DOI: http://dx.doi.org/10.18315/argumentum.v7i1.9050

ARTIGO

Ponham as cartas na mesa e discutam essas leis: a luta pela legalização da maconha no Brasil

"Lay the cards on the table and argue these laws": the struggle for legalization in Brazil

Isabela BENTES1

Resumo: O presente ensaio vem trazer à tona a discussão acerca da política sobre drogas consolidada no Brasil. Situando historicamente a proibição de determinados psicoativos, o debate posto traz à tona o caráter político fundamental das manifestações em favor da legalização das drogas. Retratando especificamente os movimentos sociais, é objeto de análise o percurso histórico do movimento antiproibicionista no Brasil, ex- presso através da Marcha da Maconha, sua definição enquanto movimento social e suas bases fundacionais. O objetivo é apontar a configuração conflitiva exposta pelo movimento antiproibicionista e como se definem as demandas de tais mobilizações políticas. Palavras-chave: Antiproibicionismo. Movimentos sociais. Marcha da Maconha. Legalização. Maconha.

Abstract: The current essay brings to the fore the discussion concerning the drug policy of consolidated sub- stances in Brazil. Historically placing the history of the prohibition of certain psychoactives, the proposed debate brings to the fore the fundamental political character of the public manifestations in favour of drug legalization. Specifically portraying the social movements, it is an object of analysis the historical path of the anti-prohibitionist movement in Brazil expressed through the Marcha da Maconha(Marijuana March), its defi- nition as a social movement and its fundamental basis. The objective is to point the conflictuous configura- tion exposed by the anti-prohibitionist movement and how are defined the demands of such political mobi- lizations. Keywords:Anti-prohibitionism. Social movements. Marijuana March. Legalization. Marijuana.

Submetido em: 30/01/2015. Revisado em: 23/04/2015. Aceito em: 05/05/2015.

1 Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB, Brasil). Integrante do Núcleo de Estudos Inter- disciplinares sobre Psicoativos (NEIP, Brasil). E-mail:. 93 Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2015.

Isabela BENTES

Introdução lismo, organizado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chia- período que se estabelece no se- pas, no México, cujos militantes de diver- gundo pós-guerra mundial identi- sos países haviam tomado conhecimento O fica três aspectos relevantes no da sua existência através da crescente rede marco internacional para a discussão so- mundial de computadores. Como conse- bre a política de drogas: durante os anos quência dessa manifestação, surgiu a Ação de 1960, a proibição de psicoativos em Global dos Povos (AGP), com o mesmo nível internacional e a formação e estrutu- traço característico de combate radical ao ração do seu mercado ilegal em nível glo- capitalismo e com ações espalhadas por bal; os anos 1970, com a declaração da vários países. chamada “guerra às drogas” com o seu ápice repressivo no mundo inteiro;e, pos- Dentre outros focos de manifestação, teriormente, em fim dos anos 1980 e início aconteceu o que ficaria conhecido posteri- dos anos 1990, com os movimentos anti- ormente como a Batalha de Seattle, no fi- proibicionistas que vieram surgindo com nal do ano de 1999, na cidade de Seattle mais intensidade, após o período ditatori- (EUA), cujos manifestantes frustraram a al no Brasil e a consolidação do Estado realização da III Conferência Ministerial democrático de direitos. da Organização Mundial do Comércio. Após este protesto ocorrido em Seattle, os Resgatando o conceito de movimentos movimentos antiglobalização começaram sociais, procurar-se-á articular a ação de- a ascender de maneira progressiva. So- sempenhada pela Marcha da Maconha, maram-se a estes os protestos em Bangkok movimento antiproibicionista brasileiro contra a Conferência das Nações Unidas que busca uma transformação legislativa sobre Comércio e Desenvolvimento perante o uso da (ou maconha), e (UNCTAD), em fevereiro de 1999; em Wa- as demandas pautadas por esta organiza- shington, em abril do mesmo ano, contra a ção, que apresentam projetos alternativos reunião do Fundo Monetário Internacio- à violência que o mercado ilegal de psico- nal; no mês de junho constataram-se ma- ativos propicia. nifestações em Bologna, contra a reunião da Organização para a Cooperação e De- Tal movimento vem na esteira de mobili- senvolvimento Econômico (OCDE); em zações de grande porte que ocorreram em Okinawa (Japão), concomitante à reunião várias partes do mundo caracterizados do G7, protestando em favor da extinção pela contestação às políticas neoliberais da dívida dos países subdesenvolvidos; globalizantes. As manifestações, que fica- em Melbourne, no mês de setembro, os ram conhecidas como movimentos anti- ativistas se mobilizaram contra a reunião globalização ou altermundistas, começa- do Fórum Econômico Mundial. E assim ram a protagonizar uma crescente oposi- seguiram as manifestações em diversas ção, que vinha acontecendo desde 1994, partes do globo. com o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e Contra o Neolibera-

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Aderindo ao “espírito de Seattle” que vi- forma, será evidenciada neste debate a nha dando o tom dos movimentos deste atual política de drogas em consonância caráter, o Fórum Social Mundial (FSM) com as práticas de criminalização da po- nasceu do bojo desses novos “movimen- breza e de que forma os movimentos e tos” e no celeiro dos grandes protestos do organizações antiproibicionistas vêm atu- fim dos anos 1990, sinalizando para um ando neste quadro sócio-político. novo paradigma das relações político- sociais, e acabou por se mesclar aos acon- A ausência de uma bibliografia sistemati- tecimentos que marcaram o nascimento zada acerca da história dos movimentos do “movimento” antiglobalização. antiproibicionistas e de suas demandas pela revisão das leis de proibição das dro- As marchas da maconha encontraram nes- gas revela a necessária e urgente produção se espaço altermundialista um possível de debates acadêmicos sobre esta questão. lócus de aglutinação de militantes, assim Muito do que se apresenta nesse texto como a realização de tais manifestações, vem de experiências e acúmulos particula- como ocorreu nos anos de 2009, no FSM res nos movimentos antiproibicionistas e ocorrido na cidade de Belém (PA), e em antimanicomiais no Brasil e articulação 2010, no FSM em Lomba Grande (região dentro destes movimentos afim de inte- da Grande Porto Alegre, localizada em grar ações diretas e finalidades políticas. Novo Hamburgo (RS) – região do fórum descentralizado). E por que não legalizar? A Marcha da Maconha no Brasil e as demandas Em outros países, a Marcha da Maconha políticas do movimento social ocorre com outras nomenclaturas, tais como World Cannabis Day, Day, J Na contramão do que vem se estabelecen- Day, Million March, Cannabis Libera- do pelos Estados acerca da política de tion Day, Global Space Odyssey. Algumas drogas, visualiza-se no cenário internacio- nações hoje já começaram a flexibilizar nal mobilizações por parte da sociedade suas políticas de proibição às drogas, em civil dos chamados movimentos antiproi- especial à maconha, como forma de com- bicionistas, que intencionam uma busca bater a violência gerada pelo mercado ile- por mudanças legislativas no que diz res- gal. Nos Estados Unidos da América, 23 peito às políticas sobre drogas. Não é pos- estados (de um total de 50) e a capital já sível ter acesso a uma bibliografia extensa regulamentaram o uso medicinal e/ou re- sobre os movimentos antiproibicionistas, creativo. Na América Latina, o Uruguai uma vez que são quase inexistentes os foi o primeiro país que regulamentou a escritos a respeito desta temática, mas produção, o comércio e o consumo da ma- uma análise empírica acerca da Marcha da conha, através da estatização de toda a Maconha no Brasil servirá para pensar cadeia produtiva da planta. Alguns países esse movimento que funciona no contra- flexibilizaram as leis de drogas a partir fluxo da lógica imposta pela chamada das políticas de descriminalização, como é “guerra às drogas” o caso da Holanda e de Portugal. Desta

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É necessário pensar, antes de qualquer É percebido, ao longo da história, que o formulação acerca de organizações políti- discurso e as manifestações políticas a cas que lutam por uma mudança no que respeito das drogas e de um abrandamen- diz respeito ao trato das drogas, que todo to do tratamento jurídico-terapêutico era e qualquer movimento antiproibicionista representado por parcelas da população tem sua estrutura de ação baseada em três ligadas ao movimento antimanicomial e a eixos, como afirma Alonso (2003): ativistas que discutiam a reforma psiquiá- trica e o fim modelos asilares, que, até en- Grupos cuyo fin declarado es la legali- tão, se apresentavam como única alterna- zación de las drogas, otros formados por tiva de atenção à saúde mental. A refun- personas que se sienten directamente dação do paradigma da saúde mental perjudicadas por la prohibición, y los apresentou profundas transformações no primeros planteamientos alternativos concretos y apoyados por expertos de campo das compreensões acerca do trata- indudable prestigio. Este hecho, junto mento dado ao transtorno mental e aos con la existencia de unos niveles de con- portadores de distúrbios psíquicos, lo- sumo de drogas ilícitas – especialmente grando sua primeira conquista com a lei hachís- muy elevados y con la relativa de reforma psiquiátrica (Lei nº normalización que se da en ciertos luga- 10.216/2001). No entanto, a discussão res, al menos en los ambientes juveniles, acerca do consumo de drogas não apre- en casi todo lo relativo al uso de drogas, sentou os mesmos resultados, não só apro- favorece que se vaya creando un estado fundando mais ainda o modelo proibicio- de opinión creciente a favor de la des- nista hegemônico, mas utilizando o dis- penalización, sobre todo de las entonces curso da saúde pública como instrumento llamadas drogas blandas, es decir, el can- nabis (ALONSO, 2003, p.86). de manutenção desta ordem.

No Brasil, começou-se a organizar, a partir O final dos anos 1990 e os anos 2000 foram de então, o que hoje é denominada de indicados como aqueles em que aparece- Marcha da Maconha. Esta organização ram as manifestações organizadas em não hierárquica conta um comitê central, grupos, coletivos e/ou associações, com o que tem a função de atualizar as informa- objetivo de pressionar o Estado nacional ções contidas no sítio da Marcha da Ma- para se pensar uma alternativa ao modelo conha, assim como organizar o fórum de de combate de guerra às drogas. A pro- discussão deste meio virtual. Tais infor- posta veio seguida do discurso da desarti- mações são provenientes de contribuições culação da violência gerada por um mer- a partir de uma rede virtual que congrega cado ilegal a partir da sua regulamenta- vários coletivos, instituições e indivíduos ção, que se descriminalizasse usuários e que militam pela legalização, regulação e varejistas do mercado dos psicoativos tor- produção da maconha ou das chamadas nados ilícitos e, igualmente, pensasse uma drogas brandas. A posição acerca da lega- estratégia de redução de danos para usuá- lização de outras drogas, como a cocaína, rios em situação de abuso. a heroína, o LSD etc., não é uniforme pe- rante todos os membros, sendo a postura

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assumida por esse movimento apenas tra- Rio de Janeiro, criando cartazes e panfle- tar dos assuntos que envolvem a temática tos e divulgando, de forma caseira, na da cannabis. Apesar deste posicionamento, praia de Ipanema, reunindo em torno de muitas marchas da maconha vêm ocor- 200 pessoas2. Esta manifestação, que já rendo com motes pelo fim da guerra às vem acontecendo em mais de 490 cidades drogas, abrangendo o debate acerca da no mundo inteiro desde 1999, começando necessidade de regulamenta o mercado de em Nova York, trouxe a experiência para todas as substâncias tornadas ilícitas. Co- o Brasil incitando a criação de organiza- mo nota esclarecedora existente na página ções e coletivos que começaram a se mobi- virtual da Marcha da Maconha, afirma-se lizar para expandir o movimento em prol que a intenção deste movimento antiproi- da legalização das drogas. bicionista é: Fortalecendo o movimento antiproibicio- nista no país, em 2004 o presidente do Criar espaços onde indivíduos e insti- tuições interessadas em debater a ques- Centro Brasileiro de Política de Drogas – tão possam se articular e dialogar; Esti- Psicotropicus, Luis Paulo Guanabara, or- mular reformas nas Leis e Políticas Pú- ganizou a Marcha da Maconha em 2004, blicas sobre a maconha e seus diversos na cidade do Rio de Janeiro, ampliando o usos; Ajudar a criar contextos sociais, fortalecimento desta cidade como foco políticos e culturais onde todos os cida- irradiador do combate à guerra às drogas dãos brasileiros possam se manifestar de como política pública adotada pelo gover- forma livre e democrática a respeito das no brasileiro. políticas e leis sobre drogas; Exigir for- mas de elaboração e aplicação dessas Em 2005, a Psicotropicus associou-se com políticas e leis que sejam mais transpa- o Movimento Nacional pela Legalização rente, justas, eficazes e pragmáticas, res- peitando a cidadania e os Direitos Hu- das Drogas (MNLD) e realizaram uma manos. O Coletivo Marcha da Maconha passeata, ainda na cidade do Rio de Janei- Brasil reafirma que suas atividades não ro, pela legalização de psicoativos torna- têm a intenção de fazer apologia à ma- dos ilícitos, ampliando a discussão acerca conha ou ao seu uso, nem incentivar do assunto em questão, não tratando uni- qualquer tipo de atividade criminosa. camente das problemáticas que envolvem As atividades do Coletivo respeitam não apenas a maconha. Em 2006, o MNLD as- só o direito à livre manifestação de idei- sumiu o papel de organizar tal discussão as e opiniões, mas também os limites le- nesta cidade, levando em torno de 150 gais desse e de outros direitos (MAR- ativistas às ruas. CHA DA MACONHA, [2015]).

Em 2007, a cidade do Rio de Janeiro abri- Desta forma, a Marcha da Maconha no gou dois movimentos que pautavam a Brasil começou a externar suas demandas publicamente a partir do ano de 2002, or- 2 Tais informações foram obtidas através de entre- ganizada por uma portuguesa (e que não vistas realizadas com o ativista e atual vereador da há registros de seu nome), na cidade do cidade do Rio de Janeiro, Renato Cinco (PSOL), em fevereiro de 2009. 97 Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2015. Isabela BENTES

discussão sobre as drogas: um organizado Em 2009, ocorreu nas cidades de Belo Ho- pelo MNLD, levando o inexpressivo nú- rizonte (MG), Brasília (DF), Curitiba (PR), mero de 30 pessoas às ruas, e outro orga- Fortaleza (CE), Florianópolis (SC), Goiânia nizado pelo Growroom (grupo criado a (GO), João Pessoa (PB), Juiz de Fora (MG), partir do fórum de discussão que defende Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Ja- a bandeira do cultivo caseiro de cannabis), neiro (RJ) e São Paulo (SP), sendo repri- denominado este último de Marcha da mida nas cidades de Americana (SP), São Maconha, levando em torno de 400 pesso- Paulo (SP), e Salvador (BA). Nesta última, as às ruas. Depois disso, dissolveu-se o a Marcha conseguiu sair, após os trâmites MNLD e seus integrantes se unificaram burocráticos do poder judiciário, em de- em torno da Marcha da Maconha, trans- zembro do mesmo ano. No FSM de 2009, a formando-a em um movimento de cunho Marcha ocorreu na cidade de Belém (PA), nacional. Na cidade de Porto Alegre (RS) a sendo organizada por Renato Cinco, um Marcha da Maconha também se organizou dos organizadores do movimento na ci- em 2007, tendo sido reprimida e, como dade do Rio de Janeiro, e contou com o solução para esta medida, impetrou um número de 2000 pessoas militando na cau- habeas corpus preventivo, conseguindo rea- sa. lizar a manifestação posteriormente. Em 2010, a Marcha da Maconha aconteceu Em 2008, o movimento da Marcha da Ma- em Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), conha ocorreu nas cidades de Cuiabá Fortaleza (CE), Florianópolis (SC), Natal (MT), Curitiba (PR), Belo Horizonte (MG), (RN), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio Brasília (DF), Fortaleza (CE), Porto Alegre de Janeiro (RJ) e Vitória (ES), tendo sido (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Sal- reprimida nas cidades de Salvador (BA), vador (BA) e São Paulo (SP). Dentre todas Fortaleza (CE) e São Paulo (SP), sendo esta essas cidades, em João Pessoa (PB) e no feita pela liberdade de expressão após os Rio de Janeiro (RJ) as marchas foram re- confiscos de cartazes e material conside- primidas pela polícia com a justificativa rados como apologia ao crime. Na 10ª edi- de apologia ao crime e/ou incitação ao uso ção do FSM também ocorreu a Marcha da de psicoativos. Diante disso, nas duas ci- Maconha, em janeiro de 2010, organizada dades, o movimento tomou diferentes es- pelo coletivo da Marcha da Maconha do colhas perante a decisão judicial: em João Rio de Janeiro em parceria com o coletivo Pessoa, realizou uma manifestação pela Princípio Ativo, de Porto Alegre. liberdade de expressão e no Rio de Janei- A Marcha da Maconha é composta por ro, impetrou um habeas corpus preventivo diversos indivíduos e coletivos que, em para poder ir às ruas posteriormente. Esta alguns casos, fazem uma discussão mais medida preventiva acabou sendo adotada ampla sobre drogas, não se restringindo pelos coletivos e organizações em outras exclusivamente à maconha, como é o caso cidades para que não houvesse risco con- do Coletivo Desentorpecendo a Razão creto de repressão por parte da polícia (DAR), de São Paulo, o Coletivo Princípio desde a repressão que houve em Porto Ativo, de Porto Alegre, e o Movimento Alegre (RS), no ano de 2007.

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pela Legalização da Maconha (MLM), no cia (SBPC) e nas edições do FSMem 2009, Rio de Janeiro. ocorrida em Belém (PA), e em 2010, em Novo Hamburgo (RS), acabou adquirindo No quadro mais geral, na América Latina, grande visibilidade dentro destes eventos, visualizam-se organizações que são seme- uma vez que a discussão não gerava re- lhantes à Marcha da Maconha em suas pressão por parte das polícias locais. Isso demandas: na Colômbia há o Las plantas decorre do fato de que o espaço democrá- no son como laspintan e o Trinchera Ganja tico da troca de ideias, experiências e dis- Cali, na Argentina há a Asociacion para La cussões políticas proporcionado por estes Reducción Del daño por Drogas de Abuso, no ambientes impera a noção da flexibiliza- México há o Colectivo por una Politica Inte- ção da democracia em respeitar tais espa- gral Hacialas Drogas, para citar algumas ços. A partir de então, as marchas começa- destas organizações. Conforme já mencio- ram a se proliferar em diversas cidades nado, devido à quase inexistente biblio- brasileiras, inclusive fora das capitais, grafia acerca dos movimentos antiproibi- compreendendo a dimensão que se ex- cionistas, torna-se problemático descrever pande da necessidade de repensar a polí- de forma mais aprofundada a forma de tica proibicionista sobre as drogas. como estes coletivos, instituições, ONGs etc., se organizam no que diz respeito à O ano de 2008 foi marcado pelas primeiras ação coletiva concreta de cada um deles. repressões à Marcha da Maconha no Bra- sil, nas cidades já citadas anteriormente. No Brasil, os coletivos que organizam as Como afirma Fon Filho (2008), estamos em marchas em suas respectivas cidades de- face de um processo de combate à de- sempenham um papel de conscientização manda, organização e luta populares, que política, promovendo o debate em socie- se manifesta por diferentes formas de en- dade com questões que envolvem a atual frentamento: estigmatização, restrição, política de drogas em nível global, o con- repressão e criminalização, um conjunto texto internacional no que diz respeito aos que chamaremos de repressão – no senti- psicoativos, além de pensar uma estraté- do empregado tradicionalmente – dos atos gia de redução de danos mais eficaz. Essa dos agentes e movimentos sociais. militância agrega ativistas universitários, professores acadêmicos, profissionais da Muitas das cidades que realizavam as área médica, jurídica e pertencentes às marchas percorriam trâmites burocráticos ciências sociais, e grande parte são pessoas que implicava no acordo do Termo de de classe média que oscilam entre 21 a 35 Ajustamento de Conduta ou na impetra- anos de idade. ção de habeas corpus para que a justiça lo- cal autorizasse a realização das marchas A Marcha da Maconha, nos momentos em da maconha. As alegações dos juízes que que ocorreu dentro de outros encontros, liberavam a realização das marchas atra- como, por exemplo, ocorreu em Natal vés da impetração de habeas corpus justifi- (RN) em 2010, durante a Reunião da Soci- cavam seus fundamentos através dos edade Brasileira para o Progresso da Ciên- princípios constitucionais e da necessida-

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de de garanti-los em um Estado democrá- zação de outra marcha, agora denominada tico de direito. As razões, nesse sentido Marcha da Liberdade, conduzida por cole- referem-se aos seguintes artigos da Cons- tivos locais, com atenção especial à centra- tituição Federal (1988): lidade da atuação do Coletivo Antiproibi- cionista Desentorpecendo a Razão (DAR). Tal marcha ocorreu em várias cidades do Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga- Brasil, em solidariedade às vítimas da rantindo-se aos brasileiros e aos estran- ação policialesca, denunciando a censura geiros residentes no País a inviolabili- existente no debate sobre as alternativas à dade do direito à vida, à liberdade, à política proibicionista das drogas. Este igualdade, à segurança e à propriedade, ano se caracterizou, até então, como o ápi- nos termos seguintes: ce no número de cidades que estavam IV – é livre a manifestação do pensa- compondo o movimento pela legalização mento, sendo vedado o anonimato; da maconha antes da deliberação do Su- [...] premo Tribunal Federal (STF). Naquele IX – é livre a expressão da atividade in- momento, 23 cidades estavam inseridas telectual, artística, científica e de comu- no calendário de lutas durante o mês nicação, independentemente de censura ou licença; maio: Belém (PA), Rio Branco (AC), Natal XVI – todos podem reunir-se pacifica- (RN), Vitória (ES), Porto Alegre (RS), Curi- mente, sem armas, em locais abertos ao tiba (PR), Rio de Janeiro (RJ), Rio das Os- público, independentemente de autori- tras (RJ), Niterói (RJ), Recife (PE), Floria- zação, desde que não frustrem outra nópolis (SC) e Juiz de Fora (MG). Já Brasí- reunião anteriormente convocada para o lia (DF), Belo Horizonte (MG), Atibaia mesmo local, sendo apenas exigido pré- (SP), Jundiaí (SP) e Campinas (SP) tiveram vio aviso à autoridade competente suas marchas reprimidas, com o estopim (BRASIL, 1988, não paginação). do conflito na cidade de São Paulo (SP) entre os manifestantes e a polícia. A pres- Desta forma, a criminalização dos movi- são popular gerada no conflito que não se mentos sociais, no caso presente da Mar- registrava há, pelo menos, 5 anos no país, cha da Maconha, constituía uma ilegali- fez com que o STF tornasse legal toda e dade perante a Constituição Brasileira, de qualquer manifestação política acerca das acordo com os artigos supracitados. Isto drogas, deliberando que estas não poderi- denotava uma inadequação perante um am ser entendidas como apologia ao crime Estado de direitos que se proclama demo- e legalizando, desta forma, o debate de- crático e critica toda censura existente, mocrático na sociedade. Campos (2013) enquanto a manifestação de organizações explica que tal proibição das marchas, a políticas tem sua expressão política silen- partir da atual lei sobre drogas (Lei nº ciada. Entretanto, o ano de 2011 foi decisi- 11.343, de 23 de Agosto de 2006), que diz vo quando uma das maiores repressões à que Marcha da Maconha ocorrida na cidade [...] adquirir, guardar, tiver em depósito, de São Paulo (SP), que foi alvo da ação transportar ou trouxer consigo, para consu- brutal da polícia militar, resultou na reali- mo pessoal qualquer tipo de droga ilícita

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(artigo 28 da lei supracitada), é a base lada como um movimento social. Seu para o argumento da proibição da reali- posicionamento foi acompanhado una- zação das marchas em favor da legaliza- nimemente pelos outros Ministros, que ção da maconha constituiria crime apo- fizeram declarações no mesmo sentido logético, já que, de acordo também com ao darem seus pareceres no processo a legislação nacional, o Código Penal (CAMPOS, 2013, p. 52-53). brasileiro prevê como crime, no Artigo 287, Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Os que A primeira conquista de tal movimento se proíbem as Marchas da Maconha conside- refere à sua legalidade do debate, que gra- ram que parte das frases escritas em car- ças às manifestações, às pressões popula- tazes, palavras de ordem entoadas pelos res nas ruas, assim como as demandas manifestantes, figuras, músicas e outros virtuais que criaram um cenário de apelo aspectos presentes numa manifestação na própria mídia, gerou resultados outros desse tipo constituiriam “apologia” e, em relação à política proibicionista. Em por isso, não devem ser liberadas pelos janeiro de 2015, a Agência Nacional de poderes públicos. Vigilância Sanitária (ANVISA) – agência

reguladora que insere em uma lista de- […] No dia 15 de junho de 2011 os mi- nistros do Superior Tribunal Federal terminadas substâncias que se tornam, ou julgaram a Arguição de Descumprimen- não, ilícitas – autorizou a mportação do to de Preceito Fundamental (ADPF) 187 canabidiol (CBD), um dos componentes e, no dia 23 de novembro, votaram a químicos presentes na cannabis, com fina- Ação Direta de Inconstitucionalidade lidades medicinais. Apesar de tal con- (ADI) 4274 que versavam sobre a legiti- quista, as restrições econômicas da impor- midade da realização de tais atos públi- tação tornam a substância inacessível para cos, considerando que as contradições boa parte da população, assim como o uso dos vereditos estaduais do país mereci- tem inúmeras restrições, como, por exem- am um esclarecimento sobre a aplicação plo: a faixa etária máxima permitida para das leis brasileiras nesse caso específico. consumo é de 18 anos, mediante autoriza- O ministro-relator do processo, Celso de Mello, proferiu seu parecer declarando ção dos responsáveis. que a Marcha da Maconha é a “[...] ex- pressão concreta do exercício legítimo Um elemento importante a se observar da liberdade de reunião [...]”, e ainda, nesse cenário de regulamentação restrita que a “[...] marcha da maconha é um do uso medicinal é que a estrutura de movimento social espontâneo que rei- guerra às drogas, assim como da proibição vindica, por meio da livre manifestação de toda a cadeia produtiva da maconha, é do pensamento, a possibilidade da dis- intocada. A estrutura permanece intacta, cussão democrática do modelo proibici- porém com o diferencial de que a indús- onista (do consumo de drogas) e dos tria farmacêutica, a partir de então, já co- efeitos que (esse modelo) produziu em meça a patentear nomes e medicamentos à termos de incremento da violência [...]”, considerando ele próprio a legitimidade base de CBD e deter o monopólio da pro- das manifestações e seu caráter repre- dução e do comércio da maconha, deixan- sentativo de uma demanda social articu- do na invisibilidade o debate sobre a lega-

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lização da maconha, do cultivo para uso sobre temas e problemas em situações pessoal, da criação de cooperativas de cul- de: conflitos, litígios e disputas. As ações tivo, dentre outros instrumentos permiti- desenvolvem um processo social e polí- dos apenas através da legalização e regu- tico-cultural que cria uma identidade co- letiva ao movimento, a partir de interes- lamentação de tal substância. ses em comum. Esta identidade decorre

da força do princípio da solidariedade e Marcha da Maconha como movimento é construída a partir da base referencial social: entre pautas e demandas, o de valores culturais e políticos comparti- discurso contra a guerra lhados pelo grupo (GOHN, 1995, p. 44).

A teoria acerca dos novos movimentos sociais ainda não chegou a um consenso Os chamados “novos movimentos soci- homogêneo sobre a peculiaridade da ga- ais”, que surgem a partir do segundo pós- ma de manifestações que vêm ocorrendo guerra, estruturam a sua forma de ação a na sociedade desde os anos 1970. Como partir de questões que envolvem a identi- aponta Chazel (1995), existe um duplo dade e que se afastam das mobilizações problema de sua delimitação empírica e que se desenvolviam a partir da inserção de sua identificação analítica. Desta forma, dos sujeitos em uma mesma condição so- para que seja possível pensar o objeto em cial e econômica. Com isso, estas novas questão como um movimento social, já formas de organização não têm como me- que se apresenta enquanto tal e é portador ta a construção de um projeto contra he- de uma multiplicidade de identidades, gemônico anticapitalista, de uma trans- demandas e discursos, serão articuladas formação radical na estrutura da socieda- diversas perspectivas no que diz respeito de capitalista. Durham (2004) caracteriza a estas formulações, de modo a pensá-lo essa nova configuração apontando que: enquanto um agente coletivo que discute a Os movimentos articulam-se (em dife- atual política de drogas e as mudanças rentes níveis e amplitude diversa) em que implicam nesta temática. função de uma ou várias reivindicações coletivas, definidas a partir da percepção Para usar um parâmetro mais geral para de carências comuns (desde a ausência de prosseguir na discussão, trazemos à luz asfalto até o sentimento de um trata- do debate a formulação acerca do que são mento discriminatório no nível das rela- movimentos sociais construída por Gohn ções sociais em seu conjunto). É a carên- (1995), na qual afirma que estes são: cia que define a coletividade possível, dentro da qual se constitui a coletivida- de efetiva dos participantes do movi- [...] ações coletivas de caráter sociopolí- mento. Como as carências podem ser tico, construídas por atores sociais per- definidas de diferentes modos em dife- tencentes a diferentes classes e camadas rentes níveis, os movimentos sociais sociais. Eles politizam suas demandas e constituem formas muito flexíveis de criam um campo político de força social mobilização, que operam “cortes” muito na sociedade civil. Suas ações estrutu- diversos uns dos outros, definindo cole- ram-se a partir de repertórios criados

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tividades de tipo muito diferente (DU- de força social é forjado através de um RHAM, 2004, p. 287). panorama conflitivo estabelecido entre o movimento social e o Estado e a sua di- Desta forma, cabe trazer a colocação de mensão é expressa na manutenção da po- Evers (1989), que pensa os movimentos lítica de proibição do comércio, produção sociais como grupos que apresentam per- e consumo de substâncias psicoativas tor- fis organizativos próprios, uma inserção nadas ilícitas. O desenvolvimento deste específica na tessitura social e articulações mercado ilícito perante o marco jurídico e particulares com o arcabouço político- as políticas de enfrentamento e combate institucional. Em linhas gerais, cabe refle- ao tráfico de drogas incidem em uma tir na perspectiva de Velho (1985), que já questão posta pelo movimento social que desde de 1980, afirma a necessidade do aqui chamo de racial-classista. Essa condi- ção recai penalmente sobre aquele a quem debate sobre a questão, expondo que: a identidade do sujeito criminoso é identi- O primeiro fato sociológico e antropoló- ficada imediatamente. Tal identificação é gico relevante a ser considerado, pra associada e atribuída indiscriminadamen- mim, pelo menos, é a criação ou a conso- te aos pertencentes das camadas sociais lidação de um espaço para se discutir o mais baixas que, em sua maioria, são ne- caso maconha, o que representa eviden- gros/as e pobres, condicionando portanto temente uma abertura muito grande em estes como os responsáveis pelo tráfico de relação a uma série de outros assuntos drogas. Entendendo isso como uma cri- que interessam ao nosso cotidiano. Não minalização dos que se situam na condi- é preciso dizer que esse tipo de assunto era tabu não só para as pessoas, diga- ção de pobreza, essa situação é sempre mos, assim mais conservadoras, mas caracterizada por medidas de coerção por também era visto com muita desconfi- parte do sistema penal brasileiro. Essa ança por pessoas progressistas. As coi- conformação é melhor compreendida sas que tocam o cotidiano das pessoas quando se percebe, em pesquisa divulga- não eram vistas como dignas de serem da pelo Ministério da Justiça (BOITEUX, debatidas (VELHO, 1985, p. 43). 2009), que os condenados por tráfico de drogas são responsáveis pelo segundo Superando a perspectiva de Velho no sen- contingente do sistema carcerário brasilei- tido da criação de um espaço para se dis- ro, com quase 70 mil pessoas, ficando cutir sobre a questão da maconha, parte- atrás apenas da estatística do crime de se, portanto, pensar as demandas do mo- roubo qualificado, com 79 mil presos. Na vimento da Marcha da Maconha como referida pesquisa, concluiu-se que os indi- fundantes da sua organização: movimento víduos presos por tráfico na cidade do Rio antiproibicionista que luta pela regula- de Janeiro, por exemplo, em sua maioria, mentação e legalização de toda a cadeia eram negros, sem associação com o crime produtiva desta substância tornada ilícita. organizado, estavam desarmados e porta- vam menos de 100g de maconha. Neste sentido, relacionando com a pers- pectiva de Gohn (1995), o campo político 103 Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2015. Isabela BENTES

Exemplos outros da situação da criminali- da precarização do mundo do trabalho, zação da pobreza, ou da ditadura sobre os que forjam uma população carente de pobres (WACQUANT, 2001), e despro- acessos e garantias de direitos, cenário porcionalidade da lei de drogas são per- caracterizado fundamentalmente pela ex- cebidos nas ocupações de territórios de pressão neoliberal em contexto de maxi- periferia por parte das forças armadas e mização do Estado penal e minimização da polícia militar; o assassinato do pedrei- do Estado de bem-estar social. ro Amarildo de Souza por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Uma segunda dimensão conflitante posta Rocinha, pela justificativa de ter envolvi- pelo movimento da Marcha da Maconha mento com tráfico de drogas, e a inimpu- diz respeito à questão mercadológica. No tabilidade da família Perrela frente à apre- aspecto da ilegalidade, o mercado de dro- ensão de meia tonelada de pasta base de gas ilícitas, associado diretamente ao co- cocaína, com transporte e fazenda onde mércio de armas, e a corrupção nos apare- foram apreendidos de sua propriedade, lhos do Estado, produzem uma zona la- deixa tal desproporcionalidade bastante tente entre os comerciantes do varejo das evidente. substâncias psicoativas tornadas ilícitas, grandes traficantes, usuários e aparelho Essa explosão carcerária brasileira tem repressor estatal, que os une em uma ca- ligação direta com a ascensão das políticas deia reativa de violência. Desta forma, a neoliberais no Brasil. Isto se verifica diante reivindicação pelos movimentos sociais do significativo destaque na mudança do antiproibicionistasda inserção das subs- cenário político nacional, uma vez que há tâncias psicoativas em questão na legali- uma transformação do Estado previdên- dade aponta como solução para diminui- cia, que, hoje, identifica-se como um Esta- ção considerável das taxas de violência, do penitência, sendo que este último, co- desafogamento do sistema penitenciário, mo bem aponta Wacquant (2001), redução dos esquemas de corrupção e la- vagens de dinheiro – na maioria dos casos movimentados dos cofres públicos, de- [...] se destina aos miseráveis, aos inúteis e aos insubordinados à ordem econômi- monstrando que a separação total do legal ca e étnica que se segue ao abandono do para o ilegal é inexistente –, proteção aos compromisso fordista-keynesiano e à grupos de risco da droga, melhoria na crise do gueto. Volta-se para aqueles qualidade das substâncias (protegendo o que compõem o sub-proletariado negro usuário de riscos com drogas adulteradas das grandes cidades, as frações desqua- permitidas pelo mercado ilegal) e, em lificadas da classe operária, aos que re- saudação aos preceitos da sociedade libe- cusam o trabalho mal remunerado e se ral, as liberdades individuais garantidas voltam para a economia informal da pela lei suprema da nação. rua, cujo carro-chefe é o tráfico de dro-

gas (WACQUANT, 2001, p. 136). Por fim, a terceira dimensão de conflito

atende aos interesses do chamado “lobby A criminalização da pobreza é consequên- da proibição”, composto fundamental- cia direta do regime de desestruturação e 104 Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2015. "Ponham as cartas na mesa e discutam essas leis"

mente pelas classes médicas e jurídicas, Na contramão de tal hegemonia proibici- jornalistas e a mídia hegemônica. Tal atu- onista, existem os que vêm apresentando ação destas instâncias adota o consenso no cenário internacional,a partir do fim acerca da manutenção da proibição das dos anos 1980 e início dos anos 1990, a drogas como única política possível a se reivindicação da legalidade destas subs- tratar a questão dos psicoativos tornados tâncias psicoativas como forma de comba- ilícitos. te ao tráfico de drogas, de diminuição da violência armada nas favelas, da não cri- A frente que constitui o motor das mu- minalização do usuário de drogas, de danças e das demandas dos movimentos maior assistência aos indivíduos em situa- sociais, caracterizada de maneira esque- ção de abuso, de criação de leis que regu- mática, define o cenário e a configuração lamentam a produção, a distribuição e uso conflitiva que forja o horizonte de atuação de psicoativos. O exemplo deste movi- política do movimento social definido pe- mento no Brasil, que ocorre em mais de la filosofia antiproibicionista, expressado 490 cidades do mundo inteiro, é a Marcha nas ruas através da Marcha da Maconha. da Maconha.

Conclusão A Marcha da Maconha vem conseguindo ir às ruas levar a manifestação de uma A ilegalidade das drogas, medida expan- política humanitária no trato das drogas sionista liderada pelos EUA e adotada por depois de um intenso processo de crimi- outros Estados nações, denota uma tenta- nalização dos movimentos sociais. A lega- tiva de manter um quadro de delinquên- lização do debate sobre drogas no Brasil, cia, exclusão e desigualdade social no pa- permitido apenas em 2011 pelo STF, de- ís, além de sustentar um mercado parale- monstra os limites e a resistência a se pen- lo, considerado ilegal pelo âmbito jurídico, sar um modelo alternativo à violência ge- do tráfico de drogas. Para manter esta si- rada pelo mercado ilegal das drogas tor- tuação sob o controle das forças policiales- nadas ilícitas. No entanto cabe trazer al- cas nacionais, os aparelhos ideológicos guns apontamentos estratégicos acerca formulam no imaginário social que o au- das demandas apontadas pela Marcha da mento do contingente repressor legitima- Maconha, que ficam para problematizar o do pelo Estado é a saída mais eficaz no movimento social e suas estratégias de combate ao tráfico de drogas, assim como atuação. Um deles é como a cocaína, mai- a ampliação do sistema carcerário que co- or responsável pelos lucros obtidos do loca o Brasil na terceira posição de país tráfico de drogas que movimenta bilhões que mais encarcera. A caracterização des- de dólares, não entrou em cena protagoni- se cenário é resultante de uma política de zando o debate sobre a legalização? Por- tolerância zero da lei de drogas, que visa o que apenas a maconha é tomada nessa controle social de negros/as, pobres e mo- pauta central? Isso não traz consequências radores da periferia, como um instrumen- restritivas ao debate mais amplo sobre to capaz de forjar um cordão criminaliza- drogas e a necessidade da sua regulamen- dor de tal população. tação?

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