades (Menéndez, 1982). Na pajelança indígena e também na cabocla combinam-se magia e conhecimento via revelações de espíritos que apresentam doenças e remediações até então secretas. Do lado do fazer tradicional, porém, a prática é uma forma estruturada da cura via ato ritualístico urutópiãg, tradicional crença espiritual indígena.

56 O ato oficializa outra diferença específica entre pajelança indígena e cabocla. No contexto dos índios, o urutópiãg é exercício fundamental para se mediar a interferência no mundo a partir do espírito curador da primeira mulher a existir na história da humanidade, anhyã-muasawyp, conhecedora de todos os remédios e rituais de pajelanças indígenas e alma mater primordial dos filhos e homens procriadores do mundo. Depois da morte de anhyã-muasawyp, seu espírito retornou e encarnou na sabedoria dos povos étnicos e não dos pajés caboclos.

57 No âmbito da pajelança cabocla, existem os payé’poxy, feiticeiros ocultistas, que usam a sabedoria de veia espiritual para praticar crueldades e mortificações a outrem. Estes afirmam ter herdado poderes de magia do antigo trio de peixes feiticeiros – mito de base indígena: jejú, matrinxã e sua esposa traíra, que existem desde o princípio do mundo e dá origem a feitiçarias conhecidas. Eles seriam progenitores de encantamentos maus dirigidos a encarnações terrenas.

58 Payé’rãnas podem ser homem e mulher por composição física andrógina. Possuem por natureza a identificação com a pajelança indígena, mas não a praticam espiritualmente apenas, mas também corporalmente. Essas personalidades restringem-se a usar conhecimentos de pajelança para a medicina tradicional, tendo clara angulação com os fazeres indígenas de parentesco. Mas ao fabricar remédios caseiros usando ervas e fazendo puxações em desmentiduras e rasgaduras – denominação regional para massagens localizadas – apresenta ação similar à pajelança cabocla. Payé’rãnas acessam espíritos e o trabalho assemelha-se a pajés ou sacacas urbanos, podendo tornar-se qualquer um deles, se assim quiser.

59 Na pajelança indígena pode-se perceber a relação de religiosidade presente nos rituais de cura; na cabocla a religiosidade é avolumada com sincretismos próprios de registros cristãos ou judaico-cristãos. A cura da alma, enfrentando doenças causadas por espíritos, exige encontro com o divino e nesse ínterim indígenas se apresentam com rigor. Via ritos e procedimentos, se conhece não apenas causa, mas também cura de males. Nos casos em que pajés caboclos tentam a melhoria do enfermo por reza ou benzimento, nem sempre a tiração do mal é incluída. Muitos são os casos em que pacientes passam a ser indicados a outros tratadores.

60 Na pajelança indígena, em geral, o xamã acende seu cigarro de tawary e aspira fortemente soprando fumaça inúmeras vezes sobre a cabeça do doente. Logo após, auxiliado por um ajudante, começa a entoar cantos sagrados em exaltação ao espírito protetor da pessoa. O ajudante por sua vez agita o maracá no ritmo da música entoada e

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dança ao redor da pessoa por muitas vezes. Então o pajé começa a rezar, pedindo que o espírito se manifeste e cure o enfermo (Pinto, 1995).

61 Na pajelança cabocla, o cigarro, seja de qualquer espécie, pelo fato do sincretismo com práticas católicas ter sido forte na região do Baixo Amazonas, não tem aceitação correlacionada ao uso indígena. O pajé pode consumi-lo em conversações antes ou depois da sessão de curanderia, mas no meio da atividade o fumo tende a não ser preservado como requisito.

62 Entre indígenas, a cura pode vir por meio da fumaça soprada sobre o doente, que é um dos pontos mágicos da sessão. Então, o ritual está completo a partir da finalização do benzimento. O pajé e a pessoa atendida sentem a presença do espírito benfeitor e seu poder é espantoso para o ato de cura, sendo que a presença da espiritualidade pode expulsar o demônio causador da enfermidade e assim sarar o mal.

63 Entre os caboclos, a bebida é mais importante. Ela é muito indicada como propedêutica para a pessoa enferma, a ponto de que i) quantitativo de dias da semana e ii) modo de preparação de chás e unguentos resultam em efeitos determinantes na cura, - a situação em que o doente é levado a se consultar, sendo o início da manhã e o final da tarde os mais cotados como melhores horas do dia, - e influenciam de igual forma no resultado dos trabalhos.

O benzimento nas pajelanças

64 Procedimentos de caráter espiritual praticados em pajelanças cabocla e indígena, denominados de benzimento, afastam males que rondam ou já se instalaram na pessoa, restabelecendo o bem-estar do espírito. Os males, que não são a doença em si, podem ser, no entanto, responsáveis por sucessivas doenças adquiridas a partir da inveja e ódio individual ou coletivo.

65 Pessoas que estiverem acometidas, por exemplo, por “roubo de sombra”, doença comum entre indígenas ou caboclos, só tendem a ser consideradas curadas quando benzidas exclusivamente a partir de pajelança étnica, e não cabocla, em ritual de restabelecimento espiritual. Nesse caso, sacacas aldeados ou urbanos são chamados a exercitar os poderes para devolver a sombra do paciente. Sessões que duram de três a cinco dias, em tempos esparsos, são realizadas em atividades xamânicas de devolução de sombra.

66 Roubo de sombra pode ser entendido como estado psicofísico em que um mal-estar crônico faz refém a pessoa, infligindo-lhe dores corporais, desfiliação mental, distúrbios agudos de humor, com situações limites de bipolaridade e ânsia de suicídio. A pessoa que sofre de roubo de sombra é vitimada pela própria contingência do existir. O sentido da constituição da pessoa se perde com a retirada compulsória da sombra.

67 Em forma de duelo de orações, em que bem e mal são representados, o benzimento do pajé indígena, o sacaca, não apenas devolve o que foi retirado, mas protege a pessoa de novo roubo de sombra e afasta venenos interiores que possam ainda estar circulando no sangue, mas não ativos, como uma toxina a ser liberada a qualquer momento. Como na cura espiritual, o pajé indígena utiliza o tawary e o caboclo – que pode até ajudar nas sessões, mas não lidera o trabalho xamânico – reza com chá ativo de ervas saracura- mirá.

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68 Nestas sessões em que há a figura do ajudante, ambos não entoam cantos sagrados em voz alta, apenas rezam – não para o espírito protetor do doente, mas ao seu próprio espírito, para que lhe guie e ajude a fazer a cura certa. O pajé caboclo segue as rezas ordenadas pelo pajé indígena e mantém obediência e atenção às atividades mediúnicas do colega, sem fazer interferências. A concentração individual é o que orienta esse tipo de atendimento.

69 Outra forma de cura exercida via benzimento é aquela feita através das ervas e técnicas, o que não se configura como ritual espiritual. É uma prática da medicina caseira, dos pajés caboclos, sobretudo, e bem menos de indígenas, fundamentada no saber tradicional e efetivada em casos de enfermidades simples de se tratar, mais comumente entre doenças típicas de urbe, como viroses e pneumonias leves. Outros males notados de serem tratados são febres, dores no corpo, desmentiduras2 e dores de rasgadura3.

70 Crianças e mulheres são as principais pessoas que recebem tratamento oriundo de males relacionados a indisposição, vômitos e mal-estar. Homens são atendidos prioritariamente em casos de rasgadura e desmentidura de músculo. Recolocação de osso em articulações e remoção de pequenos tumores são benefícios que dependem da situação do enfermo. Se houver gravidade, técnicas de alteração de atenção, resfriamento ou esquentamento da pele que recobre o ferimento são usadas.

71 Sejam payés, payé’poxys ou payé’ranas, de tipologia xamânica indígena ou cabocla, eles são responsáveis por conjunturas harmônicas espirituais e sociais na comunidade. A missão confiada a eles é ritualizar curas, identificar remédios que amenizem dores, com atitudes ponderadas por fraternidade e comunalidade coletiva. Cabe a esses iniciados orientar acerca de resguardos, banhos frios e serenos4 para grávidas e jovens mães, além de moderar sobre o consumo de alimentos e a partilha de fazeres na localidade.

72 É na pajelança, tanto indígena quanto cabocla, que se buscam respostas sobre vida e morte. É por meio delas que ocorrem vinculações da medicina indígena com a magia urutópiãg. Essas pajelanças, hoje, conservam costumes e fomentam respeito e confiança em tradições – sendo que a força bélica do colonialismo e a pressão da igreja contra os ritos endossaram em certa medida os fazeres míticos, sobretudo a partir do momento em que padres católicos entenderam que o sincretismo os ajudaria a fixar a fé cristã entre povos étnicos no Baixo Amazonas.

73 Acerca do suposto, cabe refletir que, na história, supressões de saberes e imposições culturais inferidas no início do artigo, nesse âmbito, tenderam a concatenar a constelação de rezas e credos que hoje se percebe no contexto da fronteira entre Amazonas e Pará (Baixo Amazonas), em áreas rurais e urbanas. Seja na pajelança cabocla ou indígena, a conformação ideológica foi assentada de modo a conjugar valores e costumes.

74 De forma que a perspectiva foi apresentar uma mostra do universo de saberes tradicionais da Amazônia a partir de etnoconhecimentos identificados em procedimentos de cura e terapia. Procurou-se reunir elementos da prática do saber indígena que podem ser observados na atualidade, remetendo-se a experiências e práticas que persistem na sociedade contemporânea do Baixo Amazonas identificadas como pajelança cabocla.

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Considerações finais

75 A expectativa com a proposta é ter contribuído para a discussão no âmbito de saberes simbólicos amazônicos, principalmente aqueles que se referem a povos tradicionais e caboclos, refletindo e analisando vieses da cura indígena ou cura via terapeutas caboclos.

76 Estudar crenças espirituais revelou-se trabalho direcionado, cujas leituras de Gurgel (2010) e Wagley (1988) possibilitaram orientar, via reflexões sobre semelhanças ou diacronias existentes nas práticas, quais atuações ocorrem em variadas situações, como “olhado de boto”, “mãe do corpo”, “roubo de sombra” ou a já referida “panema”.

77 Na medida em que se pretendeu descrever comparações entre a pajelança cabocla e a indígena, a intenção foi projetar referências a denominações cotidianas feitas por moradores da área pesquisada e praticantes de benzimentos em geral. Procurou-se identificar vieses de diferenciações segundo atividades de iniciados caboclos e indígenas. Entre práticas e similaridades, considerou-se perspectiva histórica e orientação individual dos benzedores.

78 Nessa orientação, tomou-se a liberdade de observar experiências de sofrimento mental que tenderam a ser relatadas por povos étnicos e rurais/ribeirinhos (os denominados caboclos) da Amazônia, os quais foram consultados por pajés em algum momento de suas crises, tivessem sido elas fracas, médias ou fortes. A incursão foi feita a partir de observação do contexto social revelado por indivíduos consultados por profissionais de psicologia, psiquiatria e serviço social da Casa de Atenção à Saúde Indígena (Casai) de Parintins.

79 Micro-localidades fronteiriças foram abordadas em campo e pretendeu-se, a partir dessa ação, inferir sobre a possibilidade de extensão de resultados para outras regiões de fronteira Amazonas-Pará mais extensas, como a divisória de Nhamundá/AM com Faro/PA, duas cidades pequenas amazônicas com distinções efetivas.

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NOTAS

1. Ver História dos Índios no Brasil organizado por Manuela Carneiro Cunha, publicado pela Companhia das Letras em 1992. 2. Lesões ortopédicas e musculares. 3. Lesão sentida interiormente, sem ferida aparente, cuja sensação é de que algum músculo ou órgão está se rasgando. 4. Orvalho noturno.

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RESUMOS

O artigo almeja mostrar a influência das práticas de cura dos povos indígenas a partir de saberes tradicionais adaptados e evidenciados atualmente em etnoconhecimentos de populações amazônicas. Foram exploradas experiências junto a terapeutas populares da cidade de Parintins/ AM, em razão da ressignificação efetivada a partir de marcos indígenas da região do Baixo Amazonas, Amazônia Central. Buscou-se suscitar o diálogo dos saberes tradicionais com o científico, para se pensar e refletir no rumo e na necessidade da valorização do saber local.

This article explores the influence of indigenous healing practices adapted from traditional knowledges and currently embodied in amazonian etnoknowledges. Experiences from popular therapists of the city of Parintins/AM are discussed in the light of the redefinitions framed by signs of indigenous populations from the Middle Amazon River region. A dialogue between traditional and cientific knowledges is presented, in order to highlight the need for a appreciation of local knowledges.

ÍNDICE

Palavras-chave: conhecimento tradicional, rituais de cura indígena, terapeutas populares, Baixo Amazonas, Amazônia Keywords: traditional knowledge, indigenous healing rituals, popular therapists, Middle Amazonas State, Amazonia

AUTORES

RENAN ALBUQUERQUE RODRIGUES

Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPSCA/Ufam). Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq). [email protected].

DEILSON DO CARMO TRINDADE

Historiador. Doutorando do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA/Ufam).

IGNÊS TEREZA PEIXOTO PAIVA

Pedagoga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA/Ufam).

RAIMUNDO DEJARD VIEIRA FILHO

Sociólogo. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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Ensaios fotográficos

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São Francisco: arte urbana e história San Francisco: street art and history

Caroline Kwasnicki Pereira

1 Pela Rua São Francisco, localizada no Centro Histórico de Curitiba-PR, já se foram tantos passos que carregam as mais diferentes histórias. O presente ensaio fotográfico “São Francisco: arte urbana e história” teve como objetivo refletir sobre os temas fotografia e memórias, retratando, para isso, elementos do cotidiano, mais especificamente o grafite. Um conjunto de fotos que busca retratar a arte urbana, no contexto do cotidiano e resgate histórico da rua, e que propõe o apreender de novos sentidos perante as obras. Um evento extra cotidiano que modifica positivamente o cenário urbano e ainda possibilita a criação de novas experiências e a formação de novas memórias. São fotografias que buscam retratar o grafite como obra de arte urbana e a relação dos artistas em meio a esse processo artístico.

2 A rua está no coração da cidade, sendo assim, uma das mais tradicionais e antigas de Curitiba. Em 2013, a rua passou por uma revitalização, que buscou, além de preservar suas histórias, trazer melhorias para a região. O Projeto “Arte Urbana Memórias de Curitiba”, através do evento “Rua São Francisco - Histórias e Memórias” foi uma realização da Associação Comercial do Paraná (ACP) e produção executiva da Mucha Tinta, que teve como objetivo colorir as portas dos comércios do local, promovendo e valorizando a região. Assim, esta realização instigou o desenvolvimento do presente projeto fotográfico no qual se buscou priorizar a arte urbana, que tem muito a dizer sobre história, memórias, em meio ao cotidiano de milhares de pessoas. Refletiu-se sobre o fotografar, entendendo antes disso, a fotografia a partir do próprio sentido da palavra, que “vem da junção das palavras gregas photos, que significa luz e grafia, que quer dizer escrita ou maneira de escrever. Fotógrafo é o indivíduo que escreve por meio da luz – ou da ausência dela” (MOLETTA, 2009, p. 69).

3 Para isso, o ensaio buscou apresentar imagens da abertura do evento, do momento em que as portas começaram a ser pintadas, bem como algumas obras finalizadas com seus respectivos autores. Pensando sobre a arte e a história dessa rua que foi revitalizada e colorida por artistas contemporâneos nos remete à obra de Philippe Dubois “O ato fotográfico e outros ensaios” (2001), uma vez que a fotografia, seja de ruas ou de

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pessoas, de obras de arte ou de fatos jornalísticos, está constantemente transmitindo e produzindo sentidos, nos mais diversos contextos.

4 Tal proposta busca compreender e transmitir para os leitores do ensaio fotográfico que esse espaço da cidade pode ser visto como uma galeria a céu aberto, pela qual cada pessoa que ao passar e por um instante, num olhar mais atento às portas pintadas, ou as fotos produzidas, irão construir novas histórias e memórias, como afirma Dubois, “Uma foto é sempre uma imagem mental. Ou, em outras palavras, nossa memória só é feita de fotografias” (DUBOIS, 2007, p. 314). O sentido construído pelo ensaio fotográfico perpassa a valorização do trabalho dos artistas locais e da arte urbana curitibana, promovendo o interesse nas pessoas em conhecer a região e as obras realizadas.

5 As fotografias eternizam os momentos, registram o cotidiano e podem carregar muitas histórias e memórias, como as da Rua São Francisco, que serão perpetuadas pela galeria a céu aberto, e através de seu registro nas fotos apresentadas.

Uma proposta de arte diferenciada e especial. Pinturas das portas de aço promovem o resgate histórico. Caroline Kwasnicki

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Pinturas das portas de aço promovem o resgate histórico. Caroline Kwasnicki

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Caroline Kwasnicki

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Caroline Kwasnicki

Caio Beltrão prestou uma homenagem às pessoas anônimas, que ao longo da história, construíram a identidade diurna e noturna do local. De dia as lojas e restaurante movimentam a rua; à noite, os bares trazem a boêmia. Caroline Kwasnicki

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O ilustrador Guilherme Caldas buscou retratar a bicicleta em seu painel. Uma opção de transporte cada vez mais utilizada e incentivada, que existe há tempos nas ruas curitibanas. Caroline Kwasnicki

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O artista Luiz Fuja buscou retornar ao passado com um estudo sobre mosaico e azulejaria do século passado. Para ele, cada desenho é único e pode ter várias interpretações, motivando as mais diferentes pessoas que passam pela rua, com lembranças peculiares e especiais do passado. Caroline Kwasnicki

Caroline Kwasnicki

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MOLETTA, Alex. Criação de curta-metragem em vídeo digital: uma proposta para a produção a baixo custo. São Paulo: Summus, 2009.

AUTOR

CAROLINE KWASNICKI PEREIRA

Graduanda em Comunicação Institucional da UTFPR

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Tradução

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Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França Compassion and Repression: The Moral Economy of Immigration Policies in France

Didier Fassin Tradução : Gleicy Mailly da Silva e Pedro Lopes

NOTA DO EDITOR

Esta tradução foi revisada por Tiago Miranda, tradutor e graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica. [email protected] O artigo foi publicado originalmente na Revista Cultural Anthropology, Vol. 20, No. 3, p. 362-387, agosto de 2005. Uma versão substancialmente revisada foi recentemente incluída no livro La raison humanitaire (Éditions du Seuil) que será traduzido em breve para o português pela editora Unicamp.

1 “Conciliar a ajuda humanitária aos refugiados com a recusa à imigração clandestina: tal é a intenção do prefeito – que, no entanto, reconhece as dificuldades em encontrar um ponto de equilíbrio”. Assim foi publicada a manchete de um jornal local no norte da França (Nord Littoral, 1999e). Uma repressão compassiva: este poderia ter sido o oximoro usado para definir o programa político deste dedicado, mas indulgente representante do governo de esquerda francês. O artigo referia-se ao dilema com o qual as autoridades nacionais estavam se confrontando: centenas de imigrantes do Kosovo, Curdistão e Afeganistão estavam fugindo da opressão em busca de asilo na Grã- Bretanha. Invariavelmente custosas (com contrabandistas cobrando entre 500 a 1.000 dólares para cruzar o canal), essas viagens também ofereciam risco de vida, como no caso de pessoas em busca de asilo que caíram de vagões dos trens da Eurostar ou morreram de asfixia em containers. Esperando fazer essa travessia, os “candidatos para

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a Eldorado britânica” (Nord Littoral, 1999d) estavam acampados em um parque no coração de Calais, onde muitos moradores protestavam contra a transformação de sua cidade em um “funil de miséria” (Nord Littoral, 1998) da Europa Ocidental. Ao mesmo tempo, outros haviam formado uma organização não-governamental (ONG) para reivindicar “refúgio a qualquer preço” (Nord Littoral, 1999b) para estes estrangeiros desafortunados que estavam desprovidos de tudo.

2 Uma semana depois, o Estado parecia ter feito sua escolha entre alternativas contraditórias e o jornal citava o subprefeito dizendo que dali em diante iria “mudar [sua ênfase] do humanitarismo para a segurança” (Nord Littoral, 1999a). Para um observador da cena local, esta retórica tanto respondia quanto revertia uma mudança na política dos últimos três meses, ao afirmar que “depois de anunciar a securitização, havia chegado o tempo da humanização” (Nord Littoral, 1999d). Mas os tempos haviam mudado. A polícia havia expulsado os imigrantes sem documentação do parque e detido mais de 200 deles. No entanto, o uso da força tinha que ser contrabalanceado por medidas mais humanas, e o governo decidiu abrir um “refúgio” mantido pela Cruz Vermelha Francesa (Nord Littoral, 1999c). Ironicamente, tanto a mídia quanto a população local passaram a se referir aos imigrantes como “refugiados”. Contudo, este termo indicava sua situação residencial e sua condição universal em vez de um status legal que as autoridades estatais não estavam propensas a lhes conceder. De fato, as pessoas prefeririam procurar status de refugiados na Grã-Bretanha onde suas redes funcionavam melhor e onde as provisões sociais eram mais favoráveis.

3 O Centro Sangatte, um galpão em desuso de 25 mil metros quadrados (aproximadamente 30 mil jardas quadradas) a poucos quilômetros de Calais, foi aberto no dia 14 de agosto de 1999. Logo se tornou conhecido como um campo de trânsito, pois supunha a acomodação somente de curta estada para imigrantes em seu caminho para a Grã-Bretanha. Aconteceu, contudo, que, durante os primeiros dois anos e meio de sua existência, o galpão acomodou cerca de 50 mil pessoas, sendo que apenas 350 destas pediam asilo na França. O restante conseguia cruzar o canal, geralmente após ter passado menos de um mês no refúgio. Assim, o governo francês podia se esquivar ligeiramente combinando a aparência da “ajuda humanitária aos refugiados” com a recusa da “imigração clandestina”, para citar o prefeito. A situação mudou, no entanto, quando o governo britânico, sob pressão pública, decidiu restringir o acesso ao asilo e bloquear a entrada ilegal em seu território. No contexto de um debate nacional exacerbado por manchetes de jornais tais como “Asilo: Sim, a Grã-Bretanha é um acesso fácil!” (Daily Mail, 2001) e “Curdos a caminho: mas Jack os enviará de volta?” (Sun, 2001) – referindo-se ao Ministro Britânico do Interior Jack Straw e sua política supostamente fraca –, Tony Blair negociava com Jacques Chirac durante um encontro realizado em Cahors para obter um controle mais rigoroso das redes de imigração na França e uma colaboração mais estreita entre a polícia dos dois países com respeito ao Eurostar, o trem de alta velocidade que os une sob o Canal Inglês. No dia 12 de fevereiro de 2001, o jornal comunista L’Humanité, denunciando a perda de soberania nacional implicada nesta política, trouxe a belicosa manchete “Os ingleses retomam Calais”. Após essa nova guinada política, sair de Sangatte tornou-se cada vez mais difícil para os imigrantes, e o centro da Cruz Vermelha se tornava cada vez mais um lugar de confinamento, com 1.500 pessoas em um espaço inicialmente aberto para receber 200 ou 300 pessoas. “O centro de emergência Sangatte, uma pequena cidade de 1.300 habitantes que sonham ir à Inglaterra”, era o título de um artigo do Le Monde de 30 de

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maio de 2002. Contudo, com esta circulação de pessoas em uma cidade de grandes tendas, sua enorme cantina com longas filas de espera por comida, suas construções pré-fabricadas abrigando serviços administrativos e médicos, e seu espaço aberto para realização de cultos muçulmanos, esta “pequena cidade” começou a adquirir características marcadamente urbanas (ver Figura 1).

Figura 1: O Centro Sangatte, a alguns quilômetros de Calais. Artista: Olivier Clochard. Cortesia do Groupe d'Information et de Soutien des Immigrés, 2001.

4 Durante este último período, como cruzar o canal havia se tornado mais arriscado, a organização de contrabando se tornou mais lucrativa. Conflitos se desenvolveram entre curdos e afegãos para o controle desta atividade, especialmente para acessar lugares onde era possível tomar os trens ou ter acesso aos containers. A violência aumentou no centro entre grupos rivais, e muitos imigrantes foram feridos ou assassinados (Le Monde, 2001b, 2002a, 2002e). A Cruz Vermelha teve que aceitar a presença permanente da polícia em um compromisso de sentimentos humanitários com preocupações com segurança. Um ônibus foi estacionado dia e noite na entrada do centro, mantido pela polícia de segurança do Estado, e rondas entre as tendas e construções pré-fabricadas se tornaram parte do cotidiano dos imigrantes. Para um visitante francês que entrasse em Sangatte, a visão de homens armados em uniformes militares na imponente plataforma de ferro acima dos “refugiados”, ainda que parecesse pacífica, produzia um estranho sentimento de déjà vu. A memória dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial deu um tom polêmico para a maioria dos comentários sobre o assunto na esfera pública (ver Groupe d'Information et de Soutien des Immigres, 2001). Para a Cruz Vermelha, a situação era extremamente desconfortável conforme se armavam críticas contra sua colaboração com políticas repressivas (Red Cross, 2002). Sangatte se tornou um ponto focal para queixas sobre direitos humanos bem como uma potencial ameaça à ordem pública. Para muitos, o centro humanitário parecia cada vez mais com um campo de confinamento (ver Figura 2).

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FIGURA 2. Tendas no Centro Sangatte. Artista: Jacqueline Salmon, 2001.

5 Em maio de 2002, quando o novo governo de direita assumiu, seguindo uma campanha presidencial centrada principalmente em questões de segurança pública, o primeiro ato do Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, foi visitar Sangatte e anunciar seu fechamento em até um ano. Os argumentos para essa decisão foram duplos: primeiro, tal lugar era um imã para a imigração ilegal, e segundo, era vergonhoso para uma democracia moderna permitir que tal instituição persistisse. O medo de atrair imigrantes é um tema clássico usado pelo eleitorado de direita para justificar o controle da imigração. Já a referência à vergonha nacional é mais incomum, mas bastante perspicaz, uma vez que responde aos críticos de esquerda que fazem referência à memória sombria dos campos de concentração da Alemanha. No dia 5 de novembro de 2002, o registo de novos internos para o centro foi interrompido. Sob a manchete “Adeus a Sangatte”, Libération contou a história das primeiras três famílias que tiveram que deixar o centro no dia 3 de dezembro de 2002. Mais uma vez as pessoas em busca de asilo invadiram as ruas de Calais. Alguns fizeram moradias temporárias em palafitas deixadas na praia pelos alemães no fim da Segunda Guerra Mundial. A polícia foi acusada de atear fogo com gasolina em um dos abrigos (Le Monde, 2002c). ONGs locais e nacionais pediram por uma gestão humanitária dos casos. Como um crescente número de imigrantes estava reunido em um salão de igreja, o governo decidiu contra o uso de força, e o novo prefeito anunciou que um espaço seria aberto para acomodá-los. Um ano depois, o depósito de Sangatte havia sido destruído, e a mídia não estava mais interessada em Calais; embora imigrantes ainda estivessem tentando chegar à Grã-Bretanha. Enquanto esperavam por uma oportunidade de cruzar o canal, a barco ou por trem, perambulavam pelas ruas e dormiam nos parques da cidade.

6 O drama de Sangatte é paradigmático das tensões entre os discursos e práticas de compaixão e repressão nas políticas de imigração e, mais especificamente, de asilo na Europa (Block e Schuster, 2002). Em uma perspectiva mais ampla, ele oferece uma base de entendimento da economia moral da Europa contemporânea. Em seu estudo histórico sobre os pobres britânicos, E. P. Thompson (1971, p. 79) se referiu à “economia moral” como uma “visão tradicional das normas e obrigações sociais, de funções propriamente econômicas de várias partes na comunidade”, que “se impôs de modo geral sob o governo do século XVIII”. Em sua pesquisa etnográfica sobre camponeses do Sudeste Asiático, James Scott (1976, p. 3) define de modo similar “economia moral” como uma “noção de justiça econômica e [uma] definição de trabalho explorado”, que

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nos permite “mover em direção a uma apreciação mais completa das raízes normativas da política a respeito dos camponeses”. Ambos dão um significado econômico específico ao conceito, mas, em sua utilização, obviamente o abrem para um sentido mais amplo: a economia de valores e normas morais de um dado grupo em um dado momento. Eu vou manter esse significado aqui na análise dos valores e normas pelas quais imigração e asilo são pensados e atuados e, em um sentido amplo, que definem nosso mundo moral (Fassin, 2005). Essa economia moral define o escopo da biopolítica contemporânea considerada como a política que lida com as vidas dos seres humanos. O estudo da biopolítica é particularmente crucial quando esta governa as vidas dos indesejados e outros que sofrem (Fassin, 2001a), imigrantes sem documentação neste caso, embora não fosse tão diferente se nós estudássemos o tratamento político oferecido aos pobres sem valor (Geremek, 1987), à subclasse urbana (Wacquant, 1999), ou à juventude delinquente (Fassin, 2004), oscilando entre sentimentos de comiseração, por um lado, e de preocupação com a ordem por outro lado, entre uma política de piedade e políticas de controle.

7 Reexaminando a análise de Max Weber sobre burocracias (1976) e seguindo a descrição de Mary Douglas sobre as instituições (1986), Michael Herzfeld (1992) propôs uma vívida perspectiva sobre a cultura dos Estados europeus e, mais especificamente, sobre sua “produção social da indiferença”. A questão que ele procura responder é a seguinte: “Por que em sociedades famosas justamente por sua hospitalidade e cordialidade nós com frequência encontramos a mais desinteressada forma de indiferença burocrática em relação às necessidades e sofrimentos humanos?” (1992, p.1). Explorando um domínio distinto, mas complementar, na antropologia política, meu objetivo aqui é desvendar a ética dos Estados contemporâneos quando se trata da avaliação moral da diferença. Essa avaliação é tudo menos indiferente: está cheia de paixão e normas, de sentimentos e estereótipos. Crenças fortes e preconceitos profundos são expressos acerca da legitimidade e utilidade de certas categorias de indivíduos, sobre sua cultura e futuro, e suas obrigações e direitos. A questão que quero abordar, portanto, é por que, em sociedades hostis a imigrantes, e sem interesse por outros indesejáveis, permanece um sentido de humanidade comum coletivamente expressa por meio da atenção prestada às necessidades humanas e sofrimento?

8 Em um estudo sobre o Estado de bem-estar social na Suécia e suas respostas à crescente presença de refugiados, Mark Graham (2003) demonstrou alguns dos dilemas que funcionários públicos enfrentam em seu contato diário com imigrantes e como uma burocracia pode se tornar “emocional” sob tais circunstâncias. De fato, tais emoções podem também ter seus limites, como a repetição de narrativas patéticas que corrói as respostas afetivas dos funcionários públicos e até mesmo provoca uma desconfiança geral em relação à acumulação de infortúnios narradas pelos candidatos a asilo (Fassin, 2003). Contudo, minha intenção é um pouco diferente aqui no sentido de ir além das dificuldades e contradições individuais dos agentes sociais que têm de implementar políticas nacionais para alcançar o que Josiah Heyman (1998) chama de “coração moral” dessas políticas. Quais valores e hierarquias de valores são mobilizados nos Estados para decidir como gerir fluxos humanos transnacionais, e como podemos explicar publicamente essas decisões? Tais questões lançam luz ao ethos contemporâneo, o “gênio” ou espírito norteador de uma instituição ou sistema (conforme Bateson, 1958: 2),1 na condução das políticas e imigração e asilo.

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9 Para Giorgio Agamben, “se os refugiados representam, no ordenamento do Estado- nação moderno, um elemento tão inquietante, é antes de tudo porque, rompendo com a continuidade entre homem e cidadão, entre nascimento e nacionalidade, eles põem em crise a ficção originária da soberania moderna” (1997: 142).2 Confrontando a biopolítica de Michel Foucault (1978) e a vida activa de Hannah Arendt (1958), ele desenvolve uma distinção entre zoë, ou vida nua, o fato de estar vivo, e bios, ou vida plena, a presença social no mundo. Explorando a genealogia das sociedades ocidentais, ele afirma que “a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano” (Agamben, 1997, p. 14).3 Os refugiados, assim, ocupam um lugar central em nossa economia moral porque revelam a persistência da vida nua nas sociedades contemporâneas: desprovidos de seus direitos humanos pela falta de cidadania, eles podem apenas clamar por permanecerem vivos, na maioria do tempo confinados em campos estabelecidos em países próximos daqueles dos quais fugiram. Nosso mundo é desse modo caracterizado pela “separação entre humanitarismo e política” (1997: 144),4 visto que o primeiro defende humanos reduzidos à sua vida física à margem ou até mesmo contra a última. Em conclusão, “o humanitário separado do político não pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra sob o qual se baseia a soberania”, e “o campo, isto é, o espaço puro da exceção, é o paradigma político para o qual ele não consegue encontrar solução” (1997: 145).5 Sangatte, com seus refugiados, seria assim a perfeita expressão desse paradigma no novo contexto da Comunidade Europeia (ver Figura 3).

FIGURA 3. Cotidiano em Sangatte. Artista: Jacqueline Salmon. Cortesia da Galeria Michèle Chomette.

10 Todavia, a anamnese antropológica e a observação etnográfica levam a um diagnóstico diferente. Se os refugiados ocupam um espaço crucial na biopolítica da Europa hoje, seu tratamento coletivo não repousa na separação entre o “humanitário” e o “político”, mas na crescente confusão entre os dois, que consequentemente redefine a significação contemporânea do campo. Neste artigo, analiso esta nova configuração no contexto

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francês. Primeiramente, mostro como o asilo perdeu muito de sua legitimidade nos anos 1990 em relação às vítimas da violência política, ao passo que um novo critério baseado no “humanitarismo” foi desenvolvido em favor de imigrantes doentes. Em segundo lugar, sugiro que, durante o mesmo período, o descrédito dos refugiados tem sido acompanhado por uma “humanitarização” na relação com os solicitantes de asilo. Em terceiro lugar, com referência à longa história dos campos, sugiro que, no contexto de uma percepção de ameaça à segurança das nações por estrangeiros, a compaixão deu lugar a novas relações paradigmáticas entre as figuras do campo e da polis.

Asilo Político versus Razões Humanitárias

11 Marie é uma mulher haitiana de 25 anos. Seu pai, um dissidente político, foi assassinado há alguns anos por agressores desconhecidos. Sua mãe desapareceu certo tempo depois e se imagina que tenha sido morta. Marie foi estuprada na presença de seu namorado por um grupo de homens que invadiram sua casa. Nas semanas seguintes, após ter encontrado um refúgio temporário com um parente, ela decidiu deixar seu país e buscou asilo na França. Seu pedido de asilo foi rejeitado pelo Escritório Francês de Proteção de Refugiados e Apátridas (OFPRA), assim como seu apelo. A ausência de evidências prevaleceu sobre seu testemunho, apesar das confirmações de seu namorado. Após meses de crescente isolamento social e se sentindo cada vez mais depressiva, Marie foi a um hospital. O médico que a atendeu se convenceu de seus sintomas de sofrimento psíquico e a encaminhou a um psiquiatra, que imediatamente iniciou seu tratamento com antidepressivos. Ambos os médicos estavam conscientes de um critério legal introduzido no Ato de Imigração de 1945 reconhecendo a possibilidade de que imigrantes sem documentos que enfrentassem problemas de saúde severos e que não tivessem acesso a um tratamento efetivo em seu país poderiam obter uma autorização de residência “por razões humanitárias”. A depressão, no entanto, não ajudava a elaborar um bom caso, já que especialistas com frequência se recusavam a considerar tal condição médica como uma razão válida e, inclusive, muitas vezes sugeriam que, de volta ao país de origem, o paciente se beneficiaria com o retorno a um ambiente e formas de tratamento tradicionais. Ainda assim prepararam um documento, mas não tiveram tempo de enviá-lo ao serviço de imigração para avaliação. Uma série de exames de sangue revelou que Marie era soropositiva. Com AIDS, o caso agora estava legalmente “fácil”, e ela obteve uma autorização de residência com base em “razões humanitárias”. O que ela não tinha sido capaz de conseguir como um direito finalmente havia sido oferecido a ela por compaixão.

12 A respeito dos refugiados, apátridas e minorias, cujos números cresceram dramaticamente como consequência da Primeira Guerra Mundial, Hannah Arendt (1951) escreve: “Aqueles cuja perseguição foi considerada indesejável tornaram-se os indesejáveis da Europa”. Em 1981, 20 mil estrangeiros buscaram asilo na França; desses, 80% foram reconhecidos como refugiados. Em 1999, 30 mil requereram o mesmo status através da Convenção de Genebra; contudo, naquele ano, 80% foram rejeitados (OFPRA, 1996, 2004). Em menos de duas décadas, a atitude das autoridades públicas havia sido completamente revertida, de relativa tolerância à desconfiança generalizada. Essa evolução se tornou particularmente clara no fim dos anos 1980, período em que mudanças políticas na Europa Oriental e conflitos regionais na antiga Iugoslávia geraram imigrações em massa para a Europa Ocidental, triplicando o número de

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candidatos a asilo entre 1988 e 1990 (Berger, 2000). Nesse período, a Frente Nacional, um partido xenófobo de extrema direita, desenvolveu uma retórica agressiva denunciando uma “invasão” da França por imigrantes do Sul e cresceu em expressão eleitoral, passando de menos de 1% dos votos no início dos anos 1980 para 14,4% nas eleições presidenciais de 1988 (Hargreaves, 1999). Nesse novo contexto político, o número de estrangeiros beneficiados pelo asilo político diminuiu para um sexto na França durante os anos 1990, estabilizando gradualmente em torno de 2 mil refugiados por ano, sem contar as crianças, que automaticamente se tornam refugiadas ao atingir 18 anos de idade (Legoux, 1999). Essa diminuição corresponde a duas tendências distintas que compartilham uma lógica comum: o número de pedidos submetidos foi reduzido em dois terços e a proporção de solicitações aceitas foi reduzida pela metade.

13 Considerando a situação internacional durante este período, seria difícil argumentar que essa dramática diminuição no número de refugiados tenha resultado de uma redução das situações de conflito no mundo. Antes, é consequência de dois fenômenos. Em primeiro lugar, em todas as entradas possíveis ao território francês, oficiais de fronteira rejeitavam um número crescente de potenciais requerentes de asilo antes que os mesmos pudessem apresentar seus casos (Julien-Laferrière, 2002). Em segundo lugar, os funcionários públicos que avaliavam as requisições estavam determinados a diminuir a porcentagem de aceites (Teitgen-Colly, 1999). Como consequência das profundas mudanças ocorridas nas atitudes populares com respeito ao asilo, ordens explícitas foram dadas pelos Ministérios do Interior e de Assuntos Estrangeiros para seus respectivos administradores, oficiais da polícia nos aeroportos e burocratas da OFPRA, que passaram a ver os requerentes de asilo com uma sistemática suspeita: todos os candidatos ao status de refugiados são agora considerados, até que haja evidências do contrário, como imigrantes sem documentação procurando levar vantagens da generosidade das nações Europeias. O uso da expressão “falsos refugiados” para se referir aos “imigrantes econômicos”, que reivindicam asilo político, se tornou central para o senso comum burocrático (Valluy, 2004). A Convenção de Genebra passou, desse modo, a ser implementada de maneira mais e mais restrita por governos que declaram que esta deveria ser reescrita.

14 Em contraste, durante o mesmo período, outra categoria de imigrante foi cada vez mais obtendo permissões de residência: aqueles com problemas de saúde, ou mais precisamente, com patologias severas cujos tratamentos apropriados não estavam disponíveis em seus países de origem. Este novo critério é oficialmente designado como “razões humanitárias” (Lochak, 2001). Tal critério foi criado no início dos anos 1990 em resposta à pressão de ONGs médicas como os Médicos Sem Fronteiras e Médicos do Mundo, mas também por associações de direitos humanos confrontadas por pacientes que sofriam de doenças com alto risco para a vida, tal como AIDS ou câncer, e que se encontravam em vias de serem expuloas da França por falta de documentação. Em princípio, as decisões a respeito desses casos eram raras e arbitrárias: dependiam do grau de mobilização social em torno de cada caso e da boa vontade do prefeito. Progressivamente, contudo, a prática se tornou mais comum e mais publicizada até que o Ministro do Interior direitista Jean-Louis Debré suspendeu a expulsão de estrangeiros com severos problemas de saúde, independente de seu status legal pela Lei de Imigração de 1996. Este fato é notável por ter sido a única concessão feita em “respeito aos direitos individuais” em uma peça legislativa largamente caracterizada por sua “firmeza contra a imigração ilegal”. No entanto, não era uma medida que garantia direito a residência plena, e aos beneficiários não era permitido entrar no mercado de

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trabalho. Poucos meses depois, com a instalação de uma nova maioria parlamentar, a Lei de Imigração de 1998 introduzida pelo Ministro de Interior socialista Jean-Pierre Chevènement, foi aprovada: pela primeira vez, a existência de problemas de saúde poderia conferir o direito a uma permissão de residência, proteção social e autorização para trabalhar. Por meio do princípio humanitário, o corpo em sofrimento era agora reconhecido como o principal recurso legal para imigrantes sem documentação (Fassin, 2001b). O número anual de estrangeiros com autorizações de residência em razão de alguma doença aumentou sete vezes durante os anos 1990. Em 2000, tornou-se equivalente ao número de refugiados políticos reconhecidos a cada ano.

15 A associação cronológica entre a marcada queda do número de asilados políticos e o aumento no reconhecimento com base em razões humanitárias não é uma coincidência. Os dois fenômenos estão ligados. Assim, como um administrador de alto nível do Ministério do Interior me explicou, de um montante de 80 mil legalizações de estrangeiros sem documentos que eles haviam processado entre 1997 e 1998, aquelas caracterizadas a partir de razões humanitárias haviam sido tratadas “como prioridade” enquanto o asilo político havia sido encarado “como de interesse secundário”. De fato, muitos advogados, ativistas de direitos humanos e até funcionários públicos de serviços de imigração locais entenderam essa nova política muito claramente. Para eles, bem como para os próprios imigrantes ilegais, o “Artigo 12bis-11” da lei se tornou a melhor esperança para os requerentes na selva administrativa da legislação sobre imigração. Mais especificamente, a lei menciona o direito à permissão de residência para “o/a estrangeiro/a que vive na França, que necessita de cuidados médicos cuja falta traria consequências de alta gravidade, considerando que este/a não pode ter acesso a um tratamento próprio em seu país de origem” (Groupe d'Information et de Soutien des Immigres, 1999). Para aconselhar aos que buscam asilo, advogados indagariam: “você não teria alguma doença à qual pudesse recorrer?” e então sugeririam uma visita ao médico.

16 Um imigrante africano recorda o que lhe foi dito por uma voluntária em umas das principais ONGs de solidariedade que ele consultou: “Eu mostrei a ela minhas receitas médicas. Ela disse que eu certamente tinha uma doença severa. Ela me disse para ir a um médico e que, com boa evidência, não será um problema. Eu terei minha permissão de residência. Eu apenas tenho de mostrar que não consigo tratamento em meu país”. Paradoxalmente cheios de esperança com a possibilidade de terem uma doença, os imigrantes ilegais iriam aos seus médicos ou ao hospital, algumas vezes com uma carta do prefeito requerendo “diagnóstico, tratamento e perspectivas de prognóstico” sob “confidencialidade médica”. Com frequência, ao ouvirem o médico dizer que “sua doença não é severa o bastante para justificar a reivindicação”, expressariam seu desapontamento ou sua raiva. Às vezes, como no caso da jovem haitiana, obteriam não apenas aprovação médica, mas também atendimento de saúde gratuito com cobertura universal, o sistema social de proteção aos pobres. Como um dos beneficiários dessa decisão administrativa uma vez me disse: “É a doença que está me matando agora que me mantém vivo” (Fassin, 2001c). Ele era da Nigéria e havia passado dez anos na França e na Alemanha sem permissão legal. Recentemente havia descoberto que tinha uma forma grave de AIDS. Após ter vivido por um longo tempo sob a ameaça de ser enviado de volta a seu país, havia finalmente recebido permissão de residência a partir deste novo artigo da lei e estava sendo submetido gratuitamente a uma terapia intensiva com antirretrovirais.

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17 Nenhuma situação poderia revelar de forma mais óbvia a mudança recente nas políticas de vida europeias do que esta mudança do asilo político para as razões humanitárias. Para o governo e o parlamento francês, a legitimidade do corpo em sofrimento tem se tornado maior do que a do corpo ameaçado, e o direito à vida está sendo deslocado da esfera política para a da compaixão. É mais aceitável e menos perigoso para o Estado rejeitar um pedido de asilo, declarando-o sem fundamento, do que ir contra a perícia médica que recomende uma permissão legal por razões de saúde. Na terça-feira de 7 de outubro de 2003, o acesso ao território francês foi recusado à uma mulher da Chechênia e seus dois filhos pequenos que haviam pedido asilo político. Seu esposo e sogro haviam sido sequestrados por homens uniformizados em Grozny; o primeiro nunca foi visto novamente e o corpo do último foi descoberto poucos dias depois. Quando começou a procurar por seu esposo, recebeu uma carta anônima ameaçando a ela e seus filhos de morte caso continuasse sua investigação. Entretanto, o funcionário francês do Ministério de Assuntos Estrangeiros que a encontrou no aeroporto de Roissy concluiu que ela não tinha demonstrado provas suficientes de exposição à ameaça e, assim, poucas horas depois, antes que um advogado pudesse intervir em sua defesa, ela foi enviada de volta a Moscou com seus filhos (Federation Internationale des Droits de l'Homme, 2003).

18 Este é um dos muitos exemplos nos quais solicitantes de asilo são recusados antes mesmo de terem seus casos oficialmente registrados. Ao mesmo tempo, peritos médicos do Estado enfrentam um aumento na demanda por vereditos relativos às “razões humanitárias” das reivindicações, e serviços de imigração são ordenados a “seguir sistematicamente as recomendações médicas”, exceto em casos nos quais há uma “ameaça à ordem pública”. É bem menos politicamente arriscado para o governo negar a entrada a refugiados que expulsar um paciente com AIDS ou câncer. Nos termos de Agamben (1997, p. 9),6 a vida plena (bios) daquele que luta pela liberdade ou da vítima de repressão tem menos valor social do que a vida nua (zoë) do imigrante que sofre de uma doença grave. Muitos estrangeiros entendem em sua “carne”, no uso do conceito de Maurice Merleau-Ponty (1964), que sua presença na França não é reconhecida pelos riscos políticos que tomaram ou os perigos que têm enfrentado, mas pelo sofrimento físico e psíquico que podem demonstrar. Seu acesso à sociedade francesa é profundamente marcado por esta experiência frequentemente humilhante de ter que usar sua biologia em vez de sua biografia como um recurso para ganhar o direito de existir.

19 Em seu estudo da “dupla ausência”, Abdelmalek Sayad (1999) afirma que “o imigrante é somente um corpo” e que suas disfunções revelam “contradições incorporadas”. Poucas décadas atrás, este corpo era legitimado por razões econômicas e uma doença seria vista com suspeita. Sugiro que a situação agora é reversa. Sendo o corpo inútil para o trabalho, a doença se torna um recurso social. Até os anos 1970, o trabalho de imigrantes era necessário para a reconstrução dos países europeus profundamente prejudicados pela Segunda Guerra Mundial: naqueles dias, sua permissão de trabalho servia como uma permissão de residência. Seus corpos tinham que ser saudáveis, e se esse não era o caso, então eram suspeitos de fingir alguma doença para ganhar os benefícios do sistema de seguridade social. Os tempos mudaram. Com a modernização da indústria, que substituiu a maioria do trabalho não-qualificado por máquinas, seus corpos se tornaram supérfluos por causa da real ou suposta competição na força de trabalho, com a exceção de certos setores econômicos tal como as indústrias de

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construção ou têxtil, nas quais trabalhadores ilegais são ainda um recurso necessário de trabalho barato (Morice, 1997). Neste novo contexto econômico, é agora o corpo que sofre que a sociedade está preparada para reconhecer. Os imigrantes ilegais compreenderam bem esta mudança, e alguns não hesitam em fazer greve de fome quando procuram ter seus direitos reconhecidos (Siméant, 1998). Em vez de provocar suspeita, a doença agora parece ser a base mais bem sucedida de reivindicação para muitos imigrantes sem documentação, uma condição que chamo de “biolegitimidade” (Fassin, 2000) – a legitimação de direitos em nome do corpo que sofre. No contexto de uma União Europeia consolidada, que tem se esforçado no controle de suas fronteiras, a economia política da Europa contemporânea tem reduzido imigrantes de países pobres ao que Hannah Arendt chamou de “trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta” (1983: 38).7 Sua economia moral se desenvolveu em direção a uma atenção compassiva para o sofrimento individual, na qual a busca por uma humanidade comum reside no reconhecimento da vida nua, ou seja, aquela das alterações físicas do corpo.

20 Contudo, neste paradigma, o asilo político e o humanitarismo ainda parecem duas entidades separadas e paralelas que representam valores morais distintos. O mero fato de que um solicitante de asilo possa ser encorajado a reapresentar seu caso sob uma racionalidade humanitária ressalta que há duas realidades administrativas diferentes governadas por instituições separadas: a OFPRA, no âmbito do Ministério das Relações Exteriores, e os serviços de imigração, no âmbito do Ministério do Interior. Porém, uma evolução recente no discurso e na prática política sugere que outro paradigma está emergindo, no qual as duas normas estão se tornando irrevogavelmente ligadas, com a categoria de asilo cada vez mais subordinada à categoria de humanitarismo.

A Humanitarização do Asilo

21 O East Sea encalhou na Riviera Francesa em 17 de fevereiro de 2001. Ele trazia 900 pessoas a bordo, em sua maioria curdos. Era apenas um de muitos navios que transportavam as milhares de pessoas que, todos os anos, fugiam de seus países de origem no Leste Europeu, África e Ásia, em busca de melhores condições de existência. A primeira reação pública foi um tanto hostil. O navio encalhado levantou suspeitas acerca do que muitos comentaristas políticos descreveram como um acidente “planejado” que forçaria a França a receber os passageiros do navio. Nos dias que se seguiram, o governo socialista e seus oponentes de direita convergiram na descrição dos estrangeiros do navio encalhado como “imigrantes ilegais”, condenando as “organizações criminosas” que os haveriam ajudado a chegar à Europa. Esse discurso teve por efeito a desqualificação de qualquer pedido de asilo político por parte dos passageiros: eles seriam considerados como clandestinos e não possíveis refugiados. Representados publicamente dessa forma, os passageiros foram levados para um “centro de detenção”, sem nenhuma liberdade de trânsito. No entanto, conforme a cobertura televisiva começou a transmitir imagens de famílias destituídas, crianças aos prantos, mulheres grávidas, pessoas idosas e doentes atrás de cercas de arame farpado, reações de indignação começaram a despontar entre associações de direitos humanos, assim como na mídia e em meio ao público. Essas reações abriram espaço para uma retórica diferente. Eles se tornaram “vítimas” de opressão política bem como de infortúnios. Certamente, a “terra natal dos direitos humanos” não poderia deixá-los

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sofrendo no que agora se passara a identificar como um “campo”. Em resposta a essa inesperada onda de solidariedade coletiva, o Primeiro Ministro Lionel Jospin declarou que cada situação seria examinada com base em “critérios humanitários”. Ele não mencionou os pedidos de asilo, em vez disso evocou o sentimento de compaixão que tais circunstâncias demandavam. O jornal Le Monde ressoou o discurso de Jospin: “O coração tem suas razões, e mesmo seus reflexos, a que a razão deve escutar” (2001a). Essa versão de um aforismo de Pascal tirava de foco o que poderia ser mais nitidamente percebido como uma simples substituição de um direito político por um sentimento moral. De fato, os residentes do “centro de detenção” foram realocados em pequenas unidades dispersas por todo o país, e seus casos foram avaliados pelo OFPRA, que reconheceu 83% dos requerentes como refugiados – uma proporção excepcionalmente alta em um período no qual essa instituição concedia asilo político a apenas 12% dos candidatos. A comoção nacional de fato os beneficiou. Além disso, o custo demográfico era baixo, pois apenas 160 dos curdos que estavam no navio de fato se estabeleceram na França, o restante deles preferindo migrar para outros países europeus, principalmente a Alemanha, onde eles podiam contar com redes mais consolidadas.

22 Seguindo a análise de Hannah Arendt (1951) acerca do “declínio do Estado-nação e o fim dos direitos humanos”, pode-se afirmar que a Convenção de Genebra foi uma resposta da comunidade internacional à negligência em relação aos 32 milhões de refugiados e pessoas sem Estado durante os anos 1930 e 1940. Todavia, para além desse horizonte ideológico, havia o objetivo pragmático de atender às necessidades concretas de “pessoas deslocadas” (“displaced persons”) e exilados, cujo número chegava a sete milhões imediatamente após 1945, e de resolver uma série de problemas demográficos e econômicos ligados às perdas com a guerra e à necessidade de reconstrução. No caso dos refugiados e pessoas sem Estado, certamente não se deve idealizar as condições da fundação de uma nova ordem mundial com a Declaração dos Direitos Humanos da ONU (Noiriel, 1991). Se o leitmotiv “nunca mais” na sequência do Holocausto foi um forte incentivo para a consolidação da categoria específica de “asilo político”, a solidariedade universal que se expressa nessa retórica oficial não exclui os interesses nacionais, que se manifestaram por meio de discussões em segundo plano sobre a distribuição de refugiados e pessoas sem Estado entre as nações europeias, principalmente em termos econômicos. Independente das motivações dos governos, a Convenção de Genebra teve um forte efeito simbólico na reversão do estigma que havia se instalado sobre as “pessoas deslocadas” e exilados no pós-guerra (Cohen, 2000). O status internacional que receberam em 1951 lhes concedeu uma nova posição transnacional em função do reconhecimento de suas causas políticas, ou, ao menos, do repúdio à violência à qual foram sido submetidos.

23 Embora tenha levado algum tempo para se tornar uma prática administrativa, a legitimidade política do asilo ganhou espaço após a Convenção de Genebra. Os “indesejáveis” se tornaram heróis para alguns, vítimas para muitos. Eles passaram a servir como símbolos da resistência à opressão, como no caso do Chile após o golpe de 1973, ou do sofrimento dos oprimidos, como no caso dos vietnamitas que fugiram da guerra em barcos em 1978. O nível de proteção que receberam durante esse período foi um sinal de reconhecimento social (Brachet, 2002). Na França, os direitos sociais de refugiados obtidos entre 1975 e 1984, inclusive autorização para trabalhar e auxílio social para desempregados, foram estendidos aos requerentes de asilo em 1985. Essa progressão é ainda mais notável porque esse período foi também caracterizado por um

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retraimento generalizado das políticas para imigrantes, particularmente com a interrupção de imigração para trabalho em 1974, seguida por restrições a provisões para reuniões familiares em 1984 (Weil, 1984). De fato, até o início dos anos 1980, refugiados eram as figuras mais legítimas na implícita – e por vezes explícita – hierarquia dos estrangeiros, e, portanto, gozavam de condições relativamente privilegiadas. Naquele momento, requerentes de asilo tinham uma chance razoável de adquirir esse status socialmente valioso. Contudo, como Giovanna Zincone (1997) sugere: “Costumamos praticar melhor a virtude da tolerância quando ela é menos necessária”. A generosidade não era algo difícil naqueles anos, porque poucos se beneficiavam dela; a taxa de reconhecimento oficial era alta, porque o número de pedidos era pequeno. A França precisava de força de trabalho, assim como outros países europeus, e em vez de percorrer o longo caminho administrativo do asilo, a maior parte das pessoas politicamente oprimidas que buscavam entrada nesses países preferia conseguir um contrato de trabalho que os concedesse residência. Em meados dos anos 1970, quando a imagem positiva do asilo político atingiu seu pico, e quando os direitos sociais associados à categoria estavam em expansão, a presença de refugiados na França chegava a seu nível mais baixo desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, nesse período, as pessoas que buscavam asilo vinham principalmente do Leste Europeu e do Leste Asiático, grupos entendidos como de fácil assimilação. Essa quadro feliz viria a se alterar rapidamente durante os anos 1980.

24 O ano de 1989 foi um ponto de virada. O número de solicitantes de asilo que entraram na França nesse ano foi o mais alto em décadas: 62 mil novas solicitações, em comparação com cerca de 20 mil no começo dos anos 1980 e meros 2 mil em 1974 (OFPRA, 1996, 2004). Esse crescimento espetacular foi principalmente resultante do fim da Guerra Fria e a abertura das fronteiras de antigos países comunistas. Entretanto, trata-se, mais profundamente, de um sinal das transformações estruturais que estavam em curso nos fluxos migratórios internacionais. Do ponto de vista global, a rápida transformação de uma “nova ordem mundial” levou a uma exacerbação de nacionalismos e processos transnacionais, resultando, por um lado, em uma série de conflitos regionais e, por outro lado, no desenvolvimento de redes clandestinas de imigração. Ambos os fenômenos levaram a uma aceleração na circulação de pessoas (Kearney, 1995). Na lógica local, com leis de imigração crescentemente restritivas, o asilo se tornou uma das únicas vias de acesso à conquista de status legal, levando a uma indistinção entre motivações políticas e econômicas (Watters, 2001). Face a uma quantidade crescente de solicitações, a reação política mais comum foi a denúncia à “crise do asilo”. O Primeiro Ministro socialista Michel Rocard deu sua famosa declaração: “A França não pode receber toda a miséria do mundo”. Essa retórica reforçou a confusão entre a imigração por motivos econômicos e o refúgio político, contribuindo assim para o descrédito do último. Solicitantes de asilo tornaram-se suspeitos. Rapidamente, a dramatização desse discurso passou a legitimar o uso de critérios mais severos para a concessão de status legal e uma crescente restrição de direitos sociais.

25 Conforme sugeriu Aristide Zolberg (2001): “De fato, a percepção predominante de uma ‘crise na migração transnacional’ afetou profundamente a consideração de alternativas políticas. Especificamente, essa ideia foi utilizada para justificar medidas draconianas de proteção das fronteiras nacionais, mesmo às custas das obrigações para com os refugiados”. A história do East Sea ilustra como o asilo se tornou uma questão de policiamento ordinário, interrompido somente em emergências políticas específicas

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que ganhassem a simpatia do público em relação à situação das vítimas. Os dramas da Bósnia e Kosovo são exemplos dessa seletiva demonstração de generosidade quando as elites políticas tentam seguir ou mesmo antecipar a opinião pública (Rosenberg, 1995). No entanto, as vítimas de violência rapidamente voltam a ser vistas como meros imigrantes ilegais novamente, e são perseguidas como aconteceu com bósnios e kosovares no litoral da Itália. Episódios de compaixão para com refugiados, portanto, despontam como momentos privilegiados de redenção coletiva, obscurecendo a regra geral de sua repressão.

26 Contudo, para fazer com que essa repressão seja socialmente aceitável é preciso desqualificar os solicitantes de asilo. Nesse caso, o poder performativo das palavras é particularmente efetivo (Fassin, 1996). Os solicitantes são comumente designados como clandestinos, justificando-se assim ações oficiais contra eles, tais como seu envio para centros de detenção ou sua extradição de volta a seus países de origem. Mesmo os serviços responsáveis pela recepção dos solicitantes de asilo parecem ter internalizado essa representação negativa. Uma assistente social em uma de minhas pesquisas me explicou, por exemplo, que, apesar de os solicitantes terem um status oficial provisório de requerentes de asilo, ela os considerava sans-papiers (ou seja, pessoas sem documentação), pois ela sabia que a maior parte deles viria a ser enquadrada assim em breve. Sua antecipação do resultado final, que estava estatisticamente correta em mais de oito casos a cada dez, levava-a a privá-los de benefícios universais da seguridade social, que eram substituídos pela menos abrangente e claramente mais estigmatizada caridade e ajuda médica. Nesse processo de desqualificação dos refugiados, os sucessivos governos franceses desenvolveram três estratégias.

27 A primeira estratégia é dissuasiva, baseada em restrições dos benefícios sociais (Düvell e Jordan, 2002). Tratou-se de reduzir os direitos sociais dos solicitantes de asilo pela supressão do subsídio a moradia em 1989, a supressão da autorização para o trabalho em 1991, e a limitação da duração da ajuda financeira para um ano, com um valor mensal de US$ 250,00 (um terço do nível de pobreza). Com essa nova situação, o asilo passa a ser menos atraente – especialmente em relação a países vizinhos como a Grã- Bretanha. A segunda estratégia é repressiva, e corresponde à “criminalização dos imigrantes” (Palidda, 1999). Inclui-se aí o envio de solicitantes de volta a seus países de origem quando eles tentam entrar em território francês, seu confinamento em centros de detenção murados, e a implementação do sistema unicamente francês de double peine (dupla sentença), específico a estrangeiros. Aqueles que se recusam a embarcar nos aviões são primeiramente condenados à prisão e, então, são deportados quando deixam a prisão. Mais amplamente, esses imigrantes são enquadrados na categoria genérica de “delinquência”, conforme as estatísticas da polícia. A terceira estratégia é distintiva, e visa à reestruturação do status dos refugiados com base “discricionária” (Delouvin, 2000). Em 1998 o governo socialista aprovou uma lei distinguindo “asilo convencional” de duas outras formas: por um lado, o “asilo constitucional”, uma categoria que corresponderia a um status supostamente mais privilegiado e raramente reconhecido de “defensor da liberdade”, e, por outro lado, o “asilo territorial”, categoria para vítimas de violência não estatal. Originalmente criada para argelinos, essa última categoria de fato parecia ser uma mal disfarçada e precária forma de asilo temporário, devendo o status do asilado ser revisto ano a ano para facilitar o retorno a seu país de origem quando a situação política fosse considerada mais democrática e estável. Para

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harmonizar as políticas europeias, esse status específico veio a ser abandonado, e depois substituído por um ainda mais baixo.

28 Em meio a esse novo contexto, o confinamento de requerentes de asilo em campos de transição se torna possível, e o governo pode fingir ter esquecido que eles procuram asilo e generosamente lhes oferecer tratamento humanitário. A exibição da comiseração, então, substitui o reconhecimento de um direito. A biopolítica do asilo deve ser entendida como a substituição de uma ordem social fundada na “obrigação” por uma ordem social fundada na “solidariedade”, para usar os termos de Georg Simmel (1998). O reconhecimento do status de refugiado por nações europeias torna-se um ato de generosidade por parte da comunidade nacional frente ao “estranho que sofre” (Butt, 2002), em vez de o cumprimento de uma dívida política frente a “cidadãos da humanidade” (Malkki, 1994). Construídos como imigrantes ilegais, e comumente classificados como clandestinos, os solicitantes de asilo oscilam entre ser objetos de repressão e compaixão. De um lado estão as zonas de espera, onde 18.936 estrangeiros foram detidos em 2000 e onde o reinado de um estado de exceção foi denunciado tanto por ativistas dos direitos humanos quanto pela corte de apelações de Paris (Rodier, 2002). Do outro lado estão as organizações humanitárias que oferecem assistência preparando narrativas de vida que correspondam às expectativas dos oficiais do Estado, e oferecendo testemunhos como médicos acerca de traumas físicos e psíquicos (Veisse, 2003). A hierarquia introduzida entre refugiados na nova legislação francesa parece estar em clara contradição com a Convenção de Genebra, ao mesmo tempo em que paradoxalmente evoca seu profundo significado histórico. No topo dessa hierarquia encontra-se o eterno herói ou a eterna heroína que (excepcionalmente) obtém asilo constitucional por sua luta contra a opressão e por sua defesa da liberdade; em seguida vem a vítima permanente que (cada vez mais raramente) recebe proteção oficial da violência infligida, por meio de asilo convencional; mais abaixo, segue a vítima transitória que (crescentemente) ocupa um status provisório tão precário quanto possível para evitar uma futura integração à sociedade; no fim da linha está a enorme massa de solicitantes que são classificados como imigrantes ilegais e perseguidos pela polícia. A harmonização das políticas europeias após a Convenção de Dublin em 1990 tende a forçar essa hierarquia para baixo, enquanto, ao mesmo tempo, parece ser mais sutil que o dualismo clássico entre “merecedores” e “não merecedores” (Sales, 2002). Por exemplo, na União Europeia, em 1999, apenas um refugiado a cada cinco teve asilo convencional reconhecido, ao passo que quatro a cada cinco receberam a recentemente criada “proteção subsidiária”, também conhecida como “status B”, que substitui o asilo territorial francês (Bouteillet-Paquet, 2002). Contudo, de modo geral, ambos os status deixam de fora centenas de milhares de estrangeiros rejeitados que buscam em vão a proteção da Convenção de Genebra.

O Último Campo

29 Agamben (1997: 195) propõe dois modelos de organização social, o campo e a polis, e conclui que seria o primeiro, e não o último, que corresponderia a nossa modernidade tardia: “O campo, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do Ocidente”.8 Por essa palavra, ele se referia aos campos de concentração, e mesmo de extermínio. Comentando essa declaração polêmica em Le Monde (2004), ele insistiu que sua afirmação se trataria de “uma tese filosófica, e não uma narrativa histórica”. A visão

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pessimista que Agamben expressa tem o mérito de atrair nossa atenção aos lugares e momentos em que o estado de exceção se torna a regra. São esses espaços que Carl Schmitt (1985: 5) definiu como fundantes da soberania em sua teologia política: “O soberano é quem decide na exceção”. Certamente, de uma perspectiva antropológica, essa tensão entre campo e polis não pode ser discutida em termos de um espaço dessocializado, ou um tempo a-histórico. Sendo realista, Sangatte não foi Auschwitz, nem Guantánamo – os dois campos definidos por Agamben (2003) como horizontes da contemporânea biopolítica. Em Sangatte, a cidadania não era reconhecida, mas direitos humanos eram respeitados; estrangeiros podiam pedir asilo na França; a circulação de pessoas era livre desde que não tentassem atravessar o canal; organizações humanitárias, advogados, jornalistas e mesmo etnólogos podiam circular livremente. Então, o paralelo com Auschwitz ou Guantánamo é enganoso. Todavia, contanto que evitemos os perigos intelectuais da mera analogia, pensar sobre Sangatte a partir da forma mais geral do campo pode ajudar a compreender a profunda natureza de nosso tratamento aos refugiados e, em uma perspectiva mais alargada, a economia moral de nossas sociedades.

30 No atual contexto francês, designar Sangatte como um campo é um ato muito polêmico, por causa da memória dos campos de transição, como Drancy (de onde muitos franceses, principalmente judeus, foram enviados a Auschwitz depois de 1942), que foi recentemente revivida pela historiografia, literatura e cinema. Não é a toa que Smaïn Laacher, o sociólogo contratado pelo diretor de Sangatte para escrever a história do lugar e seus ocupantes pelo estudo dos requerentes de asilo, se refere ao local como “Centro Sangatte” em seu livro (2002), mas o título da palestra que proferiu para a Liga de Direitos Humanos da École des Hautes Études en Sciences Sociales em 2003 utilizava o termo “Campo de Sangatte”. Na batalha de palavras que cerca a questão da imigração, essa expressão tem sido genericamente empregada por aqueles que denunciam Sangatte como uma vergonha para a França. Em maio de 2002, Nicolas Sarkozy fez sua primeira visita oficial ao espaço, no posto recém-assumido de Ministro do Interior, e anunciou imediatamente que iria fechá-lo, mas não somente em função de “considerações humanitárias” ou pela “facilitação de redes ilegais” – como ele declarou em 4 de junho de 2003 –, mas principalmente por que Sangatte era um “símbolo” (Carrere, 2002) por meio do qual a memória do passado podia muito facilmente ser acionada por críticos (ver Figura 4).

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FIGURA 4. Uma aula de geografia entre solicitantes de asilo curdos (Zidane é um jogador de futebol francês, de origem argelina, que é conhecido como “melhor jogador do mundo”, e que se tornou um símbolo da “integração social bem-sucedida”). Artista: Plantu (Le Monde, 2002b).]

31 De fato, a história dos campos na França começou pouco antes da Segunda Guerra Mundial (Peschanski, 2002). O confinamento dos estrangeiros indesejáveis em centros especializados havia sido decidido por meio de decreto em 12 de novembro de 1938, “em prol da ordem pública e da segurança”, quando a xenofobia e o antissemitismo estavam em seu clímax na França. Os primeiros campos, inicialmente designados como “campos de concentração” (uma expressão que depois de tornou difícil de continuar usando), serviram para agregar espanhóis fugidos da ditadura de Franco após a queda de Barcelona em 29 de janeiro de 1939, e chegaram a juntar cerca de meio milhão de pessoas no sul da França, a maioria dos quais foi repatriada mais ou menos voluntariamente em poucos meses. Nas semanas que seguiram a declaração de guerra contra a Alemanha, em 3 de setembro de 1939, 83 “campos de confinamento de inimigos” foram progressivamente se somando aos oito inicialmente voltados aos refugiados espanhóis. As políticas francesas naquele tempo eram muito mais repressivas que de outros países, como as da Grã-Bretanha. Após a derrota de junho de 1940 e a instauração do regime de Vichy, os campos passaram a receber comunistas e em seguida, crescentemente, judeus. Contudo, não foi até a primavera de 1942 que eles se tornaram a antecâmara da solução final, transformando-se em “campos de trânsito”. Quando a guerra acabou, esses mesmos campos ironicamente passaram a confinar os colaboradores do nazismo, até maio de 1946.

32 Não se deve confundir Sangatte, inicialmente concebido para oferecer abrigo a candidatos à imigração para a Grã-Bretanha, com o campo de transição de Drancy, o campo para “estrangeiros indesejáveis que abriu em Rieucros”, o campo para foragidos espanhóis em Saint-Cyprien, o campo de Chateaubriand onde os comunistas detidos eram arbitrariamente executados, o campo de Montreuil-Bellay no qual mil ciganos nômades foram confinados, ou o Conciergerie onde colaboradores foram aprisionados após a liberação de Paris. Cada um deles tinha sua razão de ser, sua específica lógica de confinamento, e suas particulares regras de controle. Independente de quão diversa a realidade social dos campos possa ter sido nesses diferentes momentos do lado sombrio da história francesa, a permanência da estrutura do campo é, em si, reveladora. De fato, Erving Goffman (1961) descobriu o funcionamento comum do que chamou de “instituições totais”, atuante por trás das diferentes motivações que fizeram surgir o

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manicômio, a prisão e o convento, e que permite transcender a variação histórica dos campos de modo a revelar seu sentido comum.

33 Os campos correspondem a uma resposta específica a problemas da ordem pública pela instituição de pequenos territórios de exceção. O que justifica esses estados de exceção locais é uma emergência que faz com que a junção de pessoas pareça ser uma solução prática. Mas a suspensão das normas sociais costumeiras só é aceita porque vale apenas para os sujeitos “indesejáveis”. A situação, que deveria ser considerada intolerável, é de fato tolerada por causa da ameaça à ordem pública representada pelos imigrantes, inimigos, comunistas, ciganos, judeus e colaboradores. Portanto, sendo Sangatte um centro aberto aos requerentes de asilo, pelo qual podem ir e vir (sob o controle da polícia), e sendo administrado por uma organização humanitária (com a colaboração de muitos voluntários), ele não pode ser simplesmente equiparado aos outros campos da história francesa moderna. Mesmo assim, a memória que Sangatte perturba nos revela uma verdade profunda. Essa memória tem menos relação com o centro que com seus ocupantes – que podem ser mais bem descritos como “vagabundos”, nos termos de Zygmunt Bauman (1998). Numa perspectiva historicamente mais ampla, torna-se claro que a abertura de Sangatte reposiciona os requerentes de asilo como novos “indesejados”– um papel que eles ocuparam por muito tempo, como lembra Michael Marrus (1985). A presente reinvenção do campo revela a continuidade da preocupação: o campo chama atenção para aqueles que vivem fora da polis – literalmente, os “alienados”. A figura contemporânea do alienado corresponde ao requerente de asilo. Desse modo, ela se tornou o tema de Last Caravanserai, uma peça de oito horas da famosa diretora Ariane Mnouchkine em Cartoucherie de Vicennes, próximo a Paris, depois apresentada como evento principal do Festival de Avignon: “O Théâtre du Soleil traz as vozes dos refugiados”, lia-se nas manchetes do Le Monde em 1º de abril de 2003, indicando que o texto havia sido baseado em “testemunhos de Sangatte e outros lugares”. O drama dos requerentes de asilo deu lugar a uma performance cultural nacional.

34 Do ponto de vista europeu, a figura do solicitante de asilo hoje é essencialmente construída seguindo o referencial do que Liisa Malkki (1995) chamou de “a emergência dos refugiados como um problema do terceiro mundo”. Por um lado, essa noção corresponde a uma realidade demográfica cruelmente ilustrada pelas estatísticas: a maior parte dos refugiados no mundo é de países pobres. Por outro lado, ela revela uma verdade política que é muitas vezes negligenciada: a maioria dos refugiados permanece em países pobres. Com 154 mil novos refugiados em 2002, e um total de 4,2 milhões, a Europa recebe apenas uma parcela limitada da distribuição global, estimada em 7 milhões, de vítimas de deslocamento forçado no mundo sob responsabilidade do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR, 2004). E mais, com 102 mil refugiados reconhecidos e 47 mil requerentes de asilo vivendo na França, a chamada “crise do asilo” é razoavelmente menor que em pequenos países africanos como a Guiné, onde mais de 400 mil refugiados são confinados em campos (Wihtol de Wenden, 2002). A dramaticidade da situação em países ocidentais, portanto, é muito mais o resultado de representações que de fatos sociais. Contudo, sabe-se que nesse assunto, como em tantos outros, representações são fatos sociais (Rabinow, 1986). Com esses paradoxos em mente, pode-se entender a biopolítica do asilo, que se enquadra sob a biopolítica da alteridade em um mundo polarizado, como um fenômeno de dois lados.

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35 De um lado está a polis, sob a proteção do espaço europeu, que agrega Estados- nacionais, sendo a mais alta proteção entre as 25 nações que compõem a União Europeia. Seu núcleo foi delimitado em 1985 pela Convenção de Schengen, como uma zona que deveria se defender de ameaças externas. A Conferência de Tempere, de 1999, definiu uma nova política comum, ligando as formas de imigração que se deveria desencorajar com a concessão de asilo que, então, poderia ser efetivamente mais restrita. Aqueles identificados como pertencentes a esse espaço europeu, então, são chamados communautaires (membros da comunidade), e aqueles que são identificados com o exterior são étrangers (estrangeiros). Entende-se que a zona de proteção precisa defender-se de dois tipos de problemas de segurança. Em primeiro lugar, a segurança pública é ameaçada, a nível nacional, por ataques terroristas, e a nível local, pela criminalidade ordinária e delinquência. Esses se tornaram os maiores problemas para as políticas públicas francesas no início dos anos 2000, sendo também o resultado combinado da situação internacional no pós 11 de setembro e de uma campanha política nacional baseada na insegurança do dia-a-dia. Em segundo lugar, a ameaça à segurança social é pensada como uma decorrência do Estado de bem-estar, tanto no território francês quanto na Europa. O argumento de que a entrada muito grande de imigrantes ou refugiados poderia colocar em perigo o sistema de bem-estar é frequentemente apresentado como justificativa razoável para a implementação de políticas draconianas. Uma terceira dimensão de perigo recentemente se tornou perceptível. Embora seja difícil de nomear, já que está mascarada por um aspecto cultural ou religioso, às vezes étnico, pode-se pensá-la sem rodeios como segurança racial: trata-se da proteção de uma civilização europeia, cristã e branca contra o terceiro mundo muçulmano ou as populações negras, conforme os debates sobre a entrada da Turquia na comunidade europeia e a polêmica acerca do uso do véu em instituições públicas na França demonstraram. Nesse contexto, que se distanciou dos princípios humanistas da Convenção de Genebra, requerentes de asilo e estrangeiros em geral são vistos como potenciais ameaças para essas três dimensões da segurança europeia.

36 Do outro lado da biopolítica do asilo está o campo e o território de exceção. Embora Sangatte represente a mais famosa e mais evocativa imagem dessa figura, trata-se apenas de uma de suas numerosas manifestações, e certamente não é a pior. Nas 122 “zonas de espera” que existem ao longo das fronteiras francesas, onde os requerentes de asilo são detidos até que agentes oficiais decidam se eles poderão apresentar seu caso, ativistas dos direitos humanos regularmente criticam a indignidade das acomodações e a violência exercida pela polícia, a falta de comunicação com o exterior, a impossibilidade de receber assistência jurídica de advogados, bem como a ausência de qualquer controle externo ou forma de apelo judicial. Os centros de detenção – onde estrangeiros sem documentos, muitos dos quais são requerentes que tiveram seu pedido de asilo negado, esperam ser deportados –, foram objeto de muitos relatórios, alguns inclusive de políticos conservadores, que denunciam as condições inumanas e a suspenção de direitos normais. A singular “dupla sentença” é aplicada a estrangeiros acusados de atos criminosos ou delinquência, o que na maior parte dos casos são somente atos de resistência à expulsão. Esses indivíduos são condenados à prisão, e então postos para fora do país, não importa por quanto tempo tenham vivido na França, em alguns casos desde a infância. Nos primeiros meses de 2003, dois imigrantes morreram sufocados enquanto resistiam aos oficiais de polícia que deveriam conduzi- los à detenção. O impacto desse caso demonstra até onde se pode ir para se ver livre dos

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indesejados com aparente impunidade e pouca indignação pública. Essas cenas delineiam um mapa de territórios na geografia política europeia nos quais a exceção se torna tolerada (ver Figura 5).

FIGURA 5. Rastreamento de dióxido de carbono para detectar a presença de humanos em caminhões que cruzam a fronteira da França para a Inglaterra. Artista: Oliver Clochard. Cortesia do Groupe d'Information et de Soutien des Immigrés, 2001. [N.T. Câmara do comércio e indústria de Calais. Aviso aos motoristas. Um controle de « CO2 » em suas caçambas pode ser realizado depois dos quiosques]

37 Ao contrário da visão profética de Agamben de que o campo, e não a polis, caracterizaria o paradigma biopolítico do Ocidente, prefiro pensar que esses são os dois lados das democracias contemporâneas. Porque esses regimes defendem a polis para uns poucos bem-aventurados, eles inventam o campo para os indesejados. No primeiro, a vida é reconhecida como a existência política do cidadão, enquanto que no último, ela é reduzida à vida nua do vagabundo. Entre a polis – idealizada como costuma ser – e o campo – marginal como ele parece ser – as tensões são, portanto, extremas. No entanto, seria cínico ou simplista pensar que a renúncia coletiva manifesta pelo campo é o preço que pagamos pelo conforto da polis. De fato, as tensões entre essas duas figuras de nosso mundo explicam porque, no que diz respeito aos requerentes de asilo e outros indesejados em geral, repressão e compaixão estão tão profundamente conectadas. Não apenas não há separação entre o humanitário e o político, mas, em contradição com Agamben, sugiro que o último crescentemente engloba o primeiro, que, em retorno, o redefine. A crescente confusão entre o humanitário e o político é um traço estrutural da biopolítica contemporânea.

38 Expressar comiseração pelo solicitante de asilo ou pelo imigrante indesejado traz menos benefícios a essas figuras que a nós mesmos, uma vez que demonstramos o quão humanos realmente somos. O médico que legaliza a situação do refugiado indesejado, cuja presença de repente se torna legítima por causa de uma doença que oferece risco de morte – como no caso da jovem haitiana –, e o chefe de governo que pede a

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servidores públicos que examinem os pedidos por asilo com sentimentos humanitários – como no caso dos curdos no East Sea –, ambos participam de uma redefinição da economia moral de nosso tempo: uma combinação particular de políticas de ordem e políticas de sofrimento, na qual a proteção da segurança de poucos na polis se mantém enquanto o tratamento compassivo àqueles no campo é assegurado.

39 O jovem herói afegão do filme de Michael Winterbottom In This World (2003) deixa um campo que parece uma cidade no Paquistão, que é o país com maior número de refugiados do mundo. Ele atravessa países em ônibus e caminhões, sofre infortúnios e enfrenta perigos para chegar a Istambul. Depois, ele perde seu companheiro mais velho, que morre asfixiado em um contêiner enquanto viajava de barco à Itália. Finalmente, ele chega a Sangatte, a última parada antes da Grã-Bretanha, onde ele, então, terá sucesso na obtenção de um posto de lavador de pratos em um restaurante e estará submetido à proteção subsidiária até que chegue à maioridade legal. Para ele, Sangatte existe apenas como um episódio em sua jornada, a última estação antes de chegar a polis, onde ele se juntará às fileiras das classes baixas de terceiro mundo. Para chegar lá, o risco que ele assumiu foi (somente) sua vida. A comiseração que ele inspira entre os espectadores do filme faz com que acreditem que, para além de sua miséria, eles compartilham uma humanidade comum. Por esse momento de ilusão ficcional em nosso mundo moral, o filme certamente merece o Urso de Ouro, o Prêmio da Paz e o Prêmio Ecumênico do Júri, todos os quais lhe foram dados em Berlim em 2003.

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NOTAS

1. N. T. Edição brasileira: BATESON, Gregory. Naven: um exame dos problemas sugeridos por um retrato compósito da cultura de uma tribo da Nova Guiné, desenhado a partir de três perspectivas. 2ª edição, tradução de Magda Lopes. São Paulo: Edusp, 2008. p. 70. 2. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª edição, Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 128. 3. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 14. 4. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 130. 5. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 130. 6. N. T. Edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p.9. 7. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição, tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 13. 8. N. T. Trecho extraído da edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p. 176.

RESUMOS

As políticas de imigração na Europa se tornaram crescentemente restritivas nas últimas três décadas. Nos anos 1990, o asilo político perdeu muita de sua legitimidade, ao passo que novos critérios baseados em argumentos humanitários se tornaram mais comuns nas apelações. Requerentes de asilo foram sendo cada vez mais identificados como imigrantes ilegais e, portanto, sujeitos à extradição, a menos que razões humanitárias fossem encontradas para

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requalificá-los como vítimas merecedoras de empatia. Essa substituição do direito ao asilo para uma obrigação em termos de caridade leva a reconsiderar a separação de Giorgio Agamben entre o humanitário e o político, sugerindo uma humanitarização das políticas. O Centro de Sangatte, geralmente referido como um campo transitório, tornou-se um símbolo desse ambíguo tratamento europeu à “miséria do mundo” e serve como uma chave analítica que revela as tensões entre repressão e compaixão, assim como a economia moral da biopolítica contemporânea.

Immigration policies in Europe in the last three decades have become increasingly restrictive. During the 1990s, political asylum lost much of its legitimacy, as new criteria based on humanitarian claims became more common in appeals for immigration. Asylum seekers were increasingly identified as illegal immigrants and therefore candidates for expulsion, unless humanitarian reasons could be found to requalify them as victims deserving sympathy. This substitution of a right to asylum by an obligation in terms of charity leads to a reconsideration of Giorgio Agamben's separation of the humanitarian and the political, suggesting instead a humanitarianization of policies. Sangatte Center, often referred to as a transit camp, became a symbol of this ambiguous European treatment of the "misery of the world" and serves here as an analytical thread revealing the tensions between repression and compassion as well as the moral economy of contemporary biopolitics.

ÍNDICE

Keywords: immigration, asylum, France, biopolitics, humanitarianism Palavras-chave: imigração, asilo, França, biopolítica, humanitarismo

AUTORES

DIDIER FASSIN

University of Paris North – Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales

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