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SIMPÓSIO AT166 O FEMININO EM PAUTA: RACHEL DE QUEIROZ E A CRÔNICA “TRAGÉDIA CARIOCA”

ARAÚJO, Victor Hugo Farias de Universidade Federal de Alagoas (PIBIC/UFAL) [email protected]

MENDES, Karla Renata Universidade Federal de Alagoas (UFAL) / Orientadora [email protected]

Resumo: Autora de obras célebres como O Quinze (1930) e As Três Marias (1937), Rachel de Queiroz passou, em seu período como cronista e jornalista, por diversos periódicos e jornais das décadas 30, dentre eles O Estado de S. Paulo, Diário de Notícias e a revista O Cruzeiro. Nesses espaços, publicava crônicas que, posteriormente, foram compiladas em livro. No decorrer da história, a crônica ficou presa num preconceito da crítica que a via, até pouco tempo, como um texto de menor qualidade ou prestígio. Este preconceito talvez fosse fruto de sua origem, visto que a crônica assentou-se nas páginas dos jornais, um veículo de comunicação pautado pela efemeridade e pelo cotidiano. Entretanto, foi justamente o caráter original e corriqueiro da crônica que resultou em sua resistência e permanência, especialmente a partir da década de 80, quando as pesquisas cresceram e passou a ser vista como objeto de estudo por pesquisadores. Dialogando com a prosa e jornalismo, a crônica configura um texto repleto de originalidade, e é nesse espaço que Rachel de Queiroz mantém uma excelência ao manejá-la. Sua escrita pode ser vista como um inventário de opiniões e é ao incursionar pela crônica que a autora pôde registrar as mais variadas convicções, indagações e afetos. O trabalho direciona-se para uma análise do texto “Tragédia Carioca”, na finalidade de desvendar a representação de um feminino transviado, na prosa da autora, usando como referencial teórico os pressupostos de Portella (1986), Candido (1992), Woolf (1985), Beauvoir (2016) e Zolin (2005). Palavras-chave: Crônica, Feminino, Rachel de Queiroz.

Abstract: The author of celebrated works as O Quinze (1930) and As Três Marias (1937), Rachel de Queiroz spent, in her period as a chronicler and journalist, through newspapers periodicals of the decade of 30, among them O Estado de S. Paulo, Diário de Notícias and O Cruzeiro magazine. In these spaces, she published chronicles that were later compiled into a book. Throughout history, the chronicle has been stucked on a prejudice of the literary critique that, until recently, saw it as a text of lower quality or prestige. This prejudice was perhaps due to its origin, since the chronicle was based on the on the pages of the newspapers, a vehicle of communication based on ephemerality and daily life. However, it was precisely the original and common character of the chronicle that resulted in its resistance and permanence, especially

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from the 80's, when it grew and began to be seen as an object of study by researchers. Dialoging with prose and journalism, the chronicle configures a text full of originality, and it is in this space that Rachel de Queiroz maintains an excellence in managing it. Her writing can be seen as an inventory of opinions and it is through the chronicle that the author could register the most varied beliefs, inquiries and affections. The work is directed to an analysis of the text “Tragédia Carioca”, in order to uncover the representation of a misplaced female, in the author's prose, using as theoretical reference the assumptions of Portella (1986), Candido (1992), Woolf (1985) , Beauvoir (2016) and Zolin (2005). Keywords: Chronicle, Feminine, Rachel de Queiroz.

Introdução

O seguinte trabalho tem como proposta uma investigação do papel feminino na crônica de Rachel de Queiroz, “Tragédia Carioca”, escrita em 1961. Queiroz se considerava primordialmente uma jornalista, e embora tenha escrito uma boa quantidade de romances aclamados, foi na crônica que a autora conquistou seu espaço. Por cerca de sete décadas a autora se debruçou à escrita de crônicas para jornais e para a revista O Cruzeiro, onde escreveu até 1975. Tão ilustre quanto ou Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz também se configura como uma autora célebre no painel de cronistas brasileiros. Transcorrendo entre a memória e a oralidade, seus textos também abrem espaço para discussões e reflexões sociais e políticas. Em “Tragédia Carioca”, a personagem apresentada faz uma defesa de seus ideais e contradiz o que a sociedade da época espera dela, tornando- se uma transviada dessas obrigações estabelecidas socialmente. A crônica, mesmo escrita na década de 60, traz uma perspectiva muito atual acerca do direito sobre o corpo feminino. Para entender melhor como isso ocorre, o artigo elabora uma concepção geral do conceito da crônica e dos papeis femininos tomando como ponto de partida os estudos feministas, além de mostrar um panorama de características da produção cronística de Rachel de Queiroz e de sua escrita.

1. O gênero crônica

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Julgado por muito tempo como um gênero textual inferior, a crônica conquistou seu espaço de forma gradativa, alcançando sua fama através da sua aproximação com o leitor. Nascido no seio do texto jornalístico, o gênero passou por uma desvalorização da crítica, sendo necessárias décadas para se tornar objeto de estudo e conseguir o status de “texto literário”. Entretanto, ainda que consolidada, sempre acabou por enfrentar preconceitos por ser vista como um gênero mais simples.

Por outro lado, é positivo que a crônica não se figure entre o brilho elitista dos romances e poetas, pois é justamente por ser um gênero “menor” que a crônica atinge seu público, aproximando-se de suas realidades cotidianas. Como já foi dito anteriormente, a crônica nasce em jornais, sendo um produto do encontro em jornalismo e literatura; seu alvo, assim como o texto, é inconstante, simples e efêmero. Esse misto de gênero propõe aquilo que está em cena, a novidade do cotidiano e uma análise cultural e social. O cronista se debruça na reinvenção sobre fatos do cotidiano na finalidade de fazer releituras despretensiosas e rápidas. Candido (1992) afirma essa despretensão e aproximação com a naturalidade cotidiana do público dos jornais: Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição (CANDIDO, 1992, p. 13).

Além disso, é necessário relembrar que a crônica está proposta a redimensionar a singularidade do cotidiano, sendo um texto de linguagem simples, curto e que parte de eventos, aparentemente, banais, mas os redimensiona por um viés literário. Desta maneira, o gênero torna-se adequado ao leitor dos jornais, um público que consome uma leitura rápida e fluida. A

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simplicidade é a maior responsável pela consolidação do gênero no cenário brasileiro desde a década de 30 e traz um desdobramento de perfis autorais variados, que perduram e crescem até hoje. Mais do que nunca, a crônica se configura como um gênero genuinamente brasileiro.

Mais do que isso, a crônica, na maioria das vezes, usa o humor para construir seu perfil. Para Portella (1986) “o humor é, a partir daqui, a arma do desarmado” (p. 8), fazendo-se, em maior parte dos casos, sua maior característica para denunciar e descrever as situações do cotidiano citadino. Ainda sobre esse viés urbano e citadino de denúncia, Portella comenta:

A crônica acompanha, se acumplicia, e exprime os movimentos e os gestos, os sons e as cores, todo o desenlace sobressaltado da cidade que se transforma. Porque a crônica jamais se deixa imobilizar; preferindo, pelo contrário, soltar-se, como ente poliglota, pelas ruas e curvas da cidade imprevisível. A crônica muda com a cidade que muda. (PORTELLA, 1986, p. 9)

Porém, é de suma importância frisar que nem toda crônica afirmará suas concepções sobre a cidade, cotidiano e humanidade a partir do humor. Cronistas como e Cecília Meireles mantém um perfil de crônicas cuja linguagem é intimista, munida de poesia e reflexão. De fato, a escrita feminina, independente do gênero, sempre foi mais séria que a dos homens, talvez porque tenham sido subestimadas artisticamente por toda sua história.

2. A escrita feminina

Por toda sua história, a mulher foi subestimada como um ser inferior em diversas qualidades: inteligência, aptidão física, talento artístico, dotes profissionais. A mulher, antes de tudo, é um outro. Beauvoir (2016, p. 10) entende que “todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular” ,mas a humanidade sempre foi algo dominada pela masculinidade, e todas as perspectivas são definidas a partir do homem, logo, a mulher é realmente um

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outro. Todo esse processo desloca a mulher de suas potencialidades, presa então numa relação de cumplicidade sem reciprocidade por parte do homem:

O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele [...] (BEAUVOIR, 2016, p. 18)

Efetivada na década de 1970 com os avanços dentro do contexto do feminismo, a crítica literária feminina se propôs a se debruçar sobre a figura feminina dentro da ficção e poesia bem como realizar um estudo da mulher como profissional da arte literária. O surgimento dessa corrente acontece mediante uma quebra com a cultura falocentrista e logocentrista que caracterizava o cânone, constituído pelo “homem ocidental, branco, de classe média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres” (ZOLIN, 2005, p. 325). Muito antes de a crítica feminista ser efetivada, no ano de 1929, Virginia Woolf lançava seu ensaio Um Teto Todo Seu, que futuramente se tornaria um dos textos basilares e obrigatórios para a crítica literária feminina. Escrito com base em palestras oferecidas a jovens mulheres no ano anterior, a autora percorre por indagações guiadas através da afirmação de que a mulher precisa ter uma fonte segura de renda para poder exercer a profissão de escritora. Para Woolf, é obrigação da mulher conquistar seu espaço, reescrever a história canônica que lhes foi negada e recuperar a identidade daquelas outras escritoras esquecidas no passado.

Ainda em seu ensaio, Woolf traz uma anedota para poder exemplificar como o sistema patriarcal oprime a mulher. Nesta anedota, a autora concebe Judith Shakespeare como uma irmã fictícia para o maior dramaturgo inglês já conhecido. Na narrativa, Virginia argumenta que se Shakespeare tivesse tido uma irmã tão talentosa e apta para escrita como ele, ela provavelmente teria enlouquecido ou sido ridicularizada pela sociedade vitoriana da época. A educação que seria oferecida para Shakespeare, que teria chance de expandir seu conhecimento, e para Judith, que seria criada para ser esposa e mãe, é o

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retrato da singularidade que privilegia o homem e impõe à mulher a sina de ter uma vocação artística tolhida. E quanto a isso, Woolf reflete:

Não é preciso ter grandes habilidades em psicologia para afirmar que qualquer garota muito talentosa que tenha tentado usar seu dom para a poesia teria sido tão impedida e inibida por outras pessoas, tão torturada e feita em pedaços por seus próprios instintos contrários, que deve ter perdido a saúde e a sanidade, com certeza. (WOOLF, 1985, p. 65)

Nesse processo de revisão histórica, se nota a obviedade de que o cânone restringiu tudo aquilo que é visto como inferior, e nisto tão está somente a crônica, o texto humorístico ou o erótico. Está também excluindo mulheres, negros e outras minorias que demonstram sua vocação artística, estabelecendo uma relação hierárquica de gêneros duvidosa.

3. A cronista Rachel de Queiroz e “Tragédia Carioca”

Rachel de Queiroz sempre se definiu majoritariamente como jornalista, chegando a afirmar em entrevistas que escrever ficção nada mais era que uma forma de praticar e manter ativo o ofício de escrita jornalística. Iniciou sua carreira muito jovem, colaborando efetivamente com o jornal O Ceará desde 1927, três anos antes de lançar seu primeiro romance intitulado O Quinze, com apenas vinte anos de idade.

As relações de gênero ocasionam na literatura uma relação de hierarquia daquilo que pode ser qualificado ou não como literário. A crítica feminista trabalha interferindo na ordem social canônica, buscando descontruir as ideologias de gênero construídas pelo patriarcado. Embora nunca tenha se considerado feminista, Queiroz foi uma das primeiras autoras no cenário nacional ao causar alvoroço na crítica por sua escrita. A produção da autora é da mais variada, tendo escrito romances, livros infantis e teatro, mas foi na crônica que Rachel de Queiroz estabeleceu seu nome na literatura. Entrando num hiato da escrita de romances entre As três Marias (1939) e Dôra, Doralina

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(1975), a autora passa a ser cronista exclusiva da revista O Cruzeiro de 1944 até o lançamento do romance Dôra, Doralina.

O universo cronístico de Rachel é do mais variado, mas sempre mantendo um tom de “conversa aparentemente fiada” (CANDIDO, 1992, p. 17). É em suas crônicas que a autora registra lembranças, indignações, afetos e opiniões. Hollanda comenta:

(...) a autoridade e a amplitude de suas crônicas advêm, sem dúvida, da posição de liberdade que conseguiu como escritora consagrada e como mulher independente, dona de sua pena e de seu destino. (HOLLANDA In QUEIROZ, 2004, p. 9)

Na crônica selecionada para análise, “Tragédia Carioca”, Rachel de Queiroz assume um papel de ouvinte e a personagem no corpo textual se constrói como uma personagem cheia de significados e representatividade. Embora não receba um nome, a personagem se insere em um hall de figuras que ilustram as crônicas da autora, que flagra o cotidiano. Ainda assim, embora trate-se de mais um flagrante, “Tragédia Carioca” – bem como outras crônicas – proporciona uma narrativa densa e de várias camadas.

Acompanhamos em sua extensão a narrativa de uma “transviada”, como a própria afirma, que conversa com a cronista relatando suas desventuras e desejos. Logo de início, deparamo-nos com uma caracterização externa que denuncia o perfil transviado e rebelde que se opõe ao período em que a crônica foi publicada (1961):

A menina vestia calças compridas e um casacão de malha, informe, de mangas arregaçadas. Sentou-se no sofá, cruzou as pernas longas, pediu licença para se servir de um dos meus cigarros. (QUEIROZ, 2004, p. 189)

Depois, dessa apresentação, a personagem da crônica desempenha o papel de contadora, descrevendo sua trajetória após engravidar de um parceiro casual. A família não reage positivamente à gravidez, visto que a personagem foge da relação esperada em que a mulher fica submissa ao homem em uma

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relação matrimonial. Porém aqui temos uma personagem que se nega a exercer o papel de esposa. Seus desejos sociais e profissionais e revoltas contra a mãe e o pai da criança. Afinal, “integrada na família e na sociedade, a magia da mulher dissipasse em vez de se transfigurar” (BEAUVOIR, 2016, p. 255).

O pai, embora aceite o casamento que a época impõe em casos como esse, cumpre um papel de indesejado, já que a protagonista da crônica tem metas maiores a serem desenvolvidas, firmando-se não só em seus atributos intelectuais como também físicos, podendo sempre “tentar o rebolado” caso seus planos não deem certo. A personagem sabe que a sociedade enxerga a maternidade e casamento como uma forma de destino para a mulher, mas se nega a enraizar-se nesse perfil, até porque para ela “esse negócio de casar pro bem da honra foi no tempo do dom João Charuto”. (QUEIROZ, 2004, p. 191).

Finaliza a crônica com um apelo, para a cronista Rachel defender a mocidade e assegurar que o que a matéria que sua mãe havia pedido não será publicada.

Rachel de Queiroz nunca se identificou como uma feminista, mas é inegável que seus textos enriqueçam massivamente o movimento. Em Tragédia Carioca, a autora eleva a voz de uma personagem que se opõe a uma falsa representatividade, já que isso significa, segundo Butler:

(...) a representação serve como um termo operacional no seio de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. (BUTLER, 2018, p. 18)

Embora publicada na década de 60, Tragédia Carioca, permanece atual, atendendo a característica de “permanência efêmera” da crônica. Rachel de Queiroz enriqueceu o gênero e o desenvolveu grandiosamente no cenário nacional.

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Referências BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. : Nova Fronteira, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Tradução Renato Aguiar. 16º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 13-22.

PORTELLA, Eduardo. "A crônica na literatura brasileira." In: FILHO, Domício Proença (org). Literatura brasileira: ensaios (vol.1) São Paulo: Norte Editora, 1986.

WOOL F, V. Um teto todo seu. Tradução Vera Ribeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

ZOLIN, Lúcia Osana. “Literatura de autoria feminina”. IN : BONNI CI, Thomas; ZOLIN , Lúcia Ozana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá: Eduem, 2005.

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