PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Comunicação e Semiótica

A PIXAÇÃO PAULISTA E AS VANGUARDAS: Poesia Concreta no Concreto

DISSERTAÇÃO

Carolina Albuquerque Gonçalves

São Paulo

2010

Carolina Albuquerque Gonçalves (Caru Albuquerque)

A PIXAÇÃO PAULISTA E AS VANGUARDAS: Poesia Concreta no Concreto

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, na área de concentração Signo e Significação das Mídias, sob a orientação da Prof.a Dr.a Leda Tenório da Motta.

2

Carolina Albuquerque Gonçalves (Caru Albuquerque)

A PIXAÇÃO PAULISTA E AS VANGUARDAS: Poesia Concreta no Concreto

::banca examinadora::

______orientadora: Prof.a Dr.a Leda Tenório da Motta PUC - SP

______Prof. Dr. José Eugênio De Oliveira Menezes Fundação Cásper Líbero - SP

______Prof.a Dr.a Lúcia Santaella Braga PUC - SP

3

PARA

todos que amam as formas livres de expressão.

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AGRADEÇO

 a todos que usam as ruas para expor ideias, arte ou para marcar sua existência, fazendo que eu pudesse aprender um pouco mais sobre a complexidade do ser humano e da vida.

 aos autores consultados, por sua dedicação aos temas.

 àqueles que lutam por um mundo melhor.

 à minha orientadora e aos doutores Santaella e Menezes.

 ao pixadores que sempre foram solícitos e, em especial, aos que ser tornaram amigos, após tantos acontecimentos.

 ao Alexandre Duarte, sempre disposto a me ajudar, a me compreender e a me amar.

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“Post-scriptum: „não há arte revolucionária sem forma revolucionária‟.”

Maiakovski, em Plano Piloto para Poesia Concreta, 1958

“Os poetas são as antenas da raça.” Ezra Pound

“A arte é um enigma. E como todo enigma, não é algo que se contempla, mas que se decifra.”

Octavio Paz

6 RESUMO

A presente pesquisa estuda a “pixação", um fenômeno da comunicação que ocorre exclusivamente nas metrópoles brasileiras, mais especificamente em São Paulo, onde surgiu. Trata-se de um tipo de intervenção sobre os muros da cidade que não se confunde com os coloridos nem com as demais inscrições aí lançadas, tais como pichações – estas com "ch" – com fins propagandísticos ou quaisquer outras formas de manifestações escritas com finalidade de marcar presença.

A pixação aqui analisada teve início na periferia de São Paulo, nos anos 1980, juntamente com o movimento punk, em meio a uma disputa pelo espaço entre as gangues punk. Grafada com “x” por seus fazedores, ela assumiu formas visuais e ortográficas e possui regras que a distinguem como movimento cultural do povo suburbano que investe a cidade paulista como mídia para suas ressignificações do cotidiano.

Esta pesquisa trata de mostrar como e por que a pixação é uma comunicação poética urbana e da periferia. Associando o fenômeno aos movimentos modernos e modernistas, a hipótese com que se trabalha é a de que temos aí também uma forma de “arte”. Ela possui as mesmas experimentação, ruptura com a tradição, fragmentação e desconstrução da figuração – ou das letras – das vanguardas, que reelaboram radicalmente a forma, tendendo a aproximá-la do caos. A exemplo de certos movimentos artísticos que a partir do final do século XIX se deixam influenciar pelas cidades modernas e seu novo modus vivendi, a pixação carrega o ruído urbano para a arte e para a poesia. Além dos referenciais vanguardistas, tais inscrições possuem interessantes explorações verbais e visuais associáveis às realizadas pela poesia concreta.

A importância do trabalho para a área da Comunicação advém de a cidade ser usada como medium para este tipo específico de fazer. Além disso, será mostrado que pixadores, ao comunicar o modus vivendi suburbano através da subversão da ortografia formal, da inovação das formas caligráficas e do uso total do espaço metropolitano, transformam o que seria a mera comunicação de um

7 grupo em um ato poético, ou artístico. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico e documental, cujo corpus é constituído de registros fotográficos, pesquisa de campo e anotações feitos pela autora.

Os principais referenciais teóricos incluem as histórias da arte, das vanguardas e das vanguardas tardias e as teorias críticas para a arte moderna e contemporânea, aí incluídas aquelas voltadas para a poesia concreta brasileira.

Palavras-chave: Pixação; ; cultura urbana; vanguardas, poesia concreta.

8 ABSTRACT

This research analyses the "pixação", a phenomenon of communication that occurs exclusively in Brazilian cities, specifically in São Paulo, where it was created. This is a type of intervention on the city walls which shall not be confused with nor other definitions posted hereof, such as tags for marketing purposes or any other kind of striking people by means of written statements.

The “pixação” presented herein had begun in São Paulo‟s outskirts in the 1980s, along with the punk movement, due to a dispute over the superiority between punk gangs. Spelled with an "x" by their makers it assumed visual forms, spelling rules and features that distinguish it as a folk cultural movement, which surrounds the suburban city of São Paulo as a media for their everyday designations.

This research aims to show how and why “pixação” is an urban-poetic and outskirts communication. Associating the phenomenon to the modern and modernist movements, the hypothesis is: we also have a kind of "art". The “pixação” has the same segmentation, breaking with tradition, structure/letters and avant-garde deconstruction and fragmentation, which radically rethink the shape, tending to close it to chaos. Examples of artistic movements from the late nineteenth century are influenced by modern cities and their new modus vivendi, “pixação” carries urban noise to the art and poetry. In addition to the reference avant-gardes, these figures are verbal and visual interesting explorations assignable to those performed by the concrete poetry.

The importance of this academic work to the Communication area comes from the city is being used as a medium for this particular kind of art. It will also be shown that graffiti writters in communicating the suburban modus vivendi by means of the formal spelling subversion, calligraphic forms innovation and full use of metropolitan space; they transform what would be a simple communication of a group in a poetic or artistic act. Methodologically, this is a bibliographic and documentary research, and its corpus is made up of photographic records, field survey and notes made by the author.

9 The main theoretical frameworks include history of art, avant-garde and late avant-garde and critical theories to modern and contemporary art, including those related to the Brazilian concrete poetry.

Keywords: “Pixação”, street art, urban culture, avant-garde, concrete poetry.

10 SUMÁRIO

1. INTRODUÇÂO...... 12

2. A PIXAÇÂO E A ARTE URBANA...... 21

3. SOBRE AS VANGUARDAS E SOBRE O CONCRETISMO COMO VANGUARDA TARDIA...... 33

3.1. O Expressionismo...... 50

3.2. O Cubismo...... 52

3.3. O Futurismo...... 54

3.4. O Dadaísmo...... 57

3.5. O Espiritonovismo...... 59

3.6. O Surrealismo...... 61

3.7. O Muralismo Mexicano...... 63

3.8. Art Brut...... 65

3.9. A Literatura nas Vanguardas...... 66

3.9.1. A literatura de vanguarda no Brasil...... 71

3.10. As Neovanguardas...... 75

3.10.1. Happening e Performance...... 78

3.10.2. Poesia Concreta...... 79

4. ANÁLISE DAS PIXAÇÔES...... 94

4.1. As Palavras na Pixação e suas Poéticas...... 97

4.1.1. Temas principais...... 98

4.1.2. Estilos...... 101

4.1.3. Criações ortográficas a partir do som...... 102

4.1.4. Criações ortográficas a partir do significante e do significado...... 102

4.1.5. Criações de significante partir do significado...... 112

5. CONCLUSÃO...... 124

6. BIBLIOGRAFIA...... 148

6.1. Obras

6.2. Documentos eletrônicos

7. ANEXOS...... 154

11 1. INTRODUÇÃO

“A Pixação Paulista e as Vanguardas: A Poesia Concreta no Concreto” tem como foco a pixação paulista, uma forma de expressão surgida na década de 1980 que está dentre as muitas feitas nas paredes da cidade de São Paulo. O objetivo da pesquisa é examinar as transgressões semânticas das pixações paulistas, entendendo-a como uma poética de um povo urbano e, mais precisamente, suburbano, que vive à margem das leis e dos direitos instituídos.

A pixação do meu objeto de estudo é escrita com “x” por seus fazedores e não está nos dicionários. Ela é distinta da pichação, com “ch”, esta sim verbete no Houaiss e no Aurélio e que diz respeito a quaisquer palavras escritas em, por exemplo, paredes, árvores e bancos. A pixação tratada nesta pesquisa é o movimento surgido na periferia de São Paulo no início dos anos 1980 com o movimento punk, através da disputa pelo espaço entre as gangues. Segundo Michel Maffesoli, podemos dizer que a pixação é uma tribo urbana, já que estas se constituem nas

diversas redes, grupos de afinidades e de interesse, laços de vizinhança que estruturam nossas megalópoles. Seja ele qual for, o que está em jogo é a potência contra o poder, mesmo que aquela não possa avançar senão mascarada para não ser esmagada por este. (MAFFESOLI, 1998: 70)

O projeto nasceu da minha pesquisa lato sensu nos anos de 2005, 2006 e 2007 intitulada A Cidade Fala – A Arte Urbana na Cidade de São Paulo, para a Fundação Cásper Líbero, na qual constatei que a pixação é um rico movimento social e cultural com implicações artísticas – e não só um ato de vandalismo. Apesar da sua importância como manifestação popular, há pouca bibliografia sobre o assunto. E quando há, são teses e monografias nas áreas sociologia e antropologia, todas com fundamentações limitadas à área da pesquisa e, não raro, constatações errôneas.

12 Nestas áreas, há dois bons trabalhos acadêmicos, o de Alexandre Barbosa Ferreira, de Ciências Sociais, e o de Lucas Fretin, o videodocumentário “A Letra e o Muro”, da cadeira de antropologia visual. Em se tratando da área do design das letras, há a dissertação "Os Tipos Gráficos da Pichação: Desdobramentos Visuais", defendida em 2007 por Gustavo Lassala, que inclusive criou um alfabeto de fontes digitais com o estilo da pixação paulista, chamado “Adrenalina-SP”.

Se no começo da minha pesquisa só existiam publicações acadêmicas, no início de 2008 foi lançado primeiro livro sobre a pixação brasileira, Pixação: São Paulo Signature. Publicado na França, ele explica de forma detalhada e completa como é praticada e organizada, incluindo aí ilustrações e uma relação de tipologias, além de muitas imagens da cidade pixada.

Ainda em 2006, passei a anotar os nomes de pixações e fotografá-los, com intenção de registrar toda essa rica prática popular paulista, que sofre por falta de material comercial de qualidade devido ao seu caráter ilegal. O trabalho de anotação tomou 3 anos da minha vida em praticamente todos os momentos – só quando estava dentro de algum lugar eu parava o incessante vício de anotar todas as pixações que via. A lista, que aumentava diariamente, deu origem à minha percepção sobre os nomes: eram tão engraçados, ou tão agressivos, ou tão originais, ou tão rebeldes com a língua, ou tão diferentes – com palavras que eu mesma nunca usei –, que passei a dar atenção especial ao conteúdo e não à forma da letra, como é de praxe. Além disso, ao prestar atenção nesses nomes, separadamente e como um todo, notei a particularidade das significações dele para o que podemos chamar de vida urbana e marginal.

O conteúdo dos nomes revela várias facetas, mais adiante explicitadas, e dão uma narrativa do que é o Brasil. Por isso o projeto inicial era publicar estes nomes, a classificação e o estudo deles como obra coletiva de um povo.

Dos anos 1980 para cá a pixação espalhou-se pelas principais capitais, tornando-se uma prática endêmica do Brasil. O país é o único que produz essa cultura - é, portanto, um bem imaterial da cultura brasileira (mais especificamente, da paulistana, pois aqui é aqui que surgiu e é totalmente executada na sua forma característica). Com a Lei Cidade Limpa, provou-se o desconhecimento do assunto tanto pela sociedade como pelo governo, que incentiva o graffiti para

13 cobrir as pixações sem conhecer quem são as pessoas que compartilham dessa estética e suas motivações, e muito menos sem dar o devido olhar a essa manifestação do povo.

Mas foi a Lei Cidade Limpa que gerou, entre os pixadores, uma reflexão mais aprofundada sobre a memória do movimento. Muitas pixações antigas, carregadas de história, estavam sendo apagadas. Era o material memorial deles sendo destruído, um caminho sem volta. E-mails de protesto chegaram a circular entre os pixadores e, em 2008, uma manifestação em frente à prefeitura de São Paulo chegou a ser marcada, mas sem resultado.

Se a pixação faz parte do dia-a-dia de cerca de 9.0001 anônimos moradores de São Paulo e Grande São Paulo, com amizades, coleções e histórias de vida sendo construídas devido a ela, entre a população em geral a pixação passa como sujeira e vandalismo ou, mais raro, a olhos cegos. Ou passava, até o ataque de um pequeno grupo à Bienal de Artes em outubro de 2008. Foram cerca de 50 pessoas, encabeçadas pelos dois mesmos líderes que atacaram antes a conclusão de curso de artes plásticas da faculdade Belas-Artes, em julho, e a abertura de uma exposição na Galeria Choque Cultural, em agosto2.

Ao atingir em cheio o calcanhar de Aquiles dos intelectuais, mecenas e lideranças das artes instituídas, a pixação entrou para as discussões de

1 Número aproximado, segundo estimativas da pesquisadora e de alguns pixadores. 2 O ano de 2008 foi agitado no meio das artes. Rafael Pixobomb, pixador, e Djan Cripta, que se diz “ex-pixador” e atualmente filma os colegas em ação, resolveram mostrar para o mundo a pixação. Como trabalho de conclusão de curso, Pixobomb, que cursava a Faculdade Belas-Artes com uma bolsa de estudos, atendeu o chamado da faculdade, convidando sua família. A “família”, segundo me relatou informalmente alguns meses antes ao me contar sobre a intenção do ataque, eram seus amigos de pixação, e nada mais coerente que chamá-los para mostrar à faculdade o que ele considerava como arte. Assim, sua “família” foi à faculdade e a pixou, sendo este o trabalho final de Pixobomb. Resultado: pancadaria, confusão e alguns pixadores levados à delegacia. Cerca de um mês depois, o mesmo grupo invadiu a galeria de Arte Urbana Choque Cultural, pixando as paredes e obras. Justificativa escrita no convite para o ataque: “contra a comercialização da arte de rua”. Em outubro, influenciada pela crise econômica mundial e na sua administração, a Bienal havia deixado um andar inteiro do prédio sem obras de arte, chamando o andar de “Espaço para Reflexão”. No dia de abertura ao público da Bienal do Vazio, como ficou conhecida, cerca de 50 pixadores invadiram o local e pixaram o andar sem obras. A ordem dos dois líderes era “preencher o vazio, que é o que a pixação sempre faz” e “mostrar o que era arte de verdade”, segundo o que me foi relatado por Djan. Além de revolta dos diretores e de parte da população, a invasão trouxe debates para o mundo acadêmico das artes sobre a “pixação como arte”, mais até do que as próprias obras da Bienal ou o espaço para reflexão. No ano seguinte, 2009, Djan foi convidado para pixar, desta vez autorizado e com direito a cachê, a Fundação Cartier, em Paris, convite atendido prontamente. No mesmo ano foi lançado no circuito comercial de salas de cinema, pelos mesmos pixadores, um documentário sobre a pixação, “Pixo”. 2 Como arte instituída, entenda-se tudo o que é reconhecido amplamente por críticos e pesquisadores de arte como sendo arte.

14 acadêmicos e para o mundo das Artes. Desde então, muito se falou sobre a pixação, porém com pouca profundidade e com muito equívoco. Além de a questão estar em evidência, e, por isso, aproveitarem quaisquer “achismos” para discuti-la, quem trabalha ou estuda a arte instituída3 pouco ou nada sabe sobre os processos dentro da pixação e da cultura de rua. É por isso que a pixação necessita da profundidade de um estudo que a referencie, que a contextualize neste emaranhado de ideias chamado arte.

Diferente dos estudos cartesianos feitos (e exigidos) nas academias, penso que somente a análise da pixação em um contexto histórico-artístico com influências geográficas e sociais pode nos fazer entender a prática da pixação. Uma análise estruturalista, que explore e decifre as interrelações e os significados de várias práticas que, servindo como sistemas de significação, produzem uma cultura – como fez Claude Lévi-Strauss.

Na falta de trabalhos profundos sobre pixação que não levam em conta apenas o aspecto social, não tive como executar o projeto inicial, que era a publicação das pixações, a catalogação e o estudo delas. Não existiam pesquisas e livros que dessem suporte às minhas teorias e às questões colocadas por minha orientadora, então tive que abandonar minha primeira opção. Era preciso primeiro referenciar e localizar a pixação – que é o que faço aqui –, para num próximo trabalho analisar. Não se trata de uma arqueologia das pixações, muito pelo contrário. Um estudo aprofundado sobre a evolução das formas das letras e do uso do espaço ainda está por ser escrito por algum pesquisador dedicado – e apaixonado.

A “alma” da ideia inicial continua aqui: a que, na criação do nome, da forma e na execução das palavras que lhe intitulam, pixadores são criadores de sentido da realidade urbana e suburbana da metrópole paulistana. Portanto, em alguns momentos falarei sobre a prática, em outros sobre a forma/design4, em outros sobre a espacialidade, e em outros sobre o conteúdo e sua semiose.

3 Como arte instituída entendemos tudo o que é reconhecido amplamente por críticos e pesquisadores de arte como sendo arte. 4 A forma a qual me refiro é o formato da letra ou a composição das grifes.

15 Os ataques feitos à Faculdade Belas-Artes, à Choque Cultural, à Bienal e aos grafiteiros5 não serão aqui analisados, já que foram feitos por um pequeno grupo que no meu ponto de vista e em minhas conversas com pixadores não tem legitimidade entre a maioria dos líderes pixadores, sofrendo inclusive críticas. Além disso, o assunto tratar-se-ia de outro trabalho, visto a quantidade de acontecimentos e argumentações.

Podemos afirmar a originalidade desta pesquisa no que se refere ao enfoque dado à pixação. A pixação é, sim, um grito da periferia por visibilidade, como tratam os trabalhos de sociologia, psicologia e antropologia. Mas é muito mais. Este estudo fala sobre a cidade investida como mídia e sobre a significação das palavras criadas e escritas por eles, inserindo-as no universo da nossa cultura popular, da poesia e das artes de vanguarda. A “arte” à qual me refiro é a noção genérica que engloba literatura, música, dança, corpo, artes visuais, desenho, cultura popular e arte primitiva, e não apenas as belas-artes.

Através do apanhado de nomes escritos pela cidade e a análise de alguns deles, será possível observar as transgressões semânticas, ortográficas e culturais da pixação paulista. Ao final, elementos da pixação serão comparados com elementos da poesia concreta. Escolhi os movimentos de vanguarda, com ênfase na poesia concreta, como referências principais por suas óbvias semelhanças, porém outras práticas também serão citadas. A poesia visual também entra como referência essencial na comparação, porém, por a poesia concreta ser sua predecessora, tomaremos como referencial teórico apenas esta, mas tendo em mente também a visual.

A pixação será analisada utilizando-se de elementos da cultura e da arte acadêmicas, portanto não serão as mesmas valorações feitas pelos pixadores. Nem sempre os pixos mostrados aqui são os mais famosos ou respeitados no meio. Lembro ainda que, embora estejam no mesmo espaço – o exterior das cidades – e ambos marquem presença, a pixação é um movimento distinto do

5 No mesmo ano, em 2008, trabalhos em locais reconhecidos pela população como espaço dos grafiteiros, foram pixados pelos mesmos pixadores, a saber: o Buraco da Paulista, o (Vila Madalena), o tapume do SESC no Centro da cidade e, em 2010, o painel gigante da Radial Leste com a Av. 23 de Maio. As justificativas eram: 1. retaliação pela comercialização da arte de rua; 2. o uso de letras de pixação por parte de alguns grafiteiros em suas obras e; 3. o apagamento de pixações para fazer graffiti em cima. Posso aqui informar que os argumentos são concordados por líderes pixadores, mas não a ação.

16 graffiti. Outro ponto a destacar é que não coloco nomes como stencil, wild style, graffiti ou happenings, por exemplo, em itálico, por ter certeza que estas palavras “importadas” já fazem parte do uso sistemático e casual, se não te todos, mas de uma parte da população.

Por ser a pixação um fato que está (e influencia) a vida de todos diariamente – e a maior parte do dia –, tento me afastar o máximo possível da linguagem acadêmica, como sempre busco em meus textos. A ideia é fazer este trabalho entendível para o maior número de pessoas, indo além do pequeno universo intelectual e do círculo de quem entende semiótica, mas ainda assim mantendo-se relevante e profunda. (Os livros de Gombrich sempre me foram exemplar neste quesito).

Assim, o trabalho se apoia na Semiótica e na História da Arte, notadamente a vanguardista, para responder às questões colocadas por essa prática tão importante para moradores de periferia e, por que não, e por isso mesmo, para a nossa sociedade.

A importância das vanguardas na pesquisa vem do fato de terem influenciado a nova vida que começou nas cidades modernas (e foram influenciadas por ela). É somente por causa delas que temos e vemos a arte como vemos hoje: o pop6, o punk, a new wave, o rock (e suas derivações), as performances, a cultura dos HQ‟s e comics, a MTV, a videoarte, a tatuagem, o psicodelismo, o graffiti, o rap, o soul, o funk, o jazz, o breake, por que não, a pixação, não existiriam sem as mudanças estéticas e culturais colocadas por elas.

As vanguardas questionam o estatuto tradicional da obra de um modo integral e que esse traço implica modificações na circulação, produção e recepção dos produtos artísticos. (AGUILAR, 2005: 24).

Isso quer dizer que as vanguardas podem – e puderam – se desfazer da aparência estética da obra e também criar uma nova ideia do que seria obra de arte – e assim fizeram.

6 Uso “pop” aqui no sentido mais abrangente: a aura que permeia todas as práticas da indústria cultural e também o estilo “música pop”. O esclarecimento é necessário pois todas as práticas citadas depois do “pop” também são consideradas “pop”, ou seja, dentro do universo pop.

17 O livro Teoria das Vanguardas de Peter Bürger, considerado fundamental para o estudo das vanguardas, não será utilizado nesta pesquisa. Apesar de conhecê-lo, o fato de Bürger se valer de um único critério, a superação da obra de arte, para definir as vanguardas histórias, torna impossível minha argumentação e vai de encontro a alguns outros aspectos que fizeram parte e penso serem fundamentais para o espírito vanguardista. Ao ler o livro de Gonzalo Aguilar, Poesia Concreta Brasileira, vi que o autor também aponta a mesma crítica. Bürger não analisa o contexto histórico, para mim e para Aguilar de fundamental importância para se falar em vanguardas, em poesia concreta e, no meu caso, em pixação.

Para trabalhar com conceitos de arte moderna, que rompe paradigmas da obra de arte que perduraram por muitos anos, e, principalmente com a poesia concreta, que quebra fronteiras semióticas ao unir o que é lido com o que é visto, é preciso muitas vezes – ou melhor, quase sempre – enfrentar preconceitos, a questão do gosto e questionamentos sobre a validade e a qualidade das obras.

Um dos fatos que mais me surpreendeu durante o transcurso da pesquisa foi a resistência e as rejeições que os poetas concretos ainda continuam provocando no campo intelectual e literário brasileiro. Diferentemente do que acontece com outros autores (tanto anteriores como posteriores), a valoração da obra dos escritores paulistas costuma ser acompanhada de opiniões frequentemente impregnadas de certa violência e distribuídas dicotomicamente: ou se está a favor ou contra. (AGUILAR, 2005: 15)

O autor do livro Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas, Gilberto Teles, relata na introdução de seu livro que sofreu preconceito e empecilhos para o lançamento na ocasião. “Não faça lançamento do seu livro, pois estão de olho em você. Eles acham que essas promoções sobre o modernismo não passam de pretexto para atos comunistas” (TELES, 1997), ouviu do reitor da universidade em que trabalhava.

18 A pixação também evoca o medo, pois pixadores invadem espaços públicos e privados da cidade para colocar suas inscrições. Como percebido no medo aos “comunistas”, o temor de alguém tirar a posse do que se tem é enorme. Entre imaginação fértil e a realidade, para influenciar na aceitação ainda há questões mercadológicas, culturais e as rixas.

Quero simplesmente assinalar como as atitudes faccionais dificultam a aproximação ao fenômeno de um modo mais compreensivo, e não por menos crítico. (AGUILAR, 2005: 16)

Prova do ódio, ou medo, causado pela simples existência dos concretos é a crítica de Roberto Schwarz ao poema publicado no suplemento literário Folhetim, da Folha de S. Paulo, em 27 de janeiro de 1985, o “Pós-Tudo” de Augusto de Campos. Intitulada “Marco Histórico”, e publicada em 31 de março do mesmo ano também no Folhetim, trazia palavras ofensivas, numa argumentação sem o distanciamento pessoal que a profissão necessita, totalmente lançada ao gosto particular de Schwarz.

Também há de se lembrar que o ensino da literatura e do conceito de arte nas escolas é uma repetição de conceitos formulados há séculos. O discurso literário é mostrado sempre da mesma forma, o que pode causar a rejeição dos novos modos de se expressar com palavras escritas, e a noção de arte ainda passa pelos gostos clássicos dos professores e da família.

Na escrita coloquial, cada vez mais o que se vê são frases curtas e palavras abreviadas (ex.: “Vms sair hj i bbr td na bld?”, na linguagem formal “Vamos sair hoje e beber tudo na balada?”) e o uso das letras como fonemas (ex.: td, vc, tb, msm). Assim, percebe-se que os pixadores faziam a linguagem da internet pelo menos 15 anos antes de ela surgir devido à necessidade de rapidez na digitação. Mas talvez sem a existência dos modernistas, a palavra como obra de arte e como material para experimentação e transgressões, não tivesse existido. Eles deram abertura para este tipo de criatividade que, por sua vez, foi influenciada por predecessores que também quebraram paradigmas nas

19 experiências literárias, como Poe, Whitman, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé. Estes

assinalaram na poesia ocidental os pontos de ruptura estética e temática que, somados ou desenvolvidos, motivaram o aparecimento de vários grupos de vanguarda na poesia europeia deste século. (TELES, 1997: 27)

Finalizando, analisar a pixação entendida como discurso poético e artístico ajuda a apreender o ponto de vista e a prática dos grupos historicamente marginalizados, abrindo espaço para novas e revigorantes leituras da realidade atual do Brasil e da metrópole paulista. Ao entenderem a riqueza desta cultura popular será possível, para os cidadãos, mudar a relação com a cidade e com a própria pixação, além de se pensar em uma verdadeira estética brasileira.

20 2. A PIXAÇÂO E A ARTE URBANA

Desde os primórdios da cultura humana o espaço foi apropriado para mensagens. E, mais do que ser apenas mídia para nossas mensagens, o entorno influencia nosso modo de agir, seja qual for o ambiente em que vivamos. Baseados nos paradigmas da apropriação do espaço pelo ser humano e na influência do espaço sobre nós, podemos afirmar que a vida nas cidades deu origem a um novo fazer. Nossa adaptação ao habitat urbano de hoje, somado aos movimentos culturais, sociais, econômicos e artísticos deste século fizeram com que a cidade se tornasse mídia de uma arte influenciada pela vida no espaço urbano, a Arte Urbana.

O termo “pixação” deriva da palavra “piche” (GITAHY, 1999: 20). Na Idade Média, a fachada dos praticantes de bruxaria, ou considerados assim, recebia inscrições feitas com esse material para marcá-las como hereges e depois, como sabemos, serem perseguidas e queimadas na fogueira. Mas não podemos deixar de citar a sempre comentada prática do homem primitivo, que fazia inscrições rupestres para deixar sua marca, sua magia ou sua história em seu habitat.

Se não podemos chamar de novo o suporte, que é visto desde as civilizações gregas e romanas – Pompeia é prova e exemplo hours concours7, nas culturas pré-colombianas, indígenas e americanas primitivas8, na Índia, na China e nos países árabes, regiões conhecidas pelos detalhes arquitetônicos com escritos religiosos – e, num passado mais próximo, na própria Europa do século XIX, com nomes e frases de rebeldia escritas nas paredes das cidades modernas,

7 “Descoberta importante dos arqueólogos foram os grafitos que se espalhavam por toda a cidade de dar água na boca aos melhores grafiteiros (ou, vulgarmente falando, pinchadores (sic)) das metrópoles do século XX. Havia inscrições para todos os gostos: desde os que anunciavam a troca de um amante por outro até citações, nem sempre exatas porque escritas de memória, de poetas como Virgílio. Além disso, nos muros das casas, edifícios públicos e até nas sepulturas gravavam-se anúncios de combates de gladiadores e muita propaganda eleitoral. Todos os anos a população elegia os duúnviros, as duas autoridades mais importantes da cidade, equivalentes aos cônsules romanos, e dois edis, espécie de vereadores que cuidavam da inspeção e conservação dos edifícios públicos.” (Fonte: ) 8 A Serra da Capivara, localizada no Piauí, Brasil, contém a maior quantidade de pinturas primitivas sobre rocha do mundo, sendo Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO. As inscrições tem cerca de 100.000 anos.

21 podemos dizer que a linguagem é nova – é reflexo das sociedades contemporâneas urbanas (e cada vez mais urbanas)9.

(...) A pichação não é exclusividade das sociedades atuais. As paredes das cidades antigas eram tão pichadas quanto as de hoje. A julgar pelas paredes de Pompeia, (...) predominavam xingamentos, cartazes eleitorais, anúncios, poesias, praticamente tudo se escrevia nas paredes. (GITAHY, 1999: 20).

Na Paris dos modernistas, os postes de luz eram utilizados como mídia para as mensagens e poemas dos artistas. Desde essa época já era bacana – ou “moderno” – colecionar papéis com assinaturas e poemas ou frases. Naquela época, cartazes de Toulouse-Lautrec tomaram conta das ruas, disseminando os cartazes artísticos no ambiente externo urbano. A Paris modernista e os cartazes seriam influência, mais tarde, da cultura de colagens e stencils10 vistos na street art, mais especificamente na francesa, na qual se vê muito estas técnicas.

A partir da metade do século XX as cidades tornaram-se suporte para a mensagem de grupos que apareceram na esteira dos movimentos de vanguarda, da pop art, da contra-cultura e do movimento negro. Na França dos anos 1960, pichações se alastraram como palavras de ordem dos movimentos dos estudantes e dos trabalhadores, época conhecida como Maio de 68. Nos Estados Unidos, o tag (assinatura nas paredes), virou febre nos anos 1970 nos guetos de Nova York. Cornbread, da Filadélfia; Top Cat 12611, que morava na Filadélfia, mudou-se para Nova York e levou o estilo; e Taki 18312, em Nova York, são considerados os primeiros do tag, mas é impossível dizer com certeza quem começou primeiro. Relatos com nomes disseminados pelas cidades norte- americanas remontam a 1820, mais de 100 anos antes do início da cultura do tag. Mais tarde, sendo acrescentado de cores e novos formatos de letra, o estilo veio a originar o graffiti novaiorquino.

9 Para saber mais, consulte FILHO, 2009. 10 Técnica que usa cartolina ou outro material duro com um desenho vazado, pelo qual passa a tinta que formará o desenho na parede. 11 Referência ao número da casa onde morava. 12 Referência ao número da casa onde morava.

22 O certo é que a disseminação do que Cornbread, Taki 183 e Top Cat faziam foi tanta (rendendo inclusive matéria no New York Times em 1971 com Taki 183, entre outros veículos) que em 1973 o movimento explodiu nos guetos e metrôs novaiorquinos, tornando-se uma “subcultura” vista como uma reação à despersonalização da sociedade massificada e da afirmação dos negros e hispânicos na sociedade13. Assim, a cidade passou de um aglomerado de construções e pessoas para uma mídia de extensão mundial de uma arte que é metáfora do ritmo e do cotidiano nas cidades modernas, a Arte Urbana.

No Brasil do século XX, a atitude moderna de pintar pelas ruas teve proeminência nos anos 1960, com as manifestações políticas. Depois das palavras de ordem, mais tarde vieram frases de efeito como “Celacanto provoca maremoto” e “Lerfá Um” no Rio de Janeiro, em 1977; e “Rendam-se terráqueos”, “Sou pipou”, “Rainha do Frango Assado” e “Cão Fila”, em São Paulo.

No início da década de 1980, as frases nonsense passaram a dividir espaço com os grupos de jovens punk, que escreviam os nomes de suas gangs na rua, e com as pichações poéticas dos artistas plásticos. Entre os grupos de jovens, os formatos das letras consideradas hoje “pixação” (não tinham este nome à época, sendo que graffiti e pichação não eram diferenciados, tratando-se tudo de “pichação”) evoluiu até chegar ao estágio da codificação. Vemos que as relações que se dão no contexto da cidade geraram acontecimentos que fizeram nascer a pixação de que trata este estudo, um fenômeno peculiar da São Paulo moderna, de cultura ocidental e capitalista.

Assim, daquilo que estamos aqui considerando como Arte Urbana não fazem parte as pichações - com “ch” - como palavras de ordem, frases políticas ou declarações amorosas, nem manifestações artísticas como esculturas, shows, encenações, intervenções etc. Estas já existiam antes da cidade contemporânea pixada e apenas usam a rua como palco, não se caracterizando como Arte Urbana (ou Urban Art).

No geral, pode-se dizer que a Arte Urbana é formada por expressões feitas na rua ou não, com formatações do mercado formal das artes ou não. Em minhas

13 Apareceram inclusive “clones”, que escreviam estes mesmos nomes mas com outra numeração, provavelmente referente às suas residências.

23 pesquisas14, identifiquei 3 núcleos (ou braços, ou divisões) principais da Arte Urbana15: a street art, o graffiti e a pixação, esta última existente somente no Brasil, com mais intensidade nas capitais como São Paulo, Curitiba e Brasília, cidades onde a forma que a caracteriza é dominante.

Na área da street art estão modalidades como o stencil, o sticker, os lambe-lambes, as intervenções de rua, as pichações poéticas, o light graffiti, o reverse graffiti, painés/murais, ajulejos etc. Aqui enquadram-se expressões abertas para o público, ou seja, que podem ser entendidas por qualquer um pois seus códigos não são fechados. Além disso, todas essas modalidades podem estar fora do suporte “rua”, o que não as impede de seguir sendo, mesmo assim, street art.

No graffiti, temos estilos como o tag, o wild stile, personagens e o trow up (também chamado de bomb). O graffiti possui códigos específicos fechados para o grupo, e há discussões entre os artistas se fora do suporte rua e se autorizado ele continua sendo graffiti, visto que para muitos a característica essencial dele é ser ilegal e estar na rua.

Por fim, no que considero Arte Urbana há ainda a mais obscura, radical e mal-entendida forma de manifestação da Arte Urbana (e por que não dizer da arte em geral?), a pixação,. Para ilustrar bem, pode-se dizer que a pixação é uma “pichação” com formas angulosas e nomes característicos de grupos da periferia paulista. E é neste contexto que temos que tomar a pixação.

14 GONÇALVES, Carolina Albuquerque. A Cidade Fala: A Arte Urbana na Cidade de São Paulo. Pós-Graduação Cásper Líbero – SP. 2007. 15 Tanto para a explicação de Street Art como para a de Graffiti não estou levando em conta as diferenças terminológicas para outros países, que são muitas.

24 ARTE URBANA

Street Art Graffiti Pixação - stencil - sticker - tag - pixo (da turma ou união) - lambe-lambe - personagens - piece - grife - light graffiti (da turma ou união) - pinturas - bomb - grapixo - graffiti fine art - trow up (da turma ou união) - reverse graffiti - wild style - folhinha (coleções) - pichações poéticas - agenda (muro ou etc. caderno)

na rua na rua ou não ilegal na rua ou em folhinha legal e ilegal ilegal

A pixação surgiu no início dos anos 1980 com o movimento punk, na periferia de São Paulo, através da disputa pelo espaço entre as gangues. A forma das letras veio da influência das capas dos discos de hevy metal e punk, pois os nomes das bandas eram escritos em letras góticas. Esse formato de letra era copiado pelos apreciadores do movimento punk, que no início do movimento formavam grupos ou gangues que marcavam seus nomes nos bairros principalmente do ABC, local onde punk começou. Isso é o que podemos afirmar através de relatos e pesquisas feitos para e pela autora, pois não há maiores registros sobre esse surgimento. vide anexo 1

Como centro urbano conectado a outras metrópoles que já era, São Paulo viveu com intensidade os movimentos punk e hip hop, que chegaram aqui no início dos anos 1980. Influenciados pelos graffitis americanos e artistas como Basquiat e Keith Hearing e a chegada de Alex Vallauri com seus carimbos, os então estudantes de artes plásticas Maurício Villaça, Rui Amaral, o grupo Tupinãodá, 3nós3, entre outros, saíram às ruas pintando/desenhando as paredes e fazendo intervenções na cidade. Na mesma época, Juneca e Pessoinha passaram a escrever seus nomes pelas ruas da cidade.

25 Com o passar do tempo, em quase 30 anos a pixação adquiriu formas e regras únicas, vindas tão somente dos praticantes dela: o povo que aqui habita. Podemos afirmar que atualmente a pixação é a escrita de palavras e símbolos que nomeiam grupos e/ou indivíduos, palavras estas que muitas vezes contrariam as normas formais da ortografia, para se intitular e sair por aí competindo ao deixar sua marca. Como diz Richard Neville, a contracultura é “em si um acontecimento não planejado, casual e imprevisível, com profundas implicações políticas” (NEVILLE apud HOME, 2004:7).

Dentre o que é feito com nomes e/ou palavras na Arte Urbana, temos o trow-up, os tags, o 3-D e o wild style e a street art (enquadramos aqui a pichação poética). Portanto a pixação é um estilo dentro das inscrições de nomes da Arte Urbana e não se confunde com os outros. Muitos saem por aí escrevendo coisas – picham, mas não são pichadores da “tribo” da pixação – ou são grafiteiros de letra ou “taggeadores” (fazem tag).

A pixação das letras indecifráveis, rebuscadas e monocromáticas é genuinamente brasileira. Ela nasceu aqui e não existe no exterior. Podemos afirmar que a conjuntura deste país, com polícia mal treinada e poucos homens, com renda nas mãos de poucos, com a “cultura do malandro” e com um povo criativo que inventa novas formas de vida para viver e sobreviver originou uma cultura assim. Ou seja: a pixação é não só genuína, como endêmica e o espelho do Brasil, reflexo de um país que permitiu a explosão dos “rabiscos” pelas cidades; de um país que cria manifestações irreverentes, diferentes, criativas, provocadoras, abusadas e divertidas.

Não se trata aqui de investigar as raízes da pixação nem dos movimentos que vieram antes dela, mas temos que ressaltar a importância das Bienais de Arte e de Arquitetura, que traziam artistas modernistas consagrados, além da inauguração dos museus MASP e MAM – nos anos 1940 e 1950 –, como importantes atores no processo de formação do imaginário artístico de São Paulo. Soma-se aí o caráter “antropofágico” modernista, que une o popular e o folclórico ao moderno e urbano.

Juntamente com os modernistas da Semana de 1922, quem representa bem este aspecto caótico, modernista e antropofágico brasileiro é a Tropicália,

26 que absorveu e incluiu “componentes da modernização institucional e urbana, e a presença constante da música popular nos meios de comunicação de massa e nas festas populares, como o carnaval” (AGUILAR, 2005: 128). Os concretistas, aliás, eram admirados pelos depois chamados tropicalistas, os quais os apoiavam e se uniram posteriormente.

Foram os tropicalistas que estabeleceram, no Brasil, “o corpo como lugar”, deslocando a obra de arte. Fazendo uso do corpo como suporte para a arte, utilizaram roupas, adereços e maquiagens hippies, assim como objetos kitsch e restos, agregados à expressividade das performances. Pontuamos aqui a obra “Parangolé”, de Hélio Oiticica, obra-roupa (ou roupa-obra), que traz a baixa cultura (farrapos coloridos = cultura popular, carnaval, maracatu, boi-bumbá) para a alta cultura (arte pós-moderna, conceitual, institucionalizada). Flávio de Carvalho, conhecido pelo que se convencionou a chamar de happening, fez um estudo com roupas em farrapos, como de mendigos, o que livraria as pessoas e todo autoritarismo da disciplina e da moda, e desfilou pela São Paulo dos anos 1950 com uma saia. Devido ao caráter provocador, aqui também devemos citar a obra “Experiência no. 2” de Carvalho, na qual andou no sentido contrário e com um chapéu no meio de uma procissão religiosa, sendo quase linchado. Isso em 1931.

Se levarmos em conta o que conhecemos modernamente por “antropofagia”, pixadores saem na frente da maioria dos artistas brasileiros: beberam do punk e do hip hop, assim como dos movimentos contraculturais e do movimento negro, engoliram a vida urbana marginal da metrópole brasileira, somaram aí as práticas populares (jogos-dança ou lutas-arte, como capoeira e maracatu) e uma pitada de caos e depois deglutiram tudo, dando no que deu, um fazer híbrido como a pixação.

Não se sabe quando “pichação” passou a ser “pixação”. Também não se sabe se foi propositalmente ou erroneamente. O certo é que os pixadores fazem questão de escrever “pixação” e seus derivados com “x”. Mesmo os que sabem a grafia formal, insistem em escrever com “x”. É como se a letra “x” tivesse algum poder. É perceptível que quando escrevem “pixação” a palavra sai poderosa, bem mais talvez do que se escrevessem “pichação”, e muito desse poder provavelmente podemos atribuir aos simbolismos do “x”.

27 Simbolicamente, no “x” está contida a cruz, sinônimo de mártir, sofrimento e veneração, e o status dos elementos transpostos na diagonal. Ou, ainda, o “x” de “versus”, como se lutassem contra o sistema. O “x” também representa o masculino, enquanto o “y”, o feminino (genética). A pixação é eminentemente feita por homens, geralmente machista e sempre máscula pois usa a habilidade e a força corporal. Podem ainda insistir em usar o “x” pelo simples fato de contrariar regras.

Na pixação, as palavras são mais do que um nome de uma coisa. Por exemplo, para os músicos, o principal elemento de trabalho é a música, e não nome da banda. Para os pixadores, o elemento de trabalho é a palavra que escolheram para refletir sua vida ou visão de mundo, seu significado, sua forma, seu lugar e a quantidade. Os pixadores trabalham as letras dos pixos como hábeis lapidadores. As letras também são feitas nas “folhinhas”, que são como autógrafos que eles trocam entre si para colecionar. Das folhinhas as palavras vão para as ruas - embelezar ou enfear e, certamente, poetizar, seja pela forma da letra ou pelo local, seja pela atitude do autor ou pelo conteúdo. vide anexo 2 e anexo 3

Uma pixação pode ser escrita por uma, duas ou mais pessoas, e é carinhosamente chamada de “pixo”. Quando possui mais de um integrante, o pixo é uma “turma”. Para fazer parte de uma pixação (ou turma) é preciso pedir para o cabeça. O cabeça geralmente é quem inventou a pixação/turma. Ele dá o aval para o sujeito poder entrar na turma e escrever aquele “pixo”. É comum as turmas saírem junto para pixar, por isso lê-se muitas vezes nomes lado a lado, geralmente com uma flecha apontando para o próximo pixo. Além das turmas, existem as “grifes”. Elas são um nome ou uma ideia (Ex.: União São Paulo Paz) que pode reunir várias turmas e ser o símbolo delas, ou ser o “brasão” de uma pixação . “Eu queria inventar uma grife que tinha como símbolo o nome a minha ideologia na pixação”, disse Naldo16, do pixo OSBV (osbichovivo), que faz a grife HFAD (humildade faz a diferença). A grife pertence ao Naldo, porém pixadores de outras turmas, que não são do pixo osbichovivo de Naldo, também fazem a grife HFAD, sempre após a permissão. vide anexo 4 e anexo 5

16 Informação dada informalmente para a pesquisadora.

28 A grife é geralmente uma logomarca ou brasão, mas pode ser também ser escrita por extenso, sem símbolo, como um pixo/turma. E algumas vezes o nome de uma pixação é tão estilizado que se parece com uma grife. anexo 6

Exemplificando, para entrar em uma grife, o “cabeça” da turma deve pedir para o cabeça da grife. Também acontece de o cabeça admirar uma pixação ou um pixador e convidá-lo para fazer parte da sua grife. Assim, a pixação “X” virá acompanhada da grife “Z”, sendo que pode-se ver a grife “Z” junto também com outras pixações. Há também o “grapixo”, um estilo feito com rolinho e que acrescenta cores. É quando o pixo se aproxima do graffiti e da arte institucionalizada.

Neste tempo de pesquisa, posso dizer que pixadores praticamente não participam da sociedade civil, como também que formam sua própria sociedade. Fazem seus encontros churrasco, jogos de futebol ou festas, e ajudam uns aos outros, como se firmassem uma maçonaria – eles mesmos confirmaram quando coloquei esta comparação.

Mais que criar suas regras e leis, eles possuem conceitos que a tal sociedade civil tem horror – como a reverência à estética grotesca/suja, o questionamento do público/privado e a exaltação da subversão. Mas ainda assim eles possuem traços comuns a todas sociedades, como hierarquias feitas pelo tempo de atuação ou pelo trabalho árduo (quantidade de pixos ou dificuldade), o respeito e a reverência ao feito de outro pixador e a busca por reconhecimento.

A caligrafia da pixação é tão rica que é possível distinguir, pelo formato, se uma inscrição é de São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Muitas vezes é possível até saber qual pessoa fez aquela letra, mesmo as letras sendo aparentemente iguais para os não iniciados. Essa cultura é tão especial que muitos vêem de fora estudar as inúmeras tipologias.

Como qualquer manifestação cultural, a pixação passou por algumas fases, evoluindo – ou, melhor dizendo, mudando. Foram criadas modalidades e valores: chão, topo, quantidade, letra estão entre eles.

Claro, não são os mesmos parâmetros de valoração da arte convencional. Para os pixadores, fatores como periculosidade, caráter inusitado, quantidade, tempo na arte de rua (o artista “representa”, dizem), ideologia, criatividade,

29 temática e outras intricadas significações muitas vezes se sobrepõem à qualificação pela habilidade técnica – traço reto perfeito, letras do mesmo tamanho, espaçamento idêntico e curvas milimetricamente traçadas.

Com seu estilo endêmico, estes escribas não usam penas nem canetas, seus livros são a própria cidade. (...) Os pixadores arriscam a própria vida para deixar sua escrita na história, como fizeram nossos ancestrais nas paredes das cavernas. (PIGMEUS, sem mais informações) vide anexo 7

Com a evolução dos seus “jogos” (BYSTRINA, 2005), que ficam cada vez mais intrincados, pixadores tem preferências por locais como:

- lugares de grande movimento (principalmente onde passa linha de ônibus);

- paredes de tijolo ou de pedra (pois dificilmente serão pintadas);

- as agendas, pois é sacralizada17;

- lugares de difícil acesso (para adquirir status no movimento);

- lugares altos (para adquirir status no movimento);

- lugares abandonados (pois ficará por muito tempo). vide anexo 8

A agendas são muros históricos, pois possuem muitas pixações antigas, de vários escritores que já morreram ou pararam de pixar, ou mesmo uma pixação em certa fase histórica ou com caligrafias diferentes.

A pixação não tem um compromisso estético com o receptor-cidadão que passa, pois o pixador fala para seu grupo. Ele não está interessado em

17 A noção de “sacralização” está intimamente ligada à de “paratexto”. Sacralizar significa “tornar sagrado”, e é isto que diferencia a obra de arte das coisas “normais”. Por exemplo: uma bola de futebol no meio de uma sala é apenas uma bola de futebol. A partir do momento que a sacralizamos, seja com paratextos como uma fita ao redor para que as pessoas não se aproximem e uma plaquinha com o nome da obra, seja com a fala de um crítico de arte falando “sobre a natureza circular da vida que o artista quis nos passar com a bola”, estamos tornando-a outra coisa que não mais apenas “bola”. Portanto só quando damos uma conotação de sagrado, seja lá com que técnica for, é que ela já não é mais uma mera bola de futebol, mas uma bola que é uma obra de arte. Paratexto será explicado na p. 111.

30 embelezar, mas em se expressar, em deixar sua marca, em ultrapassar limites, em interagir com a cidade, em ser visto pelo seu grupo, em ter notoriedade entre seus iguais e até “destruir” ou chocar. Numa verdadeira ação tática, ele enfrenta policiais, cães, seguranças, alturas, tiros, choques, escorregões, proprietários e a sociedade, se constituindo uma prática perigosa, na qual muitos perdem a vida, e odiada.

Apesar de as mensagens da pixação serem voltadas para ela mesma – para os pixadores como receptores –, ainda assim ela se comunica com quem não é do grupo, pela sombra e pela não-comunicação. Sombra é o conteúdo implícito de uma mensagem, é a mensagem que está por trás da mensagem, algo que é comunicado implicitamente. A pixação tem em sua sombra o pedido de visibilidade, o choque à sociedade, a democracia na expressão, no lazer e no uso do espaço.

A não-comunicação é a vontade de “não comunicar”, por isso ainda assim uma não-comunicação comunica: por exemplo, comunica que não está comunicando nada. “Como qualquer comunicação, a não comunicação implica um compromisso e, por conseguinte, define a concepção do emissor de suas relações com o receptor” (BEAVIN; JACKSON; WATZLAWICK, 1993: 47).

Watzlawick et al. (1967) foram mais longe ao afirmar que a metacomunicacão está onipresente em quaisquer instância da interação social. Com seu axioma metacomunicativo, Watzlawick et al. postularam a tese da impossibilidade de não se comunicar (1967: 48-51). Depois de enfatizar que a comunicação pode ocorrer tanto verbalmente como em muitas modalidades não- verbais, os criadores deste axioma argumentaram: „O comportamento não tem oposição. Não há algo como o não comportamento. Ninguém pode não se comportar‟ (ibid.: 48). Assim, também, „ninguém pode não se comunicar‟ (ibid.: 49). Mesmo o silêncio e o „não comportamento‟ têm o caráter de uma mensagem‟. (SANTAELLA, 2002: 20 e 21)

31 Como o código está fechado em seu grupo, de certa forma eles não pretendem comunicar algo para o passante mas, como vimos, comunicam. E qualquer que seja o tipo da comunicação, ela transmite não só uma informação, mas também define a relação emissor-receptor. Essa comunicação não- comunicação, podemos assim dizer, reflete exatamente como é a relação do pixador com a sociedade (receptor): uma relação de imposição de valores, costumes, leis e hierarquias sociais. Uma relação na qual eles não tem espaço para se comunicar, na qual não são ouvidos e nem mesmo aparecem, a não ser pelas suas pixações.

A não-comunicação dos pixadores é ácida, causa revolta na sociedade, causa indignação no atacado e violência ao pixador, que por sua vez violentou o proprietário e a sociedade. Ou seja, a pixação passa, sem querer, inúmeras mensagens para quem não faz parte do grupo. Uma comunicação não- comunicação que não só reflete, mas comunica a nossa realidade social urbana.

Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem- se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido. (SANTAELLA, 1983: 12) vide anexo 9

32 3. SOBRE AS VANGUARDAS E SOBRE O CONCRETISMO

COMO VANGUARDA TARDIA

No início da história do homem, a noção de arte que temos atualmente não existia, pois o que chamamos hoje de “arte primitiva” tinha o propósito mágico ou religioso. A arte era algo natural, ligada às funções que um indivíduo poderia ter na sociedade, como, por exemplo, adornar um templo. Hoje em dia vemos as máscaras africanas, os guerreiros chineses e as esculturas incas sendo considerados obras de arte pelos entendidos, e estando nos mais importantes museus do mundo. Essa concepção esteve presente no mundo antigo e na Idade Média.

Segundo Santaella (2005), por volta do século XVIII, o sistema das artes foi esquematizado em cinco belas artes: pintura, escultura, poesia, arquitetura e música. “O adjetivo „belas‟ (em inglês „fine‟) implicava, além da beleza, a habilidade, a superioridade, a elegância, a perfeição e a ausência de finalidades práticas ou utilitárias, em contraste com o artesanato mecânico e aplicado” (SANTAELLA, 2005: 5). Ou seja, com o passar dos séculos, com a separação entre artesãos e artistas, artesanato e obra de arte – reflexo das mudanças econômicas e culturais e das evoluções das próprias técnicas –, o conceito de “arte” como conhecemos tomou corpo.

Mais ou menos do Renascimento até meados do século XIX, a arquitetura, a pintura e a escultura eram as principais artes visuais da Europa, pois eram financiadas por mecenas e governos que faziam encomendas para aos artistas. A arte existia somente para relatar os acontecimentos cristãos e para retratar a realeza e a aristocracia. De meados de 1800 em diante, o mundo estava mergulhado em fortes transformações sociais, políticas e econômicas, o que acarretou na mudança dos valores e do modo de viver.

Toda a agitação da Revolução industrial, da proclamação da II República na França – trazendo a liberdade de imprensa e de criação –, das ideias positivistas e as invenções como a máquina fotográfica, a máquina de escrever e

33 o bonde elétrico trouxeram mudanças para os costumes em meados de 1800 e puseram em xeque a pintura tal como era feita e considerada até então. Pintores começaram a procurar novos caminhos para suas pinturas, fazendo experimentações – saindo dos ateliês, pintando as „impressões‟ com pinceladas rápidas e arriscando nas cores. Este foi o embrião para uma revolução.

Da metade do século XIX a 1900, surgiram o cinema, o motor de combustão interna, o motor a diesel e a vapor; eletricidade, óleo e petróleo; e, pouco depois, o automóvel, o ônibus motorizado, o trator e o aeroplano; o telefone, a máquina de escrever e o gravador; e a produção química de materiais sintéticos como plástico, corantes etc.

Pode-se dizer que o que conhecemos por “a crise da obra de arte” tem raízes no “Salão dos Recusados”, de 1863, que expôs obras dos chamados rejeitados – mais tarde “impressionistas” – Claude Monet , Édouard Manet, August Renoir , Alfred Sisley, Edgar Degas e Camile Pissarro. A “crise” deu-se devido às mudanças de paradigma e o questionamento da obra de arte como era entendida.

Segundo historiadores, foram os recusados, os impressionistas, que marcam a passagem da arte clássica para a moderna, pois foram os primeiros a experimentar a abstração da realidade.

Mas é somente com as vanguardas que a obra como tal é investigada e impugnada. Os recusados do século XIX, em última instância, não excederam – nas artes plásticas – os limites tradicionais da moldura e do pigmento o que, ao contrário, fazem os recusados do século XX: Bracque, Picasso, Duchamp, Boccioni (AGUILAR, 2005: 33),

pois foram os vanguardistas que questionaram a forma da obra de arte como ela se apresentava até então no mundo ocidental.

É importante lembrar que os impressionistas não divergiram em seus propósitos das tradições da arte que vinham se

34 desenvolvendo desde a descoberta da natureza na Renascença. (GOMBRICH, 1985: 427)

Três artistas são considerados precursores das mudanças formais e temáticas, além das experimentações e troca de paradigmas que estavam por vir com os modernistas: Cézanne, Van Gogh e Gauguin.

Cézanne “concordava com seus amigos entre os impressionistas que esses métodos da arte acadêmica eram contrários à natureza” (GOMBRICH, 1985: 428). Ele gostava de cores fortes, o contrário dos tons pastéis dos impressionistas. Colocou então nas pinturas a luz que os impressionistas adoravam, mas também levou solidez por meio de pinceladas mais fortes e mais organizadas. Vê-se em suas telas uma ordem, pois as pinceladas coincidem com as principais linhas do desenho, reforçando a sensação de harmonia (GOMBRICH, 1985: 430) e linearidade. Ele não se importava com as formas corretas nem as proporções. Com isso, Cézanne descartou a noção de perspectiva, que o atrapalhava em seu objetivo de ordem.

Cézanne não tinha o propósito deliberado de distorcer a natureza, mas não lhe importava muito se ela fosse distorcida em alguns detalhes de somenos importância, desde que isso o ajudasse a obter o efeito desejado. (GOMBRICH, 1985: 433)

Em busca de saídas para o que o incomodava, de início Gauguin estudou arte popular europeia, mas não se interessou muito.

Gauguin estava cada vez mais convencido de que a arte poderia se tornar leviana e superficial, (...), de que todo engenho e conhecimento acumulados na Europa tinham privado os homens do maior dom: a força e intensidade de sentimento, e um modo direto de expressá-lo. (GOMBRICH, 1985: 439)

35 Gauguin resolveu abandonar a Europa e viver entre os nativos do Pacífico. Quando voltou para a Europa, seus trabalhos estavam selvagens e primitivos, e assustou seus amigos. Gauguin foi o primeiro a colocar na arte europeia “selvageria”, primitivismo, aspectos que depois cansamos de ver nas obras que vieram com os modernistas. Ele foi chamado de bárbaro, mas era isso que queria – olhar o mundo de uma forma crua, sem as maquiagens colocadas pela vida e as técnicas da arte ocidental. Suas obras tinham “manchas de cor forte” (GOMBRICH, 1985: 439) e contorno simplificado das formas, tornando os quadros planos.

Van Gogh, outro artista considerado pré-modernista, almejava uma arte simples, “que não atraísse apenas os entendidos ricos, mas propiciasse alegria e consolo a todos os seres humanos” (GOMBRICH, 1985: 436). Van Gogh vivia isolado no sul da França, custeado por seu irmão. A isolação e a não necessidade de ser vendável para se sustentar também – mas não só –, fizeram com que ele pudesse pintar o que e como quisesse, criando seu próprio estilo. Solitário mas com imensa ânsia por pintar, Van Gogh “usou cada pincelada não só para dispersar a cor, mas também para comunicar sua própria excitação” (GOMBRICH, 1985: 436). Ele “queria que sua pintura expressasse o que ele sentia, e, se a distorção o ajudasse a realizar esse objetivo, utilizaria a distorção” (GOMBRICH, 1985: 438).

Já no final do século XIX e início do XX, a civilização ocidental estava envolta na aura de renovação inspirada pelo progresso – mudanças da industrialização, das descobertas e das invenções –, mas também envolta nas incertezas que o novo século trazia. Era uma mistura de medo com ânimo pelo que estava por vir. A noção de fin de siècle não era só cronológica, mas vinha principalmente das transformações, que eram inúmeras, rápidas e traziam um novo mundo. Além das invenções, aspectos nunca ocorridos antes, como farta produção industrial, revolução tecnológica, lucro privado, aumento da população urbana, mudança do perfil das cidades, publicidade e massificação apareceram rapidamente, mudando tudo, e acentuavam-se cada vez mais.

Com a Revolução Industrial, surgiram duas novas camadas sociais, o operariado e a burguesia, esta última envolta em uma nova percepção do mundo

36 que não o dos reis, rainhas e súditos; e respirando uma nova cultura, estando com dinheiro para gastar e ávida por novidades.

As mudanças trazidas pela Revolução Industrial, pelo desenvolvimento do sistema econômico capitalista e pela emergência de uma cultura urbana e de uma sociedade de consumo alteraram irremediavelmente o contexto social no qual as belas artes operavam. Desde então e cada vez mais, nossa cultura foi perdendo a proeminência das “belas letras e “belas artes” para ser dominada pelos meios de comunicação. (SANTAELLA, 2005: 5 e 6)

Segundo Stangos (2006: 8), “os conceitos de tempo e de desenvolvimento no tempo foram reduzidos de segmentos longos, lineares, tranquilos e contínuos para arrancos e fragmentos curtos, rápidos, múltiplos e simultâneos – ou assim parecia”. As classificações artísticas, que duravam séculos, eram chamadas estilos e nomeadas apenas tempos depois de as tendências aparecerem, agora tinham se tornado movimentos que eram pensados e intitulados antes mesmo de começarem a ter alguma obra de arte. Não foi só a percepção do tempo que acelerou, mas o ritmo da vida e dos acontecimentos: esses movimentos duravam anos, meses ou apenas um manifesto.

Pareciam suceder-se uns aos outros com aceleração sempre crescente, até alcançarem o ponto em que se tornavam tão fugazes, tão efêmeros, que ficavam praticamente imperceptíveis, exceto para o especialista. Os conceitos e a preocupação com teorias e ideias que, com frequência, precediam, condicionavam e predefiniam a natureza do próprio objeto de arte (se não no sentido temporal, pelo menos no conceitual), começavam a emergir gradualmente com os principais componentes da vida artística. (STANGOS, 2006: 8)

Mas, segundo Gombrich, “o sentimento de inconformismo e descontentamento com as realizações da pintura do século XIX, que se apossou

37 dos jovens artistas perto do final do período, é menos fácil de explicar” (1985: 427). Sabiam que faltava algo na pintura dos impressionistas, como cores mais fortes e o afastamento da natureza. Inspirados por este descontentamento, eles foram buscar em Cézanne, Van Gogh e Gauguin o que precisavam.

A solução de Cézanne levou, em última instância, ao cubismo, que se originou na França; a de Van Gogh ao expressionismo, que encontrou sua principal resposta na Alemanha; e a de Gauguin culminou nas várias formas do primitivismo. (GOMBRICH, 1985: 441)

A sociedade europeia do início do século XX, assim como a americana, já era “urbanizada, industrializada, mecanizada, com toda sua vida moldada pela rotina da fábrica ou do escritório” (BULLOCK in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 47). Foi nessa época que o culto à tradição e ao passado foi contestado por todos os lados.

A cultura clássica perdeu sua autoridade exclusiva (...). O poeta tem à disposição todos os mitos do mundo, o que significa, também, que não tem nenhum que possa se impor como propriedade inquestionável dele, pelo simples direito hereditário. No mundo moderno, a única força intelectual unificadora e inevitável é a das ciências naturais, cabe a ele fabricar seu mito ou escolher um, por opção existencialista arbitrária, dentre o vasto museu não-codificado, a imensa loja de quinquilharias do passado. Do ponto de vista da poesia, os grandes sistemas mitológicos que pertencem especificamente aos nossos tempos – chamemo-los sumariamente de freudiano e marxista – são apenas mitos como outros quaisquer. (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 257)

38 As tendências pré-vanguardistas eram o simbolismo (que influenciou o decadentismo e o neoclassismo) e o naturalismo, “a que se ligam tendências reveladas pelos manifestos socialistas e unanimistas, e que vai evoluir para a vanguarda, com o manifesto de Marinetti” (TELES, 1997: 40). Cézanne, Gauguin e Van Gogh eram artistas obscuros e mal compreendidos, e foi neles que os artistas jovens que eram contra a arte clássica europeia – pois havia os que concordavam e deram continuidade à tradição –, mais tarde chamados de modernistas ou vanguardistas, foram buscar inspiração.

O modernismo foi

uma fusão explosiva (...) que desmontou as categorias ordenadas do pensamento, destruiu sistemas linguísticos, dissolveu a gramática formal e os elos tradicionais entre as palavras e as palavras, as palavras e as coisas, inaugurando o poder da elipse e da parataxe (...). Se fôssemos buscar o acontecimento exatamente decisivo, decerto voltaríamos a 1890: por exemplo, ao total, desesperado e prolongado interesse de Strindberg pela alquimia (...). (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 37)

Como moderno consideramos a época de transformação para as cidades modernas, tais quais conhecemos, até os dias de hoje. A vida moderna criava um “novo estado de ânimo”, como disse o futurista Boccioni. Já o modernismo é tendência que dá o “tom” moderno às artes e à cultura. Se o espírito moderno, ou a modernidade, começou no século XIX com o iluminismo e a Revolução Industrial, sobre o início do modernismo há divergências: alguns falam em 1890, como Bradbury & Mcfarlane; outros, em 1910, com o expressionismo; outros, em 1900; outros em 1922; outros em 1919, depois da I Guerra Mundial; outros ainda em 1924...

O modernismo, evidentemente, é mais do que um acontecimento estético. (...) Mas traz em si uma reação altamente estética, fundada numa profunda e incessante viagem pelos meios e pela integridade da arte. Nesse sentido, o modernismo não é tanto um

39 estilo, mas uma busca (grifo meu) de estilo num sentido altamente individualista (...). (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 21)

Para deixar clara a distinção entre modernismo e moderno, podemos dizer que Baudelaire é o primeiro de todos os modernos, o primeiro que falou sobre a nova vida, aquela das cidades modernas, “o primeiro a aceitar a posição desclassificada, desestabelecida do poeta, que não é mais celebrador da cultura a que pertence, o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do cenário urbano moderno” (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 255). Porém, não podemos dizer que Baudelaire é um modernista, pois não temos as características da literatura modernista, mais adiante explicitadas, em seus livros.

Se sobre o fenômeno há uma grande variedade de opiniões, também há uma crescente concordância acerca do uso do nome moderno. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 15)

Nessa época, as dimensões de espaço e tempo mudaram: o tempo passava mais rápido, e as distâncias diminuíram com o trem e o navio a vapor e, pouco mais tarde, com os carros. O modernismo é, em princípio, a arte que só poderia nascer nas cidades modernas. “Gertrude Stein disse que o modernismo é a única „composição‟ adequada à nova composição em que vivemos, às novas disposições temporais e espaciais” (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 16).

Com o aumento cada vez maior da população, a fragmentação da vida e o ritmo imposto pelas máquinas, elas se tornaram não só lugares de troca, comércio e passagem como antigamente, mas lugares de intercâmbios culturais e intelectuais. Um exemplo da sensação de rapidez, de caos, de progresso e ao mesmo tempo de vertigem que assolou a época e os artistas é o depoimento de Knut Hamsun, em 1890:

as operações incessantes da mente duram um segundo (...); Agitações secretas que passam desapercebidas dos recôndidos da mente, o caos incalculável de impressões, a vida delicada da

40 imaginação vista por lentes de aumento. (HAMSUN apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 63)

Segundo Renato Poggioli, um dos traços que fizeram as artes modernas surgirem como surgiram foi o meio sociocultural,

dentro de um estilo de vida vanguardista em que o artista funciona como uma espécie de guerrilheiro estético (...), dado a maneirismos próprios, a uma conduta social escandalizante, a um afastamento das normas burguesas e a manifestações de coesão e solidariedade de grupo. (POGGIOLI apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 155)

Podemos dizer que os vanguardistas vieram na esteira boemia parisiense. Esta surgiu nos anos 1830, como uma classe pobre e alegre, pois era formada por artistas e intelectuais que freqüentavam os sallons para conversar sobre arte, filosofia e ciência, além de beber – absinto era bebida mais relatada. Henri Murger relata que a falta de trabalho para os artistas e escritores, que eram bancados pelos mecenas, gerou uma cena lotada de artistas que viviam nos cabarés. Este era o cenário ideal para criar fora da concepção clássica ou tradicional, o que chamaríamos hoje de contra-cultura ou underground.

a tradicional crise da classe escrevinhadora de aluguel – um excedente de criadores ativos associado a uma escassez de patronos de posses – transformava-se num divertido viveiro das artes inaceitáveis, da arte dos refusés, virtuosa pela própria indiferença que sofria. (MURGER apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 156)

Para Bradbury & Mcfarlane, o boêmio era a própria definição de vanguarda: “sua obra se ajustava não ao presente, mas ao futuro; não à consciência contemporânea, mas à consciência que devia preparar-se para vir, e sua tarefa

41 era descobrir uma nova linguagem formal que devia ser aprendida antes de se tornar possível uma compreensão” (1989: 156). Foi com a boemia parisiense, no século XIX, que surgiu a teoria do artista como futurista, aquele que antecipa o que está por acontecer nas outras áreas da sociedade, o que para isso é necessária a originalidade.

Na verdade, o modernismo aparentaria ser o ponto em que a ideia das artes radicais e inovadoras, o ideal experimental, técnico, estético que veio crescendo desde o romantismo, atinge uma crise formal (...). A crise é uma crise da cultura, (...) o escritor modernista não é simplesmente o artista libertado, mas o artista sob uma tensão específica, visivelmente histórica. Se toma o moderno como uma libertação de velhos laços de dependência, também vê o “imenso panorama de futilidade e anarquia”. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 19)

Alguns historiadores datam o surgimento das primeiras vanguardas, chamadas também de vanguardas históricas, nos primórdios do século XX, se estendendo até o início da I Guerra Mundial. Mas somente a partir da I Guerra Mundial a palavra começou a ser usada na França, como “avant-garde”. O termo se referia aos movimentos literários e estéticos mais radicais, e se espalhou para outros países.

É no período compreendido entre os acontecimentos que geraram a explosão da 1ª (1914-1918) e a 2ª (1938-1945) guerras mundiais que vemos surgir movimentos artísticos denominados vanguarda. Num espaço de tempo relativamente curto sucederam-se vários „ismos‟, cada um tomando a seu cargo expressar, nos temas e procedimentos, o „clima‟ de intensa ebulição com que interagiram. As vanguardas, hoje históricas, foram movimentos altamente radicais que alteraram os rumos da literatura e das demais artes. (HELENA, 1986: 5)

42 Wardôn ou, no alemão, warten, significa “esperar, aguardar, cuidar”. É o que estava na expectativa, o que estava aguardando alguma coisa ou acontecimento aparecer. No século XVIII, já há registros em português do emprego de vanguarda como “primeiro lugar” e “precedência” (TELES). Segundo Aguilar (2005: 32),

no século XIX, o termo „vanguarda‟ era utilizado para se referir a fenômenos sociais e políticos, e começou a ser usado com mais frequência em arte e literatura no final do século (Paul Verlaine, por exemplo, o utiliza em Os Poetas Malditos para se referir a Rimbaud); entretanto, o uso que se faz dessa denominação ou equivalentes no início do século XX leva a pensar não só que possuía um alto poder heurístico, como que se estava tentando dar conta de um fenômeno novo. (AGUILAR, 2005: 32)

Os primeiro anos do século XX foram os que mais trouxeram mudanças, novidades e experimentações na arte e na literatura em toda história, e em uma rapidez também nunca vista. Daí o nome de “vanguarda”, que durou dos últimos anos do século XIX a 1946, quando o surrealismo reapareceu – aqui começaram as repetições, acabando com o espírito de novidade que era inerente à concepção de vanguarda. O que veio depois das vanguardas, que por muitos historiadores tem como marco o fim da I I Guerra Mundial, é chamado vanguardas tardias ou neovanguardas.

Segundo Bradbury, o termo vanguarda tem sido utilizado para abarcar uma ampla variedade de “fases, teorias e grupos, ocorrendo em diferentes lugares e em momentos diferentes” (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 153), de subversão ao impulso realista ou romântico que existia antes. O movimento muitas vezes era apenas um comportamento que escrevia uma atitude modernista, porém que “ajudava a sustentar sua imagem como uma força neopolítica, uma autêntica vanguarda.” (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 153). As vanguardas eram inclinadas à abstração, ou seja, a acabar com a realidade ou criar uma outra – afinal, a fotografia e o cinema haviam

43 surgido e faziam isso com a perfeição que antes era de responsabilidade dos artistas. A atitude vanguardista

veio a significar não só uma reelaboração radical da forma, mas também, como diz Frank Kermode, a tendência a aproximá-la do caos, gerando assim uma sensação de “desespero formal.” (...) (KERMODE apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 153)

São exemplos de vanguardas o impressionismo, o pós-impressionismo, o expressionismo, o cubismo, o futurismo, o simbolismo, o imagismo, o vorticismo, o dadaísmo, o fauvismo, o surrealismo, entre outros, todos também conhecidos como os ismos situados dentro do modernismo.

Como uma tendência de „ismos‟, o modernismo foi uma atmosfera intensificadora de diferenciações estéticas, culturais e políticas com uma certa psicologia, sociologia e formalismo em comum. (...) Congregavam adeptos, montam manifestações, apresentavam-se ao público. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 162).

Os manifestos e as revistas que as promoviam ou as publicavam são importantes devido às artes não convencionais que surgiam, pois muitíssimos movimentos se afirmaram por meio deles.

(...) O modernismo não é tanto um estilo, mas uma busca de estilo num sentido altamente individualista, e na verdade o estilo de uma obra não constitui nenhuma garantia para a próxima. (...) É de fato parte, e não totalidade, da arte moderna. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 21)

É devido à busca pelo estilo e, mais especificamente, pelo seu próprio estilo, que o modernismo é um período conhecido pelo surgimento contínuo de

44 estilos. Portanto, apesar de terem traços comuns, cada um vinha com uma proposta e uma estética, e nada garantia que continuassem no dia seguinte.

Cada área da arte tinha a sua característica: o antifiguratismo na pintura, o atonalismo na música, o vers libre na poesia e a narrativa por fluxo de consciência no romance, mas em comum eram sempre voltados para a quebra de paradigmas e a experimentação. Assim, os movimentos não compõem um desenvolvimento comum, muito embora possam ter linhas próximas, como o interesse pela abstração, a atenção por objetos como a máquina ou a cidade moderna; e o fascínio pela “descriação”, pela destruição ou por uma nova realidade.

Inúmeros criadores apresentam autojustificativas semelhantes: perda da crença na realidade objetiva e na palavra, na linguagem estabelecida; um fascínio pelo inconsciente, uma preocupação com as pressões do ambiente industrial e as transformações aceleradas, a vontade de descobrir uma estrutura artística dotada de significado dentro do caos crescente. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 162)

Para Bullock, essa mudança radical na forma que abrochou com as vanguardas talvez teve início com escritores e pensadores dos anos 1900 que,

com sua sensibilidade mais desenvolvida, tenham reagido a tendências e a conflitos – sociais, morais, intelectuais, espirituais – que já vinham se delineando no horizonte, e tenham procurado novas formas, novas linguagens que projetassem tais tendências e conflitos à frente do seu tempo. (BULLOCK in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 53)

Como disse Ortega y Gasset, o refinamento estético envolve uma desumanização da arte, “a progressiva eliminação de elementos humanos, demasiadamente humanos, presentes na produção romântica e naturalista” (GASSET apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 19).

45

Todos esses movimentos questionavam a herança cultural recebida. (...) Todos estavam de acordo com o fato de que se revelavam falidos os moldes acadêmicos e conservadores de uma arte envelhecida e cristalizada. (HELENA, 1986: 6)

Assim, cada vez mais a arte se afastava do paradigma anterior da cópia retrato da realidade para entrar em si mesma, intensificando a vida. Isso acarretou nas experimentações e, como consequência, nas descobertas estéticas. Uma das características mais marcantes das vanguardas, aliás, era a experimentação – metáfora na arte da vida que descobria um mundo novo.

Uma das principais preocupações do modernismo nascente foi a redenção do existencial e da experiência em relação ao estético. Procuraram-se vias para fazer da arte não uma imitação da realidade, nem uma realidade alternativa, mas uma intensificação da realidade (grifo meu). (...) Os poetas queriam que o sentido residisse no próprio processo da experiência. Daí a pressão pelo vers libre, e o crescente intercâmbio entre poesia e prosa. (SCOTT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 285)

Cientistas estavam rompendo com a visão de universo e de pensamento (Freud, Nietzsche, Einstein, Planck, Darwin, Mendel). Pintores, escultores, músicos e escritores romperam com a figuração do mundo exterior, o que se caracterizava em radicalismo e experimentação. Dentre os aspectos da vanguarda levantados por Aguilar, estão o deslocamento, a não conciliação e a ampliação das fronteiras do campo artístico, os quais temos maior interesse para esta pesquisa os dois últimos.

De modo geral, podemos destacar como características das vanguardas:

 A vanguarda como ruptura em relação à tradição (...);

 A vanguarda como luta contra a „alta‟ cultura (a cultura oficial) e, ao mesmo tempo, contra a cultura de massa. Daí advém a característica

46 de ambivalência de muitos movimentos de vanguarda, ao mesmo tempo anarquistas e aristocratas, antiburgueses e antipopulares;

 A vanguarda como ruptura em relação à instituição da arte burguesa. Os movimentos históricos da vanguarda foram os primeiros a colocar em discussão o estatuto da arte na sociedade burguesa e, pela primeira vez, com as vanguardas, a arte refletiu sistematicamente sobre si mesma e suas relações com a sociedade, superando os seus próprios limites como instituição; (...)

 A vanguarda como experimentalismo e como estímulo para a ruptura das fronteiras entre as diferentes artes e disciplinas. (WATAGHIN apud HARVEY, 2003: 10 e 11)

Para Bradbury e Mcfarlane, o modernismo é a arte que refletia aquele tempo, e não poderia ser outra:

é a única arte que responde à trama do nosso caos. É a arte decorrente do “princípio da incerteza” de Heisenberg, da destruição da civilização e da razão na Primeira Guerra Mundial, do mundo transformado e reinterpretado por Marx, Freud e Darwin, do capitalismo e da contínua aceleração industrial, da vulnerabilidade existencial à falta de sentido ou absurdo. (...) É a arte derivada da desmontagem da realidade coletiva e das noções convencionais de causalidade, da destruição das noções tradicionais sobre a integridade do caráter individual, do caos lingüístico que sobrevém quando as noções públicas de linguagem são desacreditadas e se tornam ficções subjetivas. O modernismo é, pois, a arte da modernização. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 19)

Segundo Aguilar, a não conciliação é um aspecto central em todo movimento de vanguarda, e tem a ver com os “hábitos do público, com a tradição, com as formas recebidas (minha nota: o recebimento pode vir em forma de choque ou do novo), com as instituições, com o mercado, com os museus ou com os outros artistas” (AGUILAR, 2005: 36). Há uma “lógica do enfrentamento”, ou seja, não há meio-termo, não há retrocessos, não há concessões. Algo como “O

47 público que aceite – ou não”, “Não importa se você não entende”, “Engula-me”. Segundo Stangos,

a importância atribuída à noção de vanguarda (e que praticamente se tornou sinônimo de „experimental‟) era tão grande que, à primeira vista, esse parecia ser o único padrão de avaliação da arte. A experimentação passou a ser um método de trabalho para as tendências „racionais‟ da arte moderna quanto para as „irracionais‟. É importante assinalar que essas duas atitudes aparentemente irreconciliáveis, a „racional‟ e a „irracional‟, estavam unidas numa frente comum, dado que ambas eram inspiradas e motivadas por fortes paixões antitradicionais e anti-autoritárias. (STANGOS, 2000: 8)

Quando Stangos fala de “racionais e irracionais”, entendemos que, como a forma na obra de arte já não era mais imposta – ao contrário de tudo o que havia sido feito antes –, foi preciso estabelecer “processos reguladores” que orientassem a composição. Assim, os vanguardistas criaram dois processos de experimentação, o do “acaso” e do “construído”. Há obras que podem participar de ambas ou combiná-las, como algumas de Duchamp (AGUILAR, 2005: 39).

Nessa nova retórica para as artes, mudou também o público da obra de arte. Ligados ao espaço que surgia então, o das cidades modernas, os vanguardistas não faziam suas obras para um círculo fechado de letrados ou monarcas, mas para os habitantes da urbe. “O cosmopolitismo serviu para que as vanguardas redefinissem o espaço local (urbano) (...)” (AGUILAR, 2005: 42).

As grandes obras do modernismo (...) giram em torno de imagens ambíguas: a cidade como nova possibilidade e fragmentação irreal; a máquina, um novo vórtice de energia e implemento destruidor; o próprio momento apocalíptico, a detonação ou explosão que purifica e destroi (...). (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 37)

48 Nas cidades modernas, o novo e o antigo se encontraram, e foi nelas que se confrontaram. A cidade representa a multiplicidade e anarquia do mundo, o caos e a ordem, a criação e a descriação. Além da importância para a mudança de público, as cidades foram importantes para a fixação da urbe como temática, e para o surgimento de artistas que olhavam a cidade e sentiam a vida através delas, e não mais pela natureza. Os artistas viviam nelas, portanto também transformaram-se influenciados por elas, sendo a arte vendida e apreciada por um público também surgido com a cidade. Notamos então que as cidades influenciaram profundamente a temática, a narrativa, o conteúdo, o foco (o público), o mercado, os fazedores e a estética da arte.

O modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi capturado pelo espírito da cidade moderna (...). A cidade se tornou cultura, ou talvez o caos que se segue a ela. (...) É por isso que a cidade modernista manteve relações especiais com a cidade moderna, em seu papel tanto de museu cultual quanto de ambiente novo. A tendência modernista está profundamente enraizada nas capitais culturais da Europa. (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 77)

As cidades modernas existem há quase 150 anos e até hoje se constituem, como vemos em nosso cotidiano e nesta pesquisa, tanto palco e como inspiração para a arte. E assim como as cidades, a vanguarda também não é mais novidade. Apesar de ser antiga cronologicamente, para Bradbury & Mcfarlane, a palavra vanguarda

conserva sua força graças à sua associação com um sentimento tipicamente contemporâneo, a sensação historicista de que vivemos tempos totalmente novos, de que a história contemporânea é a fonte de nossa significação, de que somos derivados não do passado, mas da trama ou do ambiente circundante e envolvente, de que a modernidade é uma

49 consciência oca, uma condição recente da mente humana – condição que a arte moderna explorou, vivenciou e à qual por vezes se opôs. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 16)

Os movimentos de vanguarda, suas características e proposições são inúmeros. Como não se trata de fazer aqui uma antologia delas, citarei apenas algumas, que levam com si traços que podemos ver na pixação.

3.1. O Expressionismo

O expressionismo surgiu em contraponto ao impressionismo nos últimos anos do século XIX, com mais ênfase no início do século XX. Expressionistas defendiam uma arte mais pessoal, interiorizada e subjetiva, que trouxesse à tona a expressão do artista, em oposição a apenas a plasmação da realidade, como os impressionistas faziam.

O movimento aconteceu simultaneamente na França e na Alemanha, mas foi particularmente mais notável aí, onde encontrou total identificação com o estado de espírito alemão de 1910 e até o final da revista Der Sturm em 1933, quando Hitler tomou o poder, e foi divulgada principalmente por essa revista. Logo na primeira edição, em março de 1910, Rudolf Kurtz dizia:

Nós queremos demolir insidiosamente sua confortável imagem sério- sublime do mundo (da sociedade). Pois consideramos sua seriedade uma inércia existencial, o estupor de caipiras (...) (SHEPPARD in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 224)

Segundo Gombrich, na Alemanha foi “onde (o expressionismo) conseguiu, de fato, despertar a cólera e o espírito vingativo do homenzinho” (GOMBRICH, 1985: 449). O expressionismo era caracterizado pela expressão interior se manifestando sob o impulso da intuição. Expressionismo era o ato de exprimir, “e

50 isto se identificava com as palavras em liberdade do futurismo, e com o automatismo psíquico dos dadaístas e surrealistas.”

Ora, dentro de tais concepções, fácil foi descambar no caos político, social e religioso, o que foi favorecido pela filosofia de Nietzsche e pelos últimos vestígios do decadentismo de fin de siècle. (TELES, 1997: 105)

O expressionismo tinha – e ainda tem – a ver com os mitos e os sentimentos mais profundos, uma arte crua, visceral, que não passava pelo pensamento lógico. Expressando o interior do ser humano e a natureza dele, o expressionismo deu vida a cores berrantes e cenas de dor, amargura e tristeza, sentimentos que afloravam na Europa daquela época, antes da I Grande Guerra.

Se os expressionistas rejeitavam o mundo banal da sociedade industrial devido aos seus produtos sintéticos e descarnados, também rejeitavam a arte e a literatura impressionista por apresentarem uma bela „superfície‟ externa sem conteúdo interno, disfarçando o caráter pernicioso da sociedade de onde surgiam. (SHEPPARD in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 224)

Para todos os expressionistas, “as instituições do capitalismo industrial mutilavam e distorciam a natureza humana” (SHEPPARD in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 224). Existencialista e irracionalista, ele colocou para fora os sentimentos de angústia vividos na Alemanha da época, se notabilizando por expor as dores e medos dos alemães crua e friamente. Afinal, o expressionismo deu-se no entreguerras, período de profunda decadência e miséria. Eram vistas cores berrantes, cenas de dor, doenças, medos, solidão, sexo sempre exaltando os sentimentos irracionais ou proibidos.

O expressionismo é uma forma de captar a existência sem rebuscamento, sem ser lapidada. Nele, o rascunho é a obra final, e a primeiridade é o que importa.

51 3.2. O Cubismo

Podemos dizer que quem revelou o cubismo foi o poeta Apollinaire. Ele começou fazendo contos e poemas, principalmente com temáticas libertinas. Publicou inclusive uma antologia com os livros malditos de Marquês de Sade, introduzindo o obscuro escritor aos jovens franceses. Os temas ocultos e psicológicos de seus escritos na época o associaram também ao surrealismo.

Mudou-se para Paris e, familiarizado à atmosfera literária da cidade, começou a aplicar conceitos de plasticidade a seus poemas e a não utilizar sinais de pontuação. Lançou os famosos Calligrammes – Caligramas em português –, poemas inspirados na tradição sígnica da escrita chinesa – e que mais tarde também iriam influenciar em muito os poetas concretistas. Devido ao ritmo acelerado e à simultaneidade, seus poemas foram colocados na linhagem do cubismo. vide anexo 10

Atraído pela geometrização da forma e as novas possibilidades estéticas, em 1905 o jovem Picasso começou a se encontrar com Apollinaire e outros poetas e pintores. Em 1909, o estilo já era conhecido como cubismo na pintura e, a partir de 1917, na literatura (TELES, 1997: 1114).

Os cubistas prosseguiram a partir de onde Cézanne parou. Daí em diante, um número crescente de artistas passou a considerar axiomático que o que importa em arte é encontrar novas soluções para o que se convencionou a chamar de problemas de „forma‟. Para esses artistas, portanto, a „forma‟ vem sempre em primeiro lugar e o „tema‟ em segundo. (GOMBRICH, 1985: 461)

O cubismo na poesia designava um tipo em que a realidade era fracionada, expressa através de planos superpostos e simultâneos. Na poesia, foi desenvolvido

52 um sistema poético de subjetivação e desintegração da realidade, criando por volta de 1917, paralelamente ao dadaísmo, uma poesia cujas características são o ilogismo, o humor, o antiintelectualismo, o instanteísmo, a simultaneidade e uma linguagem predominantemente nominal e mais ou menos caótica. (TELES, 1997: 115)

O cubismo desconstruiu objetos do cotidiano, mostrando diferentes pontos de vista do mesmo objeto ao mesmo tempo. Também se caracterizava pelo uso de formas geométricas como círculos, cubos e cilindros. Havia um caráter de simultaneidade, de tudo ao mesmo tempo agora, e de peças formando um todo, como um maquinário - metáforas da nova vida moderna. Era a nova ordem de espaço, de estruturas e de ritmo, a própria noção de fragmentação da vida totalmente materializada na pintura.

Existiram várias correntes de cubismo, sendo as principais o cubismo analítico, que fragmentava o objeto até quase o seu não reconhecimento, impossibilitando sua reconstituição, e o cubismo sintético, que também fragmentava o objeto em planos geométricos, mas ainda assim era possível reconstituir o objeto.

O cubismo tentou colocar em um mesmo patamar lingüístico e visual a linguagem pictórica e a verbal. Introduziu letras tipográficas e colagens de papéis, cartazes, cartões, cartazes, jornais. Estava aí uma das raízes da poesia visual, que quase 50 anos depois transformaria as palavras em linguagem pictórica.

Pintores cubistas escolhem usualmente motivos familiares – guitarras, garrafas, fruteiras. Nem todas as pessoas gostam desse jogo, e obviamente nem devem gostar. (GOMBRICH, 1985: 458)

53 3.3. O Futurismo

O Manifesto Futurista foi lançado em 1909 no jornal francês Le Figaro, pelo italiano Filippo Marinetti, e propunha o uso do design tipográfico, o uso de onomatopéias e o enxugamento da poética. O futurismo foi um movimento estético mais de manifestos que de obras, porém que muito influenciou o movimento da poesia concreta que veio bem depois.

Por meio dos manifestos, Marinetti exaltou a vida moderna, “pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos meios tradicionais da expressão literária, no caso, a sintaxe; usando as palavras em liberdade, rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através da analogia” (TELES, 1997: 86).

A descoberta mais importante dos futuristas foi, talvez, a percepção de que a fragmentação, o contraste e o jogo com materiais aparentemente discordantes constituíam uma expressão direta da velocidade e diversidade da vida moderna. (RAWSON in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 207)

Marinetti tinha adoração pela máquina. Carros, trens, engrenagens, inspiravam a forma das poesias, a estética das pinturas e esculturas e o conteúdo dessas formas artísticas. Dinamismo e simultaneidade, sinônimos da beleza da velocidade, significavam, na pintura, o estudo dos movimentos.

Componente essencial da literatura do movimento é o elemento visual, não só em descrições cinéticas em tecnicolor como o voo de Gazurmah em Mafarka Le Futuriste, mas também na revolução tipográfica realizada pelos futuristas. (RAWSON in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 200)

54 O lema futurista era “Les mots en liberte” ("Liberdade para as palavras"), e foi levado ao pé da letra: a estética futurista libertou a palavra da sintaxe e do texto literário, dando autonomia à palavra.

Zang tumb tumb (1912) está composto de Palavras Livres. Publicado em 1914, tendo como prefácio mais um Manifesto escrito no ano anterior e intitulado Destruição da Sintaxe - imaginação sem fio – palavras em liberdade, o livro decreta que o novo estilo se destina apenas à poesia, e não à filosofia, às ciências, à política, ao jornalismo ou aos negócios, nem mesmo aos próprios Manifestos de Marinetti. A base das novas formas artísticas futuristas – dinamismo pictórico, ruído-música, Palavras Livres – assenta-se sobre a nova sensibilidade, condicionada pela nova velocidade dos meios de comunicação. (...) A revolução tipográfica ajudará a expressar simultaneamente ideias diferentes. (RAWSON in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 201) vide anexo 11

A influência da veneração pelas máquinas, abolindo a caligrafia e dando lugar aos tipos gráficos, e o enxugamento das palavras estavam refletidos no uso de onomatopéias. Além das onomatopéias, nos manifestos de Marinetti são vistas pelas páginas palavras escritas com tipologias diversas, misturadas a símbolos matemáticos e ícones. “sssssiii ssiissii ssiisssssiiiii” – com caixa baixa – era um poema. Foi escrito na primeira página do Manifesto de Marinetti, relatando uma viagem para a Sicília enquanto revisava um livro – era o som do processo de seu trabalho, o barulho do trem. Assim, Marinetti propunha a libertação de todo excesso alegórico visto na art nouveau, que dominava então.

Se necessário, podem-se usar 20 tipos diferentes e três ou quatro cores variadas numa mesma página, para expressar ideias de importância variável e as impressões dos diversos sentidos. (RAWSON in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 201)

55 O futurismo não só colocou definitivamente a forma e a temática modernas na arte e na literatura, mas também trouxe mudanças comportamentais. Adeptos a tudo o que era novo, lutadores ferrenhos, portanto, contra qualquer coisa ou aspecto do passado, o futurismo trouxe

uma nova poética da intuição: odiar bibliotecas e museus, repudiar a razão, reafirmar a intuição divina, privilégio das raças divinas. A poesia destas se baseará na analogia, não na lógica (...); a psicologia humana será substituída por uma obsessão lírica pela matéria. (RAWSON in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 200)

Cada vez mais, concomitante ao progresso crescente, o futurismo trazia o esplendor geométrico e mecânico junto com a sensibilidade numérica. Assim, a técnica das palavras livres foi se aproximando cada vez mais da estética das máquinas. Exemplos são o poema

+ - + - + - + + x

, que descreve a aceleração e a mudança de velocidade de um automóvel, e

montanhas + vales + estradas + Joffre (1915),

um poema que relata a jornada por uma paisagem montanhosa. Materialmente, trata-se de uma colagem com fragmentos de materiais impressos cortados, com marcas à mão adicionadas. Para acrescentar tecnologia, o poema era reproduzido por uma impressora e depois fotografado em preto e branco.

Muitas das ideias futuristas foram adotadas e defendidas por outros movimentos, como o dadaísmo. Na Rússia também houve predomínio do futurismo, devido ao empenho de Maiakóviski, e citamos aqui o trabalho de Kruchônikh:

56 dyr bul shchyl ubershchur skum vy sob u r l ez

Este é o poema integral. Ele não tem sentido em russo ou em qualquer outra língua, “embora em russo os sons sugiram uma série de palavras ou morfemas possíveis de serem derivados” (HYDE in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 216).

3.4. O Dadaísmo

Durante a Primeira Guerra Mundial, artistas se exilaram na Suíça para não serem convocados para a luta armada, por isso Zurique se encontrava efervescendo artisticamente. O dadaísmo foi criado nesta cidade, em 1916, pelo poeta Hugo Ball, que havia aberto o Cabaret Voltaire, local de encontro da boemia na época. Uniram-se a Ball os artistas Hans Arp e Marcel Janco e o poeta Tristan Tzara, que frequentavam o cabaret dele.

O dadaísmo foi um importante movimento modernista que trouxe, mais que variações estéticas, variações no gosto e na percepção da arte. O movimento questionava, e acabou destruindo de vez, a noção do que era ou não “obra de arte”.

Um dos fatos desencadeadores do dadaísmo foi a insatisfação com o mundo e a I Guerra Mundial. A ideia era mostrar que havia pessoas contrárias a tudo o que estava acontecendo. Assim, os artistas – muitos deles desertores em seus países ou fugitivos de guerra – fundaram um movimento que ia contra todos os aspectos aparentemente construtivos e organizadores da vida, como a religião, a ciência, a política e a filosofia. Mesmo com os avanços da humanidade, nada

57 nem nenhum desses elementos organizadores do cotidiano serviu para evitar a I Guerra. Destruído o mito do progresso e das ciências, não havia no que acreditar, então nada mais tinha importância.

A palavra “dada” é francesa, e significa “cavalo de pau” na linguagem infantil. Ou seja, um nome que não fazia sentido algum intitulando um movimento artístico num mundo que também não fazia sentido algum.

O mito do progresso foi um estímulo para os dadaístas intensificarem o instantâneo e o efêmero. A ambição de criar obras duradouras estava morta. (SHORT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 237)

Futurismo e dadaísmo faziam parte das tendências que críticos chamam de destrutivistas, pois queriam a destruição do passado e a negação dos valores estéticos existentes. O expressionismo e o cubismo eram construtivistas, pois queriam uma reorganização do que existia para a construção de uma coisa nova. Ambas as tendências, porém, eram “organizadoras de uma nova estrutura estética e social” (TELES, 1997:29).

O dadá foi um movimento de negação, com inúmeros manifestos e obras chocantes. Defendia o absurdo, o niilismo, a incoerência, a desordem, o caos. Caracterizaram o dadaísmo o nonsense (o sem sentido), a descartabilidade – e, assim, a perda da aura da obra de arte –, a ironia e a efemeridade.

O caráter escandaloso fez com que rapidamente o dadaísmo fosse conhecido por toda Europa, tendo logo recebido a adesão de grandes nomes como Marcel Duchamp e Francis Picabia. Duchamp já era conhecido por seu ready-made quando aderiu ao dadaísmo, tornando-se um dos maiores nomes do movimento. A noção de ready-made, inclusive, foi incorporada às características das obras dadaístas. vide anexo 12

O dadaísmo também propunha a reunião de artistas de áreas diferentes contribuindo com as outras. Assim, não havia mais limite entre escultura, poesia, pintura e música – era tudo arte, e tudo podia ser feito em uma mesma obra. O ready-made, por exemplo, não era escultura, nem pintura nem literatura. Além

58 disso, os artistas podiam trocar ideias e experiências, incorporando-as, independentemente do que faziam.

Transgressores e questionadores, eles negavam qualquer tipo de autoridade, inclusive a da superioridade da arte e dos próprios artistas, se aproximando, em alguns aspectos, de certas correntes anarquistas.

Ready-Made significa “pronto” e surgiu em 1913 quando Duchamp, já artista respeitado, inscreveu um urinol com o endereço de uma rua anotado e o título Fonte para participar de uma exposição em Nova York. A obra foi recusada, mas isso é o que menos importa. Seu ready-made, aparentemente sem sentido, deu margem para o início das obras chamadas “conceituais”.

Antes do primeiro ready-made Duchamp já existia na cena parisiense. Ótimo pintor, ele havia feito em 1911 as telas Nu descendo a escada e O rei e a rainha cercados de nus. Se não fosse o título, as obras teriam sido apenas elogios. Porém, com aspectos futuristas e cubistas, estas pinturas causaram a ira de alguns cubistas, que o tomaram como ironia ao tipo de arte deles. Duchamp não era somente um ótimo artista, mas possuía uma visão sociológica ou conceitual da arte, além de irônica, visão que o fez ficar conhecido como ficou. Duchamp rompeu paradigmas clássicos que existiam há séculos: ele mostrou que há uma linha invisível separando o que é ou não obra de arte, se é que existe alguma linha – uma noção importantíssima para nossa pesquisa.

3.5. O Espiritonovismo

O espiritonovismo teve seu início na conferência O Espírito Novo e os Poetas, em 1917, com Apollinaire, e em 1918 e no editorial do primeiro número da revista L’Espirit Nouveau, fundada em Paris em 1920 por Ozenfant e Le Corbusier, “como prolongamento das ideias de Apollinaire” (TELES, 1997: 152).

59 Aconteceu sobretudo na França, numa época após a I Guerra Mundial, quando havia uma preocupação com o fortalecimento das nacionalidades.

Diferente dos outros ismos, que eram destrutivos, o espiritonovismo propunha uma arte construtiva. Fazia um equilíbrio entre a arte clássica e a vanguarda: era como o neoclassismo, porém com um espírito novo, com um “alento estético, uma nova concepção ideológica que os intelectuais da revista L’Espirit Nouveau irão retomar e desenvolver, mas sempre fiéis à ordem, ao dever e à liberdade que o texto de Apollinaire equilibradamente mistura como características fundamentais do espiritonovismo” (TELES, 1997: 153).

A rapidez e a simplicidade com que os espíritos se acentuaram a designar com uma só palavra seres tão complexos quanto uma multidão, uma nação, quanto o universo, não tinham seu correspondente moderno na poesia. Os poetas preenchem esta lacuna e seus poemas sintéticos criam novas entidades que tem um valor plástico tão completo quanto os termos coletivos (...). Não creia no entanto que este espírito novo seja complicado, enfadonho, artificial e frio. Seguindo a ordem mesma da natureza, o poeta se desembaraçou do todo propósito empolado. (TELES, 1997: 156)

O espírito novo falava, antes de tudo, da ordem e do dever dos cidadãos, qualidades clássicas, porém intrínsecas ao espírito francês, acrescentando-lhes a liberdade.

O verso livre deu um livre vôo ao lirismo, mas foi apenas uma etapa das explorações que se podiam fazer no domínio da forma. (TELES, 1997: 156)

60 3.6. O Surrealismo

O surrealismo surgiu da ruptura entre Tzara e Breton, que entraram em divergências sobre os rumos do dadaísmo. Breton rompeu com eles, se juntando ao grupo que estudava Freud e fazia experiências com o próprio sonho e o sono hipnótico para fazer arte. Logo depois, o grupo se denominou “surrealistas”. Diferente dos dadaístas, eles não eram niilistas; se consideravam cientistas na qual a pintura e a poesia eram apenas meios para explorarem o inconsciente. Surrealistas “seguiam o pensamento de Lautréamont de que „A poesia deve ser feita por todos‟” (TELES, 1997: 171).

O surrealismo – assim como o expressionismo – buscava a emancipação total do homem,

fora da lógica, da razão, da inteligência crítica, da família, da pátria, da moral e da religião – o homem livre de suas relações psicológicas e culturais. Daí a recorrência à magia, ao ocultismo, à alquimia medieval, na tentativa de se descobrir o homem primitivo, ainda não maculado pela sociedade. (TELES, 1997: 170)

O grupo foi tomando corpo e aumentando suas pesquisas ao agregar outros poetas e pintores. Em 1924, Breton lançou o primeiro manifesto surrealista.

Cronologicamente, o surrealismo é o último movimento de vanguarda europeia, pois surgiu com este nome em 1924, quando André Breton lançou o Manifeste Du surréalisme e o primeiro número da revista Révolution surréaliste, fundando ao mesmo tempo um escritório destinado a investigações oníricas, o Bureau de recherches surréalistes. (TELES, 1997: 170)

A partir de 1925 veio uma fase de maior conscientização política, e aí começaram a usar a frase de Marx “Transformar o mundo”.

61

Para Breton, a arte autêntica era a que estava ligada a certa atividade revolucionária (minha nota: ideia que cresceria depois), coisa com que alguns elementos do grupo não concordaram, motivando, como no Brasil, a separação do surrealismo entre comunistas e não-comunistas. (TELES, 1997: 172)

Mais que um movimento artístico, o surrealismo era uma filosofia que queria um novo mundo e pregou o protesto contra a exploração do homem pelo homem. O surrealismo trabalhava com o simbólico, o metafórico e o onírico. Ao se utilizar da pesquisa mental, do que está por baixo e por cima da psique humana, misturando poesia e ciência com alquimia, esoterismo e a busca pelo segredo do universo, o surrealismo influenciou, e muito, a contracultura e o movimento beatnick.

Os surrealistas acreditam (...) que as palavras, quando despidas de acréscimos deformadores, tem o poder de atuar sobre o mundo e, como fórmulas mágicas, são meios para realizar o desejo. (SHORT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 246)

Surrealismo era uma experiência coletiva, um modo de vida do qual qualquer um podia participar – influência dos dadaístas, com os quais a figura do artista como ser superior havia sido quebrada –, desde que tivesse dedicação. Surrealistas organizavam reuniões diárias, elaboravam textos em conjunto, participavam de jogos de estímulo à imaginação e faziam manifestações em peças teatrais reacionárias. “O grupo surrealista assumiu uma ampla variedade de traços. (...) Ele é ao mesmo tempo um movimento clandestino subvertendo o status quo e um recuo para os confins de onde a vida pode ser regulada de acordo com o desejo” (SHORT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 247), como uma quadrilha de revolucionários ou hereges.

62 Os dadaístas e surrealistas eram, essencialmente, antiarte. Com eles, a literatura e a poesia deixam de ser supremas e tornam-se apenas um entre outros meios psicodélicos. Com eles, a poesia torna-se “descartável”, criada sem nenhuma finalidade específica, útil de uma forma indefinível. (...) Com eles, a linguagem deixa de ser o instrumento de afirmação do domínio humano sobre o universo, e torna-se uma força natural em si mesma, que cria segundo a sua vontade e sobre a qual o controle humano é limitado. (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 271)

Com o surrealismo, a partir de 1930, a tendência foi de se considerar o que era vanguarda em “função do aleatório e do predomínio do acaso, da escritura automática, da irrupção do inconsciente, do ritmo do jogo. As neovanguardas da década de 1950 inverteram essa leitura e propuseram como alternativa um corpus construtivo que consideraram em oposição à tendência aleatória” (AGUILAR, 2005: 37), ou seja, planejado.

Dadaístas e surrealistas não acreditavam que toda a cultura e vida tinham chegado a um impasse, um fim da história. Devia se fazer uma nova linguagem.

Tanto os dadaístas como os surrealistas parecem afirmar que a maneira de superar a cidade industrial é aceitá-la, aprender a amá-la ironicamente e cultivar as forças ali atuantes (...). (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 271)

3.7. Muralismo Mexicano

Em 1910, no México, ocorria a Revolução Mexicana, liderada por Emiliano Zapata, quando três surrealistas mexicanos, Diego Rivera, Clemente Orozco e Davi Siqueros começaram a fazer grandes murais financiados pelo governo nas paredes. Os muralistas eram engajados política e socialmente, críticos, assumidamente comunistas, e por isso pintavam temas com aspectos político- histórico-sociais densos. Sob a influência de suas posições políticas, expunham todas as mazelas do sistema capitalista e enalteciam o povo mexicano (inclusive

63 os indígenas, o operariado e os trabalhadores da terra) ao pintarem cenas do dia- a-dia e histórias coletivas do país, estas verdadeiras epopéias.

Fato marcante na história do muralismo mexicano foi a pintura de um painel no Rockefeller Center, então símbolo do capitalismo americano e mundial. Em 1932, Diego Rivera, artista já conhecido e respeitado, foi convidado por Nelson Rockefeller para fazer uma obra no hall de entrada do edifício da corporação. Aceito o convite, Rivera começou o trabalho, intitulado Homem na encruzilhada. A pintura mostrava o embate entre dois cenários distintos e antagônicos da época, o comunismo e o capitalismo, e suas possibilidades políticas, econômicas, sociais e científicas. De um lado, Rivera colocou engrenagens e trabalhadores tristes, como robôs. De outro, o povo trabalhador marchando com bandeiras vermelhas com o rosto de Lenin. A figura central, Deus, foi pintada com características de Lenin.

Rockefeller ficou indignado. Tomou o painel como uma ofensa a ele, aos líderes e ao povo americano, e pediu que a figura de Lênin fosse trocada por um rosto desconhecido. Rivera se recusou a remover o líder socialista, sugerindo a pintura de algum líder norteamericano no lado capitalista do , o que Rockefeller não concordou. O painel ficou por algum tempo coberto, e depois foi destruído. Como resposta, Rivera refez a pintura no Palácio de Belas-Artes, na Cidade do México, intitulando-a O homem controlador do universo. Desta vez Rockefeller estava na pintura, retratado de maneira sinistra.

O muralismo mexicano era acessível e atingia a todos. Ele tirou a pintura das telas e as retornou às paredes, retomando a prática, num passado recente, de pintores Renascentistas como Da Vinci e Michelangelo nos afrescos, e das pinturas sempre feitas na arquitetura por árabes, egípcios, romanos, gregos e, inclusive, os ancestrais mexicanos, os astecas.

Como influência deixada – e aqui de grande relevância para esta pesquisa –, o muralismo mexicano o deslocou arte para o espaço externo e nas paredes e concebeu a arte como ferramenta política. Permanece um ótimo exemplo, assim como a arte soviética (e a alemã nos tempos de Hitler), de como a política e arte podem se envolver.

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3.8. A Art Brut

Em 1945, o pintor francês Jean Dubuffet estava em busca de algo que fugisse da tradição da arte, inclusive da tradição dos movimentos de vanguarda, e de qualquer estilo que tivesse consciência de ser movimento artístico. Ao se questionar sobre o que seria arte, Dubuffet chegou à conclusão de que a partir do momento em que a pessoa tem a intenção de fazer, já não é arte. Segundo ele, "a arte não dorme nos leitos preparados para ela, foge logo que se pronuncia seu nome, ama o desconhecido. Os seus melhores momentos são quando esquece como se chama".

Duffet recorreu aos doentes mentais, às crianças e a pessoas sem formatação artística em hospitais psiquiátricos, escolas e comunidades distantes para encontrar quem fosse ausente de qualquer influência sobre o que era arte. Descobriu o suíço Adolf Wölfli, um interno cujos trabalhos se tornaram símbolo da art brut. A arte brut também é chamada de primitiva ou naïf, não sendo a feita pelo homem das cavernas, mas remetendo à mentalidade ausente de padrões que este possuía. O que Dubuffet não sabia é que a própria arte naïf ou primitiva se tornaria uma escola, um movimento estético e conceitual, que existe até hoje.

Ao buscar uma forma de arte que remetesse às origens da própria arte para atingir a forma pura da arte, aquela que não reconhece a si a como tal, Dubuffet, assim como Duchamp e os dadaístas, destruiu fronteiras sobre quem pode fazer e o que é arte. Para Dubuffet, a arte só poderia ser aquela que surge espontânea, original e intuitiva, o que nos fez aprender que arte não é somente a que se propõe a ser arte. vide anexo 13

65 3.9. A Literatura nas Vanguardas

A literatura de vanguarda foi uma ruptura “estética” radical que veio na esteira de experimentação e manifestos que eram feitos desde o final do século XIX. Ela foi enfatizada a partir de 1909, data do primeiro manifesto futurista, publicado em Paris. “Pode-se afirmar que a literatura modernista nasceu na cidade, e com Baudelaire” (HYDE in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 275).

Os grandes poemas de antigamente, argumentava Hulme, pareciam pirâmides; a velha poesia „tratava basicamente de grandes coisas‟ e seus autores sofriam da „doença da paixão pela imortalidade‟. (...) Em contraposição, o novo poema, correspondendo a uma postura metafísica nova ou retomada, que considera o homem „um animal extraordinariamente definido e limitado‟, versaria sobre as coisas pequenas e simples, sobre as „emoções de rua‟. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 190)

Literatura e artes visuais tiveram e tem evoluções distintas, mas em alguns momentos, devido a fortes acontecimentos históricos, elas tomavam rumos semelhantes.

Embora essa paixão antirracional pela renovação e pela mudança fosse típica das todas as artes, ela foi mais patente nas artes visuais, e foi nelas que primeiro prevaleceu e, depois, lentamente, conquistou uma aceitação pública mais geral. Esse „novo espírito‟ precisou de muito mais tempo para conseguir aceitação na literatura e na música. (STANGOS, 2006: 7)

Os movimentos de vanguarda literária antes da I Guerra Mundial foram o futurismo (1909), o expressionismo (1910) e o cubismo (1913). Com a guerra, surgiram o dadaísta (1916) e espiritonovismo (otimismo no pós-guerra), anunciado por Apollinaire em 1918, em L’Espirit nouveau et les poetes, como já

66 citamos. Do espiritonovismo e do dadaísmo surgiu o surrealismo, em 1924. Assim como na pintura (“o acaso e o construído”), podemos verificar na literatura dois tipos de poéticas, as construtivas, como Un Coup de Dés, de Mallarmé, e as do aleatório ou destrutivas, de Rimbaud e Lautréamont. Os movimentos da poesia concreta e a práxis são considerados uma das últimas fases do modernismo e da evolução da experimentação. vide anexo 14

O primeiro crítico que procurou sintetizar as tendências das vanguardas foi Paul Valéry, que mostrou a ineficácia da crítica com métodos tradicionais para analisar essa nova literatura que surgia. Essas tendências estão principalmente expressadas em recursos que aprendemos hoje em dia na escola, as figuras de linguagem metáfora, poética, onomatopéia, ironia etc.

Houve uma mudança significativa na identidade da cidade no século XIX: “O realismo humaniza, o naturalismo cientificisa, mas o modernismo pluraliza e surrealiza” (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 79). O romance urbano moderno, diz-nos Raymond Williams,

revela uma percepção intensa e fragmentária, exclusivamente subjetiva, mas na própria forma de sua subjetividade incluindo os outros, que agora, juntamente com os edifícios, os sons, as vistas e cheiros da cidade, fazem parte dessa consciência única e acelerada. (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 79)

Os vanguardistas não só escreviam manifestos, como fundavam suas próprias revistas para divulgar sua arte e suas ideias. “Para Tzara e Breton, com causas a proclamar como a Revolução da Palavra ou a Revolução Surrealista, o manifesto era a verdadeira forma artística” (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 162). André Breton, escritor e poeta considerado um dos pais do surrealismo, fundou a revista Littérature em 1919, ano em que entrou em contato com Tristan Tzara, fundador do dadaísmo.

67 Foi por meio das revistas próprias que as obras modernistas conseguiam circular e atingir seu público18. As revistas modernistas tinham um público limitado. Algumas criaram um ambiente estético ou intelectual importantíssimos, além da noção de a própria revista como obra de arte, algo nunca imaginado antes19. A influência da Bauhaus para a colocação da arte em objetos do cotidiano, ou o contrário, também foi de grande importância. A “revista como arte” foi uma inovação na ideia do que poderia ser arte, assim como algo escrito em uma parede.

Pound – poeta, músico e crítico – foi um dos maiores nomes da poesia modernista no início do século XX, junto com T. S. Eliot. Logo cedo Pound se uniu aos adeptos do imagismo, fundado em 1912 sob inspiração de outro poeta, T. E. Hulme, mas o abandonou em 1914. As raízes do imagismo encontram-se principalmente nas poesias chinesa e japonesa, pois suas ideias eram explorar as imagens e as metáforas da poesia.

“Não use nenhuma palavra supérflua” (POUND apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 185), disse Pound. A arte do poema imagista era metáfora da velocidade, era um contexto traduzido e em algo muito pequeno. O poeta modernista tratava das imagens urbanas e passou a fazer “uso de novas métricas e estilos, como o vers libre, a visualização do poema na página” (SHORT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 253). Apesar da aparente simplicidade, Pound comentou:

(...) não imagine que a arte da poesia seja minimamente mais simples do que a arte da música, ou que você possa agradar ao especialista antes de consumir pelo menos tanto esforço na arte dos versos quanto o professor médio de piano consome arte da música. (POUND apud BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 185)

18 Lembremos aqui dos fanzines dos anos 1980 e 90, que eram febre entre os jovens e, quando afastados do puro jornalismo, se transformavam em verdadeiros veículos para expressões artísticas ou eles próprios uma obra de arte. Lembremos também do “Do It Yourself”, ou “Faça você mesmo”, proclamado pelo espírito punk. 19 Uma grande coleção de revistas e manifestos modernistas pode ser vista no Museu Pompidou, em Paris, e chama a atenção pelos poemas, frases e ilustrações de capa.

68 No imagismo o verso torna-se duro, e Pound colocou as seguintes proposições sobre a preocupação com a „dureza‟ na prática do poeta:

1. ser conciso, eliminando todas as superficialidades ornamentais; 2. transmitir, por se manter próximo à linguagem cotidiana, parte da dureza da realidade do dia-a-dia; 3. tender para a objetividade concreta, assim evitando efusões sentimentais; 4. porque, ao apresentar o que pretende ser uma exposição acurada de seu tema, ele se aproxima dos métodos duros do cientista, de sua observação rigorosa dos fatos detalhados; 5. quando “ousa ir à lata de lixo para seus temas”; 6. evitar metros simétricos e isocrônicos, estigmatizados como brandos, monótonos e soporíferos. (SCOTT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 291)

Assim, a literatura de Pound aproxima-se das técnicas publicitárias: condensamento, “conversão do objeto em sensação, equiparação da crueza dessa sensação com sua significação, do choque com a persuasão” (SCOTT in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 291). A imagem substituiu o ritmo e a imagem passa a ser o núcleo da poética. Pound era um inventor tanto na poesia como na literatura, e teve que fazer uma verdadeira doutrinação para destruir certos dogmas, sendo, além de grande escritor, um respeitado crítico e teórico.

Os poemas visuais ou caligramas de Apollinaire são um exemplo de poesia visual ou espacial: formavam a figura ao qual o poema faz referência, como em A Gravata e o relógio e Chove. Outro exemplo de poema modernista é The waste land, de Eliot, que fala da multidão e da solidão modernas metaforicamente através do conteúdo e da forma, aparentemente banais:

Jerusalém Atenas Alexandria Viena Londres irreais.

69 “O aparecimento da poesia de vanguarda em princípios do século XX implica, em um de seus níveis, a passagem – em termos poundianos – da „melopeia‟ à „fanopeia‟ (AGUILAR, 2005: 28)”. Pound dava grande importância para o significado das palavras, as escolhia a dedo, e era defensor do “menos é mais” na literatura e na poesia, criando uma influência até os dias de hoje.

Como afirma Hugh Kenner, em The Poetry of Ezra Pound, „a fragmentação da ideia estética em imagens alotrópicas, tal como teorizada pela primeira vez por Mallarmé, foi uma descoberta cuja importância para o artista corresponde à da fissão nuclear para o físico‟. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 32)

Em ABC da Literatura, Pound coloca três características da poesia: a fanopeia, que é o predomínio da imagem; a melopeia, onde há predomínio da musicalidade ou ritmo; e a logopeia, que é a associação de ambas anteriores, “a dança das palavras ante o intelecto”, diz ele.

O livro The chinese written Character as a medium for poetry, publicado por Ezra Pound segundo os manuscritos de Fenollosa em1920, foi uma guinada da poesia de Pound e, portanto, do que veio a seguir no modernismo. Apesar de hoje em dia a teoria colocada por eles de que a escrita chinesa é um caractere estilizado da imagem ou da coisa que representa ter vindo por água abaixo, foi um importante instrumento para o surgimento e conceitualização de uma nova poesia.

Como processo consciente, pode-se dizer que tudo começou com a publicação de Un Coup de Dés (1897), o „poema-palavra‟ de Mallarmé, a organização do pensamento em „subdivisões prismáticas da ideia‟, e a espacialização visual do poema sobre a página. Com James Joyce, o autor dos romances Ulysses (1914-1921) e Finnegans Wake (1922-1939), e sua técnica de palimpsesto‟, de narração simultânea através de associações sonoras. Com Ezra Pound e The Cantos, poema épico iniciado por volta de 1917, e onde o poeta trabalha há 40 anos, empregando o seu método ideogrâmico, que permite agrupar coerentemente, como um mosaico, fragmentos de realidade díspares. Com E. E. Cummings, que desintegra as palavras para criar com suas

70 articulações uma dialética de olho e fôlego, em contato direto com a experiência que inspirou o poema. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 56)

Tanto a poesia como o romance urbano foram ficando cada vez mais enxutos, rápidos e diretos. Breton publicou Les Champs Magnétiques exercendo o princípio da escrita automática. Mais tarde, Breton publicaria o Primeiro Manifesto Surrealista, em 1924.

(...) Os dadaístas – a observação é de André Gide, reproduzida por Mondrian – quiseram „libertar o verbo do pensamento dispondo as palavras umas ao lado das outras sem que houvesse uma ligação qualquer; cada vocábulo-ilha deve na página apresentar contornos abruptos. Será colocado aqui como um tom puro; e não longe vibrarão outros tons puros, mas com uma falta de relações tal que não autorize nenhuma associação de pensamentos. É assim que a palavra será despojada de toda sua significação precedente, afinal, e da evocação do passado‟. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 110)

3.9.1. Literatura de Vanguarda no Brasil

O auge da vanguarda da língua portuguesa está ligado ao aparecimento do movimento modernista em 1915, sobretudo a partir da publicação da revista Orpheu. “Aí se fez sentir, realmente, uma violência no campo expressivo que muito contribuiu para uma essencial subversão de formas” (GUIMARÃES, 1982: 17).

O auge da vanguarda da língua portuguesa coincide, no âmbito das artes visuais, com aquilo a que se chamou genericamente arte moderna, que se iniciou na pintura com os impressionistas e explodiu no início do século XX com tanta força que até os impressionistas, que antes eram vanguarda, se viram como ultrapassados. A palavra

71 vanguarda em literatura chegou ao Brasil com o modernismo e se estendeu à retomada de pesquisas que caracterizam os movimentos experimentalistas surgidos a partir de 1955. (TELES, 1997: 82)

Os ecos modernistas no Brasil já eram vistos desde 1920, mas foi em 1922 que se viu uma verdadeira revolução literária. Graça Aranha morou na Europa de 1900 a 1921, tendo vivido toda a agitação cultural da belle époque e do que veio depois, assimilando o espírito moderno em sua obra. Chegou ao Brasil em outubro de 1921 trazendo as notícias do Congrès de L’Espirit Moderne que se realizaria em março na França e, logo em novembro, já programou para fevereiro de 1922 a Semana de Arte Moderna em São Paulo, acontecendo assim antes a conferência dos europeus. Com Graça Aranha, os jovens modernistas ganharam um nome de peso nacional para seus propósitos.

Os fatos demonstrariam que a Semana de Arte Moderna finalmente introduzira o Brasil na problemática do século XX e levara o país a integrar-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas da nova era: o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado – um mundo que o modernismo contaria, glorificaria e, depois, temendo-o, repudiaria, consequência dele que era. (BRITO apud TELES, 1997: 276)

É sabido que Mário de Andrade tinha a coleção da revista L’Espirit nouveau, e que foi dela que teve inspirações para o seu Prefácio Interessantíssimo. Nele, Mário critica o futurismo de Marinetti e elogia os dadaístas, com os quais tinha pontos em comum, “a começar pela designação de desvairismo para sua escola, além de traços comuns na sua poesia, como a negação, a preocupação com o burguês, o ataque ao presente, a loucura, os elementos antipoéticos, a contradição e o encarecimento da liberdade” (TELES, 1997: 32). Já Oswald de Andrade fazia uma mistura do futurismo com o dadaísmo e o espiritonovismo, a exemplo de Pau Brasil, de 1924. Podemos dizer que todas as vanguardas europeias chegaram ao Brasil e foram aqui transformadas ou evoluídas.

72 A chegada das vanguardas históricas foi responsável pelo o que Mário de Andrade, “numa expressão feliz, chamou de „direito à pesquisa estética‟” (HELENA, 1986: 6). Foi somente com um movimento europeu que agora nossos poetas e escritores podiam livrar-se dos valores acadêmicos até então impostos, pois dava a eles a permissão para valorizar a linguagem como tema e objeto da própria arte, além de buscar seus próprios estilos pessoais.

Apesar disso, o espírito arcaico e provinciano ainda dominava:

A sociedade como um todo não absorvia os modernistas, não gostava dos seus experimentos, as famílias condenavam o professor de música Mário de Andrade, que perde alunas por ter sido participante da Semana de 22. Ser modernista era como ter-se tornado „leproso‟, conforme se lê em carta de Mário de Andrade a Prudente de Morais, neto. (HELENA, 1986: 10)

Mas a importância do modernismo para o Brasil não foi parada pelos “rivais”. O modernismo trouxe a

convergência de ideias estéticas do passado, que foram apuradas e substituídas pelas novas teorias europeias (futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo e espiritonovismo); e também ponto de partida para as conquistas expressionais da literatura brasileira do século XX. (TELES, 1997: 277)

Dentre as contribuições que o modernismo trouxe para a literatura brasileira, estão:

1. a abertura e dinamização dos elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale dizer, a linguagem;

2. a ampliação do ângulo óptico para os macro e microtemas da realidade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais exatamente na linguagem, elevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário (...). (TELES, 1997: 277)

73 Vê-se que o modernismo, mesmo tendo chegado ao Brasil como uma tendência estrangeira, foi de fundamental importância para aproximar o país dos novos rumos que o mundo tomava e, mais importante, investigar e reafirmar suas brasilidades.

O insight oswaldiano do pau-brasil e do antropofagismo como vertentes não conservadoras nem autoritárias de se interpretar o nacionalismo fora da ótica ufanista e com aproveitamento frutífero e criativo das influências europeias, principalmente no que diz respeito ao estilo fragmentário, ao corte cinematográfico, ao uso das palavras em liberdade, da crítica chistosa da sociedade burguesa, do emprego das técnicas cubistas, do reaproveitamento do ready-made, como propugnado pelos dadaístas, mas disso tudo extraindo um efeito não importado, uma profícua discussão sobre a dependência cultural colonizadora, de que nos legara o séc. XIX, bem como o resgate alegórico (no sentido de fazer „falar o outro‟ cultural que a metrópole reprimira) de nossas ruínas culturais (e, neste ponto, Mário de Andrade, com Macunaíma, antecipa a proposta oswaldiana), indica a profunda diferença que medeia algumas das correntes reunidas em torno do rótulo „primitivismo‟, assim como suas diversas motivações, quer estéticas, quer políticas, quer culturais; e, finalmente, acentuar que a problemática tensão entre a visão de que a vanguarda se opões ao nacionalismo e a de que o nacionalismo pode e deve, sem prejuízo, articular-se à renovação vanguardista refletirá, em suas dissensões, nos rumos que a sociedade brasileira tomou durante a República Nova e o Estado Novo. Rumos que até hoje ainda ecoam. (HELENA, 1986: 14)

Aliás, o tema nacionalismo foi importante não só pelas questões estéticas, como pela descoberta de novas formas que não as herdadas pelo parnasianismo e o naturalismo e também por questões socioculturais, “como a discussão da dependência brasileira das matrizes da colonização europeia até gravíssimas questões políticas, como a do elogio e do veto à concepção do Estado como instituição necessariamente forte e centralizadora” (HELENA, 1986: 8).

No Brasil, o primeiro a trabalhar o texto e a poesia de maneira construtivista, construindo o poema de palavra em palavra, é João Cabral de Melo Neto, que “constroi seus poemas como que a lances de vidro e cimento” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 56), por isso não à toa chamado de

74 “engenheiro das palavras”. Maiores exemplos disso são Fábula de Anfion e Antiode, de (1946-1947). Depois dele, podemos destacar O Jogral e a Prostituta Negra (1949), escrito por um jovem Décio Pignatari.

Neste poema, Pignatari lança mão de recursos „concretos‟ de composição: cortes, tmeses, „palavras-cabide‟ (isto é, montagens de palavras, possibilitando a simultaneidade de sentidos: al (gema negra) cova = alcova, algema, gema negra, negra cova), todos eles convergindo para a temática que é a do poeta torturado pela angústia da expressão. É a dúvida hamletiana aplicada ao poeta e à palavra poética: até que ponto ela exprime ou deixa de exprimir, „vela ou revela‟?. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI; 2006: 57)

3.10. As Neovanguardas

Com a I Guerra Mundial, artistas europeus se mudaram da Europa para os EUA, e assim o eixo das artes moveu-se para o Novo Mundo, dando outro espírito, renovado, à arte, tanto a americana como a mundial. Depois da II Guerra Mundial, na década de 1950, ressurgiram experimentos na arte e na literatura que foram chamados de neovanguarda, antivanguarda ou, ainda, segunda vanguarda. A época também recebeu outro nome: já não era modernista, mas pós- modernista.

Aqui faz-se necessário distinguir as vanguardas do começo do século XX, conhecidas como vanguardas históricas, as que já falamos, das vanguardas dos anos 1960, conhecidas também como vanguardas tardias. Da primeira vanguarda destacamos Marcel Duchamp (1917) e Jackson Pollock (1945). Como vimos, Duchamp, considerado o pai da arte conceitual, instituiu a noção de que tudo pode ser arte desde que o artista assim queira. Ele também foi precursor da pop art ao usar como material para as obras, produtos feitos pela indústria para fins cotidianos, desvinculando-os das utilidades e dos nomes dados a eles – uma

75 verdadeira aula semiótica. Já Pollock transpôs a noção de verticalidade do suporte (tela, mural) para o chão com a action painting ou dripping painting e criou o expressionismo abstrato – ou, ainda, a arte do acaso.

A segunda vanguarda da qual falamos, a dos anos 1960, não poderia existir sem a primeira.

Depois do ready-made de Duchamp, a arte nunca mais voltou a ser a mesma, com ele, o ato criativo foi reduzido a um nível espantosamente rudimentar: à decisão singular, intelectual e largamente aleatória de chamar „arte‟ a este ou aquele objeto ou atividade. Duchamp deu a entender que a arte podia existir fora dos veículos convencionais e manuais da pintura e da escultura, e para além das considerações de gosto. (SMITH in STANGOS, 2006: 222)

Duchamp estabeleceu que a arte podia ser feita com qualquer coisa, por qualquer um. Assim, nos anos 1950 e 1960, a arte acabou se conectando com a política.

Para Edoardo Sanguineti, as neovanguardas constituem uma apelo contra a ordem neocapitalista assim como as vanguardas históricas constituíram num outro tempo. (TELES, 1997: 209)

Influenciado pela consciência de Mahatma Gandhi e Mather Luther King, pela luta contra a segregação racial no sul e pelos direitos civis nos EUA, pelos movimentos estudantis no mundo todo e pelos protestos contra a Guerra do Vietnã nos 1960, o radicalismo da indústria e da sociedade se voltou para ações de consciência e organização autônoma dos menos favorecidos.

Os artistas condensaram seus conceitos em ícones visuais densos, arranjos não-lineares dos objetos no espaço, eventos únicos e intervenções ativistas nas quais museus e galerias agora eram vistos como o poder estabelecido. (CROW, 1996: 11)

76 O primeiro modernismo foi mais formalista e mais entregue aos paradoxos da forma. Sentimos que este foi uma evolução histórica, com uma noção de crise e um ponto culminante. O modernismo posterior, ou neomodernismo, foi uma retomada, porém antiformalista, ainda que usasse a forma para subvertê-la.

A utilização de estruturas soltas ou da arte aleatória (isto é, baseada no acaso), como em Cage, Tinguely ou no happening, ou a arte da ficcionalidade consciente, como em Nabokov, Borges ou Barthelme, não diverge inteiramente de seus predecessores: é uma velha distribuição de velhas forças. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 26)

Os neovanguardistas são mais conceituais e argumentativos (AGUILAR) que os vanguardistas; têm um rigor técnico maior, enquanto os vanguardistas são mais “incendiários” (SANGUINETTI apud AGUILAR, 2005: 70), mais imediativos, mais “emoção”. Assim, podemos dizer que são características das neovanguardas:

- a atenuação dos caracteres românticos da vanguarda histórica e atenuação dos seus impulsos mais abertamente anárquico-revolucionários;

- a tendência a „grupo‟ em substituição a „movimento‟;

- a luta contra o museu dissolve-se, pois ele é quem recebe os produtos/obras dos artistas; e

- a incorporação de novos elementos à obra de arte, como o espaço, o corpo, a música e a tecnologia.

No livro de Pierre Garnier, Spatialisme et poésis concréte, de 1968, pode- se saber mais sobre a neovanguarda. Foi ele quem publicou o Manifesto para uma nova poesia visual e fônica, em 1962, manifesto que veio depois do dos concretistas brasileiros, o Plano Piloto para poesia concreta.

Sobre o neomodernismo ou pós-modernismo, acentuamos o que Bradbury & McFarlane escreveram:

77

Se agora existe uma nova vanguarda e uma nova estética ou um conjunto de estéticas – baseadas, digamos, em Cage, Burroughs, Beckett e Borges, na poesia concreta e no Nouveau Roman, mas também no happening, drogas, contracultura e negritude -, não é mais simplesmente um estilo: é uma forma de ação pós-cultural, uma política. A vanguarda foi para as ruas e se tornou um comportamento instintivo ou radical, e estamos numa nova era estilística, na qual aquela tarefa do humanismo e da civilização que o modernismo tentou desesperadamente reafirmar, através de suas subversões formais, já está encerrada. Predominam o anarquismo e o subjetivismo revolucionário, desaparece a singularidade da obra, acabaram os cultos à impessoalidade à pura forma: a arte é ação, agressão ou jogo (grifo meu). (1989: 26) vide anexo 15

São considerados neovanguarda – ou artes pós-modernas – o kitsck, o concretismo e a poesia visual, a pop art, op art, a earth art ou land art (arte ambiental), a body art, a videoarte, o hiperrealismo, a arte póvera, a arte minimalista, a arte aleatória, a arte cinética, a web arte, a arte digital, o graffiti /street art, o happening, a arte conceitual, o punk, a música eletrônica, a arte brut ou naïf, o neo-expressionismo, o neo-concretismo e a performance, entre muitas outras. Dentre estas, vamos nos ater com profundidade a apenas uma, a poesia concreta, sem antes citar brevemente uma manifestação importante para nosso entendimento da pixação, o happening/performance.

3.10.1. Happening/Performance

As reuniões em grupo foram substituídas por happenings; o próprio comportamento dos participantes era o que Marinetti chamou de „arte como ação agressiva‟; os gêneros tradicionais se transformaram em eventos multimídia, funcionando como jornais culturais imediatos, atos para despertar a consciência ou apresentações coletivas sem autoria individual. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 155)

78 Os happenings e as performances são pequenos teatros na forma de artes plásticas, porém tridimensionais, compreendendo espaço, tempo e movimento e a interação do público. Ele geralmente está no mesmo patamar – o chão – ou é pego de surpresa, produzindo um contexto emocional nas pessoas.

John Cage apresentou em 1952 na Carolina do Norte o que foi considerado o primeiro happening. Por alguns historiadores, porém, é Allan Kaprow o criador, por ter inventado o termo. Em 1959, ele realizou inúmeros happenings, definindo- os como “enviroment”, ambiente em português. O Grupo Gutai, baseado em Osaka, Japão, também se destacou de 1954 a 1972 com os happenings. No Brasil, Flávio de Carvalho é considerado o pioneiro da performance. Mais ligado à libertação do que ao nacionalismo que os outros modernistas, sua obra era diferente de tudo e até hoje ainda é obscura. Também arquiteto, pintor desenhista e escritor, suas “experiências” traziam a atitude como forma, e o corpo como obra.

A diferença entre happening e performance é que nesta última há a participação (ou interação) do público, diferente do happening.Happening e performance assemelham-se por serem obra fora do suporte, ou melhor dizendo, o corpo, o som e o tempo no suporte “espaço”. Eles não tem começo, meio ou fim programados. Podem ser poéticos, dramáticos, musicais, políticos, eróticos, alucinatórios etc, e são um exemplo da arte descartável, efêmera, que acontece num espaço e tempo e depois finda. O happening e a performance, assim como a maioria das vanguardas, recusa as convenção tradicionais de arte, portanto não tem enredo, não separa o público do espetáculo e não há planejamento. vide anexo 16

3.10.2. Poesia Concreta

Na década de 1960 os EUA, mais especificamente a cidade de Nova York, vivia uma intensa explosão cultural (podemos dizer também contra-cultural) e artística. As atividades experimentais que haviam começado na década anterior tomaram conta das artes, envolvendo artistas de diversas áreas, como literatura, música, dança, artes visuais e os happenings. No mesmo período, o rumo da literatura tomava os caminhos das artes visuais.

79 A cidade de São Paulo respirava uma agitação artística: Abertura do MASP (1947), do MAM (1948), do Clube dos Artistas, do Clube da Poesia, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), novas revistas, novos prêmios e artistas. Em uma página de O Estado de S. Paulo aparece um poema diferente, que chama a atenção – de uns pela estranheza, de outros por encontrarem algo novo, diferente da poesia da época. O poema era Lobisomem, escrito por José Pignatari, pseudônimo de Décio, com cerca de 21 anos à época. Isso era idos de 1948.

Neste mesmo ano José Pignatari comparece a uma mesa redonda na sede do IAB, à qual também está presente Augusto de Campos. Augusto marca um encontro com Décio, que passa a conhecer também Haroldo de Campos, irmão de Augusto20.

A partir de então, formam um grupo que se reunia aos fins de semana para conversar sobre arte, cinema, música e literatura. Pouco depois, passam a integrar o Clube da Poesia, importante círculo intelectual do qual fazem parte importantes poetas e críticos da Geração de 45, conhecida também como 2ª fase modernista brasileira. Em 1950 rompem com eles, começando a concretizar – literalmente – suas próprias ideias e pesquisas, baseadas nas outras artes e na tecnologia. Em 1952, fundam o grupo Noigandres e lançam uma revista homônima.

Os jovens tinham certeza de suas ideias, e buscavam inclusive, visibilidade e respeito internacionais. Tinham um trabalho em equipe e visão multidisciplinar, pensando a poesia no contexto urbano-industrial.

Localizar-se no espaço urbano-industrial e perceber suas mutações são as condições básicas que solicitam dos poetas uma redefinição de seu papel nessa sociedade.21

Surge assim a poesia concreta, movimento que realmente apareceu, adquiriu respeito e influenciou em âmbito internacional. “Ela existiu em âmbito

20 O Chão da Poesia Concreta. In: Revista Percurso, sem mais informações. 21 O Chão da Poesia Concreta. In: Revista Percurso, sem mais informações.

80 internacional, instaurou a era pós-verso, representou o coroamento de todo um processo que, tendo início no século XIX com o verso livre, apontou para a ruptura dessa tradição” (KHOURI, 1996: 60 e 61). Para Aguilar, “na literatura, o movimento da poesia concreta representa uma das tentativas mais íntegras e depuradas da tendência modernista” (AGUILAR, 2005: 333).

Assimilaram-se aspectos inerentes à sintaxe relacional do ideograma, dinamizando o poema, tornando-o cinético e deflagrando não só o que há de visualidade em uma poesia, mas também o espaço que ela ocupa. Explorou-se o semântico global da palavra em suas dimensões materiais e buscou-se, simultaneamente, a multiplicidade e a condensação dos sentidos, ainda que se usasse „um vocabulário à vezes pequeno‟ e, em alguns casos, „uma frequência relativamente alta de uma única e mesma palavra‟. (BENSE apud CÂMARA, 2000: 11)

Os concretistas deram aparência estética ao que não tinha antes: as letras, as frases e os poemas.

O que em plástica ou em arquitetura é elementar (considerar as transformações formais em termos visuais), em poesia possibilitava a descoberta de uma série de textos (os poemas visuais), que eram considerados ou meros entretenimento e, ou desvios marginais dos poetas do passado (Mallarmé, Apollinaire, Marinetti). (AGUILAR, 2005: 61)

Vemos, assim, que a poesia sempre encontrou mais resistências à evolução formal se comparada a outros tipos de arte, como escultura, pintura, teatro, música, arquitetura.

Com a revolução industrial, a palavra começou a descolar-se do objeto a que se referia, alienou-se, tornou-se objeto qualitativamente diferente, quis ser a palavra „flor‟ sem a flor. e desintegrou-se ela mesma, atomizou-se (Joyce, cummings). a poesia concreta realiza a síntese crítica, isomórfica: „jarro‟ é a palavra jarro e também jarro mesmo enquanto conteúdo, isto é,

81 enquanto objeto designado. a palavra jarro é a coisa da coisa da coisa, o jarro do jarro, como „la mer dans la mer‟. isomorfismo. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 68)

Aguilar nos conta que logo no início do concretismo a forma e a completude das palavras não eram mexidas, apesar de já serem consideradas imagem. Existia uma tipologia padrão a ser usada, a futura bold, que possuía formas simples e modernas, porém letra era letra, e desenho era desenho.

Os poemas não saíam das letras do alfabeto e as letras jamais se dissolviam para assemelhar-se iconicamente a outra coisa. (AGUILAR, 2005: 214)

Mas ainda não era o bastante. Os poetas concretos queriam chegar a uma inovação tal que subvertesse tudo o que havia sido feito até então em poesia: queriam achar (ou inventar) algo que substituísse o verso totalmente. O Plano- Piloto para Poesia Concreta, escrito por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari em 1958 para a revista Noigandres 4, definia dois pontos fundamentais:

 “o fim do ciclo histórico do verso (da unidade ritmico-formal)” e proposição de uma poesia sem verso e;

 “o espaço gráfico como agente estrutural, (...) em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1975: 156).

Augusto de Campos e Décio Pignatari foram os que mais usaram a contaminação entre imagem e signo lingüístico.

Desde os primeiros anos do movimento, o uso do ideograma esteve associado ao diagnóstico de uma cultura caracterizada como visual e em que predominava o não-verbal (grifo meu). (AGUILAR, 2005: 231)

82 Assim foi instaurada definitivamente – pois um embrião já havia sido criado com os modernistas – o fim da poesia com verso e do fazedor dos versos, acentuando-se ainda o que parecia impossível: que não é importante fazer versos.

Os artistas e poetas concretos desde o início pensavam no “papel do artista na sociedade industrial, (...) portanto a poesia concreta foi pensada como protagonista da transformação cultural” (CÂMARA, 2000: 20 e 25). Ela tinha como ideário preocupações com as “relações complexas entre arte, comunicação e tecnologia” e estava empenhada em “extrair o máximo de comunicação do poema com o mínimo de elementos” (CÂMARA, 2000: 24). A poesia concreta foi profundamente influenciada pela semiótica, usando-a inclusive como técnica para as criações.

(...) O poeta se descartou, de um só golpe, da linguagem-instrumento; ele escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos (...). As palavras-coisas se agrupam por associações mágicas de conveniência e inconveniência, como as cores e os sons, se atraem, se repelem, se inflamam e sua associação compõe a verdadeira unidade poética que é a frase-objeto. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 78)

A poesia concreta enfatizou a racionalização da forma ao lançar mão dos recursos tipográficos e espaciais na página, tornando o papel, o tipo, a palavra e o significante como ferramentas e matérias para a obra e chegando a um minimalismo extremo ao articular simultaneamente as dimensões verbais, vocais, visuais e espaciais, criando uma nova sintaxe que atuava em vários campos – e não só no ortográfico-sintático –, como o happening também criou.

Com as artes das Bienais, os poetas criaram um espaço de diálogo e de performance: ao tirar a poesia de seu lugar convencional, exigiram que esta se definisse com relação à demais artes. A poesia se apresentava como planejamento, design e construção, categorias que a aproximavam da artes visuais e da poética de João Cabral de Melo Neto, mas sobretudo dessa disciplina que no Brasil havia se convertido em emblema da

83 tradição modernista. (...) A categoria de design funcionava como uma corrente de transmissão e ideologema, isto é, vinculava a poesia com as demais artes e, ao mesmo tempo, com o espaço social. (AGUILAR, 2005: 74)

A caligrafia, ou seja, a grafia manuscrita, não pertencia ao mundo da poesia concreta pelo simples fato de não se enquadrar nos conceitos de “massa” e “tecnologia”. A caligrafia manual estava mais ligada à estética expressionista, além de ser bastante encontrada na art brut.

A poesia concreta é uma poesia „em situação‟. Ela não se recusa, como o Rilke da nona elegia de Duíno, à máquina e aos seus produtos. Longe dela o misticismo artesanal. Para começar, o poema concreto – como o quadro concreto pintado a revólver – é composto diretamente à máquina: o espacejamento fixo e a regularidade dos tipos permitem, com esse instrumento de trabalho típico do homem moderno, um maior controle dos elementos em jogo do que, evidentemente, ocorreria na peça manuscrita. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 147 e 148)

A poesia concreta apresentou “dois tipos de ruptura: a poesia sem verso, sistemática do verso, e a destruição do mundo verbal no espaço e sua utilização tipográfica” (CÂMARA apud PIGNATARI apud COCCHIARALE, 1987: 72).

Concretistas dispunham as palavras no espaço da folha de papel sem utilizar ponto, vírgula ou qualquer tipo de sinal pausal. Os próprios espaços na folha sinalizam a pausa. A poesia concreta usou não só o espaço, como construções criativas com as palavras e o som, e a imagem das letras e das palavras para conseguir evoluir a ponto de articular o verbo, o vocal e o visual. O recurso dos signos visuais, que no início eram poucos, foi sendo recorrido com o passar do tempo, pois foram se libertando da palavra escrita (significante), ficando mais e mais visual. vide anexo 17 e anexo 18

Em sua evolução de formas, a poesia concreta daria origem a novas poéticas que consideram a possibilidade de uso de um amplo sistema de signos, não se limitando, com isso, à linguagem verbal: daí o caráter de universalidade buscado. (CÂMARA, 2000: 25)

84

A poesia concreta se afastou dos suportes semânticos e sintáticos que permitiam a decodificação discursiva dos poemas. Assim, a narrativa e a decodificação deixaram ser uma história para ser como que ideias ou flashes de ideias, podemos dizer assim, que darão origem a um pensamento – por isso fala-se em “obra aberta” sobre as artes modernistas (ECO, 1972). “As palavras fazem com que se configurem na mente imagens visuais, ou melhor dizendo: as palavras do poema funcionam como um estímulo para que se imaginem coisas – visuais -, imagens emergem” (KHOURI, 1996: 60 e 61).

Aqui entramos na ideia de semiose, tão importante para o entendimento de qualquer arte moderna como da pixação. Como já dissemos, um signo comunica por si só, inclusive sem querer, como por exemplo na não comunicação: mesmo os pixadores não querendo se comunicar com os passantes comuns, o signo pixação gera neste tipo de receptor vários entendimentos, ou idéias, ou percepções, ou lembranças. Semioticamente falando, podemos explicar dizendo que o signo pixação, independente da intenção, gera comunicação, que por sua vez faz surgir vários signos. A esse processo de surgimento de signos, dá-se o nome de semiose.

Assim, entendemos que semiose nada mais é que a produção de signos, “a partir do pressuposto de uma relação recíproca entre significante e significado” (SAUSSURE). Aí também entendemos por que é impossível não comunicar: todo e qualquer signo gera uma comunicação, pois é interpretado. Com isso, é gerado outro signo que não o primeiro, e por aí vai.

É possível dizer que a semiose é circular e que existe um universo infinito de signos, pois estamos sempre gerando outros, praticamente em um processo exponencial. “Nossa cabeça não pára”. O – difícil, se não impossível – objetivo da meditação é justamente o de tentar programar nossa mente para eliminar da nossa cabeça todo e qualquer signo ou processo sígnico – ou da semiose.

Um signo, ou representamen, é aquilo que representa algo para alguém, em algum aspecto ou sentido. Dirige-se a alguém, quer dizer, cria na mente de uma pessoa um signo equivalente ou, talvez, um signo mais desenvolvido. Ao signo que é criado chamo interpretante do primeiro signo. O signo representa algo, seu objeto. Representa o objeto, não em todos os sentidos, mas em referência a um tipo de ideia,

85 que em alguns casos havia chamado terreno (ground) da representação. (PEIRCE)

Segundo Tzara, a poesia deve possibilitar “a cada ouvinte a ligação das associações convenientes. Cada um reterá os elementos característicos para sua personalidade, os entremeará, os fragmentará etc., ficando, de todo modo, na direção que o autor canalizou” (TZARA apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 139). Estas noções de seminose – ou, em português informal, de continuidade do pensamento – serão importantes para a algumas características que apontaremos no próximo capítulo.

Segundo Jan Mukarovsky, na poesia concreta

(...) a distinção tradicional entre conteúdo e forma é substituída por outra, mais acurada, entre a forma e o material empregado. Por material, entendemos tudo aquilo que entra na obra e deve ser organizado pelo artista, a saber: os elementos linguísticos, ideias, sentimentos, eventos etc., enquanto forma para nós é a maneira pela qual o escritor manipula esse material para produzir efeito artístico visado‟. (nota: forma, aqui, equivale, obviamente, ao que os antecessores russos de Mukarovsky denominavam procedimento). Sartre pensava certamente nessas teorias quando escreveu (Situations II, “O que é a literatura?”): O império dos signos é a prosa; a poesia fica ao lado da pintura, da escultura e da música. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 78).

Se, no entender de Sartre, a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para esta as palavras são signos enquanto para aquelas são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se transporta a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional e, por assim dizer, geradora da ideia, criando uma entidade todo-dinâmica, “verbivocovisual” - é o termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 55)

86 As influências mallarmeanas pediam ao poema concreto uma tipografia funcional, que espelhasse com as “metamorfoses, os fluxos e refluxos do pensamento” (CAMPOS, 2006: 32).

A materialidade tipográfica dessa fase não é alheia aos critérios modernistas de evolução e homogeneidade. A futura bold cumpria essas exigências, como os poemas de Noigandres 4 demonstram. Mas, no início dos anos 1960, os usos tipográficos se diversificaram e adquiriram sentidos diversos, de acordo com o poema. (AGUILAR, 2005: 223) vide anexo 18

“As variações tipográficas atuam sobre as dimensões e sobre a forma, modificando o desenho do poema e sua espacialidade” (AGUILAR, 2005: 238). Um artista que influenciou muito os concretistas na época foi Max Bill, que tinha formação na Bauhaus triunfou na Bienal de 1950 (AGUILLAR, 2005: 62). Max Bill não tinha uma única profissão, mas várias, e as usavas como ferramenta para todas, simultaneamente. Ele foi apresentado aos irmãos Campos e a Pignatari por Tomás Maldonado como “arquiteto, pintor, escultor, gráfico, designer, publicitário e educador” (idem, ibidem).

A Bauhaus foi criada por Walter Gropius em Weimar, Alemanha, em 1919, da junção de uma academia de belas-artes e uma escola de artes aplicadas. Literalmente, significa “casa em construção”, pois foi fundada após a I Guerra Mundial com intenção de dar suporte intelectual, cultural e artístico para a formação de profissionais para a reconstrução do país, além de se pensar em uma estética para esse novo período que se iniciava. Ali eram ensinadas todas as artes e todas as profissões ligadas às artes, inclusive arquitetura e publicidade. Vê-se aqui que a ideia de “arte” já havia adquirido uma nova concepção, podendo estar em qualquer lugar que não apenas nas belas-artes e unir-se ao cotidiano, perdendo assim a aura de superioridade.

A Bauhaus reunia como professores badalados artistas, arquitetos e pensadores das artes, e teve como perfil a usabilidade, o racionalismo e a busca pelo novo. Além disso, fazia parte da proposta da Bauhaus que o artista se visse

87 como sociamente responsável pelo bem-estar e a melhoria da comunidade, e esta aceitasse o artista como um benfeitor.

Muito ligada à corrente da art déco22 e diferente do dadaísmo, que pensava em desconstruir e não via futuro no mundo, nas pessoas e nas coisas, a Bauhaus propunha a harmonia e o uso da arte para melhoria da sociedade. A arte devia ser usada para deixar mais atrativos os objetos, unindo-se à ergometria e à praticidade. Eram usadas ferramentas e características da sociedade industrializada, como a fotografia e o cinema, mas também a tipografia, o artesanato, a editoração e a ilustração, sempre pensando na limpeza e plasticidade da coisa produzida.

A Bauhaus (...), além de dar seu nome a um tipo de letra, colocou a tipografia no centro das suas experimentações e, nos tempos da Revolução Russa, a Escola de Altos Estudos Técnico-Artísticos de Moscou (...). (AGUILAR, 2005: 218)

A Bauhaus, inclusive, criou também um departamento de tipografia, pois as vanguardas estavam preocupadas com

uma reflexão mais vinculada à autonomia da arte e encontraram na tipografia um campo de experimentação, como também outros movimentos que, entregues aos avatares da revolução, entreviram tanto as possibilidades propagandísticas do tipograma, como seu estatuto de sintoma da modernidade e das mudanças sociais. (AGUILAR, 2005: 218)

É notório que artistas de vanguarda deram especial atenção para as experimentações com tipografia, mostrando que a letra, ou a forma dela, não era irrelevante. Movimentos como o cubismo, o dadaísmo, o construtivismo e o futurismo se ocuparam dos possíveis usos das técnicas tipográficas.

22 Movimento que não citamos pois estava mais próximo das artes clássicas, e não das modernistas.

88 Segundo Reyner Banham, em seu livro Theory and Design in the First Machine Age, „esta introdução de uma organização industrial e do telefone nas convenções aceitas da criação artística teve claramente o mesmo tipo de significado dadaísta que a eliminação do artista e da pintura daquelas convenções por Duchamp com seu „porta-garrafas‟. (AGUILAR, 2005: 78)

Como vimos, a Bauhaus estabeleceu um marco ao fazer a interação entre a indústria e as artes, inaugurando o que é chamado de design. Inspirados na estética limpa proposta pela Bauhaus, as experimentações dos três jovens poetas começaram a tomar corpo, unindo as palavras à plasticidade.

O design proporcionava, em uma leitura simplificadora, o estoque de motivos que distinguiam o movimento: consonância com o contexto moderno, possibilidade de uma linguagem universal, reflexão sobre a forma, e caráter imediato e planejado da obra frente ao caos surrealista e às efusões tardo-românticas que ainda predominavam na poesia. O poema deixa de ser um discurso que admite qualquer versão tipográfica ou reprodutiva, e passa a ser um objeto que ocupa um lugar no espaço e que visualiza uma série de relações estruturais. (AGUILAR, 2005: 77)

A poesia concreta foi o resumo de tudo o que o modernismo havia ensinado até então: coloquialismo, experimentação, trabalho em conjunto, interdisciplinaridade, o fim das certezas, a mudança total na noção do que é obra de arte – ou poesia – o uso de tecnologia, a arte próxima da vida e a vida próxima da arte, o deslocamento do suporte e o uso de outras ferramentas e materiais, o nonsense (ou perda da racionalidade da sintaxe), a desintegração das formas (abstração), a quebra das regras no não uso de pontuação, entre muitos outros.

Mas o que a poesia concreta explorou mais que as outras vanguardas foi “o espaço como agenciamento e signo como nó material das relações” (AGUILAR, 2005: 176).

Depois de firmada, foi possível perceber dois tipos distintos de construção na poesia concreta, a composição linear, da qual o verso participa, assim como os laços lógicos da linguagem, e a constelar, que lança os signos simultaneamente no espaço, esta última

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adequada à „nova realidade ritmica‟, que um mundo tecnologizado impõe e no qual a comunicação visual deixa a cultura livresca e discursiva em segundo plano. (AGUILAR, 2005: 183)

S.I. Hayakawa, em um ensaio muito citado pelos concretistas, defende que

a estrutura tradicional da linguagem (e as concomitantes reações semânticas) divide o indivisível em „entidades‟ distintas – muitas vezes obscurecendo ou ocultando por completo os relacionamento funcionais (HAYAKAWA apud AGUILAR, 2005: 183)

, um tipo de linguagem aristotélica, ocidental, o oposto da chinesa.

O ideograma se define – de um modo restrito – como uma continuidade ou um motivo visual e fônico que se repete no poema e que substitui o tema semântico ou o estribilho. (HAYAKAWA apud AGUILAR, 2005: 183)

No ideograma chinês, os “traços são representações ideográficas dos objetos que designam” (AGUILAR, 2005: 186).

Embora os poetas paulistas usem a palavra „ideograma‟ para se referir tanto a seus poemas da fase concreta, à poesia chinesa, à poética de Pound e Mallarmé como à cultura visual, à simultaneidade e à espacialização textual, em cada momento privilegiam-se elementos diferentes e o decisivo é que o „ideograma‟, como termo, consegue sintetizar fenômenos de natureza distinta. Aproximar-se da gênese do termo nos ensaios e manifestos permite estabelecer um ponto de partida para construir um instrumento crítico de leitura do poema concreto. (AGUILAR, 2005: 184 e 185)

O poema como forma espacial fez com que a palavra se transformasse em „coisa‟, mas coisa que só sobrevive na relação com aquele espaço. Já não havia mais versificação nem linha, definindo-se outra relação com o espaço. Segundo a

90 teoria Gestalt, o “todo” é mais que a soma das partes que o compõem. “A diferença está em que, nas neovanguardas, a utilização consciente dessas leis permitiu um tratamento mais elaborado ou consciente das relações espaciais” (AGUILAR, 2005: 191), definindo assim seu „texto cultural‟. O olhar não precisa percorrer em um sentido fixo e apreende várias significações simultaneamente.

O poeta concreto se distancia ainda mais das formas narrativas da discursividade poética e se aproxima do trabalho espacial da pintura e da música que lhe são contemporâneas. (AGUILAR, 2005: 203)

Segundo Décio Pignatari, a paranomásia, e não a metáfora, é a “figura adequada para o eixo paradigmático das similitudes, ao menos no que se refere ao signo icônico artístico” (PIGNATARI apud AGUILAR, 2005: 208). Para Fenollosa, é a associação metafórica que diferencia a poesia da prosa. (FENOLLOSA apud AGUILAR, 2005: 186).

Os traços icônicos do texto, a preocupação com o espaço e a apresentação direta e rápida das palavras, fizeram a poesia virar imagem. A imagem e o texto passam a fazer parte de um mesmo “campo experimental”, tirando-se a distância entre signo e significante. Findada a noção de sucessão e enlace das palavras, a poesia concreta passa a sintetizar a ideia em uma imagem.

A sintaxe impõe uma ordem sucessiva e sua fluidez permite simular o reflexo de uma realidade extradiscursiva. Nas formas espaciais, Salta aos olhos o caráter arbitrário e cultural do ordenamento sintático e linear dos signos. (...) Em poesia, a sucessividade está ligada a uma negação da escritura, de sua espacialidade e de sua materialidade. Mediante essas sobreposições, as artes plásticas tentam configurar um espaço e um tempo liberados da sucessão e da sintaxe da representação. (AGUILAR, 2005: 213 e 214)

vide anexo 19

91 Segundo Aguilar, os concretistas tiraram de Joyce o amálgama de palavras; de Cummings, a fragmentação; de Mallarmé, a distribuição no espaço; de Pound, a teoria do ideograma e a elaboração das tradições (2005: 67).

A poética concreta baseia toda a sua força na dupla afirmação de uma série de oposições que a prática de vanguarda releva e torna produtivas: poesia e utilidade, ideograma e sintaxe lógico-discursiva, não-conciliação e comunicabilidade, trabalho da forma e consumo como participação. (AGUILAR, 2005: 235)

Concretos usam a palavra como imagem, mas nem por isso destroem sua poética, pelo contrário. Constroem uma nova, baseada no significante, no significado e no signo, geralmente sem construções sintáticas ou, quando há, com a subversão ou uso criativo dela. “A Poesia Concreta não se dissocia da linguagem, nem da comunicação. Mas despe a armadura formal da sintaxe discursiva” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 172). Aguilar diz que, “não se trata de um poema pictórico nem de uma pintura poética, mas sim de uma maneira de processar a experiência diante os signos, sejam da natureza que forem.” (AGUILAR, 2005: 217).

Uma vez que a palavra assume este caráter visual e consistente, supõe a reatualização de duas linhas que remontam aos experimentos das vanguardas históricas: a contaminação entre as diferentes séries (linguística, auditiva, visual) e o uso intencional da tipografia. Nesta linhagem, os poetas concretos não continuam a linha dominante da poesia como imagem metafórica que surgiu na poesia de vanguarda. Em sua leitura visual, resgatam uma zona menos reconhecida (...): a da poesia visual e da experimentação tipográfica. (AGUILAR, 2005: 209)

O concretismo quis abandonar o terreno da poesia que retrata coisas não úteis, mas também enfrentar as artes visuais com uma arte “útil e funcional”. Além da superação do verso, eles precisavam e buscavam uma unidade mínima do poema que substituísse o verso.

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A contaminação entre imagem e a palavra que os poetas concretos praticaram era um procedimento poético e, também, um modo de inserção nesse mundo visual de comunicações rápidas. (AGUILAR, 2005: 232)

Apesar de os concretistas terem buscado para a poesia um terreno próximo ao dia-a-dia, um poema “útil e funcional” que os diferenciava dos tradicionais, por outro lado os poemas tinham formatos comuns das artes plásticas, colocando-os moldura e pendurando-os em paredes, como os artistas antes das vanguardas. Para os modernistas, um ato arcaico. Para a poesia, era um enfrentamento, uma novidade. Além disso,

a poesia se tornou „uma luta insuportável com as palavras e os significados‟, um puxar e esticar, um sacudir violento da faculdade de compreensão do intelecto. Outras definições mais antigas e tradicionais da poesia – a extravasão espontânea de sentimentos poderosos, as melhores palavras na melhor ordem – foram deixadas de lado com impaciência. (MCFARLANE in BRADBURY; MACFARLANE, 1989: 56)

vide anexo 19

Em 1967, aparecem os poemas-processo, modalidade que se opunha radicalmente a qualquer forma de discurso ou item que lembrasse a poética tradicional, podendo inclusive abandonar as palavras e letras. Não vamos entrar nas derivações da poesia concreta pois esta por si só basta como ilustração para a pixação.

A arte das palavras na poesia visual (...) são tonificantes, alegres, excitantes. / Mesmo a palavra „doença‟ brilha como o sol. (...) A nova poesia faz as palavras se mexerem na página: elas tem patas, tem asas, rodas, mãos, pés, luzes próximas e longínquas. / Isso se mexe como um olho. (Garnier, Manifesto para uma nova poesia visual)

93 4. ANÁLISE DAS PIXAÇÕES

Para esta análise, é fundamental ater-se, de antemão, aos elementos essenciais que distinguem as vanguardas artísticas e a poesia concreta da pixação: a motivação e a pretensão. A poesia concreta nasceu dentro de um núcleo de pensadores que logo a posicionaram ideologicamente perante a história das artes e da literatura. Já a pixação é feita por moradores nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros, aqui a considerar São Paulo e Grande São Paulo, geralmente das classes C, D e E.

Podemos dizer que a pixação não tem a intenção de ser arte e, muito mais que isso: ela não tem um ideário político definido e não é um movimento artístico- intelectual em sua essência. Diferente dos vanguardistas, que muitas vezes antes mesmo de qualquer obra já tinham conceitos, pixadores não delimitam referências teórico-intelectuais, mas ações, técnicas e elementos para valoração da pessoa, da turma ou do pixo.

Os concretistas eram próximos do nacionalismo e tiveram “uma necessidade de se posicionar frente ao problema do nacional” (AGUILAR, 2005: 104), que o levou a buscarem referências (paideumas) que tinham um nacionalismo crítico. A maioria dos pixadores não é engajada politicamente, porém eles fazem uma crítica inconsciente ao país com suas palavras e à propriedade privada ao se apossarem de suas paredes sem nenhuma culpa.

Três intelectuais pensaram minuciosamente a poesia concreta, baseados em estudos formais das artes, da literatura e na pesquisa da tecnologia e da sociedade da época, lançando manifestos e artigos em sua defesa.

Os movimentos e conceitos da arte moderna foram intencionais, deliberados, dirigidos e programados desde o começo. Fizeram-se acompanhar de uma pletora de manifestos, documentos e declarações programáticas. (...) Os movimentos artísticos modernos foram essencialmente „conceituais‟: as obras de arte eram consideradas em função dos conceitos que exemplificam. (STANGOS, 2000: 9)

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A pixação nasceu espontaneamente, adquirindo formas por meio da cultura do homem suburbano de São Paulo. Embora alguns pixadores, principalmente os mais velhos, tenham um discurso mais elaborado social e politicamente, a pixação não nasceu se posicionando perante algo, embora o seu fazer e seu modo de viver conotem intrinsicamente a ida contra valores da sociedade. Ela é desorganizada no sentido de não haver uma ideologia ou pensamento comum, inclusive propositalmente, por acharem que “cada um faz o que quer”. Já a poesia concreta se manifestou desde o início com ideais propostos para mudanças sociais e artísticas.

Como já vimos, também é possível afirmar que subverter a língua e a linguagem, propositalmente ou não, não é de hoje: a linguagem coloquial/popular; movimentos como o modernismo em nível mundial e o antropofagismo especificamente no Brasil; e, claro, o movimento concretista, quebraram e ainda quebram as regras instituídas pela formalidade lingüística.

Porém podemos afirmar que quem nasceu após os anos 1960, e aí estão inclusos os pixadores, é de uma geração influenciada por todas essas mudanças modernistas citadas, notadamente aqui o pop e a desconstrução linguística. Um exemplo é que quando criança eu já escrevia usando criativamente a página e as letras, muitas vezes com sinais pictóricos, sem saber o que era poesia concreta. Isso indica que nossa geração já vinha com essa bagagem de misturar figuras e palavras com as letras.

Os poetas concretos queriam uma linguagem que, “de um lado, qualquer pessoa pudesse compreender e, de outro, materialize uma escritura própria ao mundo cosmopolita” (CÂMARA, 2000: 28), uma imagem que conduzisse com eficácia a mensagem e que se comunicasse com o maior número de indivíduos em qualquer sociedade. Como percebemos, os pixadores não estão em busca da compreensão das pessoas de fora do seu grupo. Pelo contrário, gostam da “não compreensão”. Além disso, as palavras são escritas principalmente em português, ou seja, entendíveis apenas a quem fala a língua.

Sobre a eminência de uma nova forma de poesia que refletisse a nova vida caótica urbana, disse Pignatari:

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(...) Aos poetas, que calem suas lamúrias pessoais ou demagógicas e tratem de construir poemas à altura dos novos tempos, à altura dos objetos industriais racionalmente planejados e produzidos. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1975: 125)

Incompreendidos em sua poesia-arte, o chamado de Pignatari parece que não foi atendido pelos “poetas”, mas pelos pixadores, como veremos a seguir. A pixação é a cara dos “novos tempos”, feita pelo e para o “operário” (palavra usada por Pignatari): rápida, imagética, disponível para a massa, urbana, caótica, democrática, direta, intrigante, provocante e liga à cultura popular.

O poeta construtivista tem um impulso construtivo (os poemas possuem formas regulares como um círculo ou uma pirâmide, perfeitamente controladas e prévias à entrada do material), mas deve conviver com um elemento anárquico que provê a mesma realidade quando encarada a partir dos meios de comunicação de massa (revistas e jornais). (AGUILAR, 2005: 109)

Neste sentido, a pixação é um passo à frente da poesia concreta – é palavra, é rápida, usa a cidade como suporte e, em tempos pós-modernos, não precisa de máquinas. O pixo é feito rapidamente, seu elemento anárquico é o ritmo da urbe, ritmo este que guia muitas vezes, inclusive, a qualidade do traço do pixo final. “A comunicação rápida confere um valor positivo ao poema, ou melhor, guia sua própria confecção” (POE e GOMRINGER apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 130). vide anexo 20

Apesar de a pixação nunca querer ter sido formalmente arte23, ou poesia concreta, ou movimento organizado, ou objetivar a contestação de valores, ou contextualizar-se dentro de teorias antropológicas, sociais, artísticas, estéticas ou literárias, ela possui naturalmente muitas características da poesia concreta, que serão explicitadas a partir de agora.

23 Mas muitos se consideram artistas e a pixação arte, vide depoimento da Conclusão.

96 Deixo claro, finalmente, que termos como metodologia, função, informação sensorial, teoria da informação, chaves lexicais, experimentação, poesia semiótica, permutações de códigos, espaço funcional, sintaxe visual, interface entre indústria e sociedade, pensamento sintético-ideográfico e outros normalmente usados na criação e na conceituação da poesia concreta, podem até ser aplicados à pixação, porém não fazem parte do universo dos pixadores.

4.1. As palavras na pixação e suas poéticas

Publico aqui uma amostragem do que em 4 anos de trabalho achei pelas ruas da cidade de São Paulo e cataloguei. Foram mais de 2.000 pixações diferentes, sendo que algumas turmas repetem os nomes, se diferenciando apenas pelo singular e plural (“vocal” e “vocais”), outras pela ortografia diferenciada (“vitima” e “vitmas”, “viroz” e virus”) e, sempre, pela forma da letra.

Aqui deixo-as como o original, mantidos a não acentuação e a grafia, pois as pixações quase nunca possuem acentuação – quando possuem, elas integram a letra – e comumente transgridem as normas instituídas de ortografia. As pixações foram separadas por seus principais temas e estilos24 sem a distinção entre o que é grife e o que é pixo25.

24 Muitas vezes, as ideias temáticas se misturam: “miseráveis” poderia estar na categoria “social” ou na “inferioridade”. Uma palavra pode conter mais de dois estilos, como “siglas” e “inglês”. Como aqui a proposta é exemplificar, coloco-as no tema e no estilo que a meu vale para mais leitores. Nesta amostragem não faço distinção entre o que é grife e o que é pixo, pois o intuito é notarmos os nomes, independente da categoria deles dentro da pixação. 25 As grifes geralmente são desenhadas como logomarcas, sintetizando um pensamento e/ou uma frase. É um tipo de “brasão”. As grifes estão inseridas em um discurso tipicamente brasileiro, com sacadas que são intrínsecas a esta cultura, por isso, apesar de altamente visuais, não podem ser consideradas uma linguagem universal como desenhos e pinturas – ou como a poesia concreta ou visual objetivou a ser. Ademais, alguns pixos adquirem aspectos de grife e algumas grifes são escritas, assemelhando-se a um pixo.

97 4.1.1. Temas principais

 Nome pessoal - é o tipo de palavra menos encontrado di, lost, DNS (Denis), HES-MD (Esquisito e Marcelo Doido), rodrigo hip hop, lin o animal.

 Autorreferencial - sobre o que são ou o que fazem

as gatas, as mina, afoitos, africanos, homens pizza, banais, bêbados (BBS), bafos, bruxo´s, desumanos, dignos, gatunos, garotos perdidos, analfas, boné, churras, keto, vigias, lacaios, rueros, ciborg‟s, zumbis.

 Arte - a pixação como arte

art pixo, ART TERRORISTA SÃO PAULO, art‟s, arte pro, arteiros, g‟nios art crew.

 Machismo/erotismo

big penis, caffas, cafajestes, esperma city, anaconda, gametas, glândulas, infiéis, LPX (loucos por xana), os caça xana, os meti vara, os papa tche-k, os pintão, os pica, semens, sperms.

 Drogas

aboa, aerva, bicudos, bek´s, bicudos, brisados, canabis, chapados, co...ke..., corpos ébrios, fissura, osfumi-xera.

 Grupo

aturma, turmão de maio, turma do fundão, mafiosos, bando, coronéis, operação kaya, SP manos, turma do bronx, topgang, troparebelde, enxame da ZN, capones, amafia, mafiosos, 13 boys, atropa.

 Crime ou ilegalidade

brutais, canos, clepto, criminais, fuga, acusados, k deia, morto no 01, detentos, fugitivos, refém, rifles.

98  Polícia ou lei

DEIC, detenção, detetive, d-nark, fiscais, gambé, blit´s, OSRGS (os registrados no código penal), gambé, os bacamartes, tribunal, codigo13, 8º batalhão, arsenal.

 Social

conflito, detritos, indigent´s, lepras, miséria, mucamos, africanos, mordomos, miséria, os 100 futuro, os catalixo, os comelixo, os mal pagos, os piores de SP, osnadafazem, os urubu, US VL (os vira lata), os passa fome, OSBV (osbichovivo), osquasenada, raiva da pátria, abismo, sem valor, tralma, tumor, surra, famintos, dingos, osporranenhuma, radioativos (RAD!).

 Palavrão - só foram encontrados estes aqui relacionados calaboca, foda-se.

 Ratos - conotação ligada à cidade, praga ou inferioridade rata, ratão, rato, rato suicida, ratoloouco, ratos, ratos punk, ratóxico, rattas, ratumim, RDR (ratos de rua), roedores, pragas.

 Raiva, revolta ou doença

destroys, irajovem, lágrimas, q-bratudo, neura, morte, revolução, revoltados, zapatas, leprosos, lepra, surto, arsenal, SCO (sarcofago), satan, satânicos, nóia, sustos, surto, surra, soco, trevas, viros, virus, viroz, virose, apocalip´s, funeral, túmulos, ira, raivosos.

 Referência ao lugar onde mora

c-tor 7, gang da 12, bad side, PDM (pixadores do morro), taipashow, V.S. (vandalos do socorro), turma da favela.

 Referência à pixação

bando da mão, atropelos, aerossóis, detona city, epidemia urbana, gryfon, pixo boys, pixaim, pixomania, pixom, a cena, topos, sótopo, the relâmpagos.

99  Superioridade baronesas, bacanas SP, eleitos, duk´s, genius, absolutos, magnatas, nobres, o tal, os+que todos, osclasseA, os ones, reizinho, osmelhores, osmaiorais, 1ª classe, so os de lei.

 Inferioridade excluídos, farrapos, germes, osbanais, mais um tranqueira, mequetrefes, medilcres, micróbios, mordomos, moribundos, nada somos, not boys, os+ruins, regeitados, trágicos, ospiores, osporranenhuma, osquasenada, troços.

 Irreverência ou humor

bisqui, bitchucks, cabeça-torta, charada, cho-chorão, comédia, malak´s, mac lixo, os débio, os+sonsos, os levianos, coringa, os peganinguém, plin-ploc, risadas, risos, the gralhas, xalalá, xuim, xulé., tico-teco

 Contra ant boys, ant ratos, ant sapo, anti-cristo, contra.

 Cidade atômica city, bomba city, p/ SP osso, babilônia city, hot city, burgos, caóticos, citymanos, exorcity, libert-city, pleb city, zona loca, zona morta, sos city gang, esgoto city gang.

 Outros autopsia, amnésia, apologia, museu, birra, bósnia, ciborg‟s, coma, contexto, credo, cortes, decadeencia, fenômenos, forca, fonema, frases, ipnose, marcas, mente suja, nocaultes, olhos sádicos, poeta, pragas, peraltas, proceder, reprise, santuário, sapos, sílabas, silêncio, só * lamentos, tribunal, tronos, versus, veneno, vicio, vidas, texplo, sobrecarga, sopa, sujo tripa, teias, torre, tosse, totens, tradição, trairas, letreros, insônia, rastros, ligados, mitos, vocal, 7 copas.

100 4.1.2 Estilos:

o ortografia errada

segos, xapas, baladeros, bestera, brexas, buneco, carnisas, caveras, cusp, doidera, ora-h, ruds, víseras, vizitantis, anônymos,.

o escrita criativa

bif-kib, anor+, alopirados, ARTinsana, apocalip‟s, biskoito, boycott, c maluco, d-tentos, cad.lak‟s, d-mons, duk´s, g-lo, h*c (“homicidas”), necróp´s, os + q 2, osfumi-xera, p- vertidos, tolloco, sonoys (fala-se “só nós”), the funthos.

o abreviação ARM (armadilha), ADM (anjos do mal), CTMS (city manos), E,T,P,X (elite*pixe), EX-T (ex-tragos), FDR (falange de rua), galera do mau (GDM), KMKZ (kamikaze), NEB (não é bafo), PHG (procurados house gang), Pif (pixadores infratores ferroviários), PWBS (power boys), RL (ritmo loucura), SOS (suínos), FDK (fora de kontrole), XKW (xaropes criando vandalismo).

o em inglês - raramente encontrado

black panters, bad side, bad girls, bug´s, danger boys, go for it.

o aportuguesamento - entre parênteses coloco a ortografia formal

bug*daus (booggie down), blecaut (“blackout” ou “blecaute”), bayan (equivalente a “baiano”), brut (equivalente a “bruto”), caverloo, dantstop (“don´t stop”), fan-for (“fun for”), monk´s (“monkeys”), med max (“mad max”), rilex (“relax”), T.H.P. = trai hemp (“try hemp”), stil (“still”).

vide anexo 21

As palavras são em sua maioria em português, sem acentuação e com escritas diferentes da ortografia formal – como “ilarios” –, não se sabe se propositalmente (para diferenciar ou para tomar a palavra para si) ou se por desconhecimento da norma culta.

101 Pixadores escolhem a palavra pela significação, pela sonoridade, pela originalidade, pela subversão etc. ou pelas possibilidades que podem ter na letra. Assim, podemos afirmar que existe uma semelhança já neste aspecto. Os concretistas disseram que a poesia concreta se liga

imediatamente à linguagem popular, à gíria, à dicção infantil, às adivinhas, a modalidades de descante folclórico etc.; seria certamente inesgotável o exemplário que, nesse sentido, se poderia coligir. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 213)

As pixações são carregadas de linguagem coloquial, como por exemplo, sem concordância de plural (“osbichovivo”, “ospodrao”) e linguagem chula (“operação caça xana”). Outras têm os fonemas criativamente substituídos por letras ou desenhos (“d*nark”, “skina”, “k-peta”, ou homens pizza (significado), que é feito pela letra H seguida pelo desenho de uma pizza faltando uma fatia) ou trazem uma interessante influência do inglês (“sperms”, “the relampagos”).

vide anexo 22

4.1.3. Criações ortográficas a partir do som:

 osfumi-xera (“os fuma e cheira”)  ex-tragos ou EX-T (“estragos”)

 bayan (“bahiano”)  fan-for (“fun for”)

 bif-kib (“bife, kibe”)  g’nios art crew

 boycott (“boicote”)  h-lera (“a galera”)

 cad.lak’s (“cadilaques”)  SOUPIPOU (do inglês “soul people” (pessoas do movimento soul,  dirua (“de rua”) remetendo a uma música de James  d-menor (“de menor”) Brown; também remete a “sou  dsandados ( “desandados”) people”, como “sou do povo”)

4.1.4 Criações ortográficas a partir do significante e significado:

 decadeencia (como se a “decadência” fosse contínua, longa)

 rapdos (sem o “p” a ideia é que a palavra é mais rápida ainda)

102 Primeiramente, expliquemos aqui alguns conceitos da linguagem e sobre poesia. A linguagem emotiva é aquela que tem como ponto central o remetente. Ela “visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada” (JAKOBSON, 2005: 123 e 124). Sentimos que a pixação é explícita, ou seja, o remetente quer aparecer: ela berra, quer chamar a atenção ou chocar.

A função conativa é focada no destinatário e “encontra sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo, que sintática, morfológica e amiúde até fonologicamente, se afastam das outras categorias nominais e verbais” (JAKOBSON, 2005: 125 e 126). Apesar de o público não entender, a pixação foca, sim, o destinatário, pois ela impõe uma mensagem.

A metalinguagem focaliza o código, ou seja, o próprio fazer. É metalinguagem quando um pixador fala sobre si, sobre a pixação ou sobre o momento de pixar, por exemplo.

Jakobson afirma que o que chamamos de função poética é a comunicação que foca na própria mensagem. Ela não trata apenas de poesia, e a poesia não possui apenas a função poética, como explica (2005:127). Ela trata da “arte verbal”, usando métodos para diferenciar a mensagem. Toda forma de comunicação poética possui a participação de outros gêneros; na pixação destacamos a emotiva, a conativa e a metalinguagem. Segundo o Dicionário Houaiss, poesia é: “5. arte de exercitar a alma com uma visão do mundo, por meio das melhores palavras em sua melhor ordem; 6. poder criativo, inspiração.”

Para Jackobson, „exatamente como todas as outras artes, a poesia consiste em moldar um „material‟ autolegitimador – o caso, o „material‟ são as palavras‟ (HYDE in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 216)

Os pixadores se auto-intitulam “escritores”. Natural, já que esses nomes são palavras escolhidas, pensadas e elaboradas (vide texto meu, no anexo 5). Dentro do que entendemos por “poética” e “poesia”, podemos dizer que eles poetizam, à maneira deles, a vida suburbana. “Poetizam” pois tornam eventos, ideias e sentimentos do dia-a-dia seu material e escolhem uma palavra para

103 moldar esse material; depois, dão forma (significante) a essa palavra, como no ato tradicional do “pincel e tela”. O “dar forma” é a maneira pela qual ele manipula seu material26 (que é imaterial, pois é a vida), com a ferramenta lata de spray (ou rolinho e tinta) no suporte parede, para produzir o efeito artístico visado, que é o da letra bacana, da admiração dos iguais, e do espanto e repulsa da população. vide anexo 23

O escritor, pintor e dramaturgo do final do século XIX Strindberg disse certa vez sobre os fragmentos da vida que compunham sua obra:

Minhas personagens são aglomerados de estágios passados e presentes da civilização, pedaços tirados de livros e jornais, retalhos de humanidade, trapos e farrapos de tecidos finos, remendados como a alma humana. (MCFARLANE in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 63)

Antes de qualquer pixação acontecer, é preciso pensar em uma palavra. É ela que dará nome àquelas pessoas, ao que elas sentem e ao que elas querem dizer. Essa palavra terá um significado para os pixadores que a criaram, outro significado para os outros pixadores e outro ainda para cada pessoa da rua que lê. Porque cada palavra é única, e para cada leitor tem uma conotação. Quando você a lê, vem uma imagem na sua cabeça que só existe para você. A ideia da carga de significados de uma simples palavra é claramente percebida na citação dos concretistas:

A função da poesia concreta não é – como se poderia imaginar – desprover a palavra de sua carga de conteúdo: mas sim utilizar essa carga como material de trabalho e em pé de igualdade com os demais materiais a seu dispor. O elemento palavra é empregado na sua integridade e não mutilado através de uma unilateral redução à música descritiva (letrismo) ou à pictografia decorativa (caligrama, ou qualquer outro arranjo gráfico-hedonista). O simples ato de lançar sobre um papel a palavra “terra” poderia conotar toda uma geórgica. O que o leitor de um

26 Diferente do postulado, entendo como material dos pixadores suas vidas; spray, tinta e parede são suas ferramentas para manipular seu material (material ≠ matéria). Na visão tradicional da arte, o material seria a tinta e o pincel, e a tela-parede, o suporte.

104 poema concreto precisa saber é que dada uma conotação será fictícia (como até certo ponto inevitável) num plano exclusivamente material, na medida em que ela reforce e corrobore os demais elementos manipulados; na medida em que ela participe, com seus efeitos peculiares – uma relação semântica qualitativa e quantitativamente determinada – na estrutura-conteúdo que é o poema. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 109 e 110) vide anexo 24

Para Sartre, “a atividade poética considera as palavras como coisas e não como signos” (SARTRE apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 46). Todas as palavras, independente de serem pixações, trazem uma semiose que se dá no nível da individualidade.

Como afirma Hugh Kenner, em The Poetry of Ezra Pound, „a fragmentação da ideia estética em imagens alotrópicas, tal como teorizada pela primeira vez por Mallarmé, foi uma descoberta cuja importância para o artista corresponde à da fissão nuclear para o físico‟. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 32)

Em comum, todas pixações encontradas por mim conotam ou denotam indiferença, indignação, miséria, ironia, exclusão, alegria, rebeldia, auto- afirmação, marginalidade, paz, irreverência, juventude. Mas, sempre, trazem forte conotação de exclusão e contestação dos valores e do sistema em voga.

A própria escolha de palavras não se fará mais como um descascamento paulatino da realidade, mas como um vetor-de- estrutura: daí o novo interesse pela palavra como um dado integral, a ser objetivamente considerado e utilizado em função dessa estrutura (...). (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 134 e 135)

Existe a palavra “história”, um signo que tem seu significado fechado. Pense agora nela escrita em um muro, por si só, sem uma frase que a enlace obrigatoriamente a algum pensamento. É “a” palavra – ainda a denotação. Os inúmeros significados que podem surgir para você, como “história pessoal”, “história do mundo”, “história da nossa política”, “história de conto de fadas”,

105 “história de mentir”... ou simplesmente a beleza da palavra “história”, fazem parte do processo da semiose, que abre um leque de significados da palavra, tornando- a “coisa”, como coloca Sartre. Pense em você num dia ruim; quando olha para a parede, vê “piadas”, “ninguém presta” ou “abismo”, ou as três juntas em uma agenda. Se você tem um mínimo de sensibilidade, certamente elas conotaram. Assim vemos que as palavras adquirem sentido figurado por meio da semiose.

A poesia concreta não refoge a esse mínimo múltiplo comum da linguagem. Ao contrário, é justamente na moeda concreta da fala, tão desgastada e falsificada pela linguagem discursiva, que a poesia concreta vai buscar (água da fonte) os elementos fundamentais de sua expressão. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 164)

Augusto de Campos afirmou (ou explicou) em 1957 sobre a poesia concreta:

Não será um despropósito, portanto, esperar que o leitor de poesia relacione duas ou mais palavras, compondo com elas uma unidade mais complexa, uma Gestalt: é esse o caso do poema de Gomringer, construído com as palavras baum, kind, lund, haus (árvore, criança, cachorro, casa). (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 170 e 171)

Como já vimos, segundo Teles, entre as contribuições que o modernismo trouxe para a literatura brasileira estão a abertura e a dinamização dos elementos culturais, incentivando assim a pesquisa da forma e da linguagem, e a ampliação do olhar para os macro e microtemas da realidade nacional, uma ampliação que se deu mais exatamente na linguagem, elevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário (TELES, 1997).

A retórica trata da eficácia do discurso. A poética trata da dimensão da estética. Uma está intimamente ligada à outra e coexistem. A retórica do pixador está não só na sua palavra, mas na forma da letra, no lugar onde coloca sua palavra e na prática ilegal, estando sua retórica intimamente ligada à sua poética.

106

Um texto só é poético se for sua retórica for eficaz, dizem os estudiosos. Assim como o significante se relaciona com o significado por intermédio de uma redução simbólica, a retórica se relaciona com a poética por intermédio de uma operação análoga, que se realiza, ao mesmo tempo, no plano da fala e no plano da língua, podendo-se pensar numa „poética menor‟- a concepção individual – e numa „poética maior‟ – as ideias gerais predominantes da época. (TELES, 1997: 297) vide anexo 25

Assim como a poesia concreta dá luz à crise do verso ante uma sociedade industrial, moderna (ou pós-moderna), de consumo, massificada, com necessidade de rapidez e, por isso, de signos visuais e pictóricos, podemos dizer que a pixação dá luz à crise do espaço, à crise do lazer, à crise da posse ante uma sociedade tecnologicamente avançada, mas socialmente primitiva. A pixação é a materialização perfeita de um lifestyle, seja ele urbano, caótico, criminoso, agressivo, rápido, poderoso, enlouquecedor etc.

Sobre a criação da poesia concreta, nos fala Rogério Câmara que “sob a perspectiva de um novo país industrial e urbano” concretistas buscaram uma “arte projetual, ordenadora do espaço social, que buscava dar ritmo e fluxo ao desenvolvimento pretendido” (CÂMARA, 2000: 18). Na pixação, a palavra e os símbolos são distribuídos em locais estratégicos no espaço urbano sem pontuação, como se fossem sinalizações, placas, avisos, títulos. Sobre a poesia concreta, Campos disse: “a própria pontuação aqui se torna desnecessária, uma vez que o espaço se substantiva e passa a fazer funcionar com maior plasticidade as pausas e intervalos da dicção (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 33)”. Como a poesia concreta, pixadores não diferenciam maiúsculas e minúsculas – tudo é letra.

Já ressaltamos no capítulo anterior a importância do espaço – que é usado tanto como pausa como local criativo – para a poesia concreta. Os pixadores usam o espaço da cidade, das construções erguidas pelo homem, como suporte de suas palavras ou, ainda, usam o corpo como mídia secundária para se manifestar no suporte-cidade. Em vez de usar o espaço do papel, se utilizam o espaço da cidade para brincar com as palavras, que serão colocadas em lugares-

107 chave, como em um jogo. Assim, é comum encontrarmos pixações transformadas, retrabalhadas ou tornadas siglas para adequarem-se ao local. vide anexo 26

Uma pixação bem feita tem o lugar meticulosamente pensado pelo escritor. Ela deve ocupar o espaço de tal maneira que seja olhada de tal modo. Exemplo: um pequeno espaço que quando o passante virar a esquina vai olhar diretamente; ou em toda a extensão de um beiral de loja; ou sobre uma janela; ou de fora a fora de uma viga; ou exatamente embaixo de um detalhe de uma casa antiga; enfim, são infinitas maneiras de o pixador pensar para colocar sua palavra ali.

Outra preocupação com o espaço acontece na agenda ou em um muro já pixado. O pixo deve encaixar com coerência entre outros pixos, no espaço que está vago. O espaçamento entre as letras é também muito importante, pois deve ser sempre o mesmo, além de ser muito bem calculado para terminar no lugar ideal naquele espaço. Ou seja: a preocupação estética é enorme, da criação à materialização. Afinal, na rua não existe rascunho. vide anexo 27

Aguilar propõe quatro princípios de construção para abordar o que fez com que a experimentação tipográfica fosse tão marcante na vanguarda:

- reprodutividade: a tipografia, localizada sempre no final do processo e fora do controle do autor, trazia ao espaço literário o dado tecnológico moderno; (...)

- “a tipografia – o processo técnico –, entra em uma relação de necessariedade com o poema” que significa, diz ele, “inverter o sentido do texto”, além de “modernizar as técnicas de composição e experimentar as diferentes virtualidades que os avanços tecnológicos ofereciam” (AGUILAR, 2005: 218);

- clarificador;

- materialidade: “se refere à dimensão irredutível do tipograma que apresenta um excesso significativo em si mesmo”. (AGUILAR, 2005: 222)

108 A tipografia é não só criatividade artística e algo que permite um processo técnico. Ela conota – seja clareza, funcionalidade, rebuscamento, agressividade, tecnologia ou outros adjetivos mais27. Segundo afirma Panofsky, Vasari “julgava que também a forma das letras expressa o caráter e o espírito de uma determinada fase histórica” (PANOFSKY apud AGUILAR, 2005: 220).

A tipografia possui a capacidade de conotar, em sua forma, uma fase histórica do desenvolvimento das forças produtivas. O atributo da forma tipográfica adquire um caráter clarificador a partir do momento em que se pode atribuir a ela uma „autorreferencialidade‟. (AGUILAR, 2005: 221)

A despeito deste caráter histórico-estilístico, é possível distinguir uma pixação criada há tempos de uma de agora pela letra: estão cada vez mais esticadas para a vertical, angulosas e abstratas28. A tipografia modernista por excelência foi – e é – a futura bold, criada entre 1924 e 1926 baseada na estética da Bauhaus: sem ornamentos, conotando funcionalidade. Por seu caráter simples, é a mais usada em toda a história, até hoje, em anúncios. vide anexo 28

A tipografia – que pode transmitir por si mesma a experiência do moderno – quebra a estrutura binária do signo e introduz uma significação que não depende do significante (tipos utilizados, tamanho, disposição). Partindo deste princípio, a tipografia seria como o significante do significante. (AGUILAR, 2005: 223)

27 Exemplo da conotação da letra e da importância dela para a comunicação é a publicidade, que escolhe uma tipologia determinada para cada peça, logomarca ou campanha, que tenha a ver com o estilo a ser passado. Podemos afirmar que o uso da tipologia é, inclusive, utilitário, assim como alguns poetas de vanguarda, entre os quais os construtivistas russos, que utilizaram os tipos simples, chamativos ou chocantes como modo de fazer o público participar. 28 Algumas pixações mudam suas letras com o passar do tempo, “atualizando-se”; outras, ainda, possuem concomitantemente dois tipos de letra. Pixadores afirmam que as letras estão sendo cada vez mais abstraídas de seu significante (sua forma original), portanto, cada vez mais difíceis de serem apreendidas. Assim, pixadores diferenciam estilo de letra “antiga” e estilo de letra “de agora”.

109 Sobre design e funcionalidade, Read afirma:

O que eu gostaria de deixar claro, em relação a todos esses artefatos humanos primitivos, é uma seqüência evolucionária que passe por três fases: 1) concepção do objeto como uma ferramenta; 2) criação e aperfeiçoamento da ferramenta a um ponto de eficiência máxima; e 3) refinamento da ferramenta além do ponto de eficiência máxima e no sentido de uma concepção da forma em si mesma. (READ, 1967: 73)

Read formula duas hipóteses para entender por que o homem deixou de lado apenas a utilidade dos objetos para lhes darem também uma forma estética. Uma delas é a naturalista, na qual “todos os desvios formais em relação à eficiência são devidos à imitação, consciente ou inconsciente, de formas encontradas na natureza” (READ, 1967: 73). A outra, idealista, na qual “a forma tem significação própria, isto é, corresponde a uma necessidade psíquica interior, expressando um sentimento que não é necessariamente indeterminado: pelo contrário, é com freqüência, um desejo de refinação clarificação, precisão, ordem” (idem, ibidem).

A poesia concreta, querendo se apossar de elementos “tecnológicos”, usou os tipos-móveis como instrumento para sua poesia no suporte página. Na pixação, a questão do design das palavras e das letras também é primordial, porém ele é manual, o que podemos chamar de letra caligráfica.

As pessoas do século XX já tinham contato com toda a gama de possibilidades tipográficas, e assim as gangues de jovens nos anos 1980, que se valeram das letras de capas de discos de vinil de rock como inspiração da forma dos seus nomes29. Por fatores que já explicitamos, pixadores criaram (ou recriaram) um tipo característico de letra que os distinguem dos outros movimentos de arte urbana30. Preta e angulosa, é inconfundível – para quem

29 A tipologia das bandas de heavy metal e punk conotavam agressividade, acompanhando o estilo musical. Roqueiros também gostavam de preto, de ocultismo e da estética gótica, então podemos remeter estas tipologias à influência das letras da Idade Média, como o alfabeto rúnico, por exemplo. 30 Outros tipos de letras dentro da arte urbana são o trow up, o wild style e o tag.

110 conhece seu paratexto31 e texto cultural32. Para um incauto, qualquer coisa escrita pode ser pixação. É pichação, e não pixação.

A tipologia da pixação é acrescida de variações por cada turma, mas mantendo o estilo característico. Assim, pixadores tem que ser criativos dentro de um formato que podemos dizer ser o “genérico” da letra. Como afirmou Aguilar sobre as tipografias utilizadas na poesia concreta, podemos dizer que essa tipografia “genérica” da pixação é um significante dentro do significante. Ademais, com suas criações individuais, as turmas criam mais um significante, que pela linha de pensamento de Aguilar seria um significante (a individualidade de cada pixo) dentro de um significante (o estilo letra angulosa e esticada para cima) dentro de outro significante (a palavra escrita). vide anexo 29

significante: ESCRITA →→ ESTILO ANGULOSO →→ ESTILO DA TURMA letra letra letra

Uma palavra concreta (uma denotação) colocada ao lado de uma palavra concreta produz um conceito abstrato – como as línguas chinesa e japonesa, onde um ideograma pode indicar um resultado transcendental (conceitual). (EISENSTEIN apud CÂMARA: 2000: 43)

Ao se apossarem das possibilidades visuais, os poetas concretos não abriram mão do conteúdo. Eles colocaram no mesmo patamar o significante e as semioses do significado, criando o que chamam de verbivocovisual (conteúdo-

31 Paratexto é um conceito desenvolvido por Gerard Genette para textos literários. Segundo ele, “o paratexto é aquilo que permite que o texto se torne um livro e seja oferecido enquanto tal para seus leitores e para o público de um modo geral (...) (GENETTE, 1997: 1). O paratexto de um livro é sua capa, o título e o “formato livro”, que nos fazem entendê-lo como um livro. Ganette afirma que existem paratextos em áreas fora da literatura e propõe que se estenda o termo, como para a música e as artes plásticas, à qual nos referimos aqui. Em sentido amplo, portanto, paratexto são as convenções que contextualizam algo como tal. O paratexto de uma obra é um museu, uma galeria de arte, a moldura e a sacralização, por exemplo. Em sentido amplo, portanto, paratexto são as convenções que contextualizam algo como tal. 32 A semiótica russa tratou de compreender as relações entre a comunicação e a cultura para entender os mecanismos geradores do signo na cultura. Verificou que toda cultura possui códigos, também chamados “textos”, que formam um modelo que nos faz a entendermos como tal, ou seja, os textos são sistemas complexos nos quais podemos reconhecer, armazenar e processar informações de tal área. Portanto quem não conhece os códigos (ou textos) de uma cultura, não consegue interpretá-la ou entendê-la da maneira que quem conhece o faz. Assim, uma cultura é o conjunto de vários códigos ou textos que precisam ser entendidos para se compreender sua dinâmica, e que juntos formam um “sistema”. A cultura no seu sentido mais amplo é um conjunto unificado de textos culturais de diversos sistemas.

111 som-visual), e o mesmo podemos dizer dos pixadores, apesar de, em ambos, o conteúdo não ter a mesma apreensão imediata das cores e formas.

Assim, o poema concreto, encarando a palavra como objeto, realiza a proeza de trazer, para o domínio da comunicação poética, as virtualidades da comunicação não-verbal, sem abdicar de qualquer das peculiaridades da palavra. (CAMPOS, CAMPOS; PIGNATARI: 2006,119)

4.1.5. Criações de significante partir do significado: vide anexo 30

 piscas (asterisco no “i”)  demônios (lembra uma inscrição asteca ou em lápide) anexo 34  inseto (mais quadrada, lembra garras, com dentinhos no “o”)  exorcistas (tridente mo “t”)

 anjos (“j” em forma de tridente)  tensão (fininha, espaçada e alta)

 mau (carinha de general)

Escreveu Haroldo de Campos no Manifesto da Poesia Concreta, cujas maiúsculas e formatação mantenho aqui33:

a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea

permite a comunicação em seu grau + rápido

prefigura para o poema uma reintegração na vida cotidiana semelhante à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais : quer como veículo de propaganda comercial (hornais, cartazes, TV, cinema, etc.), quer como objeto de pura fruição (funcionando na arquitetura, p. ex.), com campo de possibilidades análogo ao do objeto plástico

substitui o mágico, o místico e o „maudito‟ pelo ÚTIL 34

TENSÃO para um novo mundo de formas VETOR para o FUTURO

33 In CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 76. Publicado originalmente na revista AD- Arquitetura e Decoração, n. 20, São Paulo, novembro\dezembro de 1956; republicado no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28.4.1957. 34 Campos, como os pixadores, subverte a ortografia formal com a palavra “maudito”.

112 O ideograma é um um símbolo gráfico utilizado para representar uma palavra ou conceito. Diferente das letras, que representam um som. O ideograma aparece em várias línguas antigas de diversas regiões, como no Egito, na Grécia e povos pré-colombianos, por exemplo. A escrita fonética se desenvolveu autonomamente em cada lugar do mundo. Em alguns, a escrita cripotográfica foi perdida. Em outros, se manteve, como no alfabeto chinês kanji, que até hoje utiliza ideogramas.

Escrita greco-romana antiga, que deu origem ao nosso alfabeto. Ela já combinava imagens com representação dos sons da fala em unidades menores que a sílaba.

Folhinha com palavras dos pixadores

113 Como já citamos, em suas pesquisas, Pound, Mallarmé e Apollinaire descobriram a escrita chinesa como forma ideal para o que ansiavam para a literatura e a poesia ocidental. Assim, o ideograma influenciou profundamente o conteúdo e a forma da literatura e da poesia de vanguarda. Em 1919, no Ensaio sobre o ideograma chinês, Fenollosa e Pound disseram que

a poesia chinesa tem a vantagem única de combinar ambos os elementos. Fala, simultaneamente, com a vivacidade da pintura e com a mobilidade dos sons. Em certo sentido, é mais objetiva do que ambas (poesia verbal ou pintura), mais dramática. Lendo chinês, não estaremos fazendo prestidigitações mentais, mas contemplando coisas cumprirem seu próprio destino. (FENOLLOSA & POND apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 145)

Em 1921, Edward Sapir disse acreditar que “qualquer poeta inglês de hoje seria grato à concisão que um poetrasto chinês atinge sem esforço” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 140). As postulações da poesia concreta coincidem, em linhas gerais,

com as que Pound derivou da poesia chinesa: o princípio de condensação (dichtung = condensare – gists and piths / “essências e medulas”) e o método ideogrâmico de compor: justaposição direta de elementos em conjuntos geradores de relações novas (o que Gomringer, a exemplo de Mallarmé, denomina de „constelação‟). (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 141)

A moderna poesia tinha urgência por uma comunicação que caracterizasse o espírito contemporâneo “antidiscursivo e objetivo por excelência” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 141 e 142), uma comunicação “mais rápida, direta e econômica” (idem, ibidem), por isso a importância do sistema chinês de escrita. Ela tem um processo de organização mental simultâneo do verbal e do visual: estão nela todos os elementos sonoros, visuais e semânticos, como necessitava o poema concreto. “O ideograma tinha a virtude – como sustentaram no „plano- piloto‟- de „apelar à comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da

114 palavra‟” (AGUILAR, 2005: 232). Influenciados pelo concretismo pictórico que reduzia as coisas a signos concretos, os poetas reduziram a linguagem – ou a palavra, ou um pensamento – também a signos.

Assim, a poesia concreta deu por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), e começou a tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, transformando-o em estrutura espaciotemporal, “em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. Daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (Fenollosa/Pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos.” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 215)

A poesia concreta, indo além da aplicação do processo tal como foi praticado por Pound, introduz no ideograma o espaço (grifo meu) como elemento substantivo da estrutura poética: desse modo, cria-se uma nova realidade rítmica, espacio-temporal. O ritmo tradicional, linear, é destruído (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 95)

A poesia concreta

recorre (...) a fatores de proximidade e semelhança no plano semântico e rítmico, a uma sintaxe visual-ideogrâmica, quando não meramente „combinatória‟, para controlar o fluxo de signos, racionalizar os dados sensíveis da composição e, assim, limitar a entropia (a tendência à dispersão, à não-ordem, ao máximo informacional potencial de um sistema), fixando a temperatura informacional no mínimo necessário para o êxito da realização estética em cada poema que se considere. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 95)

A tipografia dos pixadores é a própria tipografia funcional almejada pelos concretistas. Como vimos, tanto a grife como os pixos comunicam várias informações ao mesmo tempo, funcionando como um código que transmite muito lançando mão de poucos recursos, dentre eles o tipográfico e o espacial.

115 A poesia concreta vem de uma evolução artística e cultural baseada na nova sociedade industrial, uma noção já proposta antes pelas primeiras vanguardas, como já vimos. É uma “noção de literatura não de cunho artesanal, mas, por assim dizer, industrial, de produto tipo e não típico, de linguagem minimizada e simplificada, crescentemente objetivada, e, por isso mesmo, em princípio fácil e imediatamente comunicável. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 193 e 194)

Reproduzo palavras de Mallarmé sobre as características da “nova” poesia à época das vanguardas, as quais também podemos remeter à pixação:

a) emprego de tipos diversos: „A diferença dos caracteres de impresso entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral...‟;

b) posição das linhas tipográficas: „... e a situação, ao meio, no alto, em baixo da página, indicará que sobe ou desce a entonação‟;

c) espaço gráfico: os „brancos‟, com efeito, assumem importância, agridem à primeira vista; a versificação o exigiu como silêncio em torno, ordinariamente, no ponto em que um trecho, lírico ou de poucos pés, ocupa, no meio, cerca de um terço da página: eu não transgrido essa medida, apenas a disperso. O papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou reaparece, aceitando a sucessão de outras, etc;

d) uso especial da folha, que passa a compor-se propriamente de duas páginas desdobradas, onde as palavras formam um todo e ao mesmo tempo se separam em dois grupos, à direita e à esquerda da prega central, „como componentes de um mesmo ideograma‟, segundo observa Robert Greer Cohn (COHN apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1975: 32 e 33) vide anexo 31 a palavra tem uma dimensão GRÁFICO-ESPACIAL uma dimensão ACÚSTICO-ORAL uma dimensão CONTEUDÍSTICA agindo sobre os comandos da palavra nessas 3 dimensões 3 a (...)35

35 In CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 76. Publicado originalmente na revista AD- Arquitetura e Decoração, n. 20, São Paulo, novembro\dezembro de 1956; republicado no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28.4.1957.

116 Como vimos, assim como na poesia concreta, na pixação a palavra é a unidade básica. A pixação realiza a comunicação pelo significado, pela ortografia e pela tipografia e pela sua distribuição no espaço – no caso, no espaço da cidade. É disposta com design criativo, ícones ou abreviaturas em locais inusitados ou com significados para os pixadores. Assim, eles criam com o significante (a palavra escrita) um outro significado. Podemos associar uma pixação a uma autêntico haikai36. Ambos, para um espectador qualquer, nada mais são que imagens abstratas ou traços, pois quem não conhece a codificação, não consegue apreender o significado de um haikai (ou um ideograma) e de uma pixação. Porém o haikai possui um paratexto e já é entendido como arte, diferente de uma pixação.

Segundo E.M. de Melo e Castro,

a poesia concreta é mais para „ver‟ do que para „ler‟, e „ela‟ é para (ser) e para (ter) , propondo assim o que se poderá chamar uma antologia do homem acelerado, ou seja, do homem informacional, em que todos nós estamos nos transformando. (MELO e CASTRO apud CÂMARA, 2000: 35)

Gombrich, em seu livro Arte e Ilusão, explica bem e de maneira simples como se dá a percepção visual. Ele exemplifica com a representação que um pintor faz das coisas, que para nós parecem reais, mas são apenas uma tentativa de representar algo: é o “esquema e correção”. Seria a capacidade do cérebro de ter um modelo e, assim, ajustar o que vemos ao que conhecemos e então compreender como tal. Cita o exemplo de um círculo oval. Aquilo é apenas um círculo oval, mas nosso cérebro já lê como a forma de uma cabeça humana. Temos esse mesmo ajuste com as palavras – o cérebro “completa” as letras que estão faltando. Os psicólogos chamam isso de “projeção dirigida”: é a projeção da imagem, do som ou da palavra escrita pela nossa mente. Essa é a explicação para lermos várias vezes o mesmo texto e em nenhuma enxergarmos a palavra escrita errado. Essa é a explicação para quem não conhece o código da pixação ajustá-la ao que é conhecido, os rabiscos e a sujeira.

36 Poesia japonesa concisa e objetiva.

117 Quando vemos uma pixação, assim como uma poesia concreta, lemos (ou “vemos) o conjunto, o “desenho”, e não a palavra. Como já conheço as pixações, pela forma da letra eu sei o que está escrito. Interessante dar o exemplo de um pixador semi-analfabeto que consegue “ler” todas as pixações. Na verdade, ele não as lê, ele apenas as reconhece e sabe seu significante. Fechamos as figuras como diz a teoria Gestalt, não vendo o “interior” do pixo.

Temos a capacidade, sim, de compreender diversos tipos de caligrafia. Mas a pixação exige certo tempo, que certamente não disponibilizamos, para ficar em frente delas. Como no instante rápido da decifração a pessoa fica (inconscientemente) na dúvida de que aquilo seja um E ou um O, por exemplo, o mecanismo de projeção não se põe em movimento. As pessoas que não decifram a pixação deveriam vê-la como uma imagem abstrata – sinais, códigos, hierogrifos, ideogramas, haikais. Mas a repulsa da sociedade é tanta – pelos motivos óbvios de ataque à propriedade do outro – que as pessoas não se abrem para se ater a elas de outra maneira. Podemos afirmar mais: se a pixação fosse feita em outro suporte, como em uma tela, por exemplo, seria vista como arte – mesmo que a pessoa não gostasse da arte, a enxergaria como sendo uma. Exemplo é a foto do anexo 31, que se tornou uma xilogravura e está sendo vendida como “obra de arte”. vide anexo 32

Para ilustrar a comparação com o poema concreto ou verso livre, listo algumas frases:

1. “a rose is a rose is a rose”

2. “o olhouvido ouve”

3. “ratoloouco”

4. “odeie seu ódio”

5. “p/ sp osso”

118 1. (poema de Gertrude Stein) 4. (pixo) 2. (frase dos concretistas) 5. (pixo) (lê-se “para São Paulo, osso”) 3. (pixo) vide anexo 33 Jurgen Ruesch e Weldo Kees, no livro Nonverbal communication – note on the visual perception of human relations, de 1956, distiguem a comunicação verbal e a não-verbal. A verbal é do tipo digital, como o alfabeto fonético e o sistema numérico (“a informação transmitida através de um tal sistema é obviamente codificada mediante várias combinações de letras ou dígitos”); A não verbal é analógica (“várias espécies de ações, quadros ou objetos materiais representam análogos tipos de denotação”).

A linguagem discursiva se funda na lógica, feita de um conjunto de regras artificiais, que foram aceitas, expressas em termos verbais em torno de uma espécie circunscrita de trabalho. A lógica dispensa codificações analógicas, a despeito do fato de que boa parte de nossos pensamentos e comunicações dependam do não-verbal assim como do verbal. (RUESCH; KEES apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 120)

Assim, podemos dizer que a pixação, como a poesia concreta,

- é baseada em uma linguagem não discursiva, sem regras sintáticas, igualando-se à linguagem não verbal, apesar de se valer de palavras;

- tem forma e conteúdo verbal e pictórico;

- não faz sequências sintáticas discursivas, lançando mão da sintaxe visual e da semiose.

- não possui organização sintática na linguagem verbal, apesar de ter também como cognição o tipo digital – afinal, algumas palavras às vezes são lidas, e não somente vistas.

Rejeitando o ordenamento lógico-discursivo, abrindo-se às sugestões do método ideogrâmico de compor, que é do tipo analógico e não do tipo digital, lança-se a poesia concreta à fascinante aventura de criar

119 com dígitos, com o sistema fonético, uma área linguística não- discursiva, que participa das vantagens da comunicação não verbal (maior proximidade das coisas, preservação da continuidade da ação e da percepção) sem, evidentemente, mutilar o seu instrumento – a palavra – cujos dotes especiais para „exprimir abstrações, comunicar interpolações e extrapolações, e tornar possível o enquadramento de amplos aspectos de eventos e ideias diversificadas em termos compreensíveis‟ (RUESCH; KEES) não são desprezados, antes utilizados em proveito da totalidade comunicativa criada. A noção de metacomunicação explica, para os estudiosos dessa matéria, „as relações entre codificações verbais e não-verbais‟; „qualquer mensagem pode ser considerada como tendo dois aspectos: a proposição propriamente dita, e as explanações pertinentes à sua interpretação. A natureza da comunicação interpessoal necessita de que ambos coincidam no tempo, e isto pode ser conseguido somente através do uso de uma outra via. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 121)

Como as poesias não discursivas e sem verso – e aqui estão as concretas e visuais –, pixadores quebram a sintaxe verbal ao aplicar palavras nas paredes, comunicando-se sem formar orações. Nomes de turmas como “radio-ativos”, “exorcity”, “d-tentos” e “eskecidos” não só subvertam a ortografia, como abrem um leque para significações sobre as quais o receptor irá devanear. Eles criam expressões como “Humildade faz a Diferença” ou “Nada Somos” em forma de logomarcas, as grifes, porém isso não quer dizer que não há linguagem: há a linguagem do formato das letras, do jogo semântico e do ortográfico (que foi quebrado), a linguagem de poder entre eles e a linguagem que é entendida pelos passantes.

Apesar de representarem o mundo através da linguagem verbal, há um alto componente pictórico, estético e comportamental. Como resultado, existe um discurso que, apesar de se valer de palavras, não é apenas verbal: é simbólico, estético e social.

120 A poesia concreta toma o texto urbano e a comunicação de massa para chegar à síntese e à racionalização desta linguagem retirando seus ruídos e definindo uma estrutura. (CÂMARA, 2000: 36)

Somos acostumados com letras que são um código da linguagem verbal falada por muitos. Elas são símbolos convencionados dos sons. Pixadores (e poetas visuais) transformam as letras, que são ícones, em outro ícone. Alteradas, as letras dos pixadores continuam como um código da linguagem verbal, ou um ícone, porém entendível apenas para um certo círculo de pessoas. Por isso o restante das pessoas vê como um rabisco – ligam ao que é conhecido – pois não são mais ícones, já que não imitam aquela forma definida por nosso padrão de alfabeto. Mas, muito mais que uma imagem qualquer, é bom lembrar que elas continuam como códigos e pois têm um significado “digital” 37. O significado digital não é aberto, não é um retrato do real, mas algo que remete a uma coisa – para quem conhece o código, remete à outra letra.

Tomada a pixação como “coisa”, ou objeto fechado em si e que refere a si, com características que vão além da forma, colocando-se em vários níveis comunicativos e sintáticos, tomemos o texto dos irmãos Campos e de Pignatari para a poesia concreta, no qual verificamos as proximidades entre ambas:

o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura- conteúdo. o poema concreto é um objeto em si e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt.

37 Conceito de analógico e digital – Analógico é tudo aquilo que se faz por analogia: um desenho de uma cadeira é analógico, pois representa uma cadeira. Um gráfico é analógico, pois representa as informações. O relógio analógico o é porque representa o tempo – as voltas que foram dadas para o ponteiro chegar ali indicam a passagem do tempo. Digital é tudo aquilo que se representa por detalhes que falam separadamente. A palavra “cadeira” é digital pois são letras que formam um conjunto que por convenção se referem àquele objeto de sentar. Uma tabela é digital pois seus elementos em separado dão aquelas informações. O relógio digital também – ele informa com elementos distintos as horas (convencionado assim), ele não é uma representação da realidade. Geralmente, o modelo analógico é mais a representação real, porém é menos preciso que o digital.

121 ritmo: força relacional. o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área Linguística específica – “verbivocovisual”- que participa das vantagens da comunicação verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra. com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura- conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 216)

Posto isso, reproduzo o que Max Bense disse:

não podemos abster de observar que a pintura concreta oferece, na realidade, pouca informação semântica, mas, não obstante, valores relativamente altos de informação estética‟. Este trecho parece apoiar a nossa proposição de que há um conceito de „temperatura informacional estética‟ (alta ou baixa) diferente do de „temperatura informacional linguística ou semântica‟ (alta ou baixa) (...).38 (BENSE apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 202)

(...). Na informação estética, entendida, com maior propriedade, no âmbito da arte concreta (onde ocorre a „redução da obra ao essencial estético, à temática dos signos‟) como uma informação sobre a estrutura‟, sendo o „conteúdo informativo‟ a própria estrutura, será, correspondentemente, tanto mais rico aquele quanto mais rica, no sentido da inovação, da invenção, for esta última. (BENSE apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 203)

No que podemos afirmar, com este estudo, que concretos e pixadores são altamente formalistas, de modo que o conteúdo informativo é sua própria estrutura verbivocoespacial – acrescentada aos pixadores a social –, com temperatura informacional alta. Onde podemos ainda afirmar que, se pudéssemos valorar uma pixação pelas características da poesia concreta ou da arte instituída, quanto mais rico o conteúdo informativo dela, mais rica será

38 BENSE, Max. Aesthetica II – Ästhetik und Zivilisation. Agis-Verlag, 1958. sem mais informações.

122 sua estrutura. Neste sentido, uma palavra que traga sonoridade e construção ortográfica diferenciada, juntamente com letra com várias informações semióticas em um espaço da cidade que tenha uma sintaxe com o significado da palavra colocada alinhada sobre uma certa estrutura, com espaçamento padronizado entre as letras, e estas escritas na sua melhor forma, seria uma pixação com temperatura informacional alta – ou riquíssima.

123 5. CONCLUSÃO

Já sabemos que as vanguardas imaginavam a arte com uma visão que unia a dimensão da escritura com a do contexto urbano e histórico, porém com diferenças entre o olhar vanguardista da década de 1920 e a de 1960. Se as diferenças são marcantes entre os letrados de décadas distintas, maiores ainda são entre letrados da década de 1960 e pixadores dos anos 1980 em diante, como vimos.

Segundo Aguilar, existem dois pólos para os letrados e artistas, um que vê “a cidade caótica e aberta que poderia denominar-se balélica, e outro que vê a cidade organizada e absolutamente funcional à que denominarei cidade- falanstério” (AGUILAR, 2005: 249). Como vimos, podemos dizer que os pixadores estão no lado dos que veem a cidade da maneira babélica.

NÚMERO DE HABITANTES EM SÃO PAULO39

ANO Cidade Região Metropolitana

1920 569.033 sem dados

1950 2.198.096 2.622.789

1960 3.781.446 4.739.406

1970 5.942.615 8.139.730

1980 8.493.226 12.588.725

1991 9.646.185 15.444.941

2000 10.434.252 17.878.703

39 Fonte: IBGE, Censos Demográficos. Acesso em: 25 mar 2010. Atualmente, em 2010, estima-se que sejam 19 milhões na região metropolitana e cidade de São Paulo, se constituindo a 5ª maior cidade do mundo.

124 Sob muitos aspectos, a literatura do modernismo experimental que surgiu nos últimos anos do século passado e se desenvolveu até nosso século foi uma arte das cidades, principalmente das cidades poliglotas, as cidades que, por diversas razões históricas, haviam adquirido uma grande fama e intensa atividade como centros de intercâmbio cultural e intelectual. (...) Nessas cidades, com seus cafés, cabarés, revistas, editoras e galerias, destilavam-se as novas estéticas, as gerações discutiam e os movimentos contestavam; as novas formas e causas tornavam-se objeto de lutas e combater. Quando pensamos no modernismo, não podemos deixar de evocar essas atmosferas urbanas, as ideias e campanhas, as novas filosofias e políticas que as atravessavam. Evidentemente, essas cidades eram mais do que pontos casuais de encontro e cruzamento. Eram ambientes geradores de novas artes, pontos centrais da comunidade intelectual, e mesmo de conflito e de tensão intelectual. (BRADBURY in BRADBURY; MACFARLANE, 1989: 76)

É impossível entender de forma ampla as vanguardas ou qualquer forma de arte descolada do seu contexto histórico-social-geográfico. Portanto quando pensamos na pixação, não podemos deixar de evocar a atmosfera suburbana na qual ela surgiu, ganhou forma e se inspirou. Como vimos, São Paulo, metrópole de encontros de culturas e nacionalidades de um país “em desenvolvimento”, não à toa foi o berço da pixação, assim como as vanguardas eclodiram na Paris iluminista, o expressionismo foi e é a marca dos alemães deste século e o muralismo ocorreu em um México com o cenário que ilustramos.

Mas como dissemos, os pixadores não estão interessados em fazer arte – aliás, pouco se importam com o fato – e muito menos manifestos, salvo raros casos. Na verdade, criticam o caráter elitista da arte, não querem estar em museus e nem vendê-la. Os que fazem, são criticados por isso. Como ilustração, colocamos aqui dois pontos de vista sobre o assunto, mantendo a ortografia:

comentário 1: Eu acho que ah pixação éé uma arte de rua,assim como o graffit. o graffit só foi considerado arte depois de anos,intão se o graffit hoje é arte porq a

125 pixação nao pode ser tbm ?. nois pixadores estamos temtano diser pra sociedade que nois estamos aqui correndo atrais do nosso espaço para que a pixação vire uma arte legalizada assim como o graffit. pixação é sim uma coisa bonita,pixação pra min é como um esporte.um modo de c expresar.é outro mundo fora da sociedade,que só nos pixadores sabemos oque é.quando pego um onibus e começo olha as pixação eu entro em outro mundo,um mundo que tem malicias,maldades,mensagems para nos proprios pixadores,nos pixadores c comunicamo um com os outros apenas por rabiscos na parede,fora as amizades que conhecemos,algumas ruins,mais outras boas,cada role uma historia pra conta.ee é isso que eu vejo como pixação,nao é tudo,porq c for pra min fika falando oq eu penso sobre isso vou fika escrevendu até amanhã aquii!40

comentário 2: pichaçao nao e arte.. é vandalismo.. viva a pichaçao

vc fala qui é pichador e se considera um artista..?!?! qui porrra de pichador vc e?? vai pra bienal se aparece entaum.. la vc sera um artista ...o artista da rede globo..

nos pichadores vivemos num mundo paralelo o nosso mundo e naum queremos ser considerados artistas sempre fomos e sempre seremos vandalos.. ninguem faz isso por dinhero e sim pela adrenalina e pelo ibope entre nos pichadores iso eh a pichaçao

falo em nome de todos os verdadeiros pichadores.. 41

São pontos de vista antagônicos sobre a pixação como forma artística, ambos comumente ouvidos em debates entre pixadores. Mas o que é comum a todos pixadores é não estarem interessados no ideal de beleza grego, mas em expor como um soco no estômago a feiúra da sociedade – o grotesco.

Vimos que apesar de terem uma ideia própria de belo e uma valoração associada à cultura deles, ainda assim pixadores possuem noções universais inerentes ao ideal platônico, como simetria dos espaçamentos entre as letras, o

40 Comentário de Allan, seg, 17 ago 2009. Retirado de . Acesso em: 13 dez 2009. 41 Comentário Anônimo, seg, 17 ago 2009. Retirado de Acesso em: 13 dez 2009.

126 rigor das formas, do uso delas no espaço, a criatividade e o equilíbrio das letras. Por esta ideia ser universal, certamente nesta pesquisa você notou, por você mesmo, pixações mais feias ou mais bonitas, com mais design ou não, mais elaboradas ou não, mais toscas ou não. A própria prática de pixar faz com que a letra fique cada vez mais perfeita e possa ser feita mais rápido ainda com o passar dos anos.

Moradores da periferia, a maioria pouco ou nada sabe sobre as artes instituídas ou literatura, por isso podemos dizer que sua arte- poética (ou poética artística) aproxima-se mais da popular – oral e coletiva –, porém, devido à influência do punk, do hip hop e do que podemos chamar de pop, ela tem fortes traços do que entendemos como poesia concreta e artes de vanguarda, em específico as aqui citadas. Para enquadrá-los em algo próximo à nossa cultura americo-europeia da arte institucionalizada, visual e conceitualmente poderíamos colocá-los entre o expressionismo e a art brut.

Vimos que a arte modernista não tinha características “cujos resultados só pudessem ser contemplados em museus ou nos espaços de exposição” (AGUILAR, 2005: 74). Revistas, apresentação, manifestos, objetos do dia-a- dia, poemas-cartazes dos poetas concretos, tudo, e o que mais houver, pode ser considerado „arte‟, dependendo da intenção, do contexto (histórico ou social) ou da validação de algum crítico ou especialista. Vimos também que a arte contemporânea não está interessada na transparência, ela cifra a realidade, não colocando a mensagem diretamente para o fruidor, mas sim lançando signos que, conjuntamente, passarão mensagens e/ou códigos.

A contemplação da pixação se dá na rua, que também é espaço criativo, sua inspiração e seu suporte. Na sua prática, pixadores não se utilizam das ferramentas e suporte clássicos da arte – o pincel e a tinta –, e nem da modalidade ou técnica da pintura. Suas ferramentas são suas palavras, a forma de suas letras e seu modo de agir com a técnica da escrita no suporte cidade. Portanto a pixação, em teoria, não poderia deixar de ter seu valor simplesmente por estar nos suportes urbanos. Ela extrapola a noção de sacralização, moldura e museu como paratexto da obra de arte instituindo, assim como o graffiti, a cidade como „abrigo‟ de suas obras não sacralizadas.

127 Em sua poética, os pixadores não buscam a representação exata da realidade. Eles metaforizam a realidade vivida da metrópole de forma criativa em palavras, criando uma nova realidade voltada para a própria pixação ou a vida suburbana. Eles fazem isso indiretamente, por signos verbais, visuais e corporais que no conjunto passam mensagens ou códigos sobre a realidade que eles conhecem. O nome que se deram são palavras que fingem, parodiam, exaltam, rebaixam, caricaturam e até mesmo contradizem. A estética visual dos pixadores não representa coisas, mas letras, criando seu próprio universo feito de letras, palavras e poucos signos figurativos. E, assim como os modernistas, com o passar do tempo os pixadores começaram a se libertar do real, da rigidez da cópia, para irem abstraindo a letra cada vez mais. Atualmente, algumas letras são tão abstratas que vemos como imagens.

Levando-se em conta sua amplitude quantitativa e seus personagens anônimos, a pixação se aproxima da mail art42, um movimento dos anos 1960 que se utilizava do correio para trocar e divulgar suas manifestações artísticas como cartas, rabiscos, desenhos e mensagens carimbadas (HOME, 2004:109). Como não tinha um gênero ou uma estética específica, o aspecto que mais a caracterizava era sua mídia: a carta. Home fala da mail art como “inconsequente” (HOME, 2004: 112), “democrática e uma rede aberta” (HOME, 2004: 114). E, ao caracterizá-la no âmbito artístico, afirma que “o grande número de pessoas envolvidas com ela impede que o movimento seja reconhecido „oficialmente‟ como uma manifestação da alta cultura, pelo menos enquanto continuar sendo praticada numa escala tão ampla” (HOME, 2004: 114). Também seria assim com a pixação, que é formada por uma massa de centenas de cidadãos anônimos para a sociedade e sem estudo.

Vimos que a massificação é uma das características da obra de arte pós-moderna. Essas artes também são caracterizadas por:

 bombardeamento óptico, explosão de imagens e referências;

 não há obra de arte fechada na perfeição da sua forma final, ela pode ser sempre modificada ou adquirir inúmeros entendimentos;

 a obra pode ter conceitos pessoais do artista ou universais;

42 A mail art tem suas raízes no dadá e no fluxus.

128  ela carrega forte dose de elementos cotidianos, assim como elementos acerca da percepção da sociedade industrial;

 em algumas vertentes, apresenta niilismo;

 os referenciais são os objetos, o urbano e si mesma, não mais o homem e a alma; e

 o momento é o presente, não mais o eterno.

Podemos afirmar que a pixação é primitiva por alguns motivos:

 Devido à sua simplicidade estética e forma, pois não tem as técnicas de pintura e desenho (como sombra, scorso, perspectiva);

 Por misturar várias formas do que consideramos arte pura, como malabarismo, caligrafia, happening, expressionismo etc, tornando- se multicultural e híbrida,

 Por romper e não seguir a história da arte instituída/ocidental;

 Devido à sua intenção: não possuir maiores pretensões, conceitos ou questionamentos, como é o caso da arte elitizada;

 Por carregar elementos de uma cultura de um povo;

 Pela simplicidade conceitual, ainda que as letras sejam muito trabalhadas e o corpo do pixador exerça atividades consideradas complexas até para malabaristas.

É primitiva pois, assim como a arte modernista de Picasso, resgata características básicas de uma época remota, no começo das civilizações ou das civilizações menos ocidentalizadas. Quanto à enormidade de palavras escritas pelos pixadores, o que tiraria o seu status de raridade ou de exclusividade, Aguilar coloca dois pontos de vista, de Benjamin e de Malraux, que aqui reproduzo:

129 Enquanto para Benjamin é uma promessa da perda da aura e de suas características de distância e inacessibilidade, para Malraux a reprodução não só confirma a dimensão aurática, como constitui sua realização mais cabal: o „museu imaginário‟ confere às obras de arte um novo tipo de autoridade, mais poderoso porque mais ubíquo e difícil de apreender. Para Malraux, a reprodução é, muito mais que uma ameaça para a arte aurática, a possibilidade de difusão e do fortalecimento em escala quase universal dessas obras que a tradição havia separado dos objetos comuns, dotando-se de um valor quase sagrado. (AGUILAR, 2005: 50)

Berger também comemora a chegada da reprodução técnica da arte: “pela primeira vez as imagens da arte tornaram-se efêmeras, ubíquas, insubstanciais, disponíveis, sem valor, livres” (BERGER apud AGUILAR, 2005: 53). Em contraponto a este cenário, sabemos que a pixação é reproduzida manualmente; mesmo reproduzida milhares de vezes, cada uma ainda possui aura única, apesar de, para leigos no assunto, uma pixação ser/parecer igual a outra. O que eles não imaginam é que toda pixação tem aura: é sempre feita pelas mãos de um pixador e uma nunca é igual a outra, pois o local, a execução e a obra final sempre mudam. Com os novos paradigmas colocados pelos modernistas, é possível dizer inclusive que o processo também é obra – o ataque, o momento anterior à escrita e a própria escrita transformam o corpo, como num happening, em um elemento da obra.

Toda vanguarda sempre se caracteriza pela agressividade, manifestada no antilogismo, no culto a valores estranhos (o negrismo dos cubistas), os poderes mágicos, a beleza da anarquia, o instantaneísmo, o dinamismo, a imaginação sem fio (...). (TELES, 1997: 82).

Com o que vimos aqui, é possível entender que a pixação afasta-se da tradição da arte de produção de objetos e pinturas para seguir uma linha ligada a movimentos de vanguarda modernistas e pós-modernistas. Esta linha abstraiu, falou de si, transpôs a noção de obra de arte das telas e das paredes, incorporou o caos e a ironia, tornou-se multicultural e multimídia, questionou a

130 si e à obra de arte, desmistificou a “catarse elaborada” (VASARI) e levou o inconsciente para fora de nós.

De fato, para muitos escritores a cidade chegou a se converter numa analogia da própria forma – Pope e Johnson, Baudelaire e Dostoievski, Dickens e Joyce, Eliot e Pound. Mas, como sugere a extensão dessa lista de nomes, a cidade não continuou como uma mesma coisa, e tampouco as formas. E, se o modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma sociedade tecnológica moderna. A cidade moderna se apropriou da maioria das funções e meios de comunicação da sociedade, da maioria da população e dos limites mais avançados de sua experiência tecnológica, comercial, industrial e intelectual. A cidade se tornou cultura, ou talvez o caos que se segue a ela. (...) É por isso que a arte modernista manteve relações espaciais com a cidade moderna, em seu papel tanto de museu cultural quanto de ambiente novo. (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 77)

Vimos que na poesia modernista, a metrópole e a vida nela é figura central, assim, como na pixação.

O caos cultural alimentado pela cidade populosa em crescimento constante, Torre de Babel contingente e poliglota, é reproduzido como análogo ao caos, contingência e pluralidade nos textos literários modernos, no desenho e na forma da pintura modernista. (BRADBURY in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 78)

Pixadores conseguiram e conseguem fazer uma metáfora das cidades estética, formalística e conteudisticamente – metáfora mais especificamente de São Paulo, visto a sua singularidade. Apesar de apreenderem todo o espírito do moderno e do pós-moderno, pixadores não são vistos como poetas que têm a cidade como suporte, o que em verdade são, como vimos. Agressivos e anarquistas como muitos ismos desconstrutivistas, pixadores são piratas que tomam de assalto as superfícies da cidade que tem “donos” e são cada vez

131 mais odiados a cada vez que o espaço é mais loteado para os que tem dinheiro para comprá-lo.

Para Bradbury & Mcfarlane, o modernismo é a arte que refletiu o nosso tempo, e não poderia ser outra:

é a única arte que responde à trama do nosso caos. É a arte decorrente do “princípio da incerteza” de Heisenberg, da destruição da civilização e da razão na Primeira Guerra Mundial, do mundo transformado e reinterpretado por Marx, Freud e Darwin, do capitalismo e da contínua aceleração industrial, da vulnerabilidade existencial à falta de sentido ou absurdo. (...) É a arte derivada da desmontagem da realidade coletiva e das noções convencionais de causalidade, da destruição das noções tradicionais sobre a integridade do caráter individual, do caos linguístico que sobrevém quando as noções públicas de linguagem são desacreditadas e se tornam ficções subjetivas. O modernismo é, pois, a arte da modernização – por mais absoluta que possa ser a separação entre o artista e a sociedade, por mais oblíquo que possa ser seu gesto artístico. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 19)

Podemos afirmar que a pixação é metáfora e, como arte, combina com o nosso tempo, pois tem uma só palavra.

Mallarmé gostava da palavra „ptyx‟ justamente porque não queria dizer nada e, portanto, estava cheia de possibilidades não-realizadas.; Rilke disse que a palavra „e‟ num poema é totalmente diferente do mesmo „e‟ na linguagem cotidiana. (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 268)

Assim, pixadores sintetizam seu mundo e a visão do mundo por meio das melhores palavras e estética para isso, com grande poder criativo para essa expressão, para a criação da forma e para a consolidação delas no suporte da cidade, fazendo uma exacerbação da vida, uma hiperrealidade. É mais “real” e provocativa poesia visual do mundo, podemos dizer certamente.

132 Dentre inúmeras teorias e escritos sobre o que é arte atualmente, cito aqui uma retirada do livro Modernismo: Guia Geral:

Quando a poesia deixa de ser um exercício da excelência individual no papel e se converte em signo falado de total estímulo sensorial e engajamento coletivo, a arte (se o termo não for anacrônico neste contexto) se torna gesto revolucionário. Nesse ponto, a „fala descontínua‟ da poesia moderna se converte em símbolo da „via alternativa; a imaginação poética aberta à experimentação linguística se transforma numa imaginação política sensível à ideia de uma sociedade industrial baseada numa mitologia não-capitalista; o grupo que responde como uma unidade à linguagem de referência torna-se imagem de uma sociedade baseada na cooperação, e não na competição; o direito de todos praticarem uma poesia como quiserem torna-se o equivalente do direito de todos à autodeterminação política. (...) Se essa aspiração representa o caos e não a ordem, o domínio da turba e não a democracia, a apatia destrutiva e não uma deliberação livre, ou um grosseiro antiintelectualismo ao invés da assimilação do intelecto pela imaginação, são questões que permanecem indeterminadas. (HOUGH in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 273)

Em 1914, Apollinaire disse:

(...) nada de narração, dificilmente poema, se quiserem: poema ideográfico. Revolução: porque é preciso que nossa inteligência se habitue a compreender sintético-ideograficamente, em lugar de analítico-discursivamente. (APOLLINAIRE apud CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 138)

Alguns dizem que os melhores artistas não são aqueles que fazem algo que está em voga, ou que pensam em fazer para estar em um estilo, mas são aqueles que pensam livremente e, ao colocar na tela, no papel ou no instrumento, transcendem os movimentos daquele tempo.

133 O homem artista realiza-se em sua obra. Suas potencialidades, seus desejos, suas aspirações concretizam-se nela e através dela. Representa a sua realidade íntima e sua realidade social. (NOEL, 1977: 23)

Vimos que, diferente das vanguardas, pixadores não buscaram rupturas, novidades, conceitos. Foi algo natural, orgânico, como é a arte popular. Eles se realizam através de suas obras, que representam suas realidades pessoais e coletivas. A pixação é tão desconcertante para nossa época como cubistas, dadaístas, surrealistas, futuristas e expressionistas e poetas foram naquela época.

Assim, para o expressionista ou para o surrealista, por exemplo, é a antiarte que decompõe antigos quadros de referência e traz a anarquia do desejo evolante dos homens, a forma expressiva da evolução humana liberando energia. Desse ponto de vista, o modernismo não é liberdade da arte, mas sua necessidade. O universo coletivo da realidade e da cultura que gerara a arte oitocentista havia findado, e os modos explosivamente líricos, ou ainda os modos irônicos e fictícios, que incluíam vastos elementos não só de criação, mas também de descriação, mostraram-se inevitáveis. O pressuposto de que a época requer um certo tipo de arte, e de que o modernismo é a arte que ela requer, tem sido fervorosamente defendido por aqueles que vêem na condição humana moderna uma crise da realidade, um apocalipse da comunidade cultural. (BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 20)

Segundo Hough (1989: 268), é necessário investir na linguagem para atingirmos formas com a cara do agora. Ele diz que a linguagem reprime, faz com que tenhamos que dizer ou traduzir o mundo com aquelas palavras.

Estético é o que pode suscitar uma percepção desinteressada; o artístico compreende os valores diversos que se revelam na obra de arte, compreendido também o valor estético. Graças a tal distinção, que tem origem em Kant, a ciência da arte pode considerar uma obra artística determinada ou a arte de diferentes épocas ou povos, levando

134 em conta seus valores não exatamente estéticos: religiosos, morais, racionais ou sociais. A Arte se liberta assim da sua submissão à beleza. Ao mesmo tempo, as investigações impulsionadas por essa ciência podem se estender às manifestações artísticas afastadas do ideal clássico. (VASQUEZ, 1999: 43)

Assim sendo, vimos que o ideal de beleza não é mais característica obrigatória de uma obra de arte. Ela pode ser irônica, trágica, repugnante, grotesca, enfim, não necessariamente “bela”. Com esta distinção, teoricamente poderíamos voltar a ter como arte as inscrições rupestres, as artes mouras, indígenas e folclóricas – e, quem sabe, as inscrições urbanas...

Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, manifestou o seu desinteresse pela obra de arte „perfeita‟, „clássica‟, do „tipo diamante‟, e enunciou a sua concepção de obra de arte aberta, como um „barroco moderno‟. Talvez esse neobarroco, que poderá corresponder intrinsicamente às necessidades culturmofológicas da expressão artística contemporânea, atemorize, por sua simples evocação, os espíritos remansosos, que amam a fixidez das soluções convencionadas. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 53)

Além de não mais importar a beleza, com os novos paradigmas dos modernistas, a obra de arte não é mais algo que venha com uma resposta dada pelo artista. Ela é um enigma posto para ser decifrado ou não, pela mente do público, pois o agora pede outra arte que não seja a óbvia – a fechada. Em 1960, os poetas concretos disseram que com a poesia concreta,

pela primeira vez – e diz-se isto como verificação objetiva, sem implicação de qualquer juízo de valor – a poesia brasileira é totalmente contemporânea, ao participar na própria formulação de um movimento poético de vanguarda em termos nacionais e internacionais, e não simplesmente em sentir-lhe as conseqüências com uma ou muitas décadas de atraso, como é o caso até do movimento de 22. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 211)

135 Soubemos por esta pesquisa que a pixação só existe no Brasil. Trata-se de uma prática universal, porém cultural e esteticamente criada pelo povo de São Paulo, local onde é praticada na sua forma mais característica. Podemos portanto afirmar que é uma cultura popular imaterial brasileira, ainda que ilegal, e que é, assim como a poesia concreta, um movimento poético brasileiro com característica de vanguarda.

É prestando atenção no conjunto desses nomes que percebemos os pixadores como muito mais que meninos querendo competir, se divertir ou serem respeitados: são cidadãos que criaram uma nova forma de arte, poesia e jogo, na qual metaforizam todos os aspectos da sociedade (urbana e suburbana) brasileira. Ao analisarmos as palavras, vimos que a pixação é a metáfora de um povo sem acesso à cultura, ao lazer e aos esportes; um povo sem acesso ao conforto e à educação.

Ao se fazer o apanhado dos nomes, vê-se todas as nuances da nossa diversidade brasileira: violência, exclusão, revolta, pobreza, beleza, humor, criatividade, esperança, ironia. Assim, podemos também enxergar a pixação como cultura que retrata, ou hiperrealiza, de maneira minuciosa e criativa a nossa sociedade, uma narrativa poética e jogral do povo brasileiro.

Como diz Ivan Sudbreck, um dos artistas urbanos da geração de 1980, “a arte será sempre o reflexo social de um povo...” (SUDBREK apud GITAHY, 1999: 23).

(...) no nosso caso, reflexo de um povo oprimido, que sofre desrespeito em seus direitos humanos (...) E o qual responde, consciente ou não, por meio de atos que se traduzem desde a cruel violência até tentativas menos drásticas de interferir no sistema e modificá-lo. (GITAHY, 1999: 24)

A pixação é metáfora das dificuldades, do inatingível, do trabalho que nunca termina e do salário que nunca é suficiente; do sonho da pepita de ouro, da subida na vida, do topo que pouquíssimos conseguem chegar. Mas eles

136 chegam; e, nesse quesito, só eles chegam. E se apropriam de uma das poucas coisas que podem chamar de sua: o espaço geográfico.

Se o poder público acha que a cidade pertence a todos, ela pertence, principalmente, aos pixadores, que vivem seus espaços e a conhecem como ninguém. A pixação é provar que existe, que está vivo; é pintar mais alto, pintar mais, pintar no lugar mais difícil, ou no que vai ficar por mais tempo, e isso acaba gerando um clima de superação entre as tribos, as chamadas turmas.

Vimos que a poesia concreta nasceu em uma época de marcante otimismo com o país, os anos 50. Com as mudanças ocorridas no Brasil (construção de Brasília, a Bossa Nova, a arquitetura etc.), o otimismo desenvolvimentista e a exaltação do país, existia “a crença de que a palavra poética desempenharia um papel crucial na formação dessa nova sociedade” (AGUILAR, 2005: 88), uma revolução.

No contexto histórico social e político, a pixação se insere num momento no qual o brasileiro vive atordoado pelos escândalos políticos e éticos. Não há o mesmo clima de progresso e futuro brilhante como naquela época, mas outros fatores marcantes para o aparecimento da pixação, como os já citados a chegada do hip hop e do movimento punk, o crescimento da periferia e suas culturas, a falta de recursos econômicos, sociais e culturais para essa mesma periferia, entre outros.

Além, claro, de o Brasil ser país do movimento concreto e dos poetas concretistas – no mais, tinha um dos maiores arquitetos e o maior paisagista modernista do mundo –, podemos dizer que a cidade democrática e cheia de linhas, o jogo com as palavras, o uso de fonemas e toda essa distribuição delas estão no nosso consciente coletivo – isso se não foram conscientemente vistas –, favorecendo ou influenciando esse surgimento no espaço externo.

Fato interessante de se notar é que em uma andança pelo Centro de São Paulo, que cresceu e praticamente se tornou o que é hoje nas décadas de 1960 e 1970, os edifícios e construções que mais propiciam a prática da pixação são os com características arquitetônicas modernistas. Os peitoris, as lajes, os pilotis, os parapeitos, as grandes vigas, os traços retos e todo

137 ornamento modernista – quando há – são usados, ideais para os pixadores atingirem seus objetivos. vide anexo 34

O concretismo tinha preocupação com a tipografia, os poemas-objetos e poemas-cartazes integravam a poesia à vida cotidiana, colocando na poesia características antes vistas apenas nas artes plásticas.

Vimos que o poema concreto

aspira a ser: composição de elementos básicos da linguagem, organizados ótico-acusticamente no espaço gráfico por fatores de proximidade e semelhança, como uma espécie de ideograma para uma dada emoção visando à apresentação direta – presentificação – do objeto (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 75), sendo esta também uma descrição para a pixação.

Sem se apossar de teorias, ou mesmo sem ter ideia do que é poesia concreta, os pixadores também alçam a linguagem à dimensão da visualidade. Porém é impossível saber se isso aconteceria sem a poesia concreta. O que esta trouxe, juntamente com as vanguardas, foi uma leveza na produção artística, incluindo aí na poesia, e a possibilidade de se quebrar regras. O que é certo dizer é que quebrar o verso, assumir as palavras como unidade básica da manifestação, reescrevê-las diferentemente das regras formais e colocá-las no espaço com formas inusitadas na cidade de São Paulo vieram somente após os poetas concretos brasileiros dos anos 1960. Estes, por sua vez, só existiram após os modernistas brasileiros, Ezra Pound, Mallarmé e James Joyce.

Vimos que a arte também pode se caracterizar pela revolta e pelo questionamento dos valores; e é a quebra dos paradigmas causados por essas rupturas e questionamentos artísticos que causa a renovação – a arte indaga, então recicla-se os valores, aí a sociedade muda, adquirindo novos numa releitura dos antigos. A arte na pixação não está na intenção, mas no todo, na cultura do pixar. Nenhum pixador pixa querendo fazer arte. Seria contradição. Para eles, é diversão, é lazer, é revolta, é auto-afirmação, é vontade de destruir ou de dar um recado.

138

„Art is a joyous thing‟ (a arte é uma coisa viva), disse Pound. Uma coisa alegre. É tempo de se libertar a obra de arte criativa da tralha de matracas e da mística do pecado original com que o conformismo das estéticas „paradisíacas‟ procura ferreteá-la para garantia da salubridade convencionada de suas estâncias de ócio fungível: „intelectualismo‟, „formalismo‟ e outros tantos falsos pejorativos, „lendas dessuetas‟ na expressão de Boulez, que epitomiza o „papel interpenetrado da sensibilidade e da inteligência em toda criação‟ com palavras que precisam ser meditadas. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 47)

“O verso, por exemplo, foi sempre um traço distintivo que permitia reconhecer de imediato um texto poético” (AGUILAR, 2005: 45), por isso a poesia concreta não é identificada como poesia, assim como a pixação.

Isto posto, aquele aparente „empobrecimento da linguagem‟ – na verdade redução e simplificação vocabular, dentro de uma sintaxe não do tipo lógico-discursivo, mas do tipo analógico-visual -, que se pretendeu enxergar na poesia concreta, passa a ser colocado nos seus devidos termos, (...) para assumir, analítico-esteticamente, o caráter de um verdadeiro „princípio de estilo‟, verificável como processo e estimável – no poema concreto plenamente realizado – como fator integrativo do êxito dessa realização (...). (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 195)

Sobre a poesia concreta, disseram os concretistas:

Essas obras de arte são verdadeiros bens de raiz do pensamento e da cultura universais, cuja função – universal – é a de atuarem como projetos ou configurações gerais da forma de uma época, leis genéricas e concretas da forma, que se consubstanciam em inúmeros objetos e manifestações particulares, contribuindo basicamente para a formação da linguagem comum do tempo, do seu estilo. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 156)

139

Os concretos praticavam a publicidade, faziam logomarcas, como a que Décio Pignatari fez para a Petrobrás. Vimos que as grifes dos pixadores são verdadeiras logomarcas, brasões que condensam ideias ou títulos. Porém, quando explica um ideograma, Aguilar diz que

todos esses desdobramentos (explicações para a leitura de um ideograma concreto) exigem competências específicas, (...) sobretudo aquela que capacite o leitor para traduzir o signo final em um ideograma. Os poemas vem acompanhados frequentemente de notas explicativas, o que não suprime essa contradição, mas, ao contrário, a intensifica. (AGUILAR, 2005: 235)

A arte abstrata precisa de elementos de alfabetização visual pela própria, por isso Kandinsky estava sempre a estudar e a explicá-la. O desconhecido aterroriza, pois só queremos o que é conhecido. É por isso que a arte abstrata era e é repelida. Ela traz ilusão, mimesis, enigmas. O fruidor quer “ver alguma coisa”. Se nada vê, se afasta.

Concretistas queriam fazer uma linguagem que fosse útil. Mas poesia concreta não tem utilidade, não serve para nada. Mas ela nos mostrou as possibilidades estéticas das formas tipográficas, seus usos e suas significações.

No aniversário de 400 anos da fundação de São Paulo, a prefeitura colocou anúncios em grandes cartazes que versificavam as ruas. Muitos deles reproduziam poemas entre os quais se encontravam os de Pignatari, Décio e Haroldo de Campos, como se sua poesia já fosse parte inextricável da cidade. (AGUILAR, 2005: 267)

A pixação já faz parte do imaginário da cidade e inspira estéticas em vinhetas, tipografias, moda e publicidade. Porém a pixação não tem legenda, o que não permite sua explicação. Nela, qualquer um pode fazer, e o faz em qualquer lugar. Mas nem todo pixo é bom. Porém, todos estão expostos. Por

140 ser coletivo e democrático, todas as pixações são exibidas, independente da qualidade. Todos se mostram, mas só alguns são os escolhidos, e os passantes não sabem disso, pois não existe a legenda.

Memórias de um Sargento de Milícias (...) não se enquadra em nenhuma das racionalizações ideológicas reinantes na literatura brasileira de então: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento, redenção pela dor, pompa do estilo etc. (...) (CÂNDIDO apud AGUILAR, 2005: 355)

Os pixadores nasceram num mundo pós poesia concreta, pós pop art, no mundo em que as artes conheciam o punk e o hip hop, sendo multimídia e multiculturais:

- pixadores fazem acrobacias em suas escaladas pela cidade;

- vemos ainda traços do muralismo mexicano, ao contarem histórias do povo, pessoais ou coletivas, e fazerem uma forma de arte revolucionária – ou, ainda, de forma revolucionária;

- a pixação conta com muitos elementos simbólico e metafórico, como o surrealismo e formas tipográficas como forma de cruz, de labirinto, de lápide, usadas em vários poemas durante o Barroco (AGUILAR, 2005: 218);

- a pixação tira a aura da obra de arte, como dadaístas e designers.

- a pixação se assemelha em vários pontos com a poesia concreta, como vimos;

- a pixação se assemelha às vanguardas literárias, ao dada, a Joyce e, claro, a Freud, pelo interesse por materiais folclóricos, pela estrutura das piadas e anedotas, pelo espirituoso e irônico em todas as suas manifestações, e a exploração provocativa desses materiais „inferiores‟44(...) (HYDE in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 216).

44 Eles, porém colocavam tudo isso em um contexto “erudito”.

141 Vimos que a semelhança entre a pixação e a poesia concreta está principalmente no seu produto final: uma poesia, ou anti-poesia, que quebra a sintaxe e/ou a ortografia, se utiliza do espaço e promove a semiose do signo verbal e/ou visual. Colocados estes fatos, afirmamos que a pixação está inserida num contexto pós-moderno de supervalorização do eu, das tribos, da periferia das grandes cidades, que veio na esteira das mudanças ocorridas com a modernidade. Assim, é certo dizer que a pixação é poesia modernista suburbana em contexto pós-moderno, eminentemente visual em um primeiro olhar não treinado.

Mas qual é a importância de se mostrar a proximidade da pixação e da poesia concreta e as vanguardas e ainda notar que ela também é poesia?

Um dos motivos é porque a pixação é uma manifestação popular escrita, mas não faz parte da história da literatura nem da arte brasileira, apesar de levar arte escrita, se é que podemos dizer assim, para todos os espaços urbanos. A importância da pixação é tanta que ela é usada como metáfora da metrópole paulistana, sendo objeto de paixão por designers e diretores de arte. Exemplo é o livro Pixação: São Paulo Signature, citado na Introdução deste trabalho. Além de ser um livro minuciosamente produzido, o detalhe é que se trata de um grande livro de capa dura, no estilo “Taschen”, e um dos autores nada mais é que o editor de arte do New York Times. Isso prova o sério interesse de outros países pela prática da pixação, enquanto no Brasil ela somente é vista como sujeira e vandalismo, com raras excessões.

Gostando ou não, é fato que a pixação paulista é única no mundo. E não é melhor, nem pior. Hoje em dia, todas as formas de expressão coexistem, e existe público para todas. Sem dúvida, não existe outro país celeiro de tantas manifestação culturais como o Brasil.

“Você cresce vendo as pixações no seu bairro, admirando o trabalho dos caras, aí quer fazer também. É uma cultura..”, diz o ex-pixador Djan45. Cultura é o conjunto de valores e tradições de um povo. A pixação é a cultura de uma camada da população que respeita suas regras e as passa para os seguintes. É como a tradição do maracatu e da capoeira, por exemplo, que são artes

45 Entrevista informal dada para a pesquisadora.

142 híbridas, do povo, populares e espontâneas, geralmente não entrando no circuito comercial de apresentações artísticas. Portanto, deixo registrado que querer dar status de arte convencional para a pixação é como querer chamar de clássica a música dos repentistas. Mas na comparação com os fazeres instituídos, vimos que ela também é arte e poesia.

Segundo, e respondendo à pergunta, porque não mais nos satisfaz apenas o rótulo de vandalismo, já que vimos inclusive que uma das características do modernismo é ter criado modalidades como antiarte e contra- cultura. Aqui não é negado o caráter de ilegalidade, apenas requerido outros olhares, ainda que alguns possam dizer que a pixação, enquanto arte ou poética no nosso contexto histórico, possa significar a total crise da arte (ver citação de BRADBURY; MCFARLANE, na p. 134).

Aqui não pretendi fazer uma defesa da pixação, mas propor uma nova forma de entendê-la e vê-la, já que ela nunca vai deixar de existir. Propus esta pesquisa para mostrar que é possível começarmos a enxergá-la de outro jeito, e assim deixar nosso cotidiano menos “sujo”, mais leve e divertido ao encontrarmos essas palavras.

Para fazer esta pesquisa, me propus ter a mesma visão crítica dada a uma obra de arte ou uma poesia, onde não julgamos o que o artista quis passar, mas o que a obra final passou. Porém sou uma estudiosa educada com a teoria da arte pós-moderna, de maneira iluminista, cartesiana e aristotélica, tentando colocar uma arte primitiva e popular neste parâmetro, e nos meus de classe média intelectual, falível, portanto, pela minha visão limitada a este meu mundo.

Para aqueles que dizem: “Mas se pelo menos eles protestassem contra algo, ou escrevessem algo útil... isso não diz nada, é só rabisco! Não serve para nada”, Theófile Gautier e Maurice Denis respondem que

a maioria da arte não serve para nada, além da contemplação estética – é claro; porém outros tantos acham que seve para expressar: alguma coisa. (GAUTIER; DENIS apud NOEL, 1977: 14).

143 E eu digo que a arte, e aí incluo Da Vincis, Duchamps e poesias concretas, também não serve para nada, a não ser para olhar. E pensar.

Não-discursiva, não-prática, não-utilizável, a poesia pode e tende a reivindicar para si uma liberdade de expressão que a linguagem de uso literal não procura e não possui. A linguagem simbólico-discursiva, cujo intento último é a comunicação, satisfaz-se facilmente uma vez alcançado esse desiderato. Donde sua tendência irresistível à formalização, ou antes, à formulação; a funcionalidade logo se converte em funcionalismo. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 160)

É nesse ponto, o da utilidade, que a postura vanguardista dos poetas concretos adquiriu sua maior ambigüidade. Voltada à aplicação de categorias comuns (como a de „design‟, „utilidade‟ ou „cultura visual‟) que compreendem os fenômenos mais diversos da vida cotidiana e da arte (suas referências ao cinema e às revistas, por exemplo), suas práticas exigiam um olhar diferenciado e especializado (...). (AGUILAR, 2005: 80)

Vimos o quanto a pixação é rica. Bem estudada, ela comunica mais do que rabiscos, vandalismo ou jovens querendo competir. Ela tem seu estilo, pelo qual, são desdobrados inúmero outros estilos, códigos e mensagens. Augusto de Campos explora os limites do signo como instrumento de linguagem poética. A pixação também é repleta de signos – da cidade –, como os ângulos das esquinas, das faixas de pedestres e dos prédios, signos da realidade social, da falta de educação e da revolta, enfim, tudo isso é explorado pelos pixadores.

Sem nenhuma informação, posso ver um Picasso e achar horrível. Depois de saber a história, sua criação e sua importância, passarei a olhá-lo de outra forma. Portanto, enquanto for uma prática totalmente prerrotulada e pouco estudada em sua forma “artepoética”, a pixação não se enquadrará em nenhum movimento artístico ou poético e não será vista assim. Alguns movimentos de vanguarda são acusados de vazios, radicais demais,

144 estranhos, enfadonhos, infantis, fáceis, mercadológicos ou antiarte, e a pixação também pode ser acusada disso. Mas já não há como negar que ela junta materiais como atitude/ideário (o conceito) à estética, jogo, dança, malabarismo e poética, lançando mão de vários elementos para fazer sua lírica, se constituindo – se é que temos que rotular –, em anti-arte, performance e poesia - e em um soco no estômago da sociedade.

A institucionalização das vanguardas não pode ser vista apenas como um processo assumido de fé na renovação cultural. Se não existissem os pintores malditos, os movimentos marginais, que mais tarde serão consagrados, como investir na obra de arte visando futuros lucros fabulosos? Queiram ou não, as vanguardas são cúmplices dos marchands. Do mesmo modo, os pintores mudam de fases. Nunca houve tão grande número de artistas que modificassem, sucessivamente, seus modos de pintar, seus estilos. O colecionador tem que ser estimulado para novas compras. (COLI, 1996: 99)

Se a pixação choca ao apresentar uma ruptura na representação da poesia ou da arte em geral ao mudar seu suporte, sua forma, passar de cor para não cor, e, como o cubismo, trazer a arte “primitiva” para nossos tempos, o fato é que, diferente deste, ela não será assimilada.

Pixadores não se importam com o mundo das artes e, geralmente, não lançam manifestos. Um dos principais motivos de a sociedade não ver como a pixação arte é porque os pixadores não pixam querendo fazer arte. Como não reivindicam – ou não reivindicavam – este status, a sociedade nem pensa imaginar isso.

Na sequência, vem o mundo marginal dos próprios pixadores. A maioria quer que sua prática continue sendo underground – proibida e chocante, pois, como as performances de Flávio de Carvalho ou as telas expressionistas, ela está aí para isso. A aceitação da pixação como poética artística também passa em cheio pela questão estética, que vem realmente de uma linha baseada no punk, que por sua vez veio do rock, da psicodelia, da contracultura beat, da arte proletária, do niilismo do dada, do expressionismo e da crueza da art brut.

145 Como estética, ela já influencia a moda, a publicidade e o cinema, as quais não colocarei imagens por sair do âmbito da pesquisa.

Segundo Gilberto Kujawisky, na sua obra O sagrado existe, "o sagrado sempre se manifesta como força, uma força prodigiosa, irresistível, uma nascente energética todo-poderosa, princípio de toda eficácia. A realidade absoluta é origem de poder, dos aspectos do mundo e do poder do homem no mundo" (KUJAWSKI, 1994: 60). Ele coloca que existem dois tipos de sagrado, o “sagrado ser” e o “sagrado estar” (KUJAWSKI, 1994). O primeiro é aquele que é eterno: ele sempre será sagrado, porque simplesmente o é, quer tempo ou cultura que esteja. O sagrado estar é dado por noções culturais, pessoais e cronológicas: posso guardar uma carta dada por meu namorado como algo sagrado. Eu a sacralizo colocando- a em uma caixa especial (crio um paratexto para a sacralidade, para que eu possa entender a carta como sagrada). Mas quando o namoro acaba, a carta perde o seu sagrado, sendo simplesmente um pedaço de papel – ela estava sagrada, mas não é .

Posso dizer que as pixações acabam com o “sagrado ter”, expressão que uso baseada no pensamento de Kujawsky e na sacralidade que as pessoas colocam à sua posse. Sendo hereges que destroem o sagrado, pixadores não podem ser tomados como artistas, pois estes (em nossa cultura) tem uma aura especial, sendo considerados “superiores”.

Além disso, a obra de um pixador não tem o sagrado estar por não possuir um paratexto das artes nem do que é considerado sagrado, muito menos portanto tem um sagrado ser. Ela pode adquirir um sagrado estar daqui séculos, quando, por exemplo, um pedaço de parede for para um museu por suas inscrições “do povo primitivo da época pós-moderna”.

Mas o maior obstáculo é realmente a questão de todo o suporte para pixação ter uma propriedade que não é do pixador. O caráter criminoso se sobrepõe a qualquer qualidade que possa haver em uma pixação. Como no exemplo anexo, podemos perceber o quanto o suporte influi na interpretação. vide anexo 35

Como vimos, se ela estivesse em um pedaço de papel, ela seria um tipo de “poesia concreta suburbana”, mas perderia sua poética original. Então ela

146 também passa pela questão econômica de não ser comercializada, pois em uma tela perderia sua razão de ser. Diferente de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, que, apesar de toda ruptura que ela representa, como “afastamento da tradição na representação da forma humana, um profundo choque cultural que, no entanto, em 1914 já havia sido assimilado, convertendo-se em uma nova tradição” (BULLOCK in BRADBURY; MCFARLANE, 1989: 48).

Vemos assim que a pixação envolve um choque entre forças econômicas e culturais poderosas, como a propriedade privada, a mudança da arte para um circuito gratuito, longe do glamour e dos interesses econômicos, além de ser feita pelo povo (suburbano). Para mudar o olhar, é preciso começar haver mais estudos sobre a pixação. Ela é, talvez, a arte mais difícil de ser entendida; a sociedade dificilmente vai aceitá-la, mas é possível amenizar essa repulsa.

De um caráter estritamente irracional, para depois transformar-se em uma cultura de evocação da caça ou adoração dos deuses e, mais tarde, de registro a história, o “escrever no espaço” agregou textos culturais da periferia, do movimento negro, do movimento punk e dos marginalizados. Na prática, ainda se mostra uma atitude com raízes primitivas (o deixar a marca), mas feita em uma cidade com leis modernas (projeto do bem comum) na qual moram pessoas pós-modernas (individualidade). Lembrando que no modernismo, “ser chocante era aceito como sinal de originalidade” (GOMBRICH, 1999: 619).

Fechando a pesquisa, deixo uma frase de Décio Pignatari de 1956, que, sem intencionar, propõe uma inversão do que foi falado aqui, nos deixando uma brecha para reflexão:

O ideograma, monocromo ou a cores, pode funcionar perfeitamente numa parede, interna ou externa. (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006: 64)

147 6. BIBLIOGRAFIA

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NÉRY, Paulo. Disponível em: Acesso em: 24 mar. 2010.

CENSO IBGE. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2010

153 ANEXO 1– p. 25

Ligação da Arte Urbana como o punk: capa de disco do The Jam (1977); capa de 1983 dos Ramones em trem novaiorquino com graffitis e tags; detalhe da letra da coletânea de 1982 da banda punk The Southern Death Cult; detalhe de discos de duas das maiores bandas punks brasileiras nos anos 1980, Inocentes e Ratos de Porão, com letra imitando tinta na parede; detalhe do disco da banda punk Kães Vadios e da coletânea Grito Suburbano, de 1982, com letras angulosas; e foto de uma fita K7 de 1989, na qual o proprietário fez escreveu “Sex Pistols” no estilo de letra hoje remetido à pixação.

154 ANEXO 1 – p. 28

155 ANEXO 3 – p. 28

Pixador no “point” fazendo uma “folhinha”

______

ANEXO 4 – p. 28

Grife “O Melhor do Pixo”

______

ANEXO 5 – p. 28

A grife “Humildade faz a Diferença” e o pixo “SURRA”

156 ANEXO 6 – p. 29

Pixo que parece grife (HØP, ou “homens pizza) e pixo OSBV (os bicho vivo), que aparece em sigla (neste caso) ou por extenso, dependendo da situação. O cabeça do pixo OSBV foi quem criou a grife HFAD, sendo necessário pedir sua autorização para fazê-la, como no exemplo acima (anexo 5)

______

ANEXO 7 – p. 30

Exemplo de grapixo - quando o pixo se aproxima do graffiti e da arte institucionalizada. A mudança de cor já traz outra ideia

157 ANEXO 8 – p. 30

Lugar de visibilidade e movimento (Minhocão)

Parede de tijolo (debto, fodase, satânicos, rcs, rapas e kamikaze)

Parede de pedra (filho)

158 Lugar de difícil acesso

Lugar abandonado

Agenda na Mooca, São Paulo

159 ANEXO 9 – p. 32

A não comunicação comunica

A não comunicação comunica. Pixos: bdr, cômico violento, the funtos, não identificado

A não comunicação comunica

160

A não comunicação comunica. Pixos: violento, geração e ldv

Diferentemente do grafite, que comunica cores “coloridas” e formas arredondadas, passando a ideia de “arte” – mesmo quando letra, como vemos nesta foto -, a pixação comunica ângulos (rigidez) e o preto (o nada, o luto), passando a ideia de vandalismo. Pixações: berros e giga.

161 ANEXO 10 – p. 52

Calligrammes (1913-1916), de Apollinaire: poema sem verso

______

ANEXO 11 – p. 55

Anexo 21 – Capa e interior do livro Zang Tumb Tumb (1912), de Marinetti

162

Anexo 31 – Palavras soltas, Linguagem caótica = semiose verbivocovisual.

Anexo 41 – Vive La France (1914 – 1915), poema-colagem

______ANEXO 12 – p. 58

Tela L'oeil cacodylate (1921), de Francis Picabia: estética do caos.

163

Anexo 12 - Colagem de signos de Hannah Höch, Cut with the Dada Kitchen Knife through the Last Weimar Beer-Belly (1919-20): estética do caos.

______

ANEXO 13 – p. 65

Wall with Inscriptions (1945), “Parede com Inscrições”, de Jean Dubbufet, que tentava fazer uma arte que se assemelhasse à primitiva

164

ANEXO 14 – p. 67

Un Coup de Dés (1914), de Mallarmé (construtivista)

______ANEXO 15 – p. 78

ABC (1959), Jacques Villegle (neodadaísmo)

165 ANEXO 16 – p. 79

Chocando nas ruas: “Traje de Verão” (1956), roupa e performance de Flávio de Carvalho em São Paulo

______ANEXO 17 – p. 84

“stèles pour vivre 1” (1955), Décio Pignatari

166 “ovonovelo” (1955), grupo Noigandres

“Ligia Finge” (1965), Augusto de Campos, exemplo de poema que altera a ortografia das palavras

“nascemorre” (1958), grupo Noigandres

167

ANEXO 18 – p. 87

Poema “psiu” (1966), Augusto de Campos

“olho por olho” (1964), de Augusto de Campos: o título também como arte

168

ANEXO 19 – p. 91 e 93

“código” (1973), Augusto de Campos

negativo de “código” (1973), Augusto de Campos

169 ANEXO 20 – p. 96 As formas da metrópole

Pixação: formas e conteúdo da vida moderna na cidade de São Paulo: energia elétrica, carros, rapidez, construções, ângulos retos, separação.

170

ANEXO 21 – p. 101 siglas e ortografia

OSQN (os quase nada)

OSBV (os bicho vivo) e TMS (teimosos), que também são escritos por extenso

BRXS (bruxos) e AKTS

171

BRXS (bruxos) e atroz

ketos, desafiando a ortografia formal

Uma letra H, uma pizza e uma letra P: HØP (lê-se “homens pizza”), inaugurado há muitos anos por entregadores de pizza.

OS+VAN (os mais vândalos)

172 ANEXO 22 – p. 102 construções ortográfica

som: bomba city

som: peraltas

significado: rapdos

173 ANEXO 23 – p. 104

violentos, os cururu, naldo, geração

oscururu, colapso e naldo usando a cidade de novo

Pixação não terminada “punk de guerra”, na qual provavelmente a polícia chegou ou ele caiu.

174 ANEXO 24 – p. 105 palavras pela cidade - semiose

ideia

sinistros

abadia

175

perigus

rato

7º. sentido, piscas, gueto e raiva da pátria

176

“OS + IM” (“os mais imundos), em azul

Cisma, motim e dueto, osdroids e new boys (pedaço)

viagra

177 a erva

Erro (detalhe da flecha da grade apontando para a palavra)

Malas

silencio

178

usuários ANEXO 25 – p. 107 retórica e poética

retórica e poética: atak (atrás do poste), DMC, PDS, os + zica e perdas

179

cia pixo e mucamos na Baixada do Glicério, região Central de São Paulo

Agenda: profecia, local´s rato, MDM, pixaim, siper, entre outros

180

agenda

bruxos

181

bec, nuclear e caxão

No Brás, v-latas, impacto, deic – ou “No Brás os vira-latas sofrem não só com o impacto da cirrose, mas também do DEIC”

182

larapios, mutant´s, dink, OS+CR! (os mais cretinos), carrasco, dedé e não identificado

183

A cidade poetizada foto: Julio Kohl

184

Não necessariamente nesta ordem: OSRGS, cedilhas, turcos (não terminado), oscururu, néticos, lok´s, lenda

Exemplo de uso da pixação fora de sua poética, se constituindo apenas a estética. Tela de Rui Amaral com letras do pixador Wagner, do pigmeus.

Exemplo de uso de palavras no graffiti: tirando-se a imagem, “busca ver” seria visto como uma inscrição poética, diferente da pixação que nunca é vista assim, mesmo sendo. Artista: Mauro.

185 ANEXO 26 – p. 108 lugares e uso do espaço

ibope em curva

poder e violento certinhos no mobiliário urbano

estilo chamado blockbuster (gigante)

186

Larápios, bomba city, os caretas e MOB ______ANEXO 27 – p. 108 espaçamento

crime

187

Art-pixo, MCM, panacas e o P de picos, pois cada letra do pixo foi escrito em um “gomo” da construção. Atenção para o “s” de panacas que, para não atropelar o P do picos, coloco-o centralizado no espaço seguinte. Em cima ficou perfeito; embaixo, não

______ANEXO 28 – p. 109 abstração

Letras abstratas: básico, morte, não identificado (em vermelho), karetas, telas. No canto direito, fundo branco, inseto

188

letras abstratas, realidade abstraída

189

ANEXO 29 – p. 111 letra estilo “pixo”

rapdos, restritos e rabismo: 3 pixos com aparentemente a mesma letra, mas são muito diferentes

190

ANEXO 30 – p. 112 letras: metáforas ou metalinguagem

Inseto, com letra que lembra um

tumulos, com letra que leva um caixão

anor+

191 ANEXO 31 – p. 117

osrgs

OS RGS, uma das mais antigas e respeitadas turmas de pixação. O nome foi inspirado na marca que quem um dia foi preso carrega para o resto de suas vidas, por isso “os registrados no código penal”. O nome dos autores está no meio, Lin (um dos mais antigos, especialista em topos, m-lok e ncs). Levaram a noite toda para fazer, andar por andar, sem equipamento de segurança. Adendo: a obra contrasta com o painel autorizado e patrocinado feito mais adiante pelos osgemos no Anhangabaú. A maior pixação do mundo. (Uma das maiores poesias do mundo?)

192 ANEXO 32 – p. 119 grifes: “haikais da civilização ocidental moderna?”

suporte: papel de arroz

Grife “depois d nóis”

Grife “sempre alerta”, que lembra o ideograma (木), árvore em japonês

193

o suporte deste ideograma já não é papel de arroz

Algumas destas grifes podem ser encontradas nas fotos aqui publicadas:

união caça-muro

geração roconha* * roconha = rock com maconha

mania de pixar

nada somos

194

os inq.bráveis * *na foto no final deste anexo

só a diretoria

união faz a festa

união operação vandalismo

união são paulo paz

união total

os tô q tô *

195 * pixo

sociedade alternativa

os + antigos

os + imundos

“código” – agora podemos afirmar que este poema concreto parece uma grife... ou que uma grife parece um poema concreto

*Grife “os inq.bráveis” no espaço da cidade

196 ANEXO 33 – p. 119

p/ SP osso, facção e drácula

______

ANEXO 34 – p. 137 Arquitetura modernista como suporte, ferramenta para a escalada e espaço-guia

Detalhe: última “linha” inferior prédio, na qual se encontra a pixação “demônios”, referida na p. 103 (Obs.: esta foto não está no modo P&B)

197

198

199

200

201

(esta foto mostra um “atropelo”, que é quando fazem em cima do outro, em forma de desrespeito)

202

ANEXO 35 – p. 146 compreensão de um signo através do suporte

Viva Vaia (1979), de Augusto de Campos: poema – folha de papel (sem valor de mercado)

Viva Vaia como capa de livro: “design” ou ilustração (barato)

Viva Vaia na tela, “obra de arte” (caríssimo)

203