UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

THIAGO MELICIO

São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã.

Rio de Janeiro 2014

Thiago Melicio

São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Rio de Janeiro 2014

M522 Melicio, Thiago. São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã / Thiago Melicio. Rio de Janeiro, 2014. 203f.

Orientador: Pedro Paulo Gastalho de Bicalho.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2014.

1. Segurança pública - Rio de Janeiro, RJ. 2. Alteridade. 3.Rio de Janeiro(RJ) – Condições sociais . 4. Cartografia. I. Bicalho, Pedro Paulo Gastalho de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.

CDD: 363.2

Thiago Benedito Livramento Melicio

São demais os perigos dessas ruas? Diversidades possíveis de cidadania em uma segurança pública cidadã

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia.

Aprovado em 20 de fevereiro de 2014

______(Pedro Paulo Bicalho, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)

______(Silvia Ramos, Doutora, Universidade Cândido Mendes - UCAM)

______(Wagner Romão, Doutor, Universidade Estadual Paulista - UNESP)

______(Anna Paula Uziel, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

______(Cristal Aragão, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)

Dedicatória

Ao meu pai Pelos encontros. Pela forma com que se relacionava com a vida. Pela sabedoria compartilhada. Pelas músicas aos finais de semana.

Pela maneira única com que reagia aos problemas. Pela maneira única com que usufruía das delícias e dos sabores das coisas.

Aos diálogos que gostaria de ter tido pessoalmente e que a força do pensamento se encarregou de possibilitar.

Seus carinhos e bons discernimentos estão sempre presentes nas conquistas e na energia que me move ao enfrentar novos obstáculos.

Os afetos e imagens que nos uniram, continuam e continuarão nos unindo nesta e nas próximas caminhadas.

Agradecimentos

A tarefa de expressar gratidão às pessoas que me acompanharam nessa etapa de vida não é simples. Há sempre aqueles pormenores e aqueles fatos que não vêm à tona, mas que tiveram significativa importância. Há sempre os espaços em branco, os vazios e o que não encontramos palavras ou que a memória aciona quando estamos em outra sintonia, em outros contextos. Agradeço, portanto, a tudo aquilo que afeta; a tudo aquilo que fere e afaga e que dá cores e texturas ao que vivo em cada instante. Agradeço a todas as pessoas de hoje e de ontem, que mostraram mundos diversos e diferentes e que abriram novas portas possíveis ao sensível e racionalizável. Pensar essa pesquisa, pensar modos de ser e estar no mundo, é pensar pelos olhos, ouvidos, bocas e mãos de todos aqueles com quem tive contato ao longo desta trajetória. Agradeço à minha família. Ao meu pai, Pedro, que carrego no coração, e à minha mãe, Ivone, que sempre foi cuidadora, zelosa e trabalhadora e de quem sou ‘fã confesso’. À minha irmã Silvia e meu cunhado Mateus que sempre alegram o ambiente e que trouxeram ao mundo a minha querida sobrinha Luisa. À minha irmã Claudia, pelos bate-papos e trocas de ideia que foram fundamentais nos momentos bons e difíceis. Aos meus grupos de pesquisa, que foram três. O primeiro no início do doutorado, quando ainda contava com a sensibilidade da professora Angela Arruda, minha primeira orientadora, das professoras Lilian Ulup e Marilena Jamur, e dos meus colegas desde os tempos de mestrado: Cristal, Ana Carolina, Rhani, Roberta, Marcela e Thiago. O segundo e definitivo grupo de pesquisa, com meu orientador Pedro Paulo Bicalho e meus colegas: Janaína, Silvia, Kely, Bruno, Roberta, Ana Paula, André, Alexandre, Flávio e Jefferson. O terceiro e temporário grupo do doutoramento sanduíche na universidade de Dundee, com meus orientadores externos, professores Fernando Fernandes e Nick Fyfe e meus colegas: Letizia, Liz, Slawek, Kay, Ashtosh e Zane. Aos meus amigos de tempos outros e que continuam a manter viva a amizade: Carlão, Marco, Carol, Couto, Giovana, Sara, Bruno, Miramaya, Juliana, Marcelle, Murilo, Vé, Mateus, Ricardo, Buias, Cauê e Alê.

Aos meus amigos de Rio, que me ajudam a desfrutar das belezas e do calor da cidade: Cristal, Emerson, Tato, Leona, Ritinha, Marcelo, Vinícius, Alexandre e Ronaldo. Sem vocês, a vida por aqui não seria possível. Aos parceiros da mandinga e da artimanha manhosa da angola: Guimes, Foguinho, Nêgo, Marco, Emerson, Murilo, Alder, Rogerinho, André, Pedrão e Marcelo. Ao pessoal da Celso Lisboa, que me proporcionou enorme aprendizado enquanto professor universitário, em especial ao Nei, Juliana, Yara, Cadu, Flaviany, Gabriel, Emmy e Narahyana. À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por ter concedido o suporte financeiro ao doutorado na UFRJ e ao doutorado sanduíche na Escócia. À diversidade de trocas e aos diferentes espaços que abriram suas portas e que proporcionaram entrevistas com pessoas em situação de rua, travestis e policiais militares. A todos aqueles que fizeram possível o intercâmbio da PMERJ na Escócia e Irlanda do Norte, como Fernando, Nick, cel. Robson, tenente-coronel Mauro e Pedro. Agradeço especialmente à Cristal, por todos os momentos que compartilhamos e que ainda iremos compartilhar na constante metamorfose da vida. Agradeço à professora Angela Arruda, que abriu as portas da UFRJ e fomentou novos ares na psicologia social. Agradeço de maneira especial ao meu orientador Pedro Paulo, que me acolheu em seu grupo, que sempre foi atento e prestativo e que me ensinou um novo jeito de observar as potências da vida, da pesquisa e do ensino acadêmico. Um agradecimento carinhoso à Leti, que compartilhou importantes e calorosos momentos nos últimos dois anos. Ao professor Fernando, por possibilitar a minha ida ao Reino Unido. Para além da orientação, forneceu imensurável suporte na chegada ao país, além de ótimos momentos de trocas e amizade. Agradeço muito também à Andrea, sempre meiga e presente. À Ritinha, que foi companhia constante na reta final, trazendo sempre situações e ideias inspiradoras. À Silvia Ignez que me forneceu amizade, bons encontros e novas possibilidades de trabalho. Não há palavras para agradecer.

A todos e a tudo com que agencio a realidade que me cerca – que os espaços em branco sejam preenchidos com cada vez mais afetos e potências.

Ao som dos acordes secos e molhados

Quem tem consciência pra se ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa a contra a mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera É envolto em tempestade, decepado Entre os dentes segura a primavera

(João Ricardo - João Apolinário)

RESUMO

MELICIO, Thiago Benedito Livramento. São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã. Rio de Janeiro, 2014. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

O presente trabalho visa problematizar o campo de segurança pública carioca no sentido de averiguar o quanto se constitui enquanto território de acolhida ou eliminação das diferentes formas de expressão psicossociais presentes na contemporaneidade. O intuito é o de averiguar como os desafios de se viver em comunidade produzem demandas relacionadas à alteridade, ora no sentido de segregação e exclusão, ora no sentido de integração e valorização da pluralidade social. Para tanto, são trazidas as ferramentas teórico-metodológicas compostas pelas conceituações de produção de subjetividade, biopoder e cartografia, discutidos, entre outros, por Deleuze, Guattari, Foucault e Rolnik. Nessa direção, são eleitos diferentes dispositivos que, ao longo dos capítulos, permitem compreender como as redes discursivas, que sustentaram e sustentam as relações entre as instâncias administrativas, aparato policial e os diferentes grupos sociais, acabam por promover a supressão da diferença ou a propagação da diversidade. Primeiramente, há a exploração das práticas relacionadas ao capoeira e à categoria do “menor”, para averiguação de como as mentalidades colonialistas e escravocratas atuam nas políticas de disciplinamento dos corpos e de gestão população. Posteriormente, são discutidas as continuidades e transformações nos paradigmas de segurança, do golpe militar de 1964 aos dias atuais, com o objetivo de dimensionar as raízes do imobilismo político no campo brasileiro da segurança. Após, são promovidas pontos de interface e estranhamento, em articulações com as experiências escocesas e norte irlandesas, resultantes do período de doutoramento sanduíche e do intercâmbio da PMERJ no Reino Unido. Por fim, a pesquisa procura apontar para novas formas de monitorar e produzir as práticas de segurança, de maneira que o encontro com o “outro” seja vivenciado, não pela hierarquia que a coloca em termos de superioridade e inferioridade, mas a partir das possibilidades de mundo que a presença de outrem apresenta.

PALAVRAS-CHAVE: Segurança Pública, Alteridade, Diversidade, Cartografia, Rio de Janeiro.

ABSTRACT

MELICIO, Thiago Benedito Livramento. São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã. Rio de Janeiro, 2014. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This research aims to problematize the Rio de Janeiro public security context, analyzing how it creates acceptance or elimination of different psychosocial expression forms. The purpose is to verify how the challenges of living in community have produced demands related to otherness, on one hand, related to segregation and exclusion and, on the other, to integration and respect of social diversity. In this sense, there has been used the theoretical and methodological concepts of subjectivity production, biopower and cartography, discussed by Deleuze, Guattari, Foucault, Rolnik and others. The chapters present different dispositives of debate that allow to understand how discursive networks have sustained the relationships between Government, police and different social groups, in terms of suppression or tolerance for diversity. Firstly, the research brings the categories of “menor” and “capoeira” to investigate how the colonialist and slavery mentality act on Brazilian policies. Secondly, discuss the continuities and changings in the public security paradigms, from 1964 to nowadays, evaluating the roots of the security political stagnation in the Brazil. In another chapter, the work articulates the security experience of Brazil, Scotland and Northern Ireland, with data from the “sandwich” doctorate and the internship of PMERJ in UK. Finally, the research seeks to point to new ways to monitor and produce security practices, based on diversity and human rights respect.

KEY- WORDS: Public Security, Otherness, Diversity, Cartography, Rio de Janeiro, .

LISTA DE SIGLAS

AEERJ - Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEDUS - Centro de Educação Sexual

CFAP - Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças

CICV - Comitê Internacional da Cruz Vermelha

CONSEG - Conferência Nacional de Segurança Pública

CREAS POP - Centro de Referência Especializado em Atendimento à Pessoal de Rua PM - Policial Militar

CRP - Conselho Regional de Psicologia

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

PMERJ - Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

PMMG - Polícia Militar de Minas Gerais

PMOP - Plano Municipal de Ordem Pública

PNUD – Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PROERD- Programa Educacional de Resistência às Drogas

PRONASCI - Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania

PSF - Programa de Saúde da Família

PSNI - Police Service of Northern Ireland

RENAESP - Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública

RUC - Royal Ulster Constabulary

SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública

SEOP - Secretaria Especial de Ordem Pública

SESEG - Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro

SIPR - Scottish Institute for Policing Research

UPP - Unidade de Polícia Pacificadora

SUMÁRIO 1 Introdução 14

2 Olhares aos perigos e potências da vida no contato com outrem: as entradas 28 da pesquisa pelo método cartográfico e a alteridade como analisador

2.1 Produção de efeitos e não totalização da realidade: segurança pública no 32 Rio de Janeiro pela habitação de um território psicossocial

2.1.1 Caixa de ferramentas teórico metodológicas: situando o olhar da pesquisa 32

2.1.2 Segurança pública enquanto território existencial 37

2.1.2.1 A rua enquanto plano de territorialização e desterritorialização: um breve 39 exercício próximo do fazer literário

2.1.3 Habitando o campo 42

2.2 Alteridade como analisador 46

2.2.1 O outro no texto acadêmico e nas relações sociais: a questão das 51 autoridades etnográficas

2.2.2 Entremeios da pesquisa: entrevistas e o refazer de direcionamentos 54

2.4 Dispositivos de cartografias: acompanhar processos por diferentes entradas 58 no campo problemático

3. O viço na produção de subjetividade e os efeitos das diferenciações em 61 resposta à insegurança: o capoeira e o menor como dispositivos de análise

3.1 A questão do viço 63

3.2 A diferença dos corpos negros nas ruas da capital colonial: o dispositivo do 65 capoeira

3.3 O espaço público e a gestão da vida pela eliminação da diferença: pensando o 70 Menor

3.4 Proclamação da coisa pública e a desqualificação dos pobres? A supressão da 81 diversidade na produção de subjetividade carioca

4 Respondendo a quais urgências? Paradigmas de segurança e a alteridade 90 na produção das políticas públicas desde a ditadura civil-militar

4.1 Doutrina nacional de segurança: o ‘outro’ como aliado ou inimigo 92

4.2 Redemocratização política e as (des)continuidades na segurança pública: 104 limites e distâncias entre a forma e a prática

4.2.1 A cidadania de quais cidadãos? A Constituição e os elementos 106 constituintes da população brasileira

4.2.2 Redemocratização e Estado Punitivo: a fratura institucional da segurança 110

4.2.3 Estagnação da Arquitetura Institucional das Polícias e a não ritualização 115 da transição paradigmática

4.3 O convite à cidadania 117

5 Do litoral atlântico às ilhas do norte: estranhamentos e aproximações com 128 as experiências escocesas e norte irlandesas

5.1 Escócia 133

5.1.1 Polícia de proximidade e o respeito à igualdade e diversidade social 135

5.1.2 Commonwealth Games in Glasgow 138

5.2 Irlanda do Norte 140

5.2.1 Patten Report e a Mudança de RUC para a PSNI: A Reforma Policial 148 Norte Irlandesa

5.2.2 Mudanças Internas à Corporação 151

5.2.3 Mudanças Externas à Corporação 154

5.2.4 Dificuldades Enfrentadas 157

6 Aproximando do bicho de sete cabeças: alteridade pela diferença e 161 diversidade

6.1 Lugares que a polícia ocupa nos processos de transformação 167

6.1.1 Barreiras e comunicações culturais entre polícia e sociedade 170

6.2 A diferença pela diversidade: acompanhando processos 175

7 Conclusões 181

Referências Bibliográficas

ANEXO I - Fonte das figuras utilizadas

ANEXO II - Tabela das entrevistas realizadas

14

1 INTRODUÇÃO

Sendo a tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição de cartografias que se fazem necessárias.

O cartógrafo é antes de tudo um antropófago. (ROLNIK, 1989, p.15-16, grifo da autora)

Mergulhar nas intensidades do tempo em que se vive e, atento às linguagens que encontra, construir paisagens psicossociais é uma tarefa que implicará, neste trabalho, a antropofagia de elementos da cidade. Uma cidade carioca, capital fluminense, de sotaques e gírias do subúrbio e do centro, de tipos afeitos à Lapa, ao quiosque da Vieira Souto em Ipanema, ao samba no parque de Madureira. Uma cidade em que uns vão aos estádios do Maracanã, Engenhão e São Januário, outros vão às praias da Barra, de Ramos, de Grumari ou do Leblon; aos bailes funk das casas de show ou de comunidades, aos bares do Baixo Gávea, ao chorinho em Santa Teresa ou ao batuque da Gamboa. Uma cidade com encostas, de relevo montanhoso muitas vezes habitado de uma maneira distinta a sua região plana, diferenciação comumente mencionada como de ‘morro’ e ‘asfalto’. Cidade do São Sebastião do Rio de Janeiro, que possui a estátua do Cristo Redentor ao alto do morro do Corcovado, o Pão de Açúcar no bairro da Urca, bem como a avenida Brasil ligando o centro à zona oeste e Baixada, recortada pela linha vermelha que pode levar à ilha do Fundão, ao Aeroporto Antônio Carlos Jobim ou à roda de capoeira em Caxias. Rio de muitas caras, que podem ser vistas, por exemplo, do aterro do Flamengo ao Méier, passando pela enseada de Botafogo, túnel Santa Bárbara, Sapucaí e rua Vinte e Quatro de Maio. Rio de macumba, cultos evangélicos e missas católicas; de locais que se acessam pelo trem da Supervia, como os que vão para Santa Cruz, Deodoro ou Japeri; de metrô como os que ligam a praça General Osório à Tijuca ou Botafogo à Pavuna; ou das linhas de ônibus que vão para o Grajaú, Vila Isabel, São Conrado e outros. Percorrer o universo do Rio de Janeiro diz sobre percorrer um universo brasileiro, que por sua vez também é retroalimentado pelo que se vê sobre o Rio nas novelas televisivas, nas notícias dos telejornais e nos eventos esportivos. O Rio é também uma cidade com cerca de 7 milhões de habitantes e como tal carrega elementos característicos de um grande centro urbano. As pessoas andam em meio a placas de sinalização, a faixas de prioridade aos pedestres, aos estacionamentos para idosos e pessoas com necessidades especiais, a ciclovias que cortam - uma ínfima parte é verdade - seus bairros. Constantemente observam-se sinais de 15

trânsito, cores que dizem quando prosseguir, quando parar e quando ficar atento para a mudança de um para outro. Sinais, assim, do que se coloca como ordenamento urbano. Viver (n)o Rio remete aos elementos acima e a uma infinidade de outros tantos. Participar desse universo diz sobre integrar diferentes grupos sociais, frequentar diferentes lugares, se locomover por diferentes meios de transportes públicos e privados, orientar a conduta por meio de diversos sinais de ordem. Viver (n)o Rio remete ao viver de diferentes significações, diferentes sentidos, diferentes simbologias, diferentes estímulos, diferentes práticas e posturas, que, na sua diversidade, se interconectarão em vias públicas mais ou menos ordenadas. Os diferentes e a diferença. Não é despropositada a repetição desses termos nos parágrafos anteriores. Viver traz incessantemente a questão da diferença. As pessoas são diversas, como os são os locais em que se reúnem e as posturas que atualizam em seus comportamentos. Todavia, como dito, há uma gestão dessas diferentes formas de vida, há um ordenamento das coisas e dos modos de ser. A diversidade humana é recortada por instituições regulatórias. Assim como há sinais que ordenam a cidade, que informam onde se deve andar, em que momento se deve prosseguir o trajeto e em que momento o mesmo deve parar, há nos modos de ser e estar no mundo uma regulação que informa o que se pode ser, o que não se pode e o que é indiferente. Se há placas indicativas de onde se estacionar, de qual vaga é para o cidadão comum e qual vaga é para idosos, há também textos em formas de lei, sintomas comportamentais em forma de diagnósticos médicos, enfim, toda uma rede discursiva e prática que indicam qual relação de poder irá se instaurar conforme a diferença que pessoa ou grupo apresenta. Quais efeitos as diferenças entre os seres produzem? Como se produz o saber que informa essas diferenciações? Para responder a tais questões pode-se trazer uma concepção moderna de sociedade, desenvolvida desde os ideais da revolução francesa. “A igualdade é o alicerce de toda sociedade democrática comprometida com a justiça e os direitos humanos” (CICV, 2005, p.314). Todavia, mais do que a igualdade, democracia, justiça e direitos humanos, cabe observar justamente o grau de comprometimento da sociedade com esses elementos. Envolvimento que será não apenas do braço judiciário do Estado, mas de diferentes esferas da população, o que inclui as mais diversas produções discursivas e práticas sociais, entre elas a academia universitária e o saber científico. Assim, é neste entremeio que a pesquisa teve seu início. Uma reflexão que envolve as diferenças presentes nos modos de ser e estar no mundo; a gestão destas diferenças em 16

termos objetivos e de produção de subjetividade; e uma análise de implicação pessoal e do próprio fazer acadêmico, que é parte constituinte da produção de realidade e, por isso, não se isenta das regulações de poder. A diferença que chamou atenção, inicialmente, do presente trabalho apresentou-se a partir de encontros com um personagem específico, um ator social que responde pela classe de profissionais de segurança pública, o policial militar. Ela ocorreu em uma experiência profissional, na qual, morando no Rio, eu me deslocava a São Paulo para reuniões da equipe de pesquisa, uma vez que o Instituto contratante é sediado na cidade paulistana, e, posteriormente, realizava o trabalho de campo na capital mineira. Experiência profissional, portanto, que também representava o contato com os três estados em que morei, já que sou paulista e fiz minha graduação em psicologia em Minas Gerais, até me mudar ao Rio, onde me dediquei à pós-graduação. A experiência profissional em questão promoveu a emergência de variados aspectos afetivos e profissionais. Por um lado revisitava o ritmo, o sotaque e as comidas, tanto de São Paulo como de Minas e, por outro, colocava em análise uma discussão que havia amadurecido nos estudos de mestrado. As autoridades etnográficas - que refletem sobre o gênero de escrita e sobre o modo como outrem e o grupo estudado aparecem no texto acadêmico - puderam novamente ser instrumentalizadas. Trazendo a questão da polifonia, da problematização da presença do pesquisador na produção de dados no campo, bem como da não generalização e homogeneização de outrem e seu grupo, a discussão etnográfica fez flexibilizar os processos produtores da alteridade. No caso, o ‘outro’ em questão era talvez um dos mais difíceis de se romper com a sua representação cristalizada e associada a adjetivos negativos; afinal, caberia diversidade, não generalização e homogeneidade, ao policial militar? O encontro disparador do trabalho que se segue ocorreu em fevereiro de 2010, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Lá desembarquei e lá uma paisagem se territorializou: uma paisagem com policiais, viaturas, coronéis, praças, prédios, medos, receios, papéis, condutas, enfim, uma paisagem com efeitos. Dizer sobre esse tipo de território, sobre os processos aqui chamados de territorialização, é dizer sobre uma realidade em produção. Uma paisagem que se territorializa não é uma paisagem estática que deciframos com um olhar de lupa, como que procurando desvelar seus detalhes. Isso seria dizer que a paisagem já existe por si só, previamente dada, e que cabe ao olhar humano dotá-la de sentidos. Uma paisagem que se territorializa também não é como a foto jornalística que carrega consigo uma legenda sobre a sua substância. Isso seria considerar que há apenas um único modo de se entender e se relacionar com esta 17

paisagem. O que está em questão ao trazer a ideia de paisagens que se territorializam é a intenção de sublinhar o caráter processual de todo o encontro do homem com o que está a sua volta. O mundo com que o homem se relaciona é um mundo em constante e diversa produção. Ao mesmo tempo em que construímos o mundo partindo de nossas trajetórias pessoais, somos construídos pelo mundo na força de suas intensidades históricas e sociais, como se estivéssemos no linear da imagem ao lado, em que o contorno do 1 peixe é o contorno da ave: encontros. Figura 1: Sky and Water de M. C. Escher. Nos encontros com as pessoas e outros seres animados ou inanimados formamos as paisagens, que serão, assim, como territórios psicossociais, uma vez que nos vemos ocupando um local com certos sentidos e com certas regulações de práticas. Territórios enquanto conjuntos de componentes e intensidades em que vão se desembocar pragmaticamente toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais (GUATTARI, ROLNIK, 2005). Territórios, tal como são colocados por Deleuze e Guattari (1997), desenhos, projetos e representações que dão forma ao mundo, que fazem com que coisas e seres se constituam em realidades provisórias, que a todo momento podem se ‘desterritorializar’, num movimento que é justamente o de perda de sentido de certas matérias, a própria linha de fuga, o fluxo que desmancha seu desenho. A mencionada paisagem psicossocial em Belo Horizonte se iniciou em uma demanda de pesquisa pelo Instituto Via Pública, visando analisar o que designavam como “Impactos do Programa de Integração das Normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e Princípios Humanitários Aplicáveis à Função Policial do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG)”. Uma demanda, dessa maneira, que implicou recorrentes encontros com policiais, com a academia da polícia da PMMG, bem como com suas matrizes curriculares, suas doutrinas, ensinos, treinamentos e sistemas de controle.

1 No intuito de se seguir a proposta da cartografia psicossocial, tal como exposta na abertura da introdução, a tese utilizará trechos de diário de campo, pinturas, letras de música, fotos e outras linguagens para compor de maneira heterogênea a sua produção, no sentido de agregar conteúdos ao que está sendo exposto, como complementação explicativa ou ilustração contextual. Em ANEXO I encontram-se as fontes de todas as figuras. 18

Nesse mundo que se materializou em 10 dias na capital mineira, ganharam cores mais intensas algumas situações em que territórios mais sólidos, mais definidos e individualizados foram momentaneamente desestabilizados. Afinal, no que posso chamar de trajetória pessoal, esse ‘outro’, o policial, sempre tinha sido um sujeito de rosto indefinido, ou mesmo um personagem que poderia possuir diversos rostos, mas que dentro de sua diversidade era homogêneo. Até então o policial havia sido mais ou menos circunscrito dentro de qualidades que geravam algo próximo da aversão. Aversão num sentido preciso de produção de um distanciamento, que acabava por provocar falas como “não gosto de policial”, posturas como “se avisto um policial, logo me desloco para que não permaneça no mesmo ambiente em que estou”, e vontades ou não vontades como “não tenho interesse de trocar coisas com policial, independente de que coisa for”2. Nos encontros com os homens e outros seres um mundo se produz, ou seja, é no encontro com os outros e a partir desse encontro que a realidade se constrói, que possuímos os meios pelos quais entendemos o que nos rodeia. Nessa viagem à capital mineira, foram as diferentes formas com que a presença do policial se manifestou na produção de mundos, que despertaram minha atenção. Afinal, quais mundos poderiam emergir no encontro com esse ‘outro’, dito policial? Na primeira aproximação à alteridade destacam-se os efeitos da presença de outrem na produção de realidade. Outrem, como diz Deleuze (2007) em sua antropofagia de Tournier, assegura as margens e transições no mundo, relativiza o não sabido, o não percebido: “pois outrem para mim introduz o signo do não-percebido no que eu percebo, determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (DELEUZE, 2007, p.315). Numa perspectiva positiva, outrem é quem distrai o que está estável na esfera individuada, é quem nos desconserta sem cessar, permitindo a construção de mundos que se tornam possíveis na sua presença. A alteridade enquanto diferenciação da constituição dos sujeitos é o que permite a produção de novos modos de ser e de vida, que escapariam a um sujeito se outrem não fosse também um componente da realidade que se constrói. Outrem e sua diferença emergem como potencialidades de desestabilização, de ruptura de territórios que são comuns e estáveis. Contudo, há um alerta nesta relação, a de que outrem não é um indivíduo que se relaciona com um ‘eu’, mas sim uma estrutura do possível. Possível, este, não como uma

2 A introdução informa de uma experiência profissional em que a alteridade foi problematizada a partir do contato com os policiais. O intuito não é realizar uma ode ao policial, mas mostrar como a transformação da lógica atuante em sua alteridade, inicialmente cristalizada e homogênea e posteriormente aberta a novas configurações, pode ser trabalhada em relação a outros grupos e a como a sociedade relaciona-se com esses grupos. 19

categoria abstrata do que não existe, mas como mundo expresso, que existe exatamente naquilo que o exprime: Mas outrem não é nem um objeto no campo de minha percepção, nem um sujeito que me percebe: é, em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz. Que esta estrutura seja efetuada por personagens reais, por sujeitos variáveis, eu para vós e vós para mim, não impede que ela preexista como condição de organização em geral aos termos que a atualizam em cada campo perceptivo organizado – o vosso, o meu. (DELEUZE, 2007, p.316)

A alteridade não responde unicamente ao resultado da relação entre eu e outrem, mas, sim, à própria produção de ambos. Sujeitos que só se tornam sujeitos pela e na relação entre si. A realidade em que percebo a mim enquanto pesquisador e a outrem enquanto policial é uma realidade em que nossa constituição se encontra diferenciada nesses termos. Nesse processo pode haver tanto receios, incertezas que impendem o novo, como aberturas, passagens para novas intensidades. A realidade em que outrem está presente pode revelar um mundo não visitado, com objetos, pensamentos e formas não costumeiros. O processo que ocorreu durante a pesquisa em Belo Horizonte diz sobre uma mudança de postura. Até então não havia espaço para o não-percebido. O universo de objetos situados à margem que poderiam obter emergência não deixava sua condição virtual, pois as produções estavam por demais cristalizadas. Ao serem formadas paisagens em que, entre outros elementos, se desenhavam o policial e 'eu', o tempo sempre se mostrava nublado. Esse outro era ali um objeto real e essa realidade era sempre uma realidade a ser evitada – “o policial é, salvo diferenças que não interessam nessa lógica que atualizo, sempre igual e esse igual corresponde a algo que me gera aversão”. Nesse ponto alguns poderiam perguntar: mas qual a origem disso, qual o porquê dessa aversão ao policial? Há um ‘evento traumático’ ou algum centro, um acontecimento difusor que se pode traçar para decifrar a causa disso? Desde já se coloca que este não é o esforço desse trabalho. Não há uma procura por origens e ou por uma fundação essencial; não há o interesse em revelar intencionalidades que buscam um fim previamente visado, ou a decifração de superestruturas dominantes, que do alto de seu poder exercem sua força como fatos sociais. Nesse sentido, coloca-se tanto a função disparadora, como a função analisadora destas paisagens materializadas em Belo Horizonte. O presente trabalho se realiza por meio de uma postura de pesquisa que, em sua antropofagia cartográfica, metaboliza Foucault e sua preocupação com a raridade. Um Foucault que possui em sua obra a seguinte proposição, como nos diz Veyne (1992, p.151): 20

“os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente”. O policial sob a imagem de algo aversivo, de algo a ser evitado, não é algo que exista a não ser pela sua constante (re)atualização. Esse policial é a expressão manifesta de um estranho que só conhecia pelas imagens de um olhar duro, que se arranja e se repete em uma organização do campo perceptivo em que a novidade é subtraída; pois se caso uma novidade seja emergente, se caso um novo mundo com o policial se apresente, essa novidade é prontamente disciplinada, classificada e extraída, como um lixo a ser reciclado. Nesse processo, a novidade, o outro mundo possível, não ganha viço e perde potência para se expressar. E é nesse jogo que as funções disparadora e analisadora dessas paisagens apresentadas se atravessam. Como foi dito, a paisagem-movimento se iniciou sob a demanda de uma pesquisa e, dentro desta configuração, a produção do pesquisador também se fez presente e nela fizeram eco contribuições do campo da antropologia, como as discussões da autoridade etnográfica e da polifonia do campo. Nesse arranjo, os pesquisadores devorados foram, entre outros, Abu-Lughod (2003), André Brandão (2003), Márcio Goldman (2006), Janice Caiafa (2007) e James Clifford (2008). A preocupação é a de lidar com a diversidade do campo e de outrem, sem que sejam hipertrofiados por um possível olhar totalizante do pesquisador, de maneira que fiquem atentos ao gap historicamente presente entre o discurso profissional pleno de generalizações e as linguagens da vida cotidiana. Faz-se então necessária uma abertura do pesquisador à novidade, pois como dizem Deleuze e Guattari “nada muda se nos afastamos levando nossa bíblia” (apud CAIAFA, 2007, p.149). Há assim duas maneiras de se debruçar sobre a problemática brevemente apresentada, disparadas principalmente pela genealogia em Foucault (2009) e pela cartografia em Rolnik (1989). Uma é perceber quais as condições históricas e sociais que permitem certos arranjos ganharem consistência e terem como um de seus efeitos possíveis a cristalização do personagem policial. Outra é direcionar-se para as aberturas, para as linhas de fuga, dedicando-se ao que ganha emergência em uma postura que dá língua aos afetos que pedem passagem. Voltando à estadia em Belo Horizonte é trazido à cena o primeiro dia de trabalho, em que me encaminhei à academia da PMMG. Logo na entrada pergunto ao policial onde era a sala do comandante e ele, com um sotaque mineiro que me fez lembrar saudosamente dos ‘bons tempos de faculdade’ em Uberlândia, me indica a direção. O estranhamento nessa situação vem de muitos lados, já que vou na condição de novato nos temas de segurança 21

pública, de direitos humanos e do funcionamento de uma corporação policial, ao mesmo tempo em que algo que sempre me foi aversivo me trouxe uma lembrança tão reconfortante. O novo só não ganha mais intensidade em função da força da ansiedade que me toma, que acaba por dar o tom das paisagens que se formam. Andando pela academia de polícia refleti sobre os policiais que tinham se formado ali e sobre alguns dos pensamentos que surgiram espontaneamente: “Quantos deles se tornaram corruptos?”; “Quantos mataram em situações em que poderiam não ter matado?”. Então, num esforço racional, tratei de pensar outras coisas, como nas possibilidades em que policiais tiveram outras práticas, mais potentes enquanto produção de vida. Mas vi que mais fácil, ou menos difícil, era não pensar em nada a não ser em como chegar à sala do comandante. “Deixe-se levar”, me diziam os antropólogos que havia devorado para esta demanda. Até que cheguei à sala do comandante, onde me apresentei a um capitão que ali estava. Logo este foi informar ao comandante de minha chegada e, na sequência, convidou-me para entrar. Neste momento deixo de cartografar os acontecimentos na forma de um tempo sucessivo. A paisagem deixa de ser a de um diário de campo cronometrado para dizer mais de uma potência que se deu no conjunto de encontros. Durante a estadia em Belo Horizonte formaram-se relevos - “feito de vozes reminiscentes das mais variadas origens, sintonias e estilos, misturando-se e compondo-se” (ROLNIK, 1989, p.16) e estes relevos foram a de um novo mundo possível com a presença dos policiais. Estes, antes homogêneos, foram ganhando formas difusas, plurais, diversas, ou mais precisamente, foram ganhando potências. Potências que me foram trazidas por meio das entrevistas que realizei com eles; pelas falas que enfatizavam os movimentos de greves em 1997; pelos questionamentos sobre o que podem ser os direitos humanos na polícia militar; e por discussões sobre encontros e práticas conjuntas realizadas pela polícia junto a pessoas em situação de rua e grupos de travestis. O policial deixou de ser um objeto dado e passou a ser um objeto de novos possíveis e isso se tornou visível em uma noite que saí com amigos que tenho na cidade. Ao avistarmos uma viatura da PM, ao contrário de alguns que disseram “ih, lá vem os pardais”, em função do uniforme marrom da PM mineira, eu não disse nada. E não disse nada porque senti um vazio. Não um vazio de intensidades, pois havia um fervilhão de afetividade, mas um momentâneo e inesperado vazio de representações sobre os policiais – ao avistá-los chegando na viatura me ocorreu: “o que vem lá?”. Esse momento de contraste, de um vazio momentâneo de representações junto às sensações afetivas cheias de intensidades, me perturbou, desconcertou e impulsionou para algo que é novo. O que ocorreu permitiu experimentar até as últimas consequências os alertas de autores antropólogos que havia lido; 22

afinal, a preocupação com a não generalização sobre os sujeitos e grupos, com a postura ética de se mostrar aberto às novidades, com o rompimento com qualquer nível de estereotipização podem por muitas vezes ficar apenas na falácia. O pesquisador não se encontra fora do campo de pesquisa, mas, sim, o compõe, o afeta e é por ele afetado. No encontro com a viatura e policiais, aquele movimento rotineiro, habitual, de manutenção “daquelas velhas opiniões formadas sobre tudo” não se reatualizou. Aquela forma de se relacionar com os policiais com a sensação de aversão aos mesmos não aconteceu. O que se fez presente foi uma metamorfose, ambulante como a da música de Raul Seixas, e estimulante no sentido de organizar este texto em cima da potência que a alteridade aberta à diversidade pode trazer. Este movimento levou às primeiras questões desta pesquisa. Se os fatos humanos são raros por haver outras inúmeras possibilidades em torno deles, quais outros possíveis podem emergir para se pensar o policial e a polícia? Se o que é pode ser diferente, como diz Veyne, como colocar num sentido mais amplo as potências das paisagens configuradas nos contatos com os policiais militares, para se discutir outras maneiras de realização da segurança pública? Como dispor os elementos de linguagens em cartografias que se fazem necessárias para dar visibilidade a lógicas presentes neste campo? Como conferir emergência tanto às práticas que disciplinam, classificam e reduzem as relações em que o policial está presente em termos de ‘outro’ e de ‘eu’ como objetos dados, quanto pensar as potencialidades e as linhas de fuga? Como problematizar essa mesma lógica com outros grupos que sejam pertinentes à discussão em torno da segurança pública? A partir desses processos, o trabalho foi organizado de maneira que contextos pertinentes ao campo da segurança pública fossem convocados e permitissem observar a configuração social em torno da alteridade, ou seja, como a sociedade e, nela, os profissionais de segurança elegiam critérios e territorializavam práticas por meio da diferenciação entre grupos. Procurou-se, então, eleger dispositivos de pesquisa, que na concepção foucaultiana são redes que unem os elementos de um campo e permitem que por meio deles sejam analisados os saberes e as relações de poderes que as compõem (FOUCAULT, 2008). Tendo a alteridade como analisador, investiu-se na discussão de diferentes sistemas lógicos que permitem cartografar psicossocialmente a segurança pública e, portanto, acompanhar os processos que nela se manifestam. Cada capítulo abaixo, assim, se debruça sobre uma localização histórica e sobre como a diversidade e as diferenças entre os grupos se atualizaram em seu contexto. O intento é o de observar o quanto os saberes, discursos e práticas circulantes promoveram tanto medidas de segregação e exclusão em função da 23

disposição hierárquica da alteridade, como a tolerância e o respeito à isonomia de direitos e dignidade humana em contexto mais inclusivo e acolhedor da diferença. No tocante aos territórios em que os dispositivos de pesquisa farão ver as discussões, destaca-se que o evento disparador vem da experiência em Minas, mas que o trabalho procurou sua fertilidade em solo fluminense. O estado do Rio de Janeiro e, em especial, sua capital são, sem dúvida, um dos que mais têm chamado atenção nas discussões da área. Os modelos inspirados na política colombiana que acarretam nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), as medidas de internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua e de uso de drogas consideradas ilícitas, os jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 que irá sediar são alguns dos elementos que conferem ao contexto carioca a proficuidade em se problematizar a segurança pública. De maneira geral, um duplo processo ganha emergência. O evento que motivou a realização da pesquisa foi o desconcerto que o contato com policiais causou às ideias que sempre havia insistido em manter – associação inerente dos policiais, em especial os militares3, a qualidades negativas. Assim, a desestabilização causada pela flexibilização da alteridade impulsionou a discussão tanto da segurança pública, como dos processos de diferenciações entre os sujeitos que nela se sustentam. Pensar novas realidades possíveis com a presença dos policiais leva ao pensamento de novas formas possíveis de segurança pública; ao mesmo tempo, conferir novas potencialidades à alteridade conduz a novas problematizações em torno das diferenciações entre os sujeitos, em que os saberes convocados pela segurança pública se atualizam. A pesquisa, portanto, tem como seu campo problemático as práticas de segurança pública carioca em diferentes localizações históricas, com articulações e ponderações sobre outras experiências, como a escocesa e norte irlandesa, que serão referenciadas posteriormente. Nesta problematização, o que se procura é a apreensão da produção de realidade em torno das diferenciações constitutivas dos sujeitos e a reflexão sobre quais efeitos regulamentados de poder se efetuam em tais diferenciações e quais saberes os sustentam. Para tanto, utiliza-se da metodologia da cartografia, tal qual desenvolvida por Rolnik (1989) e por Passos, Kastrup e Escóssia (2009), no intuito de construir paisagens psicossociais em que a alteridade se torne processo privilegiado para se observar as transformações paradigmáticas da segurança pública e sua intersecção com a diversidade e a

3 O destaque conferido ao policial militar refere-se à visibilidade em função do policiamento ostensivo, repressivo e de seu constante fardamento. Esses elementos os diferenciam de outras Forças Auxiliares, como a polícia civil, eventualmente acarretando a centralização de representações negativas da polícia em sua classe. 24

diferença. A pergunta norteadora, que constitui o fio condutor de todos os dispositivos trabalhados pelos capítulos, é como o exercício e a promoção da cidadania em segurança pública relaciona-se com a acolhida ou não da diversidade pelos espaços e práticas sociais. Nesse sentido, posteriormente à introdução, no capítulo de número 02, a pesquisa procura refletir sobre seu campo problemático e seus principais referenciais conceituais. Ocorre a primeira aproximação à segurança pública, ligando-a a potência e dificuldade de ser viver em sociedade. O verso de Vinícius de Moraes, “são demais os perigos dessa vida”, é trazido em torno da problemática sobre a necessidade da ordem e da proteção ao que produz incertezas e imputa riscos às situações em que vivemos. Realiza-se uma discussão em torno de conceituações de Foucault, Guattari, Deleuze e Rolnik, entre outros, de modo que seja apresentada a caixa de ferramentas teórico-metodológicas da pesquisa (FOUCAULT, 2008), delimitando, como nesta introdução: o campo problemático da segurança enquanto territórios existenciais que produzem efeitos regulamentados de poder, a metodologia pela via da cartografia psicossocial e a aposta da alteridade enquanto analisador que sustenta todas as discussões que se seguem. Partindo da análise das implicações do pesquisador na produção da pesquisa e da ênfase da cartografia no acompanhamento de processos, o capítulo aborda a questão das autoridades etnográficas, no sentido trazer a problematização da alteridade e das vivacidades do outro também para a escrita acadêmica. O capítulo, assim, procura demonstrar, de maneira sucinta, como a pesquisa se desenvolveu até assumir o formato atual. Busca-se apresentar as idas e vindas com que o trabalho se deparou, passando por anseios anteriores, como o de abordar a questão dos grupos em situação de vulnerabilidade e da relação entre policiais militares, travestis e pessoas em situação de rua. Utiliza-se, inclusive, de um exercício próximo ao fazer literário, em que a rua torna-se o objeto e a provedora de análise, trazendo a ideia da realidade enquanto produção. O exercício procura de maneira livre dar o tom da discussão da pesquisa, dando luz ao entendimento de que não há elementos isolados que num tempo específico se relacionam, mas sim elementos que só podem ser entendidos enquanto em ou na relação. Após a delimitação do campo e das entradas da pesquisa, os capítulos posteriores exploram diferentes dispositivos, que visam construir um conjunto coeso em torno dos processos históricos deflagrados no campo da segurança pública carioca, mantendo-se a preocupação central de discutir, por um lado, as formas de segregação e exclusão promovidas pela ênfase hierárquica da alteridade e, por outro, a possibilidade de promoção da cidadania e dos direitos humanos por meio de práticas que efetivem o contato entre diferentes e sejam 25

acolhedoras e tolerantes à diversidade. Objetiva-se ir ao encontro da discussão de Luiz Eduardo Soares (2013) sobre as raízes do imobilismo político na segurança pública, enfatizando sobre como as formas de construção do “outro” pode potencializar suas transformações paradigmáticas. Dessa maneira, são elencados alguns dos atravessamos presentes na sociedade da capital fluminense desde a chegada do primeiro aparato policial, em 1808, que permitem acompanhar o processo produtor de mentalidades ainda atuantes, bem como as nuances que estabelecem rotas de fuga e dão vazão à novidade e singularidade. São trazidas, também, articulações e interfaces com a experiência escocesa e norte irlandesa, provenientes do período de doutoramento sanduíche, para ampliação e criação de contrapontos para a discussão. Assim, no capítulo 03, intenta-se a cartografia de alguns processos atuantes nos Novecentos e na sua passagem para o século XX, lançando luz a como certas formas de gestão de vida capturam a diferença e a esquadrinham entre o que é aceito, punível e indiferente, fazendo com que as práticas de proteção e produção da segurança sejam pautadas pelo medo e pela segregação e exclusão de grupos e práticas específicas. Utilizando-se da figura do “capoeira” e do “menor” como dispositivo para fazer ver e falar as produções sociais, a busca é pelos modos de como a sociedade informou o espaço público em uma leitura que enfatiza o risco e se retroalimenta pela sensação de insegurança. Discute-se como os referenciais colonialistas e escravagistas acabam por configurar uma relação de superioridade e inferioridade entre grupos que sustentam, entre outras, as teorias eugênicas e higienistas, bem como a Doutrina da Situação Irregular e o Código do Menor. Observa-se como as distinções jurídicas entre criança e menor, entre o contexto moral-familiar regular e irregular são transpostos para a sociedade, com implicações na discricionariedade policial e no acesso ao direito. No capítulo posterior, a procura é pelas urgências às quais as políticas públicas de segurança têm respondido desde o Regime Civil-Militar. O intuito é realizar um percurso em três localizações históricas interconectadas e articuladas, que envolvem: o governo militar entre 1964 e 1985 e a política de segurança nacional; o processo de redemocratização iniciado na década de 80 e a política de segurança pública; e algumas questões emergentes no século XXI, com ênfase ao programa nacional de segurança pública com cidadania. Busca-se discutir as continuidades e rupturas paradigmáticas entre os períodos, observando os diferentes posicionamentos e relações entre Estado, Forças Armadas e Auxiliares e cidadãos nas práticas de segurança. É colocado em análise as proximidades e distanciamento que o governo, e também a polícia, tem estabelecido com as populações mais locais e em comunidades, 26

acarretando em baixa capilarização dos processos decisórios e de planejamento, bem como esvaziamento de processos participativos que aproximam a população em geral das políticas públicas. O capítulo 05, por sua vez, versa sobre os dados produzidos a partir do doutoramento sanduíche realizado na Universidade de Dundee, na Escócia-Reino Unido. Com sete meses de duração, o período permitiu a imersão no contexto de segurança pública da Escócia e da Irlanda do Norte. Assim, o interesse foi o de trazer elementos das reformas policiais escocesas e, sobretudo, norte irlandesa para ampliar a discussão do contexto carioca e observar como outros países responderam às demandas da segurança pública. Destacam-se os processos de profundas transformações ocorridos na Irlanda do Norte, que atravessam de sobremaneira os pontos de discussão da pesquisa: o rompimento do imobilismo político na área de segurança a partir do reconhecimento e acolhimento da diversidade e de uma ritualização mais evidente da passagem entre um paradigma ao outro. O capítulo também se utiliza de informações produzidas pelo intercâmbio da polícia militar do estado do Rio de Janeiro, realizado no primeiro semestre de 2013, na Escócia e Irlanda do Norte. Tal intercâmbio surgiu do network criado com as universidades de Dundee e de Ulster, por solicitação da PMERJ pelo coronel Robson e pela iniciativa e articulação desta pesquisa, sendo já, a priori, um dos frutos deste trabalho e da relação anteriormente estabelecida entre Fernando Lannes, Pedro Bicalho e Nicholas Fyfe. Posterior à articulação com o Reino Unido, há o capítulo final, em que se procura uma revisitação aos temas precedentes, no sentido de ver como a intensificação do risco e do medo acaba por acirrar elementos comuns da sociedade e amplificar o distanciamento e a alteridade radical entre os grupos sociais. Observa-se como a promoção de uma segurança cidadã que valorize e integre a diversidade, passa também pela valorização e maior integração da própria polícia à sociedade, flexibilizando suas barreiras institucionais e fazendo emergir suas multiplicidades internas. Defende-se, assim, a formação de mecanismos efetivos que permitam o contato entre diferentes, deslocando o monitoramento das políticas públicas da ênfase aos resultados para a ênfase aos seus processos constituintes, tendo a fomentação de travessias e maior porosidade cultural como referência. Por fim, a pesquisa procura apontar para novas formas de monitorar e produzir as práticas de segurança, de maneira que o encontro com o “outro” seja vivenciado não pela hierarquia que a coloca em termos de superioridade e inferioridade, mas a partir das possibilidades de mundo que a presença de outrem apresenta. Possibilidades que abrem 27

caminhos para uma nova configuração, para uma nova forma de encontro, para uma nova forma poética, que diz dos corpos, dos corações e da vida.

Figura 2: Foto da Rua do Catete, Rio de Janeiro, 15/01/2014.

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2 OLHARES AOS PERIGOS E POTÊNCIAS DA VIDA NO CONTATO COM OUTREM: AS ENTRADAS DA PESQUISA PELO MÉTODO CARTOGRÁFICO E A ALTERIDADE COMO ANALISADOR

(...) Tudo isto diz respeito à relação com o outro, e é por isso que a chegada de um “estranho” estremece a segurança cotidiana. O estranho seria a síntese da “sujeira” automática, autolocomotora e autocondutora. É por isso que as sociedades lutam por classificar, separar, confinar ou aniquilar os estranhos. (BATISTA, 2003, p.78)

O uso da palavra segurança é uma ação que intensifica a necessidade de explicitação de contexto. As suas variações de sentido fazem com que seu engendramento em determinada situação, e se está ‘seguro’ em dizer isto, seja o meio pelo qual consigamos apreender que tipo de segurança se está expressando. Dentre as quinze definições encontradas no dicionário Houaiss, de 2013, destacam-se as seguintes: ação ou efeito de tornar seguro - estabilidade, firmeza, seguração; situação em que não há nada a temer - a tranquilidade que dela resulta; estado, qualidade ou condição de uma pessoa ou coisa que está livre de perigos, de incertezas, assegurada de danos e riscos eventuais, afastada de todo mal. Destas definições surgem as questões: Que ações ou efeitos estão sendo produzidos para se tornar algo estável e qual é esta estabilidade desejável? Quais critérios são utilizados para definir o que causa temor e o que é necessário para que este temor se ausente e resulte na tranquilidade? Quais saberes são convocados para se produzir estado, qualidade ou condição de uma pessoa ou coisa livre de incertezas? Ao notarmos a fala que abre este tópico percebemos que se trata de uma reflexão sobre algo que transversaliza todas as questões assinaladas acima: a aventura, as potências e as dificuldades de se viver em sociedade e o medo que a presença de outrem, do desconhecido pode provocar às pessoas e às instituições que sustentam o viver social. É nesta empreitada, em que vivemos e agimos pela e na relação com outros, que a segurança e sua garantia tornam-se o último vestígio do cordão umbilical que nos liga a um espaço reconfortante, em que, ao existirmos, percebemos a nossa volta condições favoráveis de vida em conjunto. São demais os perigos desta vida, nos diz Vinícius de Moraes na composição de seu samba homônimo. E destes perigos somos alertados a todo instante, cuidando de nossas mochilas no metrô, saindo rapidamente das estações quando pegamos os trens, fechando as janelas dos carros, evitando a rua no período noturno, enfim, atualizando os discursos e conselhos que vêm de todos os lados, de especialistas na área de segurança a amigos e familiares. Viver é perigoso, nos dizem, e por isso nos cercamos de cuidados, principalmente 29

quando nos deparamos com aqueles que não conhecemos, ampliando o ditado “não converse com estranhos”, para ações em que aprendemos a discernir e evitar quem é estranho. As produções de perigo e de segurança colocam-se como complementares e o desconhecido encarnado em outrem figura-se seu motor. A relação com as pessoas que nos circundam, sejam elas reguladas pelas categorias de família, de trabalho ou de lazer, parece se embasar num jogo de semelhança e diferença. A segurança passa a ser algo relevante, passa a ser um objeto de efeitos quando em uma formação do viver a diferença de outrem é constituída pelo estranhamento que provoca: Suspeitemos de tudo aquilo que Figura 3: Montagem feita por esta pesquisa a partir de diferentes não nós é familiar? recortes de jornais. As pessoas emergem enquanto sujeitos por meio de uma lógica que as aproxima e as diferencia de outros sujeitos, distribuindo-os dentro de um regime de poder. Para tornar a vida de um grupo social segura parece ser necessária, em muitos casos, a ausência de todos aqueles grupos e pessoas que possam parecer estranhos, ou por sua aparência, ou por sua linguagem, ou por seu comportamento, ou seja, pela estranheza que seus modos de ser e estar no mundo podem provocar. Como analisa Gilberto Velho (2000, p.10), “a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”. Neste sentido, a reciprocidade entre os diferentes figura como balizadora das trocas e práticas sociais. Institui-se o que é esperado dos sujeitos, quais são as expressões condizentes e as respostas que podem surgir dessas expressões. Respostas convocadas por saberes mais ou menos compartilhados pelas pessoas e com assentamento em uma processualidade histórica que se atualiza no cotidiano. Conforme arremata Velho (2000, p.12), “a construção de um sistema de reciprocidade através do qual as partes de uma sociedade se relacionam, sejam elas indivíduos ou grupos, não é um dado da natureza, mas sim um fenômeno sócio-histórico”. Fazendo parte de construções sócio-históricas, o que regula o encontro entre as pessoas - entre o que é conhecido e o que é estranho, entre o que se acorda e o que se discorda - é sempre uma zona fronteiriça que estabelece seus limites de acordo com as partes envolvidas. Há sempre uma margem para impasses, sejam eles sociais, econômicos, estéticos ou de outras ordens, acarretando, ao mesmo tempo, a urgência de algo que responda a essas 30

diferenças que desacomodam o encontro, uma urgência que dê conta dos perigos da vida. Produzir segurança é produzir estabilidades em que se assegura que o mal está afastado, é produzir situações em que o temor se ausente ou ao menos seja amplamente atenuado, colocando o que é incerto em uma posição não ameaçadora, incapaz de provocar risco ou dano. “Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas consequências”, é a conclusão de W. I. Thomas, que Howard Becker (2009) traz no prefácio de seu livro intitulado Outsiders. A obra se dedica à questão de que pessoas agem com base em compreensões de mundo que podem divergir e serem até contrastantes, o que corrobora a ideia de Velho e traz o meio social enquanto uma arena de conflito e disputa entre diferentes modos de ser e estar no mundo. No caso da reflexão sobre a realidade enquanto produtora de efeitos e consequências, W. I. Thomas comenta sobre um diretor que recusou a ordem judicial para permitir que um preso tivesse momentos fora da prisão. O diretor justificou-se alegando que o homem era perigoso em função de seu histórico de ter matado inúmeras pessoas na rua que eventualmente estivessem falando sozinha, por acreditar que os movimentos de sua boca estariam sendo usados para chamá-lo por nomes vis (THOMAS, 1928). Diante da tensão e do conflito que o comportamento do preso causava, o diretor penitenciário optou por recursar o benefício, provavelmente ponderando que: se há pessoas e grupos diferentes, há diferenças que acarretam uma realidade por demais insegura, portanto, não passível de se estabelecer no convívio com outros. Ao definir a situação de pessoas movimentando suas bocas como sendo pessoas insultando com nomes vis, o sujeito em questão produz uma consequência real que pode ser a morte de um indivíduo, não havendo, assim, espaço para a sua tolerância. As ideias de Becker e Thomas trazem à discussão os saberes que se implicam nas relações e nas formas de expressão. Em cada local em que as pessoas se estabelecem enquanto grupo, em pequenas aldeias ou em centros urbanos, algum tipo de regulação de poder se torna presente. São produzidas realidades e inteligibilidades dessas realidades. De maneira semelhante à diferença entre os que ao olhar uma montanha rochosa veem uma paisagem bucólica e os alpinistas que ao olhar a mesma montanha veem fendas possíveis ou não de serem escaladas, cada grupo investe mais ou menos num determinado tipo de produção de realidade, que consequentemente irá regular suas relações. Não existe sociedade que não seja feita de investimentos de produção de realidade nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, um certo tipo de sociedade. (ROLNIK, 1989, p.58) 31

A questão que se coloca é como os investimentos de produção de realidade nesta ou naquela direção, por parte da sociedade, relacionam-se com a diferença, com a diversidade e com as produções de realidade de cada grupo social. Não há garantia de que a reciprocidade comentada por Velho seja compartilhada e manifestada por todos, fazendo com que os grupos se defrontem com relações que não ocorram de acordo com as noções e entendimentos investidos por eles, como o homem que mata por supor que está sendo insultado. Sujeitos e grupos, que na perspectiva de Becker (2009), são outsiders, aqueles que deflagram o não esperado e que, na nossa primeira aproximação da segurança, produzem o que é incerto e inseguro. As diferenciações que constituem os sujeitos dizem sobre uma pluralidade que não escapa a uma rede do que é aceitável ou não aceitável pelos demais. Nesse processo, a interação com outrem desconhecido modifica-se junto às transformações dos espaços sociais, públicos e das instituições que se dedicam a regular a reciprocidade esperada. Olhar hoje ao que produz segurança pública no Rio de Janeiro é olhar a um espaço de diversas negociações, com a presença de atores os mais variados, característicos de um grande centro urbano. Refere-se a um domínio contemplado por grupos de diversas nomeações – funkeiros, punks, emos, skinheads, rastafaris, anarquistas, queer, evangélico, macumbeiro, favelado, playboy, torcedor de organizadas – que evidenciam tanto o caráter híbrido, como o caráter do que é excludente, do que é definido como outsider nos espaços públicos urbanos, pois, afinal, até onde podemos lidar com a diferença e seus efeitos? Quais critérios podem dizer sobre os efeitos cabíveis ou não cabíveis da diferença em um convívio social? O objetivo da pesquisa, portanto, se debruça sobre a questão da diferença, sendo a última ligada ao que um grupo social e/ou sujeito apresenta como peculiaridade e especificidade, ou seja, o que apresenta como estranho a outros grupos. Elegem-se, assim, dispositivos que irão figurar os capítulos e permitir observar como o campo da segurança atualiza esse processo de contato com a diferença, convocando saberes e práticas que, ora vão dar ênfase à hierarquização, produzindo segregação e exclusão do “outro”, ora vão acolher a diversidade, produzindo realidades em que caibam a tolerância e a pluralidade social. Busca- se pautar a discussão dos paradigmas de segurança em termos do quanto seus territórios configuram-se como espaço de acolhida ou eliminação de diferentes modos de ser e estar no mundo. Tendo em vista a aproximação da pesquisa com a questão da segurança, que constituirá o contexto a ser problematizado, bem como a questão da diferença no encontro 32

com outrem, que será o analisador das discussões, a seguir, cabe apresentar a delimitação do campo problemático e as formas de entrada metodológica que serão utilizadas.

2.1 PRODUÇÃO DE EFEITOS E NÃO TOTALIZAÇÃO DA REALIDADE: SEGURANÇA PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO PELA HABITAÇÃO DE UM TERRITÓRIO PSICOSSOCIAL

2.1.1 Caixa de ferramentas teórico metodológicas: Situando o olhar da pesquisa

Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. (...) Proust, que o tinha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica. É o poder que por natureza opera totalizações e você (Foucault) diz exatamente que a teoria por natureza é contra o poder. (Deleuze em diálogo com Foucault, registrado na obra: FOUCAULT, 2008, p.71)

A construção de um campo problemático não diz apenas do universo em que se pretende mergulhar e discutir como também da postura com a qual o pesquisador intenta fazê- lo. Implica dizer tanto sobre o contexto, o grupo e a produção de realidade que se estuda, como sobre a própria definição conceitual de contexto e produção de realidade que se utiliza. Nesse sentido, cabe trazer que a pesquisa se vale da concepção de caixa de ferramentas discutida por Deleuze e Foucault na passagem acima, que será utilizada em dois âmbitos transversais: as discussões do campo da segurança pública no Rio de Janeiro como dispositivo para fazer ver e falar as produções de realidade atuantes na contemporaneidade, bem como a postura e práticas de pesquisa, em especial da psicologia e seus diálogos com outras disciplinas, no que tange a algumas formas de se conceber o homem e os efeitos que essas formas produzem nas relações sociais. Ferramentas que neste trabalho instrumentalizam um olhar não generalizante, mas sim atento ao que pode escapar das redes de poder totalizantes dos seres e das coisas. Ferramentas que aproximam a pesquisa de uma Psicologia crítica às noções e conceitos que visam um suposto desvelamento positivista da realidade (LANE, CODO, 1989). A pesquisa insere-se, portanto, em uma interdisciplinaridade que pensa o homem a partir da relação, da produção agenciada coletivamente em registros macro e microssociais, afetivos e subjetivos, e que refuta o biologicismo individualizante, que coloca as causas dos comportamentos individuais em fatores internos a si: há uma “tradição biológica da Psicologia, em que o indivíduo era considerado um organismo que interage no meio físico, sendo que os processos psicológicos (o que ocorre ‘dentro’ dele) são assumidos como causa, ou uma das causas que explicam o seu comportamento” (LANE, 1989, p.11). Na mencionada perspectiva entende-se 33

que para conhecer o indivíduo basta conhecer o que ocorre ‘dentro dele’, quando o mesmo se defronta com estímulos do meio. Como diz Ana Jacó-Vilela (2007, p.40) em seu texto sobre o estatuto da psicologia social, trata-se de uma concepção psicologizante em que o homem carrega muitos pronomes possessivos: “o indivíduo e seus processos cognitivos”, “seu comportamento”, “suas emoções” e “sua intimidade ou interioridade”. Jacó-Vilela ressalta que neste tipo de psicologia, mesmo quando se considera a dimensão social do sujeito, o faz de maneira coadjuvante, como um complemento, como algo que pode ser adicionado à pessoa. Como veremos adiante, essa abordagem do homem insere-se em um contexto em que a racionalidade moderna desdobra-se em um cientificismo objetivista. As ciências naturais são tomadas como base para o desenvolvimento das ciências humanas, produzindo “medidas, testagens e previsões, instituindo uma racionalidade que tudo classifica em termos de comportamento, analisado com base no indivíduo, cindindo-o do social e centrando no primeiro as origens das patologias e transtornos da psiquê” (HÜNING, GUARESCHI, 2009, p.160). Como efeitos, esses saberes científicos produzem uma primazia do indivíduo em detrimento do social, recaindo sobre o primeiro o mérito da adaptação satisfatória à sociedade ou a culpa por sua falta de habilidades para lidar com o meio. Esta concepção possui ressonâncias encontradas nos dias atuais, em que psicólogos são demandados a aferir laudos e pareceres que atestam ou não tal capacidade adaptativa do sujeito. Assim, desde início coloca-se aqui a problematização trazida pelo editorial do Jornal do Conselho Regional de Psicologia do Rio de janeiro (CRP-RJ), em 2011, que discute o quanto a culpabilização do indivíduo acaba por referendar a produção de pessoas e grupos na categoria de “perigosos”. Tal passagem do CRP aponta que, eventualmente, na interseção da psicologia com o judiciário ocorrem violações de direitos sob o argumento de tratamento e/ou de proteção. Entendemos que o campo segurança pública não diz respeito somente as ações da polícia militar e judiciária, mas também a uma lógica que perpassa diversas áreas das políticas públicas e afeta sobremaneira a atuação do psicólogo que é, muitas vezes, “bombardeado” com demandas que exigem um debate ético quanto ao papel que o profissional exerce e a quê o seu saber vem servindo. (Editorial do Jornal do CRP-RJ, nº 33 Julho/Agosto/Setembro, 2011, p.2)

A pesquisa, ao contrário da psicologia individualizante, busca entender o homem enquanto relação, como alguém que é singular e não existe sem o outro, isto é, contém o outro em si mesmo: “afirmamos ‘pessoa=relação com um sinal de igual (=), e não ‘pessoa em relação’ (...) importante aqui a definição de ‘relação, ‘ordo ad aliquid’, isto é, a ‘ordenação 34

intrínseca de uma coisa em direção a outra’, ou ‘algo que não pode ser, sem que haja outro’”(CAMINO, GUARESCHI, 2007, p.2). Homem como relação em uma alteridade que se faz pela emergência dos sujeitos enquanto conjuntos complementares entre si. Algo como o que o poeta Fernando Pessoa, em uma de suas prosas, define como sua multiplicidade: “Sinto-me múltiplo (...) Sinto- me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, Figura 4: Drawing Hands de M. C. Escher. incompletamente de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço” (PESSOA, 1985, p.31). Dessa maneira, o intento é o de se criar um campo de interação disciplinar que possibilita diferentes tipos de leitura, mas que compartilham entre si a postura ética comentada por Fuganti (2001), na qual é necessária observar as implicações práticas do que se produz, seja das outras instituições, seja da própria instituição acadêmica que, por vezes, “bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituindo-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação” (FUGANTI, 2001, p.2). Uma perspectiva como a defendida por Ronilda Ribeiro (2005), que ao realizar uma articulação entre a psicologia e a etnologia, reverberada neste trabalho pelas autoridades etnográficas, defende o “moldar de múltiplas lentes”. Enfatizando a importância da não restrição à leitura da realidade mediante apenas um padrão de intervenção estabelecido, a autora completa que “a superposição de duas ou mais lentes de leitura, se utilizada adequadamente, possibilitará, uma vez superada a fase do borrão, o delinear de formas configuradas com nitidez, que permitem alcançar significados antes insuspeitados” (RIBEIRO, 2005, p.181). Dessa maneira, a pesquisa dispõe em sua caixa de teorias e métodos contribuições, entre outros, da análise institucional (BAREMBLITT, 2002) e da produção de subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Utilizando-se também da metodologia da cartografia psicossocial, pensada por Deleuze e Guattari (1997) e desenvolvida por Rolnik (1989), bem como por Passos, Kastrup e Escóssia (2009), o trabalho busca dar ênfase ao aspecto dinâmico dos processos sociais e ao caráter produtivo da realidade. Instrumentos teórico-metodológicos 35

que inscrevem os sujeitos em circunstâncias sociais específicas que, como apontam Thomas e Zizanieck (1918/2005, p.15), distinguem-se dos fenômenos que supostamente tem sua fonte “na natureza humana” ou no que é “genérico” ao homem. Segundo Baremblitt (2002), o campo da análise institucional considera que a sociedade está ordenada em um conjunto aberto, ou seja, não totalizável de instituições, sendo as últimas “um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões, algumas prescritas (indicadas), outras proscritas (proibidas), outras apenas permitidas e algumas, ainda, indiferentes” (BAREMBLITT, 2002, p.78-79). As instituições, portanto, corresponderiam às lógicas formalizadas em leis, em normas escritas ou discursivamente transmitidas, podendo ainda corresponder aos costumes e aos hábitos não explicitados. “As citadas lógicas se concretizam ou se realizam socialmente em formas materiais ou ‘corporificadas’ que, segundo sua amplitude, podem ser: organizações, estabelecimentos, agentes, usuários e práticas” (BAREMBLITT, 2002, p.79). A perspectiva institucional de Baremblitt (2002, p.26) coloca a sociedade como “um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens”. O autor, contudo, chama a atenção para produção sensível desse tecido em organizações, que podem compreender um grande complexo organizacional, como o Ministério da Justiça ou a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), até um pequeno estabelecimento, como uma escola, quartel, batalhão de polícia ou uma prisão específica. “As instituições não teriam vida, não teriam realidade social senão através das organizações. Mas as organizações não teriam sentido, não teriam objetivo, não teriam direção se não estivessem informadas como estão, pelas instituições” (id, ibid). Nessa perspectiva, a segurança pública não deve ser considerada um campo totalizável, fechado sobre si mesmo, ou seja, não está restrita às relações entre suas organizações, estabelecimentos e agentes. Ela constitui um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si na produção que vai além da segurança ou insegurança. Ela se refere à produção de toda uma realidade conectada com outras esferas sociais e que possui efeitos sobre as pessoas e as coisas. Sendo parte constituinte da produção de realidade, aglutina em torno de si os saberes e práticas ligados à segurança, mas que não devem ser analisados de forma desconectada a um processo maior, contínuo e não generalista. Ministérios e secretarias, diretrizes nacionais e estaduais, doutrinas, ensino, treinamento e sistemas de controle, corporações militares e estatísticas de violência, abordagens policiais e 36

profissionais de segurança; certamente todos esses elementos constituem o campo da segurança pública, mas cabe destacar que esse é um conjunto aberto, tanto em função das diferentes realidades sociais e comportamentos humanos que pode constituir, como pela questão de ser apenas uma das lentes possíveis com a qual enxergamos e investigamos o mundo a nossa volta. A ferramenta da análise institucional coloca-se, assim, como opção antipositivista uma vez que prefere os efeitos às leis, pois como defende Heliana Conde Rodrigues (2005, p.18), “ao contrário das leis científicas, em que o ver faculta o prever - preceito sintetizado pela fórmula ‘assim tem sido, assim será’ -, os efeitos estão invariavelmente ligados à preservação, deliberada ou involuntária, de determinadas condições de efetuação”. A autora ainda destaca os efeitos enquanto contingências repetidas ou reforçadas, no intuito de diferenciá-los das legalidades universais às quais estamos sujeitados. Equacionar as práticas relacionadas à segurança pública nessa perspectiva é, ao mesmo tempo, desapropriá-las de um aspecto universal a todos os homens e lugares e situá-las dentro de um aspecto local e específico: não constitui a natureza humana, mas sim uma produção social, e enquanto produção, passível de tomar outros rumos e sentidos. Na tarefa de problematizar os processos de preservação e descontinuidades de determinadas condições de efetuação da segurança pública, entendendo a última como um conjunto de práticas e lógicas relacional e aberto, cabe destacar a já intrínseca heterogeneidade de seu contexto. O que caracteriza a problemática da segurança pública, no Brasil – entre outros aspectos relevantes, que também poderiam ser destacados – é seu caráter babélico: não há consenso nem quanto aos seus pontos de dissenso. Quando há acordo quanto aos focos de divergência, organiza-se o debate público, ordena-se a agenda política, estrutura-se o repertório temático para o desenvolvimento de pesquisas, estudos, avaliações, investimentos acadêmicos, investigações jornalísticas (...) Desse modo, as divergências são mapeadas no plano mais profundo, matricial, e em matéria derivada, por assim dizer, que se oferece ao varejo das decisões ad hoc ou a avaliações circunstanciais. (SOARES, 2009, p.136-137, grifo do autor)

A segurança pública, como outros objetos de investigação, não constitui um campo a ser decifrado, como um mapa. Diz respeito a produções históricas que atualizam modos de vida regidos em nome da segurança. Fazer pesquisa sobre a segurança é caminhar por terrenos como dunas desérticas, que estão em constante transformação pelo contato com os ventos de norte, sul, leste e oeste. A própria escrita da pesquisa está implicada, ao passo que está ligada aos discursos de quem também vive em terras cariocas e se defronta com as ruas da Glória, Lapa, Catete, Laranjeiras, Botafogo, Flamengo e tantos outros bairros. Uma não neutralidade que deve ser exposta tanto por quem escreve como por quem concede depoimentos ou lê o que se segue, pois como destaca Luiz Eduardo Soares (2009, p.137), “no cenário babélico, as 37

vozes mais legítimas e democráticas, apesar de sua sensibilidade social, frequentemente, atiram nos próprios pés, uma vez que ignoram as implicações das teses que sustentam e as consequências dos pleitos que vocalizam”. O trabalho percorre um caminho de diferenças, de multiplicidades como a de Fernando Pessoa, de reciprocidades e tensões como apontadas por Gilberto Velho, de insiders e outsiders como discute Becker, e tantos outros, que ganharão texto pelas ferramentas teóricas de Foucault, Guattari e Deleuze, bem como pela cartografia de Rolnik, Kastrup, Passos e Escóssia. Assim, cabe apontar que quando estiver sendo indicado o campo problemático da pesquisa estará sendo indicado um território existencial. Isto é, um campo de problematização concebido enquanto “conjunto dos projetos e representações em que vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI, ROLNIK, 2005, p.388).

2.1.2 Segurança pública enquanto território existencial

A conceituação de território inicia-se na obra de Deleuze e Guattari (1997) em que desvinculam a expressão de uma noção exclusivamente geográfica. Conforme comenta Haesbaert e Bruce (2002), o conceito tem sido tratado por alguns autores como um ambiente psicossocial, que não pode ser objetivamente localizado, mas construído por interações de um grupo ou coletivo, que assegura uma certa estabilidade e localização. Algo próximo da discussão de trabalho anterior (MELICIO, 2009), em que foi refletida a noção de ambiente pensante proposta por Serge Moscovici (2003), domínio social específico com um conjunto de sentidos e práticas relativamente coeso que traz inteligibilidade à realidade. Ao iniciar estudo do universo da segurança pública carioca está se iniciando um contato com domínios simbólicos-materiais específicos, algo que pode tanto abrir para o novo, como para a reatualização do familiar. Dedicar-se a adentrar este campo convoca acompanhar processos que produzem a segurança e/ou a necessidade de segurança em uma sociedade. Convoca o contato com os profissionais que expressam seus discursos reguladores; com os sujeitos e as relações que se encarnam pela lógica desses discursos; com as noções que imputam ao público e ao que se entende por segurança na dimensão pública um órgão moderador, constituído pelo Estado. Mais do que uma ênfase psicológica, o território de Deleuze e Guattari é composto de matérias de expressão, de todas as naturezas. “Cada território, cada habitat junta seus planos ou suas extensões, não apenas espaços-temporais, mas qualitativos: por exemplo, uma 38

postura e um canto, um canto e uma cor, percepções e afetos” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 239). Os territórios referem-se à organização e à articulação de regimes de existência, envolvendo um espaço vivido e um sistema em que os seres e as coisas se tornam visíveis enquanto objeto, estando inseridos em uma trama de poder. Um dos desdobramentos que interessam a Deleuze e Guattari é o rompimento com as dicotomias entre consciente e inconsciente, subjetivo e objetivo, natureza e história. A filosofia dos autores é denominada como “teoria das multiplicidades”. Embora reconheçam a formação de territórios e seus processos de subjetivações, totalizações e unificações, enfatizam que as multiplicidades não remontam a nenhuma unidade e tampouco remetem a um sujeito (HAESBAERT, BRUCE, 2002). Cada território engloba ou recorta territórios de outras espécies, ou intercepta trajetos sem território, formando junções interespecíficas (DELEUZE, GUATTARI, 1992). Os territórios podem também se desterritorializar, denominação dos autores aos processos em que a pragmática de um território perde seu viço à medida que a pragmática de outro território ganha mais espaço. “Um bastão”, dizem os autores, “é um galho desterritorializado”(op. cit., p.90). Os territórios, tal qual proposto por Deleuze e Guattari, dizem sobre todas as formas e significados que ganham registro na realidade social. Uma vez que a realidade não é um dado objetivo, mas uma produção, o relativismo daquilo que vemos a nossa volta se impõe. Como já visto com Veyne e a ideia de raridade em Foucault, tudo o que é poderia ser diferente. Todavia, o relativismo coloca-se enquanto possibilidades que podem emergir e não isenta a produção de realidade de sua concretude sensível. Toda territorialização remete a uma configuração regulada de efeitos; toda vez que me situo no mundo a partir de uma relação específica com o que está a minha volta, estou inserido numa rede de poder concreta, que exerce uma gestão sobre o que é aceitável, punível ou indiferente. Portanto, no intuito de trazer a discussão de territórios mais próxima de seus processos de produção e valendo-se de contribuições de Foucault (2008) nos textos sobre a microfísica do poder e da concepção de Rolnik (1989) sobre a questão do viço, a pesquisa convida o leitor a um breve intervalo textual. Realiza-se abaixo uma ligeira aproximação dos conceitos de poder, regimes de verdade e produção de efeitos por meio de exploração próxima do fazer literário, da territorialização da rua enquanto plano das relações entre três personagens presentes no campo da segurança pública: pessoas em situação de rua, travestis e policiais militares. 39

2.1.2.1 A rua enquanto plano de territorialização e desterritorialização: um breve exercício próximo do fazer literário

A rua é comumente vista como via de passagens, um local de trânsito, de movimento, onde o medo e o desconhecido revezam com a sensação de segurança e familiaridade. Um espaço em que se agrupam moradias e locais de troca. Num olhar ela é sede do entre, do que conecta, do que se multiplica em diversas possibilidades de novos caminhos. Noutro olhar ela é algo que convoca uma paisagem psicossocial já visitada, que alimenta a memória e as histórias que se faz, a cada instante, não só em seu domínio espacial, como em seus domínios sociais, institucionais, afetivos e outros mais. Os elementos que constituem a rua são diversos, heterogêneos e transitórios. Eles podem ser físicos, materiais e emocionais. Ela, como outros objetos, não é uma entidade fechada e circunscrita, com fronteiras intransponíveis. Ela é uma rua-paisagem, um território existencial que se constitui ao passo que elementos emergem no presente, podendo mudar de cor, ritmo e intensidade a cada instante, a cada nova composição que ganhe terreno. Quando olhamos a rua, quando percebemos a rua e as formas que nelas conseguimos identificar, estamos nos situando numa territorialização de significados e de relações de poder. “A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade” (FOUCAULT, 2008, p.14). Todavia, a própria territorialização sempre pode dar passagem a outro território existencial. Se na rua pudéssemos lançar um olhar a partir de uma câmera cinematográfica poderíamos observar a multiplicidade de tais relações. Numa lente mais aberta, ganharia formas o asfalto, os muros, janelas, pessoas e práticas sociais que nela se desencadeiam. Por esta lente da câmera observaríamos um território com esses elementos e essas relações. Porém, numa lente mais focalizada, em olhar mais detido em um dos elementos de sua configuração, como em uma pessoa, veremos que a pessoa é também uma composição de elementos e que só ganha emergência na paisagem estando em relação com os outros. Os elementos que compõem a territorialização da rua estão em relação. Não há a priori uma janela, muro, pessoa ou prática que podem ser ‘coladas’ em sua paisagem. Cada um desses elementos só serão janela, muro, pessoa ou prática se ganharem formas dentro de uma lógica em que existam essas denominações, em que se expressem suas formações enquanto verdades, com seus respectivos efeitos. “Entendendo-se, mais uma vez, que por verdade” não se quer dizer “‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’” (FOUCAULT, 2008, p.13). 40

Ao nos debruçarmos sobre a rua-paisagem, notamos que no trânsito dos elementos que a constituem há a configuração de redes de trocas e expressão, há a configuração de uma pragmática. Se tomarmos um exemplo de paisagem em que estão presentes três pessoas, conforme elas ganhem contornos mais definidos, inexoravelmente manifestarão diferenciações entre si, entre seus modos de ser e estar no mundo. Há aquele que veste uma roupa preta e azul e que se pode dizer policial. Há aquele sobre saltos altos e que se pode dizer travesti. Há aquele enrolado num cobertor e que se pode dizer morador de rua. Mais do que definições por vestimentas, o que chama atenção nesse exercício- convite é notar como as relações entre esses personagens, bem como entre todos os constituintes da paisagem, vão se estabelecendo em um regime de práticas, em um conjunto discursivo e não discursivo, que instituem uma lógica relacional, em suma, um regime de poder. “O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder” (FOUCAULT, 2008, p.146). O que emerge como travesti, policial e morador de rua poderia desembocar e emergir em outras possibilidades, como a de pai, mãe, capoeira, torcedor de futebol, estrangeiro, brasileiro, paulista, carioca. Em cada uma dessas possibilidades de emergência um novo regime se manifestaria, ao passo que convocaria outros enunciados de verdade para responder a sua urgência. Se na paisagem essas mesmas três pessoas estivessem como torcedores de um mesmo time de futebol a sua composição se transformaria. Outros conjuntos de saberes se fariam presentes, bem como outras relações se estabeleceriam. Mas se estas três pessoas encontram-se em uma situação que as diferenciam como travestis, morador de rua e policial, o regime de verdade, o sistema de poder se manifestará a partir dos discursos que prescrevem e proscrevem estes três atores sociais. Na rua, e em todas as paisagens, o que salta aos olhos são os regimes de poder e de verdades que ganham passagem. No exemplo em que estão presentes travesti, morador de rua e policial, aos poucos, toda uma cadeia de sentidos, de construções de mundo, começa a se atualizar em práticas possíveis a cada um. As pessoas vão, assim, se diferenciando em sujeitos sociais, se assentando em ancoragens históricas que estão atuantes em seu tempo. Nesse momento há um jogo em que dois movimentos de força se complementam, como dois lados de uma moeda. As relações entre as pessoas se sustentam pelas redes de sentido que as diferenciam (como policial, travesti e morador de rua), da mesma maneira que as redes de sentido que as diferenciam se sustentam pelas relações que estabelecem entre si (as pessoas se relacionam a partir do que é esperado, do que é cabível ao policial, travesti e morador de rua; a partir dos saberes que informam e situam cada um desses grupos; a partir das instituições 41

que se interconectam e se articulam em torno dos mesmos). “Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder...” (FOUCAULT, 2008, p.147). Ao retomarmos o exercício vemos que, ao adquirirem evidência as diferenciações entre os sujeitos, um conjunto de discursos sobre ser policial, travesti e morador de rua passa a reger as trocas, materializando as conjunturas sociais e históricas que darão visibilidade ao território formado. Instaura-se uma lógica em que conhecimentos e práticas compartilhados, como os que permitem ao que é policial portar uma arma e empregar o uso progressivo da força, são os que irão sustentar o que pode emergir na paisagem. Caso aconteçam ações não sustentadas por essa lógica, por esse regime de verdade que informa e captura as formas de relações entre as pessoas, como uma agressão ao policial pelo morador de rua, elas produzirão visibilidades ligadas ao estranho, ao perturbador, ao desviante, estando imersas às consequências que esta condição lhe traz. Neste sentido, a composição dos elementos da rua-paisagem – toda paisagem psicossocial remete a constituição de um território existencial - se manifestará por meio do exercício de um regime de poder. Não um poder que desce de superestruturas sociais e que exprime exclusivamente regulações jurídicas, dinâmicas econômicas ou formações morais e familiares. Nem um poder que transborda de uma qualidade interna dos sujeitos ou das coisas, seja ela física, natural, universal, inconsciente e/ou intrapsíquica. Mas um poder que é justamente o que conecta esses aspectos; um poder que condensa todas essas forças e produz, nesse nexo, o que entendemos como realidade. Um poder que não é abstrato, mas, sim, manifesto e produtor de efeitos. A ideia de território existencial traz a formação de regimes de verdade, que por sua vez também está na gênese do poder. Não um poder que se institui de fora para dentro. Conforme apontado por Foucault (2008), a noção de poder aqui difere-se da visão marxista, que aponta para segmentos sociais hierarquizados por uma força que se impõe de cima para baixo, como se quem estivesse em cima fosse possuidor do poder. O poder não é de posse de uma pessoa, grupo ou esfera social, o poder é exercício – exercício de poder. Ele coloca-se nas, e a partir das, formas de relações que se estabelecem. O poder remete, portanto, mais a um regime de verdade, ou seja, a um conjunto de normas, formas e leis que situam as formas e viver. Relaciona-se com o conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso. Por isso Foucault aponta que a questão política não deve centrar-se na alienação, na ilusão ou na ideologia, mas na própria lógica que hegemonicamente é tida como verdade: 42

Não se trata de libertar a verdade de todo o sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. (FOUCAULT, 2008, p.14)

A importância de trazer os regimes de verdade do campo de segurança pública por meio do conceito de territórios remete ao entendimento não totalizante do campo de discussão. Um território engloba, recorta e intercepta território de outras espécies, sempre havendo passagem para outros investimentos. Figura 5: Trabalho em estêncil de Banksy, A constituição do campo da segurança pública enquanto produção de territórios de existência lhe traz uma referência - elementos mais estáveis que lhe permitem a distinção enquanto campo da segurança pública, como policiais, políticas da Secretaria de Segurança, representações de grupos minoritários que implicam medidas de segurança – ao mesmo tempo que lhe traz uma delimitação fluida e em disputa com outros territórios. A realidade apresenta-se como uma disputa de forças, uma paisagem em que diferentes habitat, diferentes ambientes psicossociais vêm à tona. Cada um dos grupos que se situa nesta pesquisa faz emergir um ambiente específico. Desse modo, entra em jogo como esses domínios se transversalizam e por quais regimes de poder ocorre essa transversalidade: o que a fundamentação da suspeita, característica da abordagem policial, diz sobre as relações grupais e espaciais brasileiras? A que demanda e contexto social o programa de segurança cidadã intenta responder? Quais relações se estabelecem entre as ideias de Estado mínimo e segurança máxima? Como a difusão midiática do medo é convocada para pautar os debates de campanhas eleitorais?

2.1.3 Habitando o campo

A investigação que se preocupa em produzir paisagens em que os regimes de poder se tornem visíveis por meio de suas tramas históricas, não naturais, traz também a questão metodológica. Postura que abriu este trabalho desde a introdução, a cartografia psicossocial envolve uma argumentação ad hoc, desenvolvida passo a passo pela capacidade de reflexão sobre situações específicas. A metodologia da cartografia refere-se à análise que se faz mergulhada na experiência coletiva em que tudo e todos estão implicados, em uma postura em 43

que, como aponta Passos e Barros (2009, p.19), “todo conhecimento se produz em um campo de implicações cruzadas, estando necessariamente determinado neste jogo de forças: valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenças, etc.”. A proposta da metodologia, que se relaciona à resignificação de Deleuze e Guattari de conceitos geográficos, é cartografar territórios existenciais. Produzir paisagens psicossociais sensíveis a “tudo o que serve para cunhar matéria de expressão e criar sentido” (ROLNIK, 1989, p.66). O intuito é o de habitar os territórios do campo de pesquisa, que como destaca Alvarez e Passos (2009, p.135), “não nos coloca de modo hierárquico diante do objeto, como um obstáculo a ser enfrentado (conhecer = dominar, objeto = o que objeta, o que obstaculiza [...]. Cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se nele”. Dedicando-nos a essa demanda, notamos primeiramente que a segurança se territorializa em diferentes espaços do Rio de Janeiro. Ao direcionarmos o olhar para o contexto carioca percebemos que o tema está presente em todos os meios midiáticos. Seja no jornal mais vendido no Leblon, ou no mais vendido na Baixada Fluminense, seja nos programas de TV ou nas conversas de botequins, as incursões policiais em favelas, a investigação de assassinatos, a violência nas escolas ou em governos ditatoriais espalhados pelo mundo estão sempre presentes. Conforme apontam estudos neste sentido (OLIVEIRA, 2002; RAMOS, PAIVA, 2005; TAVARES, 2011), pautada na maioria das agendas institucionais, a segurança pública é hoje um dos objetos mais relevantes não só do viver carioca, como do brasileiro como um todo. Nas campanhas eleitorais para presidência, dos anos de 2002, 2006 e 2010, o plano de maior discussão entre eleitores, repórteres e opositores foi o do programa para o combate à criminalidade: “Notável, ainda que requentada, foi a presença da ideia de endurecimento contra o crime com medidas de segurança que vão desde um aparato policial vigoroso a um sistema punitivo impiedoso, tanto por parte de programas de governo como por parte da opinião pública” (TAVARES, 2011, p.127). No caso da capital fluminense, acresce a esse quadro a eminência da realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014 e o sediamento dos Jogos Olímpicos de 2016. Políticas de segurança, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), iniciada em 2008, passam a adquirir o selo dos jogos em Figura 6: Foto de passarela da Rua Pinheiro seus documentos e debates. Segundo informe da Machado. Rio de janeiro/RJ. 44

Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) à matéria do jornal O Globo, de 30/05/2011, a instalação de UPP na favela da Mangueira, faz parte do planejamento da Secretaria de Segurança de ocupar as comunidades que ficam no entorno do Maracanã (onde se encontra o maior estádio de futebol do país), o que inclui, ainda, as comunidades do Turano, Salgueiro, Formiga, Andaraí, Borel, Macacos e São João. A cidade vai, então, criando um aparato de equipamentos que garantem o aparente cerco aos que colocam em risco a tranquilidade da coletividade e ficam a todo momento lembrando dos perigos desta vida aos habitantes da cidade maravilhosa. Os espaços vão sendo ocupados por “unidades de pacificação” ao passo que os que deflagram perigo vão sendo encaminhados para espaços, formalmente, sócio-educativos. Tal é a intenção de outra das políticas cariocas, como o do recolhimento compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua e usuários de crack. A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro regulamentou um Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social em 2011 (Resolução SMAS n° 20 de 27/06/2011). Em termos institucionais, a política envolve o recolhimento e a internação compulsória, à revelia da vontade dos apreendidos e de suas famílias, para tratamento médico, com a justificativa da desintoxicação. “Ei, ei”, pergunta o agente da prefeitura a um adulto transeunte no Jacarezinho (Bairro da Zona Norte do Rio), que estava com vestimentas aparentemente velhas e cabelo descuidado. “Deixa eu ver seu dedo!!”. O transeunte mostra, então, o indicador e o polegar com espessas cascas pretas. E o agente da prefeitura responde: “Porra! Com esses dedos ai?! Pode ir pra a van” (veículo da prefeitura em que se transporta os usuários encaminhados pela internação compulsória). [Diário de Campo, 05/10/20114]

O que está em jogo é a sensação de medo e insegurança que se espalha pelas sociedades e atualiza demandas punitivas produzidas através de discursos da lei (RAUTER, 2007), sustentando diferenciações entre as pessoas por meio do que é criminalizável ou não. Na passagem descrita acima, observa-se como algo institucionalmente voltado a crianças e adolescentes acaba por destinar-se à abordagem e encaminhamento de uma pessoa adulta, que estava caminhando nos arredores de um centro comercial popular do Jacarezinho, em função de ter sinais em sua mão de desgastes provenientes, supostamente, do uso do entorpecente crack. Não ocorre uma simples aplicação de orientação institucional, mas sim a instauração de um saber que ancora tanto a orientação institucional como outras práticas sociais, desencadeando ações aparentemente veladas dos profissionais que dela se ocupam.

4 Acompanhamento de abordagem de pessoas em situação de rua por equipe da Prefeitura do Rio de Janeiro e profissionais de segurança. 45

Habitar o território da segurança pública no Rio é habitar um campo em que constantemente objetos são polarizados. “É uma luta do bem contra o mal”, como diz José Mariano Beltrame, secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir sobre a implantação da UPP na Rocinha em novembro de 2011 (GPI, 13/11/11). O que se vê é que a colocação dos acontecimentos em termos maniqueístas serve como justificativa em si mesmo para a ação do poder público. Como destaca o Coordenador da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério de Desenvolvimento Social, Luiz Otávio Pires (AGÊNCIA BRASIL, 03/08/11), sobre o fato do Rio realizar a internação compulsória de crianças e adolescentes, “o Rio de Janeiro está demonstrando que não está passivo, está tendo uma iniciativa”. Parece haver, assim, todo um processo que orienta o homem a eleger critérios sobre o que deve ser evitado, como diz Batista (2003), sobre o que é sujo, sobre o que está fora do lugar, sobre o que faz do estranho a síntese da sujeira a ser separada, confinada ou aniquilada. Ação que se faz, como vimos, por uma das definições de promoção da segurança, em que a qualidade ou estado da pessoa é livre de incertezas, isto é, promoção de situações em que há apenas a pessoa em estado de pureza, livre de danos e riscos eventuais e afastada de todo mal. Como Bauman aponta e Batista (2003) corrobora, em nome da beleza, limpeza e ordem, a civilização limita a liberdade em nome da segurança. A pureza e a higiene, que Mary Douglas (1991) aponta serem padronizadas de diferentes modos em cada cultura, associam as ações humanas à ideia de ordem, de colocação das coisas certas em lugares certos, pois o que estaria fora do lugar ameaçaria as fronteiras entre as diferenças. Busca que ocorre mesmo quando coloca em xeque aqueles que a realizam, pois como alerta Mary Douglas (1991, p.118), “o derradeiro paradoxo da busca da pureza é ser uma tentativa de coagir a experiência a rimar com as categorias lógicas da não contradição. Mas a experiência não se presta a tanto e aqueles que a isso se arriscam entram, eles próprios, em contradição”. Ao nos aproximar de um dos mais importantes domínios da segurança pública no Brasil, observamos o embasamento dos critérios que distinguem pessoas e coisas em termos de produção de segurança. A Constituição Federal brasileira, de 1988, dispõe em seu artigo 6° a segurança como um “direito social”, enquanto que no artigo 144 define segurança pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, tendo como finalidade a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. O conjunto discursivo do documento que orienta o legalismo da sociedade brasileira traz a segurança pública em um registro de direito, em que o regime de poder operado na diferenciação dos sujeitos responde ao que se insere ou não na concepção de ordem pública, 46

ao que isenta ou não de perigo e dano as pessoas e os patrimônios. Assim, o ponto de destaque refere-se à eleição dos critérios utilizados para diferenciar as coisas e os seres entre ordenada e não ordenada, isenta ou não de perigo, é a mesma que produz as coisas e os seres, que dá passagem a seus territórios existenciais. Ocorre que toda uma produção discursiva remete ao Estado o dever de vigiar e julgar o que se insere ou não dentre os critérios eleitos, cabendo a punição aos que não se inserirem. Sob a esfera do Direito Penal, as produções de realidade são capturadas e registradas sistematicamente em função de sua transgressão ou não das normas emanadas por sua legislação. “É a partir de uma transgressão, ou seja, da adequação de uma conduta à tipificação legal, que nasce o direito de punir do Estado e, após a prolatação da sentença, o direito de executar a pena” (RODRIGUES, 2010, p.50). A transgressão é relacionada ao crime e, este, passa a ser punível pelo Estado, que enquadra e executa sua pena. A produção de realidade que não condiz com o esperado pela lógica da legislação penal é tratada como desviante e o desvio algo a ser interpretado e infligido de pena. Todavia, o universo da segurança pública, com que fazemos as primeiras aproximações, constitui-se como um campo de disputas de forças. Não há a detenção do poder nas práticas de segurança pública pelo Estado, mas sim posicionamentos que o Estado efetivamente ocupa nas relações de poder operadas no campo. Da mesma maneira, não há um privilégio na pesquisa das legalidades e diretrizes federais ou estaduais da política de segurança. Na postura cartográfica, busca-se “participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de realidade” (ALVAREZ, PASSOS, 2009, p.67-68).

2.2 ALTERIDADE COMO ANALISADOR

O primeiro efeito de outrem é, em torno de cada objeto que percebo ou de cada ideia que penso, a organização de um mundo marginal, de um arco, de um fundo que outros objetos, outras ideias podem sair segundo leis de transição que regulam a passagem de uns aos outros (...) A parte do objeto que não vejo, coloco-a ao mesmo tempo como visível para outrem; tanto que, quando eu estiver feito a volta para atingir essa parte escondida, terei alcançado outrem por trás do objeto, para dele fazer uma totalização previsível. (DELEUZE, 2007, p.314-315)

A presença de outrem, segundo a perspectiva de Deleuze, é o que assegura a contiguidade e a semelhança na formação do real, como também o fator que nos distrai e nos apresenta novos modos de ser. Na infinita possibilidade com que os mundos podem adquirir, a constituição de outrem se torna uma das potencialidades para fazer as coisas se tornarem reais e produzirem efeitos. É um jogo em que ora um objeto emerge como figura e outros se marginalizam como fundo, ora outros viram fundo e aqueles viram figura. Os elementos que 47

me atingem, que me afetam na realidade em que sou produzido, são encarnados em objetos que a minha diferença e semelhança ao outro cria como efeito: “eu não desejo nada que não seja visto, pensado, possuído por um outrem possível” (DELEUZE, 2007, p.315). A alteridade coloca-se como forma de sustentação para a emergência do mundo percebido como real. O processo que diferencia os seres e as coisas, que os manifestam enquanto objetos e nos conferem a mínima inteligibilidade destes, nos defronta com o desenho que fazemos de outrem. Mais do que um retrato, um desenho próximo de um holograma, como coloca Arruda (2002, p.17), “uma projeção em movimento, e como tal, também um pedaço de mim, prestes a esvaecer”, uma produção de representação que aplaca instantaneamente o conteúdo perturbador do outro, retrabalhando-o e tornando-se assim a diferença incorporada. Outrem é estrutura que condiciona o conjunto perceptivo que se deflagra, tornando possível a aplicação de categorias ao que nos circunda. Ele é expressão de um mundo que só é possível por sua presença. Todavia, não remete a um essencialismo, ou a uma relação entre ‘eu’ e ‘não eu’ situados como naturezas. Como apontado anteriormente, outrem não é nem objeto do campo de minha percepção, nem sujeito que me percebe, ele é parte do que avistamos a nossa volta, sem a qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz. O que entendo como ‘eu’ e o que entendo como outrem se faz ao mesmo tempo. Mesmo que os feitos desse campo perceptivo se efetuem em personagens reais, sujeitos variáveis que conjuguem “eu para vós” e “vós para mim”, ele remete à organização geral, ao processo que atualiza o vosso e o meu no campo perceptivo - sujeito=relação. Quando falamos em outrem e em mundos possíveis, dizemos sobre o que se torna tangível a partir da sua presença, algo que Figura 7: Bond of Union de M. C. Escher. só acontece em função das relações, da realidade em que ao mesmo tempo o ‘eu’ e o ‘outro’ se constituem (DELEUZE, 2007). O holograma que aplaca a perturbação que outrem nos traz é uma projeção em movimento, que se dá pela passagem sempre provisória em que pedaços do ‘eu’ se esvaece e outros elementos passam a constituí-lo. O mesmo se diz sobre o que é figura e fundo. Há, pela ideia de Deleuze, uma gama infinita de possibilidades que podem ganhar emergência na configuração social, possibilidades sempre em potência para emergir, mencionadas pelo autor 48

como virtualidades. Dessas virtualidades, um conjunto emerge em objetos pela estrutura perceptiva e desse conjunto, que é momentâneo, se forma tanto as figuras como o fundo. E é justamente a presença de outrem na realidade em que me situo, que organiza tanto o que se faz figura, quanto o que se faz fundo. Tal processo pode ser observado, por exemplo, na realidade emergente e compartilhada entre pessoas em situação de rua em que se encontram apenas membros de seu grupo, e a realidade emergente que esse mesmo grupo compartilharia ao constatarem a presença do policial. Alguns dos elementos que antes tinham ênfase na realidade que acessavam, perdem espaço para outros elementos que se territorializam na nova configuração junto ao policial, ou seja, o que antes existia apenas em virtualidade, apenas em potência, passar a compor a realidade, enquanto que alguns elementos antes presentes no território existencial deixam de se manifestar e voltam à condição “virtual”. A presença do outro perturba, afeta e mobiliza o mundo a nossa volta. Se retomássemos ao exercício literário descrito anteriormente poderíamos utilizar o recurso cinematográfico em que ora vemos a cena como espectador, ora vemos como protagonista. Recurso utilizado pelo diretor Luchino Visconti no filme Morte em Veneza, que conta sobre a vida e o conflito de um músico que achava que a arte era produto da razão e da reflexão. Após passar toda a história sob a perspectiva de espectador, o filme apresenta a cena em que o músico, com a saúde debilitada, encontra-se no saguão de um hotel em Veneza. A partir do momento em que o músico avista um garoto que estava transitando pelo hotel a imagem passa a ser a do olhar do protagonista, nos levando ao mundo que se criava pelos olhos do personagem principal. Abre-se então a percepção de como a presença do garoto traz um mundo de possibilidades, das quais o filme não encerra em esclarecer qual foi concretizada. 5 Voltando ao exercício, dentre todas as virtualidades em potência que podem emergir na imagem, constitui-se a que apresenta a rua composta por bares, esquinas, policiais, armas, travestis, silicones, carros, clientes, prédios e moradores de rua. No meio a essa paisagem diversa e plural são eleitos sucessivamente figuras que se destacam do fundo. Numa primeira focalização avistamos uma travesti debruçada sobre a janela de um carro. Percebemos uma negociação, um acordo que envolve preços e condições para uma relação sexual; a pessoas que estão ali habitam o território enquanto profissional do sexo e cliente. Ao mesmo tempo, outro carro passa ao lado destes e os que estão em seu interior gritam: “ai moçada, vocês deviam desaparecer da rua!”.

5 Discussão baseada em aula gravada do professor de filosofia Claudio Ulpiano. Fonte: www.claudioulpiano.org.br 49

Mais ao fundo desta imagem encontra-se uma pessoa que passa progressivamente a ganhar destaque na paisagem, passa a ser figura. Ela transporta uma mochila preta, com uma alça, da qual tira jornais impressos que esparrama em frente a um prédio, para então deitar-se sobre ele. Ao focalizarmos mais detidamente esta ação, vemos que na fachada do prédio há um degrau largo e extenso, na qual é possível acomodar-se. Este processo de acomodação ocorre até o momento em que sai uma pessoa, dizendo-se porteiro, empenhando a voz para que ele se retire da frente do prédio. Inicia-se uma discussão. É então que um homem deixa seu café no balcão do bar e dirige-se ao prédio. Neste momento, nos direcionamos ao olhar da pessoa que estava deitada e vemos a imagem pelos seus olhos. Na medida em que o homem se aproxima observa-se seu boné, uniforme e armas na cintura: é um policial. Vemos ele colocar a mão sobre arma, sem a tirar da bainha, e perguntar: “o que está acontecendo?”. Se parássemos a imagem neste momento, olhando o policial pelos olhos de alguém que estava prestes a buscar noite de sono na fachada do prédio, pararíamos o processo no instante em que a pessoa estaria construindo um mundo que é possível pela presença de outrem, no caso policial. Para darmos continuidade à cena faríamos o que Rolnik (1989) chama de antropofagia pelo viés da cartografia. Estaríamos ‘devorando’ os outros, na postura antropofágica, tanto na posição de expectadores, como, nesse caso mais específico, na condição de se colocar na posição desse outro, nos apropriando dele. E nessa metabolização do outro se criaria um relevo psicossocial a ser cartografado textualmente pela pesquisa, que é a escrita sobre o mundo manifestado por esses outros. No caso em questão, a diferença que faz da outra pessoa policial é formadora também da pessoa que o vê. O ‘eu’ que está olhando o homem que saiu do bar se aproximar tem, progressivamente, partes de si esvaecidas, enquanto outras se tornam atuantes. A cada instante ele deixa de ser um ‘eu’ que se faz pela vontade de descanso de seu corpo e se torna um ‘eu’ que se faz em um mundo no qual há presença de policiais, um mundo no qual há a presença de um senso de ordem e segurança que esse policial re(a)presenta e que produz efeitos sobre ele. Percebe-se assim que a constituição de sujeito não ocorre isoladamente. Ela implica uma relação, um regime de verdades que varia de acordo com a composição da realidade. Regimes que, por exemplo, faz da diferenciação entre travesti, cliente e pessoas que gritam a estes personagens algo que não mereça atenção especial ao olhar do profissional de segurança, enquanto a discussão entre morador de rua e o porteiro de um prédio o faz. O entendimento do sujeito enquanto produção remete, nesta pesquisa, à discussão de Guattari e Rolnik (2005) sobre a produção de subjetividade. Partindo da noção de produção 50

maquínica, os autores recusam a ideia do sujeito enquanto entidade individuada, prescrita pela sua identidade. Para Guattari (2005, p.42), a “subjetividade é manufaturada como o são a energia, a eletricidade ou o alumínio”. A proposta é que do mesmo jeito que se injeta moléculas no leite para transformá-lo em leite condensado, são necessários modelos culturais, leis, instituições educacionais, linguagem e outros mais para que algumas o sujeito ganhe matéria em um território existencial. O interesse pelos processos de subjetivação pode ser tratado pela busca dos autores em descentrar a subjetividade. A produção de subjetividade, assim, não é centrada nem em agentes individuais, mais próximos das instâncias intrapsíquicas, egóicas e microssociais, nem em agentes grupais. Ela se produz no entre, na ligação de modos de expressão que podem ser tanto de uma natureza infrapessoal (sistemas de percepção, sensibilidade, afeto, inibição, automatismos), quanto de natureza extra-pessoal (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos). Como coloca Guattari (2005, p.41), “o que se poderia dizer usando a linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade”. Ao mesmo passo em que nossos personagens vão se constituindo conforme as relações que estabelecem – morador de rua e descanso na fachada do prédio, morador de rua e porteiro, morador de rua e policial – pode ser colocado que a cada instante eles são “terminais” de passagem de diferentes produções de subjetividade. Noutro enfoque, o da relação da travesti com seu cliente, há um processo de subjetivação específico do oferecimento e consumo de serviços profissionais do sexo, que momentaneamente é abalado no momento em que outro carro passa e pessoas gritam. Nesta perspectiva, o campo da pesquisa, constituído pelo contexto da segurança pública carioca, será problematizado por meio de sua emergência em territórios existenciais. Os sujeitos, sejam eles trazidos enquanto policiais, ou outros grupos, não serão entidades que ora podem ser considerados isoladamente, ora podem ser considerados em relação. Eles serão, a todo instante, elementos de relações. Serão sujeitos cuja constituição só adquire forma em seus planos de emergência. Tal entendimento é trazido pelo interesse da pesquisa em enfatizar a realidade enquanto produção. Assim, uma vez que não possui uma constituição natural, a mesma poderia dar vazão a transformações que impliquem novas formas de segurança pública, que inclua expressões da diversidade em que o fator da diferença não seja necessariamente produtora de risco e, por isso, passível de intervenção. O jogo entre o estranhamento e a perturbação causada pela presença de outrem e os regimes de verdade que 51

são convocados a situar esse outrem em exercícios regulamentados de poder é o plano pelo qual se orienta a discussão que segue.

2.2.1 O outro no texto acadêmico e nas relações sociais: a questão das autoridades etnográficas

A pesquisa procura se debruçar sobre como a figura de outrem regula as relações de poder nas práticas de segurança. Todavia, uma questão que se apresenta é como debater e conferir a presença do outro também no texto acadêmico. O trabalho procura trazer algumas reflexões acerca de como os diferentes períodos e posturas em que as ciências humanas transitaram interferiram e ainda interferem na postura do pesquisador social e na sua consequente produção de conhecimento sobre outrem. Tendo a alteridade como fio condutor, procura-se alguns apontamentos sobre a contribuição da antropologia e das modalidades de autoridades etnográficas que delas suscitaram. A autoridade etnográfica, segundo Clifford (2008), diz respeito às estratégias retóricas que o antropólogo utiliza enquanto autor do texto, bem como à maneira com a qual o texto ganha legitimidade e validade ao representar um contexto sociocultural específico. Trazendo as questões relacionadas às autoridades experiencial, interpretativa, dialógica e polifônica, Clifford, bem como as valiosas contribuições de Brandão (2003) e Caiafa (2007), destaca a preocupação sobre como o grupo estudado é representado na escrita. A alteridade situa-se no centro da produção antropológica. Como pode ser visto em Goldman (2006), essa disciplina constitui-se como palco privilegiado de se pensar a diferença. Este autor aponta que o cerne da questão do antropólogo, é a “disposição para viver uma experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de transformar essa experiência pessoal em tema de pesquisa que assume a forma de um texto etnográfico” (op.cit., p.167). Contudo, o que impulsiona esse pensamento abre margens para variados e distintos modos de produção de conhecimento. O fazer antropológico sempre esteve enredado em agenciamentos que estão além da experiência do trabalho de campo. O desenvolvimento da ciência etnográfica que se tornou uma atividade do antropólogo, academicamente treinado, durante a virada para o século XX, “não pode, em última análise, ser compreendida em separado de um debate político- epistemológico da alteridade” (CLIFFORD, 2008, p.20). O fato do trabalho etnográfico poder ser enxergado como um todo coerente, alcançado pelo poder de observação do etnógrafo, abriu margem para que a teorização sobre esse conjunto fosse próxima da interpretação funcionalista, onde “certas instituições sociais, 52

eram recortadas no contexto de um presente que se reduzia ao período de sua presença no grupo” (CAIAFA, 2007, p.137). Assim, os grupos eram estudados de maneira generalista e a alteridade se construía sob a forma de representação de um universo coerente, composto por instituições que ocupavam o primeiro plano contra o pano de fundo cultural. A objetividade do pesquisador, garantida pelo rigor científico de que eram representantes, fazia com que a construção do “outro” fosse legitimada sem necessariamente haver um esclarecimento de seu processo. A base realista herdada de outras ciências, fez com que, por meio da empatia, se chegasse ao que seria a realidade de outrem, que era geralmente posto a exemplificar alguma teoria geral sociológica. De modo geral, a diferença do ‘outro’ convergiu para assegurar a sustentabilidade dos padrões que se buscavam ordenar na experiência do grupo estudado, representando o nativo a partir de uma essência, fechada sobre si mesmo. Este argumento nos ajuda a observar que, como a psicologia positivista, a antropologia por vezes insere-se no contexto em que há uma predominância do realismo empírico. A disciplina eventualmente opta por abordar a realidade como um todo objetivo, em que os dados observáveis constituem relações de causa e efeito. O homem, como parte da natureza, é concebido a partir de sua exterioridade, e da mesma maneira em que há leis atuantes no mundo natural (como a lei da gravidade), há de haver leis que regulam suas práticas cotidianas. Assim, criam-se dois mecanismos que acabam por hierarquizar a relação entre os povos ditos primitivos e os ocidentais economicamente desenvolvidos. Uma vez que a realidade e o homem são entidades naturais e objetivas, são subtraídas as possibilidades de relativização de suas ações. Por outro lado, sendo o comportamento do homem regulado por leis (em que as construções sociais e históricas são coadjuvantes), torna-se possível uma comparação entre culturas, baseada supostamente em graus distintos de evolução. O nativo e seu grupo são representados, portanto, a partir de um referencial proveniente de quem o estuda, “etnocentrismo”, acarretando na inferiorização de suas manifestações (CLIFFORD, 2008). Segundo a discussão proposta por Rapport e Overing (2000), a ideologia de exclusão, encontrada no confronto do pensamento ocidental que constrói o “outro” como exótico, está vinculada a um projeto de dominação, constituindo-se numa estratégia de desautorização do mesmo. Ganhando fôlego com a linguagem popular do evolucionismo, a inferiorização e exclusão do “outro” tornou-se uma constante no desenvolvimento do pensamento europeu, obtendo ressonâncias na produção científica – como veremos adiante com a eugenia e higienismo. 53

Dessa maneira, a negociação da diferença se processa de maneira diversificada em cada lugar e momento histórico, estabelecendo representações hegemônicas sobre temas diversos. Empreendimentos como o colonialista e o imperialista deixaram marcas profundas emergentes no processo histórico contemporâneo. Assim, ao longo da discussão que se segue, procura-se elucidar alguns desdobramentos dessa prática que possam contribuir para a maior flexibilização da produção da alteridade. Nas palavras de Goldman (2006, p.460-461), “no caso específico da democracia, uma teoria etnográfica ainda possui, creio, uma vantagem suplementar: ajudar a suspender os julgamentos de valor quase inevitáveis quando um tema tão central em nossas vidas é submetido à análise”. A incitação de Goldman aponta que, uma vez dedicado à discussão da diferença, faz-se necessário apreendê-la sem suprimi-la, intencionando impulsionar o pensamento ao invés de explicar um objeto: O nativo não é mais simplesmente aquele que eu fui (como ocorre no evolucionismo) ou aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo), ou mesmo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo); ele é o que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro). (GOLDMAN, 2006, p.463)

Ao comentar a obra de Foucault, Faé (2004) coloca que para uma proposição pertencer a uma disciplina, em um domínio específico, é necessário que ela responda a condições estritas e complexas: “precisa dirigir-se a um plano de objetos determinados e deve se inscrever num horizonte teórico singular” (FAÉ, 2004, p.411). Segundo Faé, o que está em jogo é a oposição entre, de um lado, a fecundidade de um autor e os comentários que possibilitam novos recursos para a criação de discursos e, de outro, os princípios de coerção, que na sua função de filiar as produções em um arcabouço coeso restringem o papel positivo do multiplicador. Desse modo, as críticas provenientes das autoridades etnográficas são pertinentes tanto ao texto da pesquisa, como ao modo com que ela discute as relações sociais. Instrumentaliza, assim, a escrita e as maneiras com as quais o trabalho visa abordar a realidade, trazendo sob os olhos o cuidado aos processos que descolam o “outro” de seus contextos culturais, os homogeneizando e cristalizando em uma representação fechada. Nesse sentido, para atenuar e flexibilizar a relação com a diferença, são destacadas as contribuições das autoridades dialógicas e polifônicas, que conforme Brandão (2003), comprometem-se com as interlocuções, contextos e situações em que a pesquisa se desenvolve. O informante (ou co-autor) não fala como uma testemunha ocular neutra, que falaria sempre as mesmas coisas para qualquer pessoa – um vizinho, um parente ou o antropólogo. O informante fala dentro de situações intersubjetivas específicas. Nesta perspectiva não é possível fazer a separação entre o “factual e o alegórico” nas 54

produções antropológicas, pois o dado etnográfico somente faz sentido dentro da narrativa que é construída ao seu redor. (BRANDÃO, 2003, p.13-14)

2.2.2 Entremeios da pesquisa: entrevistas e o refazer de direcionamentos

Em meio ao debate das autoridades etnográficas, a pesquisa procura valer-se de entrevistas e diários de campo como estratégias pertinentes à cartografia da segurança pública. Nesse sentido, respondendo às proposições de análise da implicação do pesquisador na produção dos dados e também das dificuldades que a pesquisa qualitativa se depara, cabe, primeiramente, apontar o interesse destinado às entrevistas no processo da cartografia e, posteriormente, apresentar ao leitor um pouco da dinâmica do trabalho ao longo de sua realização, comentando seus redirecionamentos. No âmbito da metodologia cartográfica, busca-se com a realização de entrevistas e observação participante a habitação de territórios existenciais (Alvarez e Passos, 2009) e o agenciamento de discursos junto aos grupos que compõem as discussões. Baseada no acompanhamento de processos que ocorrem junto às relações (entre pessoas, coisas, estéticas, ritmos, temperaturas e outros), a metodologia da cartografia se interessa no próprio processo de produção de sentidos e inteligibilidades, ou seja, na maneira com a qual um universo psicossocial se constitui - “mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos” (ROLNIK, 1989, p.15). A atitude do cartógrafo não se orienta no sentido de descobrir o que é um objeto e assim representá-lo, mas sim no sentido de descrever processos que estão em andamento. Não se tem o interesse de revelar o universo desses grupos, mas sim de construir paisagens por meio da comunicação compartilhada. A ideia é explorar a concepção de alteridade que temos desenvolvido junto à discussão de Deleuze (2007), buscando criar mundos que sejam possíveis, que se tornem visíveis por meio da diferença que as pessoas desses grupos podem imprimir. Uma postura que se aproxima do que Goldman descreve ao falar da experiência etnográfica pela perspectiva de Guimarães Rosa, uma “contaminação positiva e criativa que toda linguagem sofre quando busca traduzir, ou se aliar a outras linguagens – e que o escritor brasileiro João Guimarães Rosa chama de ‘fecundante corrupção das nossas formas idiomáticas de escrever’” (GOLDMAN, 2006, p.169). Não se busca criar discursos sobre os grupos, mas sim com os grupos. Nesse sentido, as entrevistas terão como objetivo a antropofagia dos sentidos expressos pelos entrevistados, em que “sinais dos estrangeiros” são devorados desencadeando diferentes direções na composição do texto, “um relevo formado por vozes reminiscentes das mais variadas origens, sintonias e estilos misturando-se e compondo-se” (ROLNIK, 1989, 55

p.16). Almeja-se, por meio dessa interlocução, ver se apreendemos alguns signos singulares, alguns fios soltos e rugosidades (KASTRUP, 2008) que possam dar passagens a novas e potentes produções de realidade. Nesse contexto, tendo visto os direcionamentos apontados pela cartografia quanto à utilização das entrevistas e das observações como estratégias de produção de dados, cabe refletir sobre as mudanças de estrutura que ocorreram na organização da presente pesquisa. Partindo da experiência disparadora no trabalho com policiais em Belo Horizonte, a pesquisa, inicialmente, organizou-se no sentido de problematizar a temática da segurança pública carioca a partir da relação entre policiais militares, travestis e pessoas em situação de rua. Tal interesse é proveniente das orientações da Secretaria Nacional de Segurança Pública, a Senasp, no tocante à abordagem policial face grupos em situação de vulnerabilidade. Com treinamentos e concepções provenientes de experiências de integração das normas de Direitos Humanos e princípios humanitários à atuação policial, como a realizada pelo CICV, a partir de 1998, este tipo de abordagem ganhou mais atenção do Pronasci, sendo lançada ao final de 2010 a cartilha com título “Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade”, que tem a seguinte finalidade: Fornecer elementos teórico-práticos para que profissionais de Segurança Pública possam pautar o exercício de sua atividade no respeito aos direitos e liberdades individuais, conscientizando-se de sua capacidade de promover e proteger os Direitos Humanos de mulheres, crianças, idosos, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, vítimas da criminalidade e abuso do poder, moradores de rua, vítimas do preconceito de raça ou cor e pessoas com deficiência. (BRASIL, 2010a, p.13)

Nesse momento inicial, chamava atenção da pesquisa, por um lado, a demanda em se produzir conhecimento em torno da atuação do policial militar junto aos grupos em situação de vulnerabilidade e, por outro, a própria colocação desses grupos enquanto vulneráveis. O processo diz sobre a necessidade de elementos teórico-práticos para pautar a atuação dos profissionais de segurança no respeito aos direitos e liberdades, ao mesmo passo que trata de “grupos de pessoas que se encontram com maior vulnerabilidade a violações de Direitos Humanos” (BRASIL, 2010a, p.13). Então, foram produzidas perguntas norteadoras das discussões, como: o que faz promover elementos que pautem a atividade policial que respeite os direitos e liberdades individuais? O que isso pode dizer sobre a atividade do policial militar? Quais processos históricos fizeram com que esses grupos se encontrem com maior vulnerabilidade a violações de Direitos Humanos? A relação entre esses personagens ganhou destaque em função das redes analíticas que permitem estabelecer com a inclusão ou não da diversidade nos territórios habitados pela 56

segurança pública. Observou-se a fecundidade de discutir estas relações em função de fazerem ver e falar tanto as emergências históricas em relação às práticas de segurança no Rio de Janeiro, como as urgências com que o campo se defronta nos dias atuais. Dentre os grupos vulneráveis abarcados pela cartilha encontram-se mulheres, crianças, adolescentes, idosos, pessoa com deficiência, lésbicas, gays, travestis, transexuais e pessoas em situação de rua, além dos grupos relacionados à discriminação de raça ou cor. Assim, optou-se por escolher os personagens que possuem a rua como um de seus principais planos de constituição, sendo o grupo das travestis delimitados pelas que são profissionais do sexo. Tal elo integrativo, a rua, ganhou força na medida em que realça o espaço ao qual a pesquisa se dedica, que é o espaço público e dos encontros. Como diz João do Rio (1952, p.2) A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam, lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios.

Nesse sentido, a pesquisa recorreu a um mapeamento de instituições e contatos que permitissem a realização de entrevistas com esses três grupos: policiais militares, travestis e pessoas em situação de rua. Para as entrevistas com policiais militares foram contatados um coronel reformado, ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) e três capitães que participaram da elaboração da cartilha referente à abordagem do policial militar juntos aos denominados grupos em situação de vulnerabilidade. A partir desses contatos foi estabelecida uma continuidade em “bola de neve”, na qual o entrevistado é solicitado a indicar outras pessoas a participarem da pesquisa. No caso dos policiais militares, vale destacar que após o doutoramento sanduíche, realizou-se entrevista com outro coronel da PMERJ, Robson Rodrigues, que acabou por originar, em articulação da pesquisa junto ao network estabelecido no Reino Unido, um intercâmbio internacional em que um grupo de oficiais da PMERJ realizaram visitas às polícias e universidades escocesas e norte irlandesas. No tocante às pessoas em situação de rua, foram realizadas entrevistas individuais, com pessoas que usufruem do Hotel de Acolhida Santana (que recebe adultos em situação de risco para pernoite) e do Centro de Referência Especializado em Atendimento à Pessoal de Rua (CREAS POP), situado na Rua do Líbano, ambos na região central. Também foram realizadas entrevistas com profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF) Oswaldo 57

Cruz, que possui um programa destinado à pessoa em situação de rua, denominado de Consultório de Rua. Outro grupo visitado é o que compõe o Fórum sobre População de Rua, que se reúne mensalmente no CREAS, situado na Rua México. Além destes locais, também foram efetuadas duas observações, em 30/09/2011 e 05/10/2011, junto à equipe da prefeitura que realiza abordagem à população de rua, dentro do contexto do Programa Municipal de Internação Compulsória, das quais participaram psicólogos, assistentes sociais e agentes comunitários da Prefeitura do Rio, bem como policiais militares. Nestas ocasiões, duas entrevistas coletivas foram feitas com pessoas em situação de rua, cada uma em dia, ambas em frente à Delegacia, no momento em que os mesmos ficam aguardando, na van, até sua entrada para identificação6. Por fim, quanto às travestis, os contatos estabelecidos ocorreram através do PSF da Lapa e de profissionais que atuam no Centro de Educação Sexual (CEDUS). Todavia, foi encontrada dificuldade na realização das entrevistas com esse grupo, sendo efetuada uma entrevista coletiva, de cerca de uma hora, com cinco travestis em um bar na região da carioca, centro do Rio7. Todavia, o planejamento inicial da pesquisa, voltado para a problematização da relação entre esses três atores, acabou por se transformar. Conforme comenta Kastrup (2007, p.18) a respeito da metodologia cartográfica: “em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido, ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem de onde. Para o cartógrafo o importante é a localização de pistas, de signos de processualidade”. Assim, junto às dificuldades em se acessar esses grupos, principalmente o das travestis, ocorreu o progressivo deslocamento da atenção para se discutir a diversidade em segurança em âmbito mais geral, no sentido em que os grupos citados e sua condição enquanto vulneráveis passassem a figurar como analisadores tangenciais e não em dispositivo central. A pesquisa iniciou um novo movimento, no qual houve a quebra temporal que o doutoramento sanduíche trouxe às entrevistas, bem como a atenção que o mesmo proporcionou às experiências escocesas e, sobretudo, norte irlandesa. As questões do policiamento e dos paradigmas de segurança ganharam mais evidência e grande parte do esforço acadêmico direcionou-se para a articulação e realização do intercâmbio da PMERJ no Reino Unido, no primeiro semestre de 2013.

6 Após a população de rua ser recolhida pelos agentes da prefeitura, as pessoas são levadas à delegacia mais próxima, para averiguar se possuem pendências judiciais, até serem, então, encaminhadas às casas de acolhida. 7 Para a visualização das entrevistas e observações de campo encontra-se uma tabela informativa em anexo (ANEXO II), ao fim do trabalho. 58

Dessa maneira, manteve-se a alteridade enquanto analisador central e fio condutor da discussão, elencando-se, em cada capítulo, temáticas que permitissem a visualização de seu processo. Nesse contexto, as entrevistas e as observações realizadas, acrescentando-se as efetuadas no período fora do Brasil, foram utilizadas e referenciadas como disparadores de tópicos específicos, que visam trazer a vivacidade do campo às reflexões estabelecidas. Debruçando-se sobre a utilização das entrevistas na pesquisa cartográfica, Tedesco, Sade e Caliman (2013, p.300), reforçam que um dos principais norteadores da atividade é o entendimento de que “os processos e suas transformações consistem em forças cuja condição de possibilidade e efeitos surgem do plano coletivo”, indicando “ser a experiência, presente nesse plano de coengendramento entre pesquisador e campo problemático, o principal objetivo da entrevista”. Os autores ainda destacam que “a entrevista na cartografia não visa exclusivamente a informação, isto é, o conteúdo do dito, e sim o acesso à experiência em suas duas dimensões, de forma e de forças, de modo que a fala seja acompanhada como emergência na/da experiência e não como representação” (op. cit., p.303).

2.4 DISPOSITIVOS DE CARTOGRAFIAS: ACOMPANHAR PROCESSOS POR DIFERENTES ENTRADAS NO CAMPO PROBLEMÁTICO

É necessário distinguir, em todo dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, é a configuração do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando. Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas do futuro próximo (...) Se Foucault é um grande filósofo é porque se serviu da história em proveito de outra coisa: como Nietzsche dizia, “agir contra o tempo, e assim, sobre o tempo, em favor de um tempo futuro”. (DELEUZE, 1990, p.160)

Após dispor textualmente as ferramentas teóricas e metodológicas, a pesquisa traz a questão de como colocar o fio condutor de discussão em um conjunto coerente. O intento, portanto, é o de trazer à tona as maneiras com que se busca conferir coesão aos capítulos, o que se realizará a partir da questão norteadora do trabalho: como o exercício e a promoção da cidadania em segurança pública relaciona-se com a acolhida ou não da diversidade pelos espaços e práticas sociais? Conforme visto anteriormente, a cartografia tem como objetivo o mergulho nas intensidades dos contextos, para que, com as linguagens que o cartógrafo encontrar, formar cartografias que se fazem potentes para a discussão da sociedade. Uma vez que difere da análise totalizante da realidade, cartografar implica acompanhar processos. No caso dessa pesquisa, processos que envolvem o acirramento de elementos comuns ao social e que suprimem a diferença em termos de comparação e hierarquização, ou processos que, por sua 59

vez, ampliam as possibilidades de expressão e dão margem ao pluralismo intergrupal. Assim, para fazer emergir as estratégias utilizadas para cartografar tais processos, retoma-se o conceito de dispositivo: (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 2008, p. 244)

O dispositivo é, conforme pensado por Foucault e desenvolvido por Deleuze (1990, p. 155), “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear”, uma composição de linhas de diferentes naturezas que “não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras”. Ao utilizar essa conceituação a pesquisa faz referência a um “trabalho de terreno”, em que se buscam as curvas de visibilidade e enunciação: “o certo é que os dispositivos são como as máquinas de Raymond Roussel, máquinas de fazer ver e de fazer falar, tal como são analisadas por Foucault” (DELEUZE, 1990, p.155). Foucault utilizou-se, por exemplo, do dispositivo da prisão para poder lançar luz aos regimes da sociedade operada pela vigilância e punição. Como diz o autor, o dispositivo constitui “um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência” (FOUCAULT, 2008, p.244). A pesquisa procura, então, trazer em seus capítulos algumas das formações sociais que, em localizações históricas específicas, procuraram responder às urgências da época no tocante à segurança pública. Tais são os casos do capoeira e do menor, no século XIX e início do XX, trazidos no próximo capítulo. Ambos figuraram como personagens de destaque, aos quais os saberes da época destinaram atenção e formaram redes discursivas. Por meio das trajetórias em que estiveram presentes, o capoeira e o menor possibilitaram o acompanhar de processos ligados, por exemplo, à questão da circulação de negros em vias públicas, então vista como produtora de riscos e perigos, e à questão da gestão do Estado junto a crianças em situações familiares tidas como “irregulares”, em função do Código do Menor de 1927. A emergência desses personagens permite a análise tanto da anátomo-política destinada aos “corpos estranhos” circulantes nas ruas, como da biopolítica direcionada à população brasileira e em especial à carioca da época (FOUCAULT, 2005). 60

Busca-se, a partir dos dispositivos da pesquisa, a discussão não só das políticas implementadas no tocante às diferenças entre grupos e sujeitos, como também os critérios que a sustentaram. Como diz Foucault (2008, p.152), “o interessante não é ver que projeto está na base de tudo isto, mas em termos de estratégia, como as peças foram dispostas”. O mesmo se aplica aos dispositivos dos capítulos seguintes, que versam sobre os paradigmas de segurança pública no Brasil, do período do golpe militar aos dias atuais, e sobre as reformas ocorridas nas polícias escocesas e norte irlandesa. No tocante ao caso brasileiro, intenta-se observar as raízes do imobilismo político do campo da segurança, tal qual comentado por Soares (2013) e discutida por outros autores (MISSE, 1997; FREIRE, 2009; entre outros). Os obstáculos trazidos pelos autores perpassam, necessariamente, as formas de inclusão e exclusão da diferença, tal qual também ocorre, por exemplo, na Irlanda do Norte, em que o equacionamento balanceado entre protestantes e católicos - unionistas (favoráveis à integração ao Reino Unido) e republicanos (favoráveis à independência) – constitui-se como peça chave para a promoção de ideais e práticas ligadas à isonomia de direitos e respeito à diversidade. A coesão do trabalho manifesta-se, portanto, pelo olhar atento à produção da alteridade; pelo acompanhamento dos processos que dizem sobre os critérios utilizados em cada localização histórica para diferenciar as pessoas; pela observância dos mecanismos que promovem a segregação e exclusão e dos que promovem o acolhimento e a tolerância. Acompanhamento de processos que, em todos os dispositivos utilizados, se valerá das linguagens circulantes em seu período, como as das figuras utilizadas, e das texturas que dão cores à realidade e são perceptíveis à arte da flanação. E o que significa flanar? João do Rio (1952, p.3) nos responde: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino”. O autor, posteriormente, ainda finaliza: “Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas” (id, ibid.). Nessa antropofagia cartográfica, os discursos devorados serão os de todas as qualidades, os inúteis, artísticos e jurídicos, tudo aquilo que pode ser imprescindível, mesmo que em sua condição eternamente adiável.

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3. O VIÇO NA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE E OS EFEITOS DAS DIFERENCIAÇÕES EM RESPOSTA À INSEGURANÇA: O CAPOEIRA E O MENOR COMO DISPOSITIVOS DE ANÁLISE

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem o poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2008, p.12)

Ao nos atentarmos aos coletivos humanos, aos modos de vida, às diferenciações entre sujeitos e seus efeitos correlatos, nos deparamos com regimes de verdade específicos, que convergem e/ou tensionam-se entre si. Regimes de verdade que dizem sobre o discurso que possui legitimidade, sobre as fontes sociais que sustentam debates e práticas, e aquelas tratadas com indiferença ou oposição. Tem-se uma economia política geral de verdades que diz sobre as instâncias e mecanismos que permitem distinguir enunciados verdadeiros daqueles compreendidos como falsos. Entender que os grupos sociais investem em regimes específicos de verdade, que não necessariamente são compartilhados-investidos por outros grupos, é entender que se há algo considerado natural, trata-se não de uma natureza universal, mas de uma natureza produtiva. O que vivemos, o que sentimos e o que fazemos se produz nesses regimes, se produz nas e pelas lógicas que operam nesses regimes. Afinal, considerar que não há uma realidade universal, mas sim realidades produzidas por regimes de verdade específicos não implica dizer que a realidade não possui efeitos e que esses efeitos não sejam materiais e sensíveis. Como diz Foucault na passagem acima, “a verdade não existe fora do poder ou sem o poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”. Não há verdade e efeitos de poder senão aqueles que se manifestam no cotidiano, nos modos de ser e estar no mundo, nas mais variadas formas de gestão da vida. E como pensar a segurança nesta perspectiva? Como pensar as localizações históricas em que certos elementos adquirem mais visibilidade em detrimento de outros? Pensar a segurança pública nesta perspectiva é pensar que a sociedade investe, a um só passo, tanto numa determinada lógica de classificação e diferenciação dos sujeitos e suas práticas, como em formas específicas de responder a essas classificações e diferenciações, o 62

que por vezes entra num ciclo em que a elas se retroalimentam. Colocando em outras palavras, em torno do que se chama segurança pública são convocados enunciados científicos, proposições filosóficas e morais, organizações arquitetônicas, entre outros, que dão visibilidade às categorias de seguro, inseguro, crime, criminoso, risco e prevenção. Uma vez que há algo estranho a nos rodear, todas essas instituições são trazidas para capturar a estranheza e colocá-la dentro de uma inteligibilidade. Estando em categorias, estando dentro de um plano registro em que o estranho é classificado, por exemplo, como irregular, perigoso, anormal, surge uma necessidade, uma urgência de responder a essas classificações. Cria-se um aparato social que responde às dificuldades de se viver em conjunto com a diferença, delimitando quais medidas serão tomadas para confrontar ou eliminar seu perigo. Ocorre uma leitura social que esquadrinha o território de sentidos formado. Assim, tal sistema lógico de verdades coloca-se como instituído, legitimando e reforçando as visibilidades de sua categoria. O poder, a que se refere Foucault (2008), ou o império nomadizado como o problematiza Pelbart (2003), encontra-se no centro desse processo, “vampirizando” os arranjos de visibilidade que irão ganhar força, excluindo simbólica e/ou materialmente aqueles que levam para outros territórios. Se há várias possibilidades de estar no mundo com a diferença, o poder trata justamente de classificar e regular essas possibilidades, fazendo com que uma ganhe viço em detrimento de outras; visando a continuidade de tais sistemas lógicos por meio de uma gestão positiva da vida. Assim, o capítulo visa cartografar as redes de sentido atuantes no campo da segurança pública carioca, lançando luz a como certas formas de vida ganham viço nos grupos sociais, têm suas diferenças capturadas e delimitadas segunda a leitura social, que, por sua vez, retroalimenta essa leitura pela sensação de insegurança. O intento é refletir sobre o contexto sociopolítico que de alguma forma vem acirrando elementos que estão presentes na sociedade como um todo e que faz com que as práticas de proteção e produção da segurança sejam pautadas pelo medo, risco e pela segregação e exclusão de grupos e práticas específicas. Utilizando-se da figura do capoeira e do menor como dispositivo para fazer ver e falar as produções sociais, a busca é pelos modos como a sociedade tem informado o espaço público e o campo da segurança, bem como tem ocorrido as ressonâncias dos processos do modernismo em solo brasileiro; quais têm sido os olhares sobre o que é sentir-se seguro; como o risco tem sido identificado e sobrecodificado nos discursos circulantes e quais os efeitos na relação com a diferença que esses processos produzem. É explorar, nesse sentido, a reflexão de Guattari (1995) sobre a perda de aspereza da alteridade, uma vez que modos de 63

vida humanos individuais e coletivos por muitas vezes têm evoluído no sentido de uma progressiva deterioração da subjetividade.

3.1 A QUESTÃO DO VIÇO A segurança pública está entre as maiores preocupações da sociedade brasileira nos dias atuais. Disputa com a saúde e a educação a prioridade na atenção de autoridades e imprensa. Não há plataforma de governo que não contemple ações no âmbito da segurança, seja na prevenção, seja no enfrentamento da violência. O noticiário, por sua vez, acompanha diariamente tudo o que diz respeito a essa questão. Trata-se de um desafio de todos. (...) E o ponto de partida dessa mobilização é a percepção da real dimensão do problema. É preciso reunir dados, confrontá-los, analisá-los, interpretá-los e apresentá-los à sociedade para que, de posse deles, ela possa agir com mais confiança. Somente com o triste fenômeno da violência devidamente dimensionado, pode-se realmente enfrentá-lo. (WAISELFISZ, 2012, p.5)

A fala de abertura do Mapa da Violência de 2012 aponta questões pertinentes a essa pesquisa. O tema da segurança pública é sem dúvida um dos pontos de maior interesse de autoridades, imprensa e público em geral no Brasil. Das conversas de botequim aos debates eleitorais, passando pelas capas de jornais, encontramos a segurança e os seus temas correlatos ocupando lugar de destaque. Ela tem sido objeto relevante nas discussões e formações de opiniões, sempre aglutinando em torno de si uma vasta rede discursiva, capaz de mobilizar diferentes grupos. Todavia, o segundo ponto ressaltado pela passagem do estudo refere-se ao que pauta o debate da segurança e aos instrumentais empregados em seu dimensionamento. Por mais que a própria Constituição brasileira corrobore a ideia de que a segurança pública é um desafio de todos, tem sido difícil creditar às autoridades e à imprensa a utilização de fontes qualificadas para informar o tema. Reunir dados, confrontá-los, analisá-los, interpretá-los e apresentá-los à sociedade para uma ação mais qualificada tem sido, ao contrário, um exercício muitas vezes sustentado pelo clamor da opinião pública, face algum crime de violência intensa e grande exposição midiática, como a discussão da redução da idade penal após homicídio ou estupro praticado por um adolescente. Como aponta Luiz Eduardo Soares (2013), profundas transformações têm ocorrido em diferentes esferas da experiência coletiva brasileira, permanecendo inerte e impotente, porém, problemas históricos ligados à questão da insegurança pública. As altas taxas de homicídio, o intenso crescimento da população carcerária e a falta de planejamento para utilização dos recursos federais mostram os efeitos desse processo. Nesse sentido, cabe refletir sobre como um tema que fomenta tantos debates, que penetra tantas discussões e orienta políticas públicas pode estar sendo associado à impotência e inércia se comparado a outras esferas da experiência coletiva. Não se quer, com isso, 64

legitimar ou deslegitimar que outras áreas, como saúde e educação, andam a passos largos no sentido de resoluções e eliminações de problemas. Não se acredita nessa pesquisa em tal empreitada objetivamente finita, uma vez que lidamos com produções do real que são dinâmicas e, como tal, perecíveis às novidades e aos novos contextos que se apresentam a cada instante. O que se concentra aqui é a leitura dos movimentos que obstaculizam as transformações na área de segurança, apostando-se que o lançar luz aos capoeiras e à categoria de menor forneçam cartografia dos processos históricos que encontram ressonância nos dias atuais. Processos que dizem sobre uma cultura do ‘jeitinho’, dos favores, ou como diz Michel Misse (1997), de mercadorias políticas que marcam uma banalização sobre “ligações perigosas” entre práticas ilícitas e a incongruência do discurso social, produzindo uma construção moral ambivalente que contribui para a complexidade do quadro atual. A história aqui não deve ser entendida como uma reconstrução de algo obsoleto e definido, restrito ao passado. Seguindo a proposta de Baremblitt (2002), a tarefa histórica é a das localizações, encontros com aquilo que de alguma forma já teve início em um passado. Não uma história única, que seja verdade inquestionável e que totalize todo o devir da vida social em um único espaço e tempo. Mas, sim, histórias, econômicas, culturais, ideológicas, do desejo, do afeto - sendo que cada uma delas ocorre num tempo próprio que não se pode uniformizar. Trata-se de tentativas de experimentação dos diferentes tempos e processos históricos. “Não é o passado que gera o presente, e sim o presente que explora, que aproveita ou atualiza as potencialidades do passado para construir um porvir” (BAREMBLITT, 2002, p.43). No tocante à segurança pública observamos que o medo tem sido um grande aglutinador das atualizações dos processos históricos. Ao passo que se observa, segundo Waiselfisz (2013), um estancamento da espiral de violência que vinha se manifestando no Brasil, com a estagnação da taxa de homicídio nos últimos 13 anos em torno de 26 por 100 mil habitantes, ocorre a evidenciação do medo no país. Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2010, em todas as regiões brasileiras, constatou-se que 79% da população brasileira têm muito medo de ser assassinada; 18,8%, pouco medo; e somente 10,2% manifestaram nenhum medo. Na mesma pesquisa, questionados sobre a confiança que possuem na polícia civil e militar, 4,2% declararam confiar muito, 27,4% confiam, 42,8% confiam pouco e 25,6% não confiam. Dados esses que, além de demonstrarem baixa confiança da população em relação aos profissionais de segurança, segundo análise dos autores do Mapa da Violência 2012, refletem o caráter difuso da violência: “se a velha violência tinha atores claros, com nome, sobrenome e até endereço, 65

tanto das vítimas quanto dos algozes, nossa violência atual adquire um caráter totalmente difuso, nebuloso, tem a virtude da onipresença e da ubiquidade, embora não possa ser muito bem identificada” (WAISELFISZ, 2013, p.8). Para além do expressivo resultado de que um em cada dez cidadãos não tem temor de ser assassinado e oito em cada dez têm muito medo, destaca-se a própria colocação da pergunta em pesquisa. De fato, o Ipea não se interessou em pesquisar apenas o assassinato como também outras formas de violência, o que foi expresso pelas seguintes questões por ele utilizadas: você tem medo de ser assassinado, assaltado à mão armada, ter sua casa arrombada e ser vítima de agressão física? Muito medo, pouco medo ou não tem medo? A pesquisa reflete os questionamentos constantemente difundidos na mídia e nas conversas mais variadas, o medo ao assalto, ao roubo, à arma; o medo de, por não ter medo, colocar-se em risco. São demais os perigos desta vida?! Figura 8: Não alimente seus medos Ressalta-se que responder ao medo não é exclusividade dos respondentes da pesquisa do Ipea, mas prática constantemente observada em todos os locais, com uso das mais variadas linguagens. Por isso todo um aparato social que diz sobre a ordem da vida comum e o controle da violência tende a ganhar viço quando faz eliminar ou atenuar a sensação do medo. Guattari (1995, p.20), em comentário sobre os modelos de pensamento que influenciam uma sociedade, aponta que: “assim como em outras épocas o teatro grego, o amor cortês ou o romance de cavalaria se impuseram como modelos ou, antes, como módulos de subjetivação, hoje o freudismo continua a obcecar nossas maneiras de sustentar a existência da sexualidade, da infância, da neurose”. Portanto, trazendo a reflexão à temática da segurança, cabe perguntar quais módulos de subjetivação podem ser localizados historicamente e que continuam a obcecar nossas maneiras de gerir a vida, sustentando a existência da reclusão de liberdade, retirada de poder familiar e intervenção discricionária do Estado.

3.2 A DIFERENÇA DOS CORPOS NEGROS NAS RUAS DA CAPITAL COLONIAL: O DISPOSITIVO DO CAPOEIRA

Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. (Eduardo Alves da Costa, no poema No caminho com Maiakóvski) 66

O modo de relacionar-se com a diferença sempre produziu forte impacto no Brasil. Como observado em pesquisa do mestrado (MELICIO, 2009), há uma específica configuração em terras cariocas, que passou por intensas transformações desde a chegada da família real em 1808. O aspecto de uma urbanização carioca de contrastes, lenta e ainda embrionária na passagem do século XIX ao XX, e explosiva e acelerada entre as décadas de 1950 e 70, acarretam em realidades de profundas diferenças nos dias atuais, integrando favela, o ‘asfalto’ e o subúrbio, enquanto que no século XIX integrava traços da sociedade colonial e as inovações da progressiva utilização do espaço público. Ao nos aventurarmos pelo Rio dos Oitocentos poderemos ver uma localidade que apresenta uma crescente diversidade de modos de ser, que confrontava um regime escravocrata e rural, com o de desenvolvimento de trocas tipicamente urbanas e concepções europeias de ordenamento público que desembarcaram junto à corte. Há dois séculos, o Rio de Janeiro vivia uma ordem transitória que contemplava ao mesmo tempo sociedades hierárquicas tradicionais, pensadas por Freyre (1978) pela relação casa grande e senzala, e um número crescente de redes de trocas laborais caracteristicamente urbanas. E é nesse contexto que começamos a observar tanto as classificações de seguro e inseguro que informam a experiência coletiva, como o surgimento das práticas policialescas em resposta a essas classificações. Habitar o território da segurança de então é habitar um território em que se vê o crescimento da população escrava e a presença de um contingente urbanizado pobre e livre, que subsiste sem formas assalariadas, circulando no espaço a ser entendido como público. O aumento da circulação dos escravos, com destaque ao escravo de ganho8, acarreta na criação e exploração de novos espaços da cidade. A transição de atividades caracteristicamente rurais para atividades urbanas acontecem juntas ao desenvolvimento do espaço público carioca, visualizado pelas vias de trânsito da jovem urbe brasileira. As ruas, vielas, praças e becos são cada vez mais habitados e essa habitação é feita por negros livres e escravos, bem como por outros grupos provenientes das imigrações europeias, que enfrentavam condições semelhantes de segregação. Durante o século XIX, “há sinais de interpenetração de escravos de ganho, libertos e imigrantes disputando as mesmas brechas de subsistência na cidade, notadamente aquelas inscritas no circuito mercantil, como o transporte de cargas e o comércio de rua” (LESSA, 2000, p.159).

8 Carlos Lessa (2000) informa que o típico escravo urbano era o doméstico do homem rico ou de mediana posse, ou o transportador de cargas para o comércio, com destaque à figura do escravo de ganho - atuante na venda de serviços e produtos, dos quais tem que dar parte ao senhor.

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As atividades de controle e vigilância, antes exercidas pelo capitão-do-mato, guardas, capangas e antigas milícias do período colonial são substituídas por um aparato mais profissional. Instituição bicentenária, a polícia militar carioca tem sua origem ligada à chegada do corte portuguesa. Em 1808 desembarca em São Sebastião do Rio de Janeiro a Intendência Geral de Polícia de Lisboa, que resulta, ainda neste ano, na criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado. Todavia, o desembarque não é apenas o de uma corporação que se converteria na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, é também o desembarque de uma organização institucional, que como tal irá se articular e interpenetrar outras instituições (BAREMBLITT, 2002). A chegada da Intendência Geral acaba por aglutinar em suas práticas muito dos saberes que informam a sociedade da época. A economia e a política essencialmente escravocrata e uma racionalidade colonizadora são os principais substratos para fundamentação da ação policial. Com organização militar, a polícia vai constituindo-se em um lugar fronteiriço, entre os grupos de elite e não-elite, sendo produzida e sustentada pelos primeiros e exercendo vigilância e controle sobre os segundos (BICALHO, 2005). As articulações e recortes institucionais em questão inserem-se num contexto em que os espaços da cidade do Rio de Janeiro são cada vez mais tomados pela “negregada” (SOARES, 1994). O perigo de se ter tal população de negras corpulências em sua vias públicas é constantemente lembrado pela realeza, bem como pelos artistas viajantes e oficiais estrangeiros. A competência do império português e das regências de D. Pedro I e II é colocada à prova em função das providências que tomavam em relação à insegurança pelas produzidas. Como diz o relato de um representante da República Francesa, em 1887, durante todo o século XIX há no Rio grupos de negros, capoeiras ou não, que fazem grande número de vítimas; “atacam transeuntes inofensivos que não estão sendo perseguidos por nenhuma inimizade [...] o certo é que já existiam em 1812, como o prova uma ordenação do rei D. João VI. A fraqueza do governo brasileiro diante dessa horda de bandidos é objeto constante de espanto. Essa fraqueza não tem desculpa”9. Na mesma direção, Enders (2002, p.203) comenta: Um dos flagelos do Rio de Janeiro do século XIX é a capoeira. Hoje em dia, trata-se de uma arte marcial pacífica, um esporte nacional que faz adeptos além das fronteiras do Brasil. Entre o fim do século XVIII e o do século seguinte, contudo, a simples menção da palavra capoeira suscita o medo de grande parte dos cariocas. Sob o Império, o termo capoeira designa principalmente os que a praticam (hoje mais comumente chamado capoeiristas). Estes últimos usam uma técnica de

9 Extraído de ENDERS, 2002, p.204 68

combate extremamente perigosa, baseada em ágeis movimentos de pernas e terríveis pontapés, aos quais muitas vezes vinham acrescentar-se a faca e o punhal.

A cidade do Rio de Janeiro observa mudanças relacionadas às formas de controle. De maneira sucinta, é possível observar uma sobreposição de produções da realidade, que passaram por sucessivas transformações do final do século XVIII ao final do século XIX. Na passagem para os oitocentos, via-se uma localidade ainda eminentemente rural, em que a vigilância e o controle dos corpos eram centralizados em torno dos senhores de engenho e seus empregados. Os poderes decisórios, bem como a maioria das atividades econômicas, eram mais circunscritos às propriedades particulares. Com a chegada da família real e sua corte, o Rio torna-se a capital não apenas do Brasil como, por um período, do próprio império português, acarretando intensas mudanças na organização social. O processo de urbanização dá os seus primeiros passos, as vias públicas ganham destaque, bem como as novas formas de troca e comércio, ao mesmo em que ocorre a maior circulação de negros libertos, forros e escravos, que agora se dedicam com maior assiduidade ao trabalho fora das grandes propriedades (MELICIO, 2009). Ao desbravar e ocupar os contornos do Rio de Janeiro, a população escrava e de outros grupos pobres iniciam também a expansão das vidas lúdica e cultural. É quando aparece o que será conhecido como a Pequena África no Rio de Janeiro, compostos por remanescentes quilombolas, que se dedicaram, em outros, à música e à religião de matrizes africanas (MOURA, 1995). As manifestações expressas pelos cativos e forros possuem forte comunicação entre si, agregando, assim, os diferentes grupos que viviam à margem da elite. Práticas religiosas relacionadas à feitiçaria, o batuque de ritmo sincopado e o andar esguio tornavam-se elementos cada vez mais presentes, chamando atenção das autoridades policiais e eclesiásticas que as associavam como algo a ser evitado, ou pelo caráter de perturbação da ordem ou pelo caráter religioso atípico aos olhos católicos (SOARES, 2001). Conforme destacado em pesquisas da época (CAPOEIRA, 1992; MOURA, 1995; SOARES, 2001; ENDERS, 2002;), há uma cadeia de acontecimentos que alimentam “o medo do branco ao negro”: cultos religiosos praticados em espaços abertos, acarretando a mudança de postura do governo imperial, antes de consentimento para a repressiva; sequência de revoltas camponesas em solo nacional, principalmente na década de 1830, como Balaiada, Sabinada, Farroupilha, Praieira e dos Malês conhecido como o “medo branco da revolta negra” (MOURA, 1995); crescente disputa por domínio territorial entre grupos de capoeira, responsáveis por conflitos sanguinários em diferentes bairros do Rio (SOARES, 2001). 69

Dessa maneira, vemos que a mesma cidade antes sob domínio de seus senhores, tida como vitrine do Brasil, passa agora a deflagar de maneira aberta aos olhos circulantes nos espaços públicos uma cultura negra de universo simbólico específico e inquietante, agravando o desconforto das autoridades (SOARES, 1994). Assim, em resposta a essas manifestações ao longo dos espaços da capital, a atuação do aparato policial desenvolve práticas repressivas mais sofisticadas, acarretando maior atenção à movimentação de negros. A busca e a interpelação de práticas “subversivas” aumentam de intensidade. Qualquer sinal de desordem na capital era alvo da recém organizada força policial, sendo o critério para a configuração de desordens demasiadamente amplo, abarcando repressões a práticas que não necessariamente ameaçassem a ordem pública. A respeito das medidas tomadas pelo aparato policial, baseando-se em Carlos Soares (2001), tem-se que: O critério para a configuração de desordens era demasiado amplo, abarcando repressões a práticas que não necessariamente ameaçassem a ordem pública. Os motivos pelos quais os escravos eram levados para o Calabouço, espécie de prisão da época, eram os mais variados e fúteis, como: ‘fora de horas’, ‘suspeito’, ‘atitude estranha’, etc.”. (MELICIO, 2009, p.69).

Nesse sentido, cabe fazer uma reflexão acerca da linha de pesquisa estabelecida por este trabalho, que permeia as discussões decorrentes. Seguindo a proposta foucaultiana, entende-se o poder por um jogo de forças, onde o mesmo “não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 2008, p.89). Nesse sentido, a cartografia das localizações históricas no Rio de Janeiro diz não apenas sobre uma repressão aos negros, a outros grupos pobres e seus modos de ser, mas também sobre uma incitação para a colocação de suas práticas em discurso. Observa-se o desenvolvimento de categorias e classificações que colocam a diferença apresentada por esses grupos em uma leitura política, econômica e moral mantida pelos grupos de elite e ressonante na atividade policial. O critério para a identificação da desordem pública – fora de hora, suspeito, atitude estranha – diz também sobre como a dimensão de público era considerada e sobre o que era levado em conta para definir o que o deveria constituir. Dizer que o aparato policial nasce no bojo das transformações da cidade e sob a ótica dos grupos de elite é dizer que os policiais utilizavam-se de critérios provenientes desse universo para situar-se no mundo e entender o que está à sua volta. A produção da alteridade, nessa lógica, faz com que o espaço público uma vez habitado por homens com outros hábitos e costumes que não o da elite fossem classificados como “suspeitos”, de “atitude estranhas”. 70

Personagem de destaque nessa época, o capoeira pode ser trazido como um dispositivo valioso para a cartografia desse processo. Os enunciados sobre os capoeiras passam gradativamente a produzir e delimitar a sua diferença sob uma lógica específica, uma convenção que se torna naturalizada. Pode-se dizer que de uma grande variedade de potências afetivas, estéticas, semióticas e simbólicas que podem se territorializar por aquilo que se nomeia por capoeira, cria-se uma maquinaria classificatória que a delimita em objetivações mais precisas e homogêneas: o capoeira como negro estranho e suspeito, de costumes imorais e violentos que coloca em risco o ordenamento público. Assim, o que esse dispositivo diz sobre como as instâncias administrativas e, por consequência, o aparato policial relacionam-se com a diferença? Há espaço para a diversidade, ou, ao contrário, busca-se uma eliminação de tudo aquilo que exprime modos de ser diferentes dos de seus grupos? As representações vinculadas à violência tiveram respaldo na grande quantidade de disputas envolvendo os capoeiras cariocas. Confrontos entre as maltas10 de capoeira tornaram- se constantes no decorrer do século, demonstrando a complexa geografia escrava da cidade, referentes a redutos e locais de trabalho de africanos e crioulos (SOARES, 2001). O próprio enfraquecimento, por parte dos escrivães policiais, do termo capoeira para designar a manifestação da capoeiragem, “jogando capoeira”, para a designação de um tipo social, “o capoeira”, acentua a postura que não se relaciona de maneira aberta a sua diferença, mas sim, a de definir critérios de classificação que possibilitam identificar quem são os sujeitos que a praticam (MELICIO, 2009). As relações de poder, então, tratam de um registro da produção do social em termos de associar esse grupo ao perigo . 3.3 O ESPAÇO PÚBLICO E A GESTÃO DA VIDA PELA ELIMINAÇÃO DA DIFERENÇA: PENSANDO O MENOR

Guattari (1995, p.36) ressalta que “a produção de subjetividade constitui matéria prima de toda e qualquer produção”. Segundo o autor, a subjetividade refere-se aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também pelos níveis semióticos. Como vimos no capítulo anterior, a subjetividade não se confunde com uma interioridade identitária, marcada por uma biografia familiar; ela é produzida no registro social. Mesmo que ela venha terminar num indivíduo – Guattari utiliza a noção de “terminal” da informática - ela é produzida no coletivo. A marca dessa produção é que ela comporta componentes heterogêneos de poder, agenciando o corpo, o espaço urbano, os componentes de mídia e de

10 As maltas de capoeira referem-se a ‘ajuntamentos’, grupos organizados que reuniam negros cativos, libertos e forros, assim como brancos e mestiços, com sistema específico de linguagens e gestos corporais. Dividiam-se por freguesia e eram responsáveis por disputas entre seus grupos e por resistências às ações da polícia frente aos ambulantes e às moradias ilegais, havendo capoeiras famosos por defenderem seus cortiços (LESSA, 2000). 71

linguagem. Como o autor arremata: “ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’. O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada” (GUATTARI, 1995, p.39). A noção de agenciamento coletivo de enunciação remete à discussão utilizada nessa pesquisa em torno do homem enquanto relação (homem=relação). A produção de realidade não se trata da soma ou da reunião de indivíduos e/ou de indivíduos com outros seres animados e inanimados. Não se trata de um ‘eu’ que produz a realidade projetando o seu psiquismo sobre o que o rodeia, pois na imagem de indivíduos enquanto “terminais”, o próprio psiquismo é constituído a partir da relação com o que o rodeia, a partir dos elementos que estão sendo agenciados junto ao psiquismo. É o agenciamento que nos coloca a presença de outrem na organização do campo perceptivo, dando passagem às linguagens, às formas sociais e às leis que se aglutinam num mundo que se faz real. Para demonstrar esse processo, Deleuze (2007) reflete sobre o personagem de Michel Tournier, chamado Robinson, que após um naufrágio passa a viver isoladamente em uma ilha. O que se coloca em questão no isolamento Robinson é como ele seria capaz de manter a sua “humanidade”, se não há mais o seu mundo habitual, se não há mais os seus pares para ajudá- lo a sustentar e compartilhar um território existencial comum. Uma das possibilidades a Robinson seria o da constante regressão, algo que faria assemelhar a sua trajetória de vida à trajetória histórica de seu grupo como um todo. Como alerta Ciampa (1989) é a história, é o viver em sociedade que nos humaniza: a história “é a progressiva e contínua hominização do homem, a partir do momento em que este, diferenciando-se do animal, produz suas condições de existência, produzindo a si mesmo consequentemente” (CIAMPA, 1989, p.70). Todavia, Deleuze comenta que Robinson não inicia sua volta à origem, como se voltasse a seus tempos de criança e relembrasse os processos em que esteve envolvido e que o formaram como homem. O personagem de Tournier, ao contrário, busca os fins, busca a sua troca incessante com os elementos que a ele se fazem presentes. “O fim, o alvo final é a ‘desumanização’, o encontro da libido com os elementos livres, a descoberta de uma energia cósmica ou de uma grande Saúde elementar, que não pode surgir a não ser na ilha e ainda na medida em que a ilha se tornou aérea e solar” (DELEUZE, 2007, p.313). Na ausência dos efeitos provocados pela presença daquele que regula o poder, o mundo para de se romper em termos de consciência e seus objetos: “não simplesmente porque outrem não está mais lá, constituindo o tribunal de toda a realidade, para discutir, infirmar ou 72

verificar o que acredito ver, mas porque, faltando em sua estrutura, ele deixa a consciência colar ou coincidir com o objeto num eterno presente” (DELEUZE, 2007, p.320). A constituição de outrem no mundo em que vivemos é o que alimenta a gestão da vida em termos do que se define como aceitável, punível ou indiferente. Nesse processo, outrem se coloca em duas funções: a de um objeto insólito, que nos leva a experimentação da diferença e das novas formas de ser e estar no mundo; ou a de um estranho cúmplice, que regula o agenciamento daquilo que conhecemos e temos expertise para lidar. As pessoas entram em conflitos e coalizões, em amores e ódios, como na música Corações e Mentes de Sérgio Britto e Marcelo Fromer, “Meu amor, minha guerra, eu erro e você erra. Todos são tão diferentes, corações e mentes”. A humanidade não é garantida pela nascença, nem certificada pelos documentos de identidade. A reflexão sobre como poderia ser a experiência isolada de outros traz a fundamentação histórica em que o presente se vitaliza. A vida com outros é produtora de mundos e efeitos, ao passo que a produção de mundos é o que delimita as humanidades em momentos específicos, é o que penetra e diz o homem. Entre o amor e a guerra, o viver distingue os erros e os sujeitos errantes em uma emergência que se faz histórica. As ruas, as cidades e os outros de outrora não são algo isolado em tempos que se foram, mas sim tempos que o presente explora e atualiza para seu porvir. Na viagem ao Rio de Janeiro do século XIX vemos a produção de uma relação marcada pela alteridade segregadora e excludente. O mundo produzido é um mundo em que as pessoas diferenciam-se pela cor e pelas proposições morais que hierarquizam o que é um modo de viver ordenado e seguro (senhores de engenho, grandes proprietários e nobres com valores ancorados nas culturas ocidentais europeias) e que são os modos de viver considerados bárbaros e primitivos (negros e outros grupos marginalizados transitando pelas ruas e praticando atitudes estranhas ao primeiro grupo). As ‘hordas de bandidos’, os feiticeiros, macumbeiros, sambistas, vagabundos e desordeiros são as classificações convocadas para dar conta da dimensão afetiva com destaque nessa relação: o medo do desconhecido, o receio que corpos de trejeitos avessos às etiquetas, vestimentas e bons costumes deflagravam. O próprio desenvolvimento do espaço público está, assim, ligado ao perigo do desconhecido. Ao se debruçar sobre a expressão em público por meio do processo de interação entre história e teoria, Sennett (1998) aponta que há na contemporaneidade uma vida pessoal desmedida, resultante de uma mudança iniciada com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova cultura urbana, capitalista e secular (século XIX, no contexto 73

dos processos ocidentais europeus e norte-americano). O autor diz sobre uma linha divisória entre privado e público que constituía as exigências de civilidade daquela época e que passaram por transformações que desembocam na atualidade. Nesta linha contrapunha-se uma suposta natureza humana destinada ao privado e uma potencialidade da expressão humana pela cultura, que tinha seu lugar no público, sendo responsável por tornar o animal humano em social. Sennett (1998) avalia que semelhante a um atleta excepcionalmente forte, que sobrevive à juventude com forças aparentemente intactas e, subitamente, manifesta a decadência que estivera dilapidando seu corpo internamente ao longo de sua vida, a sociedade atual expressa um processo em que se buscou resolver o problema do público negando que o problema existia, o que serviu para entrincheirar os aspectos ligados a três emergências principais: o crescimento e desenvolvimento da vida urbana, que contou com a migração de grande contingente de áreas rurais, acentuando a qualidade e quantidade de estranhos que compunham a cidade; a mercantilização da vida social em função do capitalismo, em que as trocas e valores econômicos tornaram-se cada vez mais racionais e impessoais, ao mesmo tempo que valorativos da personalidade em espaço público; e o imediatismo e valorização de todas as ações públicas, em função do progressivo enfraquecimento das regulações sociais pelo sagrado. O que interessa nesse momento é pensar como as transformações políticas e econômicas emergentes junto ao desenvolvimento urbano impactaram e foram impactadas pela relação entre as diferenças (ou entre os diferentes) no espaço público. O intuito é o de averiguar a relação do “entrincheiramento” do espaço público comentado por Sennett (1998) com o que temos chamado de acirramento de elementos comuns à sociedade, no sentido de ver como a polarização entre grupos de elite e grupos não elite favorece um clima de disputa que gera violência e é retroalimentada pelo medo. Para Sennett (1998) o público adquire seu significado moderno ao constituir não apenas uma região da vida social, separada do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas também o domínio público dos conhecidos e dos estranhos, que inclui uma diversidade relativamente grande de pessoas. Ao mesmo tempo, há o aumento da ênfase no homem e no conhecimento sobre o homem em detrimento do religioso, o que sustentou o desenvolvimento de saberes sobre a personalidade. Os aspectos de ‘natureza pessoal’, antes protegido e restrito ao ambiente familiar, passam a compor e a serem observados fora do espaço privado. As aparições em locais públicos tornam-se progressivamente aparições do privado no âmbito público, em que se forneciam pistas sobre a pessoa oculta por trás da máscara social, o que 74

intensificou as vestimentas como marcas públicas e os objetos materiais como investimentos psicológicos, algo que faz com que utensílios materiais demonstrem características de personalidade. Apresenta-se, assim, uma sociedade intimista regulada pela erosão entre público e privado, na qual o público é regido por valores íntimos e familiares. As pessoas e suas supostas características pessoais ficam expostas a leituras dos outros, fazendo com que o silêncio se torne o único escudo possível. “O isolamento em meio à visibilidade para os outros era uma consequência lógica na insistência no direito de se ficar calado ao se aventurar nesse domínio caótico, porém ainda atraente” (SENNETT, 1998, p.44). O enaltecimento do silêncio e o isolamento na esfera pública expostos brevemente pelas reflexões de Sennett nos permite observar as primeiras pistas de como o homem, ocidental e dos grandes centros urbanos, teve transformado seu viver no espaço explicitamente social. No exercício acima apresentamos a rua, as pessoas e todos os componentes enquanto objetos que adquirem forma por meio de relações e efeitos regulamentados de poder. Ao tomarmos o campo social como um campo de negociações e conflito, em que a reciprocidade está em tensão, notamos o quanto as diferenças entre as pessoas configuram o motor das trocas expressas e de seus efeitos. Quem é esse outro? O que esperamos desse outro? Questões, estas, que se tornam cada vez mais frequentes com o crescimento urbano, uma vez que o capitalismo industrial colocado por Sennett apontam para diluição da fronteira privado - público, em que as características pessoais predominam a todo instante: Como os outros me veem? O que mostro de mim? Como me diferencio e me aproximo de outrem? Quais efeitos essa diferenciação produz e por que vias as relações ocorrerão de modo seguro? Ocorrem a supervalorização do indivíduo e o efeito paradoxal do intimismo e da impessoalidade. O privado invade o espaço público e o isolamento, o direito ao silêncio e à privacidade surge para garantir a sua proteção. Para se comprar uma mercadoria basta olhá-la na vitrine ou na prateleira e levar até o caixa. Não é mais necessária a troca, a interação mais alongada entre diferentes que confere e agrega valor ao objeto pela relação pessoal. Algo que se aproxima da civilidade moderna, que nas palavras de Sennett (1998, p.323), “é a atividade que protege as pessoas umas das outras e ainda assim permite que elas tirem proveito da companhia uma das outras. Usar máscara é a essência da civilidade”. Nesse sentido a civilidade, que é o que integra as relações e produz efeitos de poder entre as pessoas, orienta- se pela proteção dos indivíduos de serem sobrecarregados por alguém estranho. 75

Cabe ressaltar que os processos históricos trazidos não dizem sobre uma totalidade e não se referem a uma sucessão linear. É possível nos dias atuais, por exemplo, ver atuando diferentes lógicas, como a vista em certas ruas do centro carioca em que a venda de produtos se realiza com aglomerados de pessoas em torno de uma pessoa que apresenta o produto junto à sua performance. Todavia, na discussão em torno da vivência social, encontram-se os processos que nos encaminham às formas de produção de segurança contemporâneas, sobre as quais buscamos nos aproximar. A sociedade intimista desenhada por Sennett favorece a formação de grupos com interesses comuns em que o perigo ameaçador da diferença seja eliminado. “Manter a comunidade se torna um fim em si mesmo; o expurgo daqueles que realmente não pertencem a ela se torna a atividade da comunidade” (SENNETT, 1998, p. 319). Assim, os espaços públicos definem-se pela tentativa de ampliar laços íntimos que não necessitem se defrontar com a impessoalidade que a presença do estranho acarretaria. Busca-se a ausência do desconhecido para atenuar (ou seria acentuar?) o esforço dedicado à proteção de si. O desgaste em torno da privatização e do silenciamento das relações públicas, em função da proteção das características privadas, se cessaria a partir da ausência do desconhecido, do incerto, daquilo que não tem caráter de ser íntimo. Mas o que estaria encarregado de mediar as reciprocidades, de garantir a proteção, de servir de diapasão ao que, nas relações, deve ser esperado e garantido pela segurança? Quais critérios estariam sendo convocados para delimitar o que se figura como outsider e objeto de medidas jurídicas e legais? Para além de uma resposta totalizante, a questão percorre todo este trabalho que a problematiza por sucessivas aproximações. Indo de encontro à discussão trazida por Sennett (1998), em que as pessoas preocupam-se com o que vão mostrar de sua intimidade no espaço público, observamos que no contexto imperial do Rio de Janeiro eram raras as participações da vida pública por parte dos grupos senhoris. Ao comentar a obra de Lília Lobo sobre “Os infames da história”, Erika Santos (2011, p.48) aponta a quase ausência das famílias de elite nas ruas da época, “permanecendo no interior das residências com camisolões, pés descalços, seios nus, camisas desabotoadas e chinelos, o que contrastava com o exagero de enfeites nas raras ocasiões em que saíam de casa, quando se cobriam com joias, rendas, sedas e mantilhas”. Todavia, como vimos anteriormente, desde a chegada da família real há uma progressiva utilização das ruas e vielas por parte da elite, gerando a necessidade de um aparato, o policial, que se colocasse como os olhos e os corpos responsáveis pela intermediação com o espaço público. Espaço este que era ocupado apenas pelos 76

desclassificados; território dos ambulantes, dos empalhadores, dos lustradores, dos reparadores de eletrodomésticos, dos trapeiros e de tudo aquilo que João do Rio (1952, p.17) chama de “profissões ignoradas” de miséria. Em função da erosão do público pelo privado, a tarefa de ir às ruas já era por demais dispendiosa, uma vez necessária a manutenção das máscaras sociais comentadas por Sennett (1998). Um grande empenho era realizado pela elite, no sentido de não deixar à mostra o seu lado tido como primitivo. No espaço de encontro, era a parte cultural que deveria se fazer presente, ou seja, tudo aquilo que demonstrasse um pouco do conhecimento civilizatório. É nesse momento, por exemplo, que as questões de etiquetas, de maneira de se comportar à mesa e de se vestir ganham maior importância (SANTOS, 2011). Assim, ir às ruas e vielas e se deparar com comportamentos estranhos, era algo que a elite passava a desejar evitar. Retomando a noção de dispositivo (DELEUZE, 1990), vemos surgir uma urgência a qual seria a polícia o grupo destinado a responder: como ordenar o espaço público, de modo que nele não insurjam estranhezas que perturbem o cotidiano da classe dominante? Nesse cenário, vê-se o entrincheiramento apontado por Sennett (1998), na medida em que a espacialidade pública configura-se como arena de encontro e, por suporte representacional principalmente proveniente de ideais escravagistas, de hierarquização, distinguindo os locais e modos que ali poderiam habitar. É nesse passo que se contrastam as maneiras de utilização da coisa pública, uma vez que a cidade é dividida em subáreas, que são destinadas ou à elite ou aos grupos não-elite, com demarcações precisas sobre o lugar que cada um ocupa. No tocante aos últimos grupos, é o momento em que se vê maior complexidade das trocas entre os marginalizados, com as observadas nos ‘jogos de casquinha’, efetuados nas praças e praias, que contavam com a presença de tabuleiro, copos e dados. O jogo se constituía em uma das formas de lazer e de resolução de conflitos, sendo alvos da ira dos zeladores da ordem. Outro elemento importante diz respeito às ‘casas de angu’, ou zungus, que serviam como espaço de venda de produtos por parte, principalmente, dos negros, e também como local de abrigo de escravos fugitivos e de reuniões para tratar de assuntos de interesse da comunidade negra (SOARES, 2001). Se por um lado as trocas criavam resistências aos registros de saber sobre as formas de ser e estar no mundo propagadas pela elite, elas também acarretaram numa generalização excludente por parte dos últimos. Mobilizadas pelo temor e repulsa, os grupos são evidenciados como ‘selvagens’, ‘manchas na civilização’ a serem extirpadas11. Portanto,

11 Expressões utilizadas pelos jornais, na passagem do século XIX ao XX, referindo-se aos grupos que aglomeravam-se nos cortiços (REIS, 2000). 77

trazendo discussões de trabalho anterior (MELICIO, 2009), observamos a constituição da alteridade radical, no qual o “outro” é expulso do espaço intersubjetivo, ou seja, “foge ao campo das formas de sociabilidade” (JODELET, 1998, p.58). Ao comentar este tipo de produção sobre o “outro”, Jodelet aponta que o processo tem duas facetas, uma social, no qual há a necessidade de purificação social, protegendo o grupo de uma suposta promiscuidade alheia, fazendo com que a presença de outrem no espaço público representasse uma ameaça; outra teórica, em que toda uma rede discursiva é produzida por intelectuais, no sentido de sustentar a associação de “outro” ao risco, acarretando, assim, na produção de estereótipos. A alteridade radical rompe com a abertura à novidade, visto que marca uma profunda lacuna entre os diferentes grupos. Classifica e exclui não só o outro grupo de seu convívio, como também delimita as possibilidades de manifestação do seu próprio. Tal fato se explicaria pela ameaça que a diferença acarreta, pois, segundo Joffe (2003, p. 317), “quando ocorrem mudanças ameaçadoras no ambiente social, as representações da mudança servem para dar às pessoas um sentimento de controle da situação potencialmente incontrolável”. A partir do momento em que a vida coloca grupos aristocratas, então com profundas raízes colonialistas, em contato com uma nova demanda, em que se deparavam com costumes desconhecidos, passam a operar sistemas classificatórios que, primeiramente, os distanciam daquilo que é espantoso e, posteriormente, inferiorizam aquilo que lhe é estranho. Neste sentido, e agora voltando a uma discussão mais geral, não específica do caso brasileiro, é trazido o contexto de constituição do Estado moderno, que possui uma dupla demanda quase paradoxal: a garantia de que todos indivíduos sejam vistos como iguais e garantia a todos indivíduos de serem diferentes e expressarem diferentes características pessoais (BARROS, JOSEPHSON, 2007). Mesmo que a erosão da fronteira entre as duas esferas tenha produzido uma preponderância do privado em relação ao público na modernidade, o processo não tirou de cena as diferenciações entre, de um lado, o que é característico da “condição” humana (ligada ao privado) e, do outro lado, o que é característico da “criação” humana (ligada ao público). Nesta perspectiva, trazida por Sennett (1998), a condição humana, vinculada ao âmbito privado, refere-se à dimensão psíquica, íntima ao homem e a sua personalidade. Partindo dos valores evolucionistas presentes na época, estaria relacionada aos aspectos supostamente primitivos, ou seja, a tudo aquilo que liga o homem a sua condição animal e instintiva. A criação humana, por outro lado, relaciona- se aos processos evolutivos do homem, que permitiram o desenvolvimento da linguagem, da cultura e das novas estruturações sociais, manifestando-se, portanto, no âmbito público. 78

Dessa maneira, são difundidas ideias que racionalizam e qualificam o homem de maneira polarizada, em termos de condição natural e primitiva, destinada ao ambiente privado, e de processo evolutivo, criação de estruturas sociais e desenvolvimento da cultura, direcionadas ao espaço público. Em suma, os saberes atuantes nesse contexto apontam tanto para algo que seria inexorável à condição humana - a constituição do homem por uma espécie de natureza universal, que é comum a todos e os une num âmbito de igualdade; como para o aspecto que seria da criação humana - a constituição do homem por meio de diferentes culturas, que garante a todos o direito de ser diferente (SENNETT, 1998). Nesse sentido, o Estado moderno se desenvolveu no intuito de promover e assegurar a civilidade, que segundo Sennett estão intimamente relacionados com a experiência das cidades e dos contatos entre estranhos em que estamos nos debruçando. Mesmo que estejam inseridos em coletividades, os indivíduos aparecem como unidade social, com direitos que devem ser regulados. Assim, o poder público, por meio de suas instâncias, emerge como resposta à necessidade dos indivíduos em encontrarem meios para encaminhar os entraves de suas diferenças, coordenando esta negociação e visando o bem-estar (VELHO, 2000). Atentamos, então, à produção de um espaço social em que as trocas são reguladas de maneira a garantir a proteção aos direitos dos homens. Surge a criação de um solo comum, que orienta as formas com que as pessoas devem se relacionar, universalizando modelos sociais que as pessoas devem seguir. Em conjunto, há também a característica mais cara ao capitalismo neoliberal, em que a formação do Estado moderno está inserida, que é o direito à individualidade em suas diferenças, que, como coloca Barros e Josephson (2007), permite que cada um possa almejar ao seu modo lugares destacados na estrutura da sociedade. É neste sentido que as dificuldades e potências da vida humana, constituída pelas relações sociais, vão se configurando por meio de investimentos de uma sociedade em modos específicos de ser e estar no mundo. Diante do impasse entre, de um lado, a criação de padrões comuns para as relações sociais e, de outro, a igualdade de direitos e a defesa das individualidades, são fomentadas uma arena de disputa em que se elegem os estilos de vida que devem se emitidos à maioria. Mesmo que tenha em seu contexto o hibridismo e pluralidade característicos dos tempos atuais, a sociedade, a partir dos valores médicos, estéticos, jurídicos, escolares e outros, acaba por hierarquizar as formas de expressão, identificando aquelas que favorecem ou não o ordenamento e a beleza que almeja. É o que, como coloca Becker (2009), traduz as ações em termos de grupos insiders e outsiders, em termos do que é aceito, do que é indiferente e do que deve ser punido. 79

Barros e Josephson (2007, p.445) apontam que “a sociedade incide, assim, no vigiar permanente das expressões de cada um, desestimulando comportamentos em público que pudessem revelar o que se passava na interioridade das pessoas”. As autoras comentam que essa vigilância das expressões individuais, a busca pela não revelação de sentimentos particulares em público, é parte de uma função disciplinadora dos corpos. Tal processo se insere na concepção foucaultiana de biopoder. Interessado nas direções que recobrem a emergência da sociedade moderna, Foucault relaciona tal conceito ao investimento nas populações sob uma perspectiva política. Trata-se de um sistema classificatório que identifica e agrupa, atuando tanto no processo econômico quanto no ordenamento geral da sociedade moderna por meio de exercícios de controle precisos e de regulações em conjunto (FOUCAULT, 2005). Foucault aponta que nos séculos XVII e XVIII surgem técnicas de poder essencialmente centradas no corpo. Tais técnicas visavam prioritariamente a produção de uma sociedade disciplinar, na qual os indivíduos eram submetidos a uma racionalização e economia que exerciam vigilância, hierarquias, inspeções e outros: “eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegura a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade” (FOUCAULT, 2005, p.288). O autor traz, assim, formas de gestão do corpo, por ele denominada como “anátomo- política”. Todavia, para além da gestão centrada nos corpos, há, segundo Foucault, o surgimento de uma nova tecnologia, ao final do século XVIII, que não exclui a primeira, mas sim “que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia” (FOUCAULT, 2005, p.289). Foucault refere-se à “biopolítica” que, como seu nome indica, diz sobre a gestão da vida, não em escala individual, mas em escala populacional, ocupando-se do homem como espécie. Conforme diz o autor, “são esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos, constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica” (op.cit., p.290). Ambas as tecnologias apresentadas, em conjunto, formam o “biopoder”, que denota justamente o sistema composto e articulado entre anátomo-política e biopolítica, em que ocorrem regulamentações em torno da vigilância e disciplinamento 80

corporal-individual, e se exprimem regimes de verdade que informam e gerem o que é esperado pela população como um todo. O que entra em jogo é a própria constituição da vida. Para ilustrar, Peter Pelbart (2003) traz as reflexões de Kafka sobre o intuito do Imperador da China em construir uma muralha que contornasse a imensidão do império chinês, o protegendo da invasão dos nômades. Conforme o autor apresenta, o empenho numa construção dessa magnitude tem relação ao esforço de se afastar, tanto física, como simbolicamente, tudo aquilo que deflagrasse elementos estranhos ao que havia no interior de seu contorno. Mesmo a muralha nunca sendo completada, contando com lacunas quilométricas, viu-se a instauração de uma ideia que conferia coesão interna, que “protegia” os valores chineses e segregava e excluía a diferença estrangeira. Orientados pelo que se chamava Comando Supremo, os processos não eram personificados em ninguém, não tinham um desígnio de fim conhecido (como a conclusão da muralha), mas alimentavam a gestão auto-referenciada da vida chinesa, mesmo ocorrendo a concentração de nômades na praça em frente ao império. A questão que surge é que, por mais que se tinham partes físicas a construir, o império não ficou indiferente a essa desacomodação que o estranho lhe provocara, com o perigo de esfacelar-se, de perder os elementos que o tornavam um conjunto imperial. E é a esse tipo de urgência que os impérios e os Estados passam a responder, ou mais precisamente, é a esse tipo de urgência que os conjuntos sociais, dos quais o Estado é componente vital em sua territorialização, passam a responder. Não respostas emanadas originalmente por personalidades, governantes, que acarretam em medidas legalistas e físicas, mas respostas por lógicas igualmente nômades, que transversalizam as relações e, aí sim, se materializam em medidas de representação política, forças econômicas, textos judiciais, etc. De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de milhões de pessoas? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho das multidões à sua megamáquina planetária? Como se expandiria se não vendesse a todos a promessa de uma vida invejável, segura, feliz? Afinal, o que nos é vendido o tempo todo senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e perceber, de morar e vestir. O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida (...). (PELBART, 2003, p.20, grifo do autor)

Diferentemente do Império Chinês do conto de Kafka, na contemporaneidade o funcionamento não é o de base em muralhas e trincheiras (não apenas, se vermos os muros que rodeiam algumas favelas do Rio de Janeiro, ou divisões das cidades por orientação político-religiosa que traremos adiante na Irlanda do Norte). O que acontece, como aponta Pelbart, é que o império se nomadizou, ou, por outras palavras, constituiu-se como resposta à nomadização generalizada. Neste sentido, quando Foucault trata do Biopoder, por meio da bio 81

e anátomo política, ele está tratando de formas que se dedicam à produção da vida como um todo. Algo que não vem de fora para dentro, mas que pulsa diretamente na fonte produtora de subjetividade. O contingente de saberes médicos, psicológicos, judiciais e de outras especialidades não se restringe a uma regulação da reciprocidade entre as pessoas, no sentido estrito de somente limitar as expressões. Esses saberes destinam-se justamente à produção das formas de expressão, construindo e difundindo os modos de ser, ver e pensar. Em seu processo há disciplina, vigilância e produção de docilidades dos corpos, sendo que, caso corpos se insurjam, haverá efeitos. Todavia, na outra ponta desse processo, ou melhor, nos corações e mentes desse processo, há, sobretudo, a produção de sensibilidades, no sentido de captura e fragmentação das possibilidades a serem investidas para se viver a vida. Nos tempos atuais, não há apenas a construção de quebra-molas, placas de ‘pare’ e limites de velocidade, há também a construção da própria ideia de se caminhar. E nesta construção, o que intentamos ver é como se articula a produção de segurança, visto que é ela que traz às pessoas as sensações de proteção, enquanto condição mínima para os caminhos que se abrem. Afinal, quais caminhos serão percorridos se não houver segurança? De quais ruas as pessoas serão transeuntes se não estiverem livres das incertezas e seus perigos?

3.4 PROCLAMAÇÃO DA COISA PÚBLICA E A DESQUALIFICAÇÃO DOS POBRES? A SUPRESSÃO DA DIVERSIDADE NA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE CARIOCA

Ao adentramos o universo da segurança pública percebemos o quanto este campo é composto por lógicas, por regulamentações de poder que não se restringem a personificações e textos legais, mas que dizem sobre formas de gestão da vida, de regulação e de produção de territórios existenciais. Retornando aos processos acompanhados na experiência carioca, notamos que no decorrer do século XIX, principalmente na segunda metade, a questão da escravidão torna-se não apenas o ponto de disputas políticas entre monarquistas e republicanos, como também o grande aporte simbólico que orienta, por um lado, as práticas de vigilância e, por outro lado, em oposição, as concepções do que seria uma nação ideal e saudável. Assim, de forma semelhante à muralha que conferia coesão e proteção aos chineses em relação aos estrangeiros, a alteridade radical baseada nas superioridades e inferioridades das raças, passa a constituir uma importante engrenagem da tecnologia social, que convoca saberes evolucionistas para informarem as práticas de segurança no Rio. Todavia, diferentemente do período de colônia e império, o final do século XIX e a passagem para o XX são marcados também por um contexto em que se pensava a plausibilidade do Brasil como nação. Junto ao histórico de segregação racial, que também era 82

estendido à segregação econômica, inicia-se um processo de construção da identidade nacional, mais radicalmente desvinculada de Portugal – uma vez que mesmo após a independência, as regências brasileiras foram ministradas prioritariamente por descendentes da família real portuguesa. Nesse momento torna-se potente um olhar à produção da noção de “menor”, bem como à junção dos discursos médicos e judiciários que ganharão cores principalmente pelos movimentos higienistas e pelas teorias eugênicas. Trata-se da sofisticação da tecnologia disciplinar que irá coincidir com o período de proclamação da república brasileira e da preocupação intelectual com o futuro nacional. Assim, ocorre que o nascimento da República brasileira se realiza sob o signo da ordem pública. O rompimento com o imperialismo coincide com o processo de absorção e reelaboração por parte da intelectualidade nacional das concepções iluministas e modernas. Há continuidades com o período anterior, como o fato de ser “elitista, conservadora, anti- industrialista, agrarista” (PATTO, 1999, p.168). Mas há também a progressiva sofisticação das gestões da vida, que passam primeiramente pelo recrudescimento da repressão policial e, posteriormente, mas em conjunto, pela questão do controle populacional em geral, principalmente pelas teorias eugênicas e higienistas. No tocante ao primeiro processo, Patto (1999, p.171) comenta que “sob a alegação de que estavam em jogo interesses do conjunto da Nação, o Estado brasileiro primeiro- republicano não agia com sutileza disciplinadora para garantir a ordem pública. Ao contrário, os donos do poder não hesitaram em valer-se, até a náusea, da violência física para imobilizar os indesejáveis”. Assim, a “questão social” passa a ser definida como “caso de polícia”, como apontou Wahsington Luis, um dos presidentes da primeira metade do século XX, do qual a autora comenta, antes de concluir: “bastava ser pobre, não-branco, desempregado ou insubmisso para estar sob suspeita e cair nas malhas da polícia” (op.cit., p.175). No que se refere ao segundo processo, nota-se a manifestação, em solo brasileiro, de sistemas de gestão que se aproximam da biopolítica apontada por Foucault (2005). Não se quer dizer que tal lógica não estivesse presente nas localizações históricas anteriores, mas talvez esse seja o momento em que sua observação possa ocorrer de maneira mais explícita. A habitação dos antigos casarões por pessoas pobres, criando os cortiços, bem como a habitação das encostas dos morros em moradias improvisadas e insalubres, faz operar uma regulamentação do poder em que a diferença é hierarquizada em termos de pertinentes ou não ao projeto nacional. Fazendo ressonância com as questões intelectuais da época, a pergunta que o Estado republicano procura responder é sobre qual a viabilidade do Brasil em se 83

constituir enquanto nação moderna, ou seja, pautada bela beleza, ordem e racionalidade (REIS, 2000). A virada do século XIX para o XX é marcada historicamente pelo vigor do determinismo biológico e pela aposta na ciência como resposta para a organização racional do social. Nesse contexto, observa-se que o evolucionismo, rapidamente difundido após a propagação das ideias de Darwin, encontra seu correspondente na trajetória do homem12. É assim que, ao nos debruçarmos sobre a teoria da evolução das espécies, notamos que a ênfase recai sobre os animais e outros seres, em detrimento da análise mais ampliada do meio. A grosso modo, a teoria de Darwin aponta que o meio é igual a todos os seres, cabendo aos últimos manifestar a sua capacidade de adaptação. Uma vez adaptados, estarão aptos para produzir descendentes. Nesse processo, tem-se que, por um lado, ao longo do tempo o ambiente passa por constantes transformações, decorrentes, por exemplo, de alterações climáticas, pragas, epidemias, alterações no equilíbrio do ecossistema e outros; e, por outro lado, os seres passam por sucessivos processos de mutação, extremamente longos e demorados, em que, por meio das características que possuem, se tornam capazes ou não de dar continuidade a suas formas de vida. Entretanto, no momento em que tal entendimento passa a informar mais precisamente o homem, no que se chamou de darwinismo social (PATTO, 1999), nota-se a permanência arbitrária da ênfase no indivíduo em detrimento do social. Assim, surgem inúmeras teorias científicas e outras redes discursivas em que se analisa a capacidade de adaptação das pessoas em função, quase que exclusivamente, de suas capacidades biológicas, trazendo o meio e os contextos históricos como coadjuvantes. No caso brasileiro, por exemplo, tal ideia acabou por desonerar toda uma falta de planejamento político que combinou séculos de escravidão e o súbito arremesso de centenas de milhares de negros em um sistema de trabalho formal que não os absorvia. Segundo tal perspectiva evolucionista social, se havia grande contingente de negros sem emprego, vivendo na miséria, a causa não era o descaso do governo, mas sim a sua suposta inferioridade racial (MELICIO, 2009). Nesse sentido, nos aproximamos do dispositivo “menor”, para entender como as práticas e gestões destinadas às crianças podem possibilitar cartografias da biopolítica operada na época. Santos (2011) aponta que a diferença entre criança e menor está ligada aos processos históricos do século XIX e à criação de práticas tutelares por parte do Estado e dos experts. A autora comenta que as primeiras menções à expressão “menor” datam do Código

12 Discussão baseada no filme documentário “Homem Sapiens 1900”, do diretor sueco Peter Cohen. 84

Criminal do Império, que define penas aplicáveis no caso de cometimento de crimes “por menores de idade”. A expressão resvalou do universo jurídico para o social ao final do século XIX, passando a designar as crianças nascidas nas camadas mais baixas da pirâmide social. Nesse trajeto, do jurídico ao social, a expressão assume conotação de controle, pois, ao segmentar setores sociais, cria categorias consideradas “suspeitas” e “potencialmente perigosas”, na associação entre perigo e a pobreza, tal como sonhara a Epistéme Moderna e tal como o higienismo propôs logo a seguir. (SANTOS, 2011, p.47-48)

A categoria de menor está vinculada a uma ideia de distinção entre diferentes formas de vida. Conforme visto no trabalho de Santos (2011), ela é sustentada pelo critério comparativo de crianças, em termos de aptidão biológica e familiar para o desenvolvimento moral. Ganhando forma pela Doutrina da Situação Irregular, que embasava o Código do Menor de 1927, bem como a Lei do Menor de 1979, a categoria conferia ênfase ao individualismo, tal como visto no darwinismo social, fazendo averiguar quais crianças reuniam ou não condições de adaptação ao meio. O último, no caso, estava sendo pautado, como vimos, pelo interesse em disciplinar os corpos nos espaços públicos e pelo viés de se identificar os que poderiam compor o futuro da nação. E quais critérios eram empregados para tal identificação? Como o nome da doutrina indica, critérios apoiados nas ideias do que seria uma situação regular (família nuclear burguesa) e do que seria uma situação irregular (famílias não burguesas e/ou não nucleares que, portanto, não forneciam base para o desenvolvimento moral da criança, tida então como menor). Dessa maneira, apenas os menores em situação irregular eram alvo do Poder Tutelar do Estado, permitindo com que o último atuasse diretamente nos núcleos familiares, destituindo o poder pátrio (hoje “poder familiar”), alegando abuso, incapacidade ou negligência do pai ou da mãe: Alegavam os defensores da Doutrina da Situação Irregular que a intervenção do Juiz seria sempre supostamente protetiva, o que garantiria a preservação dos interesses de seus tutelados sem a necessidade do recurso ao contraditório, à ampla defesa ou aos prazos de representação e contestação da sentença. Esses argumentos, contudo, ignoravam o interesse da ordem na criminalização do jovem pobre e na privação de sua liberdade através da internação (BATISTA, 1998), interesse forjado no olhar criminal do século XIX e perpetuado no modelo da Situação Irregular. (SANTOS, 2011, p.54-55)

O que está em jogo é um duplo processo presente neste período, de transição do paradigma de raça para o de cultura, bem como o de aferir as consequências da miscigenação ao processo evolutivo brasileiro. Havia o receio de “degeneração das raças”, defendida pela teoria eugênica, que estabelecia uma divisão supostamente clara entre as capacidades das diferentes etnias em promover a beleza e ordenamento almejados pela racionalidade moderna. 85

Assim, buscando responder a pergunta “quem somos nós”, a intelectualidade brasileira passa a aferir sobre a composição do brasileiro. Um exemplo neste sentido é o trabalho de Silvio Romero, considerado o pai dos folcloristas brasileiros, que utiliza da teoria darwiniana para afirmar que, pela lei da adaptação, as raças se modificariam na mestiçagem, formando um tipo em que predominaria o branco (CATENACCI, 2001). O interesse brasileiro na formação de uma civilização nos moldes europeus, então, fez com que as diferenças fossem suprimidas ao passo que teorias discriminatórias e voltadas à gestão populacional, como a eugenia e higienismo, sustentassem as práticas sociais. “no caso brasileiro, a campanha higienista esteve sobretudo a serviço de dois projetos da classe dominante: superar a humilhação frente ao ‘atraso’ do país em relação aos ‘países civilizados’, pela realização do sonho provinciano de assemelhar-se à Europa, e salvar a nacionalidade pela regeneração do povo” (PATTO, 1999, p.178-179). O paradigma culturalista emergente no início do século XX busca ao mesmo tempo recuperar as raízes da cultura nacional e eliminar seus aspectos de exploração, colonização e escravidão (VASSALLO, 2003). Há a retirada de cena de uma análise histórica preocupada com os condicionantes das desigualdade, ao mesmo passo que emergem políticas voltadas à produção da imagem brasileira enquanto nação progressista e ordeira. O Rio de Janeiro, enquanto capital nacional, torna-se o laboratório cultural do país, em que se buscam a eliminação daquilo que deflagrava a miséria e a falta de higiene, como os cortiços e os casebres das favelas, tidos como “lepra esthetica”, e a construção daquilo que possa lembrar o cenário europeu (seria como nos dias atuais?). No bojo dessas transformações, os saberes médicos ganham destaque. Com a descoberta de Pasteur no século XIX de microorganismos e consequentemente da causa física e ambiental das doenças, a medicina passa a servir como instrumento de controle de vários aspectos da vida13. Inicia-se uma patologização da vida social que será enfatizada, no caso do Rio de Janeiro e Brasil, com os ideais republicanos de ordem e progresso. “Nessa empreitada a medicina social e a psiquiatria apresentam-se como aliadas, sustentando cientificamente a intervenção do Estado e reivindicando a exclusividade de um saber relacionado às questões de saúde física e mental do louco, a partir da afirmação de um poder hegemônico nesse sentido” (BICALHO, 2005, p.51). O que se vê, portanto, é a manifestação do biopoder, que, aqui, passa a lançar luz ao aspecto da “população perigosa”, atuante tanto no aspecto geral, como mais precisamente no

13 Ver jornal do Conselho Regional de Psicologia-RJ, ano 2, n°11, setembro de 2006. 86

dispositivo do menor. Foucault (2005) comenta que, na segunda metade do século XIX ocorre, no contexto europeu, uma conjugação entre os registros jurídicos e disciplinares, na qual a apreciação e o diagnóstico do criminoso adquire prevalência em relação à ocorrência do crime. O autor destaca que desde o Antigo Regime ocorreram mudanças significativas no âmbito da pena. A principal mudança refere-se ao fato de que nessa época a pessoa que cometia uma infração passava a assumir o papel de inimiga do soberano – todas as relações aconteciam em articulação ao soberano, sendo que o poder se exercia sempre nessa intersecção. Contudo, a partir do contexto contemporâneo ao humanismo e ao iluminismo ocorre um processo de descentralização. O infrator já não é mais inimigo do rei, do soberano, mas sim inimigo de todos. E é nesse movimento que os reformadores juristas produzem uma série de mudanças legislativas, que implicarão novas formas de vigilância e de exercícios do poder – próximo do que vimos com o desenvolvimento da biopolítica. Num processo que envolve, por um lado, os saberes em torno de um universalismo humano, característico de uma suposta ‘natureza humana’ e, de outro, a garantia à diferença desde que condizente à ideia de um organismo social saudável, o ato da infração perde terreno em relação ao homem infrator. A atenção do sistema judiciário não recairá, assim, somente à ação do criminoso após ter cometido o crime, mas também, e sobretudo, às motivações e condições que levaram a pessoa a cometer esse crime. A mudança de ênfase do ato criminal para a autoria é alimentada por saberes do positivismo lógico e do evolucionismo. Toda uma rede de discursos, como os da antropometria, que associavam características físicas e biológicas à propensão para o crime, informaram o debate intelectual brasileiro desde meados do século XIX (ALVAREZ, 2002), o que teve forte impacto nas estratégias de ordenamento e criminalização. No caso do Brasil, essa utopia desenha uma imagem do que deveria ser a polícia. De início, haveria polícia suficiente para patrulhar o espaço urbano. Sua presença ostensiva intimidaria os possíveis criminosos, evitando a ocorrência de crimes. Mas ‘a mente do criminoso é marcada pela impulsividade’: algum crime vai ocorrer. Desse modo, a polícia, próxima à ocorrência ou atendendo prontamente a qualquer chamado, interviria, impedindo a consumação do crime sem ameaçar inocentes que porventura estivessem na proximidade do ato. E, claro, a polícia, que garante a lei e a ordem, não seria jamais criminosa ou aliada dos criminosos. Se algum crime fosse cometido pela polícia, seria um caso isolado, a conhecida ‘maçã podre’, e nunca uma falha sistêmica. (VAZ et al, 2005, p.10)

O que ganha destaque é o desenvolvimento de uma tecnologia voltada para a virtualidade, ou seja, para o acontecimento em potencial, que ainda não aconteceu mas tem, supostamente, grandes possibilidades de acontecer. Como diz Santos (2011, p.46), “a junção entre os dois tipos de discurso – o judiciário e o médico – circunscreve e inventa o indivíduo 87

perigoso, ou seja, aquele que nem é louco e nem é criminoso, mas que eventualmente pode ser perigoso”. Nesse sentido, cabe destacar a relação de tal tecnologia às crianças e aos menores. Um conjunto de fatores de tal processo tem ligação com a forma com que majoritariamente a sociedade do século XX vê o jovem, o enquadrando na categoria de um ser em formação, que acentuam as ideias de crescimento e desenvolvimento. Enfatizam-se, assim, os enunciados médicos que tratam das mudanças hormonais, glandulares e físicas, bem como das qualidades que seriam típicas do jovem, como entusiasmo, vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade, timidez, etc. Como dizem Coimbra e Nascimento (2003, p.19-20), “tal período, considerado de transição, carrega certas marcas que têm sido afirmadas como elementos de sua natureza”. O ponto que as autoras procuram destacar é a associação da infância e juventude a aspectos supostamente naturais, que acabam por ser aplicados de maneira negativa a uma parte da população, em função de sua associação à inadaptação social e ao perigo. Debruçando-se sobre as teorias eugênicas e suas aplicações no Brasil, apontam o papel de destaque do controle das virtualidades na constituição das subjetividades sobre a pobreza. Ao referenciar a obra de Morel, o Tratado da Degenerescência, em que aparece o termo das “classes perigosas”, comentam sobre como, na ótica capitalista, a miséria passa a ser entendida como advinda da ociosidade, da indolência e dos vícios inerentes aos pobres. Conforme a perspectiva eugênica presente no Brasil, “deve ser esterelizada toda a população pobre brasileira que não seja inserida no mercado de trabalho capitalista, todos aqueles que não são corpos úteis e dóceis para a produção” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.23). Ocorre a paulatina associação de perigo e pobreza, processo que temos acompanhado ao longo das localizações históricas aqui trazidas, por uma rede de sentidos que liga numa aparente sequência causal as condições biológicas e econômicas à constituição de perigo. O que ganha especial ênfase é o informe supostamente científico da época, que conferia aos efeitos da diferenciação entre grupos abastados e não abastados a legitimidade de uma explicação pela natureza dos corpos e das mentes: a sociedade segura é a sociedade de boas condições higiênicas e de desenvolvimento moral. Dessa maneira, vemos por meio dos dispositivos do capoeira e do menor como os grupos de elite e as instâncias administrativas brasileiras, em especial as cariocas, responderam ao encontro com a diferença. A partir do momento em que a circulação no espaço público se configurou como prática rotineira, surge a necessidade de se regular o que é passível ou não de habitar esse território. Assim, seguindo as indicações de Sennett (1998) sobre a privatização do espaço público, observa-se a presença de dois processos 88

complementares: um que diz sobre a preocupação em não demonstrar em público os lados primitivos supostamente inerentes à condição do homem enquanto animal, e a outra sobre a utilização de signos culturais, que demonstrassem o grau de civilidade que a elite era capaz de carregar em sua máscara social. Todavia, os critérios que sustentavam a definição de civilização tinham como referência os modelos branco-europeus. Em diálogo com os saberes escravocratas, que hierarquizavam as diferenças das raças entre superiores e inferiores, ocorre, portanto, a progressiva busca pela eliminação daqueles que deflagravam estranhamento e faziam aproximar o ambiente da “animalidade” humana. É nesse sentido que os capoeiras, durante o século XIX e início do século XX, condensam em si as práticas destinadas aos negros e, posteriormente, aos outros grupos pobres e miseráveis. São justamente os policiais, espécie de intermediários entre a elite e os grupos pobres, garantido a proteção dos primeiros em relação aos últimos, que se dedicam a entender a manifestação e sua prática, fazendo da capoeiragem, como vimos, um dos principais motivo de prisão desta localização histórica. O período republicano chega à cena e se observam continuidades e transformações. São mantidas as ideias oligárquicas, agrárias e de discriminação de etnias, ao mesmo passo que se sofisticam as maneiras de gestão da vida. Preocupados com o futuro e plausibilidade da nação, políticos e intelectuais da época dedicam-se a solucionar a degeneração da espécie brasileira, em função da mistura das raças, bem como as “sujeiras” sociais, em função do grande contingente miserável, vivendo em habitações improvisadas e insalubres. Realiza-se, assim, uma desoneração dos condicionantes históricos, pela ênfase no indivíduo: se a pessoa era adaptada ou não ao ambiente embrionariamente urbano do Rio, se a pessoa era pertencente ou não ao projeto que se desenhava para a nação, a causa (ou culpa) era não outra senão a sua própria constituição biológica e/ou provimento familiar. Padrões como os destinados a gestão do menor, entre regular ou irregular, ganham força junto à instalação de uma política preventiva que antecede o crime e identifica os criminosos em potencial. Como na fala do Delegado Sergio Paranhos Fleury, atuante na ditadura brasileira: Você cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter sempre o cachorrinho que é mau-caráter, que é briguento e vai ter o outro que se porta bem. O marginal é aquele cachorrinho que é mau-caráter, indisciplinado, que não adianta educar (BENEVIDES, apud COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.22)

Instaura-se um sistema da suspeição, que aplaca sobre o desvio da normalidade as determinações biológicas. A diversidade não tem espaço, senão para permitir a comparação entre os grupos que supostamente justificaria a alteridade radical, discriminante e repressiva: se prende, se tutela, se higieniza, se mistura em direção ao embraquecimento, por que há os 89

que evoluíram e os que continuam confinados à condição de primitivos, ausentes de desenvolvimento moral. Os dispositivos emergem, assim, como ferramentas para se observar os processos que não cessam de se atualizar nos dias atuais. Como na proposta de Baremblitt (2002), é pela potencialidade com que emerge no presente e se direciona para o futuro, que nos dedicamos aos fenômenos históricos. Nesse sentido, veremos no capítulo posterior como algumas das causas para o imobilismo político no campo de segurança, que dificultam transformações mais profundas nos paradigmas da área, se assentam sobre as supressões da diferença acima discutidas. É na tarefa de lançar luz aos processos de construção das práticas discricionárias de segurança, que visamos contribuir para a sua desconstrução, tendo como objetivo final a valorização do encontro entre os diferentes na produção de territórios que deem passagem a uma maior diversidade de possibilidades.

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4 RESPONDENDO A QUAIS URGÊNCIAS? PARADIGMAS DE SEGURANÇA E A ALTERIDADE NA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DESDE A DITADURA CIVIL- MILITAR

O aumento da percepção de insegurança e a elevação dos índices de criminalidade têm colocado o debate sobre a efetividade das ações de prevenção e controle da violência cada vez mais em evidência. Mas será que essa é uma preocupação recente? Será que a violência tem sido percebida da mesma forma ao longo das últimas décadas? E as políticas de Segurança, adotaram sempre estratégias semelhantes? (FREIRE, 2009, p.49)

Direitos humanos é uma cachaça, é uma ilusão que dura pouco. (Travesti Anônima, em reunião na Estácio Lapa, de 09/11/2011)

O presente capítulo procura problematizar as urgências às quais as políticas públicas de segurança têm respondido desde o golpe Militar em 1964. O intuito é realizar um sucinto percurso em três localizações históricas interconectadas e articuladas, assim separadas por motivo de organização textual: governo civil-militar entre 1964 e 1985, processo de redemocratização iniciado na década de 80 e algumas questões emergentes no século XXI. Procuram-se as formas de prevenção e controle da violência e ordenamento urbano que se atualizam nestes períodos, por meio da cartografia de conjuntos discursivos e não discursivos que: informam as percepções do que seria considerado violento ou não violento, ordenado ou desordenado, fundamentando as urgências que deveriam ser respondidas; pautam as normas e diretrizes das políticas públicas da área de segurança, com continuidades e rupturas paradigmáticas entre os períodos; sustentam diferentes posicionamentos e relações entre Estado, Forças Armadas e Auxiliares e cidadãos nas práticas de segurança; colocam em análise as definições do Brasil enquanto nação, bem como as lógicas sociais que ganharam expressão junto a tais definições. Tal recorte histórico é trazido em função da relevância que os paradigmas de segurança destes períodos possuem na leitura atual do contexto de segurança. Por tratar-se de um governo hegemonicamente militar, o regime presente no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, implicou no posicionamento das Forças Armadas tanto no topo hierárquico do Governo como na atuação de ponta das práticas de segurança, possuindo importantes impactos no ensino, doutrina, treinamento e sistemas de controle das corporações militares, dentre as quais se situa a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Considerando que o comando militar é centralizado nos oficiais de alta patente, encontram-se ainda hoje comandantes da corporação que tiveram a sua formação no período da ditadura brasileira, tendo passado pelos diferentes contextos políticos e ideológicos do país. Assim, tendo em vista o ligeiro olhar ao século XIX 91

e primeira metade do século XX por meio dos dispositivos do capoeira e do menor, a pesquisa apoia-se, aqui, nos três períodos em questão, para abranger a processualidade das dinâmicas sociais, que fazem com que programas de orientação cidadã, como o Pronasci, divida espaço com práticas de cunho punitivo, que legitimam formas de exclusão e segregação. Breves digressões temporais, como apontamentos sobre o intenso processo de urbanização entre os 1950 e 70, serão realizados para uma maior amplitude histórica. Todavia, fica claro a não intencionalidade de se abarcar um desenvolvimento histórico totalizante desde a chegada da família real e do primeiro aparato policial no Rio de Janeiro de 1808. Não haveria fôlego e tampouco competência historiográfica para tanto. Conforme enunciado no segundo capítulo, a intenção da pesquisa é a de se apostar em dispositivos que façam ver e falar a segurança pública no Rio. No capítulo anterior os dispositivos escolhidos fomentaram a discussão sobre o histórico nacional colonizador e escravagista e a medicina social eugênica e higienista, que acabaram por transpor do campo jurídico ao social o entendimento de uma classe perigosa, produzindo aparente divisão populacional entre indivíduos “regulares” (dentro de padrão normativo específico do que seria um homem saudável física e moralmente) e os indivíduos “não regulares” (aqueles que supostamente não apresentavam constituição biológica e/ou familiar para o desenvolvimento moral e que, portanto, deveriam ser retirados do convívio social e/ou tutelados pelo Estado). No presente capítulo os dispositivos são as próprias políticas públicas de segurança, procurando compreender a construção paradigmática presente nos diferentes contextos. O analisador da alteridade, aqui, centra-se na relação entre Estado, Forças Armadas e Auxiliares e o cidadão, problematizando quem integrou e integra a categoria de cidadão e quem constituiu e constitui o cliente e o alvo das atuações do aparato de segurança nos diferentes períodos. Este capítulo inicia o percurso sobre os objetivos e estratégias do âmbito das políticas públicas, observando os paradigmas conceituais que alimentaram três conjuntos principais: Segurança Nacional, vigente durante o período da Ditadura Militar; Segurança Pública, fortalecida e instituída com a promulgação da Constituição Nacional de 1988; Segurança Cidadã, perspectiva contemporânea que tem abrangido grande parte da América Latina, influenciando o debate em segurança no Brasil desde meados de 2000 (FREIRE, 2009).

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4.1 DOUTRINA NACIONAL DE SEGURANÇA: O ‘OUTRO’ COMO ALIADO OU INIMIGO

Cidadão, num país em que não há nem sombra de cidadania, significa apenas cidade grande. (MILLOR FERNANDES)

O geógrafo Milton Santos (2002) comenta que cada Estado se organiza a partir de uma combinação entre horizontes temporais, que vão de um longínquo prazo ao cotidiano atual. Segundo o autor, “as estruturas fundamentais do poder e a sua prática de todos os dias apreendem e retratam essa dicotomia, como um guia na regulação da existência coletiva” (SANTOS, 2002, p.23). A questão trazida é como pensar a interação das localidades, das diferenças culturais, espaciais e econômicas de cada momento, de diversos grupos, de maneira que novos equilíbrios da dicotomia - longo prazo das políticas públicas e cotidiano – se instalem em benefício da coletividade. Pensar a articulação das diretrizes e princípios das políticas públicas e as especificidades contextuais diz também, nesta pesquisa, sobre como a alteridade integra tal processo, pelo viés da normatização, segregação, infantilização e patologização da diferença. Na obra Micropolíticas, Guattari (2005) comenta que a definição de subjetividade é sempre dupla: de um lado ela habita processos infrapessoais e, de outro, agencia relações sociais, produtivas, aberta a todas as determinações socioantropológicas, econômicas. A subjetividade, portanto, se faz sempre em um “entre” polifônico e multidimensional, que situa o sujeito não numa esfera redutiva ao indivíduo fechado sobre si mesmo, mas sim a um âmbito produtivo, de fabricação semântica e estética. A produção de subjetividade trazida por Guattari é importante para a exposição das noções de identidade e processos de singularização que o presente trabalho utiliza: Existe a linguagem como fato social e existe o indivíduo falante. A mesma coisa acontece com todos os fatos de subjetividade. A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI, 2005, p. 42, itálicos do autor)

Os modos de subjetivação em que ocorrem as relações de alienação e opressão relacionam-se ao que vimos anteriormente sobre as relações de poder discutidas com as obras de Foucault (2008) e Pelbart (2003). Há um movimento de forças que, conforme diz Pelbart (2003), “pluga” as produções de subjetividade a uma rede relacional específica, informando quais são os modos de ser e estar no mundo possíveis dentro das coletividades. São as regulamentações de poder que, segundo Foucault (2008), capturam os modos de existência e 93

os identificam dentro de categorias e redes discursivas e não discursivas, fazendo com que tais relações de forças insiram-se em formas gestão de vida localizadas histórica e socialmente. É neste sentido que a noção identitária deve ser problematizada, uma vez que a identidade pode constituir “aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável” (GUATTARI, 2005, p.80). O autor comenta que se um pintor encontra-se num processo de singularização, ou seja, numa relação de expressão e de criação que escapa às redes de significação dominantes nas sociedades, ele estará em um processo que não interessa para ao mainstream, ou seja, aos valores dominantes na sociedade. O que interessa aos últimos é em que identificação este processo se recairá. O ponto que se intenta discutir neste momento refere-se a como os processos singulares, presentes nas diferenças, nas diversidades, nas formas estéticas não vinculadas às ideologias circulantes acabam por serem capturados e categorizados em “pseudo-entidades” (GUATTARI, 2005), causando a supressão de suas múltiplas inteligibilidades em detrimento de um julgamento social preciso e unidirecional. Tendo em vista que, “sempre se tem que partir de alguma coisa, ou seja, sempre se tem que dispor de uma cartografia mínima” (op. cit, p.92), debruçar-se sobre um período histórico e suas políticas públicas, é também, neste caso, debruçar-se sobre os elementos que compõem a cartografia mínima das capturas identitárias dos que estão no mundo enquanto policiais militares e outros atores sociais que ganharam destaque nas práticas de segurança. Por mais diversos que possam ser os interesses e as relações sociais que se estabelecem, há um movimento que os ligam a uma identidade, a uma categoria e às práticas que dela decorrem. Por mais diversos que possam ter sido, por exemplo, os interesses e as práticas de um sujeito no contexto brasileiro do governo civil- militar14, o fato de ser associado a uma identidade de ativista político de esquerda acarretaria uma postura muito específica por parte do agente de segurança. Tendo em vista a discussão acima, nos aproximamos do primeiro recorte do capítulo, que é o do período iniciado com o golpe de estado de 1964, quando em 31 de março é destituído o governo do então presidente João Goulart e instaurado, em 01 de abril, o regime militar. Este é o momento em que as Forças Armadas ficam à frente do governo nacional, com apoio de grupos conservadores brasileiros que procuravam evitar um suposto crescimento de movimentos comunistas e socialistas no país. Inseridos no contexto global da

14O trabalho usa do termo “civil-militar” para se referir ao período entre 1964 e 1985, por entender que havia um governo hegemonicamente militar, mas que prescindia de participação civil. Todavia, o texto também se valerá dos termos “regime militar” e “ditadura” em função de suas recorrentes utilizações na bibliografia consultada. 94

guerra fria liderada por Estados Unidos da América e União Soviética, é notável a observância, tanto nas Forças Armadas, como nas classes elitistas e conservadoras, da influência de concepções políticas norte americanas que visavam evitar no Brasil o que ocorrera em Cuba, com a revolução socialista de 1959 liderada por Fidel Castro e Che Guevara (FREIRE, 2009; WOLFF, 2013). Durante o regime militar (1964-1985), foi adotada a concepção de Segurança Nacional, na qual a defesa do Estado e a ordem pública constituíam seus pilares. Tal período é caracterizado pela forte centralização de poder na presidência, sempre ocupada por militares, e pela lógica de supremacia do interesse nacional, o qual se valeria do uso sem medidas da força para a manutenção do ordenamento social. “O período foi caracterizado por supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão a qualquer manifestação contrária ao regime militar. A ditadura representou uma brusca e violenta ruptura do princípio segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” (FREIRE, 2009, p.50). Conforme aponta Moema Freire (2009), a atuação do Estado na área de segurança estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, produzida pela Escola Superior de Guerra, contento elementos provenientes do treinamento de oficiais superiores das Forças Armadas no National War College (Centro de treinamento do exército estadunidense). Ocorre, portanto, a disseminação dos valores de defesa nacional, sintonizados a metas de segurança implantadas no Cone Sul15, na qual as Forças Armadas assumiam o papel de intérpretes da vontade nacional. Segundo a autora, é nesse âmbito que se cria o aparato repressivo composto, entre outros, pelo: “Serviço Nacional de Informação (SNI) e órgãos de informação das Forças Armadas, como o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- CODI)” (op. cit., p.51). Em entrevista realizada, no âmbito da já mencionada avaliação do programa de Direitos Humanos do CICV (MELICIO, 2010a), com o então comandante-geral da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel Renato Souza, o último comenta que durante a Ditadura a polícia militar dos diferentes estados brasileiros agia como “exército estadual”, não prestando serviço orientado para a segurança pública. Segundo o comandante, as ações de segurança eram pensadas do Estado para a sociedade, de maneira que a sociedade civil possuía pouco ou nula participação na formulação nas políticas públicas da área, corroborando a ideia de Freire

15 Assim como os oficiais militares brasileiros, oficiais de outros países da América do Sul também possuíram trocas e treinamento no War College norte americano, os quais tiveram influência nas Ditaduras implantadas nos países do Cone Sul - Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia - nas décadas de 1960, 70 e 80 (WOLFF, 2013). 95

(2009), da qual as Forças Armadas seriam os “intérpretes das vontades nacionais”. No período, haveria uma preponderância do ensino policial com características militares do exército, ocorrendo durante a formação de praças e oficiais da corporação uma aprendizagem voltada para a identificação daqueles que prejudicassem a ordem, identificados como “subversivos”. Ainda de acordo com entrevistas com oficiais da PMMG, era presente no regime militar a ideologia da operacionalidade, com maior ênfase no número de policiais nas ruas em detrimento de maior eficiência na formação e treinamento dos mesmos. Vale destacar a paradoxal organização social que se instala com o governo militar brasileiro. A Doutrina Nacional de Segurança e Desenvolvimento possui tanto elementos típicos da formação militar das Forças Armadas, na qual a base é a sustentação da soberania nacional, como elementos provenientes das concepções geopolíticas de interesse norte americano de conter o suposto avanço de ideais de esquerda no país. Assim, observa-se a postura característica do exército, marinha e aeronáutica, de identificação daquele que seria o inimigo da nação. Os critérios que informam tal identificação, ou seja, os discursos que compõem o campo representacional daqueles que seriam compreendidos enquanto subversivos, eram provenientes majoritariamente da própria “lógica de guerra” que as Forças Armadas aplicavam Figura 9: Foto no ônibus da linha 239, Rio de Janeiro/RJ. ao campo social. Portanto, neste contexto, para se defender a nação faz-se necessária a intensificação de tensão e do conflito no ambiente interno. Arbitrariamente, será compreendido como suspeito todo e qualquer cidadão que puder atentar contra a “vontade nacional”. Vontade, esta, que é identificada, interpretada e difundida a partir dos interesses das Forças Armadas e das classes conservadoras e de elite. Newburn e Sparks (2004), ao discutirem a justiça criminal e as políticas culturais, comentam a ideia de Max Webber (1978), de que a criminologia e a justiça é classicamente relacionada, de maneira integral ou definitiva, à legitimação das capacidades e reivindicações de um Estado-Nação. A questão que se coloca aqui é: qual representatividade populacional a formação desse Estado-Nação possui durante o período militar? Conforme apontam Coimbra e Nascimento (2003, p30), “os ‘inimigos’ não eram somente os que se opunham politicamente ao governo instalado no Brasil com o golpe militar 96

de 1964: eram também todos aqueles que não se ajustavam aos modelos, padrões e normas vigentes – em especial, os pobres”. Ocorrem, dessa maneira, continuidades dos processos históricos operantes nos períodos precedentes. De fato, como ainda comentam as autoras, desde o início do século XX, diferentes dispositivos sociais, como a já vista Doutrina de Situação Irregular e o Código do Menor de 1927, “vêm produzindo subjetividades onde o emprego fixo e uma família organizada tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, legitimação social e direito à vida” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.26). Fazendo ressonância à discussão do capítulo anterior, Santos (2011) diz que no período vigente da política de Segurança Nacional, as crianças, então vistas como “menores”, eram tidas como risco para a coletividade ao circularem livremente pelas ruas; uma vez entendidos como potencialmente criminosos, deveriam ser controladas e contidas. “Em consequência, o Estado passou a adotar um conjunto de medidas que tem por alvo a ‘conduta antissocial do menor’, como o recolhimento de jovens pela polícia e seu posterior encaminhamento à Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FEBEM), criada em 1964” (SANTOS, 2011, p.57). Observa-se, portanto, o diálogo entre os dispositivos presentes no capítulo anterior e atual. Patto (1988, p.75), em texto sobre a produção do fracasso escolar, traz à reflexão de Moreira Leite sobre o Brasil e arremata que “num país em que, a linha que divide classes é praticamente a mesma que divide etnias, essa crença encontra receptividade e pode facilmente se transformar num caso de preconceito racial e social travestido de conhecimento científico”. A crença a qual Patto se refere é a de suposta relações causais entre influências negativas da cultura de grupo étnicos e sociais e o insucesso escolar, promovida, entre outros, por teorias como da carência cultural. Esta teoria foi formulada nos EUA dos anos 1960 e introduzida no Brasil nos anos 1970. De forma sucinta, abarcava a ideia de “crianças carentes”, portadoras de distúrbios no desenvolvimento psicológico, que as tornam menos capazes do que a criança de “classe média” para o aprendizado escolar; é estabelecida uma relação entre a suposta pobreza de estimulação ambiental e a precariedade das práticas familiares com a origem destes distúrbios (PATTO, 1988). Tal teoria, presente nas práticas escolares dos anos 70 no Brasil, constitui mais um exemplo de como, por um lado, manifesta-se o biopoder neste contexto, e por outro, as instituições se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção da vida humana. Recuperando a análise institucionalista de Baremblitt (2002), as instituições são sistemas lógicos de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos aos quais classifica e divide. Observa-se que a mentalidade escravocrata que recaía sobre os capoeiras e, 97

posteriormente, em toda uma sorte de pobres e miseráveis na passagem para o século XX, se reatualiza, entre outros, nas diretrizes de educação e nas legislações penais sobre o ‘menor’: Código do Menor de 1927, criação da FEBEM em 1964 e Lei do Menor de 1979. Nota-se uma interpenetração, em diferentes instituições, da lógica que Coimbra e Nascimento (2003) relacionaram ao pertencimento laboral, familiar e cultural como padrão de reconhecimento e aceitação social: o que a pessoa possui enquanto qualificação profissional, bem como as condições que sua família e ambiente relacional apresentam para o desenvolvimento moral e cívico, servirão de critério para a definição de que direitos e deveres elas poderão acessar. Trata-se, portanto, de um conjunto disciplinar e produtivo de corpos e mentes, que podem ser analisados à luz dos dois componentes conceituais do biopoder já descritos por Foucault (2005): o primeiro, do qual a Ditadura valeu-se exaustivamente, ligado à tecnologia disciplinar do corpo, anátomo-política, que põe em ação todo um sistema de vigilância e hierarquia sobre o que o corpo pode ou não pode expressar; o segundo, mais voltado ao homem enquanto espécie, diz sobre a política da vida, biopolítica; uma vez que é centrada nos grupos populacionais como todo. O biopoder pode ser cartografado neste momento pelas práticas de controle exercidas durante o regime militar, que vão tanto na direção da individualização, como da massificação. A questão da individualização relaciona-se aos conjuntos de saberes econômicos, políticos e científicos, presentes na consolidação do liberalismo. Ao comentar o âmbito científico e a inserção da psicologia nesta esfera, Heliana Conde Rodrigues (2005, p.85) faz uso do conceito institucional de Lourau, denominado “efeito Lukáscs” para explicar que: “à medida que progride, a ciência tem tendência a esquecer as condições de seu aparecimento, de seu desenvolvimento, por trás dos imperativos do objeto e do método”. A autora intenta frisar a ausência de análise dos condicionantes históricos e sociais na produção científica sobre objetos específicos, o que acarreta na naturalização de determinadas leituras da realidade enquanto verdades: “produz-se, com isso, mais e mais não-saber pela codificação particular de alguma disciplina, pela alocação num sistema, pelo recorte de um campo e rejeição de tudo o que existe antes e em torno desse campo” (id, ibid). A presente discussão visa recuperar a análise de responsabilização e culpabilização que determinados saberes lançam sobre o indivíduo; concepção que migrou da esfera científica para a social. Da mesma maneira que a constituição biológica e física foi, por vezes, tratada como a causa para o “fracasso escolar” (PATTO, 1988), a mesma constituição biológica e física, que sobrecarrega o indivíduo e subtrai da análise a dimensão social e relacional, foi tratada como causa para o “fracasso social” (COIMBRA, NASCIMENTO, 98

2003; RODRIGUES, 2005; SANTOS, 2011). Tal fracasso corresponderia a não inserção do sujeito ao padrão hegemônico da sociedade, que, no caso brasileiro, produziu-se junto a uma mentalidade de raízes colonizadoras e escravocratas, que fez coincidir em grande parte dos casos a condição étnica com a econômica: a colonização e, posteriormente, os governos ditatoriais em que não há representatividade do Estado em relação à população, atualizam um contexto em que a elite centraliza as decisões políticas, bem como as produções e regulações das legalidades que regem o convívio social; a escravidão e, posteriormente, as teorias eugênicas e higienistas atualizam um contexto em que há uma hierarquização das características biológicas e culturais constituintes dos sujeitos, que supostamente interfeririam em sua capacidade de adaptação aos valores morais predominantes de sua época. O presente argumento diz sobre saberes que, em interpenetração das instituições científicas, políticas e econômicas, primeiramente identificam o sujeito não adaptado ao modelos sociais circulantes na sociedade, para posteriormente, culpando-o pelo seu fracasso adaptativo, centrar nas medidas “sócio-educativas”. Fazendo ressonância às discussões anteriores, há neste contexto uma desoneração dos aspectos políticos e históricos de uma sociedade na produção do insucesso individual. Se há miséria, se há delinquência, se há loucura, se há pobreza, essas seriam causadas pela carga biológica do indivíduo. Mesmo que os aspectos sociais e culturais fossem tomados em análise, eles apareceriam ainda de maneira circunscrita e isolada: “o indivíduo e sua estrutura familiar irregular”, “o pobre e o seu ambiente cultural amoral e não higiênico”. É neste sentido que, no segundo capítulo, foram apontadas correntes psicológicas positivistas, que enfatizavam a utilização dos pronomes possessivos: “o indivíduo e sua constituição biológica”, “o indivíduo e sua conduta”, “seu ambiente” (JACÓ-VILELA, 2007). Houve, na passagem para o século XX, uma ênfase intimista, que posicionava o discurso médico e psi em um entendimento que reduzia a subjetividade a uma dimensão psicológica interiorizada, isolada de um contexto mais amplo (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003). Vale notar que se dedicar a uma análise do período da ditadura, procurando elementos discursivos e não discursivos presentes nas práticas de sua época, diz também sobre a cartografia desses saberes circulantes em períodos anteriores. Ao passo que as instituições sociais não são totalidades fechadas em si, mas, pelo contrário, se articulam em combinações contínuas de poder, tais concepções de homem foram convocadas para dar inteligibilidade às atividades instituídas em seus processos. Com relação às teorias eugênicas discutidas no capítulo precedente, observa-se: 99

Durante o período da ditadura militar em nosso país, em 1974, por exemplo, em duas cidades satélites de Brasília, Ceilândia e Taguatinga, por ‘ordens superiores’, em duas pré-escolas públicas, crianças – em sua maioria filhos de imigrantes nordestinos – foram colocadas em fila para terem seus crânios e faces medidos. Posteriormente, os dados foram enviados à direção, e professores dos referidos estabelecimentos elaboraram laudos que descreviam as características emocionais e intelectuais dessas crianças. (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.22)

Um outro processo importante e presente neste período refere-se ao boom da urbanização brasileira, de grande intensidade entre as décadas de 1950 e 1970. Conforme aponta Soares (2013), há um deslocamento do eixo de gravidade nacional do campo para a cidade, em um fenômeno de migração interna peculiar e rara, mesmo no comparativo internacional: “Importa destacar mais do que a natureza do processo, a escala, a velocidade e as implicações. O Brasil era 75% rural, nos anos 1950, e se tornaria 75% urbano, ao longo dos anos 1970” (SOARES, 2013, s/p). Tal fenômeno de migração acarretou em profundas mudanças não só na paisagem brasileira e nas atividades comerciais, como também e principalmente nas formas de sociabilidades encontradas pelo migrante. “Passar a viver na cidade implica revolucionar as relações de trabalho, envolver-se em diferentes ambientes normativos e em distintas experiências com o tempo e a natureza, submetendo-se a diferentes disciplinas e rotinas” (SOARES, 2013, s/p). Soares procura enfatizar que a mudança ao meio urbano abarca também uma redefinição da relação com a religiosidade, com a família, em suma, com as formas de relacionamento social como um todo. O autor destaca as transformações que ocorrem no âmbito da significação da propriedade e dos vínculos com a terra, bem como as modalidades de consumo, arrematando: “O convívio com a complexidade urbana promove a mudança na visão relativa a justiça e lealdade, nas percepções a respeito das instituições públicas e nas próprias ideias sobre a distinção entre público e privado” (id, ibid). Na mesma direção encontram-se os argumentos de Milton Santos (2002), para quem a mudança rápida e brutal de ritmo e significação relaciona-se tanto ao ambiente, aos lugares, como ao próprio homem: As grandes migrações são, aliás, uma resposta e representam, na maior parte dos casos, uma queda de valor individual: o abandono não desejado da rede tradicional de relações longamente tecidas através de gerações; a entrada já como perdedor em uma outra arena de competições cujas regras ainda tem de aprender; a ruptura cultural com todas as suas sequelas e todos os seus reflexos. (SANTOS, 2002, p.22)

Ao comentarem a transição urbana brasileira, Martine e McGranahan (2010) destacam a forte concentração desse processo nos centros urbanos já consolidados. Portanto, Rio de Janeiro, que na passagem para o século XX já representava uma “grande cidade”, visto 100

os padrões nacionais da época (CARDOSO, 1968), recebeu em suas terras uma grande quantidade de migrantes, principalmente da região nordeste brasileira. Tal processo teve como característica, entre outros, o modelo de modernização agrícola conservador adotado pelo regime militar desde 1964, que “visava aumentar a produtividade sem alterar a estrutura social predominante, utilizando para isso o crédito subsidiado, os pequenos produtores de todo tipo foram expulsos do campo em grandes números, provocando uma aceleração da migração rural-urbana” (MARTINE, MCGRANAHAN, 2010, p.16). Neste contexto, observa-se ao mesmo passo um intenso aumento demográfico e a falta de política estatal que abarcasse um acolhimento sustentável dessa população. O cenário da segunda metade do século XX no Brasil conjuga um fracasso político agrário e a ausência de planejamento urbano. Às dificuldades materiais, como o desemprego e as moradias improvisadas dos novos habitantes urbanos, acrescentam-se as dificuldades de socialização e rupturas culturais comentadas acima por Luiz Eduardo Soares e Milton Santos. Não é de se surpreender, portanto, que neste período há uma elevação das taxas de criminalidade que, por sua vez, serão respondidas pelo governo militar com o recrudescimento da atividade repressiva. O que fez a classe média carioca, desde o início dos anos 70, se cercar em seus prédios e condomínios, não foi inicialmente provocado pelo desenvolvimento do tráfico de drogas nas áreas urbanas pobres da cidade, mas decorreu, como se poderia demonstrar, do aumento dos assaltos, com ou sem arrombamento, de bancos, carros, residências e apartamentos, bem como dos furtos e roubos nas ruas (...) Não existem estatísticas de fonte policial razoavelmente confiáveis para o período anterior a 1977, mas é significativo que, na área da delinquência juvenil, para a qual existem estatísticas desde o início dos anos 60, se verifique uma extraordinária mudança de padrão de infrações a partir da primeira metade dos anos 70. O furto, infração amplamente dominante até o início dos anos 70, vai sendo substituído tendencialmente pelo roubo, a partir do mesmo período, até que as curvas se invertam em meados dos anos 80. (MISSE, 1997, p.95-96)

Por fim, cabe apontar o elemento destacado no início deste subcapítulo, a classificação da ideologia política como critério constituinte do subversivo, ou, do inimigo da nação. Desde o golpe de 1964, a justificativa do avanço comunista manteve-se no horizonte doutrinário e regulatório das práticas nacionais, não sem a associação arbitrária desta orientação política ao “perigo vermelho”:

Na cabeça do meu pai, os comunistas estavam prestes a tomar o apartamento dele e botar três ou quatro favelados para morar lá. O nosso sitiozinho em Miguel Pereira, de menos de um alqueire, certamente seria confiscado pelas Ligas Camponesas para fazer a reforma agrária. E a classe média, de maneira geral, comungava desse pânico. (SIRKIS, 2004, apud BICALHO, 2005, p.71)

Figura 10: Charge de Kinfe. 101

Durante o governo militar, todo e qualquer ato percebido como ameaça ao Estado justificava a adoção de atividades repressivas. “Em suma, o paradigma de Segurança Nacional caracteriza-se pela prioridade dada, inicialmente, ao inimigo externo, materializado no combate ao comunismo; e, posteriormente, ao inimigo interno, correspondente a qualquer indivíduo percebido como contrário à ordem vigente” (FREIRE, 2009, p.51). O ápice da discricionariedade do aparato repressivo e de ausência de direitos cidadãos, ocorre em dezembro de 1968 com o Ato Institucional de número cinco, conhecido como AI-5. Conforme comenta o jornalista Carlos Marchi, em entrevista ao Estado de São Paulo, de 06/12/2008, desde 1964, o governo militar notabilizou-se por produzir atos institucionais, que representavam documentos legais, que eram outorgados à sociedade, sem necessidade de apreciação do Congresso Nacional, conferindo progressiva centralidade e acumulação de poderes na figura do general presidente. Assim, em 1968, em contexto que envolvia manifestações de estudantes pelas ruas das grandes cidades brasileiras, foi instituído o AI-5, que cedia poder irrestrito ao governo. A partir deste ato institucional, que foi vigente até 1978, entre os governos de Costa e Silva e Geisel, foi endurecida a censura aos meios de comunicação, proibiu-se reuniões e manifestações de cunho político, realizou-se intervenção federal nos estados e municípios e permitiu-se legislar por decreto-lei. Em estudo dedicado ao tema, Bicalho (2005) comenta que com a impossibilidade de qualquer tipo de manifestação e protesto ocorre, no período em questão, a opção pela luta armada e/ou clandestinidade por parte de inúmeros brasileiros imbuídos de espírito democrático. Todavia, mesmo muitos não chegando às vias de fato do confronto armado, a emergência dessa nova classe de perigosos, subversivos contrários ao Regime, fez por vezes prevalecer a análise maniqueísta – pertencente ou não pertencente a este grupo - que culminou na morte de pessoas que nunca participaram da luta armada. Neste período também se acentuam as práticas de torturas, produtoras de histórias nem sempre reveladas: Histórias de torturas diversas e singulares, como a do Tenente Elias, preso e expulso do Exército após um jogo de cartas com os ‘perigosos’. Histórias dos interrogatórios, das acusações de não-sei-o- quê, dos pontapés, dos ‘telefones’, das sessões nos paus-de-arara, das revistas noturnas, da leitura – e censura – dos bilhetes, das perguntas sem fim. Histórias do Regimento Sampaio, do Batalhão da Polícia do Exército na Barão de Mesquita com sua sala roxa, ou o ‘famoso’ Maracanã. Histórias dos quartos sem janelas, dos DOPS, DOI- CODIs, da ilha das Flores, das ‘viagens’ de Opala, do capuz, dos inchaços, da pressão nos pés sobre o tórax, dos espancamentos. Figura 11: Desenho de Latuff (BICALHO, 2005, p. 74-75)

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Dessa maneira, observa-se no período do governo militar, entre 1964 e 1985, um conjunto de elementos que reatualizam regulações do viver social precedentes em um agenciamento específico e discricionário, que, por um lado, informa os critérios de identificação de um suposto inimigo nacional a partir de uma ideologia de defesa e soberania nacional, sustentadas pela elite brasileira conservadora; e, por outro lado, pauta ações repressivas e de supressão de direitos humanos pelo legalismo autoritário. A sociedade não se apresenta como um campo de expressão das diversidades e pluralidades culturais e sociais. Pelo contrário, a alteridade é suprimida por uma dinâmica dualista entre os que “amam o país” e os que devem “deixá-lo”16. Assim, todas as formas de ser e estar no mundo deveriam ser enquadradas em padrões identitários que incluem as pessoas, necessariamente, em um bloco ou outro: as que aceitavam e/ou eram passíveis de se inserir no projeto de desenvolvimento nacional e as que negavam e/ou não eram passíveis de se inserir em tal projeto. Nota-se que o enquadramento em um ou outro não necessariamente passava pela escolha imdividual. Para além das orientações políticas – que também devem ser compreendidas em um contexto social dinâmico e de forças tensionadas, não reduzidas a opções ou escolhas individuais – havia toda uma sorte de grupos sociais que não se enquadravam ao ideário hegemônico da época, sejam os fracassados na escola, sejam as crianças e adolescentes que entram em conflito com a lei e devem submeter-se a medidas educativas, sejam aqueles de culturas e moradias desvalorizadas. Até mesmo o amor, utilizado no slogan ditatorial, não possuía caminhos livres a trilhar; amar o país, na perspectiva deste governo, é amar a ordem e a soberania imposta por um Estado, sem qualquer participação dos meios democráticos e cidadãos. Retomando a leitura em questão a partir do bipoder foucaultiano, tem-se que a individualização ocorre no sentido de centrar no indivíduo a vigilância irrestrita de seus corpos, autorizadas por atos institucionais que conferiam poder desmesurado ao Estado e seu aparato policial. No tocante à biopolítica, observa-se a gestão da vida pela massificação de valores nacionalistas, de amor indiscriminado à pátria, que também coincidia com a propagação de ideais políticos conservadores. O ponto em questão são as diferentes formas de controle mais difusas e sofisticadas que passam a substituir antigos sistemas fechados como a família, escola, fábrica, hospital e prisão. Há uma rede ao mesmo tempo aberta e articulada de elementos, entre outros, econômicos (capacidade produtiva no mercado de trabalho), políticos

16 As expressões entre aspas fazem menção ao slogan presente na Ditadura que dizia, referente ao Brasil da época: “Ame-o ou deixei-o”. 103

(ideologias políticas inseridas no contexto polarizado da guerra fria), sociais (indivíduos e famílias avaliados, por exemplo, segundo Doutrina de Situação Irregular), científicos (saberes médicos e psis que, numa mão, priorizam técnicas e práticas diagnósticas que desconsideram os condicionantes históricos e sociais e, noutra, salientam qual seria a constituição física e social provedora de saúde), nas quais cabe ao indivíduo adaptar-se ou não. Todavia, cabe fazer uma ressalva quanto ao risco de leitura totalizante do contexto, que recairia numa relação causal que tem como polo difusor o governo militar. Paul Veyne (1992, p.164) ao comentar a tese central de Foucault alerta que: “o que é feito, o objeto, se explica pelo o que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito”. Assim, o risco é de não levar em consideração a concepção descentralizada de poder que Foucault propõe e que esse trabalho utiliza. A presente pesquisa, uma vez que propõe uma análise crítica das produções científicas pautadas na relações lineares de causa-efeito, intenta problematizar o papel do Estado de maneira não generalista. Como diz Veyne (1992, p.165), “isso não que dizer que o nosso erro seja acreditar no Estado, quando só existiram Estados: nosso erro é crer no Estado ou nos Estados, em vez de estudar as práticas que projetam objetivações que tomamos pelo Estado ou por variedades do Estado”. A própria questão paradigmática insere-se nesta problemática. Conforme sugere Freire (2009), os paradigmas analisados não são estanques; ao mesmo passo que o surgimento de um novo paradigma não indica a supressão dos anteriores. Debruçar-se sobre paradigmas de segurança pública e cartografar seus elementos diz sobre uma discussão específica, transitória, que faz um recorte ou, mais precisamente, um pouso sobre algo que está em constante movimento (KASTRUP, 2007). Outro ponto é a possível confusão entre paradigma predominante em uma época e as políticas públicas do mesmo período: “Os paradigmas são crenças, valores e conceitos que predominam no governo e na sociedade em determinada localidade e em determinado período. Mas isso não quer dizer que essas mesmas crenças, valores e conceitos sejam automaticamente traduzidos em políticas públicas” (FREIRE, 2009, p.50). Tudo o que é produzido pela produção de subjetividade capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia ou de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com polos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI, 2005, p.35).

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Sobre o tema, Candiotto (2010, p.19) reforça que “detrás das práticas inexiste qualquer sujeito de verdade que determine sua compreensão e as constitua como tais: pelo contrário, trata-se de situar a constituição do sujeito a partir daquilo que se faz com ele num determinado momento, na condição de louco, doente, criminoso, dirigido, etc.”. Nesse sentido, tendo visto alguns dos elementos presentes no período do governo militar, a problematização vai em direção das produções de subjetividade que podem ser localizadas na segunda metade da década de 1980, em que novos ares chegam ao processo de redemocratização nacional.

4.2 REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E AS (DES)CONTINUIDADES NA SEGURANÇA PÚBLICA: LIMITES E DISTÂNCIAS ENTRE A FORMA E A PRÁTICA

Se no capítulo 03 discutiu-se sobre como certas práticas e redes discursivas obtiveram viço em detrimento de outras, neste momento a reflexão deverá ocorrer em duas direções: quais novas configurações paradigmáticas de segurança passaram a ganhar terreno no período de redemocratização; por que certos avanços obtidos em outras áreas da experiência coletiva não ganharam viço na segurança pública, acarretando em aparente imobilismo institucional. A pesquisa objetiva pensar a questão levantada por Milton Santos (2002) no que se refere à combinação entre as estruturas fundamentais do poder e sua prática cotidiana: “De que forma deverá a Constituição levar em conta essa realidade e velar para que novos equilíbrios se possam instalar, em benefício da coletividade e tendo o território como pano de fundo?” (SANTOS, 2002, p.23). Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição Nacional, que é símbolo do processo de redemocratização iniciado na década de 1980, no Brasil. A partir de uma lenta e progressiva abertura política do governo militar, ainda no fim dos anos 70, a configuração de um regime autoritário passa a conviver com um horizonte democrático, que culmina, entre outros, no movimento de Diretas Já, entre 1983 e 84, na produção da Constituição em 1988 e na primeira eleição direta para a presidência desde João Goulart, em 1989, com posse de Fernando Collor em 1990. Observa-se, assim, a instituição de um Estado democrático de direito, junto a vigência de uma Constituição cidadã, que promovem “um quarto de século de experiência em um novo ambiente normativo, sob nova moldura institucional, recuperando o tempo perdido, atando linhas de tradição rompidas pelo arbítrio do regime militar (,,,)” (SOARES, 2013, s/p). No campo da segurança pública, ocorrem importantes mudanças estruturais. Como visto anteriormente, o artigo 144 da Constituição a estabelece como dever do Estado, direito e 105

responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Representa, assim, a passagem da Segurança Nacional para a Segurança Pública, propriamente dita, que seria realizada pelos seguintes órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. Nesse contexto, as Forças Armadas, a partir do artigo 142, é direcionada à manutenção da segurança nacional, soberania nacional, defesa da Pátria e garantia dos poderes constitucionais (FREIRE, 2009). A mudança paradigmática ocorre no sentido da descentralização. Antes exercida e normatizada pela presidência militar e pelas Forças Armadas, passa, agora, a ser dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Há também uma diferenciação clara entre os papéis institucionais do exército e das polícias, que comunga com a mudança doutrinária de Segurança Nacional para Segurança Pública, sendo a primeira voltada à soberania e defesa de território da nação, exercida pelas Forças Armadas, e a segunda voltada ao ordenamento e contenção da violência dentro das fronteiras nacionais, exercida pelas Forças Auxiliares, nas quais se encontram as polícias. Em suma, há o deslocamento da perspectiva de segurança da defesa dos interesses nacionais para a defesa da integridade das pessoas e do patrimônio. Contudo, conforme salienta Freire (2009), a responsabilização das instituições policiais federais e estaduais pela segurança não abarca os possíveis papéis que outras instâncias governamentais poderiam assumir nesta conjuntura. A questão de Moema Freire relaciona-se ao vazio constitucional em se definir a atuação, por exemplo, dos municípios e das comunidades na produção da segurança. Tal ausência é sentida, uma vez que a Constituição de 1988, de maneira geral, favoreceu a administração descentrada, conferindo maior capilaridade a diversos campos das políticas públicas brasileiras. Um exemplo desse processo é a importância dada às municipalidades na gestão do Sistema Único de Saúde, o SUS. Tal sistema foi, inclusive, utilizado como modelo para a formulação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), pelo qual a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) buscou maior articulação e integralidade entre as unidades federativas. Seis eixos compõem o SUSP: Gestão unificada da informação, Gestão do sistema de segurança, Formação e aperfeiçoamento de policiais, Valorização das perícias, Prevenção e Ouvidorias independentes e Corregedorias unificadas (FREIRE, 2009). A nova estruturação da segurança pública, bem como a implementação do SUSP mostrou-se, entretanto, insuficiente para mudanças práticas mais profundas. A autonomia na condução política de segurança conferida aos estados acabou por mudar a centralidade da esfera federal para a centralidade das unidades estaduais. A capilarização parece não ter 106

ganhado fôlego para atingir as gestões mais locais. Nesse sentido, as importantes transformações ocorridas na estruturação da segurança pública não se convertem em mudanças palatáveis à relação policial e cidadão. Enquanto outras áreas, mesmo que de forma gradual e também com seus problemas específicos, dão mais vazão às transformações, as corporações policiais militares parecem manter a mesma atmosfera simbólica. Ocorre o que Luiz Eduardo Soares (2013) chama de imobilismo político da segurança. Em uma paisagem que se torna cada vez mais habitada por movimentos amparados nos Direitos Humanos, como a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código de Defesa do Consumidor (CDC), ambos em 1990, observa-se uma polícia com a mesma prática de momentos precedentes. No dia seguinte ao sepultamento formal da ditadura, tendo sido promulgada a Constituição, os poderes do Estado emitiam um sinal democrático, cuja mensagem definia os indivíduos como cidadãos e os convidava a participar do novo momento da vida nacional, compartilhando direitos. Por outro lado, a experiência na rua, na esquina, emitia sinais opostos, cujo conteúdo reafirmava a arcaica desigualdade de tratamento: o policial uniformizado, manifestação mais tangível e visível do Estado, agia com a violência de sempre, nos territórios populares, abordando, seletivamente, pobres e negros (SOARES, 2013, s/p).

Cabe, portanto, nos debruçar sobre o contexto dos anos 1980 e 90, visando a emergência de algumas das forças e tensões atuantes na sociedade brasileira deste período. O intuito é averiguar as raízes do imobilismo político da segurança pública, discutindo-se, de maneira sucinta, os seguintes aspectos: o distanciamento entre a realidade almeja pelos ideais democráticos e as condições sociais econômicas e sociais da época; a articulação entre a ausência de um Estado de Bem Estar Social e a intensificação de um Estado punitivo; e o descrédito e o engessamento da arquitetura institucional da polícia militar frente aos avanços de ideários cidadãos.

4.2.1 A cidadania de quais cidadãos? A Constituição e os elementos constituintes da população brasileira

No percurso que vai da progressiva abertura política, ainda na Ditadura, até a eleição direta para presidente, é possível encontrar um otimismo em solo nacional, como o da espera da bonança após a tempestade. Na música Back in Bahia, Gil canta a alegria do retorno a sua casa brasilis, que mesmo que ainda fechada, já dava sinais de um ar menos denso do que o encontrado nos anos de chumbo, como ficou conhecido o momento mais severo do governo militar. Aos poucos já não era necessário “puxar os cabelos ou ouvir Celly Campelo pra não cair na fossa”, como se referia a canção tropicalista. 107

Na década de 80 o esforço das lutas políticas encontra um desfecho favorável na promulgação constituinte. As vozes, antes caladas pela censura, ganham os palanques políticos. Os corpos, antes vigiados, perseguidos e eventualmente torturados, voltam a transitar pelas ruas. As ideias, antes restritas às reuniões clandestinas e aos livros não mais encontrados nas bibliotecas, encontram espaços para promover a sua leitura das realidades sociais. A cavalaria já não era tão presente nas universidades e as conversas de corredor eram menos sobre quem seriam os infiltrados e mais sobre qual seria o futuro nacional após as duas décadas de ditadura e privação das liberdades. A participação política da sociedade civil, a discussão intelectual, os acordos internacionais; todos eles passam a habitar o contexto brasileiro, antes fechado a sete chaves, por trás de janelas gradeadas. Todavia, o abrir das portas e o andar pelas praças não permitiam chegar aos olhos outra paisagem que não fosse a da desigualdade social. O estancamento do milagre econômico, o crescimento urbano desordenado, o aumento das taxas de criminalidade, entre outros, conformaram um duro contragolpe àqueles que achavam que o pior já havia passado. Assim, como destaca Soares (2013), o período vê emergir dois processos, como se fossem dois Brasis: um, otimista, mais ligado ao desenvolvimento institucional, e outro, mais pessimista, que trazia sobre seus ombros a imagem da miséria em que se encontrava grande parte da população. Segundo o autor, há no país desta época, uma segunda dicotomia, que pode ser vista até os dias atuais. Uma dicotomia que separa o país “formal”, do país “real”, trazendo as adjetivações “formal” e “substantivo” para qualificar as instituições políticas: “Quando a forma se afasta da substância revela-se mera ilusão ideológica a mascarar a verdade histórica – é o que se conclui adotando-se essa distinção retórica” (SOARES, 2013, s/p). Os dois questionamentos a serem trabalhados, de maneira complementar, são sobre os motivos da área de segurança apresentar menos avanços que outras áreas de interesse público e os aspectos que diferenciam, entre si, as duas políticas públicas da área. Primeiramente, conforme exposto, há um distanciamento entre as formas de regulação social estabelecidas pela Constituição de 1988 e as condições sociais e econômicas em que se encontrava a maioria populacional do país. Os elementos deste distanciamento serão trazidos em sequência, neste tópico e nos subsequentes, pelas ideias de Soares, como com contribuições de outros autores. Todavia, pontua-se desde já a questão deficitária dos modelos participativos da sociedade civil. São evidentes os avanços encontrados nos processos de redemocratização, principalmente se levado em consideração a nulidade de representação popular durante a ditadura. O próprio movimento de Diretas Já, bem como as 108

manifestações sindicais na grande São Paulo, constituem bom indicativos da presença popular em movimentos organizados. Contudo, desde já, destacamos a ausência de modelos consultivos e deliberativos que promovam a participação mais efetiva do cidadão comum nas políticas públicas, o que será reavaliado no capítulo 06, no tocante à importância dos municípios e de outras formas de gestão mais local para o âmbito da segurança pública. Este fenômeno vai de encontro ao que Bárbara Hudson (2007) diz sobre a aplicabilidade da filosofia de Direitos Humanos em países que há acentuada desigualdades econômicas. Em texto que versa sobre diversidade, crime e justiça criminal, a autora enfatiza que, em geral, os propositores da filosofia de Direitos Humanos são provenientes dos países ocidentais industrializados e desenvolvidos. Desse modo, faz-se necessário averiguar como as culturas, os diferentes espaços, os valores e os conceitos específicos de cada agrupamento social serão impactados por essa filosofia que é pensada externamente. Na mesma direção, encontra-se Susanne Karstedt (2004), que expande a crítica às diferentes formas que as políticas criminais podem assumir: “Crime policies comprise more than a technology, a practice or a strategy. They have to be conceptualized as integrated concepts, which have emerged in a particular institutional setting and in a legal and public culture of crime prevention and control” (KARSTEDT, 2004, p.19-20). Em segundo lugar, considerando a diferença entre a orientação formal e a prática, encontra-se, entre outros, a extensão da desigualdade social e econômica ao campo de acesso à justiça e usufruto de direitos. Sobre este ponto Soares (2013, s/p) comenta que “a aplicação das leis é submetida à refração imposta por crivos seletivos bastante específicos e nada aleatórios”. A ideia de refração mostra-se potente, uma vez que diz sobre a mudança na direção de uma onda ao atravessar a fronteira entre dois meios com diferentes índices de refração. Dessa maneira, traduz a ideia de que a aplicação das regulações formais irão variar de acordo com o ambiente social, em suma, o acesso ao direito por parte de classes econômicas alta e baixa são distintos entre si. Ao comentar sobre a ausência de isonomia, que é base para toda e qualquer legislação, Soares traz o exemplo da pesquisa de Roberto DaMatta nos anos 70, que se refere à pergunta “sabe com quem está falando?”, utilizada por aqueles que objetivam gozar de privilégios junto aos profissionais de segurança. Outro pesquisador que também traz argumento nesta direção é Michel Misse (1997). Utilizando o “jogo do bicho” como prática exemplar, o autor aponta a diferenciação entre, de um lado, a política de criminalização mais geral e, de outro, a percepção social da criminalização: 109

No Rio de Janeiro, um padrão histórico estabeleceu-se com a mercadoria ilegal “jogo do bicho”. Esse padrão incluía, desde o início, uma contradição entre a política de criminalização mais geral, que atendia a uma parte importante da demanda moral da opinião pública, e a “percepção social” da atividade criminalizada e de seus agentes pelos seus consumidores, que incluiu, em diferentes épocas, também uma parte importante da população da cidade. Evidentemente, essa contradição facilitou o desenvolvimento da oferta de mercadorias políticas em todos os níveis, desde o clientelismo político até a corrupção mais desenfreada, com a consequente banalização seja da proibição do jogo, seja do poder dos bicheiros. (MISSE, 1997, p.106)

Misse defende que essa distinção do que é criminalizável “de direito” e o que é criminalizável “de fato”, quando banalizada, gera uma relação informal e ilegal de mercadorias políticas. Tais mercadorias poderiam ser facilmente avistadas no sujeito que, costumeiramente critica a corrupção policial, mas que, ao ter seu carro abordado e estando irregular com seus documentos, faz uso do pagamento ilegal ao policial em troca de seu favorecimento, ou seja, compra tal mercadoria política que o policial, na configuração que se estabelece, pode oferecer. Há, portanto, uma cumplicidade entre o profissional de segurança e o cidadão, que atualizam a distinção entre o que deve ser punível e o que não deve, não pela letra da lei, mas por uma avaliação moral específica e compartilhada entre os envolvidos: “Não se trata, nesse caso, apenas de ‘impunidade’, já que essa banalização confrontava, na prática, a própria legitimidade dessa ‘criminalização’ e, portanto, o sentido último (e moral) da punibilidade” (id, ibid). Assim, as falas de Soares e Misse equacionam a conversão da “forma” na “prática” com fatores que envolvem um histórico colonialista e escravocrata que evoca uma discriminação do alvo da lei e das práticas de segurança, bem como, e de maneira complementar, um comportamento social que fragiliza a aplicação universal da lei e faz girar um jogo de privilégios e trocas, ao mesmo tempo ilegais e amplamente difundidas na sociedade. Ou seja, na transição entre “forma” e “substantivo” ocorre, por vezes, uma refração social e um varejo de mercadorias políticas que suprimem os valores de direitos iguais a todos. Em discussão tangencial, Foucault coloca: A sociedade não tem a menor necessidade de obedecer a um sistema disciplinar exaustivo. Uma sociedade vai bem com certa taxa de ilegalidade e iria muito mal se quisesse reduzir indefinidamente essa taxa de ilegalidade. O que equivale mais uma vez colocar como a questão essencial da política penal não como punir crimes, nem mesmo quais ações devem ser consideradas crime, mas o que se deve tolerar como crime. Ou ainda: o que seria intolerável não tolerar? É a definição de Becker em ‘Crime e Castigo’. Duas questões aqui: quantos delitos devem ser permitidos? Segunda: quantos delinquentes devem ser deixados impunes? É essa a questão da penalidade. (FOUCAULT, 2004, p.351)

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Nesse sentido, cabe diferenciar as discussões em torno da criminalização de certos objetos ou práticas sociais (como jogo do bicho ou descriminalização da Maconha), da prática social em si, que acaba por materializar, por exemplo, posturas discriminatórias de cunho étnico e/ou econômicos. O que entra em jogo são quais elementos estão sendo territorializados nas produções de subjetividade desta época, e da contemporaneidade, que implicam em práticas segregadoras e excludentes. Uma vez que a presente pesquisa possui a alteridade como analisador, cabe enfatizar a “reincidência” de certos grupos – pobres, negros, vagabundos e outras minorias tidas como vulneráveis – na condição de terem os direitos suprimidos, seja na refração social da aplicação da lei, seja pelo baixo poder persuasivo e de compra no varejo ilegal das mercadorias políticas.

4.2.2 Redemocratização e Estado Punitivo: a fratura institucional da segurança

Sinto no meu corpo / A dor que angustia / A lei ao meu redor / A lei que eu não queria... Estado Violência / Estado Hipocrisia A lei não é minha /A lei que eu não queria...

Meu corpo não é meu /Meu coração é teu Atrás de portas frias / O homem está só... Homem em silêncio / Homem na prisão Homem no escuro / Futuro da nação

Estado Violência / Deixem-me querer Estado Violência / Deixem-me pensar Estado Violência / Deixem-me sentir Estado Violência / Deixem-me em paz. (Música Estado Violência. De Charles Gavin - Titãs, 1986)

O processo de redemocratização brasileira traz em sua bagagem conquistas de direitos que vão das crianças e adolescentes até à população idosa. Como se vê no caso dos primeiros grupos, a Constituição foi fermento para um novo documento regulatório: “Só na Constituição de 1988, pela primeira vez na história brasileira, há a concepção de criança e do adolescente como cidadãos e sujeitos de direitos sociais, políticos e jurídicos” (SANTOS, 2011, p.58). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assim, refere-se ao comprometimento nacional quanto aos valores sacramentados internacionalmente pelos países signatários da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção dos Direitos da Criança de 1989. É com a mudança, por exemplo, da Lei do Menor para o ECA que se sai da estruturação pela “situação irregular”, pautada pelo terreno da imoralidade, anormalidade e mesmo patologia dos modos de vida das famílias pobres, e se vai para a “proteção integral”, desfazendo a separação entre menor e criança (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003). Todavia, o que se observa, em mais de duas décadas depois, são a falta de efetivação de normas, a crescente fomentação pela mídia da redução da idade penal e a centralização em medidas 111

sócio-educativas de baixa qualidade para responder à participação de crianças e adolescentes em práticas penalizáveis, os chamados atos infracionais. Debruçando-nos sobre a população como um todo e lançando olhar mais atento às práticas de segurança pública, nota-se, com certa facilidade, que ao mesmo passo que se promulga uma Constituição cidadã, ocorre, no campo da segurança, uma acentuação das práticas punitivas: a polícia passa a prender mais, a matar mais (em autos de resistência ou não), bem como as prisões passam a ter uma população cada vez maior (WACQUANT, 2013). Entendendo a segurança a partir de uma habitação de território – simbólico, econômico, social, significante, entre outros – cabe observar que outras instituições, saberes discursivos e não discursivos são agenciados nessa fratura entre o processo de redemocratização e aumento das práticas punitivas. Um primeiro elemento refere-se à ausência de um Estado de Bem-Estar Social, o Welfare State, bem como à ampliação da onda neoliberal em solo nacional. Segundo Salla, Gauto e Alvarez (2006), o Estado de Bem-Estar é implantado, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, nos países considerados desenvolvidos, tendo a função de prover suporte econômico e social, como auxílios desempregos, moradias e condições básicas de sobrevivência. Wacquant (2013)17, comenta que no período entre as guerras mundiais e a década de 1970, o Estado de Bem-Estar se expandia e se retraia para administrar a pobreza; se a pobreza aumentava, o Welfare State se expandia, se a pobreza diminuísse, o Welfare State retraia-se. Contudo, a partir da década de 70, com a referida expansão neoliberal, ocorre a substituição do Welfare para o que Wacquant denomina como “Workfare”, no qual o bem estar social limita-se à colocação do pobre no mercado de trabalho de qualificações mais baixas. Nesse contexto, em que o retraimento do Estado de Bem-Estar interrompe seu efeito sanfona, expandindo e retraindo conforme a pobreza, limitando-se a medidas de menor espectro, vê-se o aumento do Estado Punitivo. Em trabalho que versa sobre o tema, Garland (1996), comenta que em 1960 passam a ganhar força as dúvidas sobre a eficiência das instituições da justiça criminal então atuantes. A proposta do autor, como também comentam Salla, Gauto e Alvarez (2006), é de compreender a punição como uma instituição social, o que demonstraria o caráter complexo e multifacetado do fenômeno. Tal proposta permite a leitura das penas em uma rede mais ampla

17 As referências à Wacquant datadas de 2013 referem-se à palestra que o mesmo conferiu em 21/10/2013 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, portanto sem numeração de páginas, versando sobre “A Bastilha Brasileira: porque o hiperencarceramento veio para os trópicos”.

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de ação social e significado cultural. Mais do que entender as causas das taxas criminais e do desenvolvimento da violência, o interesse concentra-se mais detalhadamente em como os Estados respondem a esses movimentos. Nesse sentido, em sucinta consideração sobre a obra do autor, Garland aponta que anteriormente às décadas de 1960 e 70, havia uma preponderância da ideia de soberania nacional, o que fazia com que o Estado assumisse para si as estratégias de controle criminal. O Estado de Bem-estar e sua atuação conforme as necessidades sociais apresentadas, como apontadas acima por Wacquant, constituiu um aparato de regulação e engenharia social. Todavia, a partir das últimas décadas do século XX , as altas taxas criminais passam a ser encaradas como fatos sociais: “High rates of crime have gradually become a standard, background feature of our lives – a taken for granted element of late modernity” (GARLAND, 1996, p.446). Dessa maneira, surge uma crise do sistema penal moderno, bem como das estratégias políticas assumidas pelos governos de Bem-estar. Segundo Garland (1996), o slogan “Nothing Works” ganha atenção durante a década de 1970 e início de 1980. O Estado passa, então, a criar novas estratégias que redimensionam o que seria o papel do público e do privado, bem como das sua responsabilizações: uma vez que as taxas criminais são fatos sociais, ou seja, imprimem funcionamento coercitivo da realidade, o Estado não centra sua ação sobre os aspectos causais e condicionantes, mas sim sobre os aspectos resultantes de tal realidade. “This Idea of reverting to a system of private prosecution shows how the responsibilization strategy merges nearly into strategies of privatization and public expenditure reduction which commanded such support from conservative governments in the 1980s and 1990s” (GARLAND, 1996, p.453). Todavia, cabe-se ressaltar que o Brasil nunca contou com uma política de Bem-Estar social efetiva, o que passa ter movimentos embrionários apenas ao fim do governo de Fernando Henrique Cardoso e início das presidências petistas. Ao comentar as práticas violentas vista no Brasil e 80 e 90, Soares (2013, s/p) traz: Observe-se, ainda, que o sofrimento precipitado pela violência do fenômeno não encontrou a compensação de uma trama institucional tecida por um generoso Welfare State. O Brasil atravessou a tormenta sob ditadura –sem canais orgânicos de representação popular, portanto–, cuja política econômica promovia a concentração de renda e o aprofundamento das desigualdades.

A presente pesquisa, ao mesmo tempo em que problematiza os processos de transição entre a “forma” e a “prática”, no que tange à diferença entre as filosofias e diretrizes das políticas públicas e as práticas manifestadas nas ruas, reassalta a também necessidade de problematização na utilização das ideias de autores debruçados sobre contextos internacionais 113

diferentes. Garland, por exemplo, diz sobre uma política e cultura de controle encontrada, principalmente, no Reino Unido e em outros países europeus, em constante diálogo com a América do Norte. Portanto, tais ideias são discutidas por uma contextualização mais ampla, e também limitada, das estratégias de governo encontradas nas culturas ocidentais. De qualquer maneira, destaca-se a importante relação entre os avanços da ideologia liberal, que passa a ganhar força neste período também no Brasil, com as estratégias que ora alimentam a soberania do Estado, ora lançam a responsabilidade da segurança aos indivíduos, organizações não governamentais e comunidades externas ao sistema criminal de justiça: The search for safety in the neo-liberal city increasingly depends on interventions that flow from the sovereign state and responsibilization agendas. On the one hand, the state continues to insist that it can ensure safe environments via investment in policing or by passing new laws, such as those to tackle antisocial behavior. On the other hand, the state also insists that tackling crime and maintaining safety are the responsibilities of individuals, private organizations and communities outside the criminal justice system. (FYFE, 2009, p.483-484)

Nicholas Fyfe (2009), ao retomar as ideias de Garland demonstra a sintonia que pode haver entre um conceito neoliberal de cidade e as práticas de segurança nas últimas décadas do século XX. Na passagem acima, vemos a insistência do Estado em garantir ambientes seguros por meio de investimento em policiamento ou pela criação de novas leis, enquanto, por outro lado, há a difusão da responsabilidade da segurança. Assim, o artigo Constitucional que diz da segurança como “dever do Estado e responsabilidade e direito de todos”, acaba por ver sua tradução em uma linguagem socialmente limitada do Estado, que coloca maior quantitativo policial nas ruas e enfoca sua ação na criação de leis e sistemas carcerários. Tais desdobramentos, para infortúnio da criminologia crítica recente, podem ser vistos nos debates eleitorais que pronunciam o acirramento da “guerra contra o crime”, pelo aumento do número de prisões, ou em um dos argumentos de um dos filmes mais assistidos nos últimos anos, Tropa de Elite, que, por ventura, reduz o debate sobre o ciclo vicioso da criminalização das drogas à parcela da culpa que “estudantes playboys” têm em fazer consumo de entorpecentes e, com isso, alimentar o narcotráfico. O ponto em questão é que na prática, conforme argumenta Wacquant (2008), a manutenção e controle da ordem pública, na intensificação do Estado punitivo, vai representar o controle da delinquência, ou seja, o controle daqueles que imprimem expressões de vida distintas das modelas pelos padrões culturais hegemônicos. Em estudo que compara as políticas brasileiras e norte americanas, Wacquant aponta que ambas possuem em comum a orquestração do pânico e do medo, pela mídia e pelos ciclos eleitorais como justificativa para o tratamento penal severo. Contudo, para o autor, há paralelos entre as duas experiências, bem 114

como idiossincrasias. Por conta das similaridades, Wacquant aponta a estigmatização de bairros pobres, a divisão étnico-racial no tocante ao usufruto de direitos e o aprisionamento como uma das principais medidas de controle do Estado, acarretando em caótica superlotação e crescimento da população carcerária. Já no que se refere às especificidades entre as experiências estadunidense e brasileira, encontra-se a distinção da violência e arbitrariedade do policial: Indeed, criminal insecurity in urban Brazil is distinctive in that it is not attenuated but aggravated by the intervention of the Law-enforcement forces. The routine use of lethal violence by military police, in charge of order maintenance, and the habitual recourse of the civilian police, entrusted with judicial investigations, to torture means of the pimentinha (electrical shocks) and the pau de arara (hanging cross) to make suspect “confess” the sequestering and extortion of bribes from defendants, their witnesses and kin, as well as summary executions and unexplained “disappearances”, all maintain a climate of terror among the lower class that is their prime target and banalize brutality at the heart of the state (WACQUANT, 2008, p.60, itálicos do autor)

A banalização da brutalidade no coração do Estado pode ser explicado, entre outros, por medidas como a chamada Gratificação Faroeste. Carlos Cerqueira (1996), ao comentar reportagem do Jornal do Brasil, de abril de 1996, traz a crítica do então presidente do Clube de Oficiais, coronel Ivan Bastos, à política do General Cerqueira: “por causa da gratificação (participação em tiroteio aumentava em 150% o salário), os policiais militares do Rio se tornaram caçadores de recompensa. O discurso é esse: nós queremos resultado e, como resultado, eles (os PMs) entendem o seguinte: confronto, tiro, ferido, morto” (apud CERQUEIRA, 1996, p.192). Comum durante a década de 1990, a Gratificação Faroeste era destinada à premiação de policiais por atos de bravura, o que na prática convertia-se na premiação em dinheiro aos Batalhões e policiais que “matassem mais bandidos”. Dessa forma vemos que, se no campo político ocorre a promoção de direitos pela Constituição, no campo da segurança ocorre, literalmente, a promoção de mortes, tidas como atos de bravura. Instala-se, portanto, uma dicotomização e distanciamento brutal das formas de alteridade presentes, de um lado, no Documento Constituinte de 1988 e, de outro, nas corporações policiais militares, nos meios de comunicação que enfatizam o medo e, portanto, na resposta “à mesma altura” dos aparatos policiais, expressados pelos ditados: “bandido bom é bandido morto”; “a polícia deve atirar para depois perguntar”. Há, assim, uma diferenciação arbitrária de cidadania, que segundo Wacquant (2013), conjuga as condições econômicas e de honra: 115

Rico Com posses

Desonrado

Ordem Pobre Sem posses

Classe Econômica Material Insider outsider Precário

Honra + Honra -

Quadro apresentado por Wacquant na referida palestra em 21/09/2013.

Na perspectiva apresentada por Wacquant (2013), que se aproxima da já apresentada por Coimbra e Nascimento (2003), o sujeito irá gozar de honra e, consequentemente, estará inserido na concepção moral de cidadão – nas práticas de segurança – ao passo que habita posição econômica hierarquicamente alta, patrimônio, ou, ao menos, atividade produtiva inserida dentro do mercado consumidor. Todavia, o mesmo não acontecerá com aquele que não apresentar tais características. Problema, este, que acaba por constituir uma das urgências que o programa de segurança com cidadania intenta responder.

4.2.3 Estagnação da Arquitetura Institucional das Polícias e a não ritualização da transição paradigmática

Um outro ponto que pode ser abordado para o imobilismo político das práticas de segurança diz sobre a arquitetura institucional das polícias. Soares (2013, s/p) comenta que “apesar do amplo consenso entre profissionais da área quanto à irracionalidade da arquitetura institucional, em especial do modelo de polícia, nenhum passo objetivo foi dado em direção à reforma”. Citando pesquisa que realizou junto a Marcos Rolim e Silvia Ramos, com apoio do PNUD (Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e Ministério da Justiça, em 2009, o autor constata que na opinião de 64.120 profissionais de segurança pública, em todo o país, 70% são contrários ao modelo policial fixado pelo artigo 144 da Constituição. A alegação da insatisfação relaciona-se ao comentado anteriormente, sobre a concentração proeminente do poder das polícias nos estados, com pouca ou nula autoridade 116

ao município e baixa responsabilidade atribuída à União, “condenando as instituições à ingovernabilidade e à mútua hostilidade” (id, ibid). A estagnação estrutural das corporações policiais acabam por não acompanhar a série de mudanças quanto às diretrizes e princípios que regem a sua atividade. No início dos anos 1990, por exemplo, ocorre a ênfase da polícia comunitária, embasada na Diretriz de Polícia Comunitária de 1993. Conforme relatam oficiais entrevistados em 2010 (MELICIO, 2010a), a vertente de policiamento comunitário constitui uma das primeiras respostas da corporação à mudança de postura almejada pela Constituição. Tal filosofia, baseada em experiências provenientes do Canadá e Japão, são trazidas em um conjunto de medidas que visam o deslocamento de uma polícia “Estadocêntrica” para “Sociocêntrica”:

A REARTICULAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E A SOCIEDADE Paradigmas PÚBLICO ENQUANTO PÚBLICO EXTRAPOLA Conceitos de ESTATAL OS LIMITES DO ESTATAL público, estilo de (1930 – 1979) (pós-1990) gestão e filosofias Restritos ao aparelho do Estendem-se a uma série de Modelos de estudo Estado e à burocracia atores envolvidos com da administração governamental questões públicas Instrumental teórico utilizado Administrativo Político-organizacional (FOCUS) Objetivo empírico Atores envolvidos nas do estudo Aparelho do Estado questões públicas (LOCUS) Crise Visão Unicista e tecnicista Pluralista dos Administração mais flexível anos Teorias administrativas e criativa, que incorpora os 1980 clássica e científica de avanços em termos de gestão Inspiração Taylor e Fayol – pública, com visão mais racionalidade técnica política e voltada para a teoria organizacional Centralizado, estilo Descentralizado com maior político-adminstrativo capacidade institucional e Modelo de gestão autoritário com ênfase na responsabilidade pública – estrutura hierárquica – pós-burocrática burocrática Eficiência – o nível de Eficácia – o grau em que os recursos empregados em requisitos dos clientes estão Meta um processo para atender sendo atendidos pelos requisitos dos clientes processos Fonte: Fundação João Pinheiro, cedido pelo Comandante Geral da PMMG em 2010, coronel Renato Souza, presente em sua monografia de Análise da produção doutrinária da PMMG.

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Contudo, o que se observa é a dificuldade da materialização de um novo paradigma, sem que haja obstáculos provenientes de uma cultura arraigada e amplamente difundida nas corporações militares, ainda (re)atualizadoras dos ideais provenientes da ditadura. Mesmo se compreendendo a realidade como campo de forças e tensionamento ente diferentes “verdades”, bem como se entendendo que um paradigma não suprime o outro, mas, sim, convive com o mesmo e apenas gradualmente colhe os frutos da mudança (FREIRE, 2009), o caso da segurança pública brasileira para ser exemplar quanto à resistência de transformação. Sobre esse ponto, Soares (2013) acrescenta a dificuldade de rompimento do cordão umbilical que liga a polícia à ditadura. Segundo ele, parte desse processo se deve à negociação operada entre as lideranças militares e as civis democráticas. A não alteração profunda do aparato de segurança seria uma maneira de calibrar o “timing” e a “extensão da descompressão”. Outro ponto, que será retomado no capítulo posterior, com a experiência da Irlanda do Norte, seria a falta de ritualização de passagem, que marcasse a transição de uma orientação de segurança para outra: Além da manutenção das antigas estruturas organizacionais refratárias à gestão racional e ao monitoramento externo, o fator provavelmente decisivo para que os valores (e as práticas) tradicionais fossem, nas instituições da segurança pública, legados às gerações subsequentes, ainda que cedendo aqui e ali, foi a inexistência de um ritual de passagem entre a ditadura e a democracia. Refiro-me à marcação simbólica de uma ruptura com o passado de violações aos direitos humanos, torturas, assassinatos, prisões arbitrárias, etc. Mesmo na ausência de uma justiça de transição e de julgamento dos violadores, teria sido fundamental a afirmação oficial de que houve abusos perpetrados pelo Estado, sistematicamente, e de que essa prática é inadmissível, a tal ponto que o novo regime construir-se-ia para que jamais se repetisse a barbárie institucionalizada. (SOARES, 2013, s/p)

4.3 O CONVITE À CIDADANIA

Conforme visto anteriormente, em 24 de outubro de 2007, pela Lei de número 11.530, institui-se no Brasil o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci. Segundo o caderno produzido pela Assessoria Federativa (BRASIL, 2010b), o programa visa dar uma resposta mais afinada ao pacto federativo de 1988, priorizando a atuação cooperativa no campo das relações intergovernamentais, principalmente no tocante à ordem social. O programa teria três focos principais: 1) Territorial: atuando em regiões urbanas com altos índices de criminalidades; 2) Etário: priorizando a juventude, principalmente os jovens que vivem às margens da criminalidade ou já tiveram problemas com a lei; 3) Policial: favorecendo a formação das forças de segurança. De fato, o Pronasci surgiu como resposta a uma nova e complexa conjuntura. De um lado, garantir os direitos fundamentais aos cidadãos. De outro lado, como resposta a um contexto de tensão social do país, caracterizado pelo crescimento desestruturado das periferias 118

das grandes cidades brasileiras e marcado por altos índices de criminalidade e violência, que atinge principalmente os mais jovens. Por fim, para superar um modelo ultrapassado de política de segurança pública, que tem como fundamento, quase que exclusivamente, uma atividade que se desenvolve após o cometimento do delito em lugar de desenvolver ações que evitem que o mesmo venha a acontecer (BRASIL, 2010b, p.8).

O Pronasci surge como a primeira institucionalização ampla e sistemática do processo iniciado com a redemocratização brasileira desde o fim do governo militar. Como o próprio texto diz, procura superar um modelo ultrapassado de política de segurança pública, até então embasado quase que exclusivamente em ações desenvolvidas após o cometimento das transgressões. Consoante com as discussões trazidas acima, o Pronasci institucionalmente se define como grande impulsionador da compreensão de que a segurança pública é uma questão transversal, demandando intervenção de várias áreas do poder público, de maneira integrada, não apenas com repressão, mas também com prevenção. Para tanto, tem-se que, em 2011, os princípios e diretrizes introduzidos pelo Pronasci na área da segurança pública passaram a ser orientadores de toda a política nacional conduzida pelo governo federal. Tal fato demonstra a importância que a transformação da área de segurança pública assume, uma vez que o conceito do Pronasci deixou de ser restrito a um dos programas da União e passou a direcionar todas as ações realizadas18. Apresentam-se urgências que de alguma forma percorrem as discussões acima apresentadas: a necessidade de ordenamento dos espaços e de fortalecimento da coesão social. Acordos internacionais entre governos federais, bem como a integração e promoção dos Direitos Humanos e princípios humanitários são outros dos aspectos relevantes. Observa-se uma tentativa de resposta à defasagem em relação a outras áreas de interesse público. Um exemplo disto é a realização da primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, a Conseg, em 2009, em âmbitos municipais, estaduais e federal. Enquanto outras áreas como a saúde e a educação chegaram a um quantitativo maior de conferências, a área de segurança pública realiza sua primeira e, ainda, única mais de 20 anos após a Constituição de 1988. Todavia, cabe destacar que a perspectiva de segurança cidadã possui uma origem geopolítica ligada à America latina como um todo, principalmente a partir da segunda metade da década de 1990. Tendo como princípio a implementação integrada de políticas setoriais no

18 As informações desse parágrafo foram retiradas do sítio eletrônico do Ministério da Justiça em dezembro de 2013: www.mj.gov.br/pronasci 119

nível local, o conceito tem como marco inicial o êxito na prevenção e controle da criminalidade ocorrido na Colômbia, em 1995 (FREIRE, 2009). Atenta às necessidades de uma gestão mais localizada, próxima das comunidades e que confere maior autoridade ao município, a agenda do Pronasci visa que os municípios assumam os seguintes papéis no controle da violência e criminalidade: atuar na promoção da cultura de paz, mediante a implantação de ações integradas de prevenção e enfrentamento da violência e da criminalidade; mobilizar toda a sociedade, fomentando práticas democráticas e participativas com o fim de produzir e disseminar a percepção de segurança na população; priorizar a dimensão local, formulando pautas e ações conjuntas que atendam as realidades da cidade, uma vez que são nas localidades onde o cidadão reside que o mesmo deve se sentir seguro (BRASIL, 2010b). Conforme Freire (2009), a intervenção baseada no conceito de segurança cidadã deve abarcar a participação ampla das diferentes instituições públicas e da sociedade civil. Outro ponto que a autora destaca é que na perspectiva Cidadã, “o foco é o cidadão e, nesse sentido, a violência é percebida como os fatores que ameaçam o gozo pleno de sua cidadania. Em outras palavras, permanece a proteção à vida e à propriedade já presente no paradigma de Segurança Pública, mas avança-se rumo à proteção plena da cidadania” (FREIRE, 2009, p.53).

Dimensão de Segurança Nacional Segurança Pública Segurança Cidadã análise Proteção dos interesses nacionais, Preservação da ordem pública e da Promoção de convivência e cidadania, 1. Objetivo associados às preferências dos incolumidade das pessoas e do prevenindo e controlando a violência. detentores do poder. patrimônio. Redemocratização do país, Consolidação dos direitos de cidadania. elaboração da nova Constituição, Fortalecimento da participação social e da 2. Contexto fortalecimento da cidadania, Ditadura Militar atuação da sociedade civil. Histórico movimento de descentralização e Crescimento da violência, demandando fortalecimento das competências de formas mais efetivas de prevenção e controle. estados e municípios. Fatores que ameaçam o gozo pleno da Ameaça aos interesses nacionais, 3. Conceito Ameaça à integridade das pessoas e cidadania por parte dos indivíduos. soberania e ordem pública. Atos de do Violência é multicausal e por isso contra Violência patrimônio demanda uma estratégia multi-setorial de o Estado e elite no poder. prevenção e controle. Implementação de políticas setoriais articuladas, com foco no âmbito local. Governo Federal, estados e municípios Controle e prevenção da violência. Eliminação de qualquer ameaça possuem papel nesse processo. No aos Além das instituições policiais, instituições entanto, maior foco é dado às interesses nacionais, podendo ser responsáveis pelas políticas sociais também estratégias 4. Papel do adotados quaisquer meios para o participam da política. de repressão à violência. Papel Estado alcance Nova importância é conferida à gestão local preponderante das instituições desse objetivo. Foco na atuação da segurança, em contraste com a perspectiva policiais das anterior que mantinha a esfera de atuação na implementação da política de Forças Armadas. concentrada principalmente no âmbito segurança. estadual e federal.

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Direito ao voto é restabelecido. O texto constitucional menciona que Submissão plena aos interesses a segurança é papel de todos. No O cidadão é central a essa perspectiva. nacionais, definidos pela elite no entanto, na prática, os indivíduos O indivíduo é o centro da política e seu 5. Papel dos poder. possuem pouca principal beneficiário. Indivíduos Indivíduos não participam das participação na política. Possui papel preponderante na gestão local decisões. Indivíduos como das políticas de segurança cidadã. Direitos cassados. beneficiários das políticas de segurança. Foco na atuação policial, principalmente em estratégias de Serviço de informações e controle da violência. inteligência para identificação de Papel central dos estados na Implementação de políticas setoriais 6. ações potencialmente implementação das políticas de integradas voltadas à prevenção e Estratégia ameaçadoras à ordem e aos segurança, com o estabelecimento de controle da violência. Fomento à de interesses nacionais. diretrizes principais pela Secretaria participação dos cidadãos e ao Política Criação de instituições de Nacional de Segurança Pública. desenvolvimento de ações voltadas à Pública repressão a qualquer ato Sistema Único de Segurança Pública: comunidade. percebido como subversivo. estratégia de articulação entre os estados e integração de informações e ações. Tabela produzida a partir de três tabelas presentes no texto de FREIRE (2009).

Como pode ser observado acima, mudanças significativas ocorreram no tocante às diretrizes de segurança, o que, de um modo ou de outro, oxigena as estratégias e as atividades de enfrentamento e controle da violência e criminalidade. Não há dúvida sobre a relevância das transformações entre um contexto em que as Forças Armadas posicionam-se como os tradutores da “vontade nacional” e que o policiamento é voltado para a soberania estatal e luta contra o inimigo da nação, e o contexto em que se reconhece a importância da descentralização da segurança e, principalmente, o reconhecimento e ampliação dos direitos de cidadania. Todavia, tornam-se importantes algumas ressalvas quanto às condições de transformação promovidas ao Pronasci. No tocante à distribuição regional e investimento orçamentário, segundo site do ministério da Justiça, o Pronasci chegou a 150 municípios, ao Distrito Federal e a 22 Estados: Acre, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Estima-se que o programa tenha recebido em investimentos a quantia de 6,707 bilhões de reais até 2012, com significativos acréscimos em 2013 e 2014, em virtude da eminência da realização da copa do mundo de futebol no país. Parte significativa foi destinada ao estado do Rio de Janeiro, com a qual ocorre a formação de Policiais Comunitários pela Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) e o financiamento de 20 projetos, como o de Proteção de Jovens em Território Vulnerável, o Protejo. Contudo, conforme anuncia o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC, 2012), em estudo destinado ao orçamento empregado pelo Pronasci, ocorre com o programa um 121

crescente desmantelamento em virtude de como as verbas são direcionadas. A análise do instituto constatou que, para além de sua concepção inovadora, o programa pouco evoluiu no sentido de uma estruturação adequada ao enfrentamento do complexo quadro de violência no país: “Isto porque sua concepção inicial, no marco dos direitos humanos, foi abandonada ao se projetar as ações e os projetos que deveriam colocar em prática as ideias concebidas” (op. cit., p.4). O instituto ainda comenta que a evolução dos gastos concentra-se no projeto de Concessão de Bolsa Formação, destinados a auxiliar nos vencimentos dos profissionais de segurança. Assim, o INESC argumenta sobre a execução orçamentária do Pronasci: “está reduzida a uma política de aumento de renda para os agentes de segurança, o que não garante o cumprimento dos objetivos traçados e muito menos do indicador proposto. Será que somente profissionais mais bem pagos podem garantir a redução da taxa de homicídios? Ou reduzir a violência contra as mulheres?” (id, ibid). Conjuntamente ao processo de mau emprego da verba orçamentária, cabe destacar a manutenção de paradigmas antigos também em processos decorrentes do contexto dos megaeventos esportivos. Dessa maneira, vemos que nos últimos anos o Rio de Janeiro tem sido espaço de investimento voltado à copa do mundo de futebol de 2014 e aos jogos olímpicos de 2016, recebendo atenção de grande parte da mídia brasileira. Para além disso, em função da geografia da cidade, com morros cravados em boa parte da área urbana, o que atrai turistas e também corresponde a espaços em que se construíram as favelas, o Rio acaba por manter e até aumentar o espaço que possui nos noticiários. ‘É a cidade maravilhosa! É o cartão postal do Brasil!’ dizem muitos dos textos ao tratarem da capital fluminense, ao mesmo passo estampam “A guerra do Rio”19, ao trazer conflitos entre policiais e traficantes de drogas, que contam com armamento pesado. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso. E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional, como você diz: não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. Luta não para uma "tomada de consciência" (...), mas para a destruição progressiva e a tomada do poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda, para esclarecê-los. Uma "teoria" é o sistema regional desta luta. (FOUCAULT, 2008, p.71)

A preparação do Rio para os eventos de escala internacional parece configurar a principal urgência da cidade. Em entrevista à revista Construir, da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro (AEERJ), o prefeito Eduardo Paes demonstra seu desejo de

19 O título “A Guerra do Rio” pode ser visto na matéria da revista Veja de 25/11/2010, em que trata dos confrontos entre os policiais e os traficantes das áreas que receberam as UPPs. 122

“transformar o Rio na melhor cidade para se viver e trabalhar em todo mundo” e para isso a importância de contar com os investimentos que permitem o usufruto “do legado das obras para a Copa e principalmente os Jogos Olímpicos”. O editorial da revista demonstra a importância das Unidades de Polícia Pacificadora nesta empreitada: “À medida que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do governo do Estado se instalam nas favelas, os órgãos da Prefeitura seguem atrás para melhorar aquelas áreas, com coleta de lixo, iluminação pública, creche, clínica médica etc.”20. Ocorre, assim, a continuidade histórica no intuito de transformação dos espaços populares, com destaque à favela. Se numa discussão a ser realizada no capítulo precedente a favela foi confrontada por ações como o Bota Abaixo, hoje é pensada pelas lógicas da UPP: O objetivo da UPP é um só e muito claro: acabar com os muros dos territórios impostos pela força das armas. Se você entra numa área dominada pelo tráfico ou pela milícia tem de prestar contas de seu ir e vir a alguém armado. Eles cobram para deixar o caminhão de gás entrar, cobram da empresa que instala TV por assinatura. É o que chamam de pedágio. É inadmissível que o cidadão tenha de prestar contas a uma pessoa armada, que não é servidor do Estado (José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, em entrevista para Revista Exame, em 20/10/2010).

Não se destrói a parte física como anteriormente, mas, sim, se ‘retoma’ algo que antes não atendia a lógica do Estado. Se na música Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, era cantado “eu nunca vi cartão postal que destaque uma favela, só vejo paisagem muito linda e muito bela”, em que faziam uma oposição dos olhares destinados às praias da zona sul e às favelas, hoje vive-se a época do “favela tour”21 e de manchetes como a da Veja, de 13/11/2011, com o título: “Beltrame transforma favela em vitrine mundial do Rio”. Não se trata, contudo, de esgotar uma discussão em torno das práticas da UPP. São inúmeros os avanços que o programa trouxe, principalmente no tocante à acentuada diminuição de trocas de tiros e à quase eliminação da presença de grupos ilegais transitando com armamento pesado (MELICIO, 2010b). A permanência do efetivo policial em suas localidades geram possibilidades ressonantes ao policiamento comunitário e de proximidade. Mais do que uma crítica totalizante, destaca-se a lógica expressada em termos de guerra e “retomada” de espaço, como se último fosse de posse de alguma instância administrativa; tais direcionamentos parecem se basear mais instauração de um modelo específico de espaço público, do que na promoção de diversidade e encontros da diferença.

20 Revista Construir, n°49, dezembro/2010. Pág. 1-5. 21 Serviço de turismo destinado principalmente a estrangeiros, que consiste em visita guiada e grupo em algumas favelas cariocas, com destaque para a favela da Rocinha, localizada na Zona Sul da cidade. 123

No mesmo contexto, as ruas observaram práticas como as da internação compulsória de crianças e adolescentes e os chamados Choques de Ordem. Este último, criado em 2009, tem seu objetivo descrito no site da prefeitura do Rio de Janeiro, com o título de “Um fim à desordem urbana”22: A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração, desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. As ações da Secretaria Especial da Ordem Pública, conhecidas como Choque de Ordem, buscam ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de postura municipal. Criado em 2009, o Choque de Ordem tem como objetivo pôr fim à desordem urbana, desenvolvendo ações de fiscalização em suas várias áreas de atuação, tais como combate ao estacionamento irregular, à ocupação irregular do espaço público e à prática de pequenos delitos.

Observa-se como a ideia de insegurança pública está associada a uma perspectiva específica de ordenamento urbano. Se no capítulo passado lançamos luz às teses evolucionistas e às práticas higienistas, vemos nas datas mais recentes a ideia de que “uma coisa leva à outra”, ou seja, a desordem urbana e a insegurança que ela gera banem do espaço público “as pessoas e os bons princípios”. Até mesmo o tom de palavras como “degeneração” se faz presente nesta que é a prática de fiscalização nas várias áreas de atuação encontradas nas ruas. Mas afinal, quais têm sido as pessoas e os bons princípios banidos dos logradouros cariocas? O ordenamento é para o usufruto de qual parte da população? A Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP), responsável por esta demanda na cidade do Rio de Janeiro possui como documento norte, o Plano Municipal de Ordem Pública (PMOP), de 2010. Segundo o documento, o PMOP insere-se no esforço preventivo dos municípios no âmbito da segurança pública, sendo suas ações contempladas pelo Pronasci. O Plano, assim, tem o caráter de viabilizar a parceria entre a Prefeitura do Rio e o Ministério da Justiça, o qual irá financiar todas as “atividades de ordem”. O documento ainda, como vemos em todos os textos oficiais ou da mídia, reforça a importância da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 para o sucesso do respectivo projeto e finaliza sua parte introdutória dizendo: Esse plano deverá, a partir desse documento, ser desenvolvido e submetido à população carioca, de forma a refletir um projeto adensado e respaldado na sociedade. Assim, a população do Rio de Janeiro, em um processo participativo, terá voz ativa na definição das estratégias de longo prazo em relação à ordem pública. O Plano Municipal de Ordem Pública será a nova base para a convivência e desenvolvimento da cidade maravilhosa (SEOP, 2010, p.9).

22 Acessado em 10/01/2014, no endereço eletrônico: http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1851209 124

Contudo, não foram encontradas, por esta pesquisa, ações participativas de maior efetividade por parte da população do Rio em torno das novas diretrizes de ordenamento do espaço público carioca. Ao que parece, até o fim de 2013, o adensamento e respaldo do Plano não passou pelo crivo de ações consultivas, características da orientação do Pronasci. A orientação parece ter se restringido aos 50 servidores do corpo técnico e gerencial da Prefeitura que participaram dos seminários para a escrita do documento. Aspectos como “a cultura da ilegalidade”, “ocupação desordenada do espaço”, “violação do patrimônio ambiental” e suas relações com a criminalidade são os principais temas debatidos. O PMOP possui três eixos transversalizados pelo sediamento dos jogos olímpicos: Ordem Pública e Espaço Público; Ordem Pública e Desenvolvimento Econômico; e Ordem Pública e Segurança com Cidadania. Nesse sentido, intenta-se observar como esse programa tem impactado a vida dos que se valem das vias públicas como local de moradia ou de trabalho, mostrando algumas das negociações ali realizadas. Conforme entrevistas realizadas pela pesquisa: O nosso maior problema é esse pessoal do Choque de Ordem. E se eles tão com os policiais fica pior ainda. Eles não olham na tua cara. O que eles querem é colocar a gente na van. Só sossega quando fazem isso. Pra você ver, depois de horas com todo esse pessoal, a primeira pessoa que pergunta seu nome é o cara da delegacia. E pra quê? Pra saber se é bandido ou não. Viver na rua é isso, parceiro. Um olho no colega e outro na van. (Morador de rua, em 13/09/2011, após ter sido apreendido pela internação compulsória)

O pessoal do Choque de Ordem não vem mexer comigo não. Até porque ele sabe que não sou fácil. Parece que o pessoal do centro tá com problemas. Mas aqui (Lapa), aqui a gente tá seguindo. E tem os que gostam, né? Mas esses só conversam depois do expediente, porque de uniforme dá bafão [sic]. (Fala de uma travesti em reunião organizada pelo PSF Lapa, realizada na Estácio de Sá, em 09/11/2011)

Cabe ressaltar que a problematização é trazida no intuito de se compreender o discurso que se segue em uma das matérias da revista Veja, de 23/08/2010, em que se faz uma crítica à UPP: “o Brasil não pode mais admitir um modelo de segurança pública que se baseie neste tipo de prática (...)”. Quais práticas? Quais modelos que o Brasil não pode mais admitir? Continua o colunista Azevedo: “não pode se admitir que a UPP não prenda os bandidos. O lugar de bandido é na cadeia. Não podemos admitir que a polícia se omita de confrontá-los e prendê-los”. Portanto, voltamos a nos debruçar sobre os saberes que têm sustentado as práticas de segurança em terras cariocas, que estão em um âmbito muito mais amplo do que os dos documentos oficiais, apesar dos documentos fornecerem boas pistas das estratégias de que esses saberes imprimem. Lançamos luz às tecnologias, à produção de subjetividade, a qual 125

será o processo capaz de fazer valer a máxima da Constituição de que a segurança é direito e dever de todos. Assim, trazemos as contribuições de Luiz Antônio Baptista (1999), ao tratar dos amoladores de faca: O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas, etc. Destruídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência da cotidianidade, rementendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. (BAPTISTA, 1999, p.46)

Onde estão os amoladores de faca? Baptista responde que, invisíveis, eles são difíceis de encontrar, mas estão nos ataques aos homossexuais na avenida paulista, nas mortes violentas das travestis em ruas brasileiras, nas pessoas em situação de rua que são queimadas no planalto central. Para o autor, o que os amoladores de facas têm em comum é a presença camuflada do ato genocida, é o investimento na produção de realidade em que se retiram da vida o sentido de experimentação e de criação coletiva. “Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta política e o da afirmação de modos singulares de existir. São genocidas porque entendem a Ética como questão da polícia, do ressentimento e do medo” (BAPTISTA, 1999, p.49). Desse modo, procuramos apontar para o descentramento da discussão sobre a segurança pública, por vezes focalizadas nas atividades dos profissionais de segurança e nas medidas de privação de liberdade. Se as práticas dos policiais militares, bem como eventuais olhares sobre outros profissionais como os policiais civis, agentes penitenciários e guardas municipais, são trazidos à tona é porque manifestam uma lógica que perpassa a produção de realidade do conjunto social. Produção, esta, que Guattari dá o nome de produção de subjetividade capitalística: “uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo” (GUATTARI, 2005, p.48). Guattari comenta que essa produção de subjetividade é serializada, normalizada e centralizada em torno de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental que esquadrinha a produção da realidade. O autor aponta que esta produção de subjetividade atende a três funções: a culpabilização, que propõe a imagem de referência na qual se individualiza os sujeitos em questionamentos como “quem é você? O que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?”; a segregação, em sistemas que 126

“dão consistência subjetiva às elites (ou às pretensas elites) e abrem todo um campo de valorização social, onde os indivíduos e as camadas sociais terão que se situar”; a infantilização, como a das mulheres e loucos em certas emergências históricas, que “consiste em tudo o que se faz, se pensa ou se possa fazer ou pensar seja media pelo Estado (...) Essa relação em dependência com o Estado é um dos elementos essenciais da subjetividade capitalística” (GUATTARI, 2005, p.49-50). A ordem da produção de subjetividade a que Guattari se refere é projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica, penetra os esquemas de conduta, de ação, de gestos, pensamentos, etc.. Assim, se valermos da definição da palavra genocídio, do dicionário Aurélio Buarque de Holanda, teremos a seguinte caracterização: Crime contra a humanidade, que consiste em cometer, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, qualquer dos seguintes atos: I) matar membros do grupo; II) causar-lhes lesão grave à integridade física ou mental; III) submeter o grupo a condições de existência capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte [...]23. Podemos colocar em análise que uma produção de subjetividade que culpabiliza, segrega e infantiliza pode dar passagens a práticas que amolam as facas de velados genocídios. Pessoas e práticas transversalizadas por forças que sustentam a diferenciação criminalizante dos sujeitos em nome do ordenamento público que favorece alguns. Subjetividades que acentuam o medo e a preocupação com a potencialidade do risco das classes perigosas, acarretando formas de exclusões que submetem determinados grupos a condições de existência capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte. Os mecanismos que põem em funcionamento a grande engrenagem, o “dispositivo da criminalidade”, integram agenciamentos de naturezas diversas, tais como, as prisões e os projetos sociais, por um lado, e as políticas públicas, por outro, que juntos operam um controle social amplificado, envolvendo as prevenções e o gerenciamento das virtualidades dos perigosos, produzindo inclusive as identidades/essências de ser humano, de bandidos, de gente inferior, de “elementos”, de meninos de projeto etc. (TAVARES, 2011, p.10).

Portanto, faz-se necessária a discussão da segurança pública em torno da produção de subjetividade, para que possamos nos juntar a outros autores que, como Zamora, apontam para a necessidade de uma discussão não apenas centrada no Estado, mas mais próxima de todos, buscando ficar atentos às linhas de fuga que possam aparecer: Será que nós, os “rivotris”, não rimamos tragicamente com as vidas “por um triz” - elas ao menos perpassadas de alguma vibração, nem que seja para seu aniquilamento? Estaremos reduzidos às patologias do vazio, à despolitização do cotidiano, à desocupação de nossa cidadania, ao consumo narcotizante, à vida besta,

23 Extraído do Jornal do Conselho Regional de Psicologia-RJ, Ano 7, nº 33. Julho/Agosto/Setembro 2011, p.8. 127

à vida de besta?” (...) Não há caminho senão resistir. Mesmo o “muçulmano”, em seu casulo suspenso, onde não distingue frio de pancada, grosseria de fome, está de alguma forma longe da possibilidade de ser magoado ou maltratado. Inacessível à crueldade, indiferente, é imune a seu algoz. Matá-lo não é crime, mas também não é vantagem. Talvez só possamos traçar os planos dessa guerra, novas estratégias, se formos capazes de reconhecer que é aí mesmo onde reina a biopolítica que resiste a biopotência. Que nunca foi “tudo dominado”: que ali onde o poder decretava vitória, a vida pulsava, as cinzas fumegavam, desejos se juntavam. (ZAMORA, 2008a, p.112-113 128

5 DO LITORAL ATLÂNTICO ÀS ILHAS DO NORTE: ESTRANHAMENTOS E APROXIMAÇÕES COM AS EXPERIÊNCIAS ESCOCESAS E NORTE IRLANDESAS

Durante a produção da pesquisa foi realizado o doutoramento sanduíche, com financiamento da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Por um período de sete meses, entre fevereiro e setembro de 2012, o trabalho esteve vinculado à Universidade de Dundee, na Escócia - Reino Unido, sob a orientação dos professores doutores Nicholas Fyfe e Fernando Lannes Fernandes. A pesquisa inseriu-se tanto no Scottish Institute for Policing Research (SIPR), do qual Nicholas Fyfe é o diretor, como na School of Education, Community Education and Social Work, em que Fernando Fernandes leciona24. Tal período mostrou-se extremamente valioso em função da diferença cultural encontrada na Escócia, pelo excelente suporte da universidade e, sobretudo, pelo olhar diferenciado de ambos professores, que, assim como o orientador Pedro Paulo Bicalho, dedicam-se ao tema da segurança pública. O fato do professor Fernandes ser brasileiro e com formação e trajetória profissional no Rio de Janeiro, fez com que o mesmo fosse um grande facilitador no intercâmbio de ideias e trocas de experiências neste período. Foi realizada uma série de encontros no SIPR, bem como em outros locais da universidade, em que se buscou o diálogo e o enriquecimento da presente pesquisa com a experiência britânica. O objetivo em realizar o doutorado sanduíche na Escócia foi o de, primeiramente, usufruir da expertise já mencionada dos orientadores externos. O professor Fernando Fernandes, mesmo residindo na Escócia, então, há cerca de dois anos, possui vasta pesquisa sobre o contexto carioca, trabalhando tanto na Escócia como em projetos que coordena no Brasil, com temas relacionados à pobreza urbana, violência juvenil e desenvolvimento comunitário. O professor Nicholas Fyfe, por sua vez, é importante referência na discussão sobre os temas do crime, justiça criminal e práticas de policiamento. Assim, o doutoramento sanduíche na Universidade de Dundee poderia propiciar a ampliação da discussão, dimensionando elementos da experiência escocesa e de outros países britânicos, e buscando apreender como as instituições acadêmicas e policiais desses espaços respondem ao complexo contexto da segurança pública e do policiamento. Por outro lado, também havia o interesse em dar continuidade ao intercâmbio, já iniciado anteriormente com os professores Fernandes e Bicalho, entre a Universidade de Dundee e o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.

24 Atualmente Fernando Fernandes é Senior Lecture in Inequalities, no Research Center in Inequalities, da Universidade de Dundee. 129

Todavia, sempre que interpelado por acadêmicos ou pessoas de convívio pessoal, se faziam presentes as seguintes perguntas: “É possível articular a experiência de policiamento escocesa com a carioca? As duas não são por demais diferentes?”. A questão de dimensão territorial e o fato de um ser diferenciado enquanto país, Escócia, e outro enquanto estado de um país, Rio de Janeiro/Brasil, não constituíram obstáculo. Isso ocorre em função da já mencionada autonomia estatal presente no Brasil, conferindo um ambiente regulatório, de certa maneira, circunscrito ao território fluminense, e pelo perímetro territorial escocês ser comparável ao de um estado brasileiro. Contudo, de fato, para além desses aspectos, o contexto político, econômico, cultural, bem como os contextos institucionais policial nessas duas localidades são bem distintos. Tal diferenciação pôde ser percebida, por exemplo, em entrevista realizada com dois policiais que fazem atividades de rua na cidade de Dundee:

Pesquisador: Em relação às armas de fogo, vocês nunca usaram?

Policiais: Não. Aqui no Reino Unido não portamos armas de fogo. Apenas um grupo restrito, com treinamento e atividade específica que porta este tipo de arma.

Pesquisador: E vocês não sentem falta, ou não veem a necessidade de utilizar este tipo de armamento?

Policiais: Não, nenhuma (“Not at all”). Se nós usarmos armas os criminosos (“offenders”) também irão usar. Então, qual seria a vantagem? Nenhuma. Nós não sentimos falta de ter arma de fogo.

Pesquisador: E que tipo de utensílios vocês carregam consigo?

Policiais: Nós carregamos spray de pimenta e um cassetete.

Pesquisador: E qual a frequência, mais ou menos, com que utilizam o spray e o cassetete?

Policiais: Hum... (pausa para pensar). Eu acho que duas ou três vezes.

Pesquisador: Duas ou três vezes em quê? São duas ou três vezes por semana, por mês?

Policiais: Não, usei duas ou três vezes nos 23 anos em que estou na polícia (O outro policial, que estava na polícia há 18 anos, fez um sinal com a cabeça confirmando a média) [Entrevista realizada durante observação participante, ao caminhar pelas ruas de Dundee, em 07/06/2012.]

A fala dos policiais provocou um estranhamento de difícil mensuração. O fato de não desejarem a utilização de armas de fogo por acreditarem que isso acarretaria na também utilização de armas por aqueles que cometerão alguma infração penal foi o primeiro ponto relevante. Tal ideia é muito contrastante com a experiência no Rio de Janeiro. Particularmente, como pessoa que morou no interior e capital paulista, além de seis anos em Minas Gerais, acho válido sinalizar a estranheza e o desconforto que foi avistar os policiais militares cariocas portando fuzis pelas ruas da cidade. Recordo que, em 2007, quando mudei 130

ao Rio, fiquei surpreso em ver um carro da PM passando ao lado do ônibus, com parte do armamento para fora da janela. Na mesma hora em que vi, perguntei ao passageiro ao lado se estava acontecendo alguma coisa, quando então o mesmo respondeu que “não necessariamente”, completando que isto (viatura policial, com parte da arma de grande porte para fora da janela) era parte rotina. Já o outro aspecto que chama a atenção é o quantitativo de utilização, por parte dos policiais escoceses, do armamento “menos-letal”25. Seria dificultosa a comparação com a polícia do Rio de Janeiro, que, por exemplo, apresenta em seu histórico alto índice de “autos de resistência”, quando há lesão corporal decorrente da intervenção policial, que chega ao número médio de 337 casos, por ano, entre 2009 e 2011 (UFRJ, 2013), sinalizando acentuada ocorrência de utilização de armamento. Levando, então, em consideração as peculiaridades de cada um desses universos, escocês e fluminense, optou-se por seguir dois caminhos diferentes. Por um lado, a pesquisa manteve o referencial da Escócia como pano de fundo comparativo, justamente por mostrar uma realidade distinta e, assim, descolar as atividades de policiamento de contextos com constante confronto. Por outro lado, partindo do diálogo com o professor Fyfe, decidiu-se em investir no estudo das transformações ocorridas na Irlanda do Norte, uma vez que também é país membro do Reino Unido, mas que possui uma experiência de maior proximidade com as temáticas discutidas na pesquisa. De maneira introdutória, o interesse pela articulação entre Irlanda do Norte e Rio de Janeiro justifica-se pela presença comum de elementos como: liderança por parte do exército em alguns momentos históricos de conflito; o desenvolvimento de treinamentos específicos e aumento intenso do nível de armamento em virtude da frequência de confrontos com grupos armados ilegais; o questionamento destinado à militarização da polícia; práticas discricionárias como a política do “shot-to-kill”26 na Irlanda do Norte e a “gratificação faroeste” no Brasil; entre outros. Ao lançarmos um primeiro olhar no contexto norte irlandês, destacamos o embate relacionado à orientação religiosa entre protestantes e católicos e à inclusão ou não do país no Reino Unido. Tais elementos acabaram por configurar um histórico de conflitos, abaixo abordados, em que o aparato policial se confrontava com grupos paramilitares armados e organizados, como o IRA (Irish Republican Army – Exército Republicano Irlandês), culminando na

25 A nomenclatura “menos-letal” ou, em algumas variações “não-letal”, é utilizada a todos aqueles utensílios empregados no uso da força pelo profissional de segurança, que possuem menor poder de letalidade – principalmente se comparado às armas de fogo. 26 No período de alta ocorrência de conflitos e ataques de grupos paramilitares, final da década de 1960 e início de 1990, a polícia norte irlandesa valeu-se de uma política de confronto armado, em ações que resultaram em grande número de mortes. 131

progressiva militarização e aumento de poderio bélico da polícia. Nesse sentido, um ponto que chama atenção quanto ao policiamento na Irlanda do Norte diz sobre a reforma iniciada em 1999, que é considerada um marco para a mudança de política e percepção da polícia, sendo responsável inclusive pela alteração do nome institucional de RUC (Royal Ulster Constabulary) para PSNI (Police Service of Northern Ireland). Como destaca Aogán Mulcahy (2008, p.204), "embora as ‘lições’ históricas da Irlanda do Norte fossem invariavelmente negativas, o ambicioso programa de reforma da polícia, delineado no Patten Report 1999, se constituiu em parte fundamental do processo de pacificação do país e situou a Irlanda do Norte como um ‘modelo’ central para debates sobre reforma policial em geral”27. A notoriedade da reforma policial norte irlandesa evidencia-se de tal maneira que acabou por ser um dos motivos para a realização de um intercâmbio entre a PMERJ e as polícias escocesa e norte irlandesa. Em 15 de outubro de 2012, foi realizada entrevista com o coronel Robson Rodrigues da PMERJ para a presente tese. Nesta oportunidade, comentou-se sobre a realização do doutoramento sanduíche no Reino Unido e discutiu-se sobre a reforma policial que ocorreu na Irlanda do Norte, de tal maneira que o coronel se interessou em averiguar a possibilidade de articulação entre as instituições. A partir deste momento, foi acionada uma rede de contatos - que havia sido iniciada pelo professor Fernando Fernandes em experiências prévias com a PMERJ, pelo diálogo criado entre Fernandes e Bicalho em visitas institucionais, bem como pelas indicações do professor Nicholas Fyfe - que culminaram no planejamento de tal empreitada. Entre outubro de 2012 e fevereiro de 2013, por iniciativa e interlocução da presente pesquisa, foram realizadas reuniões e tratativas envolvendo oficiais da PMERJ no Rio de Janeiro, os professores Fernando Fernandes e Nicholas Fyfe, na Escócia e o professor Gordon Marnoch, na Irlanda do Norte, para o planejamento e execução de intercâmbio, no qual oficiais da PMERJ realizam visitas e encontros nos dois países citados do Reino Unido. Tais atividades, portanto, tornaram-se possíveis pela prévia criação de rede de contatos pelo professor Fernandes, pela posterior articulação e planejamento internos à Universidade de Dundee, na Escócia, e Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, bem como pela possibilidade aberta pelo coronel Robson na PMERJ. Cabe destacar que na Escócia, Nicholas Fyfe, enquanto diretor do SIPR, prontificou- se em equacionar todo o conjunto de atividades no país, envolvendo outros professores que se

27 Livre tradução do original: “although the historical ‘lessons’ from Nothern Ireland were invariably negative, the ambitious police reform programme outlined in the 1999 Patten Report, and which formed a key pillar of the peace process, has moved Northern Ireland centre-staged as a ‘model’ for debates about police reform generally” 132

dedicam à área de segurança pública e a força policial escocesa, a Police Scotland. Houve também o direcionamento para a discussão do Commonwealth Games, que se refere a um grande evento esportivo a ser realizado em 2014, em Glasgow e que, portanto, faria ressonância aos interesses da PMERJ, uma vez que o Rio de Janeiro será cidade-sede na Copa do Mundo de Futebol, em 2014 e das Olimpíadas, em 2016. Em convite que Nicholas Fyfe endereçou à PMERJ, há a descrição das seguintes atividades: In the period 25th February-1st March 2013, the aims of the visit will be:

• To discuss security planning for major sporting events with police officers and government officials and researchers involved in security planning for the Commonwealth Games in Glasgow 2014;

• To discuss arrangements for community policing with police officers and researchers involved in this area in Scotland;

• To discuss training in the area of strategic leadership in police organizations with staff from the Scottish Police College.

• To discuss opportunities for Brazilian police officers to be involved in the police education programme provided by the Scottish Institute for Policing Research.

No tocante à Irlanda do Norte, foi o professor Gordon Marnoch, da Universidade de Ulster, quem se encarregou pelo desenho da programação, envoldendo atividades com professores que participaram do curso de formação dos policiais da PSNI e também com policiais provenientes do período da RUC. Em carta à PMERJ, descreve as seguintes atividades: In the period 4th-6th March 2013, the aims of the programme will be to give the group an appreciation of key elements in the change process undertaken by the police in Northern Ireland during the last 15 years and an understanding of how principles and practices can be adapted elsewhere. We will be able to use both our own staff and selected former senior PSNI officers to deliver a short programme for your officers. The former police officers are highly knowledgeable concerning the journey undertaken to create the PSNI. They also have extensive experience of transferring knowledge to other countries including Turkey, Albania and Afghanistan. The 2 day programme will be based around the following themes:

 Institutional change in policing and justice, the Northern Ireland experience. To cover the PSNI and the extensive oversight system created in the last decade.

 Key tasks in the creation of the PSNI.

 Developing leadership styles for policing.

 Adapting community policing to post-conflict Northern Ireland.

 Human rights and the PSNI response to new expectations.

 Public order policing in Northern Ireland.

 Transferring policing principles and practices from one jurisdiction to another - what we have learnt.

Nesse sentido, o intercâmbio foi realizado entre 25 de fevereiro e 06 de março de 2013, com a viagem de 9 oficiais da PMERJ, com financiamento da mesma, tanto à Escócia, onde situaram-se no Police College e dirigiram-se a diferentes cidades, como na Irlanda do 133

Norte, onde centraram-se na capital Belfast. Neste período, o quadro de oficiais que participou do intercâmbio elaborou uma sistematização das informações produzidas, organizada em uma apresentação de 97 slides, que foram disponibilizadas à presente pesquisa28. Assim, o objetivo do capítulo será a discussão do contexto de policiamento na Escócia e na Irlanda do Norte, que servirá de suporte para breves articulações com o contexto fluminense (retomadas no capítulo posterior), utilizando-se de material proveniente do doutoramento sanduíche e do intercâmbio realizado pela PMERJ.

5.1 ESCÓCIA

A Escócia é um país situado na ilha da Grã-Bretanha e integra política e economicamente o Reino Unido. A população do país é de cerca de cinco milhões de habitantes, contando com 16 mil policiais em sua totalidade, o que gera a relação de um policial para cada grupo de 301 habitantes29. Segundo dados do intercâmbio, apesar de baixas taxas criminais de maneira geral, a sua cidade mais populosa, Glasgow, com 582 mil habitantes, é considerada a com maior índice de violência da Europa. A segunda cidade mais populosa da Escócia é sua capital Edimburgo, com 468 mil habitantes, seguida por Aberdeen, com 220 mil e Dundee, com 148 mil habitantes. A polícia escocesa passou por uma significativa mudança estrutural no último ano. Em abril de 2013 foi estabelecida a unificação da polícia, Police Scotland, responsável por atuar em toda a dimensão territorial da Escócia, que compreende aproximadamente 73 mil km². Tal processo de centralização teve como objetivos, segundo o relatório do intercâmbio, a redução de custos com o enxugamento da máquina administrativa, o aumento do efetivo, a homogeneização do treinamento e fortalecimento da aproximação entre polícia e comunidade. Como pode ser visto em seu site oficial30, o serviço de policiamento é comandado por um chefe de polícia (Chief Constable), que possui o suporte de quatro chefes adjuntos (Deputy Chief Constables), chefes assistentes (Assistent Chief) e três diretores. Há ainda a divisão em 14 departamentos de polícias locais; cada uma com um Comandante Local. Em cada uma dessas divisões encontram-se policiais para pronta- resposta a ocorrências, policiais

28 Os dados produzidos pelos oficiais da PMERJ foram enviados por email em 27/05/2013. Em todos os momentos que o texto desta pesquisa fizer referência a dados do referido intercâmbio, tratar-se-á, portanto, de dados produzidos e cedidos pelos policiais da PMERJ, de autoria exclusiva dos mesmos. A presente pesquisa terá a autoria das citações de entrevistas e bibliografias acadêmicas que serão articuladas em discussões junto às informações do intercâmbio. 29 Dado comparável à proporção de um policial para cada 252 habitantes, na Irlanda do Norte, um para 418 na Inglaterra e País de Gales e um para 472 no estado do Rio de Janeiro. 30Fonte: http://www.scotland.police.uk/. Acessado em 10/01/2014. 134

comunitários, investigação criminal local, policiamento rodoviário, proteção pública e inteligência local. Observa-se uma consonância com o objetivo de capilarização presente no paradigma de segurança cidadã brasileira, uma vez que essas 14 subdivisões visam assegurar que o policiamento de cada área seja responsivo, comprometido e adaptado às necessidades locais. O propósito do Police Scotland, ainda segundo seu site oficial, é melhorar a segurança e o bem-estar das pessoas, lugares e comunidades escocesas. De acordo com os dados do intercâmbio, até a década de 1970 havia na Escócia, 24 unidades de polícia. Todavia, houve um progressivo processo para uma maior unificação, como a transição para 8 unidades e o processo de ingresso dos policiais, que já era único em todo o território mesmo antes de 2013. No contexto

Figura 12: Policiais escoceses em Dundee. atual, uma vez ingressante, os policiais passam por uma formação de 104 semanas, divididas em cinco módulos, tendo um curso teórico de três meses e estágio prático de 320 horas, com prova ao final. As promoções ocorrem exclusivamente por meritocracia, provas internas e sistema de ranqueamento, sendo suas subdivisões hierárquicas: Chief Constable, Deputy Chief Constable, Assistent Chief Constable, Chief Superintendent, Superintendent, Chief Inspector, Inspector, Sergeant e Police Constable (Regular e Especial). Os crimes mais frequentes no país, em ordem do maior índice para o menor, segundo o intercâmbio, são: crime com facas; violência relacionada ao uso de álcool e a torcidas nos estádios de futebol; roubo de veículos; pequenos furtos; e uso de maconha. Cabe destacar as brigas de torcida nos estádios, principalmente relacionadas à rivalidade entre dois times situados em Glasgow, o Celtic e o Rangers, que de certa maneira possui características semelhantes ao contexto norte irlandês, havendo conflitos de cunho religioso (protestantes e católicos) e ligado a grupos favoráveis e contrários à integração da Escócia ao Reino Unido. De maneira geral, em função da reforma cristã protestante ocorrida no século XVI, contexto em que foi criado o Anglicanismo inglês, a orientação protestante é mais observada entre aqueles grupos favoráveis ao integralismo do Reino Unido, por isso conhecidos como “unionistas”. Por outro lado, a orientação católica é mais observada naqueles grupos favoráveis à independência do país em relação ao Reino Unido e à sua capital Londres, compondo o grupo dos “republicanos” (MULCAHY, 2008). Dessa maneira, os times de futebol de Glasgow sintetizam uma questão cara aos países membros do Reino Unido que diz 135

sobre o pertencimento ou não a esta lógica política, bem como sobre a distinção conflituosa, interconectada ao primeiro aspecto, entre católicos e protestantes. Nesse caso, por exemplo, o Celtic conta com maior simpatia entre os católicos e imigrantes irlandeses, enquanto o Rangers possui na maioria de sua torcida pessoas protestantes e adeptas da coroa britânica (GIULIANOTTI, 2005).

5.1.1 Polícia de proximidade e o respeito à igualdade e diversidade social

No tocante à orientação institucional da polícia escocesa, há a ênfase no policiamento comunitário. Foi levantada na visita da PMERJ à Escócia que no país o curso de polícia comunitária é realizado em 04 semanas, tendo como pilares a segurança, saúde, criatividade e força. Seguindo as premissas básicas de tal filosofia, o policiamento comunitário é empregado como estratégia para redução da criminalidade, fazendo com que o policial vá à comunidade para verificar as necessidades da população e também para informar às pessoas o que a polícia espera delas. No caso escocês, a polícia também trabalha integrada com outros órgãos e é sempre consultada para a execução de projetos arquitetônicos para grandes eventos, de forma que os mesmo contenham elementos favorecedores à segurança pública. Outro ponto é que os policiais promovem cursos de prevenção e redução de todo tipo de violência entre os jovens, sendo que a maioria das escolas possui um policial capacitado para tratar desses assuntos com os jovens ao decorrer do dia letivo. Ainda segundo produção do intercâmbio, há o destaque da existência de uma espécie de júri nas escolas, no qual ocorrem as práticas da defesa e da acusação dos envolvidos, para que com isso os jovens desenvolvam a percepção de há consequências para os seus atos e ações. Em observação participante realizada junto em 07/06/2012, em Dundee, foi notado um intenso diálogo entre os policiais e os cidadãos comuns. No acompanhamento da rotina de dois policiais na região central da cidade, na manhã e tarde, além de convencionais cumprimentos às pessoas, observou-se o conhecimento do nome dos oficiais por parte dos cidadãos, bem como a solicitação de informação ou de ajuda pontual por diferentes instituições, como, por exemplo, uma organização não governamental que se dedica aos moradores de rua. Os policiais demonstraram saber os nomes, a procedência e o quantitativo das pessoas em situação de rua na cidade e procuraram passar, sobretudo, os direitos que os mesmos poderiam reivindicar. Pode-se relatar, também, que durante esta observação, quando os policiais se aproximavam de grupos como o de pedintes, os últimos não apresentavam qualquer reação de alerta ou receio (era observado de maneira frequente um pequeno quantitativo de pessoas, que 136

almejavam contribuições dos transeuntes, ficando sentadas ao chão e com um pote a sua frente). O que se viu foi o questionamento dos policiais aos últimos se tudo estava ocorrendo bem e se tinham alguma observação a fazer. É necessário fazer a ressalva das consequências que a presença do pesquisador durante a observação pode trazer para as atividades dos policiais, bem como o baixo número de habitantes se comparado a um grande centro urbano, como o Rio de Janeiro. Contudo, em outras observações, ocorridas em momentos de caminhada pelo centro sem estar acompanhando os policiais de maneira formal, o mesmo tipo de relação aparentemente amigável foi notada. O que se destaca é a aproximação das atividades observadas na prática com as orientações da filosofia da polícia comunitária e de proximidade, ressalvando-se o caráter embrionário das observações participantes em questão. Em relatório produzido no ano de 2013, com introdução do atual chefe da polícia, Stephen House, é colocado que o principal comprometimento da polícia escocesa refere-se ao respeito da igualdade de direitos e diversidade dos cidadãos. Conforme o relatório, “pode-se argumentar que a essência do dever policial é eliminar a discriminação ilegal, promover a igualdade de oportunidades e garantir as boas relações” (POLICE SCOTLAND, 2013, p.3). De fato, as questões ligadas à alteridade e às diferentes práticas que dela decorrem situam-se no centro da orientação escocesa, uma vez que o cumprimento dos deveres específicos do policiamento relacionam-se à publicação e relatoria dos seguintes pontos: “dever prioritário de prover igualdade; efeitos da igualdade; informações de funcionários; informações de disparidades salariais em função do gênero; declaração sobre a igualdade de remuneração; avaliação de impacto igualdade; critérios e condições relativas aos contratos públicos” (id, ibid). A preocupação com a questão da igualdade e diversidade decorre, entre outros motivos, dos desdobramentos da morte de um jovem negro em abril de 1993. Stephen Lawrence, então com 18 anos, foi assassinado enquanto esperava um ônibus na parte sudeste de Londres. Após a prisão preventiva de cinco suspeitos, a investigação apontou que o acontecimento seria motivado por descriminação racial, bem como o tratamento policial também teria sido afetado pela questão étnica. Tal ocorrido acabou por ser tornar um caso célebre no Reino Unido, acarretando alterações legislativas e de práticas policiais. Com diz o relatório da polícia escocesa, ainda em sua terceira página: Desde o assassinato de Stephen Lawrence e subseqüente relatório de inquérito, considerações a respeito da diversidade e igualdade obtiveram maior amadurecimento e se tornaram mais integradas ao policiamento. As razões morais, éticas e objetivas para o avanço da igualdade têm sido fatores-chave e o Serviço (policial) tem orgulho em ser reconhecido líder do setor público nesta área. Nós nos 137

esforçamos para fazer as coisas corretas desde o princípio, mas também temos focado nos erros que cometemos no passado para descobrir como devemos mudar para o futuro.

Nesse sentido, o policiamento escocês visa, em seu âmbito formal, promover um padrão de isonomia frente ao serviço que realizam, garantido principalmente pelas vias de comunicação e interação com a comunidade. Tal processo envolve, de um lado, a clara exposição à sociedade do código de ética policial e do comprometimento da corporação com os direitos humanos e, de outro, a exposição de quais ferramentas e procedimentos utilizam para a instituição garantir o respeito à igualdade e diversidade, sobretudo com o modo pelo qual eles sistematizam os procedimentos que executam e, posteriormente, disponibilizam essas informações. Observa-se, portanto, no Police Scotland a interconexão entre o respeito à igualdade e diversidade social e uma aproximação mais capilarizada com as comunidades locais para promover a segurança e o bem estar das pessoas, não sem passar pelas formas de produção e disponibilização das informações provenientes de suas práticas. Tal postura apoia- se, entre outros, no juramento da polícia após a unificação de 2013, encontrada nos dados do intercâmbio: Eu, solenemente, sinceramente e verdadeiramente, declaro e afirmo que cumprirei fielmente os deveres do cargo de policial com justiça, integridade, diligência e imparcialidade e, de acordo com a lei, defenderei os direitos humanos fundamentais e tratarei de forma respeitosa e igualitária todas as pessoas.

Para nos aproximar desse processo, o intercâmbio da PMERJ traz dados sobre as estratégias de aproximação da polícia escocesa adotados na região de Fife. No referido contexto, a polícia realiza como estratégia de aproximação: reuniões comunitárias bimestrais; mobilização comunitária, no qual a comunidade informa a polícia das irregularidades e a polícia fornece o feedback dois meses após; entrega de materiais informativos no comércio local; encontros com jovens nas escolas, nos quais procuram levar exemplos concretos; identificação de locais de maior necessidade de emprego policial; encaminhamento de pessoas em conflito com a lei a programas de ressocialização; identificação e apresentação de outros parceiros e instituições sociais para a divisão de responsabilidades; e participação em fórum nas escolas e universidades. Outro exemplo é proveniente da visita à Dundee. Neste contexto foi observada integração entre a polícia e o meio acadêmico. No caso, houve a explanação sobre o Scottish Institute for Policing Research (SPIR), que é composto por 12 universidades e considerado um relevante centro de pesquisa para a polícia escocesa, uma vez que as pesquisas auxiliam nas práticas policiais e orientam o treinamento. O foco do instituto é promover a relação entre polícia e comunidade por meio de pesquisa de satisfação, impacto social com a mudança da 138

polícia, produção de evidências e investigação criminal e discussão sobre liderança, gerenciamento e organização institucional. Os trabalhos de interesse policial produzidos pelo SPIR, como os de modelo de polícia e controle criminal, são repassados à polícia, além da realização de palestras anuais.

5.1.2 Commonwealth Games in Glasgow

O Commonwealth Games refere-se a uma competição multinacional e multiesportiva de países de língua inglesa que possuem ligações históricas com o império britânico. Realizados a cada quatro anos, os jogos são disputados atualmente por 70 delegações responsáveis por preparar, selecionar e enviar atletas à cidade sede, que no ano de 2014 será Glasgow. De acordo com seu site oficial31, atletas dos cinco continentes disputam 17 modalidades esportivas, contando com a presença de 4.352 atletas em 272 eventos em sua última realização, em Delhi, Índia. O interesse em se discutir sobre a realização do Commonwealth Games relaciona-se ao fato do Rio de Janeiro sediar os dois maiores eventos esportivos nos de 2014 e 2016. No tocante aos jogos em Glasgow, há uma grande mobilização por parte da polícia para a garantia do êxito de sua programação e para a demonstração ao Reino Unido de que a Escócia é um país seguro e capaz de se gerenciar autonomamente. Conforme informações provenientes do intercâmbio, em função do referendo a ser realizado em 2014 sobre a permanência ou não da Escócia no Reino Unido, a boa organização dos jogos seria uma das estratégias de fortalecimento da identidade escocesa. Segundo os dados trazidos pelos oficiais da PMERJ, os Commonwealth Games recebeu um investimento de 90 milhões de libras esterlinas, algo em torno de 355 milhões de reais, exclusivamente destinados à segurança pública. São esperados 1,4 milhões de expectadores e cerca de 6.500 atletas, competindo em 15 locais diferentes, durante 11 dias. No tocante à polícia, será empregado um efetivo de 4 mil policiais, atuando 24 horas por dia. Deste total, 10%, cerca de 400 homens, serão compostos por policiais ostensivos, que são armados. Há também 11 mil seguranças particulares que atuam dentro dos estádios, além de um quantitativo não divulgado de policiais infiltrados, que atuam dentro e fora dos estádios e em locais de concentração de público não ligado diretamente ao evento esportivo, como bares e hotéis. Nos locais considerados de risco, será destinado de 5 a 6 mil policiais no dia mais crítico.

31Disponível em: http://www.thecgf.com/. Acessado em 10/01/2014. 139

Em relação ao programa de controle do uso da força, destaca-se que exceto a pequena percentagem mencionada do policiamento ostensivo, os policiais não utilizarão armas de fogo em seus serviços de rotina. Para controle externo e garantia de respeito aos direitos dos cidadãos, todas as ações policiais serão filmadas, sendo cabível ao policial, quando identificada situação em que as formas de contato anteriores foram esgotadas, o uso do bastão retrátil, de spray de pimenta e da taser (arma que envia uma descarga elétrica no alvo), sendo a última restrita a oficiais com treinamento específico. No tocante aos policiais que atuarão portando arma de fogo, todos passam por teste psicológico e treinamento de tiro, sendo habilitados apenas os mais capacitados nestes procedimentos. Ainda assim, com o intuito de otimizar o emprego de policial utilizando este recurso, ocorrerá o mapeamento das áreas de atuação, não sendo permitido o uso de arma de fogo em áreas de menor risco. Conforme aponta o relatório do intercâmbio, a polícia realiza a identificação das diferentes instituições e agências que farão parte do evento, visando compartilhar a responsabilidade em relação à segurança. Assim, cada local do evento contará com uma estação de segurança de maneira a integralizar os órgãos envolvidos, como, por exemplo, a adoção por parte da agência distribuição de credenciais para funcionários e VIPs de procedimento de inteligência para evitar o acesso de pessoas ligadas ao crime organizado. O Police Scotland apresenta uma lista de 10 pontos principais a serem averiguados durante os jogos, que são: identificar possíveis ataques terroristas; prevenir a desordem pública, principalmente da ação de torcedores em forma de turba; suscitar o envolvimento do público interno para sucesso dos jogos; minimizar o quanto possível o impacto da rotina da cidade; treinar policiais com a Unidade de Inteligência, Análise de Informações e Busca de Informações pessoais; garantir a segurança de áreas não diretamente relacionadas aos jogos, divididos nas zonas residenciais (acomodação dos atletas), operacionais (Cinemas, Shoppings e Transporte Público) e internacionais (locais de confraternização como hotéis, bares e praças); averiguar disponibilização de ingressos com antecedência mínima de 8 meses; elaborar projeto de segurança da distribuição de credenciais, o que também envolve a coibição da atuação de cambistas; garantir a facilidade de transporte, o que engloba meios exclusivos aos atletas, estacionamento afastado do evento, faixas de transporte pública exclusiva aos torcedores e proximidade entre os locais de competição; monitorar a utilização da mídia, por motivos diversos, tais como protesto de pessoas oriundas de países politicamente sensíveis (como Índia e Paquistão), tentativas de suicídio e análise de risco para a imagem institucional na escala de 0 a 7. 140

Para a observância dos pontos apresentados acima e para a determinação de quais são as áreas de risco, será criado um centro de controle e comando. A partir deste centro serão estabelecidos cinco níveis de risco, que balizarão o emprego do efetivo de acordo com a necessidade, tanto no que tange ao quantitativo policial como em relação às práticas que podem ser realizadas, como a já mencionada utilização da arma de fogo. Assim, haverá um centro operacional exclusivo para jogos, desvinculado do centro operacional de rotina, que contará com a colaboração de subcomandos responsáveis por cada uma das zonas de ação. Segundo a apresentação do intercâmbio, a análise e o plano de risco são necessários em função da otimização dos recursos empregados e da atividade preventiva. Nesse sentido, levando-se em consideração o risco em potencial, são trabalhadas hipóteses de 15 eventos terroristas para cada local esportivo, como ataque às pessoas VIPs, carro e/ou homem bomba, ataque com veículos motorizados, ataques com bicicletas e etc. Portanto, será realizado um levantamento por oito semanas acerca da característica de funcionamento de cada local esportivo, que deverá promover plano emergencial de evacuação de área, possuindo orientação do efetivo em cada um dos corredores de policiamento. Observa-se que o planejamento destinado ao Commonweath Games diz sobre as práticas policiais durante a realização de mega eventos. No caso escocês, como na maioria das instituições profissionais, o planejamento é visto como primeiro pilar para uma experiência exitosa. Nota-se a relação que se procura estabelecer entre o sucesso do evento e o sucesso institucional, havendo, de um lado, a criação de metas, a estruturação da gerência e do alcance às atividades de ponta para o alcance das metas e previsão de possíveis acontecimentos para a atuação preventiva, enquanto, de outro lado, ocorre a identificação de outros agentes atuantes durante os jogos, para que a segurança seja compartilhada e as diferentes atividades sejam integradas. Há, assim, a participação da polícia no processo decisório, tanto no sentido de liderança quanto ao aporte ostensivo e de inteligência, como no sentido de compor de maneira conjunta a outras instituições as ações necessárias para a realização dos jogos como um todo.

5.2 IRLANDA DO NORTE

A Irlanda do Norte é o único país do Reino Unido não localizado na Ilha da Grã- Bretanha. Situa-se mais ao norte, na Ilha da Irlanda, que é dividida entre seu país e a República da Irlanda, sendo a última um país independente e soberano. De acordo com o censo de 2012, produzido pela Agência de Departamento Pessoal e de Finanças (NISRA), a Irlanda do Norte possui uma população em torno de 1,9 milhões de pessoas, distribuídas em 13,6 mil km² de território. Sua capital, Belfast, possui em seu domínio pouco mais de 15% da 141

população, com 290 mil pessoas. A proporção entre o efetivo policial da (Royal Ulster Constabulary - RUC) e o total populacional, em 2013, conforme apurado pelo intercâmbio da PMERJ, é de um policial para cada grupo de 252 habitantes. Segundo artigo de 11 de janeiro de 2012 da BBC32, a Irlanda do Norte tem sua origem ligada ao Government of Ireland Act de 1920, no qual foi criado a República da Irlanda, conferindo a condição aos irlandeses de um Estado Livre. Nesse processo, entretanto, seis dos nove condados existentes na Ilha da Irlanda, todos pertencentes à província de Ulster, permaneceram integrados ao Reino Unido. Pela localização desses condados ao norte foi, então, originada a entidade política da Irlanda do Norte. Conforme o artigo, a maioria das pessoas residentes na Irlanda do Norte pertence a duas comunidades, a saber: a de protestantes, sendo a maioria composta por descendentes de escoceses e ingleses, de maneira geral com maior poder aquisitivo e acúmulo econômico, correspondendo a cerca de 2/3 da população; e a comunidade de católicos, que compõe cerca de 1/3 da população e possui parte do seu grupo em situação econômica menos favorável. Torna-se, assim, importante notar que no país tais tradições culturais e religiosas fundem-se com as práticas políticas. É nesse sentido que também ocorre a divisão entre, de um lado, os unionistas, de maioria protestante e que deseja a manutenção da integração ao Reino Unido; e os nacionalistas ou republicanos, em sua maioria católicos, que majoritariamente são favoráveis à união com a República Irlandesa. A partir de 1921 foi formado o parlamento norte irlandês em Belfast, de domínio dos ideais unionistas. Todavia, diferentemente de um histórico de acomodação e de respeito e convívio com as diferenças, foi observado uma sequência de estratégias de dominação e discriminação sobre a minoria católica, em que a força policial foi uma das protagonistas. Como aponta Mulcahy (2008, p. 205), “Royal Ulster Constabulary (RUC) desempenhou um notório papel na segurança do Estado, e foi apoiada nesta tarefa por uma força miliciana controversa, a Ulster Special Constabulary (também conhecida como ‘B’ Specials), e por

Figura 13: Foto de um dos muros de Belfast. uma extensa gama de poderes

32 Extraído de: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/country_profiles/4172307.stm. Acessado em 10/01/2014. 142

legislativos (mais notavelmente, o Civil Authorities act 1923)”33. A Irlanda do Norte viveu um contexto de unicidade política ligada aos protestantes unionistas e de opressão discriminatória até o fim da década de 1960, quando as comunidades católicas iniciaram um movimento de reação. Surgiram, assim, campanhas e marchas que reivindicavam igualdade de direitos civis, tendo como um dos pontos de discussão a localização das casas de católicos em áreas mais degradadas das cidades. Contudo, o que se viu foi uma contrarreação de protestos por parte dos unionistas, que resultou em onda de violência que percorreu as décadas seguintes. Neste período, o aparato policial, RUC, sofreu duras críticas provenientes dos católicos, referentes à parcialidade nas ações de seu efetivo, que incluía tiros indiscriminados de arma de fogo com morte de civis (“shot-to-kill”), falhas na prevenção que evitasse a queima de casas dos católicos por parte de grupos protestantes, bem como falhas nas ações para restringir ou dispersar multidões ou proteger vidas e propriedades (MULCAHY, 2008). Mulcahy (2009) comenta que para responder a esse conflito foi elaborado, em 1969, o Hunt Committee Report, que aboliu a Ulster Special Constabulary e retirou da RUC a responsabilidade pela segurança do Estado, abolindo o uso de arma de fogo em seu quadro. Ocorrem, portanto, intervenções diretas do governo britânico no contexto, que foram acompanhadas por uma maior atuação do exército nas situações de conflito, em detrimento do aparato policial. Entretanto, as intervenções passaram a lidar com um nível cada vez maior de conflitos civis e intenso crescimento de atividade de grupos paramilitares, tanto entre os católicos, como o IRA (Irish Republican Army), como entre os protestantes, tal qual o UDA (Ulster Defence Association).

Figuras 14 e 15: Fotos de dois muros de Belfast.

33 Tradução livre do original: “the Royal Ulster Constabulary (RUC) played an overt role in the state security, and it was supported in this by a controversial militia force, the Ulster Special Constabulary (also known as the ‘B’ Specials) and by an extensive range of legislative powers (most notably, the Civil Authorities act 1923)”.

143

De acordo com dados trazidos pelo intercâmbio, ao fim da década de 1960 a RUC foi tomada por uma crise de legitimidade e de expertise, visto que era desprovida de equipamentos para enfrentar atos terroristas e a desordem pública que se instaurava. A corporação possuía em seu efetivo uma grande maioria de protestantes, sendo apenas 7% católicos (o que não representa a proporção populacional de 2/3 protestantes e 1/3 católico), o quais eram vistos como “traidores” pelo IRA. Observa-se, como também é comentado por Mulcahy (2008), de que há uma latente divisão antagônica entre a comunidade católica e a polícia. Tendo visto em capítulos anteriores a conceituação de alteridade radical trazida por Jodelet (1998), visualiza-se na Irlanda do Norte um processo que carrega similaridades com a experiência brasileira e, mais especificamente, com a carioca. No Brasil, a mentalidade colonizadora, as teorias eugênicas e higienistas, bem como o momento ditatorial, promoveram práticas de segurança em que a polícia claramente assumia o papel de defesa do Estado e, por consequência, dos grupos de elite que compunham e/ou subsidiavam esse Estado, frente as demais classes e grupos sociais, em sua maioria pobre e/ou negro. No próprio período de fim da década de 1960 e decorrer dos anos 70, no Brasil, havia um cisão que opunha, de um lado, o Estado militarizado e os grupos de elite e, de outro, os grupos de militância política esquerdista, contrários ao regime militar, bem como a larga parcela miserável, vista como incapaz ao trabalho e ao desenvolvimento de poder aquisitivo. No caso norte irlandês, em função de sua continuidade no Reino Unido, apenas os grupos leais à coroa britânica, majoritariamente protestante, compuseram as altas instâncias administrativas. Nesse sentido, ao invés de ocorrer uma diluição das diferenças, houve uma acentuação das mesmas, opondo de maneira radical os católicos aos protestantes. Cada um dos contextos, brasileiro e norte irlandês, possui especificidades geográficas, políticas e culturais muito bem demarcadas. Não há a intenção, aqui, de traçar um paralelo reducionista e direto entre ambos. No caso norte irlandês, por exemplo, os grupos que tinham maior acesso à gestão da máquina estatal e à polícia, eram também o grupo de maior quantitativo de pessoas. No caso brasileiro, a parcela pobre, com acesso e representatividade limitada nos governos representava, mesmo que subdividida entre pequenos grupos sociais de minorias, a maior parcela populacional do país. Todavia, a articulação entre as experiências se dá pela lógica de produção de alteridade cindida, na qual os diferentes grupos não possuem pontos que os ligam, ou seja, na qual os diferentes grupos se relacionam de maneira antagônica e sem o compartilhamento de características de similaridade. Os aspectos comuns a todos, os aspectos que ligariam os grupos numa relação 144

de proximidade e maior identificação mútua, como a mesma nacionalidade, a mesma língua e outros padrões culturais semelhantes que favorecem o convívio em uma mesma sociedade, são abruptamente retirados de cena. Ocorre a ênfase, quase que exclusivamente, apenas dos elementos que os diferenciam, que os distinguem e os distanciam uns dos outros, acirrando uma atmosfera de disputa simbólica e física. Outro ponto relevante é que, frente a esta produção de alteridade radical, a polícia se apresenta como instrumento não de promoção de bem estar, de igualdade e de segurança, mas sim como instrumento que visa fortalecer e garantir a barreira entre ambos os grupos. Sendo uma instituição profissional vinculada e regulada pelo Estado, acaba por produzir ressonâncias em suas atividades da discriminação social que o Estado e a sociedade como um todo reproduzem.

Figura 16: Foto de um dos muros de Belfast.

Retornando à cartografia do contexto norte irlandês, no início da década de 1970 ocorre o aumento de incidentes envolvendo, de um lado, grupos paramilitares e, de outro, uma força de segurança composta por exército e polícia sem acúmulo de experiência com situações como essa. Mesmo as situações que, aparentemente, não apresentavam necessidade de intervenção militar acabaram por acarretar trocas de tiros e mortes. O principal exemplo deste último é o acontecimento conhecido como “Bloody Sunday”. Durante uma marcha liderada por católicos, em janeiro de 1972, sem registros de uso de armas ou desordens por parte dos manifestantes, o exército acabou por fazer uma intervenção armada, na qual 13 pessoas do protesto foram mortas (CONWAY, 2003). Conforme relatado em entrevista à pesquisa, em 04/07/12, pelo britânico Erik Cownie, doutorando em ciências sociais na Universidade de Ulster, a partir dos anos 70 a cidade de Belfast adquiriu uma aparência de guerra, sendo facilmente visto barricadas e 145

bloqueios de trânsito. O mesmo relata que ações como ir ao shopping não aconteciam sem ao menos duas ou três interrupções por parte da polícia e exército. Para adentrar ou sair de um centro comercial era necessário passar por revistas. Outro ponto que Cownie destaca é a divisão geográfica da cidade em partes destinadas aos católicos e aos protestantes. A divisão chegou a produzir muros, vistos ainda em dias atuais, que separam uma área da outra. A cisão entre os grupos era de tal maneira que o trânsito de protestantes em áreas católicas, e vice e versa, poderia gerar um conflito seguido de morte – o que é outro elemento que se assemelha ao contexto carioca, principalmente entre 1980 e 2010, no qual o morador de uma comunidade dominada por uma facção de tráfico de drogas não deve adentrar comunidades em que há a presença de facção rival, por possível represália da última.

Figura 17: Foto de um dos muros de Belfast. Tais fatos fizeram com que a atuação do exército fosse revista e que a RUC retomasse a liderança na promoção da segurança nas cidades. Para tanto, a mesma foi novamente militarizada, com progressivo aumento de seu poderio bélico e de treinamentos destinados ao confronto com grupos paramilitares. Nesse sentido, conforma comenta Mulcahy (2008), desde final dos anos 1970 a RUC demonstrou uma crescente preocupação com seu profissionalismo e imparcialidade, podendo ser observado mais ações da corporação contra grupos e atividades lideradas por unionistas. Todavia, esse processo não foi capaz de reduzir satisfatoriamente as atividades paramilitares, nem tão pouco eximiu a polícia de Ulster de figurar na opinião pública por meio de escândalos de corrupção e de acusações de discriminação contra os católicos.

146

1986 1989 1990 1991 1992/3 1993 1993/4 % de protestantes que consideram que a RUC tratam protestantes melhor do que tratam católicos 11 13 12 18 22 17 19

% de católicos que consideram que a RUC tratam protestantes melhor do que tratam católicos 56 52 54 48 55 48 50

Fonte: Mulcahy (2006), apud Mulcahy (2008, p.207).

Segundo dados do intercâmbio, o foco da RUC no referido período era predominantemente voltado para o controle dos distúrbios, principalmente em razão da grande quantidade de marchas e protestos. Assim, havia uma distância entre a polícia e a sociedade, que culminou na significativa redução do número de registros de ocorrência e acesso à justiça, pois a constante preocupação com novos ataques e manifestações dificultava a escuta por parte da polícia das demandas da comunidade. Como consequência desse afastamento entre, de um lado, os cidadãos comuns e, de outro, a escuta da polícia às demandas locais e o acesso à justiça, os grupos paramilitares passaram a produzir leis e executar julgamentos próprios, da maneira que lhe parecessem conveniente. A cisão entre a maioria dos grupos sociais e a escuta da polícia e acesso à justiça demonstra-se como outro fator de possível articulação com o ambiente carioca de comunidades com a presença de grupos armados ilegais. Discutido em grande número de publicações (MISSE, 1997; MELO, 2001; ZALUAR, 2004; MELICIO, 2010b; JOVCHELOVITCH, 2013; entre outros), as formas de estruturação política e de tomadas de decisão nas favelas com a presença de facções criminosas possuem uma organização específica, quase que totalmente autônoma e independente da organização formal oficial da cidade. Dessa maneira, o ponto que a presente pesquisa busca destacar é o quanto as formas de alteridade radical presentes nestes contextos constituem o sustentáculo vital para tal configuração social. Alimentada, sobretudo, pela propagação do medo e pelas formas preventivas de ação que, por definição, antecedem os acontecimentos e trabalham em cima do risco em potencial, esse tipo de alteridade promove a supressão dos aspectos condicionantes desta estruturação social, desonerando os processos históricos e o descaso anterior do governo, e lançando o foco das políticas públicas para a repressão desmesurada e aprisionamento de pessoas. De acordo do dados obtidos pelo intercâmbio da PMERJ na Universidade de Ulster, no período entre 1966 e 1998, com uma população total variante entre 700 e 820 mil habitantes, houve um total de 3.636 mortes relacionadas a ataques e/ou conflitos com paramilitares. Deste total, 1232 eram católicos, 698 protestantes, 59 policiais ou agentes de 147

segurança privada, 508 membros das Forças Armadas, 392 revolucionários, 144 membros de grupos apoiados pelo governo e 158 de pessoas de outros grupos . O número de pessoas mortas em função dos conflitos, considerado alto para os padrões europeus, fez com que ocorresse na Irlanda do Norte uma série de reivindicações, provenientes de todos os grupos, para o fim de ataques e confrontos. Conforme relata Erik Cownie, na referida entrevista: Durante esses 30 anos (1969-1999), a polícia não quis prender pessoas, mas matá- las. Todas as vezes em que matavam não existia regras, não havia inquérito. (...) Mas o problema não é unicamente a polícia. Eles não mataram muito. Os fiéis ao Reino Unido e os Republicanos... as força paramilitares mataram muito mais. (...) Havia muita violência e as pessoas estavam cansadas disso. Havia barricadas, bombas... policiais foram mortos em universidades (...) Depois houve aquele ataque de republicanos na Inglaterra, quando dois garotos morreram. Houve um grande protesto em Dublin. Todo mundo.... católicos, protestantes, União Européia... todos reivindicaram a paz. Havia aquele sentimento de: “Isto está indo longo demais! Estamos cansados disso!”.

É nesse contexto que diversos artistas aderem à divulgação dos problemas enfrentados na Irlanda do Norte, como pode ser visto com a banda do país U2, em especial com a música “Sunday, bloody sunday”, em clara referência ao ocorrido no domingo de 1972, e com a banda irlandesa The Cranberries, com a música “Zombie”, que possui a seguinte letra: Another head hangs lowly / Child is slowly taken And the violence caused silence / Who are we mistaken?

But you see, it's not me, it's not my family In your head, in your head they are fighting With their tanks and their bombs And their bones and their guns In your head, in your head, they are crying...

Another mother's breaking / Heart is taking over When the violence causes silence / We must be mistaken

It's the same old theme since nineteen-sixteen In your head, in your head they're still fighting With their tanks and their bombs And their bones and their guns In your head, in your head, they are dying...

In your head, in your head / Zombie, zombie, zombie

Durante meados da década de 1990 ocorreram uma série de negociações políticas que acarretaram no cessar-fogo por parte dos grupos paramilitares. O primeiro anúncio entre grupos unionistas e republicanos data de 1994, cercado, contudo, com grande parcela de desconfiança e receio. O IRA, por exemplo, teve seu último ato com ataques com bomba em Canary Wharf, em Londres, retornando ao cessar-fogo em 1997 (MULCAHY, 2008). Assim, mesmo que nos dias atuais possam ser encontradas notas sobre grupos radicais que visam continuar com as atividades paramilitares (NOLAN, 2013), iniciou-se uma nova etapa no 148

contexto de segurança pública, que culminou no “Belfast Agreement” (também conhecido como “Good Friday Agreement”), 1998, e na reforma policial, de 1999.

5.2.1 Patten Report e a Mudança de RUC para a PSNI: A Reforma Policial Norte Irlandesa

As negociações políticas realizadas no Belfast Agreement, em 1998, incluíram diferentes aspectos envolvidos nos conflitos do país, obtendo êxito, inclusive, na libertação de prisioneiros sob posse dos grupos paramilitares. Conforme relata Nolan (2013), o ponto principal para o acordo foi o reconhecimento da diversidade na composição populacional da Irlanda do Norte. O autor aponta que durante o encontro foram discutidos o longo período de conflito entre irlandeses e britânicos, iniciado ainda no século XVII, bem como o papel que a religião representa nesse processo. Fazendo menção aos conflitos que ganharam maior intensidade entre os fins das décadas de 1960 e 1990, Nolan comenta que não se trata de um contexto em que a religião por si só representa a causa dos confrontos: “this is not a conflict primarily about religion, but one where religion acts primarily as a maker of national identity” (NOLAN, 2013, p.13). A questão da identidade irlandesa, vinculada aos nativos, e a identidade britânica, ligada aos migrantes escoceses, ingleses e galeses que passam a povoar o país como maior força a partir do século XVIII, acaba por encontrar na religião uma forma de expressar os seus modos e valores, fazendo com que os atos de violência sejam também visualizados como entre católicos e protestantes. Dessa maneira, a forma com que se vislumbrou dar novas saídas ao problema foi não a supressão das diferenças, no sentido dos territórios existenciais de um grupo suprimir os do outro, mas o de valorizar a diversidade. Como diz Nolan (2013, p.14): The innovative thinking that led to the Good Friday Agreement did not consistently accept such a zero-sum equation. Instead of an either/or approach where one identity necessarily negated the other, the Agreement substituted a both-and alternative, allowing that individual residents of Northern Ireland could choose to be ‘Irish, or British or both’, bearing passports accordingly, without their rights to equal citizenship being thereby diminished – this has proved utterly uncontroversial.

Nesse sentido, para que tal visão adentrasse também o aparato policial, foi criada uma comissão independente, a ICP (Independent Commission on Policing), que reuniu profissionais de diferentes países. A comissão, então, realizou um extenso processo de consulta popular, que envolveu diferentes formas de aproximação com a comunidade. O intuito era o de proporcionar a escuta dos anseios dos cidadãos, identificar as demandas que eram levantadas e procurar estratégias para sua concretização, bem como para sua manutenção ao longo do tempo. Foram utilizados questionários, entrevistas e sobretudo 149

encontros entre a comissão e a população, em todas as diferentes regiões da Irlanda do Norte, acarretando em acalorados debates (MULCAHY, 2008). O interesse em formar uma comissão independente provém da facilitação do diálogo. Uma vez que os conflitos envolveram confrontos e ataques, a população, seja católica, republicana, protestante, unionista ou outros, teria menos dificuldade em dialogar com pessoas “neutras”, ou seja, provenientes de outros contextos ou não diretamente envolvidas com os problemas enfrentados no país. Outro ponto é que a ICP procurou integrar ao referido processo a ideia de parceria entre policiamento e comunidade, bem como os princípios e diretrizes de acordos internacionais, como a Convenção Europeia de Direitos Humanos34 da década de 1950. O objetivo da comissão era a produção de relatório-base que sustentasse uma reforma geral da polícia, no qual as recomendações deveriam abarcar as cinco seguintes questões: 1. Esta proposição promove um policiamento efetivo e eficiente? 2. Irá entregar à sociedade um policiamento justo e imparcial, livre de controle partidário? 3. Promove responsabilidades (“accountabilty”), tanto para a lei como para a comunidade? 4. Fará com que a polícia seja mais representativa da sociedade que serve? 5. Promove para todos a proteção e o suporte para os direitos humanos e dignidade humana? (MULCAHY, 2008, p.209)

O referido relatório foi finalizado pela ICP em 1999. Conhecido como Patten Report, o documento tornou-se a matriz principal da reforma que envolveu mudanças na doutrina, ensino, treinamento e sistema de controle, bem como na própria marca da polícia, quanto ao seu nome, brasão e uniforme. A partir deste período, portanto, o aparato policial norte irlandês deixa de ser a Royal Ulster Constabulary (RUC) para figurar-se como Police Service of Northern Ireland (PSNI). De acordo com entrevista realizada com os professores doutores, que participaram da formação de oficiais da PSNI, Jonny Byrne e Ruth Fee, em 04/07/2013, tal mudança ocorreu para uma demarcação do tipo de serviço policial a ser realizado. Segundo os mesmos, até o fim da década de 1990, havia uma percepção de que a polícia era uma polícia do Estado e não do cidadão. Em consonância com a tabela apresentada na seção anterior, a ideia era a de que a RUC tinha tratamento diferenciado entre os católicos e protestantes, colocando seu serviço, na maioria das vezes, em defesa dos últimos. Conforme fala de Ruth Fee:

34 A Convenção Europeia dos Direitos Humanos foi adotada pelo Conselho da Europa, como resposta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, redigida pelas Nações Unidas em 1948. Tem por objetivo proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, permitindo um controle judiciário em relação ao respeito desses direitos (Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1950). 150

At that time (1998) they agreed with an independent inquiry. ICP traveled around Northern Ireland having very emotional conversation… having a good conversation with people. Everybody had the chance to talk about policing and they drew the recommendations (…) ICP wanted to change “Police for the State” to “Police for the citizen”. The focus of the perception of the new constabulary, PSNI, was to move away from the first ideia (Police for the State) to the second idea (Police for the Citizen).

Segundo dados do intercâmbio da PMERJ na Universidade de Ulster, verificou-se a necessidade de conformar a polícia à nova ideia de sociedade que respeita a diversidade, o que foi mencionado nos parágrafos acima e que também se faz presente na reforma da polícia escocesa. Para tanto, a nova força policial buscou desde o princípio uma maior legitimidade, legalidade e profissionalização na produção de dados. Ainda de acordo com o intercâmbio, com a implantação do PNSI ocorreram as seguintes mudanças: foco no policiamento comunitário, com maior atenção às vítimas e às testemunhas de crimes; alteração da orientação institucional, antes restrita à preservação da ordem e combate ao terror, para a proteção, segurança e bem estar da sociedade; estabelecimento de reuniões periódicas com a comunidade; utilização de auxílio de ex-paramilitares para resolução de casos; investimento no sistema de reinserção de pessoas que tiveram conflito com a lei à sociedade; entre outros. No tocante ao uso progressivo da força, as diretrizes estabelecidas foram: ênfase no respeito aos direitos humanos; documentação de todo procedimento policial, desde situações rotineiras como breve contato com a comunidade a situações de distúrbio civil; investigação de toda e qualquer ação policial que tiver o emprego de armamento, seja de arma de fogo, seja de armamento “menos letal”. Nota-se, assim, muitos elementos em conformidade com os anteriormente levantados sobre o policiamento escocês, bem como, em termos de orientação base e diretrizes institucionais, com o que encontramos no Pronasci. Entre as semelhanças estão a centralidade na proteção e promoção de bem estar do cidadão; o enfoque na maior proximidade da corporação com a comunidade e a consequente capilarização da escuta e ação policial; o enfoque no respeito e promoção dos direitos humanos e princípios humanitários; assim como a busca de maior legitimidade, legalidade e profissionalização da polícia. Todavia, a princípio, dois pontos que podem distinguir o caso norte irlandês é a maior precocidade na 151

institucionalização desses valores e práticas, tendo ocorrido a partir de 1999, e a maior e mais clara demarcação simbólica da mudança que se pretende. Indo de acordo com que Luiz Eduardo Soares (2013) chamou de “ritualização de passagem”35, a

mudança de vestimenta, brasão e nome de nome de Figuras 18 e 19: Brasões da RUC e PSNI, respectivamente. RUC para PSNI, precedida pelo longo processo de consulta popular e a produção do documento base, pode contribuir de maneira significativa para a percepção de que realmente se está inaugurando uma nova fase do policiamento no país. Tal percepção corrobora-se tanto pela procura de outras forças policiais por referenciais da reforma norte irlandesa (NEWBRN, SPARKS, 2004; FOSTER, 2008; MULCAHY, 2008; TOPPING, BYRNE, 2012;) como pelo objetivo declarado pela própria corporação de ser “the finest, personal, professional and protective police service in the world”36. Para trazer os processos presentes na reforma policial da Irlanda do Norte serão elencados abaixo alguns dos aspectos presentes interna e externamente à corporação, no intuito de lançar luz aos elementos que favoreceram a mudança institucional, bem como os que apresentam obstáculos para a mesma.

5.2.2 Mudanças Internas à Corporação

A divisão entre mudanças internas e externas à corporação é realizada, aqui, de maneira didática, para facilitar a organização do texto. Os pontos de ambas as seções estão interligados e conectados entre si, sem uma barreira rígida entre os mesmos. Por mudanças internas entendem-se aquelas realizadas na estrutura da corporação e que são transmitidas pelos seus processos de ingresso de novos policiais, códigos de ética, formação e orientação da conduta policial. As mudanças externas, embora com relação intrínseca aos pontos anteriores, são aquelas que envolvem uma ação de fora da instituição para dentro, como os sistemas de controle provenientes de outros órgãos, bem como as formas de interação entre o efetivo e a população em geral. Dessa maneira, o primeiro aspecto a ser destacado no âmbito interno é a sistematização e a clara exposição, por parte da ICP e do Patten Report, de qual tipo de serviço policial passaria a ser demandado à polícia a partir de 1999. A estrutura

35 No texto de Soares (2013), o autor menciona como uma das causas para o imobilismo político na segurança pública brasileira a inexistência de um ritual de passagem entre o período da ditadura militar e o de redemocratização. 36 Extraído do site da PSNI: http://www.psni.police.uk/about-us.htm. Acessado em 10/01/2014 152

organizacional, as formas de procedimento e, sobretudo, os ideais que embasam o PSNI, foram apresentados tanto à sociedade quanto aos policiais que compunham o quadro da RUC. De acordo com as informações expostas no site do Police Service of Northern Ireland, os princípios da corporação são: oficiais e staff humanizados, imparciais e responsáveis, presentes e influentes no coração de todas as comunidades; responsividade, flexibilidade e serviço 24 horas por dia nos 07 dias da semana, exercido na medida para as necessidades específicas da pessoa ou lugar, com promessa de manutenção da reputação e profissionalismo; recursos e tempo focado para o serviço operacional de boa qualidade; desafio do status quo, mantendo a burocracia em nível mínimo e garantido a prática policial efetiva; parceria nas ações institucionais, compartilhando conhecimento, informação e responsabilidade; abertura e transparência para suporte da promoção de direitos humanos e legalidade. A questão religiosa também apareceu como decisiva no Patten Report. Buscou-se estabelecer um balanço no quadro de oficiais entre a porcentagem de católicos e de protestantes. Todo o ingresso de novos oficiais na corporação obedeceu a divisão igualitária das duas religiões, sendo que ao ingressassem 10 protestantes, por exemplo, outros 10 católicos ingressariam, com vagas restantes a pessoas de outra orientação religiosa. Conforme Nolan (2013), em 1999, no efetivo policial na Irlanda do Norte 8% eram de católicos e 92% de protestantes e outras religiões. Já em 2012, a proporção se alterou para 30,4% de católicos e 69,6% de protestantes e outros. O autor comenta, porém, que no tocante ao staff a mudança não foi significativa, havendo, em 2012, 18,9% de católicos e 81,1% de protestantes e outras religiões. Na referida entrevista realizada com os professores Jonny Byrne e Ruth Fee, ambos comentaram que a divisão igualitária entre católicos e protestantes não necessariamente representou o ingresso dos profissionais mais qualificados no processo seletivo. Os estudiosos explicaram que na prova de seleção eram estabelecidos dois bolsões de candidatos divididos segundo a religião. Os melhores colocados de cada grupo eram os aceitos pela corporação. Todavia, eles destacaram que no grupo dos católicos, provavelmente pela condição econômica e educacional formal menos favorecida, apenas 55% atingiam pontuações altas, enquanto no grupo dos protestantes 90% o faziam. Segundo eles, de maneira geral, o último grupo contava com candidatos que possuíam mestrado ou doutorado, enquanto o primeiro continha pessoas com grau de instrução educacional inferior. A questão da proporcionalidade religiosa, portanto, obteve escala de valor acentuada. Mesmo que, em primeiro momento, provocasse o ingresso de candidatos com pontuação inferior nas provas de seleção, a busca pelo equilíbrio entre as religiões demonstra a aposta do 153

PSNI na transformação dos processos de alteridade a partir do contato próximo e da representatividade populacional. Sendo parte dos interesses a imparcialidade e a humanização da prática policial, a instituição compromete-se em começar por aqueles que estão entre os seus muros, valorizando o convívio com a diferença. Ao garantir a diversidade dentro da corporação, em um só golpe o PSNI promove que a polícia seja representativa da diversidade apresentada pela sociedade a que serve e também, por consequência, de possuir internamente a possibilidade de ouvir os interesses de diferentes grupos. A preocupação com a pluralidade aparece na já mencionada utilização da colaboração de ex-paramilitares para resolução de conflitos. Além da expertise que os últimos podem fornecer à força policial, há o caráter simbólico do diálogo entre ambos que em tempo recente encontravam-se em situações de conflito. Nesse sentido, há também a atenção destinada aos chamados “crimes de ódio” (“Hate Crime”). Ao acessar o site do PSNI, observa-se na sua página principal o destaque conferido a esta modalidade criminal. Após décadas de oposições ideológicas e de divisões geográficas na cidade, uma destinada aos protestantes, outra aos católicos, a polícia procura incentivar o registro de ocorrências desse tipo. Além de um canal de fácil acessibilidade, o site ainda explica que a abrangência não se restringe ao caráter religioso. O crime de ódio seria, Segundo site do PSNI: “any incident which is perceived to have been committed against another person because of their race, religion, political opinion, disability or sexual Figura 20: Site da PSNI com orientação sobre “Hate Crime” orientation”. A importância da clareza quanto à nova ideologia e estrutura organizacional é observada também quanto ao quadro policial existente antes da reforma de 1999. Para evitar a presença de policiais que ainda estavam ligados às práticas policiais anteriores, foi concedida a possibilidade de saída aos membros que integravam a RUC. Em entrevista concedida em 04/07/2012, na Universidade de Ulster, o professor Marnoch explicou que para continuar na corporação era necessário concordar com as novas ideias. Em suas palavras: “There was an expectation… the officers had to conform or to leave the corporation. In this way, to stay in the organization they had to accept the new ideas. (…) They tried to make it easier as possible to who resisted to the cultural changing. The officers had a good amount of money to leave”. 154

Na transição de RUC para PSNI, os policiais que optassem por deixar a corporação recebiam uma parcela em dinheiro, além de uma pensão vitalícia. Tal decisão pôde ser tomada, por parte dos oficiais, por mais de uma década, sendo interrompida no ano de 2011. Como diz Marmoch em entrevista: “For the one who thinks that it was particular difficult, there was a very good package from the organization, called ‘Package under Patten’. If you left under Pattten, you got a financial to leave the organization earlier than the common way to retire”. Por fim, a reforma procurou aumentar o efetivo total do aparato policial, obtendo uma proporção de policial por população consideravelmente maior do que de outros países do Reino Unido. Em 2012, segundo Nolan (2013), a Irlanda do Norte apresentou um policial para cada 252 habitantes, enquanto na Escócia era um para 301 e na Inglaterra e País de Gales de um para 418. Tal proporção se torna ainda mais significativa, se comparada à carioca, em 2012, que era de um policial para cada 472 habitantes37.

5.2.3 Mudanças Externas à Corporação

Em relação às mudanças externas ao ambiente intramuros da corporação destacam-se dois pontos, o estabelecimento de sistemas de controles mais ativos e a criação de mecanismos que viabilizam o contato com as comunidades. Ambos possuem interconexão, uma vez que o contato com a sociedade civil ocorre tanto no âmbito da capilarização das atividades policiais como no monitoramento das mesmas. Como diz Peter Neyroud (2008, p.679-680), “lay oversight and audit can provide not just critical challenge to professional practice (vital in its development) but can also, as Scarman (1982) pointed out, open up controversial areas of policing to community scrutiny”. Mulcahy (2008) comenta que a partir de 1999 foi criado um novo sistema de monitoramento que abrange o Police Board, District Policing Partnerships e o Police Ombudsman. Segundo o autor, o Policing Board mostra-se, desde o início, como uma entidade muito mais robusta que seu antecessor Police Authority. Tal fato ocorre em função do Police Board ter desenvolvido um novo código de ética, um novo quadro (“framework”) para a observância do respeito aos direitos humanos e novo planejamento para o policiamento.

37 Fonte: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/policial-militar-traz-seguranca-o-tamanho-da-pm-nos-estados. Acessado em 10/01/2014. Não foram encontrados dados oficiais mais recentes. Todavia, observa-se um aumento do efetivo policial no ano de 2013, em função dos novos concursos, destinados principalmente para as ocupações das UPPs. 155

De acordo com os dados trazidos pelo intercâmbio da PMERJ na Universidade Ulster, na Irlanda do Norte há o que chamaram de “policiamento da polícia”, estruturado em um triângulo composto pelo governo, pelo chefe de polícia e pelo Police Board. Tal triangulação, em conformidade com o dito acima, manifesta-se pela seguinte disposição organizacional:

Monitoramento do PSNI

Governo: Monitoramento por comissões parlamentares.

Police Board Espécie de conselho formado por pessoas de diversos seguimentos sociais e políticos, responsável por exercitar o controle da polícia quanto à garantia da imparcialidade policial, prestação do serviço propriamente dito, inspeção dos planos e planejamentos operacionais, medições de performance, pesquisa de satisfação e respeito aos direitos humanos

Police Composto por policiais reformados da Irlanda do Norte e da Inglaterra com maior Ombudsman experiência profissional. Realiza o controle externo da polícia no que tange às situações mais graves, como casos graves de desordem pública e homicídios mais relevantes.

Police and Medição de satisfação em relação à polícia. Ferramenta: District Policing Partnership. Community

Fonte: Apresentação da PMERJ sobre intercâmbio realizado no Reino Unido, fevereiro-março de 2013.

Ao olharmos ao Patten Report, observaremos a preocupação com a institucionalização das novas formas de monitoramento e reestruturação das antigas. Os artigos 19.3 e 19.5 trazem menções específicas a esse respeito: Implementation of the recommendations in this report requires changes not only within the police service itself but also in other bodies that have responsibility for policing. We have proposed an entirely new Policing Board, and a network of District Policing Partnership Boards. (…) We believe that a mechanism is needed to oversee the changes required of all those involved in the development of the new policing arrangements, and to assure the community that all aspects of our report are being implemented and being seen to be implemented. The oversight commissioner would provide more than a stocktaking function. The review process would provide an important impetus to the process of transformation. We recommend that the government, the police service, and the Policing Board (and DPPBs) should provide the oversight commissioner with objectives (with timetables) covering their own responsibilities, and that they should report on the progress achieved at the periodic review meetings, and account for any failures to achieve objectives. (ICP, 1999, p.105-106)

A melhora do monitoramento passa, portanto, na distribuição em diferentes níveis e órgãos de controle, bem como pela participação de controle por pessoas externas ao país. As obrigações da polícia e dos seus oficiais devem ficar claras tanto para os que compõem a mesma, como para a sociedade, que via encontros, reuniões e dispositivos de denúncia, poderão participar mais ativamente do controle externo da polícia. 156

Nesse sentido, em ressonância à preocupação do Patten Report de priorizar um policiamento compartilhado com a comunidade, no qual há uma responsabilização coletiva pela promoção da segurança, foram criados District Policing Partnership Boards (DPPB) em cada área do Police Board, para promover um fórum consultivo local (FOSTER, 2008). Assim, a PSNI acaba por integrar aspectos que asseguram o monitoramento não apenas de seus policiais, como do anseio de um aparato policial autônomo e desvinculado de partidarismo político. Conforme aponta Neyroud (2008, p.680-681), “Patten Report proposed not just a police board at force level but also local partnership boards that had a non-executive role in holding local commanders to account and contributing to local policing strategies”. O autor defende que com a consulta popular, monitoramento, ações cidadãs e policiamento complementar a polícia promove uma participação popular efetiva, que pode, inclusive, favorecer a autonomia institucional frente a disputas políticas. Como cita Neyroud (2008, p.681), “Public participation can be seen as a challenge to police independence and, in the eyes of some police leaders, their impartiality. However, while police operations need to be independent of partisan politics they also need to be seen as encompassing the needs of diverse groups”. Assim, mais uma vez, o direcionamento para uma polícia mais próxima da diversidade da sociedade em que atua, acaba por abrir a possibilidade de um sistema democrático, um pouco mais distante das amarras funcionalistas. O que pode ser visto para alguns como obstáculo a uma polícia independente, passa a ser uma estratégia para sua desvinculação com uma política de governo e não de Estado. No tocante ao relacionamento com a comunidade via policiamento comunitário, o intercâmbio no Reino Unido traz a intenção de se equacionar tal tarefa “para além de ser amigável e sorrir para a população”. Nesse sentido, a atuação comunitária teria os propósitos de reforçar a lei, realizar ações de prevenção, colher informações, escutar as demandas locais e promover uma boa imagem institucional. O objetivo da polícia seria o de romper com o “ciclo vicioso” e promover o “ciclo virtuoso”:

Ciclo Vicioso Ciclo Virtuoso

contato grande medo do mensurar comuni- crime crime crime dade

aumento redução parceria resoluções dos da comércio problema confiança conjuntas população s sociais na polícia

Fonte: Apresentação da PMERJ sobre intercâmbio realizado no Reino Unido, fevereiro-março de 2013. 157

5.2.4 Dificuldades Enfrentadas

Nesta última seção será discutida as dificuldades encontradas pela polícia norte irlandesa para a implementação dos objetivos do Patten Report. Apesar dos avanços no serviço policial e do profissionalismo do PSNI apresentados nos itens anteriores, faz-se necessário discutir alguns dos obstáculos enfrentados pelo aparato policial e ressaltar a complexidade do contexto em que se inserem. O primeiro ponto de destaque é a necessidade de diminuição dos gastos que a polícia deve realizar após ter completado mais de uma década desde a reforma. O aumento do efetivo policial, o estabelecimento de pensões aos membros que eram da RUC e decidiram deixar a instituição, entre outros, contaram com aporte financeiro do governo que progressivamente teve de ser sido reduzido. Conforme aponta Nolan (2013, p.64) “the PSNI was ordered to make £135 million worth of savings within the four-year Comprehensive Spending Review (CSR) period ending in 2015. It has met its targets to date without any involuntary redundancies, relying upon a recruitment freeze and natural wastage”. A reforma policial foi estabelecida como o maior símbolo da mudança implementada desde o Belfast Agreement em 1998. A PSNI pôde então contar com significativo investimento do governo para que tivesse condições de efetuar as mudanças planejadas. Todavia, era de conhecimento da instituição e das entidades administrativas a não sustentabilidade do financiamento a longo prazo, fazendo com que hoje a corporação tenha que rever seus gastos e fazer cortes pontuais. Tarefa, esta, que encontra dificuldades de concretização, pois, como ainda salienta Nolan, da quantidade a ser cortada, já é previsto um déficit de 30 milhões de libras entre 2013 e 2015. Outra questão diz respeito ao aspecto estético dos postos policiais. No longo período de conflito, a polícia conviveu com uma atmosfera próxima a de uma guerra. Nesse contexto, os postos policiais por muitas vezes foram alvos de ataques de paramilitares, principalmente republicanos. Tais fatos fizeram com que houvesse uma escalada de mecanismos de proteção da própria polícia em relação à sociedade, tendo implicações na arquitetura e nos procedimentos realizados para adentrar seus locais de trabalho. Conforme comentam os professores Jonny Byrne e Ruth Fee na entrevista para a pesquisa, para se entrar em um posto policial, o cidadão era (e, em muitas das vezes, ainda o é) obrigado a passar por três inspeções, em três áreas diferentes. 158

Figura 21: Foto de um dos postos policiais do PSNI, em Belfast.

Byrne e Fee comentam que, atualmente, há uma crescente reivindicação para a mudança arquitetônica dos postos policiais, o que já começou a ocorrer em alguns pontos de diferentes cidades. Conforme comenta Ruth Fee: “There is no way to remove the gap between the community and police if you keep this aesthetic. It is an urban changing that is necessary”. Os professores ainda discutem sobre a permanência de uma sensação de risco dos policiais na sua relação com a comunidade, fazendo com que os mesmos, por exemplo, por vezes evitem utilizar transporte público quando ainda uniformizados, fato que também foi constatado nas entrevistas com policiais militares do Rio. Em relação à desconfiança presente na corporação, podemos trazer o seguinte fato ocorrido no decorrer da pesquisa, em Belfast: Após um dia de entrevistas na Universidade de Ulster, realizei uma caminhada por Belfast para conhecer a cidade, observar os policiais na rua, visualizar alguns de seus muitos muros pintados com referências aos conflitos entre 1969 e 1999, bem como para observar o aspecto arquitetônico dos postos policiais. Dessa maneira, quando cheguei ao posto localizado na região central da cidade (retratado nas fotos acima), comecei a andar em volta do mesmo, vendo se era possível entrar. Todavia, após uma volta completa, notei que as entradas eram apenas duas, por meio de grandes portões que estavam cerrados, sem nenhuma forma de comunicação com a parte interna, exceto pelas câmeras que possui ao redor. Neste momento, então, decidi por tirar algumas fotos para poder ilustrar tal antagonismo com a atual fase do PSNI. Foi quando, após alguns segundos tirando foto, um portão se abriu, saindo um carro forte, de cor branca, que veio em minha direção. Assim que me alcançou, o carro parou e de sua porta traseira saiu um policial, com uma arma de grande porte ao seu redor (em nenhum momento ele a apontou em minha direção). Dentro do carro haviam mais dois policiais, que pareciam estar de prontidão. Então, o policial perguntou o que eu estava fazendo ali e qual o motivo das fotos. Após eu ter explicado que era brasileiro, que estava fazendo pesquisa sobre o policiamento norte irlandês e que no dia anterior havia estado na Universidade de Ulster, o policial disse que não havia problema, justificou sua presença pelo fato de ser incomum alguém tirar foto do posto policial e orientou que eu saísse. 159

Quando o policial que conversou comigo entrou no carro, o mesmo dirigiu-se novamente ao interior do prédio. (Observação participante, em 05/07/214, Belfast, Irlanda do Norte)

O ocorrido demonstra a preocupação que os policiais norte irlandeses possuem em função do histórico de conflitos e ataques. Mesmo sendo suspeito o fato de tirar fotos de um posto policial e que o procedimento por eles tomado seja possivelmente o mesmo que outras forças policiais teriam, acho válido destacar o receio e o desconforto que tal situação provocou em minha percepção. O fato de ser em frente a um prédio como este, revestido de arames farpados, câmeras e sem nenhum tipo de contato possível com o cidadão comum, acabou por acentuar uma imagem desfavorável. É nesse contexto que também se encontra o último ponto a ser abordado. O mesmo histórico de conflitos também acarreta desdobramentos nas formas de policiamento comunitário. Preconizado pelo contato próximo à comunidade, esta modalidade faz com que os policiais tenham relações diretas com o cidadão. Entretanto, mesmo que os acordos de paz tenham se efetuado de maneira concreta durante a década de 1990, nos dias atuais ainda são observadas ações pontuais de ataques paramilitares. Dessa maneira, o policial que é protestante tem receio de frequentar áreas católicas, bem como os católicos de frequentar áreas protestantes. É o que Jonny Byrne chama de “Policing, Terrorism and the Conundrum of the Community”, que diz justamente sobre a quase paradoxal atividade policial de proximidade em áreas que o policial corre risco imanente de ser alvo de algum ataque. Fato parecido com o Conundrum of the Community pode ser observado no contexto das UPPs cariocas, onde os policiais lidam com áreas que, de maneira geral, entravam para o confronto direto com uso de armas (CERQUEIRA, 1996). Ganha visibilidade, assim, a defrontação com que tanto os policiais, como os grupos com históricos de atividades ilegais têm que lidar após um processo de conflito que fizeram parte e/ou ajudaram a construir. Não há, como em momentos anteriores, a tentativa de esquecimento do que aconteceu, mas a proposta de reconstrução de laços baseados em uma relação diferenciada, mesmo que em movimento acentuadamente lento. Portanto, observam-se nas discussões trazidas ao longo do capítulo as respostas buscadas pelas reformas policiais escocesa e, principalmente, norte irlandesa aos contextos sociais de conflito em que se estabelecem a alteridade radical. No momento em que se há a polarização entre os grupos que compõem a sociedade, como entre unionistas e republicanos, ocorre a sucessão de disputas simbólicas, que promovem práticas de segregação e exclusão, geralmente acompanhadas por altos índices de mortes e violência. Já no momento em que 160

ocorre o acolhimento da diferença e o convite ao convívio com a diversidade, os conflitos se desaceleram e o campo social passa a ganhar outras configurações que não a de arena de disputa. No caso da Irlanda do Norte, ocorre um redirecionamento político que passa essencialmente pela transformação do aparato policial e pelo aspecto de ter sido produzido não apenas por uma parcela que historicamente teve acesso às instâncias políticas, mas pela consulta ampla e aberta a toda a população. É nesse sentido que enfatizamos a mudança da alteridade radical (em que grupos sociais tratam a diferença em termos hierárquicos e competitivos) para a alteridade mais flexível (em que a hierarquia cede espaço para o convívio e tolerância com o diferente) como potente analisador das práticas de segurança. E é assim que abrimos terreno para o próximo capítulo, em que serão retomados os dados produzidos no doutoramento sanduíche e no intercâmbio da PMERJ, bem como dos capítulos anteriores, no sentido de ver como o distanciamento simbólico e físico entre os grupos acaba por favorecer o acirramento de elementos de disputa.

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6 APROXIMANDO DO BICHO DE SETE CABEÇAS: ALTERIDADE PELA DIFERENÇA E DIVERSIDADE

O medo ameaça Se você ama, terá AIDS Se fuma, terá câncer Se respira, terá contaminação Se bebe, terá acidentes Se come, terá colesterol Se fala, terá desemprego Se caminha, terá violência Se pensa, terá angústia Se duvida, terá loucura Se sente, terá solidão (Eduardo Galeano, poeta uruguaio)

Para onde ir? Do que se alimentar? Como se expressar? Em toda nossa trajetória de vida somos rodeados de incertezas. Há cada vez mais conhecimentos que servem a prescrição, seja ela médica, política, estética ou outras. Não se sabe ao certo para onde ir, mas se tem muito claro onde não se estar, o que não ingerir e quais assuntos não se abordar. Em muitos momentos vivemos pela negação. Fechamos mais as portas do que nos preparamos para novos formatos de realidade. Há mais preocupação com a construção dos muros e a colocação de câmeras de segurança, do que com a porta de entrada. O viver em conjunto, em sociedade, por muitas vezes leva ao acirramento dos elementos de diferença. São muitos os “bichos de sete cabeças” que nos defrontamos cotidianamente e que nos assombram como na música homônima de Geraldo Azevedo e Renato Rocha. Usando os versos dos compositores, são muitas as situações em que não dá pé, nem cabeça, que não tem coração que esqueça e ninguém que mereça. Todavia, mesmo desejando que desapareçam, os bichos de muitas cabeças não cessam de crescer e de povoar os corações que deles não se esquecem, estando cada vez mais presentes na produção das subjetividades contemporâneas. Leila Brito (2005), ao comentar sobre a separação litigiosa de casais, destaca o fenômeno comumente observado na disputa pela guarda dos filhos e na argumentação contrária à guarda compartilhada: a indicação de que a convivência com mais de um cônjuge, portanto, com divisão de tempo equilibrada em mais de um lar ou ambiente, supostamente seria prejudicial à criança ou adolescente. A autora aponta que enquanto o casal ainda está exercendo seu matrimônio, as crianças muitas vezes passam grande parte do tempo em diferentes locais e com diferentes referências, como nas casas de avós e creches. Assim, no 162

momento em que o casal está unido, o fato dos filhos vivenciarem diferentes contextos, eventualmente passarem noites fora e/ou terem contato com outras formas de comportamento, não necessariamente cria uma questão a ser amplamente discutida por ambos. Porém, ao passo que este casal enfrenta uma separação conflituosa, a atmosfera de tensão acaba por acentuar e deslocar pontos que antes ocupavam o lugar comum. A possibilidade, por exemplo, dos filhos terem momentos com ambos genitores ou responsáveis, passa a figurar entre os motivos de disputa e de ataques mútuos. Outro exemplo que diz sobre o acirramento de elementos pode ser apontado pela trajetória pessoal deste autor que escreve. Por transitar com grande frequência pelas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, passei a observar não só que a temática da segurança recorrentemente era trazida nas conversas e bate-papos, como também as percepções que fluminenses e paulistas possuem sobre a capital do outro estado. Partindo do que ouvi em conversas pessoais e profissionais, notei que constantemente os fluminenses apontam São Paulo como um lugar mais perigoso que o Rio de Janeiro, enquanto os paulistas emitem a ideia oposta. Sem a pretensão de colocar esta observação como dado de pesquisa, o que chama a atenção, mesmo como indício inicial, é a proximidade com a tendência discutida por Joffe (2003) de se projetar sobre o grupo do outro as mazelas que identificam na sociedade. Neste caso, mesmo reconhecendo que a sua cidade e seu estado são “perigosos” e “violentos”, as pessoas, na maioria das vezes, acabam por amenizar a situação em que se inserem pela colocação de que é no outro “que o bicho pega”. Nesse sentido, e agora partindo de uma pesquisa de longo prazo, com dados produzidos, sistematizados e analisados, observa-se o encontrado por Sandra Jovchelovitch (2013) no trabalho que fez nas comunidades cariocas de Vigário Geral, Cidade de Deus, Pavão, Pavãozinho e Cantagalo (PPG) e do entorno do “Viaduto de Madureira”38. Foram realizadas 204 entrevistas e aplicações de questionários com moradores desses locais. No item em que comentam sobre onde se sentem mais seguros, fazendo uma comparação entre a comunidade em que moram e o centro e zona sul do Rio, os respondentes, em sua maioria, relataram sentirem-se mais seguros em suas comunidades, mesmo havendo constantes confrontos e trocas de tiro com a polícia e facções rivais do tráfico de drogas, principalmente em Vigário Geral e Cidade de Deus na época da pesquisa (passagem de 2010 para 2011). O motivo mais recorrente para tal sensação de segurança foi o fato de, em suas localidades, estarem mais familiarizados com a dinâmica social, ao contrário

38 A pesquisa mencionada contou com a colaboração das organizações não governamentais Cufa e AfroReggae. No caso de Madureira, o Viaduto trata-se de um dos locais de atividade da Cufa, na Rua Alfeu Faria Castro s/nº, Embaixo do Viaduto Negrão de Lima. 163

dos momentos em que vão para a zona sul (com exceção dos moradores do PPG, que se situam nesta região), onde têm mais dificuldade para fazer a leitura do contexto e com ele interagir. Observamos um processo em que, quanto menos há o contato com outras realidades, quanto menos vivência um grupo possui em outro contexto, maior é a percepção de incertezas e de riscos que este ambiente pode oferecer. Todavia, cabe a reflexão de que essa causalidade não é única e/ou natural, mas sim parte de um processo que se desenvolve há longa data. Em sua lógica, ao passo que as pessoas não têm contato com outros grupos, ao passo que não têm vivência em localidades que fogem de suas rotinas, é produzida uma relação de diferenciação e antagonismo: há o “meu grupo”, “os meus contextos” e há os “grupos dos outros”, os “contextos dos outros”. Junto a isso, há um ambiente de acirramento, de conflitos, de tensão, que acaba por acentuar essas diferenças e colocá-las no âmbito de disputa. Ambiente de antagonismos, tensões, conflitos e supressão da diferença que, como essa pesquisa procurou demonstrar no âmbito nacional, vêm de um histórico colonialista, escravagista, patriarcal e elitista. Em texto que versa sobre diversidade, crime e justiça criminal, Barbara Hudson (2007) faz uma distinção entre as sociedades que enfatizam o que é diverso e o que é diferente. Segundo ela, “diversity suggests a range of options which to choose, a spectrum of lifestyles and attributes to enjoy and appreciate. Difference, on the other hand, suggests difference from the standard case, and implies not only dichotomy, but also hierarchy, that one of the qualities is superior to that which differs from it” (HUDSON, 2007, p. 158-159). Corroborando as ideias de Joffe (2003), bem como as de Mary Douglas (1991), Hudson destaca a hierarquização decorrente da ênfase e antagonismo da diferença. Nesse sentido, se trouxermos o caso norte irlandês como exemplo, poderemos notar as centenas de anos em que o fato de ser protestante, unionista, católico e/ou republicano implicou em divisão e hierarquia de interesses distintos de cada grupo – ênfase na diferença. Por outro lado, observamos a mudança com a nova política, que visa implementar uma realidade que não restrinja os limites de cada um desses grupos, mas que, ao contrário, os integrem e agreguem em igualdade de direitos em uma mesma sociedade – ênfase na diversidade. Ainda seguindo as reformas na Irlanda do Norte, observa-se a importância conferida às práticas e políticas de policiamento para a transição de uma sociedade hierarquizante e antagônica, para uma sociedade mais tolerante e democrática: The Agreement described policing as a central issue in any society and, as we noted in the first paragraphs of this report, the role of Northern Ireland’s police service, and general questions of policing policy and practice, are central to the principles of 164

the Agreement itself and to its implementation. We have been very conscious of this during our work and the recommendations in this report are our unanimous conclusions, reached after exhaustive consultations over the past year and much careful thought. We believe they reflect not just what people want for policing in Northern Ireland, but also what they want for Northern Ireland society – a new beginning based on reconciliation and tolerance, respect for human rights and human dignity, partnership, peace and democracy. One of our focus group members said that “the police should not reflect our society, but what we want for our society; society should always attempt to get better”. We agree. The transformation of policing proposed in this report is, we believe, an integral part of the process of transforming Northern Ireland in the way that the great majority of people want it to be transformed. (ICP, 1999, p.105)

O caso brasileiro, e mais especificamente carioca, demonstra o quanto se investiu numa diferenciação estigmatizante das classes mais pobres, que acaba servindo de substrato simbólico para a atuação policial. “A polícia não é de ‘Poliçópolis’”, provoca o policial civil Roberto Chaves em entrevista à pesquisa, em 25/09/2012. A polícia é, segundo essa ótica, mais um dos grupos sociais que viveram e vivem o Brasil de desigualdades econômicas e de direitos, que instaura em suas ações, mesmo contra seus princípios ético-profissionais, uma discriminação étnica e econômica. Como diz Silvia Ramos, em entrevista à Jovchelovitch (2013, p.45): O Brasil tem a sexta maior taxa de homicídios do mundo, a quinta maior taxa de homicídios de jovens de 15 a 24 anos do mundo: são 50 mil homicídios por ano. Cinquenta mil! Sete mil apenas no Rio de Janeiro. A taxa de homicídios é de 26 por 100 mil. A da Inglaterra deve ser 0,8 ou 0,9. A taxa dos Estados Unidos é 4 ou 5 por 100 mil. A taxa da Europa Ocidental é 1,5 ou 2. A do Brasil é de 26 por 100 mil. A do Rio de Janeiro é de 50 por 100 mil. Ou seja, é o dobro do Brasil [...]. A taxa de homicídios de jovens no Rio de Janeiro é de 100 por 100 mil, mas a de jovens negros é de 400 por 100 mil. Então, o que acontece com o problema de violência no Brasil é que ele é grande o suficiente para se dizer que é um problema nacional, tanto em números absolutos quanto ponderados como taxa, que é um número espetacular. Mas acontece que a distribuição na sociedade é tão concentrada, que permitiu que o Brasil se desse ao luxo – entre aspas – de passar décadas sem responder a esse tema, porque é subterrâneo, porque esse é um tema que não tem visibilidade, porque quem está morrendo todos esses anos são os meninos negros das favelas.

O Brasil apresenta, assim, uma política que manteve os olhos fechados aos condicionantes históricos - que fizeram com que uma larga parcela da população não tivesse acesso ao trabalho - e à convivência tolerante, democrática e respeitosa das diversidades. Nos últimos 200 anos viu-se a ênfase da diferença no sentido de hierarquização das pessoas em função de critérios como: quantidade de melanina em sua pele; tipo de situação familiar regular ou irregular; higiene de sua moradia; orientação política, etc. A polícia, por sua vez, não como mantedora dos direitos humanos e do bem estar da população em geral, mas como provedora da segurança daqueles que tiveram e têm acesso às instâncias administrativas, à mídia e ao grande capital. 165

Não se quer, com isso, criar aqui uma generalização da experiência nacional. Movimentos de diferentes ordens produziram espaços de reflexões e processos de transformação da sociedade brasileira, que acarretaram, entre outros, na luta antimanicomial, tropicalismo, diretas já e Constituição de 1988. O ponto é que mesmo quando as políticas públicas apontam um cenário de maior acolhimento dos vários grupos e subgrupos que compõem o país, parece haver a manutenção não acanhada dos valores precedentes. Não há de se discordar da inexorável lentidão em qualquer processo de transformação cultural, mas, pelas questões que temos levantado, a mudança de mentalidade e de práticas policiais acaba por assumir papel de elevada relevância no que tange aos obstáculos enfrentados para a mudança. Como defendido pela comissão independente do Patten Report (ICP, 1999), um novo começo para o viver coletivo, baseado em reconciliação, diversidade e garantia de direitos, deve passar necessariamente, em qualquer sociedade, por um novo começo e/ou profunda transformação do que se espera e do que é exercido pelo aparato policial. Os dados trazidos pela entrevista de Ramos apontam o terreno com que, por exemplo, o Pronasci se defronta. Os elevados índices de homicídios no Brasil e no Rio de Janeiro não atingiram amplamente a questão da cidadania por serem mortes historicamente tratadas como subterrâneas. As segundas, terças, quartas, quintas, sextas e sábados sangrentos, tão comuns e recorrentes nas bancas de jornal brasileiras, não propagam uma discussão como a que o Blood Sunday acarretou no país do Reino Unido. A polícia, por sua vez, mesmo sob uma diretriz cidadã, opta, muitas vezes, pela ostensividade e repressão não qualificada, que contribui para as altas taxas de mortalidade. Ao mesmo passo que a polícia pode ser vista como agente de reprodução dos ideais dominantes na sociedade, ela pode protagonizar o agente símbolo de transformação. Como destaca o ICP (1999) no trecho do relatório acima, a polícia não precisa refletir as desigualdades e preconceitos da nossa sociedade, mas, sim, a da sociedade que se almeja; a sociedade, por sua vez, deve sempre visar obter algo melhor. Portanto, cabe fazer uma breve articulação dos temas anteriormente discutidos, para prosseguir na análise da distância entre a “forma” de políticas públicas como o Pronasci e a “prática” observada no cotidiano. Newburn e Sparks (2004), em texto que comentam sobre os processos de transição e transferência de políticas públicas de um contexto a outro, dizem sobre quatro pontos a serem observados. O primeiro seria o “por quê” da política pública, o que a move. Sobre este aspecto, os autores comentam, por exemplo, sobre como os países incorporam os tratados internacionais dos quais são signatários. Quando o “porquê” provém de contextos distanciados de onde se implementa, geralmente, o faz de maneira coercitiva, estando 166

descolado de interesses mais locais. O segundo ponto seria o “quem” que está envolvido na transição das ideias, políticas e práticas. O terceiro refere-se ao que é transmitido (“o quê”), como programas, instrumentos e instituições. O quarto e último diz sobre “de onde” são provenientes os modelos de política. No tocante ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, foi visto que um dos motivos principais para sua elaboração foi o movimento presente na América Latina, em que se buscaram novas soluções para a problemática da segurança, a partir de aproximações e utilizações de novos ideais cidadãos. No Brasil, tal proposta, baseada inicialmente na experiência colombiana, encontrou ressonância com a lacuna do setor desde a Constituição Cidadã de 1988. Assim, o governo nacional, junto ao Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública, acabou por sistematizar ideias, já em fluxo no Brasil, com as diretrizes comunitárias e comprometidas com os direitos humanos reunidas pelo Pronasci. O Pronasci lida com situações próximas às descritas por Newburn e Sparks (2004), em que a política pública não encontra terreno fértil para se concretizar. Os autores relatam que se o programa não tiver conexão com pressões internas ao ambiente a que se destina, os paradigmas anteriores terão longa sobrevida e não ocorrerão mudanças significativas. Dessa maneira, busca-se discutir como o aparente distanciamento entre forma e prática do Pronasci relaciona-se a dois elementos associados entre si. Primeiramente têm-se as especificidades locais. Pertinente às questões das políticas públicas em geral, o equilíbrio entre uma diretriz geral e as especificidades de cada localidade onde essas diretrizes irão ganhar forma, ganham proporções ainda maiores em um país continental: pensar o Brasil é pensar em diferentes grupos que compõem o país; é pensar nas diferenças culturais de cada região e de cada estado; é pensar a variedade grupal de cada cidade e, ainda, de cada bairro. Em segundo lugar, encontram-se as dificuldades em dar forma às especificidades locais não só pelo caráter consultivo, mas pelo de aproximação e estabelecimento de formas definitivas de contato entre os diferentes grupos sociais. Nesse sentido, os próximos itens serão trazidos com objetivo de refletir acerca dos tipos de expectativas que se criam sobre os programas e sobre os processos de proximidade entre polícia e cidadão. Intenta-se problematizar a não restrição da diversidade a quem irá compor e propor as mudanças almejadas nos processos consultivos e participativos. Em uma proposta metodológica que envolve acompanhar processos ao invés de focar em seus produtos, a própria promoção do encontro da diversidade por esses processos pode constituir uma potência para a transformação. 167

6.1 LUGARES QUE A POLÍCIA OCUPA NOS PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO

As transformações das diretrizes de segurança desde 1988 passam, como visto no capítulo quatro, pelo estabelecimento da segurança pública e posteriormente, em 2007, da segurança cidadã. Porém, paradigmas anteriores, que remontam aos tempos da ditadura, bem como ao início republicano e ainda ao período do império, não cessam de se manifestar. Algumas das Raízes desse imobilismo político, comentadas por Luiz Eduardo Soares (2013) foram apresentadas e discutidas, como a falta de uma ritualização de passagem, ausência de mecanismos efetivos para maior capilaridade das ações de policiamento e seu planejamento, e o descolamento dos avanços democráticos da realidade de grande parcela populacional que vivia em condições de miséria. Retomando os pontos acima, pode-se ainda acrescentar o pano de fundo neoliberal e a resposta punitiva assumida pelo Estado, em detrimento da promoção de políticas de amparo socioeconômico e bem-estar social39. Em um contexto de minimização estatal, há o recrudescimento do policiamento e o aumento vertiginoso do sistema e população carcerária (GARLAND, 1996; WACQUANT, 2007, 2008). Observa-se, assim, uma conexão entre os processos acima apresentados, no que se refere ao não protagonismo da maioria populacional na produção das políticas públicas. Nos casos do movimento democrático ao final de 1980 e da implementação do Pronasci ao final de 2000, as transformações ocorreram de maneira distante das classes populares. Ainda que abarquem justamente a questão da cidadania e da isonomia de direitos, ambos os movimentos realizaram-se a partir de uma centralidade não significadamente consultiva e participativa. Já no tocante à resposta do Estado pela via punitiva, também se nota o distanciamento, que se realiza pela ênfase na diferença e no antagonismo entre supostos “homens de bem”, de um lado, e os “bandidos” de outro – nesse caso, pode se ler que cada um está em um lado das grades; “bandidos presos”, “homens de bem livres e seguros”. Este último se dá, como descrito por Wacquant (2007), pelo orquestramento midiático e eleitoreiro que enfatiza o medo, distancia os grupos sociais e distingue entre os que têm honra e não causam perigo e os que são desonrados e potencialmente perigosos, a saber, os pobres, sem poder aquisitivo e força de trabalho qualificada. É o que temos relacionado aqui com a construção da realidade com “bichos de sete cabeças”. Quanto menos contatos se estabelecem

39 Algumas políticas de amparo, como o “bolsa família” do governo petista, mostram, contudo, a presença de outras direções política em contexto mais geral. 168

entre os diferentes grupos, quanto menos vivências comuns de diferentes espaços geográficos e culturais se realizam, mais ênfase há em relação aos receios, ou seja, mais se criam bichos de sete cabeças, situações de difícil resolução e que, por isso, exigem medidas mais drásticas de produção de segurança. A vivência das diferenças estéticas, linguísticas, comportamentais e outras não implicam necessariamente a aceitação integral das ideias. O caso religioso é exemplar neste aspecto, pois católicos, protestantes e candomblecistas, só para citar alguns, possuem matrizes ideológicas distintas e, por vezes, contrastantes. A vivência das diferenças pode, por outro lado, implicar o respeito e a convivência com o outro. Todavia, o que se vê é um clima de disputa que visa a eliminação do outro; um clima de tensão como o de casais separados em litígio. Um grupo procura, a um só passo, provar sua superioridade e extinguir o outro, mostrando que ele, e só ele, é capaz de tutelar a vida e que, para isso, é necessária a ausência do outro. Quando esse processo ocorre na esfera da segurança pública, se torna ainda mais violento, pois envolve a supressão simbólica e física. Nesse sentido, a polícia acaba por exercer um papel próximo ao de um cordão de isolamento. Da mesma maneira que os muros da prisão retiram os ditos “perigosos” do convívio da “população de bem”, os policiais, em muitos casos, acabam por fazer de suas atividades uma produção de isolamento; isolamento de bichos de sete cabeças que a própria sociedade ajuda a criar, como no quadro do ciclo vicioso apresentado no capítulo anterior. O pessoal da Zona sul vê o morador de rua ali e não quer o pessoal lá. Daí chama a gente. Daí a gente vai lá e tem que ficar explicando que esse não esse não é o nosso trabalho. Mas daí a gente acaba fazendo, pois senão vem mídia, reclamação. O rico, ele quer o pobre pra servi-lo, pra trabalhar. Essa população que não vai servir pra nada, como o menor, o morador de rua, esse pessoal eles não querem nem perto. Então é isso, tem uma divisão e a gente fica nisso. (Major da PMERJ em entrevista à pesquisa, em 09/10/2012)

A polícia, de maneira geral, historicamente ocupou e ainda ocupa um lugar de distanciamento que vem de todos os lados. Em relação às classes de poder aquisito mais alto, é convocada apenas quando se faz necessária, para prover sua proteção. Em relação às classes mais baixas, em função de séculos de confronto, é hostilizada e vista com grande desconfiança. Tal postura é encontrada inclusive em certa parcela da produção acadêmica. Conforme comenta Janet Foster (2008) ocorre uma espécie de “etnocentrismo” em estudos que abordam a cultura policial de maneira superficial e descriminante, por não considerarem as idiossincrasias pertinentes a esse ambiente e enfatizarem sempre as partes ruins da corporação. 169

Utilizando do conceito de outsider de Becker (2009), a polícia é comumente pertencente ao grupo dos outros, não sendo integrada, ela mesmo, de maneira satisfatória à diversidade presente na sociedade. Em conjunto com este aspecto, decorrente do histórico conflituoso da polícia, o próprio policial constrói visões negativas quanto à corporação. Em entrevistas à pesquisa em 09/10/212, ao serem questionados sobre como consideram que a sociedade vê a polícia, praças da PMERJ responderam: Cabo: Com Medo! Medo! Medo! Pra você ver... O carro do batalhão tem uma cor diferente (refere-se ao Batalhão do Choque). A gente foi no posto para ir no banheiro e as pessoas ficaram olhando. Você vê eles preocupados.

Pesquisador: Porque isso acontece?

Cabo: Ah, você vê um ou outro policial fazendo coisa errada... até porque é isso que aparece na televisão. Daí fica todo mundo preocupado. (Cabo da PMERJ, em 09/10/2012)

Sargento: A polícia não tem credibilidade nenhuma. Pra mim não tem credibilidade nenhuma.

Pesquisador: Por que?

Sargento: Ahh, vários motivos. Começando pelo governo e acabando pelos praças. Quando a população vê o policial abordando já pensa que vai extorquir.

Pesquisador: E você acha que tem isso, corrupção?

Sargento: (Risos) Tem... tem sim.

Pesquisador: Acha que é maioria ou minoria?

Sargento: Hoje, hoje, hoje... hoje eu acho que é minoria... mas infelizmente tem. Eu mesmo quando vejo o policial na rua não gosto. Na verdade depende do batalhão. Quando eu vejo que é de um batalhão operacional, eu mesmo não gosto. Não dá pra confiar. Não são todos!! Mas o problema é que tem aqueles que não são bons e eu sei que tem desses. (Sargento da PMERJ, em 09/10/2012)

A polícia, por vezes, também acaba por aglutinar em torno de si as representações negativas que envolvem ações polêmicas, como a medida de internação compulsória de usuários de crack, principalmente em 2011 e 2012, e o choque ordem na cidade do Rio de Janeiro, que são exercidas fundamentalmente pela guarda e agentes municipais e não pela corporação militar estadual. Há uma confusão entre as instituições, agentes públicos e suas atribuições, como observado em campo pela pesquisa, em dezembro de 2011, quando logo após a guarda municipal agir e retirar os vendedores ambulantes de uma praça do bairro de Laranjeiras, um grupo de jovens começou questionar que, em suas palavras, “a PM não tinha o direito de retirar as crianças das ruas e levar para abrigos e nem de acabar com a venda de cerveja em isopores”. No que se refere às crianças em situação de rua, um grupo de cerca de 15, que tinham sido encaminhados há pouco tempo pelos agentes da prefeitura a abrigos da cidade do Rio, concedeu a seguinte fala: Os PMs não mexem muito com a gente não, tio. Quem mexe mais são esses caras da prefeitura mesmo. É esse pessoal que cê tá vendo aí (aponta para a equipe da prefeitura). Eles vêm todo dia e botam a gente pra dentro da viatura. Os polícia 170

ficam... mais atrás, te olhando. Mas se você não vacilar eles não fazem nada não. O problema é esse povo de coletinho azul (coletes utilizados pelos agentes municipais) (sic) [Entrevista em grupo, concedida por crianças que foram encaminhadas aos abrigos. Em observação participante junto à equipe da internação compulsória, em 30/09/2011]

Dessa maneira, para além da importante discussão sobre o paradigma de segurança pública, bem como sobre a doutrina, ensino, treinamento e sistemas de controle da corporação é necessária uma discussão sobre como integrar a polícia e os policiais à sociedade, no sentido deles também não representarem mais um dos bichos de sete cabeças com que se tem que lidar diariamente. Como fala Norine MacDonald (2008, p.29), “as forças de segurança são com frequência os únicos representantes do Estado nas áreas mais negligenciadas e perigosas. Elas são frequentemente deixadas sozinhas, sem o apoio de instituições relevantes, cujas ações são necessárias para melhorar a situação da segurança”.

6.1.1 Barreiras e comunicações culturais entre polícia e sociedade

Susanne Karstedt (2004, p.288) define cultura como “a set of meanings, values and interpretations that forms a specific social force independently of and partially autonomous of social structure and institutional context”. Mais do que referendar tal conceituação como única, a autora comenta que em todos os estudos culturais é necessário haver uma importante dose de pluralismo de noções, pois cada definição possui um emprego melhor para cada contexto. Todavia, comenta que nas várias conceituações de cultura há sempre uma inter- relação entre três problemas que envolvem: existência ou não de um domínio autônomo da cultura, ao menos parcialmente independente e não congruente com os arranjos sociais mais gerais; homogeneidade, integração e coesão entre seus membros; relação da cultura com o conceito de valores. A preocupação demonstrada por Karstedt com a utilização do conceito de cultura é o grau de generalização e de distanciamento entre os grupos que ela pode eventualmente estabelecer: “culture is a concept that stresses difference” (KASTEDT, 2004, p.289). Comentar sobre a produção de políticas públicas e os papéis que a corporação policial nela assume diz sobre um processo próximo ao discutido pelas autoridades etnográficas (CLIFFORD, 2008). As totalizações dos grupos sociais, que ganharam formas pelas canetas dos etnógrafos das autoridades experiencial e interpretativa, por vezes podem se fazer presente na perspectiva criminal culturalista. A ausência de uma análise próxima à vivacidade cotidiana junto aos membros da instituição, comentada anteriormente por Foster (2008), pode acarretar em uma visão cristalizada, que acaba apenas por reproduzir os estereótipos 171

propagados pela sociedade e colocá-los como condição sine qua non, como a visão de uma corporação necessariamente corrupta e violenta. Tratar da questão da polícia, como de outros grupos, envolve, portanto, um movimento que ora agrupa seus membros, enfatizando os aspectos comuns e que nos permitem identificar as pessoas enquanto policiais, e que ora desmembra e pluraliza a instituição, enfatizando as tensões e as disputas de força interna. Conforme apontam Hayward e Young (2007), em texto sobre criminologia cultural, há um movimento de tendência desconstrucionista que desde a passagem para os anos 1970 relativizam tanto os graus de dependência como de autonomia dos conjuntos culturais e de seus atores. Os autores afirmam que: “cultures are not static, they are not an essence waiting to be enacted, rather they are heterogeneous, they blur, cross boundaries, and hybridize” (op. cit., p.107). Assim, a cultura exerce dois papéis quase antagônicos, sendo o de, por um lado, promover a continuidade e a previsibilidade e, de outro, produzir resistência, criatividade e invenção. No processo de agrupamento e de destaque às continuidades presentes na cultura policial são comumente ressaltadas a rigidez da cultura militar e a preponderância de elementos machistas. Freire (2009), ao refletir sobre a dificuldade do paradigma de segurança cidadã obter viço na prática policial, diz que “essa difusão é naturalmente lenta, pois esbarra muitas vezes em visões de mundo arraigadas nas instituições policiais - centradas na preponderância dessas instituições na implementação das políticas de segurança, identificando as políticas sociais como elementos alheios à esfera da segurança - e em uma perspectiva operacional-repressiva” (op. cit, p.56). Foster 2008, por sua vez, aponta para o machismo decorrente principalmente pelo histórico quase exclusivista de homens em seu quadro e pela característica, muitas vezes observada na polícia, que algumas culturas têm de refletir, reforçar e por vezes amplificar as desigualdades sociais. A autora discute que esses processos ocorrem, entre outros, em função da diferença entre “‘how you run an organization like this” e “what really matters around here” (op. cit., p.205). Segundo a mesma, a manutenção de valores antigos e a dificuldade de inserção de novos elementos decorrem da pressão identitária que os membros antigos exercem sobre os novatos. Quando o policial ingressa na instituição, para além de seu treinamento e ensino, ele passa a aprender com os outros o “real role of the police officer” (id, ibid). Um dos desdobramentos observados da pressão interna para a conformação do que é a prática policial, são apontados pelos policiais em entrevista à pesquisa, no que se refere a uma aparente “rixa” com os policiais da UPP. Pelo fato da última trabalhar com efetivo 172

policial permanente nas comunidades e ser composta em sua maioria por policiais recém- ingressantes, com exceção do comando, preparados para esta realidade de contato constante com a população, os policiais da UPP, eventualmente, são apontados como sem preparação adequada pelos mais antigos: Esse pessoal da UPP não tem formação de policial. O quê que eles querem? Querem aparecer na televisão? (...) Não dá pra imaginar que policial vive de dizer bom dia, de ficar de papo... pois é isso que eles fazem. Se você pegar esses policiais e chamar eles pra ficarem aqui (centro da cidade do Rio) eles não conseguem. Eles não são treinados como a gente. Não são policiais como a gente. (Sargentos da PMERJ que atuam no patrulhamento ostensivo da região central do Rio, em 30/09/2011)

Situação semelhante pôde ser constatada na Irlanda do Norte, entre os policiais provenientes da RUC e os que ingressaram após a transição para PSNI: Before (referindo-se à RUC) there was a soul for people, identity. When the PSNI came on board, they changed the culture and the identity was lost. There is a vacuum (...). Today the new leadership is just auto promotion. They don’t deliver anything. The sense of service is significantly different. Before they wanted to serve, to deliver something to be proud. PSNI just get in as a job. They just do their job and when they finish they go home. (Entrevista à pesquisa de um policial reformado da RUC, em 04/07/2012)

Contudo, os fatores culturais atuantes na polícia nem sempre vão na direção da continuidade de antigos valores. Em 1997, por exemplo, teve início um processo de paralisação até então tido como improvável aos policiais. Após o governador Eduardo Azeredo conceder aumentos salariais apenas aos oficiais da polícia militar e aos delegados da polícia civil, um grande movimento grevista tomou corpo no estado de Minas Gerais. Conforme estudo anterior (MELICIO, 2010a) a greve da polícia militar mineira representou a maior a crise política do estado desde o golpe militar de 1964. Dois dias após o aumento, criou-se um movimento liderado pelos praças (soldados, cabos e sargentos) que reuniu cerca de 700 pessoas entre policiais e bombeiros, até a porta do Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro. De acordo com um dos participantes da greve, posteriormente deputado estadual, sargento Rodrigues, em matéria do site da Associação de Praças e Santa Catarina (Aprasc), em 27/01/09: “a manifestação nasceu principalmente da vontade de combater a repressão, a injustiça, o desrespeito e a violação aos direitos fundamentais ao ser humano que os praças estavam sendo submetidos”. Na época, os oficiais e delegados civis mineiros recebiam cerca de seis mil reais, enquanto os praças possuíam vencimentos em torno de 430 reais. Após a morte de um cabo da PMMG, que integrava a paralisação, atingido por disparo em confronto com os policiais que tentavam conter as reivindicações, o movimento ganhou mais força, se difundido em 19 estados brasileiros, entre eles o fluminense. 173

Em 2012, outro movimento grevista obteve espaço, desta vez liderado pelos bombeiros e acompanhado pelas polícias civil e militar do Rio de Janeiro. Também em função da reivindicação por melhores salários, segundo notícia veiculada em 09/02/2012 pelo portal G140, a greve chegou a reunir duas mil pessoas em assembleia na Cinelândia, centro do Rio, onde decidiram pela paralisação, que se encerrou uma semana depois. O ponto em questão na ênfase ao desmembramento e pluralidade da cultura policial refere-se às formas com que a instituição pode se reinventar. O exemplo dos movimentos grevistas diz sobre o rompimento da corporação com um de seus fundamentos militares, que legalmente a impede de realizar greves. Assim, no momento em que optam por ir às ruas reivindicar aumentos salariais, a polícia está tornando concreto uma outra possibilidade de se apresentar à sociedade e de ver a si mesma. Nesse sentido também estão as ações de policiamento comunitário e de proximidade. A polícia que historicamente se habituou a agir posteriormente ao acontecimento do crime, passa a atuar no diálogo constante com a comunidade, o que pode contribuir para a diminuição dos embates entre polícia e outros grupos sociais. Como diz coronel Robson em entrevista à pesquisa, de 15/10/212: A gente tem que, a partir da proximidade, relaxar. Estamos distensionando essas relações. Não tem diálogo com medo. Não podemos comunicar a partir do medo, dos traumas. Com um comendo o outro, você não vai dialogar. Então você relaxa agora. Você retira, pelo menos do campo visual, essas armas (nas UPPs) que são metáforas de uma guerra e justificam o discurso da guerra. Dominação de território também é uma metáfora do discurso de guerra. Então, mudando isso, você estabelece uma possibilidade melhor de diálogo, de escuta.

6.2 A DIFERENÇA PELA DIVERSIDADE: ACOMPANHANDO PROCESSOS

Félix Guattari (2005) realiza uma problematização do conceito de cultura, no sentido de questionar o quanto ela traz de processos reacionários. O argumento do autor vai na direção de criticar, sobretudo, o aspecto de continuísmo que os conjuntos de valores e ideias historicamente compartilhados podem acarretar, bem como nas eventuais limitações que as barreiras culturais podem estabelecer. Trazendo a perspectiva da subjetividade como produção, da qual este trabalho se vale, Guattari comenta como, por exemplo, os antropólogos ao terem contato com organizações ditas “primitivas” as informam sobre seus padrões culturais, dizendo sobre sua música, dança, atividades de culto, de mitologia e outras: “e descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhe tomar a produção para expô- la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-las nas teorias antropológicas

40 Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/02/policias-civil-militar-e-bombeiros-decretam-greve- no-rio-de-janeiro.html. Acessado em 10/01/2014. 174

científicas em circulação” (GUATTARI, 2005, p.25). Ele discute que o mesmo acontece com o sujeito que é inserido no sistema psiquiátrico ou com as crianças no sistema de escolarização: “antes disso, elas brincam, articulam relações sociais, sonham, produzem e, mais cedo ou mais tarde, vão ter que aprender a categorizar essas dimensões de semiotização no campo social normalizado. Agora é hora de brincar, agora é hora de produzir para a escola, agora é hora de sonhar, e assim por diante” (id, ibid). O processo apontado por Guattari diz sobre a larga escala de produção de subjetividade em que se inserem as pessoas na sociedade contemporânea. Os sistemas médicos, escolares, religiosos, judiciários e outros tantos vão aos poucos normalizando os modos de ser e estar no mundo. As pessoas aprendem, em um processo contínuo, a se valer das dimensões semióticas circulantes na coletividade. Tal processo não ocorre apenas coercitivamente, em uma pressão externa ao sujeito, mas também, e substancialmente, em movimento de dentro para fora, pois essas dimensões semióticas situam-se no substrato da produção de subjetividade. Os desejos, as vontades, enfim, a energia movente e produtiva que certas correntes psicológicas situam na intimidade do sujeito, na perspectiva de Guattari, situam-se num registro que é ao mesmo tempo social e individual. São como as formas de vidas “plugadas” que Pelbart (2003) comenta. Da mesma maneira que se pluga um instrumento a uma caixa de som, para que sua sonoridade ganhe matéria e se torne perceptível às pessoas, os desejos, enquanto força produtiva de subjetividade, se plugam a categorias sociais para obterem concretude e produzirem efeito na realidade social. O que acontece é que se os desejos se plugarem a formas de ser e estar no mundo que são desviantes, ou seja, que não são esperadas pela maioria das pessoas - que não são prescritas pelos bons modos, pelo padrão de vida tido como saudável, pela estética amplamente apreciada – acaba por não ganhar viço e, por isso, se esvaecem, ou são segregados e/ou infantilizados. Nesses processos, a alteridade torna-se potente analisadora uma vez que diz sobre as formas de produção de mundo possíveis com a presença de outrem (DELEUZE, 2007), ou, trazendo outro conceito aqui utilizado, os sentidos e práticas que se territorializam em situações específicas, desembocando toda uma pragmática de vida (HAESBAERT; BRUCE, 2002). O encontro com outrem e o encontro entre grupos produzem uma interconexão institucional que, por sua vez, estabelece um sistema lógico de definições da realidade social e de comportamentos humanos prescritos e proscritos (BAREMBLITT, 2002). As categorias sociais atualizadas nesses movimentos podem ir tanto na direção de enfatizar as diferenças, hierarquizá-las e colocá-las em conflito, como na direção de ressaltar a diversidade e dar passagem a formas de contato tolerantes. Associado a esse movimento encontra-se o medo e 175

as incertezas que o convívio com o diferente traz. Se as culturas urbanas, tanto em seu âmbito geral, como em suas manifestações mais locais, alimentam uma atmosfera de disputa, os dois últimos, medo e incerteza, são ainda mais acirrados e outrem, ao invés de ser visto pela face de um companheiro na empreitada da vida em sociedade, acaba por ter sua imagem borrada e distanciada – o que gera mais medo, que por sua vez gera mais acirramento, e assim por diante. Em entrevista coletiva à pesquisa, em 18/01/2013, um grupo de cinco travestis profissionais do sexo comentou sobre o lugar e a situação em que se sentem mais seguras e também mais integradas: Pesquisador: Como é a relação de vocês com a rua?

Travestis: Ali é o nosso lugar de trabalho. Ali é onde nos mostramos. A gente se maquia, se prepara, se monta e ai vamos pra rua... É ali que a gente é vista, olhada... que as pessoas nos desejam.

Pesquisador: E vocês têm algum tipo de medo?

Travestis: Olha... Não tem muito medo não.... Quer saber? Ali é a hora em que mais eu me sinto cidadã, em que eu mais me sinto respeitada... é quando eu mais me sinto parte da sociedade. Porque a sociedade só lembra da gente quando quer o nosso voto e quando estamos ali na rua trabalhando. Agora, se é de dia e a gente tem que ir no supermercado ou na farmácia, todo mundo fica olhando e desejando que você não exista.

Os sistemas que Guattari (2005) diz atuar no nosso aprendizado social normatizam as coisas, os seres e suas atividades. As travestis em questão encontram espaços limitados em que é possível a sua presença. Estando na rua, no período noturno e enquanto profissional do sexo, visualizam uma brecha em que podem se expressar enquanto tal. Todavia, sob a luz do dia e aos olhos de pessoas que não têm interesse em usufruir de sua profissão, sentem a força simbólica e, algumas vezes, física da exclusão e da segregação. Assim, o desejo de “montar- se” travesti ganhará viço apenas no ponto de venda sexo ou, como visto em outros relatos, em shows e espetáculos, ao passo que em outros ambientes irá esvaecer ou ser capturado por formas de discriminação. A rua, que constituiu o dispositivo de análise inicial desta pesquisa, agrega em suas vias, ao mesmo tempo, a vivência do medo e a vivência do respeito e da liberdade. Os grupos tidos como vulneráveis, justamente por terem um histórico de supressão de direitos (BRASIL, 2010a), acabam por encontrar neste ambiente o local para se expressarem com maior liberdade. Torna-se curioso que o mesmo contexto que repele outros grupos, em função de seu risco em potencial, constitui para os que estão em situação de vulnerabilidade, no caso de travestis profissionais do sexo e moradores de rua, o meio pelo qual conseguem exercer a sua subjetividade: 176

Pesquisador: Como que é morar na rua para você?

Morador de rua: Tem gente que gosta de morar na rua, porque pode fazer o que quiser. Aí... eu... é por aí. Gosto da rua porque não precisa ficar dependendo de nada não.

Pesquisador: O que seria “ficar dependendo”?

Morador de rua: É ficar seguindo os outros. Ficar fazendo o que te mandam. Já aqui ninguém manda em mim não... (alguns segundos pensando) O problema é que não sai disso... Daí você começa a ver que é um atraso na vida, não tem futuro. Aí, tipo, não sei... é melhor tá aqui, ter liberdade, mas tem hora que fica foda (sic). (Entrevista à pesquisa por pessoa em situação de rua, em 30/09/2011)

Os jogos de força envolvidos na produção de subjetividade colocam em xeque o que é normal e anormal, aceito e não aceito. No texto dedicado à produção do fracasso escolar, Patto (1988, p.391) traz o exemplo da representação da escola a partir dos desenhos da criança de nome Nailton: “a escola desenhada é tão grande que quase não cabe no papel, mas a porta é pequena... Ele informa que desejava ter feito uma escada de acesso à porta, mas não pôde porque não coube!”. Dessa maneira, na elaboração de sua experiência escolar, Nailton cria uma representação gráfica da escola enquanto construção grandiosa, mas inacessível. Como diz a autora, “não há sequer janelas e, tal como sucede com o personagem de Kafka em Diante da Lei, Nailton jamais transpõe o portão que daria acesso ao que, em tese, foi feito para lhe abrigar” (id, ibid). A experiência de Nailton trazida por Patto torna-se um exemplo de como as construções sociais estabelecem um jogo de forças em que algumas redes discursivas adquirem o status de verdade em detrimento de outras (FOUCAULT, 2008). Os modos de vidas com que Nailton produziu realidade ao longo de sua trajetória, se esbarram com a grandiosidade e com a força dos modos de vida então comuns e esperados dentro do ambiente escolar. Não se trata, porém, de um jogo de poder em que a escola (nesse caso, segregadora e excludente) encontra-se em posição superior. O que acontece é que há uma rede de modelos de como se comportar, de como agir, de como responder às demandas que são sustentadas pelos próprios usuários da escola, como por alguns dos saberes pedagógicos e médicos que priorizam uma suposta causalidade hereditária e/ou cultural (já comentada anteriormente). Como vimos, caso Nailton dê passagem a outras formas de viver, diferentes daquelas ali presentes, elas não ganharão viço. Portanto, supostamente ele, como outros colegas, passam não só a agir conforme as regras, como também a sua produção de subjetividade para a se ancorar em tal sistema lógico, uma vez que ele é o território pelo qual suas formas de expressão conseguem vazão. A escola para Nailton diz do processo da sociedade como um todo para outras pessoas. A captura que o sistema escolar realiza das produções de subjetividade acaba por 177

figurar as formas com que outras instituições sociais também o fazem. Contudo, para além das capturas e da “dança conforme a música”, cabe averiguar quais as possibilidades de resistência, de criação de linhas de fuga, que permitem modos de viver escaparem aos dominantes. Em outro texto de Guattari, em que versa sobre as três ecologias que compõem o mundo, o autor comenta: “A juventude, embora esmagada nas relações econômicas dominantes que lhes conferem um lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela produção de subjetividade coletiva da mídia, nem por isso deixa de desenvolver suas próprias distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada” (GUATTARI, 1995, p.14). Os processos de singularização que o autor se refere correspondem à reconstrução do “conjunto das modalidades do ser-em-grupo” (op. cit., p.16). Seus processos, como o desejado pelo morador de rua na entrevista acima, não apontam para as recomendações gerais que abarcam a biopolítica geral da população (FOUCAULT, 2005), mas para as intervenções comunicacionais e para as mutações existenciais. Como diz Guattari (1995, p. 14-15): Se não se trata mais - como nos períodos anteriores de luta de classe ou de defesa da “pátria do socialismo” – de fazer funcionar uma ideologia de maneira unívoca, é concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte, etc – trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero”.

Pensar, nesta pesquisa, os dispositivos de produção de subjetividade que visam uma singularização individual ou coletiva, é pensar a produção de mecanismos que articulem as instituições e os profissionais de segurança em uma relação com os demais grupos da sociedade que enfatize a diversidade em detrimento da hierarquização da diferença. A alteridade, como principal analisador deste processo, transforma-se no sustentáculo a ser analisado não em seu produto final, mas em seu movimento em curso. Assim, os mecanismos que intentam a valorização da diversidade na relação entre profissionais de segurança e comunidades configuram-se por modalidades práticas de vivência em que o contato com o diferente é seu principal objetivo. As questões culturais que comumente são trazidas para ressaltar as dificuldades de mudança, como a cultura machista e corporativa da polícia, o histórico colonialista e escravagista brasileiro, a militarização baseada na hierarquia e disciplina, acabam por promover uma densidade por demais profunda às fronteiras relacionais entre os grupos. Este movimento acaba por levar para uma polarização excessiva entre polícia e sociedade, entre a 178

cultura hegemônica brasileira e os grupos minoritários (MELICIO, GERALDINI, BICALHO, 2012). Utilizando-se da orientação do ICP (1999) para a reforma norte irlandesa, as práticas de segurança, mais do que reproduzir os valores antigos, segregadores e excludentes da sociedade, podem objetivar constituírem-se como agentes de transformação para uma sociedade mais democrática, o que passa necessariamente pela intensificação de contato entre os diferentes. Na pesquisa Sociabilidades Subterrâneas, Jovchelovitch (2013) comenta sobre o que denomina por “fronteiras culturais porosas e densas”. Partindo dos relatos de como os moradores das comunidades acima mencionadas interagem com os diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, a autora notou que quanto maior a ausência de suportes sociais para que sejam feitas travessias simbólicas e geográficas, menor a experiência da diversidade. Jovchelovitch (2013) comenta a questão territorial enfrentada por muitos dos moradores. Em função da disputa com facções rivais de tráficos de drogas, bem como com a polícia, a pessoa que mora em uma dessas comunidades tem receio de visitar outros lugares pelo medo de ser reconhecido e sofrer alguma retaliação por parte do grupo rival. Outro aspecto é o comentado no início deste capítulo no que se refere ao desconhecimento, por parte do morador, do funcionamento social de outro contexto. Uma vez que conhece a dinâmica da comunidade onde mora e desconhece a de outros lugares, como a dos pontos turísticos da zona sul, o morador por muitas vezes opta por não sair de seu lugar de conforto, privando suas possibilidades de socialização. Neste caso, observa-se o estabelecimento de uma fronteira cultural densa, que abre poucos pontos de articulação e diálogos com outros grupos e outras culturas. No intuito de averiguar na trajetória dos entrevistados o que possibilitou a travessia de um contexto de segregação para um contexto de integração, Jovchelovitch procurou identificar os “andaimes psicossociais”, que são “ações e estruturas que apoiam o desenvolvimento individual e social” (JOVCHELOVITCH, 2013, p.191). Trata-se do suporte oferecido por diferentes instituições que permitem com que o sujeito tenha acesso e usufrua de novas formas de sociabilidades. A autora comenta, que nos casos observados, organizações não governamentais, entre outras, atuaram como um dos apoios para que jovens tivessem contato com outras experiências; por exemplo, um garoto que entra para um dos grupos do AfroReggae ou Cufa e com ele viaja por outros lugares do Brasil e do mundo, tendo contato com outros referenciais que ampliam sua visão de mundo. O ponto que chama atenção são as formas de travessia de um ambiente de isolamento para a vivência mais aberta e inclusiva. Conforme ocorre se intensificam a experiência com outros locais, grupos, estéticas, 179

comportamento, menor a densidade cultural e, consequentemente, maior a sua porosidade, como pontos de articulação e contato com a diferença. Intentar um aparato policial que promova os direitos humanos e os princípios humanitários é também objetivar uma sociedade que inclua a cidadania de seus policiais. As fronteiras culturais necessitam ir à direção de sua porosidade, pois quanto menos rígidas forem suas barreiras, maior espaço haverão para as linhas de fuga e processos de singularização. Foram trazidos ao longo dos capítulos elementos importantes para a transformação do paradigma de segurança, como uma maior ritualização de passagem (como a transformação ocorrida na Irlanda do Norte), ênfase na relação e no compartilhamento de responsabilidades, com maior empoderamento dos municípios, dos bairros e comunidades, bem como execução de consulta e processos participativos que aproximem a população em geral da criação de demandas e das tomadas de decisão. Todavia, visamos conferir importância às formas de monitoramento e à criação de expectativas das políticas públicas de segurança. Tão importante quanto os índices de criminalidade e a capilaridade da ação policial é a efetivação de ações que permitam o contato entre os profissionais de segurança e os diversos grupos sociais. Mesmo estando esses pontos já objetivados pelo policiamento comunitário e de proximidade, as reuniões, encontros, cafés e outras modalidades de interação não necessitam direcionar suas expectativas apenas para seus produtos, ou seja, não necessitam preocupar-se apenas com as resoluções ali tomadas e com os encaminhamentos escritos em ata. O próprio encontro da diferença, assim como as dinâmicas que ali se estabelecem, como alianças e tensões entre os diferentes segmentos, por si só oferecem plano de análise. É assim que a presente pesquisa aproxima a metodologia por ela utilizada, com a proposta que finaliza seu trabalho. Tal qual na cartografia, torna-se importante o olhar para a alteridade na perspectiva de se acompanhar processos (ROLNIK, 1989; KASTRUP, 2007). Uma vez que o interesse não se centra na densidade, mas na maior porosidade cultural, a cartografia dos processos em curso se constitui como possibilidade de monitoramento que destaca a ação no presente e, por isso, potencializa as transformações no futuro. Trata-se, por fim, de ir ao encontro da alteridade por meio de ênfase a sua vivência. Os novos paradigmas e programas de segurança pública realizam um importante movimento de equacionamento da questão do “outro” por meio da promoção à cidadania. Isso implica a capilarização das práticas de segurança e a criação de diretrizes que asseguram o respeito e promoção da dignidade humana. Todavia, ao se depararem com as dificuldades de implantação, retornam a sua discussão tecnocrata e iniciam uma nova etapa de elaboração teórica. Isso pode demonstrar que o processo está demasiadamente centrado na produção “do” 180

outro, ou seja, em como qualificar o cidadão e cidadania de maneira mais abrangente e eficaz. Assim, uma das repostas possíveis, ligadas ao acompanhamento de processos como objetivo geral, diz sobre a potencialização da produção com o outro. As expectativas não seriam, aqui, restritas ao que foi encaminhado no encontro da diferença, em termos de produtos finais, mas ampliadas pelo entendimento de que na passagem da “forma” para a “prática” há todo um jogo de nuances e especificidades típicas da vivência humana. Respeitar e promover a diversidade diz sobre respeitar e dar vazão às próprias dificuldades em se realizar tal tarefa. Não se trata de eliminar as “cabeças dos bichos”, para produzir um animal menos estranho, mas, sim, a de trazer as suas “sete cabeças” para conviver com suas estranhezas, atento, sobretudo, a como é esse convívio. Promover a diversidade é promover necessariamente desencontros; e ver a potência dos desencontros é acompanhar os mundos que esses desencontros permitem.

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7 CONCLUSÕES

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito, nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco (...) Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que normalidade é uma ilusão imbecil e estéril (Poema Loucos e Santos, de Oscar Wilde

A vida e o viver com os outros. Do que trata esta pesquisa senão das delícias e dificuldades que é viver em comunidade? São as paixões, sacrifícios, angústias e alegrias de existir ao lado de outros que nos move a cada instante. Se discutimos segurança, políticas públicas, teorias e metodologias, o fazemos para lançar luz a esta empreitada tão misteriosa, que nos assusta e nos afaga. São raros aqueles que nunca pensaram em desistir, que nunca foram aplacados por uma força desintegradora e pessimista, em um momento de desilusão. Como também são raros aqueles que nunca sentiram amor pelo que os rodeia, que nunca sentiram uma força desmesurada que pulsa na direção do abraço e do otimismo quanto aos laços sociais. Parecemos viver num constante balanço, que nos aproxima e nos distancia daqueles que nos rodeiam. Há os momentos em que nos sentimos parte do conjunto social, em que transitamos bem em meio aos sinais e destemperes que o mundo traz. Mas há também os momentos em que nos sentimos sem lugar, em que não encontramos territórios para habitar. E são nessas situações que nos aproximamos de Robinson de Tournier (DELEUZE, 2007) e nos perguntamos o quanto dependemos do outro, o quanto a nossa vida ganha sentido a partir da presença do outro. Todo dia nos levantamos e encontramos signos que nos trazem o mundo coletivo e integrado. A vida em um centro urbano não se realiza sem a incessante troca entre produções. Não escrevemos sem dialogar mentalmente com o leitor; não nos comunicamos sem usufruir da linguagem que nos une a outros milhões de pessoas, não nos alimentamos sem ingerir algo que tenha passado pelas mãos de outros tantos. Ao longo de nossa trajetória, vamos 182

aprendendo a nos situar, a ler de maneira inteligível o que os outros realizam, enfim, vamos produzindo subjetividades (GUATTARI, 2005). Nesse processo percebemos que nossas formas de se expressar não são as únicas existentes. Vemos permear os nossos olhos pessoas que se utilizam de outras linguagens e de outras estéticas. Pessoas que organizam suas ações por outras lógicas. Assim, começamos a notar que da mesma maneira que tivemos nossas trajetórias e nossos pares, outras pessoas tiveram os delas, compartilhando com outros grupos. Sim, esse conjunto social é muito mais plural do que imaginávamos quando criança. Então, começamos a ponderar sobre como estabelecer trocas com essas diferenças. Afinal, se vivemos em conjunto e esse conjunto é composto pela diversidade, como fazemos para nos relacionar com os diferentes de nós? Como fazemos para estabelecer pontos comuns que permitam a nossa comunicação? É nesse momento que percebemos as diferenças de territórios, como pensados por Deleuze e Guattari (1992). No decorrer das trocas que realizamos, avistamos aqueles espaços em que a vazão do estranho consegue habitat. São os locais geralmente destinados à arte, em que a criatividade e o inusitado são bem vindos; em que a potência da diferença é acolhida e valorizada. São os espaços que justamente permitem a territorialização daquilo que é diverso, daquilo nos retira da zona de conforto e nos joga para um mundo de descobertas. Por outro lado, também nos defrontamos com os “espaços –catracas”, que só permitem passagem daquilo que foi previamente capturado e categorizado, dando vazão somente às territorializações daquilo é familiar e, portanto, controlável. Espaços como a escola de Nailton (PATTO, 1988) ou do império chinês (PELBART, 2003), que impressionam tanto por sua grandiosidade, como pela dificuldade de nele habitar. Nesses últimos, enquanto somos nômades, estrangeiros, corremos o risco de não sermos notados ou de sermos aprisionados. Assim, as nossas capacidades de se expressar se esvaziam e não conseguimos habitar aquele território. Em meio a tal situação, enquanto nômade-estrangeiro que não consegue encontrar formas de se comunicar, somos levados ao menos a três opções: sucumbir, “se plugar” (PELBART, 2003) ou resistir. Todas as três relacionam-se à ideia de desejo exposta por Guattari e Rolnik (2005), a de que o desejo é eminentemente produtivo, ou seja, tudo aquilo que nos move, que nos confere energia, que constitui a nossa subjetividade necessariamente visa a produção, se exercendo por meio de formas de expressão, por modos de ser e estar no mundo. Assim, a primeira opção, de sucumbir, diz sobre a falência total do sistema que nos mantém vivos; uma vez que não encontramos meios de nos relacionar com o mundo, não 183

temos condição de existir, ocorrendo um progressivo adoecimento de nossa vitalidade. A segunda opção, de “se plugar”, diz sobre a captura do desejo por parte das lógicas atuantes na sociedade, por exemplo, se em uma escola são territorializadas relações de obediência entre educando e educador, será por meio desses territórios que o nosso desejo procurará viço. Por último, a opção de resistir, aponta para as formas de expressão que se plugam aos territórios de visibilidade, ao mesmo tempo que deles escapam, por meio de linhas de fuga. Nesse processo, conseguimos nos comunicar, mas o fazemos de forma desviante, estando sujeitos, muitas vezes, à segregação, exclusão ou infantilização (GUATTARI, 2005). O que observamos agora são os efeitos que as produções de subjetividade trazem em sua constituição. “Cuidado companheiro, a vida é pra valer!”, no diz Vinicius de Moraes em seu samba da bênção. A alteridade, enquanto correspondente a esse processo de encontro com a diferença, diz tanto do outro quanto de nós, como lembra Arruda (2002, p.17), “é também um pedaço de mim, prestes a esvaecer” (ARRUDA, 2002). Mas de onde vêm essas relações de supressão da diferença? Por que não encontramos tantos espaços que valorizem a diversidade? Longe da pretensão de fornecer uma resposta conclusiva, nos deparamos com algumas pistas ao retomarmos as discussões de Sennett (1998). A partir de processos que envolvem o modernismo e o crescimento urbano, ocorre a erosão do espaço público em detrimento do privado. As explicações baseadas no sagrado perdem espaço para o racionalismo do projeto moderno, no qual as teorias científicas são convocadas para ordenar as cidades e gerir a vida humana. Teses evolucionistas ganham emergência e colocam em oposição: as condições humanas que nos ligam ao lado animal e primitivo; e as produções culturais que nos ligam ao processo evolutivo. Dessa maneira, o que ocorre neste contexto é a sobrecodificação do homem. Os desafios de se viver em sociedade se tornam ainda mais dispendiosos ao passo que, como nos informa Sennett, a utilização de máscaras constitui a base da civilidade. Tal tarefa, de demonstrar os signos culturais da suposta evolução humana, sobrecarrega homens e mulheres, que passam a evitar ainda mais o contato com os diferentes. A um só passo, as teorias científicas direcionadas ao darwinismo social, colaboram tanto para o tratamento da diferença em termos de inferioridade e superioridade (mais evoluído e menos evoluído), como para a ênfase no individualismo, tratando os condicionantes históricos e sociais como fenômenos coadjuvantes. Ocorre o entrincheiramento do campo social, tal como vimos com o capoeira e com o menor. O contato com outros grupos não é visto como potência para a experiência de outras formas de vida; ao contrário, é visto como algo que 184

abala o equilíbrio, custosamente alcançado entre os pares, nessa nova configuração da vida coletiva – mais racional, científica, impessoal e imediatista. Nesse contexto, vemos, então, atuar a anátomo e bio política (FOUCAULT, 2005). Por um lado, as novas modalidades de vida urbana exigem um maior disciplinamento e vigilância dos corpos. São necessários mecanismos de identificação e categorização das práticas sociais, pois nada que fugisse ao projeto moderno deveria ter sobrevida. É nesse período que passam a surgir classificações como “fora de hora”, “vagabundagem”, “atitudes estranhas” e “capoeiragem”, que dizem sobre o que deveria ser combatido, sobretudo, pelo aparato policial. Por outro lado, são elaboradas lógicas de gerenciamento populacional mais sofisticadas, que visam dar conta do crescente aumento do número de habitantes e do “atraso” em se viveu nos períodos anteriores. Saberes médicos e jurídicos se coadunam, informando os caminhos para uma população saudável e ordeira. Observa-se, assim, o estabelecimento do espaço público enquanto arena de disputas, em que se figuram os que se incluem no sistema institucional atuante, os insiders, e os que são se incluem, outsiders (BECKER, 2009). Dentre os que se incluem, são avistados aqueles aptos ao desenvolvimento moral, geralmente ligados ao ambiente familiar nuclear de referência burguesa, enquanto que entre os excluídos figuram os “irregulares”, como o menor, que supostamente não reúnem condições para o desenvolvimento moral e, por isso, devem ser tutelados pelo Estado (SANTOS, 2011). Distinção essa que acaba por coincidir com o recorte econômico e étnico, direcionando as medidas prioritariamente aos pobres e miseráveis, em sua maioria negros. A atuação policial nesse contexto, por sua vez, acaba por fazer dessa corporação uma das principais, senão a principal, ferramenta de controle social. Uma vez que se identificam formas de resistência, tal qual apontada acima por Guattari (2005) e também desenvolvida por Foucault (2008), é a polícia que vai agir diretamente no disciplinamento dos corpos, visando garantir o funcionamento da lógica hegemônica. Fato que tem sido observado desde a chegada da família real ao Brasil, em 1908, até os dias atuais. É nesse sentido, que mesmo havendo propostas de mudanças paradigmáticas, como a almejada pelo Pronasci, ocorre na área de segurança a observância de um imobilismo institucional (SOARES, 2013). Junto a outros fatores conjecturais - como o acentuado crescimento urbano entre 1950 e 1970, o distanciamento entre o movimento de redemocratização e a realidade de profundas desigualdades econômicas, bem como a ausência de capilarização do policiamento – notamos no Brasil a dificuldade de ruptura da política de segurança com os processos anteriores em função da falta de integração da própria polícia à sociedade e da falta de 185

ritualização que marque a passagem para um novo paradigma. Processos, esses, observados na experiência da Irlanda do Norte. Após longo período de confrontos entre unionistas protestantes e republicanos católicos, ocorre no país uma reforma social que faz da transformação do aparato policial seu núcleo difusor. A reforma norte irlandesa mostra-se potente por atuar diretamente sobre os processos de produção da alteridade. A mudança que se realiza é a passagem de uma sociedade em disputa e hierarquização da diferença, para uma sociedade de acolhimento da diversidade. A alteração se dá pela transição de uma alteridade radical, em que todos os elementos que aproximam os dois grupos são subtraídos, para uma alteridade mais flexível, em que não há a superação da diferença, mas sim o respeito e diálogo no encontro com o outro. Respeito e diálogo que envolve também o policial, no caso, acrescido de uma nova roupagem e perspectiva integralista. Assim, concluímos que é pela valorização do encontro com o outro que forneceremos bases mais efetivas para a mobilidade no campo da segurança pública. Encontros que não visem cessar as diferenças, nem tão pouco eliminar todas as formas de embate entre os diferentes grupos, por situar-se ai uma das fontes para a inovação. Mas, sim, encontros que deem espaço para a manifestação do estranho, do inesperado; que não se restrinjam à resposta tecnocrata, de modalidades de policiamento e concepções de cidadania, e atentem para o acompanhamento de processos. Encontros que deem voz também aos policiais, desatando os nós que os amarram a uma política elitista e de segregação. Encontros, enfim, que permitam a expressão da vida em todas as suas formas, pois seus perigos não são outros, senão a inexistência de sua produção.

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Revista Construir, n°49, dezembro/2010. Pág. 1-5. Acessado em 10/01/2014 em: http://portal.aeerj.com.br/file/construir/construir49.pdf

Matéria da Revista Veja de 13/11/2011. Beltrame transforma favela em vitrine mundial do Rio. Acessado em 10/01/2014 em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/na-rocinha-a-policia-transforma-favela-em- vitrine-mundial

Matéria da Revista Veja de 23/08/2010. A “polícia pacificadora” de Cabral prende bandidos ou só os convida a mudar de método sem mudar de ramo?. Acessado em 10/01/2014 em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/a-%E2%80%9Cpolicia- pacificadora%E2%80%9D-de-cabral-prende-bandidos-ou-so-os-convida-a-mudar-de-metodo- sem-mudar-de-ramo/ 196

ANEXO I - FONTE DAS FIGURAS UTILIZADAS

As figuras presentes na pesquisa possuem origens variadas. A utilização das mesmas não se restringiu a fontes acadêmicas, fazendo uso, por exemplo, de imagens veiculadas em redes sociais. Tal fato justifica-se pela colocação das figuras não, exclusivamente, enquanto base de consulta ou explicação formal de um conteúdo, mas, sim, de cartografias contemporâneas, que mostram imagens que estão em circulação nos contextos atuais.

Para atualizar e facilitar a referência eletrônica das figuras, todas as fontes virtuais foram acessadas e mostraram-se disponíveis, sem exceção, em 10/01/2014.

Fig Descrição Fonte

1 Sky and Water de M. C. Escher http://www.mcescher.com/

2 Foto da rua do Catete, Rio de Tirada em 20/01/2014, por Thiago Melicio Janeiro

3 Montagem feita a partir de http://www.vermelho.org.br/tvvermelho/noticia.php?id_se diferentes fontes. A principal é da cao=29&id_noticia=220312. campanha “Eu pareço suspeito?”, do Portal Vermelho, com Buia http://extra.globo.com/casos-de-policia/caso-amarildo- Kalunga (Primeira fonte) policial-militar-infiltrado-em-quadrilha-acusa-traficante-de- ter-matado-pedreiro-9459036.html;

http://theynotlife.com/en/fashion/10-things-you-need-to- know-about-punk/

4 Drawing Hands de M. C. Escher http://www.mcescher.com/

5 Trabalho em estêncil de Banksy www.buzzfeed.com/mjs538/106-coolest-banksy-graffiti- drawings

6 Foto da passarela da rua Pinheiro Tirada em 02/05/2013, por Thiago Melicio Machado, Rio de janeiro/RJ

7 Bond of Union de M. C. Escher http://www.mcescher.com/

8 Desenho “Favor, não alimentar https://www.facebook.com/photo.php?fbid=703046309 seus medos” 724233&set=a.492933397402193.125964.10000056611 6169&type=1&theater

9 Foto no ônibus da linha 239, Rio de Tirada em 16/10/2013, por Thiago Melicio Janeiro/RJ

10 Charge “Comunistas comem http://travessadenenhures.blogspot.com.br/2012_02_01_a criancinhas” rchive.html

11 Desenho de Latuff. Menção à http://pimentacomlimao.wordpress.com/tag/carlos-latuff/ tortura, utilizando formas da 197

bandeira do Brasil

12 Foto de policiais escoceses em MACINTTYRE, L.; ADAMSON, P. Dundee: Portrait of the city. Dundee St Andrews: Alvie Publications, 2006. p.151.

13 Foto de um dos muros de Belfast Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio

14 Foto de um dos muros de Belfast Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio

15 Foto de um dos muros de Belfast Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio

16 Foto de um dos muros de Belfast Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio

17 Foto de um dos muros de Belfast Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio

18 Brasão da RUC http://robdevenney.deviantart.com/art/Royal-Ulster- Constabulary-Cres-146639058

19 Brasão do PSNI http://www.psni.police.uk/

20 Site da PSNI com orientação sobre http://www.psni.police.uk/ “crime de ódio”

21 Foto de um dos postos policiais do Tirada em 05/07/2012, por Thiago Melicio PSNI, em Belfast

198

ANEXO II - TABELA DAS ENTREVISTAS REALIZADAS

Os nomes dos respondentes foram subtraídos e trocados por iniciais ou indicação dos cargos que ocupam em função da privacidade e confidencialidade expressa pelo Termo de Consentimento do Comitê de Ética em que esta pesquisa foi submetida. As seis entrevistas abaixo em que os respondentes são nomeados tratam-se de contexto diferenciado, por se tratar de diálogo com trocas de informações técnicas, como com professores e alto comando da PMERJ, sendo que o entrevistado exprimiu deliberadamente (em gravação de áudio) a aceitação na exposição de seu nome.

Data Descrição Local 1 03/11/2010 Respondente I.G – Departamento de LGBT Brasília – Secretaria de Direitos Humanos 2 03/11/2010 Respondente F.M. – Departamento sobre Tortura Brasília – Centro de Referência em Direitos Humanos 3 04/11/2010 Capitão J. F. Brasília - SENASP 4 04/11/2010 RespondenteI.M. Brasília - Secretaria de Direitos Humanos 5 04/11/2010 Respondente A.D. - Policial Civil Brasília - Secretaria de Direitos Humanos 6 04/11/2010 Respondente A.R. - Policial Civil Brasília - Secretaria de Direitos Humanos 7 04/11/2010 Respondente E.D. – Policial Militar de Goiás Brasília - Secretaria de Direitos Humanos 8 04/11/2010 Respondente A.D.R. Brasília – SEPIR Secretaria de Promoção da Diversidade 9 05/11/2010 Respondente A.C. Brasília – SEPIR Secretaria de Promoção da Diversidade 10 05/11/2010 Respondente M.I. Brasília – SEPIR Secretaria de Promoção da Diversidade 199

09/11/2011 Encontro na Estácio Encontro com travestis e profissionais de saúde Rio de Janeiro 11 07/04/2011 Respondente U. – Cel PMERJ Viva Rio Rio de Janeiro 12 29/09/2011 Respondente L. - Enfermeira PSF de Moradores de rua Rio de Janeiro

13 30/09/2011 Observação da Internação Compulsória. Saída do 5 Centro Batalhão, às 5 horas da manhã, Coordenador Zeca Rio de Janeiro 14 30/09/2011 Entrevista coletiva com 15 pessoas em situação de Em frente à Delegacia do rua, em uma van, aguardando para ir ao abrigo Centro Rio de Janeiro 15 30/09/2011 Entrevista com um Sargento F. da Polícia Militar que Em frente à Delegacia do participou da ação de internação compulsória Centro Rio de Janeiro 16 30/09/2011 Entrevista com um Sargento X. da Polícia Militar que Em frente à Delegacia do participou da ação de internação compulsória Centro Rio de Janeiro 17 30/09/2011 Observação da Internação Compulsória. Saída do Foi realizado na região Batalhão na Tijuca do Jacarezinho Rio de Janeiro 18 05/10/2011 Observação da Internação Compulsória. Saída do 3 Rio de Janeiro Batalhão, às 5 horas da manhã 19 18/10/2011 Entrevista com Prof. H.C. PSF Lapa Rio de Janeiro 20 20/11/2011 Respondente H.I. Centro Rio de Janeiro 21 25/11/2011 Morador de Rua J. 26 anos Albergue centro Rio de Janeiro 22 25/11/2011 Morador de Rua L. 26 anos Albergue centro Rio de Janeiro 23 25/11/2011 Morador de Rua G. 46 anos Albergue centro Rio de Janeiro 200

24 07/06/2012 Meeting with Police Officers of Tayside - Interview Police Headquarters – with Sgt. A.W. Dundee/ Scotland 25 07/06/2012 Meeting with Police Officers of Tayside - Interview Police Headquarters – with Sgt K. Dundee/ Scotland 26 07/06/2012 Meeting with Police Officers of Tayside - Interview Police Headquarters – with Sgt S.M. Dundee/ Scotland 27 07/06/2012 Observation with Police Officers - Walking around City Centre the city centre of Dundee with the Police Officers Sgt Dundee/ Scotland K. e S.M 28 04/07/2012 Interview for PhD Research - Interview with the University of Ulster – professor Gordon Marnoch, about the Policing Northern Ireland context in Northern Ireland 29 04/07/2012 Interview with the professor Ruth Fee about the University of Ulster – Policing context in Northern Ireland Northern Ireland 30 04/07/2012 Interview with the professor Jonny Byrne about the University of Ulster – Policing context in Northern Ireland Northern Ireland 31 04/07/2012 Interview with the doctoral student Erik Cownie University of Ulster – about the Policing context in Northern Ireland Northern Ireland 32 04/07/2012 Interview with the doctoral student and officer of the University of Ulster – Police Service in Northern Ireland Gavin Boyd about Northern Ireland the Policing context in Northern Ireland 33 25/09/2012 Policial Civil Roberto Chaves Universidade Federal do Rio de Janeiro 34 09/10/2012 Soldado R. – Moto Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio Rio de Janeiro 35 08/10/2012 Tenente N. – Moto Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio Rio de Janeiro 36 09/10/2012 Tenente A.P – Batalhão do Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio Rio de Janeiro 37 09/10/2012 Soldado R.E. – Moto Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio 201

Rio de Janeiro 38 09/10/2012 Sgto D. – Moto Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio Rio de Janeiro 39 09/10/2012 Sgto C. - Moto Choque PMERJ Batalhão do Choque- Prox Estácio Rio de Janeiro 40 10/10/2012 Sgto M.U. - PMERJ Academia de Polícia Rio de Janeiro 41 10/10/2012 Sgto M.O. - PMERJ Academia de Polícia Rio de Janeiro 42 10/10/2012 Major A. - PMERJ Comando UPP Vila Cruzeiro Rio de Janeiro 43 10/10/2012 Sgto J. - PMERJ Comando UPP Vila Cruzeiro Rio de Janeiro 44 13/10/2012 Reporter Fotográfico do Dia S.S. Largo do Machado Rio de Janeiro 45 15/10/2012 Coronel Robson - PMERJ Quartel General Rio de Janeiro 46 19/10/2012 Encontro com Ten. Cel M.M. e Ten. Cel E.D. para Quartel General discutir o Intercâmbio PMERJ Rio de Janeiro 47 24/10/2012 Tenente P.– Ass. Social PMERJ Quartel Genera Rio de Janeiro l 48 24/10/2012 Ten. Cel E.D - PMERJ Quartel General Rio de Janeiro 49 24/10/2012 Soldado O. - PMERJ Quartel General Rio de Janeiro 50 06/12/2012 Tenente A. - PMERJ UFRJ 51 15/01/2013 Café com Pessoas em Situação de Rua Praça São Salvador Rio de Janeiro 52 16/01/2013 Pessoa em situação de rua M.L. Praça São Salvador 202

Rio de Janeiro 53 17/01/2013 Pessoa em situação de rua G. Glória Rio de Janeiro 54 17/01/2013 Pessoa em situação de rua M. Glória Rio de Janeiro 55 17/01/2013 Pessoa em situação de rua R. Glória Rio de Janeiro 56 17/01/2013 Pessoa em situação de rua G.L. Glória Rio de Janeiro 57 16/01/2013 Café com Pessoas em Situação de Rua Praça da Glória Rio de Janeiro 58 18/01/2013 Reunião com grupo de travestis no espaço Centro Transrevolução Rio de Janeiro 59 21/05/2013 Encontro na PMERJ para discussão dos resultados do Quartel General Intercâmbio Rio de Janeiro