CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CURSO DE LETRAS E TRADUTOR E INTÉRPRETE

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

O PAPEL DA IDEOLOGIA EM “O DIÁRIO DE ”: UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO INTERDISCIPLINAR NO ENSINO MÉDIO

JAMILE HELFENSTENS

ENGENHEIRO COELHO – SP 2005

JAMILE HELFENSTENS

O PAPEL DA IDEOLOGIA EM “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”: UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO INTERDISCIPLINAR NO ENSINO MÉDIO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras e Tradutor e Intérprete do Centro Universitário Adventista de São Paulo como requisito parcial à obtenção da graduação em Letras e Tradutor e Intérprete sob a orientação da Profª. Ms. Ana Maria de Moura Schäffer.

ENGENHEIRO COELHO – SP 2005

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Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 03 de novembro de 2005, pela Banca Examinadora constituída pelos professores:

Profª. Ms. Ana Maria de Moura Schäffer – Orientadora

Prof. Ms. Neumar Lima

Profª. Esp. Fernanda Caroline de Andrade

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DEDICATÓRIA

A Todos aqueles que fazem parte de minha vida e fizeram esse sonho tornar-se realidade, dedico este trabalho.

iv AGRADECIMENTOS

Agradeço:

· A Deus O dom da vida e ter me conduzido até aqui, pois sem a ajuda d’Ele jamais teria conseguido; · À Professora Ana Maria de Moura Schäffer, a dedicação e ajuda; · À minha querida família, meu pai, Jairo Helfenstens, cujo apoio e força de vontade me inspiraram sempre. À minha mãe, Eliana Ap.Luiz Helfenstens os conselhos e por sempre estar ao meu lado. À minha querida irmã Talita Helfenstens o carinho e amor; · Ao meu querido namorado, Eduardo Rossi de Mello, que sempre esteve ao meu lado tanto academicamente como nas horas difíceis, e a confiança a mim designada; · Às minhas queridas amigas e colegas de quarto, Claudinha Fantacucci, Caroline Ferraz, Aline Colombo e Jaqueline Kümpel muito obrigada por tudo; · Aos meus amigos da turma do 4° Tradutor e Intérprete: Regina Balsante, Norma Filippini, Daniela Miguel, Adriana Lisboa, Ana Paula Costa, Priscilla Strasser, Débora Nunes e Michel Santos o contínuo apoio e ajuda; · Aos meus amigos insuportáveis, Daniela dos Santos, Diogo Pivatto, Marcela Forner, Denise Carvalho e Michele Maurici a contínua ajuda e a amizade a qual quero guardar para sempre; · Às amigas do 4° Letras: Anastácia de Sá, Ani Bravo, Andreza Florêncio, Fernanda Sales, Lidiane Pinheiro, Marta Bezerra, Sabrina Rostirolla, Solange de Fátima e Vanusa Clésia, o companheirismo e ajuda contínua. · Aos amigos: André, Bruno (Baiano), Elmer, Esrael, Evaldo (Nemo), Fernado (Sagüi), Jair Júnior (Zú), Mikel, Magno, Marcos e Vinicius (Bibi).

v Epígrafe

“No pain, no palm; no thorns, no throne; no gall, no glory; no cross, no crown”. (Willian Penn)

vi Sumário

LISTA DE FIGURAS ...... viii RESUMO ...... ix ABSTRACT ...... x

INTRODUÇÃO ...... 1

CAPÍTULOS

I – Anne Frank a História de um Diário ...... 03 1.1 – O que a História fala de Anne Frank ...... 03 1.2 – Quem foi Anne Frank ...... 07

II – O Diário de Anne Frank Moldado pela Ideologia ...... 09 2.1– O que é ideologia? ...... 10 2.1.1 – Reescritura ...... 11 2.1.2 – Patronagem ...... 13 2.2 – A Ideologia na Tradução ...... 14

III – Uma Visão Interdisciplinar para o Diário de Anne Frank ...... 17 3.1 – O que é interdisciplinaridade? ...... 18 3.2 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de História...... 20 3.3 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Portuguesa ...... 20 3.4 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Inglesa ...... 22 3.5 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” quanto aos “Temas Transversais” ...... 22 3.5.1 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Ética ...... 23 3.5.2 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Saúde ...... 23 3.5.3 – “O Diário de Anne Frank” quanto à Orientação Sexual ...... 23

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 24

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 27

vii Lista de Figuras

FIGURA 1 Fatores Ideológicos ...... 11

viii HELFENSTENS, Jamile. O Papel da Ideologia em “O Diário de Anne Frank”: Uma Proposta de aplicação Interdisciplinar no Ensino Médio. Engenheiro Coelho, 2005, 38p. (Monografia) – Curso de Letras e Tradutor e Intérprete/ UNASP – Engenheiro Coelho, SP.

Resumo

O objetivo da pesquisa foi reunir comentários e críticas sobre “O Diário de Anne Frank” no que diz respeito aos vários processos de reescritura sofridos pela obra, apresentando a trajetória dos acontecimentos que servem de pano de fundo para a publicação do diário, principalmente o papel poderoso da ideologia vigente atuando, mutilando e alterando o “original” de Anne Frank. A partir das possibilidades que a obra suscita, apresento também uma proposta de aplicação interdisciplinar no Ensino Médio, ao relacionar as disciplinas de História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, além de abranger os Temas Transversais.

Palavras-chave: Anne Frank, Ideologia, Reescritura, Tradução, Interdisciplinaridade.

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HELFENSTENS, Jamile. The Ideology Action in “The Diary of Anne Frank”: One Offer to an Interdisciplinare Teaching to the High School. Engenheiro Coelho, 2005, 38p. (Paper) – Modern Languages Course and Translator and Interpreter/ UNASP – Engenheiro Coelho, SP.

Abstract

The main research purpose was to collect some comments and critiques from “The Diary of Anne Frank” concerning to rewriting several processes undergone by Diary. It has been presented the events which go through as a background to the Diary publication, especially the powerful role of effective and acting ideology by mutilating and changing the ‘original’ of Anne Frank. Since Anne Frank’s diary has given rise to many possibilities, it is suggested an interdisciplinary use of the book in high school, relating History, Portuguese, English disciplines, besides covering Transversal Themes.

Key-words: Anne Frank, Rewriting, Translation, Ideology, Interdisciplinarity

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Introdução

“O Diário de Anne Frank”, (doravante ODAF) começou a chamar a minha atenção no segundo ano da Faculdade de Letras e Tradutor e Intérprete, nas aulas de Teorias de Tradução com a Profª Ana Schäffer. Nesta disciplina, estudamos o livro de André Lefevere “Translation, Rewriting and the Manipulation of the Literary Fame” (1992); o capítulo que aborda o papel transformador da ideologia em ODAF foi apresentado em forma de seminário por colegas. Foi a partir da reflexão feita na ocasião que comecei a pensar na possibilidade de fazer deste tema o meu Trabalho de Conclusão de Curso, uma vez que vários aspectos da temática chamaram a minha atenção. Procuro abordá-los na pesquisa, apresentando não somente os aspectos ideológicos atuantes de forma velada em toda tradução (a mais poderosa forma de reescritura), nas obras de modo geral, e na reescritura de ODAF de forma específica, que é o escopo da pesquisa em tela.

O objetivo deste trabalho é reunir alguns comentários e críticas sobre ODAF no que diz respeito aos aspectos da tradução, mostrando a trajetória de alguns fatos ocorridos, principalmente o poder da ideologia vigente atuando, mutilando e alterando o diário “original” de Anne Frank. Usando esta mesma obra, apresento uma proposta de um projeto interdisciplinar, inter relacionando as disciplinas História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, aproveitando a proposta para sugerir formas de integrar os temas transversais.

Os dados para a pesquisa foram coletados de bibliografias que abordam de forma direta ou indireta a temática de ODAF , como livros de história, revistas, sites, filmes: “The Diary of Anne Frank” de 1959, “Anne Frank Remembered” de 1995, A Lista de Schindler, e outros documentários. Através destes, constatamos que ODAF é um dos documentos mais valiosos que retratam a Segunda Guerra Mundial, o qual, foi traduzido para mais de 60 idiomas e tornou-se um best seller. No decorrer dos anos houve várias versões do diário, provocando assim, muita polêmica sobre o mesmo, devido à ideologia vigente da época (Segunda Guerra Mundial) ainda ser muito forte, o que trouxe muita dúvida quanto a veracidade do material.

No primeiro capítulo da pesquisa, apresento um relato histórico de ODAF, expondo quem foi a jovem Anne Frank e quais teriam sido as suas possíveis intenções ao escrever o diário, as razões que a levaram escrever e depois reescrever o diário teriam sido motivadas por algo mais, além de um desejo adolescente de extravagar as suas incertezas e desafios? Por outro lado, discuto as diversas polêmicas e controvérsias que surgiram após a 2

publicação de ODAF na Alemanha e como , o pai, juntamente com o Laboratório Criminal Alemão, conseguiu comprovar a veracidade do diário.

Outro aspecto contundente que é trazido no segundo capítulo: o que pode ter influenciado as várias reescrituras de ODAF? Ao discutir e tentar explicitar os pressupostos ideológicos da época, seremos levados a, quem sabe, vislumbrar que as principais causas de tantas reescrituras do mesmo ligam-se diretamente a fatores políticos-ideológicos. Contudo, ressalto que o fator ideológico sempre presente esteve presente em tudo aquilo que se foi escrito, seja consciente, seja inconscientemente, o que parece continuar a ser regra áurea de todo o tipo de reescritura, as quais serão explicitados também no segundo capítulo.

Na terceira parte há uma mudança de foco da reescritura (tradução), para uma proposta de abordagem interdisciplinar de ODAF no Ensino Médio, envolvendo algumas disciplinas como História, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, além de integrá-los aos temas transversais. Fazem parte do capítulo, algumas sugestões de atividades direcionadas a cada disciplina, com o objetivo de proporcionar aos alunos conhecimento mais abrangente de determinado assunto, além de abrir possibilidades de outros cruzamentos com outras disciplinas.

Os temas transversais foram inseridos no trabalho com o objetivo de ampliar também as possibilidades de o/a professor/a ao trabalhar os mesmos em sala de aula de modo indireto e a partir de temáticas atuais (como é o caso das guerras políticas, preconceitos, religião, entre outros). Foram sugeridas algumas questões que podem ser trabalhadas com ODAF, oferecendo assim ampla abertura de aplicação em classe, a qual, independe de condições econômicas para sua abordagem em sala de aula.

As considerações finais apontam limitações da pesquisa e abordam as principais constatações após o término do trabalho. Sendo assim, sugerem outras possibilidades de pesquisa, além de apontar a necessidade de professores e alunos estarem sempre conscientes quanto aos aspectos ideológicos atuantes em todos os tipos de contato literário, seja por meio das leituras, traduções (reescrituras), adaptações, crítica, historiografia, sejam por meio da história, só para citar alguns. A ideologia está presente constantemente em nossa vida e atua de forma inflexível principalmente nas obras literárias, e muitas vezes não nos damos conta de como ela age de forma direta em nosso dia-a-dia, nos influenciando em pontos relevantes e nos levando a agir de forma inconsciente.

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Capítulo I

Anne Frank: A História de um Diário

“Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda”.

(Anne Frank, 12 de junho de 1942).

Neste capítulo, como já anunciado na introdução, abordarei alguns aspectos referentes ao ODAF, com o objetivo de situar o leitor temporal e espacialmente. É importante considerar o que os registros históricos falam sobre o diário, quanto fala dele e por quem ele foi encontrado, principalmente, por que há tantas dúvidas quanto à veracidade do mesmo. Há vários indícios que provam que o diário foi mesmo escrito por Anne Frank e que o livro não é uma mera obra de ficção que relata partes do que os judeus passaram naquele período.

1.1 – O que a História fala de Anne Frank

Anne Frank tornou-se famosa pelo seu diário. No dia 4 de agosto de 1944 os soldados nazistas invadiram o “Anexo Secreto”1, levando-os todos para campos de concentração. Miep e Bep Voskuijl (amigas da família Frank que os ajudava) subiram até o esconderijo e encontraram os cadernos e anotações de Anne espalhados pelo chão. Miep os guardou sem nunca tê-los lido com o intuito de entregá-los para Anne quando a menina voltasse. Das oito pessoas que viviam no Anexo Secreto, apenas Otto Frank sobreviveu aos campos de concentração. Quando a guerra terminou, e Miep soube que Anne tinha morrido, entregou o material para Otto Frank recém chegado em dos campos de concentração, com as seguintes palavras: “aqui está o legado de sua filha Anne para você”. Regularmente, Otto passou a traduzir para o alemão, trechos do diário da filha, para anexá- los com as cartas que mandava para sua mãe residente na Basiléia (Suíça). No dia 3 de abril de 1946, um jornal alemão noticiou a existência do diário de Anne, dizendo que este era um importante documento que retratava a guerra.

Em 1947, Otto Frank, encorajado pelos amigos, decidiu publicar uma versão “B”, porém com muitas modificações, realizando um dos desejos de Anne. Podemos perceber que ela tinha este desejo, pois em maio de 1944 ela escutou através de uma transmissão de

1 Nome dado por Anne Frank ao esconderijo onde sua família e alguns amigos ficaram escondidos. 4

rádio Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês, dizendo que depois da guerra esperaria recolher testemunhos oculares do sofrimento do povo holandês sob a ocupação alemã e que tais relatos pudessem ser postos à disposição do público. Foi a partir daí, que Anne começou a sonhar com a publicação de seu diário. Otto Frank ao publicar ODAF, colocou o título que já tinha sido escolhido por ela, “O Anexo Secreto”. O livro foi publicado na Holanda pela primeira vez em junho de 1947. Com uma edição inicial de 1500 cópias, “O Anexo Secreto” foi traduzido e publicado em mais de 60 línguas, sendo um dos livros mais lidos no mundo. Um texto teatral baseado no diário foi escrito com a colaboração de Otto Frank, estreando em Amsterdam no dia 27 de novembro de 1956; também foi feito um filme com a colaboração de Otto, cujo premier aconteceu no City Theatre de Amsterdam em abril de 1959. Pelo o que se sabe, Otto jamais quis ver a peça ou o filme.

Em 1986, o Instituto de Documentação de Guerra de Amsterdam, que tinha recebido a custódia dos diários, publicou a chamada edição crítica, comparando as versões, com análise científica, para provar que os diários de Anne foram escritos por ela mesma, nos anos de 1942-1944, enquanto estava escondida, isto comprovou para sempre a autenticidade de ODAF.

Uma nota de rodapé para a versão "A" reconhecia a omissão, a pedido da família, de um trecho de 47 linhas que apresentava um "quadro extremamente impiedoso e particularmente injusto do casamento dos seus pais". Mas, na versão “B”, não houve menção a nenhuma parte faltante - as 47 linhas de revisão que Frank tirou. Em 1995, a editora Doubleday, agora parte da Random House, apresentou uma "edição definitiva" para lembrar o 50º aniversário da morte de Anne na qual incluiu 30% a mais de material do que Otto Frank tinha permitido na versão "C" originalmente publicada. Mas a edição definitiva também não tinha os trechos de revisão que agora apareceram.

A descoberta recente das novas páginas do diário causou confusão na Random House que afirma que qualquer providência para republicar o livro com o material até então omitido terá de esperar por uma resolução de questões jurídicas. A Doubleday, que tem os direitos de publicação do diário em capa dura para a América do Norte, e a Bantam, que tem os direitos para publicação na forma de brochura, não pretendem pagar uma quantia extra para republicar o livro com o novo material.

Peter Romijn, chefe de pesquisa do Instituto de Documentação de Guerra, disse que uma nova impressão da edição crítica já estava programada e agora deve incluir o novo material. Recentemente Melissa Muller ficou sabendo que não teria permissão para citar o 5

novo material no seu livro, decisão que atribui a problemas comerciais, assim como um esforço equivocado de proteger Otto Frank.

O professor alemão L. Stielau escreveu em uma revista em 1958 sobre suas dúvidas a respeito da autenticidade de ODAF. Nos anos 30 ele esteve envolvido na liderança da juventude hitleriana e depois da guerra se tornou um ativo membro de organizações nazistas. Essa sua publicação de 1958 recebeu uma extensiva cobertura da imprensa. No início de 1959, Otto Frank deu entrada em um processo contra Stielau. Após exaustivas e autorizadas pesquisas sobre a autenticidade da letra de Anne Frank, a corte em Lubeck anunciou em 1960 que o diário era autêntico. Isso foi razão suficiente para que em 1961 se tomassem medidas legais. Então, Stielau foi obrigado a declarar que com base no exame convencido de que o diário era verdadeiro e retirar suas afirmações.

Nos anos 60 e 70, a autenticidade do diário foi questionada em várias publicações sem nenhuma ação legal até 1976 quando ODAF se tornou o tema de um processo em Frankfurt. Desde 1975, H. Roth vinha publicando com sua própria companhia revistas e folhetos com títulos como “Anne Frank's Tagebuch - eine Fälschung” (“O Diário de Anne Frank – uma Fraude”). Em 1976, Otto Frank conseguiu impedir a distribuição desses panfletos. A Casa de Anne Frank se envolveu no caso como co-autora do processo. Dois anos depois o juiz decidiu proibir Roth de expressar em público suas idéias sobre o diário sob penalidade de pagamento de multa ou prisão de seis meses. No recurso de apelação Roth apresentou um relatório de R. Faurisson para quem pediu um extensivo exame sobre a autenticidade do diário. O relatório não convenceu a corte e o recurso foi rejeitado em julho de 1979. Em 1980, Faurisson publicou em francês o resultado de seu relatório com o título “Le journal d'Anne Frank est-il authentique?”.

Houve ainda, mais dois processos judiciais a respeito da autenticidade do diário baseados na liberdade de expressão. Ambos os casos ocorreram na Alemanha em 1979. O primeiro teve como base a distribuição dos panfletos do radical extremista de direita em 1978 em Frankfurt. A publicação alegava que ODAF era uma falsificação e produto da propaganda judaica sobre as atrocidades alemãs para suportar a morte dos seis milhões de judeus e para financiar o estado de Israel. No segundo caso, em Stuttgart, o nazista W. Kuhnt foi acusado de publicidade incitando o ódio racial e a difamação da memória de pessoas mortas. Huhnt escreveu em uma publicação de extrema direita que o diário era uma fraude e uma mentira. Em ambas situações a corte decidiu que se a queixa realmente persistisse pela parte prejudicada a acusação de blasfêmia poderia ainda prosseguir. Tal determinação causou um certo tumulto na imprensa. 6

Outro processo em Hamburgo, após vários anos, também chegou ao fim em 19 de março de 1993. A autenticidade de ODAF também estava sendo questionada lá. Isto começou em 1976 quando a peça teatral baseada no diário estreou no local. E. Römer distribuiu panfletos intitulados de “Best-Seller - ein Schwindel” (“Best-Seller – uma Mentira”) que alegava que o diário era uma falsificação. O promotor público decidiu processar Römer novamente. Otto Frank foi co-autor do processo. Em 1977 a corte distrital multou Römer. Durante o período de apelação um companheiro seu de direita, E. Geiss distribuiu panfletos na sala de audiência afirmando que o diário era uma grande fraude, e ambos foram condenados.

Com tantas dúvidas sobre a veracidade do diário, foi convidado para examinar o tipo de papel e os tipos de tinta usados nos manuscritos do diário de Anne, o Laboratório Criminal Alemão, o Bundeskriminalamt (BKA). Os resultados mostraram que os papéis e a tinta em questão tinham sido usados durante a guerra e por alguns anos depois. Consideravelmente o BKA concluiu que “as últimas correções feitas nas folhas soltas do diário foram escritas em caneta esferográfica azul, verde e preta”. Analisando as descobertas do BKA, ficou impossível considerá-las corretas já que não foram mencionados o local exato, a natureza e extensão dessas supostas correções. Durante o caso de Stielau, vinte anos antes, os especialistas em manuscritos já tinha dito que todo o trabalho havia sido escrito por Anne Frank. O relatório do BKA apontou ter muitos erros no seu veredicto. Em 1980 a revista alemã Der Spiegel publicou um artigo segundo as conclusões do relatório do BKA. A mensagem do artigo era: “este questionamento sobre a autenticidade do documento vai continuar”. E isto causou uma enorme perturbação no país e fora dele.

Em agosto de 1980 Otto Frank morreu. Os manuscritos de sua filha foram deixados para a Alemanha que entregou os documentos para o Instituto de Documentação de Guerra dos Países Baixos (RIOD - Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie). Otto Frank nomeou a Fundação Anne Frank na Basiléia como sendo a herdeira do copyright do diário. O RIOD decidiu publicar todo ODAF em uma versão detalhada, em parte como resposta para os contínuos ataques a respeito da autenticidade do diário.

Devido aos constantes ataques sobre a autenticidade do diário, o "Gerechtelijk Laboratorium" em Rijswijk foi convidado a conduzir um extensivo exame dos manuscritos de Anne considerando sua letra e outros aspectos técnicos. O BKA foi convidado pelo "Gerechtelijk Laboratorium" a indicar onde eles haviam encontrado tinta de caneta esférica sendo que nesse momento o BKA foi incapaz de apontar uma só correção desse tipo. Em 1986, o diário completo de Anne Frank e os resultados positivos dessa pesquisa de 7

laboratório foram publicados com o título “De dagboeken van Anne Frank” (“O Diário de Anne Frank”) e sua autenticidade foi definitivamente comprovada.

1.2 – Quem foi Anne Frank

A história de Anne começa na Alemanha nos anos 20. Filha de Otto Frank e Edith Holländer. No dia 12 de junho de 1929, nasceu Annelise Frank. Em 1933, com a subida ao poder de Adolf Hitler, a família Frank decidiu mudar-se para a relativamente segura Amsterdam, na Holanda. Então, no verão Edith, Margot e Anne foram morar com a avó materna Holländer, em Aachen, enquanto Otto partiu para Amsterdam para organizar as coisas antes de se mudarem. Em fevereiro de 1934, Anne mudou-se para Amsterdam e nesse mesmo ano ingressou na escola Montessori.

Mesmo com muitos membros do Partido Nazista presentes em seu território, a Holanda tratava seus judeus refugiados muito bem e os Frank se sentiram seguros juntamente com seus vizinhos judeus. Além disso, Anne e Margot tinham muitas amizades, incluindo Nanny Blitz, , e . De acordo com que Anne escreveu em seu diário mais tarde, as coisas não eram mais as mesmas para os judeus:

Depois de maio de 1940 os bons tempos foram poucos e muito espaçados: primeiro veio a guerra, depois a capitulação, e em seguida a chegada dos alemães, e foi então que começaram os problemas para os judeus. Nossa liberdade foi seriamente restringida com uma série de decretos anti-semitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carros, mesmo que fossem carros deles; os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde; os judeus só deveriam freqüentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de comparecer a teatros, cinemas ou qualquer outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de freqüentar piscinas, quadras de tênis, campos de hóquei ou qualquer outro campo de atletismo; os judeus eram proibidos de ficar em seus jardins ou nos de seus amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de visitar casas de cristãos; os judeus deveriam freqüentar escolas judias etc. Você não podia fazer isso ou aquilo, mas a vida continuava (FRANK, p.p.17-18).

Anne sempre foi comunicativa e tinha o sonho de ser uma mulher independente, uma grande escritora ou jornalista. Ao ouvir que seu diário poderia ser publicado, quando estava escondida no Anexo Secreto, percebeu que teria oportunidade para realizar seu sonho. Então, começou a reescrevê-lo, criando nomes fictícios para os moradores do anexo e até mesmo para ela. Anne mantinha uma postura questionadora, em seu diário encontramos 8

perguntas sobre relacionamento e problemas femininos, referentes ao comportamento de cada morador do anexo, como agiam e o que ela pensava sobre eles.

Antes de ir para o Anexo Secreto, Anne e Margot eram amigas de Betty Ann Wagner dos Estados Unidos, com quem se correspondiam por cartas, porém, nunca chegaram a se conhecer. Devido a esse hábito de escrever para os outros, ao ir para o esconderijo, Anne sentiu uma grande necessidade de se corresponder, mas como não podia fazê-lo, criou uma amiga fictícia, a quem deu o nome de Kitty, para quem contou e testemunhou todo o seu legado. Este breve histórico do diário ajudará a ter uma compreensão maior do próximo capítulo, onde abordarei a ideologia por traz do diário e o por quê há tantas versões do mesmo.

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Capítulo II

“O Diário de Anne Frank” Moldado pela Ideologia

“Há muito tempo você sabe que o meu maior desejo é ser jornalista, e mais tarde uma escritora famosa. Teremos que esperar para ver se essas grandes ilusões (ou desilusões) irão se cumprir, mas até agora não sinto falta de assunto. De qualquer modo, depois da guerra eu gostaria de publicar um livro chamado O Anexo Secreto. Resta ver se conseguirei, mas meu diário pode servir de base”.

(Anne Frank, 11 de maio de 1944).

Neste capítulo falarei sobre a ideologia que está por trás de ODAF. Mas antes, apresento pelo menos duas definições de ideologia, segundo Coulthard e Coulthard (1991) e Eagleton (1994). A obra pesquisada para embasar o tópico ideologia é “Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame“ de A. Lefevere (1992). Neste livro o autor discute o fator ideológico sempre presente em tudo aquilo em que se escreve consciente ou inconscientemente. No entanto, o foco dessa pesquisa centralizar-se-á nos fatores patronagem, reecritura (sendo a mais poderosa de todas a tradução) e a tradução à luz desses fatores ideológicos por trás de toda a reescritura, seja ela adaptação, editoração ou tradução, crítica, historiografia ou antologização.

No caso de ODAF, a própria personagem Anne Frank ao imaginar que o seu diário pudesse ser publicado algum dia, passa a reescrever, a fazer uma reescritura do diário. A pergunta inicial que surge é: que postura Anne Frank passa a ter depois de imaginar que o seu diário poderia ser publicado? Ela passa do papel de uma simples menina escrevendo o seu dia a dia em seu diário, com palavras simples sem nenhuma pretensão literária à personagem e autora Anne Frank. Já não é mais um simples diário, e sim uma obra literária que retrata um pouco da Segunda Guerra Mundial. Relatando assim, aspectos históricos, psicológicos, aspectos profundamente emocionais da personagem, e mais do que isso, por trás de toda essa reescritura dessa agora então autora, nós temos aqui a ideologia controlando o dizer de Anne Frank. Ela não diz com mais naturalidade, mas transforma o seu dizer agora em algo que se coloca diante da possibilidade de alguém vir a ler. Alguma coisa passa a dizer para ela o que pode dizer e o que não pode dizer, como ela deve dizer e como não. São estes os aspectos que serão abordados neste capítulo, então em primeiro lugar deveríamos perguntar: O que é ideologia?

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2.1 – O que é Ideologia?

Como mencionei anteriormente eu trarei aqui duas breves definições do que seja ideologia e justificarei o porquê da escolha de Coulthard e Coulthard e de Eagleton. A de Eagleton justifica-se porque ele escreve sobre a questão literária, a ideologia da personagem presente nos textos literários; a de Coulthard e Coulthard justifica-se, pois ele dá uma definição da ideologia como sendo uma vigia da sociedade, mostrando que ela é que dita as regras, pensamentos e idéias. Segundo Coulthard e Coulthard (1991, p.48) “ideologia é aquele conjunto de idéias, valores e normas que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar, valorizar, sentir e fazer e como devem pensar, valorizar, sentir e fazer”. Esta definição mostra que a ideologia é um tipo de vigia da alma humana, controlando o que as pessoas devem ou não dizer, pensar e agir. Dessa forma, a sociedade é controlada por algo invisível, porém existente que está em todos os lugares, mas ninguém sabe o que realmente é. Mesmo Anne Frank na sua juventude já percebia tal vigilância, justamente talvez, pelo momento histórico em que estava passando, a Segunda Guerra Mundial escondida e com medo de que ela e sua família e amigos viessem a serem descobertos. Nos comportamentos descritos no diário percebemos fortemente a questão da vigilância, do controle que a ideologia vigente exercera sobre a vida das pessoas do esconderijo.

Eagleton outro filósofo, vê a ideologia como:

(...) a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. Considera a ideologia como sendo – mais que as crenças, que têm razões profundas, muitas vezes inconscientes – os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e a reprodução do poder social (Eagleton apud. Nascimento, p.9).

Tendo essa visão, podemos perceber que Anne Frank as sentia inconscientemente. Ao escrever em seu diário sobre o pensamento machista da época, dos problemas femininos, sua sexualidade e ao falar sobre o relacionamento de seus pais, não estava pensando em publicar isso. No entanto, ao ver a possibilidade disso acontecer, começou a reescrever o seu diário de forma mais amena de modo que não se envergonhasse do que estava escrevendo.

Régis Debray, filósofo, concentra-se muito na sensibilidade e no visual de tudo principalmente da arte. Segundo Debary a ideologia é o que nos faz ver o mundo e, ao mesmo tempo, nos torna cegos a seu respeito (Debray apud. Nascimento, p.9). Com esta frase podemos ver o que aconteceu com ODAF, pois ele foi publicado; o mundo leu o diário, 11

mas a ideologia nos cegou, impedindo-nos de ver o que ele realmente foi, omitindo e mutilando a obra. As definições discutidas acima sobre ideologia realmente ratificam o que aconteceu com a postura de Anne Frank a partir do momento em que ela se imaginou autora do diário, vislumbrando a possibilidade de publicação, pois, a partir daí que ela começou a escrever de forma mais romantizada o diário, inventou nomes fictícios para todos os membros do que ela literalmente chamou de “Anexo Secreto”, inclusive para a própria família e a si mesma.

A ideologia rege os meios literários da seguinte forma: Ela é o principal patrão, pois é ela que dita as regras, costumes, pensamentos e idéias. As Editoras são conduzidas pela ideologia, ditando assim, a poética e estilos da ideologia vigente para a obra literária, comandando também a reescrita e a tradução. Numa tentativa de uma relação inconsciente da ideologia com todos os tipos de reescritura, esboçamos a seguinte figura, buscando esclarecer como o sistema literário é regido e a seguir, explicarei dois grandes fatores ideológicos que influenciaram ODAF, a Patronagem e a Reescrita.

Figura 1

Ideologia Patronagem Reescrita Crítica Editoração Antologização Historiografia Tradução

2.1.1 – Reescritura

Lefevere, na sua obra utiliza o termo reescritura como uma denominação geral de toda a tradução, a qual segundo ele é reescritura do texto “original”. Pode-se dizer, nesse sentido, que as diversas formas de reescritura existentes, entre as quais, além da tradução, 12

a antologização, a crítica, além de outras, sofrem efeitos de manipulações ideologicamente cometidas. Ao mesmo tempo em que as reescrituras podem apresentar novos conceitos, novos gêneros, novos mecanismos, podem também reprimir inovações de qualquer ordem. Assim, os reescritores manipulam os originais aos quais têm acesso com o objetivo de fazerem com que esses originais se ajustem ou não às correntes poetológicas e ideológicas dominantes da sua época (LEFEVERE, 1992, p.8).

Em ODAF, foco da pesquisa em tela, a ideologia manifesta-se de duas formas: a auto-editoração feita pela própria Anne Frank e a tradução. A Auto-editoração ocorreu quando Anne Frank viu a possibilidade de publicar o seu diário após a guerra, começando então a reescrevê-lo. Cortou partes que não gostaria que fossem publicadas, pois eram de caráter muito pessoal; acrescentou outras partes, porém infelizmente, não conseguiu terminar de reescrevê-lo. A autora do diário começou a reescrever seus encontros com Peter de forma mais romântica, como podemos ver em (LEFEVERE, 1992, p.60), “Conforme eu sentei de frente, perto do pé dele”2 em 14 de fevereiro de 1944 ela reescreveu o mesmo assim: “ Eu ... fui e sentei em uma almofada no chão, coloquei meus braços em volta dos meus joelhos dobrados e o olhei atentamente”3. Porém Otto Frank, ao publicar o diário optou por colocar os nomes fictícios dados por Anne Frank para os membros do anexo, por questão de ética e para salvaguardar o nome das famílias. São eles: Auguste van Pels (Petronella van Daan), Hermann van Pels (Hermann van Daan), Peter van Pels (Peter van Daan) e (Alfred Dussel).

Houve também várias outras reescrituras do diário, ou melhor, traduções. A tradução, como já escrevi nas páginas iniciais é uma das formas poderosas de reescritura. A primeira reescritura foi de Otto Frank, que traduziu o diário do holandês para o alemão; a terceira foi de Anneliese Schütz, que traduziu uma versão que Otto Frank fizera do diário do holandês para alemão. Posteriormente foram surgindo outras traduções, mas baseadas na reescritura da própria Anne Frank. Da versão do holandês, surgiram outras o francês, o inglês entre outras. Assim, parece não haver dúvidas de que através da reescritura podemos subverter ou manipular o texto “original”4. Podemos perceber que é inevitável que a cada reescritura que é feita de um mesmo texto, este vai se perdendo aos poucos até ser mudado por completo.

2 “As I set almost in front of his feet” 3 “I ... went and sat on a cushion on the floor, put my arms around my bent knees and looked at him attentively” 4 Para ARROJO, 1997 p.23, ”(...) o próprio significado do ”original” não é fixo ou estável depende do contexto em que ele ocorre.” , ou seja, as rescrituras posteriores tentam reproduzir o que Anne Frank viveu, porém não vivemos no mesmo momento histórico e não temos a mesma visão ideológica vigente da época. Em seu livro ARROJO fala que nos dias de hoje com as teorias pós-modernas de tradução, acredita-se que nada do se escreve é original, pois você se baseou-se em idéias dos outros para escrever a sua. 13

2.1.2 – Patronagem

A patronagem pode ser entendida como o poder exercido por pessoas e instituições (partidos políticos, editores, jornais, revistas, televisão, etc.), que determinam o que pode e o que não pode ser escrito ou reescrito em termos de literatura. Os chamados patronos se preocupam com a ideologia da literatura, o que ela poderá levar ao público que não vai contra os princípios da sociedade, ao invés de se deterem em sua poética; tentam regular a relação entre o sistema literário e os outros sistemas que, juntos, formam a sociedade e a cultura. Se não conseguem controlar a escrita, buscam, ao menos, controlar os órgãos responsáveis pela sua distribuição: academias, censores, revistas críticas e estabelecimentos de ensino (LEFEVERE, 1992, p.15). Segundo Lefevere, “a aceitação da patronagem implica no fato de que escritores e reescritores trabalhem dentro dos parâmetros estabelecidos por seus patrocinadores e que estejam dispostos a legitimarem e sejam capazes de fazê-lo tanto em relação ao status quanto ao poder daqueles patrocinadores” (1992, p.18). Segundo o autor, a patronagem consiste de três componentes que interagem entre si: ideológico, econômico e status. Para Lefevere, o componente ideológico age como o elemento limitador na escolha e no desenvolvimento tanto da forma quanto do assunto (1992, p.16), e foi isto que aconteceu com ODAF, quando Otto Frank recorreu a uma editora holandesa para publicar a primeira versão do diário (que ele mesmo fizera), o editor simplesmente não podia publicar tantas “ofensas” ao povo alemão, pois não havia muito tempo do término da guerra e a ideologia nazista ainda era a dominante; logo, ele só publicaria o material se fossem feitas mudanças no diário (1992, p.61), para não comprometer a ideologia dominante. Para ver o manuscrito de sua filha publicado, Otto Frank se curvou às exigências da patronagem.

Quanto ao componente econômico, ele se refere à remuneração que os patronos pagam aos seus escritores e reescritores, para estes fazerem cortes e mudanças em algum texto que há uma forte ideologia. Já o componente de status significa que a aceitação da patronagem leva à integração do escritor ou tradutor a determinado grupo e ao estilo de vida. Existem dois tipos de patronagem:a não-diferenciada e a diferenciada. A patronagem é não-diferenciada quando os três componentes (ideológico, econômico, status) são administrados pelo o mesmo patrão, como tem sido o caso da maioria dos sistemas literários do passado, a qual poderia prender o (a) escritor (a), dando-lhe uma pensão, que é o caso dos estados de totalitarismo contemporâneo, aonde toda a opinião o patrão leva. Já 14

a patronagem diferenciada, é a qual um ou dois desses componentes, ou até mesmo todos eles, são dispensados por indivíduos ou instituições distintos.

Ao se publicar uma obra não condizente com a ideologia vigente, o preço a ser pago por esse patrocínio é a imposição de limites, restrição ao original chegando até a manipulação do conteúdo. Vemos isso de forma bem explícita na época da ditadura no Brasil, onde só poderiam ser lidos ou estudados livros que o governo aprovava. Muitas vezes pensamos que a literatura está imune a qualquer tipo de interferência, mas esta pode entrar muitas vezes em choque com o sistema de patronagem que é maior e que domina o sistema literário, que é movido pela ideologia, e esta se propensou a ser usada no presente.

Em ODAF, após pesquisa e leitura, podemos perceber que muitas coisas foram cortadas, omitidas e modificadas nas primeiras versões do diário. Isto nos mostra que nunca podemos ter certeza da história por trás de cada obra. Anne Frank ao escrever o seu diário se tornou a autora Anne Frank, conhecida no mundo todo por ser uma testemunha ocular do que os judeus passaram na Segunda Guerra Mundial, deixando o seu relato eternizado na forma de um diário, independente das modificações que possa ter sofrido.

2.2 – A Ideologia na Tradução

Após ver alguns fatores ideológicos que influenciaram ODAF, na sua versão inicial, veremos também como a ideologia opera no processo de tradução. A tradução é uma atividade intelectual lingüística cultural e social que inevitavelmente nunca é neutra e é sempre atravessada pela ideologia. O tradutor tem que saber que a matéria prima da tradução é moldada pela ideologia, percebendo que a estrutura lingüística tem variáveis sociais, históricas, ideológicas que juntas determinam o significado do texto. Todavia há duas relações entre a linguagem/ ideologia que vão se encontrar e confrontar e no meio disso, o tradutor realiza o seu trabalho numa atitude de busca e constante avaliação. A primeira é o confronto entre o tradutor e a obra original. Isso acontece quando o tradutor aceita traduzir textos que não condizem com o que ele acredita, como por exemplo, uma obra que fosse dirigida para as mulheres e um homem a traduzisse. A ideologia da obra “original” se veria atravessada pelas convicções do tradutor. Podemos imaginar facilmente o conflito ideológico de um homem ao traduzir textos para mulheres.

A segunda é o conflito entre a ideologia e a cultura de uma comunidade lingüística que diverge parcial ou totalmente da de outra comunidade lingüística para a qual uma obra 15

deve ser traduzida. Pois quando as culturas são totalmente diferentes o tradutor tem que achar uma brecha para fazer o seu trabalho e isso é um desafio para este profissional; ele tem que estar consciente da carga ideológica presente nas opções formais de uma outra língua. Deve-se atentar também para o valor ideológico da escolha lexical em campos semânticos que divergem nas várias línguas. Os processos de lexicalização são indicadores ideológicos; uma super-lexicalização indica a importância daquele conceito para uma determinada cultura. E todas essas informações não podem ser negligenciadas na tradução.

Infelizmente muitas dessas ideologias foram negligenciadas em ODAF. A principio, por seu pai, que começou a traduzir todo o diário do holandês para o alemão. Neste material, Otto Frank omitiu várias coisas que Anne Frank mencionava sobre sua sexualidade, sobre o casamento de seus pais e sobre outros membros do Anexo Secreto, sendo uma das maiores omissões, quando Anne Frank escreve sobre a emancipação da mulher. Feitos esses cortes, Otto Frank resolveu contratar sua amiga Anneliese Schütz, que era jornalista e que imigrou para Holanda fugindo dos Nazistas, para fazer uma melhor tradução do diário, uma vez que ele tinha dificuldades com o holandês. E foi baseada na versão de Otto Frank que Schütz começou o seu trabalho. Otto Frank achava que a tradução de Schütz era certa, mas que ela estava velha demais para isso, pois usava expressões antigas e não gírias como Anne Frank usaria, além de confundir expressões alemãs com as expressões holandesas.

SCHÜTZ, citada por LEFEVERE (1992, p.65), mostra várias modificações nas traduções dela, como: “worried” [preocupada], que se tornou “restless” [impaciente]; “seemingly” [aparentemente] se tornou “really” [realmente]; “there’s the rub” [aqui está o problema], se tornou “I fell as if I’m buttoned up” [eu me sinto como se eu estivesse abotoada]; “such idiots” [como idiotas], se tornou “such lazy people” [como pessoas preguiçosas]; “rotten” [podre], se tornou “reddish” [avermelhado]; “the whole kit and caboodle” [todo o mundo], se tornou “rat’s nest” [ninho de rato]; “I was about to explode” [eu estava a ponto de explodir] foi transformado em “I would have loved to have jumped into her face” [eu teria adorado ter pulado na cara dela]; neste ultimo caso “explodir” e “pular” têm o mesmo significado em alemão e em holandês, porém Schütz optou pelo homônimo que não se encaixa no contexto. Vemos que a tradução de Schütz ilustra o fato de que as editoras raramente se importam com a qualidade da tradução ou de qualquer manuscrito que queiram vender. Porém, o mais famoso erro de Schütz foi a seguinte frase: “there is no greater enmity in the world than between Germans and Jews” [não há maior inimizade no mundo do que entre alemães e judeus], que foi traduzido como “there is no greater enmity in this world between these Germans and the Jews” [não há maior inimizade no mundo entre 16

estes alemães e judeus]. Otto Frank discutiu com Schütz sobre esta frase e eles chegaram à conclusão de que “estes alemães” corresponde aproximadamente ao que Anne Frank queria dizer. Estes são apenas alguns dos erros de tradução entre muitos, que foram cortados baseados em uma ideologia da época. Nas próprias palavras de Schütz, entendemos bem o processo ideológico dominando: “um livro que você quer vender bem na Alemanha... não deveria conter nenhum insulto direto aos alemães” (PAAPE, apud. LEFEVERE, 1992, p.66).

Nas traduções de Schütz houve constante alteração nas descrições diretas sobre os alemães no diário, pois isso, poderia ser considerado como insulto. Como resultado, o dever dos judeus não somente na Holanda, mas em toda a Europa era que eles fizessem o holocausto parecer que não foi tão cruel do que realmente o foi, mesmo matando milhões de pessoas que em sua maioria eram judeus.

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Capítulo III

Uma Proposta de Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank”

“Estou terrivelmente ocupada. Ontem comecei a traduzir um capítulo de La Belle Nivernaise e a escrever palavras do vocabulário. Em seguida trabalhei num problema medonho de matemática e traduzi três páginas de gramática francesa. Hoje é gramática francesa e história. Simplesmente me recuso a fazer aquela matemática horrorosa todos os dias”.

(Anne Frank, 14 de outubro de 1942).

Neste capítulo faço uma proposta de abordagem interdisciplinar de ODAF para o Ensino Médio, abrangendo disciplinas como História, Língua Portuguesa e Língua Inglesa, embora este leque possa ser ampliado. O objetivo desta proposta é explicar alguns meios de aplicação nestas disciplinas, para a partir de uma leitura condizente de ODAF, abordar temas como a Segunda Guerra Mundial, gêneros textuais (diários, cartas), problemas presentes nas traduções, que poderão ser detectados a partir de cotejamentos entre fragmentos de inglês e português. A estratégia de comparação, além de ser uma boa oportunidade de se trabalhar questões de língua inglesa, também abre possibilidades múltiplas de sensibilizar os estudantes quanto à ideologia por trás de todo o processo de leitura e constituição do significado, ao se explicar como fatores diversos, muitas vezes não considerados nas leituras podem ser úteis no processo de ensino e aprendizado no Ensino Médio. A escolha de alunos do Ensino Médio justifica-se porque a faixa etária dos alunos se assemelha à da jovem Anne Frank, o que possibilita um interesse maior pelos assuntos tratados devido à aproximação etária entre os alunos e Anne Frank.

Deste modo, pode-se dar a oportunidade aos alunos de conhecerem aspectos históricos, sentimentais, relacionamentos e as preocupações da adolescente Anne Frank. As atividades sugeridas aqui, também podem ser usadas para incentivar a escrita em língua inglesa, e língua portuguesa por meio do gênero textual cartas ou diários; Segundo a minha ótica, é uma forma de motivar os alunos a escreverem cartas entre si, produzir o próprio diário, ou por meio de correspondências com adolescentes de outros países via messenger, skype, entre outros, despertando o interesse pela cultura do outro, sendo este um aspecto importante para o ensino de Língua Estrangeira (LE). Entretanto, antes de focalizar mais especificamente as disciplinas propostas para aplicação do “Diário”, trago algumas considerações sobre interdisciplinaridade.

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3.1 – O que é Interdisciplinaridade?

A interdisciplinaridade é um meio em que os profissionais do ensino podem interligar uma ou mais disciplinas. Porém, muitos pensam que ao fazê-lo as disciplinas perderiam o seu foco; mas este não é realmente um problema, o importante é que as disciplinas sejam desenvolvidas em todo o seu potencial para que possa ser articulada com outras (disciplinas e conhecimentos) que, ligados em cadeia formariam um anel completo de conhecimento.

Segundo Lück (1994, p.64), a interdisciplinaridade é:

(...) o processo que envolve a integração e engajamento de educadores, num trabalho conjunto, de integração das disciplinas do currículo escolar entre si e com a realidade, de modo a superar a fragmentação do ensino, objetivando a formação integral dos alunos, a fim de que possam exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão global do mundo e serem capazes de enfrentar os problemas complexos, amplos e globais da realidade atual.

As resistências que se observa quanto à interdisciplinaridade não é um problema só da atualidade, mas em séculos passados já houve tentativas importantes, de desfragmentar o conhecimento. Como exemplo, Platão tenha sido um dos primeiros intelectuais a colocar a necessidade de uma ciência unificada, propondo que esta tarefa fosse desempenhada pela filosofia. Na Antigüidade, a escola de Alexandria foi o centro de pesquisa e ensino de caráter neoplatônico, pode ser considerada a instituição mais antiga a assumir um compromisso com a integração do conhecimento (aritmética, mecânica, gramática, medicina, geografia, música, astronomia, etc.) a partir de uma visão filosófico-religiosa (Santomé, 1998, p.46). Através desses registros podemos perceber que há muitos séculos há pensamentos sobre a integração entre as disciplinas, formando assim, seres pensantes sobre todos os assuntos e não conhecedores de apenas um único assunto, sem poder integrá-los.

Outra importante hierarquização de níveis de colaboração e integração entre disciplinas é a proposta por Jean Piaget (1975), para ele há diferença entre os níveis de integração, o qual divide entre:

· Multidisciplinaridade: O nível inferior de integração. Ocorre quando, para solucionar um problema, busca-se informação e ajuda em várias disciplinas, sem que tal interação contribua para modificá-las ou enriquecê-las. Esta costuma ser a primeira fase da constituição de equipes de trabalho interdisciplinar, porém não implica em que necessariamente seja preciso passar a níveis de maior cooperação; 19

· Interdisciplinaridade: Segundo nível de associação entre disciplinas, em que a cooperação entre várias disciplinas provoca intercâmbios reais, isto é, existe verdadeira reciprocidade nos intercâmbios e, conseqüentemente, enriquecimentos mútuos;

· Transdisciplinaridade: É a etapa superior de integração. Trata-se da construção de um sistema total, sem fronteiras sólidas entre as disciplinas, ou seja, de uma teoria geral de sistemas ou de estruturas, que inclua estruturas operacionais, estruturas de regulamentação e sistemas probabilísticos, e que una estas diversas possibilidades por meio de transformações reguladas e definidas.

Ao considerar a aplicação da proposta no Ensino Médio, uma definição de interdisciplinaridade que é pertinente, é a dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM)5 que é a seguinte:

Na perspectiva escolar, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes, mas de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos problemas sociais contemporâneos.

Partindo do pressuposto interdisciplinaridade, vemos a dificuldade de se implantar tais projetos em uma escola. Para Fazenda (2001, p.17), “no projeto interdisciplinar não se ensina nem se aprende: vive-se, exerce-se, mas essa responsabilidade está imbuída do envolvimento – envolvimento que diz respeito ao projeto em si, às pessoas e às instituições a ele pertencentes”.

Segundo Santomé, (p.65) para desenvolver qualquer trabalho interdisciplinar, é preciso definir a questão, determinar conceitos necessários para todas as disciplinas envolvidas, usando modelos mais relevantes, tradições e bibliografia. É necessário também, desenvolver um marco integrador como questões a serem pesquisadas, especificando os estudos e pesquisas a serem desenvolvidos, resolvendo os problemas entre as diferentes disciplinas implicadas, ao se trabalhar com um vocabulário comum e em equipe, mantendo a comunicação através de técnicas integradoras (encontros e interações freqüentes).

Podemos observar que o que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca, da pesquisa: é a transformação da insegurança num exercício de pensar, num construir (Fazenda, 2001, p.18). Em um projeto interdisciplinar, comumente podemos

5 Retirado do site: http:// /www.pedagogiaemfoco.pro.br/epcn.htm acessado em 09/10/2005. 20

encontrar inúmeras barreiras, seja de ordem pessoal, material e/ ou institucional. Entretanto, estas barreiras podem ser derrubadas pelo desejo de criar, de inovar e de ir além, o que pode perdurar na vida toda de um estudante. Após trazer considerações sobre interdisciplinaridade, apresento abaixo a proposta de ensino interdisciplinar, apontando as disciplinas envolvidas e o que pode ser trabalhado em cada uma delas, a partir de ODAF.

3.2 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de História

Nesta disciplina o professor poderá propor com mais profundidade um estudo dos aspectos envolvendo a Segunda Guerra Mundial, ao abordar os acontecimentos que levaram à eclosão do conflito, a política de Adolf Hitler, a política internacional das ditaduras entre Japão, Itália e Alemanha. Como foram as operações militares, a ofensiva alemã depois de dominar a Polônia nos seguintes países: Dinamarca, Holanda, Bélgica, Noruega e França. A Entrada da Itália na Guerra, a resistência Européia e a entrada da URSS e dos Estados Unidos. A Expansão da Guerra que ocorreu entre 1942 a 1945 e o fim da Guerra, citando também o ocorrido em Pearl Habor e como conseqüência a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki.

O professor pode enfatizar e discutir os horrores praticados sobre a questão do genocídio, falando dos tipos de mortes, dos campos de extermínio, dos lugares onde os campos de concentração se localizavam, das leis contras os judeus, etc. E tudo isso a partir de ODAF, pois nele se vê registrado na linguagem sincera de uma adolescente, o que foi na prática aquilo que só conhecemos e, sob a ótica da ideologia, por meio de documentários e da história. Depoimentos de sobreviventes podem ser mostrados aos alunos, o que, com certeza despertará o interesse deles sobre o assunto, vindo os mesmos a querer estudá-lo de forma dinâmica e interativa.

3.3 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Portuguesa

O Diário oferece também a oportunidade para que os professores de Língua Portuguesa abordem aspectos ligado à temática tão atual e pertinente dos gêneros textuais. Marcuschi (2003, p.4) ao tentar definir e explicar o que são os gêneros, diz:

Textos orais ou escritos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária com padrões sócio-comunicativos característicos 21

definidos por sua composição, objetivos enunciativos e estilo concretamente realizados por forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas.

Percebe-se a partir da citação do autor que os gêneros constituem uma listagem aberta, são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações tais como: sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, e-mail, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas.

Com isso o professor de língua portuguesa pode utilizar o diário mostrando o estilo das cartas que Anne escrevia à amiga imaginária Kitty: cartas descritivas e românticas. Como estamos em uma era moderna, o professor também pode falar sobre a linguagem utilizada nos e-mails, incentivando os estudantes a escreverem seus próprios diários. Há também espaço de o professor mostrar as diferenças entre cartas formais e como elas são escritas quando exigidas a uma empresa ou um superior. Ao propor este tipo de tarefa, os alunos têm possibilidades de trabalhar mais com a escrita e com a leitura de ODAF.

O professor pode também mostrar como a ideologia influencia uma obra literária, usando como exemplo ODAF; ele pode pedir aos alunos que leiam o diário, para depois discutirem juntos como a obra foi manipulada e mutilada pela ideologia vigente da época, mostrando dessa forma, que por trás de toda a literatura há a patronagem6 que dita as regras, citando os exemplos de vários autores, os quais tiveram suas obras publicadas muito tempo depois, por serem consideradas perversas para a sociedade; como exemplo, trago o autor holandês Willem Godschalk van Focquenbroch7 do século XVII.

6 Patronagem, segundo Lefervere (1992, p.15) pode ser entendida como o poder exercido por pessoas e instituições, que determinam o que será permitido ou não ser lido, escrito ou reescrito em termos de literatura. 7 Focquenbroch, nasceu em Amsterdam em 1640. Foi poeta, dramaturgo, foi quem introduziu o estilo burlesco à literatura holandesa seguindo o exemplo do poeta francês Scarron. Ele obteve sucesso literário após a sua morte até meados do séc. XVIII. Focquenbroch não obteve sucesso em sua época, pois sua ideologia não condizia com a ideologia da época, a sociedade não aceitava o seu estilo inovador e era considera um dos poetas mais incapazes da época por ter uma vida muito boemia. 22

3.4 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” na disciplina de Língua Inglesa

Nesta disciplina, o professor de Língua Inglesa poderá trabalhar com a escrita em cartas, dando assim, um desenvolvimento maior na escrita dos alunos. A história do diário, também pode ser recontada em inglês (partes), seria interessante que o professor selecionasse trechos da obra que mostram discrepâncias provocadas pela ideologia atuante no momento da tradução, levando assim o senso crítico dos alunos quanto às traduções que temos por aí e o quanto elas não são nada ingênuas como se pensa. Levá-los a considerar a alta porcentagem de tradução no Brasil que segundo pesquisas chegam a quase 75%. Há também o filme “O Diário de Anne Frank” de 1959 que pode ser mostrado para os alunos para praticarem Listening além de conhecerem a história do diário de forma mais interativa.

O professor de Língua Inglesa pode também propor aos alunos que se correspondam com adolescentes de outros países, via Messenger, skype e e-mail. O professor pode mostrar no documentário que Anne Frank se correspondia com uma menina dos EUA; no esconderijo ela sentiu muita falta disso e como não podia mais fazê-lo inventou uma amiga imaginária – a Kitty. Com essas atividades é comum que questões culturais venham à tona, o que permitirão ao professor trabalhar e discutir as diferenças culturais entre Brasil e outros países. Estas experiências podem se tornar inesquecíveis, enriquecedoras, mas tudo vai depender da criatividade de bom senso do professor.

3.5 – Aplicação Interdisciplinar de “O Diário de Anne Frank” quanto aos Temas Transversais

Segundo os PCNs8, os temas transversais dizem respeito a conteúdos de caráter social, que devem ser incluídos no currículo do Ensino Médio, de forma “transversal”; ou seja, não como uma área de conhecimento específico, mas como conteúdo a ser ministrado no interior das várias áreas estabelecidas. Mesmo que um determinado tema possa ser mais pertinente a uma área do que a outra, o fator decisivo do seu grau de inserção em dada área de conhecimento, poderá depender, pelo menos inicialmente, da afinidade e preparação que o professor tenha em relação ao mesmo. Os temas transversais dividem-se entre os seguintes assuntos: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual e temas locais. Para se trabalhar com ODAF, sugiro utilizar temas como ética, saúde, orientação sexual e relacionamentos.

8 Retirado do site: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/humanas/educacao/pcns/fundamental/transversais.html obtido em 9/10/05. 23

3.5.1 “O Diário de Anne Frank” quanto à Ética

A ética de ODAF diz respeito às reflexões sobre as condutas humanas. Para usá-la, o professor pode colocar em questão como Anne Frank se portava diante da sociedade e de sua família; como ela se relacionava com a mãe e com os outros membros do “Anexo Secreto”. Isto poderá levar os alunos a refletirem sobre a própria vida e se questionarem como agem em relação à sociedade, à família, aos amigos e aos outros. Aqui entra o aspecto relacionamentos, não só entre pessoas desconhecidas, mas no caso de Anne Frank, entre pessoas de sexos opostos (ela e Peter), e sempre bem visto entre os adolescentes da faixa etária de Anne Frank, a abordagem desse tema em sala de aula.

3.5.2 “O Diário de Anne Frank” quanto à Saúde

Falar de saúde implica, entre várias outras causas (ibidem.) levar em conta, por exemplo, a qualidade do ar que se respira, estilos de vida pessoa, saneamento básico, hábitos alimentícios, etc. Ao usar este tema transversal, o professor pode propor uma abordagem de como eram as condições alimentícias, as de higiene, a ventilação, os relacionamentos de Anne Frank e seus companheiros no “Anexo Secreto”.

3.5.3 “O Diário de Anne Frank” quanto à Orientação Sexual

A Orientação Sexual na escola deve ser entendida como um processo de intervenção pedagógica que tem como objetivo transmitir informações e problematizar questões relacionadas à sexualidade, incluindo posturas, crenças, tabus e valores a ela associados. O professor quando for usar este tema transversal pode mostrar trechos de ODAF, nos quais Anne Frank faz várias menções quanto a sua sexualidade, suas dúvidas e sobre o que Anne tinha conhecimento, mostrando aos alunos que é comum ter dúvidas quanto ao assunto, e qual a visão que a sociedade da época tinha em relação a isso.

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Considerações Finais

Este trabalho visou conduzir o leitor ao conhecimento dos fatos históricos que ocorreram em ODAF após o período da Segunda Guerra Mundial. Mesmo com a queda do poder nazista, a ideologia vigente da época era ainda predominante neste período. Como conseqüência desse fator e da ética relacionada aos seus conceitos sobre sexualidade e relacionamento familiar, o próprio pai de Anne Frank modificou o seu diário cortando trechos importantíssimos referentes ao convívio familiar; o diário foi reescrito diversas vezes, o que mostrou a tradução como a principal forma de reescritura passa por mudanças constantes e no caso de ODAF, essas alterações foram motivadas por abordar assuntos polêmicos para a época e criticar o comportamento nazista.

Através da análise de ODAF, pude perceber na prática, que a ideologia está presente constantemente em nossa vida e atua de forma inflexível principalmente nas obras literárias, e muitas vezes não nos damos conta de como ela age de forma direta em nosso dia-a-dia, nos influenciando em pontos relevantes e nos levando a agir de forma inconsciente. Tendo a ideologia como um dos temas principais, o propósito da pesquisa foi dar uma breve idéia de como este fator atua em nossa vida sem nos darmos conta. A análise de ODAF mostrou claramente o papel decisivo da ideologia; foi apenas uma entre muitas outras obras que foram modificadas, mutiladas e omitidas devido ao contexto ideológico da época. Isto prova que é preciso levar em consideração que há sempre alguém ou alguma forma de poder maior que impede ou impõe regras, escolhendo o que deve ou não ser reescrito (traduzido), publicado.

A própria Anne Frank, pelos relatos do diário, já tinha consciência disso, pois ao ouvir em transmissão de rádio que os diários de guerra poderiam ser publicados, de imediato passou a ter postura de autora, reescrevendo ela mesma o diário, segundo a poética vigente, a fim de buscar a realização de seu sonho adolescente de se tornar escritora. A partir deste momento, Anne começa a fazer uma reescritura de seu diário, cortando trechos que não gostaria que fossem publicados, por serem de caráter extremamente pessoal.

A discussão do segundo capítulo da tradução feita por Schütz, a pedido de Otto Frank, por não dominar a língua holandesa; mostrou que a princípio ela não foi aceita por Otto Frank, pois empregava expressões antigas que Anne Frank jamais as usaria. No entanto, a tradução de Schütz foi direcionada ao público que ainda tinha uma ideologia conservadora. Isto nos permitiu perceber no texto várias distorções de sentido, naqueles que Anne Frank se referia aos alemães e ao comportamento deles que poderia chocar as pessoas, no contexto pós-guerra. 25

Outra questão fortemente observada na pesquisa foi a patronagem, um dos sistemas que é movido pela ideologia vigente. Otto Frank sentiu de perto o efeito desse sitema, quando desejou publicar o diário da filha, pela primeira vez; porém, não pode fazê-lo, devido aos constantes insultos aos alemães praticados pela autora, pois era ainda a primeira versão que fora feita do diário. Posteriormente, esta foi modificada por Schütz como foi comentado acima.

O que se pôde depreender a partir da experiência tradutória na Alemanha, se pode aplicar também ao Brasil, pois não sabemos quais das grandes obras passaram por este mesmo problema, o da ideologia vigente atuando, mutilando e omitindo partes importantes de uma obra. Quantas grandes obras e best sellers tiveram partes omitidas por fatores ideológicos? Somente um estudo mais a fundo deste tema poderá nos revelar quais outras obras foram influenciadas pela ideologia. Por tanto, cabe aos tradutores saberem que sempre há este fator invisível em nossa sociedade e vida, que age sem nos darmos conta.

Ao propor a aplicação interdisciplinar de ODAF, nas disciplinas de História, Língua Portuguesa e de Língua Inglesa, fui motivada a usar outras obras de caráter semelhante, não só nas disciplinas como em qualquer obra: a abordagem dos temas transversais me possibilitou levantar questões importantes para a formação do caráter do ser humano, como é o caso dos temas transversais, levando assim a reflexão do aluno.

Porém, ao concluir o capítulo onde sugiro a interdisciplinaridade na sala de aula, pude perceber que este tema é muito mais abrangente, transformando assim a interdisciplinaridade em transdisciplinaridade. Podemos abrir esse leque e usá-lo também nas disciplinas como, Geografia, na qual o professor pode mostrar quais foram os países sob o domínio da Alemanha, a geografia da Europa, mostrando os países pelos quais os soldados alemães passaram; na Química, o professor pode mostrar os tipos de gases usados nas câmaras de gás dos Campos de Concentração; na Matemática, pode ensinar proporção, ao mostrar o número de pessoas na Europa antes da guerra e pós-guerra; na Biologia, pode apresentar os avanços da medicina feitos na época com experiências em judeus; e Religião, o professor pode fazer uma comparação entre as crenças dos judeus nos tempos bíblicos e as dos judeus da atualidade.

Paralela à proposta interdisciplinar, abordei os temas transversais como a ética, saúde, orientação sexual e relacionamentos. Entretanto, ativeram-se em minha mente possibilidades de usar quanto à ética, de como Anne se portava diante a sociedade da época e de sua família, como ela se relacionava com a mãe e com os demais membros do “Anexo Secreto”, trabalhando ainda o aspecto de relacionamento de Anne Frank com o sexo 26

oposto e entre as pessoas. Vimos que também se pode usar os temas transversais de saúde, ao abordar as formas de saneamento básico, hábitos alimentícios, a ventilação do esconderijo. Quanto à orientação sexual, mostrar que dúvidas são comuns nesta faixa etária, falado que Anne escrevera muito sobre a sua sexualidade.

Esta pesquisa buscou mostrar o que a ideologia fez em ODAF, tornando-o completamente outro, sendo controlado por todos os lados da ideologia vigente da época. Outro objetivo foi também incentivar os professores do Ensino Médio a trabalharem juntos em projetos interdisciplinares e transdisciplinares, formando assim cidadãos completos, não em um determinado assunto, mas num todo.

No contexto do trabalho não tive a intenção de esgotar as questões abordadas neste presente trabalho. No entanto, penso que este tema, por ser muito relevante, merece pesquisas posteriores, não somente em ODAF, mas também em outras obras literárias que passaram pelo mesmo processo de mutilação, omissão e modificação. O mesmo se dá com a interdisciplinaridade, pois se trata de um tema atual e merecedor de nossa atenção, trabalhando não somente uma disciplina, mas todas em conjunto. 27

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