Podem As Torcidas De Futebol Ser Movimentos Sociais?1
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Podem as torcidas de futebol ser movimentos sociais?1 Felipe Tavares Lopes (UNISO) Bernardo Buarque (FGV) Introdução A realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 mudou significativamente as condições estruturais dos principais estádios brasileiros, transformando-os em arenas multiusos, capazes de receber diferentes tipos de eventos, em adequação a parâmetros e tendências internacionais. Doze estádios foram construídos ou reformados para atender as exigências da instituição organizadora do evento: a Fédération Internationale de Football Association (FIFA). A fim de ampliar suas receitas e não ficar para trás de seus rivais, estádios ligados a clubes que ficaram de fora do Mundial também decidiram construir novas arenas em atendimento ao paradigma arquitetônico do chamado padrão FIFA2. Ainda que esse processo de “arenização” possa ter contribuído para o aumento da segurança e do conforto do torcedor, a modernização das praças esportivas tem ensejado fortes críticas de movimentos sociais, acadêmicos e jornalistas, por conta dos gastos públicos envolvidos e dos termos de concessão privada das estruturas públicas (Santos, 2016). Torcedores-militantes também têm chamado a atenção para um efeito menos discutido do processo de “arenização”: a mudança radical da experiência de torcer e a transformação da composição social do público frequentador dos estádios. Finda a Copa do Mundo de 2014, pôde-se observar, nas arquibancadas de diversas regiões do país, uma série de bandeiras, faixas, camisetas, bonés, entre outras formas de comunicação visual, que estampam mensagens contra o chamado “futebol moderno”, lema internacional adotado por torcidas conhecidas na Europa como “ultras”. O símbolo da luta contra esse futebol é emblematizado por uma bola de couro antiga envolta e estilizada por uma grinalda verde-oliva. O emblema pode ser visto, até mesmo, na pele de alguns torcedores- militantes mais engajados, sob a forma de tatuagem. 1 Uma versão do texto ora apresentado foi publicada originalmente sob o título “Ódio eterno ao futebol moderno: poder, dominação e resistência nas arquibancadas dos estádios da cidade de São Paulo”. Revista Tempo. Niterói, vol. 24, n. 2, maio/agosto de 2018. 2 Referimo-nos, aqui, à Sociedade Esportiva Palmeiras e ao Grêmio de Football Porto-Alegrense. No primeiro caso, o clube optou por reformar seu antigo estádio. No segundo, por edificar outro. A luta contra o “futebol moderno” começou no contexto europeu e visou denunciar e enfrentar o processo de hipermercantilização do futebol e suas consequências, consideradas nefastas por esse segmento de torcedores. Na perspectiva de seus críticos, a elitização dos estádios corrompe a cultura tradicional de torcer e destrói a “verdadeira” paixão pelo futebol. A atmosfera festiva das arquibancadas, marca do modo passional e gregário de acompanhar o futebol profissional de alto rendimento, é comprometida, o que ocorre também com os laços tradicionais que aproximavam os clubes de suas comunidades locais. Em última instância, a intromissão do coeficiente mercantil, exponenciada no futebol de espetáculo contemporâneo, seria a causa do fim das emoções, da autenticidade, da espontaneidade, da história, da tradição e da rivalidade no futebol (Numerato, 2014). Nos últimos anos, a luta contra o “futebol moderno” tem despertado a atenção do campo científico internacional. Autores como Dino Numerato (2014) têm refletido sobre suas ambiguidades, controvérsias e contradições no contexto europeu. No Brasil, há alguns anos, estudos em perspectiva histórica (Hollanda, 2009; Hollanda; Medeiros, Teixeira, 2015) têm investigado experiências organizativas de torcedores e, em período mais recente, pesquisas desenvolvidas no campo da comunicação (Santos; Helal, 2016) passaram a abordar de forma mais direta os referidos embates, enfocando o direito de acesso aos estádios e ao afastamento do torcedor de seu clube (Santana, 2016). Ainda que a reivindicação por esses direitos lhes pareça justa e digna de apoio, com certa frequência, a luta contra o “futebol moderno” guarda determinadas ambiguidades que podem ser questionadas. Por exemplo, tal movimento reivindicatório ainda reifica certos estereótipos de gênero e certas práticas homofóbicas, colaborando para o aumento da intolerância nas arquibancadas. Ela também tende a, paradoxalmente, reforçar princípios neoliberais em termos de vigilância e mercado (Numerato, 2014). Diante disto, esta apresentação explora as contradições e os conflitos vivenciados no futebol brasileiro contemporâneo, tendo por base a dinâmica associativa de determinadas vanguardas de torcedores contra transformações econômicas, sociais e arquitetônicas observadas no espaço dos estádios e dos clubes. Ao explorar essas contradições e conflitos, objetivamos compreender como a atuação dessas vanguardas pode efetivamente transformar (ou manter) as relações de dominação que caracterizam o campo de produção, transmissão e recepção/ consumo do referido futebol. Para alcançar esse objetivo, adotamos a seguinte estratégia argumentativa: começamos apresentando os conceitos-chaves – poder, dominação e resistência – que embasam nossa percepção sobre o fenômeno, e explicitamos a metodologia que norteou e fundamentou nossas análises. Em seguida, discutimos as condições sociais e históricas de emergência e de desenvolvimento do “futebol moderno” e dos movimentos de torcedores contrários a ele3. Por fim, examinamos as pautas e os modos de operação desses movimentos, os pontos de convergência e os de divergência internas aos grupos de torcedores. A identificação das semelhanças e das diferenças permite focalizar o potencial de transformação das assimetrias relativamente estáveis presentes no universo do futebol na contemporaneidade. Referencial teórico: poder, dominação e resistência A noção de poder tem assumido diferentes significados ao longo da história da Filosofia e das Ciências Sociais e Humanas. Não é nossa intenção aqui adentrar nesse campo minado e retraçar os contornos históricos desse conceito. Para nossos fins, basta destacar que, de um modo geral, a noção de poder foi utilizada aqui para designar a capacidade, social ou institucionalmente conferida a algumas pessoas ou a específicos grupos sociais, “[...] de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e em suas consequências” (Thompson, 1998, p. 21). Já a noção dominação foi empregada para se referir às relações de poder que são sistematicamente assimétricas, ou seja, entendemos que uma situação pode ser descrita como de dominação quando “[...] grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito” (Thompson, 2000, p. 80). A noção de resistência, por sua vez, foi empregada para descrever aquelas ações destinadas a chamar a atenção das pessoas para relações de dominação e para a criação de obstáculos à sua transformação. Ou, ainda, para designar as ações destinadas a modificar essas relações (Alabarces, 2008). A fim de evitar mal-entendidos, é preciso destacar que, tomando como base essa noção, entendemos que nenhuma ação é, em si mesma, uma forma per se de resistência. Por exemplo: a defesa radical da igualdade pode 3 Essa discussão é, evidentemente, seletiva e deixa de lado eventos e atores que merecem ser tratados em outro estudo. servir para empoderar grupos subalternos em determinadas circunstâncias, mas pode servir para oprimi-los em outras. Também é preciso salientar que a resistência pode provocar sua própria contradição. A título de exemplo, considere-se que uma revolta contra um regime autoritário pode servir de desculpa para um ditador ampliar a repressão à população, com o enfraquecimento daqueles grupos que podem se transformar num desafio real a ele. Além disto, existe uma enormidade de práticas que podem ser qualificadas como de resistência (Alabarces, 2013). Afinal, relações de dominação podem ser desafiadas tanto por ações deliberadas e coletivas quanto por ações individuais e difusas. Estas não são claramente articuladas como de resistência, a exemplo da irreverência do humor anônimo, que percorre as ruas da cidade (Chauí, 2014). Delineamento metodológico: procedimentos de produção e análise de informação A metodologia de produção e análise de informações empregada envolveu a adoção de diversos procedimentos. Num primeiro momento, fizemos um levantamento da literatura (em língua portuguesa, inglesa e espanhola) acerca dos movimentos de torcedores na Europa e na América do Sul, compilando o teor de suas críticas ao “futebol moderno”. Para realizar tal levantamento, consultamos o Google Scholar, o Scielo, o Banco de Teses e Dissertações da Capes e as bibliotecas da Universidade de São Paulo, da Universidade de Sorocaba e da Fundação Getúlio Vargas. Os descritores utilizados nas buscas variaram de acordo com o modo de organização e a terminologia de cada base de dados. Também consultamos informantes privilegiados, especialistas no tema, a fim de encontrar outros artigos com informações e análises detalhadas sobre nosso objeto. Além desse procedimento, coletamos material sobre as críticas ao “futebol moderno” em sites, blogs e páginas do Facebook produzidos por torcedores-militantes. Esse material foi lido cuidadosamente e permitiu que nos acercássemos dos pontos de vista desses torcedores. Assim, com base na leitura do material levantado, elaboramos um tópico-guia que