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O remix midiático das séries de televisão e Champloo

Roberta Regalcce de Almeida Centro Universitário Senac

Índice como as modulações desse processo na cul- tura pop ao longo do século XX como Lev Introdução1 Manovich (2005), Eduardo Navas (2008), 1 Um samurai sem clã3 Nicolas Bourriaud (2009) e Lucia Santaella Conclusão8 (2007). Referências 10 Palavras-chave: Animê, Remix, Japão, Televisão, Comunicação. Resumo

O artigo propõe analisar duas séries de Introdução animações japonesas para TV, Cowboy Be- O uso original do termo remix surgiu nas pis- bop (1998) e Samurai Champloo (2004) de tas de dança ou ainda como uma faixa bônus, Shinichiro Watanabe. Trata-se de duas séries em singles de determinadas bandas e artis- emblemáticas por remixar em um mesmo tas do mundo Pop ou em destaque na agenda cenário o tradicional e o moderno, a cultura cultural. É um produto Pop, seu papel é o japonesa e a ocidental, engendrando meta- consumo imediato e a promoção de um es- morfoses inusitadas e criando múltiplas in- paço (no caso de pistas de dança), de even- terfaces entre vários contextos e experiên- tos (partys, raves etc.) de artistas e ban- cias midiáticas (TV, cinema, jogos eletrôni- das. Historicamente, remete-se à música e cos, mangás etc). a figura do DJ. Esse personagem começa a Assim, a análise se concentra em desven- ter destaque a partir do uso de ferramentas dar as estratégias de remix, típicas da eletrônicas e depois computacionais na cri- chamada pós-produção, em sua dinâmica ação/produção e até mesmo na performance de seleção/apropriação de produtos midiáti- de bandas e artistas. O uso de sintetizadores, cos e/ou objetos de con-sumo, e em sua baterias eletrônicas e mixers abrem espaço reutilização em outras formas e contextos, para o DJ ser mais do que um orquestrador resignificando-os. de setlist de uma rádio, casa noturna ou festa. Para fundamentar a discussão, o estudo A possibilidade de alterar as batidas, os rit- traz autores que se dedicaram a rastrear mos e até a melodia das músicas originais as origens, funções e usos do remix, bem 2 Roberta Regalcce de Almeida pavimenta seu acesso a imprimir sua marca tilhamento (shareware), cuja dinâmica em novas versões. se desencadeia em seleção (search- O remix é um produto dirigido para ser re- ing/tags/keywords), apropriação (down- conhecido como tal e, quem o consome se di- loads/samplers), transformação (remix) e verte em tentar descobrir as portas de acesso transmissão (uploads). expostas para num segundo momento entrar As remixagens, em sua lógica de apro- em contato com as fontes, chamadas de ori- priações (ou samplers) de diversas fontes ginais (BOURRIAUD, 2009, p.13). As per- conjugadas dentro de um mesmo produto, guntas que nascem desse cenário visam en- caracterizam-se pelo aspecto de filtragem e tender se há uma autoria de fato no remix e se de deslocamento por entre contextos, estilos a remixagem tem autonomia suficiente para e autorias diversas. se tornar um produto tão importante quanto Em síntese, as suas características são: seu(s) original(is). Há casos em que essa 1. O remix é feito por quem está imerso no rivalidade eclode e a remixagem torna-se o universo da cultura Pop e dialoga dire- produto de referência eclipsando suas fontes. tamente com seus pares; Uma estratégia recorrente no campo de estudos de comunicação é a compreensão 2. Seu processo criativo opera na lógica de sobre o processo de seleção de produtos seleção, apropriação de amostras, des- midiáticos ou objetos de consumo e a sua construção e rearranjos desses elemen- reapropriação em outras mídias e contextos, tos em outro(s) contexto(s), corpo(s) e remixando-os e resignificando-os. Autores forma(s); como Lev Manovich (2005), Eduardo Navas (2008), Nicolas Bourriaud (2009) e Lucia 3. Essas amostras ou samplers funcionam Santaella (2007) dedicaram-se a rastrear ori- como fractais, pois um pedaço ou tre- gens, funções e usos desse tipo de lógica cho de um produto cultural utilizado remix. carrega consigo uma carga simbólica O que esses autores afirmam é que o que quando observada remete o leitor à remix é um reflexo de movimentos artísti- sua origem pregressa, isto é, a amostra cos em sintonia com o ambiente comunica- ainda que diluída em outras, contém e cional e modos de produção industrial do nos remete à referência inicial do filme, começo do século XX que se desenvolveram da música, do estilo, do programa de e evoluíram gerando acúmulo e sobreex- TV etc.; posição de produtos culturais, tais como 4. O autor de remix não apaga os vestígios livros, músicas, filmes, séries de TV, de- de onde tirou seus samplers. Ele con- senhos animados, histórias em quadrinhos, vida o público a reconhecer e acessar as pinturas, fotografias, composições musicais, suas fontes. São planos de navegação peças de teatro etc. de um aficionado (o autor) por cultura Imersos neste cenário comunicacional, pop a outro (seu receptor); esses materiais disponíveis transformaram a paisagem da sociedade globalizada no 5. A assinatura ou estilo do autor de remix final do século XX em modos de compar- aparece em sua capacidade inventiva de

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mesclar elementos de fontes diversas e ao transferir seu conteúdo sincrético, tor- fazer com que a obra adquira uma au- nando a obra remixada uma ponte entre tonomia própria. Não é uma questão várias culturas, criando uma rede simbólica de rivalizar com as fontes originais, de interação e interconexão com outras re- mas de preservar em sua composição, presentações. Neste sentido, a leitura de princípios organizativos coerentes que uma única obra, permite trafegar por ou- não agridem seu usuário. Em outras tras obras, revisitando-as, reconhecendo-as, palavras, um filme pontuado pelo remix recontando-as, em um jogo sígnico que redi- conta uma história própria, dentro da mensiona as fronteiras. dinâmica usual que compõe um enredo As séries de animações japonesas em de um filme, ainda que imerso nos sam- destaque – Cowboy Bebop (1998) e Samu- plers de diferentes fontes. Quentin rai Champloo (2004) do diretor Shinichiro Tarantino é um cineasta especializado Watanabe – trafegam dentro dessa lógica do em remix, como pode ser observado em remix, não se apropriando de trechos de ou- Kill Bill vol. I e vol. II(2003); tras obras, mas transitando dentro do campo simbólico midiático construído e produzido 6. A efemeridade sempre foi a tônica do ao longo do século XX. remix na cultura DJ e a mesma pode ser vista em outros nichos midiáticos. São obras de arte ou produtos que não rara- 1 Um samurai sem clã mente simbolizam uma época. Mas não Shinichiro Watanabe é de uma linhagem se submetem a esta. O autor de remix de diretores de séries de animês voltados é consciente disso e se vale das tempo- para televisão que se dedicaram a temáticas ralidades que cria para compor e tecer modernas como Serial Experiments Lain, novos arranjos; Ghost in the Shell – Stand Alone Com- 7. No remix, delimitações de gêneros e plex, versão televisiva do clássico Ghost in estilos são borrados. Há uma dificul- the Shell (1995) de Mamoru Oshii baseado dade para estabelecer inclusive rótulos no mangá de Masamune Shirow. Witch que consigam limitá-las a um campo Hunter Robin, Read or Die, , Noir, ou área de atuação determinados. A Soultaker, Death Note, são alguns exemplos sua dinâmica transita entre formatos e do teor ao qual as séries trafegaram, con- padrões erigidos e impostos ao longo do solidando um entrecruzamento de vertentes tempo desestabilizando-os. referentes a cultura japonesa tanto ao que tange à tecnologia e seus desdobramentos, A hipótese principal deste artigo é de como, Inteligência Artificial, Realidade Vir- que a marca do autor de remix aparece tual quanto à religiosidade budista/taoísta, de fato em sua capacidade e habilidade abrigando ainda narrativas e estéticas en- de misturar, samplear, redefinir e re- contradas no ocidente como histórias de significar, conjugando contextos diversos em detetive ou filmes noir, mostrando inclu- um corpo que possa adquirir qualquer forma sive histórias de caça às bruxas e de vam- piros, desenvolvendo interfaces entre dife-

www.bocc.ubi.pt 4 Roberta Regalcce de Almeida rentes gêneros colocando-os como pontos balizado, entrecruzado e miscigenado refe- convergentes dentro de novas releituras. rencialmente. É com a série Cowboy Bebop (1998) que Na série, Watanabe opta por um des- Watanabe inaugura um estilo mais autoral prendimento das convenções fechadas nelas tanto em direção quanto narrativa e cons- mesmas e propõe o trânsito, o livre acesso, o trução de personagens originais, gozando, navegar por entre as representações midiáti- portanto, de uma liberdade criativa nos ru- cas sedimentadas ao longo das décadas mos da série. Com 26 episódios foi ao ar transformado-as em material disponível para primeiramente na TV Tokyo, e depois na TV se apropriar e misturar. Wowow em 1998 até 1999. Cowboy Be- Existem referências marcantes às séries bop poderia ser rotulado como ficção cien- afro-americanas da década 1970 sobre tífica, mas seria pouco preciso tal rótulo, não mafiosos, a chamada BlaxExploitation. Na pelo fato de não seguir os moldes do gênero, série o destaque à máfia recai sobre uma porém por, ao longo dos episódios, Wata- espécie de Yakuza interplanetária chamada nabe inserir e remixar diversos gêneros. “Sindicato”. Há também, homenagens a A série chama a atenção por propor de filmes de Sergio Leone e Stanley Kubrick, forma deliberada e consciente, um des- misturando as artes e suas obras célebres prendimento dos gêneros, em que a releitura indo da Pop Art ao Jazz, do Funk amer- não preserva os moldes conceituais que sem- icano à musica clássica, passando até aos pre foram utilizados como parâmetros para filmes noir da década de 1930, inserindo em situar o ambiente típico do drama, (o tempo, um mesmo contexto, religiões como o xama- o espaço e a ação específica de uma história). nismo e budismo. Existem também, diver- Mas ao invés disso, apropria-se de padrões já sas citações a estilos musicais como Blues, convencionados, contidos em obras da lite- Samba, Heavy Metal, a bandas como Aero- ratura, teatro, cinema e teledramaturgia ou smith, Queen, Stray Cats, Rolling Stones, produção seriada para TV, re-significando- Kiss e a filmes clássicos como Pierrot le Fou os em um novo ambiente midiático, sem (1965) de Jean-Luc Godard. barreiras ou fronteiras delimitadas entre os As referências ao Ocidente que Watanabe gêneros e os padrões dramáticos. traz durante os vinte e seis episódios da série Daí o trocadilho que faz de Shinichiro e sua interlocução com a cultura tanto tradi- Watanabe “um samurai sem um clã”, pois cional quanto moderna japonesa, transmite ele não segue um gênero, mas mistura to- a complexidade no qual o contexto cultural dos os gêneros, dando-lhes novas formas. japonês está imerso desde o pós-guerra até Não há uma submissão a padrões. Criando os dias de hoje. um ambiente onde tradicional e moderno Aliás, para ilustrar melhor esse contexto, se metamorfoseiam. De fato, em Cowboy vale ressaltar os anos que se seguiram ao Bebop o autor traz o remix como ponto fim da Segunda Guerra. Yoshikuni Igarashi de inflexão entre o imaginário dos produ- (2000, p. 167 e 169) discute bem esse mo- tos midiáticos e a sociedade japonesa, em mento ao relatar o choque cultural massivo uma tentativa de entender e explorar não só que o Japão sofreu logo nos primeiros anos o Japão atual, mas o contexto mundial glo- do pós-guerra, levando o país a uma mu-

www.bocc.ubi.pt O remix midiático das séries de televisão Cowboy Bebop e Samurai Champloo 5 dança radical de costumes em um curto es- palco de origem como material plausível, paço de tempo, tentando não só reconstruir ou seja “real”, em alguma obra midiática. o país, mas a imagem do mesmo perante o Essa dinâmica faz Black questionar até que mundo e, principalmente, perante o próprio ponto vivemos nossas vidas fora de um con- povo japonês. O que de certa forma, passa texto ficcional/dramático ou até que ponto pela dificuldade de vencer os traumas de a realidade está contaminada pela presença uma guerra que teve seu fim marcado com onipresente de um imaginário fílmico e até a experiência de duas bombas atômicas, para mesmo televisivo/audiovisual que faz com logo em seguida ser redirecionado pelos ini- que as fronteiras entre as mesmas, no campo migos americanos a um novo “american way simbólico e cultural, sejam menos percep- of live” deixando, cicatrizes difíceis de serem tivos? As respostas a essas perguntas vão esquecidas. além do foco desse artigo, mas a princípio, As imagens simbólicas e massivas de o efeito colateral desse processo parece ser produtos midiáticos americanos em solo exatamente o remix. nipônico vão ter seu primeiro reflexo nas ge- No remix, o leitor é instigado a descobrir rações que não sofreram diretamente as ex- os elos e os links de ligação da obra remixada periências e os efeitos da guerra, se conso- com as obras originais, como uma cultura de lidando em uma referência indiscutível para acesso a outros contextos, sobrepostos nas um novo país, mais integrado ao mundo. O camadas. A dinâmica gira em torno das in- tradicional ou tudo que remetesse ao passado terconexões simbólicas e sua disposição na tinha seu valor diminuído nesse contexto obra consumida. Como parte do procedi- (IGARASHI, ibid. p. 166), assim a idéia em mento remix, há nessas séries de animações torno de um novo recomeço tentando apa- que parecem ter seu fundamento ligado aos gar os erros do passado passava pelo crivo de aspectos narrativos e estéticos da linguagem uma aceitação de uma nova realidade agora do teatro tradicional japonês, o Kabuki. mediada pelas imagens midiáticas. O Animê parece ter absorvido muito das Para entender esse fenômeno é providen- características do teatro Kabuki como a ên- cial destacar o texto de Joel Black (2002, fase nos personagens e sua visualidade; enre- p.05) que evidencia certos traços de ex- dos ilógicos e cheios de fantasia; ação frag- periência que borram as delimitações en- mentada; o clímax da história centralizado tre realidade e ficção e se interpenetram no conflito corporal dos personagens. de tal forma que nossas experiências coti- Assim, o foco dramático desloca-se para dianas passam necessariamente pelas inter- os personagens, colocando a trama mais faces com as obras fílmicas, a ponto de ter- como um cenário ou ambiente do que como mos seus produtos como referências diretas uma força maior em que os personagens em nossas vidas. são tragados e envolvidos. Essa estética vi- Para que o efeito de realidade torne- sual valoriza as poses dos heróis e vilões, e se crível, essa ficção tumultua o imagi- em alguns casos o fundo do quadro pouco nário, impregna-se na cultura, flui pelas importa. O efeito dessa forma de narra- relações inter-subjetivas, transfigura-se em tiva é sobrelevação dos protagonistas em re- diferentes contextos, até retornar ao seu lação à trama, tornando-se o grande mo- www.bocc.ubi.pt 6 Roberta Regalcce de Almeida mento dramático o confronto com os anta- lamento de um novo e arrebatador cenário.” gonistas. (KUSANO, ibid. p. 125) Como tem sido muito usado nos animês, O que Cowboy Bebop revela é uma não há apenas uma contemplação da luta, cultura que caminha em meio ao bom- mas um movimento visual de dentro da luta. bardeio midiático em que transita, preser- Há uma supervalorização dos movimentos vando um núcleo tradicional de narrativa, cênicos do confronto, pautados por imagens que se desloca através de cenários permea- em efeitos pictóricos, com ação fragmen- dos de referências culturais diversas, apon- tada em que o tempo dramático torna-se elás- tando para uma miríade de superfícies sim- tico e belo, cadenciado em um ritmo, muitas bólicas, carregadas de sentido e história. vezes, épico, ora lírico, ora frenético, en- Na verdade, Watanabe em sua releitura volvendo o espectador, colocando-o em re- remixada mostra as características do herói lação direta com o ponto-de-vista do herói, japonês do final do século XX e começo do maximizando-o. O efeito no espectador é de século XXI e o contexto em que seu enredo êxtase, a realidade da luta não é questionada, está imerso. o tempo dramático adquire uma intensidade Esse protagonista que trafega através de que valoriza o protagonista e os antagonistas. cenários midiáticos ocidentalizados já foi A interessante surpresa é observar nas alvo e tema da arte pop de Takashi Mu- duas séries de animação a confluência de rakami, que tem como linha mestra exa- duas vertentes que parecem díspares, mas tamente esse jogo entre a junção do oci- que se integram de forma muito significativa dente e a cultura japonesa em camadas auto- dentro de uma proposta original e instigante: referenciais dispostas em superfícies cuja de um lado, a tradicionalidade da visualidade ambigüidade tem como função a denuncia perfomática e fragmentada da encenação ori- da apatia do povo japonês frente ao modo de unda do Kabuki, e de outro, a dinâmica das vida americano e aos seus produtos midiáti- miscigenações de um imaginário midiático cos, ao mesmo tempo em que é uma obra a fluídico e transmutante oriundo de remixa- ser consumida, como um produto disponível gens com outras imagens contemporâneas. no mercado. O que chama a atenção em Cowboy Murakami e Watanabe olham para o hori- Bebop, é a sua inusitada transição de zonte atual do Japão, criam e refletem por cenários/contextos culturais e midiáticos. meio de uma estética que beira ao non-sense Em uma analogia ao Kabuki, o herói trafega dos gêneros e dos padrões estabelecidos, di- pelas referências midiáticas que se transmu- ficultando a utilização de rótulos ou catego- tam em seu deslocar, isto é, em seu cam- rias. inho de samurai, os cenários mudam, e tudo Essa aparente não “fixidez” conceitual está posto para o público ver: “O surpreen- revela em que ambiente a cultura japonesa dente é que tudo ocorre sem se fechar à está imersa, uma vez que todas as artes, cortina ou apagar as luzes, inteiramente à e movimentos e produtos midiáticos estão vista do público, que assiste maravilhado a disponíveis sem que haja uma compartimen- todo o mecanismo real de mudança de cenas, tação baseada em classificações norteadas aplaudindo entusiasticamente a cada desve- pela história da arte ocidental. Tudo se

www.bocc.ubi.pt O remix midiático das séries de televisão Cowboy Bebop e Samurai Champloo 7 mostra em camadas que se sobrepõem, em poderia dizer de seu reverso: a tradiciona- superfícies achatadas como se o horizonte lização da ocidentalização. fosse uma interface de um monitor em que se Samurai Champloo é uma série que possam acessar todos os ambientes e mesclá- propõe uma releitura do Japão antigo im- los sem nenhum impedimento, sem exigên- putando a este, características do Japão mo- cias e padronizações pré-estabelecidas. derno, em dois momentos históricos, separa- Os discursos de Watanabe e de Murakami dos cronologicamente, mas linkados em um se entrecruzam na medida em que ambos mesmo contexto. despertam o olhar para o mesmo ponto, ou Watanabe já deixa clara sua intenção ao seja, a interpenetração e disseminação osten- utilizar “champloo” no título do animê, pois siva da cultura ocidental na cultura japonesa. essa palavra vem do dialeto de Okinawa, O senso comum identifica este remix como “champuruu” que quer dizer mistura. A série uma cultura da cópia, carente de originali- tem 26 episódios e conta a história de dois dade, lançando muitos animês à sombra de que cruzam todo o Japão ajudando animações da Disney, e até mesmo o ci- uma garota a achar um samurai que cheira a nema japonês sob a sombra de Hollywood. girassóis, com esse enredo inusitado começa Evidentemente, trata-se de um sintoma de a viagem dos protagonistas. cegueira histórica. O cenário é o período Edo, todavia, a Em Murakami (HEBDIGE, ibid. p.28 e série não possui nenhum compromisso com 29), o discurso presente em seus primeiros a verossimilhança. O diretor coloca vários manifestos é quase uma militância, uma elementos como o hip-hop, o grafite, o break guerrilha para despertar o povo japonês de e a capoeira brasileira. Assim, ao mesmo uma aceitação de tudo que vem de fora. Com tempo, que reconta um período histórico, Watanabe, o que impera é a ironia latente in- estiliza-o, dando novas colorações e perspec- terpretada e corporificada no protagonista da tivas à Era Tokugawa (1603-1867). A cada série, no caso de Cowboy Bebop, um herói episódio Watanabe mostra um Japão que não ronin que conjuga sobre si tudo o que se con- existe mais, embalado a scratchs de um DJ some (produtos midiáticos ocidentais) e tudo que parece samplear os contextos e os tem- que tem valor para o povo japonês (tradição pos. secular), ao mesmo tempo, depositados em Em Cowboy Bebop a ocidentalização é uma mesma superfície – face, reflexo e ima- tratada com ironia e colocada de forma os- gem. Esse humor irônico é o elemento mais tensiva. Em Samurai Champloo esta ociden- sutil durante todos os episódios de Cowboy talização é colocada de forma marginal, mar- Bebop. É sua forma de militância, sua marca cadamente como uma cultura underground, autoral que pode ser confundida como ca- que devido às características dos protago- rente de seriedade. nistas, samurais ronins sem clã ou senhor, Se em Cowboy Bebop há uma evidente acabam freqüentando esse tipo de ambiente. marca do entrelaçamento entre o imaginário A tradição, que antes estava nas entre- midiático ocidental com a cultura japonesa, linhas da narrativa da série Cowboy Bebop, em Samurai Champloo (2004) há o que se agora molda a estética das imagens que dia- loga com os ukiyo-ê da mesma forma que www.bocc.ubi.pt 8 Roberta Regalcce de Almeida

a narrativa vai dialogar com a dramaturgia Todavia, a narrativa é rica e detentora de dos teatros tradicionais japoneses, principal- uma plasticidade pictórica envolvente, com mente as histórias de autores como Jisuke grandes doses de sarcasmo e celebração a Sakurada I e Namboko Tsuruya IV, que uma época que não existe mais, recontando- se dedicaram ao estilo kizewamono (“dra- a com liberdade e ousadia, explorando temas mas domésticos realistas”), descrevendo o pertinentes ao Japão clássico e ao Japão at- mundo do crime e as camadas mais inferio- ual, em um discurso que dialoga com vários res da sociedade da cidade de Edo, aliando “Japões”. a essas temáticas o apelo a uma plasticidade Aliás, o ponto importante dessa narrativa cênica viva, extremamente inventiva e hábil são os embates e lutas ao longo desses episó- (KUSANO, 1993, p. 216 e 217). dios ao estilo teatral Chambara. O nome Assim, em Samurai Champloo, a tônica Chambara vem da junção chan-chan, bara- é a romantizada e idealizada Era Tokugawa, bara que representam o barulho da lâmina um contexto provido de uma aura que sob quando corta a carne. Os combates obede- o olhar de Watanabe se torna ordinário e cor- cem a um ritmo específico que brinca so- riqueiro, desprovido dos encantos do período bre a espera seguida de trocas de espadas clássico da história do Japão, ao trazer seus de forma violenta e rápida, acrescidos a es- protagonistas ao underground transfigurado, guinchos de sangue no cenário durante a se- meio secular/meio pop, evitando o tradi- qüência, com o intuito de maximizar a dra- cional elitizado, preferindo um submundo maticidade do confronto. Na verdade, a sincrético e metamorfoseante, incrustado em narrativa visual converge frequentemente a um contexto rígido, pautado por códigos de uma grande batalha ou um Dai-Kettô (grande conduta severos e fixos. duelo). Habilidade acrobática é uma neces- O entrecruzamento de contextos culturais sidade para o ator de Chambara. Essa graça ocorre exatamente nessa contradição entre física permite que o ator não apenas realize os macros – a Era Tokugawa – e os micros façanhas envolvendo rolar, saltar e se atirar, – o underground – mostrando tanto o sub- mas também permite que se adapte ao ambi- mundo do crime, prostituição e corrupção ente, utilizando-se paredes, mesas, cadeiras e (drama doméstico realista) da época quanto outros objetos inanimados como suportes de do grafite, hip hop, pop art. improvisação que podem ser utilizados du- Esse processo pode ser visto como uma rante a aplicação das técnicas acrobáticas. tradicionalização do imaginário simbólico dos produtos midiáticos do ocidente. Um Conclusão processo de remixagem menos ostensivo que o encontrado em Cowboy Bebop, pois ocorre O que se pode observar ao longo das duas dentro de horizontes delimitados – de lu- séries é a utilização da remixabilidade como gar, tempo e drama – coincidente e coe- método de articulação de imagens que abor- rente com o período dos xogunatos nipôni- dam, um entrecruzamento de fatos históricos cos, mas versando, com ironia, uma marginal com movimentos e linguagens artísticas di- e volátil cultura underground, que devido versas. A originalidade de Watanabe reside às misturas atemporais beiram ao non-sense. na ousadia de compor essas conexões sem

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perder a coerência de seus personagens e de um cenário perfeito para: selecionar, apro- seu discurso, que tece uma crítica a uma so- priar, recriar, recontar, resignificar e enfim ciedade bombardeada por informações e ex- remixar. posta ao excesso de produtos midiáticos. Ironicamente, as questões a respeito do fu- Assim, a proposta das séries analisadas turo do remix só podem ser respondidas com parece estar em brincar e jogar, propondo outros remixes, em contínuo. De fato, esse é para isso devorar o que está em todo lugar: um processo que não parece haver retorno. no cotidiano japonês, no imaginário secular, Cowboy Bebop e Samurai Champloo são nas filmografias estrangeiras, no jazz, blues, importantes por ilustrarem com propriedade rock and roll, hip hop associando-os ao som os rumos para os quais o audiovisual tende de um shaminsen ou à coreografia eletrizante a ir nesse começo de século XXI. As séries do Chambara advindo do Kabuki etc. O fato parecem lidar diretamente com discussões do remix aparecer como método e prática deflagradas no começo do século XX e dessas formas livres de associações leva-nos que continuamente foram retomadas durante ao ponto chave desse artigo. esse século a respeito da obra de arte e do Outro ponto importante é o caráter de valor da autoria em um contexto em que o es- jogo, brincadeira e ironia vinculada às tilo acabou perdendo sua força original, vin- remixagens. Esse aspecto revela o prazer do culada a figura do gênio ou do visionário. autor/fã que se diverte ao contar sua história Entretanto, apesar de serem remixagens, tramando-a com outras, as quais lhe são im- as duas séries carregam consigo um caráter portantes e merecem serem destacadas, ho- visionário e provocativo por apontarem uma menageadas e citadas. prática de construção de linguagem, ex- Assim, o remix é uma prática que pondo aquilo que aparenta estar nas entre- pode estar associada ao prazer do consumo linhas da cultura pop japonesa globalizada e midiático e de uma conseqüente reutilização. que de certa forma também está impregnada O objeto simbólico midiático torna-se um na cultura ocidental. produto manipulável, mostrando que aquilo Portanto, o jogo da remixagem acontece que é admirado tende a ser reciclado, isto quando uma obra aponta para suas diferentes é, coletado, separado, triturado e reformado fontes, como se esse produto remixado fosse para outros usos, em outros corpos. um mapa cheio de pistas. Assim, mais im- O remix parece tender a uma nova forma portante do que o sentido da obra são as de relações entre autor e obra, entre produto outras obras, contextos e momentos históri- consumido e obras originais, deslizando es- cos com os quais está dialogando, mostrando sas funções e definições em uma rede de in- suas referências e seus percursos depositados terfaces que parece desembocar em um pro- e linkados em camadas (layers). cesso no qual não se sabe onde começa uma De fato, o fazer poético da remixabilidade e termina outra. São fronteiras que surgem está nesse ambiente de trocas e diálogo desse e aparecem borradas, diluídas. Para uns espectador/leitor por meio do remix, pois esse é o cenário de uma crise, seja ela de esse usuário inserido nessa modernidade direitos autorais ou de identidade. Porém, líquida navega por ambientes, obras de arte, para outros, no caso Shinichiro Watanabe, é cidades, países, culturas, modas, filmes,

www.bocc.ubi.pt 10 Roberta Regalcce de Almeida séries de TV, músicas, gostos etc. A remi- KAWAMOTO, Toshihiro (2004), COW- xagem tenta corporificar essa multiplicidade BOY BEBOP, Illustrations- the wind. de fontes em uma identidade amalgamadora Tokyo: Softbank Publishing Inc. que mostra a diversidade em que o leitor está imerso (BOURRIAUD, ibid., p.48). KUSANO, Darci (1993), Os Teatros Bun- As duas séries de TV, Cowboy Bebop raku e Kabuki: Uma Visada Barroca. e Samurai Champloo, de Shinichiro Wata- São Paulo: Editora Perspectiva. nabe trafegam dentro dessa lógica do remix. LOOSER, Thomas (2006), Superflat and Produzem encontros inusitados que beiram the Layers of Image and History in ao non-sense, mas com modos operacionais 1990s Japan. Baltimore: Mechademia. inconfundíveis em seu uso e função, não sendo apenas uma colagem simbólica ou um LUYTEN, Sonia Bibe (2000) , O emaranhado de citações justapostas. Ao con- Poder dos Quadrinhos Japoneses. São trário, tudo é tecido dentro de uma coerente Paulo: Editora Hedra. rede de inter-relações em um mundo onde o remix é uma lei natural. MANOVICH, Lev (2005), Remixa- bility and Modularity. Disponível em http://www.manovich.net. Referências Acesso 12/06/2010. BAUMAN, Zygmunt (2000), Modernidade MURAKAMI, Fuminobu. Ideology and líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar narrative in modern Japanese literature. Editor. Vega Lux, 1996. BLACK, Joel (2000), The Reality Effect, NAVAS, Eduardo (2008), The Author Film Culture and the Graphic Impera- Function in Remix. Disponível tive. New York: Routledge. em http://remixtheory.net/. BOURRIAUD, Nicolas (2004), Pós- Acesso 12/06/2010. produção, como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: SALLES, Cecilia A. (2006), Redes da cri- a Martins Fontes. ação. 1 ed. Vinhedo: Editora Hori- zonte, 2006. EISENSTEIN, Sergei M. (2002), A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar SANTAELLA, Lucia (2007), Linguagens Editor. líquidas na era da modernidade. São Paulo: Paulus. — (2002), O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. SCHIMMEL, Paul (Org.) (2007), MU- RAKAMI. Tokyo/New York: Kaikai IGARASHI, Yoshikuni (2000), Bodies of Kiki Co. Ltd. Memory: narratives of war in postwar japanese culture, 1945-1970. Prince- ton: Princeton University Press.

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