Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira

Esporte e violência no jiu-jitsu: o caso dos “pitboys”

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Valter Sinder Co-orientadora: Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida

Rio de Janeiro Dezembro de 2007

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Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira

Esporte e violência no jiu-jitsu: o caso dos "pitboys"

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Valter Sinder Orientador Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida Co-Orientadora Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Prof. Roberto Augusto DaMatta Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Prof. Paulo Jorge da Silva Ribeiro Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Profa. Maria Claudia Pereira Coelho UERJ

Prof. João Pontes Nogueira Coordenador Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2007

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira

Graduou-se em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001). Fez especialização (Latu Sensu) em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006). Tem interesses em Sociologia e Antropologia, com ênfase nos seguintes temas: sociologia da violência, antropologia urbana e culturas jovens.

Ficha Catalográfica

Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes

Esporte e violência no jiu-jitsu : o caso dos “pitboys” / Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira ; orientador: Valter Sinder ; co-orientadora: Maria Isabel Mendes de Almeida. – 2007. 160 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Sociologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia

1. Sociologia – Teses. 2. Juventude. 3. Violência. 4. Esporte. 5. Diversão. 6. Masculinidade. I. Sinder, Valter. II. Almeida, Maria Isabel Mendes de. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. III. Título.

CDD: 301

A Antonio Carlos Menezes Teixeira, que, além de tudo, é meu pai.

Agradecimentos

Na cartilha que ensina a formatar uma dissertação, lê-se: “Tal como a dedicatória, os agradecimentos devem ser objetivos, sendo evitados quaisquer exageros”.

Entendo a preocupação em prevenir excessos que destoem da sobriedade acadêmica. Mas, embora pertinente, a advertência me parece um tanto injusta. Acaso seria exagero afirmar que, sem a mão firme e ao mesmo tempo paciente dos orientadores, esta dissertação teria sido sequer possível? Ou que, sem a intervenção decisiva dos membros da banca no exame de qualificação, teria a forma que se verá adiante? Não há exagero em afirmar isso. Portanto, que me seja permitido quebrar o protocolo uma única vez.

Aos meus orientadores Valter Sinder e Maria Isabel Mendes de Almeida, toda a gratidão que houver. Palavra alguma expressará o que lhes devo pela inspiração, estímulo e atenção.

Ao professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro, por tudo. Em especial, muito obrigado por cada uma de suas aulas: por nos mostrar todos os motivos para perder a inocência, e nenhum para perder a esperança.

Ao professor Roberto DaMatta, por haver dedicado uma vida inteira ao estudo do que faz do brasil, Brasil. É um privilégio poder ter estudado e aprendido com o senhor.

Ao professor Luiz Eduardo Soares, pelas críticas e orientações fundamentais, por ocasião de meu exame de qualificação.

Ao professor José Carlos Rodrigues, pelos poucos mas decisivos conselhos sobre como me aproximar do tema deste trabalho.

A todos os entrevistados, sobretudo ao “Mestre” e ao “Professor”, exemplos de dedicação ao esporte e amigos que espero conservar por longo tempo.

Aos colegas do curso de mestrado, principalmente Leonardo “Setúbal” Lucena e Olívia Nogueira Hirsch – amigos novos, porém de grande importância. Agradeço também a Amanda Costa Reis, pela generosidade de me haver cedido seu clipping de matérias jornalísticas sobre “pitboys”.

A Ana Roxo, Mercedes e Mônica, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, pelo carinho e atenção.

A CAPES e à PUC-Rio, pelas bolsas concedidas.

A meu avô, Ernani Teixeira Filho, meu primeiro e mais ávido leitor.

A meu pai, Antonio Carlos Menezes Teixeira, por tanta coisa que é melhor nem começar a enumerar – prometi quebrar o protocolo uma única vez.

A José Guilherme Vereza, seguramente o melhor amigo que uma pessoa pode desejar ter.

E, last but not least, às mulheres da minha vida: minha mãe, Patricia de Britto e Cunha (in memorian); minhas muitas e queridas irmãs – Anna Carolina, Anna Paola, Anna Gabriela, Larissa e Antonia –; minha grande amiga e psicanalista Regina Ewald; e à Thais Continentino Blank, minha namorada, porque sem o amor todo o resto não faz sentido.

Resumo

Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes; Sinder, Valter; Mendes de Almeida, Maria Isabel. Esporte e violência no jiu-jitsu: o caso dos “pitboys”. Rio de Janeiro, 2007. 160 p. Dissertação de mestrado. Departamento de Sociologia e Política. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisa busca compreender a relação entre a prática do jiu-jitsu, tal como desenvolvido pela família Gracie, e a violência praticada pelo que a mídia convencionou chamar de “pitboys”, jovens cariocas de classe média e alta que amiúde envolvem-se em brigas e atos de vandalismo. Evitando abordar o tema pelo viés da ausência, comumente utilizado para explicar o comportamento de “pitboys” – a falta de instrutores de jiu-jitsu qualificados, de pais zelosos, de “limites” de educação, de leis mais severas etc. –, o presente estudo procurou observar, no interior de uma academia de jiu-jitsu, a construção de um ethos guerreiro, a profissionalização da “porrada” advinda do sucesso dos eventos de vale-tudo, as inscrições corporais dos praticantes de jiu-jitsu, a importância das “marias-tatames” na consolidação de um estilo de masculinidade rude ou bruto, e a relação entre virilidade e masculinidade, atributos muito prezados por lutadores. Num segundo momento, a pesquisa se dedica a entender a “porrada” como um jogo, uma brincadeira inserida num contexto lúdico; jogo que é a um só tempo racional e irracional, e que implica sempre em algum risco e, portanto, em possibilidade de reconhecimento e lucros de distinção para os vencedores. Observa-se também o contexto mais amplo dentro do qual o fenômeno “pitboy” eclodiu: a sensação de insegurança que se instala no rastro da ascensão do crime organizado a partir dos anos oitenta, o processo de identificação de “pitboys” com marginais excluídos, a cultura da malandragem que une a ambos e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, o reforço das fronteiras de classe no uso do “você sabe com quem está falando?”, comumente utilizado por jovens de classe média e alta que praticam a violência na noite carioca.

Palavras-chave

Juventude, violência, esporte, diversão, masculinidade.

ABSTRACT

Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes; Sinder, Valter; Mendes de Almeida, Maria Isabel. Sport and violence in jiu-jitsu: on "pitboys". Rio de Janeiro, 2007. 160 p. Master's Thesis. Department of Sociology and Politics. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The research tries to understand the relation between the practice of jiu-jitsu, as developed by the , and the violence of the so called "pitboys", upper class young boys that often becomes involved in street fights and acts of vandalism. Preventing to approach the subject trough the “bias of the absence”, normally used to explain the behavior of "pitboys" - the lack of qualified jiu-jitsu instructors, zealous parents, "limits" of education, severe laws etc. -, the present study seeks to observe, in the interior of a jiu-jitsu academy, the construction of a warlike ethos, the professionalization of street fights due to the success of “No Holds Barred” events, the corporal inscriptions of jiu-jitsu practitioners, the importance of the "Marias-tatames" (young girls who choose only mean jiu-jitsu fighters to date) in the consolidation of a rude style of masculinity, and the relation between virility and masculinity, attributes highly valued by fighters. The research also tries to understand street fights as a game that is part of a playful context; a play that, at the same time, is both rational and irrational, that always implies in some kind of risk and, therefore, in the possibility of recognition for the winners. The wider context in which the phenomenon "pitboy" came out is also observed: the sensation of unsecurity that is installed in the track of organized crime’s ascension back in the Eighties; the process of identification of "pitboys" with excluded delinquents; the “malandragem” culture that joins them both and, paradoxicalally, the frequent use by “pitboys” of the autoritarian rite "do you know who are you speaking to?", that reinforces the distinction between upper and lower class people in .

Keywords

Youth, violence, sport, masculinity.

Sumário

1. Introdução 11

2. No Tatame. 22

2.1.Superioridade e identidade: 23 breve história do Gracie jiu-jitsu

2.2. Sem quimono, com quimono, sem quimono: 34 a transformação do jiu-jitsu

2.3. Corpo, masculinidade, virilidade e pertencimento 49 numa academia de jiu-jitsu

3. Na Rua 87

3.1 Contextualizando a discussão: 88 breve painel da violência no Brasil

3.2 Imagens da barbárie: os discursos sobre “pitboys” 99

3.3 Enfim, porrada: depoimentos de “ex-pitboys” 109 e seguranças de casas noturnas

4. Conclusão 151

5. Referências Bibliográficas 155

Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas...

Michel Foucault

1 Introdução

A festa não havia atingido seu clímax. Jovens, em sua maioria ainda não saídos da adolescência, bebiam e conversavam, riam e se azaravam, andavam para cá e para lá, num deslocamento incessante e aparentemente aleatório. Vazia, a pista de dança aguardava seus melhores momentos. A noite, contudo, prometia. Tratava-se do aniversário da filha mais nova de uma das famílias mais ricas e tradicionais do Rio de Janeiro, dona de um importante conglomerado midiático. Sozinho e em pé, eu observava o vai-e-vem das pessoas. Os dois amigos com os quais eu havia ido à festa tinham se afastado para buscar caipirinhas. De repente, sinto alguém me pegando, pela costas, num golpe conhecido como “gravata” – com a diferença de que, ao mesmo tempo em que meu pescoço é apertado (a “gravata” propriamente dita), meu braço direito é continuamente torcido por trás do corpo, num movimento que vai de baixo para cima. A pressão no pescoço não é o problema: dificulta mas não impede a respiração. A torção no braço, sim, causa algum incômodo. Começa a doer levemente. Abro um sorriso. “Deve ser alguém lá da academia”, penso. Tratei logo de fazer o que todos os lutadores de jiu-jitsu fazem quando são apanhados num golpe do qual não conseguem escapar, e que os força a desistir de seguir na luta: dei dois tapinhas no corpo. É a senha, o código para dizer “ok, eu desisto”. Mas ao invés de ter meu pescoço e braço liberados, como seria natural, sinto a torção aumentar ainda mais. Nesse momento, viro o rosto para o lado, tentando identificar o engraçadinho que não queria me soltar. Pergunto: “Quem é?”. Ato contínuo, o golpe se afrouxa, e sou levemente empurrado para frente. Quando viro para trás, o susto: – É o Predador. O Predador devia ter a mesma estatura que eu, mas sua compleição física era claramente mais larga e forte. Sua aparência intimidava – os cabelos raspados, a orelha deformada, o pescoço grosso, os olhos secos e fixos. Reparei que mantinha os dois pés afastados, um ligeiramente mais à frente que o outro: estava “em base”, como se diz no jargão das artes marciais, isto é, distribuía bem o peso 12 do corpo de modo a manter-se equilibrado e prevenido. Então me dei conta da gravidade da situação, e tive medo. Estava obviamente irritado com a provocação grosseira e desnecessária, isto é, com o fato de haver tido meu braço torcido e meu pescoço apertado por um completo desconhecido, mas sabia que, se protestasse – “Tá maluco, rapá? Eu te conheço? Como é que tu faz uma coisa dessas?” – acabaria suscitando uma discussão e, com quase toda certeza, uma briga. Ali estava o estereótipo perfeito de um praticante de jiu-jitsu, esperando apenas minha reação natural de ofensa e indignação para colocar em prática sua potência e habilidade de luta. O cenário já estava armado; tudo o que ele, Predador, necessitava agora era que sua presa escolhida o confrontasse, o desafiasse. Mas, intuitivamente, fiz o único movimento, o único gesto que talvez me livrasse, de uma vez só, da guerra aberta e da saída covarde e desmoralizante. Estiquei a mão e, com a maior naturalidade que fui capaz de demonstrar, ofereci um cumprimento: – E aí, Predador, beleza? Devo tê-lo pego de surpresa. O Predador hesitou por um instante; depois aceitou o cumprimento, apertando-me firmemente a mão. Tão logo nossas mãos se desvencilharam, dei-lhe as costas e saí andando, com a pressa nervosa de quem na verdade gostaria de estar correndo. Não o vi mais naquela noite. A festa seguiu seu curso, e é provável que eu tenha voltado para casa um pouco embriagado. Tempos depois, refletindo sobre este episódio, cheguei à conclusão de que ao cumprimentá-lo dizendo “e aí, Predador, beleza?”, eu o reconheci, nos dois sentidos do termo. Ou seja, reconheci que ele era de fato O Predador, e portanto automaticamente atestei sua superioridade em relação a mim, sua presa; e reconheci também, embora inadvertidamente, a pessoa por trás do personagem Predador, o que o pode ter lhe causado certa confusão mental, uma dúvida como “será que esse cara realmente me conhece de algum lugar?”. Ademais, o aperto de mãos deve ter contribuído para desestabilizar suas expectativas. Numa situação como aquela, é quase certo que ele esperasse, de minha parte, a reclamação direta ou a fuga acuada, jamais o tratamento normalmente dispensado a um amigo ou conhecido. Mas tudo isto, é claro, são apenas suposições. Se minha reação foi determinante para o desfecho pacífico de nosso breve encontro, ou se o Predador

13 simplesmente percebeu que eu estava apavorado e, num surto de compaixão, teve pena de me “encher de porrada”, nunca saberemos. O “choque de cultura” a que Roy Wagner (1978) se refere, a experiência desconcertante e às vezes traumática do desembarque do antropólogo no campo, isto é, no seio da população remota que ele um dia resolveu pesquisar, este choque, eu não conheci. Não passei por todo tipo de tormento e situações embaraçosas para me familiarizar com os códigos de comportamento dos “nativos”. Cheguei já adaptado a eles quando fui fazer a etnografia; conhecia-os de longa data. Meu primeiro contato com o jiu-jitsu fora na academia Gracie do Humaitá, ainda nos anos oitenta. Conheci Hélio Gracie, patriarca da família e já naquela época uma lenda do esporte, e tive aulas particulares com seu filho Rolker – além de defesa pessoal, aprendi que deveria fitar meu interlocutor sempre nos olhos, e que saúde era sobretudo uma questão de combinar alimentos de uma maneira bastante criteriosa e específica. Mais tarde, já adolescente, segui praticando jiu-jitsu por alguns anos em outra academia da zona sul da cidade. Foi ali, no início da década de noventa, que o jiu-jitsu caiu no gosto dos jovens de classe média e alta, primeiro no Rio de Janeiro, depois no Brasil todo. Naquele momento, surgia também a figura do “pitboy”. Conheci “pitboys” no tatame e nas noitadas. De algum modo, fizeram parte de meu cotidiano durante a adolescência. Voltei à mesma academia que frequentei dos quinze aos dezenove anos para produzir a etnografia que se segue. Apesar de conhecer os códigos dos nativos, não foi sem algum estranhamento que passei a conviver entre eles novamente. É curioso, mas só agora – depois de haver terminado o trabalho, quando enfim escrevo as páginas que o introduzem – me dou conta de que, desde o primeiro contato com o antigo Mestre e colegas de treino, fiz questão de exagerar certos traços de minha personalidade de modo a representar a mim mesmo como um sujeito algo boêmio, que não liga muito para o próprio corpo e menos ainda para o fato de ganhar ou perder uma luta. Em outras palavras, me esforcei em passar uma imagem oposta àquela que, imagina-se, os lutadores de jiu-jitsu tanto prezam, qual seja, a do macho viril, firme e de poucas palavras. Com isto quero dizer que, em diversas oportunidades, abusei da ironia e do humor auto-depreciativo para construir minha caracterização perante toda a academia, do aluno mais graduado ao xará Antonio, faixa-branca como eu. Repetidas vezes deixei claro que meu estilo de vida, e alguns dos valores que a norteiam, são bastante díspares ou até

14 mesmo antitéticos a muito do que é caro a qualquer lutador ou praticante de jiu- jitsu: a virilidade, a disposição para a luta, a competitividade, o orgulho do próprio corpo. Talvez tenha adotado tal postura porque precisasse deixar bem nítida minha distância em relação a “eles”, como se quisesse dizer aberta e explicitamente “não sou um de vocês, tenham isso em mente ao lidar comigo”; talvez porque tivesse simplesmente a intenção de provocá-los, de saber como reagiriam a um outro diferente, excêntrico; ou talvez porque houvesse lembrado, ainda que inconscientemente, de meus tempos de redator publicitário – e se há uma coisa que um publicitário sabe é que, se feito com suficiente inteligência, o anti- marketing é uma das melhores estratégias de marketing que existe. Ou talvez tenha sido tudo isso ao mesmo tempo. Apesar deste curioso e aparente, digamos, “curto-circuito” – um “ex-nativo” que, anos depois, “volta para casa” fazendo questão de demonstrar que não é mais um “nativo” –, penso que fui bem sucedido. Minha condição de veterano, membro da primeira geração de alunos da academia, me garantiu recepção calorosa por parte do Mestre. Mas a simpatia dos colegas de treino, com uma única exceção, não foi ganha a priori, e sim no convívio diário. A problemática do posicionamento que resolvi adotar, contudo, não se resume a construção deliberada de uma determinada imagem, esta estratégia que chamei de anti-marketing. Havia também o outro e decisivo espectro de minha identidade, que me causava dúvida e alguma inquietação: devo contar a todos eles, logo de saída, que sou um antropólogo estudando o universo do jiu-jitsu, e que o principal foco de minha pesquisa é a questão da violência que envolve os “pitboys”? Inicialmente, optei por observar sem dizer que estava observando, talvez inseguro com minha própria condição de “investigador”. Claro, não demorou muito para que o Mestre, durante uma conversa casual, me perguntasse o “quê eu fazia da vida”. Disse-lhe a verdade – que cursava um mestrado em ciências sociais, e que estava estudando para ser um antropólogo –; mas não toda a verdade. Foi somente em 30 de janeiro de 2007, portanto quase seis meses depois de haver retomado a prática do jiu-jitsu, que contei a todos que vinha realizando um estudo que, em grande parte, era sobre a academia. Somente então eu revelei os propósitos de minha pesquisa, e lhes disse que eram “personagens” de meu relato, que durante todo o tempo eu os estivera observando e anotando muitas das conversas que entabulávamos durante os treinos.

15

Depois disso, depois de revelada minha identidade, virei “o antropólogo”. Brincalhão, o Mestre passou a me receber sempre aos gritos de “chegou o nosso antropólogo!” ou então “úúúú antropóóólogo!” Mas não fazia isso com desdém; muito ao contrário, havia algo de carinhoso, como se reconhecesse uma certa autoridade no fato de eu ser um estudioso, por mais que não compreendesse inteiramente o quê eu estudava. Isso me pareceu bastante evidente quando da ocasião em que uma equipe de TV fez uma reportagem sobre a academia. Naquela oportunidade, fui apresentado à repórter (uma loura bonita e de corpo bem talhado, que mereceu toda atenção e sorte de elogios entre o pessoal no tatame) pelo Mestre da seguinte forma: “Fulana, este é o nosso antropólogo!”. No dia seguinte, ao encontrá-lo, antes mesmo de me apertar as mãos ele já foi dizendo: “Viu só a moral que eu te dei com a gostosa? Chegou o nosso antropólogo!” O antropólogo chegou na academia de jiu-jitsu de outrora esperando encontrar “pitboys”. Decepcionou-se. Não estavam lá. No decorrer do trabalho de campo e da pesquisa bibliográfica ficaria evidente ser impossível estabelecer uma relação direta do tipo causa e efeito entre jiu-jitsu e “pitboys”, não apenas por fatores concernentes à prática do jiu-jitsu, mas também em função do próprio estatuto do termo “pitboy”. Em relação a este último ponto, basta uma rápida olhada nos jornais para verificar que, atualmente, o uso do termo “pitboy” não mais se restringe a lutadores: expandiu-se para abrigar qualquer ato de delinqüência cometido por jovens de classe média e alta1. Hoje, o termo “pitboy” é “aplicado a um indíviduo ao final de um bem sucedido processo de rotulação” (Cardoso, 2005: 47), no qual o principal fator que garante o rótulo ao jovem infrator é a junção entre sua classe social e o tipo de crime por ele cometido, e não sua adesão à alguma arte marcial. De saída, somos obrigados a reconhecer as dificuldades de se falar em “pitboy” como categoria sociológica. Como definir um “pitboy”? Se aceitarmos, a título de ilustração, a definição de que “pitboy” é todo aquele que se envolve em brigas com regularidade, arriscaremos a incluir pessoas que tenham agido em defesa própria mais de uma vez num curto espaço de tempo. Portanto, a

1 Comprova-o o recente episódio de agressão e roubo sofridos pela doméstica Sirlei Dias, atacada por um grupo de jovens da Barra da Tijuca. Examinaremos a questão ao longo do trabalho. Para uma análise mais detalhada de como o termo “pitboy” transformou-se em uma categoria de acusação cujo emprego não necessariamente encontra-se vinculado às artes marciais, e de como o processo de penalização dos “pitboys” incorre nos mesmos erros que pretende sanar, consultar Cardoso, 2005.

16 freqüência do ato de brigar é um critério necessário, porém insuficiente. Qualificando um pouco mais o argumento, poderíamos dizer que o “pitboy” não apenas envolve-se em brigas com freqüência: tem no mais das vezes a clara intenção de provocá-las. Contudo, ainda assim a definição resulta falha. Basta imaginarmos, por exemplo, um lutador de jiu-jitsu que, mesmo não sendo ele próprio o agente provocador de confusões em bares e boates, termina sempre por tomar parte nelas. (De resto, a intencionalidade como critério puro não tem muita serventia: acaso um sujeito que, ao flagrar sua esposa com um amante, inicie uma briga com a clara intenção de machucar seu rival pode ser considerado um “pitboy”?) Poder-se-ia, então, tentar uma segunda definição: “pitboy” é o jovem que, por pouca ou nenhuma motivação aparente, provoca um confronto físico numa situação de convívio social, ou que reage com violência desproporcional a um ato que de maneira geral não motivaria uma atitude física. Mas em que pese o esforço, persiste o problema. Pois como definir os parâmetros de legitimidade do uso da violência corporal, as fronteiras que estabelecem a (des)proporcionalidade de uma reação? Seriam tais parâmetros fixos, isto é, independentes do contexto do conflito, ou flexíveis? E, mais ainda, estariam todos eles contemplados pela noção de “legítima defesa” prevista em lei? Nesta perspectiva, em quê se diferenciam os atuais “pitboys” das antigas gangues de jovens do Rio de Janeiro – como a famosa “turma da Miguel Lemos” – que, décadas antes, gozavam de péssima reputação justamente em função das brigas e arruaças que amiúde provocavam? À esta altura, espero haver ficado suficientemente claro que o “pitboy” – neologismo2 criado em 1999 pelos jornalistas Tom Leão e Carlos Albuquerque nas páginas do “Rio Fanzine”, espaço dedicado à cultura jovem no jornal O Globo – não existe de fato. Ele é um estereótipo, causa e efeito de um discurso midiático que o representa ao mesmo tempo em que o constrói. Para os propósitos deste trabalho, o “pitboy” será pensado, segundo a terminologia weberiana, como um tipo ideal. E um tipo ideal, como se sabe, é uma ferramenta de análise, uma aproximação conceitual que, ao sublinhar ou mesmo exagerar um determinado conjunto de características relevantes no interior de um fato social, constrói um

2 O neologismo “pitboy” resulta da união das palavras “pitbull”, raça de cães bastante apreciada por lutadores por sua força e ferocidade, e “playboy”, uma referência à classe social à qual a maioria dos lutadores de jiu-jitsu pertence.

17 modelo que a despeito de não existir concretamente permite apreciar o fato em questão com maior acuidade. Se você é um antropólogo pesquisando o universo do jiu-jitsu, uma das coisas mais desastradas que pode fazer é empregar a palavra “pitboy” em uma conversa na academia ou durante uma entrevista. A simples menção ao termo “pitboy” já é suficiente para causar certo mal-estar. Trata-se do ponto crítico, nevrálgico, que afeta os lutadores de jiu-jitsu e prejudica a imagem do esporte como um todo. Nada mais natural, portanto, que nenhum lutador se identifique como um “pitboy”, e que faça questão de repudiar abertamente o comportamento que lhe é associado. Mesmo um praticante de jiu-jitsu que goste de bater nos outros (um “Predador”, digamos) dificilmente pensará em si próprio como um “pitboy”: dirá que é um “casca-grossa” ou, no limite, um “porradeiro”, jamais um “pitboy”. Em suma, fale em “pitboy” dentro de uma academia de jiu-jitsu e as portas de suas entrevistas se fecharão; ou, se se mantiverem abertas, tudo o que você conseguirá será um amontoado de clichês, desses que lemos nos jornais toda vez que um lutador se envolve numa briga: “isso é coisa de moleque que fez jiu- jitsu durante um mês com um professor desqualificado”, “atleta de jiu-jitsu de verdade luta no tatame ou no ringue, não briga na rua” etc. Tais obstáculos me forçaram a pensar em alternativas. Se a definição do método de pesquisa é também um momento de criatividade, e não apenas de mera adequação, por que não procurar inspiração fora do âmbito das ciências sociais? Foi o que procurei fazer, ao incorporar à metodologia de trabalho uma idéia retirada dos escritos de Gay Talese, um dos principais nomes do gênero conhecido como “jornalismo literário”, ou new journalism. Talese (2004) escreveu aquele que até hoje é considerado o melhor “perfil” de Frank Sinatra – sem entrevistá-lo. Sinatra estava resfriado, arredio e preocupado com a agenda de compromissos; acompanhando seus passos à meia distância, Talese limitou-se a observar o universo de pessoas que gravitavam no entorno do cantor e a entrevistar algumas delas. Conseguiu assim perceber não quem Frank Sinatra dizia ser ou o que ele queria que o público soubesse a seu respeito, mas quem ele era em diversas situações e âmbitos de sua vida cotidiana e o que significava para os que lhe eram mais próximos. O exemplo pode ser útil aqui, com alguma imaginação. Sabendo da quase impossibilidade de encontrar um “pitboy” que se reconheça como tal, e sabendo também da inadequação de conversar com um jovem “pitboy” atual

18 tendo em vista meus propósitos (muito mais voltados ao exame do início da explosão do jiu-jitsu, que possibilitou a emergência da onda de violência a ele associada), decidi tomar caminho semelhante ao de Talese. Entrevistei ex- lutadores de jiu-jitsu, alguns deles “ex-pitboys”, confiando no fato de que a distância costuma refinar o olhar, e entrevistei também alguns seguranças de casas noturnas, pois é certo que ninguém observou e enfrentou “pitboys” tanto quanto eles. Ex-lutadores de jiu-jitsu foram relativamente fáceis de contactar e entrevistar. Já os seguranças deram mais trabalho. Não foram poucas as dificuldades encontradas na hora de entrevistá-los em portas de boates e casas noturnas cariocas. Desconfiança, receio, impaciência ou simplesmente má vontade: o fato é que as tais portas simplesmente não se abriram, certamente também por incompetência do pesquisador. Obrigado a procurar outra solução, recorri a um expediente tipicamente brasileiro. Liguei para amigos. E de telefonema em telefonema cheguei até a porta de uma das maiores empresas de segurança de festas e eventos do Rio de Janeiro. A sede da empresa, que ocupa uma construção baixa e discreta num bairro da zona norte da cidade, é um lugar que, na falta de palavra melhor, defino simplesmente como “ressabiado”. Há um portão de ferro espesso e negro, muitas câmeras de vigilância, um interfone que pergunta de modo seco “quem é?”, e um corredor estreito, ao longo do qual é preciso vencer duas ou três pesadas portas que se abrem de modo automático, mas apenas por dentro. Fui gentilmente recebido pelo dono da empresa, ele próprio um ex-segurança. Expliquei-lhe o motivo da visita, os objetivos do trabalho. Como tivesse gratidão para com o amigo a quem eu havia recorrido, ofereceu pronta ajuda. Chamou mais quatro seguranças de sua equipe, e me permitiu o tempo que quisesse para entrevistá-los. A dissertação que se segue foi fruto de um trabalho de campo realizado durante onze meses numa academia de jiu-jitsu da zona sul do Rio de Janeiro. Foram entrevistados cinco seguranças, dez ex-lutadores de jiu-jitsu, o Mestre (dono da academia), o Professor (faixa-preta responsável pela aula no horário das dezesseis horas) e mais quatro colegas de treino. O trabalho divide-se em dois capítulos. O primeiro, “No Tatame”, consiste na experiência etnográfica propriamente dita. O reencontro com o antigo Mestre e alguns alunos, o retorno (dolorido) ao tatame, a análise da estrutura de uma sessão

19 de treino, a prática da “taparia” como um rito de passagem de construção da masculinidade, os usos dos corpos dos lutadores, os signos de pertencimento, as idéias de virilidade e valentia que atravessam o ambiente hipermasculino de uma academia de jiu-jitsu. Tangenciando a discussão, serão observadas questões como a importância das “marias-tatames” na edificação de um estilo de masculinidade grosseiro e violento, e a problemática relação de lutadores com a homossexualidade. Além disso, será analisado o processo de criação de um ethos guerreiro entre os praticantes de jiu-jitsu, e a construção da idéia de sua eficácia e superioridade em brigas de rua. Por esta razão, o relato etnográfico é precedido por um breve apanhado da história do jiu-jitsu no Brasil, cujo objetivo é introduzir e contextualizar a discussão que se lhe segue. Trata, portanto, do desenvolvimento do jiu-jitsu pela família Gracie, sua história desde os ensinamentos do patriarca Hélio até a profissionalização do esporte e o desenvolvimento de modalidades a ele associada, como o vale-tudo e as competições de submission grappling. O segundo capítulo (“Na Rua”) aborda problemas diretamente relacionados à ação dos “pitboys”. O intuito, vale dizer logo, não é apreciar a construção dos “pitboys” através do discurso midiático, embora tal empresa não passe desapercebida; é antes o de apreciar, na esteira dos depoimentos obtidos através das entrevistas com “ex-pitboys” e seguranças das casas noturnas, questões referentes aos seus comportamentos. Alguns pontos merecerão destaque, a saber: a agressão gratuita, o vandalismo, o roubo, enfim, o flerte com a delinquência – semelhanças (poderíamos dizer “identificações”) entre a ação dos “pitboys” e a dos grupos marginalizados associados ao tráfico de drogas, tendo em vista o recente contexto social e econômico brasileiro, em cujo interior vem sendo diagnosticado o processo de “dessensibilização da sociedade para questões referentes à vida humana” (Cecchetto, 2004:108); a racionalidade empregada no ato de brigar, ou seja, o cálculo que envolve o domínio do uso das técnicas corporais, para usar a expressão de Mauss (2005); a idéia de que a “porrada” é encarada como um jogo-brincadeira no sentido que lhe dá Huizinga (2005); o significado e a importância do “descontrole controlado das emoções”, do risco e da adrenalina que necessariamente acompanham a “porrada”; a opção pela malandragem como guia de conduta e o uso do “Você sabe com quem está falando?” (DaMatta, 1983). Examinei com maior detalhe os aspectos que me pareceram mais relevantes; outros, apenas comentei brevemente. Penso que não

20 poderia ter sido de outro modo. Há questões que, se examinadas com o rigor e a profundidade que exigem, renderiam dissertações inteiras. Com a pesquisa praticamente finalizada, aconteceu de me deparar, de maneira bastante introdutória e portanto superficial, com fragmentos da obra de Derrida3. E um dos aspectos que mais captou minha atenção foi sua insistência no fato de que em toda classificação binária um dos termos da relação certamente será privilegiado em detrimento do outro. Transportei o raciocínio para o âmbito deste trabalho e, de súbito, me dei conta do quão estruturalista era a estrutura do meu argumento. Sabemos, é claro, que o relato etnográfico inventa – no sentido de construir, não de criar uma ficção – a cultura que se propõe a descrever (Wagner, 1981), e que todo e qualquer discurso, e as histórias nele veiculadas, é vazado em tropos de linguagem (White, 2001). Sabemos também que o antropólogo é de algum modo forçado a observar/participar já efetuando classificações, e isto por duas razões: porque processos narrativos atravessam toda a feitura de uma etnografia, e não apenas sua redação final (Clifford, 1986), e sobretudo porque ela, a etnografia,

não é mera descrição ou recolha de dados a serem posteriormente trabalhados: o que se observa e a forma como se ordenam as primeiras observações já obedecem a algum princípio de classificação e, se não se propõe algum, o que vai presidir e orientar esse primeiro olhar é o senso comum. Que é o que, precisamente, se pretende evitar. (Magnani, 2000: 37.)

Pois bem, são muitas as oposições binárias aqui delineadas: ausência x excesso, malandro x otário, indivíduo x pessoa, risco x controle, intensividade x extensividade, homens x mulheres, racionalidade x irracionalidade, identificação x diferenciação. Não posso afirmar quais teriam sido privilegiados; se o fiz, e segundo Derrida devo necessariamente tê-lo feito, não foi de forma consciente. Mas posso afirmar, contudo, que uma das conclusões a que cheguei reside no fato de que tais oposições, quando observadas de perto, revelam-se menos opostas do que parecem à primeira vista. Seus ingredientes misturam-se, formam-se híbridos, e só um golpe de extrema violência teórica conseguiria arrancá-los de sua unicidade, quebrando-os em partes isoladas, separadas entre si. O “pitboy”, misto de pitbull playboy, híbrido de homem e cão, adora um esporte que é em si uma

3 SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

21 grande mistura de lutas, o vale-tudo (não por acaso chamado atualmente de Mixed Martial Arts); sabe de cor como praticar a “porrada”, treinado que é na eficiência da briga, e o faz de uma maneira lúdica, irracional; assume riscos, procurando a intensividade do instante, e os controla tanto quanto pode, desejoso de extensividade em vida; jacta-se malandro, e deixa-se apanhar às vezes como otário; identifica-se com os marginalizados (com os “indivíduos”), e utiliza-se de sua posição social (como “pessoa”) para diferenciar-se deles. E não estaria exatamente aí, no hibridismo, um dos principais traços distintivos das relações sociais no Brasil?

2 No Tatame

Nunca gostei de dar aulas a atletas. Atleta não precisa. Quem precisa do meu jiu- jitsu é o cara franzino, apavorado, frouxo, inseguro, indefeso. Já imaginou esse cara ter certeza que não leva facada, paulada, pisão, soco, pontapé, gravata? Ele aprende a sair de qualquer situação e começa a ver que é invencível. Sua moral tímida muda para a de alguém que acredita em si, e isso não tem preço. (...) Criei um veículo para dar segurança às pessoas. Hélio Gracie

Não estava em meus planos iniciais fazer uma incursão pela história do jiu- jitsu tal como desenvolvido pela família Gracie no Brasil. Pretendia iniciar logo com o relato de minha experiência etnográfica, isto é, com o trabalho de campo propriamente dito, a vivência no tatame. Mas a feitura de planos, permitam-me o clichê, não é algo que costuma combinar com o ofício de antropólogo. Pois foi durante a ocasião a mais descompromissada, uma conversa informal durante um jantar entre amigos, que me vi subitamente obrigado a mudar de idéia. À certa altura, perguntaram-me sobre minha vida profissional. Falei um pouco sobre meus estudos em ciências sociais, e do projeto de minha pesquisa, ainda incipiente. Como houvesse curiosidade da parte de meus interlocutores, senti-me à vontade para alongar o assunto; e então discorri brevemente sobre o retorno aos tatames, o reencontro com antigos companheiros de treinos, e mencionei meu espanto diante da inabalável fé que eles demonstram ter na eficácia da técnica do jiu-jitsu numa briga de rua. “O jiu-jitsu é a arte marcial mais eficiente que existe”, afirmei, repetindo o discurso dos “nativos”. Ao que um dos presentes à mesa, lutador de caratê, retrucou: “olha, o jiu-jitsu pode até ser mais eficiente numa situação ‘mano-a-mano’, mas numa porrada em lugar público, tipo uma festa ou boate, não é não”. Tinha razão. O jiu-jitsu é uma arte marcial inteiramente voltada para a luta no solo: ensina a agarrar o oponente, aplicar-lhe uma queda e então subjugá-lo, em geral por meio de uma chave-de-braço ou estrangulamento. É uma técnica que costuma funcionar quando se tem a certeza de que ninguém irá interferir na briga, o que não é o caso de confusões que se armam em bares, festas ou boates. Em tais circunstâncias, agarrar-se a um adversário no chão, mesmo que o dominando por 23 completo, é ficar em posição vulnerável. Há sempre o risco de tornar-se vítima de socos e pontapés dos amigos da outra parte envolvida na briga – ou, em casos mais extremos, de “cadeiradas”, “garrafadas” e do que mais o azar permitir que caia em mãos alheias. Tudo isso serviu para chamar minha atenção para o fato de que, em tese, os “pitboys” deveriam haver surgido não entre praticantes de jiu-jitsu, mas entre lutadores de caratê, boxe, boxe tailandês, tae kwon do ou qualquer outra arte marcial que ensine a lutar em pé e à distância, pois é este o tipo de técnica de luta que se exige numa briga dentro de uma festa ou boate. Percebi, então, que a confiança dos lutadores de jiu-jitsu na eficácia de sua técnica em confrontos violentos era tão grande que extrapolava os limites da razão utilitária. Aí estava a primeira questão que importava examinar: de onde provinha esta arraigada confiança? Mais ainda, como ela encontrava meios para atualizar-se? Se meu objetivo principal neste trabalho era entender melhor a violência associada aos “pitboys”, que por sua vez estão associados ao jiu-jitsu, então teria necessariamente que conhecer a tradição desta arte marcial, da qual eles, “pitboys”, são em parte herdeiros. A idéia da superioridade da eficácia da técnica do jiu-jitsu, e o poder de atração que ela exerce, é parte desta tradição tanto quanto a própria técnica, seus movimentos, golpes e macetes.

2.1 Superioridade e identidade: breve história do Gracie jiu-jitsu

No dia de natal do ano de 1898, um rapaz de vinte anos, 1,64 metro e sessenta e oito quilos causou assombro no tradicional torneio realizado na academia Kodokan, em Tóquio. Derrotou, em seqüência, quinze oponentes. Ao final, teve colocada na cintura a faixa-preta pelas mãos de Jigoro Kano, ninguém menos que o fundador do judô moderno. Chamava-se Mitsuyo Maeda. Praticava, além do judô, antigas formas de jiu-jitsu japonês. Em 1904, Maeda recebeu de seu mestre a tarefa de popularizar o judô nos Estados Unidos. Estreou derrotando alguns wrestlers1 americanos na prestigiosa

1 “Wrestler” é o praticante de wrestling, modalidade que no Brasil é chamada de luta greco- romana, cujo objetivo é derrubar o oponente de modo a colocar suas costas inteiramente no chão.

24 academia militar de West Point. Em Nova York, participou de diversas lutas undergound, sendo a principal contra um adversário conhecido como “The Butcher” (“o Açougueiro”). Vitorioso, ofereceu-se em desafio ao então campeão mundial de boxe da categoria peso pesado, Jack Johnson. Não obteve resposta. O jovem lutador, no entanto, recusou-se a limitar seus horizontes aos Estados Unidos. Acumulou viagens e vitórias em Inglaterra, Bélgica, Espanha e Cuba. Mas foi no Brasil que decidiu fixar-se, já quase uma década depois de haver deixado o Japão. Nos anos vinte, um projeto de colonização do governo japonês no norte do Brasil reclamou os serviços de Maeda, que, então apelidado de Conde Koma, foi transferido para Belém, onde viveu até o fim da vida. Morreu a 28 de novembro de 1941 – não sem antes ensinar sua técnica a , filho de Gastão Gracie, homem de reconhecida influência na região. De volta ao Rio de Janeiro, Carlos abriu sua própria academia em 1925, inaugurando a tradição de luta na família Gracie. O primeiro anúncio, mandou veicular no jornal: ao lado de uma foto sua, a chamada “Se você quer um braço ou uma costela quebrada, ligue para Carlos Gracie no número abaixo...”.2 Foi Carlos também quem deu início a outra tradição entre os Gracie, tão importante e longeva quanto o aprendizado do jiu-jitsu. Como tivesse sua preparação para as lutas amiúde prejudicada por enxaquecas e inflamações na pleura, para os quais não encontrava remédio na medicina tradicional de sua época, pôs-se a pesquisar as propriedades de alimentos e ervas. Desenvolveu assim uma dieta rigorosa, formulada de acordo com a classificação dos alimentos em diferentes grupos e a combinação apropriada entre eles, cujo objetivo consistia basicamente em equilibrar o ph dos ingredientes das refeições, evitando sobretudo o excesso de acidez. Ao cuidado com o corpo, o pioneiro do clã Gracie somou a prática da meditação, através da qual tratava de desenvolver-se também espiritualmente. Corpo e mente equilibrados, a saúde melhorada, Carlos pôde colocar-se mais à prova em desafios públicos. É sua filha (e biógrafa) Reyla quem conta:

Carlos sempre foi totalmente contra a associação do jiu-jitsu à violência. Obviamente que, no início, Carlos botava anúncios nos jornais e desafiava

2 Fonte: Gracie Magazine, edição 78 (julho de 2003), pg. 18.

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estivadores muito mais musculosos no cais do porto, até porque, na década de 30, existia a necessidade de firmar uma supremacia e formar uma identidade. Foi quando começaram os comentários: “Os Gracie são invencíveis. Os Gracie resolvem na porrada”. (Fonte: Gracie Magazine, edição 94, novembro de 2004, pg 42; itálicos meus.)

É certo que Carlos teve uma carreira expressiva, e vitoriosa, como lutador; os números completos de seus embates, contudo, não me foram possíveis levantar. De qualquer maneira, foi somente com seu irmão Hélio, onze anos mais moço, que o sobrenome Gracie logrou conquistar fama nacional. Hélio Gracie transformou o jiu-jitsu que Maeda ensinou a seu irmão Carlos no que hoje é conhecido no mundo todo por “brazilian jiu-jitsu”. Hélio era um adolescente franzino, de saúde precária; tinha desmaios tão freqüentes quanto súbitos, o que levou o médico da família, o Dr. Fábio Carneiro de Mendonça, a proibi-lo de praticar atividades físicas. “Ninguém sabia o que era. Se eu visse sangue, desmaiava; se escutava gemidos, desfalecia; se me emocionasse, também, cheguei a desmaiar na igreja quando fui rezar”, diz Hélio.3 Impossibilitado durante anos de praticar jiu-jitsu com os irmãos, limitava-se a observá-los. Quando enfim começou a treinar, percebeu que não conseguia executar os mesmos movimentos e golpes que tanto estava acostumado a ver. Faltava-lhe força. A limitação física o obrigou a desenvolver um estilo próprio.

Comecei a querer repetir tudo o que o Carlos fazia, mas não conseguia. Então, dei meu jeito. É como um cara forte que consegue levantar um carro com a mão. Eu preciso de um macaco. E foi assim que eu criei o jiu-jitsu de hoje. (...) Não foi feito com inteligência, mas com instinto. É como você sentado, cansa da posição e descruza a perna. Sem pensar. Da mesma forma, aperfeiçoei a técnica, sem mérito, mas porque era preciso. Quando descobria um jeitinho, treinava aquilo. (Fonte: Gracie Magazine, edição 50, marco de 2001, pg.27)

De jeitinho em jeitinho, Hélio foi transformando o jiu-jitsu até fazê-lo merecer o apelido de “arte suave”. À técnica nos tatames, Hélio adicionava os rigores de uma vida disciplinada, às vezes até o ponto do exagero – não fumava, não colocava uma gota sequer de álcool na boca, não praticava sexo que não fosse para fins de reprodução. Tanta abnegação rapidamente o levou a ocupar lugar de destaque entre os Gracie. Abriu sua própria academia, primeiro no bairro do Flamengo, e depois, em sociedade com seu irmão Carlos, na avenida Rio Branco.

3 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 27.

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A academia ocupava um andar inteiro de um prédio, chegando a contabilizar cem aulas particulares por dia (com o auxilio de outros instrutores, como Hélio Vígio, Armando Wriedt, João Alberto Barreto, Carlson e Robson Gracie) e uma média de seiscentos alunos por mês. Os kimonos eram fornecidos pela própria academia; nos finais de semana, o enorme amontoado de pano sujo seguia numa caminhonete para a casa da família Gracie em Teresópolis, onde duas máquinas industriais de lavanderia se encarregavam de limpá-los. Hélio controlava a tudo com mão de ferro, o asseio das instalações e dos kimonos, a pontualidade das aulas, o desenvolvimento dos alunos, o desempenho de sua equipe de professores. “Os donos do Brasil passaram por lá”4, diz, sem modéstia.

Se eu pegasse alguém falando: “Fulano, deita”, anotava. “Deita” o cacete! “Sr. Fulano, faz o favor de deitar?”. Então são pequenas coisas, mas que faziam parte do método. O aluno tem que se sentir respeitado. Dávamos aulas para presidentes, ministros de estado. Já pensou: “Deita, Figueiredo?” (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51, abril de 2001, pg. 35.)

Nos anos trinta, o Gracie jiu-jitsu prosperava não tanto em função do que acontecia no interior de suas academias, mas sobretudo em razão do que se passava fora delas. O sucesso e a reputação da técnica de defesa pessoal associada ao sobrenome Gracie foi construído por sobre testes públicos, que foram muitos e diversos – confrontos de luta esportiva, sem golpes traumáticos, lutas oficiais de vale-tudo ou simplesmente brigas de rua. Hélio estreou publicamente com uma vitória rápida, obtida com um arm lock (“chave de braço”), sobre o lutador de boxe Antônio Portugal. Em 1932, o primeiro empate da carreira, uma luta de cento e dez minutos contra o “gigante” americano Fred Ebert, interrompida pela polícia, pois era proibido a espetáculos públicos prolongarem-se após as duas horas da manhã. Empate com sabor de vitória: “Meus cotovelos ficaram pretos feito a sola de um sapato, de tanto que eu dei na cara dele. Foi aí que eu fiquei famoso” 5, relembra Hélio. Mas a memória nem sempre é a conselheira mais fiel. Antes da luta contra Ebert a fama já havia alcançado os Gracie, num episódio sangrento. Aconteceu que Manoel Rufino dos Santos, campeão sul-americano de luta- livre, teria dado uma declaração na qual afirmava que “se não estivesse afastado

4 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51 (abril de 2001), pg. 35. 5 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 28.

27 dos ringues, mostraria que os Gracie não eram essas coisas”6. A resposta não tardou. Hélio e seus quatro irmãos pegaram um táxi e foram ao encontro de Rufino, no Tijuca Tênis Clube.

Cheguei lá, saltei e parti pra cima dele: “Vim te dar a resposta”, e dei-lhe um tapa na boca. Ele deu um murro, bloqueei, entrei em queda, ele bateu com a base do crânio no chão. Espirrava sangue pra burro. Quis ficar por cima, mas ele, muito forte, levantou e saiu correndo, gritando para alguém do clube. Corri, passei e o puxei, dando outra queda. Depois peguei o braço, teve até que botar platina. Ele se virou e eu enforquei, quando o Carlos mandou largar, salvando o homem. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, pg. 31.)

A briga lhes rendeu um processo e, “enquanto aguardava julgamento, Hélio quase foi impedido de lutar, como noticiam os jornais antes da luta contra Fred Ebert”. No tribunal, quando indagado se havia contado com a ajuda dos irmãos ao massacrar Rufino, respondeu: “Fiz [sozinho], e se quiser que eu prove, faço de novo, aqui mesmo”. Foi condenado em primeira instância a dois anos e meio de prisão; seus irmãos, a um ano e meio. Uma aluna de Hélio, de família influente, foi interceder junto a Getúlio Vargas. Pediu-lhe a suspensão da pena, mas

o presidente disse que não nos podia indultar se a gente estivesse na rua. E a polícia não nos prendia, tinha medo, mas acabamos nos apresentando. Foi a maior mordomia na prisão, as portas abertas, recebíamos visita o dia inteiro, e nossa comida entrava e saía. Regalia total. Os Associados fizeram uma reportagem: “Primeira vez que se faz entrevista dentro da prisão”. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, pg. 31.)

Passaram somente onze dias na cadeia. Vargas lhes concedeu o indulto logo após a confirmação da sentença pelo Supremo Tribunal Federal. Tempos depois, Hélio admitiria: “Foi besteira. Mas nosso temperamento era fogo”.7 O temperamento de Hélio, contudo, por mais explosivo e de prontidão constante para a luta que fosse, não o levava a brigar na rua por razão pouca ou nenhuma. Hélio fazia questão de brigar somente quando a arte marcial que havia

6 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 31. 7 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 31. Nesta mesma edição, há um outro caso que ilustra bem a disposição de Hélio Gracie para a luta. Conta que, na praia, ficou encarando um sujeito “com quase dois metros”. O tal sujeito se aproximou, perguntou o quê Hélio estava olhando e, em seguida, disse que gostaria de lhe quebrar a cara. “Então por que não quebra?”, foi a resposta. Iniciada a briga, o grandalhão rapidamente foi levado ao chão e dominado. “Peguei a barba dele, puxei e disse: vou mostrar que você, com essa barba toda, é viado!”. Hélio encaixou um estrangulamento, o adversário desmaiou. Depois de acordado, perguntou-lhe: “Já ouviu falar no Hélio Gracie?”

28 criado fosse desafiada, desdenhada, ou quando a honra da família se visse aviltada. Sua luta era para provar a superioridade do Gracie jiu-jitsu, para torná-lo conhecido e respeitado como a mais eficiente de todas as artes marciais, aquela que permite ao fraco derrotar o forte; na verdade, dedicou a vida inteira a tal tarefa. Um antigo conhecido de Hélio, hoje um nonagenário como ele, conta que mais de uma vez viu o Gracie fazer uso de sua notoriedade como lutador para resolver uma situação conflituosa sem o emprego da violência:

Estávamos num baile no Teatro Municipal, e a uma certa altura um jovem agarrou uma moça pelos cabelos. Cismou de dar umas bitocas nela. Mas a moça, coitada, não queria conversa, tentava se desvencilhar, mas não conseguia porque o rapaz era mais forte. Vendo aquela cena, o Hélio foi lá e tirou as mãos do camarada de cima da moça, e em seguida deu um cartão com o nome e o endereço da academia Gracie, se não me engano na [avenida] Rio Branco. O camarada deu meia volta e saiu de fininho.

Em outra ocasião, Hélio salvara seu pescoço:

Uma vez eu dei um encontrão num camarada, sem querer, eu não tinha a intenção de esbarrar, o copo na minha mão voou e foi vinho para tudo quanto era lado na camisa dele. O camarada se zangou, imagina, tomou um banho de vinho numa festa. E veio tirar satisfações comigo. Eu pedi desculpas, disse que foi sem querer, mas ele não aceitou minhas desculpas. Ele queria briga. O Hélio estava do meu lado, viu tudo, e quando o rapaz, que aliás era muito mais alto e parrudo do que nós dois, fez que ia me dar um safanão, o Hélio se colocou na frente dele, e puxou o cartãozinho do bolso da camisa e disse: “Se quiser brigar, me procura lá na Academia, o endereço está aí”. O grandalhão ficou sem reação, olhou para o lado, para o outro, e saiu andando.

Não foram poucas as vezes em que o jiu-jitsu dos Gracie teve sua eficiência colocada à prova8. Entre os inúmeros desafios na carreira de Hélio, sobressaem-se os confrontos contra os japoneses Kato e Kimura, em 1951, e contra seu ex-aluno Waldemar Santana, em 1955. As lutas contra os japoneses ocorreram por ocasião

8 A este respeito, veja-se o seguinte depoimento de Hélio: “Toda hora vinha gente me desafiar, mas eu não lutava contra qualquer um em público. O cara vinha e eu surrava dentro da academia. Eles perdiam rápido, não sabiam nada de jiu-jitsu. Eu dava pontapé na bunda, ridicularizava. E fazia tudo de graça, para me convencer da superioridade do jiu-jitsu. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, pg 29; itálicos meus.) Carlson, seu sobrinho, relata o mesmo expediente: “...sempre aparecia gente para nos desafiar. Inclusive, ficávamos sempre lá na academia de prontidão, eu, Hélio Vigio, João Alberto, e sempre aparecia alguém. ‘Quem vai pegar sou eu’, ‘Não, sou eu’, tinha até briga para ver quem ia lutar. (...) No mesmo dia às vezes a gente fazia duas ou três lutas, eu torcia sempre para aparecer alguém.” (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 54.)

29 da passagem da delegação japonesa de judô no Brasil. Kato, o segundo melhor lutador do Japão, lutou duas vezes com Hélio. O primeiro confronto, travado nas regras do jiu-jitsu esportivo no Maracanã, terminou em empate; o segundo, também sob as mesmas regras, ocorrido dias depois no estádio do Pacaembu, acabou com Kato desacordado, vítima de um estrangulamento. “Foi a maior emoção da minha vida, pois constatei que o meu jiu-jitsu era superior ao dele”, disse o Gracie aos jornais da época. Faltava somente enfrentar Kimura, então o campeão absoluto de judô japonês, o que acabaria acontecendo a 23 de outubro daquele mesmo ano. Kimura, vinte e cinco quilos mais pesado, afirmou que se Hélio lhe resistisse por mais de três minutos, poderia se considerar campeão. A luta, acompanhada por cerca de vinte mil pessoas no estádio do Maracanã, durou treze minutos. Ainda assim, vitória do japonês: pego numa chave de braço certeira, Hélio recusou-se a “bater”, isto é, a dar os três tapinhas sinalizando desistência, e teve o braço fraturado, obrigando o seu córner a jogar a toalha. A luta contra Waldemar Santana deveu-se a uma desavença profissional. Ainda um aluno da academia Gracie, Santana fora convidado a lutar no Palácio de Alumínio, lugar famoso por suas “marmeladas”, combates previamente arranjados, combinados. Santana garantiu que a luta seria “para valer”, mas Hélio temia que o sobrenome Gracie ficasse associado àquele tipo de evento – e portanto manchado naquilo que lhe era mais caro. O aluno contrariou o mestre e decidiu lutar assim mesmo; acabou expulso da academia. Então, “um jornalista malandro arrancou dele uma declaração de que eu não era aquilo tudo que se pensava. Eu não gostei, tomei satisfação, ele não desmentiu e acabamos brigando, de um dia para o outro.”9 O dia foi 24 de maio de 1955. Hélio tinha quarenta e dois anos, sessenta quilos e uma infecção no ouvido que lhe subia uma febre de trinta e oito graus; Santana, oitenta e oito quilos e o esplendor de seus vinte e três anos. Trocaram socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, cabeçadas, torções e estrangulamentos por três horas e quarenta minutos ininterruptos, naquele que é até hoje o mais longo vale-tudo de que se tem notícia. Ao final, um exausto Hélio “apagou”. O desfecho da luta permanece nebuloso, até para o próprio Hélio: ora afirma-se que Waldemar o teria acertado com um pontapé, ora que ele simplesmente caiu

9 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51, abril de 2001, pg 36.

30 desmaiado, sozinho. O certo é que, tão logo a toalha foi jogada, o jovem Carlson invadiu o ringue e ergueu nos ombros o tio desacordado. Ali mesmo prometeu vingança: “É o seguinte, agora o negócio mudou de figura, bicho. Não tenho nada contra você, sou seu amigo, mas vou ter que te pegar. No ringue, e lá não tem esse negócio, é pau puro. Vou procurar te arrebentar. Se prepara que eu vou entrar pra te quebrar.”10 No dia seguinte ao combate, o patriarca Carlos assim explicava a derrota do irmão mais novo ao jornal O Globo:

... desejo, a fim de que não sejam exploradas as minhas declarações, afirmar de início que Waldemar lutou muito bem e que sua vitória não poderá sofrer qualquer contestação. (...) Entretanto, é preciso que se saiba que Hélio entrou no ringue apenas por uma questão de honra, sem ter dado sequer um treino [Hélio já era então um lutador aposentado; dedicava-se somente ao ensino de jiu-jitsu]. Meu irmão entendeu que não poderia fugir de uma luta contra um ex-aluno. Não se tratava de vencer, e sim de dar provas de que um Gracie não foge a qualquer desafio. Hélio quis demonstrar que a covardia é um estado de espírito que jamais transpôs as portas de nossa academia. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51, abril de 2001, pg 37; itálicos meus.)

Foi o próprio Carlos quem sugeriu o nome de João Alberto Barreto, instrutor da academia Gracie na Rio Branco, para a revanche contra Santana. Contudo, Barreto sabia que a tarefa não era propriamente sua, não porque lhe faltasse qualificação, mas porque estavam em jogo o nome e a honra dos Gracie: “Não tinha cabimento eu lutar contra o Valdemar. Era um assunto que alguém da família teria que resolver. Mas só de o Carlos sugerir o meu nome, o Carlson passou a treinar”11. Chegava, enfim, a hora de alguém assumir o posto de Hélio como o “primeiro homem” da família Gracie. Carlson lutou cinco vezes com Valdemar Santana. Ganhou uma, empatou as outras quatro, nas quais alega haver levado certa vantagem, não obstante o resultado oficial. Apenas cinco meses depois da derrota de Hélio, o primeiro confronto; travado nas regras do jiu-jitsu, terminou sem vencedores. “Se perco, a família Gracie tinha acabado”12. Carlson só venceria o rival no ano seguinte, num vale-tudo de trinta e nove minutos. Relembrando a luta, diz que “Ele [Santana] perdeu porque não conseguiu voltar mais, já tava massacrado, com a cara enorme,

10 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 100, março de 2006, pg 52. 11 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 36. 12 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 52.

31 sangrando por tudo quanto era lado, e o Carlos Renato, que era o segundo dele, jogou a toalha, porque senão ele ia morrer”13. Enfrentaram-se pela última vez em 1970, Carlson já aposentado. Novamente um vale-tudo. Novamente um empate. Entretanto, Carlson fez mais do que carregar nos ombros, ou punhos, o cartaz dos Gracie durante as décadas de cinqüenta e sessenta, e manter intocado o prestígio da arte marcial que desenvolveram. Percebendo a (ainda incipiente) popularização do jiu-jitsu como esporte, o que deixava em segundo plano as técnicas de defesa pessoal, Carlson passou a dar aulas em grupo – em termos metodológicos, quase uma heresia na família. Ensinava o que fosse necessário para competir, e vencer, de quimono. Conseguiu, com isso, difundir o jiu-jitsu esportivo e formar um time de atletas que dominaria as competições de jiu-jitsu por cerca de duas décadas. Talvez não contasse com a aprovação de seu tio Hélio, pois este, nas palavras de João Alberto Barreto,

...sempre encarou o jiu-jitsu como uma ideologia, a luta de o fraco vencer ou pelo menos não perder do forte. (...) Por isso, ele exigia o cumprimento de um sistema completo, no qual a pessoa tinha que se defender, derrubar – ou ser derrubada, e, nesse caso, raspar – passar a guarda, montar e finalizar. Já o Carlson, não. Para ele, o jiu-jitsu era um jogo. O importante era vencer. Se o aluno então for pior em pé que o adversário, puxa para o chão e vence da guarda. Dane-se o sistema.14 (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 44.)

De qualquer forma, foi nos tatames da academia que o jiu- jitsu esportivo começou a ganhar as feições que conserva até hoje. Mas a saga dos Gracie não acaba em Carlson. Rolls, tido como imbatível em lutas de quimono no final dos anos setenta, poderia ter se firmado definitivamente como o melhor da família, não fosse a morte prematura em junho de 1982. Nos anos noventa, Royce fez história ao sagrar-se campeão das três primeiras edições do Ultimate Fighting Championship nos EUA, torneio que deu projeção internacional ao vale-tudo em geral e ao jiu-jitsu brasileiro em particular. Rickson, apontado de forma quase unânime como o mais técnico lutador de jiu-jitsu que já houve, amealhou fama e

13 Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 54. 14 O leitor não tem a obrigação de conhecer os termos técnicos do jiu-jitsu; portanto, cabe explicá- los brevemente. “Raspar” é o movimento de inverter o posicionamento dos lutadores: o que está por baixo “vira o jogo”, passando a ficar por cima. “Passar a guarda” consiste em livrar-se das pernas do oponente, para na seqüência imobilizá-lo lateralmente. “Montar” é o ato de sentar sobre o peito do adversário, em geral apoiando-se os dois joelhos no chão, posição que é extremamente vantajosa. “Finalizar” é encaixar um golpe de modo a fazer com que o adversário não tenha outra opção a não ser sinalizar a desistência (a finalização encerra a luta). Explicarei detalhadamente a dinâmica de uma luta de jiu-jitsu, e seu sistema de pontuação, mais adiante.

32 fortuna em eventos de vale-tudo no Japão, onde é reverenciado como um mito das artes marciais. (Ryan, mais novo, ganhou as páginas dos jornais em função das brigas de rua em que amiúde se envolvia no Rio de Janeiro; posteriormente, foi lutar vale-tudo no exterior.) E há também Royler, Renzo, Roger – a lista é extensa. Mas todos estes nomes, e as histórias que evocam, dizem respeito ao segundo e radicalmente distinto momento do jiu-jitsu brasileiro, marcado pela acirramento da rivalidade entre academias nos campeonatos e pela ascensão do vale-tudo à condição de esporte altamente lucrativo, com eventos ganhando escala e projeção em todos os continentes. Convém abordar tudo isso em uma nova seção. Antes, porém, uma última observação. Ao leitor certamente não haverá passado desapercebido o fato de que, até aqui, a maior parte de minha pesquisa esteve fundamentada numa única fonte, qual seja a revista editada pela família Gracie. Fonte esta que opera não apenas como um suporte da memória da família Gracie – ou um “lugar de memória”, para tomar emprestado o conceito de Pierre Nora (1993) – , mas concorre também na construção de uma aura mitológica em torno de sua história e feitos. O tom auto- congrulatório é evidente; as páginas recheadas de elogios, que inúmeras vezes beiram o ufanismo ingênuo15, não escondem a intenção de cristalizar uma imagem positiva dos lutadores Gracie e da arte marcial que criaram. Justamente por isso a opção: queria apreender o discurso dos Gracie, ou seja, saber o quê e como os criadores e difusores do jiu-jitsu falam publicamente sobre si e sua técnica de luta. Mais: interessava-me o uso que os Gracie fizeram de sua própria história, a maneira através da qual se apropriaram dos acontecimentos de sua biografia. Com efeito, as questões que importam verificar

remetem menos ao conhecimento do verdadeiro do que ao do verossímil. Explico- me: um fato pode não ter acontecido, contrário às alegações de um cronista. Mas o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a sua aceitação pelo público contemporâneo, é pelo menos tão revelador quanto a simples ocorrência de um evento, a qual, finalmente, deve-se ao acaso. A recepção dos enunciados é mais reveladora para a história das ideologias do que sua produção; e, quando um

15 Seria desnecessário apresentar uma lista de exemplos que o comprovam. Basta apenas um: “A ciência do esporte ainda engatinhava. Mas Hélio Gracie, um desses fenômenos que, como Da Vinci e Einstein, viveu em um tempo anterior ao que lhe conviria, já lutava por horas”. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, p.28.)

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autor comete um engano ou mente, seu texto não é menos significativo do que quando diz a verdade; o que importa é que o texto possa ser recebido pelos contemporâneos, ou que seu produtor tenha acreditado nele. Nessa perspectiva, a noção de “falso” é não-pertinente. (Todorov, 2003 pp.74-5; grifo meu)

Neste primeiro momento, era importante compreender o estabelecimento da idéia de superioridade do jiu-jitsu e do ethos guerreiro (Elias, 1994)16 a ela associado. É sem dúvida bastante significativo que o primeiro anúncio ou propaganda de uma academia Gracie tenha sido um desafio aberto – “Se você quer ter um braço ou uma costela quebrada, ligue para Carlos Gracie...” –, e não um convite ao aprendizado de uma técnica de auto-defesa, algo como “Se você não quer ter um braço ou uma costela quebrada, ligue...” Havia, como bem resumiu Reyla, filha de Carlos, a necessidade de “firmar uma supremacia e formar uma identidade”. A ordem dos fatores aqui me parece apropriada: a afirmação (e confirmação) da superioridade do jiu-jitsu em relação a todas as outras artes marciais teve um papel fundamental na formação da identidade não apenas dos lutadores da família Gracie, mas sobretudo da atmosfera de suas academias e aulas. E a afirmação desta superioridade só poderia ser feita, literalmente, na porrada. Nos muitos depoimentos publicados na revista Gracie Magazine, fica bastante evidente que o brazilian jiu-jitsu nasceu com uma obsessão: provar-se a arte marcial que permite ao fraco vencer o forte; a técnica que, de modo espetacularmente mais eficaz que qualquer outra, não só anula a força do adversário como tira proveito dela para liquidá-lo. Tal necessidade de se fazer reconhecer como uma técnica imbatível de defesa pessoal forneceu os subsídios necessários à disseminação, no interior das academias Gracie e mesmo em seus ambientes familiares, de uma atmosfera permeada por valores ligados à virilidade e à disposição para a luta. A obsessão de se provar superior favoreceu a criação de um ethos guerreiro, pois era sempre preciso estar pronto para brigar contra qualquer adversário, em qualquer situação. Toda a idéia de honra dos Gracie está atravessada por esta obsessão – e eles não hesitaram uma única vez em colocar-se

16 Em “O Processo Civilizador”, Elias emprega o conceito de ethos guerreiro para dar conta do conjunto de disposições (psicológicas e sociais) que favorecia ou mesmo estimulava, entre a nobreza européia da Idade Média, um comportamento orientado pela expertise nas artes da guerra. Nessa perspectiva, a inclinação para o confronto corporal violento era antes uma virtude cultivada, um traço distintivo, do que uma necessidade puramente instrumental. É sobretudo a este aspecto – o manejo da violência como virtude, que confere distinção – ao qual estarei me referindo ao utilizar aqui o conceito de ethos guerreiro.

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à prova para defendê-la. Não é difícil perceber aí um sistema que se retroalimenta: a necessidade de provar superioridade fomenta um ethos guerreiro, que se converte em uma prática de luta que consagra a eficácia da técnica, técnica esta que só pode se manter consagrada através de mais lutas, que por sua vez exigem a manutenção constante de um ethos guerreiro.

2.2 Sem quimono, com quimono, sem quimono: a transformação do jiu- jitsu

Nos anos oitenta, ao matricular-se na academia Gracie do Humaitá o aluno recebia de presente um exemplar do livro “Hélio Gracie, um super-homem brasileiro”. Na capa, por sobre tons avermelhados, uma foto do mestre Hélio. Dentro, histórias de luta e heroísmo. Hélio Gracie, contava um capítulo do livro, havia desafiado até um mar infestado de tubarões para salvar a vida de um homem. Nos tatames da Gracie Humaitá, além de golpes, imobilizações, estrangulamentos e torções, ensinava-se que um homem deveria sempre olhar os outros nos olhos, e que o cotovelo era o osso mais duro do corpo, o mais apropriado portanto para machucar um oponente em caso de briga. Ensinava-se também os princípios básicos da dieta Gracie, e havia sempre uma pilha de folhetos instrutivos prontos a serem distribuídos, caso o aluno demonstrasse algum interesse. A metodologia de ensino aplicada ainda era aquela desenvolvida por Hélio: aulas particulares de meia-hora, ministradas por seu filho Rolker, nas quais aprendia-se a dar quedas (sendo a “baiana”17 a mais utilizada), a sair de gravatas e puxões de gola de camisa, e, é claro, a imobilizar e finalizar um adversário no chão. No conjunto, as aulas formavam um programa completo de defesa pessoal.18

17 A “Baiana” consiste num movimento rápido de queda, no qual agarra-se, com as duas mãos, a parte de trás dos joelhos do oponente, jogando-lhe as pernas para cima e para o lado ao mesmo tempo, fazendo com que caia de costas no chão. 18 Por motivos que escapam à minha memória, deixei de freqüentar a academia Gracie do Humaitá ainda na faixa-branca. Depois fui aprender judô e, na seqüência, caratê. Em vão: ambos não me interessaram por muito tempo, e acabei voltando aos tatames de jiu-jitsu.

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Ao reencontrar os tatames de jiu-jitsu (mas em outra academia) alguns anos mais tarde, deparei-me com uma rotina de treinamento totalmente distinta. As aulas, em grupo, duravam duas horas, e praticamente toda a primeira metade era dedicada a extenuantes exercícios físicos. Corrida em volta do tatame, alongamentos, polichinelos, agachamentos – e a pior parte, sessões de abdominais intercaladas com séries de flexões de braço. “Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove..”, contava um aluno. “Dez!”, gritavam todos juntos. “Onze, doze...” E era sempre assim, até completarem-se setecentas, oitocentas ou mesmo mil abdominais, dependendo do humor do professor. A cada centena cumprida, dez ou vinte flexões de braços, ou ainda “mergulhos”, que é uma espécie de flexão de braço, apenas mais exigente. O tipo de abdominal variava – com os pés rente ao chão, subindo e descendo o quadril, abrindo e fechando as pernas, agarrando os joelhos... –; o que não variava nunca, porém, era a disposição do professor em fiscalizar o cumprimento do exercício por todos os alunos. Quem fosse surpreendido cabulando abdominal ou flexão de braço geralmente era punido com uma “chicotada” de faixa ou vara de madeira. E quando percebia que o cansaço começava a nos vencer a todos, não raro o professor se exaltava: “O que vocês são?” “Guerreiros!”, respondíamos num berro uníssono. “Mais alto, porra!” “Guerreeeirooos!” “Quatrocentos e vinte e um, quatrocentos e vinte e dois...” Terminado o alongamento e o condicionamento físico, tinha início a parte técnica. O professor requisitava o auxílio de um aluno, quase sempre entre os mais graduados, e colocava-se no centro do tatame. Exigia atenção aos detalhes e silêncio absoluto. Ensinava uma “posição” demonstrando-a no corpo do aluno:

“Segura a manga do quimono dele, a outra mão vai na gola, mas firme no peito, que é para o adversário não vir pra cima; aí fica em pé, solta a mão da gola, agarra as duas pernas por baixo, uma mão na calça do quimono dele e a outra no fundo da gola, escolhe um lado, joga as pernas e passa a guarda amassando o gogó dele. Estabilizou a imobilização, três pontos.”

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Toda aula aprendíamos uma posição ou golpe novos, e toda aula éramos lembrados de que “passagem de guarda” valia três pontos, “joelho na barriga”, três pontos, “pegada pelas costas”, quatro pontos, “montada”, quatro pontos, “raspagem”, dois pontos. Também não nos deixavam esquecer as datas dos campeonatos estadual e brasileiro de jiu-jitsu, e que as lutas na faixa azul duravam cinco minutos. Em suma, estávamos sendo treinados para ser atletas de jiu-jitsu, para competir de quimono. E treinar era o que mais se fazia na academia. Após o aquecimento e a prática da posição ensinada no dia, chegava a hora do treino propriamente dito. O professor “casava” as duplas, isto é, escolhia quem ia lutar contra quem. Em geral, eram quatro duplas lutando ao mesmo tempo no tatame, por cinco ou seis minutos; o exíguo espaço não permitia mais do que isso. Ao todo, cada aluno treinava quatro ou cinco vezes por aula. Às vezes, o professor anunciava “hoje nós vamos fazer um ‘intervalinho’”, que era a prática de treinos contínuos, sem descanso ou pausa: tão logo acabava um treino iniciava-se outro, até o corpo não responder mais ou o professor achar que todos estavam suficientemente exaustos. “O que vocês são?” “Guerreiros!” E então estávamos liberados para beber um pouco de água. Sem dúvida, a vasta maioria de nossos treinos era de quimono, voltado para competição. Mas acontecia, ainda que com freqüência incerta, de termos aula de defesa pessoal, ou melhor, de ataque pessoal. Nestas ocasiões, tirávamos a parte de cima do quimono, o “paletó”, restando somente a calça; alguns ficavam só de sunga. Eram três os tipos de treinamento: “taparia”, “bloqueio” e “baile funk”. A “taparia” era uma espécie de “vale-quase-tudo” onde só era permitido atingir o oponente com a mão aberta. Soco, cotovelada, chute, cabeçada, joelhada, nada disso valia, mas você tinha permissão para reunir o máximo de suas forças e explodir um sonoro tapa na cara de seu adversário. Podia não machucar tanto quanto um golpe de mão fechada, mas com certeza era igualmente desmoralizante. As contusões, quando haviam, não preocupavam. Não me lembro de ninguém saindo seriamente machucado desses treinos. Bem mais freqüente, no entanto, era ver alunos terminando as aulas visivelmente chateados com o fato de haverem apanhado na cara; vez por outra, via-se alguém com os olhos cheio d’água, tentando a todo custo segurar o choro.

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Tinha “taparia”, não era sempre, mas tinha. E tinha também, não sei se você conhece, um negócio chamado “bloqueio”. Tipo, era um cara com luva de boxe, e você tinha que derrubar o cara e tal. O cara de luva de boxe podia comer na porrada, vai enfiando a porrada até o outro botar pra baixo. Botou pra baixo, pára, levanta. É um treino pra você pegar o tempo de entrar na “baiana”, de agarrar e levar pro chão. (Eduardo, 30 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Já o “baile funk” era similar a uma “taparia”, só que envolvendo mais pessoas. Tinha este nome porque simulava uma pancadaria entre “galeras”: o professor colocava metade dos alunos de um lado, metade do outro, e a briga começava. No meu entender, hoje é bastante claro que práticas como a “taparia”, o “bloqueio” e o “baile funk” eram menos um tipo de treinamento (no sentido de aperfeiçoamento técnico) do que um ritual de masculinização. Afinal, ali estavam adolescentes experimentado situações de confronto corporal em um ambiente onde o significado da masculinidade – o “ser homem” – encontra-se inextricavelmente atrelado à idéia de gerir o próprio medo, encarar a briga, superar a dor que a acompanha e, se possível, vencer a ambas. Poder-se-ia entender a “taparia” como um rito de passagem no sentido que lhe dá Victor Turner (1974), mas isso exigiria algumas ressalvas, entre elas a de que as três fases que constituem o rito de passagem (separação, liminaridade e agregação) não estariam assim tão claramente delineadas. Nesse registro, é possível entendê- las não como um rito de passagem per se, mas como parte integrante de um rito de passagem mais amplo e abrangente, qual seja, a formação da identidade masculina.

Volta e meia tinha “taparia”, mas isso era mais raro, pelo menos aonde eu treinava. Tinha alguns tipos de “taparia”. Às vezes era um contra um, nego tirava o quimono, um contra o outro, e a galera botando pilha em volta. E às vezes era generalizado, todo mundo sem quimono e todo mundo dando porrada em todo mundo, tapa na cara, aí juntava neguinho, tapa na cara. Isso aí eu acho que é nego querendo fazer o outro virar macho. É, tipo assim, dando porrada você aprendia a apanhar, aprendia a se virar e a sair de situações mais difíceis. Mas, normalmente, a “taparia” era sinistra. Tomava cada bordoada, meu amigo... (Bruno, 29 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Por outro lado, seria exagerado ver no conjunto de tais práticas uma iniciação, pois esta, na definição de Mircea Eliade, “equivale a uma mudança

38 básica na condição existencial; o principiante emerge de sua provação investido de um ser totalmente diferente daquele que possuía antes da iniciação; ele terá se tornado outro” (apud Thompson, 1991: 36; tradução minha19). Talvez fosse melhor então considerá-las como uma das muitas “pseudo-iniciações” da masculinidade em sociedades ocidentais contemporâneas (Moore e Gillette, 1992) – as outras seriam, por exemplo, o serviço militar, a iniciação sexual com uma prostituta e os frequentemente violentos rituais de batismo de novos integrantes de gangues urbanas, nos quais o abuso de álcool e drogas é recorrente.

But these pseudo-initiations will not produce men, because real men are not wantonly violent or hostile. Boy psychology is charged with the struggle for dominance of others, in some form or another. And it is often caught up in the wounding of self, as well as others. It is sadomasochistic. Man psychology is always the opposite. It is nurturing and generative, not wounding and destructive (Moore e Gillette, 1992: 45)

De qualquer maneira, é certo que a “taparia” ajudava não apenas na construção do homem através da agressividade, mas também na fabricação de uma idéia de masculinidade mensurada pela capacidade de vencer, de triunfar sobre o oponente (Brittan, 1989). Um faixa-preta de vinte e oito anos, hoje instrutor de jiu-jitsu, recorda-se daquelas ocasiões:

Pois é, “taparia” rolava, rolava também de um cara ficar com luva de boxe e enfiar a porrada, o cara de luva só podia bater e o outro só podia se defender, tinha que finalizar. E “baile funk”, o pau comia, porrada de mulão [muitas pessoas] contra mulão. Cheguei em casa uma vez com o olho desse tamanho, não contei pra minha mãe nem nada, disse que tinha sido jogando bola. Porra, eu voltei pra casa várias vezes chorando... Mas no dia seguinte a piranha tava lá, apanhando de novo. (André, 29 anos, faixa preta e professor de jiu-jitsu.)

Começamos assim a vislumbrar a atmosfera no interior de uma academia de jiu-jitsu no início dos anos noventa. Mas há outros dados que merecem atenção. Ao treinamento sempre exaustivo e às vezes brutalizante somava-se uma informalidade incomum no mundo das artes marciais. Em geral, o ensino e prática de uma arte marcial são caracterizados por uma dimensão que se poderia chamar ritualística. No início e no final de toda aula de caratê, os alunos devem ficar de pé

19 No original: “Initiation is equivalent to a basic change in existential condition; the novice emerges from his ordeal endowed with a totally different being from which he possessed before his initiation; he has become another”.

39 e, juntos, revenciarem o mestre; ao entrar e sair de um dojô de judô, um aluno deverá reverenciar Jigoro Kano (haverá seguramente uma foto ou pôster pendurado na parede); e assim por diante. O treino de jiu-jitsu, ao contrário, era (e ainda é, como veremos) atravessado por regras e obrigações rituais mínimas. Não havia, uma separação hierárquica tão fortemente delimitada entre alunos e mestre, tampouco a exigência de reverenciá-lo ritualmente. E, mais importante, não havia uma “filosofia” por trás do jiu-jitsu.

Eu acho que faltou.. A maioria das artes marciais vem com uma rigidez de ensino grande. Cheio de respeito, de uma filosofia. O jiu-jitsu, não, o jiu-jitsu não tem nada disso. Você entra no tatame e não tem cumprimento, o que é uma coisa bacana até, entre aspas, porque tem muito a ver com o Rio de Janeiro, é uma coisa muito informal. Tem muito professor de jiu-jitsu por aí que os alunos mandam tomar no cu, dão tapa na cabeça, quer dizer, não respeitam o cara. Jogavam brigadeiro na cabeça dele. Faltou uma cumplicidade entre mestre e aluno. De repente, se não fosse isso, não tinha rolado toda essa onda de briga. Porra, o que eu já escutei de coisa, professor que “apagava” aluno só de sacanagem... O professor chegava e dizia “vem cá, vou te mostrar uma posição”, aí pegava, apertava o pescoço do aluno e “apagava” ele. (Marcos, 31 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Nesse ponto, devo confessar minha surpresa. Não com o que foi narrado pelos entrevistados – o que se passava no interior de uma academia de jiu-jitsu naquela época, já o sabia por experiência própria –, mas sim pelo fato de eles o terem feito de forma tão sincera, despudorada. Esperava ouvir depoimentos mais “corporativistas”, pois tratavam-se de pessoas com um longo histórico de relacionamento com o jiu-jitsu. Felizmente, não foi o que ocorreu:

Você vê o judô, que é uma coisa mais rigorosa. Você cumprimenta o juiz, o adversário, o dojô, você pode perder a luta, pode estar puto, mas quando sai do dojô, tem que cumprimentar todo mundo de novo. No jiu-jitsu é aquela bagunca, aquela zona, e tal tal tal, e acho que isso foi muito porque rolou uma prostituição da faixa preta. Claro, quando você começa a distribuir faixa preta pra qualquer um, porque ganhou meia dúzia de campeonato, esse cara pode até ter técnica boa, mas ele não tem ainda uma cabeça boa. Na minha visão, ele não pode receber ainda essa autoridade, esse poder, de dar aula e ser exemplo pra outras pessoas. Por isso vários saíam brigando. O Rickson [Gracie] que é o Rickson brigou várias vezes na rua, mas ele brigava com o Hugo Duarte [da luta-livre], era uma rivalidade... E era uma coisa meio de marketing, brigavam na rua pra depois marcar um vale-tudo, que ainda tava todo mundo no começo, tinha um teste entre as artes marciais. Então eu acho que faltou naquela época uma federação por trás aí, pra coordenar quem poderia ter a faixa-preta, pra penalizar os que fizessem alguma coisa, que queimassem o nome. Tinha que ter alguma legislação. “Você é faixa preta e brigou na rua? Dá aqui a faixa-preta. Você não tem mais licença pra dar aula no Rio de Janeiro”. E aí beleza, o cara vai pensar duas vezes antes de

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brigar. Agora, o cara vive saindo na porrada na rua, fica famoso, vira ídolo, e vai ganhar mais aluno... Porra, por que ele não vai brigar? Claro que ele vai brigar. (Túlio, 34 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Merece atenção esta “prostituição da faixa preta” à qual se refere o entrevistado acima. Outros ex-praticantes de jiu-jitsu argumentaram algo semelhante, embora não exatamente nos mesmos termos: falavam de uma falta de rigor na hora de graduar um praticante com uma faixa preta20. Nessa perspectiva, a “prostituição da faixa preta” ou a “ausência de rigor” em sua distribuição é absolutamente coerente com a “falta de uma filosofia” que, segundo os praticantes de jiu-jitsu, caracterizaria esta arte marcial. De um modo geral, o ensino do judô, do caratê e demais artes marciais se faz acompanhar não apenas de obrigações rituais que reforçam a observação do respeito e da hierarquia, mas também do ensino de uma “filosofia” de não agressão, de respeito ao próximo. A comparação é inevitável: como o jiu-jitsu não dispõe de semelhante pedagogia, diz-se que ele não “tem uma filosofia”. Ocorre que, se olhada com cuidado, esta ausência de filosofia revela-se na verdade uma filosofia em si mesma – ou melhor, a filosofia da eficiência. Ora, então não acabamos de ver, na história do estabelecimento do jiu-jitsu pelas mãos da família Gracie, na relação entre a necessidade de provar a superioridade da técnica e o ethos guerreiro que ela engendra, um sistema que alimenta a si próprio? Nada mais natural, portanto: uma arte marcial balizada pela obsessão pela eficiência só poderia ter como parâmetro para a gradução da faixa preta a própria eficiência. Retidão de caráter, maturidade emocional, nada disso é requisito fundamental quando se erige como valor maior a competência em subjugar fisicamente um adversário. Não haveria pois contradição alguma no fato de que o critério utilizado para a coroação de um lutador com a faixa-preta fosse o bom desempenho em campeonatos ou brigas de rua:

A: Você lutou jiu-jitsu durante quanto tempo? Marcos: Fiz uns oito anos de jiu-jitsu. A: Então você chegou até a faixa marrom ou preta?

20 Veja-se, por exemplo, a fala de outro entrevistado: “A forma como devia ser ensinada devia ser rigoroso. Tinha que ter mais respeito, uma faixa preta só pode ser dada se a pessoa tem responsabilidade, não podia ser dada pra um cara que fica brigando na rua. A faixa preta deveria ser dada não só porque o cara é bom tecnicamente, mas quando o cara já ta pronto pra ser um professor, já aprendeu com a vida e tal. Às vezes eu vejo uns faixas pretas que não tem nada a ver com isso”. (Bruno, 29 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

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Marcos: Não, não. Fiquei na faixa azul. Eles queriam que eu lutasse campeonato, só que eu não queria lutar, não gostava. Como eu não lutava, eles não davam faixa, então foda-se. Tanto que agora, eu morei fora muito tempo, passei alguns anos fora. Cara, eu já tô a um tempão sem treinar, e de bobeira fui dar uns treinos numa academia com um professor que era até lá da Carlson [Gracie]. Aí ele me botou pra treinar com um faixa marrom, e eu fiz jogo duro com ele. Porra, com faixa marrom, fazendo jogo duro, sendo que eu não treino há anos... Faixa azul é que eu não sou.

Num tal ambiente, uma filosofia que incluísse o pacifismo e o respeito ao próximo seria contraprodutiva, prejudicial. Assim, parece ficar mais nítida a idéia de que práticas como “taparia”, “bloqueio” e “baile funk” eram elas próprias necessárias à reprodução da filosofia da eficiência que consagrara o jiu-jitsu. Pois sem a introjeção daquele ethos guerreiro, sem o aprendizado da disposição incessante em provar a própria superioridade – fatores fundamentais à eficiência demonstrada pela técnica Gracie em brigas de rua –, como poderia o jiu-jitsu manter seu principal traço distintivo, aquilo que o diferenciava das demais artes marciais e o colocava acima delas?

A: Você acha que os professores incentivavam os alunos a sairem na porrada? Lucas: Ah, tinha umas estórias. Tinha professor, faixa-preta cascudão, que saía na night com os alunos dele e saía na porrada. Eu conheço um cara que treinava numa academia que o professor falava assim: “Quem aqui tomar trote no colégio vai entrar na porrada na academia. Se o cara for te dar trote, enfia a porrada no cara”. Então tipo assim, o cara ia tomar trote, vinha a galera e o cara já “armava” [faz o movimento de levantar os punhos]: “É tu que vai me dar trote? Vou enfiar a porrada!” Porque se chegasse na academia e o professor ficasse sabendo que o cara não tinha reagido, que tinha tomado o trote, o cara tinha um pavor animal que o professor ia bater nele. E batia mesmo, apagava ele, entendeu? Muito louco. Era melhor bater no cara do que apanhar do professor. Muito louco. Fiquei impressionado quando eu soube disso. (Eduardo, 30 anos, ex- praticante de jiu-jitsu.)

Claro, seria uma injustiça e uma incorreção de minha parte generalizar o argumento. Sem dúvida, havia academias e professores que incentivam tais comportamentos, e outros que o reprimiam ativamente. Não há como afirmar, com base em evidência empíricas, qual constituía a regra e qual a exceção. Mas, levando-se em conta tudo o que foi dito acerca da necessidade do ethos guerreiro para a consolidação de uma idéia de supremacia do jiu-jitsu como arte marcial, e observando-se a popularidade que o jiu-jitsu conquistou justamente por esta razão, pode-se suspeitar de que a regra dentro das academias, infelizmente, era antes o estímulo ao comportamento violento do que sua repressão. Ainda assim, não

42 deixo de registrar o depoimento de um entrevistado, narrando com orgulho a intervenção de seu professor numa confusão em que estava prester a se envolver:

O meu professor não deixava nego sair na porrada. Uma vez uma namorada minha me chifrou com um cara, e eu queria dar porrada no cara de qualquer jeito. Aí teve um desafio de lutas de jiu-jitsu, e o cara tava lá. Na saída da parada, eu vi o moleque lá. Eu queria enfiar a porrada nele, eu ia enfiar a porrada nele. Não tinha outra possibilidade. Tava eu e um camarada meu. E ele: “Pega o cara! Pega o cara!” Era o diabinho ali no meu ouvido. Na hora que eu cheguei, quando eu fui pra cima dele, sinto um braço me puxando. Quem era? Era o meu professor. “Que porra é essa Marcelo?” E eu: “Porra, aquele filho da puta ali, quero enfiar a porrada nele.” “Quer enfiar a porrada nele? Então vamos lá na academia pra gente conversar”. Aí chegou na academia e ele falou “só vou deixar você enfiar a porrada no cara se você enfiar a porrada antes no Caio”. Detalhe: o Caio era faixa marrom, e muito maior que eu. Mas eu tava tão puto que falei “beleza”. Aí botaram luva de boxe em mim, o Caio botou também, e aí nem pensei, parti pra cima. Tomei um cruzado, caí no chão, e ele começou a me enfiar a porrada. Montou em mim, me deu um soco e perguntou: “Tá bom, professor?” E o professor: “Marcelo, tu ainda quer dar porrada no cara?” E eu: “quero!”. Aí o professor falou “então pode bater mais um pouco nele, Caio”. Aí desisti. Acabei não saindo na porrada com o cara depois. (Lucas, 32 anos, ex-praticante de jiu- jitsu,)

O jiu-jitsu no mundo: vale-tudo e submission grappling

Foi nesta época, mais precisamente no início dos anos noventa, que o jiu- jitsu entrou na moda. Com o jiu-jitsu tornado febre, primeiro entre a juventude da zona sul carioca, depois nas principais capitais do país, os campeonatos cresceram e se multiplicaram, e, no rastro deles, toda uma indústria associada ao esporte. Marcas de roupas (as chamadas fight wear, como a “”), lojas de sucos (pioneiras na difusão do açaí, fruta da região norte cujo suco, servido quase como um sorvete, é bastante apreciado por lutadores devido ao seu valor calórico e nutritivo), fabricantes de quimonos e acessórios (protetores de orelha, de boca etc.), enfim, um novo e lucrativo nicho de mercado começou a ser explorado. A crescente premiação e visibilidade dos campeonatos aumentou também a rivalidade entre as academias. Para se ter uma idéia, um dos piores adjetivos que um lutador podia receber era “creonte”21, isto é, traidor, atleta que abandonava sua academia para treinar em uma rival. Nas competições, as torcidas se organizavam e se provocavam mutuamente, às vezes ao ponto de se enfrentarem

21 Pelo visto, alguém no mundo do jiu-jitsu deve haver lido a tragédia Édipo-Rei, de Sófocles.

43 com violência. Quem treinava, por exemplo, na Carlson Gracie, era considerado inimigo dentro da Barra Gracie e da Gracie Humaitá. A grande novidade, no entanto, foi a explosão dos eventos de vale-tudo. De início, o jiu-jitsu teve na luta-livre seu maior adversário; posteriormente, lutou contra praticamente todas as artes marciais, em todos os continentes, e assim ganhou o mundo. Os confrontos de vale-tudo ajudaram a acirrar definitivamente a rixa com a luta-livre, arte marcial semelhante ao jiu-jitsu22, porém praticada sem quimono. Em 1984, um vale-tudo ocorrido no ginásio do Maracanãzinho lançou sombras sobre a suposta superioridade da técnica criada pelos Gracie. Fernando Pinduka, então um dos grandes nomes do jiu-jitsu, não passou de um empate contra seu adversário da luta-livre, e Renan Pitanguy foi nocauteado pelo rival Eugênio Tadeu. Uma reedição do desafio luta-livre x jiu-jitsu, um vale-tudo ocorrido em agosto de 1991 no ginásio do clube Grajaú, entretanto, voltou a colocar a balança favorável para o lado do jiu-jitsu. Três confrontos, três vitórias da “arte suave”. A rivalidade era tanta que Wallid Ismail, aluno de Carlson Gracie, chegou a arrancar os dentes da frente para a sua luta contra Eugênio Tadeu, da qual saiu vitorioso e consagrado. A rixa só atingiu o seu auge quando derrotou o maior expoente da luta-livre, Hugo Duarte, numa briga travada na praia do Pepê, Barra da Tijuca.23 Hugo revidou invadindo dias depois a academia Gracie, provocando uma pancadaria generalizada. É Wallid Ismail quem conta:

22 A luta-livre assemelha-se ao jiu-jitsu por ser uma modalidade também inteiramente voltada para a luta no solo. Contudo, pelo fato do treinamento ocorrer sem quimono, o repertório de golpes dos lutadores de luta-livre é mais limitado do que o dos praticantes de jiu-jitsu. Os lutadores de jiu- jitsu frequentemente acusam os da luta-livre de serem “grossos”, isto é, de se valerem de muita força e pouca técnica. Mas a rivalidade não se restringe a questões puramente técnicas. A luta-livre se desenvolveu na zona norte do Rio de Janeiro, e suas academias em geral cobravam preços bem mais módicos do que as academias de jiu-jitsu da zona sul da cidade. Hoje o jiu-jitsu espalhou-se até pelo interior do estado, e a distinção já não faz tanto sentido. Mas na década de 80 e no início da de 90, o elemento de diferenciação social era nítido na rixa entre as modalidades. Os praticantes de luta-livre, por exemplo, rotulavam os lutadores de jiu-jitsu de “playboys”, “filhinhos de papai” da zona sul e da Barra da Tijuca. Para uma abordagem mais detalhada deste tópico, ver o artigo “Economia da violência versus ethos guerreiro nas artes marciais no Rio de Janeiro”, de Carlos Aurélio Pimenta de Faria (s/d/p). 23 O vídeo da briga encontra-se disponível em www.youtube.com/watch?v=yt35nJCP3Oc. Vale notar que a locução que acompanha o vídeo, feita por , o transforma numa peça de propaganda do Gracie jiu-jitsu: “The man with a white [não entendi a palavra exata, mas refere-se à roupa branca do lutador Hugo Duarte] has been insulting the Gracie family. My brother [Rickson] slaps him on the face and challenges him on the spot. Though this footage is not very clear, it gives you a good idea what to expect in a real street fight. The purpose of any self-defense should be to prepare you to the unpredictable reality of the street. All martial arts are limited by rules, which give their practitioners a false sense of security. Out on the street, if you have to fight

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Eu era faixa-roxa, estava treinando na Carlson quando alguém chegou falando que os caras haviam invadido a academia Gracie. Chamei alguns faixas-pretas do Carlson e só o Clóvis foi comigo. Temos que reconhecer que o Hugo Duarte foi corajoso ao invadir a academia Gracie apenas uma semana depois de o Rickson tê-lo derrotado na praia do Pepê. Fiquei impressionado com a coragem do Hélio Gracie. Ele tinha quase 80 anos e liderou tudo. Depois o Royler [Gracie] e o Eugênio saíram na porrada e a polícia chegou atirando e todo mundo correu... Que época louca! Hoje, as pessoas não entendem o que rolava naquela época... Os caras da luta-livre dominavam as ruas do Rio. Eram os donos da cidade. (Fonte: Revista Tatame edição 131, janeiro de 2007, pg.35)

O Rio de Janeiro começou a ficar pequeno para o jiu-jitsu quando, em 1993, Rorion Gracie organizou o Ultimate Fighting Championship (UFC) nos EUA, evento de vale-tudo onde dezesseis lutadores de diferentes artes marciais se enfrentaram numa mesma noite, em combates disputados dentro de uma jaula de formato octagonal, sem regras24, luvas, rounds ou limite de tempo. Cabeçadas, joelhadas, chutes no rosto do adversário deitado no chão, pisões na costela, dentes quebrados voando, supercílios abertos com apenas um soco, cotovelos estalando em chaves de braço, estrangulamentos – enfim, era o mais próximo que se conseguia chegar de uma briga de rua, só que dentro de um ringue, com transmissão pela TV e replay dos lances mais dramáticos. , o mais leve dentre todos os competidores, lutou três vezes naquela noite. Sagrou-se campeão sem exibir sequer um olho roxo. A decisão de escalar Royce, e não Rickson, que era indiscutivelmente o melhor e mais forte membro da família Gracie, partiu do próprio Rorion. Queria alguém que parecesse uma pessoa normal, de biótipo magro, e não um atleta de compleição física invejável, como era o caso de Rickson. Royce foi escolhido para lutar porque sua vitória representaria tudo aquilo que o Gracie jiu-jitsu sempre fez questão de

for your life, there are no referees and no rules applied. A street fight is not want you wanted to be or what you expected to be; it simply is. Fights like this occurred frequently in Brazil and it was in this kind of environment that the Gracie established itself as the most complete and effective source of instructional jiu-jitsu in the world. The best chance to win a fight against a bigger and stronger opponent is to close the distance and take him to the ground. While this appears to be a draw, it is important that you understand that my brother, with the colorful trunks, is reacting to the moment-to-moment reality of the fight and is maneuvering the opponent to his doom. The Gracie jiu-jitsu academy will prepare you to defend yourself where it really counts: out in the streets or, in this case, the beach in Rio. The Gracie brother, now mounted on the man who was claiming to be the champ, will punch him until he admits that jiu-jitsu still reigns”. [O vídeo termina com Rickson montado em Hugo Duarte, esmurrando-o impiedosamente.] 24 Havia, é claro, algumas proibições básicas: não era permitido morder o adversário, colocar dedos nos olhos ou aplicar golpes na região genital. Todo o resto era permitido, inclusive golpes na nuca, o que depois viria a ser proibido.

45 provar ou demonstrar – que era, de fato, a única arte marcial que permitia a Davi vencer Golias. Foi exatamente o que aconteceu. Royce venceu as três primeiras edições do UFC usando somente a técnica do jiu-jitsu. Praticamente sem ferir os adversários com golpes traumáticos, aplicava-lhes chaves de braço e estrangulamentos que rapidamente os faziam desistir de seguir lutando. E fazia tudo isso com as costas no chão, isto é, lutando “por baixo” do oponente, posição que, no mundo das artes marciais, foi desde sempre era considerada bastante desvantajosa. A técnica associada ao sobrenome Gracie assombrou o mundo, e em pouco tempo o vale-tudo se tornou uma febre mundial, com eventos disputados mensalmente no Japão e na Europa. Mas a supremacia dos atletas do jiu-jitsu não durou muito. Wrestlers norte-americanos, então já familiarizados com a técnica Gracie, aprenderam a neutralizar os principais golpes do jiu-jitsu, e souberam tirar proveito de sua invejável condição física para impor um estilo de luta que ficaria conhecido como ground and pound (“derrubar e bater”). O reinado do wrestlers, contudo, também foi passageiro. Logo surgiram os strikers, atletas de boxe tailandês e boxe tradicional que, igualmente escolados nas principais artimanhas do jiu-jitsu e do wrestling, começaram a colecionar vitórias e títulos, com nocautes rápidos e espetaculares. Atualmente, a separação entre strikers (“nocauteadores”, que preferem lutar em pé e vencer através de golpes traumáticos) e grapplers (“agarradores”, que derrotam seus adversários principalmente com técnicas de solo) não é mais tão evidente. Pois as competições são tão acirradas que o atleta que se quer de ponta, por mais que tenha predileção por um determinado estilo de luta, é obrigado a treinar todas as modalidades. Regras e lutadores modificaram-se como um todo. Hoje, o vale-tudo é chamado de Mixed Martial Arts ou MMA, até porque não “vale mais tudo”: há categorias separando os atletas por peso (o que torna as disputas mais justas), é obrigatório o uso de pequenas luvas para proteger as mãos, os combates são divididos em rounds e, em determinados eventos, como o UFC, certos expedientes são proibidos, como golpes traumáticos na nuca ou chutes no adversário quando este estiver no chão. Neste sentido, pode-se dizer que o MMA percorreu a mesma trajetória que o Boxe, isto é, foi gradualmente incorporando um conjunto de regras e dispositivos cujo principal objetivo estava não apenas em preservar a integridade física dos lutadores, mas sobretudo em

46 evitar ferir os olhos de sua audiência, cada vez mais dotada de sensibilidade em relação a violência25 (Elias e Dunning, 1997). O MMA transformou o ato de “sair na porrada” em um esporte, aliás altamente rentável. De acordo com o site MMAWeekly, em 2006 o UFC registrou o lucro recorde de mais de 200 milhões de dólares; apenas na edição 66, o UFC obteve 47,94 milhões de dólares de faturamento em pay-per-view, ultrapassando o boxe, cuja maior soma em pay-per-view ficou em 46,20 milhões de dólares, na luta entre De La Hoya e Mayorga. Além disso, “o MMA foi apontado como o esporte mais popular entre homens de 18 a 45 anos, passando a ser a nova menina dos olhos dos anunciantes norte-americanos” (Fonte: Revista Tatame, edição 131, janeiro de 2007, p.4). Recentemente, foi criada nos Estados Unidos a International Fight League, que congrega times de lutadores de MMA (“Anacondas”, “Silverbacks”, “Razorclaws”, “Tiger Sharks” etc., bem ao estilo dos times de futebol americano) que se enfrentam num calendário de lutas durante todo o ano. Há também um reality show na TV americana, o The Ultimate Fighter, cujo propósito é selecionar futuros lutadores para o UFC e acompanhar- lhes o treinamento. Mas tamanho sucesso não se dá exclusivamente na América do Norte: também na Europa e no Japão o MMA atrai público e patrocinadores de forma grandiosa, com eventos como o Cage Rage e o Pride Fighting Championship. As cifras astronômicas – um campeão do Pride chega a ganhar 400 mil dólares em apenas uma noite – não demoraram a despertar a cobiça dos lutadores brasileiros. Inúmeros campeões de jiu-jitsu ou de boxe tailandês abandonaram suas competições tradicionais em favor de um treinamento diversificado, visando uma melhor preparação para a carreira de lutador de MMA. Muitos vêm amealhando sucesso e fortuna: os “jiu-jiteiros” cariocas Rodrigo “Minotauro”, Paulão Filho e Ricardo Arona, para citar apenas alguns, ou os atletas da academia curitibana Chute Boxe, celeiro de campeões como Wanderley Silva e Maurício “Shogun”.26 Há muitos outros ainda – Vitor “Shaolin” Ribeiro,

25 Não se pode perder de vista, entretanto, que a sensibilidade do público em relação ao alto grau de violência e dramaticidade das lutas não foi o único fator a pesar na transformação do vale-tudo em MMA. Também interesses comerciais tiveram sua cota de influência aí. Para superar as restrições impostas por muitos estados da federação norte-americana e com isso ganhar escala nacional nos EUA – tornando-se assim um investimento economicamente atraente para empresas de pay-per-view –, o MMA teve que se adequar às exigências impostas pela Comissão Atlética de Nevada, entidade que controla os desportos de lutas naquele país. 26 De passagem, fica aqui uma sugestão para pesquisa. Wanderley Silva manteve durante 6 anos o posto de melhor lutador de MMA do mundo na categoria até 93 quilos – no Japão, as lojas de

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Alexandre Pequeno, , , Gesias Cavalcanti, Anderson Silva... Por fim, cabe também ressaltar o crescimento dos eventos de submission grappling, nos quais não são permitidos golpes traumáticos. As lutas são realizadas sem quimonos, como em competições de luta-livre, e o objetivo é levar o adversário para o chão e finalizá-lo. O maior evento do gênero, o Abu-Dhabi Contest, realizado a cada dois anos, já é chamado de “a copa do mundo das lutas agarradas”, não apenas por distribuir uma expressiva quantia de dinheiro aos seus campeões, mas sobretudo por atrair a participação de atletas de modalidades tão diversas como wrestling, luta greco-romana, judô, , luta-livre e, é claro, jiu- jitsu. Até aqui os praticantes do Gracie jiu-jitsu vêm dominando a competição; o último torneio Abu-Dhabi, realizado em maio nos Estados Unidos, terminou com lutadores brasileiros de jiu-jitsu no lugar mais alto do pódio em todas as categorias. No desenvolvimento das competições de submission grappling estão as maiores esperanças de futuras medalhas olímpicas para atletas de jiu-jitsu. Em dezembro de 2006, o submission grappling tornou-se uma modalidade de luta reconhecida pela Fedération Internationale des Luttes Associées (FILA), entidade que desde 1912 é responsável pelas lutas olímpicas. Mirando a aprovação do Comitê Olímpico Internacional, a FILA já está trabalhando no sentido de encaixar os eventos de submission nos padrões internacionais de segurança desportiva, o que prevê a realização de exames anti-doping e a padronização universal das regras dos combates. Segundo Raphael Martinetti, presidente da FILA, a expectativa é que o submission grappling seja incluído nos jogos olímpicos de 2016 (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 119, janeiro de 2007, pg. 49). O crescimento dos eventos de “jiu-jitsu sem quimono”, e a projeção internacional

brinquedo vendem um boneco de miniatura Wanderley Silva, e seu rosto estampa uma série de cartões de crédito Mastercard. Rodrigo “Minotauro”, campeão mundial de MMA em 2001 e 2003, é igualmente idolatrado no Japão: já foi modelo para uma história em quadrinho, personagem de um videogame de lutas e ator em um seriado de humor na TV japonesa. Além disso, Wanderley e “Minotauro”, assim como outros respeitados lutadores brasileiros, recebem fortunas para ministrar seminários na Europa e nos Estados Unidos. São, para resumir, lendas reconhecidas de um esporte que vem merecendo a atenção da grande mídia no mundo todo – exceto no Brasil. Chama a atenção o completo descaso dos meios de comunicação brasileiros para com o sucesso dos nossos atletas de MMA. Penso que, por comparação, o exame mais detalhado deste assunto permitiria visualizar os mecanismos através dos quais a grande mídia faz suas escolhas sobre quem deve ou não ser alçado à categoria de ídolo do esporte nacional.

48 que o esporte vem ganhando27, afeta diretamente o treinamento e as ambições dos atletas de jiu-jitsu. Nas revistas especializadas, fala-se já numa certa decadência das competições de quimono, o que aponta para o fato de os melhores atletas de jiu-jitsu estarem se dedicando exclusivamente ao MMA ou ao submission. Não sem razão: em janeiro de 2007, um desafio de lutas casadas entre alguns dos maiores nomes atuais do jiu-jitsu, organizado através da votação de internautas, não chegou a encher as pequenas arquibancadas armadas na casa de shows Ribalta (Barra da Tijuca), e mereceu somente duas páginas de cobertura jornalística na revista Tatame; já a etapa brasileira de seleção para o Abu-Dhabi Contest 2007, realizada poucos dias após o evento na Barra, lotou as arquibancadas do ginásio do Botafogo, e recebeu cinco páginas na mesma edição da revista Tatame. Estive presente em ambos os eventos. A diferença de público era visível. Em suma, nos últimos anos o jiu-jitsu vem sendo cada vez mais “aplicado” em competições outras, como as de MMA e submission grappling. O que não deixa de configurar algo como um “retorno as origens”, dado que tal fato remete à usabilidade que o jiu-jitsu tem fora do tatame, isto é, no ringue ou na rua – e, como vimos, foram estes usos da técnica que marcaram os tempos iniciais do jiu- jitsu brasileiro, com Carlos e Hélio Gracie. Sem quimono, com quimono, sem quimono: uma vez concluída esta breve história da transformação do jiu-jitsu, podemos enfim adentrar o corpo do relato etnográfico. Em setembro de 2006, decidi matricular-me na mesma academia em que havia praticado jiu-jitsu na adolescência. Voltei a usar a faixa branca.

27 Apenas a título de registro: pela primeira vez, o campeonato mundial de jiu-jitsu será realizado fora do Brasil. O campeonato, cuja primeira edição foi em 1996, é organizado pela Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu, entidade presidida por Carlos Gracie Júnior. Em 2007, será sediado na Califórnia.

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2.3 Corpo, masculinidade, virilidade e pertencimento numa academia de jiu-jitsu

O Mestre e o Professor

Passava da hora do almoço quando cheguei à academia. Esperava encontrar o tradicional ambiente de luta, atletas suando debaixo de grossos quimonos, gritos de esforço em meio a treinos ou flexões de braço. Mas o lugar estava vazio, e as luzes, apagadas. Somente uma recepcionista entediada e um aparelho de televisão ligado davam vida ao ambiente. Pergunto as informações de praxe – preço, horário das aulas, professores. Num gesto automático, a moça me estende um folheto com as informações. A mensalidade custa R$ 175,00, mas o aluno tem a opção de comprar pacotes promocionais. Se escolher o de três meses, pagará R$ 160,00; caso opte pelo de seis meses, cada mensalidade sairá por R$ 150,00, pagos adiantados em cheques pré-datados. Seja como for, uma vez que o aluno desembolsa a quantia, pode treinar em qualquer horário, e quantas vezes quiser no mesmo dia. No folheto sou igualmente informado dos horários dos treinos – sete, dez, dezesseis, vinte horas, e um treino livre todo sábado às dez horas – e que há também uma taxa de matrícula, de R$ 120,00. Agradeço a atenção e despeço-me. No caminho de volta, penso na possibilidade de ter que comprar um quimono novo (que, dependendo do modelo, pode chegar a custar cerca de R$ 250,00); o antigo, guardado de qualquer jeito num saco debaixo da cama, estava rasgado e mofado. Penso também na necessidade de comprar uma mochila grande para acomodar quimono, toalha, livros e demais apetrechos cotidianos de trabalho. Então me ponho a fazer contas. A dor, como se vê, começa antes do primeiro treino. Começa no bolso. No dia seguinte, voltei no horário do treino da tarde. Ao reencontrar o Mestre, e externar a ele a vontade de retomar o treinamento de jiu-jitsu em sua academia, sou imediatamente recebido com sorriso e aprovação. O Mestre diz que, por coincidência, havia visto naquele mesmo dia uma foto antiga, da primeira turma da academia, na qual eu figurava. Pede-me que o acompanhe ao seu escritório, uma pequena sala ao lado da recepção, e vai logo tratando de mostrar, no computador, uma foto tosca, datada de 1992, de muitos adolescentes de

50 quimono – a maioria de braço cruzado, fazendo cara de malvado e pose de durão. “Vê se tu consegue se achar aí”, ordena. Aponto um garoto magrelo, o rosto imberbe, no canto esquerdo da foto: “Sou eu aqui”. E passo a reconhecer os amigos que treinavam comigo, muitos dos quais não vejo há anos. Educadamente, o Mestre diz que, por ser aluno antigo, não precisaria pagar a matrícula. Diz ainda que, caso estivesse precisando, poderia conseguir um quimono novo com bom desconto. Agradeço a gentileza e, antes que pudesse completar com um “bom, então até amanhã”, sou surpreendido por um olhar enviesado: “Agora, caralho Antonio, que barba é essa?” O Mestre é um tipo brincalhão, gosta de fazer graça com os outros. Sempre foi assim. Tem trinta e nove anos, e uma filha de seis, fruto de um casamento que já dura quatorze anos. Quando abriu sua academia, no início da década de 90, ainda não era faixa-preta. Não tem vergonha de assumir que está um pouco fora de forma – os tempos de competição ficaram para trás. Atualmente, é mais administrador do que lutador; poderia, se quisesse, colocar seus faixas-pretas para dar aulas, pelo menos no horário das sete da manhã. Mas faz questão de continuar dando aulas, não apenas no primeiro mas também no último horário (vinte horas), que é o mais exigente, repleto de atletas graduados e em nível de competição. Ainda treina assiduamente, e não é difícil vê-lo lutando contra um de seus faixas- pretas por mais de dez, quinze minutos ininterruptos. Experiente, sabe a hora de “explodir”, de fazer força, e a hora de respirar, de aguardar com paciência o desenrolar da movimentação de seu oponente. O reencontro com o Professor foi um tanto surpreendente. Apesar de a diferença de idade entre nós ser de apenas alguns meses, não treinávamos juntos quando a academia abriu, no início dos anos noventa. Naquela época, havia o treino dos “adultos” (acima de quinze, dezesseis anos) e o dos “moleques” – e ele era tão baixinho e franzino, que se via obrigado a treinar entre as crianças. Pois bem: o outrora frágil e magricelo faixa-branca havia se transformado num atleta de porte físico avantajado, um faixa-preta de destaque, campeão brasileiro e mundial de jiu-jitsu. Os ombros largos, os músculos definidos, mas não inchados como os dos halterofilistas; embora seja visivelmente um sujeito forte, não pesa mais do que setenta e cinco quilos. É o aluno mais antigo da academia. Inscreveu-se no dia mesmo da inauguração – “peguei um quimono de caratê emprestado e fui treinar”, recorda-

51 se. Hoje é o grande nome da academia. Mas apesar de reverenciado pelos alunos – e sobretudo pelo Mestre, que o ensinou tudo – por sua técnica, conserva a humildade e um jeitão algo tímido. Tem a fala mansa, embora exprima com firmeza a voz de comando durante as aulas. Ao contrário do Mestre, não costuma caçoar de quem quer que seja, exceto quando o assunto é futebol. Vascaínos são suas vítimas prediletas, como convém a um rubro-negro fanático. Vai a todos os jogos do Flamengo no Maracanã (tem o escudo do Clube tatuado na perna), celebra com cerveja as vitórias e com algum mau-humor as derrotas. Mas a paixão pelo futebol não o cega a ponto de prejudicar-lhe a rotina de treinamento. Trata- se, afinal, de um atleta no esplendor de sua forma física, que complementa os treinos diários de jiu-jitsu (notem o plural) com aulas de boxe tailandês e boxe tradicional, e, sob a orientação de um personal trainer, segue à risca um programa de condicionamento aeróbico que inclui natação, corrida e exercícios diversos de explosão muscular. Tanto sacrifício tem uma explicação. O Professor vai estrear em breve no vale-tudo, o que todavia não implica no abandono das competições de jiu-jitsu – “minha meta para este ano é ser campeão mundial de jiu-jitsu”, afirma. Quando perguntado sobre o porquê de iniciar carreira no MMA agora que está no auge de sua trajetória como lutador de jiu-jitsu, respondeu que foram dois os fatores que pesaram em sua decisão:

O primeiro foi o lance da academia, né? Como eu estou na linha de frente, resolvei botar a cara a tapa, ser um espelho, outros vem atrás depois. Tem o [cita o nome de um outro atleta da academia] que também tá começando agora. Pra divulgar mais a academia. E também... Tô competindo no jiu-jitsu há muito tempo, então eu acho que... é como o cara que pega onda. O cara tá todo dia pegando Pipeline, Pipeline [praia do Havaí famosa por suas ondas grandes e tubulares], já manda todas as manobras, chega uma hora em que a adrenalina do cara já não incomoda mais, tem que procurar outros ares. Como é que ele faz isso? Pega onda de tow in, onda de 20 metros [Tow in é uma modalidade em que o surfista, usando uma prancha especial, é rebocado por um jet-ski, que o coloca dentro da onda. Com isso, ondas gigantes, até então tidas como impossíveis de serem surfadas, foram desbravadas]. Eu já entrei em muita competição, já não me dá tanta adrenalina. E a coisa mais perto do jiu-jitsu é o . E é uma coisa boa pra carreira, além de dar adrenalina nova, eu divulgar a academia, pode ser uma carreira que me dê dinheiro. Não é porque eu goste de tomar soco na cara, mesmo porque eu não sei nem qual vai ser a minha reação na hora, se vou chegar lá, tomar um soco e vou recuar, ou se vou tomar um soco e vou esquecer o vale tudo e levar pro lado pessoal.

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Não é preciso acompanhar a extenuante rotina do Professor para perceber o seu caráter eminentemente ascético. Antes de, digamos, maltratar os corpos dos seus adversários, primeiro ele maltrata o seu próprio, e isso em quase todos os dias da semana. Diversas vezes o vi chegar para dar aula ressentindo-se de cansaço e dores musculares; nestas ocasiões, invariavelmente ele anunciava que o treino seria “puxado”, que iria colocar a todos nós para suar de verdade. “Alguém tem que pagar”, dizia, balançando a cabeça de um lado para o outro. Este “alguém”, no caso, incluía a minha pessoa.

O treino das dezesseis horas

Como já foi dito, são vários os horários em que se pode treinar na academia. Cada horário, em função do tipo de aluno que o freqüenta, tem um perfil diferente. Às sete horas da manhã treinam aqueles que trabalham o dia inteiro (adultos, portanto). Às dez também só há adultos, a maioria de graduação igual ou superior à faixa-roxa.28 Às quatro da tarde, há uma mistura maior – garotos de quinze a vinte anos, faixas-branca e azul, e, vez por outra, alguns faixas-marrom e preta adultos. De noite, a maior parte dos alunos é de atletas graduados, que competem profissionalmente. Escolhi o treino da tarde não apenas em função da conveniência do horário, mas também porque me permitiria melhores oportunidades de luta. Explico-me. Treinar com alguém mais graduado obriga a melhorar o sistema defensivo: você passa sufoco, é finalizado diversas vezes, mas aos poucos vai aprendendo a evitar os golpes e posições do oponente. Já o treino com um aluno menos graduado serve para aumentar o repertório de ataques – sendo mais técnico que seu adversário, você tem condições de encaixar golpes e testar posições. No horário das dezesseis horas, achei que teria ambos os tipos de treinamento, o que seria não apenas produtivo tecnicamente, mas sobretudo reconfortante em termos corporais. Ninguém agüenta ser “amassado” todos os dias no tatame. A quantidade de alunos às dezesseis horas flutua, nunca é exatamente estável. Mas há sempre os mais assíduos, aqueles que, como eu, preferem treinar

28 A graduação de faixas no jiu-jitsu obedece à seguinte ordem: branca, azul, roxa, marrom, preta, vermelha (esta última sendo mais um atestado de experiência do que de técnica). Em geral, um aluno assíduo e razoavelmente talentoso leva entre sete e oito anos para graduar-se faixa-preta.

53 de tarde, e que só muito raramente, em ocasiões excepcionais, lutam em outro horário. A partir de agora, concentrarei o meu relato no convívio com alguns destes alunos assíduos, aqueles com os quais tive mais oportunidade de conversar e treinar. Antonio, vinte anos, faixa-branca, cearense de nascença, morador da Penha, trabalha como garçom na zona sul. É casado com uma menina de dezessete anos, com quem tem uma filha pequena. Tentou ser jogador profissional de futebol no clube Marília, de São Paulo, mas não teve sorte. Não abandonou o futebol por completo, contudo: joga “pelada” no Aterro do Flamengo semana sim, outra também. Vez por outra aparece para treinar queixando-se de dores no joelho. Léo, dezesseis anos, faixa-azul, vascaíno inveterado; mora na zona sul, e no final do ano vai prestar vestibular para o curso de Direito. Deve gozar de um alto padrão de vida, a julgar pelos táxis que o deixam e o buscam diariamente na porta da academia. O Mestre costuma chamá-lo de “Princesa Léia” (personagem da trilogia Star Wars), ou então “Léia da cefaléia”, em referência à sua condição física quando começou a treinar na academia – era gordinho e desengonçado, mas perdeu quinze quilos com a prática diária de jiu-jitsu e hoje é um garoto forte, de músculos definidos. Sampaio (vulgo “Mussum”), quinze anos, faixa-azul, negro, morador da Cruzada São Sebastião, conjunto de habitações populares no Leblon. Tímido, fala muito baixo, quase sem mexer a boca. O jeito manso, no entanto, engana: é um exímio lutador de jiu-jitsu, e dedica-se também ao boxe tailandês. Pretende lutar vale-tudo quando alcançar a maioridade. Pedro, vinte e sete anos, faixa-roxa, aluno antigo, da primeira turma. É chef de cozinha, atualmente desempregado. Apelidaram-no de “trash” e “japonês-de-cara-inchada”, o que aliás não é totalmente descabido. Tem o olho puxado dos japoneses, e a cara sempre com jeito de quem acabou de acordar. Classe social, cor, lugar de nascença – como se vê, são muitas as diferenças entre os alunos do treino da tarde. Contudo, há uma única grande semelhança entre eles. Quando perguntados sobre o porquê de haverem escolhido o jiu-jitsu, responderam todos “para aprender a me defender”. (Sampaio foi o único a acrescentar algo à resposta: disse que “costumava apanhar na creche”.) O depoimento do Professor, nesse aspecto, é paradigmático:

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Já tinha feito judô e caratê, mas muito pequeno, uns seis anos, oito anos, mas não parei nesses dois mais de um mês. Não me interessou muito não. Quando eu entrei no jiu-jitsu eu nem fazia idéia do que era, como que era. E o que me fascinou foi a luta em si, de não ter contato de soco e chute, e sim de dominar o adversário. O cara mais leve conseguir dominar o cara muito mais pesado, muito mais forte, que nenhuma outra luta tem, não existe isso em nenhuma luta. Aí me interessou, porque eu era muito pequeno e comecei a dominar neguinho muito mais forte e mais pesado do que eu.

Tal motivação para começar a treinar jiu-jitsu não é exclusividade dos alunos pesquisados na academia onde treino. Em sua etnografia entre lutadores de jiu-jitsu, Cecchetto (2004, especialmente cap. 3) colheu depoimentos que apontavam nesta mesma direção, a da necessidade de auto-defesa. Mas há que se notar que, em tese, qualquer arte marcial ensina um indivíduo a se defender. No entanto, o fato de os alunos haverem sido enfáticos quanto a este ponto indica uma particularidade: eles queriam não apenas aprender um meio de auto-defesa, mas aprender o que julgavam ser o mais eficiente dentre todos eles. Estavam, nesse sentido, aderindo ao discurso propalado pelos Gracie, pois acreditavam de antemão ser o jiu-jitsu a arte marcial mais eficiente para a defesa pessoal. Os motivos desta adesão a priori à idéia de superioridade do jiu-jitsu, se fossem investigados a fundo, justificariam a feitura de uma outra dissertação. Penso, entretanto, que um importante fator reside no sucesso dos lutadores de jiu-jitsu em eventos internacionais de Vale-Tudo. A transformação da porrada em esporte mundialmente conhecido e admirado, de início operada pelas mãos da família Gracie, pode ter servido como uma espécie de comprovação empírica da superioridade técnica do jiu-jitsu em confrontos violentos. Abrindo as portas para uma futura pesquisa, poder-se-ia perguntar: qual o impacto disso no imaginário dos adolescentes em vias de se decidir sobre qual arte marcial praticar? De que maneira o sucesso no Vale-Tudo afetou a auto-imagem dos lutadores de jiu-jitsu e, por extensão, a imagem que projetam sobre si próprios? Seria somente coincidência o fato de o jiu-jitsu começar a se tornar uma “febre” mais ou menos na mesma época em que Royce Gracie fez história no Ultimate Fighting Championship, logrando superar adversários muito mais fortes e pesados com surpreendente facilidade? Vejamos o que tem a dizer quem começou a lutar jiu- jitsu naquela época:

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O jiu-jitsu começou... Olha, tinha o Rickson dando porrada em todo mundo lá nos Estados Unidos. Era assim: chamavam professor de judô, de caratê, essas merdas, pra cair na porrada com o Rickson, fechava a academia e deixava os caras se pegarem. O Rickson enfiava a porrada, mas enfiava a porrada mesmo, e o cara virava aluno dele. O Royce também, enfim, a família Gracie, num sei o quê, aparecia eles dando porrada em todo mundo, então tinha aquele papo, “o jiu-jitsu é foda”. E isso aí levou o nome do jiu-jitsu, e nego começou a praticar. Porra, pensa só, porque o cara vai praticar judô, caratê, essas merdas, se ele tá vendo na tv um magrinho do jiu-jitsu sentando a porrada em geral? Beleza. Aí o cara começa a praticar, fica mais auto-confiante e tal... E isso foi contagiando muita gente, principalmente a galera da zona sul e tal. (Rafael, 31 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Contudo, devo abandonar neste ponto o exame de tal questão. Por ora, contento-me apenas em levantar as perguntas. A estrutura de uma aula em grupo – aquecimento, ensino de uma posição, treino – permanece a mesma de quando comecei a praticar jiu-jitsu, há cerca de uma década. Mas já não há uma vara de madeira ou uma faixa na mão do Mestre ou do Professor, prontas para serem usadas em alunos preguiçosos, nem a obrigação de levar o corpo ao limite da capacidade ainda no aquecimento, com intermináveis sessões de exercícios abdominais e séries de flexões de braço. Mencionamos anteriormente que o jiu-jitsu, ao contrário de outras artes marciais, não é atravessado por rituais que reforçam o respeito e a hierarquia. Trata-se de uma arte marcial cujo ensino se dá em bases que se poderia considerar informais, por certo, mas isso não implica na bagunça generalizada. Atrasos, por exemplo, são duramente repreendidos. Os alunos devem chegar pontualmente aos treinos. E os exercícios, embora menos intensos do que outrora, continuam a ser cobrados. Há sempre uma voz de comando a dizer “Só mais uma série! Não pára não! Mais um treininho!”, e a exortar os alunos a esticarem seus limites um pouco mais. Talvez isso se deva não apenas à necessidade de bom condicionamento físico que o jiu-jitsu impõe, mas também e sobretudo a uma questão de superação pessoal, de “raça”, como se diz na gíria da academia. Pois raça é um dos ingredientes fundamentais do lutador: é preciso ter muita “raça” para sair de um golpe encaixado, para reverter uma posição desvantajosa, para seguir acreditando até o fim na vitória. Faixa-branca na cintura, adentrei o tatame para meu primeiro treino. O Professor colocou um CD num pequeno aparelho de som, ajustou o volume e, quando a música começou a sair das caixas de som posicionadas no teto da

56 academia, ordenou que começássemos a correr em volta do tatame – os mais graduados à frente, faixas-brancas no final da fila. Tocava uma música do grupo O Rappa: “Ôôôôô ôô ôôô” / “Ôôôôô ôô ôôô” / “O show tááá co...meçando” / “O show tááá co...meçando” / “Ôôôôô ôô ôôô.” O fato de iniciarmos a corrida de aquecimento ouvindo música dá a medida da descontração da aula. Ao longos dos meses em que realizei a pesquisa, ficou clara a predileção do professor pelo O Rappa e também pelo rap americano, ou melhor, o gangsta rap de artistas como 2Pac, Snoop Doggy Dog, 50cent e outros29. Apenas esporadicamente o professor colocava algo diferente disso no som – um pouco de Bob Marley ou alguma coisa de rock dos anos 80, como Dire Straits, The Smiths, ou mesmo Iron Maiden. O aquecimento durou cerca de trinta minutos. Corremos (primeiro em estilo cooper, depois lateral, alterando braços e pernas, levantando joelhos, levantando calcanhares; por fim, demos pequenos “tiros” de corrida de costas), aquecemos os membros superiores (com um peso de um quilo em cada mão, jogamos os braços pra cima, giramos o tronco, encostamos as mãos na ponta dos pés), fizemos abdominais (não mais do que duzentas, divididas em séries de cinqüenta e intercaladas por séries de dez flexões de braço), e alongamentos no chão (atenção especial à lombar, pescoço e joelho). Em seguida, o Professor solicitou a ajuda do aluno mais graduado presente e, fazendo-o deitar no centro do tatame, nele demonstrou um golpe: um estrangulamento de gola cruzada, que deveria ser repetido diversas vezes pelos alunos, separados em duplas. Ao fim do treino técnico, o Professor pediu que amarrássemos o quimono, e nos liberou para um gole de água. Então e enfim, o treino propriamente dito. É o Professor que escolhe

29 Sobre este ponto, há um fato digno de nota. Como mencionei anteriormente, em janeiro de 2007 estive presente num desafio de lutas entre os principais nomes do jiu-jitsu brasileiro. Os combates foram definidos através da votação do público na internet, e o evento, realizado numa casa de shows da Barra da Tijuca, teve público apenas razoável. Na ocasião, anotei em meu diário de campo que a maioria dos lutadores escolheu um gangsta rap como trilha sonora de sua entrada no tatame. Dos quatorze atletas, somente 4 optaram por algo diferente disso – três funks dos morros cariocas e uma música do Rage Against The Machine (banda americana famosa tanto por letras politicamente engajadas como por melodias pesadas, enfurecidas). O gangsta rap é um subgênero do rap e do hip hop, cuja principal característica reside no fato de que alguns de seus expoentes foram ou são sujeitos ligados a marginalidade, ao crime – e que não tem pudor algum de celebrar isso abertamente em suas músicas. As letras frequentemente exaltam um estilo de vida atravessado pelo uso de drogas (sobretudo maconha de boa qualidade), o culto as armas, o acirramento de rivalidades em relação à rappers de outros lugares e gravadoras, e pelo desrespeito completo às mulheres. Não quero com isso dar a entender que condeno o gangsta rap por suas propriedades intrínsecas; apenas achei relevante salientar que este é um estilo de música bastante apreciado por lutadores de jiu-jitsu.

57 quem irá lutar contra quem, e faz isso de maneira que todos treinem não menos que três vezes por aula (a duração das lutas varia entre cinco, seis e sete minutos; faixas-pretas geralmente treinam por dez minutos). Do início ao fim da aula, haverá passado não mais que hora e meia. Meu primeiro treino na academia foi com o faixa-azul Léo. Quando me ajoelhei na frente dele – os treinos começam com os lutadores de joelhos, e são precedidos por um aperto de mão –, já estava exausto; o aquecimento, embora descontraído e não muito exigente, fora o suficiente para cansar meu corpo, desacostumado ao exercício físico. O Professor pediu ao Léo que lutasse devagar comigo, pois eu estava há muito tempo sem treinar. O jovem faixa-azul obedeceu, permitindo que me movimentasse mais livremente. Oferecendo menos resistência do que poderia, deixou que eu lhe passasse a guarda, isto é, que me livrasse de suas pernas e o imobilizasse lateralmente, posição desvantajosa para ele. Ato contínuo, percebi que deixava o pescoço desprotegido, e logo encaixei um estrangulamento conhecido como “ezequiel”. Funcionou. Apesar da tentativa desesperada de se safar do golpe, ele acabou sendo obrigado a desistir. Então voltamos a ficar de joelhos, apertamos as mãos novamente, e a luta recomeçou. Sem perder tempo, Léo agarrou minhas pernas com força e truculência. Treinar “solto”, permitir minha movimentação, como o Mestre pedira, tudo bem – mas ser finalizado por um faixa-branca há dez anos sem lutar era algo inaceitável. E ali, fazendo o que podia para me defender de seus muitos e cada vez mais decididos golpes, tive minha primeira lição sobre o que exatamente está em jogo em um treino numa academia de jiu-jitsu. O fato de ser finalizado por um aluno menos graduado mexeu com os brios de Léo, e sua vontade irascível de dar o troco me pareceu não apenas um movimento para restabelecer “a ordem natural das coisas” (assim deixando claro quem de fato era o melhor ou mais técnico), mas também uma tentativa de restaurar sua honra, temporariamente arranhada por uma derrota fragorosa e inexplicável. Começava ali meus problemas com Léo. Na verdade, não fui o único a ter dificuldades de relacionamento com ele no tatame. As altercações que teve com Pedro (faixa-roxa) e Sandro (faixa-preta) repercutiram na academia como um todo, chegando ao ouvido do próprio Mestre. A primeira desavença ocorreu com Pedro. No último treino de uma aula qualquer, Pedro surpreendeu Léo com um estrangulamento, finalizando-o. Fato

58 absolutamente normal, dada a diferença de graduação entre eles (Léo, como já foi dito, é faixa-azul). O rapaz, contudo, ficou visivelmente contrariado. Assim que o treino acabou, disse para Pedro: “você só me pega [finaliza] quando eu tô cansado”. Colocada dessa maneira, a frase soa como uma provocação: como se estivesse afirmando que, em igualdades de condições físicas, a técnica de Pedro não se mostraria superior, não obstante a maior graduação de sua faixa. Soube deste episódio através do Mestre, que, ao relatar o ocorrido, manifestou alguma desaprovação em relação a atitude de Léo. Com Sandro, a coisa foi um pouco pior. Sucedeu que Léo, durante um treino, encaixou uma chave de omoplata em Sandro e, com isso, conseguiu “raspá-lo”. Não é algo que se veja todos os dias, uma faixa-azul encaixando um bom golpe num faixa-preta, e, mais ainda, pontuando em cima dele. De fato, Léo é um “especialista” em chave de omoplata. Executa o golpe com tanta precisão que toda a evolução de seu “jogo” de jiu-jitsu depende dele, o que aliás já lhe rendeu severas críticas do Professor e dos alunos mais graduados, dado que um dos segredos de um bom lutador é justamente a imprevisibilidade, o uso diversificado de técnicas e golpes em momentos diferentes da luta. Pois bem: após o tal treino, Léo teria deixado um recado na página de Sandro no site Orkut, dizendo algo como “e aí, tomou um calor de mim no treino hoje, hein?” Sandro, é claro, não gostou: ali estava um aluno de graduação bastante inferior à sua contando vantagem, em público, sobre sua técnica no tatame. No dia seguinte, o troco. Sandro pediu ao Professor que o deixasse treinar com Léo. Pedido aceito, iníciou-se o massacre. O faixa-azul foi finalizado diversas vezes. Como já foi dito, meus problemas com Léo iniciaram no instante mesmo em que comecei a treinar na academia. Mas não acabaram ali. Com efeito, à medida que os meses foram passando, Léo passou a zombar de minha condição física todas as vezes que fazíamos aula juntos. Se eu reclamasse de um exercício mais exigente, ele fazia graça; se pedia para interromper um treino por estar cansado, era porque estava faltando “raça”; se me queixasse de alguma dor no corpo, lá estava ele para afirmar, em um misto de ironia e desprezo: “Caralho, Antonio, tu é o maior velho”. Certa feita, treinávamos juntos uma posição ensinada pelo Professor – um estrangulamento pelas costas –, quando reclamei de dores no pescoço, pedindo que ele praticasse a técnica com um pouco menos de força em mim. De imediato,

59 a gozação em alto e bom som: “Aí Antonio, tu é o Bebeto aqui da academia.” A princípio, fiquei sem entender direito. Depois me de conta de que ele se referia ao ex-jogador de futebol da seleção brasileira, que tinha fama de reclamar de tudo, e de ser frágil fisicamente. “Léo, tudo o que eu queria era ter os seus dezesseis anos de novo”, respondi-lhe, com alguma impaciência. Depois de uma pausa para recobrar o fôlego e beber um pouco de água, voltamos ao tatame. O Professor começa a escolher quem iria treinar contra quem e, logo de saída, ordena que Léo se ajoelhe para lutar com um faixa-preta. Ao primeiro protesto de Léo – ele pedira um pouco mais de tempo para descansar antes de treinar – o Professor dispara: “Ô Bebeto, ajoelha e treina, que eu tô mandando!” De alguma maneira, parecia haver algum consenso entre o restante dos alunos quanto a personalidade um tanto difícil de Léo. A maneira com que destilava suas ironias, o jeito com que tratava seus colegas de treino, revelavam arrogância e competitividade desmedidas. Claro, sabemos que em qualquer academia de arte marcial são bastante comuns as brincadeiras e provocações em relação à condição dos alunos mais fracos física ou tecnicamente. Mas sabemos também que a diferença entre o remédio e o veneno é muitas vezes apenas uma questão de dose – e Léo estava claramente exagerando na dose de gozação que lhe cabia. Naquele dia, consultei meu diário de campo ainda na academia. Constava uma anotação, do início de janeiro (2007), sobre o episódio em que o Mestre falara sobre a condição de Léo. O treino ainda não havia começado, os alunos estavam chegando à academia quando Léo adentrou o tatame. Brincalhão, o Mestre passou a fazer graça do porte físico avantajado do rapaz. Mas logo a brincadeira mudou de tom, e o Mestre, com um ar de seriedade, perguntou-lhe se ainda era virgem. Léo ficou visivelmente desconcertado; sem jeito, tentou mudar de assunto. O Mestre, contudo, insistiu e, olhando para mim, falou com orgulho que eu deveria ter visto “aquele moleque quando começou a treinar”, que tinha chegado na academia uma criança gorda – mas agora, que diferença! Pela maneira com que o Mestre disse aquelas palavras, e pela maneira também com que Léo resignou-se a elas, olhando cabisbaixo e sorrindo amarelo, tive a certeza de que o início da prática do jiu-jitsu havia sido um marco, um momento decisivo em sua adolescência. A trajetória de sua bildung dividia-se em

60 antes e depois do jiu-jitsu: antes, um garoto gordinho, desajeitado, inseguro e portanto tímido em relação ao sexo oposto; depois, um rapaz forte e bonito, de corpo bem talhado, seguro e paquerador. Em suma, ali estava um exemplo perfeito da transformação que o jiu-jitsu é capaz de operar na auto-estima de um jovem. E o problema, neste caso, residia justamente aí. O excesso de auto-estima, levado a cabo por força de uma ação exterior ao sujeito (o esporte), cristalizou-se em arrogância, em um sentimento de superioridade. Léo era agora um garoto mais forte que a maioria de seus colegas, e acreditava praticar a arte marcial que o autorizava a se sentir desta forma. Com efeito, desde o primeiro treino pude perceber como a prática do jiu- jitsu está atravessada pela competitividade, e quanto o elemento de virilidade está simbolicamente em jogo. Se falamos em virilidade, falamos também em masculinidade – e aqui, não custa lembrar, estamos no terreno das construções sociais, não de fenômenos naturais.30 Ninguém nasce homem, mas sim torna-se homem, e esta aquisição da masculinidade, como nos lembram os muitos registros etnográficos, é feita através de um rito de passagem, que em muitas culturas é doloroso ou mesmo violento. Em suma, não há algo como uma inclinação natural dos homens ao comportamento competitivo ou mesmo violento. A identidade masculina não está nos genes; ela deve ser adquirida31. Muito bem: o que interessa aqui é avaliar como, no espaço de uma academia de jiu-jitsu, questões relacionadas à masculinidade e virilidade encontram-se imbricadas, e, mais ainda, como se inscrevem no corpo do lutador. Pois é através do corpo que se faz um lutador: o aprendizado de jiu-jitsu nada mais é do que a assimilação de um conjunto de práticas “da qual o corpo é ao mesmo tempo a sede, o instrumento e o alvo” (Wacquant, 2002: 33). Pode-se explicar verbalmente

30 O debate em torno da masculinidade foi marcado durante muito tempo pela idéia de que a violência seria uma característica inata do homem, algo que faria parte de sua natureza. Tal idéia começou a ser discutida, e superada, com o desenvolvimento de pesquisas etnográficas e com a contestação advinda do movimento feminista, nos anos 70. A própria noção de “natureza humana”, em termos genéricos, foi ferida de morte: em ensaio clássico, Clifford Geertz (1989) assinala que todas as sociedades apresentam alguma forma de moral, de religião, ou de estrutura familiar – mas estas formas de construções morais, práticas religiosas e estruturas familiares são tão diferentes entre si, que só seria possível reuni-las sob um mesmo conceito, de vigência universal, valendo-se de uma generalização tão larga que o próprio conceito perderia rigor científico, porque demasiadamente abstrato. Na filosofia, alguns dos ataques mais contundentes à idéia de uma “essência” ou “natureza” humana podem ser encontrados na obra de Richard Rorty (1989; 1994; 2002). 31 Para um painel mais abrangente da discussão teórica em torno da construção social da masculinidade, consultar o trabalho de Cecchetto (2004), especialmente os capítulos 1 e 2.

61 a um aluno novato como se executa uma chave de braço (“com uma mão, segure a manga do quimono do braço oposto do adversário, suba as pernas até a altura de seus ombros e, ao mesmo tempo, desloque o quadril para o lado oposto ao braço que está dominado; em seguida passe a perna por cima do braço dominado e levante o quadril, de modo a fazer o movimento de alavanca: pronto, a chave de braço está dada”), mas, na hora da luta, o conhecimento teórico não lhe terá utilidade alguma. Numa luta, a aplicação das técnicas do jiu-jitsu, como de resto de quaisquer outras artes marciais, não deve passar pela mediação do intelecto; para serem correta e eficientemente executadas, precisam estar incorporadas quase que instintivamente ao repertório de movimentos corporais do lutador. Trata-se de uma pedagogia estritamente corporal, posto que é somente com a repetição contínua da rotina de treinamento que o gesto inscreve-se no corpo (Wacquant, 2002).

Os usos do corpo

O primeiro ponto a se destacar, e que nos remete a observações de escopo sociológico mais abrangente, é a enorme importância que o corpo assumiu na construção da identidade do indivíduo hodierno. Atualmente, é consenso nas ciências sociais o diagnóstico segundo o qual as antigas instâncias doadoras de sentido à existência do indivíduo – as instituições que atuavam como suporte da identidade – teriam perdido força e relevância de atuação (Costa, 2004; Bezerra Jr., 2002). Família, religião, doutrinas políticas e ideológicas, todos os representantes de valores tidos como tradicionais estariam, ao longo do século XX e ainda hoje no XXI, em processo de declínio. Em contrapartida, como que em resposta a esta nova realidade, teríamos assistido ao surgimento de um sujeito individualista, um self reflexivo e narcisista, senhor de sua trajetória, artesão de sua própria existência (Breton, 2004). Não quer isto dizer, contudo, que todas estas instâncias tenham perdido por completo a força normativa de que dispunham. “Simplesmente”, argumenta Jurandir Freire Costa, “(...) foram ‘privatizadas’. Ou seja, deixaram de agir institucionalmente, por meio de regras impessoais e universais, para serem ativadas caso a caso, ponto por ponto” (Costa, 2004: 189). Aqui, uma vez mais, novos problemas se colocam. Quais as características de uma subjetividade

62 impactada pela vida em meio a um sistema econômico cuja instabilidade e pressão por desempenho que lhes são inerentes estimulam a infixidez e engendram a insegurança crônica (Sennet, 2005)? Em que medida encontram-se imbricadas a construção da identidade e a relação com o próprio corpo, num mundo cada vez mais regido por imagens e pautado pela idéia de aparência? Como se estruturam as novas gramáticas afetivas em contextos, por assim dizer, pós-modernos? Embora existam diferenças entre as idéias dos diversos autores que se debruçaram sobre estas questões, parece haver alguma concordância quanto a noção de que o investimento do sujeito em seu próprio corpo seria conseqüência natural deste estado das coisas. Trata-se, lembremos apenas de passagem, de uma reviravolta e tanto na cultura ocidental: pois o Ocidente nunca enxergou o corpo humano como um fim em si mesmo, ao contrário, o corpo foi sempre encarado como um instrumento para cumprir tarefas familiares, políticas ou religiosas. Segundo Jurandir Freire Costa (2004), estaríamos presenciando o surgimento de um novo modelo de identidade: a bioidentidade, uma forma de sociabilidade apolítica organizada não mais em termos de raça, classe ou filiação política, mas sim sobre critérios corporais, médicos e estéticos. O cuidado de si não seria mais transcendente, e sim corpóreo; e é a chamada “qualidade de vida” o princípio com o qual todas crenças religiosas, políticas, sociais e psicológicas teriam que se coadunar. Nossa cultura, diz o autor, é uma cultura somática, cujas principais características incluem a supervalorização das sensações em detrimento dos sentimentos e o fim do resguardo intimista, a impossibilidade de manter afastado do olhar alheio os dados mais íntimos do indivíduo. No mesmo eixo de argumentação, David Le Breton (2003; 2004) assevera que o corpo é hoje uma afirmação pessoal, um alter ego, um outro si-mesmo, e isso de uma maneira tão intensa que a interioridade do sujeito estaria na verdade mais alocada em sua exterioridade. A contínua adaptação às normas estéticas do momento exigiria um ininterrupto esforço de trabalho sobre si, uma ascese vigilante e permanente – o fisiculturismo, a obsessão pelos regimes alimentares, o crescente recurso às intervenções médicas de estética e a metamorfose do corpo pela artificialidade seriam sintomas deste esforço. Breton não deixa de notar, na “cybercultura”, a possibilidade dissimular o corpo e a identidade, ou mesmo a possibilidade de abandonar a prisão do corpo e viver uma vida inteiramente feita de sensações digitais. Observa, também, a invasão da medicina sobre a saúde:

63 cada vez mais toma-se remédios para programar os humores e corrigir as imperfeições de um corpo tido como deficitário, incompleto. Tudo somado, diz o autor, ocorre que o indivíduo contemporâneo faz de seu corpo um abrigo para si, um lugar onde possa ter a “ilusão sincera de ser, enfim, ele próprio” (Breton, 2004: 69). De fato, o lutador de jiu-jitsu tem no próprio corpo um abrigo. Trata-se de um esporte que, de uma maneira geral, exige sacrifícios imensos ao corpo do praticante. A primeira parte do corpo que se ressente do treinamento de jiu-jitsu são os dedos das mãos. Sofrem com a aspereza do quimono. Já na primeira semana, na área imediatamente acima das unhas, a pele fica em carne viva, e é preciso usar esparadapros para conseguir treinar. Com o tempo, formam-se calos, e o desconforto desaparece. Também não leva muito tempo até que se sinta o pescoço dolorido, pois são muitas as posições (estrangulamentos principalmente) em que as grossas lapelas do quimono exercem enorme pressão sobre ele. Aqueles que têm pele mais branca, como eu, costumam ver surgirem manchas roxas nos dias seguintes aos treinamentos, normalmente localizadas no pescoço e debaixo das axilas. Há esportes que demandam mais resistência, outros que requerem muita explosão muscular; há também aqueles em que a agilidade ou a flexibilidade são o mais importante. O jiu-jitsu requer tudo isso ao mesmo tempo32. É preciso ter bastante força de explosão muscular, mas esta força deve ser capaz de ser sustentada por um bom tempo, do contrário, não tem serventia alguma. Contudo, força e resistência de nada adiantam, se o lutador for lento e inflexível – agilidade e um bom alongamento muscular são imprescindíveis para um sem número de golpes e posições. O Mestre é bastante enfático quanto a isso:

32 Senti na carne a exigência do jiu-jitsu. Além do cansaço natural das primeiras semanas de treinamento – aos poucos, me dei conta de que uma das coisas mais importantes que um aluno novato tem a aprender é justamente como fazer força, de que maneira e em quais situações – sofri com contusões. Meu joelho direito “saiu do lugar” diversas vezes (o que causava alguma dor e impedia o treinamento nos 3 ou 4 dias subseqüentes); tive duas costelas “estaladas” (na segunda vez, foram dois meses em fisioterapia, sem poder treinar); e recebi três pontos no supercílio esquerdo, resultado de um choque acidental contra o cotovelo de Sampaio (ao examinar meu rosto ensangüentado, o Professor exclamou: “é, abriu uma bucetinha”). Não credito esta seqüência de lesões à violência envolvida na prática do jiu-jitsu, e nem poderia, pois o jiu-jitsu não é um esporte de confronto corporal brutal ou violento. Muito ao contrário: penso que fui vítima de mim mesmo, de meu descaso para com meu corpo durante quase uma década, e também do azar. Contra o azar, pode-se muito pouco.

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Já vi neguinho que corre maratona chegar aqui no tatame, dar um, dois treininhos e morrer. Jiu-jitsu é foda. É o melhor e o pior esporte que tem. O [diz o nome do atleta] mesmo, o cara é professor de boxe tailandês, atleta e tal, faixa preta de jiu- jitsu também. Mas tava há um tempo sem treinar de pano [quimono]. Aí chegou aqui outro dia pra treinar e no dia seguinte reclamou pra caralho, disse que tava todo moído, que num sei quê, “porra, tô cheio de dor”...

O lutador de jiu-jitsu sabe que dificilmente há modalidade esportiva que exija mais sacrifícios ao corpo. Sabe e se orgulha disso. Uma das gírias mais ouvida nos tatames é “casca-grossa”, talvez um dos maiores elogios que se possa fazer a um lutador. Inicialmente, “casca-grossa” designava o atleta de jiu-jitsu de destaque reconhecido, que aliava as três características imprescindíveis a todo campeão: força, técnica e raça. Com o tempo, o uso do termo expandiu-se. Um surfista que desce ondas enormes é, sem dúvida, um “casca-grossa”. Um filme bastante violento deverá conter cenas “casca-grossas” – nesse registro, “casca- grossa” é quase sinônimo de “sinistro”, outro termo bastante utilizado por jovens, lutadores ou não. Mas o que importa notar é o aspecto de fisicalidade que a gíria expressa: o elogio se faz à pele, ao invólucro do corpo, não ao conteúdo. Afinal, é a pele que, endurecida pelo treinamento, se faz casca. Casca que, por espessa, perde em sensibilidade, mas ganha em proteção à dor e aos ataques dos adversários. A “casca-grossa” é portanto um embrutecer: daí podermos pensá-la como uma espécie de avesso do “verniz” e da sensibilidade refinada característicos do processo civilizador (Elias, 1994).

Eu era um moleque de dezesseis anos e fazia “taparia” com os adultos, tomava cada porrada... E tinha uns doidos que gostavam de dar porrada, então aproveitavam que era teu amigo pra te dar uns tabefes naquela hora, que tava liberado. Eu inclusive tenho um problema no pescoço, minha hérnia de disco foi muito em função de um “triângulo” [estarngulamento que se dá com as pernas] que dei no Rodrigo. Ele era meu amigo, muito mais forte que eu, encaixei o triângulo, o bichinho tava babando, não queria bater de jeito nenhum... Ele ia apagar, ele não ia bater e ia apagar, mas antes de apagar ele pegou, me levantou e me deu um “bate-estaca” [golpe traumático, proibido em campeonatos: consiste em levantar o adversário e arremessá-lo de volta com as costas no solo, usando para isso o peso do próprio corpo]. Mas por esse lado foi bom fazer jiu-jitsu, você fica mais cascudo para enfrentar certas dificuldades, pra enfrentar certos medos. (Rogério, 30 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

O lutador de jiu-jitsu é obrigado a conviver com a dor do desgaste físico e das contusões, e a superá-la. Ter a “casca grossa” é, portanto, uma necessidade, uma exigência que a prática do esporte impõe naturalmente, e que alguns logram

65 vencer. Mas para além da necessidade da couraça endurecida, há toda uma dimensão psicológica que a acompanha e, porque não dizer, a envolve. Pois a “casca grossa” é sobretudo uma construção de si a ser constantemente apresentada e reiterada a outrem; é, ao mesmo tempo, uma disposição e um estímulo psíquico fundamental, principalmente se levarmos em conta que uma academia de jiu-jitsu, qualquer uma, é um espaço hipermasculino, cuja atmosfera encontra-se permeada por um ethos ligado à virilidade. Assim sendo, uma “distância regulamentar” deve ser sempre observada em seu interior. Se por um lado o brasileiro em geral se mostra aberto e receptivo ao contato corporal (abraços, beijos no rosto etc.), por outro continua refém da herança machista ibérica e uma cultura patriarcal – o ideal do “homem de verdade” (Nolasco, 1997), do “homem com agá maiúsculo”, do “homem não chora”. Com isso quero dizer que, numa academia de jiu-jitsu, não apenas maiores intimidades físicas devem ser evitadas, como seria normal supor: também o falar abertamente de si, a confissão de intimidades sentimentais de cunho pessoal, pode ser mal visto ou interpretado. Nesse sentido, a “casca grossa” funcionaria também como um recurso de sociabilidade. Ser um sujeito durão, “fechado”, de poucas mas firmes palavras, poderia ajudar na aceitação do indivíduo pelo grupo. Para um lutador de jiu-jitsu, o ideal seria possuir uma casca tão grossa que deixasse de ser pele humana. Não sem razão, metáforas que associam o corpo do lutador à máquinas são bastante comuns entre praticantes de lutas, e no jiu-jitsu não é diferente. São muitas as gírias que o demonstram33. Quando um lutador domina o outro completamente, diz-se que ele “passou o carro” ou ainda que “atropelou” seu adversário; quando, num vale tudo, a vitória vem rápida e avassaladora, comenta-se que “fulano tratorizou beltrano”. No idioma das artes marciais ligadas ao vale-tudo, tratorizar é verbo, conjugado um sem número de vezes nas principais publicações que tratam do esporte34. Desnecessário

33 A relação metafórica homem/máquina entre lutadores já havia sido percebida e explicitada por Wacquant. Em sua etnografia com praticantes de boxe de uma academia em Chicago, o autor deixa claro que “a metáfora mais comum que os lutadores usam para falar de seus corpos é a de uma máquina ou motor que precisa constantemente ser regulado e cuidado de maneira adequada (...)” (1998: 75). 34 A revista Tatame, a principal publicação do gênero no Brasil, estampa em suas capas diversos exemplos do uso deste vocabulário: “Minotauro atropela Zulú” (edição 123, maio de 2006), “Paulão tratoriza Chonan” (edição 127, setembro de 2006), “Macaco tratoriza Godói” (edição 128, outubro de 2006), “Fedor tratoriza filho de Rei Zulú” (edição 119, janeiro de 2006).

66 mergulhar em maiores interpretações: a imagem que o termo evoca é suficientemente auto-explicativa. O corpo do lutador não é apenas máquina; seguindo Wacquant (1998) uma vez mais, poder-se-ia dizer que é também ferramenta e arma. Para o lutador profissional, o corpo é seu instrumento de trabalho, a ferramenta através do qual constrói sua carreira e ganha o seu salário, e quanto a isso não há muito mais o que dizer. O corpo-ferramenta não interessa muito aqui; o corpo-arma, sim. Voltarei a este ponto no próximo capítulo. Por ora, restam outras observações a fazer antes de enveredar numa discussão centrada na violência que advém do uso do corpo-arma entre lutadores. Não é apenas como máquinas que os lutadores de jiu-jitsu gostam de imaginar a si mesmos. Toda uma dimensão que remete à animalidade está também presente em muito da simbologia que perpassa o universo desta luta. Os primeiros e mais óbvios exemplos estão nos símbolos utilizados pelas academias: dois buldogues babando sangue em rota de colisão (Carlson Gracie), um “demônio da Tasmânia” de quimono (Barra Gracie), um leão (Gávea jiu-jitsu), entre outros. Mas, sem dúvida, o exemplo mais claro desta identificação com a animalidade reside na predileção de muitos lutadores por cães de temperamento bravo, especialmente os da raça pitbull. Alguns chegam a extremos, como cortar as orelhas do animal, para que não sejam mordidas em brigas, e aplicar doses de anabolizantes, para fazer crescer massa muscular e torná-lo mais agressivo. De qualquer forma, é certo que se instala ali uma relação metonímica35 – a parte pelo todo –, de maneira que homem e fera encontram-se absolutamente identificados um com o outro. É quase como se tais lutadores quisessem transcender o humano, superá-lo, deixá-lo para trás; como se o discurso que vai nas entrelinhas de seus corpos fortes e tatuados, o subtexto presente na coleira que os conecta aos seus bichos de estimação estivesse silenciosamente dizendo “nós somos mais do que homens, somos homens-máquinas-feras”. Mas é preciso considerar que, entre os praticantes de jiu-jitsu, o homem-cão reflete a imagem de uma minoria. Claro, é uma imagem forte e simbólica o suficiente para ser cristalizada em estereótipo – daí “pitboy” –, mas ainda assim é uma imagem que faz jus somente a uma pequena parcela do universo maior de

35 Agradeço a forma criativa com que o prof. Luiz Eduardo Soares chamou a minha atenção sobre este ponto.

67 lutadores. Na verdade, o traço mais distintivo dos praticantes de jiu-jitsu, o sinal externo que lhes é mais comum e através do qual é mais fácil identificá-los, são as orelhas deformadas pelos treinamentos. No jiu-jitsu, o constante atrito com o quimono e o tatame atingem de modo mais dramático a cartilagem das orelhas, que, se maltratadas o bastante, incham com o sangue. É um fato corriqueiro, decorrência natural do tipo de treinamento que é feito no tatame, e que os lutadores chamam de “estourar a orelha”. Não há como evitá-lo. A única opção é usar um protetor de orelha, extremamente desconfortável. Porque incômodos, protetores deste tipo são utilizados somente depois que a orelha “estoura”, a fim de evitar danos maiores, não no dia-a-dia de treinamento. O certo é que trata-se de uma lesão dolorida, desagradável. Quanto mais treino, mais atrito; quanto mais atrito, mais sangue, e maior a deformação – há lutadores que não conseguem usar fones de ouvido. Vem daí o apelido “orelha de repolho”: de fato, certas orelhas ficam tão deformadas que se parecem com qualquer coisa (uma couve-flor, talvez), menos com uma orelha. Uma vez “estourada”, há pouco a se fazer. O primeiro e mais imediato procedimento consiste em espetar uma seringa na orelha “estourada” e tentar drenar o sangue logo após a feitura da lesão, o que é conhecido como “punção”. O segundo procedimento é uma operação plástica. A orelha “estourada” é sinal de dedicação e experiência, espécie de atestado de entrega do lutador à luta – aí sua importância simbólica. Não é sem motivo, pois, que muitos alunos novatos de jiu-jitsu friccionem deliberadamente suas orelhas nos quimonos ou nas faixas, a fim de produzir a lesão que garante o inchaço. Orelhas “estouradas” são símbolos, e seria tentador enxergar nelas “verdadeiras medalhas que conferem maior destaque aquele que ostentar o pavilhão auricular mais devastado” (Sabino, 2004: 315), como fez outro antropólogo. As coisas se passam de forma mais matizada, contudo. O que confere maior destaque a um lutador de jiu-jitsu é a técnica dentro do tatame (aliada ao condicionamento físico e sobretudo à “raça”) ou, em certos casos, a habilidade de luta na rua. A orelha deformada é claramente um signo distintivo que, pelo menos em tese, atesta a assiduidade e experiência do lutador. Mas não é, por si só, sinônimo de potência. De nada adianta ter “orelha de repolho” e ser finalizado por alunos menos graduados nos treinos. Isso, aliás, é o pior dos mundos para um praticante de jiu-jitsu: ter os atributos físicos de um “casca-

68 grossa”, mas, na verdade, ser uma “franga”, um atleta que é facilmente superado pela maioria dos seus companheiros ou adversários. O corpo do lutador de jiu-jitsu apresenta ainda outros sinais distintivos36, mas nenhum é tão singular, recorrente e visivelmente impactante como a orelha “estourada”. Ela é a garantia de que um lutador de jiu-jitsu não passará desapercebido como tal. Neste sentido, a orelha deformada parece confirmar as teses de que a identidade encontra-se cada vez mais inextricavelmente atrelada ao (ou fundamentalmente inscrita no) corpo do indivíduo e, ao mesmo tempo, apoiar a idéia de que, nesta cultura somática em que vivemos, “a aparência virou essência, os ‘condenados da aparência’ são privados da capacidade de fingir, dissimular, esconder os sentimentos, as intenções, os segredos, capacidade presente na cultura da intimidade que se tornou obsoleta” (Ortega, 2006: 47). No mesmo diapasão, Jurandir Freire Costa argumenta que

a cultura somática, ao esvaziar a moral dos sentimentos em benefício da moral do corpo e das sensações, privilegiou a clareza da vontade e da aparência física, em prejuízo da obscuridade do desejo e da profundidade emocional. Com isso, veio a privar o sujeito de um potente mecanismo estabilizador do sentimento da identidade, qual seja, a capacidade de dissimular a sua intimidade do olhar do outro (Costa, 2004: 198).

Resulta daí que, nesta perspectiva, estamos permanentemente expostos ao olhar invasivo do outro. Assim sendo, nos tornamos inseguros, frágeis, procurando a todo custo submergir na normalidade, a fim de evitar atrair atenção (Ortega, 2006). Ocorre que, para um lutador de jiu-jitsu que ostenta orelhas “estouradas”, é virtualmente impossível esconder o sinal de sua diferença, e assim camuflar-se em meio a normalidade reinante. Sua intimidade, em grande parte, já está exposta ao olhar do Outro37. O elemento bizarro de sua aparência é suficiente para atrair olhares, pois

36 Poder-se-ia citar a grossura da musculatura do pescoço e o uso do cabelo “raspado”, isto é, cortado à máquina, bastante curto. O cabelo, diz-nos DaMatta (1997: 34) evocando um estudo de Leach, é um elemento humano com conotações diversas, “associado que está ao luto, à disciplina, à castidade e à agressão libidinal”. Cabelos curtos, por exemplo, seriam indicativos de disciplina; já a cabelereia farta e desgrenhada seria um sinal de descaso, rebeldia ou crítica em relação às normas sociais. No caso específico do jiu-jitsu, contudo, penso que não se pode desprezar a razão utilitária. Cabelos curtos são uma necessidade da prática do esporte: fios longos atrapalham nos treinamentos, pois o lutador está a todo momento tendo o fundo da gola de seu quimono segurado (com força, diga-se) por seu oponente. 37 Há que se notar também que a orelha também pode ser lugar de distinção sexual. DaMatta (1997: 38), rememorando os tempos de infância e adolescência, diz-nos que “ter pêlo na orelha era

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o rosto é, de todas as partes do corpo humano, aquela onde se condensam os valores mais elevados. Nele cristalizam-se os sentimentos de identidade, estabelece-se o reconhecimento do outro, fixam-se as qualidades da sedução, identifica-se o sexo, etc. (...) O valor ao mesmo tempo social e individual que distingue o rosto do resto do corpo, sua eminência na apreensão da identidade é sustentada pelo sentimento que o ser inteiro aí se encontra. A infinitésima diferença do rosto é, para o indivíduo, o objeto de uma incansável interrogação: espelho, retratos, fotografias, etc. (Breton, 2007: 71)

Em alguns casos, este despertar de olhares, causado pela deformação que exibe no rosto, pode ser exatamente aquilo que o lutador deseja. E isso por dois motivos: o orgulho de fazer parte de uma “tribo”, cujo símbolo máximo de pertencimento é justamente a orelha inchada, e a mensagem de intimidação que ela veicula. Com efeito, ao se deparar com uma orelha “estourada” numa festa ou boate, qualquer jovem carioca de classe média ou alta já sabe, de antemão, com quem está falando. Ou seja, sabe que está lidando com um lutador de jiu-jitsu, possivelmente um “casca-grossa”. Mas a mensagem tácita da marca corporal do lutador não se completa sem um dado de ambigüidade; por um lado, atua no sentido de impor respeito ou mesmo temor, por outro, serve como o primeiro e mais imediato sinal que dispara o gatilho do estigma, do estereótipo que acompanha os praticantes desta arte marcial. Ao reconhecer uma “orelha de couve-flor”, dificilmente alguém imaginará que trata-se de um sujeito pacato, um atleta que restringe o uso de sua técnica somente ao tatame. Mais provável que pense “olha lá o ‘pitboy’, troglodita porradeiro”. Pode acontecer de ser exatamente isso o que deseja o lutador de jiu-jitsu, ao menos em alguns casos. Se Mary Douglas está correta em afirmar que “o corpo humano reproduz em escala reduzida os poderes e os perigos que se atribui à estrutura social” (Douglas, 1971 apud Breton, 2007: 70), então a análise da construção corporal do lutador de jiu-jitsu poderia ser fonte de elucidação ou apreciação de certos aspectos da sociedade brasileira. Nesse sentido, o corpo-arma do lutador – cujo maior símbolo é a orelha estourada e não, como se poderia pensar à primeira vista, os músculos inchados – inscreve-se na problemática analisada por DaMatta (1983) sobre a tensa relação que se desenrola no Brasil

sinal de masculinidade e de malvadeza”. Além disso, vale lembrar que por muito tempo a orelha masculina adornada por um brinquinho de ouro foi tida como signo de homossexualidade (Trevisan, 1997).

70 entre a moral universalisante e igualitarista das leis e a moralidade baseada nas teias de relações sociais. Transitando por entre uma superfície que postula a igualdade, mas por sobre um pano de fundo baseado na hierarquia, não raro acabamos por temer a primeira, lançando mão de artifícios que visam reforçar a segunda. Vejamos: músculos inchados ou definidos, algo que qualquer frequentador de academia de ginástica pode ter, são no mais das vezes fruto de uma preocupação estética, embora eventualmente possam também servir como arma de intimidação. Mas a orelha estourada, para além do bizarro que introduz na aparência do indivíduo, expressa o pertencimento a um grupo social cuja reputação encontra-se notadamente marcada pela violência e agressividade desmedidas, por vezes gratuitas. Nesse registro, a orelha estourada, convertida em uma espécie de “você sabe com quem está falando?” não-discursivo, porém visualmente explícito, poderia ser entendida como um artifício usado para introduzir a hierarquia em situações de uma igualdade “intolerável” – uma fila para usar o banheiro ou pagar o consumo no interior de uma boate, por exemplo38. Aí sua utilidade: o “você sabe com quem está falando?” não mais como pergunta, mas sim como afirmação initerrupta e silenciosa, apenas ligeiramente mais enfática em seu tom provocativo: “você sabe com quem está falando...”

O fantasma da homossexualidade e as “marias-tatames”

O jiu-jitsu é um esporte de contato corporal, por assim dizer, bastante íntimo. Um (chave de braço), por exemplo, exige que se segure o braço do adversário por entre as pernas, pressionando-o de encontro à região pélvica. Uma técnica de imobilização conhecida como “sessenta e nove” consiste literalmente em sentar a bunda no rosto do oponente e deixar o peso do corpo impedir-lhe o movimento, contando para isso com o auxílio de uma firme pegada no quimono na altura do quadril. Desnecessário arrolar mais e mais exemplos. No jiu-jitsu, o contato com as partes íntimas não ocorre somente por excesso de descuido ou maldade (“golpe baixo”), mas é antes uma necessidade mesma da

38 Tais exemplos não foram mobilizados ao acaso: tratam-se de duas das situações que mais causam brigas em casas noturnas no Rio de Janeiro. A título de ilustração, veja-se o depoimento de um dos representantes da boate DaDo Bier, na Barra da Tijuca: “Outro dia, um deles [“pitboys”] quis sair sem pagar a conta. Quando chamamos sua atenção, ele cuspiu na cara do meu gerente e quebrou o braço de um segurança. É um animal!” (Fonte: Jornal do Brasil, edição de 12/09/1999).

71 prática. É tão comum que o lutador sequer chega a preocupar-se com isso – exceto, é claro, quando o adversário é uma mulher. Não está claro até que ponto pode-se imputar a esta característica natural do esporte a preocupação constante, por parte de seus praticantes, em afirmar a própria masculinidade. Mas como divorciar uma coisa da outra? Com efeito, uma das principais gozações que o lutador de jiu-jitsu escuta de amigos que não partilham de sua paixão por esta arte marcial é “ah, mas então você gosta de se agarrar com homem no chão!”. Essa gozação, como deixa entrever Cecchetto (2004), atravessaria jovens de todas as classes sociais:

Certa vez, em meio a uma conversa com os rapazes na praça, toquei, com muitas reservas, no assunto da homossexualidade entre os funqueiros. Numa súbita mudança de um grupo para outro grupo, o líder da galera, meu principal informante, parou e disse: “No funk não tem esse negócio não. Exemplo: esse negócio de homem ficar agarrando homem nessa parada do jiu-jitsu não tem nada a ver. É muita vacilação! (Cecchetto, 2004: 126.)

Trata-se de uma desconfiança travestida de piada, que, aliás, tem lá sua razão de ser. O praticante de jiu-jitsu retira prazer do fato de agarrar-se a homens suados e rolar com eles no tatame em posições as mais diversas, o que para muitos é suficiente para lançar uma sombra de dúvida sobre suas preferências sexuais. Implícita na provocação, o questionamento: “Não se esconderia aí, na exigência do esporte, uma tendência homossexual, um tesão ainda que inconsciente pelo corpo masculino?” O lutador de jiu-jitsu é obrigado a conviver com esta desconfiança, ainda que no mais das vezes ela se faça em tom jocoso, de brincadeira, e não em forma de um comentário “sério” ou acusação aberta. Poder-se-ia evocar, mas com algum cuidado, a análise de Radcliffe-Brown (1973) sobre as relações de “parentesco por brincadeira”, que podem se dar entre membros de uma mesma família ou grupo social e também entre clãs ou tribos diferentes. Radcliffe-Brown nota que “a caçoada inclui sempre amistosidade e antagonismo” (1973: 132), mas que seu uso pode servir como instrumento de criação de familiariade, de “licença”, tornando- se assim uma maneira de evitar o confronto aberto e garantir o equilíbrio de uma determinada relação. Tal argumento parece se aplicar no caso da piada sobre a suposta inclinação homossexual que atravessaria a prática do jiu-jitsu: evita-se o ataque direto sem contudo deixar de se dizer o que pensa, e isto de tal maneira a

72 criar uma atmosfera de relativa camaradagem, que só dificulta ainda mais as coisas para o praticante de jiu-jitsu. Pois ele sabe que está sendo alvo de uma piada, sabe também que a pessoa muito provavelmente acredita que a piada de fato corresponde à realidade, e, se for só um pouco perspicaz, sabe ainda que uma reação enérgica de ofensa só faria confirmar as suspeitas que lhe pesam nos ombros. Muito bem: uma academia de jiu-jitsu é um espaço hipermasculino não apenas porque exige imensos sacrifícios ao corpo do lutador, ou porque este, para obter o reconhecimento de seus pares, deve mostrar-se sempre um “guerreiro” que, ao superar constantemente a si próprio – a dor, as contusões, os exercícios – pavimenta o caminho para superar os adversários. Uma academia de jiu-jitsu é um espaço hipermasculino também porque os praticantes, perseguidos que são – inclusive e sobretudo por si próprios – pela idéia de “gostarem de se agarrar a outros homens”, preocupam-se ao máximo em afastar qualquer vestígio de “afetação”, qualquer possibilidade de associação com uma homossexualidade que os treinamentos diários insistem em “colar” à prática do esporte. Os corpos masculinos, que se pretendem fortalezas invioláveis, desfrutam de grande intimidade no tatame. São tocados, apalpados, agarrados, imobilizados uns por sobre os outros – daí o fantasma da homossexualidade. Como todo fantasma, também este não precisa necessariamente se materializar para causar pavor. Não sem razão, numa academia de jiu-jitsu são bastante comuns brincadeiras de tapas, safanões, petelecos e todo tipo de sopapos. Inversamente, demonstrações públicas de afeto tais como abraços ou beijos são algo raras39. E, mais importante, “mulher” é assunto que nunca se esgota. No tatame, há sempre alguém a contar uma aventura sexual na noitada, a tecer elogios à forma física de uma participante mais desinibida do reality show “Big Brother”, à última capa da revista “Playboy” ou à uma beldade qualquer em destaque na mídia. Incontáveis vezes presenciei acaloradas discussões sobre a melhor maneira de se “comer” uma mulher (isto nos termos mais educados), ou sobre “comer” muitas mulheres sem

39 E isso não apenas na academia, mas também na rua. Por exemplo: pouco antes do carnaval, houve um desfile de blocos na Lapa, ao qual eu e um grupo de amigos e amigas, quinze pessoas ao todo, decidimos comparecer fantasiados de noivas. À certa altura, avistei, em meio a multidão, o Professor – tênis, bermudão, camisa do Flamengo sem manga e cordão prateado no pescoço. Ao me ver naquele estado, abriu os braços e, num misto de incredulidade, bronca e gozação, disparou: “Mas que porra é essa?!” Ignorei a pergunta e lhe dei um abraço, e pela reação instintiva de afastamento de seu corpo tive a certeza de que o havia deixado algo desconfortável.

73 levantar a suspeita da namorada, ou ainda sobre como continuar a “comer” muitas mulheres, inclusive a namorada, caso esta descubra a traição. Mas não se trata apenas de um machismo manifesto, acompanhado de uma forte afirmação da heterossexualidade. Trata-se também de um anti-homossexualismo explícito. Certa vez ouvi o Mestre proclamar: “tirando matar, roubar e dar a bunda, eu faço de tudo”. Ao incluir a orientação sexual entre os princípios basilares de sua noção do que é certo ou errado, o Mestre nos dá uma boa idéia do grau de importância que concede à sua própria heterossexualidade e, por extensão, do grau de repulsa que nutre pela homossexualidade. O assunto seria desprovido de maior interesse não fosse o envolvimento de muitos lutadores de jiu-jitsu em episódios de agressões a homossexuais. Sabemos obviamente que tais agressões não são exclusividade de lutadores de jiu-jitsu e “pitboys”. Não é preciso conhecer trabalhos acadêmicos (Silva, 2007; Perlongher, 1987) para reconhecer que, de um modo geral, a sociedade brasileira mostra-se altamente intolerante para com suas minorias sexuais. A leitura regular dos jornais é mais do que suficiente para comprová-lo.40 Mas, no Rio de Janeiro, os ataques de “pitboys” a frequentadores de lugares gays (como os bares da rua Farme de Amoedo, em Ipanema, ou a boate Dama de Ferro, na Lagoa, bairros da Zona Sul da cidade) são tão comuns que merecem o destaque na mídia e o horror da população, embora seja difícil precisar onde termina uma coisa e começa a outra. Quando um fantasma (ou paranóia, se quisermos adotar o jargão psicanalítico) leva apenas a uma sociabilidade um pouco mais virilizada numa cultura notadamente machista, como é o caso da brasileira, não há maiores motivos para preocupação. Mas quando, no entanto, vira caso de polícia, então temos um problema. É bastante conhecido o fato de que homens são socialmente levados a acreditar que a força, a agressividade e o poder de subjugar são por excelência os meios através dos quais se alcança o sucesso profissional e social; implícita aí está a noção de que o “funcionamento apropriado de uma sociedade depende da inculcação de padrões agressivos de comportamento em jovens meninos”)

40 Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, a cada dois dias um gay, bissexual, travesti ou transgênero é assassinado no Brasil. (Fonte: Jornal O Globo, edição de 21 de setembro de 2007.)

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(Brittan, 1989: 7; tradução minha41). Mas, no caso do jiu-jitsu, seria insuficiente afirmar que os jovens lutadores estariam somente fazendo o possível para se encaixar num padrão de comportamento que é socialmente instaurado e exigido. Ou seja, não basta a constatação de que, como diria Bourdieu, eles são “dominados por sua dominação”. Pois não se trata somente de uma vigilância constante contra intimidades corporais ou sensibilidade afetiva entre homens, mas sim de uma repulsa exacerbada à figura do homossexual. São muitos os fatores que o estimulam, mas se tivéssemos que resumir a questão diríamos simplesmente que isto ocorre sobretudo porque

a imagem vacilante da própria pessoa é garantida pela contra-imagem do grupo desprezado. Como Sartre demonstrou em sua descrição do anti-semita, uma pessoa se legitima através do ódio a figura que institui como oposto de si própria. O branco despreza o negro e nesse próprio ato confirma sua própria identidade como pessoa com direito a demonstrar desprezo. Da mesma forma, um homem passa a acreditar em sua própria virilidade dúbia ao cuspir sobre o homossexual (Berger, 1976: 175; grifo meu).

De algum modo e em algum nível, que não cabe aqui especular, é seguro que a auto-imagem do lutador de jiu-jitsu vacila, ao menos no que diz respeito à questão da sexualidade. O recurso à agressão de homossexuais é um dos expedientes utilizados para tentar aplacar tal incerteza (e que, paradoxalmente, acaba por reforçá-la). Outro expediente, temos razões para suspeitar, pode ser a adoção de um comportamento agressivo e mesmo desrespeitoso em relação às mulheres, que passaremos a discutir adiante. Sabemos comuns os relatos de meninas que foram “agarradas pelos cabelos” ou mesmo agredidas porque se recusaram a beijar rapazes em festas ou boates. Em depoimento a um jornal, uma jovem carioca declarou que “...em uma festa, só porque eu não quis ficar com um deles [“pitboys”], fui puxada pelo cabelo até quase cair deitada no chão. Parecia que estava num ringue (...)”. (Fonte: Jornal do Brasil, edição de 12/09/1999, pg. 56.) O machismo levado ao extremo, a idéia de que mulheres não passariam de apêndices dos homens, o suposto direito destes em abusar da violência física no trato cotidiano – ora, tais atitudes infelizmente não são novidades, e não será preciso evocar Nelson Rodrigues para lembrar-nos disso. Mas talvez fosse interessante ter o cronista fluminense em mente para

41 No original: “The implication is that a society’s proper functioning depends upon the inculcation of aggressive patterns of behaviour in young boys”.

75 pensar no reverso da medalha, isto é, no papel desempenhado pela mulher desejosa de (e atraída por) submissão e maus tratos. Com isso quero dizer que há um importante ator nesta discussão acerca dos “pitboys” que, ao que me é dado saber, até agora não mereceu a devida atenção: a “maria-tatame”, menina cuja preferência afetiva e sexual recai sobre lutadores de jiu-jitsu, geralmente fortes e de faixa graduada. As “marias-tatames” surgiram no rastro da explosão do jiu-jitsu, quando o esporte virou moda entre a juventude da zona sul carioca. Subitamente, ser um campeão de jiu-jitsu passou a ser algo reconhecido de maneira positiva não apenas entre seus praticantes, mas também entre as meninas daquela geração:

Porque eu acho que tinha um lance também das mulheres se encantarem pelo cara que dava mais porrada, pelo cara que era o campeão de jiu-jitsu. Tanto é que tinha as maria-tatame e tal. Tinha muito isso. Tinha muito isso. Tinha muito isso. Eu me lembro, eu até participava de briga e tal, mas eu não era, tipo assim, tão brigão, eu não era o brigão da night. Só que eu andava com os brigões da night. Mas eu era competidor, competia muito. Eu me lembro de eu ganhando um campeonato de tarde, “ah maneiro, ganhei um campeonato”. Campeonato carioca, brasileiro, um campeonato desses importante, e aí eu fui sair pra comemorar. Quando eu chegava à noite no lugar, já sabiam que eu tinha ganhado o campeonato e a mulherada já tava em cima, não por quem você é, ou pelo seu papo, ou pela sua aparência, mas porque tu ganhou o campeonato, tu se tornou importante dentro daquela meiuca. Até, é uma coisa muito engraçada, os campeonatos eram cheio de mulher. Você ia competir, parecia que tava na praia, posto nove [Ipanema], tipo assim, todo mundo assistindo. Chegou uma época que a coisa ficou tão popular, dentro da zona sul e barra da tijuca, que as meninas deixavam de ir à praia pra ir assistir o campeonato de jiu-jitsu. Uma doidera, né? Durante muito tempo, ficou uma coisa super in, super na moda. (Eduardo, 30 anos, faixa-preta de jiu-jitsu.)

Conversando com ex-lutadores que viveram o boom do jiu-jitsu no Rio de Janeiro na década de 90, aproveitei para assuntar sobre suas relações com meninas. Todos reconheceram a deselegância dos métodos então empregados, mas não sua inadequação. Foram veementes ao afirmar, à maneira de economistas lembrando que “sem demanda não há oferta”, que muitas meninas autorizavam e, em última análise, exigiam tal comportamento. Mais uma vez, o que transparece aqui é uma filosofia da eficiência, por assim dizer.

Isso foi uma outra coisa que... Os caras do jiu-jitsu, você ouvia muitas histórias dos caras que batiam em mulher, que esculachavam mulher, os caras tiravam onda com isso. E eu vou te falar: muitas mulheres aceitavam isso. Você chegava e dava um tranco na mulher, a mulher ficava contigo. Você chegava “oi tudo bem” e blá,

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blá, blá, a mulher não ficava contigo, às vezes nem olhava na tua cara. Tinha que dar um catranco, pegava pelo braço, chega aqui e tal, aí elas ficavam com você... Isso rolou e acho que ficou muito na cultura do Rio de Janeiro, tanto que você sai daqui e as pessoas falam os cariocas “tocam” pra caralho, e realmente, a gente “toca” muito. Eu acho que hoje menos, tá mais respeitoso, mas antes era muito assim, neguinho pegava a cabeça da mulher e beijava a mulher na marra, e elas beijavam... Então tinha um pouco de culpa delas. (João, 35 anos, ex-praticante de jiu-jitsu)

Durante um destes relatos – foram muitos: optei por transcrever somente os mais significativos –, surpreso com a cena descrita por meu entrevistado, não me contive e, interrompendo-lhe a fala, perguntei: “E isso tudo que vocês faziam não dava merda?”

Se elas não gostassem, ia dar merda. Mas não dava. Não dava, não dava nenhuma. Então elas gostavam, aceitavam. Eu acho até que as pessoas, a garotada masculina, a gente buscava muito isso porque a mulherada gostava disso. Hoje em dia, eu vejo que o jiu-jitsu e tal, as lutas saíram um pouco de moda, e o surfe voltou, né. O surfe era da década de 70, deu uma caída, quando a nossa geracão chegou, e voltou mais com força agora. O que acontece? Hoje em dia é a mesma coisa, a menina ela acha legal o cara que pega onda bem, vai pra praia, fica assistindo, então os caras ficam disputando entre si pra ver quem pega onda melhor. Então é uma coisa muito mais saudável que na nossa época, que a gente ficava trocando porrada pra ver quem era melhor, né? (Bruno, 29 anos, ex- praticante de jiu-jitsu.)

Não é meu objetivo entrar na questão de se hoje em dia o quadro descrito nas entrevistas teria amainado ou retraído, se o surfe teria voltado à moda, se os rapazes de fato estão mais gentis ou corteses com as meninas. No que concerne ao esforço aqui pretendido, dirigir o olhar à “maria-tatame” é relevante na medida em que permite apreciar parte significativa do processo de construção de identidade do “pitboy”. Sabemos que tal processo se desenrola nas múltiplas e fragmentadas experiências que dão forma à interação social, aquilo a que comumente nos referimos como sendo as diversas esferas que compõem nossas vidas – a família, o trabalho, as amizades, as relações amorosas e assim por diante. Como assinala Zaluar, “toda identidade social constrói-se opondo-se a outras num caleidoscópio de identificações que ficam longe da idéia de identidade como algo igual a si mesmo, uno, completo e definitivo” (1985: 87). A identidade não é nem jamais poderia ser um construto exclusivamente pessoal, não obstante todos os apelos românticos em favor da autonomia, diferenciação e auto-criação do sujeito. Ao contrário,

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a identidade só existe no espelho, e esse espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade (...) (Soares, 2004: 137).

E que melhor e mais relevante espelho para um adolescente com os hormônios em ebulição do que o olhar de uma menina? Isto posto, é fácil perceber a importância da “maria-tatame”. Ao reconhecer – e sobretudo desejar – a potência, a virilidade e mesmo a agressividade do lutador, a “maria-tatame” devolve, embebida em elogio, a auto-imagem que ele tanto se esforça para cultivar. Aprovando tal imagem, admirando-a, contribui sobremaneira para sua fixação. É talvez o estímulo mais poderoso para o jovem ainda em formação, inseguro e sedento de reconhecimento. A questão então passa a ser observar por que isso se dá, ou seja, entender as motivações que levam uma parcela das adolescentes de classe média e alta do Rio de Janeiro a eleger tal modelo de masculinidade como objeto de desejo. Seria descabido desconfiar que haveria aí um paralelo com a atração que certas meninas da zona sul demonstram ter por traficantes das favelas cariocas? Tratar-se-ia apenas do flerte com a excitação e o risco, de resto algo comum a adolescentes? Ou de uma vontade de potência, ainda que alheia e por isso mesmo danosa? Responder a tais indagações de modo minimamente satisfatório implicaria em escrever uma outra dissertação, entrevistando outras pessoas e mobilizando outra bibliografia. Deixo aqui a sugestão de pesquisa e sigo em frente. É preciso avançar no caminho proposto.

Sobre valentia e o não levar desaforo para casa

Conversas sobre situações conflituosas, relatos de brigas ou de pancadarias generalizadas são relativamente comuns dentro de uma academia de jiu-jitsu. A freqüência com que ocorrem, no entanto, não posso precisar, mesmo porque em diversas ocasiões introduzi o tema da porrada com o intuito (não declarado) de perceber como os praticantes de jiu-jitsu se relacionam com ele. Por outro lado,

78 estaria mentindo se não dissesse que tais conversas muitas vezes começaram espontaneamente, sem qualquer estímulo de minha parte. Escutei de tudo um pouco. Ouvi, por exemplo, um depoimento de Marcelo, 28 anos, faixa-marrom, assumindo que, na adolescência, brigava bastante na rua, por motivo pouco ou nenhum. Disse, contudo, que depois de haver aprendido jiu- jitsu, as brigas cessaram, confirmando neste caso a tese de que artes marciais em geral costumam “pacificar” o praticante, quer pelo exercício do auto-controle mental e corporal que inexoravelmente desenvolvem no indivíduo, quer pela oportunidade de sublimação da agressividade que oferecem em seus treinamentos. Por outro lado, vi o Mestre gabar-se de ter perseguido, derrubado e punido com socos e cotoveladas um ladrão que momentos antes havia ferido violentamente uma senhora numa avenida movimentada, em plena luz do dia. Notei em sua fala não o elogio à violência em si, mas sim ao senso de “fazer justiça com as próprias mãos”, de usar o jiu-jitsu para tirar um assaltante das ruas. À exceção deste relato, não presenciei ninguém se vangloriando de haver se envolvido em alguma briga de rua, ou de ter “saído na porrada” em festas, boates ou que tais. Na verdade, o que despertou meu interesse foram menos os relatos de brigas – escassos, de qualquer modo –, do que histórias de situações conflituosas. Tais histórias me permitiram observar um comportamento que classificaria não como deliberadamente violento, no sentido do emprego da força física como recurso primeiro e mais imediato, mas sim como profundamente atravessado pela recusa a qualquer possibilidade de deixar sem resposta uma suposta agressão verbal ou atitude desrespeitosa. Numa conversa informal durante um treino, o Mestre contou uma história que ilustra bem este ponto. Sucedeu certa vez que, ao voltar para casa em sua lambreta (carregando no guidom as sacolas das compras feitas havia pouco no supermercado), o Mestre tomou uma pequena contramão numa rua pouco movimentada. Um pedestre, que atravessava a rua olhando para o lado de onde vinham os carros, assustou-se com a súbita proximidade da lambreta e protestou: xingou repetidas vezes o motorista a plenos pulmões. O Mestre tentou argumentar, disse que não havia passado assim tão perto dele, e que portanto não havia necessidade de reagir daquela maneira. Mas o pedestre, muito irritado, prosseguiu em sua fúria de berros e impropérios: “Seu babaca irresponsável, fazendo merda no trânsito!”.

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“Aí mermão, tu tá com algum problema em casa?”, retrucou o Mestre, agora já irritado e subindo o tom de voz. “Tá maluco? Porra, já te disse que não passou perto, eu tava devagar, tô cheio de compras, minha filha tá me esperando em casa, e tu vai ficar me xingando desse jeito?” O Mestre não é exatamente um sujeito de porte físico avantajado, muito pelo contrário. Sua pouca estatura não inspira medo. Talvez por isso o pedestre tenha resolvido levar adiante a discussão: veio andando em sua direção, o dedo em riste, os xingamentos piorando a cada passo. Precavido, o Mestre desmontou de sua lambreta. Então o pedestre deu-lhe, literalmente, uma “peitada”. Tomou em resposta um sonoro tapa na cara. Atônito, recuou um pouco. “Cara, na boa, vai pra casa”, disse-lhe calmamente o Mestre. Não adiantou em nada: a bochecha em brasa o havia enfurecido ainda mais. “Eu vou te pegar! Eu vou te pegar, seu filho da puta!” “Ué, vem pegar agora.” “Eu vou te matar!” “Então porque não mata agora? Estamos só nos dois aqui, eu e você, quer melhor oportunidade que essa? Não disse que vai me pegar? Então, eu tô aqui, vem me pegar”. Possivelmente assustado com a confiança com o que aquele sujeito baixinho respondia aos seus desafios, e provavelmente intuindo que não seria uma boa idéia levá-los adiante, o pedestre recuou. Foi se afastando lenta mas progressivamente, sem contudo deixar de gritar os xingamentos e ameaças. Aí o golpe de misericórdia: “Sabe porque tu não vem me pegar? Tu não vem me pegar porque tu é um gordinho broxa e bundão! É isso mesmo! Tu é um gordinho broxa e bundão!” Subiu na lambreta e deixou o assunto para trás. Chama a atenção a maneira através da qual o Mestre encerrou a discussão: diante da recusa por parte de seu oponente em levar a discussão às vias de fato, proclama sua absoluta inferioridade. A ordem dos fatores aqui, penso, é de suma importância. O primeiro alvo a ser depreciado é o corpo, a forma física de seu interlocutor: “tu não vem me pegar porque tu é um gordinho...”. Um gordinho, um sujeito fora de forma, alguém que não tem a saúde ou os recursos físicos suficientes para encarar uma briga de rua: eis a primeira razão enunciada pelo Mestre para justificar-lhe a covardia, a recusa em se envolver em um confronto

80 violento. Por outras palavras, a percepção do corpo é fonte primordial de distinção entre eles – atleta, o Mestre mantém os músculos em forma, o fôlego em dia. Sabe que pode contar com o próprio corpo caso precise dele em uma situação limite, como é o caso de uma “porrada”. O corpo é, portanto, o território primeiro onde o Mestre proclama sua superioridade. Dando seqüência ao trabalho de demolição das qualidades masculinas de seu oponente, o Mestre o diz não apenas um gordinho, mas um “gordinho broxa”. Com efeito, que melhor e mais visível exemplo de potência corporal masculina do que justamente a capacidade de obter ereção? Importa aí menos a desqualificação de uma função puramente física (a ereção em si), do que o índice de virilidade que ela encarna. No imaginário machista, virilidade é um dos pilares fundamentais da masculinidade, e o pênis, seu principal ator e parâmetro. Não à toa o falo é comumente associado a um objeto de agressão, portanto “idealizado e lido como o pau, a pica, a espada, o mastro, a marreta, o canhão, o porrete, a pistola etc” (DaMatta, 1997: 39). Neste registro, um homem “broxa”, incapaz de cumprir seu papel de satisfazer sexualmente uma mulher, não pode ser um homem por inteiro, ou um “homem de verdade”. A acusação de “broxa”, portanto, veicula uma dúvida ou desconfiança quanto à masculinidade do gordinho, como se o Mestre estivesse dizendo “você não é homem o suficiente para sair na porrada comigo”. Tendo destituído seu adversário de atributos masculinos e das qualidades físicas necessárias à decisão de encará-lo numa briga, o Mestre mira na única província que restava atacar, qual seja, suas qualidades psicológicas ou comportamentais. Por isso (ou talvez por causa disso), o sujeito que lhe dirige os impropérios é, além de “gordinho” e “broxa”, também um “bundão”. Ora, segundo a perspectiva do Mestre, alguém que berra e xinga sem razão, que diz que vai “pegar”, que vai “matar”, mas termina por sair de fininho, deixando descumpridas suas ameaças, este alguém só pode ser um frouxo, um covarde, um otário. É interessante notar que, mesmo fazendo diretamente alusão a uma qualidade psicológica, esta última acusação se dá através de uma gíria que refere- se a um atributo físico eminentemente feminino. Este o cerne da questão, já que

se o falo era o símbolo oficial, a marca registrada e o sinal exterior do masculino, a nádega, o rabo, o traseiro, o lolô, o cu, o lorto, a mala, o fiofó, o rabo, a bunda representavam o outro lado da medalha. Pois era nesta zona que repousava (...) o inverso da masculinidade. O seu lado lado obscuro, interior e oculto. A dimensão

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reveladora de tendências insuspeitadas como a feminilidade, a impotência e a covardia: quem é que queria ser um “bundão” ou ser um “broxa”? O seu plano frágil e marginal: quem é que queria ser um “bunda-suja”? O ângulo que de certo modo dotava o corpo do homem de um pedaço antimasculino – uma parte macia e semi-aberta, que o inferiorizava e o igualava às mulheres (DaMatta, 1997: 41).

Assim, a conotação da gíria “bundão” se apóia numa distinção de gênero, a moleza do corpo feminino se refletindo na indecisão ou falta de firmeza que seria típico das mulheres, em contraste com a rigidez que caracterizaria a atitude e o corpo masculino. Mais ainda, remete à idéia de passividade, qualidade tida como feminina (ou homossexual), diametralmente oposta portanto ao ideal de atividade que atravessa todo o edifício da construção social da masculinidade42 (Goldberg, 1987; MacRae, 1986). Esta história foi contada no tatame. Outros alunos também a escutaram, e reagiram a ela. Não me lembro de haver escutado alguém dizendo algo como “porque você não enfiou logo a porrada no cara?", ou qualquer coisa do gênero, mas também não ouvi nenhum comentário do tipo “porque você simplesmente não acelerou a lambreta e deixou o gordinho falando sozinho?”. Pareceu-me bastante evidente que um código de conduta estava em questão ali, e o código de conduta de um lutador de jiu-jitsu, se por um lado não é impulsionado pela fixação em machucar os outros fisicamente, como supõe a histeria coletiva que se criou em torno deles, por outro também não se mostra muito favorável a assumir uma postura mais conciliatória, uma atitude que contemple o “deixar para lá”. No episódio, ficou bastante nítida a disposição do Mestre em não levar (o que em sua opinião era um) “desaforo para casa”. Esta mesma disposição, pude notar em muitas histórias de brigas e pancadarias que me foram contadas durante as entrevistas com ex-lutadores de jiu-jitsu. Eis o melhor exemplo:

Então eu acho que também acontecia o seguinte. Você não sai pra brigar. Mas qualquer coisinha, se neguinho esbarra em você, você já diz “porra mermão, que porra é essa? Se liga aí, cumpadi!”. Sabe, tipo assim, você já tá predisposto a não levar desaforo pra casa. Não é nem levar desaforo pra casa: você não vai é sair por baixo de uma discussão. Se o cara fala “qual foi?”, fodeu. “Como é que esse cara me diz ‘qual foi’? Qual foi o caralho! Qual foi o quê, mermão!”. Se o cara pede desculpa, beleza. Mas se o cara começa a enfrentar, pronto: “ah, eu vou

42 Entre jovens cariocas, é comum também escutar que “fulano é um cuzão”, significando que trata-se de um “frouxo”, alguém sem disposição para a briga, e também que “fulano peidou”, isto é, acovardou-se, fugiu à luta de maneira vergonhosa.

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matar esse cara aqui”. É o famoso “porra, perdeu a noção do perigo?”. (Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Contudo, a expressão mais cristalina, ou a tradução mais perfeita deste ethos atravessado pela noção de valentia a virilidade, encontrei-a não nas entrevistas ou conversas informais com os colegas de academia, mas nas páginas da revista Tatame, a principal publicação sobre jiu-jitsu e vale-tudo do Brasil. Trata-se de uma coluna, cuja freqüência é incerta, assinada por Ramirez Escobar. Reproduzo aqui o artigo em versão integral, apenas adicionando alguns parênteses explicativos. O leitor há de desculpar a extensa citação; ocorre que, para a melhor compreensão do argumento que venho desenvolvendo, o texto merece ser apreciado por completo.

Brincando de Lutar (por Ramirez Escobar) Depois de pagar o mico de me vestir de Power Ranger no Natal, meu filho me colocou em mais uma calça justa. Sempre brinquei de luta com o moleque e, por motivos óbvios, ele me acha o mais forte dos samurais! Pois bem, no início do ano, a mãe colocou ele no Judô. Era o menor da turma e rapidamente se tornou o mascote da garotada. Só que de uns tempos para cá ele começou a machucar alguns coleguinhas durante os treinos. Mesmo a quilômetros de distância, a culpa, como não podia deixar de ser, acabou recaindo sobre mim. A mãe diz que ele herdou a grossura do pai e o professor dele, para minha surpresa, resolveu entrar em uma análise psico-comportamental do Ramirinho. E do alto dos seus 20 anos o professorzinho chegou a brilhante conclusão de que meu filho bate nos colegas durante os treinos porque eu bato nele quando brincamos de luta! Não vou esconder que fiquei puto quando minha mulher veio me falar sobre o assunto. Principalmente porque notei um certo brilhinho em seu olhar ao me contar a opinião do professor de Judô. Saquei tudo na hora. Não satisfeito em criticar a maneira como eu educo meu filho, o safado ainda queria comer a minha mulher! Sem deixar pistas, passei a estimular o moleque a apavorar ainda mais durante as aulas. Para minha mulher, falava que o problema era do professor, que não tinha domínio sobre a turma. Até que um dia o professor-psicólogo teve outra “brilhante sacada”. Resolveu pedir para o Ramirinho convidar o pai para fazer uma aula. Ele e a mãe tanto me encheram o saco que acabei aceitando tal convite. Faltavam dez minutos para a aula das crianças começas quando cheguei à academia, ainda de terno. Coloquei meu quimono, amarrei minha faixa-preta na cintura e fui para a sala. Mal entrei no dojô e o professorzinho gritou: “o papai esqueceu de cumprimentar o Jigoro Kano”. As crianças riram, eu voltei para a porta da sala e reverenciei um retrato velho que estava na parede. Dei mais três passos e ele perguntou: “O papai é faixa preta de Judô?” Ao responder que minha faixa preta era de jiu-jitsu ele me jogou uma faixa branca e pediu para trocar. Olhei para o meio dos olhos dele e saquei o que estava acontecendo na hora. O cara resolveu tirar onda com a minha cara na frente da minha família. Minha vontade era de quebrar ele ali mesmo, mas segurei a onda. Não satisfeito o judoquinha de merda começou a aula dizendo que ia aproveitar a presença de um lutador experiente para demonstrar algumas técnicas avançadas de projeção. Olhei para um lado, para o outro e deduzi que ele estava se referindo a mim. Durante mais de dez minutos o sem-vergonha me usou de sparring para me jogar

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de tudo quanto foi maneira no tatame. A cada vez que eu me esborrachava no chão ele dizia o nome da técnica e a criançada batia palmas. Em uma das quedas, cai de frente para a platéia de pais, que para minha surpresa era enorme. Mais tarde descobri que o safado do professor mandara bilhete avisando aos pais que haveria demonstração. Mas o que mais me incomodou foi ver, no meio do público, a cara de admiração com que minha mulher assistia ao professor espancar o seu marido. A partir dali eu confesso que perdi o controle. Na queda seguinte, aproveitei que o mané permaneceu em pé segurando meu braço e o puxei para a guarda. Dominei braço e cabeça e disse para a platéia: “o nome desse estrangulamento é triângulo. Corta a circulação de oxigênio para o cérebro. Reparem como ele vai ficando roxo. Se [o professor] não bater [sinalizar desistência], apaga”. Quando o professorzinho parou de resistir e finalmente bateu, eu abri o triângulo e fui direto para um arm-lock [chave de braço] invertido. Narrei mais uma vez o nome da técnica para a turma e a platéia e dei uma estalada maldosa no braço dele. O cara bateu mais uma vez e soltou um grunhido de dor. Aí eu fiquei de joelhos e dei a mão como se fosse ajudá-lo a se levantar. Ele segurou e eu gritei “Olha o kataguruuuuuuma” e joguei o cara de costas no tatame. Eu ainda tinha mais técnicas para mostrar mas percebi que tanto a platéia quanto as crianças estavam meio assustadas. Então levantei, peguei minha faixa preta de volta e agradeci o convite do professor, que aquelas alturas tava meio torto. Dei uma piscadela de olhos para minha mulher e saí. Só estranhei o fato de ninguém ter batido palmas para as técnicas que eu demonstrei... bando de puxa-sacos! (Fonte: Revista Tatame, edição 122, abril de 2006, p.58.)

O texto é bastante revelador de um modo de perceber as coisas profundamente atravessado por um ideal machista de masculinidade, no qual incluem-se questões (a virilidade, o não levar desaforo para casa) ligadas a esta particular forma de ethos guerreiro que venho examinando. Em primeiro lugar, o que seria uma constatação um tanto óbvia a um professor de judô – a de que uma criança tende a reproduzir o comportamento que aprende dentro de casa – transforma-se numa ameaça conjugal, numa possibilidade de adultério, sem que haja qualquer indício mais concreto que aponte nesta direção. Um tanto paranoicamente, Ramirez intuiu, através apenas da percepção de um suposto “brilhinho no olhar” de sua esposa, que o “safado queria comer a [sua] mulher”. Assim procedendo, transformou automaticamente o professor de judô em um rival, potencialmente danoso à estabilidade de seu casamento. O que faz Ramirez então? Reage ao estereótipo de lutador violento de jiu-jitsu de maneira que termina por reforçá-la, primeiro estimulando o filho a bater nos coleguinhas de treino, depois dando uma verdadeira surra no professor de judô, deixando toda a platéia, inclusive sua mulher, claramente constrangida, assustada. Em que pese o desmedido de sua reação, não se pode deixar de observar que, ao convocar Ramirez para uma demonstração pública de técnicas de judô na

84 qual serviria como sparring, e sem o avisar explicitamente que tal se sucederia, o professor de judô provocou de fato uma situação no mínimo desconfortável. Estava em jogo ali uma disputa de autoridade, mediada neste caso pelo papel da mulher de Ramirez. O professor de judô pretendia “dar uma lição” a Ramirez e, mais ainda, fazê-lo na frente de seu filho de tal modo que este percebesse que seu pai afinal não era nenhum super-herói, mas antes um mortal comum, igual a todos, e portanto passível de ser derrotado. Aqui, mais uma vez, encontramos a recusa em deixar sem resposta uma atitude considerada desrespeitosa (“Olhei para o meio dos olhos dele e saquei o que estava acontecendo na hora. O cara resolveu tirar onda com a minha cara na frente da minha família.”), acompanhada da afirmação da própria superioridade frente ao seu adversário (“do alto dos seus 20 anos o professorzinho chegou a brilhante conclusão...”, “o judoquinha de merda começou a aula dizendo...”, “aproveitei que o mané permaneceu em pé segurando meu braço...”). Como afirma Cecchetto, “é sobre a emasculação de outros que se constrói um tipo de masculinidade hegemônica” (2004: 66); não é sem razão, pois, que (assim como no confronto com o “gordinho broxa e bundão” contado pelo Mestre) Ramirez, ao sentir ameaçado seu status de macho dominante, tenha sentido a necessidade de desqualificar seu oponente em termos de virilidade e potência corporal. É sem dúvida redundante, mas nem por isso desnecessário, lembrar que toda arte marcial confere poder, inscrito no corpo do indivíduo que a pratica. Ao mesmo tempo, o ensino de artes marciais é tradicionalmente acompanhado de uma filosofia, em geral pautada por princípios de não agressão e respeito ao próximo, como é o caso do Judô, do Caratê e do Kung Fu, entre outras. Mas o jiu- jitsu brasileiro, como pudemos verificar através dos muitos depoimentos e histórias veiculados na revista Gracie Magazine, nasce e se consolida como uma arte marcial com um objetivo (um tanto sui generis) claramente definido, qual seja, provar-se a mais eficaz em brigas de rua. Trata-se, neste caso, de uma filosofia da eficiência, da competência e habilidade de usar o corpo-arma levados ao seu grau máximo. Se, com Pierre Clastres, lembrarmos também que “o guerreiro é, antes de tudo, sua paixão pela guerra” (2004: 284), seremos levados a reconhecer que uma tal filosofia da eficiência em confrontos violentos não fica de pé sem um estímulo psicológico, um estado de espírito que só pode ser atravessado pela valentia, pela

85 disposição constante para a briga. Que os membros da família Gracie tenham sempre exibido tal comportamento, não é novidade para ninguém. Também não o é o fato de que muitos praticantes de jiu-jitsu igualmente revelem temperamento mais intempestivo ou mesmo agressivo, talvez não tanto porque eles assim o queiram, mas porque o podem. Este ethos guerreiro, que é a um só tempo parte da atmosfera das academias de jiu-jitsu e uma de suas condições de possibilidade, pude experimentá-lo em todo o seu vigor durante a adolescência. Contudo, não foi exatamente com esta realidade com que me deparei quando voltei a praticar jiu- jitsu para a feitura desta pesquisa, na mesma academia de outrora. Práticas como “taparia”, “bloqueio” e “baile funk” desapareceram dos treinamentos rotineiros de jiu-jitsu – é significativo, por exemplo, que em sua etnografia entre lutadores de jiu-jitsu, Cecchetto (2004) não faça qualquer menção a estes tipos de treinamento. Na verdade, tais práticas não desapareceram, apenas profissionalizaram-se, e isto porque, com a explosão das competições de vale tudo, a porrada profissionalizou- se. Atualmente, o MMA é a melhor oportunidade de bons salários para atletas de jiu-jitsu; não sem razão, há na academia um horário exclusivamente dedicado à preparação para este tipo de competição, do qual só podem participar alunos de graduação mais elevada (faixa marrom ou preta) que desejam se profissionalizar. Em resumo, o jiu-jitsu havia mudado. A faixa etária de boa parte de seus praticantes também. Perguntado a este respeito, o Professor respondeu-me que

Antigamente eu chegava de olho roxo em casa, numa brincadeira dessas [“taparia”], chegava pra minha mãe e não falava que era o jiu-jitsu, com medo dela me tirar. Hoje em dia, não. Hoje em dia você faz uma “taparia” com uma criança aqui, como a gente fazia, a mãe vai ver a marca, “quê que é isso?” Vai vir aqui, é processo, tira da academia. Na nossa época, as mães liberavam mais, tinham menos medo de violência. E outra coisa: quando a gente começou, a faixa etária era dezesseis anos pra baixo. Hoje em dia, o cara de trinta anos não quer tomar tapa na cara, pular carniça. O cara sai do trabalho, vai pra faculdade e vem treinar, ele não quer vir aqui pra se matar, pra depois dar um rola [um treino propriamente dito]. Antigamente não tinha neguinho de trinta anos, a maioria era molecada, dava oito treinos direto. Hoje em dia, nego dá dois [treinos] e morre. São outros tempos.

Foram os tempos atuais do jiu-jitsu que tentei captar em minha etnografia. Há algo de paradoxal nesta tentativa, como apontei já na introdução deste

86 trabalho43. Meu objetivo era entender a relação entre jiu-jitsu e violência, relação esta que se cristaliza na ação dos “pitboys”. No entanto, minha experiência em campo acabou por não autorizar a feitura de uma associação direta, do tipo causa e efeito, entre jiu-jitsu e “pitboys”. Mas não foi somente o jiu-jitsu e seus praticantes que mudaram. Desde que foi criado, também o termo “pitboy” teve o seu uso alterado. Falaremos sobre isso no próximo capítulo.

43 A este respeito, vale lembrar que a segunda metade da década de noventa marcou o auge do jiu- jitsu, seu grau máximo de popularidade entre os jovens da zona sul carioca. Em outras palavras, o jiu-jitsu estava definitivamente na moda. Como todo fenômeno de moda, o jiu-jitsu comportou um sinal de distinção entre classes e engendrou sua própria decadência: no momento mesmo em que se tornou dominante, começou a deixar de ser moda (Simmel, 2005).

3 Na Rua

“... que o cão acorrentado traz a fera no avesso” Raduan Nassar, Um copo de cólera

Se buscamos entre as aspas da literatura a partida para este segundo capítulo, é em função da pertinência da imagem que evocam, da acuidade da metáfora que delineiam. Acaso não vivemos desde sempre deitados em berço esplêndido, numa espécie de paraíso terrestre benfazejo, livre de rigores e intempéries? Não gostamos de imaginar a nós mesmos através dos tempos como um povo pacato e alegre, em nada afeito à discriminação por cor, etnia ou religião? Para dizê-lo logo, e de uma vez: este mito, o da nossa “não-violência essencial” (Chauí, 2003: 47), é justamente a corrente que aprisiona a imagem que construímos a nosso respeito. Os exemplos são muitos e por demais conhecidos; por ora, limito-me a lembrar que quase nenhum brasileiro se diz racista, mas todos conhecem alguém que o é1. Podemos ser tudo, menos pacatos. Mas os brasileiros parecem gostar de olhar no espelho e nele ver refletida a imagem de um povo pacífico, que não celebra o confronto e as artes da guerra. Talvez por isso um fenômeno como a violência praticada por “pitboys” cause tamanho estranhamento e choque. No capítulo anterior, acompanhamos a história do desenvolvimento do jiu-jitsu pelas mãos da família Gracie e do ethos guerreiro a ele associado. Acompanhamos também a atmosfera no interior de uma academia – os treinamentos, as conversas, as eventuais rixas, os sacrifícios e identificações corporais dos lutadores, os conflitos, os medos e paranóias. A partir de agora, o foco deste trabalho muda. Passa a apontar diretamente o olhar para o problema da violência associado aos chamados “pitboys”. Antes, porém, de nos determos mais demoradamente neste assunto, é preciso contextualizá-lo. Este não é um trabalho sobre história ou política, mas é preciso tomar a ambas como ponto de partida, a fim de embasar a discussão que se segue. A emergência dos “pitboys”, isto é, de bandos de jovens de classe média

1 Schwarcz, Lilia Moritz. Do Brazil, Brasil. Disponível no site www.companhiadasletras.com.br. 88 e alta que, sem motivação aparente, começaram a depredar boates e espancar outros jovens na noite do Rio de Janeiro, não é um fenômeno que ocorreu num vazio atemporal ou vácuo histórico. Portanto, faz-se necessário observar a título de introdução, sem a pretensão de aprofundar exaustivamente o tema, a atmosfera social e histórica dentro do qual a eclosão de tal fenômeno foi possível.

3.1 Contextualizando a discussão: breve painel da violência no Brasil

A história política da construção do Estado brasileiro não autoriza ou dá ensejo a qualquer tipo de visão romantizada quando se trata de pensar questões relativas à violência e sociabilidade no Brasil. Basta recuar um pouco no tempo, a fim de flagrar o estabelecimento de uma ordem autoritária e hierarquizante, para comprová-lo. Voltemos, pois, ao século XIX, mas apenas para lembrar brevemente certos pontos basilares desta discussão, a saber: que a singular acomodação do modelo ibérico de organização institucional e estatal no Brasil significou o desenvolvimento de um capitalismo comercial e patrimonialista (Faoro, 2001); que a natureza agrária e escravocrata de nosso sistema produtivo e econômico impunha limites à crescente pressão ao estabelecimento de práticas verdadeiramente liberais no Brasil, dado que sua plena adoção significaria investir contra a exclusividade da terra, que a tudo sustentava (Viana, 1991); que, do ponto de vista da garantia dos direitos básicos do indivíduo e acesso à cidadania, a manutenção de um Estado autoritário, forte e centralizado era uma escolha tão discutível quanto uma necessidade consensual, posto que a descentralização favorecia o despotismo das oligarquias locais, às quais não interessava estimular a participação popular na política senão para perpetuar seu poderio e dominação; e que, para encerrar o raciocínio numa chave tocquevilleana, um Estado altamente centralizado como o brasileiro não apenas tendeu a inibir a iniciativa individual como tampouco criou as condições para a solidificação dos ideais democráticos. Poder-se-ia também, se fosse o caso, dar seqüência ao argumento a fim de lembrar a indistinção entre público e privado, o clientelismo e a mediação através do favor, adentrar o século XX seguindo os rastros de nossa modernização

89 conservadora, e tomando sempre a precaução de apontar, de tempos em tempos, os abismos entre o povo e os processos de participação política. Assim procedendo, acabaríamos por resgatar toda a longa história de omissão do Estado brasileiro, toda a grande obra das relações personalistas e da manutenção do poder entre as elites e, é claro, a exclusão política engendrada em seu seio. Mas este não é o meu intuito aqui, e nem poderia ser, dado o escopo deste trabalho. Antes, considero mais produtivo e mesmo vantajoso para os meus objetivos saltar uma vez mais no tempo e aterrissar num Brasil que, de forma cada vez mais acelerada, começava a deixar para trás sua estrutura fundamentalmente agrária para transformar-se em um país urbano e industrializado.

Malandragem, medo, criminalidade

Como é sabido, no Rio de Janeiro dos anos de 1940 à 1960 os crimes tinham motivações ou características que hoje classificaríamos como românticas. Não quero com isso dar a entender que considero tal período uma “época de ouro” ou algo do gênero, assim incorrendo no equívoco da idealização do passado. Mas parece inegável que, naquele tempo, a violência era menos banalizada, talvez pela vigência de uma espécie de “código de honra” que incluísse o respeito pela vida humana (Ventura, 1994). Era raro a um assalto seguir-se uma morte. Ao mesmo tempo, o criminoso era visto por uma ótica notadamente mais macia e complacente (Anjos, 2003). À época, era corrente entre os intelectuais a idéia do bandido bom, heróico, verdadeiro baluarte de resistência à injustiça, à exploração econômica, aos ditames do capitalismo. Não são poucas as representações que o ilustram. No cinema, o Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, ou o Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos; nas artes, Hélio Oiticica proclamava: “seja marginal, seja herói”; no teatro, a Ópera do Malandro, de Chico Buarque; no jornal, a “defesa militante do ethos da malandragem” aliada à celebração do universo da contravenção nas páginas de O Pasquim (Soares, 2000: 24-25). A figura do malandro – atuando nas brechas do sistema legal, equilibrando-se entre o crime e a lei, jamais tendo na transgressão desta sua primeira opção – transformava-se no alter ego da parcela mais radical da intelectualidade (Zaluar, 1994).

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Mas não apenas o malandro: havia, de modo geral, uma atmosfera de tolerância em relação ao crime, de sorte que um violento protesto popular era valorizado por sua qualidade transgressora. Criou-se assim, de forma quase imperceptível, uma cultura dissimulada, esquiva, que se generalizou pelo tecido social da sociedade, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. No conjunto, tal estado das coisas não deixou de se afigurar em um problema, pois se por um lado o elogio à malandragem e ao ethos maior que a englobava pode ser encarado como a celebração da criatividade e da esperteza com vistas a fazer valer as relações pessoais em prejuízo da lei fria e generalizante, por outro poderia significar a “negação dos princípios elementares de justiça” ou “o descrédito das instituições democráticas” (Soares, 2000: 25-26). Tais instituições, a bem da verdade, nunca dependeram muito de fatores externos para se verem desacreditadas no Brasil. Após vinte e um anos de regime autoritário, o País enfim retomou o rumo da democracia. Houve inegáveis avanços: o reconhecimento das liberdades civis e públicas, a diminuição da distância e dos ruídos na comunicação entre a sociedade e o Estado, a ampliação dos canais de participação política, a melhoria na transparência na tomada de decisões políticas, a conquista de eleições livres e diretas. Tudo isso, no entanto, não se fez acompanhar da instauração efetiva e plena do Estado de Direito. O Estado não conquistou na prática o monopólio legítimo da força. A ineficiência do sistema penal ficou patente, bem como a falência do modelo carcerário. A impunidade, a violação dos direitos humanos em delegacias e presídios, assumiram feições escandalosas e brutais. Em suma, à restauração da práxis democrática correspondeu um expressivo aumento de violência, e isto em suas diversas facetas: violência no interior da família, entre os jovens, na escola, no trabalho, no campo, nos espaços urbanos em desordenada expansão (Adorno, 1995). O retrato desta época é bem conhecido: o Brasil crescia e se modernizava, o chamado “milagre econômico” fazia surtir seus efeitos, o Produto Interno Bruto aumentava, assim como a miséria e a desigualdade. Em 1950, 70% da população brasileira vivia no campo; em 1980, a proporção já se encontrava invertida, com 70% da população morando em cidades (Soares, 1999). Não é sem motivo, portanto, que questões relacionadas à criminalidade em contextos urbanos começam a entrar na pauta das políticas públicas. Sintomaticamente, surge nas

91 cidades um novo tipo de ordenamento espacial – os enclaves fortificados, “espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados a lazer, trabalho e consumo” (Caldeira, 2000: 13) – e, com ele, um novo estilo de vida atravessado pelo medo e por seu efeito mais imediato, a segregação. A segurança, direito do cidadão e dever do Estado, torna-se um serviço cada vez mais privatizado, sujeito às regras do mercado, o que não deixa de se configurar num desafio ao monopólio do uso legítimo da força. Como assinala Caldeira (2000), este é um momento privilegiado para se observar a estreita ligação entre formas urbanas e formas políticas, posto que os princípios de igualdade e liberdade de circulação, que inspiraram a idéia de espaço público moderno, são, na incipiente democracia brasileira, substituídos pela prática da separação e do controle de fronteiras.

No novo tipo de espaço público, as diferenças não devem ser postas de lado, tomadas como irrelevantes, negligenciadas. Nem devem também ser disfarçadas para sustentar ideologias de igualdade universal ou de pluralismo cultural. O novo meio urbano reforça e valoriza desigualdades e separações e é, portanto, um espaço não-democrático e não-moderno” (Caldeira, 2000: 12).

No bojo deste processo de agravamento da crise do Estado e urbanização segregada veio a explosão da criminalidade e o aumento da sensação de insegurança que inexoravelmente a acompanha. Entretanto, “ao contrário do que se poderia prever, o volume de notícias sobre crimes nos meios de comunicação de massa não traduz o crescimento ou a redução dos índices de criminalidade construídos pelas organizações policiais” (Rodrigues, 1993: 39). Dito de outro modo, ao aumento ou diminuição da criminalidade não necessariamente corresponde uma maior ou menor exposição do assunto na mídia. Este não é o lugar para se examinar em detalhes o papel da mídia na construção do medo, salvo para chamar a atenção para o fato de que “o sentimento de insegurança, que se encontra no coração das discussões sobre o aumento da violência, raramente repousa sobre a experiência direta da violência” (Michaud, 1989: 13). Um habitante de uma grande cidade brasileira não necessariamente sente-se inseguro porque foi vítima de um ato violento: basta que seja suficientemente persuadido a acreditar que pode a qualquer momento tornar-se vítima para que o sentimento de

92 insegurança nele se instale. Ou seja, não importa tanto a ocorrência do crime, mas a percepção que se cria dele2. E porque exaustivamente discutida e noticiada, porque fixada indelevelmente no imaginário social, a criminalidade urbana necessitava de explicação. Num primeiro momento, a sociologia se ocupou da tarefa buscando relacionar violência, modernização via capitalismo autoritário e aumento da pobreza. Contudo, o surgimento de pesquisas empíricas que comprovavam que o crescimento da violência podia ser observado também quando as condições de vida melhoravam implicaram necessariamente em uma mudança de foco (Carvalho, 2000). Abandonou-se a ligação estrita entre miséria e crime: o esforço, então, concentrou-se mais na delinqüência, no desregramento derivado de causas como a ausência de uma cultura cívica estabelecida. O enfrentamento da problemática associada à violência através do viés economicista permaneceu ainda assim hegemônico, mas a ele vieram somar-se reflexões de cunho mais político. Nesse registro, a violência pode ser entendida não como diretamente derivada do enfraquecimento do poder aquisitivo das camadas mais populares, embora esteja a ele associado, mas sim “como o resultado da privação de liberdade que impediu os desiguais de lutarem por seus direitos e por sua incorporação à cidade” (Carvalho, 2000: 48). O ponto de partida é o reconhecimento de que

a histórica inexistência de nexos entre os interesses das grandes massas cariocas e uma esfera estatal democratizada produziu, ao longo do tempo, um padrão de ética social coerente com as estreitas dimensões da comunidade política. Assim, à “escassez de cidade” corresponderia um comportamento predatório e belicoso, associado à satisfação privada de interesses e permeável à liderança de patronos, inclusive daqueles ligados à contravenção e ao crime (Carvalho, 2000: 48-49)

Historicamente alijados de participação não apenas na arena política, mas na definição do que conta como político – excluídos portanto de qualquer influência

2 Nesse sentido, episódios de violência de grande exposição midiática e dramaticidade plástica (como o do ônibus 174 ou do assassinato do menino João Hélio, ambos no Rio de Janeiro), funcionam como catalisadores do sentimento de insegurança. Sabemos que estatisticamente a cidade não se tornou mais violenta depois de tais episódios, mas a sensação que se estabeleceu foi exatamente esta. Para um exame mais abrangente do modo como as imagens da criminalidade foram elaboradas ao longo da história no Rio de Janeiro, ver Rodrigues, 1993.

93 na construção do Direito – os segmentos populares acostumaram-se a ver no Estado um ator que opera somente no interesse das elites. A marginalização política dificultou sobremaneira a introjeção do sentimento de se fazer parte de uma comunidade que partilha de uma trajetória coletiva. Tampouco ajudou a legitimar politicamente a atuação do Estado. Eis o resultado: um Estado em crise, incapaz de prover as mínimas condições de assistência e atuando com pouca ou nenhuma legitimidade, viu sua autoridade fragmentada e o seu monopólio legítimo da força substancialmente reduzido, abrindo assim espaço para o fortalecimento de inúmeras microssociedades que operam segundo leis próprias. Por outras palavras, a organização social passa a se reger de uma maneira cada vez mais autônoma em relação ao quadro político-institucional. A cidade e seus recursos, tornados escassos, transformam-se em objetos a serem disputados entre os seus habitantes, não importando aí a legalidade dos meios empregados. Qualquer semelhança com o estado hobbesiano que os jornais se esforçam por noticiar todos os dias não será mera coincidência. A sociologia havia feito muitos avanços na compreensão dos mecanismos de produção e reprodução da violência. Restava, contudo, descobrir quem eram e como viviam aqueles setores populares cujo senso de organização social regiam- se por códigos outros que não o do Estado. Tal empresa começou a ser levada a cabo por Alba Zaluar (1985), em seu estudo etnográfico na Cidade de Deus. Com efeito, Zaluar logrou ter acesso a uma realidade até então conhecida apenas pelos jornais – a violência no dia-a-dia de uma grande favela –, e nos franqueou este acesso. Surpreendeu o fim da malandragem, o bandido tomando o lugar do malandro (ou o malandro tornando-se bandido, como no caso de Mané Galinha). Identificou, nos meandros de um cotidiano atravessado por adolescentes armados, policiais corruptos e pelo esporádico confronto entre eles, o surgimento de uma nova ética, da razão cínica e utilitária – desfazendo assim a antiga imagem do bandido bom, heróico. Percebeu que o tráfico de drogas, tornado empresa altamente lucrativa, atuava como um sistema de socialização concorrente ao do trabalho convencional, trabalho este que se revelou ambíguo em idéia e valor3.

3 Zaluar assinala que, entre jovens moradores de Cidade de Deus, o trabalho adquire sinal negativo, associado a uma vida inteiramente desperdiçada em esforço sobre-humano, “vida escrava”; já entre pais de família, é tido como um valor moral, que dignifica na medida em que “põe comida na mesa”. Trata-se portanto, ela conclui, não de uma “ética do trabalho”, no sentido normalmente associado à ética protestante, mas sim de uma “ética de provedor”.

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Atestou, enfim, o estado de total desamparo no qual se encontram os moradores de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Voltamos assim ao ponto onde começou esta introdução. Hoje, como ontem, a massa popular só não se considera completamente ignorada e desprezada pelo poder público, porque, afinal, o aparato policial vez por outra se faz presente, achacando, atirando a esmo e matando, produzindo as notícias desta que ficou conhecida como uma “guerra particular”.4 Não é preciso muito para reconhecer que o histórico de relacionamento do Estado com a população carente parece não haver se alterado tanto ao longo do último século. Basta lembrarmos dos bestializados de José Murilo de Carvalho (1987), ou da revolta contra a obrigatoriedade da vacina em 1904 (Pamplona, 2003), para perceber como o Estado foi sempre visto ou como uma entidade distante, ausente e descomprometida, ou como um intruso grosseiro e indesejado. Assim é que,

ao longo de mais de cem anos de vida republicana, a violência em suas múltiplas formas de manifestação permaneceu enraizada como modo costumeiro, institucionalizado e positivamente valorizado – isto é, moralmente imperativo –, de solução de conflitos decorrentes de poder, de privilégio, de prestígio. Permaneceu atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos, e se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas em princípio destinadas a oferecer segurança e proteção aos cidadãos. Trata-se de formas de violência que imbricam e conectam atores e instituições, base sob o qual se constitui uma densa rede de solidariedade entre espaços institucionais tão díspares como família, trabalho, escola, polícia, prisões, tudo convergindo para a afirmação de uma sorte de subjetividade autoritária na sociedade brasileira (Adorno, 1995: 301; grifo meu).

Autoritarismo e igualitarismo: a dupla mensagem na sociedade brasileira

A questão da violência no Brasil não se deixa apreender sem o dado de ambiguidade e contradição que a informa e constitui. Trata-se da problemática convivência entre os ideais de uma cultura política que se quer democrática com uma cultura autoritária que remonta à nossa herança ibérica. Poderíamos voltar a Gilberto Freyre (2003; 2005) e lembrar, por entre as casas-grandes e senzalas, sobrados e mocambos, seus antagonismos em equilíbrio (Araújo, 2005). Poderíamos também retomar não apenas as raízes do Brasil tais como Sérgio Buarque de Holanda (2005) as via, isto é, transplantadas de solo ibérico para o

4 Para uma crítica das implicações (e omissões) do documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund, ver Ribeiro, 1995.

95 cultivo numa terra onde “todos são barões”, mas também seus rizomas (Veloso e Madeira, 2000). Mas um esforço nesta direção fugiria aos objetivos e excederia as limitações deste trabalho. Tal problemática constitui o cerne da obra de Roberto DaMatta. Na frase tantas vezes citada, DaMatta procurou “saber o que faz do brasil, Brasil”. E procurou fazer isso valendo-se de um misto de sociologia francesa clássica e antropologia estruturalista, sem com isso deixar de reconhecer o componente romântico que esta última às vezes traz em seu bojo.5 Nesta perspectiva, o primeiro ponto a se considerar é que,

tendo como fio condutor uma interpretação do Brasil claramente delineada, podemos acompanhar o desenrolar de seu trabalho [de DaMatta] como uma tentativa de se manter totalmente afastado de qualquer visão substantiva (essencialista) de uma identidade nacional ou de um caráter brasileiro, a partir de uma proposta de entendimento da construção desta identidade enquanto (um) processo que se faz enquanto uma estória que, nós brasileiros, contamos sobre nós, a nós mesmos (Sinder, 2003: 420).

Esta “interpretação do Brasil claramente delineada” estrutura-se em termos de pares de oposições complementares: indivíduo e pessoa, casa e rua. Tal dualismo seria decorrência do paradoxo constitutivo da vida da nação, a convivência simultânea de valores modernos, típicos do universalismo burguês, e de estruturas sociais tradicionais, como o personalismo e a hierarquia. Este o dilema brasileiro: na esfera pública, no espaço da “rua”, o Estado impessoal e burocrático governando por força de lei gerais; no âmbito privado, no espaço da “casa”, a vigência do sistema de relações personalistas e dos códigos de relações sociais dela decorrentes. Por outras palavras, a sociedade brasileira repousaria sobre o “berço esplêndido das leis universalizantes”, mas teria no interior de seu corpo um forte “esqueleto hierárquico”. Por um lado, tem-se em teoria o elogio de um igualitarismo individualista, e por outro, a prática que o desacredita e desautoriza. Ao apontar esta dicotomia – “somos iguais, mas diferentes” – Da Matta (1983) propõe uma distinção básica para o entendimento de nossas relações sociais: a separação entre “indivíduo”, para quem a lei se aplicaria de modo rigoroso, implacável, e “pessoa”, privilegiada somente pelo fato de estar

5 Um bom exemplo de como o romantismo, na visão de DaMatta, atravessaria o trabalho de campo na antropologia está em “O Ofício de Etnólogo, ou como ter Anthropological Blues”. (In: A Aventura Sociológica. Nunes, Edson de Oliveira (org.) Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978)

96 devidamente inserida num sistema não menos privilegiado de relações sociais. Seguindo a mesma linha, “casa” e “rua”, na perspectiva damattiana, devem ser entendidas como categorias sociológicas, como atores sociais e não apenas palcos, como “espaços morais” e não meramente físicos. Estaríamos, por assim dizer, a meio caminho entre um igualitarismo radicalmente universal, tal como encontrado nos Estados Unidos, e uma hierarquização fixa e intransponível, caso da Índia. O que nos caracterizaria seria justamente a união destas duas cosmologias, em quase tudo antagônicas; e não é por outra razão que, segundo DaMatta, “o segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo que está ‘entre’ as coisas. Seria a partir dos conectivos e das conjunções que poderíamos ver melhor as oposições, sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente tomá-las como irredutíveis” (Matta, 1997: 25). Nesta altura, caberia perguntar: como se daria a mediação entre estas oposições? DaMatta não nega que, numa sociedade hierárquica, de passado colonial e escravocrata como a brasileira, haja conflito. Afirma, entretanto, que não gostamos de reconhecê-lo, avessos que somos às suas manifestações. Toda sorte de conflito, dirá DaMatta enfaticamente, será resolvida primordialmente pela via da negociação, a violência irrompendo apenas em ocasiões limites, quando tivessem falhados todos os outros meios de negociação.6 Mestres na arte de conciliar e efetuar transações equilibradas, tendemos a encarar o conflito declarado e aberto, algo relativamente comum em sistemas igualitários, como uma prática que choca-se frontalmente com o nosso personalismo hierquizado e hierarquizante. Neste ponto, a expressão “Você sabe com quem está falando?” revela-se instrumental poderoso. Ali onde teóricos mais tradicionalistas, muito afeitos às “grandes questões” de classe e exploração econômica, enxergariam uma expressão idiomática sem maiores significações, DaMatta viu a cristalização de um rito autoritário usado para restaurar a ordem hierárquica numa situação onde esta se encontra ameaçada ou abalada. Rito autoritário e por isso mesmo indesejável, na medida em que expõe ou revela uma situação conflituosa. Se o

6 Veja-se, como mais um exemplo, a seguinte passagem: “o que fazemos, parece-me, é impedir a todo custo a individualização que conduziria ao confronto direto, inapelável, impessoal, binário e dicotômico entre brancos e pretos, inferiores e superiores, dominantes e dominados, etc.” (Da Matta, 1983: 150).

97 princípio do igualitarismo ameaça se fazer valer, há sempre a possibilidade do uso “Você sabe com quem está falando?” para colocar as coisas nos seus devidos lugares. O raciocínio de DaMatta alargou as possibilidades de entendimento do Brasil7, e talvez um dos melhores exemplos da fertilidade de sua perspectiva esteja na obra de Luiz Eduardo Soares (1999; 2000). Soares chama a atenção para a questão da dupla mensagem (double bind) resultante da hibridização da cultura brasileira à qual DaMatta se refere, isto é, a junção entre a cultura personalista, baseada na hierarquia, e o ethos moderno do individualismo burguês. A química perversa que esta combinação precipita perpassa todo o tecido social brasileiro, mas atinge de modo mais dramático os despossuídos. Um exemplo basta. Imaginemos, diz Soares, uma criança pobre, moradora de um grande centro urbano brasileiro. Na escola, recebe uma educação universalizante, na qual aprende os valores do individualismo moderno: que o exercício da cidadania é um direito básico, que todos são iguais perante a lei etc. Em casa, o processo de aprendizado destes valores continua através dos meios de comunicação de massa, em mensagens publicitárias, novelas e que tais. Mas se imaginarmos também que esta mesma criança tem uma mãe que trabalha como empregada doméstica, então desde a infância ela será iniciada nas regras do jogo da hierarquia, pois

a empregada será chamada pelo seu primeiro nome, esperar-se-á dela que faça suas refeições na cozinha, que não use os elevadores e as entradas principais dos prédios (isso ainda acontece, apesar de leis recentes o proibirem), e que trabalhe mais horas do que o que seria regular, já que não há um acordo que claramente estabeleça horários de trabalho, obrigações e direitos (até agora, mas isso esta mudando) (Soares, 1999: 230).

7 Como é sabido, a obra de DaMatta marcou uma mudança de perspectiva nos estudos sobre o Brasil. Escrevendo numa época em que as ciências sociais brasileiras encontravam-se imersas em vocabulário marxista, empenhadas no desenho de amplos painéis macrosociológicos sobre questões como integração de território e de estratos (Sinder, 2003), DaMatta lança mão de uma análise culturalista para, na interpretação de rituais, festas e particularidades de nosso cotidiano, buscar entender a “gramática profunda” da sociedade brasileira. Com efeito, a publicação de Carnavais, Malandros e Heróis (1978), seu livro mais conhecido e criticado, logrou estabelecer uma revalorização dos estudos antropológicos sobre o Brasil. Depois dele, temas como futebol e samba, por exemplo, não seriam mais considerados como mera frivolidade, desprovidos de maior significação e portanto desnecessários ao entendimento das questões relevantes do país, mas como vias de acesso à compreensão da singularidade brasileira.

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O problema, contudo, não está apenas na manutenção de um duplo padrão de relações sociais, que desestabiliza as expectativas dos agentes e se impõe de acordo com a vontade dos segmentos mais poderosos da sociedade. O problema está também no fato de que a responsabilidade e a proteção aos subalternos, que necessariamente acompanham as relações de tipo hierárquico, tendem a desaparecer face ao avanço do universalismo das leis. Para as classes dominantes, os códigos relacionais baseados no personalismo hierárquico funcionam como um instrumento “para a conservação e naturalização da desigualdade, assim como para a legitimação do darwinismo social”. Para a vasta maioria da população brasileira, pobres e excluídos, funciona “opondo obstáculos à melhoria da auto- estima, da cooperação social e da participação política” (Soares, 1999: 231).

Temos assim o pior dos dois mundos: o pior da hierarquia, da qual escapam os valores que envolvem mutualidade e só se conservam as diferenças e suas conseqüências, como o exercício de poder e a afirmação da autoridade; e o pior da formalidade moderna, típica do domínio racional-legal, na ordem liberal- democrática, que é a indiferença, a disposição permanente e irrestrita a maximizar benefícios individuais, e a renúncia legítima à responsabilidade pelo outro. (Soares, 2000: 34-5.)

Mas, adverte Soares, não nos enganemos quanto a um ponto. A complexidade da dupla mensagem e a realidade que ela engendra não é uma espécie de degrau ou etapa inevitável a ser superada logo adiante, na realização futura da modernidade. Da mesma forma, a violência não é uma espécie de doença que eventualmente assolaria o corpo sadio da sociedade brasileira. Muito ao contrário: o double bind já é a nossa maneira de sermos modernos, e a violência, tal como a experimentamos no Rio de Janeiro, é “o modo de ser contemporâneo da sociedade brasileira” (Soares, 2003:11). Escolhendo palavras mais duras, poder-se-ia evocar Walter Benjamim (1994) a fim de afirmar que este modo de ser de nossa sociedade seria nada menos que o estado de exceção tornado regra. Pois trata-se de um estado cuja idéia de “normalidade” abrange a naturalização da desigualdade social, a adoção praticamente inquestionada da lógica da guerra, a ausência às vezes mínima de respeito à vida humana – um estado enfim que, ao passar ao largo do Estado de Direito, desacredita e repele muitos dos valores que nos distinguem enquanto homens civilizados. Civilizados? Mas não teria sido verdade que, à medida em

99 que o Estado apropriou-se do monopólio legítimo do uso da força, o temperamento irascível e fisicamente orientado dos homens, que estimulava o uso da violência e glorificava as artes da guerra, se viu lenta e gradualmente substituído pelo uso selecionado do cálculo e da polidez? (Elias, 1994). Não haveria, portanto, uma correspondência entre a monopolização da violência e a racionalização e psicologização dos comportamentos sociais? Colocando as coisas deste modo, e tendo em mente o que foi dito acima, parece lícito perguntar se não estaríamos testemunhando, por assim dizer, uma espécie de avesso do processo civilizador. Pois é certo que

à restauração do predomínio do confronto físico sobre a arbitragem estatal tenderiam a corresponder os seguintes fenômenos: declínio da racionalidade estratégica institucionalmente regulada; deterioração dos instrumentos de cálculo social; afastamento das pautas psicológicas de juízo; aumento do poder de atração de valores associados à força pessoal ou à capacidade individual de controlá-la em benefício próprio; ampliação de condições para o estabelecimento da hegemonia cultural de éticas adaptáveis ao império da violência, capazes, portanto, de operar com noções e valores que, por exemplo, cultuem heroísmos, culpabilizem algozes, depreciem mediações institucionais e possam oferecer critérios de juízo compatíveis com a necessidade de preservar um mundo regido pela busca da sobrevivência em contexto altamente competitivo (Soares, 2003: 22).

Se tudo isto de fato ocorre, então nada nos impediria de afirmar que, no Brasil, o processo civilizador coexiste com o seu oposto simétrico8. Mas, e isto é importante, o avesso de tal processo não é, como muitos gostam de pensar, algo exclusivo de favelas, periferias, ou do cotidiano dos rotos e miseráveis cuja existência insistimos em ignorar. Se há algo que os “pitboys” não nos deixam esquecer, é justamente disso.

3.2 Imagens da barbárie: os discursos sobre “pitboys”

Manual do pitboy

Para ser um pitboy: 1. Ande sempre em grupo, pois você não é capaz de raciocinar com sua própria cabeça, ou não é capaz de assumir sozinho os seus atos; 2. Ataque sempre em condições numéricas superiores às da vítima (cinco pitboys

8 Devo esta observação ao prof. José Carlos Rodrigues.

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para cada vítima); 3. Para vítimas, escolha as pessoas mais indefesas que você encontrar, mulheres, pessoas de nível social mais baixo etc.; 4. Se “sujar”, nunca assuma que você participou do ato; 5. Se não der para enganar, arranje uma desculpa idiota para justificar seu ato de barbárie, tipo “pensei que ela fosse uma prostituta”; 6. Demonstre covardia em seus atos. Carta enviada por Dayse Pinheiro Cordovil da Rocha ao jornal O Globo, publicada em 9/7/2007.

O desabafo da leitora, o transbordamento da indignação que a levou a enviar uma carta a um jornal, explica-se em função de um crime cometido havia duas semanas, crime este que mobilizara intensamente os meios de comunicação e provocara grande comoção pública. Trata-se do episódio do roubo e agressão sofridos pela empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto, de 32 anos. Sirley foi atacada de madrugada, quando esperava um ônibus na avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca. Além de ter sua bolsa roubada – perdendo assim um celular, R$ 47, um guarda-chuva, um agasalho e quatro chaves –, a doméstica foi agredida a socos, chutes e cotoveladas por um grupo de cinco rapazes, todos moradores de condomínios de classe média-alta da Barra da Tijuca, que voltavam de uma festa em uma boate em São Conrado. Ouçamos Sirley:

Foi tudo muito rápido. Eles puxaram minha bolsa, e, quando eu me desequilibrei e caí, começaram a chutar. O alvo deles era só a cabeça. Estou com um dos braços roxo (o direito) porque tentei proteger meu rosto. Teve uma hora em que levei um chute muito forte, no lado esquerdo do rosto, e tudo escureceu. Pensei que ia morrer, e eles não paravam de bater. Foram muito cruéis, pareciam estar drogados. Eles ainda agrediram outras duas senhoras antes de ir embora (fonte: site do jornal O Globo; publicado em 24/6/2007).

Descobertos graças a perspicácia de um taxista, que anotou a placa do veículo dos agressores e a entregou à polícia, os jovens foram presos e autuados por tentativa de latrocínio, isto é, roubo seguido de morte. Na delegacia, “os jovens riam e diziam que nada aconteceria a eles porque, no Rio de Janeiro, é comum matar e roubar sem que haja conseqüências” (fonte: site do jornal O DIA, publicado em 24/6/2007). Um dos acusados tentou justificar o ato afirmando que havia confundido Sirley com uma prostituta. O pai de outro rapaz envolvido, não obstante a visível gravidade dos ferimentos sofridos pela doméstica, tentou amenizar o delito, declarando que “mulheres ficam roxas por qualquer coisinha”. A revolta e a condenação pública do ato criminoso crescia à medida que os jornais estampavam manchetes sobre o desenrolar do episódio. Em todas elas,

101 falava-se em mais um caso de ataque de “pitboys”. Sirley, diziam as manchetes, havia sido agredida por “pitboys”; na delegacia, os “pitboys” não mostravam arrependimento; o último “pitboy” que restava identificar acabara de ser detido, e assim por diante. O que nenhuma manchete esclarecia, contudo, era se os tais “pitboys” praticavam jiu-jitsu ou qualquer outra arte marcial. Na extensa cobertura jornalística que se sucedeu, a palavra “jiu-jitsu” não foi mencionada uma vez sequer. Mas as imagens dos rapazes na delegacia, veiculadas nos noticiários, não deixavam dúvidas. Nelas não se viam corpos musculosos, cabelos raspados ou orelhas deformadas, e sim biotipos magros, compleições físicas que em nada remetiam à imagem de um lutador de jiu-jitsu. Como, então, explicar o emprego do termo “pitboy” pela imprensa? A definição de “pitboy” não estaria necessariamente atrelada à prática de alguma arte marcial, em especial o jiu-jitsu? Quando surgiu, o neologismo “pitboy” servia para designar os lutadores que com freqüência provocavam brigas na noite do Rio de Janeiro. Com o tempo, no entanto, o termo perdeu sua associação direta com o jiu-jitsu, passando a designar qualquer indivíduo de classe média e alta, não necessariamente praticante de alguma arte marcial, que fosse pego envolvido em atos criminosos (agressão, vandalismo, roubo etc.). Em 2004, uma reportagem da Folha de São Paulo assinalava que os “pitboys” seriam “jovens de classe média, alguns deles praticantes de artes marciais, que saem à noite para brigar” (fonte: site da Folha de São Paulo, publicado em 4/5/2004). Vale notar que o primeiro elemento usado na definição da categoria “pitboy” é sua classe social, ficando em segundo plano a adesão a alguma arte marcial. Atualmente, e isto o episódio da agressão à doméstica Sirley deixa bastante claro, pode-se dizer que o termo “pitboy” é utilizado menos como estereótipo do “lutador brigão” do que como uma categoria de acusação que abarca a delinqüência entre jovens de classe média e alta de uma maneira geral. O primeiro (e até aqui único) trabalho a iluminar e explorar este ponto é o de Bruno Cardoso9. Apoiando-se na labelling theory de Howard Becker (1977), Cardoso analisa de forma minuciosa a cobertura que três ataques de “pitboys” mereceram nos jornais cariocas, entendidos como “canais de fofoca”. Sua primeira contribuição está em lembrar que, ao nos depararmos com o fenômeno

9 Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Briga e Castigo: sobre pitboys e “canais de fofoca” em um sistema acusatório. Dissertação de Mestrado – IFICS, UFRJ: 2005.

102 da violência praticada por “pitboys”, devemos logo de saída ter em mente que não estamos lidando com um fato social em estado bruto, se é que existe algo como um “fato social em estado bruto”, mas sim com uma complexa trama de articulação discursiva sobre tal fenômeno. Pois empregar o termo “pitboy” significa, antes de mais nada, fazer reverberar um estereótipo. E estereótipos, como práticas significantes que são, não se limitam a “identificar categorias gerais de pessoas – contêm julgamento e pressupostos tácitos ou explícitos a respeito de seu comportamento, sua visão de mundo ou sua história (Freire Filho, 2004: 47). Mais que uma imagem distorcida, porque reduzida, de uma determinada realidade, o estereótipo é um construto através do qual se organiza o discurso do senso comum.

Como forma influente de controle social, [estereótipos] ajudam a demarcar e manter fronteiras simbólicas entre o normal e o anormal, o integrado e o desviante, o aceitável e o inaceitável, o natural e o patológico, o cidadão e o estrangeiro, os insiders e os outsiders. Tonificam a auto-estima e facilitam a união de todo “nós” que somos normais em uma “comunidade imaginária”, ao mesmo tempo em que excluem, expelem, remetem a um exílio simbólico tudo aquilo que não se encaixa, tudo aquilo que é diferente. (Freire Filho, 2004: 48)

O estabelecimento de um rótulo, de uma imagem estereotipada – o “pitboy” – fez mais do que cristalizar em uma palavra, por assim dizer, um certo dado da realidade. Se Becker tem razão em afirmar que “o desvio não é uma qualidade que exista no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que respondem a ela” (1977: 64; grifo meu), então a criação de um categoria de acusação deve afetar profundamente a forma como que uma sociedade se relaciona com um determinado desvio. O estudo do fenômeno dos “pitboys”, acredito, pode servir como ilustração para aquilo que Foucault (1996) tinha em mente quando afirmava que um discurso não apenas representa um objeto, mas constrói este objeto no processo mesmo de representá-lo. Contudo, a maior contribuição da pesquisa de Cardoso está em mostrar, através da análise dos discursos midiáticos dos atores envolvidos em episódios de ataques de “pitboys”, como a pressão popular por uma punição dura e imediata – isto é, a demanda por “justiça” –, pressão esta capitaneada por empresários morais (Becker, 1977), acaba resultando no atropelo dos próprios procedimentos sobre os quais a justiça, agora sem aspas, está fundamentada. Nos três casos analisados em

103 seu trabalho, ocorreu uma mudança na tipificação criminal do delito cometido pelos jovens que se envolveram em brigas: uma vez formalmente acusados de “formação de quadrilha” e “tentativa de homicídio”, conseguiu-se sua detenção imediata. Assim, fica evidente que o objetivo não é fazer valer a lei, mas sim dar o exemplo, afirmar enfática e publicamente que tal delito não será tolerado. O problema está em que, para fazer isso, é preciso torturar a lei, aplicá-la de modo indevido porque excessivamente rigoroso. Já se vê o curto-circuito. Ali onde as instituições supostamente deveriam agir no sentido de desarmar a engrenagem que separa “indivíduos” e “pessoas” (DaMatta, 1983), engrenagem esta que garante penas mais brandas (isso quando as há) a quem “tem conhecimentos” ou “costas quentes”, Cardoso flagra a reprodução de sua lógica, de seu modus operandi. Pois ao mobilizarem forças para “dar o exemplo”, as autoridades desrespeitam as próprias leis que pretendem validar: colocam-se, assim, acima delas. O caso do promotor público Márcio Mothé é paradigmático deste expediente. Ao jornal O Globo, declarou sua revolta contra as atitudes dos “pitboys”, afirmando que estes, “quando se envolvem em violência e são detidos já chegam perguntando: ‘Você sabe com quem está falando?’”10. Mas, indignado com a atitude desrespeitosa de “pitboys” que teriam mandado beijinhos para uma câmera de televisão, Mothé “não pensou duas vezes. Deu vários telefonemas que culminaram com a prisão dos quatro na manhã seguinte, graças a um mandato expedido depois que os acusados foram indiciados pelos crimes de lesão corporal grave e formação de quadrilha”11. Para punir exemplarmente os “pitboys” abusados, Mothé não se valeu do respeito à lei, mas, ao contrário, do jeitinho que lhe estava ao alcance, de sua posição como “pessoa” de grande influência – enfim, de um “você sabe com quem está falando?” às avessas (Cardoso, 2005). Sem perceber, ajudou a corroborar e perpetuar uma prática que tanto se esforça para corrigir. Há ainda outra problemática implícita nisto que estamos a examinar: a questão do pânico moral suscitado pela violência dos “pitboys”. Não é difícil ver que o objeto do pânico moral não é tanto a ação dos “pitboys” em si, mas a imagem da violência e da deliquência encarnada no interior de uma classe social que, pelo menos em tese, distinguiria-se justamente pela ausência destas

10 Jornal O Globo, edição de 4/4/2004; apud Cardoso, 2005: 105. 11 Jornal O Globo, edição de 29/3/2004; apud Cardoso, 2005: 105.

104 qualidades. Como assinala Cardoso, “a força com que a fofoca sobre o assunto é produzida (e reproduzida) mostra que, a indignação e a exigência de ‘castigo’ aos jovens desviantes, aparece como um mecanismo inconsciente de afirmação das fronteiras comportamentais entre as classes” (2005: 104; itálico do autor). Em palavras simpes e diretas: há no Brasil a tendência a pensar que a violência brutalizada, feita com as próprias mãos, é exclusiva das classes populares e dos miseráveis. Por isso o escândalo, por isso o espanto: o desvio não seria condizente com a posição social do desviante. A própria Sirley Dias, depois de agredida, pontificou: “Esses garotos não tinham necessidade de fazer isso, eles têm de tudo…”12. A premissa na qual fundamenta-se tal surpresa e indignação é a de que o grau de violência no comportamento de um indivíduo seria inversamente proporcional ao tamanho de sua renda familiar. De outra forma, como explicar satisfatoriamente a enorme visibilidade que as brigas envolvendo lutadores de jiu-jitsu alcançaram na mídia? Descartar o fator classe na construção do pânico moral em torno dos “pitboys” equivaleria, por exemplo, a afirmar que um tiroteio ocorrido na Rocinha repercute da mesma forma na imprensa que um tiroteio ocorrido numa favela da baixada fluminense. E sabemos bem que há uma grande, uma enorme diferença entre balas perdidas atingindo barracos de uma favela da baixada fluminense, e balas perdidas atingindo apartamentos luxuosos em São Conrado13. Não gostamos de admiti-lo, é verdade – mas não podemos negá-lo. Mas o curioso é que os próprios praticantes de jiu-jitsu têm consciência disso. Não esperava encontrar um depoimento que apontasse nesta direção, mas foi justamente o que aconteceu quando perguntei ao Professor por que, em sua opinião, o estereótipo do “pitboy” nascera associado ao jiu-jitsu:

A diferença é essa, muita gente de classe média e alta começou a fazer jiu-jitsu. Quem disse que o pessoal da luta livre e do muai thai não briga? Só que eles vão lá e brigam no Via Show, numa boate longe... O pessoal do jiu-jitsu começou a brigar em boate da Zona Sul. Aí machucava o filho de um advogado, ia pra imprensa. Machucava filho de uma atriz, filho de um político. Então sempre teve briga de muai thai, de luta livre, mas o cara que briga lá no Raio de Sol, na Tijuca, não vira notícia. Agora, o cara que quebra a Baronetti [boate em Ipanema] vai virar notícia. Acho que é isso que ficou muito na mídia contra o jiu-jitsu.

12 Fonte: site do jornal O Globo, publicado em 24/6/2007. 13 Agradeço às aulas do professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro, que chamaram minha atenção para estas questões. Dou-lhe total crédito pelas idéias inspiradoras; os equívocos que por ventura delas aqui decorrem, contudo, são por minha conta.

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Mas seria injusto atribuir somente à imprensa todo o trabalho de esterotipagem, de construção discursiva do “pitboy”. Também alguns trabalhos acadêmicos contribuem para tanto, ainda que (gostaríamos de acreditar) involutariamente e em menor escala. Senão, vejamos. Em “Cartografias da cultura da violência”, Glória Diógenes afirma que

o objetivo do lutador [de jiu-jitsu] é, interminavelmente, testar seu corpo, sua capacidade de resistência, a vencer ou a utilizar. Identificar a eficácia do seu corpo-ferramenta e testar o controle e os limites entre o corpo-arma e corpo- explosivo. A esfera da cidade é identificada pelo lutador como um ampliado tatame (...)” (1998: 176; grifo meu).

Como vimos no primeiro capítulo, nos tatames de jiu-jitsu não são permitidos golpes traumáticos. O uso da violência é estritamente controlado: pode-se encaixar uma chave de braço ou um estrangulamento em seu adversário, mas se ele sinalizar a desistência, você é obrigado a afrouxar o golpe imediatamente, e então a luta recomeça. Além disso, práticas como a “taparia” e o “bloqueio” não fazem mais parte do cardápio de treinamentos. O tatame não é, pois, o espaço da “porrada”, do “vale tudo”: é o espaço de um esporte que, como qualquer outro, só é possível porque existem regras que o definem. Obviamente, trata-se de um esporte cujos ensinamentos podem ser de bastante utilidade em uma briga de rua, mas o esporte em si não é violento, dado que não permite o uso de golpes traumáticos. Por esta razão, não faz sentido afirmar que um lutador de jiu-jitsu “encara a cidade como um enorme tatame”; aquela não é, de modo algum, mera extensão deste. Além disso, testar o corpo e a capacidade de resistência é um dos objetivos do lutador, e não o único e exclusivo objetivo – um adolescente pode aprender jiu-jitsu para bater nos outros em festas e boates, ou para evoluir tecnicamente até graduar-se faixa-preta, ou ainda migrar para o MMA e viver de competições, ou, quem sabe, apenas para fazer um exercício que lhe dê um bom talho ao corpo. Implícita nesta e em outras passagens do trabalho de Diógenes está o que eu chamaria de uma retórica alarmista, algo compreensível quando se trata de abordar um fato social cujas manifestações empíricas parecem beirar o limite da civilidade e do racionalismo. Compreensível, sem dúvida, mas de pouca utilidade. Não precisamos de afirmações como “de algum modo, o corpo-arma branca do

106 lutador transmuda-se em corpo-arma explosiva, pronta para matar” (Diógenes, 1998: 175; grifo meu) para avançar na compreensão do problema. Não há vantagem alguma em confundir algum grau de delinquência com psicopatia desmedida, em transformar jovens que gostam de brigar em verdadeiros assassinos, esperando apenas uma oportunidade para tirar a vida de alguém. Mas é difícil escapar à tentação de tomar a exceção pela regra, e de emitir um julgamento calcado no mais baixo denominador comum. Veja-se a seguinte passagem:

Nas academias, os praticantes de jiu-jitsu (fisiculturistas, veteranos ou não), são os que enumeram o maior número de confissões com agressões físicas ou homicídios. O Rio de janeiro é a capital nacional dos praticantes de tal arte marcial. Em 1999, existiam mais de 400 academias que ensinavam o jiu-jitsu: o maior número em todo o país (Veja, 3/02/1999). No verão do mesmo ano, em um espaço de poucos meses, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas envolvidas em brigas provocadas por lutadores dessa arte marcial.. (...) O culto à agressão gratuita é outra característica deste grupo. “Se o camarada fica me olhando, vou lá perguntar o que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo, 19 anos, estudante). Além das tatuagens, outra característica desta “tribo urbana” são os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto dar socos, a mão calejada de musculação e a cabeça raspada ostentando apenas um topete. Estes jovens vão a boates e bailes nos finais de semana com o intuito de brigar. Toda segunda-feira é possível encontrar nos vestiários das academias integrantes deste grupo contando suas proezas. Vão aos bailes em bando, dirigindo suas caminhonetes – este é outro objeto de adoração desta tribo que preza carros grandes e fortes –, apressam-se em consumir bebidas energéticas à base de cafeína e aminoácidos misturadas com uísque e vodka; quando já estão agitados começam a mexer e agarrar as mulheres e aí então inicia-se a pancadaria. Frequentemente acabam nas delegacias de polícia, mas como são de classe abastada nada a eles acontece, pois subornam policiais ou ligam para pais e conhecidos influentes que os soltam. São também aficcionados por campeonatos de vale-tudo (competições em um ringue em que só é proibido enfiar o dedo no olho do adversário ou mordê-lo) e lutas de boxe (Sabino, 2004: 315; grifos meus).

O trecho acima é na verdade parte de uma nota de rodapé de uma tese de doutorado – um excelente trabalho, diga-se – sobre fisiculturismo. Ao mobilizá-lo para a discussão aqui proposta, meu objetivo não é o de criticar a validade da tese como um todo, o que aliás seria totalmente descabido e injusto, mas somente observar a violência contida na representação de um fenômeno como este dos “pitboys”. Em um mesmo parágrafo, encontram-se algumas das generalizações que compõem o estereótipo dos lutadores de jiu-jitsu tornados “pitboys”: tatuagens, cabelos raspados, orelhas deformadas, carrões potentes, bebidas energéticas misturadas com álcool, pancadarias em boates. Mas ocorre que “o

107 culto a agressão gratuita”, ao contrário do que é afirmado, não é “outra característica do grupo”, isto é, dos praticantes de jiu-jitsu como um todo. Os dedos “levemente tortos com nódulos nas juntas” não são de “tanto dar socos”, golpe que aliás não faz parte do repertório de técnicas praticadas numa academia de jiu-jitsu, mas sim efeitos da enorme quantidade de força dispendida na “pegada”, isto é, no ato de segurar o sempre grosso e áspero quimono do adversário. O vale-tudo não é uma competição onde “só é proibido enfiar o dedo no olho do adversário ou mordê-lo”, pelo menos não desde o final da década de 90. Entretanto, o que salta aos olhos é afirmação de que, nos vestiários das academias, é comum encontrar lutadores de jiu-jitsu enumerando “confissões com agressões físicas ou homicídios”. Sem dúvida, parece bastante plausível que lutadores de jiu-jitsu não tenham muitos pudores de se gabar das porradas que distribuem em outrem (repito intencionalmente o plural empregado na citação original). Mas outra coisa, inteiramente distinta, são estes mesmos lutadores confessarem abertamente que mataram alguém durante um final de semana. Isto não soa nem um pouco convincente, e arrisco a dizer que, se tal tivesse mesmo ocorrido, Sabino provavelmente teria se alongado um pouco mais no relato e citado textualmente a fala do informante, tamanho o choque que lhe teria causado. A distância entre a confissão de uma agressão e de um assassinato é simplesmente grande demais para não causar um estranhamento mais profundo. Para além dos efeitos de esterotipagem e do uso de uma retórica alarmista, há outra importante característica no interior da trama de articulações discursivas sobre “pitboys”. Trata-se da busca da explicação do fenômeno através do que poderíamos chamar de o “discurso da falta”. Nessa perspectiva, a violência das brigas e confusões acionadas por “pitboys” é sempre encarada como efeito ou reflexo de algum tipo de ausência: de estrutura familiar, de educação (“limites”), de leis mais severas, de segurança nas casas noturnas, de professores de jiu-jitsu adequadamente formados, ou de todos estes fatores combinados. Como seria de se esperar, tais discursos se fazem repercutir com maior frequência nos jornais, especialmente nos dias posteriores a um episódio de agressão de “pitboys”, quando as seções de “cartas dos leitores” transformam-se então em terreno fértil para sua análise. Os exemplos são muitos e diversos, e seria desnecessário esmiuçar todos aqui – sobretudo quando tivemos a sorte de encontrar todas estas “faltas” condensadas numa única reportagem.

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Nem sempre acompanhados de um pitbull, eles têm em comum com a fera a violência gratuita e padecem, também, de extremo preconceito em relação às minorias, além de uma falta total de perspectiva de vida. “Eles não sabem o que é Brasil, não tem noção de realidade. Vivem num mundo à parte”, dia a jovem F.V., vítima de um desses tipos. (...) Preocupado, o campeão Rillion Gracie atribui o mau uso do jiu-jitsu à proliferação de academias, muitas vezes sem o controle da federação. “Infelizmente, muitos professores desconhecem a história do jiu-jitsu e são despreparados para dar aula”. (...) Para o psicanalista Wilson Amendoeira, a questão é muito mais ampla. A sociedade está doente – e o pitboy é apenas um dos indícios. É preciso deitar a sociedade em um grande divã, para encontrar a cura e evitar outras tragédias. “A gente vê na clínica a dificuldade das pessoas de compreenderem o que está se passando neste mundo, que tem como valores máximos o individualismo, o sucesso a qualquer preço, a falta de compromisso social. É preciso resgatar a solidariedade, o apreço pelo outro” (...) A ação pautada no imediatismo é confirmada pela psicóloga Tereza Góes de Monteiro: “A falta de perspectiva faz com que alguns regridam a um estado quase infantil, de querer imediatamente o brinquedo preferido.” (...) O advogado de Mariângela Massaro [mãe de um rapaz vítima de “pitboys”], Nélio Andrade, acha que a certeza da impunidade e a falta de limites impostos pelos pais são fatores que colaboram para o quadro de violência. “Os filhinhos de papai partem do princípio de que nada vai ocorrer, porque têm grana para pagar a fiança. A família tem que ser a primeira a impor limites”, lembra ele. (Fonte: Jornal do Brasil, edição de 12/09/1999; itálicos meus)

Seguindo a cartilha que recomenda explorar “todos os lados” da questão, a matéria começa acusando a “falta total de perspectiva” que caracterizaria a vida de um “pitboy”. Mobiliza em seguida o depoimento de uma vítima (“eles não têm noção da realidade”) e a opinião de um conhecido membro da família Gracie (“professores despreparados”). Na sequência, requisita os saberes científicos da psicanálise e psicologia (falta “compromisso social e solidariedade”, falta “perspectiva”). E encerra com o ponto de vista de alguém que conhece a legislação e o sistema penal, um advogado (“certeza da impunidade” e “falta de limite imposto pelos pais”). Tudo somado, eis o remédio: se a sociedade brasileira fosse menos individualista e mais solidária de uma maneira geral; se os jovens de classe média e alta tivessem mais “perspectivas” (seja lá o que isso signifique); se vivessem todos em famílias devidamente estruturadas, que lhes dessem “limites” (quais exatamente, nunca é dito); se praticassem jiu-jitsu somente com professores pedagogicamente “responsáveis” e muito conscientes da filosofia da arte marcial criada pela família Gracie; se tivessem a certeza de que, caso espancassem alguém na rua, seriam severa e irreversivelmente punidos pela lei – enfim, se tudo isso viesse a se tornar realidade, aí então não teríamos “pitboys”. Mas, se tudo isso de

109 fato acontecesse, não seria a realidade: seria o melhor dos mundos. E no melhor dos mundos não há crime de espécie alguma, porque não há o quê os motive14. Não vivemos no melhor dos mundos. Portanto, ao lidar com a manifestação incômoda da violência, deveria ser mais produtivo dirigir o olhar não para o quê esta manifestação nos diz sobre o que nós não encontramos em nossa sociedade, mas sim para aquilo que de fato nós podemos encontrar15.

3.3 Enfim, porrada: depoimentos de “ex-pitboys” e seguranças de casas noturnas

E, com efeito, não estaríamos desde o início deste trabalho procurando justamente levar a cabo uma tentativa de examinar o fenômeno dos “pitboys” em suas positividades? Começamos por esmiuçar, no interior das academias de jiu- jitsu, a emergência de um sistema que se retroa-alimenta: a idéia de superioridade técnica, ingrediente fundamental na formação da identidade da arte marcial que carrega o sobrenome Gracie, exigia sua provação constante em lutas e brigas, que por sua vez exigiam a manutenção de uma série de dispositivos a que chamamos de ethos guerreiro, ethos este que, com o tempo, tornou-se ele mesmo ingrediente fundamental da identidade dos praticantes do jiu-jitsu. Inferimos daí aquilo que chamamos de “filosofia da eficiência”, e suas repercussões na pedagogia de uma aula de jiu-jitsu. Observamos a construção de um certo ideal de masculinidade nos treinamentos diários de jiu-jitsu, isto é, as práticas da“taparia”, “bloqueio” e “baile funk” como partes integrantes do rito (mais amplo) de passagem à idade adulta, “pseudo-iniciações” que visavam transformar meninos em homens. Atentamos para a inscrição corporal de uma subjetividade moldada por este ethos guerreiro: a “casca-grossa”, construção de si que atua como recurso de sociabilidade, e a orelha “estourada” – símbolo máximo de pertença –, uma espécie de “Você sabe com quem está falando?” não-discursivo. Apreciamos a problemática que envolve a questão da homossexualidade – que o lutador de jiu-jitsu é perseguido pelo

14 Esta idéia, e a argumentação que a sustenta, tomo-a emprestada do artigo “Cidade de Deus e suas discursividades”, do professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro (2006). 15 Aqui, não faço mais do que seguir o conselho do professor José Carlos Rodrigues, conselho este que foi decisivo na maneira de pensar e escrever esta dissertação.

110 fantasma de sentir prazer em agarrar-se a outros homens. E abordamos, ainda que de forma necessariamente breve e inconclusiva, questões que tangenciam todo este debate sobre virilidade e masculinidade, como por exemplo a importância do sucesso de lutadores brasileiros (sobretudo Royce e Rickson Gracie) em eventos de vale tudo para a afirmação da auto-imagem dos praticantes de jiu-jitsu, e a importância do estímulo dado pelas “marias-tatames” à solidificação de uma idéia de masculinidade profundamente atravessada por maneiras que poderíamos chamar de grosseiras, rudes. As entrevistas com ex-lutadores de jiu-jitsu – entre os quais, alguns que na adolescência poderiam ser considerados “pitboys” – e seguranças de casas noturnas e eventos, fizeram emergir importantes questões que devem contribuir para o aprofundamento da discussão. A racionalidade empregada no ato de sair na porrada; o fato de fazê-lo como um jogo/brincadeira (“play”), no sentido que lhe dá Huizinga (2005); o descontrole controlado das emoções (Featherstone, 1995) e o componente de risco que acompanham a briga; a necessidade de visibilidade e a identificação com um modo de ser associado à violência do crime organizado; a afirmação da hierarquia que delimita fronteiras de classe, traduzida no emprego da expressão “sabe com quem está falando?”; todas estas questões serão discutidas a partir dos relatos dos entrevistados. Vejamos, pois, como se articulam em relação aos “pitboys”.

Racionalidade e cálculo

Conforme observado, no início da década de 90 os praticantes jiu-jitsu eram treinados técnica e psicologicamente para se convencerem de que eram fisicamente superiores não somente em relação a outros homens, mas sobretudo em relação a adeptos de outras artes marciais. O ethos guerreiro dominante (e exigido), o necessário endurecimento até a obtenção da “casca-grossa”, a disposição em não “levar desaforo para casa”, a confirmação da supremacia da técnica em eventos de MMA, tudo convergia para a criação desta sensação de superioridade. De fato, Hélio Gracie parece ter alcançado seu objetivo, o de “criar um veículo para dar segurança às pessoas”:

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O jiu-jitsu te deixa muito mais autoconfiante. Eu pelo menos sentia que eu não apanharia de ninguém, entendeu? Pra mim, podia ser do tamanho que fosse. Tudo bem, se treinasse jiu-jitsu também e fosse grande pra caralho, aí fodeu. Mas se o cara é leigo, mesmo o cara sendo grande, se você tiver experiência, você consegue segurar o cara, e pelo menos não apanha. Então tinha essa autoconfiança em você, isso é fato. (Rafael, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

A mesma opinião é compartilhada por outro ex-praticante de jiu-jitsu:

E o jiu-jitsu funcionava né, cara? O pior de tudo era isso, o jiu-jitsu funcionava pra cacete. Em briga de rua, a eficiência é absurda. Quando eu via duas pessoas que não treinavam, que não sabiam jiu-jitsu, brigando, eu me lembro de falar “caramba, eu enfio a porrada nesses caras muito rápido, muito rápido”. É impressionante, o jiu-jitsu é muito eficiente. (Rogério, 30 anos, ex-praticante de jiu-jitsu)

Há nisso um dado de suma importância: porque treinado numa técnica de defesa pessoal que acredita ser insuperável, o lutador de jiu-jitsu sente-se razoavelmente seguro para se envolver numa briga. Este discurso, o da eficácia da técnica em confrontos violentos, é relevante na medida em que aponta para uma característica que normalmente não se costuma associar aos “pitboys”, a racionalidade. É comum pensarmos que o “pitboy” que espanca alguém numa boate sem qualquer motivação aparente esteja agindo como um “animal” – meio homem, meio cão pitbull – completamente desprovido de razão e consciência. Não obstante, as coisas se passam de modo diverso: o “pitboy” sabe o quê está fazendo. Não quer isto dizer que o “pitboy” aja sempre de maneira premeditada – por exemplo, ir a uma boate já com o intuito de provocar briga –, embora isto eventualmente aconteça, como veremos na sequência. Quer dizer, isto sim, que ele conhece com precisão de detalhes o repertório de movimentos que deve executar caso se envolva em alguma confusão ou pancadaria: sabe exatamente o quê deve ser feito e, mais importante, como fazê-lo. Nesse sentido, o que se pretende aqui é chamar a atenção para o cálculo ou a racionalização que envolve o domínio do uso do conjunto de técnicas corporais fornecido pelo jiu-jitsu16.

16 Tal racionalização empregada no ato de brigar parece se coadunar com o diagnóstico de cientistas sociais quanto à crescente atenção dispensada à aquisição de controle e peritagem corporal de si (Breton, 2003; Ortega, 2006), e ao recurso calculado de comportamentos transgressores (o uso de drogas sintéticas, no caso) entre jovens de classe média e alta do Rio de Janeiro (Almeida e Eugenio, 2006). O primeiro ponto, de relevo teórico, remete-nos à observações sociológicas de validade mais ampla. O segundo, a um estudo antropológico de cunho empírico que se debruça sobre o mesmo universo de indivíduos pesquisados neste trabalho. Voltaremos a este ponto logo adiante.

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O cara que sabe brigar, que vai sair conscientemente na porrada, ele traça uma estratégia. Mesmo que seja uma coisa rápida na cabeça dele, ele é estratégico. Ele não faz aquilo sem pensar. “Eu vou entrar assim, dar pisão, depois baianar”... Ele não entra assim “ah que se foda, vou entrar de qualquer jeito”. Você entra já pensando. Mas ele não tá pensando nas consequências que aquilo pode ter. O cara que é porradeiro é inconsequente por natureza. Eu acho que isso aí acontece muito. (Rafael, 31 anos, ex-praticante de jiu-jitsu)

Mencionamos anteriormente alguns dos principais estudos que apontam para a crescente importância do corpo na construção da identidade do sujeito. Vimos, ainda que de passagem, algumas das implicações deste processo, isto é, o surgimento da bioidentidade e da biossociabilidade que a informa e acompanha. Vimos também que a preocupação do indivíduo com o corpo é levada ao extremo não por uma escolha meramente individual, mas por toda uma cadeia de pressão advinda da transformação da saúde (mental inclusive: o bem estar) e do ideal da boa forma em um bem a ser consumido. Assim, não é de se estranhar que a preocupação e o controle do próprio corpo assumam, nos dias atuais, caráter eminentemente ascético. Mas o que importa ressaltar é que o caráter ascético da construção corporal do sujeito supõe a idéia de um self reflexivo, ou seja, um indivíduo totalmente consciente e vigilante de si. Cuidados médicos, higiênicos e estéticos: a construção da identidade pessoal é permeada pela observação e controle de todas as variáveis que afetam o corpo. Assim, o vocabulário que acompanha a aferição do desempenho do corpo ganha, também uma conotação moral; uma nova ideologia, o healthism (Ortega, 2006; Bezerra Jr., 200217). O indivíduo que constrói a si próprio de maneira ascética, ao mesmo tempo em que persegue a obtenção do corpo perfeito ou ideal, busca a experiência de uma vida regrada, calculada. Eis aí o imperativo da disciplina contrapondo-se aos imperativos do prazer e hedonismo (tão propalados pelos teóricos da vida pós-moderna). A necessidade de dietas rigorosas, sexo seguro e trabalho exaustivo do próprio corpo constrangem o princípio da fruição do prazer sem limites. Hoje, diz Ortega (2006), o sujeito hodierno seria não tanto a imagem do consumismo ou

17 Benilton Bezerra Jr. define o healthism como “uma ideologia que combina um estilo de vida hedonista (maximização de prazeres e evitação de desprazeres) com uma obsessiva preocupação com práticas ascéticas cujo objetivo, longe de buscar excelência moral, elevação espiritual ou determinação política, é otimizar a vida pelo cuidado com a aparência de saúde, beleza e fitness, atendendo assim ao que parece ser a imagem do sujeito ideal atual (2002: 233-4).

113 hedonismo desvairados, mas antes do controle ascético de si. Em parte, esta também é a imagem do lutador de jiu-jitsu tornado “pitboy”. Pois a ele não seria possível envolver-se frequentemente em brigas e pancadarias sem a necessária confiança em sua habilidade e potência de luta, confiança esta que só é adquirida mediante o adestramento do próprio corpo em treinamentos exaustivos. A idéia de que jovens cariocas de classe média e alta se valem da racionalidade e da constante peritagem de si durante a adoção de um comportamento tido como transgressor ou desviante, foi anteriormente explorada por Almeida e Eugenio (2006) em um estudo sobre o consumo de drogas sintéticas em festas raves e boates do Rio de Janeiro. As autoras demonstram como o tradicional discurso que procura explicar o uso de drogas – ancorado em noções negativistas como “fuga da realidade” ou perda de si – não se aplica no caso do universo pesquisado. Pois, no trabalho de campo, não se depararam com jovens desejosos de renúncia ao mundo à sua volta, mas justo o inverso: jovens que buscavam o acesso à intensidade do momento, a potencialização das sensações corpóreas vividas no instante. Mais ainda, constataram que o consumo de ecsasty é feito segundo um código pragmático de gerenciamento da experiência: há que se saber (ou aprender) o ambiente certo para ingerir a droga, a dose a ser consumida, o horário apropriado, bem como conhecer inúmeros “macetes” indispensáveis à perfeita fruição de seus efeitos, a saber, evitar o consumo de álcool, beber água para compensar a desidratação causada pela elevação da temperatura corpórea, mascar chiclete para aliviar os dentes “trincados” etc. Algo de semelhante pode ser dito no caso dos “pitboys”, não apenas em função da aquisição da competência técnica, do uso calculado do corpo, do trabalho de gerenciamento de si, ou ainda da premeditação do comportamento transgressivo, mas também e sobretudo em função da procura pela intensidade vivida no instante – a diversão, a excitação do risco, a adrenalina.

Uma vez fomos numa festa grandona lá na Barra. Tava eu, o Márcio, o Claudio, o André. Aí na saída, mó galera, né, e tal, inclusive tava o Fulano e o Beltrano [cita os nomes de dois conhecidos lutadores atuais de vale tudo, um deles membro da família Gracie; na época do relato, contudo, eram adolescentes]. Tinha uma galera. E de repente passa um cara jogando bola, e o André chegou e saiu correndo pra brincar de bola com o cara, mas o cara dá um “come” [drible] no André. O André é ruim de bola. Aí ele vai e “come” no André de novo. Aí

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neguinho sacaneia “ahhhh, André!”. Aí daqui a pouco o André sai puto atrás do cara, dá um chute na perna do cara, e ele reclama “pô, quê isso, quê isso...” e bota a bola debaixo do braço, “não, pára com isso”. Aí meio que morreu a parada. Aí a gente viu que os amigos do tal cara iam “juntar” o André, só que eles não viram que o André tava com a gente. Aí um cara começou a discussão com o André, e nós chegamos “que porra é essa, vocês vão querer juntar o nosso camarada?”. Aí os caras já amansaram totalmente, e nisso que os caras já amansaram totalmente o Fulano [hoje lutador de vale-tudo] saca um protetor de boca, botou o protetor lá e eu falei “porra, tu veio preparado mesmo pra parada, que marra é essa...”. Botou o protetor de boca dele, aí chegou o [outro atleta que hoje luta vale-tudo, da família Gracie]. Já tinha meio que morrido a confusão, os caras viram que não iam juntar o André, e ele também não queria brigar. Aí o Gracie chega colando uma cotovelada na cara de um deles, abriu um corte, e aí neguinho se empolgou e começou a bater nos caras. Dessa vez eu nem me meti, só fiquei olhando. Porque ali não tinha razão... Eu não gosto dessas covardias. Os caras brigaram, pá, pá, pá, aí sairam correndo, e neguinho saiu correndo atrás do caras, e eu falei “caralho, quê isso!”, correndo atrás dos caras no estacionamento... Aí os malucos entraram no carro, ligaram o carro, sairam meio que cantando pneu, sairam meio que passando perto de um amigo nosso, “caralho, queria me atropelar!”, aí neguinho botando mais pilha ainda, só que chegou na hora de pagar o estacionamento, tinha fila... Mermão... Neguinho chegou e des-tru-iu o carro dos caras, brother... Neguinho estourou o vidro do carro, neguinho chutando os vidros do carro, as lanternas, batendo nos caras dentro do carro, quebrando tudo, pau, pau, pau! Mas como os caras nem sairam, neguinho não machucou tanto os caras. Mas, porra, quê isso? Sem razão. Lá atrás, por causa de uma bola... Foi foda. Do nada. (João, 35 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Emoção e risco

Quando a briga parece inevitável, prestes a explodir, o jovem tira do bolso um protetor de boca, desses que se usam em lutas de boxe. Coloca-o: está pronto para o confronto. Para além da óbvia constatação de que o rapaz saiu de casa já com o intuito de se envolver em uma briga, o espanto: ele o faz com um grau inimaginado de expertise. Ciente dos riscos, mas disposto a corrê-los, ele emprega um recurso inusitado, para dizer o mínimo, a fim de garantir a si próprio alguma proteção. Caso a porrada termine por lhe ser desfavorável, poderá voltar para casa com um corte no supercílio, um nariz que sangra, um olho inchado. Mas os dentes haverão de permanecer intactos. Featherstone refere-se ao conceito de Wouters (1987) de “descontrole controlado das emoções” como um “nível superior de controle das emoções” (Featherstone, 1995: 116)18. Com isso, dá a entender que tal descontrole se passa

18 É pertinente notar que Elias utiliza a mesma expressão, com conotação semelhante, para se referir ao esporte: “Um dos principais traços fisionómicos das sociedades altamente diferenciadas

115 apenas na superfície: sua condição de possibilidade, aquilo que o permite e autoriza, é na verdade sua antítese, a capacidade de gerência de si. Colocar-se à prova, jogando com os limites das próprias emoções e tateando suas regiões fronteiriças, exige um sujeito competente em termos de autocontrole emocional, um sujeito que confie em si mesmo a ponto de se permitir tal comportamento. A idéia é útil para se pensar o problema da violência associada aos “pitboys”, por razões diversas. De saída, a ressalva: não se trata aqui de procurar em dispositivos psicológicos as motivações ou raízes de fatos sociais. O cálculo e a racionalidade envolvidos no “descontrole controlado das emoções” são, como espero haver demonstrado, socialmente construídos. Além disso, vale observar que este descontrole não é assim tão descontrolado muito em função de fatores externos ao sujeito. É raro o jovem lutador meter-se sozinho numa briga, como se verá nos depoimentos de ex-praticantes de jiu-jitsu e seguranças de casas noturnas. Normalmente, ele está acompanhado de uma “galera”19, cuja influência em sua vida é num certo sentido contraditória.

A: Naquela época, rolava muita pressão da galera da academia para você sair junto com eles, arrumar confusão em boate, essas coisas? Túlio: Cara, com quinze anos você é muito influenciável, você não consegue contestar dez pessoas assim, na cara, você não consegue chegar lá e argumentar porque... Tem a pessoa que sabe o que é certo e errado, e sai fora. Mas essas assim eram poucas, e acabavam sendo excluídas. A maioria das pessoas era influenciável, eu várias vezes acabei indo fazer merda com a galera e dizia “vou ficar olhando só”. Pura babaquice, porque se você tá olhando, você tá participando, é crime, se você for ver lá no código penal, é crime. (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

e abastadas do nosso tempo é o facto de apresentarem uma variedade de actividades de lazer superior a qualquer outra sociedade que se possa imaginar. Muitas dessas ocupações de lazer, entre as quais o desporto nas suas formas de prática ou de espetáculo, são então consideradas como meios de produzir um descontrolo de emoções agradável e controlado. Com frequência, elas oferecem (embora nem sempre) tensões miméticas agradáveis que conduzem a uma excitação crescente e a um clímax de sentimentos de êxtase, com a ajuda dos quais a tensão pode ser resolvida com facilidade (...) (Elias, 1997: 73; grifo meu). 19 Há uma preocupação metodológica que não deve ser desprezada aqui. Como assinala Magnani (2000), é preciso tomar o cuidado de não observar uma “tribo urbana” como estando isolada de todas as demais redes de interações e relações sociais; há que se considerar os múltiplos pertencimentos dentro dos quais se insere um indivíduo de uma grande cidade. Neste sentido, o jovem “pitboy” não é exclusivamente “pitboy” em tempo integral: ele deverá ser, por exemplo, também um integrante de uma torcida organizada, frequentador de um determinado point de praia etc. Se não averiguamos com maior profundidade tais interseções, não foi por ignorá-las, mas por falta de espaço e tempo: um tal esforço excederia em muito as possibilidades desta dissertação.

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Por um lado, a galera contribui para expor o jovem a riscos, pois, para ser aceito, ele deverá constantemente provar-se um “casca-grossa”. Mas uma vez acolhido, o indivíduo passa a contar com a galera como um mecanismo de proteção. Ao se envolver numa briga, o jovem sabe que contará com a apoio dos amigos caso as coisas se compliquem seriamente. Há sempre a possibilidade de se machucar, é claro, mas não há o risco de não ser ajudado numa situação realmente difícil: se estiver “apanhando” demais, os amigos hão de interceder e decretar o fim da briga. E caso sofra um infortúnio ainda maior – digamos, ser linchado por um outro grupo rival –, não faltarão punhos dispostos a vingá-lo. “Galera”, assim, é também sinônimo de segurança20. Com efeito, o rapaz que sai à noite para se divertir portando no bolso da calça jeans um protetor de boca, este rapaz está antes de mais nada disposto a experimentar (e superar) o medo, a agitação nervosa que atravessa os instantes imediatamente anteriores ao início da briga, ali onde reside a incerteza, onde as possibilidades ainda estão em aberto. O script tantas vezes ensaiado pode afinal cumprir-se: o rapaz deverá tentar um ou dois socos, encurtar a distância e levar seu adversário ao chão para então subjugá-lo, esmurrando-o impiedosamente ou fazendo-o desmaiar por meio de um estrangulamento. Mas tal desfecho, neste estágio, não é de todo certo, embora seja provável. Algo pode sair “errado”: o adversário pode lhe acertar um golpe decisivo e certeiro – uma cotovelada na têmpora, um soco na ponta do queixo –, que o faça tombar desacordado. Isto, até o mais hábil lutador de jiu-jitsu é obrigado a reconhecer. A consciência do perigo da derrota, da possibilidade do fracasso, é comprovada pela própria necessidade de carregar consigo o protetor de boca. Toda vez que está prestes a começar uma briga, toda vez em que se coloca na situação de estarem os punhos, os seus e os de seu oponente, cerrados, esperando apenas a decisão de fazer o primeiro movimento, o rapaz sabe-se correndo um

20 Mas é forçoso reconhecer que hoje a situação não é mais a mesma. O aumento da incidência de crimes com armas de fogo contibuiu para mudar substancialmente o quadro. Veja-se, por exemplo, o seguinte depoimento: “Eu andava com muita gente esquentada, eu participei de muita briga, muita briga mesmo. E era esquentado também, às vezes... E as pessoas eram esquentadas também, todo mundo era esquentado naquela época. Mas era uma época também que eu acho que não tinha muito esse negócio de tiro, facada, que hoje em dia é uma coisa muito maior. Era mais aquela coisa de se estressar por causa de mulher, a minha mulher, a sua mulher, blá, blá, blá, trocava umas porradas, uns tapas e no dia seguinte tudo bem. Era mais o negócio de briga mesmo”. (Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

117 risco21. O exato momento que antecede o início da porrada, que de algum modo requer o desencadeamento de uma tempestade emocional furiosa, contém algo de paradoxal: se se deixar conduzir pela raiva cega, pelo desejo e ambição de triturar seu oponente o quanto antes – concentrando-se exclusivamente nos fins, não nos meios –, o rapaz arrisca botar tudo a perder. Ele deverá, assim, manter sob estrito controle o descontrole de suas emoções, tarefa de resto facilitada pela prévia introjeção de um saber corporalmente apreendido que aflora, automático, no decorrer da luta. O recurso ao protetor de boca revela, a um só tempo, a vontade premeditada de “sair na porrada” e o medo em fazê-lo quando a hora chegar. Expõe a consciência da disposição de praticar a violência e a consciência do receio em sofrê-la. Mas é senão esta última – a consciência que se liga ao medo, ao risco, ao azar, ao imponderável – que seduz e estimula o lutador. Sem a excitação do risco, brigar não teria graça22. E o risco, segundo José Machado Pais,

...pode ser um recurso usado para transcender a natureza anódina do cotidiano. (...) Um risco toma-se, não surge por acaso. Implica um desafio, uma escolha ativa baseada no cálculo ou na confiança; uma avalização dos limites que separam o sucesso do insucesso. Por isso, o risco funciona como uma espécie de “filtro hermenêutico” dos atos a que se relacionam (Pais, 2006: 11-12).

Como assinala Rodrigues (2006), o gosto pelo desafio adquire sentido quando se observa o fascínio que os homens demonstram em submeterem-se à provações extremadas, a ultrapassarem limites e convenções. Numa equação, poder-se-ia dizer: quanto maior o risco, maior o feito, maior o reconhecimento que dele se extrai.

Por representarem simbolicamente limites, fronteiras entre o social comum e o cósmico extraordinário, as ousadias materializadas nas provações físicas, nos exageros, nos transes, nas abstinências, nos êxtases, nas viagens, nos retiros e reclusões, nos silêncios impostos, nas mortes simbólicas ou reais... muitas vezes figuram de modo positivo nos mitos e nos rituais de constituição dos poderes e dos poderosos. A experiência simbólica dos limites é fonte de poder. (Rodrigues, 2006: 166; grifo meu.)

21 Agradeço ao prof. Luiz Eduardo Soares por haver chamado minha atenção sobre este ponto. 22 Duas ressalvas. A primeira é que o uso do termo “graça”, que remete à diversão, ao prazer, é proposital. (Veremos, na sequência, o porquê). A segunda é que a presente reflexão sobre a adoção de práticas arriscadas é largamente inspirada, para dizer o mínimo, em estudo do prof. José Carlos Rodrigues (2006) sobre os “pingentes”, os assim chamados “surfistas de trem” cariocas.

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Nesse ponto, caberia perguntar: e o que há de racional nisso? Precisamente nada. Mas a relação entre segurança e risco não é tão antagônica quanto faz parecer. Acaso não vivemos em meio a uma epidemia de obsessão pelo bem estar – planos de saúde, vitaminas, dietas, cirurgias plásticas, terapias variadas etc. – ao mesmo tempo em que assistimos à popularização de esportes ditos radicais, como o rafting (canoagem em corredeiras), base jumping (salto de pára-quedas de prédios e penhascos), bungee jumping (salto de pontes com o uso de elásticos), tow in surfing (surfe em ondas gigantes, possível apenas com o auxílio de jet skis), etc.? (Rodrigues, 2006). Outro modo de colocar a questão é avaliar a relação entre a busca da extensividade, isto é, o desejo de prolongar a vida ao máximo, e a procura por intensividade, que privilegia o momento e a fruição do instante em detrimento dos impactos negativos a longo prazo. Mais uma vez, onde se esperaria antagonismo, encontramos complementaridade. Os surfistas deslizam por sobre vagalhões oceânicos de até trinta metros de altura, mas o fazem com pranchas criadas com material de última geração, coletes especiais que incluem reserva de oxigênio e uma equipe de resgate de jet skis e helicópteros. Jovens cariocas de classe média e alta consomem drogas sintéticas cujos danos ao cérebro são suficientemente conhecidos e alardeados, mas de maneira geral o fazem tomando todos os cuidados para não perder “a linha” e o emprego23. “Pitboys” promovem brigas e pancadarias, mas, da mesma forma, o fazem no mais das vezes de modo a garantir para si razoável nível de proteção ou segurança. No ato de “sair na porrada”, a adrenalina se conjuga com a frieza, o cálculo e a competência se confundem com a experiência simbólica, o investimento na intensividade não anula a preocupação com a extensividade. Em suma, razão e emoção não divergem, coincidem. O que nos remete ao trabalho de Eric Dunning, realizado com Norbert Elias. Dunning distingue dois tipos de violência: a violência racional ou instrumental, “meio de assegurar a realização de um objetivo dado”, e a violência afetiva ou expressiva, “subordinada a ‘um fim em si mesmo’ emocionalmente agradável e satisfatório” (Dunning, 1997: 330). Pretendo argumentar que a violência praticada por “pitboys” é simultaneamente racional e

23 Almeida e Eugenio (2006) destacam dois importantes aspectos do gerenciamento de si que informam o uso de ecsasty entre jovens cariocas. O primeiro, que na gíria é referido como “perder a linha”, é o absoluto repúdio a qualquer sinal exterior que denote exagero na dose (“ficar com os olhos revirando”) ou a inexperiência em suportar ou saber aproveitar os efeitos da droga (“bad trip”). O segundo é o cálculo do uso da droga de modo a não compremeter a vida profissional do usuário (por exemplo, não tomar ecsasty em dia de semana ou no domingo).

119 afetiva, instrumental e expressiva. Racional e instrumental porque é de fato um meio de alcançar um determinado objetivo – vingar a namorada desrespeitada, sair de uma boate sem pagar a bebida consumida, provar-se mais homem que os outros homens e assim por diante. Expressiva e afetiva porque, como veremos, apresenta-se também como um fim em si mesmo – divertir-se.

A: E o pessoal gostava de sair todo mundo junto para dar porrada nos outros? Rogério: Tinha aquela questão de galera, tanto de academia quanto de bairro. Na época tinha modinha de galera. “Ah, vamos pegar os caras de Botafogo”. Eu nunca fui de me envolver muito nisso não. Mas tinha muito esse lance de sair na porrada na night. E normalmente quem saía na porrada na night era galera de jiu- jitsu, justamente por causa desse lance de se achar macho. Chegava lá, “achava que era maneiro sair cobrindo o cara de porrada, dar cabeçada, dar baiana, jogar o cara na mesa”. (Rogério, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Diversão: a “guerra”e o jogo

Assim como o cálculo e a racionalidade se fazem presentes não apenas no momento da briga, mas antes no interior da academia, também o componente afetivo atravessa, primeiro, o treinamento. No início dos anos 90, época em que o jiu-jitsu popularizou-se, a simulação da porrada nos treinos era, para muitos lutadores, uma prática sobretudo lúdica. Apesar dos potenciais riscos, de contusão ou derrota, “taparias” e “bloqueios” não podem ser corretamente entendidas sem que se observe a atmosfera prazerosa que as envolvia.

Treinei algumas vezes vale-tudo com o pessoal da Carlson Gracie. Eles faziam treino de vale-tudo nos finais de semana, às vezes me chamavam pra ir porque eu também tinha feito boxe e muai thai. Os caras ficavam amarradões, porque eles queriam alguém que soubesse socar, pra bater neles. Cara, era o seguinte. Era de sunga, eles botavam luva em mim e eu tinha que largar a mão neles, e eles tinham que me imobilizar só usando o jiu-jitsu. Era basicamente isso. E como eu tinha noção de jiu-jitsu e sabia mais ou menos o quê eles iam fazer, eu era um bom treino pra eles. Não era bobo no jiu-jitsu, e sabia bater. (Lucas, 32 anos, ex- lutador de jiu-jitsu.)

Acontecia também de grupos de amigos reunirem-se, nos finais de semana, para simularem lutas de vale-tudo em tatames improvisados na área de lazer de algum prédio ou casa de um dos integrantes:

Às vezes a gente até combinava no final de semana, tinha um tatame aqui em casa, e o pessoal vinha e o pau comia, era “taparia” direto... Até que uma vez o meu pai

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chegou de fora, e trouxe umas luvinhas, dessas de vale-tudo, que você consegue segurar, porque deixa os dedos soltos. Aí, mermão, aí foi a festa. Dava pra socar e pra segurar, botava o tatame e treinava porrada. Era a diversão da galera, né. Uma vez a gente chegou até a armar um mini-campeonato de vale-tudo só da galera, só entre amigos, mas acabou não rolando. (João, 35 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Um campeonato informal de vale-tudo disputado entre amigos só é possível quando todos os envolvidos vêem na simulação da porrada uma brincadeira-jogo (“play”) no sentido que lhe dá Huizinga (2005)24; uma diversão que, por mais que acirre o espírito de competição – afinal, ninguém gosta de apanhar –, não deve ser por si só suficiente para exaltar os ânimos e despertar animosidade. Segundo Huizinga, o jogo é anterior à cultura e também superior e autônomo em relação a ela25, o que todavia não significa que uma forma específica de brincadeira-jogo, como esta a que procuro observar, não possa se desenvolver em função de disposições sociais ou culturais historicamente determinadas. Dizer o oposto seria dizer que o elemento lúdico que permeia a relação de lutadores de jiu-jitsu e “pitboys” com a briga estaria desde sempre absolutamente inscrito em algo como uma “natureza humana”, não sendo em nenhuma medida um construto cultural. O jogo é uma função significante; tem um determinado sentido. No jogo, há sempre algo “em jogo”, que “transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação” (ibidem: 4). O jogo, contudo, é irracional: suas principais características, afirma Huizinga, residem na intensidade da prática, no poder de fascinação que ela exerce e no divertimento que proporciona aos que dela participam. A intensidade a fascinação não nos soam muito estranhas como qualidades inerentes à um confronto violento, como no caso de uma briga. Temos maior dificuldade, no entanto, em aceitar a idéia de que nela possa haver divertimento. Mas é exatamente isto o que se passa:

A: Como é que eram os papos, as conversas dentro da academia? Vocês falavam sobre as porradas que aconteciam?

24 Ao trazer Huizinga para a presente discussão, meu objetivo é tão somente mobilizar suas idéias sobre as características fundamentais do jogo para pensar a prática da porrada entre “pitboys”. Portanto, deixarei de lado suas observações a respeito da tranformação sofrida pelo jogo nas sociedades modernas, criticadas, aliás, por Elias e Dunning (1997). De acordo com estes autores, Huizinga não teria efetuado “nenhuma tentativa para analisar a sociogénese desta suposta transformação, nem para a relacionar rigorosamente com as suas fontes sociais estruturais” (Elias e Dunning, 1997: 309). 25 “Os animais”, afirma, “não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica” (Huizinga, 2005: 3).

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Marcelo: Sabe o que eu me lembro? Eu me lembro de papos assim: “A noite foi irada. Peguei três mulher e saí na porrada”. Tipo foi o auge da noite, entendeu? Pegou três mulher e saiu na porrada! [risos] Se só tivesse pegado três mulher, sem sair na porrada, não era tão legal. Então, a porradaria era uma coisa importantíssima, assim. É muito doido. (Marcelo, 30 anos, faixa-preta de jiu-jitsu.)

O principal do relato, segundo me parece, é este “o auge da noite”. O auge é o clímax, o momento de maior excitação, o gozo. O dado que de imediato chama a atenção é o prazer, a satisfação retirada da prática da violência. Porém, note-se: trata-se de um elemento lúdico no interior de uma atividade mais ampla, lúdica em toda sua extensão, a noitada. Não há como entender a briga destacada deste que é seu contexto imediato. Ela é parte de um roteiro de diversão noturna que inclui mulheres (o plural aqui respeitando a fala do entrevistado), bebidas e, eventualmente, toda sorte de atos de vandalismo, tudo isso fazendo parte daquilo que os jovens chamam simplesmente de “zoação”. Não foi sem razão que um dos entrevistados, sem que eu houvesse dito ou insinuado nada a respeito, contou o seguinte episódio:

Porra, a gente fazia muita merda! Pichava muro de neguinho, pulava de prédio em prédio... Numa dessas, todo mundo quietinho, tava pulando o muro pra invadir um prédio, quando de repente, sei lá se a grade tava mais pra fora, o cara começa a gemer “uhhhhhh, ahhhhhh” e todo mundo “cala a boca, porra!” [risos]. O cara continuava “uoooohhhhhhh”, e nego fazia “shiiiiii, fica quieto porra! Tá maluco?”. Mermão, a parada foi a seguinte, eu só vi a calça jeans do cara ficando marrom, tava manchando, parecia que tinha cagado nas calças. O cara espetou o saco na parada! Espetou o saco no ferrinho da grade... [mais risos] A gente caiu fora e avisou pro porteiro “aí, tem um cara com o saco preso, enganchado lá na grade, ajuda lá”. (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Em outra ocasião, perguntei se não acontecia também de a “galera” sair para “zoar” com prostitutas e homossexuais:

Ah, isso rolava também. Tinha um amigo meu que era mestre nessa merda. Eu tava dentro do carro uma vez com ele, quando ele se pendurou pro lado de fora e encheu as costas de um cara com uma “tapetada”. [A “tapetada” consiste em enrolar o tapete de borracha do chão do automóvel e usá-lo como um porrete.] Não era nem puta não, era um maluco num ponto de ônibus, em pé, voltando da noitada. Tomou uma senhora “tapetada” nas costas e gritou “aaaahhhhhh”. Mas, porra, isso não é maneiro. Você agredir assim, por nada... E teve uma outra vez também, neguinho encostou o carro e chamou as piranhas assim “Aí, chega aí”. Começaram a falar com elas e tal tal tal, aí daqui a pouco eles falaram alguma coisa pra elas colarem o rostinho perto da janela do carro... E o cara pega o extintor e rááááááááá, dá uma extintorada na cara das malucas, saqualé? Aí as mulher “arf arf arf”, tossindo mal, porra, aquela porra é tóxica, neguinho mandou

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uma extintorada na cara, como não entra? As mulher “arf, arf, arf”, passando mal ali26. (Marcos, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Nesse sentido, a porrada não seria exterior à “zoação” característica do circuito noturno de tais jovens, mas, ao contrário, parte integrante dele. Pode-se portanto dizer que a briga, no registro específico que estamos a observar, insere-se dentro de um contexto eminentemente lúdico, cujas características incluem a infixidez, o deslocamento contínuo e frenético (espécie de zapping pelas alternativas disponíveis na noite, geralmente à procura dos bares ou boates que estejam “bombando”, isto é, bem frequentados), a comunicação regida por princípios de fisicalidade (“chegar” nas mulheres, “pegar” as mulheres), a disposição constante de “ir para a guerra”, ou seja, comportar-se de modo a beijar o maior número possível de bocas na mesma noite (Almeida e Tracy, 2003). Esta última metáfora, a da guerra,

sintetiza de modo radical o modus operandi das subjetividades atravessadas pelos regimes da fisicalidade. Nessas circunstâncias, afetos são disparados, olhares e toques físicos convertem-se em armas de guerras. A “máquina de guerra nômade” atinge sua intensidade paroxística através dos agenciamentos afetivos, que culminam na prática da “pegação”. Boate é essencialmente “pegação”, é guerra, esgrima e combate de olhares, aproximações entre massas corporais, projéteis disparados, arremessos. No setting das espacialidades da night, enfim, as economias internas e suas formas de inteligibilidade são balizadas pela condição de “guerra permanente” (Almeida e Tracy, 2003: 91).

Não se trata de entender a “guerra” como um estado de espírito belicoso e sempre alerta, mas antes como uma disposição em atirar-se, em tentar interações diversas e ousadas sem receio ou pudor, tudo estando regido pelo princípio da

26 Por coincidência, os jornais cariocas de 5 de novembro (2007) noticiaram um caso semelhante de agressão a prostitutas, ocorrido na Barra da Tijuca. O site do jornal O Globo informa que um grupo de rapazes teria jogado fumaça de extintor de incêndio em prostitutas e travestis da avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca: “Os jovens contaram na 16ª DP (Barra da Tijuca) que queriam se divertir assustando as prostitutas. (…) Quando elas se aproximaram do veículo, eles lançaram o pó do extintor de incêndio. Os três disseram que estão arrependidos. ‘Nós fizemos uma coisa muito errada e estamos arrependidos. Até pedimos desculpas a elas lá fora (em frente à delegacia). Mas não agredimos ninguém. Somos bem diferentes daqueles caras que agrediram uma mulher há algum tempo por que acharam que ela era prostituta [refere-se ao episódio da doméstica Sirley Dias]. A gente está careta. Não bebemos nada e nem estamos drogados, fizemos foi uma enorme besteira’, disse Fernando, que dirigia seu carro, um Fiesta, quando ocorreu o crime. Já o pai de Fernando teve uma atitude bem diferente. Para ele, os jovens ‘não fizeram nada demais’: ‘Eles não fizeram nada demais, tem gente que faz coisa pior. Foi apenas uma brincadeira de crianças. Qualquer um já passou por isso quando adolescente. Não entendo por que os jornalistas estão interessados nessa história’, disse o pai, que também se chama Fernando.” (Fonte: site do jornal O Globo, publicado em 5/11/2007.)

123 fisicalidade. Mas o clima de aventura, de roleta russa afetiva, não deixa de incluir um prazer pelo risco, um gosto pelo desafio. Assim, que melhor coroação para uma noite de “guerra” bem sucedida – três, quatro mulheres? – do que uma boa porrada? O grand finale, para não deixar dúvidas: a afirmação paroxística da própria potência e virilidade, a confirmação do status do macho dominante. O auge da noite.

O fulano [diz o nome de um jovem membro da família Gracie] era um cara que começava uma briga por nada. Via que tava uma rolando um bate-boca, chegava e dizia “vamos começar logo essa porra” e bum!, colava uma porrada na cara de um, e aí começava a brigar geral. Uma vez ele falou abertamente pra mim, cara, a gente tava numa casa de praia, e neguinho conversando e dizendo pra ele “porra mermão, tem que parar de brigar, tem que parar com essa história, tá mandando mal, tá queimando filme”. E ele falou “porra cara, vocês não gostam de sair na night pra pegar mulher? Então, eu gosto de sair pra brigar, eu gosto de brigar”. Isso ficou na minha cabeça. (João, 35 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)

Como foi dito, “ir para a guerra”, em ambos os sentidos, implica em correr riscos. Em toda guerra, em toda brincadeira-jogo, o elemento de tensão ocupa um papel importante, posto que tensão significa incerteza, acaso. As qualidades do jogador-guerreiro são postas à prova, e nisso reside boa parte do atrativo da “guerra”. “A essência do espírito lúdico”, assevera Huizinga, “é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e a tensão. A tensão aumenta a importância do jogo, e esta intensificação permite ao jogador esquecer que está apenas jogando” (Huizinga, 2005: 59). Mas como pode um sujeito que confessa explicitamente gostar de sair para brigar, de ferir pelo prazer de ferir, estar “apenas” brincando ou jogando? Como pode a barbárie ser lúdica? A brincadeira-jogo não seria, por definição, oposta à seriedade? De fato, o jogo é diemetralmente oposto à seriedade. Isso, contudo, não significa nem que o jogo é necessariamente cômico, nem que algumas de suas formas não possam ser sérias, ou envoltas em sisudez. “ O jogo é um combate e um combate é um jogo. (...) O fato é que é possível um jogo ser mortal sem por isso deixar de ser um jogo, o que constitui mais uma razão para não se estabelecer separação entre os conceitos de jogo e de competição” (Huizinga, 2005: 47). Não é por outro motivo que muitas das histórias de brigas e pancadarias me foram contadas com um misto de leveza e descontração. Inúmeras vezes os entrevistados desandavam a rir durante os relatos.

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A: Conta aí mais alguma história de briga. Lucas: Teve uma outra confusão também muito engraçada. Aconteceu na frente da academia com um faixa preta nosso, pirado da cabeça, todo estressado, pequenininho, mas bom de briga. Tava se estressando com um ônibus, “num sei o que, vai tomar no cu”, fechou o ônibus, saiu do carro, parou o trânsito. “Desce aí, mermão, desce aí que eu vou enfiar a porrada, não sei o quê”. Porra, era o ônibus da polícia federal, cara! Os caras desceram, “como é que é?”, “tu vai dar porrada em quem?”. Tipo, levaram o cara pra delegacia, ficou horas na delegacia, esculacharam ele, tomou tapa na cabeça, se ferrou todo. Mas é uma história que as pessoas “riam muito”. (Lucas, 32 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Resumindo o que foi dito até aqui, o jogo é irracional, mas jogado racionalmente. É uma prática lúdica, porém nada impede que seja séria e competitiva. Fascina e diverte, apesar (ou por causa) da tensão que a atravessa. Mas há outras qualidades distintivas do jogo que, segundo Huizinga, são igualmente importantes, a saber: o jogo é desinteressado: a satisfação obtida advém da própria realização do jogo; o jogo é levado a cabo dentro de um determinado espaço, durante um determinado tempo, ambos isolados da vida cotidiana; o jogo tende a criar um sentido de comunidade, que permanece mesmo depois de acabado o jogo; o jogo é uma atividade livre, voluntária; o jogo “cria ordem e é ordem” (ibidem: 13), isto é, exige uma ordem cuja desobediência implica em seu encerramento ou dissolução. Todas estas qualidades estão presentes na porrada tal como praticada por “pitboys”. Pois a porrada pode ser exercida de livre e espontânea vontade, apenas pelo prazer de “sair na porrada”; está geralmente inscrita num contexto lúdico e festivo (a “guerra”, a noitada), que escapa ao cotidiano; favorece um sentimento de pertencimento à uma determinada “tribo”; e por último, mas não menos importante, a porrada é sim regida por regras, pelo menos idealmente. Há uma espécie de código de honra tácito que envolve a porrada, e o fato de que seja muitas vezes desrespeitado não significa que não imponha certos constrangimentos. O primeiro e mais óbvio exemplo envolve uma distinção de gênero: mulheres brigam agarrando-se umas aos cabelos das outras, e arranhando- se mutuamente. Homens, não. Homens utilizam mãos, cotovelos, joelhos, pés e a própria testa para golpear. Daí que puxar o cabelo do adversário ou arranhá-lo é uma prática mal vista, considerada quase como um recurso desesperado, uma “apelação”. Em termos ideais – é bom que isso seja frisado –, a porrada é quase como um duelo, dado que requer mínima igualdade de condições entre os contendores. (É quase desnecessário lembrar que a porrada só se desenrola sem o

125 recurso à uma arma, branca ou de fogo: se se sacar de uma arma, acaba a porrada.) A diferença de tamanho entre os envolvidos é aceitável: o magro pode desafiar o corpulento, e vice-versa, desde que a discrepância não seja escandalosa. O que não pode haver é superioridade ou inferioridade numérica de alguma parte. O “mano a mano”, como se diz na gíria nativa, é um suposto fundamental da porrada. Se dois ou mais indivíduos se unirem para agredir apenas um, a ação resultante não será entendida como uma porrada, mas antes como uma covardia que, ao contrário de afirmar a masculinidade dos brigões, a mancha e desacredita27. Mais: a briga “justa” deve iniciar de forma também “justa”. Para ser inteiramente aceitável, ou isenta de críticas e objeções quanto à sua legitimidade, a briga não deve nunca iniciar (ou, em alguns casos, acabar) com uma “emboscada”, um golpe que atinja o adversário desprevenido. A isto – um soco pelas costas, um “mata-leão” de surpresa –, chamam de “crocodilagem”, também uma forma de covardia, um indício de fraqueza. Estes dois pontos ficaram bastante nítidos em várias das histórias de brigas contadas nas entrevistas. Destaco a seguir os dois melhores exemplos:

O Bruno era porradeiro, mas nunca fez jiu-jitsu. Fazia . Sempre foi contra o jiu-jitsu. Teve uma porrada dele antológica. Foi irada. Parecia filme, tipo Van Damme. A galera do colégio, tinha a galera do bem e a galera do mal. A galera do bem era do bem porque era a nossa, e a outra era a galera do mal. A gente tava no Resumo da Ópera, aí passa a galera do mal na nossa frente, e o maluco assim ó [empina o nariz], todo cheio de marra. Depois a gente descobriu que eles eram a galera do bem e a gente que era do mal. Mas enfim. Aí o Bruno gritou: “Mas que ridículo, hahahaha!” Aí o maluco: “Tá falando com quem, mermão?” “Tô falando contigo mesmo, cumpadi”. Começou aquele empurra, “vai se fuder!”, pá rá rá, o [judoca, hoje bastante conhecido] Flávio Canto separou: “Vocês não vão brigar aqui não, vão pegar mulher, porra!”. Aí veio o segurança e expulsou todo mundo. Aí expulsou todo mundo e neguinho falou “ah, mermão, agora a porrada vai comer”. A gente tava com uma galera, os caras tavam a galera deles, mas nego se respeitou e tal, e aí nego começou a falar: “ Aí ó, ninguém vai juntar!, ninguém vai juntar!”. Abriu uma roda, chovendo pra caralho, todo mundo molhado, abriu uma roda, neguinho gritando “bora Bruno, bora!”. E além de capoeira, o Bruno

27 Assim, poder-se-ia dizer que, no caso da agressão sofrida pela doméstica Sirley Dias, apesar dos cinco rapazes terem “dado porrada” na vítima, o ato em si não constitui “uma porrada” no sentido em que estou propondo. Se tivessem voltado para casa sem serem descobertos, os agressores não diriam depois aos seus amigos algo como “ontem nós saímos na porrada com uma puta num ponto de ônibus”. Eles diriam “ontem nós enfiamos a porrada numa puta”, ou simplesmente “ontem nós ‘juntamos’ uma puta...” .“Juntar”, na gíria, é o ato de muitas pessoas agredirem uma só, normalmente mal visto entre praticantes de jiu-jitsu, pelo menos em teoria. Afirmam que aqueles que “juntam” alguém na verdade não se “garantem” individualmente. Há portanto uma distinção: “dar porrada” é simplesmente bater em alguém, o que pode ser feito de forma covarde; “entrar na porrada” é o contrário: apanhar, levar a pior; e “sair na porrada” refere-se a uma briga com qualidades de duelo, embora se possa dizer também que “uma galera saiu na porrada com a outra”.

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sempre foi bom pra caralho de boxe tailandês, tinha os braços compridos, a mão dele vinha no joelho, parecia um primata. Brigava bem, boa envergadura. E o cara, o cara era ruim de jiu-jitsu, era ruim de boxe. O Bruno deu uma aula de boxe, vinha e batia “um, dois, três”, e saía, depois entrava “um, dois, três”, e saía, todas as porradas estalando na cara do cara. O cara não conseguia “cinturar” ele de jeito nenhum, não conseguia levar pro chão. O cara era tão mongol que conseguiu pegar a perna do Bruno, o Bruno deu as costas pra ele, e ele não fez nada, não pegou no mata-leão, e a gente gritando “porra Bruno, não dá as costas!” Eu sei que acabou a briga, o cara não aguentava mais apanhar. Meio que pediu pra encerrar, e nego aceitou, deixou morrer a parada. O cara tava todo inchado, todo fudido, cheio de galo em tudo quanto era parte do rosto. (Eduardo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu)

Neste caso, as “galeras” se respeitaram, e a porrada fluiu dentro da “normalidade”. Apenas dois jovens se enfrentaram, e a desistência de um foi acatada pelo outro. Mas nem sempre as coisas se passam desta maneira:

Fui pra Maresias, eu, Bento e o Mateus. Já era umas seis da manhã, fomos pegar o carro. Aí passa uma picape, na caçamba tava o fulano [conhecido lutador de vale- tudo de São Paulo], aí quando passa pela gente ele dá umas porradas na lataria, pedindo pra parar. Aí parou uns quinze metros na nossa frente. Aí o cara “algum problema aí?”, e a gente “problema nenhum”. Ele “é, porque aqui não tem pra carioca não”. “A gente sabe disso, tamo aqui curtindo a noitada de vocês, respeitando a área de vocês e tal... São seis horas da manhã, tamo indo dormir, só isso”. “Não, é bom mesmo não ter problema, os cariocas são cheios de marra tal tal tal”. O fulano falou mais algumas merdas, tirou mais algumas ondas e a gente engoliu tudo. Aí nisso sai de dentro do carro um dos alunos dele, e começa a falar “aí fortinho, tu tá cheio de marra”, aí eu falei “mermão, cheio de marra o quê? Tá maluco? Só quero ir pra casa dormir, tô cansado, só isso”, aí no que eu falo isso ele “mermão o caralho, não sou teu irmão porra nenhuma” e eu “porra, qual é a parada, tá querendo arrumar confusão à toa?”, aí ele veio vindo pra cima, tentou me dar um chute, eu bloqueei, falei “não quero brigar”, aí ele veio me dar um soco, eu saí do soco, e começo a bater nele: bum! Entrei com um diretão, ele desnorteou, bum bum bum, entrei com vários socos. Já fiz jiu-jitsu anos, sei que o cara vai tentar agarrar a minha perna. Não deu outra, ele quis me agarrar e eu bum bum bum, soco soco soco, travei aqui, agarrei o cara, cotovelada nas costas dele, soco na cara, e ele não conseguia me puxar e tal, sem me tirar o equilíbrio. Aí o fulano, que tava com uma bota de gesso, chega por trás e pum!, me chuta a cara. Dá um chutão na minha cara, caralho, eu não vejo mais nada, tudo preto, eu não sei nem como eu consegui ficar de pé, só fechei a guarda e fiquei sentindo os caras me dando porrada, bum bum bum, e tudo preto, preto, preto, assim, fechado, os caras me batendo, eu não sei nem quem me bateu. Eu sei que quando eu consegui ver um vulto eu me agarrei, meti a cara no peito do cara, pra proteger, até que chegou uma galera e conseguiu separar a briga. Aí fiquei com os dois olhos roxos, não tive nenhum traumatismo craniano nem nada, mas fiquei duas semanas todo inchado. Crocodilagem. Crocodilagem. Covardia pura. Porra, chutão na cara com bota de gesso! (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Duas observações, para encerrar. Primeiro, vale notar que a porrada também se encaixa em todas as categorias de jogos propostas por Roger Caillois (1967;

127 apud Rodrigues, 2006). Ela é a um só tempo jogo de expressão (dramatização, ritualização), jogo de sorte, jogo de competição (desafio, duelo) e jogo de vertigem (que inclui sedução, fascínio). Segundo, e voltando uma vez mais a Huizinga, há um último aspecto da porrada-jogo-brincadeira que resta apreciar com maior atenção. Segundo Huizinga, a função do jogo pode ser definida por seus dois vetores fundamentais: “uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa” (Huizinga, 2005: 16; itálicos do autor). Estas duas funções, porém, podem se misturar. Um jogo pode representar uma luta, ou se tornar uma luta para representar alguma coisa. De volta à pergunta inicial: o que está em jogo durante o jogo?

Arma, Visibilidade, Respeito

À certa altura de sua introdução à “A busca da excitação”, escrito com Eric Dunning, Norbert Elias pergunta:

... o que acontece se as condições na sociedade em geral não dotam todos os sectores com formas de controlo suficientemente fortes de modo a conterem a excitação, se as tensões na sociedade em geral se tornarem tão intensas que anulem as formas de controlo individual contra a violência e, de facto, introduzem um jacto de descivilização, se induzem sectores de uma população a sentirem a violência como algo agradável? (Elias e Dunning, 1997: 88-9).

Não teria sido precisamente isto que ocorreu no Brasil a partir da década de oitenta? Ao pensar o ato de “sair na porrada” como diversão, como um jogo- brincadeira, dissemos que não se poderia entendê-lo devidamente sem que se observasse o contexto imediato – a “guerra”, a noitada –, também lúdico, no qual geralmente está inscrito. Mas é preciso observá-lo em seu contexto ainda mais amplo, que favoreceu este “jato de descivilização” de que fala Elias e que permitiu que a violência fosse sentida e praticada de forma agradável. Os sentimentos, as emoções, não obstante a mitologia romântica que se criou em torno deles, não são apenas províncias obscuras enterradas no fundo da psique individual de cada um. São também construtos sociais (Abu-Lughod e Lutz, 1990). Não haveria de ter sido mera coincidência o fato de que uma arte marcial que surgiu e se estabeleceu permeada por uma filosofia da eficiência em

128 confrontos violentos de rua tenha se tornado moda entre a juventude abastada da zona sul carioca ali no início da década de noventa. A coincidência se torna tanto mais improvável quando se tem em mente que a prática de um determinado esporte é em si mesma um mecanismo de diferenciação de classe social. Modalidades esportivas que simbolizam “a força pura, a brutalidade e a indulgência intelectual” são geralmente associadas às classes populares; outras, como o golfe e a equitação, conferem “lucros de distinção” a seus praticantes (Bourdieu, 1983: 149-150). Por esta razão, “os esportes populares mais tipicamente populares, como o boxe ou a luta livre, acumulam todas as razões para repelir os membros da classe dominante” (Bourdieu, 1983: 150). Mas este raciocínio – o de que esportes que exigem sacrifícios ao corpo, a ponto de colocá- lo em risco, são geralmente associados às classes populares –, deve ser relativizado no caso do jiu-jitsu. Nos anos noventa, grande parte dos jovens de classe média e alta do Rio de Janeiro não queria jogar tênis, golfe, ou praticar equitação. Queria lutar jiu-jitsu. É sem dúvida tentador enxergar a popularização do jiu-jitsu no Rio de Janeiro como uma resposta ao sentimento generalizado de insegurança que, desde os anos oitenta, vinha se fixando quase que diariamente nas manchetes dos jornais28. Dito de outro modo, é tentador entender o sucesso do jiu-jitsu como uma espécie de reflexo do fracasso da atuação do Estado e da fragilização de seu monopólio legítimo do uso da força. Contudo, para que uma tal afirmação pudesse ser feita de maneira rigorosa, seria necessário recolher evidências empíricas que a comprovasse. Se as classes média e alta carioca tivessem de fato passado a encarar o espaço público da cidade como um território hostil e perigoso, verdadeira “terra de ninguém”, e se em função dessa percepção houvessem instado seus filhos a praticarem uma arte marcial para aprender a se defender, então seriam duas as alternativas: ou as academias de diferentes artes marciais (judô, caratê, aikidô, kung fu, tae kwon do, hapkidô, muai thai etc.) teriam registrado um expressivo aumento do número de adeptos, o que caracterizaria um

28 Esta parece ser a perspectiva de Cecchetto, em seu trabalho “Violência e estilos de masculinidade”. À certa altura, a pesquisadora assevera que “a emergência dessas práticas [a violência de funkeiros e “pitboys”] é explicada pela identificação de um processo em curso no país: a dessensibilização da sociedade para questões referentes à vida humana e à violência. As razões localizam-se na possível fragilização do monopólio estatal da força e no crescente poder adquirido pelo crime organizado, impondo um ideal de masculinidade agressivo e destruidor” (Cecchetto, 2004: 108).

129 boom dos esportes de luta como um todo, ou, ao contrário, teriam “perdido” adeptos justamente para o jiu-jitsu. O recurso aos dados das confederações das modalidades de lutas, neste caso, mostrar-se-ia de pouca utilidade, pois a maioria dos praticantes de artes marciais não participa de campeonatos, não estando portanto oficialmente registrada. A solução consistiria em levantar, de academia em academia, o histórico dos dados referentes à flutuação do número de alunos, e compará-los. Não é difícil imaginar: quantas academias teriam produzido e arquivado um tal registro? Mas a dificuldade de se obter estes dados, ou talvez sua pouca confiabilidade, não é a razão que nos leva a deixar de lado esta hipótese. Via de regra, a lógica marxista tende a enxergar os fenômenos sociais em termos de oposição, não de complementaridade; e, para os objetivos deste trabalho, talvez fosse mais interessante ou produtivo pensar não numa atitude de reação dos jovens de classe média e alta à sensação de insegurança instalada com a ascensão do crime organizado, mas sim numa identificação destes jovens com muito do que caracteriza o comportamento e a estética dos grupos marginalizados. Em termos mais simplórios, quase vulgares, poderíamos dizer que, embutida na explosão do jiu-jitsu e no aumento da violência praticada por “pitboys” que se seguiu, estaria uma afirmação do tipo “eu (jovem de classe média e alta) quero ser como você (marginal, traficante) ”, e não algo como “eu quero me proteger de você”. Seria, por exemplo, mera coincidência, o fato de praticantes de jiu-jitsu nomearem de “baile funk” um tipo de treinamento que, como vimos, consiste na prática ritual de troca de socos, tapas e pontapés entre dois grandes grupos de jovens? Não há como subestimar o fato de que, em determinado momento, a por assim dizer cultura da favela entrou na moda, e de uma forma inédita. Ao lado do desde sempre presente samba, somaram-se o hip hop e sua denúncia de cunho social, o funk proibidão e sua apologia ao tráfico de drogas e ao sexo. As batidas e letras de artistas como Racionais MC’s, Dj Marlboro, Tati Quebra Barraco, Mr. Catra, entre outros, invadiram festas e Ipods da zona sul. No cinema, uma safra de filmes que inclui “Cidade de Deus”, “O Invasor”, “Carandiru” e “Ônibus 174”, para ficarmos apenas em alguns exemplos, derramou sobre as retinas dos espectadores novas representações sobre as favelas e a violência a ela associada. Não vou longe a ponto de dizer que a denúncia da miséria operada pelo cinema termina sempre por espetacularizar o mal, assim contribuindo inadvertidamente

130 para o aumento do fascínio que ele exerce (embora isto eventualmente possa acontecer). Da mesma forma, prefiro evitar afirmar que “vivemos em uma cultura em que o espetáculo dita as normas de cidadania, organiza as relações sociais, estabelece valores, formata as identificações” (Kehl, 2004: 103), ainda que reconheça a força e a pertinência do conceito do Debord (1997) para pensar o mundo atual. Contornando a discussão sobre o espetáculo, limito-me apenas à chamar a atenção para aquilo que mais parece mais relevante aqui: que os adolescentes de classe média e alta passaram a dispor de uma nova estética com a qual se identificar, mesmo que no mais das vezes estivessem se identificando com esterótipos veiculados na mídia e não com as manifestações culturais em si29. “Mas como toda estética comporta uma ética”, diz Maria Rita Kehl (2004: 102), “a escolha do modelo da periferia faz alguma diferença. É como se só fosse possível encontrar alternativa para a falta de sentido da vida pautada pelo consumo identificando-se com aqueles que não têm recursos para consumir”. Seria ingênuo negar a importância do consumo e da moral do espetáculo na estruturação do modo de vida nas sociedades contemporâneas (Freire Costa, 2004). Mas seria igualmente duvidoso atribuir-lhes a maior parcela da culpa no que diz respeito à formação de identidades juvenis desviantes. Não há, penso, como responsabilizar diretamente o consumismo e o espetáculo pelo fato de que meninas da zona sul tenham começado a subir os morros cariocas para manter relações sexuais e afetivas com traficantes de drogas, tampouco pelo ingresso dos filhos da classe média no mundo do crime, cujo caso mais famoso é o do bandido Pedro Dom, executado pela polícia. Como vimos, é antiga no Rio de Janeiro uma certa atmosfera de complacência ou mesmo admiração em relação a comportamentos marginais ou transgressores. O espetáculo atualizou imagens nas quais se inspirar, slogans para repetir: “Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno!”. São muitas as particularidades que diferenciam “pitboys” e excluídos tornados marginais. O tráfico de drogas é um sistema de socialização que concorre com a via normal do trabalho, da rotina levada dentro dos parâmetros da lei

29 Nesse sentido, o caso do funk parece o mais evidente. Como lembra George Yúdice (1997), após os arrastões ocorridos nas praias cariocas em outubro de 1992 a mídia não cessou de ventilar, de forma um tanto histérica, uma imagem do funk como um movimento absolutamente atrelado à violência, e nada além. Deixou, assim, de apresentá-lo em sua diversidade de facetas – por exemplo, como um “estilo de festas orgiásticas”, como havia percebido Hermano Vianna (apud Yúdice, 1997: 43).

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(Zaluar, 1985). Ao colocar uma arma na cintura, o jovem traficante declara-se publicamente um marginal, condição que em geral o acompanha até a sua morte, no mais das vezes precoce. Mas isso não impede que se pense em possíveis semelhanças de comportamento entre “pitboys” e traficantes. Senão, vejamos. Com a etnografia de Alba Zaluar (1985), aprendemos que, na favela, a facilidade em adquirir armas de fogo provoca uma reviravolta na hierarquia de autoridade: o adolescente, porque “maquinado”, isto é, dotado de um instrumento que lhe garante poder de coerção, passa a desafiar e mesmo mandar nos adultos. E o faz sem pestanejar. Ao invés de se valer da conversa macia, da lábia habilidosa, como o malandro de antanho, ele simplesmente emite uma ordem de comando, que deve ser atendida sob pena de se iniciar um conflito aberto. Ora, e não é exatamente esta uma das características mais marcantes dos “pitboys”?.30 A diferença, no caso, é que o lutador tem no próprio corpo a arma que intimida, que garante a capacidade de subjugar o Outro. Ao sacar uma arma e anunciar o assalto numa esquina qualquer, o jovem que é pobre, estigmatizado, ignorado e excluído, sai da condição de invisibilidade que lhe foi socialmente imposta, tornando-se, no momento mesmo em que faz do Outro sua vítima, um sujeito que cria a si próprio, que exige respeito e se impõe (Soares, 2004). “A arma”, escreve Luiz Eduardo Soares (2004: 141), “será o passaporte para a visibilidade”. Não apenas se fazer visível: o jovem marginal deseja também reconhecimento, que é sempre dado pelo olhar do Outro, olhar este que atua no processo de construção de sua identidade. Nesta perspectiva, traficantes e marginais diferem de “pitboys”, dado que estes são pessoas “visíveis”: não precisam bater nos outros em festas e boates para ter sua existência reconhecida socialmente. Mas talvez precisem fazê-lo para obter algum reconhecimento dentro de seu próprio grupo – para que, com o respeito conquistado através das provas de coragem e potência de luta, possam olhar a si mesmos no espelho e nele ver refletida a imagem dos elogios que lhes foram

30 São muitos os relatos que o confirmam: “pitboys” que começam brigas em boates porque não querem ficar na fila, ou que agarram mulheres à força, ou ainda que pensam estar sendo “encarados” por alguém e partem direto para a agressão. Recentemente, o jornal O Globo (5/3/2007) noticiou mais um caso que ilustra bem este ponto. Acompanhado de um amigo identificado como “Pato Rouco”, o lutador João Paulo Saraiva, ao ser barrado no pub Wood Lounge, em Niterói (o lugar estava reservado para uma festa particular), agrediu três seguranças com um pedaço de madeira, chegando a quebrar mesas e cadeiras no interior do estabelecimento.

132 dispensados. A arma de que os “pitboys” se utilizam é também o passaporte para a visibilidade.

Teve uma porrada numa boate. O cara queria porque queria brigar comigo. Eu não queria brigar com o cara. Mas ele queria, falava que eu tinha pichado a casa dele, mas era mentira. Aí chegou mó galera, ficou aquela berraria “ninguém vai juntar o cara!”. O cara chegou e botou o dedo na minha cara: “mermão, se eu não te pegar hoje eu vou te pegar em qualquer lugar”. E o cara era alto, maior que eu, só que magro. Aí eu falei “mermão, tira a mão da minha cara, cumpadi”. Quando eu falei isso, abriu um clarão, o cara veio vindo andando já assim, e eu recuando, e um amigo meu do meu lado, na minha orelha, dizendo “qualé Marcos, não corre não, não corre não, pega, pega, pega!”. Eu falei “ah, que se foda, porrada!”. Porque, imagina, época de galera, se você fugir, porra, acabou você. Ali eu tinha certeza que eu ia tomar porrada, mas pelo menos eu não ia manchar minha imagem, que não existia também, mas na epoca você pensa que tem. Enfim, resumindo, caí na porrada com o cara, me dei bem, não enfiei a porrada, mas fiquei por cima, dei uns socos na cabeça. Aí nego separou. O que aconteceu? No dia seguinte, a notícia espalhou. Virei o rei do meu bairro, os malucos sinistros babando o meu ovo, os malucos sinistros do morro pelando o meu saco, “caralho, Marcos é sinistro, eu sabia que esse moleque era bom, não sei o quê”. Porra, só faltaram me carregar no colo, maneiro pra caralho. Na semana seguinte, na mesma boate, o cara tava lá de novo. Mas tinha milhões de neguinho do meu bairro lá fora, me garantindo, entre aspas, porque na verdade eles tavam lá querendo ver confusão. Aí vem esse maluco e diz, “aê, morreu, morreu” [“morreu” significa algo como “o problema acabou” ou “está tudo bem entre nós”]. Então tipo assim: essa briga fez com que eu ficasse muito respeitado até em outros bairros. Por exemplo, tinha uma galera do Leblon que arrumava confusão com todo mundo, mas não comigo. Os caras me respeitavam, e 80% disso foi por causa daquele dia, porque o cara era maior que eu, porque eu enfrentei, eu não “peidei”. (André, 29 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

A preocupação em “não manchar a imagem” já é a construção de uma imagem. Tal como o traficante que se impõe exibindo o fuzil e a disposição constante para o enfrentamento com a polícia ou grupos rivais, o “pitboy” se faz temido e respeitado, inclusive (ao menos é o que o entrevistado alega, neste caso) entre “os malucos sinistros do morro”, através da prontidão em demonstrar valentia no uso do corpo-arma. Respeito, admiração – e regalias. Sair na porrada pode significar também vantagens impensadas para os vencedores.

Era louco, porque tinha um negócio de respeito. A gente ia muito pra Campos de Jordão. A gente tava lá uma vez e aí rolou uma briga com um menino paulista que era já famoso em São Paulo por brigar e tal. E acabou que ele se estressou com a gente lá, não sei o que, e era uma época que não ia muito carioca pra Campos de Jordão. Aí rolou uma porradaria fenomenal, não sei o que, botaram a gente pra fora, rolou porradaria na chuva. Um amigo meu que estava comigo acabou enfiando a porrada nesse cara, que era até muito maior que ele. Aí todo mundo ficou, tipo assim, encantado pela gente, porque parece que o cara era um saco em

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São Paulo, entendeu, o cara perturbava todo mundo. A gente ficou uns quinze dias lá “de patrão”, todo mundo tratando a gente bem. E a boate em Campos de Jordão era muito cara, e a gente não pagava mais, os seguranças botavam a gente pra dentro de graça. (Rafael, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Como se vê, a porrada não é apenas fonte de diversão, excitação. É também fonte de lucros de distinção. Luiz Eduardo Soares assinala que “ainda que por motivos ilusórios e passageiros, o crime dá prazer, fortalece a auto-estima, proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém do pertencimento a um grupo, permite o acesso ao desejo das gurias (...)” (Soares, 2004: 158). Pode- se dizer o mesmo no caso dos “pitboys”: a porrada dá prazer (é lúdica), fortalece a auto-estima (a idéia de superioridade), proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém do pertencimento a um grupo (a galera), e permite o acesso ao desejo das gurias (“marias-tatames”). Tendo isso em mente, podemos retornar a Pierre Clastres a fim de observar que, ao fim e ao cabo, nossos guerreiros da night e soldados do tráfico talvez não estejam assim tão distantes dos guerreiros de tribos indígenas amazônicas:

Os guerreiros são portanto homens jovens. Mas por que os jovens são a tal ponto apaixonados pela guerra? Onde se origina sua paixão? O que faz, em uma palavra, o guerreiro querer se expor? É, como já vimos, o desejo de prestígio, que somente a sociedade pode reconhecer ou recusar. Tal é o vínculo que une o guerreiro à sua sociedade, o terceiro termo que põe em relação o corpo social e o grupo dos guerreiros, determinando desde o início uma relação de dependência: a realização de si do guerreiro passa pelo reconhecimento social, o guerreiro não se pode pensar como tal se a sociedade não o reconhece como tal. A realização da façanha individual não é senão uma condição necessária para a aquisição de um prestígio que somente o assentimento social confere. (...) O amor à guerra é uma paixão secundária, derivada de uma paixão primária: o desejo mais fundamental de prestígio. A guerra é aqui o meio de realizar um fim individual: o desejo de glória do guerreiro, que é em si mesmo sua própria finalidade. Vontade não de potência, mas de glória: tal é o guerreiro, homem para o qual a guerra constitui de longe o meio mais rápido e mais eficaz de realizar sua vontade (Clastres, 2004: 286-7).

Malandragem e Delinqüência

Clastres nos remete a um curioso paradoxo: quando apreciada em seu conjunto, uma sociedade pode não se mostrar exatamente guerreira em sua essência; mas ela pode, contudo, admirar alguns de seus membros justamente por qualidades que se ligam às artes da guerra. Assim, pode acabar estimulando-os,

134 ainda que inadvertidamente, a adotarem um comportamento inclinado nesta direção. Transporte-se o raciocínio para o Brasil, prestando atenção sobretudo na aura de positividade entranhada naquilo que chamamos de malandragem, e está aberto um fértil campo para a análise. A etnografia de Alba Zaluar (1985), como já foi dito, flagrou o fim da malandragem tal qual se conhecia nos anos sessenta. Aquele malandro, que aliava transgressão e mediação, que não vivia propriamente nem dentro nem fora da lei, mas numa espécie de entre-lugar, aquele malandro já não havia mais. Mas sabemos que a malandragem, mais ampla, não caiu em desuso junto com o mocassim branco; apenas transformou-se, adquiriu novo colorido, e também novos usos. Hoje, não é descabido afirmar que a pior pecha para o jovem brasileiro de uma grande cidade como o Rio de Janeiro é a de “otário”. Ninguém quer ser um otário: e quem não é otário deve ser malandro em alguma medida. Mas o jovem de classe média e alta não aprende a ser malandro na rua, ainda que deseje identificar-se com esse tipo de malandragem. A rua, experimentada coletivamente no pertencimento a uma galera, apenas complementa o aprendizado da malandragem que se inicia dentro de casa, com a própria família.

Os adolescentes ricos convivem com essa criminalidade soft dentro, ou perto, de suas próprias casas. É o pai que oferece caixinha ao guarda para escapar a uma multa por excesso de velocidade, ou vai à escola pedir a cabeça do professor que reprovou, por razões justas, seu filho. Os pais que se apavoram quando um filho começa a fazer amizade com os favelados da vizinhança são os mesmos que contratam e demitem empregados sem pagar direitos trabalhistas e oferecem suborno aos fiscais da Receita que descobrem as irregularidades de suas empresas (Kehl, 2004: 104).

Neste ponto, reencontramos os argumentos de DaMatta sobre a separação entre indivíduos e pessoas, e de Luiz Eduardo Soares sobre o double bind na sociedade brasileira. A lei vale para os outros, para os indivíduos, para os otários. Acima dela, o verdadeiro malandro31, a pessoa que se insere numa teia

31 Penso que seria no mínimo curioso um estudo sobre ditos populares que envolvem a figura do malandro. De cabeça, lembro de alguns poucos: “malandro é o gato, que já nasce de bigode”; “malandro é o Batman, que usa as cuecas por cima das calças”; “malandro é o pato, que já nasce com os dedos colados para não usar anel”; “malandro é o gato, que quer mais é que o mar pegue fogo para comer peixe frito”. Tudo somado, eis a imagem do malandro: um indivíduo do sexo masculino, experiente e tarimbado, que, como todo super-herói, tem dupla personalidade; um sujeito que, por não sucumbir à rotina da vida ao lado de uma única mulher, possui tantas quantas for capaz de administrar; e, ao mesmo tempo, um sujeito que sempre sabe tirar proveito de uma situação, por mais estranha e adversa que lhe pareça.

135 privilegiada de relações sociais. Malandro que é malandro entra sem pagar, e não espera em fila. Raro o malandro que não se julgue onipotente.

Ninguém pagava ingresso ou consumação de porra nenhuma. Tinha festinha, uma parada legal pra fazer na night? Ou a gente pulava, ou passava debaixo da grade, dava uma idéia no segurança, sei lá, arrumava um jeito. Várias vezes a galera entrava nas paradas sem pagar, ou então neguinho arrumava uma cartela de consumação, e enchia a lata, ficava “doidaralhasso” [bastante bêbado], e não pagava porra nenhuma. E se nego encrencava a gente quebrava a porra toda. Ninguém queria pagar pra entrar, isso era acabar com a nossa imagem. (Bruno, 29 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

A lógica utilitária, é claro, não explica tal comportamento. Nascido em família rica, é certo que não faltasse dinheiro ao entrevistado para se divertir na noite. Mas o que lhe sobrava era sobretudo a disposição em não deixar as regras valerem para si, transitar ao largo delas. Agir como pessoas normais, “isso era acabar com a nossa imagem”. Assim, otário não é somente o indivíduo correto, que acata as contingências naturais da vida em sociedade. Otário é aquele que dispõe de recursos para se mover por sobre tais contingências, mas não o faz; é aquele que tem a alternativa de “sair por cima” de uma situação, mas não a aproveita.

Teve outra porrada num evento no Riocentro... Eu tinha ido comprar uma cerveja, de repente só escuto um pá!, e um cara gritando “ahhhhhhhh!”. Era o Guilherme, que tinha dado um tapa na cara de um cara. Mas um tapão mesmo, estalou alto pra caralho. Aí a porrada comeu, porradaria generalizada, neguinho foi expulso pelos seguranças, e lá fora a porrada continuou. O Guilherme montado no cara, dando socão na cara, daqui a pouco o cara que tá embaixo dele grita “Pára! Pára! Pára!” Aí neguinho até assustou, o cara gritando daquele jeito... O Guilherme até saiu de cima dele, e o cara gritando “Pára! Pára! Pára!”. Daqui a pouco o cara puxa uma arma, aponta pro Guilherme e diz “Você não vai mais me bater! Você não vai mais me bater!”. Ele falou “Caralho, mermão, você tava o tempo todo armado e entrou na porrada... Seu otário!”. E ele: “você não vai bater mais em ninguém, seu merda!”. “Eu sou um merda? Merda é você, que tava armado, não fez nada e entrou na porrada”. Aí vem um PM, trava a arma do cara, prende o cara. Levou o cara preso. O cara entrou na porrada, e ainda foi preso. (João, 35 anos, ex-lutador de jiu-jitsu..)

A cultura da malandragem é uma das pontes que, lançando um fio invisível por sobre o abismo que separa a cidade partida, facilita a identificação de jovens da elite com o mundo da criminalidade dos miseráveis, justamente porque provê a aqueles uma boa desculpa ou justificativa para agirem como estes – afinal, como pode um otário ter sucesso num mundo de malandros? Em alguma medida, a

136 malandragem ajuda no flerte com a delinquência, não tanto pela vontade e expectativa de se obter vantagens materiais, mas antes pelo imperativo de ser mais malandro que a própria malandragem. Nesse sentido, talvez fosse possível falar na existência de afinidades eletivas entre o ethos da malandragem e aquilo que venho chamando de ethos guerreiro. A porrada praticada como duelo é um jogo, uma diversão e um teste, mas também uma necessidade de auto-afirmação e reconhecimento. A porrada utilizada como meio de agressão despropositada e covarde, acompanhada de roubo ou vandalismo, embora também atravessada pela dimensão do lúdico, comporta e sinaliza algo diferente.

Eu tava na inauguração da Slavia [boate na Barra da Tijuca, praticamente destruída no dia mesmo em que abriu as portas: o caso ficou famoso, e foi assunto nos jornais por vários dias], quando quebraram a porra toda. O negócio foi o seguinte, o carinha do jiu-jitsu chegou na mulher e ela “ah, sai daqui e tal”, e ele “sua vagabunda!”, ela foi, tacou-lhe o copo de cerveja na cara dele, ele foi e deu um tapão nela, veio o amigo dela, aí fodeu. Começou a pancadaria, veio os seguranças, neguinho enfiando a porrada nos seguranças, porra, quem tava doidão começou a brigar. Cara, velho oeste. Nego pegava cadeira e arremessava no bar, pau!, e os barmans desesperados. Porra, e era caro pra caralho, e eu pensei, “não vou pagar porra nenhuma nessa merda!”, aí fiquei perto da porta, porque sabia que a confusão ia chegar na porta. Quando chegou perto da porta eu saí pulando, me meti no meio da confusão, comecei a pular e a gritar “êêê!, uoooouuuuuuuuu!, aê porraaaaaa!”. Depois eu fui reparar que tinha mais uns dez que nem eu, assim, aproveitando a porrada pra sair sem pagar. Neguinho lá fora comemorando porque tinha saído sem pagar. Aí os caras conseguiram fechar a porta. Aí eu olho lá pra dentro e vejo o meu camarada querendo sair. Porra, Rubens! Deu mole. Mermão, tinha um cara maluco... O cara pegou o computador de cadastro que fica na porta, o cara pegou e falou “mermão, se não abrir a porta eu vou arremessar essa porra na porta!” E nego “calma, deixa o computador aí, bota essa porra no chão”. E ele “abre logo essa merda, senão eu vou jogar essa porra!”. Enfim, zuniu o computador na porta, mas o fio da tomada prendeu, levou tudo junto, abriu a porta e neguinho começou a berrar e começou mó galera a sair. Aí virou selvageria total. A grade que tem pra organizar fila, neguinho arremessou no vidro. Veio carro de polícia e o caralho. Mas nego quebrou tudo. Tinha o promoter do evento que tentava apartar, e ficava dizendo [faz voz de “crianção”] “pô gente, não vamos brigar, calma aí, vai”. Aí vinha um neguinho e pau!, dava um tapa na cara dele. E ele “pô, não faça isso”, e outro maluco chegava e pau!, colava um na cara dele. Agora é engraçado, mas na hora foi foda. (Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Uma mulher desrespeitada e agredida, uma pancadaria iniciada, uma boate absolutamente vandalizada, depredada: “nego quebrou tudo”. Um episódio como este não é tão comum quanto o “quebra-quebra” de ônibus e trens, por exemplo, mas nem por isso menos significativo. Segundo DaMatta, o “quebra-quebra” dos transportes coletivos – o elo de ligação entre a casa e a rua, o “ponto final de uma

137 massificação que todos tentam evitar” (DaMatta, 1993: 194) – pode ser entendido como uma forma extremada dos trabalhadores ganharem visibilidade, uma espécie de “sabe com quem está falando?” coletivamente vocalizado. Mas como entender o “quebra-quebra” promovido não por “indivíduos”, e sim por “pessoas” (para usar os termos de DaMatta), cujo alvo é um lugar de acesso no mais das vezes restrito, selecionado? O vandalismo de “pitboys” dirige-se contra o palco mesmo da “guerra”: não apenas quebrar o Outro, o grupo rival, mas quebrar o espaço onde a “quebração” se dá, o teatro de operações da “guerra”. Trata-se não de um lugar de humilhação, o denominador comum mais baixo de uma vida de privações, mas justo o contrário, um lugar de diversão, de fruição das benesses de uma vida de abundância. Poder-se-ia enxergar aí, no excesso, no transbordamento – de dinheiro, de potência corporal, de liberdade, de sensação de impunidade etc. – uma pista para o entendimento do vandalismo de “pitboys”. Mas isto, no fim das contas, equivaleria a fazer uso daquilo que chamei de “discurso da falta”, apenas invertendo o sinal. Mais interessante, e também mais assustador, é imaginar o “quebra-quebra” como o jogo-brincadeira da porrada levado ao seu grau paroxístico e covarde. Estantes repletas de garrafas de bebidas, mesas, cadeiras, espelhos, portas, computadores, aparelhagem de som e luz – nada disso revida. Prostitutas, indivíduos que esperam, sozinhos, um ônibus na madrugada, também não. Sofrem com “extintoradas” e “tapetadas” às quais via de regra não têm como reagir. Chegamos enfim ao ponto onde o “pitboy” se iguala ao marginal:

Tem uma história de um amigo meu da academia, casca-grossão, sinistrão e tal. Tava voltando doidão da night, dirigindo o carro. Doidão. Parou num sinal, sei lá que horas eram, aí pára um cara do lado dele, um entregador de pizza, não lembro qual pizza era. O cara cheio de pizza. Ele abriu uma porta, “dá uma pizza aê!”. E o cara “que isso, mermão, posso dar não.” Aí o maluco sentou uma “pranchada” [soco ou tapa] no cara, deu umas porradas nele, pegou as pizzas e saiu fora. (Rogério, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

Como no epsiódio da doméstica Sirley, o que se vê é uma agressão seguida de roubo cuja motivação não se liga à promessa de lucros materiais. Ao servir de instrumento para a consumação do roubo, o corpo-arma perde sua conotação metafórica e ganha materialidade. É como um revólver apontado para o rosto: o que ele coloca em ação é uma ordem de comando despótica e inegociável.

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Escrevendo sobre a relação entre a cultura narcísica e a crise ética que seriam características de nosso tempo, Jurandir Freire Costa assinala que a delinquência arrogante pressupõe “o absoluto desprezo pelo estatuto de pessoa que tem seu semelhante (...). Engravatado ou de pés descalços, o delinqüente arrogante irrealiza o mundo, considerando-se acima da lei e desafiando, de maneira grotesca, todos que não queiram converter-se em apêndice de sua onipotência” (apud Rodrigues, 1993: 62). Seria interessante ter isto em mente ao ler o (longo) trecho da entrevista abaixo:

Teve uma viagem pra Oktoberfest que foi muito louca. A gente fretou um ônibus, eram quartenta e oito pessoas, sendo que trinta e cinco caras da academia. Mermão, foi um vandalismo que me impressionou, saía do controle direto. Isso faz uns dez, doze anos, eu acho. Só sei que a gente era muito moleque, dezoito, dezenove anos, já não tinha muita consciência... A galera era surreal, era cada coisa surreal. Porque, tipo assim, apesar da gente se envolver em briga e tal, ainda existia a lei de honestidade. Eu não saía dando tapa na cara de uma pessoa a troco de nada. Se o cara mexeu comigo, ou com a minha mulher, ou se esbarrou, se olhou de cara feia, aí tu responde, o cara responde de novo, aí briga, né, uma coisa mais assim. Mas nessa viagem eu vi coisas surreais. A situação começou a perder o controle quando a gente entrou na cidade, os caras do ônibus abriam a janela, mermão, cospiam em todo mundo, mostravam a bunda, ia xingando as velhas na rua... Mal a gente entrou na cidade, uma viatura encostou na gente: “A gente vai escoltar vocês até o hotel”. A gente chegou na cidade escoltado até o hotel. Tudo bem. Aí beleza, no primeiro dia a gente foi pra “night” e já sairam várias brigas, eram vários grupos, com várias brigas. E a gente fez uma camisa que era o símbolo de um homem, numerado atrás, um, dois, três, quatro, cinco, seis, pulava o vinte e quatro e ia até quarenta e oito. Era tanta confusão que o pessoal de lá comecou a associar que quem tava com aquela camisa era brigão. E aí tinha uns cinco ou seis da nossa excursão que não eram de confusão, e os caras assim “porra, a gente não vai usar essa camisa não”, ficaram com medo de usar a camisa. “Não vai usar a camisa, mermão? Vai entrar na porrada! Como é que não vai usar camisa?” Tipo assim, os caras eram obrigados a usar a camisa também, entendeu? Mas o negócio saiu do controle, porque, tipo assim... Eu me lembro que uma noite o dono do hotel chamou a gente e disse “vocês estão quebrando armário, tá dando briga na porta, nego tá xingando, os outros hóspedes estão reclamando, não sei o que”. E o cara reclamando, reclamando, reclamando, reclamando. Aí no dia seguinte a gente foi almoçar e eu falando, “cara, a gente tem que diminuir o ritmo, não tá dando, muita briga”. A gente ia almoçar num restaurante perto do hotel, ia sentar pra ver o que a gente podia fazer, porque tava dando muita confusão, daqui a pouco a gente escuta um barulho e... “Vai tomar no cu, não sei o quê, blá, blá, blá!” E a gente “caralho!”. Quando a gente olhou tinha um outro amigo nosso, que hoje não tem nada ver com isso, mas na época era um louco, jogando uma garrafa dentro do negócio, xingando o filho do dono do restaurante, dando um tapa na orelha do cara. Aí me sai o dono do restaurante com uma arma atrás dele, correndo assim, pra acertar o tiro. E a gente olhando aquilo, fudeu, que que a gente vai fazer? E o outro correndo em zigue zague, depois conseguiu se esconder e tal.

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O relato prossegue:

Tem várias histórias dessa viagem. Me lembro uma vez a gente andando na rua, aí um camarada nosso tava puto, cheirou lóló, sei lá o que ele fez, e ficou louco. Tinha um cara passando e ele pau!, chute na barriga... Chute na barriga, soco na cabeça, porrada! Tipo, o cara tava passando, entendeu, naquela hora... Outra vez, tinta também um cara passando na rua, nego vai e pega o cara no mata-leão, o cara apagou, e se cagou todo na calça. Umas coisas assim... Sinistro. Um outro dia, a gente tava fazendo a contagem da galera no ônibus. Aí quando a gente olhou... “Motorista, o que que tá acontecendo?” E o motorista: “Tem dois garotos ali atrás no ônibus, que falaram que não vão sair não, e não são da excursão”. Aí eu olhei, e era só psicopata, todo mundo de cabeça raspadinha, e dois malucos que não eram da excursão falando que não iam sair do ônibus. Aí a gente olhou pros caras, a gente se olhou, aí eu falei, “pô, beleza, os caras tão errado”. Aí foi aquilo: “galera, tem dois caras lá no fundo que falaram que não vão sair do nosso ônibus não”. Mermão, parece que os dois eram amigos de um menino que tava no ônibus. E aí os caras “pô, fala aí, cara”, pedindo pro cara defender eles, e o amigo deles “pô, foi mal, mas eu não posso te ajudar não”. Os caras tiveram que abrir a janela, tiveram que pular, porque nego já tava dando soco, enfiando a porrada, e os caras pulando da janela. Teve uma outra também, eu tava andando, aí o cara veio e me deu um esbarradão, veio pra me acertar, bum! Aí eu falei “quê isso?” Aí o cara: “que isso o quê, cumpadi?” Começou aquela discussão, mas o cara meio que começou a baixar a bola, e eu disse “então tá tudo certo”. Quando eu fui apertar a mão do cara, pra parada “morrer”, vem um amigo meu e pá!, dá uma morra [soco] de lado no cara. O cara caiu, e o cara era grande... Quando eu vi tinha um outro amigo dele, a porrada ia estancar geral, mas a polícia tava bem junto, e separou. Pegou os dois, levou pra delegacia e tal. Aí botaram os caras dentro da cela, e falaram assim, olha que loucura: “aí, vale-tudo, quem ganhar, sai”. O nosso amigo era um louco que brigava pra cacete, meteu a porrada no cara, então ele saiu, e o outro ficou lá, todo fudido. Voltou com a orelha desse tamanho, acho que tomou uma cachaçada na orelha. Aí eu falei “qual foi? que houve?”, e ele disse “porra, o policial disse que era vale-tudo, eu enfiei a porrada no cara e saí, mas ele falou que se ver alguém mais brigando com essa camisa, ele vai aleijar o cara”. Tipo, a polícia falou que ia aleijar a galera que tava com a nossa camisa! Resumindo, deu a maior merda, fomos expulsos da cidade. A polícita bateu lá no nosso hotel, e a gente saiu da cidade que nem entrou, com a polícia escoltando o nosso ônibus. (Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

De tudo, um pouco: idosas xingadas nas ruas, bundas exibidas em público, transeuntes covardemente agredidos sem qualquer motivação, pancadarias iniciadas por razão pouca ou nenhuma, vale-tudo informal disputado dentro da cadeia, quartos de hotel vandalizados, restaurantes depredados... O próprio entrevistado distingue a violência aceitável ou “justa” – o que ele chama de “lei da honestidade” – da violência “surreal”, que ele viu diante dos olhos e da qual tomou parte em alguma medida. Interessante também observar a atuação da polícia. Escolta o ônibus na entrada e na saída da cidade, coloca um dos “pitboys” na cadeia apenas para fazê-lo lutar um “vale-tudo” – será que os policiais

140 realmente pensaram que isso seria uma espécie de castigo? –, ameaça “aleijar” quem do grupo tornasse a brigar. Deter os brigões, autuá-los por lesão corporal ou agressão, e abrir um processo criminal contra eles, ou seja, levar a cabo o trabalho que compete à polícia, nada disso é feito. O que nos põe a pensar: como trabalham as pessoas que lidam diretamente com “pitboys”? O quê teriam a dizer sobre suas ações e comportamento? Seguindo esta pista, iremos nos deparar agora com os depoimentos de quem está do outro lado da “guerra”, os seguranças de boates, festas e eventos do Rio de Janeiro.

Os seguranças: “você sabe com quem está mexendo?”

A atuação de seguranças em boates e casas noturnas do Rio de Janeiro equivale, num certo sentido, ao de uma força policial. Os seguranças devem zelar pelo patrimônio, coibir o uso de drogas, fazer valer as normas do estabelecimento (pagar consumação, entrar em fila) e as regras de convivência social, e, quando a situação exigir, mediar conflitos, apartar brigas e impedir excessos de violência. No confronto com “pitboys”, seguranças têm algumas das atribuições da polícia, mas sem a autoridade e a legitimidade desta. Podem vigiar e reprimir, mas não podem punir. Estabeleceu-se entre ambos uma relação algo paradoxal: pois os “pitboys” são os maiores inimigos dos seguranças e, ao mesmo tempo, razão de seus salários. Quanto menos “pitboys” existissem, menor seria a necessidade de seguranças e, consequentemente, menor a oferta de empregos. Mas os seguranças parecem não se importar muito com isso. Preocupam-se mais com o tanto de dor de cabeça que os filhos da classe média e alta amiúde lhes causam na noite carioca.

A: Quando e como você começou a trabalhar de segurança? Maurício [dono da empresa]: Fui segurança de porta de boate por muito tempo. Trabalhei na Calígula, separei muita briga. Comecei com vinte e dois anos, trabalhei até os trinta. Tô com quarenta e quatro, depois que virei dono da empresa, parei. Fiz muito baile de carnaval, Iate Clube, baile no Escala. Década de oitenta, década boa... A: E como era naquela época? Maurício: Sempre teve turma. Tinha a turma da [rua] Toneleiros, o pessoal do jiu- jitsu dos Gracie arrumavam confusão, sempre tem esses playbozinhos, filhinho de papai. Hoje o pessoal chama de “pitboy”, mas isso sempre teve... Naquela época, tinha o pessoal da Prado Júnior, ia pros bares e não respeitava mulher casada, e você tinha que usar energia pra botar pra fora. E sempre com álcool na cabeça.

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Alguns faziam luta, e eles queriam desafiar todo mundo. Vou te falar a verdade: nos anos oitenta a segurança batia muito mais do que bate hoje. Ah, na minha época, você batia mais. Hoje não. Hoje tem direitos humanos, bé bé bé. Arrumava confusão, ia pra delegacia. Naquela época a autoridade era mais autoridade. Fez coisa errada? entra na porrada, bota no xadrez. Se fosse nos anos oitenta, os “pitboys” não iam tirar essa onda toda. Os seguranças batiam muito mais. A: E hoje em dia a segurança não pode mais bater por que? Maurício: Porque, de repente, as coisas viram contra o segurança. Então ele tá lá pra tirar o elemento, o cara vai e conta outra história. E a delegacia hoje, a polícia com defensoria em cima... Direitos humanos, bé bé bé... Vira contra o trabalhador. Antigamente, não. Fazia coisa errada, sabia que ia ser posto pra fora, e se resistisse, entrava na porrada mesmo. No meu tempo a gente batia muito mais. Esse negócio de direitos humanos, bé bé bé, a imprensa também fazendo reportagens, tudo isso prejudica o trabalho do segurança. Porque eu não acredito que um segurança vá bater numa pessoa sem motivo. Se o cara fizer alguma coisa errada, vai ser convidado a se retirar, e pronto. E ninguem é retirado com flores ou pedido de “por favor”. Aí lá na frente o cara conta outra história na delegacia, e quer processar a segurança. Então hoje tem que ter mais tato pra trabalhar. Nos anos oitenta e noventa, não tinha tato não. O pau comia. Tempo bom que não volta mais.

De saída, a constatação: sempre houve galera, jiu-jitsu, bebedeira, briga iniciada sem motivo. Nada disso é novidade, ou exclusividade da juventude de hoje. “Pitboys” já existiam antes dos anos noventa; apenas não haviam sido ainda rotulados como tais. Nesse sentido, o relato é interessante na medida em que desautoriza qualquer idealização do passado, e aí se inclui a ação dos próprios seguranças. Sem mecanismos que garantissem controle legal (defensoria pública) e visibilidade social (a mídia), e sem um por assim dizer discurso de constrangimento à violência que atravessasse a ambos (direitos humanos), a porrada estava livre para se desenrolar de maneira ainda mais sangrenta. É curioso reparar que, nas três vezes em que utiliza a expressão “direitos humanos”, Maurício acrescenta um “bé bé bé” logo em seguida, como que insinuando tratar- se de um “blá blá blá” inócuo e desnecessário. Quase como se dissesse: na noite, os tão propalados direitos humanos não ajudam em nada, ou melhor, só ajudam os “porradeiros”, os encrenqueiros32. E isto nos leva a uma outra observação: tal como o “pitboy”, o segurança deve ser alguém que sabe dar porrada (e, em alguma medida, alguém que gosta de dar porrada). Este ponto fica particularmente

32 O que faz lembrar o discurso de boa parte da sociedade – talvez a maior parte, infelizmente – em relação a atuação da polícia nas favelas cariocas. Com muita frequência, lê-se nos jornais artigos e cartas de leitores que afirmam que, no atual estado das coisas, defender os direitos humanos equivale a defender marginais. Recentemente, o debate em torno destas questões foi alimentado pela polêmica causada pelo filme “Tropa de Elite”, e pelas interpretações que se lhe foram feitas.

142 explícito no tom saudosista que encerra o depoimento: aqueles bons tempos, em que o “pau comia” sem que se fizesse escândalo, não voltam mais.

A: Mas e hoje em dia? Fale um pouco do trabalho de vocês. Rodrigo: A gente aqui faz de tudo. Boate, festa paga, casamento, formatura, festa de quinze anos, qualquer serviço de eventos. Pela nossa experiência, briga mesmo dá muito mais em festa de 15 anos ou formatura, entendeu? E lógico que aonde tem álcool as pessoas se excedem um pouco né? Às vezes tem briga em casamento, mas no geral é mais coisa de moleque mesmo. Que que acontece? São grupos, né, grupos de amigos, que ou já vão alcoolizados, já bebem antes de ir pra festa e lá ainda consomem mais álcool, ou lá mesmo, por falta de controle do organizador do evento, até porque é difícil você controlar, quer dizer, bebem em excesso, bebem cerveja, consomem aquele energético, aquele Redbull, aquelas outras latinhas que têm, e aí eles ficam transtornados. E aí o quê acontece? São garotos novos, alguns fazem musculação, fortezinhos, outros fazem lutas, e aí um mexe com a menina do outro, ou então já vê um grupo que tem uma rixa e aí começam a briga, né. Às vezes o efetivo da segurança é pouco, eles são muitos, pra gente separar a briga é complicado, e de vez em quando tem que botar pra fora, né? Nós somos seguranças, maiores de idade, eles são adolescentes, aí você vai pegar um garoto desses e você tem que usar de energia, ou então eles agridem a gente, e nós não somos pagos pra apanhar, entendeu? Nós temos que usar a força com eles, entendeu? E aí mais na frente eles vão dizer que nós é que agredimos eles, entendeu? A: Você mencionou que alguns dos jovens são lutadores. Vocês sabem identificar qual jovem é lutador, ou que tipo de arte marcial eles fazem? Wanderley: Ah, eles mesmos se identificam, diz que faz jiu-jitsu, já pra ameaçar o outro. É mais jiu-jitsu... Eu vou ser sincero, eu trabalhei muito na noite, é raro a gente ver um judoca fazendo isso. Anderson: É, jiu-jitsu, luta livre. Gesias: Você vê pela orelha, pelo tipo físico do rapaz, atarracadinho, fortinho. Você não vê um atleta de natação fazendo isso, você não vê um atleta de judô fazendo isso. É mais uma turma, e também não são atletas né, porque o verdeiro atleta não arruma confusão. E é mais na Barra [da Tijuca, bairro da Zona Oeste], na Barra tem rixa. A: Na Barra tem mais rixa? Anderson: Molecada, dezessete, dezoito anos, eles vão pra academia, malham. Aí um é da academia Gracie, o outro é... Esqueci o nome da academia, aí eles quando se encontram, se pegam, acham que a festa é uma rinha de galo.

Até aqui, nenhuma novidade: a adolescência, o álcool, o jiu-jitsu, a orelha estourada, a galera, e as rixas entre as galeras. A entrevista prossegue:

A: Conte umas histórias de pancadaria em festas. Rodrigo: Ih, rapaz, são tantas... Foi num evento na Terra Encantada [parque de diversões na Barra da Tijuca], um pessoal do jiu-jitsu. Aí chegaram e “ih, a festa tá boa” [faz sinal de quem está falando no celular]. Fulano chamou, chegou a galera deles, ficaram num cantinho. Daqui a pouco, pá, começaram a brigar. Em vez de brigar entre eles mesmos, não, saem batendo em quem tiver em volta, e aí não querem saber se é homem, mulher, criança, eles são covardes. Aquilo que fizeram com essa senhora no ponto de ônibus [refere-se ao episódio da doméstica

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Sirley Dias], aquilo não é mentira não, é verdade, acontece mesmo. E quando saem, vão quebrando placas de sinalização, são vândalos. Quando a polícia não chega a tempo pra deter eles, eles saem correndo. E vão que nem pipoca, de uma festa pra outra. Anderson: Mas aí, nessa festa do Terra Encantada mesmo, deu problema. Deu problema, e acabou que um outro segurança nosso, o Francis, acabou batendo muito num rapaz. Mas é aquela coisa, o pau comendo, você vai fazer o quê? Aí sabe o que aconteceu? Numa outra festa, já tinha passado um tempo, o Francis tava fazendo a segurança e o rapaz tava na festa. Sabe o que ele fez? Ligou pra casa dele, chamou o pai, a mãe e sei lá mais quem, e daqui a pouco tava todo mundo na festa. Aí a mãe do moleque pegou ele, deu uma “baiana” nele... A: A mãe deu uma “baiana” no segurança?! Anderson: A mãe! Tirou o sapato e ficou dando na cara dele. Ele não esperava, a mulher veio, pá, derrubou ele, aí veio o pai, depois o moleque, seguraram ele, e ela tirou o sapato e ficou dando na cara dele, assim ó, pum pum pum, com o salto na cara dele. Ficou todo arrebentado, a cara desse tamanho, abriu a testa, tomou até ponto. A: Acontece muito de vocês se machucarem nas brigas? Wanderley: Não acontece muito não, quer dizer, de vez em quando algum colega nosso toma um prejuízo, toma um soco, fica com o olho roxo, meio inchado, coisa assim. Mas machucar mesmo é mais raro, não é Maurício? [Maurício faz sinal de positivo com a cabeça]. Mas teve... O Silvano, numa festa no Le Buffet, festinha de quinze anos. Não, era formatura. Tomou uma cadeirada, quebrou a mão. Eu já vi festa de quinze anos em que o namorado da menina aniversariante espancou o pai da garota. O garoto tava bêbado que nem um gambá. Ele não gostou do jeito que o coroa falou com ela. Só que é pai, né? Aí ele foi lá e desceu a porrada no coroa. Se não fosse a gente ter chegado em cima da hora, tinha machucado o velhinho ainda mais. Festa acontece de tudo, é imprevisível.

A vingança do “pitboy” choca pelo inusitado: ao invés de ligar para os amigos a fim de reunir o maior número possível de integrantes da galera para bater no segurança, o que, convenhamos, seria a coisa mais lógica a se fazer, o jovem chama os próprios pais. Mas os pais não chegam para dar uma lição de moral no segurança ou levá-lo até uma delegacia, que é o que tradicionalmente se espera que eles façam. Mãe e pai juntam-se ao filho no intuito de vingá-lo do mesmo modo como a galera faria, isto é, tentando devolver a agressão física. Ao agirem como “pitmamãe” e “pitpapai”, os pais do rapaz recusam para si o papel que lhes cabe – o de responsáveis –, assumindo assim o papel de “amigos” do próprio filho, como se fossem membros de sua galera. Eis aí um bom exemplo daquilo que Maria Rita Kehl (2004) chama de teenagização da cultura ocidental. Para a autora, a delinquência juvenil seria como que um reflexo de uma sociedade em que evita-se a todo custo exercer o papel do responsável, do adulto, da autoridade encarregada de representar a lei diante dos mais jovens.

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Em uma sociedade em que o adolescente é erigido à posição de ideal para todas as idades, os adultos passam a sofrer de má consciência diante de sua experiência de vida. Se a regra é viver com a disponibilidade, a esperança e os anseios de quem tem 13, 15 ou 17 anos, que fazer da seletividade, da desconfiança e até mesmo da consolidação de um certo perfil existencial mais definido, inevitáveis para quem viveu 40 ou 50 anos? O adulto que se espelha em ideais teen sente-se desconfortável ante a responsabilidade de de tirar suas conclusões sobre a vida e passá-las a seus descendentes. Isso significa que a vaga de “adulto”, na nossa cultura, está desocupada. Ninguém quer estar “do lado de lá”, o lado careta do conflito de gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou. (...) Não que os pais “de antigamente” soubessem como os filhos deveriam enfrentar a vida; mas pensavam que sabiam, e isso era suficiente para delinear um horizonte, constituir um código de referência – ainda que fosse para ser desobedecido (Kehl, 2004: 96).

Não cabe aqui discutir os detalhes e as implicações desta tese; não estamos no âmbito da psicologia familiar neste trabalho. Se fiz questão de evocá-la, foi apenas porque o exemplo da “pitfamília” me pareceu sua tradução mais perfeita, sua cristalização mais evidente, e também porque, afinal, trata-se de uma dimensão que não pode ser de todo ignorada. O conflito de gerações à qual Kehl se refere parece haver mudado de feições, e isto fica outra vez evidente se lembrarmos dos últimos instantes do relato de Wanderley – um rapaz agredindo o pai da namorada no dia de sua festa de quinze anos. Mas sigamos adiante na entrevista:

Gesias: Aquela festa no Museu Histórico Nacional... Teve um convidado que numa festa antes, ele saiu bêbado, cheiradão, saiu agredindo todo mundo, nós fomos lá e tiramos ele. Aí o seu fulano [promoter do evento] pediu pra gente ir lá e botar ele pra fora. A gente foi lá e botou ele pra fora. Aí nesta festa, ele entrou, viu a gente e não falou nada. Aí quando ele saiu, saiu bêbado, quando ele me viu, ele tava com um copão de uísque, jogou em cima de mim, na minha cara. A sorte é que pegou no ferro do portão, mas os cacos chegaram a pegar no meu rosto. Assim, do nada, do nada, a gente tava parado... Aí seguramos ele, não podia fazer nada, só botar ele pra fora. A: E dá muito processo? Anderson: Não, não porque nós temos um tato. A gente tenta imobilizar. Nada de agredir. Primeiro a gente convida pra se retirar. Aonde tem um brigando, vai dois seguranças, aonde tem dois, vai quatro, e se houver uma agressão, eles nos agrediram primeiro, e nós revidamos. Aí você vai pra delegacia, não dá nada. O próprio delegado também já está escaldado, porque é tanto caso, os caras já sabem. E eles quando chegam na delegacia, eles desrespeitam até a autoridade. Se bobear, eles batem com o pé no policial militar, se o policial for bobão... Naquele evento do fotógrafo da Gisele Bundchen lá no [hotel] Copacabana Palace.. A: Mario Testino? Anderson: Isso. Já era tarde. O cara bebeu, mas esse já tinha uma idade, uns trinta e poucos anos, foi convidado a se retirar da festa. Aí ele tava saindo, e viu um operacional do Copacabana [funcionário do Hotel], colou um soco nele, deu mais um tapa, aí nós seguramos ele, chamamos uma viatura, a viatura chegou e

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nós botamos ele dentro da viatura. Aí ele no banco de trás conseguiu arrebentar o vidro, e espancou os dois policiais, só parou quando chegou mais um apoio. Agrediu um sargento e um soldado. A gente não quer levar pra delegacia, não é nossa função, a gente perde tempo. Agora, quando a coisa é muito braba, aí sim, aí não tem jeito, tem que fazer boletim de ocorrência. Maurício: Mas a gente não quer essas coisas, não que machucar, não quer levar pra delegacia. Isso não é bom negócio pra gente. O que a gente quer é imobilizar, separar a briga, e botar pra fora. Só isso. A: Vocês disseram que o objetivo inicial é imobilizar o agressor. Vocês tem algum treinamento para fazer isso? Maurício: Claro, defesa pessoal. Todos eles são treinados na academia, pra se formar segurança. Sabe dar um mata-leão, uma chave de braço, sabe imobilizar. Não tem ninguém bobo. Bobo não pode fazer este tipo de festa. Bobo não pode trabalhar. A gente tem uma turma de elite, todo mundo grande que nem eu ou esse cara aqui [aponta para Rodrigo, um “armário” de quase dois metros de altura]. Bobo não pode não, em festa de 15 anos, ou desses empresários aí... A gente não está lá pra ser saco de pancada. A: Outra coisa que eu reparei muito foi que vocês falam muito sobre álcool e drogas, maconha, cocaína.... Anderson: Eles cheiram muito, não tem esse negócio não, é de quinze anos, vinte e cinco anos, cinquenta anos, não tem essa não. Moleques de doze, treze anos, no estacionamento, fazendo sexo, e a gente tem que tirar e infelizmente é filho de fulano de tal... É moleque fumando maconha na entrada do evento perto do segurança. Eu trabalhei numa festa no Recreio dos Bandeirantes que tava um pessoal fumando maconha num cantinho assim, aí eu fui lá e chamei o responsável do evento, o dono da casa, e avisei que tinha uma molecada fumando maconha na casa dele. “Ah, deixa que eu vou resolver isso aí”. Ele saiu da festa, foi lá na entrada, na porta da casa, pegou a maconha dos caras, fumou, e voltou pra casa. É complicado. Nós estamos ali pra quê então? Maurício: Olha, é difícil eles arrumarem confusão de cara limpa. Às vezes até tem, é o encrenqueiro nato. Mas no geral eles têm que tomar ou álcool ou as drogas. É moleque que cheira, moleque fuma, dezesseis, dezessete anos, sai pra rua, sai pra vida. Se você for o mais esperto, o mais inteligente da turma, leva eles pra onde quiser. Eles são bobos. Eles bebem e se tornam valentes, aí se tornam problema pra gente. Se o cara tiver cheirado muito, você vai bater nele três, quatro horas seguidas, e ele vai ficar em pé ali. Não sente nada. Quer dizer, no dia seguinte é claro que sente, mas na hora, fica ali, apanhando, mas continua indo pra cima. Tem que bater muito nele, pra ele arrear. A: E eles só brigam em bando? Maurício: Acontece de tudo. Tem muita briga em bando, o cara que sai na porrada sozinho é mais raro. Claro, acontece também de juntar um grupo pra bater, pra espancar os outros. Mas olha, eu já vi muita briga começar por causa de um cara que mexe com a namorada do outro. O cara bêbado que mexe com todas as meninas na pista de dança, esse cara vai entrar na porrada. Em festa de quinze anos tem muito, briga de ciúme. Sempre tem um doidão fazendo merda, passando a mão na mulher dos outros. Esse cara vai apanhar.

Alguns pontos merecem ser destacados. Quando perguntei “e dá muito processo?”, tinha em mente saber se as brigas e confusões acabavam sendo registradas na polícia, se eram levados adiante os trâmites legais. A pergunta “e dá muito processo?” é significativamente diferente da pergunta “e vocês são muito processados?” – mas foi esta última que o segurança respondeu, não a primeira.

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Anderson entendeu que eu perguntara se eles, seguranças, eram “processados” com frequência. Respondeu negativamente, como seria de se esperar – pouco provável que dissesse “é, volta e meia a gente gosta de abusar da violência, estamos cheios de processos nas costas!” –, e na sequência enfatizou que “o próprio delegado também já está escaldado”, com isso querendo dizer que o número de processos penais era reduzido porque os delegados de polícia, acostumados que estão às badernas promovidas por “pitboys” na noite, sabem que são estes que iniciam as brigas e que, se eventualmente saem machucados, não terá sido por excesso de vigor por parte dos seguranças. Em outras palavras, Anderson estava defendendo a si e aos seus pares das frequentes acusações de truculência que lhes são feitas. Estava defendendo o quanto de energia física os seguranças “são obrigados” a empregar em caso de briga, porque “pitboys” não respeitam sequer a polícia. Afinal, diz ele, se o policial, que é como que a personificação da lei e da autoridade, for “bobão”, acaba com o olho roxo, a viatura destruída e precisando chamar reforço. E o que é um “bobão” senão um “otário”? Não sem razão, quando perguntado sobre o tipo de treinamento os seguranças possuem, Maurício (o dono da empresa), responde: “Não tem ninguém bobo. Bobo não pode fazer este tipo de festa. Bobo não pode trabalhar.” Segurança também que ser malandro, ou não trabalha como segurança. Outro ponto relevante é a afirmação de que aos seguranças não interessaria reclamar a intervenção da polícia. Repito as palavras de Maurício: “Isso não é bom negócio pra gente. O que a gente quer é imobilizar, separar a briga, e botar pra fora. Só isso.” Por quê isso acontece é um caso a se pensar. Podemos aventar algumas hipóteses. Talvez os seguranças evitem chamar a polícia, instaurar um inquérito e ir à justiça tanto por receio de confrontar jovens de famílias ricas e influentes quanto por acreditarem que, no fim das contas, tal recurso de nada adiantará – a crença na impunidade reinante no Brasil. Talvez tenham medo de atrair atenção negativa para si e para os organizadores do evento ou donos das boates para o qual trabalham; possivelmente sejam até instados por estes últimos a permanecerem tão silenciosos quanto possível. Que dono de boate ou promoter gostaria de ter seu nome, ou de sua empresa, nos jornais toda vez que uma briga ocorresse em um de seus eventos? Mas deixemos as especulações de lado. Mais interessante é simplesmente observar que este modus operandi por parte das empresas de segurança, ao fim e ao cabo, só faz agravar o problema do qual

147 reclamam, pois o fato de não levar “pitboys” à delegacia na maioria das vezes em que se envolvem em brigas contribui para a mantê-los afastados dos braços da polícia e da lei. Contribui, assim, para aumentar a impunidade – que ajuda na reprodução do comportamento violento típico de “pitboys”, que por sua vez reforça a necessidade de contratar seguranças experientes e treinados... E, como se não bastassem todas as dificuldades, às vezes os próprios donos das festas concorrem para desautorizar e desacreditar o trabalho dos seguranças. São conviventes com certas transgressões – fazer sexo pelos cantos, fumar maconha – que em tese caberia aos seguranças reprimir. Esta tolerância tácita (e exigida) em relação a alguns comportamentos desviantes coloca o trabalho dos seguranças “entre a cruz e a espada”; são pagos para garantir a observância da lei, da moral e dos bons costumes, mas nunca podem estar completamente seguros se devem de fato fazê-lo. A regra geral não é tão geral assim. Tudo depende da ocasião, do caso particular, depende de quem esteja fumando a maconha ou fazendo sexo. Eis, uma vez mais, ecos da convivência dos valores do igualitarismo e do personalismo, ecos do double bind que lhe subjaz. As ambiguidades daí resultantes, que desestabilizam expectativas, se expressam no questionamento de Anderson: “É complicado. Nós estamos ali pra quê então?”. Ainda no mesmo trecho da entrevista, cabe ressaltar, apenas a título de registro, o quanto de brigas ocorrem em função das meninas, ou melhor, do comportamento inadequado em relação a elas (“...eu já vi muita briga começar por causa de um cara que mexe com a namorada do outro. O cara bêbado que mexe com todas as meninas na pista de dança, esse cara vai entrar na porrada”). Já foi explicitada aqui a importância do papel das meninas na construção da identidade dos jovens, e também o quanto muitas delas acabam contribuindo em alguma medida para a disseminação de um estilo de masculinidade algo brutal e violento. Com efeito, o depoimento do segurança vem apenas confirmar o de um ex- praticante de jiu-jitsu, que aponta nesta mesma direção33. Parafraseando o

33 Diz o relato: “O negócio é o seguinte: você provoca a confusão. Vai lá o menorzinho do grupo, chega e mexe com uma mulher, a mulher diz “não, não”, o cara chega e diz “sua vagabunda!” Tem sempre um amigo da mulher pra defender, e aí fodeu. Ou então o cara chega na mulher, sei lá, tá doidão e sai chegando nas mulher de geral, e alguma hora ele vai chegar numa mulher que tá acompanhada. Aí pronto, o namorado da mulher não gosta, e começa a porrada. Porque ninguém gosta de ver a sua mulher sendo “cinturada” por um outro malandro, né? Isso é uma coisa que dá raiva mesmo, e aí tem mais é que encher os cornos do cara de porrada. Isso é uma história que rola milhões de vezes, porrada por causa de mulher. E quandos os dois caras estão com uma galera, aí generaliza a porrada, acaba a festa”. (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

148 conhecido dito popular, poder-se-ia dizer que por trás da maioria das brigas envolvendo homens, sempre há uma mulher.

A: Eles desafiam muito vocês? Gesias: Nossa, e como! A gente pode dizer que são pessoas, não sei se por causa da criação ou da classe social, são pessoas abusadas, que não respeitam, não são disciplinados, não sabem que numa festa tem que haver limites, e que a segurança está lá para o bem de todos. Eles não respeitam a gente, debocham da segurança, e você às vezes tem que usar da força. A: Eles debocham da segurança? Rodrigo: Ôôôô! Gesias: Debocham e muito! Chegam logo dizendo: “você sabe com quem está mexendo? Eu sou filho daquilo, daquilo outro”. Então é complicado, né? Então essas festas da zona sul, essa garotada, eles querem pular o muro, invadir o lugar, e a gente tem que ficar atento a isso também. Então eles ingerem álcool na hora, ou até as vezes já chega drogado, jovens de quinze anos fumando maconha. Depois não respeitam nem os mais velhos, e o pai mandando “fulaninho, pára com isso”, e ele não querendo saber, não respeitando, querendo brigar. É uma classe de jovens complicada, que dá trabalho. Wanderley: Falou tudo: é uma classe de jovem abusada. A palavra certa é abusada. Não respeitam, saem às vezes humilhando a gente, entendeu? A onda dos moleques hoje em dia é encarar os seguranças. “Ele chega assim e diz o seguinte: me bate. Encosta a mão em mim que eu vou chamar o meu pai e vou te processar”. Esses caras se acham o dono de tudo, eles não respeitam nada não, você diz que não pode passar e o cara passa, nem olha na tua cara, nem te responde, nem nada... Você fala com eles e eles ignora você.

Que inferir do trecho acima? A radiografia é nítida: tratam-se de jovens abusados – e o abuso aqui poderia remeter à idéia de excesso vislumbrada anteriormente –, que se valem de sua condição social privilegiada para debochar, desrespeitar e humilhar aqueles que são pagos para interditar o vale-tudo de suas diversões noturnas. São jovens que fazem uso do rito “você sabe com quem está falando?” de que fala DaMatta (1983), apenas com uma sutil porém significativa diferença: ao invés de perguntar se o segurança “sabe com quem está falando”, indagam se ele “sabe com quem está mexendo”. Significativa não somente porque remete à dimensão de fisicalidade que é característica do discurso da atual juventude carioca (Almeida e Tracy, 2003), mas porque tal dimensão empresta uma conotação ainda mais belicosa e autoritária à expressão como um todo. O segurança não está só “falando”: ele está “mexendo”, o que já é um passo além. Pois é possível “falar” com uma pessoa sem no entanto “mexer” com ela – mas mexer com alguém pressupõe uma animosidade, uma atitude agressiva que vai

149 além de um enfrentamento verbal, uma disposição de ultrapassar a fronteira da palavra mais ríspida. O “você sabe com quem está mexendo?” é um “você sabe com quem está falando?” ainda mais explícito no que este veicula de conflito, de hierarquização de lugares sociais. Daí o desafio, que é também quase um pedido: “me bate”. Se o segurança “encostar a mão” no rapaz, sofrerá as consequências por haver cometido o supremo pecado de ter se esquecido de que, no Brasil, nem todos são iguais, e que ele, um indivíduo, não deveria jamais ter “mexido” com uma pessoa. Situação curiosa, esta que se coloca. Por um lado, os filhos da classe média e alta identificam-se com os marginalizados do crime organizado e disso retiram alguma fruição (nem que seja apenas de ordem estética). Por outro, na hora de concretizar a experiência da violência, não hesitam em fazer uso de um rito que reforça as fronteiras de classes. Uma vez mais, eis-nos diante da velha máxima: sim, nós somos iguais – mas, veja bem, somos diferentes. Afinal, otário é aquele que tem os recursos necessários para transitar por sobre os constrangimentos do sistema, mas não os aproveita. Otário é quem tem a possibilidade de ficar “por cima”, mas escolhe jogar de igual para igual.

Carnaval em Iriri. Tava eu, Marcos e Luciano, só nós três dessa vez. Tamo andando pela rua, indo pra muvuca. A gente ouviu uma confusão, tinha mó galerão, um cara meio que pulando pra brigar com um cara que a gente conhecia, que tava sozinho. O cara ia ser juntado. Aí a gente falou “ó Dudu, se quiser brigar, briga, a gente não deixa ninguém entrar”, só que quando eles começaram a brigar, um outro neguinho quis dar um chute no nosso camarada, aí a gente segurou ele no mata-leão... Aí estancou. Aí mermão, foi a maior porradaria que eu já participei na minha vida, porque foi monstra a parada. Era coisa de vir um cara e você pá pá pá, bomba, e o cara caía. Aí virava pro lado, vinha outro e você bum bum bum, o cara caía, virava pro outro lado e mais um... Eu briguei com muita gente aquela noite, foram vários e vários... Marcos brigou com vários, Luciano com vários. Daqui a pouco eu olho pro lado e um cara pega um daqueles caixotes de madeira de feira e plau, estoura na cabeça do Marcos. Meio filme, você quase que vê em câmera lenta aquela caixa explodindo na cabeça do Marcos, mas o Marcos ficou de pé, e o cara assustou “porra, estourei uma caixa de madeira na cara desse cara e não deu nada”. Aí o Marcos começou a bater no cara, do outro lado o Luciano agarrado no pescoço de um cara, socando a cara dele. Aí eu entrei num bar, muito pequeno mesmo, balcãozinho, um metro e meio no máximo, daqui a pouco eu olho e vejo que tem dois caras me olhando, um deles apóia a mão no bar e me chuta o peito, e eu “caralho”! Aí começei a trocar [socos] com os dois malucos, pá pá pá pá, porrada com os dois, os caras saíram do bar, um deles tava pegando uma mesa, mas era uma mesa enorme de madeira, pesada, então o cara “uuuuuhhhhh”, fazendo a maior força, demorando pra caralho, aí eu “ah não!”, só empurrei e a mesa plá!, caiu em cima do cara. Acabou que todo mundo foi preso. Foi foda porque os caras eram de lá, por isso não parava de vir gente, a

150 gente batia, batia, batia, mas não parava de vir “minhoco”. No final das contas, o Marcos arranhou um pouco a testa e o Luciano machucou um pouquinho a canela, só isso. Os caras tomaram um prejuízo forte. “A gente passou uma noite lá na delegacia, presos, no dia seguinte a gente conseguiu sair porque o pai do Luciano é juiz, e realmente não tinha acusação nenhuma”. Tinha um advogado porta de cadeia pedindo pra gente dar uma grana pra ele subornar o delegado de plantão, que não estava de plantão. “Aí o pai do Luciano ligou pro delegado e mandou ‘aonde você está, que você deveria estar de plantão na delegacia, e você não está, então por favor você trate de ir pra delegacia soltar o meu filho e os amigos dele’”. O delegado foi lá, soltou, e afinal de contas não tinha acusação contra a gente, foi agressão mútua. Não foi uma agressão nossa contra eles, foi mútua, então ou processa todo mundo que tava envolvido na briga, ou não processa ninguém. Soltaram a gente, a gente encontrou os caras depois na rua, mas não aconteceu nada. (Marcos, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)

4 Considerações finais: Na Academia

A primeira implicação de uma pesquisa que aborda um tema relacionado à violência é o comprometimento do próprio pesquisador. Se se abstém de emitir quaisquer juízos de valor, escrevendo de modo a buscar apenas uma descrição mais acurada do problema, corre o risco de ser acusado de perigosa complacência relativista – afinal, dirão alguns, “não tomar posição alguma já é tomar uma posição”. Se condena velada ou abertamente seu objeto de estudo, é provável que venha a ser criticado por haver adotado postura demasiadamente parcial, o que poderia comprometer a validade científica de suas conclusões. Assim, os problemas que o pesquisador necessariamente têm de enfrentar são de natureza metodológica e política. Quem escreve sobre violência, mesmo que sem a intenção declarada de propor qualquer espécie de solução ou remédio, deve estar ciente de que seu texto estará inexoravelmente inserido em um debate mais amplo, debate este que é em última instância político. Fazer etnografia é, há já algum tempo, enveredar por seara espinhosa. Edward Said, por exemplo, percebe nas obras dos principais teóricos da antropologia “uma voz culta, elegante, exploradora, com autoridade, que fala e analisa, acumula provas, teoriza, especula sobre tudo – exceto sobre si mesma” (Said, 2003: 121). Interessa à Said não tanto o discurso antropológico em si, mas suas condições de possibilidade, as relações de poder dentro das quais ele é engendrado e das quais depende para se afirmar. Said, é claro, não foi o único. Inúmeros autores, de filiações intelectuais as mais diversas, juntaram-se à crítica das implicações do modo hegemônico (pensemos em Geertz) de fazer etnografia, pois

a noção de que as culturas são “textos” a serem interpretados pelo etnógrafo confere a ele uma enorme autoridade como decifrador e hipertrofia sua presença no texto etnográfico. Os acontecimentos do campo e as outras vozes tendem sempre a recuar no texto em prol das convicções do escritor e de sua retórica. (Caiafa, 2007: 158-9.)

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Assim, os antropólogos se viram obrigados a repensar o modo de descrever ou representar (esta a palavra crucial) seus objetos de estudo. Escrevendo sobre esta recente movimentação no interior da antropologia, Janice Caiafa (2007) enumera algumas das principais preocupações que passaram a nortear a escrita etnográfica, a saber: atentar sempre para o processo de othering, isto é, de produção exótica do Outro, risco que acompanha toda etnografia; valorizar o momento do campo e, ao mesmo tempo, acabar com os excessos de interpretação tão caros à hermenêutica; enfraquecer as fronteiras entre as vozes dos nativos e a do pesquisador, de modo a ter em mãos um relato polifônico, de enunciação coletiva; e procurar, tanto quanto possível, não “criar mais obstáculos do que o inevitável entre o leitor e a experiência de contato com o outro e com suas palavras” (Caiafa, 2007: 169). Tudo somado, diz-nos Caiafa, o antropólogo produziria um relato etnográfico em alguma medida semelhante a um romance de Dostoiveski, no qual via de regra “o narrador não sabe muito mais que os personagens” (Caiafa, 2007: 166). Quer me parecer que um tal movimento, ao fim e ao cabo, teria a pretensão de unir na feitura da etnografia o desejo por objetividade com o desejo por solidariedade, para usarmos os termos de Richard Rorty (2002). Segundo Rorty,

existem dois modos fundamentais de os seres humanos reflexivos darem sentidos a suas vidas, colocando-as em um contexto mais amplo. O primeiro modo estabelece-se através da narração da estória de sua contribuição para a comunidade. Essa comunidade pode ser a comunidade histórica atual na qual eles vivem, ou outra comunidade atual, distante no tempo ou no espaço, ou ainda uma comunidade totalmente imaginária que consista talvez de uma dúzia de heróis e heroínas selecionados da história, da ficção ou de ambos. O segundo constrói-se a partir da descrição de si mesmos com estando em relação imediata com a realidade não-humana. Essa relação é imediata, à medida que ela não deriva de uma relação entre uma tal realidade e suas tribos, ou nações, ou a lista imaginada de seus membros. Eu diria que estórias do primeiro tipo exemplificam o desejo por solidariedade, e que estórias do segundo concretizam o desejo por objetividade. (Rorty, 2002: 37.)

É uma boa pretensão de se ter, acredito. Mas, no caso desta dissertação, quase impossível de se colocar em prática. Pois como escrever imbuído de um espírito solidário para com jovens que divertem-se agredindo, muitas vezes covardemente, outras pessoas? Contudo, sei que alguns podem ler este trabalho como excessivamente tolerante em relação à contribuição do jiu-jitsu para a eclosão do fenômeno “pitboy”, haja visto que, como foi dito já na introdução,

153 retornei ao tatame frequentado na adolecência esperando encontrar “pitboys” – mas eles não estavam lá, o que aliás me deixou algo frustrado. De fato, a premissa que fundamenta meu raciocínio é a de que o jiu-jitsu em si mesmo não pode ser responsabilizado pelo surgimento dos “pitboys”, embora esteja direta e inextricavelmente ligado a tal fato. Mas não houve, e acredito que isto tenha ficado suficientemente claro, o intuito de empreender qualquer espécie de “defesa” desta modalidade de luta ou de seus praticantes. Aonde o leitor mais crítico poderia enxergar solidariedade, peço que enxergue a tentativa de alguma objetividade: minha experiência em campo, repito, não autorizou a feitura de uma associação direta, do tipo causa e efeito, entre jiu-jitsu e “pitboys”. O jiu-jitsu, como qualquer outra arte marcial, é um conjunto de técnicas corporais que confere aos seus praticantes um tipo de poder fisicamente orientado, cujo emprego depende em última análise do indivíduo que o domina. E indivíduos, sabemos, não existem isoladamente: vivem em meio a um emaranhado de teias de significados que teceram para si próprios. Portanto, o que interessa é apreciar as especificidades das relações sociais que, dentro de uma determinada sociedade e época, autorizam ou reprimem o uso de poderes físicos como os conferidos por uma arte marcial. Foi precisamente esta a tentativa desta pesquisa. E, além disso, não interessa buscar culpados. Estariam os Gracies, e diversos faixas-pretas formados em suas academias, cientes de sua contribuição ao desenvolvimento do fenômeno “pitboy”? Parece bastante plausível. Haveria como que uma crise de educação, uma crise de valores no seio da sociedade, que faz com que muitos jovens sejam criados sem qualquer tipo de instância repressora de seus instintos e vontades, crise esta agravada pela moderna ideologia do consumo e por aquilo que se convencionou chamar de moral do espetáculo? Sem dúvida. Vivemos em meio a um caldo de cultura ibérico, que autoriza e legitima um sistema de relações hierárquicas na estrutura, porém igualitárias na superfície? É inegável. Não seria parte deste sistema a certeza da impunidade, a percepção da falência dos processos legais, a pouca energia da justiça na punição de delitos como os levados a cabo por “pitboys”? De fato. Contudo – e este é o ponto –, como reunir estes e outros aspectos analisados neste trabalho de modo a saber medir o peso e a influência específica de cada um? Se tivesse que responder esta questão, confessaria abertamente não saber como hierarquizar as causas, motivos e influências para a ação de “pitboys”, e acrescentaria que uma tal operação talvez

154 fosse mesmo irrelevante, indesejável, ou simplesmente impossível. De um ponto de vista pragmático (Rorty, 1994; 2002), o melhor que se pode fazer é tentar uma redescrição da interação entre os fatores que compõem a intrincada malha de relações sociais, econômicas e políticas que se imbricam no fenômeno pesquisado. Foi também por esta razão que evitei observar os “pitboys” apoiado no “discurso da falta”. O intuito, desde o início, era o de tentar apreender as múltiplas experiências de lutadores de jiu-jitsu e “pitboys” em suas positividades. Assim, a “falta” de uma filosofia no jiu-jitsu, tantas vezes denunciada por seus praticantes, revelou-se uma filosofia em si mesma, a da eficiência, que é parte de um sistema mais amplo de formação (daquilo que chamei) de um ethos guerreiro, cujo desenvolvimento e manutenção é uma das condições de possibilidade da própria eficiência. O treinamento do jiu-jitsu – que incluía práticas como a “taparia”, o “bloqueio” e o “baile funk”, pseudo-iniciações também inscritas na lógica da eficiência –, e o contato corporal íntimo que ele exige, se mostrou um “fantasma” de conotações homoeróticas que, captado na piada que se faz sobre o esporte, persegue o lutador. A “casca-grossa” e a orelha “estourada”, tradicionalmente pensados apenas como gíria e símbolo de pertença, converteram-se em importantes dispositivos da construção de si, respectivamente um recurso de sociabilidade e um “você sabe com quem está falando?” não discursivo. No ato de “sair na porrada”, que supõe-se desprovido de racionalidade e de regras, encontramos uma brincadeira-jogo, expressão racional e afetiva de uma violência que, inserida num contexto lúdico (a “guerra”), é no mais das vezes praticada sob um cálculo preciso que conjuga risco e adrenalina, reconhecimento e glória. No uso do corpo-arma para roubar, depredar, vandalizar – característico de num comportamento já claramente inclinado à uma malandragem marginal –, surpreendemos um dos elos de identificação de “pitboys” com a violência do crime organizado. Mas, ao mesmo tempo, vimos o quanto esta identificação tem limites: os limites da própria malandragem, que obriga ao uso do “você sabe com quem está mexendo?” e quaisquer outros recursos disponíveis para “sair por cima” de uma situação e seguir sem ser importunado pela polícia ou pela lei. Abri este trabalho com Foucault, e a impossibilidade da linguagem em precisar o quer que seja. Deixo-o com Mario Quintana, que diz assim: “o fato é um aspecto secundário da realidade.”

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