DOUTORAMENTO FILOSOFIA

De sufficientia praedicamentorum: suficiência e distinção das categorias na escolástica medieval Volume 1

Mário João Rosas Rebelo Correia

D 2020

Mário João Rosas Rebelo Correia

De sufficientia praedicamentorum: suficiência e distinção das categorias na escolástica medieval

Volume 1

Tese apresentada ao Programa doutoral em Filosofia Orientador: Prof. Doutor José Francisco Preto Meirinhos

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Novembro de 2020

De sufficientia praedicamentorum: suficiência e distinção das

categorias na escolástica medieval

Mário João Rosas Rebelo Correia

Tese apresentada ao Programa doutoral em Filosofia Orientador: Prof. Doutor José Francisco Preto Meirinhos

Membros do Júri

Presidente:

Vogais:

Sumário

Declaração de honra ...... 6 Agradecimentos ...... 7 Resumo ...... 9 Abstract ...... 10 Índice de figuras ...... 11 Lista de siglas ...... 12 Introdução ...... 13 Capítulo 1. Antecedentes...... 26 1.1. Os comentadores neoplatónicos ...... 26 1.2. A Trindade ...... 41 1.3. Reconfigurações e preenchimento de lacunas: as Categoriae decem e o Liber sex principiorum ...... 55 Capítulo 2. Século XIII: o século das vias divisivas ...... 69 2.1. As primeiras sufficientiae ...... 72 2.1.1. O Compendium examinatorium parisiense (c. 1230/40) ...... 72 2.1.2. Roberto Kilwardby (c. 1215 - 1279) ...... 79 2.1.3. Nicolau de Paris (? - 1263) ...... 87 2.2. Modi essendi e modi praedicandi ...... 94 2.2.1. Alberto Magno (c. 1200 - 1280) ...... 94 2.2.2. Tomás de Aquino (1224/1225 - 1274) ...... 105 Capítulo 3. Continuidade e rutura ...... 114 3.1. Continuidade ...... 117 3.1.1. Pedro de Alvérnia (? – 1304) ...... 117 3.1.2. Simão de Faversham (c. 1260 - 1306) ...... 122 3.1.3. Raul, o Bretão (c. 1270 – 1320/1321) ...... 130 3.2. Rutura ...... 141 3.2.1. Henrique de Gante (c. 1217/1223? – 1293) ...... 141 3.2.2. Teodorico de Freiberga (c. 1250 - 1310) ...... 155 3.2.3. Pedro de João Olivi (1247/1248 - 1298) ...... 167 3.2.4. João Duns Escoto (1265/1266 - 1308) ...... 171 4

3.3. Excurso: As categorias nos Tractatus (ou Summulae logicales) de um certo Pedro Hispano ...... 179 Capítulo 4. Século XIV: intencionalidade e distinção ...... 183 4.1. Conformitas, formalitas ou similitudo ...... 188 4.1.1. Herveu de Nédellec (? - 1323) ...... 188 4.1.2. Pedro Auriol (c. 1280? - 1322) ...... 204 4.1.3. Pedro de Tomás (? - 1340) ...... 226 4.1.4. Guilherme de Ockham (c. 1287/1288 - 1347) ...... 238 4.2. Respostas à tendência reducionista ...... 254 4.2.1. Gualter Burley (c. 1275 – 1344) ...... 254 4.2.2. Gualter Chatton (c. 1290 – 1343/4) ...... 260 4.2.3. Gregório de Rimini (c. 1300? – 1358) ...... 264 4.2.4. João Buridano (1292 – 1363 [ou 1358/62]) ...... 269 4.2.5. Brás de Parma (1350/4 – 1416) ...... 276 Considerações finais ...... 283 Referências bibliográficas ...... 289 1. Fontes ...... 289 1.1. Manuscritos e edições antigas ...... 289 1.2. Edições críticas e outras edições modernas ...... 290 2. Estudos ...... 297

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Declaração de honra

Declaro que o presente trabalho é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto- plágio constitui um ilícito académico.

Mário João Rosas Rebelo Correia Porto, 23 de novembro de 2020

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Agradecimentos

Foram muitas as pessoas que me ajudaram ao longo destes quatro anos de trabalho. Mas devo começar por agradecer à minha querida mulher, Teresinha, por ter abdicado de tanto, com toda a gratuidade do mundo, para que eu pudesse ter o tempo e as condições para levar este trabalho até ao fim. Perante o desafio de mudar de vida e de pele tantas vezes em tão pouco tempo, em especial neste último ano, com a vinda maravilhosa dos nossos príncipes, Joaquim e Vasco, foste o pilar e a constância que só o amor pode dar. Gostaria de deixar uma palavra muito especial de agradecimento infinito ao meu orientador, professor José Meirinhos, que não é apenas um grande académico. Muito mais do que isso, é a generosidade e a hospitalidade em pessoa para todos aqueles que têm a sorte de se cruzar com ele. Queria agradecer aos meus pais, pela vida que me deram e por tudo o que eu nem imagino que lhes devo. Esta tese não estaria tão apresentável se não tivesse passado pelo implacável crivo de Margarida Correia, minha mãe. Agradeço aos meus sogros por nos terem acolhido em casa num momento tão importante das nossas vidas. À minha irmã, Guida, e ao Ricardo: o tempo que despenderam em móveis, candeeiros, estantes, foi para mim tempo precioso de estudo e escrita. Também queria dedicar este trabalho aos meus colegas e ex-colegas. Ao Vasco Castro, o Matador de Lendas, que vai salvar a consciência das garras do psicologismo, pelas longas conversas, tardes de estudo, jantares, mas sobretudo, por ser o mais honrado e leal amigo. Ao Hugo Calhim Cristóvão, pelo exemplo maior de liberdade, por me desviar dos meus sonos bafientos e me espicaçar a ser mais. Tiro o chapéu, mil vezes. À Carlota Salgadinho Ferreira, rainha do Atlântico, que deixou um grande vazio de saudade no Porto. Este patife esperto tem o privilégio e o enorme prazer de te ver desabrochar. Aos companheiros diários do GFM, um monumental obrigado. Ao João Rebalde, o verdadeiro sábio, por quem tenho uma grande admiração e a quem tenho a sorte de poder chamar amigo. À Celia López, que tanta falta nos faz por aqui. Ao Vítor Guerreiro, o nosso bardo, pelas partidas de gamão. Ao Dirk Schmidt, que já é mais português do que 7 muitos portugueses. À Patrícia Calvário, cuja liberdade de espírito é para mim exemplar. À Joana Gomes, com um abraço de Dom Brilhante, ao Michel Kabalan, ao José Higuera, à Vera Rodrigues, à Eleonora Lombardo, à Ana Patrícia Ferreira, à Maria Pinho, por tantos almoços, conversas diárias e partilha de alegrias e tristezas. Aos meus estimados companheiros das pausas do café e do cigarro. À Mafalda Sofia Gomes, querida amiga, e ao José Carlos Teixeira, o mestre, um danke schön! Um grande aus bei mit nach seit von zu! Ao melómano Raul Vasques, cáustico e genial, que um dia ainda vai levar a vida a sério. Aos professores que me formaram e confiaram em mim. Estarei eternamente grato à professora Ana Paula Quintela – que saudades das suas aulas de latim –, e à professora Paula Oliveira e Silva, que me introduziu neste incrível mundo dos manuscritos e me fez crescer, apostando em mim, com toda a minha inexperiência. Também devo uma palavra de agradecimento ao professor Pietro Bassiano Rossi, que tão bem me acolheu em Turim; ao Tommaso Piazza, que me guiou por Pavia; ao professor Jesus Conill Sancho, pelo acolhimento em Valência; a Jeffrey Witt, que me levou a repensar o que é um texto; a Heine Hansen e a Claus A. Andersen, pela frutuosa partilha de textos e ideias.

Por fim, devo estar grato às instituições que me deram as possibilidades materiais para poder levar avante este trabalho. Ele só foi possível graças a duas bolsas. Nos primeiros meses das minhas pesquisas, uma bolsa de investigação no âmbito do Projecto FCT “Edição Crítica e Estudo das Obras Atribuídas a Petrus Hispanus – 1” (Ref. FCT: PTDC/MHC-FIL/0216/2014); nos últimos quatro anos, a bolsa de doutoramento FCT SFRH/BD/122975/2016.

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Resumo

Aristóteles, nas Categorias, enumera uma lista daquilo que é dito sem nenhuma complexão, as categorias. Noutras obras essa lista é repetida, por vezes completa, por vezes abreviada. É difícil imaginar como se poderia expor muitas das teses fundamentais de Aristóteles sem fazer uso dela. No entanto, não há qualquer justificação para o seu número e completude. Não há, igualmente, clareza sobre aquilo que a lista está a catalogar. Perante esta grande lacuna, os intérpretes de Aristóteles discorreram longamente sobre o âmbito da lista e a sua suficiência. Com este trabalho, pretende-se mostrar de que modo esta discussão se desenvolveu na escolástica medieval latina. Primeiramente, são apresentadas as fontes a partir das quais os escolásticos medievais de língua latina receberam as Categorias. De seguida, partindo do século XIII, é traçado o percurso desta discussão a partir de três preocupações fundamentais: o lugar de uma teoria das categorias na lógica e na metafísica; a problematização do estatuto dos membros da lista (palavras, coisas, intenções); e as diversas tentativas de justificar a suficiência da lista. Desde as primeiras sufficientiae, passando pela tese da coincidência entre modos de ser e modos de predicar, até à lenta dissolução do estatuto real dos membros da lista aristotélica, muitas foram as tentativas de mostrar que a lista não é arbitrária. É certo que, no período trabalhado, as dez categorias nunca foram abandonadas. Contudo, o seu estatuto metafísico é alvo de reconfigurações, ou estabelecendo a existência de entidades que, embora não possam ser consideradas coisas (res), não deixam de ser reais; ou ditando que uma categoria não é, obrigatoriamente, uma diferença do ente real, mas sim uma coordenação de termos, palavras ou intenções na alma. Evidenciam-se os assuntos paralelos que influenciam as mudanças de rumo, e que marcam continuidades e ruturas nesta longa discussão.

Palavras-chave: Sufficientia praedicamentorum; Categorias; Escolástica Medieval.

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Abstract

In the Categories, enumerates a list of what is said without combination, or categories. In other works, this list is repeated, sometimes in its completeness, sometimes abbreviated. It is difficult to imagine how one could expose many of Aristotle's fundamental theories without making use of the ten categories. However, there is no explanation for their number and completeness. There is also no clarity about what the list is cataloguing. This gap led the interpreters to discuss at length about the scope of the list and its sufficiency. This thesis intends to show how this discussion developed in Latin Medieval Scholasticism. Firstly, the sources from which the medieval Latin scholars received the Categories are presented. Then, starting from the 13th century, the course of this discussion is described, having in mind three fundamental concerns: the place of a theory of the categories in logics and metaphysics; the questioning of the status of the list members (words, things, intentions); and the various attempts to justify the sufficiency of the list. From the first sufficientiae, through the thesis of the coincidence between modes of being and modes of predication, to the slow dissolution of the real status of the members of the Aristotelian list, there have been many attempts to show that the list is not arbitrary. During the period we focus on, the ten categories were never abandoned. However, their metaphysical status is subject to reconfigurations: sometimes, by establishing the existence of entities that, although they cannot be considered things (res), are considered to be real; other times, by dictating that a category is not, necessarily, a difference of real being, but a coordination of terms, words or intentions in the mind. The parallel issues that influence changes in the discussion are highlighted through the exposition.

Keywords: Sufficientia praedicamentorum; Categories; Medieval Scholasticism.

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Índice de figuras

Figura 1. Via divisiva de Simplício...... 38 Figura 2. Sufficientia de Roberto Kilwardby...... 84 Figura 3. Sufficientia de Nicolau de Paris...... 91 Figura 4. Sufficientia de Alberto Magno...... 101 Figura 5. Sufficientia de Tomás de Aquino...... 112 Figura 6. Sufficientia de Pedro de Alvérnia...... 121 Figura 7. Sufficientia de Simão de Faversham...... 129 Figura 8. Sufficientia de Raul, o Bretão (atribuída a Simplício)...... 138 Figura 9. Sufficientia de Pedro Auriol...... 225 Figura 10. Taxonomia da distinção em Pedro de Tomás...... 230

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Lista de siglas

CAG = Commentaria in Aristotelem Graeca Busse = Porphyrius, Isagoge et in Aristotelis Categorias, ed. Adolfus Busse, CAG 4.1, Reimer, Berlim 1887 Kalbfleisch = Simplicius, In Aristotelis Categorias commentarium, ed. Carolus Kalbfleisch, CAG 8, Reimer, Berlim 1907

CCSL = Corpus Christianorum Series Latina

CIMAGL = Cahiers de l’Institut du Moyen Âge Grec et Latin

CSEL = Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum

PL = Patrologia Latina

Salvo quando pretendemos citar uma passagem, e não só referir uma alusão ao texto, as obras de Aristóteles serão assinaladas apenas através da numeração da edição de Immanuel Bekker: Aristotelis Opera edidit Academia Regia Borussica, ex recognitione Immanuelis Bekkeri, 5 vols., Reimer, Berlim 1831-1870. A título de exemplo: Aristóteles, Metafísica, VI, 1, 1025b18-1026a16.

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Introdução

Na verdade, o dogma filosófico do número 10 dos predicamentos, e consequentemente de nove géneros de acidentes, além da substância, é de tal modo dado como garantido que é quase temerário em filosofia que se estime pôr isto em dúvida. (…) Com efeito, aquilo que alguns pretendem – que deva ser assumida como acreditada pela autoridade de muitos autores que a afirmam – não é filosófico. E aquilo que outros dizem, que esta é uma verdade conhecida por si, não é verdadeiro. Francisco Suárez (1597)1

A procura destes conceitos fundamentais foi empresa digna de um espírito tão perspicaz como Aristóteles. Como, porém, não estava de posse de um princípio, respigou-os à medida que se lhe deparavam e reuniu assim primeiramente dez, a que deu o nome de categorias (predicamentos). Immanuel Kant (1787)2

As Categorias de Aristóteles são, provavelmente, a obra que mais tinta fez correr em toda a história da filosofia. Há vários fatores que podem ajudar a explicar este

1 «Iam vero, tam est receptum philosophicum dogma de numero decem praedicamentorum, et consequenter de numero novem generum accidentium praeter substantiam, ut quasi temerarium in philosophia existimetur hoc in dubium revocare. (…) Quod enim quidam volunt, sumendam esse ut creditam ex auctoritate multorum dicentium, philosophicum non est. Quod vero aiunt alii, esse veritatem hanc per se notam, verum non est.» Francisco Suárez, Disputaciones Metafísicas. tomo V, Editorial Gredos, Madrid 1964, XXXIX, II, § 13, p. 717. 2 Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos – Alexandre Fradique Morujão, Fundação Calouste Gulbenkian, 8ª edição, Lisboa 2013, I, 2ª parte, 1ª divisão, liv. 1, cap. 1, secção 3, § 10, p. 111 (A81, B107). A data é relativa à segunda versão (B) da Crítica da Razão Pura. A primeira é de 1781. 13 fenómeno surpreendente, tais como o facto de Andronico de Rodes ter iniciado uma duradoura tradição de ordenar esta obra no primeiro lugar do corpus aristotelicum. De crucial importância foi a sua inclusão como obra de estudo obrigatório nas escolas filosóficas tardoantigas. Independentemente das razões que tenham levado a tão desmesurada influência de uma pequena obra, é certo que este texto foi comentado e recomentado centenas, se não milhares de vezes, em diversas línguas. Na sua introdução à mais atualizada edição crítica das Categorias, Lorenzo Minio-Paluello confirma que havia traduções e paráfrases desta obra em latim (de Mário Vitorino e, mais tarde, de Boécio), siríaco (de Sérgio de Rechaina) e arménio (talvez ligadas à figura de David, o Invencível) que circulavam pelo menos desde o século V. A partir do século IX, o mesmo se passa com a língua árabe3. Em todas estas tradições, somaram-se os comentários. Como é sabido, o papel de Andronico de Rodes na definição do que foi sendo (e ainda é) considerado o corpus aristotelicum é fundamental. Porém, parece certo que a sua intervenção diz respeito à ordenação de tratados em coleções e à escolha daquilo que lhe parecia a melhor versão de um texto quando havia várias disponíveis. Não há intervenções nos textos em si, portanto. É ele o primeiro a preferir dar às Categorias esse mesmo título – Kategoriai (Κατηγορίαι) – em detrimento de Antes dos Tópicos (πρὸ τῶν τόπων), Sobre os Géneros do Ser (περὶ τῶν γενῶν τοῦ ὄντος) e semelhantes. É muito provável que também se deva a este filósofo do século I a.C. a criação da ideia do Organon, isto é, uma coleção de obras “lógicas” de Aristóteles por onde se deveria começar, dado o seu caráter instrumental. Por conseguinte, é ele o responsável pelo facto de as Categorias serem o primeiro texto do corpus e de serem tomadas como uma introdução à teoria do silogismo desenvolvida no Organon4. De acordo com Ricardo Santos, «Aristóteles não menciona nenhuma coleção do género do Organon em nenhum dos seus textos e também nunca afirma que a lógica é o instrumento da filosofia, desde logo porque não reconhece a existência de uma disciplina chamada “lógica”5». Trata-se de uma ideia que as escolas

3 Cf. Aristóteles, Categoriae et Liber de interpretatione, ed. L. Minio-Paluello, E Typographeo Clarendoniano, Oxford 1949, praefatio, pp. v-xxiv. 4 Para uma exposição detalhada, com vasta bibliografia, deste assunto, cf. António Pedro Mesquita, Introdução Geral. Obras completas de Aristóteles, vol. I, tomo I, CFUL – IN-CM, Lisboa 2005, pp. 207- 339. 5 Cf. Aristóteles, Categorias. Da interpretação, trad. Ricardo Santos, IN-CM, Lisboa 2016, introd., p. 16. 14 helenísticas tardoantigas aprimoraram e é a partir dela que também os autores e intérpretes de outras línguas vão enquadrar as Categorias. São igualmente os comentadores helenísticos os responsáveis pela fixação de uma tendência de dividir as Categorias em antepredicamentos (capítulos 1 a 3), predicamentos (capítulos 4 a 9), e pós-predicamentos (capítulos 10 a 15, cuja autenticidade era muito debatida)6. A abrir a parte central, sobre os predicamentos, há uma breve passagem que, também ela, foi alvo de prolongadíssimas disputas e interpretações. Referimo-nos à célebre lista das categorias, no capítulo 4: Cada uma das expressões que são ditas sem nenhuma combinação significa ou uma substância, ou de uma quantidade, ou de uma qualidade, ou relativamente a algo, ou nalgum lugar, ou nalgum momento, ou estar numa posição, ou fazer, ou sofrer. Para dar apenas uma ideia, uma substância é, por exemplo, «homem», «cavalo»; de uma quantidade: «de dois côvados», «de três côvados»; de uma qualidade, «branco», «literato»; relativamente a algo: «o dobro», «metade», «maior»; nalgum lugar: «no Liceu», «na praça»; nalgum momento: «ontem», «o ano passado»; estar numa posição: «está deitado», «está sentado»; ter: «está calçado», «está armado»; fazer: «cortar», «queimar»; sofrer: «ser cortado», «ser queimado»7.

6 Cf. a detalhada síntese de Jonathan Barnes, «Les catégories et les Catégories», in Otto Bruun - Lorenzo Corti (eds.), Les Catégories et leur histoire, J. Vrin, Paris 2005, pp. 11-80. Cf. também Annick Jaulin, «Les Catégories d’Aristote: instrument ou doctrine?», Revue philosophique de la France et de l’étranger, 136.1 (2011) 3-16 (URL: https://www.cairn-int.info/revue-philosophique-2011-1-page-3.htm). 7 Aristóteles, Categorias. Da Interpretação, pp. 65-66 (1b25-2a4). Na tradução compósita de Boécio, que foi a tradução utilizada pelos escolásticos medievais latinos: «Eorum quae secundum nullam complexionem dicuntur singulum aut substantiam significat aut quantitatem aut qualitatem aut ad aliquid aut ubi aut quando aut situm aut habitum aut facere aut pati. Est autem substantia quidem, ut figuraliter dicatur, ut homo, equus; quantitas ut bicubitum, tricubitum; qualitas ut album; ad aliquid ut duplum, maius; ubi vero ut in loco; quando autem ut heri; situs vero ut sedet, iacet; habere ut calciatus, armatus; facere vero ut secare, urere; pati ut secari, uri.» [Daqueles que se dizem sem nenhuma complexão, cada um deles significa, ou substância, ou quantidade, ou qualidade, ou relativamente a algo, ou onde, ou quando, ou estar posicionado, ou hábito, ou fazer, ou padecer. De modo figurado, substância é como homem, cavalo; quantidade, como com dois côvados, com três côvados; qualidade, como branco; relativamente a algo, como dobro, maior; onde, na verdade, como num lugar; quando, porém, como ontem; estar posicionado, na verdade, como senta-se, jaz; ter, como calçado, armado; fazer, como cortar, queimar; padecer, como ser cortado, ser queimado.] Aristoteles Latinus, Categoriae vel Praedicamenta. Translatio Boethii, Editio Composite, Translatio Guillelmi de Moerbeka, Lemmata e Simplicii commentario decerpta, Pseudo-Augustini 15

Desde muito cedo que esta lista das categorias foi posta em causa de vários modos. Considerava-se ambíguo qual era o objetivo e o âmbito da lista. Aristóteles pretende aqui apresentar uma lista exaustiva de todas as palavras e expressões ditas sem nenhuma combinação? Ou pretende lidar com aquilo que essas palavras e expressões significam? Talvez olhando apenas para o texto pareça relativamente evidente que Aristóteles está a falar de expressões. Porém, quer nos exemplos que dá, quer nos capítulos dedicados à substância (capítulo 5), à quantidade (capítulo 6), à relação (capítulo 7), à quantidade (capítulo 8), e à ação e à paixão (ou ao fazer e ao padecer, capítulo 9), parece determiná- las enquanto coisas. No mínimo, parece indicar determinações que não dizem respeito às expressões enquanto tais, mas às expressões enquanto significam coisas de um determinado modo. Em segundo lugar, de onde provém esta lista? Trata-se de uma mera enumeração, seguida de uma exemplificação. Aristóteles não a justifica aqui nem em qualquer outra obra. Assim sendo, sejam as categorias tomadas como uma lista na qual se subsumem todos os géneros de palavras, sejam como uma lista completa na qual se subsumem todos os géneros de coisas, sejam como algo que, de alguma forma, conjuga as duas abordagens, como pode uma doutrina tão fundante como a das categorias ser considerada completa e justificada? De certa maneira, estes dois conjuntos de perguntas estão interligados. Se quisermos saber quantas são as categorias e qual a razão por trás desse número, temos de saber o que é uma categoria em primeiro lugar, bem como definir o que está a ser categorizado8. Aristóteles não o faz, pelo menos de um modo explícito e pronunciado.

Paraphrasis Themistiana (I 1-5), ed. L. Minio-Paluello, Desclée De Brouwer, Bruges-Paris 1961, editio composita, cap. 4, p. 48. Há outras passagens, noutras obras de Aristóteles, onde são listadas as categorias, frequentemente de um modo incompleto. Cf. Aristóteles, Tópicos, I, cap. 9, 103b20-23 (aqui, a lista está completa); Física, V, cap. 1, 225b5-7 (não enumera a posição e o hábito); Metafísica, V, cap. 7, 1017a25- 28 (não enumera a posição e o hábito); Ibidem, XI, cap. 12, 1068a8-9 (não enumera o quando, a posição e o hábito) 8 Esta questão, na verdade, vai-se repetindo ao longo do tempo. Veja-se, a título de exemplo, a crítica de Pierre Aubenque e Jules Vuillemin a Émile Benveniste: cf. Émile Benveniste, «Catégories de pensée et catégories de langue», in Les études philosophiques, 4 (outubro/dezembro 1958) 419-429; Pierre Aubenque, «Aristote et le langage», in Annales de la Faculté des Lettres d'Aix, 43 (1965) 85-105 (especialmente, pp. 103-105); Jules Vuillemin, «Le système des Catégories d’Aristote et sa signification 16

Esta lacuna conduziu os intérpretes a procurar diversos modos de a suprir. É certo que, como podemos verificar pela afirmação de Suárez citada em epígrafe, muito raros foram os comentadores que puseram alguma vez em causa a lista aristotélica das categorias, sobretudo se nos referirmos à escolástica medieval de língua latina. Mesmo aqueles que propuseram reduções ou ampliações à lista, nunca o fizeram de um modo absoluto, mas de acordo com considerações particulares sobre aquilo que a lista está a descrever, salvo raríssimas exceções. Outros, de facto, contentaram-se em dizer que são primárias, indetermináveis por via de uma qualquer dedução, mas, ainda assim, corretas, por serem conhecidas por si (per se notae). Por conseguinte, muito antes da Crítica da Razão Pura e da dedução dos conceitos puros do entendimento por via das formas puras do juízo, houve centenas de tentativas de justificar uma lista das categorias a partir de vários procedimentos teóricos. Provavelmente, Kant diria que muitos desses procedimentos incorrem na extravagância própria de uma dedução empírica à maneira de Locke, ou ainda de uma simples rapsódia de quem se precipita indutivamente sobre aquilo que lhe vai aparecendo. Outros, seriam possivelmente descartados devido a questões anteriores à própria lista, nomeadamente se a lista fosse apresentada como uma elucidação exaustiva de todos os sentidos do conceito equívoco (ou análogo) de ente e, portanto, não dissesse respeito às funções do juízo, ou às condições de possibilidade da experiência, mas ao real enquanto tal. No entanto, também houve algumas tentativas de justificar a lista aristotélica que se assemelham bastante à intuição de base da dedução kantiana. Foram essas tentativas, aliás, a primeira coisa que nos chamou a atenção para formularmos esta pesquisa. Aquilo que começámos por perguntar foi se havia algo semelhante à dedução transcendental antes de Kant. Encontrámos na divisão das categorias a partir dos diversos modos de predicar per se algo semelhante, ou análogo, pelo menos. Contudo, rapidamente nos apercebemos de que havia muitas outras abordagens, pelo que este assunto passou a fazer parte de um conjunto maior. Com o presente trabalho, pretendemos justamente dar conta da riqueza desta

logique et métaphysique», in De la logique a la théologie. Cinq études sur Aristote, Flammarion, Paris 1967, cap. 2. 17 longuíssima discussão. Demos-lhe o título De sufficientia praedicamentorum, precisamente porque a primeira tentativa dos escolásticos medievais para justificar a lista aristotélica foi a sufficientia, isto é, um procedimento (didático) de esgotar todas as possibilidades de determinada lista por meio de uma via divisiva. Como veremos, a esta tentativa, juntam-se muitas outras. A questão inicial de encontrar critérios corretos de divisão para a sufficientia vai-se transmutando, sofrendo influência de assuntos paralelos e complementares, até chegar a ser praticamente abandonada, devido à sua inanidade. Dos escombros desta crítica, ergue-se uma outra questão que passa a ocupar o centro das tentativas de justificação da lista aristotélica: que grau de distinção existe entre as categorias? Daí a especificação do subtítulo que escolhemos. Era nosso objetivo inicial colocar a hipótese segundo a qual a autoridade de Aristóteles teria sido abandonada à medida que as várias justificações da lista fossem sendo descartadas, numa dialética que durou séculos. Porém, a exaustividade necessária, e o próprio processo de descoberta da riqueza dos autores que fomos trabalhando, impediu-nos de chegar tão longe quanto os séculos XVI e XVII, séculos onde vão sendo desferidos os golpes de misericórdia à até aí indisputável autoridade de Aristóteles nesta matéria. Assim sendo, acabámos por cingir a nossa pesquisa aos escolásticos medievais de língua latina dos séculos XIII e XIV9. O que perdemos em extensão cronológica, ganhámos em rigor e em completude. Pelo menos, foi esse o nosso anseio.

Tendo em vista os nossos objetivos, o presente trabalho organiza-se em quatro capítulos. No primeiro capítulo, traçamos os antecedentes. Como referimos brevemente, o texto de Aristóteles foi lido e relido de diversos modos. Os autores escolásticos do século XIII assentam as suas propostas numa vasta panóplia de fontes que influenciaram a receção das Categorias. Para dar conta dessas influências, o capítulo subdivide-se em

9 É também por este motivo que não estudámos tantos comentários às Summulae logicales de Pedro Hispano quanto gostaríamos. Efetivamente, só a partir do comentário de João Buridano, escrito sensivelmente a meio do século XIV, é que as Summulae logicales, ou Tractatus, entram no contexto universitário. Os comentários anteriores ao seu, na verdade, não acrescentam nada ao problema da suficiência das categorias. Muitas das posições mais relevantes para o presente trabalho encontram-se em comentadores dos Tractatus dos séculos XV e XVI. Esperamos futuramente ter a oportunidade de nos debruçarmos sobre eles. 18 três. Em 1.1, descrevemos o modo como as Categorias entraram definitivamente nos currículos de estudos das escolas neoplatónicas pela mão conciliadora de Porfírio, o qual, contrariamente ao seu mestre Plotino, as considerava de extrema utilidade, ainda que fossem tomadas como uma espécie de léxico da nossa linguagem comum acerca do mundo sensível. A influência de Porfírio chegou aos medievais pela mediação de dois autores: Boécio, não só devido às suas traduções, mas também ao seu comentário, e Simplício, cujo comentário foi traduzido para o latim em meados do século XIII. Em 1.2, mostramos de que modo o problema cristão da Trindade gerou um conjunto de leituras que transformaram profundamente o significado das Categorias de Aristóteles. Focamo-nos, sobretudo, no De Trinitate de Agostinho e nos Opuscula Sacra de Boécio, textos fundamentais para qualquer autor dos séculos que aqui trabalhamos. Teremos a oportunidade de verificar que, muitas vezes, é em questões relacionadas com a Trindade que os escolásticos medievais propõem as teses mais inovadoras nesta matéria. Finalmente, em 1.3, realçamos a importância de alguns textos que reconfiguram e preenchem as lacunas deixadas pelo tão lacónico texto de Aristóteles. As Categoriae decem, falsamente atribuídas a Agostinho, contêm uma noção de substância (usia, ou usian) bastante diferente daquela que é apresentada por Aristóteles. Mais importante do que isso, apresentam diversas tentativas de mostrar a completude e a articulação entre os vários membros da lista aristotélica por meio de uma via divisiva. O Liber sex principiorum, por seu turno, trata de expor as seis categorias que Aristóteles quase não discute, mas apenas menciona. Este livro foi de tal modo importante que entrou na curta lista de obras da chamada ars vetus, ou logica vetus, que foram lecionadas e comentadas sistematicamente em contexto universitário. Terminamos este subcapítulo com uma referência ao peso de Avicena como fonte de inspiração para os autores que trabalhamos nos capítulos seguintes. Em suma, o primeiro capítulo pretende conferir às discussões subsequentes uma base histórica sólida, dando conta da génese do problema da suficiência das categorias. O segundo capítulo é dedicado ao século XIII e contém dois subcapítulos. A nossa exposição baseia-se em duas traves-mestras. A primeira é a problematização do lugar das

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Categorias de Aristóteles no contexto da filosofia, em geral, e do ensino nas faculdades de artes, em particular. Há elementos didáticos e institucionais que adquirem um valor mais amplo, posto que influenciam a problematização do sujeito das Categorias e estão na origem do procedimento da sufficientia. A segunda trave-mestra do capítulo é, justamente, o desenvolvimento das sufficientiae, ou vias divisivas, como instrumento comum utilizado para demonstrar que a lista aristotélica não é arbitrária. Com estes horizontes, ou panos de fundo, em vista, em 2.1, trabalhamos essencialmente dois assuntos. Começamos pelo Compendium examinatorium parisiense, que é a melhor fonte disponível para a compreensão do currículo de estudos na Faculdade de Artes da Universidade de Paris, cujos mestres serão os primeiros autores a repropor, no contexto da escolástica medieval de língua latina, sufficientiae que justifiquem a lista aristotélica. De seguida, apresentaremos as sufficientiae de dois desses mestres: Roberto Kilwardby e Nicolau de Paris. Destacamos a influência das Categoriae decem e do Liber sex principiorum nas suas propostas, bem como a interconexão entre a questão do sujeito das Categorias e a questão da suficiência. Em 2.2, expomos dois dominicanos incontornáveis. O primeiro é Alberto Magno, que foi o primeiro autor a formular uma tese que teve grande continuidade ao longo da segunda metade do século XIII: as categorias assumem-se a partir dos modos de predicar, que são tantos quantos os modos de ser. A sua sufficientia parte deste princípio. O segundo é o seu discípulo Tomás de Aquino, que retoma a tese de Alberto e postula a sua própria sufficientia. Ficam assim lançadas as bases da communis opinio do último quartel do século XIII: formular sufficientiae baseadas na coincidência entre modos de predicar e modos de ser. O terceiro capítulo, por razões que se tornarão evidentes, quebra a ordem cronológica da exposição. Subdivide-se em dois subcapítulos principais e num excurso necessário para elucidar algumas opções que tomámos. Antes deles, traçamos o panorama geral que nos permite mostrar as razões pelas quais a tese de Alberto Magno teve um terreno fértil para singrar, em especial, o isomorfismo entre modi significandi, modi intelligendi e modi essendi na gramática modista. Recuperamos, igualmente, a figura de Avicena, evidenciando o influxo das suas perspetivas lógicas na questão da suficiência

20 das categorias. Nesse sentido, realçamos a importância que a distinção entre intenções primeiras e intenções segundas adquire. De seguida, há uma divisão do capítulo entre os autores que continuam a formular vias divisivas à maneira daquelas que foram apresentadas anteriormente e aqueles que procuram caminhos diferentes. Em 3.1, apresentamos as sufficientiae de três autores, a saber, Pedro de Alvérnia, Simão de Faversham e Raul, o Bretão. Evidenciamos a influência de propostas anteriores, em especial a de Tomás, e exploramos a complexificação da questão do lugar de uma teoria das categorias na lógica e na metafísica. De facto, poder-se-ia dizer que há como que um processo cumulativo nesta discussão, culminando numa bifurcação que, embora já estivesse presente em autores anteriores, é problematizada pormenorizadamente. O lógico e o metafísico debruçam-se sobre as categorias de um modo bastante diverso. Diga-se de antemão que a continuidade que marcamos diz apenas respeito ao uso do procedimento da sufficientia a partir da tese da coincidência entre modos de ser e modos de predicar. Na verdade, há bastantes pontos de contacto entre Simão de Faversham e Henrique de Gante. Por outro lado, Raul, o Bretão está ciente de que a questão da distinção das categorias é uma questão eminentemente metafísica, que não pode ser respondida pelo lógico. Assim sendo, o valor das suas sufficientiae deve ser relativizado. Abrimos o subcapítulo subsequente com Henrique de Gante, o qual desenvolve, à semelhança de Simão de Faversham, a teoria segundo a qual as categorias são um composto de res praedicamenti e ratio praedicamenti. O que o torna um disruptor, por assim dizer, é o facto de problematizar, em diversas partes das suas obras teológicas, o estatuto dessas rationes (ou modi essendi). Essa problematização levanta uma questão que, a pouco e pouco, substitui a da suficiência. Trata-se da questão da distinção. Exploramos, assim, a aplicação da sua distinção intencional a este contexto das categorias. No segundo autor trabalhado, Teodorico de Freiberga, encontramos algumas posições afins às de Henrique. No entanto, é um facto que a sua proposta é ímpar, dado que postula a existência de categorias que são, simultaneamente, reais e causadas pelo intelecto. Nega, portanto, uma conceção do real como aquilo que é independente de uma operação intelectual. É então que surgem os dois grandes críticos das sufficientiae, ou

21 vias divisivas, ambos influenciados por Avicena: Pedro de João Olivi e João Duns Escoto. A sua crítica avassaladora à inépcia destas tentativas é um marco importante. Efetivamente, marca o início da decadência das sufficientiae. Fechamos o terceiro capítulo com um excurso que carece de uma clarificação. Ao formularmos o projeto de investigação que conduziu à presente tese, tínhamos em vista explorar a importante tradição de comentários aos Tractatus, ou Summulae logicales, de Pedro Hispano. Era, aliás, nosso desejo integrar os nossos trabalhos no projeto intitulado Edição Crítica e Estudo das Obras Atribuídas a Petrus Hispanus – 1 (PTDC/MHC- FIL/0216/2014), liderado pelo nosso orientador, o que de facto aconteceu. O nosso contributo para este projeto seria fazer a edição diplomática de um dos melhores manuscritos que contêm os Tractatus e explorar o nosso tema numa seleção de comentadores. Com o desenrolar da pesquisa, chegámos à conclusão de que seria preferível cingir-nos aos séculos XIII e XIV, como já referimos. Acontece que, até ao comentário de João Buridano, não há nenhum comentador do terceiro dos Tractatus (sobre as categorias) que trabalhe, direta ou indiretamente, a questão da suficiência das categorias. Por este motivo, acabámos por trabalhar apenas dois comentadores do século XIV: o já aludido João Buridano e Brás de Parma. Tivemos de optar por deixar para trás a pesquisa preparatória que já havíamos feito, em especial sobre João Versor e Pedro Tartareto. Ainda assim, não podíamos deixar de fazer uma nota que explicasse a importância desta literatura e que desse conta de algumas peculiaridades com relevância filosófica, em especial, a ordenação dos tratados na tradição manuscrita. É esse assunto que é elucidado em 3.3. Este excurso serve, igualmente, como uma introdução aos dois comentadores apresentados em 4.2. O capítulo 4, dedicado ao século XIV, é o mais extenso do nosso trabalho. Isso deve-se ao facto de termos identificado a necessidade de expor com algum pormenor alguns assuntos que, até aqui, haviam sido apenas tocados. Em primeiro lugar, o assunto da intencionalidade, que adquire uma enorme importância na discussão da distinção das categorias. Em segundo lugar, o próprio desenvolvimento de uma tradição de tratados sobre a noção de distinção. Em terceiro lugar, tivemos de expor as doutrinas dos autores que elegemos sobre algumas categorias em particular, dado que assistimos a várias

22 propostas de redução da lista aristotélica. Não se trata de uma redução em absoluto, mas de reduzir o número de categorias às quais de facto corresponde algum tipo de coisa real fora da alma. A compreensão desta tendência reducionista exigiu por vezes a exposição de doutrinas sobre esta ou aquela categoria em particular. Além disso, mais do que nos capítulos anteriores, tivemos o objetivo de evidenciar o diálogo direto (e extremamente frutuoso) entre os vários autores apresentados. Estas complexidades levaram-nos a dedicar mais espaço aos problemas estudados. Em 4.1, tendo como pano de fundo os três pontos mencionados, confrontamos as teorias de quatro autores, a saber, Herveu de Nédellec, Pedro Auriol, Pedro de Tomás e Guilherme de Ockham. Em Herveu, além de encontrarmos uma rica discussão acerca das noções de intenção primeira, intenção segunda e esse intentionale (ou esse obiectivum, ou ainda esse cognitum), destacamos o modo como desenvolve o tema da distinção entre a relação e o seu fundamento, bem como a tese, inspirada em Tomás de Aquino, da denominação extrínseca dos seis princípios (isto é, ação, paixão, quando, onde, estar posicionado e hábito). De seguida, colocamos as teses inovadoras de Pedro Auriol diretamente em contraste com Herveu, seja a sua crítica à ideia de intencionalidade como disposição da coisa inteligida para o ato de inteligir, seja a sua teoria da relação, seja, ainda, a sua tese da denominação extrínseca. Torna-se patente que é na crítica a Herveu que Pedro Auriol colhe bastantes elementos para as suas próprias propostas, em especial, as teorias sobre a relação como intervalo, e sobre a realidade da ação e da paixão. Salientamos ainda as suas diversas propostas de suficiência das categorias. Se tomadas como coisas reais, a lista de categorias deve ser reduzida a cinco; se tomadas a partir da divisão dos diversos géneros de conceitos existentes, continuam a ser dez. Depois de Pedro Auriol, prosseguimos a nossa exposição com Pedro de Tomás, o qual, embora não apresente propriamente uma proposta de suficiência das categorias, discute em grande pormenor os diversos tipos de distinção, enquanto conceito transcendente, e chega à conclusão de que todas as categorias têm entre si um tipo de distinção essencial a que chama distinctio se totis subiective. Terminamos o subcapítulo com Guilherme de Ockham, que tem algumas afinidades com Pedro Auriol, sobretudo na via interrogativa para chegar à lista aristotélica, mas também muitas diferenças. Tivemos a necessidade de

23 destacar novamente a discussão de uma categoria particular, a saber, a quantidade, dado que Ockham propõe (como já o havia feito Pedro de João Olivi) como hipótese que todas as quantidades são redutíveis na realidade a qualidades e a substâncias. É a primeira vez que encontramos um autor a duvidar de uma das três categorias absolutas, que, salvo a exceção de Olivi, permaneciam intocáveis no que diz respeito ao seu estatuto real. Por fim, em 4.2, traçamos breves esquissos de cinco autores que, de um modo mais ou menos patente, conforme os casos, constroem as suas posições a partir daquilo que foi discutido em 4.1. São eles Gualter Burley, Gualter Chatton, Gregório de Rimini, João Buridano e Brás de Parma. Neste subcapítulo, não fomos tão exaustivos como nos anteriores. O nosso objetivo foi o de traçar, com o máximo de clareza e brevidade possível, quais os caminhos que os problemas da suficiência e da distinção das categorias trilharam. Evitámos, propositadamente, a utilização do famoso binómio realistas vs. conceptualistas (ou nominalistas), embora reconheçamos que há, de facto, o aparecimento de uma via moderna que se caracteriza pela utilização da lógica terminista para resolver problemas filosóficos.

O nosso método de trabalho baseou-se essencialmente na leitura direta das fontes. Não tivemos em vista apresentar um estado da arte que exaurisse toda a bibliografia secundária disponível acerca dos autores que referimos, seguido de um posicionamento crítico. Mesmo que nos cingíssemos ao tema das categorias, seria possível redigir uma tese inteira, ou mais, para cada um dos autores que trabalhámos, dimensionando as dissensões entre os comentadores, aprofundando todos os detalhes, e fazendo um estudo dos antecedentes e das influências no futuro. O nosso objetivo principal foi traçar o modo como se desenvolveu a questão da suficiência das categorias na escolástica medieval latina. Para o atingir, não houve necessidade de esgotar tudo aquilo que poderia ser dito sobre os autores e os seus intérpretes. Houve, antes, a preocupação de nos debruçarmos diretamente sobre as fontes. Por esse motivo, a melhor forma que encontrámos para confrontar e assimilar os autores foi a tradução dos seus textos, disponibilizada no volume de anexos. Não quer isto dizer que não apoiemos por diversas vezes a nossa leitura nos intérpretes. Fazemo-lo

24 criticamente e de acordo com os nossos propósitos. Não temos a pretensão de julgar que se encontrarão no nosso trabalho grandes e revolucionárias teses. Porém, pelo que pudemos recolher nas nossas pesquisas, cremos ter conseguido dar um contributo importante para a compreensão de um longo diálogo, traçando um percurso e os seus marcos.

Nesta introdução, resta-nos dizer que é nossa vontade transmitir ao leitor a enorme satisfação que é pensar um assunto tão fundante como este a partir de autores cujo engenho invejamos. É muita a nossa perplexidade com o modo tão inventivo como estes autores excedem a autoridade de onde partem, sem, no entanto, a quererem abandonar. Seja qual for o motivo disso, pese mais a convicção, pesem mais os aspetos institucionais vários, é certo que o exercício do pensamento a partir de um corpo de autoridades bastante exíguo não reduz a riqueza da discussão.

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Capítulo 1. Antecedentes

1.1. Os comentadores neoplatónicos

Voilà les X Catégories d’Aristote dont on fait tant de mystères, quoiqu’à dire le vrai ce soit une chose de soi très peu utile, & qui non seulement ne sert gueres à former le jugement, ce qui est le but de la vraie Logique, mais qui souvent y nuit beaucoup pour deux raisons qu’il est important de remarquer. La première est, qu’on regarde ces Catégories comme une chose établie sur la raison & sur la vérité, au-lieu que c’est une chose toute arbitraire, & qui n’a de fondement que l’imagination d’un homme qui n’a eu aucune autorité de prescrire une loi aux autres, qui ont autant de droit que lui d’arranger d’une autre sorte les objets de leurs pensées, chacun selon sa manière de philosopher. (…) La seconde raison qui rend l’étude des Catégories dangereuse, est qu’elle accoutume les hommes à se payer des mots, & à s’imaginer qu’ils savent toutes choses, lorsqu’ils n’en connaissent que des noms arbitraires, qui n’en forment dans l’esprit aucune idée claire & distincte. Antoine Arnauld e Pierre Nicole (1684)10

Através desta passagem da afamada Lógica de Port-Royal, encontramos descritos os problemas que os autores da escolástica medieval tiveram de enfrentar perante a lista aristotélica das Categorias. A crítica acerca da sua arbitrariedade é muito anterior ao século XVII e aos cartesianos. Plotino (204/5 – 270), baseando-se nas críticas dos platónicos Lúcio e Nicóstrato11, dedica uma parte da sexta Enéada a este problema. Se

10 Antoine Arnauld – Pierre Nicole, La logique ou l’art de penser, ed. Pierre Clair – François Girbal, PUF, Paris 1965, p. I, cap. III, p. 51. A primeira edição da obra é de 1662, mas a edição crítica utiliza como base a última redação dos autores, publicada em 1684. 11 Sabe-se muito pouco acerca destes dois autores. Por vezes, o seu floruit é apontado como sendo no século II. É muito difícil distinguir o que se sabe sobre Lúcio daquilo que se sabe sobre Nicóstrato, dado que são sempre referenciados em conjunto por Simplício, a principal fonte disponível. Sabe-se que Nicóstrato vivia em Atenas. Há uma inscrição em Delfos na qual, possivelmente, é mencionado. Cf. Michael J. Griffin, Aristotle’s Categories in the Early Roman Empire, Oxford University Press, Oxford 2015, pp. 102-128. 26 não fosse o posicionamento mais harmonizador do seu discípulo Porfírio (234? – 305?), é possível que as Categorias não tivessem adquirido o peso histórico que tiveram. Plotino critica, em primeiro lugar, o facto de não ser claro aquilo que se pretende catalogar: as categorias são princípios, seres, ou géneros supremos? Aplicam-se igualmente ao sensível e ao inteligível? Se sim, a substância é uma categoria ambígua, uma vez que não pode ser dita da mesma maneira do sensível e do inteligível. Seria necessário postular algo comum à substância inteligível e à sensível que fosse predicado de ambas. Além disso, como aplicar o hilemorfismo? O que é substância: a matéria, a forma, ou o composto? E de que maneira uma mesma categoria pode conter em si as substâncias individuais e as substâncias universais? De acordo com Plotino, perante estas ambiguidades, os peripatéticos nunca chegam a dizer o que é uma substância. Nem a noção de τόδε τι (em latim, hoc aliquid) nem a de ὑποκείμενον (subiectum) servem esse propósito. A sua crítica estende-se às restantes categorias. A quantidade não unifica o contínuo e o descontínuo. O número, se for tomado como algo em si mesmo, é uma substância. Outras quantidades são relações. No que diz respeito à relação, não é possível encontrar algum tipo de comunidade genérica. Mais ainda, se a relação tem de ser algo para além dos dois relacionados, que tipo de existência pode ter? As várias qualidades também carecem de uma comunidade genérica: há quatro tipos de qualificação e a única coisa que lhes é comum, a saber, o facto de serem potências, congrega realidades equívocas. Acerca da qualidade, Plotino também questiona qual é a diferença entre um princípio formal qualitativo e um substancial. Por sua vez, as categorias do quando e do onde são redutíveis à quantidade. O agir e o ser agido (ou padecer) poderiam ser reduzidos a uma categoria, a saber, o movimento. E será realmente necessário postular uma categoria para o ter (ἔχειν, habitus)? Não se tratará de uma qualidade ou de uma relação? Por fim, não será a posição redutível ao lugar e à ação12? Plotino não critica apenas as categorias aristotélicas, mas também os quatro géneros dos estoicos: sujeito (ὑποκείμενον), qualidade (ποιόν), estado/disposição (πὼς ἔχον) e

12 Cf. Plotino (Plotinus), Enneads, ed. bilingue, trad. A. H. Armstrong, vol. VI, Harvard University Press – William Heinemann Ltd., Cambridge Massachusetts – Londres 1988, VI.1, 1-24, pp. 12-89. 27 estado/disposição em relação a outra coisa (πρός τί πως ἔχον). Depois destas críticas, partindo do Sofista e do Parménides de Platão, postula cinco géneros supremos, acima dos quais se encontra o Uno, que os transcende: ser, repouso, movimento, o mesmo e o outro. O seu critério de identidade é que não se lhes pode aplicar qualquer predicado que forme parte da definição da sua essência13. Depois de estabelecer este critério, pergunta por aquilo que ao longo desta dissertação se pretenderá discutir. Por que razão adota esta lista? De que modo se pode justificar que são exatamente estes os géneros, e não outros? Evidentemente, para compreendermos as possíveis respostas a este problema, é preciso uma resposta prévia à pergunta: o que são as categorias? Como vimos, em Plotino, as categorias são géneros supremos do ser, e não princípios. O princípio do ser transcende-o e não pode constituir-se como um diferenciador. Trata-se do Uno. O Uno encontra-se no ser e o ser exige o postulado do movimento, do repouso, do mesmo e do outro. Num certo sentido, estes géneros são o mesmo que ele, mas noutro sentido não. O movimento, identificado com a “luz vital” do Intelecto, constitui a própria substância do ser. Contudo, há uma forma, ou um limite definido do Intelecto, que exige o postulado do repouso14. O postulado do movimento e do repouso pressupõe que se compreenda que, no ser, há alteridade e mesmidade. As determinações categoriais aristotélicas encontrar-se-iam para Plotino num nível de especificação que impede que sejam caracterizadas como géneros supremos do ser, uma vez que não são coextensivas com ele. A particularização do ser em seres dá-se num nível de determinação que diz respeito à qualificação e quantificação das substâncias materiais. Se um autor escolástico comentasse esta resposta, talvez dissesse que Plotino não enumera uma lista de categorias, mas sim de conceitos transcendentes, isto é, de conceitos aplicáveis a todo e qualquer ente. As categorias, pelo contrário, não abarcam todo o ente, mas dividem-no. De facto, apesar das suas críticas a Aristóteles, em Enéadas VI.3, o

13 «These are the primary kinds because you cannot apply any predicate to them which forms part of the definition of their essence.» Plotino, Enneads, VI.2, 8, p. 137. Dado que não dominamos o grego, recorremos a traduções para aceder aos autores deste subcapítulo. 14 «And again the Form at rest is the defining limit of Intellect, and Intellect is the movement of the Form.» Ibidem, p. 135. 28 próprio Plotino utiliza o aparato categorial aristotélico para explicar a divisão do mundo sensível15. Porfírio utiliza justamente a estratégia de reduzir o âmbito das Categorias para compatibilizá-las com Platão. Este passo foi fundamental para que as Categorias integrassem de vez o currículo de estudos das escolas neoplatónicas. Porfírio redigiu dois comentários às Categorias. Um deles é um diálogo curto, introdutório e escolar: o Κατὰ πεῦσιν καὶ ἀπόκρισιν, ou apenas Kata peusin. O seu comentário mais longo, intitulado Πρὸς Γεδάλειον (Pros Gedaleion, Ad Gedalium), perdeu-se, mas encontramos muitas pistas do que nele se encontrava através de duas fontes indiretas, a saber, os comentários de Boécio (475/7 – 526?) e de Simplício (c. 480 – 560) às Categorias. Estes comentários não reproduzem propriamente os conteúdos do Pros Gedaleion. Em ambos os casos, há uma influência do comentário de Jâmblico (c. 242? – 327), ou talvez de algum comentador intermediário que o tenha seguido de perto16. Boécio, de resto, é a principal porta de entrada desta antiga discussão no mundo latino medieval. O comentário de Simplício constitui-se igualmente como uma fonte importante, devido à tradução latina de Guilherme de Moerbeke (? – 1286). Antes de entrarmos no problema da suficiência das categorias na escolástica medieval, convém que se compreenda bem estes antecedentes. Construiremos assim uma base mais sólida para a elucidação do modo como o problema se foi desenvolvendo a partir das fontes. Mais ainda, as perguntas que pretendemos colocar nesta dissertação decorrerão da própria exposição problematizante dos autores que estão na origem delas.

15 Cf. Frans A. J. De Haas, «Did Plotinus and Porphyry Disagree on Aristotle's "Categories"?», Phronesis, 46, n. 4 (2001): 492-526; Steven K. Strange, «Plotinus, Porphyry, and the Neoplatonic interpretation of the Categories», in Wolfgang Haase (ed.), Philosophie, Wissenschaften, Technik. Philosophie, De Gruyter, Berlim 1987, pp. 955-974; Pierre Hadot, «L'harmonie des philosophies de Plotin e d'Aristote selon Porphyre dans le commentaire de Dexippe sur les Catégories», in AA.VV., Plotino e il Neoplatonismo in Oriente e in Occidente, Accademia Nazionale dei Lincei, Roma 1974, pp. 31-47. 16 Cf. Monika Asztalos, «Boethius as a Transmitter of Greek Logic to the Latin West: the Categories», Harvard Studies in Classical Philology, 95 (1993) 367-407. A autora argumenta contra a proposta de James Shiel segundo a qual Boécio teria tido acesso a uma cópia grega das Categorias com marginalia que seriam incorporadas num texto só. Cf. James Shiel, «Boethius’ commentaries on Aristotle», in Richard Sorabji (ed.), Aristotle Transformed: The Ancient Commentators and Their Influence, Duckworth, Londres 1990, cap. 15, p. 356: «Boethius Greek copy of the Categories contained brief marginal explanations. Most of these were passages of the Kata peusin copied verbatim; the rest were additions from later sources, including Iamblichus. They all seem to derive from the school of Proclus.» 29

Porfírio desloca estrategicamente as Categorias para fora do âmbito da metafísica. Este passo é fundamental, já que vai estabelecer uma espécie de cânone na interpretação do skopos desta obra. Ao invés de estabelecer que as categorias aristotélicas são os géneros supremos do ser, Porfírio considera que os objetivos de Aristóteles são didáticos: parte do mais conhecido para nós, que é o mundo sensível, e descreve-o a partir de uma linguagem comum. As Categorias, neste sentido, seriam uma espécie de introdução elementar a toda a filosofia, em especial à compreensão do silogismo17. Seria também possível partir do ponto de vista sensível e utilizá-lo analogicamente para a compreensão do mundo inteligível. Esta utilização analógica permite que Porfírio consiga fazer uma leitura platonizante coerente de Aristóteles18. Eis o modo como define o skopos das Categorias: Os seres e os seus géneros, espécies e diferenças são coisas (πράγματα), não palavras (φωναί). Após listar os dez itens, isto é, substância, qualidade, quantidade, e restantes, Aristóteles diz: «Nenhuma destas expressões dita por si mesma é uma afirmação; mas é pela combinação de umas com as outras que se gera uma afirmação» (2a4-7). Mas se a combinação destes é o que produz uma afirmação, e uma afirmação é algo que existe enquanto discurso significante e enquanto frase declarativa, então o tratado não pode ser acerca dos géneros do ser nem acerca das coisas enquanto coisas de todo, mas, pelo contrário, é sobre as palavras que são usadas para significar coisas. (…) E Aristóteles diz explicitamente: «Cada um dos que são ditos sem nenhuma combinação significa

17 «It is not for the sake of studying the Topics that one first has to learn about predications, but also for the sake of learning about the Analytics and about categorical propositions, and indeed just about any other subject. This work is the most elementary one, and serves as an introduction to all the parts of philosophy.» Porfírio (Porphyry), On Aristotle Categories, trad. Steven K. Strange, Bloomsbury, Londres – Nova Iorque 1992, p. 32 (CAG 4.1 [Busse] 56, 25-29). 18 «I shall say that since the subject of the work is significant expressions, and expressions are applied primarily to sensibles – for men first of all assign names to what they know and perceive, and only secondarily to those things that are primary by nature but secondary with respect to perception – it is reasonable for him to have called the things that are primarily signified by expressions, that is, sensibles and individuals, primary substances. Thus with respect to significant expressions sensible individuals are primary substances, but as regards nature, intelligible substances are primary.» Ibidem, p. 82 (Busse 91, 20-27). 30

ou uma substância, ou quantidade», etc. (1b25-26). Pois as coisas não significam; ou melhor, elas são aquilo que é significado19. De seguida, Porfírio faz uma pequena ficção histórica sobre o modo como o uso da voz por parte do homem primitivo para apontar coisas à sua volta acabaria por criar relações estáveis entre palavras e coisas. Numa segunda fase, o homem primitivo começou a refletir acerca das próprias palavras que utilizava e a agrupá-las a partir das suas diferenças qualitativas. Partindo daqui, Porfírio postula uma distinção que se repercutirá por toda a Idade Média: primeira imposição (πρώτη θέσις) e segunda imposição (δευτέρα θέσις) das palavras, isto é, a diferença entre utilizar palavras para significar coisas e utilizar palavras para significar tipos de palavras20. O sujeito21 das Categorias diz respeito às palavras de primeira imposição. Não são teorizadas todas as palavras de primeira imposição, evidentemente. O que se teoriza é a redução da sua multiplicidade a uma lista de dez géneros. Porquê dez? Numa frase: «Dado que os seres estão compreendidos dentro de dez diferenças genéricas, as palavras que os indicam também vieram a ser dez em género, e elas mesmas são assim classificadas22.» Estabelece

19 «Beings and their genera and species, and differentiae are things (pragmata), not words (phônai). After listing the ten items, i.e. substance, qualification, quantity, and so forth, Aristotle says, ‘None of the above is said just by itself in any affirmation, but it is by the combination of these with one another that an affirmation is produced’ (2a4-7). But if the combination of these is what produces an affirmation, and an affirmation is something that has its existence as significant speech and as a declarative sentence, then the treatise cannot be about the genera of being nor about things qua things at all, but instead is about the words that are used to signify things. (…) and Aristotle says explicitly, ‘Of items said without combination, each signifies substance or quantity…’, and so forth (1b25-6). For things do not signify; rather they are what is signified.» Ibidem, pp. 32-33, (Busse 56, 34 - 57, 13). 20 Cf. Sten Ebbesen, «Porphyry’s Legacy to Logic: a Reconstruction», in Richard Sorabji (ed.), Aristotle Transformed: The Ancient Commentators and Their Influence, Duckworth, Londres 1990, cap. 7. 21 Utilizar-se-á a designação dada pelos autores antigos e medievais, ao invés de objeto, uma vez que o par sujeito-objeto tem um significado muito diferente do contemporâneo. Esta utilização de “sujeito” corresponde a algo equivalente ao francês sujet, ou ao inglês subject-matter. Objeto, para os autores trabalhados na presente dissertação, é um conceito a partir do qual se representa algo sob um determinado aspeto, ou, algumas vezes, o próprio conteúdo do conceito, embora aconteça que também seja utilizado como sinónimo de sujeito. Para não criar confusões desnecessárias, utilizar-se-á a palavra sujeito. Em capítulos posteriores, discutiremos aprofundadamente as noções de ser subjetivo e ser objetivo. Cf. infra, capítulo 4. 22 «Since beings are comprehended by ten generic differentiae, the words that indicate them have also come to be ten in genus, and are themselves also so classified.» Porfírio, On Aristotle Categories, p. 34 (Busse 58, 12-14). 31 assim uma assunção que também terá bastante fama no futuro, a saber, um isomorfismo entre as coisas e a linguagem. Esta assunção é problematizada por muitos autores medievais e a sua discussão encontra-se no cerne de algumas posições originais acerca da suficiência da lista aristotélica de categorias. Posto isto, Porfírio considera que o sujeito das Categorias são as palavras ou expressões simples, consideradas de acordo com o género, enquanto primariamente significam coisas23, algo que Boécio copia quase literalmente: «Portanto, para que se conclua a intenção, deve dizer-se que neste livro dispõe-se tratar das palavras (voces) primeiras que significam os géneros primeiros das coisas naquilo em que são significantes24.» Boécio toma de Porfírio também a resposta à pergunta que se segue ao postulado do sujeito das Categorias: se o tratado é acerca de expressões significantes, porque é que toda a discussão subsequente versa sobre as coisas? A resposta é que as palavras são como mensageiros que nos reportam as coisas, o que faz com que tomem as suas diferenças genéricas das próprias coisas que reportam25. Novamente, o isomorfismo. Depois de discutir o propósito do primeiro capítulo das Categorias – no qual se definem homónimos, sinónimos e parónimos –, Porfírio chega à passagem em que Aristóteles apresenta o chamado quadrado ontológico. Baseia a sua leitura nos pares substância/acidente (οὐσία/συμβεβηκός) e universal/particular (καθόλου/μερικός) e interpreta o quadrado ontológico como apresentando o mínimo número de classes nas quais se podem dividir os seres e as palavras que os significam: ou são substâncias universais, ou substâncias particulares, ou acidentes universais, ou acidentes particulares. Substância é sinónimo de não estar num sujeito; acidente, de estar num sujeito; particular,

23 «(…) it was quite reasonable to him [=Aristóteles] to give the title Categories to this elementary discussion of simple expressions, which considers them according to genus insofar as they primarily signify things.» Ibidem, p. 35 (Busse 58, 18-21). 24 «Ut igitur concludenda sit intentio, dicendum est in hoc libro de primis vocibus, prima rerum genera significantibus in eo quod significantes sunt, dispositum esse tractatus.» Anicius Manlius Severinus Boethius, In Categorias Aristotelis libri quatuor, PL 64, 161A. 25 Cf. Porfírio, On Aristotle Categories, p. 35 (Busse 58, 23-24); Boethius, In Categorias Aristotelis, PL 64, 162D e ss. 32 de não ser dito de um sujeito; e universal, de ser dito de um sujeito26. A par da divisão mínima, é preciso fixar a divisão máxima: substância (οὐσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantum), qualidade (ποιόν, quale)27, relativamente a algo (πρός τι, ad aliquid), onde (ποῦ, ubi), quando (πότε, quando), posição/estar posicionado (κεῖσθαι, situs), ter/posse/hábito (ἔχειν, habitus), agir (ποιεῖν, agere) e padecer (πάσχειν, pati). Mais importante do que este enquadramento, é a sua justificação. Contudo, não seria errado dizer que não há justificação nenhuma. Em primeiro lugar, não é inteiramente correto dizer que as dez categorias são divisões (das expressões ou dos seres que elas significam), uma vez que uma divisão corta um género em espécies e não há nenhum género que congregue as categorias numa unidade a partir da qual elas constituam divisões. Se houvesse, as categorias não teriam um caráter primário. O mesmo será dizer que as categorias não têm uma definição, isto é, um género próprio e a sua diferença específica. Seria inclusive essa a razão pela qual Aristóteles as apresenta de dois modos, a saber, através da exemplificação e identificando as suas propriedades28. Todavia, Porfírio crê que, num esquema de coordenação de todas as expressões significantes de coisas, necessitamos das dez categorias, uma vez que cada uma delas, enquanto género, coordena todas as espécies e diferenças a ela subordinadas. As dez coordenações esgotam todas as expressões significantes de coisas. Pretende justificar a sua diversidade primária

26 «Das coisas que são, umas são ditas de algum sujeito, mas não estão em nenhum sujeito. (…) Outras estão num sujeito, mas não são ditas de nenhum sujeito (…). Outras são ditas de um sujeito e estão num sujeito. (…) Outras ainda nem estão num sujeito nem são ditas de um sujeito.» Aristóteles, Categorias, trad. Ricardo Santos, IN-CM, Lisboa 2016, pp. 62-64 (1a20-1b5). De acordo com António Pedro Mesquita, a correspondência entre estes quatro tipos de coisas e as noções de substância, acidente, universal e particular deve ser redimensionada. Cf. António Pedro Mesquita, Aspectos disputados da filosofia aristotélica, IN-CM, Lisboa 2004, I – Indivíduo e Predicados, p. 19 e ss.. 27 Seria mais correto dizer, não quantidade e qualidade, quantificado e qualificado, ou quantificação e qualificação, dado que há uma distinção entre estas categorias tomadas a partir da coisa na qual inerem e as mesmas tomadas em si, separadamente, como por exemplo entre algo branco (um quale, um ποιόν) e a brancura (uma qualidade, uma ποιότης). Este assunto aparecerá por várias vezes ao longo da exposição dos diversos autores. Ricardo Santos encontrou a solução de traduzir ποσόν e ποιόν por «da quantidade» e «da qualidade». Cf. Aristóteles, Categorias, p. 66, nota 27. 28 Cf. Porfírio, On Aristotle Categories, p. 75 (Busse 87, 15-20). Mais à frente, Porfírio refere três possíveis sentidos para propriedade (ἴδιον, proprium) e diz que neste contexto é utilizada no sentido estrito, isto é, como aquilo que se encontra apenas nos membros de uma classe e que se encontra em todos eles. Ibidem, p. 85 (Busse, 94, 1-5). 33 referindo qual a propriedade exclusiva, ou o proprium, de cada uma delas. No que toca às primeiras quatro categorias, encontra-a: • substância – ser recetiva de contrários enquanto se mantém numericamente uma e a mesma29. • quantidade – ser dita igual e desigual30. • relativamente a algo / relativos – serem ditos em relação aos seus correlativos31. • qualidade – poder ter como predicados a semelhança e a dissemelhança32. No que diz respeito ao agir e ao padecer, o texto de Aristóteles é lacónico. Quanto às restantes quatro categorias, depois de serem listadas, nunca mais voltam a ser mencionadas. Por isso, Porfírio sente a necessidade de apontar outras obras de Aristóteles onde aparecem com frequência. Agir e padecer são trabalhadas em Sobre a geração e corrupção; quando e onde, na Física; todas elas, na Metafísica. Em nenhuma delas Porfírio é capaz de apresentar a sua propriedade, mas o texto quebra subitamente, sendo bem provável que esteja incompleto. É possível, inclusive, que houvesse uma tentativa mais completa no Pros Gedaleion. Esta ausência no texto aristotélico, como veremos, poderá ter inspirado mais tarde a divulgação e influência do Liber sex principiorum.

Antes de lá chegarmos, vejamos se podemos encontrar em Boécio e em Simplício alguma tentativa de estabelecer a suficiência das categorias. De um modo simplista, mas suficiente para o nosso propósito, pode dizer-se que Boécio é mais importante enquanto transmissor das doutrinas do Kata peusin de Porfírio do que propriamente por alguma

29 Ibidem, p. 91 (Busse 98, 5-6). 30 Ibidem, p. 111 (Busse 110, 30). 31 Ibidem, p. 119 (Busse 115, 19). Nos relativos, torna-se claro que Porfírio não pretende que a cada uma das categorias corresponda algo na realidade que seja exclusivo dela: «For nothing prevents the same thing considered in different ways from falling under several categories. (…) It is impossible to conceive of any relative by itself, without some other category, so that if it is considered as belonging to a category that admits contrariety, , while if it is considered as belonging to a category that does not admit contrariety, it too will not admit contrariety.» Ibidem, p. 117 (Busse 114, 8-17). Porém, não deixa de postular que os relativos têm uma existência própria, embora dependente dos sujeitos que eles relacionam. 32 Ibidem, p. 156 (Busse 139, 19-23). 34 proposta específica sua33. O comentário de Simplício é mais extenso, refere muitas fontes que teriam caído no esquecimento se não tivessem sido por ele referidas e contém uma proposta específica de derivação das categorias. Com efeito, Boécio também não expõe com profundidade as últimas seis categorias, dizendo apenas que para a presente obra é suficiente o que é exposto, ou que Aristóteles omite o seu tratamento34. Em Simplício, há uma tentativa completa de derivar todas as categorias a partir de divisões criteriosas, isto é, aquilo que alguns escolásticos denominarão sufficientia ou via divisiva. Provavelmente, não é um procedimento original seu, mas retirado por uma via indireta do Pros Gedaleion de Porfírio35. Simplício começa o seu longuíssimo comentário por um prefácio no qual discute, entre outras coisas, o skopos das Categorias, apresentando várias hipóteses. A primeira hipótese é que tratam das palavras enquanto partes da proposição. A segunda, atribuída a Hermino (séc. II), contesta a primeira, dizendo que as palavras são trabalhadas pelos gramáticos, não competem ao filósofo. Este trabalho seria antes acerca dos próprios seres significados pelas palavras. Simplício não está de acordo com esta hipótese, porque julga que esta obra faz claramente parte do estudo da lógica, não da metafísica. A terceira hipótese, atribuída aos estoicos, é que os “dizíveis” (λεκτα) são noções ou conceitos (νοήμᾰτᾰ), e que é disso que as Categorias tratam. Contudo, mais uma vez, Simplício não pode concordar com esta posição, uma vez que o estudo dos νοήμᾰτᾰ diz respeito à ciência da alma. Não é um trabalho acerca das palavras (φωναί), nem das noções (νοήμᾰτᾰ), nem das coisas (πράγματα), mas dos predicados (κᾰτηγόρημᾰτᾰ), isto é, palavras ou expressões

33 Sten Ebbesen afirma que Boécio teria contribuído para uma simplificação da relação entre palavras e coisas pelo facto de ter eliminado toda a referência ao nível intermediário do conceito. Contudo, a sua especulação baseia-se quase unicamente em ausências e numa ou outra pista que pode ser encontrada no texto porfiriano em que essa mediação do conceito se dá e não aparece em Boécio. Embora seja uma proposta arrojada, a fundamentação parece-nos precária. Cf. Sten Ebbesen, «Porphyry’s Legacy to Logic: a Reconstruction», pp. 169-170. Veremos que Boécio adquire uma nova importância que não a de transmissor de doutrinas na discussão dos Opuscula Sacra em 1.2.. 34 Cf. Boécio, In Categorias Aristotelis, PL 64, 261D-264A. 35 É também provável que Simplício tenha estado numa corte persa com o seu mestre Damáscio, sendo por isso um dos veículos de transmissão do pensamento grego para o mundo árabe, o qual, por sua vez, influenciará o mundo latino séculos mais tarde. Cf. a introdução de Michael Chase em Simplício (Simplicius), On Aristotle Categories 1-4, trad. Michael Chase, Bloomsbury, Londres – Nova Iorque 2014, pp. 1-12. 35 simples significantes de realidades enquanto significantes, não enquanto palavras ou expressões. Aceita, assim, a posição porfiriana36. Aceita igualmente o isomorfismo entre as palavras e as coisas, acrescentando-lhe o elemento intermediário das noções. Mas não se trata de uma mera aceitação. Ela é enquadrada numa fundamentação baseada na cosmologia platónica da queda da alma no reino do devir: Nem as expressões são totalmente separadas da natureza dos seres, nem os seres desapegados dos nomes que estão naturalmente aptos para significá-los. Nem, por fim, são as noções estranhas à natureza dos outros dois; pois estas três coisas foram antes uma só e tornaram-se diferenciadas depois. Com efeito, o Intelecto, sendo idêntico nas realidades e na inteleção, possui, como um só, quer os seres, quer as noções deles, em virtude da sua unidade indiferenciada, e a linguagem não é necessária. No que toca à alma, quando ela é convertida rumo ao Intelecto, possui as mesmas coisas de um modo secundário, pois então os princípios racionais dentro dela não são apenas cognitivos, mas generativos. Contudo, assim que a alma se afasta dele, ela também separa os princípios racionais dentro de si mesma das coisas, convertendo-os, portanto, em imagens ao invés de arquétipos, e introduz uma distância entre a inteleção e as realidades. (…) Porém, quando a alma cai no reino do devir, enche-se de esquecimento e requer a visão e a audição para que seja capaz de recordar37.

36 «It is thus clear from what has been said that these men do not define the goal (skopos) as being about mere words (phônai), nor about beings themselves in so far as they are beings, nor about notions (noêmata) alone. Instead, because it is a prelude to the study of logic, is about simple words (phônai) and expressions (lexeis); but qua significant of primary and simple beings, and not in so far as they decline or are transformed in order to accord , or undergo such-and-such modifications and have such-and-such forms, all of which the domain of the investigation of expressions qua expressions.» Simplício, On Aristotle Categories 1-4, p. 27 (CAG [Kalbfleisch] 11,30-12,1). 37 «For neither are significant expressions wholly separate from the nature of beings, nor are beings detached from the names which are naturally suited to signify them. Nor, finally, are notions extraneous to the nature of the other two; for those three things were previously one, and became differentiated later. For Intellect, being identical with realities and with intellection, possesses as one both beings and the notions of them, by virtue of its undifferentiated unity, and there is no need for language. / As for the soul, when it is converted towards the Intellect, it possesses the same things in a secondary way, for then the rational principles (logoi) within it are not only cognitive, but generative. Once, however, the soul has departed from there, it also separates the formulae (logoi) within itself from beings, thereby converting them into 36

Esta justificação cosmológica do isomorfismo é algo que não se encontra em nenhum outro comentário dos que chegaram até aos nossos dias. Ela não tem grande repercussão nos autores escolásticos latinos, muito embora eles discutam de que modo se relacionam palavras (voces), intenções (intentiones) e coisas (res). O mesmo não se pode dizer da sua já aludida via divisiva. Simplício, primeiramente, define um critério: se se provar que um género contém diferenças que só lhe dizem respeito a ele, então isso significa que ele não está subordinado a nenhum outro38. Tal como Porfírio, e seguindo a própria ordem das Categorias, antes de chegar à divisão máxima das categorias, expõe o quadrado ontológico, a divisão mínima. No meio das respostas que dá às objeções de Xenócrates (396/395 a.C. – 314/313 a.C.) e Andronico (fl. séc. I a.C.), segundo as quais bastariam o em-si e o relativo, ou a substância e o acidente, apercebemo-nos da relação entre a divisão máxima e a mínima. A noção de acidente congrega num mesmo cabeçalho realidades primariamente diversas, pelo que é indeterminada. Para que se determine de que é que se está a falar, deve ser dividida em nove39. Simplício propõe então dois modos de estabelecer a suficiência das categorias. O primeiro é a diairesis (διαίρεσις) ou via divisiva.

images instead of prototypes, and it introduces a distance between intellection and realities. (…) / When, however, the soul has fallen into the realm of becoming, it is filled with forgetfulness, and requires sight and hearing in order to be able to recollect.» Ibidem, pp. 27-28 (Kalbfleisch 12,13-26). 38 «Thus it is clear that if the differentiae of some genera were not at all the same, nor were the species identical, then such genera are different from one another and not subordinate. if, therefore, the differentiae of the ten categories are shown, by the division of each one, to be different, and the species were different, then it is clear that are different genera and not subordinate.» Ibidem, p. 74 (Kalbfleisch 59,33-60,3). 39 Ibidem, pp. 78-79 (Kalbfleisch 63,22-64,13). 37

existências / atividades potências

existências per se: dentro de outras agir padecer substância coisas

sem relação em relação

forma corpórea: reciprocidade: não-reciprocidade qualidade relação

extensão / pluralização: relação com os relação com os quantidade corpos incorpóreos

nos quais algo se lugar: onde estabelece:posição

com o adjacente: ter tempo: quando

Figura 1. Via divisiva de Simplício

Possivelmente a partir de Jâmblico40, Simplício começa por distinguir existências (ὑπάρξεις), potências (δυνάμεις) e atividades (ἐνέργειᾰι), mas dada a natureza intermediária das potências, decide agrupá-las com as existências, pelo que a primeira divisão a fazer dá-se entre existências/potências, isto é, aquilo que é ativo ou passivo, e as atividades que nelas ocorrem. Das atividades, decorrem as categorias do agir e do padecer. Das existências, decorrem as restantes oito. A primeira divisão das existências dá-se entre o que existe per se e o que existe noutra coisa, ou seja, o que inere. O que existe per se é a substância. O que inere, pode fazê-lo de vários modos: ou sem relação com outra coisa, ou seja, absolutamente, ou em relação a outra coisa. No primeiro ramo, encontraremos qualidade e quantidade: respetivamente, o que inere na forma corpórea de uma coisa e o que faz dela algo extenso e pluralizado. Das existências que inerem em

40 Cf. Jâmblico (Jamblichus), De mysteriis liber, ed. Gustav Parthey, F. Nicolai, Berlim 1857, I.4-5, pp. 10- 19. 38 relação a outra coisa, numas há reciprocidade, noutras não. Onde há, encontramos a categoria do relativamente a algo, dos relativos. Onde não há reciprocidade, encontramos uma nova subdivisão que poderá soar insólita: corpos e incorpóreos. Nos incorpóreos, lugar e tempo, encontramos as categorias do onde e do quando. Tempo e lugar como incorpóreos é uma tese de origem estoica que Simplício assimila41. Na inerência de algo em relação aos corpos, encontraremos as duas categorias que restam, a saber, a posição e o ter. Distinguem-se por isto: a primeira congrega em si as existências em relação aos corpos nos quais estão estabelecidas ou estáveis, ou seja, coisas como estar de pé, estar sentado ou estar deitado; a segunda diz respeito ao que está adjacente, isto é, se um pé tem adjacente uma bota, então tem como existência em relação a essa bota o estar calçado42. Simplício pretende, deste modo, esgotar todos os predicados, ou melhor, todas as palavras ou expressões simples enquanto significantes de coisas, pelo que as próprias coisas (e as noções delas nas almas) também se esgotam aqui. Apesar desta tentativa,

41 Cf. Simplício, On Aristotle Categories, nota 765, p. 150. 42 Podem encontrar-se procedimentos semelhantes, embora com algumas diferenças, noutros comentadores tardo-antigos das Categorias, como David e Olimpiodoro. Cf. Ibidem, p. 149, nota 759. Eis o texto que está a ser esquematizado: «If, however, anyone desires to hear an inclusive division, which includes these ten genera, perhaps it would run like this: since all beings are either existences and potencies, or activities, but potencies, since they are intermediate, are rather observed together with existences, the first division must be twofold: into existences themselves, which are what is active or passive, and into activities. All activities are included by the category of ‘acting’, while all affections by ‘being-acted-upon’. Of existences themselves, some have their being per se, and these are all included by Substance, whereas others come into existence within other things. Of these, some are to be seen as in relation, while others are without relation. Of unrelated things, some are to be seen according to the character and, as it were, the shape of corporeal existences, as all those which are determined with respect to Quality, while others according to extension and pluralisation, as those in accordance with the Quantified; for there are observed these two unrelated differentiae of those genera which have come into being within other things in a state of existence. As for those which are in relation, some are said with regard to reciprocal correlatives, and these are all included by the category of the Relative, while others are not with regard to reciprocal correlatives. Of the latter, some are observed according to their relation to bodies, and others according to their to incorporeals. Of the latter, one is according to place, which things are included by the category Where; while the other according to time, which things are included in When. Of those things which are in accordance with the relation to bodies, one is in accordance with to those things in which we are established, whether standing, sitting, or lying down, all of which are subsumed under the category of Position. The other is according to those things which lie around, which are included by the category of Having; for the bodies to which there is such a relation are such that either we are established in them, or they in us.» Ibidem, pp. 82-83 (Kalbfleisch 67,26-68,13). 39 afirma cautelosamente que tudo isto é criticável, mas talvez o seja mais devido a preciosismos de terminologia do que propriamente pela tentativa em si43. Além disso, esta identificação das categorias aristotélicas com a própria realidade não é, de todo, absoluta. Copiando a interpretação platonizante de Porfírio, Simplício assume que não se está a falar dos seres enquanto tais, mas partindo do sensível. Numa fase posterior, compreender-se-ia a inefabilidade dos inteligíveis e a necessidade de utilizar a analogia. O segundo modo, apresentado com maior concisão, de provar a suficiência das categorias é assim descrito: «podemos selecionar qualquer uma das coisas que existem e ver como ela é remetida pelo menos para um destes géneros44.» Este seria o modo epagógico ou indutivo.

Ao longo desta secção, procurámos determinar os problemas que os escolásticos medievais receberam da tradição que os antecede. Em primeiro lugar, o problema de não se perceber ao certo o que é que Aristóteles está a classificar: coisas, noções (em latim, intentiones ou conceptus), palavras, todas ao mesmo tempo, umas através das outras? Como vimos, a resposta canónica a este problema é a de que as categorias são palavras ou expressões primeiras significantes dos géneros primeiros das coisas, não enquanto palavras, mas enquanto significantes. Será uma das heranças deixadas pelo comentário de Boécio. Neste sentido, são mais matéria da lógica do que da gramática ou da metafísica. O segundo problema é o da suficiência propriamente dita. Podemos verificar a presença de várias estratégias: 1) perante a impossibilidade de definir as categorias, podem distinguir-se pelas suas propriedades, as quais mostram a sua irredutibilidade; 2) pode-se tentar encontrar critérios de divisão que as distingam num esquema arbóreo que esgote todas as possibilidades, isto é, a diairesis ou via divisiva; 3) por fim, pode usar-se a epagoge ou via indutiva, que consiste em selecionar coisas que existem e ver como estas remetem em última análise para uma das categorias. Todas estas tentativas demonstram o desconforto que uma eventual arbitrariedade das categorias provocava nos autores.

43 «(…) and I am well aware that it will be subject to many charges on the part of those who insist upon niceties of terminology.» Ibidem, p. 83 (Kalbfleisch 68,15-16). 44 «We can select any one of the things that exist, and see how it is referred back to at least one of these genera.» Ibidem, p. 84 (Kalbfleisch 68,29-31). 40

Os problemas a enfrentar, porém, não ficam por aqui. O caráter lacónico da exposição das categorias do agir e do padecer, bem como a ausência de uma exposição das categorias do onde, do quando, da posição e do ter, conduziram a tentativas de preenchimento das lacunas deixadas por Aristóteles. Além disso, o discurso acerca de Deus, em particular acerca da Trindade, exigiu que se fizessem várias reconfigurações às teses iniciais de Aristóteles de modo a poder acomodá-las à fé cristã. Estas especulações a partir do que está ausente e reconfigurações conciliadoras tiveram uma influência marcante no modo como os escolásticos teorizaram as categorias. É isso que apresentaremos nas próximas secções.

1.2. A Trindade

À luz destas passagens do Evangelho de João <=Jo 8, 16-28; Jo 8, 42; Jo 10, 15; Jo 10, 29-30; Jo 12, 45; Jo 14, 16-17; Jo 14, 28; Jo 16, 28> dificilmente se pode sustentar a opinião, que fez escola entre a teologia liberal do séc. XIX, de que a confissão trinitária não bebe na experiência cristã primitiva, não teria raízes evangélicas e neotestamentárias, mas seria uma deformação helenística do Evangelho e um produto tardio de um séc. IV ‘contaminado’ de filosofia grega. Pode mesmo afirmar-se, ao invés, que paradoxalmente, o Concílio de Niceia, cuja pesada responsabilidade foi introduzir na confissão de fé as palavras da filosofia grega, de facto “des-helenizou” a mensagem cristã. Os termos gregos foram utilizados para exprimir um sentido que jamais ocorrera a esta filosofia. José Rosa45

Três hipóstases, uma ousia. Perante a dificuldade de aceitar uma tese que aparenta ser simplesmente contraditória, as categorias aristotélicas foram uma das armas ao serviço quer dos proponentes de soluções condenadas, quer dos responsáveis pelo estabelecimento da doutrina oficial. Daí a pertinência de introduzirmos este subcapítulo

45 José M. S. Rosa, O primado da relação. Da Intencionalidade trinitária da Filosofia, tese de doutoramento, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2004, p. 343. Este subcapítulo é imensamente influenciado pela II Parte desta tese, em especial pp. 303-399. 41 dedicado a um assunto eminentemente teológico. A utilização das Categorias para dar conta do estatuto do Pai, do Filho e do Espírito Santo constituiu uma parte bastante relevante do lastro teórico sob o qual se alicerçaram as indagações filosóficas dos autores escolásticos. Apesar disso, é identificável um certo corte na tradição latina em meados do século XII, quando os autores cristãos latinos passam a comentar diretamente as Categorias, na tradução de Boécio, em detrimento das glosas e comentários aos Opuscula Sacra do mesmo autor e às Categoriae decem de Pseudo-Agostinho (Paraphrasis Themistiana). Contudo, a determinação de conceitos básicos como essência, natureza, substância, subsistência, relação, entre outros, é altamente influenciada pelas discussões doutrinais em torno da Trindade. Mais ainda, por vezes, será nas partes dos comentários às Sentenças de Pedro Lombardo dedicadas à Trindade que diversos autores escolásticos introduzirão algumas das interpretações mais arrojadas das categorias.

Plotino já perguntara sobre a aplicação das categorias aristotélicas ao mundo inteligível, como atrás vimos. O pensamento cristão fez esta mesma pergunta relativamente a Deus, isto é, ao Deus trino, relacional, pericorético. Pode dizer-se de Deus que este é uma substância? Em que sentido? E as Pessoas trinitárias, enquanto entidades relacionais, como podem não indiciar um elemento de mutabilidade, ou até mesmo de corruptibilidade, em Deus? Veja-se muito resumidamente como se deu a acomodação das Categorias a esta questão teológica. Em primeiro lugar, diga-se que a autoridade de Aristóteles para dirimir dissensões doutrinais por parte dos autores da Patrística não se deu sem momentos agónicos. Há um repúdio inicial das doutrinas aristotélicas, bem patente em autores como Ireneu de Lião (c. 103 – 202), Tertuliano (c. 160 – c. 220), Epifânio de Salamina (310 – 402), Basílio de Cesareia (329 – 379) ou Jerónimo (347 – c. 420). Ireneu queixa-se dos discípulos de Basílides (fl. séc. II) nos seguintes termos: «Esforçam-se, à maneira aristotélica, por trazer para a fé preciosismos e outras subtilezas acerca das questões46.» Tertuliano, contra gnósticos e marcionistas, ainda vai mais longe:

46 «Et minutiloquium, et subtilitates circa quaestiones, cum sit Aristotelicum, inferre fidei conantur.» Ireneu de Lião, Contra haereses, II, 14, 5, PG 7, 752c. Tradução de José Rosa em O primado da relação, p. 368. 42

Miserável Aristóteles! Que lhes deu a dialética, artífice da construção e da destruição, manhosa nos discursos, forçada nas conjeturas, dura nos argumentos, obreira de conflitos, incómoda até para si própria, tudo desdizendo, para que absolutamente nada indague47. O uso ou não da filosofia grega, em particular da lógica aristotélica, em assuntos de fé não é divisível em termos de heresia e ortodoxia, apesar da afirmação de Jerónimo segundo a qual «os eclesiásticos são homens rudes e simples; e os heréticos são todos aristotélicos e platónicos48.» O que há, na verdade, é uma dialética de reações e contrarreações na qual o uso das sagradas escrituras se torna insuficiente para atalhar a críticas e surge, por isso, uma necessidade de determinar de um modo mais sólido o vocabulário utilizado. As grandes armas teóricas de que se podiam os autores munir no século IV – o século dos Concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381) – eram, inevitavelmente, a lógica aristotélica, tal como transmitida pelos autores neoplatónicos, e o próprio vocabulário teológico neoplatónico. De um modo simplista, poder-se-ia dizer que Sabélio (fl. c. 200) e o seu monarquianismo modalista é uma reação à acusação segundo a qual o cristianismo cede demasiado ao politeísmo pagão; e que o subordinacionismo de Ário (256 – 336) é, por sua vez, uma contrarreação ao modalismo. Entre Sabélio e Ário, entre a afirmação de que os nomes da Trindade são três modos ou manifestações de um mesmo Deus e a negação da consubstancialidade entre o Pai e o Filho, procurou-se postular um ponto de equilíbrio segundo o qual as hipóstases ou Pessoas são consubstanciais, isto é, são igualmente Deus, mas realmente distintas umas das outras. Porém, enquanto o debate entre Ário e o seu contemporâneo Alexandre de Alexandria (? – 326) tem por base o uso das Escrituras, nas gerações seguintes, acrescenta-se à discussão o vocabulário aristotélico das Categorias, em especial o binómio substância-acidente. Assim, perante a argumentação subordinacionista do ariano

47 Tertuliano, Liber de praescriptionibus, VII, PL 2, 19a–2a: «Miserum Aristotelem! qui illis dialecticam instituit, artificem struendi et destruendi, versipellem in sententiis, coactam in conjecturis, duram in argumentis, operariam contentionum, molestiam etiam sibi ipsi, omnia retractantem, ne quid omnino tractaverit.» Tradução de José Rosa, em O primado da relação, p. 368. 48 Jerónimo, Tratactus de psalmo, 77, CCSL, 78, 200-201, p. 70: «Ecclesiastici enim rustici sunt et simplices: omnes uero haeretici aristotelici et platonici sunt.» Tradução de José Rosa, em O primado da relação, p. 373. 43

Eunómio de Cízico (335 – 394), entre outros, os Padres Capadócios sentem a necessidade de fazer uso das mesmas armas dialéticas que os seus adversários, mesmo no caso de Basílio de Cesareia, que claramente desdenha das categorias, essa tecnologia (τεχνολογία), esse mero discurso ou pensamento técnico49. Apesar do desdém, Basílio utiliza as noções de substância primeira (que identifica com o particular e com aquilo que a tradição latina traduzirá por proprium, a saber, ῐ δῐον̓́ ) e substância segunda (identificada com o comum, κοινόν) para explicar a relação entre οὐσία e as suas hipóstases: «Entre ousia e hipóstase existe a mesma diferença que entre o que é comum e o que é particular, como por exemplo entre animal e um certo homem50.» A partir do momento em que as categorias entram no debate, nunca mais voltam a sair. Passou a tornar-se possível um uso analógico das categorias para descrever Deus. Os autores cujo tratamento categorial da Trindade teve mais influência na tradição latina medieval foram, certamente, Agostinho (354 – 430) e Boécio. Neles, ficam lançadas algumas ideias que perdurarão e outras que serão fruto de discussão, adaptação e desenvolvimento.

49 Cf. Ibidem, pp. 371-373. 50 «Οὐσία δὲ καὶ ὐπόστασις ταὺτην ἔχει τὴν διαφορὰν ἠν ἔχει τὸ κοινὸν πρὸς τὸ καθ᾿ ἔκαστον, οῖον ὡς ἔχει τὸ ζῷον πρὸς τὸν δεῖνα ἄνθρωπον.» Basílio de Cesareia, Carta 236, 3, 53, 1-3 apud Christophe Erismann, «The Trinity, Universals and Particular Substances: Philoponus and Roscelin» in Traditio, Vol. 63 (2008), p. 278. De acordo com Erismann, este uso de ousia como substância segunda, universal, estará presente também em Gregório de Nissa (c. 335 – c. 395) e Gregório de Nazianzo (c. 329? – 389). Por outro lado, afirma que aqueles autores que assumem a leitura particularista das Categorias de Aristóteles, de acordo com a qual os universais não têm uma existência real, tendem inevitavelmente para o triteísmo. Apresenta os exemplos de João Filópono (c. 490 – 475) e Roscelino (fl. c. 1090). Assim, historicamente, à medida que vai havendo uma compreensão menos “mediada” pelos autores tardoantigos das Categorias de Aristóteles, os autores cristãos vão sentindo a necessidade de traduzir ousia, no caso do discurso acerca de Deus, por essentia, e não por substantia, o que na verdade é algo que já Agostinho fizera, como veremos. Diga-se também, relativamente à polémica da “poluição” do cristianismo pelo pensamento filosófico grego, que Arthur Hilary Armstrong, o tradutor das Enéadas de Plotino para o inglês, encontra no De spiritu de Basílio de Cesareia uma passagem acerca da Alma do Mundo das Enéadas utilizada para descrever o Espírito Santo. Cf. A. Hilary Armstrong, «St. Augustine and Christian Platonism» in Plotinian and Christian Studies, Variorum Reprints, Londres 1979. É curioso, com efeito, que haja uma certa afinidade entre as três hipóstases plotinianas, a saber, Uno, Intelecto e Alma do Mundo, e a Trindade cristã, assunto que não trataremos. 44

Comecemos pelos livros centrais (V a VII) do De trinitate de Agostinho, parte na qual, após procurar os uestigia Trinitatis nas narrativas bíblicas – em especial as figuras angélicas e os episódios do carvalho de Mambré, do sacrifício de Isaac, da sarça ardente e do batismo de Jesus –, ensaia uma investigação categorial da Trindade. «Ele [=Deus] é, sem dúvida, substância (substantia) ou, se for melhor esta designação, essência (essentia), a que os Gregos chamam ousia51.» Mas não é uma substância ou essência qualquer. Ao contrário das outras «essências ou substâncias, que recebem acidentes por meio dos quais se faz nelas mudança52», Deus é a única substância ou essência imutável, e só dele se pode dizer com toda a verdade que é ser, o que está de acordo com a passagem célebre do Êxodo 3, 14: «Eu sou aquele que sou.» É a partir destas assunções que Agostinho tem de lidar com os arianos, cuja engenhosa máquina de guerra (callidissimum machinamentum) passa justamente por avançar que a substância do Filho gerado e a substância do Pai ingénito têm de ser substâncias diferentes, ou então ter-se-ia de dizer que há acidentes e, por conseguinte, mutabilidade em Deus, que ora é ingénito, ora é gerado. Este é o principal problema que Agostinho tenta dirimir. Para o fazer, tem de dizer que em Deus nem tudo é dito segundo a substância sem que isso queira dizer que haja algo nele que se diga segundo o acidente. Cria, portanto, uma terceira via, a saber, aquilo que se diz segundo a relação, que deixa de ser considerada um acidente: Em Deus, porém, nada é dito segundo o acidente, porque nele nada é mutável; todavia, nem tudo o que é dito é dito segundo a substância. Na verdade, é dito segundo a relação (ad aliquid), tal como o Pai em relação ao Filho, e o Filho ao Pai, o que não é acidente porque o Pai é sempre Pai e o Filho sempre Filho, e não sempre no sentido de que o Pai não deixa de ser Pai pelo facto de o Filho ter nascido ou de nunca deixar de ser Filho, mas pelo facto de que o Filho nasceu

51 «est tamen sine dubitatione substantia uel si melius hoc appellatur essentia, quam Graeci ousian uocant.» Agostinho de Hipona, Trindade. De trinitate, ed. bil., coord. Arnaldo do Espírito Santo, intr. e notas José Maria da Silva Rosa, trad. Arnaldo do Espírito Santo et al., Paulinas, Prior Velho 2007, V. 2. 3., pp. 406- 407. 52 «sed aliae quae dicuntur essentiae siue substantiae capiunt accidentias quibus in eis fiat uel magna uel quantacumque mutatio…» Ibidem. 45

sempre e nunca começou a ser Filho. Ora, se em algum tempo começasse a ser ou deixasse de ser Filho, seria dito segundo o acidente53. O garante de que a relação em Deus não é um acidente é a imutabilidade, a qual, neste caso, se deve à eternidade desta relação. Mas cabe perguntar: e o Espírito Santo, é relativo a quê (ou a quem)? Não há reciprocidade, como no caso da paternidade e da filiação. Tal como dizemos “Pai do Filho” e “Filho do Pai”, não podemos dizer “Pai do Espírito Santo” ou “Filho do Espírito Santo“, mas apenas “Espírito Santo do Pai” e “Espírito Santo do Filho”. «Em muitos relativos sucede que não se encontra um termo com que se correspondem reciprocamente as coisas que são referidas entre si54.» Isso não constitui um problema, até porque, para encontrar uma relação de reciprocidade, basta utilizar o nome “dom de Deus”, que é um dos nomes bíblicos dados ao Espírito Santo, e assim já se pode dizer “dom do dador” e “dador do dom”. A diferença para as pessoas anteriores é que o dador de que é dom é tanto o Pai como o Filho. O Espírito Santo é, aliás, definido por Agostinho como uma certa comunhão inefável do Pai e do Filho (ineffabilis quaedam patris filiique communio)55. Na economia trinitária, o Espírito Santo, mais enquanto dado (temporalmente) do que enquanto dom (sempiterno), diz respeito à criatura, e não apenas à Trindade ad intra, adquirindo um lugar de destaque na história da salvação56.

53 «in deo autem nihil quidem secundum accidens dicitur quia nihil in eo mutabile est; nec tamen omne quod dicitur secundum substantiam dicitur. dicitur enim ad aliquid sicut pater ad filium et filius ad patrem, quod non est accidens quia et ille semer pater et ille semper filius, et non ita semper quasi ex quo natus est filius aut ex eo quod numquam desinat esse filius pater esse non desinat pater, sed ex eo quod semper natus est filius nec coepit umquam esse filius. quod si aliquando esse coepisset aut aliquando esse desineret filius, secundum accidens diceretur.» Ibidem, V. 5. 6., pp. 414-415. 54 «in multis enim relatiuis hoc contingit ut non inueniatur uocabulum quo sibi uicissim respondeant quae ad se referuntur.» Ibidem, V. 12. 13., pp. 438-439. 55 Ibidem, V. 11. 12., pp. 436-437. 56 Cf. Sergei Bulgakov, El Paráclito, trad. Miguel Montes – Margarita Leonetti, ed. Francisco López Sáez, Ediciones Sígueme, Salamanca 2014. Nesta obra, o teólogo ortodoxo faz uma extensa introdução histórica à fixação do dogma da Trindade e ao aparecimento da cisão cismática entre ocidente e oriente devido àquilo que chama “interpretação causal” das processões na Trindade. De acordo com Bulgakov, o problema da processão/geração das Pessoas da Trindade foi mal colocado e não constitui um impedimento para o diálogo ecuménico entre católicos e ortodoxos. Entre os autores da Patrística que apresenta, dedica bastantes páginas a Agostinho, o qual teria a virtude de ser o primeiro a considerar a Trindade como amor (a tríade amante-amor-amado), mas o defeito de ter formulado explicitamente pela primeira vez o filioquismo. O 46

No que diz respeito às restantes categorias, Agostinho não as esquece. Além daquilo que é dito segundo a relação, ou seja, as pessoas ou hipóstases, é possível falar de qualidades (a bondade, por exemplo) e quantidades (a grandeza), não enquanto acidentes, mas enquanto algo que decorre da relação de Deus consigo mesmo. Assim, Agostinho não tem pejo de falar de uma bondade e de uma grandeza substanciais57. Outras podem ser ditas non proprie, sed translate ac per similitudines58, isto é, não no sentido próprio, mas por metáfora, ou por semelhança, como é o caso da posição (situs), da posse ou hábito (habitus), dos lugares (loca) e dos tempos (tempora). Finalmente, o padecer não é predicável de Deus e o agir é predicável no sentido mais próprio ou exato apenas de Deus, «pois só Deus faz e não é feito, não é sujeito passivo quanto diz respeito à substância pela qual é Deus59». Outro problema que Agostinho teve de enfrentar foi a atribuição de propriedades especificamente a uma das Pessoas da Trindade. Se Deus é uma só substância e se as Pessoas se distinguem pelo que é dito delas relacionalmente, então tudo aquilo que não é uma propriedade relacional tem de ser dito substancialmente de Deus. É este o assunto principal do livro VI, no qual se assenta a suma simplicidade da essência divina, na qual a bondade é a mesma coisa que a grandeza, que a sabedoria e que qualquer outra propriedade. Contudo, cada uma das Pessoas “apropria-se” dessas propriedades essenciais de um modo diverso, isto é, relacionalmente, como conclui no início do livro VII60. Com o postulado dessa suma simplicidade, Agostinho antevê o risco de cair no sabelianismo. Perante a recusa do uso da noção de “essência” ou também de “pessoa”

filioquismo seria como que um resquício do impersonalismo modalista decorrente do facto de, na teologia ocidental, se partir da unidade da essência divina e não da “triunidade” da própria Trindade. 57 Cf. Agostinho de Hipona, Trindade, V. 8. 9., pp. 426-427. Pouco depois, afirma: «quoniam quippe non aliud est deo esse et aliud magnum esse, sed hoc idem illi est esse quod magnum esse, propterea sicut non dicimus tres essentias, sic non dicimus tres magnitudines, sed unam essentiam et unam magnitudinem.» [Porque, de facto, para Deus não é uma coisa ser e outra ser grande, mas ser é o mesmo que ser grande, por isso, assim como não dizemos três essências, assim também não dizemos três magnitudes, mas uma só essência, uma só magnitude.] Ibidem, pp. 428-429. 58 Ibidem. 59 «solus enim deus facit et ipse non fit, neque patitur quantum ad eius substantiam pertinet qua deus est.» Ibidem, pp. 428-429. 60 Veja-se, por exemplo, a sabedoria no Verbo, em Ibidem, VII. 2. 3., pp. 508-509. 47 como uma noção de espécie, levando à ideia herética de que então as três Pessoas são três indivíduos que partilham a mesma espécie, não quer, contudo, cair na heresia contrária. A «indigência da linguagem humana» (humana inopia loquendo)61 é, em grande medida, a dificuldade. Em primeiro lugar, os gregos usam o termo hypostasis (ὑπόστασις) para Pessoa, o que em latim deveria ser traduzido por substantia. Seja qual for a terminologia usada, para Deus é absolutamente a mesma coisa ser e ser Pessoa, isto é, as Pessoas não estão para a essência divina como três indivíduos para uma noção específica ou genérica, isto é, como se fosse a relação entre três cavalos e a espécie “cavalo” ou a relação entre esses cavalos e o género “animal”. A própria noção de substância só pode ser utilizada num sentido impróprio. Enquanto sujeito de inerência, ela não faz sentido em Deus: quando algo se encontra na substância divina como num sujeito no qual inere, como a bondade ou a justiça, isso não difere dela. Assim, de que modo as Pessoas partilham a mesma essência sem que isso queira dizer que são como três estátuas feitas do mesmo ouro, ou como se o ouro lhes pré-existisse e fosse independente delas, ou seja, como se fossem apenas manifestações diversas de um mesmo ouro que poderia adquirir qualquer outra figura? Eis a resposta: Todavia dizemos que as três Pessoas são da mesma essência ou que as três Pessoas são uma só essência; mas não dizemos que as três Pessoas são a partir da mesma essência como se aí houvesse uma coisa que é a essência e outra coisa que é a pessoa, no sentido em que podemos dizer que as três estátuas são a partir do mesmo ouro; como efeito, neste caso uma coisa é ser ouro, outra ser estátuas. E quando se diz que três homens são uma só natureza ou que três homens são da mesma natureza, pode-se também dizer que três homens são feitos da mesma natureza, porque podem existir ainda outros homens como estes feitos da mesma natureza; pelo contrário, na essência da Trindade de nenhum modo pode existir qualquer outra pessoa feita da mesma essência. Além disso, no nosso mundo um só homem não é tanto como três homens em conjunto (…). Mas em Deus não é assim; com efeito, não é maior essência o Pai e o Filho em conjunto do que só o Pai ou só o Filho, mas as três substâncias ou Pessoas em conjunto, se assim se deve dizer,

61 Ibidem, VII. 4. 9., pp. 530-531. 48

são iguais a cada uma individualmente, coisa que «o homem animal não apreende» [(1 Cor 2, 14)]62. Com esta citação de São Paulo, Agostinho acaba por assumir que não é humanamente possível apreender o que sejam três Pessoas iguais a cada uma individualmente, remetendo o assunto para a fé e para o âmbito da analogia. A analogia mais elucidativa seria a tríade amante-amado-amor. Apesar desta ressalva, consegue fazer um uso consistente das Categorias de Aristóteles para dar conta da Trindade, sendo que as Pessoas enquanto entidades relacionais são compatíveis com a definição aristotélica, a saber, «os relativos são aquelas coisas para as quais ser é o mesmo que estar de algum modo em relação com alguma coisa63». Simplesmente, isso não significa que sejam acidentes inerentes numa substância. No que diz respeito à categoria da substância, Agostinho também teve de adaptá-la, já que esta, aplicada a Deus, não pode ser um sujeito no qual algo inira. Em Deus, aquilo que ele é e aquilo que faz com que ele seja assim são uma e a mesma coisa: ser bom é o mesmo que o bem, ser eterno é o mesmo que a eternidade, ser omnipotente é o mesmo que a omnipotência, etc.. Nada inere nele, ele é simplesmente o que é, em suma simplicidade. Aristóteles afirmara que «o que principalmente parece ser próprio da substância é que, sendo numericamente una e a mesma, seja capaz de receber contrários64». Evidentemente, este proprium da substância aristotélica não se aplica a Deus.

Boécio em pouco ou nada discorda de Agostinho, mas aprofunda alguns pontos nos quais Agostinho se deteve. Não utiliza as Escrituras para argumentar e aprimora a mutatio

62 «tamen tres personas eiusdem essentiae uel tres personas unam essentiam dicimus; tres autem personas ex eadem essentia non dicimus quasi aliud ibi sit quod essentia est, aliud quod persona sicut tres statuas ex eodem auro possumus dicere; aliud enim est illic esse aurum, aliud esse statuas. et cum dicuntur tres homines una natura uel tres homines eiusdem naturae, possunt etiam dici tres homines ex eadem natura quoniam ex eadem natura et alii tales homines possunt exsistere; in illa uero essentia trinitatis nullo modo alia quaelibet persona ex eadem essentia potest exsistere. deinde in his rebus non tantum est unus homo quantum tres homines simul (…). at in deo non ita est; non enim maior essentia est pater et filius simul quam solus pater aut solus filius, sed tres simul illae substantiae siue personae, si ita dicendae sunt, aequales sunt singulis, quod ‘animalis homo non percipit’ [1 Cor 2, 14].» Ibidem, VII. 6. 11., pp. 542-545. 63 Aristóteles, Categorias, cap. 7, p. 90 (8a31-33). 64 Ibidem, cap. 5, p. 75 (4a10-11). 49

(em Agostinho, translatio) dos conceitos criaturais, oriundos da leitura neoplatónica da lógica aristotélica, de modo a que se possa falar de Deus. Acrescenta por vezes elementos de teologia negativa neoplatónica, possivelmente retirados de Proclo (412 – 485). Nos seus cinco pequenos opúsculos teológicos (Opuscula Sacra ou Opuscula Theologica)65, Boécio estabelece algum do vocabulário não só teológico, mas também lógico e metafísico, que se perpetuará. O seu ponto de partida, em especial em De Sancta Trinitate, é o livro V da obra homónima de Agostinho66. Contudo, a estratégia de Boécio não passa por separar a categoria da relação do âmbito dos acidentes para dizer que em Deus há propriedades substanciais e propriedades relacionais não acidentais. Embora concorde com a relacionalidade não acidental das Pessoas, faz uso de alguns pares conceptuais que possam explicar por que razão a relacionalidade não exige alteridade. Para o fazer, baseia- se em algumas distinções: predicação intrínseca / predicação extrínseca; esse / id quod est (ser / aquilo que é); simples / composto. Baseia-se, igualmente, num princípio que legará para o futuro: Haec [=praedicamenta] igitur talia sunt qualia subiecta permiserint67. As categorias são tais quais os sujeitos permitirem, isto é, em Deus altera-se o modo como elas se podem predicar. Muda o sujeito, mudam as possibilidades de predicação68. Todavia, há estruturas que se mantêm, que têm apenas de ser vertidas. Assim, Boécio dirá

65 São elas De Sancta Trinitate (OS I); Utrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate substantialiter praedicentur (ou De Trinitate II, doravante OS II); Quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint cum non sint substantialia bona (ou De Hebdomadibus, doravante OS III); De Fide Catholica (OS IV); Contra Eutychen et Nestorium (OS V). Utilizaremos a edição crítica de Claudio Moreschini: Boethius, De consolatione Philosophiae. Opuscula Theologica, ed. Claudio Moreschini, K. G. Saur, Munique – Lípsia 2000. A exposição de Boécio que aqui se apresenta foi bastante influenciada por três leituras: John Marenbon, Boethius, Oxford University Press, Oxford – Nova Iorque 2003, cap. 5; Alain de Libera, «L’onto-théo-logique de Boèce: doctrine des catégories et théorie de la prédication dans le De Trinitate» in Otto Bruun - Lorenzo Corti (ed.), Les Catégories et leur histoire, J. Vrin, Paris 2005, pp. 175-222; Paul Thom, The Logic of the Trinity. Augustine to Ockham, Fordham University Press, Nova Iorque 2012, cap. 3. 66 «Vobis tamen etiam illud inspiciendum est, an ex beati Augustini scriptis semina rationum aliquos in nos venientia fructus extulerint.» [Contudo, vós também deveis inspecionar se as sementes de razões provenientes dos escritos do bem-aventurado Agostinho vieram a dar fruto.] Boethius, De Sancta Trinitate, pref., 29-32, pp. 166-167. 67 Ibidem, 4, 176-177, p. 173. 68 «At haec cum quis in divinam verterit praedicationem, cuncta mutantur quae praedicari possunt.» Ibidem, 4, 181-182, p. 173. 50 que as predicações relativas em Deus, tal como nas criaturas, são extrínsecas, não podendo alterar ou fazer variar a sua essência. Vejamos o seu percurso. Começa por colocar a questão em termos de predicação. A fé católica afirma “Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo”. Não se afirmam três deuses, mas apenas um. Então, em que consiste a mesmidade e a diversidade desta unidade na Trindade? «A razão da conjunção é a indiferença (indifferentia)69.» Posto isto, faz uma divisão da noção de “mesmo” e “diverso” em três: há mesmidade e diversidade em género, em espécie e em número. A diversidade numérica é descartada devido ao facto de em Deus não poderem existir acidentes. Como para Boécio o que distingue numericamente duas coisas da mesma espécie são os seus acidentes, em especial a impossibilidade de duas coisas materiais poderem ocupar o mesmo lugar simultaneamente, em Deus não pode haver diversidade numérica. Contudo, é preciso explicar porque é que em Deus não há acidentes. É para o fazer que apresenta o par esse / id quod est, conjuntamente com a diferença entre aquilo a que verdadeiramente se pode chamar forma e as formas no sentido impróprio, às quais seria melhor dar o nome de imagens: Nas coisas naturais racionalmente (rationabiliter), nas matemáticas disciplinadamente (disciplinaliter) e nas divinas é mister serem versadas intelectualmente (intellectualiter) e não estendidas por imaginações, mas antes observando internamente a própria forma que é verdadeiramente forma e que não é imagem, a qual é o próprio ser (esse ipsum est) e a partir da qual o ser é (ex qua esse est). De facto, todo o ser é a partir da forma. (…) Mas a substância divina é forma sem matéria e por isso é una, e é aquilo que é (id quod est): as restantes coisas não são aquilo que são. Com efeito, cada uma das coisas tem o seu ser a partir daquelas coisas pelas quais é, isto é, a partir das suas partes, e é isto e também aquilo, isto é, as suas partes conjuntadas, mas não isto ou aquilo singularmente. Por exemplo, o homem terreno compõe-se a partir duma alma e dum corpo, é corpo e alma, mas não o corpo ou a alma parcialmente tomados; portanto, não é aquilo que é. Na verdade, aquilo que não é a partir disto

69 «Cuius coniunctionis ratio est indifferentia.» Ibidem, 1, 42-43, p. 167. 51

e daquilo, mas apenas é isto, é verdadeiramente aquilo que é; e é o mais belo e o mais forte, pois não é sustentado por nenhum outro. Portanto isto é verdadeiramente uno, sem nenhum número, sem nada nele além daquilo que é. E não pode tornar-se num sujeito: com efeito, é forma, e as formas não podem ser verdadeiramente sujeitos70. Enquanto pura forma, não há em Deus uma distinção entre o seu ser (esse) e aquilo que é (id quod est). As formas que constituem os compostos materiais não são esta pura forma de Deus, mas imagines, isto é, algo que tem uma certa semelhança com a pura forma, mas que não o é, e não o é justamente porque nelas o ser e aquilo que é não são a mesma coisa71. Estas imagines são como que formas imanentes individualizadas que são ontologicamente dependentes da verdadeira forma a que se assemelham72. Num indivíduo concreto material, que é um id quod est, a forma que constitui o seu esse não equivale à sua totalidade. Por isso, um id quod est pode participar em algo que não ele, que lhe dá o esse, mas a própria forma não participa em nada. Esta distinção servirá também para compreender o modo como dá conta da diferença entre o uso das categorias para Deus e o seu uso para as restantes coisas. Antes de dedicar um capítulo inteiro apenas aos relativos, Boécio faz um uso exaustivo da regra já mencionada: as categorias são tais quais os sujeitos permitirem. De Deus, podem

70 «In naturalibus igitur rationabiliter, in mathematicis disciplinaliter, in divinis intellectualiter versari oportebit neque diduci ad imaginationes, sed potius ipsam inspicere formam, quae vere forma neque imago est et quae esse ipsum est et ex qua esse est. Omne namque esse ex forma est. (…) / Sed divina substantia sine materia forma est atque ideo unum est, est id quod est: reliqua enim non sunt id quod sunt. Unumquodque enim habet esse suum ex his ex quibus est, id est ex partibus suis, et est hoc atque hoc, id est partes suae coniunctae, sed non hoc vel hoc singulariter, ut cum homo terrenus constet ex anima corporeque, corpus et anima est, non vel corpus vel anima in partem; igitur non est id quod est. Quod vero non est ex hoc atque hoc, sed tantum est hoc, illud vere est id quod est; et est pulcherrimum fortissimumque, quia nullo nititur. Quocirca hoc vere unum, in quo nullus numerus, nullum in eo aliud praeterquam id quod est. Neque enim subiectum fieri potest: forma enim est, formae vero subiectae esse non possunt.» Ibidem, 2, 78-106, pp. 169-170. 71 Em OS III, estas duas noções são aprofundadas por Boécio. 72 «Forma vero quae est sine materia non poterit esse subiectum nec vero inesse materiae: neque enim esset forma, sed imago. Ex his enim formis quae prater materia sunt, istae formae venerunt quae sunt in materia et corpus efficiunt.» [Na verdade, a forma que é sem matéria não poderia ser um sujeito nem verdadeiramente encontrar-se na matéria, a não ser que não fosse forma, mas imagem (imago). Com efeito, foi a partir daquelas formas que estão para além da matéria que estas formas vieram a ser, as quais estão na matéria e formam (efficiunt) o corpo.] Ibidem, 2, 110-115, pp. 170-171. 52 predicar-se todas as categorias a não ser duas: a posição (situm esse) e o padecer (pati). Contudo, quatro delas – às quais, para as restantes coisas que não Deus, se pode acrescentar a posição e o padecer – não são verdadeiramente predicamentos, pois dizem mais as “circunstâncias da coisa” (quasi circumstantiae rei) do que propriamente algo acerca da coisa: o onde, o quando, o ter e o fazer. São sempre referências a algo extrínseco que dá uma certa informação ou delimitação da coisa de que se predicam, mas não dizem diretamente respeito à coisa. Não é esse o caso da substância, da quantidade e da qualidade. Estas diferem no modo como são ditas de Deus e no modo como são ditas de todas as outras coisas, mas dizem imediatamente respeito à própria coisa de que são predicadas. Em consonância com o que foi dito atrás, a simplicidade da substância divina, que é pura forma, faz com que nela coincidam o esse e o id quod est. Esta característica explica porque é que, por um lado, nem sequer deveria ser chamado substância, e por outro, é o único ao qual se pode verdadeiramente chamar substância73. Essa simplicidade faz com que Deus não possa ser um sujeito, e nesse sentido não é substância, pois nele nada pode acontecer que não coincida consigo próprio. Daí que as quantidades e as qualidades em Deus são o mesmo que aquilo que ele é, não se encontram nele como num sujeito. De modo a que se distingam das quantidades e qualidades acidentais, ao invés de serem chamadas accidentia secundum rem, em Deus deveriam ter o nome de predicações segundo a substância da coisa (praedicatio secundum substantiam rei)74.

73 «Sed haec praedicamenta talia sunt, ut in quo sint ipsum esse faciant quod dicitur, divise quidem in ceteris, in Deo vero coniuncte atque copulate hoc modo: nam cum dicimus ‘substantia’ (aut homo vel Deus), ita dicitur quasi illud de quo praedicatur ipsum sit substantia, ut substantia homo vel Deus. Sed distat, quoniam homo non integre ipsum homo est ac per hoc nec substantia; quod enim est, aliis debet, quae non sunt homo. Deus vero hoc ipsum Deus est.» [Mas estes predicamentos são de tal maneira que naquilo no qual são o próprio ser, produzem aquilo que é dito. Separadamente nas restantes coisas, conjuntamente e copulativamente em Deus deste modo: de facto, quando dizemos “substância” (quer homem, quer Deus), assim diz-se como que aquilo do qual se predica que isso mesmo é substância, tal como a substância homem ou Deus. Mas há uma diferença, porque um homem não é esse mesmo homem integralmente, e por isso também não é substância ; aquilo que é, deve-o a outras coisas que não são homem. Na verdade, Deus é esse mesmo Deus; de facto, não é nada senão aquilo que é, e por isso é o próprio Deus.] Ibidem, 4, 198-207, p. 174. 74 Cf. Ibidem, 2, 275-278, p. 177. 53

É então que chega ao nó górdio que pretende desatar: os relativos Pai, Filho e Espírito Santo. De que modo são três sem multiplicarem a substância de Deus? A sua argumentação tem dois momentos. No primeiro, dita que os relativos não têm a capacidade de mudar a essência da coisa de que são relativos. Num segundo momento, mostra que há relações nas quais não é necessária a alteridade entre os relata, como no caso das relações de igualdade ou mesmidade. Para provar o caráter extrínseco das predicações relativas, dá o exemplo do senhor e do servo, comparando-o com o da brancura. Quando se suprime a brancura de uma coisa branca, ela perde algo que se encontrava nela intrinsecamente. No caso da supressão do servo, o senhor não perde nada, porque ele era senhor apenas na medida em que exercia uma certa força coerciva relativamente a alguém que não ele. O caráter extrínseco da relação permite a Boécio dizer que as Pessoas da Trindade, enquanto predicações relacionais de Deus, não alteram em nada a sua substância. Resta-lhe, portanto, mostrar que é possível que haja relações sem que sejam necessárias duas coisas diferentes. Dá o exemplo da relação do igual para o igual: Seguramente, deve saber-se que nem sempre a predicação relativa é de tal maneira que se predique relativamente a um diferente, tal como o servo e o senhor, que efetivamente diferem. De facto, todo o igual é igual ao igual e o semelhante é semelhante ao semelhante, e o mesmo é o mesmo que aquilo de que é o mesmo; e é semelhante a relação do Pai com o Filho e de um e outro com o Espírito Santo na Trindade, tal como daquele que é o mesmo com aquilo que é o mesmo75. Em OS II concluirá novamente que «a Trindade não pertence à substância76». Há uma pluralidade de relações numa substância una e simplíssima, e isso é possível na medida em que a relação não afeta a essência da substância e não exige que haja qualquer tipo de alteridade entre os termos relacionados.

75 «Sane sciendum est non semper talem esse relativam praedicationem ut semper ad differens praedicetur, ut est servus ad dominum: differunt enim. Nam omne aequale aequali aequale est et simile simili simile est et idem ei quod est idem idem est; et similis est relatio in Trinitate Patris ad Filium et utriusque ad Spiritum Sanctum, ut eius quod est idem ad id quod est idem.» Ibidem, 6, 345-352, p. 180. 76 «(…) trinitas igitur non pertinet ad substantiam.» Idem, Utrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate substantialiter praedicantur, 4, 58-59, p. 184. 54

Além deste redimensionamento da categoria da relação, é de realçar aqui o modo como Boécio chega a dizer que há seis categorias que não dizem propriamente nada segundo a coisa, sendo de duvidar sequer se se lhes deve atribuir uma existência real, posto que apenas limitam a coisa apontando para circunstâncias externas, as quais são, também elas, coisas. Contudo, nunca é dito por Boécio que não existam. E há uma consonância com o modo como este, a partir de Porfírio, define o skopos das Categorias de Aristóteles: não é um livro que fala sobre as coisas, mas sobre as palavras enquanto significam coisas, como foi exposto acima. Esta ambiguidade entre o predicar, o pensar e o estatuto do real permitiu que a Alta Idade Média latina pudesse usar textos de Boécio para defender posições contraditórias entre si. As reconfigurações e o preenchimento de lacunas no que diz respeito à determinação do estatuto das categorias menos faladas por Aristóteles será, justamente, o assunto da parte que se segue, com a qual finalizaremos esta breve exposição dos alicerces históricos sob os quais a escolástica relançará o problema da suficiência das categorias.

1.3. Reconfigurações e preenchimento de lacunas: as Categoriae decem e o Liber sex principiorum

From examining the commentaries to the Isagoge, Categories and De Interpretatione, there emerges a definite pattern of development in earlier medieval logic. Logicians in the late ninth century, working under the influence of Eriugena, enthusiastically adopted ideas and techniques from Aristotelian logic, but tended to turn them to their own metaphysical and theological purposes, often without pausing to understand them thoroughly. By contrast, their successors, and perhaps many of their contemporaries, preferred to follow the steadier, more methodical approach to logic already suggested by the work of Alcuin and his pupils. Unashamedly and trustingly, they used Boethius’s commentaries as guides to the logic of Aristotle and Porphyry, adapting them in order to provide a close sentence-by-sentence guide to the texts until, by the twelfth century, they had learned to compose literal commentaries closer, more

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thorough and more detailed than mere excerptions by Boethius would permit. Similarly, they began by simply copying the more discursive sections of Boethius’s commentaries, and then gradually they added to Boethius’s logical questions and solutions those of their own devising. Boethius’s influence remained, but the problems had become more complicated and their solutions more sophisticated then he had envisaged. The finest logicians of the mid-twelfth century were still, so to speak, seated on the shoulders of Boethius; but they, too, were giants. John Marenbon77

A receção de Aristóteles no mundo latino medieval não se fez a um tempo. Entre o chamado renascimento carolíngio, cuja figura cimeira é a de Alcuíno de Iorque (c. 735 – 804), e a institucionalização dos métodos de ensino e das autoridades naquilo que se viria a tornar a universidade, há um caminho tortuoso, pouco linear, de assimilação de fontes. Há igualmente figuras ímpares que, no entanto, terão pouca influência após essa mesma institucionalização do ensino, tais como João Escoto Eriúgena (c. 800 – c. 877) ou Pedro Abelardo (1079 – 1142). De acordo com John Marenbon, havia três traves-mestras nas preocupações filosófico-teológicas dos autores do período compreendido entre a renovação dos estudos filosóficos na corte de Carlos Magno e o aparecimento dos primeiros comentários literais a Aristóteles, a saber: o problema dos universais, a noção de essência e as categorias. As fontes utilizadas para dar sentido a estes três assuntos eram as doutrinas lógicas retiradas de um corpus de autoridades bastante exíguo: a Isagoge de Porfírio, os comentários de Boécio às Categorias e ao Da Interpretação, as Categoriae decem e (raramente) o livro IV de De nuptiis Philologiae et Mercurii de Marciano Capella78. Contudo, estas mesmas doutrinas, devido à tentativa de fundamentar os dogmas cristãos, adquiriram uma

77 John Marenbon, «Medieval Latin Commentaries and Glosses on Aristotelian Logical Texts, Before c. 1150 A.D.» in John Marenbon, Aristotelian Logic, Platonism and the Context of Early Medieval Philosophy in the West, Ashgate, Aldershot – Burlington 2009, II, pp. 96-97. 78 Não se sabe nada sobre a sua vida a não ser aquilo que ele próprio transmite neste texto exuberante, escrito numa data incerta entre 410 e 439. Sobre os comentários carolíngios a Marciano Capella, cf. Mariken Teeuwen – Sinéad O’Sullivan (eds.), Carolingian Scholarship and Martianus Capella, Brepols, Turnhout 2011. 56 significação teológica79. Como atrás vimos, houve uma alteração do significado de algumas doutrinas aristotélicas por via do De trinitate de Agostinho e dos opúsculos teológicos de Boécio. Quanto ao assunto das categorias, este processo de assimilação e interpretação das autoridades é particularmente denso. Embora uma versão compósita do comentário de Boécio às Categorias de Aristóteles circulasse e estivesse disponível, os glosadores preferiam usar uma paráfrase que era atribuída a Agostinho: as já mencionadas Categoriae decem. Hoje sabe-se que se trata de uma obra de um autor da aristocracia romana, possivelmente um senador. Esta obra foi, direta ou indiretamente, influenciada por alguma das viagens de Temístio (c. 317 – 388) a Roma (em 355 e 377), enquanto senador do Império Romano do Oriente80. Embora pese a autoridade de Agostinho, que poderá ter surgido de uma simples confusão na leitura de uma referência ao senador romano Vécio Agório Pretextato (Agorius, nome que poderia ter uma abreviatura parecida com a do nome Augustinus), o principal motivo da preferência pelas Categoriae decem pode ter decorrido do próprio conteúdo do texto, o qual vai muito para além de uma paráfrase ao texto aristotélico. Só mais tarde, sensivelmente a partir do século XI, com a complexificação dos problemas e o sucessivo aparecimento da forma literária do comentário (literal, por questões ou misto), é que surge uma necessidade premente de aceder a um texto mais rigoroso81. Há particularmente três doutrinas interligadas das Categoriae decem que nesta contextualização dos antecedentes ao problema da suficiência das categorias na escolástica medieval são dignas de nota. A primeira é a noção de substância, a qual nunca surge com esse nome, mas sim com a transliteração usian ou usia. De facto, esta noção é mais proveitosa para uma teologia apofática à maneira de Eriúgena, na qual a diairesis do género supremo até ao indivíduo é tematizada do ponto de vista histórico do drama da criação82, ou para a discussão dos opúsculos teológicos de Boécio, do que a aristotélica:

79 Cf. Idem, From the Circle of Alcuin to the School of Auxerre. Logic, Theology and Philosophy in the Early Middle Ages, Cambridge University Press, Cambridge 2006, p. 4 e ss. 80 Cf. Maijastina Kahlos, Vettius Agorius Praetextatus – a Senatorial Life in Between, (Acta Instituti Romani Finlandiae no. 26), Institutum Romanum Finlandiae, Helsínquia 2002, cap. 3.2. 81 Cf. John Marenbon, From the Circle of Alcuin to the School of Auxerre, cap. 1. 82 Acerca da noção de ousia no Peri Physeon de Escoto Eriúgena, cf. Ibidem, cap. 3. 57

Em suma, embora observasse abundantemente os dispersos géneros especiais conhecidos de um modo a conciliá-los, contudo chama usian (οὐσίαν) ao nome ingente e capaz até ao infinito de compreender em si o que quer que seja, fora do qual nada se pode descobrir nem pensar83. A usia surge como um género supremo que compreende em si todas as coisas e não como uma categoria particular de entes. Não se trata apenas de um género supremo, mas de algo que traz à existência todas as coisas: «Podem, contudo, denominar-se com o mesmo nome “géneros”, “espécies” ou εἴδη enquanto têm algo mais excelso, isto é, a usian, a partir da qual se originam e são trazidos à existência84». Esta torção da noção de substância pode ser lida em conjunto com as outras duas doutrinas que consideramos pertinente sublinhar. A primeira é retirada de Temístio e diz respeito ao sujeito das Categorias: Mas, tal como apraz ao erudito filósofo do nosso tempo Temístio, Aristóteles começa por tratar daquelas coisas que são percebidas, as quais o próprio chama pelo nome grego σημαινόμενα ou φαντασίας, “imagens das coisas inseridas na alma”; na verdade, uma vez que propôs disputar acerca das coisas percebidas, também foi necessário que falasse das coisas que são e das que são ditas. As coisas percebidas, com efeito, originam-se a partir das que são, as quais percebemos vendo; porém, não existe uma demonstração das coisas percebidas a não ser que sejam demonstradas pelo auxílio das que se dizem. Logo, embora aquelas coisas que são devam ser definidas depois separadamente, contudo devemos conduzir uma discussão misturada sobre as três85.

83 «Postremo, licet abunde prospexerat dispersa passim genera speciali nota concilians, tamen ingenti quodam et capaci ad infinitum nomine omne quidquid est comprehendens dixit οὐσίαν, extra quam nec inveniri aliquid nec cogitari potest.» Pseudo-Augustini paraphrasis themistiana, in Aristoteles latinus 1.1- 5, § 5, p. 134 16-19. Cf. Anexo 1 do volume de anexos. 84 «Eadem tamen ‘genera’, ‘species’ vel εἴδη nominari possunt quod habent excelsius aliquid, id est usian, ex qua oriri videantur et nasci.» Pseudo-Augustini paraphrasis themistiana, § 8, p. 135, 9-11. 85 «Sed, ut erudito nostrae aetatis Themistio philosopho placet, de his Aristoteles tractare incipit quae percipiuntur quaeque ipse vocat graeco nomine σημαινόμενα sive φαντασίας, ‘imagines rerum insidentes animo’; verum, cum de perceptis proposuerit disputare, et de iis quae sunt et de iis quae dicuntur necessario locuturus est. Percepta enim ex his oriuntur quae sunt, quae videndo percipimus; perceptorum autem deerit demonstratio nisi eorum quae dicuntur auxilio fuerint demonstrata. Ergo, quamquam separatim postea ea 58

Talvez esta posição possa servir de explicação para o facto de o autor, ao expor o capítulo 5 das Categorias – no qual é indubitável a primazia da substância primeira, posto que «todas as outras coisas ou são ditas das substâncias primeiras como de sujeitos ou estão nelas como em sujeitos86» –, afirmar que Aristóteles define a usia pelas suas partes perante a impossibilidade de uma definição lata de usia, dada a extensão das coisas que ela sustém87. Essa impossibilidade dita que a usia seja apresentada na sua divisão em primeira e segunda, com primazia da primeira. A usia primeira é aquela que precisamos de perceber para intelectualmente encontrarmos nela as suas formas, ou os seus géneros e espécies. Mais ainda, ela é aquilo que é percebido pelos sentidos, enquanto que os acidentes são “aquilo que é coligido pelo tratamento da alma” (illud quod animi tractatu colligitur), ou pelas operações mentais88. Parece indiciar, assim, que as categorias se distinguem a partir da diversidade de modalidades de coisas percebidas, ou de operações mentais que geram diversos objetos. Isto conduz-nos à terceira doutrina, pois também ela está ligada à torção da noção de substância e à dependência, por assim dizer, da perceção da substância pelos sentidos. Trata-se do postulado de uma divisão dos acidentes em três grupos, os quais se constituem a partir da sua relação com a usia. São eles o grupo dos acidentes que estão dentro da usia, o dos que estão fora e o dos que estão dentro e fora:

quae sunt definiturus sit, mixtam tamen de tribus disputationem debemus accipere.» Pseudo-augustini paraphrasis themistiana, §§ 20-21, p. 137, 20 – 138, 1. 86 Aristóteles, Categorias, p. 68 (2a35-36). 87 «Sed usian, quoniam secundum artem definiri non poterat – quae praecipit ut definitio, quo possi tendi latius, a genere sumat exordium, ipsa autem usia genus non habet cum omnia ipsa sustineat –, per partes eam voluit definire, ut quid sit, non solum eius definitione, verum partium quoque cognitione noscatur.» [Mas a usia, a partir do momento em que não pôde ser definida de acordo com a arte – a qual prescreve que a definição, que se pode estender a um sentido mais lato, começa pelo género, mas a própria usia não tem um género com todas as coisas que ela sustém –, quis defini-la pelas suas partes, enquanto o que é (quid sit), não só na sua definição, mas também nas partes em que é reconhecida na cognição.] Pseudo-augustini paraphrasis themistiana, § 57, p. 145, 25 – 146, 2. 88 «Cum igitur, in iis quae sunt, alia sensibus, alia mentibus colligantur, separari haec propriis nominibus homines eruditi maluerunt, et id quod dinoscitur sensibus ‘usian’ dici, illud autem quod animi tractatu colligitur ac saepe mutatur συμβεβηκός [id est ‘accidens’] nominari voluerunt.» [Portanto, uma vez que daquelas coisas que são, umas se coligem pelos sentidos, outras pelas operações mentais, os homens eruditos preferiram separá-las pelos nomes que lhes são próprios, e aquilo que se distingue pelos sentidos é dito “usia”; porém, aquilo que é coligido pelo tratamento da alma e frequentemente se altera, quiseram nomear συμβεβηκός, isto é, acidente.] Ibidem, § 29, pp. 139, 28 - 140, 2. 59

Estas são as dez categorias, das quais a primeira é a usia, a qual sustém as restantes nove; as restantes, na verdade, são os nove συμβεβηκότα, isto é, acidentes. Destes nove, uns estão na própria usia, outros fora da usia, outros quer dentro, quer fora. Qualidade, quantidade e jazer <(=posição)> estão na própria usia (com efeito, rapidamente, como disséssemos que a usia é homem ou cavalo, é necessário que advertíssemos ser bípede, trípede, ou branco, ou preto, ou levantado, ou jacente; estas coisas encontram-se nela própria e sem ela não podem existir). Outros estão fora da usia: onde, quando, ter (com efeito, nem o lugar pertence à usia, nem o tempo, e o estar vestido ou armado estão separados da usia). Outras são comuns, isto é, quer dentro quer fora da usia: relativamente a algo, fazer e padecer; relativamente a algo, como mais e menos – um e outro, de facto, não podem ser ditos senão em conjunto com outro que seja mais ou menos; logo, posto isto, um tem-se em si, outro, fora de si. Do mesmo modo, fazer está dentro e fora, tal como não se pode dizer “assassinar” a não ser que outro assassine, ou “ler” a não ser que o próprio leitor seja uma coisa e aquilo que ele lê outra (e logo, quer na usia, quer fora). Semelhantemente para o padecer: com efeito, ser assassinado ou ser queimado não pode ser nada a não ser que seja padecido por outro; devido a isso, esta também está dentro e fora da usia89. Esta divisão dos acidentes fará fortuna. Roberto Kilwardby, primeiro autor a tratar no próximo capítulo, utiliza este mesmo critério, embora agrupe os acidentes diferentemente.

89 «Hae sunt categoriae decem, quarum prima usia est – scilicet quae novem ceteras sustinet – reliquae vero novem συμβεβηκότα (id est accidentia) sunt. Ex quibus novem sunt alia in ipsa usia, alia extra usian, alia et intra et extra. Qualitas, quantitas et iacere in ipsa usia sunt (mox enim ut usian vel hominem vel equum dixerimus, advertamus necesse est bipedalem, tripedalem, aut album aut nigrum, aut stantem aut iacentem; haec in ipsa sunt, et sine hac esse non possunt). Alia sunt extra usian: ubi, quando, habere (et locus enim ad usian non pertinet, et tempus et vestiri vel armari ab usia separata sunt). Alia sunt communia, id est et intra et extra usian: ad aliquid et facere et pati; ad aliquid, ut maius et minus (utraque enim dici non possunt nisi coniuncto altero quo maius sit vel minus; propterea ergo unum in se habent, aliud extra se). Item facere et extra est et intra ut caedere quisque dici non potest nisi alterum caedat, vel legere nisi ipse legens aliud sit, aliud quod legit (ita ergo et in usia est et extra). Pati similiter; caedi enim vel uri nullus potest nisi ab altero patiatur; propterea hoc quoque et in usia est et extra usian.» Ibidem, §§ 51-54, p. 144, 19 - 145, 6 60

Embora as Categoriae decem sistematizem as categorias que não padecem de um tratamento aprofundado em Aristóteles, continuam a ser bastante lacónicas. Há uma remissão de algumas das seis categorias não visadas por Aristóteles para as outras quatro, como o caso do fazer e do padecer, remetido para a qualidade, e do estar posicionado, remetido para o relativamente a algo. De duas delas, faz-se uma distinção sem que esta seja aprofundada, a saber, o onde e o quando, distinguidos respetivamente do lugar e do tempo. Após a perda de influência desta paráfrase temistiana, a pouco e pouco substituída pela tradução de Boécio do texto aristotélico, surge no século XII o Liber sex principiorum, que virá a fazer parte do corpus de autoridades da logica vetus, sendo comentado por muitos autores dos séculos XIII e XIV90. A sua inclusão neste corpus restrito torna fundamental que atentemos nele, dado que, inclusivamente, algumas das tentativas de justificar a suficiência das categorias estão presentes em comentários a este livro e outras fazem uso de muitas doutrinas nele presentes. O Liber sex principiorum é atribuído, pelo menos desde Alberto Magno e provavelmente antes disso, a Gilberto de Poitiers (Gilbertus Porretanus, c. 1085 – 1154), o célebre comentador dos Opuscula Sacra de Boécio do século XII. Porém, são tantas as incongruências entre o Liber e os seus comentários que esta hipótese tem de ser posta de lado91. É muito plausível que não se trate de uma obra completa, mas de um fragmento de um texto mais amplo e sistemático. Pondo de parte estas dificuldades, é certo que foi uma obra influente e que servia como texto complementar às Categorias. Embora não haja uma coincidência com nenhuma autoridade particular, o pensamento mais próximo

90 Cf. William E. McMahon, «The Liber Sex Principiorum. A Twelfth-century Treatise in Descriptive Metaphysics» in Ernst F. K. Koerner (ed.), Progress in Linguistic Historiography. Papers from the International Conference on the History of the Language Sciences, Ottawa, 28–31 August 1978, John Benjamins Publishing Company, Amesterdão 1980, pp. 3-12. 91 Acerca deste assunto, cf. Lorenzo Minio-Paluello, «Magister sex principiorum» in Lorenzo Minio- Paluello, Opuscula: The Latin Aristotle, Hakkert, Amesterdão 1972, pp. 536-564; Patrick Osmund Lewry, O.P., The Liber Sex Principiorum, a supposedly Porretanian Work. A study in ascription, Bibliopolis, Nápoles 1987; [Gilberto Porretano], Libro dei sei princìpi, intr., trad. e notas Francesco Paparella, Bompiani, Milão 2009, pp. 45-126 (Introduzione, caps. 4 e 5). Esta edição bilingue reproduz o texto latino da edição de Lorenzo Minio-Paluello: Anonymus, Liber sex principiorum, in Aristoteles latinus, 1.6-7, ed. Lorenzo Minio-Paluello, Desclée De Brouwer, Paris 1966, pp. 35-59. Cf. a nossa tradução integral no Anexo 2. 61 daquele que é apresentado no texto, de acordo com Francesco Paparella, o tradutor italiano desta obra, é o de Abelardo92. Deste modo, apesar de Abelardo ser um dos autores que fica ultrapassado com a institucionalização do ensino na Idade Média tardia, algumas das suas teses influenciaram os autores futuros por via do Liber sex principiorum. O Liber começa abruptamente com um capítulo sobre a noção de forma. É a partir da divisão da forma em subsistente (subsistens) e contingente (contingens), e desta em intrínseca e extrínseca, que se dá a ocasião de se falar acerca dos chamados seis princípios. Os seis princípios são as formas contingentes extrínsecas, ou as formas que não têm que ver imediatamente com o ser da coisa: a ação (actio), a paixão (passio), a posição (dispositio/positio), o onde (esse alicubi/ubi), o quando (in mora/quando) e o ter (habere/habitus). Um dos elementos mais interessantes do tratamento destas categorias é a procura da sua génese e daquilo que é originado por elas93. Há uma estrutura relativamente bem definida na exposição, embora não seja totalmente linear: começa pela definição; de seguida, lança algumas distinções de modo a encontrar o idion da categoria; depois, procura a génese da categoria; por fim, imitando os capítulos de Aristóteles sobre as quatro primeiras categorias, pergunta-se sobre a suscetibilidade à contrariedade e ao mais e ao menos. Por vezes, remete posteriores explicações para outras obras de Aristóteles. Apesar de ser possível identificar algumas afinidades, são de notar bastantes diferenças na sistematização das categorias entre o Liber sex principiorum e as Categoriae decem. Em primeiro lugar, não se faz menção à possibilidade de algumas categorias estarem simultaneamente dentro e fora da usia, o que significa que a ação e a paixão serão agrupadas nas formas extrínsecas e a relação nas intrínsecas94. Em segundo lugar, ao passo que na paráfrase temistiana apenas se faz menção à distinção entre quando e tempo, e entre onde e lugar, no Liber esta distinção é explicada. Em terceiro, a posição,

92 Cf. [Gilberto Porretano], Libro dei sei princìpi, intro., caps. 4 e 5. 93 Cf. Ibidem, intro., 3.2., p. 28. 94 Boécio fizera esta mesma bipartição, mas, como vimos na secção anterior, postula que a relação é extrínseca à substância na qual inere. Cria-se aqui uma tensão que se repete ao longo não só do período que pretendemos tratar, mas de toda a história da filosofia. 62 isto é, a ordenação das partes no lugar, é tomada como algo extrínseco. Debrucemo-nos brevemente sobre cada um destes pontos. Comece-se pela ação. A ação, tal como a paixão, é originada sempre por um quale, mas não é o quale. O quale é um “algo” (aliquid), mas a ação “age em algo” (in quid agit). Daí o seu caráter extrínseco. O capítulo acerca da ação contém, aliás, um trecho no qual se põem em relação de origem cinco dos seis princípios: Aquilo que é quale origina a partir de si o fazer (facere); com efeito, o calor é uma qualidade, mas efetiva a ação de aquecer. A posição, na verdade, é aquilo que torna efetivas as qualidades particulares e as quantidades – a aspereza e a lisura, deveras, bem como as coisas semelhantes, são qualia; e a linha, a superfície e a solidez são quantidades; todas estas, porém, adquirem a substância e a geração pelo estar posicionado (situs). Todavia, a quantidade é da quantidade (como por exemplo, a linha da longitude, o plano da latitude, o corpo sólido da altitude); a qualidade também é da qualidade (como o calor da calidez [caliditatis calor]); o estar posicionado, porém, é do agir e do padecer (a geração dos simples, a qual é necessário que consista numa ação motiva, produz-se numa certa composição e disposição); o onde, na verdade, do lugar; o ter, do corpo (dizemos “ter” aquelas coisas que estão à volta do corpo)95. A qualidade origina a ação (o fazer, facere), mas ela mesma é originada pela posição, porque depende da disposição das partes de uma substância. Contudo, essa mesma disposição pode ser originada por uma ação ou paixão, conforme o enfoque seja dado ao agente ou ao efeito do agente no agido. A paixão, de facto, não é outra coisa do que o efeito da ação. Diz-se ainda que o onde é do lugar e o ter do corpo. O autor do Liber procede, deste modo, a uma tentativa de explicar como é que umas realidades que caem

95 «Facere vero id quod quale est ex se gignit; qualitas etenim calor est, efficit autem eam que calefacere est actionem. Qualitatum vero particularium positio effectrix est et quantitatum (asperitas enim et lene et similia qualia sunt, linea vero et superficies et soliditas sunt quantitates, universa autem hec a situ substantiam et generationem habent); quantitas autem quantitatis (ut longitudinis linea, latitudinis planum, altitudinis vero solidum corpus); qualitas etiam qualitatis (ut caliditatis calor); situs autem agere et pati (in dispositionis namque compositione quedam generatio simplicium fit, quam in motiva actione consistere necesse est); ubi vero locus; habere autem corpus (ea enim que circa corpus sunt habere dicimur).» Anonymus, Liber sex principiorum, cap. 2, §§ 25-26. 63 sob uma das categorias conduzem a alterações que originam algo que pertence a outras categorias. No que diz respeito ao segundo aspeto apontado, a saber, as distinções entre quando e tempo, e entre onde e lugar, afirma-se que embora uma forma seja adquirida pela outra, elas não podem ser a mesma. O quando é a afeção (infectio é a palavra usada) do tempo96. O tempo fica sob a alçada da categoria da quantidade contínua e constitui uma medida das coisas. O mesmo não se passa com o quando, que apenas indica que algo está inscrito no tempo e é variável, determinando uma coisa enquanto estando inscrita na sucessão de instantes presentes. A sua relação com o tempo é complexa, pois tal como o tempo, ou é, ou foi, ou há de ser; e tal como o tempo, é sucessivo e contínuo. Apesar de ser simultâneo ao instante presente ao determinar que algo é presente, o mesmo não se passa com o passado e o futuro – o quando precede o futuro e é sucessivo ao passado, ao passo que o presente é sucessivo ao futuro e precede o passado. A diferença entre o onde (ubi) e o lugar (locus) é também ela complexa. Embora não exista um sem o outro, devem distinguir-se, porque o onde é a circunscrição de um corpo num lugar, não o lugar tomado absolutamente. O lugar está naquilo que contém, enquanto que o onde está naquilo que é circunscrito por esse lugar, é uma determinação extrínseca de uma coisa. O lugar não pertence à coisa, é aquilo que a circunscreve97. Como se pode verificar pelo trecho supracitado, assiste-se a uma valorização da posição. Esta valorização é confirmada no capítulo em que é exposta, no qual é dito que, das formae superpositae, a que está mais próxima da substância é a posição, “auxiliar da

96 «Quando vero est quod ex temporis adiacentia relinquitur, tempus autem quando non est; utriusque autem ratio coniuncta est: ut tempus quidem preteritum quando non est, effectus autem eius et infectio que est secundum quam aliquid dicitur fuisse quando quidem est.» [O quando é aquilo que resta a partir das coisas adjacentes ao tempo; o tempo, porém, não é o quando, mas a razão de um e outro é conjunta: por exemplo, o tempo passado não é o quando, mas o quando é o seu efeito e afeção (infectio) segundo a qual se diz que algo foi .] Ibidem, cap. 4, § 33. 97 «Ubi vero est circumscriptio corporis a loci circumscriptione procedens, locus enim in eo quod capit et circumscribit; est igitur in loco quidquid a loco circumscribitur, non autem in eodem locus et ubi, locus siquidem in eo quod capit, ubi autem in eo quod circumscribitur et complectitur.» [O onde (ubi) é a circunscrição do corpo procedente da circunscrição do lugar (locus), enquanto que o lugar naquilo que contém e circunscreve; portanto, está no lugar o que quer que seja circunscrito pelo lugar, mas não no mesmo lugar e onde: o lugar naquilo que contém, o onde, porém, naquilo que é circunscrito e circundado.] Ibidem, cap. 5, § 48. 64 substância” (substantiae assistens)98. Parece, deste modo, aproximar-se das Categoriae decem, que haviam agrupado a posição nos acidentes que se encontram dentro da usia. Porém, definiu-se logo no início que a posição era uma das formas que advêm extrinsecamente. Fica insinuado, sem que nada seja dito, que a ordenação das partes num lugar é desnecessária para definir uma substância enquanto tal. Este livro é rico em peculiaridades além das apresentadas, mas são estas as que mais influência terão na discussão da suficiência das categorias. É sobretudo de destacar que este projeto de completar os espaços em branco deixados por Aristóteles inspirou posteriores tentativas de estabelecer a identidade e a imprescindibilidade de cada uma das dez categorias. Não só inspirou, como conferiu alguns meios para o fazer. Por outro lado, naquilo que tem de controverso, como por exemplo o caráter extrínseco da posição ou o caráter intrínseco da relação, serviu como espoleta de novas doutrinas.

Até agora, falámos exclusivamente da receção das Categorias no mundo latino, deixando de parte os autores medievais de língua grega (Fócio [c. 820? – c. 891], por exemplo), siríaca (Sérgio de Rechaina [? – 536], entre outros) e árabe (Al-Kindi [c. 800 – 870], Al-Farabi [870? – 950/951], Avicena [c. 970 – 1037], etc.). Embora fosse além do nosso propósito fazer uma apresentação sumária da receção das Categorias nestas tradições99, é importante debruçarmo-nos sobre um autor cuja influência se fez sentir

98 «Magis proprium autem videtur esse positionis substantiae proprius assistere omnibus quidem aliis formis superpositis; positio enim nihil aliud est quam naturalis ipsius substantie ordinatio que vel a principio quidem innata est, ut ea que asperis vel lenibus, equalibus vel inequalibus inest, vel a nature quidem motu consueto, ut sessio et accubitus et similia. Quidquid igitur est proxime substantie assistens, id necessario positio est; et omnis quidem positio huius rationis suscipit predicationem.» [Parece, porém, mais próprio da posição ser um auxiliar da substância do que todas as outras formas que lhe são sobrepostas; de facto, a posição não é outra coisa do que a ordenação da própria substância natural, a qual é inata pelo seu princípio – tal como aquela que é áspera ou macia inere na igualdade ou desigualdade – ou pela natureza do seu movimento habitual, tal como o estar sentado, reclinado e semelhantes. Portanto, o que quer que seja um auxiliar próximo da substância, necessariamente será uma posição, e esta razão dá-se na predicação de toda a posição.] Ibidem, cap. 6, § 68. 99 Cf. Sten Ebbesen – John Marenbon – Paul Thom (eds.), Aristotle’s Categories in the Byzantine, Arabic, and Latin Traditions, Scientia Danica, Series H, Humanistica 8, vol. 5. Publications for the Centre of the Aristotelian Tradition, Royal Danish Academy of Sciences and Letters, Copenhaga 2013; Sérgio de Reshaina (Sergius of Reshaina), Introduction to Aristotle and his Categories, Addressed to Philotheos, ed., trad. e notas Sami Aydin (Aristoteles Semitico-Latinus, vol. 24), Brill, Leida – Boston 2016; Daniel King (ed.), The Earliest Syriac Translation of Aristotle's Categories. Text, Translation and Commentary, 65 muito consideravelmente no mundo latino. Mais importante do que isso, a sua resposta ao problema da suficiência das categorias constitui um marco, na medida em que ecoa em autores incontornáveis como Pedro de João Olivi ou João Duns Escoto. Trata-se de Avicena, o médico e filósofo persa, que faz uma crítica a qualquer tentativa de deduzir a suficiência das categorias por uma via divisiva. É pertinente colocá-lo em último lugar na nossa exposição. A tradução da sua Sufficientia – o famoso Livro da Cura (Kitab al-Shifaʾ) – para o latim começou a ser feita na segunda metade do século XII, em Toledo, numa frutuosa colaboração entre diversos tradutores, especialmente Avendeuth (Abraham Ibn Da’ud, c. 1110 – 1180) e Domingos Gundissalvo (Gundissalinus, c. 1110/1115 – post 1190)100. Posto que as vias divisivas foram uma das tentativas mais comuns de provar a suficiência das categorias ao longo do século XIII, tem toda a relevância que fechemos este capítulo com a crítica de Avicena101. Diga-se, porém, que a parte da lógica do Livro da Cura onde se encontra essa crítica não estava disponível em latim, muito embora autores como Suárez (1548 – 1617), já no final do século XVI, pareçam saber que a fonte dessa crítica é, de facto, o autor persa102. Se e como terá chegado a autores do final do século XIII, que a reproduzem, não conseguimos descobrir. Contudo, há uma pequena passagem de Avicena, disponível em latim, que indicia pelo menos a ideia de que não está obrigado a restringir o movimento a uma das dez categorias nem a aceitar esse número como certo. Esta passagem não se encontra nos textos lógicos nem nos textos metafísicos do Livro da Cura, mas sim no

(Aristoteles Semitico-Latinus, vol. 21), Brill, Leida – Boston 2010; Ahmed Alwishah – Josh Hayes (eds.), Aristotle and the Arabic Tradition, Cambridge University Press, Cambridge 2015. 100 Cf. Jules Janssens, «Latin Translations of Ibn-Sina (Avicenna)» in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, Springer, Dordrecht 2011, pp. 522-527; Avicenna Latinus, Codices, desc. códices Marie-Thérèse D’Alverny, Académie Royale de Belgique, Lovaina-a-Nova – Leida 1994, pp. 1-8. 101 Baseamo-nos em Paul Thom, «The division of the categories according to Avicenna» in Ahmed Alwishah – Josh Hayes (eds.), Aristotle and the Arabic Tradition, Cambridge University Press, Cambridge 2015, cap. 2, pp. 30-49. As referências a Avicena não ficarão por aqui, como se verá. Aludiremos a várias doutrinas suas no momento oportuno. 102 «Quocirca verum esse existimo quod Avicena dixisse referunt, non posse ratione propria et a priori demonstrari tot esse genera summa, et non plura nec pauciora.» [Acerca disto, estimo que seja verdade aquilo que referem que Avicena disse: não se pode demonstrar por uma razão própria e a priori que seja este o número dos géneros supremos, nem mais nem menos.] Francisco Suárez, Disputaciones Metafísicas. tomo V, XXXIX, II, § 18, p. 721. Repare-se na expressão “aquilo que referem que Avicena disse”. 66 primeiro dos oito Libri naturalium. De facto, é no segundo tratado da Sufficientia103, na parte em que pretende aplicar as categorias ao movimento, que Avicena trabalha este problema. Esta passagem é tomada por Pedro de João Olivi para criticar a coincidência entre modos de ser e modos de predicar, como se tornará patente em 3.2. Independentemente do facto de não termos encontrado de que modo se deu a receção no mundo latino dos argumentos de Avicena contra as vias divisivas, não podíamos deixar de apresentá-los aqui. Antes de Avicena, Al-Farabi já criticara o modo como alguns autores árabes, possivelmente seguindo as vias divisivas de Olimpiodoro (c. 500 – c. 570) e de (um presumível) Elias104, ditavam a identidade das últimas seis categorias através de uma via combinatória, dizendo, por exemplo, que o quando e o onde são o produto da combinação da substância com a quantidade, ou que o agir e o ser agido são o produto da combinação da substância com a qualidade. Avicena segue o mesmo caminho que Al-Farabi ao considerar que uma dedução das categorias é vã105. Em primeiro lugar, afirma que Aristóteles nunca fez tal coisa. Em segundo lugar, persiste o problema da sua

103 Confusamente para o intérprete contemporâneo, atribuía-se esse nome, quer ao Livro da Cura como um todo, quer à primeira parte dos Libri naturalium, a qual trata da física aristotélica. Eis a passagem: «Nos enim non cogimur observare hanc regulam famosam qua dicitur quod decem sunt genera, quorum uniuscuiusque est certissima generalitas, et quod nihil est extra ipsa» [De facto, não nos sentimos compelidos a observar aquela famosa regra na qual se diz que os géneros são dez, os quais têm uma generalidade certíssima, e que não há nada fora deles.] Avicenna Latinus, Liber Primus Naturalium, tr. 2: De motu et de consimilibus, ed. Simone Van Riet – Jules Janssens – André Allard, Académie Royale de Belgique, Lovaina-a-Nova 2006, cap. 2, p. 185. 104 Não se sabe ao certo quem é. Há uma série de comentários do século VI a Aristóteles que são atribuídos a um Elias, por vezes também chamado David, que seria um discípulo cristão de Olimpiodoro. É possível que sejam textos escolares de discípulos pagãos de Olimpiodoro e que tardiamente tenham sido atribuídos por escribas monásticos a um prefeito do imperador Justiniano chamado Elias. Deste modo, os monges teriam uma justificação para copiar os textos. Cf. Christian Wildberg, «Elias» in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2016 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = . 105 «Like al-Fārābī, Avicenna objects to any attempt to construct a deduction of the categories. In the first place, he observes, Aristotle himself made no such attempt. And, second, in his judgment any such attempt must be vain. The ten categories have to be irreducibly different from one another. So none of them has a genus. Therefore no specific division can arrive at them. They can be arrived at, if at all, only by a process of non-specific partition.» Paul Thom, «The division of the categories according to Avicenna», p. 34. Infelizmente, o nosso desconhecimento do árabe impede-nos de aceder ao texto de Avicena. Apenas acedemos às traduções inglesas citadas por Paul Thom. 67 irredutibilidade: as categorias, para o serem, não podem ter um género a partir do qual se dividam. Uma via divisiva que as especifique está condenada ao fracasso desde o início. Porém, Avicena discute e propõe de um modo altamente sofisticado uma via divisiva decalcada a partir daquela que já aparecera nas Categoriae decem, a qual denomina como «divisão amplamente aceite106», isto é, o agrupamento dos acidentes em três: os que são internos à substância; os que são externos; e os que são internos e externos. Baseia-se nela, mas altera-a de modo a que sejam cumpridas condições de divisão lógica mais estritas, a saber, que a divisão produza conhecimento, que seja dicotómica, de modo a não conter classes intermediárias, e que se dê através de diferenças que especifiquem os géneros. É curioso que a sua correção da via divisiva “amplamente aceite” não é coerente em vários pontos com a sua própria teorização das categorias na parte do Livro da Cura dedicada à metafísica. Em última análise, Avicena rejeita qualquer tentativa semelhante, negando que se possa chegar a uma lista das categorias através de uma divisão que as especifique107.

Terminamos, deste modo, o preâmbulo ao problema da suficiência das categorias na escolástica medieval, assunto principal da nossa inquirição, o qual necessitava de todas estas referências prévias para que fosse mais bem compreendido.

106 Cf. Ibidem, pp. 36-38. 107 De acordo com Paul Thom, esta suposta hesitação de Avicena ao apresentar a sua própria via divisiva ao mesmo tempo que rejeita tal procedimento explica-se pelas seguintes razões: «Even though Avicenna did not think it was worthwhile one, he did think it was worthwhile to show the standard that such a deduction would have to meet. The methodology would at least have to include dichotomous division, in order to meet his own requirements for a satisfactory division. His intention was to show that a serious attempt to arrive at the widely accepted division will fail to arrive at precisely that division, and in any case will involve false assumptions.» Ibidem, p. 48. 68

Capítulo 2. Século XIII: o século das vias divisivas

Deux facteurs on définitivement transformé, dans la première moitié du XIIIe siècle, non seulement l’enseignement, mais aussi la pratique et les contenus de la philosophie: l’institutionnalisation de la Faculté des arts à l’intérieur des universités et ce que l’on appelle l’entrée d’Aristote en Occident. Ces deux facteurs entretiennent sans doute entre eux un rapport dialectique de stimulation réciproque, mais ce qui compte surtout est le fait que la philosophie et le statut du philosophe dans la société médiévale ont changé. En effet, s’est alors progressivement mis en place un double processus d’autonomisation à la fois de la discipline et de ceux qui la pratiquaient, processus qui n’atteindra son apogée qu’après 1250, mais dont les prémisses s’établissent lentement durant la première moitié du siècle. Ruedi Imbach108

Embora o ensino da filosofia nas faculdades de artes não esgote toda a produção filosófica da primeira metade do século XIII, é um facto inegável que a institucionalização do ensino universitário tem uma enorme relevância para a história da filosofia. São poucas as fontes disponíveis para que se tenha uma imagem suficientemente rigorosa do processo de institucionalização do ensino filosófico nas primeiras universidades, mas proliferam textos filosóficos, muitos deles anónimos, a grande maioria de difícil datação. São de destacar os comentários a obras de gramática (sobretudo a Prisciano) e os comentários ao corpus de autoridades conhecido como logica vetus, como já referimos109. Existe, igualmente, um problema historiográfico que é digno de nota: há muito mais documentação e estudos sobre a Universidade de Paris do que sobre qualquer outra, o que

108 Ruedi Imbach, “Introduction”, in Jacques Verger – Olga Weijers (eds.), Les Débuts de l’enseignement universitaire à Paris (1200 – 1245 environ), (Studia Artistarum, 38) Brepols, Turnhout 2013, sec. III, p. 129. 109 As dezenas de volumes da coleção Studia Artistarum têm vindo a contribuir amplamente para um conhecimento mais apurado do funcionamento, dos mestres e dos textos das faculdades de artes nas universidades medievais. 69 leva muitas vezes a que se tome a parte pelo todo. É imensamente abusivo usar a Universidade de Paris como modelo para todas as outras. De facto, nas universidades do sul de França, da Península Ibérica e de Itália, o direito e a medicina eram as áreas mais importantes do ensino. Por conseguinte, no que diz respeito às faculdades de Artes, a retórica (importante para os futuros juristas) e a filosofia natural (dirigida aos futuros médicos) tinham um lugar de destaque. Particularmente em Bolonha e em Pádua, a faculdade de Direito era hegemónica, a ponto de se tornar difícil para as outras áreas obter uma certa autonomia institucional. Já em Paris, Oxford e Cambridge, que detiveram o exclusivo do ensino da teologia até meados do século XIV – em contexto universitário, o que não quer dizer que não se ensinasse teologia noutros contextos, como nos studia das ordens mendicantes –, o ensino da filosofia nas faculdades de artes era propedêutico para o futuro teólogo. A gramática e, acima de tudo, a lógica eram as áreas dominantes. É também nestas faculdades que se geram tensões entre filosofia e teologia nos assuntos em que as duas se sobrepõem. Essa tensão conduziu a várias condenações, geralmente relacionadas com o uso da filosofia natural e da metafísica aristotélicas para elucidar assuntos de fé110. Veremos que os primeiros autores a justificar as categorias de Aristóteles por meio de vias divisivas foram professores da Faculdade de Artes da Universidade de Paris e que é em comentários lógicos que encontramos este procedimento. No entanto, com o desenrolar do século, por diversos fatores que tentaremos elucidar, estas tentativas não se cingem ao âmbito dos comentários lógicos, pelo que é mister escrutinar o que é dito pelos autores no contexto da metafísica, da física e da teologia, em particular, a aplicação das categorias aristotélicas à elucidação teórica da Trindade. De facto, é da teologia que vêm as primeiras vozes a questionar a ideia de que há uma coincidência entre os dez predicamentos e os géneros irredutíveis de entes reais. O próprio lugar de uma teoria das categorias, à medida que o século vai avançando, começa a ser problematizado,

110 Para um bom resumo do desenvolvimento das faculdades de artes e de teologia nas universidades medievais, cf. Gordon Leff, «The trivium and the three philosophies», in Hylde de Ridder-Symoens, Universities in the Middle Ages, (A History of the University in Europe, vol. 1), Cambridge University Press, Cambridge – Nova Iorque – Port Chester – Melbourne – Sydney 1992, cap. 10.1, pp. 307-336; Monika Asztalos, «The Faculty of Theology», in Hylde de Ridder-Symoens, Universities in the Middle Ages, cap. 13, pp. 409-441. 70 culminando numa bifurcação entre um tratamento lógico e um tratamento metafísico das categorias, com a respetiva problematização da coexistência entre os dois níveis.

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2.1. As primeiras sufficientiae

2.1.1. O Compendium examinatorium parisiense (c. 1230/40)

O documento histórico que mais nos pode ajudar a compreender como se dava o ensino das Categorias de Aristóteles na Universidade de Paris¸ pelo menos a partir do segundo quartel do século XIII, é o manuscrito que se encontra no Arquivo da Coroa de Aragão, em Barcelona, com a cota Ripoll 109. Este manuscrito contém um Compendium examinatorium parisiense, muitas vezes chamado “Guia do Estudante”, cuja edição provisória foi publicada em 1992 por Claude Lafleur111. Trata-se de uma obra cujo autor e data são incertos, embora Lafleur a situe algures entre os anos 1230 e 1240 a partir de critérios contextuais112. Este compêndio, como o nome indica, contém um resumo das matérias que eram submetidas a exame. Para cada obra a ser estudada, postula o seu sujeito e a sua divisão. Depois disso, coloca questões-modelo e as respetivas respostas. Nele, é clara, antes de mais, a coincidência entre a extensão de texto dedicada a cada uma das matérias e a prescrição das matérias nos estatutos de 1215, escritos pelo cardeal Robert de Courçon, destinados à Faculdade de Artes da Universidade de Paris113.

111 Claude Lafleur – Joanne Carrier, Le “Guide de l’étudiant” d’un maître anonyme de la faculté des arts de Paris au XIIIe siècle. Édition critique provisoire du ms. Barcelona, Arxiu de la Corona d’Aragó, Ripoll 109, ff. 134ra-158va, Publications du Laboratoire de Philosophie Ancienne et Médiévale de la Faculté de Philosophie de l’Université Laval, Quebeque 1992. Sobre esta obra e assuntos relacionados, cf. Claude Lafleur – Joanne Carrier (eds.), L'enseignement de la philosophie au XIIIe siècle: Autour du “Guide de l'étudiant” du ms. Ripoll 109, Studia Artistarum, 5, Brepols, Turnhout 1997. 112 Cf. Ibidem, pp. 12-13. 113 «Et quod legant libros Aristotelis de dialectica tam de ueteri quam de noua in scolis ordinarie et non ad cursum. Legant etiam in scolis ordinarie duos Priscianos uel alterum ad minus. Non legant in festiuis diebus nisi philosophos et rhetoricas, et quadriuuilia, et barbarismum, et ethicam, si placet, et quartum topichorum. Non legantur libri Aristotelis de methaphisica et de naturali philosophia, nec summe de eisdem, aut de doctrina magistri Dauid de Dinant, aut Amalrici heretici, aut Mauricii hyspani.» [E que leiam os livros de Aristóteles sobre a dialética, tanto sobre a velha quanto sobre a nova, nas lições ordinárias e não de passagem. Leiam também nas lições ordinárias os dois Priscianos, ou pelo menos um deles. Não leiam nos dias festivos senão os filósofos <(i.e., o Timeu de Platão e a Consolação da Filosofia de Boécio)>, as retóricas, as coisas do quadrivium, o Barbarismum e, se se quiser, a Ética e o quarto dos Tópicos. Não se leiam os livros de Aristóteles sobre a metafísica e a filosofia natural, nem sumas sobre os mesmos, nem a doutrina do mestre David de Dinant, ou de Amalrico herético, ou de Maurício Hispano.] Chartularium Universitatis Parisiensis, ed. H. Denifle – É Châtelain, Université de Paris, Paris 1889, t. I, nº 20, p. 78. A identificação dos philosophi com Platão e Boécio foi recolhida no prefácio de Claude Lafleur ao “Guia do Estudante”: Cf. Claude Lafleur – Joanne Carrier, Le “Guide de l’étudiant”…, p. 16. 72

Estes estatutos são fruto das condenações das teses “panteístas” de Amalrico de Bena (? – 1204/1207) e de David de Dinant (c. 1160 – c. 1214/17) no Concílio de Sens (1210) e no IV Concílio de Latrão (1215), concílio no qual também se estabeleceu que as Sentenças de Pedro Lombardo seriam manual de ensino da teologia114. Das 89 colunas de texto que este compêndio contém, 24 são dedicadas à gramática e 60 à lógica, as duas disciplinas com maior extensão, o que coincidiria com o seu peso horário na lecionação. Conjuntamente com a retórica, completando o trivium, estas disciplinas encontram-se na III parte do compêndio: Philosophia Rationalis. Na sua terceira e última secção, encontramos a lógica, a qual se divide em: A. Introdução (2 colunas) – nela, define-se o sujeito e as divisões da lógica; B. Categorias (6 colunas); C. Da interpretação (3 colunas e 1/4); D. Analíticos Anteriores (6 colunas e 2/5); E. Analíticos Posteriores (9 colunas e 4/5); F. Tópicos (13 colunas e 3/5); G. Refutações Sofísticas (10 colunas e 1/5); H. Isagoge de Porfírio (4 colunas e 2/3); I. Livro dos seis princípios (3 colunas e meia). As duas obras finais eram ditas serem mais sobre o bene esse logices do que sobre o esse logices, ou seja, eram complementares. É neste contexto institucional de primazia da lógica sobre as outras artes que temos de enquadrar a questão da suficiência das categorias. Por outro lado, é importante frisar de que modo a lógica era articulada e ordenada nas suas partes e, mais ainda, a insistência deste compêndio em seguir uma estrutura na qual começa sempre por indicar o sujeito do texto e as suas divisões, para, de seguida, dar conta da suficiência das matérias. A suficiência é garantida quando determinada lista – de assuntos, conceitos, ou do que quer que seja – é completa. Deste modo, o procedimento das sufficientiae é didático e diz respeito a muitos assuntos, não apenas às categorias. Como aponta Heine Hansen, Aristóteles já o utilizara nos Tópicos para justificar a sua lista de quatro predicados e poderá ser este o modelo para as sufficientiae115. Com efeito, no oitavo capítulo do primeiro livro, Aristóteles propõe um modo epagógico e um modo dedutivo de

114 Cf. Monika Asztalos, «The Faculty of Theology», p. 420. 115 Cf. Heine Hansen, «Accounting for Aristotle’s Categories: Some Notes on the Medieval Sufficientiae Praedicamentorum before Albert the Great» in Christina Thomsen Thörnqvist – Börje Bydén (eds.), The Aristotelian Tradition: Aristotle’s Works on Logic and Metaphysics and Their Reception in the Middle Ages, Pontifical Institute of Mediaeval Studies, Toronto 2017, pp. 16-48. Este artigo, que nos foi amigavelmente cedido pelo autor, foi fundamental para a escrita deste subcapítulo. 73 demonstrar que há apenas quatro tipos de predicados. O modo dedutivo é, efetivamente, uma via divisiva a partir de dicotomias mutuamente exclusivas: há predicados convertíveis e inconvertíveis; nos convertíveis, uns ditam a essência da coisa (as definições), outros não (as propriedades); nos inconvertíveis, uns estão contidos na definição do sujeito (os géneros e as diferenças específicas), outros não (os acidentes)116. Não só Aristóteles, mas também Boécio, à imagem de alguns comentadores tardoantigos que o terão influenciado, fez uso de uma via divisiva deste tipo para justificar os cinco predicáveis de Porfírio117. Ao passo que Aristóteles e Boécio dividem as suas listas a partir de dicotomias mutuamente exclusivas, nem todas as sufficientiae, em

116 «Outra forma de nos podermos persuadir do que dissemos recorrendo a um raciocínio dedutivo. É que, necessariamente, tudo quanto seja predicado de uma coisa, ou pode, ou não pode ser objeto de conversão. Se pode ser predicado por conversão é porque se trata de uma definição ou de uma propriedade (se indica qual é a essência da coisa é uma definição, se não indica, é uma propriedade; isto é, trata-se de uma propriedade sempre que a predicação resultante de conversão não indica a essência da coisa). Se o predicado atribuído à coisa não é convertível, das duas uma, ou algum dos termos predicados do sujeito está contido na definição, ou não está. Se um desses termos faz parte da definição, deverá tratar-se ou do género ou da diferença específica, já que toda a definição comporta a indicação de um género e de diferenças específicas. Se, porém, não fizer parte da definição, é evidente que se tratará de um acidente, porquanto dissemos acima que é «acidente» tudo quanto pertence à coisa, mas não é nem definição, nem propriedade, nem género.» Aristóteles, Tópicos, intr., trad. e notas J. A. Segurado e Campos, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa 2007, I, cap. 8, 103b7-19, p. 244. 117 «Fieri autem potuit commodior diuisio hoc modo. eorum quae dicuntur, alia quidem ad singularitatem praedicantur, alia ad pluralitatem, eorum uero quae de pluribus praedicantur, alia secundum substantiam praedicantur, alia secundum accidens. eorum quae secundum substantiam praedicantur, alia in eo quod quid sit dicuntur, alia in eo quod quale sit, in eo quod quid sit quidem, genus ac species, in eo quod quale sit, differentia. item eorum quae in eo quod quid sit praedicantur, alia de speciebus praedicantur pluribus, alia minime; de speciebus pluribus praedicantur genera, de nullis uero species. eorum autem quae secundum accidens praedicantur, alia quidem sunt quae de pluribus praedicantur, ut accidentia, alia quae de uno tantum, ut propria.» [Porém, poder-se-ia fazer a divisão mais comodamente deste modo: daquelas coisas que se dizem, umas predicam-se quanto à singularidade e outras quanto à pluralidade; das que se predicam de vários, umas predicam-se segundo a substância, outras segundo o acidente. Das que se predicam segundo a substância, umas são ditas no ‘o que é’ (quid sit), outras no ‘qual é’ (quale sit); no ‘o que é’, o género e a espécie, enquanto que no ‘qual é’, a diferença. Igualmente, daquelas que se predicam no ‘o que é’, umas são predicadas de várias espécies, outras não; os géneros são predicados de várias espécies e as espécies, verdadeiramente, de nenhumas. Contudo, daquelas coisas que se predicam segundo o acidente, umas são as que se predicam de vários, como os acidentes, e outras as que apenas de um, como as propriedades.] Boethius, In Isagogen Porphyrii Commenta, ed. Samuel Brandt, CSEL 48.1, Viena – Lípsia 1906, pp. 186.12-187.1. Apresentamos aqui apenas uma das vias divisivas, porventura a mais simples. Na verdade, antes e depois desta, Boécio apresenta várias outras possibilidades de justificar os predicáveis de Porfírio, mas basta esta para que se compreenda a sua influência no modo como se desenvolveu o procedimento das sufficientiae. 74 especial as das categorias, eram tão sistemáticas. O Compendium examinatorium, como dissemos, também contém um procedimento análogo para a justificação da completude da lista aristotélica de categorias. Mas situemos primeiro o lugar das categorias aristotélicas nos planos mais gerais da lógica e da filosofia racional. A lógica é a parte da filosofia racional na qual se estuda «o discurso por comparação do inteligido com o inteligido de acordo com a repugnância ou identidade entre si»118, o que é o mesmo, para o compilador, do que dizer que a lógica considera o verdadeiro e o falso. A gramática não diz respeito à verdade (veritas), mas à congruência (congruitas), e a retórica ao ornamento (ornatus). Dentro da lógica, são apresentadas diversas possibilidades de divisão interna. A primeira delas é também uma sufficientia. Divide o sujeito da lógica, a saber, o silogismo, nas suas partes integrais e subjetivas. A parte integral remota do silogismo é o termo (terminus), tratado nas Categorias, e a parte integral próxima do silogismo é a proposição (propositio), assunto do Da interpretação. O silogismo enquanto tal (simpliciter), antes de ser especificado nas suas partes subjetivas, é tratado nos Analíticos Anteriores. As partes subjetivas do silogismo são duas: a sua matéria necessária, a saber, o silogismo demonstrativo, tratado nos Analíticos Posteriores, e a sua matéria contingente, isto é, o silogismo dialético. Este pode ser tratado ut frequentius ou raro, ou seja, de acordo com o seu uso mais habitual, matéria dos Tópicos, ou de acordo com situações excecionais, matéria das Refutações sofísticas. Assim, os livros do Organon esgotariam o esse logices. Pode-se chegar à mesma divisão, de acordo com o compilador, a partir da noção de verdade. As Categorias diriam respeito à verdade incomplexa. Por fim, apresenta a divisão de Al-Farabi, feita de acordo com uma tipologia de erros do intelecto ao abordar a linguagem. Haveria erros: de ordenação, assunto das Categorias; de composição, assunto do Da interpretação; e de reunião, assunto dos restantes livros do Organon119. É a primeira divisão a que mais interessa ao compilador. Esta divisão da lógica constitui uma opinio communis neste período.

118 «(…)sermo per comparationem intellectus ad intellectum secundum quod habeant repugnantiam uel ydemptitatem inter se.» Claude Lafleur – Joanne Carrier, Le “Guide de l’étudiant”, III, § 134, p. 75. Cf. a tradução das partes que aqui comentamos no Anexo 3. 119 Cf. Claude Lafleur – Joanne Carrier, Le “Guide de l’étudiant”, § 510, pp. 140-141. 75

Chegando às Categorias, o autor do compêndio também começa por perguntar qual o seu sujeito e quais as suas divisões. O sujeito das Categorias é o dizível incomplexo ordenável no género que advém intrinsecamente (dicibile incomplexum ordinabile in genere intrinsecus adueniens)120. Há já aqui algo que indicia uma divisão no seio das categorias, a saber, a expressão “que advém intrinsecamente” (ou o adveniente intrínseco). Esta especificação serve o propósito de explicar que, nas Categorias, Aristóteles enumera as dez categorias, mas teoriza plenamente (plene) apenas as quatro primeiras: substância, quantidade, relação e qualidade. Ao contrário das restantes seis, estas são intrínsecas, dizem respeito à substância e àquilo que se encontra intrinsecamente nela. O dizível incomplexo ordenável no género que advém extrinsecamente é matéria do Liber sex principiorum. Além disso, não se faz qualquer menção à metafísica, muito embora, como veremos, ao estabelecer a suficiência dos predicamentos, se fale daquilo que “existe por natureza”, não do dizível. As partes das Categorias, também de acordo com uma divisão muito comum nos comentadores tardoantigos, são: ante-predicamentos, predicamentos e pós- predicamentos. Na segunda (e principal) parte, ao determinar os predicamentos em comum, antes de se falar de cada um dos quatro em particular, é formulada a questão da sua suficiência: «Igualmente, pergunta-se por que razão são dez os predicamentos e não mais121». A resposta divide-se em dois parágrafos, os quais coincidem com a divisão entre aquilo que advém intrinsecamente e aquilo que advém extrinsecamente: Quanto ao primeiro, dizemos que tudo o que existe por natureza se reduz a algum daqueles dez. Mas tudo o que existe, ou é substância, ou acidente. Portanto, existe um predicamento da substância ao qual se reduzem todas as coisas que são desse género e também no qual todas as coisas se sustentam de acordo com a natureza do seu ser, como diz Aristóteles na Metafísica: que as substâncias não são apenas as causas das substâncias, mas dos acidentes. Os acidentes, porém, recebem a sua diversidade na substância: com efeito, uns são intrínsecos, outros extrínsecos. Os intrínsecos, por seu turno, podem ser considerados de vários

120 Ibidem, § 519, p. 146. 121 Ibidem, § 543, p. 152 76

modos: de facto, existe um certo acidente intrínseco que é princípio de numeração ou de mensuração (principium numerandi uel mensurandi) da substância, e assim é a quantidade; e existe outro que inere na substância pela sua dependência de outra substância, e assim é a relação; outro é o que inere na substância ao dispô- la para o ser melhor (in melius esse), e assim é a qualidade. A partir disto, é patente também a solução da terceira questão, a saber, por que razão aqui se trata plenamente daqueles três, que são a quantidade, a qualidade e a relação, e não dos outros. E isto é porque estes três são tomados como formas intrínsecas na substância; os outros seis, na verdade, são formas extrínsecas. E por isso sobre eles existe um livro separado por si, algo que também afirma o autor dos Seis princípios no fim do tratado sobre a forma. Porém, deste modo, as seis formas são tomadas de um modo multíplice: umas são princípios de conservação de qualquer substância causada, e são assim a ação e a paixão, tal como se postula que a paixão se encontra nas inteligências numa aceção geral segundo a qual dizemos que padecem por influência do Primeiro; outras, na verdade, são mais princípios de conservação das naturezas das substâncias que são sujeitas ao movimento, como o tempo e o lugar, e a partir destes são tomados o quando e o onde; outro, por seu turno, é princípio de conservação das coisas animadas e inanimadas, mas as animadas, através do Primeiro, pela sua situação e ordem, e assim é a posição; outro, na verdade, é princípio de conservação das coisas animadas apenas na alma racional, e assim é o hábito, como é evidente pelas suas espécies. A partir disto, é patente que pertinentemente estes são chamados os seis princípios122.

122 «Ad primum, dicimus quod omne quod est per naturam reducitur ad aliquod illorum X. Sed omne quod est aut est substantia aut accidens. Est ergo unum praedicamentum substantia ad quod reducuntur omnia que sunt de illo genere et etiam in qua omnia saluantur secundum naturam sui esse, ut dicit Aristotiles in Metaphisicis quod substantie non solum sunt cause substantiarum, sed accidentium. Accidentia autem recipiunt diuersitatem sui in substantia: quedam enim sunt intrinseca, quedam extrinseca. Intrinseca adhuc multipliciter possunt considerari: est enim quoddam accidens intrinsecum quod est principium numerandi substantiam uel mensurandi, et sic est quantitas; et est aliud quod inest substantie per dependentiam eius ad aliam substantiam, et sic est relatio; aliud est quod inest substantie in disponendo ipsam in melius esse, et sic est qualitas. / Ex hoc patet etiam solutio tertie questionis, illius scilicet que fuit ultimo facta, quare hic agit plene de ipsis tribus que sunt quantitas, qualitas, relatio, et non de aliis. Et hoc est quia ista tria sunt ut 77

O autor deste compêndio, depois de situar as Categorias (e o Liber sex principiorum) na lógica, parte mais importante da filosofia racional e de todo o currículo de estudos na Faculdade de Artes, determina a completude das categorias a partir de critérios metafísicos. Todo o existente é substância ou acidente. A substância é a pedra angular, causa de tudo, não apenas da substância. Os acidentes são formas intrínsecas ou extrínsecas nas substâncias, e as suas subdivisões dizem respeito a funções diferentes desempenhadas na determinação da substância. Umas formas determinam a numericidade e mensurabilidade de uma substância, outras determinam aquilo que se encontra numa substância pela sua dependência com outra, outras a sua disposição para o melius esse. Nas formas extrínsecas, há até determinações próprias de substâncias específicas, e não da substância numa aceção simples ou genérica. Apenas para dar um exemplo, o quando e o onde dizem respeito apenas às substâncias que são sujeitas ao movimento, enquanto que o hábito diz respeito apenas à alma racional das substâncias animadas que a tenham. Cabe perguntar: de que modo estas distinções são lógicas ou dizem respeito aos dizíveis? As diversas determinações das substâncias, que diferenciam os acidentes, constituem regras de predicação próprias? De que maneira estas determinações têm que ver com a ciência do silogismo? Aqui, não se problematiza a questão, embora se tente enquadrar as Categorias de Aristóteles como parte integral remota da ciência do silogismo.

De facto, houve um longo processo de assimilação das exigências de cientificidade propostas pelos Analíticos Posteriores. Neste processo, duas questões, de certa maneira novas, começam a ser desenvolvidas: qual a unidade de uma ciência, em geral, e qual a unidade da ciência das categorias, em particular? A partir destas, a questão do próprio

forme intrinsece in substantia, alie uero sex forme sunt extrinsece. Et ideo de illis est liber separatus per se, quod etiam innuit auctor Sex principiorum in fine tractatus de forma. Accipiuntur autem huiusmodi VI forme multipliciter: quedam enim sunt principia conseruandi quamlibet substantiam causatam, et hoc modo sunt actio et passio, ut ponatur esse passio in intelligentiis large sumpta secundum quod dicimus quod patiuntur per influentiam a Primo; quedam uero sunt principia magis conseruandi substantias nature que subiacent motui, ut tempus et locus, et ex hiis sic accipiuntur quando et ubi; quoddam enim est principium conseruandi res animatas et inanimatas, sed animatas Primo per sui situm et ordinem, et sic est positio; quoddam uero est principium conseruandi res animatas solum anima rationali, et sic est habitus, sicut patet per suas species. Ex hoc etiam patet quod merito dicuntur ista sex principia.» Ibidem, § 546-547, pp. 152- 153. 78 sujeito, garantia da unidade de uma ciência, é colocada. O sujeito das categorias enquanto tratadas pelo lógico e enquanto tratadas pela metafísica é diverso. Sendo assim, como se relacionam os dois níveis de tratamento das categorias? Roberto Kilwardby, João Pago (Johannes Pagus, ativo em Paris pelo menos entre 1231 e c. 1245/6), Nicolau de Paris, entre outros autores do segundo quartel do século XIII, desenvolvem respostas a estas questões123. Como vimos, o problema já fora colocado pelos comentadores tardoantigos e uma das razões pelas quais as Categorias entraram nos currículos das escolas neoplatónicas foi o facto de Porfírio ter reduzido o seu skopos ao discurso comum acerca das coisas. De certo modo, antecipando o percurso que vamos percorrer na nossa interpretação dos autores que moldaram as doutrinas das categorias no século XIII, o cerne da questão encontra-se aqui mesmo: há, ou não, um isomorfismo entre o discurso, o pensamento e a realidade? É este o contexto institucional e intelectual onde se movem Roberto Kilwardby e Nicolau de Paris, autores de que nos ocuparemos aqui. Embora tenham escrito comentários às Categorias aproximadamente no mesmo período, as suas propostas de derivação das categorias são bastante diferentes, já que Kilwardby formula a sua via divisiva a partir das Categoriae decem e Nicolau a partir do Liber sex principiorum.

2.1.2. Roberto Kilwardby (c. 1215 - 1279)

Comecemos pelo autor inglês. Este prolífero filósofo e teólogo dominicano é geralmente conhecido pelas suas doutrinas de inspiração agostiniana acerca do caráter ativo da perceção e da pluralidade de formas na substância composta, bem como pela condenação de trinta teses filosóficas que estariam a ser ensinadas em Oxford em 1277, na condição de Arcebispo de Cantuária. Contudo, as suas obras com uma influência mais

123 Cf. Heine Hansen, John Pagus on Aristotle’s Categories. A Study and Edition of the Rationes super Praedicamenta Aristotelis, Leuven University Press, Lovaina 2012, pp. 40*-49*; Idem, «Accounting for Aristotle’s Categories». 79 duradoura foram as de gramática. O seu comentário à logica vetus, que é aquele que mais nos toca no presente trabalho, teve também uma influência bastante considerável124. A sua produção literária é habitualmente dividida em três períodos. No primeiro, o período parisiense (c. 1237 – 1245), produz comentários a obras de lógica e gramática na condição de mestre em artes na Universidade de Paris. No período intermédio, em que regressa a Oxford e se junta à Ordem dos Pregadores (c. 1245 – 1250), produz a obra enciclopédica De ortu scientiarum. No terceiro, o período oxoniense (c. 1250 – 1279), no qual se torna mestre em teologia, produz comentários às Sentenças de Pedro Lombardo e diversos opúsculos sobre temas teológicos125. Nesta secção, veremos de que modo Kilwardby arquiteta a sua sufficientia das categorias nas Notulae super librum Praedicamentorum (c. 1237 – 1240), relacionando as suas conclusões com uma certa mudança de orientação, presente num dos capítulos do De ortu scientiarum (c. 1250). De seguida, compararemos a sua posição com a de Nicolau de Paris. É no proémio às Notulae que encontramos uma resposta acerca do lugar das categorias na lógica e na metafísica. Efetivamente, Kilwardby pensa que o lógico tem de entrar em considerações acerca da realidade em si mesma126. Contudo, fá-lo de um modo

124 Cf. Alessandro D. Conti, «Semantics and Ontology in Robert Kilwardby’s Commentaries on the Logica Vetus», in Paul Thom – Henrik Lagerlund (ed.), A Companion to the Philosophy of Robert Kilwardby, Brill, Leida 2012, pp. 65-130. 125 Henrik Lagerlund e Paul Thom consideram que se deve marcar o terceiro período a partir do momento em que é designado para altas funções eclesiásticas: Provincial dos Dominicanos em Inglaterra a partir de 1261; arcebispo de Cantuária a partir de 1272; e cardeal de Porto – Santa Rufina em 1278. Os dois períodos anteriores seriam o período parisiense, no qual se dedica às artes, e o período oxoniense, no qual se dedica à teologia. Cf. Ibidem, pp. 1-15. Sobre a vida e a obra de Roberto Kilwardby, cf. José Filipe Silva, «Robert Kilwardby», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/robert-kilwardby/. Do mesmo autor, foi publicada recentemente uma monografia sobre Kilwardby na coleção Great Medieval Thinkers: José Filipe Silva, Robert Kilwardby, (Great Medieval Thinkers), Oxford University Press, Oxford 2020. 126 Alessandro D. Conti resume a posição kilwardbiana do seguinte modo: «The grammarian starts with the utterance and goes on to the thought; the logician starts with the thought and ends with the utterance. So the intentions or concepts that characterize grammar are applied to signs, while those characteristic of logic are applied to the essence of things. As a consequence, logic is concerned not only with speech and reasoning, but also with reality itself. However, the logician’s treatment of reality is not that of the metaphysician, since the latter studies the categories as parts of being; the former, on the contrary, studies them in regard to their function as predicates or subjects in sentences. Thus, logic is intended to be the theory of mental discourse concerning being and is therefore ontologically grounded in a correspondence 80 totalmente diverso do modo metafísico. Refere a definição boeciana do sujeito das Categorias – dez palavras (voces) que significam os dez primeiros géneros das coisas127 – para mostrar que, por vezes, a especulação acerca do discurso não está separada da especulação acerca da realidade, posto que Aristóteles reduzira ou ordenara toda a realidade sob dez géneros primeiros: E porque esta ordenação não abdica do discurso, então diz “acerca das dez palavras”; de novo, porque esta ordenação não se encontra separada das coisas, também a especulação sobre os ordenáveis não se encontra separada da especulação sobre as coisas, mas junta. Daí que também não é inconveniente, como certos autores objetam, demonstrar algumas paixões acerca do ordenável enquanto é coisa128. Após enquadrar a ciência dos predicamentos na lógica e esta na filosofia racional ou discursiva (philosophia rationalis sive sermocinalis), pergunta-se acerca da possibilidade de existir uma ciência dos predicamentos e distingue claramente a diversidade entre o seu tratamento lógico e o seu tratamento metafísico. Por um lado, a ciência dos predicamentos, ou dos géneros primeiros – do mesmo modo, aliás, do que qualquer outra ciência – pressupõe o seu sujeito, não o prova, pelo que de certa maneira começa onde o metafísico ou filósofo primeiro acaba. Por outro lado, apesar de tecer considerações acerca da realidade, o lógico não trata os predicamentos como partes do ente, mas sob o ponto de vista da predicação129. Deste modo, ao mesmo tempo que a

between the structural connections in thought and the framework of reality.» Alessandro D. Conti, «Semantics and Ontology in Robert Kilwardby’s Commentaries on the Logica Vetus», pp. 69-70. 127 Boethius, In Categorias Aristotelis, PL 64, 161A. 128 «Et quia haec ordinatio non absolvitur a sermone, ideo dicit “de X vocibus”; et iterum quia haec ordinatio non est separata a rebus, nec speculatio de ordinabilis erit separata a speculatione rerum sed coniuncta. Unde nec est incoveniens, ut quidam obiciunt, demonstrare quasdam passiones de ordinabili in quantum est res.» Robertus Kilwardby, Notulae super Praedicamenta Aristotelis, ed. Alessandro D. Conti, https://web.archive.org/web/20150420120810/http://www- static.cc.univaq.it/diri/lettere/docenti/conti/Allegati/Kilwardby_praedicamenta.pdf (consultado a 09/02/2018), Prooemium, p. 3. Para a tradução portuguesa das partes aqui comentadas, cf. Anexo 4. 129 «Et quod consequenter quaeritur solvitur per hoc quod intentio primi philosophi stat super haec propter relationem ad sermonem, intentio vero logici per relationem, quia primus philosophus considerat haec prout sunt partes et species entis, logicus vero prout in praedicatione et subiectione consistunt. Et praeter hoc intentio primi philosophi non stat super partes entis nisi in quantum reducuntur ad ens; intentio autem logici non stat super ens nisi in suis partibus.» [E o que se pergunta de seguida resolve-se por isto: que a intenção 81 lógica precisa de tecer algumas considerações acerca da realidade, ela não se confunde com a metafísica, já que essas considerações são utilizadas apenas na medida em que sirvam o propósito de compreender o funcionamento dos predicamentos enquanto sujeitos e predicados. Quererá isto dizer que o pensamento se modela na realidade? Certamente que sim. Até que ponto se pode falar de um isomorfismo? Nas Notulae, pode. No De ortu scientiarum, com ressalvas. A proposta de suficiência das categorias nas Notulae baseia-se em dois critérios metafísicos que dizem respeito à substância e à sua estrutura hilemórfica. De certa maneira, mistura um elemento retirado das Categoriae decem com elementos retirados do Liber sex principiorum. Da paráfrase temistiana, retira a tríade intra – extra – medio modo que atrás se apresentou, segundo a qual se podem agrupar os acidentes conforme estes se encontrem dentro, fora ou parcialmente dentro e parcialmente fora da substância. Do Liber sex principiorum, o qual, como referimos, contém algum do vocabulário presente nos opúsculos teológicos de Boécio, retira a noção de forma do primeiro capítulo, bem como a distinção primária entre quod subsistit e quod contingit. Aquilo que subsiste é a forma da substância e as restantes acontecem nela ou na sua dependência. Aquilo que acontece ou é contingente em torno da substância, ou seja, os acidentes, pode ser distribuído a partir da análise hilemórfica da substância: umas formas dizem respeito à matéria da substância, outras à forma, e outras ao composto de matéria e forma. Nas palavras de Kilwardby: Ou o incomplexo significa substância ou acidente, pois ou é o que subsiste, ou o que acontece (quod contingit); porém, o que acontece na substância não pode ser senão de três modos, a saber, ou dentro, ou fora, ou de um modo intermédio, e aconteça qualquer um destes modos, é sempre necessário que tenha uma relação essencial (respectus essentialis) com aquilo em que acontece, a saber, a substância. Contudo, ou acontece da parte da matéria da substância, ou da parte da forma da

do filósofo primeiro se estabelece sobre eles devido à relação com o discurso, mas a intenção do lógico por essa relação, pois o filósofo primeiro considera-os enquanto são partes e espécies do ente, mas o lógico, na verdade, enquanto têm consistência na predicação e no posicionamento como sujeito (praedicatio et subiectio). E além disso, a intenção do filósofo primeiro não se estabelece sobre as partes do ente a não ser enquanto se reduzem ao ente; porém, a intenção do lógico não se estabelece sobre o ente a não ser nas suas partes.] Ibidem, p. 4. 82

substância, ou da substância composta. O que acontece dentro e da parte da matéria é quantidade (a matéria, na verdade, é inteiramente numerável); da parte da forma é qualidade; da parte do conjunto é relação. De facto, estas são as que advêm da substância intrinsecamente. Porém, o que acontece fora da parte da matéria é onde; da parte da forma, quando; da parte do conjunto, hábito. O que acontece de um modo intermédio da parte da matéria é paixão; da parte da forma, ação; da parte do conjunto, posição. Portanto, tem-se destes modos o que acontece. O que subsiste, porém, é substância. Contudo, como a substância é o ente por si (ens per se) e princípio dos outros, é a disposição dos restantes para a causalidade, e portanto, permanece indivisa. Por isso, assim ao todo existem dez predicamentos: substância, quantidade, etc. E é patente a suficiência dos que se dividem a partir da divisão anteriormente dita130.

130 «(…) incomplexum aut significat substantiam aut accidens, quia aut quod subsistit aut quod contingit; quod autem contingit substantiae hoc non potest esse nisi tripliciter, scilicet aut intra, aut extra, aut medio modo, et quocumque istorum modorum contingat, semper necesse est habere essentialem respectum ad id cui contingit, scilicet ad substantiam; contingit autem ex parte substantiae materiae, aut ex parte substantiae formae, aut substantiae compositae; quod contingit igitur intra ex parte materiae quantitas est – materia enim omnino numerabilis est – ex parte formae qualitas, ex parte coniuncti relatio – haec enim sunt quae intrinsece substantiae adveniunt –; quod autem contingit extra ex parte materiae ubi, ex parte formae quando, ex parte coniuncti habitus; quod autem contingit medio modo ex parte materiae passio, ex parte formae actio, ex parte coniuncti positio. His igitur modis se habet quod contingit. Quod subsistit autem est substantia. Substantia autem quia est per se ens et principium aliorum, est dispositio ceterorum ad causalitatem, et ideo remanet indivisa. Sic igitur in universo sunt X praedicamenta, substantia, quantitas, etc. Et patet sufficientia dividentium ex praedicta divisione.» Ibidem, lect. 5, pp. 18-19. 83

o que subsiste o que acontece (quod subsistit): (quod contingit) substância

de um modo dentro fora intermédio

da parte da da parte da da parte da matéria: matéria: onde matéria: paixão quantidade

da parte da da parte da da parte da forma: forma: quando forma: ação qualidade

no composto: no composto: no composto: relação hábito posição

Figura 2. Sufficientia de Roberto Kilwardby

O que talvez seja mais digno de nota é o facto de Kilwardby considerar que a relação é intrínseca, à maneira do “Guia do Estudante”, bem como o facto de a posição – a qual, quer nas Categoriae decem, quer no Liber sex principiorum, era vista como substantiae assistens131 – perder um pouco o destaque e o lugar privilegiado que tivera. É digna de nota, acima de tudo, a uniformidade dos critérios utilizados, todos eles decorrentes de noções metafísicas que se prendem com a substância e a sua estrutura hilemórfica. Assim, embora esta sufficientia tenha, quando comparada com outras posteriores, uma estrutura

131 «Magis proprium autem videtur esse positionis substantiae proprius assistere omnibus quidem aliis formis superpositis; positio enim nihil aliud est quam naturalis ipsius substantie ordinatio que vel a principio quidem innata est, ut ea que asperis vel lenibus, equalibus vel inequalibus inest, vel a nature quidem motu consueto, ut sessio et accubitus et similia. Quidquid igitur est proxime substantie assistens, id necessario positio est; et omnis quidem positio huius rationis suscipit predicationem.» [Parece, porém, mais próprio da posição ser um auxiliar da substância do que todas as outras formas que lhe são sobrepostas; de facto, a posição não é outra coisa do que a ordenação da própria substância natural, a qual é inata pelo seu princípio – tal como aquela que é áspera ou macia inere na igualdade ou desigualdade – ou pela natureza do seu movimento habitual, tal como o estar sentado, reclinado e semelhantes. Portanto, o que quer que seja um auxiliar próximo da substância, necessariamente será uma posição, e esta razão dá-se na predicação de toda a posição.] Anonymus, Liber sex principiorum, VI, § 68. 84 bastante simples, ela é coerente na medida em que não mistura critérios de várias proveniências. Esta não é a última palavra de Kilwardby. Embora tenha escrito, também no contexto da logica vetus, um comentário ao Liber sex principiorum – no qual pretende explicitar pormenorizadamente a essência invariável de cada uma das seis formas extrínsecas, ou seis princípios132 –, a sua resposta parece alterar-se no De ortu scientiarum. No trigésimo terceiro capítulo desta obra enciclopédica, plausivelmente escrita pouco depois de ter deixado Paris e ingressado nos dominicanos133, pergunta-se acerca da doutrina aristotélica que dita a existência de apenas três ciências especulativas, nomeadamente, física, matemática e metafísica: porque é que há apenas três ciências especulativas se há dez categorias que correspondem a dez realidades diversas? A sua resposta baseia-se no livro VI da Metafísica de Aristóteles134: as três ciências distinguem- se de acordo com diversos graus de abstração do movimento e não de acordo com a diversidade dos predicamentos. O que é importante para a atual discussão é o facto de dizer que nem sequer as categorias intrínsecas (que estão dentro da substância, ou seja, quantidade, qualidade e relação) são suficientemente unívocas para constituírem uma ciência una, muito menos as restantes, as quais são mais habitudines rerum do que res, mais disposições das coisas do que verdadeiras coisas135. Postulada esta falta de univocidade no interior de cada categoria, Kilwardby determina de que modo cada

132 Cf. Patrick Osmund Lewry, O.P., The Liber Sex Principiorum. 133 Cf. Robert Kilwardby, De ortu scientiarum, ed. Albert Judy, O.P., The British Academy – The Pontifical Institute of Mediaeval Studies, Londres – Toronto 1976, Introduction, p. xvi. 134 Cf. Aristóteles, Metafísica, VI, 1, 1025b18-1026a16. 135 «Sicut enim quantitas non est res ita una ut sufficiat esse unum subiectum scientiae, sic nec qualitas nec relatio et forte multo minus. Non enim univocantur omnes modi qualitatis aut relationis in aliquo genere quod sit res una naturaliter praeiacens et praecedens eos ut super illam possit fundari scientia una. Item quaedam praedicamenta potius sunt habitudines rerum quam verae res, propter quod sciri habent et doceri per res quarum sunt habitudines et cum illis; cuiusmodi sunt relatio, quando, ubi et huiusmodi.» [Com efeito, do mesmo modo que a quantidade não é uma coisa una de tal modo que seja suficiente para um sujeito de uma ciência, assim também não o é a qualidade, e muito menos a relação. De facto, não são unívocos todos os modos da qualidade ou da relação nalgum género que seja uma coisa una que naturalmente as preceda (res una naturaliter praeiacens et praecedens) de tal maneira que possa fundar uma ciência una. Do mesmo modo, alguns predicamentos são mais disposições das coisas (habitudines rerum) do que verdadeiras coisas, pelo que são sabidas e ensinadas através das coisas das quais são disposições; são assim a relação, o quando, o onde e semelhantes.] Robertus Kilwardby, De ortu scientiarum, cap. XXXIII, § 334, p. 119. 85 categoria é determinada pelos vários scientes, mostrando que partes específicas delas pertencem a uma ciência e não às outras. A substância, enquanto precede o movimento e os corpos naturais, é sujeito da metafísica, que trata de todas as coisas sob a razão comum da entidade. Contudo, a substância móvel ou corpórea é do âmbito do físico. A quantidade também pertence a várias ciências, conforme seja anterior ou posterior à natureza e ao movimento. O mesmo se pode dizer da qualidade, a qual ainda contém em si mais diversidade do que a quantidade, posto que uma das suas espécies nem sequer pertence às ciências especulativas, a saber, os hábitos ou disposições136 que são virtudes, que pertencem ao ético. Também a ação e a paixão pertencem a diversos scientes, embora uma parte da ação nem sequer recaia sob a categoria da ação: a ação de Deus na criação137. Mais importante do que a tentativa de enquadrar cada uma destas categorias no plano das ciências especulativas é o facto de Kilwardby considerar que a relação, o onde, o quando e a posição são habitudines rerum, e não verdadeiras coisas. As relações podem fundar-se na substância, na qualidade, na quantidade, entre outras, mas não são verdadeiras coisas, são disposições (habitudines). Onde, quando e posição, embora sejam trabalhadas na física, são-no pelo facto de serem «disposições das coisas naturais deixadas pelo espaço e pelo tempo»138. A acrescentar a isto, considera que parte da categoria do

136 Não deve ser confundido com a categoria do hábito, a qual não é uma qualidade. Aqui, os exemplos dados desta espécie de qualidade são os conhecimentos e as virtudes, vistos como qualidades que inerem numa alma. 137 Cf. Ibidem, §§ 337-341, pp. 120-121. 138 «Relatio autem partim fundatur in substantia ut identitas et diversitas; partim in quantitate ut aequale et inaequale, partim in qualitate ut simile et dissimile, partim in activis et passivis ut pater et filius, et maxime in his fundatur. Et non est relatio proprie res sed habitudo rerum, et ideo ad eorum considerationem spectat ad quorum considerationem spectant illae res. Unde constat aliqua relativa cadere in consideratione metaphysici, aliqua in consideratione mathematici, aliqua in consideratione physici. / Cetera vero tria genera, scilicet quando, ubi et situs, quia sunt habitudines rerum naturalium derelictae ex tempore et loco, quae cadunt in consideratione physica, ad physicum pertinent.» [A relação, porém, funda-se parcialmente na substância, como por exemplo a identidade e a diversidade; parcialmente na quantidade, como o igual e o desigual; parcialmente na qualidade, como o semelhante e o dissemelhante; parcialmente nos ativos e passivos, como pai e filho, e é nestes que se funda maximamente. E a relação não é propriamente uma coisa, mas uma disposição das coisas (habitudo rerum), e por isso observa a consideração delas quem observa a consideração das coisas . Daí que alguns relativos caem na consideração do metafísico, outros na consideração do matemático, outras na consideração do físico. / Os três géneros restantes, a saber, quando, onde e estar posicionado, pertencem ao físico, uma vez que são disposições das coisas naturais deixadas pelo tempo e pelo lugar, os quais caem na consideração do físico.] Ibidem, §§ 342- 343, pp. 121-122. 86 hábito é artificial, posto que engloba artefactos como roupas e elmos, sujeitos pertencentes à mecânica, não às ciências especulativas139. Assim sendo, Kilwardby parece considerar aqui que apenas substância, quantidade, qualidade, ação, paixão e a parte do hábito que diz respeito a realidades físicas (couro, unhas, cabelo, etc.) constituem verdadeiras coisas reais. Se nas lições sobre as Categorias, aquilo que recaía sob a relação, o quando, o onde e a posição, eram formas reais que constituíam algum tipo de essência invariável, no De ortu scientiarum perdem o estatuto de verdadeira coisa, embora não se possa dizer que percam o seu estatuto real.

2.1.3. Nicolau de Paris (? - 1263)

A segunda via divisiva que pretendemos apresentar e comparar com a de Kilwardby é a de Nicolau de Paris, cuja biografia é bastante desconhecida, muito embora tenha sido um importante magister artium da Universidade de Paris no seu tempo. Sabe-se que terá morrido em março de 1263 e é muito plausível que seja o “Mestre Nicolau das grandes nádegas” (Mestre Nichole aus hautes naches), do poema La Bataille des VII Ars de Henri d’Andeli. Este poema do segundo quartel do século XIII coloca Nicolau – conjuntamente com João Pago e João Pointlasne (fl. c. 1250), também eles mestres de artes em Paris – a combater pela Dama Lógica contra os gramáticos de Orleães, defensores dos poetas e retóricos antigos140.

139 Cf. Ibidem, § 344, p. 122. 140 «La fu mestre Jehans li pages, / Et Pointlasne, cil de Gamaches, / Mestre Nichole aus hautes naches. / Cil troi levent trive et cadruve / Sor .i. grant char en une cuve; / Li beled traioient le char.» Louis John Paetow, The Battle of the Seven Arts. A french poem by Henry d’Andeli, trouvère of the thirteenth century. University of California Press, Berkeley 1914, pp. 41-42. Antes destes versos, fala-se do desentendimento entre Orleães e Paris. Os de Orleães são descritos como aqueles que escrevem poemas e lêem os poetas Homero, Claudiano, Aulo Pérsio Flaco, bem como Donato e Prisciano, julgando que a dialética é «quiqueliquique», ou seja, um cacarejo. Os de Paris, «clérigos de Platão», julgam que tudo isso é vão e defendem-se com Aristóteles, Boécio, Macróbio e Porfírio. O que é interessante constatar para o nosso estudo é que mais uma vez fica provado que é abusivo utilizar a Universidade de Paris como uma espécie de modelo universal para a filosofia do século XIII. 87

Muitas das suas obras, embora subsistam em manuscrito, permanecem inéditas. Claude Lafleur e Joanne Carrier editaram a sua introdução geral à filosofia141 e Heine Hansen tem vindo a anunciar nos seus artigos que está a preparar uma edição do comentário às Categorias, a obra que aqui será mais trabalhada142. Tal como em Kilwardby, há uma tentativa de mostrar de que modo o tratamento das categorias pertence à lógica, distinguindo a tarefa do lógico da tarefa do metafísico. Embora a lógica e a metafísica sejam ciências comuns, isto é, ciências acerca de todo o ente, suas partes e propriedades, há uma diferença crucial: Acrescente-se que a metafísica é a ciência acerca de todo o ente e partes do ente de acordo com a verdade e a possibilidade da coisa a conhecer (res scienda). Daí que se diga que a metafísica é apenas de Deus ou de poucos homens. A lógica, na verdade, não é acerca de todo o ente de acordo com a verdade, mas de acordo com a possibilidade da coisa que conhece (res sciens), e não da coisa a conhecer. Enquanto a metafísica é acerca de todo o ente e partes do ente na aceção simples

141 Cf. Claude Lafleur – Joanne Carrier, «L’Introduction à la philosophie de maître Nicolas de Paris» in Claude Lafleur – Joanne Carrier (eds.), L'enseignement de la philosophie au XIIIe siècle: Autour du “Guide de l'étudiant” du ms. Ripoll 109, Studia Artistarum, 5, Brepols, Turnhout 1997, pp. 447-465. 142 Cf. Heine Hansen, «Strange Finds, or Nicholas of Paris on Relations» in Jacob Leth Fink – Heine Hansen – Ana María Mora-Márquez, Logic and Language in the Middle Ages, Brill, Leida – Boston 2013, pp. 140-141; Idem, John Pagus on Aristotle’s Categories, Introduction, cap. 1, p. 42*: «The commentary attributed to Nicholas of Paris is a lectio commentary contained in MS Munich Bayerische Staatsbibliothek Clm. 14460, ff. 42-62. The commentary is a work of approximately 48.000 words and contains 11 lectiones with a prologue integrated into the first lectio. The lectiones fall into three separate sections of which the first is made up of alternating division (divisio) and exposition (sententia) of stretches of text. Then follows a section devoted to the explication of the rationale behind the internal structure of the passage under discussion as well as its place in the text as a whole (ordinatio). Lastly there is a section made up of alternating series of questiones and corresponding solutions. As in Pagus’ commentary, questions range from very simple ones to more elaborate dialectical structures involving objections and counter-objections to a given thesis. (…) Nicholas commentary is the one that bears the closest resemblances to that of Pagus.» O comentário de João Pago não será aqui trabalhado de um modo particular pela simples razão de não conter uma sufficientia das categorias, pelo menos de um modo explícito. Além disso, tal como aponta Hansen, se se fizer uma reconstrução de uma tentativa dessas a partir do que é dito noutros contextos, a sua derivação coincide em grande medida com a de Nicolau de Paris, pelo que seria ocioso estar a repeti-la. Cf. Ibidem, cap. 2, pp. 102* e ss.. 88

enquanto ente (simpliciter inquantum ens), a lógica, na verdade, é acerca de todo o ente e partes do ente enquanto são significados pelo discurso143. O par res scienda / res sciens serve para distinguir os pontos de vista metafísico e lógico. É a partir dele que assevera que a lógica trata do ente enquanto significado pelo discurso, não simpliciter. Postulada esta distinção, Nicolau de Paris afirma, citando a autoridade de Boécio, que a lógica trata do ente de um certo modo determinado, enquanto se divide em dez partes. Por conseguinte, as Categorias são sobre as dez palavras (voces) que significam os dez géneros primeiros de coisas144. Por fim, enquadra as Categorias na ciência do silogismo: é o fim remoto delas, sendo o fim próximo a cognição dos predicamentos, ou dizíveis incomplexos ordenáveis. O predicamento, ou dizível incomplexo ordenável, é o sujeito desta ciência. Por fim, antes de começar a expor a forma tractatus, diz num breve parágrafo que a palavra (vox) pertence à razão, pelo que o livro das Categorias pertence à filosofia racional. O enquadramento que faz é, portanto, semelhante ao do “Guia do Estudante” e ao de Kilwardby. O mesmo não se pode dizer da sua sufficientia. Tal como acontece no autor inglês, ao expor por que razão os predicamentos são dez, Nicolau divide «todo o que é», não diretamente os dizíveis. A primeira divisão dá-se, como não poderia deixar de ser, entre substância e acidente. A dos acidentes, a partir do Liber sex principiorum, entre o adveniente intrínseco e o adveniente extrínseco. Os três acidentes intrínsecos dividem-se a partir da estrutura hilemórfica da substância: os que advêm intrinsecamente da parte da matéria são quantidade, da parte da forma são qualidade, da parte do composto ou conjunto (a parte coniuncti) são relação. Os restantes seis, advenientes extrínsecos, diferem dos anteriores porque «exigem outro sujeito para além daquele no qual se

143 «Iterum methaphisica est scientia de toto ente et partibus entis secundum ueritatem et possibilitatem rei sciende. Unde dicitur quod methaphisica est solis Dei aut paucorum hominum. Logica uero non est de toto ente secundum ueritatem sed secundum possibilitatem rei scientis et non rei sciende. Cum methaphisica sit de toto ente et partibus entis simpliciter inquantum ens, logica uero est de toto ente et partibus entis inquantum significantur per sermonem.» Nicolau de Paris, Rationes super Praedicamenta Aristotelis, MS Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm. 14460, f. 42ra. Para a tradução portuguesa das partes comentadas, cf. Anexo 5. 144 «Unde dicit Boecius super commentum huius libri quod Aristoteles determinat hic de X uocibus X prima rerum genera significantibus.» [Daí que Boécio diz, sobre o comentário a este livro, que Aristóteles determina aqui as dez vozes que significam os dez géneros primeiros de coisas.] Ibidem. 89 encontram145». De seguida, agrupa-os em três, conforme dependam de uma quantidade, de uma qualidade, ou de uma relação: Se, na verdade, for adveniente extrínseco, então não inere primeira e imediatamente na substância, mas mediante algo intrínseco: logo, ou mediante a quantidade, ou a qualidade, ou a relação. Se inere na substância mediante a quantidade, então existem dois: o quando e o onde. Com efeito, o quando inere na substância mediante o tempo e o onde mediante o lugar. Se mediante a qualidade, também existirão dois, a saber, a ação e a paixão: a ação, de facto, inere mediante a potência natural e a paixão mediante a impotência. Se mediante a relação, então também existirão dois, a saber, estar posicionado e ter (situs et habere): efetivamente, o ser do posicionado é causado pela relação de uma parte com uma parte, pelo que se diz que a posição é uma certa situação das partes e ordenação da geração. O hábito, na verdade, é causado pela relação do ornamento com o corpo, relação esta segundo a qual dizem que alguém está calçado ou armado146.

145 «Et dicuntur accidentia extrinsecus aduenientia que preter subiectum in quo sunt aliud exigunt subiectum, ut actio est in agente, et preter hoc exigit aliud subiectum.» Ibidem, f. 44vb. 146 «Si uero est extrinsecus adueniens, tunc primo et immediate non inest substantie, sed mediante aliquo intrinseco: aut ergo mediante quantitate, uel qualitate, uel relatione. Si mediante quantitate insit substantie tunc sunt duo: quando et ubi. Inest enim quando substantie mediante tempore; ubi uero mediante loco. Si mediante qualitate erunt iterum duo, scilicet, actio et passio. Actio enim inest mediante naturali potentia; passio mediante naturali impotentia. Si mediante relatione tunc iterum erunt duo, scilicet, situs et habere. Causatur enim situm esse per relationem partis ad partem, secundum quod dicitur positio est quidam partium situs et generationis ordinatio. Habitus uero causatur per relationem ornamenti ad corpus, secundum quam relationem dicimus aliquem calciatum est uel armatum est.» Ibidem. 90

substância acidente

adveniente adveniente intrínseco extrínseco

da parte da mediante a mediante a mediante a matéria: quantidade qualidade relação quantidade

da parte da de uma parte potência natural: forma: tempo: quando com outra parte: ação qualidade posição

da parte do de um ornamento impotência composto: lugar: onde com um corpo: natural: paixão relação hábito

Figura 3. Sufficientia de Nicolau de Paris

Não é a primeira vez na história que se tenta ordenar as seis categorias extrínsecas dizendo que estas são mediadas por uma das intrínsecas. Com efeito, isso era prática corrente no mundo árabe no tempo de Avicena147, embora seja pouco plausível que seja essa a fonte de Nicolau de Paris para a sua via divisiva. Acrescente-se que Nicolau, imediatamente a seguir a esta divisão, retorna aos acidentes extrínsecos e apresenta-os sob o ponto de vista da causalidade de uma das partes da estrutura hilemórfica da substância: E de acordo com isto, toma-se o número dos acidentes extrínsecos assim: que todo o acidente extrínseco ou é da parte da forma, e assim é ação; ou da parte da matéria, e isto duplamente – ou da parte da matéria na aceção simples, e assim é a paixão, ou da parte da matéria dividida, e assim é a posição –; ou da parte do conjunto, e assim é o hábito. E porque a ação e a paixão são movimento e nenhum

147 Cf. supra, 1.3. 91

movimento tem nada a não ser que esteja no lugar e no tempo, então exige-se o onde, que é concedido pelo lugar, e o quando, que é concedido pelo tempo148. Nesta reconsideração dos acidentes extrínsecos, estes são agrupados de acordo com a sua ligação à matéria, à forma, ou ao composto. Não se compreende até que ponto há uma coerência com a divisão anterior, sobretudo no que diz respeito à paixão e à posição, agora associadas à matéria, quando antes a primeira era tomada como mediada pela qualidade, a qual inere na substância a partir da sua forma, e a segunda como mediada pela relação, a qual inere na substância a partir do composto como um todo, não particularmente a partir da matéria. O onde e o quando, por sua vez, parecem ser requisitos necessários à existência de ações e paixões, o que demonstra uma tentativa de articular o “sistema” (por assim dizer) das categorias num todo coerente e dinâmico. Uma articulação a partir da origem já aparecera, como vimos, no Liber sex principiorum. Também no seu comentário a este livro, Nicolau de Paris repete as duas divisões dos acidentes extrínsecos, mas pela ordem inversa149.

148 «Et secundum hoc sumitur numerus accidentium extrinsecorum sic: quod omne accidens extrinsecus aut est a parte forme, et sic est actio; uel a parte materie, et hoc dupliciter – aut a parte materie simpliciter, et tunc est passio, aut a parte materie diuise, et tunc est positio –; aut a parte coniuncti, et sic est habitus. Et quia actio et passio sunt motus et omnis motus nihil habet nisi in loco et in tempore, ideo exigitur ubi quod derelinquitur a loco, et quando quod derelinquitur a tempore.» Nicolau de Paris, Rationes super Praedicamenta Aristotelis, f. 44vb. 149 «Adhuc dicendum quod forme extrinsecus affixe aut adueniunt ratione materie, aut forme, aut compositi. Si ratione materie, aut ratione materie simpliciter, et sic passio, aut discrete, et sic positio; aut forme, et sic actio; aut compositi, et sic habitus. Sed quia omnis actio et passio sunt in motu, et omnis motus in loco et tempore, propter hoc etc. Vel aliter forme aduenientes extrinsecus causantur a formis intrinsecus aduenientibus. Aut ergo a quantitate, et hoc aut permanente, et sic est ubi, aut sucessiua, et sic est quando. Aut a qualitate, et hoc est aut a naturali potentia, aut naturali impotentia: primo modo est actio; secundo modo passio. Aut a relatione, et hoc dicitur aut partium ad totum, et sic est positio, aut ornantis ad ornatum, et sic est habitus.» [Quanto a isto, diga-se que as formas anexas de um modo extrínseco ou advêm pela razão da matéria, ou da forma, ou do composto. Se pela razão da matéria, ou pela razão da matéria na aceção simples, e assim <é> a paixão, ou discreta, e assim <é> a posição; ou pela forma, e assim <é> a ação; ou pelo composto, e assim <é> o hábito. Mas porque toda a ação e paixão estão no movimento, e todo o movimento no lugar e no tempo, então devido a isto etc.. De outro modo, as formas advenientes de um modo extrínseco são causadas pelas formas advenientes de um modo intrínseco. Logo, ou pela quantidade, e esta ou permanente, e assim é lugar, ou sucessiva, e assim é quando. Ou pela qualidade, e esta ou é pela potência natural, ou pela impotência natural: no primeiro modo é ação; no segundo modo paixão. Ou pela relação, e isto diz-se ou pelas partes relativamente ao todo, e assim é posição, ou do ornante relativamente ao ornado, e assim é hábito.] Nicolau de Paris, Rationes sex principiorum, Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Ms. Vat. Lat. 3011, f. 14ra. 92

Comparando a sufficientia de Nicolau de Paris com a de Roberto Kilwardby, deve- se notar, antes de mais, que o modo intermédio atribuído aos acidentes da ação, da paixão e da posição, desaparece, o que mostra a substituição da autoridade das Categoriae decem pela do Liber sex principiorum. Lembremo-nos, no entanto, que é impossível saber qual dos dois comentários foi escrito primeiro, pelo que esta diferença não pode ser inscrita no tempo, como se num primeiro tempo de assimilação de autoridades na Universidade de Paris ainda fossem lidas as Categoriae decem e num segundo tempo tivessem sido abandonadas. Apesar desta ressalva, é certo que, na segunda metade do século XIII, o Liber sex principiorum é comentado por diversos autores, enquanto as Categoriae decem são apenas brevemente mencionadas de vez em quando. Em segundo lugar, note-se que, na perspetiva causal, ou talvez genética, dos acidentes extrínsecos a partir da sua origem na estrutura hilemórfica, há algumas afinidades com a via divisiva de Kilwardby: a paixão e a posição são da parte da matéria, a ação da forma e o hábito do composto. O onde e o quando são tomados como decorrentes de dois tipos de quantidade, uma delas permanente e a outra sucessiva, ao passo que em Kilwardby, o quando decorre da forma. Aquilo que é realmente variável entre os dois autores são os seis princípios, ou acidentes extrínsecos. Aquilo que os une é a tentativa de enquadrar as categorias na estrutura hilemórfica da substância e o uso de critérios metafísicos para determinar o seu número e completude. Caberá a Alberto Magno explicitar pela primeira vez que há tantos modos de ser quantos os modos de predicar, assunto que abre o próximo capítulo e que será repercutido, com modificações várias, em muitos autores da segunda metade do século XIII.

93

2.2. Modi essendi e modi praedicandi

2.2.1. Alberto Magno (c. 1200 - 1280)

Alberto Magno foi talvez o autor escolástico mais admirado pelos seus contemporâneos. Daí o seu cognome. Mais conhecido pelos seus contributos para as ciências naturais e para a teologia, as suas paráfrases à lógica aristotélica só mais recentemente têm vindo a ser estudadas com profundidade150. Sten Ebbesen afirmara que os seus textos lógicos dependiam amplamente de Kilwardby. Contudo, estudiosos de Alberto como Bruno Tremblay têm vindo a considerar essa visão, no mínimo, precipitada151. Alberto, natural de Lauingen, na Suábia, terá presumivelmente ido para Pádua ainda novo, onde ficou ao cuidado de um tio. Se for esse o caso, foi aí que estudou artes e terá sido aí também que conheceu Jordão da Saxónia (c. 1190 – 1237), um dominicano que procurava entre os estudantes quem quisesse tomar o hábito. Neste contexto, terá sido enviado para Colónia, entrado na Ordem dos Pregadores e estudado teologia. Por volta do ano 1240, mudou-se para a Universidade de Paris, onde acedeu a um extenso corpus de obras filosóficas e teve contacto com vários mestres, como Roberto Kilwardby. Em 1248, ou talvez um pouco antes, regressou a Colónia para participar na fundação de um novo studium generale152.

150 Cf. Bruno Tremblay, «Albert le Grand: De ce que vient avant la logique» in History and Philosophy of Logic, 25 (agosto 2004) 155–193; Idem, «Albertus Magnus on the Subject of Aristotle’s Categories» in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, Brill, Leida – Boston 2008, pp. 73-97. 151 Cf. Sten Ebbesen, «Albert (the Great?)’s Companion to the Organon» in Albert Zimmermann (ed.), Albert der Grosse. Seine Zeit, sein Werk, seine Wirkung, De Gruyter, Berlim 1981, pp. 89-103; Bruno Tremblay, «Albertus Magnus on the Subject of Aristotle’s Categories», p. 73. Cf. também Carlos Steel, «Albert's use of Kilwardby's Notulae in his Paraphrase of the Categories,” in L. Honnefelder – H. Möhle – S. B. del Barrio (eds.), Via Alberti. Texte-Quellen-Interpretationen, Aschendorff, Münster 2009, pp. 481– 507. 152 Cf. Irven M. Resnick, «Albert the Great: Biographical Introduction» in Irven M. Resnick (ed.), A Companion to Albert the Great, Brill, Leida – Boston 2013, pp. 1-11. Sobre a vida e a obra de Alberto Magno, cf. também Julie Brumberg-Chaumont, «Albert the Great», in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, pp. 41-44; Markus Führer «Albert the Great», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2020 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = . 94

Foi neste contexto, mais ou menos a partir de 1250, que Alberto começou a grande empreitada de criar um comentário completo a todo o corpus aristotélico, inclusive os textos biológicos, o que era uma raridade no seu tempo. As suas paráfrases às Categorias (c. 1252) e ao Liber sex principiorum (c. 1252-1257) são deste período153. O seu labor coincide com um contexto delicado no qual cada vez mais se liam os libri naturales de Aristóteles e, simultaneamente, as autoridades eclesiásticas proibiam o seu ensino em Paris. A postura conciliadora de Alberto Magno foi importante na matéria154. Em 1255, por fim, os libri naturales entram oficialmente nos currículos parisienses, embora duas décadas depois as condenações regressem155. Em ambas as paráfrases, Alberto estabelece a suficiência das categorias de um modo próprio, diverso dos que vimos nos autores anteriores. A sua posição tem influência no seu discípulo Tomás de Aquino, em especial a tese segundo a qual os modos de predicar coincidem com os modos de ser. Como vimos em Kilwardby e Nicolau de Paris, as vias divisivas partiam, não da consideração dos predicamentos enquanto tal, mas de divisões dos entes. Alberto é o primeiro a formular explicitamente a coincidência entre modi essendi e modi praedicandi, ideia-chave na segunda metade do século XIII. Na sua perspetiva acerca da função da lógica, Alberto é um aviceniano156. Embora Avicena considerasse que as categorias não pertencem à lógica, mas à metafísica, o Doutor Universal conjuga a tradição a que pertence – na qual as Categorias de Aristóteles

153 Cf. Albertus Magnus, De praedicamentis, ed. Manuel Santos Noya – Carlos Steel – Silvia Donati, Alberti Magni Opera Omnia, tomo 1, pars 1-B, Aschendorff Verlag, Münster 2013, pp. V-VI; Idem, De sex principiis, ed. Ruth Meyer, Alberti Magni Opera Omnia, tomo 1, pars 2, Aschendorff Verlag, Münster 2006, pp. XXIX-XXX. 154 «While organizing the studium generale in the following year, 1248, in Cologne, he launched the project of writing expositions of all Aristotle’s known works, in order to make them accessible to the Latin reader. In Albertus’s view, while the fathers of the church were authorities in theology, Aristotle was the authority in natural philosophy, even if it would be wrong to regard him as infallible even in that area. By distinguishing the different areas of competence of theology and philosophy, Albertus contributed to the autonomy of the secular sciences, which were no longer seen merely as handmaidens of the queen, theology. On the other hand Albertus opposed the extreme reaction (such as the letter of Odo of Châteauroux) against the use of philosophy in theology, as coming from men who, like brute animals, blaspheme things of which they were ignorant.» Monika Asztalos, «The Faculty of Theology», p. 423. 155 Cf. Chartularium Universitatis Parisiensis, ed. H. Denifle – É Châtelain, Université de Paris, Paris 1889, t. I, nº 246, pp. 277-278; Gordon Leff, «The trivium and the three philosophers», p. 322 e ss.. 156 É esta a leitura de Bruno Tremblay, que aqui seguimos. Cf. nota 150. 95 se enquadram no plano mais geral da teoria do silogismo – com a influência da posição aviceniana segundo a qual o trabalho da lógica é estabelecer as regras da passagem do conhecido ao desconhecido157. De facto, trata-se de uma tese que Alberto Magno repete inúmeras vezes, como o faz na introdução à sua paráfrase às Categorias: Nas obras anteriores, foi dito que a lógica é a ciência pela qual se ensina de que modo se chega ao conhecimento do desconhecido pelo conhecido; e que isto se faz por dois modos de acordo com as duas coisas que, quando são desconhecidas, desejamos conhecer, a saber, o incomplexo e o complexo; e que o incomplexo desconhecido não se pode conhecer a não ser pela definição ou por uma certa notificação (quacumque notificatio), enquanto que o complexo desconhecido não se pode conhecer a não ser pela argumentação. Também foi dito que a razão, que é a potência que conclui uma coisa com outra (virtus unum cum alio complectens), não pode tornar-se um instrumento pelo qual a cognição do desconhecido é deduzida a partir do conhecido, a não ser por ter atos, que são: ordenar uma coisa relativamente a outra; compor uma coisa com outra e coligir as coisas compostas segundo o decurso que se faz de uma coisa até outra. Na verdade, é assim e não de outro modo que se toma a cognição do desconhecido por aquilo que é conhecido158. Aquilo que era um prenúncio nos autores que lhe antecedem torna-se um pouco mais explícito, a saber, a passagem da ciência discursiva (scientia sermocinalis) para a

157 «Subiectum vero logicae, sicut scisti, sunt intentiones intellectae secundo, quae apponuntur intentionibus intellectis primo, secundum hoc quod per eas pervenitur de cognito ad incognitum…» [Na verdade, o sujeito da lógica, como é sabido, são as intenções inteligidas em segundo lugar, que se apõem às intenções inteligidas em primeiro lugar de acordo com isto: que por elas se chega do conhecido ao desconhecido…] Avicenna Latinus, Liber de philosophia prima sive scientia divina, ed. S. van Riet, E. Peeters – E. J. Brill, Lovaina – Leida 1977, tr. 1, cap. 2, p. 10. 158 «In antehabitis dictum est quod logica est scientia per quam docetur qualiter per cognitum deveniatur ad notitiam incogniti, et quod hoc duobus fit modis, secundum quod sunt quae, quando sunt incognita, desideramus cognoscere, scilicet incomplexum et complexum; et quod incomplexum incognitum cognosci non potest nisi diffinitione vel quacumque notificatione, complexum autem incognitum cognosci non potest nisi argumentatione. Dictum est etiam quoad hoc quod ratio, quae est virtus unum cum alio complectens, non cogniti eliciat ex cognito, nisi tribus actibus, qui sunt: ordinare unum ad alterum, componere unum cum altero et colligere composita secundum decursum, qui fit ex uno in alterum. Sic enim et non aliter accipiet cognitionem incogniti per id quod est cognitum.» Albertus Magnus, De praedicamentis, tract. I, cap. 1, p. 1. Para a tradução portuguesa dos textos comentados, cf. Anexo 6. 96 ciência racional (scientia rationalis)159, embora não deixando de parte o discurso como elemento imprescindível, sobretudo no que diz respeito às categorias: Porém, porque já se provou nos antecedentes à lógica que não se chega à ciência do desconhecido pelo conhecido a não ser pela inquirição – a inquirição, porém, não se faz a não ser pelo discurso disposto para a significação, ou o homem inquire dentro de si mesmo pelo discurso disposto para o interior, ou inquire com outro pelo discurso proferido no exterior –, segue-se necessariamente que a ordem dos predicáveis não se pode determinar a não ser de acordo com aquilo que é designado sob a palavra predicável (sub voce praedicabile). De facto, na inquirição do desconhecido, não podemos de modo algum as coisas que não estão nem em nós dispostas, nem presentes, e portanto, é mister usar as palavras significativas160. É neste sentido, enquanto parte da ciência que regula a condução do conhecido ao desconhecido pela mediação necessária do discurso, seja ele interior ou exterior, que deve ser lido o sujeito das Categorias: «o ordenável na razão de predicável ou passível de ser sujeito (subicibilis) enquanto se encontra sob uma palavra que significa tal ordem161», quase uma variação prolixa do canónico dizível incomplexo ordenável no género. Como foi avançado, Alberto apresenta duas sufficientiae diferentes. A sua proposta baseia-se em dizer que os dez predicamentos, enquanto dez géneros primeiros das coisas, são coincidentes com dez modos de predicar diversos162. Depois de tecer uma série de

159 Sobre este tema, cf. Héctor Hernando Salinas Leal, «Observaciones sobre la constitución medieval de la logica: de scientia sermocinalis a scientia rationalis» in Universitas Philosophica, 64 (jan-jun 2015) 97- 111. 160 «Quia autem iam in antecedentibus ad logicam probatum est quod ad scientiam incogniti per cognitum non devenitur nisi per inquisitionem, inquisitio autem non fit nisi per dispositum sermonem ad significandum, sive homo inquirat apud seipsum per interius dispositum sermonem sive inquirat apud alium per sermonem exterius prolatum, sequitur de necessitate quod ordo praedicabilium non potest determinari, nisi secundum quod sub voce habet praedicabile designari. Rebus enim in inquisitione incogniti uti non possumus, eo quod nec paratae sunt nobis nec praesentes, et ideo significativis vocibus uti oportet.» Albertus Magnus, De praedicamentis, tract. I, cap. 1, pp. 1-2. 161 «Est enim subiectum ordinabile in rationem praedicabilis vel subicibilis, secundum quod stat sub voce talem ordinem significante.» Ibidem, p. 2. 162 «Ad haec omnia habent reduci praedicabilia sicut ad prima suae coordinationis genera et prima rerum illius generis principia. Quamvis enim multi laboraverunt, ut rationem ponant, quare numerus principiorum omnium rerum stat in decem, nos tamen quantum possumus, studebimus ex propriis horum generum modis 97 considerações acerca do facto de Deus se encontrar fora da coordenação predicamental e do facto de existirem algumas coisas que se predicam de tudo – os transcendentes ente, uno, coisa e algo (ens, unum, res e aliquid) –, Alberto redige a sua divisão das categorias163. Tal como em Nicolau de Paris, o par intrínseco vs. extrínseco não deixa lugar para o modo intermédio utilizado por Kilwardby, embora a primeira divisão das categorias não se dê entre as intrínsecas e as extrínsecas, mas sim entre as absolutas e as relativas, ou comparadas. Podemos verificar, igualmente, que Alberto por vezes divide categorias a partir da estrutura hilemórfica, mas não do mesmo modo que os seus antecessores. Coincide com eles apenas na associação dos acidentes intrínsecos da quantidade e da qualidade à matéria e à forma, respetivamente. O Doutor Universal parte de divisões imediatas do ente, e não dos modos de predicar, pelo que acaba por fazer o inverso daquilo que tinha anunciado. Trata-se de um passo justificado pela própria assunção do isomorfismo entre os géneros das coisas e os géneros de predicáveis. Deste modo, começa por apontar para a coincidência entre os predicáveis substância e acidente – divisão imediata entre opostos exclusivos, redutível à afirmação e à negação –, e a divisão imediata do ente em ente por si (ens per se) e ente não por si (ens non per se), ou ente noutro (ens in alio)164. No ente noutro, a inerência pode ser absoluta ou relativa. Por outras palavras, um ente pode inerir noutro no sentido em que está simplesmente inerente nele ou no sentido em que é tido por ele a partir da

praedicandi ostendere huius numeri rationem. Praenotandum igitur est quod iste numerus non est nisi praedicabilium, quae ut universalia de subiectis praedicantur.» [Todos os predicáveis têm de reduzir-se a estes como a primeiros géneros da sua coordenação e primeiros princípios das coisas: com efeito, embora muitos tenham trabalhado para postular uma razão pela qual o número de princípios de todas as coisas se estabelece em dez, nós, quanto pudermos, dedicar-nos-emos a mostrar a razão desse número a partir dos modos de predicar próprios desses géneros. Note-se, portanto, que este número não é senão o número de predicáveis, os quais se predicam de sujeitos enquanto universais.] Ibidem, tract. I, cap. 7, p. 17. 163 Cf. Ibidem, p. 18. 164 «His ita praelibatis dicamus quod praedicabile de aliquo est substantia aut accidens; et haec divisio est per opposita immediate, quae reducuntur ad affirmationem et negationem, sicut ens per se et non per se ens.» [Assim, afloradas estas coisas, digamos que o predicável de algo ou é substância, ou é acidente: e esta divisão dá-se imediatamente pelos opostos, os quais se reduzem à afirmação e à negação, tal como o ente por si e não por si.] Ibidem. 98 relação ou comparação com outro ente165. No primeiro caso, encontraremos quantidade e qualidade, relacionados respetivamente com a matéria e a forma. A matéria é uma potência divisível que torna as formas suscetíveis à extensão e à numericidade, enquanto que a forma é a potência perfetiva da matéria. Assim, se um ente inere noutro enquanto o torna suscetível à extensão, esse ente é uma quantidade; se inere noutro enquanto aperfeiçoa a sua matéria, em direção à atualização e à operação, então esse ente é uma qualidade166. Quando um ente inere noutro a partir de uma relação com um terceiro, há uma nova divisão a partir daquilo que causa esta relação: a substância pode ser comparada com outra coisa ou algo extrínseco à substância pode ser comparado com essa mesma substância167. No primeiro ramo, há novamente duas hipóteses: a comparação simples ou a comparação das partes da substância com o todo. O segundo caso não é outra coisa do que a categoria da posição. No que diz respeito à comparação simples, Alberto faz uso da tripartição de Kilwardby: matéria, forma e composto. O ente causado pela relação de uma substância com a matéria é a paixão; pela relação de uma substância com a forma, é a ação; pela relação de uma substância com um composto de matéria e forma, é a relação

165 «De facto, o acidente ou é acidente segundo a inerência, ou segundo algum modo de ser tido relativamente a outro.» (Accidens enim aut est accidens secundum inesse aut secundum aliquem modum ad aliud se habere.) Ibidem. 166 «Si autem est accidens sive ad-cadens secundum absolute inesse, tunc aut inest secundum materiam, quae potentia divisibilis est et extensibilis et numerabilis ad formarum susceptionem, quae, inquam, potentia primo invenitur in materia, aut inest absolute secundum potentiae formae, quae est perfectiva materiae ad actum et operationem. Si autem primo modo inest, tunc est quantitas, et si secundo modo inest, tunc est qualitas, quae dispositio est substantiae ad operationes aliquas et ad actus.» [Porém, se é um acidente ou “ad-cadente” segundo a inerência absoluta, então ou inere de acordo com a matéria, que é a potência divisível, extensível e numerável para a suscetibilidade das formas, potência esta que primeiramente se descobre na matéria; ou inere absolutamente de acordo com a potência da forma, a qual é perfetiva da matéria em direção ao ato e à operação. Se inere no primeiro modo, então é quantidade, e se inere no segundo modo, então é qualidade, a qual é a disposição da substância para algumas operações e para os atos.] Ibidem. 167 «Si autem non est accidens secundum inesse absolutum, sed cadit ad substantiam secundum id quod est aliquo modo se habere substantiam ad aliud, tunc non potest esse nisi duobus modis: aut illud aliquo modo se habere ad aliud causatur a substantia comparata ad aliud aut ab alio extrinseco comparato ad substantia.» [Contudo, se não é um acidente de acordo com a inerência absoluta, mas cai para a substância segundo aquilo que é de algum modo ter-se a substância para outro, então não pode ser senão de dois modos: ou aquilo que de algum modo se tem para outro é causado pela substância comparada a outro, ou por algo extrínseco comparado à substância da qual se predica.] Ibidem. 99 propriamente dita, o relativamente a algo (ad aliquid sive relatio). No que diz respeito à ação e à paixão, Averróis (1126 – 1198) é citado para se dizer que a ação é a comparação do agente com paciente e que a paixão é a comparação do paciente com o agente168. No ramo que resta, quando um ente é causado pela comparação de algo extrínseco com uma substância, há uma nova bifurcação: comparação com o adjacente na aceção simples ou comparação com um adjacente aplicado. No segundo ramo, encontramos o hábito. No primeiro, há uma nova subdivisão para as restantes categorias: onde e quando. Se a comparação é simples e se dá com algo extrínseco em repouso, temos o onde; se se dá com algo quod est esse, isto é, que é com movimento e ser distendido (quod est cum motu et esse distenso), temos o quando169.

168 «Si primo, tunc iterum non est nisi duobus modis: aut enim est in comparatione simplici ad aliquid aut secundum comparationem partium ad totum in seipso consideratum. Et si est secundo modo, tunc est situs vel positio. Si autem est primo modo, aut secundum comparationem ortam a forma, aut secundum comparationem ortam a materia, aut secundum comparationem ortam a toto simul. Et si est praedicabile secundum comparationem ortam a forma, est actio; unde dicit Averroes in commento super Physicam Aristotelis quod actio nihil aliud est nisi ‘comparatio agentis ad patiens’. Si autem comparatio illa est orta a materia, tunc est pati; propter quod idem Averroes dicit quod passio est comparatio patientis ad agens, secundum quod agens est. Si autem oritur a toto, non potest oriri nisi per aliquem actum totius, quo innascitur comparatio illa, et tunc est ad aliquid sive relatio.» [Se no primeiro modo, então, de facto, não é senão de dois modos: na verdade, ou é na comparação simples para outro, ou segundo a comparação das partes com o todo considerado em si próprio. E se é no segundo modo, é o estar posicionado ou a posição. Porém, se é no primeiro, ou é segundo a comparação originada pela forma, ou segundo a comparação originada pela matéria, ou segundo a comparação originada pelo todo em simultâneo. E se é predicável segundo a comparação originada pela forma, é ação: donde Averróis diz que a ação não é outra coisa senão a comparação do agente com o paciente. Se a comparação, porém, é originada pela matéria, então é padecer: devido a isto, igualmente Averróis diz que a paixão é a comparação do paciente com o agente enquanto é agente. Se, contudo, é originada pelo todo, então não se pode originar a não ser por algum ato do todo, no qual nasce aquela comparação, e então é relativamente a algo ou relação.] Ibidem. 169 «Si autem oritur comparatio ab aliquo extrinseco comparato ad subiectum, de quo fit praedicatio, illud extrinsecum aut est adiacens tantum, aut adiacens et applicatum. Si autem est adiacens tantum et ex adiacentia simplici comparatum, aut est adiacens ei quod est in quiete, aut est adiacens ei quod est esse, quod est cum motu et esse distenso. Si primo quidem est ortum ab adiacentia extrinsici, tunc est ubi. Si autem comparatio orta est ab adiacentia secundo modo, tunc est praedicamentum quando. Si autem oritur ab adiacente extrinseco et applicato, tunc est praedicamentum habitus. Nec possunt plura praedicari secundum adiacentia extrinsecus.» [Se, porém, a comparação é originada por algo extrínseco comparado com o sujeito do qual se faz a predicação, esse extrínseco ou é apenas adjacente, ou adjacente e aplicado. Se é apenas adjacente, e a partir da simples adjacência comparado, ou é adjacente àquilo que está em repouso, ou é adjacente àquilo que está a ser (ei quod est esse), que é com movimento e ser distendido (esse distenso). De facto, se é originado pela adjacência de um extrínseco no primeiro modo, então é o onde. Se, porém, a comparação é originada pela adjacência de um extrínseco no segundo modo, então é o predicamento do quando. Se, contudo, é originado pelo adjacente extrínseco e aplicado, então é o 100

ente por si (ens ente noutro per se): (ens in alio): substância acidentes

segundo a inerência segundo a inerência absoluta (secundum relativa (ad aliud se absolute inesse) habere)

segundo a substância algo extrínseco matéria: comparada com comparado com quantidade outro substância

segundo a comparação adjacente e comparação simplesmente forma: entre partes e aplicado: simples adjacente qualidade todo: posição hábito

originada pela àquilo que está matéria: em repouso: paixão onde

originada pela àquilo que está forma: ação a ser: quando

originada pelo composto: relação

Figura 4. Sufficientia de Alberto Magno

Todos os predicamentos a não ser a substância, a quantidade e a qualidade são relativos, ou comparativos. Dizem respeito a comparações em duas direções: ou se compara a substância com outra coisa, ou algo extrínseco à substância é comparado com ela. Assim, por um lado, parece que a grande maioria das categorias não são géneros generalíssimos, mas apenas espécies diferentes de relativo. Retomando o De ortu scientiarum, começa-se a desenhar uma tendência crescente de agrupar sete categorias na noção de habitudo rerum ou respectus. Em consonância com esta tendência, a relação encontra-se mais próxima dos chamados seis princípios do que das categorias às quais se atribuía mais dignidade. Contudo, na abertura do primeiro tratado sobre o Liber sex principiorum, Alberto Magno

predicamento hábito. E não se podem predicar mais coisas de acordo com a adjacência do extrínseco.] Ibidem. 101 procura apontar uma razão para o facto de a relação ser um género num sentido mais próprio do que os seis princípios. Alberto afirma explicitamente que entre os predicamentos, uns devem ser chamados mais propriamente géneros e outros princípios. A diferença é que um género num sentido mais próprio é aquilo que se encontra absolutamente naquelas coisas que estão sob a sua alçada, pois diz um “o quê” simplesmente contido (quid simpliciter contentum) nessas coisas, ao passo que um princípio não. Um princípio diz uma forma num certo modo pelo qual é, justamente, princípio de alguma coisa, mas essa forma não determina a coisa da mesma maneira do que a sua substancialidade, ou do que quantidades e qualidades que nela iniram170. Para Alberto, neste contexto, “forma” tem o sentido de algo extrínseco ou separado da coisa que ela determina, não fazendo parte da sua essência, embora sendo princípio da sua existência ou da sua conservação. Referindo Boécio, afirma que estas formas separadas são participadas na matéria enquanto imagines171. No entanto, enquanto princípios tratados pelo lógico, ou seja, enquanto fazendo parte do processo de passagem do conhecido ao desconhecido, estas formas são universais post rem: intentiones ou notiones que se ligam a determinada entidade real de modo a que a conheçamos na sua

170 «Cum autem omnia generalissima hoc modo dicantur principia, tamen quaedam plus et magis proprie dicuntur genera et quaedam magis principia. Substantia enim, quantitas et qualitas magis dicuntur genera, eo quod absolute sunt in suis contentis actu et intellectu contenta, quod proprium est generis, secundum quod genus est cui supponitur species. (…) / Residua vero sex non proprie dicuntur genera, quia non dicunt quid simpliciter contentum in aliis secundum actum et intellectum sicut id quod est de ratione eorum, sicut patet singulorum inductione.» [Porém, como todos os generalíssimos neste modo fossem ditos princípios, contudo, uns são ditos mais e mais propriamente géneros e outros mais princípios. Com efeito, a substância, a quantidade e a qualidade dizem-se mais géneros nisto: que se encontram absolutamente nos seus contidos em ato e são contidos pelo intelecto, algo que é próprio dos géneros, de acordo com o qual o género é aquilo no qual se supõe a espécie. (…) / Na verdade, os restantes seis não se dizem propriamente géneros, pois não dizem um “o quê” simplesmente contido nos outros segundo o ato e o intelecto, do mesmo modo que aquilo que é da razão deles, como é patente de cada um deles por indução.] Albertus Magnus, De sex principiis, tract. I, cap. 1, p. 2. 171 «Dicit enim Boethius in principio De trinitate quod proprie non dicuntur formae, nisi quae sunt separatae. Illae autem quae in materia sunt proprie dicuntur imagines, eo quod illas sunt per assimilationem et imitationem productae.» [De facto, diz Boécio, no princípio de Sobre a trindade, que não se dizem formas no sentido próprio senão aquelas que são separadas. Porém, aquelas que se encontram na matéria são ditas no sentido próprio imagens naquilo em que elas são produzidas por assimilação e imitação.] Ibidem, tract. I, cap. 2, p. 3. 102 totalidade172. É assim que os seis predicamentos relacionais são tratados pelo lógico, e não enquanto formas separadas. Voltando à questão do lugar da relação, a diferença entre os seis princípios e a relação é que esta determina algo da essência da própria coisa, embora relativamente a outra coisa, e os seis princípios não. A relação funda-se noutra coisa, frequentemente de outro género, mas não deixa de determinar a essência da coisa173. Os outros predicamentos relacionais contribuem para o conhecimento da coisa como um todo sem que a determinem naquilo que ela é. Uma substância pode ser um pai em relação a outra que é o filho, mas uma substância não é, por exemplo, uma ação. Nesta paráfrase ao Liber sex principiorum, Alberto Magno apresenta uma nova sufficientia para os seis princípios: Estas coisas, porém, podem ser assumidas assim: ou são princípios para o ser (ad esse), ou para o ser bem (ad bene esse). Se para o ser: ou da parte do agente, e assim será ação, ou da parte daquilo que é agido. E este duplamente, a saber: segundo o que é suscetível ao ato do agente ou segundo o efeito, que se segue ao ato do agente. Se for no primeiro modo, ou segundo a própria ação, a qual o paciente recebe (suscipit), e assim é paixão; ou segundo a medida adjacente extrínseca, a qual produz a ação na substância e nas partes pacientes. Se for segundo a medida adjacente, ou é segundo a medida da ação ou

172 «Formam enim hic logica diffinimus diffinitione. Logice enim loquendo forma est intentio quae dicit esse formale totius et ipsa notio totius, ut dictum est in scientia de Universalibus.» [Com efeito, definimos aqui forma pela definição lógica. De facto, falando logicamente, a forma é a intenção que diz o ser formal do todo e essa mesma noção do todo, como foi dito na ciência dos Universais.] Ibidem, p. 4. 173 «Relatio autem genus est hoc modo quo alia et non adeo proprie ut alia potest esse vel dici principium, quia secundum esse semper fundatur in alio quodam et, ut frequenter, fundatur in generibus aliis et rebus generum aliorum.» [Porém, a relação é género neste modo pelo qual outra coisa, e não tanto propriamente enquanto outra, pode ser ou ser dita um princípio, pois funda-se num outro segundo o ser (secundum esse) e, como acontece frequentemente, funda-se noutros géneros e em coisas de outros géneros.] Ibidem, tract. I, cap. 1, p. 2. Sobre a relação, cf. Albertus Magnus, De praedicamentis, tract. IV, cap. 1, pp. 80-82; Idem, Metaphysica libros quinque priores, ed. Bernhardus Geyer, Alberti Magni Opera Omnia, tomo XVI, p. I, Aschendorff Verlag, Münster 1960, lib. V, tract. 3, cap. 7, pp. 266-268. Nestes dois textos, Alberto argumenta contra aqueles que diziam que a relação é um mero ente de razão, afirmando que embora seja verdade que não tem uma entidade absoluta, como a qualidade e a quantidade, contudo tem uma entidade própria, que é a própria relação entre dois relativos. Essa relação, simplesmente, não é um ente absoluta, pois a sua própria entidade é o seu respectus subiecti. 103

da paixão, segundo aquilo que são neste modo, e assim é quando; ou segundo a medida do padecido ou daquele que padece, e assim é onde. Se, porém, é segundo o efeito que o agente produz no próprio paciente, então é posição, pois a partir da ação do agente e da paixão do paciente, situam-se as partes no padecido quanto à suscetibilidade da forma (susceptio formae), a qual o agente imprime, e uma é efetivada em cima e outra em baixo, e uma à direita e outra à esquerda, segundo aquilo que é operado nele pela força (virtus) do agente. Porém, se diz um princípio não quanto ao ser, mas quanto ao ser bem (bene esse), então é um hábito174. Nesta nova divisão, a estrutura hilemórfica da substância não é utilizada de todo. O primeiro par é esse e bene esse, o que demonstra o caráter excecional atribuído ao hábito. Os princípios para o ser giram todos em torno da ação – o agente, o paciente, os efeitos e as medidas. Trata-se de um modelo mais dinâmico, no qual uma ação provoca uma série de formas em torno de um agente e de um paciente, as quais dão a conhecer a circunstância destes. A noção de adjacência para o onde e o quando, bem como a ligação do quando ao movimento e do onde ao repouso – sob a forma da distinção entre a medida do padecido e a medida da ação ou da paixão – são as únicas coisas que se mantêm relativamente à sufficientia anterior. Ambas as vias divisivas são mais prolixas e, talvez, sofisticadas, do que as dos seus antecessores, mas contêm igualmente problemas. Em primeiro lugar, há uma heterogeneidade de critérios, ora físicos, ora metafísicos, ora de denominação. Além disso, o que é, em termos de entidade, um princípio de conservação ou para o bene esse? Há uma forma real separada que é o calçado, outra que é o armado, etc., para além de

174 «Haec autem sic accipi possunt: aut enim sunt principia ad esse, aut ad bene esse. Si ad esse: aut ex parte agentis, et sic erit actio, aut ex parte eius quod agitur, et hoc dupliciter: scilicet secundum quod est suscipiens actum agentis aut secundum effectum, qui actum agentis consequitur; si primo modo: aut secundum ipsam actionem, quam suscipit patiens, et sic est passio, aut secundum mensuram extrinsecus adiacentem, quem facit actio in substantia et partibus patientis; si secundum mensuram adiacentem: aut est secundum mensuram actionis vel passionis, secundum quod huiusmodi, et sic est quando, aut secundum mensuram passi sive eius quod patitur, et sic est ubi. Si autem est secundum effectum, quod facit agens in ipso patiente, tunc est positio, quia ex actione agentis et passione patientis situantur partes in passo ad susceptionem formae, quam imprimit agens, et efficitur una supra et altera infra et una dextra et altera sinista, secundum quod operatur in eo virtus agentis. Si autem dicit principium non ad esse sed ad bene esse: sic est habitus.» Albertus Magnus, De sex principiis, tract. I, cap. 1, pp. 2-3. 104 uma mera denominação da circunstância de um ente que rodeia outro ente? E há uma forma, além da medida de uma ação, que seja o agora, ou o hoje? E há uma forma que é uma posição para além do posicionado? Se forem formas apenas no sentido lógico, isto é, enquanto noções ou intenções que contribuem para o conhecimento de alguma coisa, isso significaria que são meros entes de razão, algo que é inaceitável para o autor. Dado o isomorfismo assumido, essas intenções devem ter um correlato real que lhes corresponde.

2.2.2. Tomás de Aquino (1224/1225 - 1274)

Tomás de Aquino assume este mesmo isomorfismo. Ao contrário dos autores anteriores, Tomás não escreveu um comentário às Categorias nem ao Liber sex principiorum. As suas derivações das categorias através de modos de predicação per se encontram-se nas exposições da Física e da Metafísica. Estas duas obras datam do segundo período de ensino na Universidade de Paris, entre 1268 e 1272, bastantes anos depois de ter sido discípulo de Alberto Magno, primeiro em Paris (1245 – 1248), depois em Colónia (1248 – 1252). Este segundo período deve ser enquadrado institucionalmente na questão das lutas de influência entre seculares e mendicantes, por um lado. Por outro, o regresso de Tomás prende-se com as tensões crescentes entre os artistae e os teólogos. Durante esses anos, diversos autores defendiam e lecionavam teses aristotélicas, muitas vezes lidas de acordo com os comentários de Averróis, contraditórias com a fé cristã, como o monopsiquismo e a eternidade do mundo175. Estas lutas doutrinais culminaram nas condenações de Paris, umas em 1270, outras, mais importantes, em 1277, redigidas pelo bispo Estevão Tempier. No mesmo ano, houve também umas condenações em Oxford, cujo redator foi Roberto Kilwardby, na condição de arcebispo de Cantuária. No entanto, nenhuma delas se prende com o assunto que aqui será comentado176.

175 Sobre a vida e a obra de Tomás de Aquino, cf. Pasquale Porro, Tommaso d'Aquino: un profilo storico- filosofico, Carocci Editore, Roma, 2012 (em especial, cap. 5); Jean-Pierre Torrell, O. P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra, trad. Edições Loyola, São Paulo 1999. 176 Sobre as condenações de Paris, cf. David Piché, La condamnation parisienne de 1277. Nouvelle édition du texte latin, trad., introd. et commentaire, Vrin, Paris 1999. Luca Bianchi, Censure et liberté intellectuelle à l'Université de Paris: XIIIe-XIVe siècles, Les Belles Lettres, Paris 1999. J.M.M.H. Thijssen, Censure and 105

Imediatamente antes deste segundo período de ensino em Paris, o Doutor Angélico comentara em Roma o De anima de Aristóteles a partir da translatio nova de Guilherme de Moerbeke, talvez motivado pelo facto de o seu labor teológico, nesse período, estar centrado em problemas sobre a alma. Em Paris, embora não ensinasse senão teologia, continuou a comentar algumas das obras de Aristóteles, entre as quais a Física (1268 – 1269) e a Metafísica (1270 – 1272)177, sendo difícil de conjeturar por que razão o terá feito. Na exposição da Física, o contexto do aparecimento da sufficientia prende-se com a discussão da possibilidade de redução da ação e da paixão a um predicamento apenas, que seria o movimento178. Na da Metafísica, a sufficientia surge no contexto do capítulo 7 do livro V, no qual se discutem os vários sentidos de ente179. As duas exposições não são iguais, mas a divisão das categorias é coincidente. Estendem-se mais nuns pontos do que noutros conforme os interesses próprios do assunto discutido, pelo que é importante atender às duas. No contexto da divisão dos vários sentidos de ente, a primeira divisão discutida pelo Aquinate é o par ens secundum se vs. ens secundum accidens. O ente por acidente tem três modos. O ente em si, enquanto ente fora da alma (extra animam), subdivide-se nas dez categorias. E é por aqui que devemos começar. Como nota Tomás, a divisão entre substância e acidente não corresponde à divisão entre ens secundum se e ens secundum accidens180. “Ente” diz-se por acidente quando algo se diz acidentalmente de algo, como

Heresy at the University of Paris 1200-1400, University of Pennsylvania Press, Philadelphia 1998. Jan A. Aertsen – K. Emery – A. Speer (eds.), Nach der Verurteilung von 1277: Philosophie und Theologie an der Universität von Paris im letzen Viertel des 13. Jahrhunderts: Studien un Texte / After the condemnation of 1277: philosophy and theology at the University of Paris in the last quarter of the tirteenth century, de Gruyter, Berlin 2001. 177 Cf. Pasquale Porro, Tommaso d'Aquino: un profilo storico-filosofico, cap. 5; Jean-Pierre Torrell, O. P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, cap. XII, pp. 261-287. 178 Cf. Aristóteles, Física, liv. III, cap. 3, 202a-202b. 179 Cf. Aristóteles, Metafísica, liv. V, cap. 7, 1017a-1017b. 180 «Sciendum tamen est quod illa divisio entis non est eadem cum illa divisione qua dividitur ens in substantiam et accidens. Quod ex hoc patet, quia ipse postmodum, ens secundum se dividit in decem praedicamenta, quorum novem sunt de genere accidentis.» [Saiba-se, contudo, que esta divisão do ente não é a mesma que aquela divisão pela qual o ente é dividido em substância e acidente, o que é patente a partir disto: pois mais à frente divide o ente em si (ens secundum se) em dez predicamentos, dos quais nove são do género dos acidentes.] Thomas de Aquino, In duodecim libros Metaphysicorum Aristotelis expositio, ed. M. R. Cathala – R. M. Spiazzi, Marietti, Turim – Roma 1971, lib. V, lec. 9, n. 885, p. 237. Cf. a tradução das lições aqui referidas no Anexo 7. 106 na proposição “o homem é músico”, mas isso não diz nada quanto ao facto de os termos serem acidentes ou substâncias. Não é porque “músico” é um acidente que “homem músico” é um ente acidental, mas porque “músico” se diz acidentalmente de “homem”. Se se dissesse “a brancura é uma cor”, a cópula “é” significaria um ente em si, porque a cor não é um acidente da brancura, é parte da sua definição. O ente em si não pode ser unívoco pela aporia do género: o ente não se pode contrair em espécies por diferenças, porque isso significaria que a diferença está fora da essência do ente, ou seja, isso significaria que a diferença não é. Por conseguinte, têm de existir vários géneros primeiros, irredutíveis, primariamente diversos. Mas quantos, quais, e porquê esses? É aqui que surge em Tomás a tentativa de encontrar uma justificação para a lista aristotélica das dez categorias. Começa por afirmar o isomorfismo entre modi essendi e modi praedicandi à maneira do seu mestre Alberto Magno: É mister que o ente se contraia em diversos géneros segundo o diverso modo de predicar (modus praedicandi), que se segue do diverso modo de ser (modus essendi), pois «quantos o ente é dito», isto é, quantos os modos algo se predica, «tantos o ser é significado», isto é, tantos os modos são significados que algo é. E por isso, aquelas coisas nas quais se divide o ente primariamente são ditas predicamentos, pois distinguem-se segundo diversos modos de predicar181. É este isomorfismo que lhe permite considerar que pode derivar as dez categorias dos modos de predicar. Mas não de quaisquer modos de predicar. Embora Tomás não explicite este ponto, é claro pela exposição que este isomorfismo significa que é necessário utilizar a predicação per se, pois encontramo-nos no campo do ente em si. Tomás aceita três dos quatro modos de predicação per se presentes nos Analíticos Posteriores: a predicação per se primo modo, a predicação per se secundo modo e a predicação per se quarto modo182. A tertio modo é vista como um modus existendi, não

181 «Unde oportet, quod ens contrahatur ad diversa genera secundum diversum modum praedicandi, qui consequitur diversum modum essendi; quia quoties ens dicitur, idest quot modis aliquid praedicatur, toties esse significatur, idest tot modis significatur aliquid esse. Et propter hoc ea in quae dividitur ens primo, dicuntur esse praedicamenta, quia distinguuntur secundum diversum modum praedicandi.» Ibidem, n. 890, p. 238. 182 Cf. Aristóteles, Analíticos Posteriores, I, cap. 4, 73a-74a. 107 como um modus praedicandi183. Há predicação per se primo modo quando o predicado pertence à essência do sujeito, como ao predicar “animal” de “homem”. Há predicação per se secundo modo quando a definição do predicado inclui o sujeito, como ao predicar “reta” de “linha”. “Reta” não é um predicado essencial de “linha”, porque não a define, mas “linha” está compreendida na definição de “reta”. Há predicação per se quarto modo quando se predica uma causa eficiente extrínseca ao sujeito. O exemplo dado por Aristóteles é o de um animal morrer por ser decapitado: nem o sujeito “decapitado” se define pelo predicado “estar morto”, nem o predicado “estar morto” contém o sujeito “decapitado” na sua definição, mas a decapitação é uma causa eficiente extrínseca da morte, pelo que não há uma relação acidental entre o sujeito “decapitado” e o predicado “estar morto”, uma vez que este modo de predicar cumpre as duas condições suficientes para ser considerado um modo de predicar per se: que o predicado se diga universalmente do sujeito (todo o decapitado está morto); que o sujeito seja a causa do predicado (neste caso, a decapitação é causa eficiente da morte)184. A estratégia de Tomás consiste em demonstrar que cada uma das categorias corresponde a um modo particular de predicar per se, de tal maneira que se esgotem todas as possibilidades diferentes de predicar per se um predicado de um sujeito. Como há um isomorfismo entre modos de predicar e modos de ser, para cada modo em que um predicado se predica per se de um sujeito, há um modo de ser diferente e irredutível. Isto não significa que cada predicamento só se possa utilizar em determinada forma lógica. Ele é derivado de uma forma lógica, mas pode ser utilizado de muitos modos. Antes de mais, numa predicação acidental. O importante é o estabelecimento da identidade das categorias a partir do seu modo de predicação per se próprio. Resta compreender como se podem derivar dez predicamentos de três modos apenas.

183 «Sciendum est autem quod iste modus non est modus praedicandi, sed modus existendi. Unde etiam in principio non dixit, per se dicuntur, sed, per se sunt.» [Saiba-se, porém, que este modo não é um modo de predicar, mas um modo de existir. Daí que também no princípio não disse “dizem-se per se”, mas “são per se”.] Thomas de Aquino, In libros Posteriorum Analyticorum expositio, ed. R. M. Spiazzi, Marietti, Turim – Roma 1964, lib. I, lec. 10, n. 87, p. 181. 184 Cf. Paul Symington, On Determining What There is. The Identity of Ontological Categories in Aquinas, Scotus and Lowe, ontos verlag, Francoforte – Paris – Lancaster – New Brunswick 2010, cap. I.III, pp. 31- 38; Thomas de Aquino, In libros Posteriorum Analyticorum expositio, lib. I, lec. 10, nn. 82-89, pp. 180- 181. 108

Depois de afirmar que o predicado pode ser tido por um sujeito de três modos, Tomás diz que o primeiro desses três modos é quando o predicado é aquilo que é o sujeito, que é o modo que corresponde à substância primeira, «que é a substância particular, da qual todas as coisas se predicam185». Este modo não tem qualquer subdivisão. O segundo modo, correspondente à predicação per se secundo modo, é a inerência de um predicado num sujeito. Este modo subdivide-se em inerência absoluta e inerência relativa, par já conhecido dos autores anteriores. Quando o predicado inere por si e absolutamente no sujeito, ele pode fazê-lo enquanto aquilo que se segue da matéria do sujeito, ou enquanto aquilo que se segue da forma. No primeiro caso, encontramos o predicamento da quantidade. No segundo, o da qualidade. Se a inerência do predicado no sujeito não for absoluta, mas relativa a outra coisa, encontramos o predicamento da relação. O terceiro modo, correspondente à predicação per se quarto modo, é aquele no qual algo extrínseco ao sujeito se predica dele. Embora as derivações sejam coincidentes, na derivação que faz na exposição da Física, Tomás é mais estruturado do que na sua exposição da Metafísica. Não só é mais estruturado, como tece alguns argumentos importantes exclusivamente nesta. A predicação per se quarto modo tem uma característica fundamental: a denominação de algo extrínseco. Quando um predicado é denominado a partir de algo extrínseco, pode sê-lo comummente ou especialmente. Pode sê-lo comummente de dois modos: ou enquanto denomina uma causa extrínseca, ou enquanto denomina uma medida extrínseca. Apesar de haver quatro causas, as únicas causas extrínsecas são a causa final e a causa agente ou eficiente. Matéria e forma, ou causa material e causa formal, pertencem ao predicamento da substância. A causa final, por sua vez, «não causa separadamente algo a partir do agente186», embora seja aquilo que move o agente. Por isso, resta a causa agente ou eficiente, da qual se retiram dois predicamentos: a ação e a paixão. Quando se predica algo per se quarto modo que seja

185 «Et hoc praedicatum dicitur significare substantiam primam, quae est substantia particularis, de qua omnia praedicantur.» Thomas de Aquino, In duodecim libros Metaphysicorum Aristotelis expositio, lib. V, lec. 9, n. 891, p. 238. 186 «Causa autem finalis non causat seorsum aliquid ab agente.» Thomas de Aquino, In octo libros Physicorum Aristotelis expositio, ed. P. M. Maggiòlo, Marietti, Turim – Roma 1965, lib. III, lect. 5, n. 322, p. 159. 109 denominado a partir da causa agente, encontramos o predicamento da paixão, que «não é senão receber algo a partir de um agente187». Quando se predica algo per se quarto modo que seja denominado a partir do efeito, ou seja, enquanto termo no qual o agente causa a ação, encontramos o predicamento da ação. Toda a lição 5 do livro III da exposição à Física que aqui está a ser utilizada, intitulada «Se a ação e a paixão são o mesmo que o movimento» (Utrum actio et passio sint idem motus), trata justamente de mostrar que não se pode postular o movimento como predicamento e, consequentemente, a ação e a paixão como espécies de movimento, uma vez que ambas são irredutíveis. Sem entrar em detalhes, o movimento é um só, mas exige a assunção de dois predicamentos, porque no movimento duas coisas exteriores são denominadas, a saber, o agente e o paciente188. Passemos à predicação per se quarto modo enquanto denomina uma medida extrínseca, critério de divisão também já utilizado por Alberto. A medida intrínseca – ou seja, longitude, latitude e profundidade –, como o próprio nome indica, inere num sujeito, e por isso pertence ao predicamento da quantidade. A extrínseca é de dois tipos: o tempo e o lugar. Se predicarmos a medida extrínseca de um sujeito no que diz respeito ao tempo, encontramos o quando. Se predicarmos a medida extrínseca de um sujeito no que diz respeito ao lugar, encontramos mais duas categorias: o onde e a posição. O que os distingue é que o primeiro não diz respeito à ordem das partes do sujeito no lugar e o

187 «(…) nam pati nihil est aliud quam suscipere aliquid ab agente.» Ibidem. 188 «Sic igitur patet quod licet motus sit unus, tamen praedicamenta quae sumuntur secundum motum, sunt duo, secundum quod a diversis rebus exterioribus fiunt praedicamentales denominationes. Nam alia res est agens, a qua sicut ab exteriori, sumitur per modum denominationis praedicamentum passionis: et alia res est patiens a qua denominatur agens.» [Logo, assim é patente que embora o movimento seja um, contudo os predicamentos que são assumidos segundo o movimento são dois, de acordo com aquilo que a partir de diversas coisas exteriores faz denominações predicamentais. Com efeito, uma coisa é o agente, a qual a partir do exterior é assumida pelo modo da denominação do predicamento da paixão; e outra coisa é o paciente pela qual se denomina o agente.] Ibidem, n. 323, p. 159. Veremos em 4.1 que Herveu de Nédellec desenvolve a sua teoria da denominação extrínseca a partir deste texto de Tomás. De facto, quer em Tomás, quer, mais explicitamente, em Herveu, não é necessário postular uma realidade diferente para que cada predicamento seja considerado realmente diferente. Basta que este denomine algo (real) para além do sujeito no qual se encontra. É, de certa maneira, uma ideia equivalente à de disposição das coisas (habitudo rerum), ou de circunstância, ideias já presentes em Boécio, como tivemos a oportunidade de ver. Assim, embora nenhum dos autores que aqui foram falados pareça duvidar que as categorias correspondem a algo real, ainda assim, todos eles estão cientes de que a cada uma das categorias não tem de corresponder propriamente uma coisa, uma res, mas sim um modus essendi. Mas qual o estatuto desse modus? Veremos este assunto desenvolvido nos próximos capítulos. 110 segundo adiciona ao onde essa ordem. No caso do tempo, não há necessidade de fazer essa subdivisão, porque o tempo é por definição ordenado nas suas partes de acordo com o antes e o depois. Resta o hábito, o mais difícil de acomodar a um modo de predicação próprio. Tomás distingue-o dizendo que este diz apenas respeito ao homem e à sua complexidade: Mas existe algo especial nos homens. Na verdade, nos outros animais a natureza deu suficientemente aquelas coisas que pertencem à conservação da vida, como cornos para se defenderem, couro grosso e peludo para se cobrirem, unhas ou algo desse tipo para caminharem sem lesões. E assim, quando tais animais se dizem armados, ou vestidos, ou calçados, de algum modo não se denominam a partir de algo extrínseco, mas a partir de algumas das suas partes. (…) Mas estas coisas não puderam ser dadas ao homem pela natureza, quer porque não seriam convenientes à subtileza da sua complexão, quer por causa da multiplicidade de obras que convêm ao homem enquanto tem razão (…). Por isso, quando o homem se diz armado, ou vestido, ou calçado, é denominado a partir de algo extrínseco, que não tem razão, nem causa, nem medida: donde há um predicamento especial, e chama-se hábito189. De que maneira pode o hábito ser considerado a partir de um modo de predicar per se? Pode ser tomado como um ente em si? Ressurge novamente o problema que já víramos em Alberto. Se é tratado como um ente em si, não é equivalente à relação, por haver uma inerência de um ente num sujeito a partir de outro ente? Tomás parece ligar o hábito à racionalidade humana de maneira a poder dizer que, pelo uso da razão, há uma inclinação natural ou universal para utilizar determinados artefactos. Assim, há uma certa relação universal e causal entre o humano e o uso de artefactos como o calçado ou a roupa,

189 «Est autem aliquid speciale in hominibus. In aliis enim animalibus natura dedit sufficienter ea quae ad conservationem vitae pertinent, ut cornua ad defendendum, corium grossum et pilosum ad tegendum, ungulas vel aliquid huiusmodi ad incedendum sine laesione. Et sic cum talia animalia dicuntur armata vel vestita vel calceata, quodammodo non denominantur ab aliquo extrinseco, sed ab aliquibus suis partibus. (…) Sed huiusmodi non poterant dari homini a natura, tum quia non conveniebant subtilitati complexionis eius, tum propter multiformitatem operum quae conveniunt homini inquantum habet rationem (…). Unde cum homo dicitur armatus vel vestitus vel calceatus, denominatur ab aliquo extrinseco, quod non habet rationem neque causae, neque mensurae: unde est speciale praedicamentum, et dicitur habitus.» Ibidem, n. 322, p. 159. 111 que não equivale ao estabelecimento de uma relação, como a paternidade, nem à mera agregação acidental de dois entes190.

predicação per se - ente em si

per se primo per se per se quarto modo - secundo modo substância modo

inerência inerência especialmente relativa - comummente absoluta - hábito relação

matéria - na razão da na razão da quantidade medida causa (agente)

forma - tempo - a partir do lugar qualidade quando efeito - ação

com ordem a partir do das partes - agente - posição paixão

sem ordem das partes - onde

Figura 5. Sufficientia de Tomás de Aquino

Mais uma vez, cabe perguntar: não se misturam aqui critérios de várias proveniências? De facto, é difícil compreender de que modo estas subdivisões da predicação per se quarto modo se distinguem meramente a partir de diversas formas de denominação de algo extrínseco191. Está já no modo de predicar de determinadas proposições que o predicado seja medida, ou causa, ou inteiramente extrínseco? No

190 Sobre a noção de habitus em Tomás, cf. M. K. Spencer, «The Category of Habitus: Artifacts, Accidents, and Human Nature», The Thomist, 79.1 (jan. 2015) 113-154. 191 Paul Symington, que propõe a mesma leitura das derivações tomasianas que aquela que aqui tem vindo a ser exposta, quando chega a estas seis últimas categorias, enreda-se exatamente no mesmo problema. Cf. Paul Symington, On Determining What There is, cap. I.IV, pp. 43-45. 112 hábito, este problema é flagrante. Contudo, Tomás parece considerar, pelo menos tacitamente, que ele é necessário para a completude de tudo aquilo que se possa dizer, pois nenhum outro predicamento parece poder assimilar o hábito. Até mesmo a remissão da quantidade para a matéria e da qualidade para a forma, algo que Tomás recebe da tradição que lhe antecede, faz-nos suspeitar de uma heterogeneidade de critérios192. Muitas vezes, o que parece distinguir as categorias é mesmo o conteúdo dos predicados.

Neste subcapítulo, tentámos expor os dois autores que fundaram estas tentativas de derivação das categorias a partir do isomorfismo entre modi essendi e modi praedicandi. Levantámos de antemão as possíveis incoerências que uma tentativa deste tipo acarreta. No próximo capítulo, por um lado, sondaremos os autores que recebem e reconfiguram estas sufficientiae que temos vindo a apresentar. Por outro, apresentaremos aqueles que começam a pôr em causa aquilo que se encontra na sua base, isto é, a assunção do isomorfismo. Assim sendo, quebraremos a linha cronológica que temos vindo a seguir, de modo a dar a entender que há um movimento de continuidade e outro de rutura que ocorrem em simultâneo.

192 De acordo com Paul Symington, há condições de predicação diferentes para quantidade e qualidade na medida em que os predicados que caem na categoria da quantidade podem ser sujeito de outras propriedades e as qualidades não. Cf. Ibidem, p. 41. Tomás nunca refere este raciocínio, pelo que é abusivo atribuir-lhe esta resolução do problema. Paul Symington é realmente convincente, e está justificado pelo próprio texto de Tomás, no que toca à identificação da aplicação dos três modos de predicação per se na derivação, mas é abusivo na tentativa de salvar Tomás das suas próprias incoerências. Incoerências no sentido em que a sua derivação sobrepõe critérios de natureza diversa. 113

Capítulo 3. Continuidade e rutura

Deve saber-se que os modos de significar são tomados a partir dos modos de inteligir enquanto causa imediata. De facto, o que quer que aconteça que seja inteligido, acontece também que seja significado. E são tomados a partir dos modos de ser enquanto causa mediata, pois mediante os modos de inteligir. Porém, os modos de ser são propriedades da coisa segundo as quais a coisa é fora do intelecto. Os modos de inteligir são as mesmas propriedades da coisa segundo as quais se encontra no intelecto, e enquanto são as mesmas propriedades, são inteligidas com a coisa. Os modos de significar, por sua vez, são as mesmas propriedades em número, segundo as quais a coisa é significada pela palavra. Martinho de Dácia (c. 1255/88?)193

Ao mesmo tempo que se dá um movimento de aceitação e assimilação dos libri naturales de Aristóteles, há outros dois aspetos do pensamento da segunda metade do século XIII que devem ser tidos em consideração para que se compreenda de que modo se institui quase como opinio communis a derivação das categorias a partir do isomorfismo entre modos de ser e modos de predicar: 1) na gramática, uma corrente de pensamento a que se deu o nome de modistae; 2) na lógica, a propagação de alguns elementos doutrinais avicenianos já encontrados em Alberto Magno, a saber, a ideia de que a lógica é a ciência que estuda a passagem do conhecido ao desconhecido, e as noções de intenção primeira e intenção segunda. Comecemos pela gramática dos modistae, cuja principal característica era a doutrina segundo a qual é possível estabelecer uma gramática universal, que abstrai das

193 ««Circa primum sciendum est quod modi significandi accepti sunt a modis intelligendi sicut a causa immediata. Quidquid enim contingit intelligere, contingit et significare. Et a modis essendi accepti sunt sicut a causa mediata, quia mediantibus modis intelligendi. Modi autem essendi sunt proprietates rei secundum quod res est extra intellectum. Modi autem intelligendum sunt eaedem proprietates rei secundum quod res est in intellectu et ut eaedem proprietates cum re sunt intellectae. Modi autem significandi eaedem proprietates sunt in numero secundum quod res est significata per vocem.» Martinus de Dacia, Martini de Dacia Opera, ed. Henricus Roos, (Corpus Philosophorum Danicorum Medii Aevi, vol. II), Det Danske Sprog-Og Litteraturselskab, Copenhaga 1961, Prooemium, cap. I, § 3, p. 4. 114 peculiaridades das línguas particulares, cuja base científica assenta no vocabulário dos três modi – os modi significandi, os modi intelligendi e os modi essendi194. Um dos tratados modistas que mais propagação teve, a saber, Modi significandi (1255/1288?), de Martinho de Dácia195, abre exatamente com a afirmação do isomorfismo entre os três modos. No capítulo seguinte, reafirma que os modos de ser, os modos de inteligir e os modos de significar são a mesma coisa num sentido absoluto e diferem apenas acidentalmente196. Esta assunção do isomorfismo estende-se ao problema das categorias, sendo que muitos dos cultores desta nova gramática, a começar pelo próprio Martinho de Dácia, também escreveram comentários lógicos. A ideia albertista e tomista de que são tantos os modi essendi quantos os modi praedicandi teve, assim, um terreno fértil para singrar no último quartel do século XIII. Outro elemento importante introduzido nas discussões lógicas do fim deste século é a doutrina aviceniana de que a lógica tem como sujeito as intenções segundas, que são adicionadas às intenções primeiras de modo a que se chegue ao desconhecido através do conhecido. De acordo com Giorgio Pini, há um paralelismo entre o desenvolvimento da noção de intenção segunda e a reinterpretação do lugar das categorias na lógica: a par de serem teorizadas como parte da ciência do silogismo, passam também a ser enquadradas como os sujeitos das intenções segundas. Mesmo antes dos tratados autónomos sobre as intenções segundas, como o De secundis intentionibus de Herveu de Nédellec (Hervaeus Natalis, ? – 1323), autores como Pedro de Alvérnia (? – 1304), Gil de Roma (ou Egídio Romano, ? – 1316), Henrique de Gante (c. 1217/1223? – 1293), Simão de Faversham (c. 1260 – 1306) e Raul, o Bretão (Radulphus Brito, c. 1270 – 1320/1321) problematizam-

194 Sobre os Modistae, cf. Irène Rosier, La grammaire spéculative des Modistes, Presses Universitaires de Lille, Lila 1983; Constantino Marmo, La semiotica del XIII secolo: tra arti liberali e teologia, Bompiani, Milano 2010; Idem, Semiotica e linguaggio nella scolastica, Parigi, Bologna, Erfurt 1270-1330: la semiotica dei modisti, Istituto Storico Italiano per il Medio Evo, Roma 1994. 195 Cf. Ibidem, 1.1.2.1., pp. 18-19; Martinus de Dacia, Martini de Dacia Opera, Introduction, pp. IX- XXXV. 196 «Circa secundum notandum quod modi essendi et modi intelligendi et modi significandi sunt idem penitus quod patet ex dictis, differunt tamen accidentaliter.» [Acerca do segundo, deve-se notar que os modos de ser, os modos de inteligir e os modos de significar são absolutamente iguais, o que é patente a partir do que foi dito. Contudo, diferem acidentalmente.] Ibidem, cap. II, § 7, p. 6. 115 nas, muitas vezes a partir de Tomás de Aquino, ainda que para discordar dele197. Há nesta problematização uma tensão entre a ideia de que as intenções segundas são causadas pelo intelecto – na medida em que contêm um conteúdo intencional não real, mas objetivo – e a ideia de que as intenções segundas, tal como as primeiras, têm como conteúdo intencional coisas reais, mas relacionadas com outras coisas reais. Seja como for, os autores do último quartel do século XIII que fizeram sufficientiae das categorias tenderam a perspetivar as categorias como sujeitos de intenções segundas, e daí a sua pertença à lógica. De acordo com esta perspetiva, é diferente considerá-las na sua essência, a qual, à maneira de Avicena, nem é universal nem é particular, dee considerar as suas condições na medida em que são inteligidas, ou seja, enquanto universais, ou enquanto géneros e espécies. Esta perspetiva permite-lhes circunscrever e distinguir o tratamento lógico e o tratamento metafísico das categorias. Contudo, não quer isto dizer que percam de vista a coisa, a res, na medida em que tendem para a doutrina segundo a qual as intenções segundas são também elas representações de coisas reais, mas de acordo com determinadas condições de pensabilidade, ou melhor, enquanto relacionadas pelo intelecto com outras coisas reais. Fechando estas notas preambulares, é aqui que se unem as influências da gramática especulativa modista e da lógica de Avicena – o vocabulário dos três modi é extremamente útil para articular o real e o intencional.

197 «Two elements of Aquinas’s analysis will appear again and again in the works of subsequent authors. First, Aquinas regards the difference between metaphysics and logic as the difference between the consideration of the extramental things taken by themselves and the consideration of the extramental things as understood. Second, the category of substance is studied in logic as it is subject to a second intention, namely the intention of universality. It is the intellect that attributes this intention to substance.» Giorgio Pini, Categories and Logic in Duns Scotus. An Interpretation of Aristotle’s Categories in the Late Thirteenth Century, Brill, Leida – Boston – Colónia 2002, cap. 1, p. 42. 116

3.1. Continuidade

Neste subcapítulo, apresentam-se três dos autores que continuam esta tradição das sufficientiae ou viae divisivae, mostrando de que modo assimilam as doutrinas dos seus antecessores, por um lado, e como problematizam a relação entre o tratamento lógico e metafísico das categorias, por outro. São eles Pedro de Alvérnia, Simão de Faversham e Raul, o Bretão, qualquer um deles influenciado pelo vocabulário da gramática especulativa modista, pela perspetiva aviceniana da lógica e pelo isomorfismo entre modi essendi e modi praedicandi.

3.1.1. Pedro de Alvérnia (? – 1304)

O jesuíta Edgar Hocedez, nos anos 30 do século passado, resgatou a vida e a obra de Pedro de Alvérnia de uma série de mal-entendidos que faziam dele um sequaz submisso de Tomás de Aquino198. Mais recentemente, o volume editado por Christoph Flüeler, Lidia Lanza e Marco Toste vem colmatar lacunas dos trabalhos anteriores199. Pedro de Alvérnia ficou conhecido como o autor que completou alguns comentários inacabados de Tomás, em especial o da Política de Aristóteles. Uma análise mais cuidada da tradição manuscrita veio mostrar que, nos séculos XIII e XIV, as suas partes nas obras inacabadas de Tomás eram claramente lidas como separáveis das partes do Doutor Angélico200. Além disso, houve uma propagação manuscrita muito grande da sua série de Sophismata, dos 10 comentários literais e dos 11 comentários por questões a Aristóteles, sendo que Lidia Lanza e Marco Toste identificaram 117 manuscritos com cópias de obras filosóficas suas201. Os seus seis Quodlibeta tiveram também influência nos teólogos da primeira metade do século XIV.

198 Cf. Edgar Hocedez, La vie et les oeuvres de Pierre d’Auvergne, in Gregorianum 14 (1933), pp. 3-36. 199 Cf. Christoph Flüeler – Lidia Lanza – Marco Toste (eds.), Peter of Auvergne. University Master of the 13th Century, De Gruyter, Berlim – Munique – Boston 2015. 200 Cf. Christoph Flüeler, «The Influence of the Works of Peter of Auvergne in the Scholastic Philosophy of the 13th, 14th and 15th Centuries», in Christoph Flüeler – Lidia Lanza – Marco Toste (eds.), Peter of Auvergne, pp. 407-408. 201 Cf. Lidia Lanza – Marco Toste, «A Census of Peter of Auvergne’s Works», in Christoph Flüeler – Lidia Lanza – Marco Toste (eds.), Peter of Auvergne, pp. 415-477. 117

O que se sabe acerca da sua vida é que foi mestre de artes em Paris e que produziu numerosos comentários a obras de Aristóteles nas décadas de 1270 e 1280. Depois disso, tornou-se doutor em Teologia, por volta de 1296. Era padre secular, foi cónego em Notre- Dame de Paris e é possível que tenha sido nomeado bispo de Clermont em 1302. Morreu em 1304202. Aqui, concentrar-nos-emos no seu comentário por questões às Categorias, escrito na década de 1270. Este comentário abre com a pergunta sobre a possibilidade de uma ciência dos predicamentos e sobre a unidade dessa ciência. A resposta de Pedro é que não há uma ciência demonstrativa dos predicamentos, mas uma possibilidade de cognição certa das definições e descrições deles203. A unidade desta ciência deve-se ao facto de todos os predicamentos poderem ser atribuídos a um mesmo sujeito: o ente incomplexo ordenável no género204. Note-se que a vox ou o dicibile desaparece e dá lugar ao ens. Contudo, a terceira questão do seu comentário diferencia o tratamento lógico do tratamento metafísico das categorias. A sua resposta é curta, mas contém o elemento aviceniano próprio da opinio communis do seu tempo: Quanto a isto, diga-se que podemos falar dos predicamentos de um modo dúplice: ou de acordo com a sua entidade e essência, e assim são da consideração

202 Cf. , «Peter of Auvergne, Master in Arts and Theology at Paris», in Christoph Flüeler – Lidia Lanza – Marco Toste (eds.), Peter of Auvergne, pp. 13-27. 203 «Nihilominus tamen potest esse scientia de aliquo, quae idem est quod certa cognitio ipsius, et haec datur er definitiones et descriptiones; et hoc modo potest esse scientia de praedicamentis, cognoscuntur enim per quasdam definitiones et descriptiones. Et cum non habeatur de praedicamentis scientia per causam, cum ipsa non habeant causam, tamen isto modo per definitiones et descriptiones potest de hiis esse scientia.» [Não obstante, pode existir uma ciência sobre algo que é o mesmo que uma cognição certa disso mesmo, e esta dá-se por definições e descrições; e deste modo pode existir uma ciência dos predicamentos: com efeito, conhecem-se por umas certas definições e descrições. E como não houvesse uma ciência dos predicamentos pela causa, uma vez que os mesmos não têm causa, contudo deste modo, por definições e descrições, pode existir uma ciência sobre eles.] Pedro de Alvérnia, Quaestiones super Praedicamentis, ed. Robert Andrews, CIMAGL, 55 (1987), qq. 1-2, p. 10. Cf. tradução portuguesa das questões comentadas no Anexo 9. 204 «Sufficit enim ad unitatem scientiae, quod omnia quae determinantur in scientia attribuantur alicui uni subiecto; talia sunt praedicamenta, attribuuntur enim enti incomplexo secundum quod ordinabile in genere; ideo etc.» [Com efeito, é suficiente para a unidade da ciência que todas as coisas que se determinam numa ciência sejam atribuídas a algum sujeito uno; os predicamentos são assim, pois são atribuídos ao ente incomplexo de acordo com aquilo que é ordenável no género; logo, etc.] Ibidem. 118

do próprio metafísico; ou de acordo com aquilo em que neles se fundam as intenções segundas, e é assim que o lógico os considera205. Cabe ao lógico considerar as intenções segundas. Embora os predicamentos não sejam intenções segundas, estas fundam-se neles. Assim, a consideração lógica dos predicamentos, ao contrário da metafísica, não se prende diretamente com a sua essência, mas com a sua função de serem fundamento de intenções segundas. Para que se compreenda melhor o que é ser fundamento de intenções segundas, é necessário tomar em atenção o modo como Pedro teoriza a produção das intenções primeiras e das intenções segundas. Através da leitura de uma das suas questões acerca dos universais, pode-se verificar que a noção aviceniana de natura communis – isto é, a noção de que a essência de uma coisa é anterior à sua determinação como existente em ato e como universal ou particular – é utilizada para se dizer que também as intenções segundas são fundadas em coisas reais, embora indiquem condições da cognição, e não propriamente coisas. De facto, as categorias, enquanto essências anteriores à sua determinação num modo de ser, são aquilo que o intelecto apreende na produção de uma intenção primeira. A intenção segunda indica a condição da coisa inteligida no intelecto, como por exemplo a universalidade que foi aposta à essência na intenção primeira206. Sob o ponto de vista lógico, o que está em causa é a coordenação dos predicamentos nas dez linhas predicamentais, apondo-lhes intenções segundas como “género” e “espécie”. Embora sejam termos que indicam relações de razão, elas dependem das próprias essências nas quais se fundam, não de uma operação intelectual.

205 «Ad hoc dicendum quod de praedicamentis possumus loqui dupliciter: aut secundum sui entitatem et essentiam, et sic sunt de consideratione ipsius metaphysici; aut secundum quod in ipsis fundantur secundae intentiones, et sic ea logicus considerat.» Ibidem, q. 3, p. 11. 206 «According to Peter, the intellect produces first and second intentions by two different movements. By a first movement, the intellect turns towards an extramental thing, or, more properly, to the essence of an extramental thing, which is its proper object. By a second movement, the intellect turns towards the thing already understood. It is at this second stage that the intellect takes into account what Peter of Auvergne calls the ‘conditions’ of the thing understood. To these conditions, the intellect gives second intention names such as ‘genus’.» Giorgio Pini, Categories and Logic in Duns Scotus, cap. 2, p. 64. Cf. Pedro de Alvérnia, Quaestiones de Universalibus, in Jan Pinborg, «Petrus de Alvernia on Porphyry», CIMAGL, 9 (1973), p. 64. 119

A questão 12 contém a sufficientia de Pedro. Diz Pedro que de acordo com Aristóteles, «todas as outras coisas que não as substâncias primeiras, ou se encontram nas primeiras, ou são ditas das primeiras207.» A partir deste postulado, afirma que a suficiência das categorias se pode tomar a partir da comparação das outras coisas com a substância primeira. Pedro, ao contrário do que pudemos verificar nos autores que atrás se apresentaram, faz o esforço de encontrar sempre divisões binárias cujos termos são mutuamente exclusivos. Eis o trecho: De facto, todas as coisas que se encontram no predicamento da substância são ditas da substância primeira e dizem a sua quididade e essência. Se, no entanto, não dizem a sua quididade, isto acontece de um modo dúplice. Ou é tomado por algo que está numa substância primeira, ou por algo que está fora dela. Se no primeiro modo, isto acontece de um modo dúplice, pois ou se assume a partir de algo que está nela absolutamente, ou relativamente (absolute vel respective). Se relativamente, então é relação. Se absolutamente, isto acontece de um modo dúplice, pois ou é tomado a partir de algo que se encontra nela enquanto matéria, e assim é quantidade; ou a partir de algo que se encontra nela enquanto forma, e assim é qualidade. Se, porém, é assumido a partir de algo que se encontra fora dela, isto acontece de um modo dúplice, pois ou é tomado a partir de algo que se encontra completamente fora dela, ou a partir de algo que se encontra parcialmente fora e parcialmente dentro. Se do segundo modo, é assim de um modo dúplice, pois ou se toma a partir de algo que se encontra parcialmente dentro da parte do princípio, e parcialmente fora da parte do termo, e assim é ação; ou, pelo contrário, parcialmente dentro da parte do termo e parcialmente fora da parte do princípio, e assim é paixão. Se, contudo, for tomado a partir de algo que se encontra completamente fora dela, isto acontece de um modo dúplice: ou porque isso não é medida da substância, mas algo diferente disso que lhe é aplicado, e assim é hábito; ou compara-se-lhe enquanto medida sua. E isto acontece de um modo dúplice, pois ou é tomado a partir do tempo, ou a partir do lugar. Se do

207 «… omnia alia a primis substantiis aut sunt in primis aut dicuntur de primis.» Pedro de Alvérnia, Quaestiones super Praedicamentis, q. 12, p. 22. 120

tempo, então é quando. Se do lugar, então isto acontece de um modo dúplice, pois ou diz a ordem das partes no lugar ou não. Se no primeiro modo, então é posição. Se no segundo modo, então é onde. E assim é patente a suficiência dos predicamentos208.

diz a essência da não diz a SP: substância essência da SP

dentro fora

parcialmente relativamente: completamente dentro, absolutamente relação fora parcialmente fora

não-medida: matéria: medida hábito princípio dentro, quantidade termo fora: ação

tempo: quando lugar forma: princípio fora, qualidade termo dentro: ordem das paixão partes: posição sem ordem das partes: onde

Figura 6. Sufficientia de Pedro de Alvérnia

208 «Omnia enim quae sunt in praedicamento substantiae de prima substantia dicuntur et eius quiditatem et essentiam dicunt. Si autem non dicant eius quiditatem, hoc est dupliciter. Aut accipitur ab aliquo quod est in prima substantia, aut ab aliquo quod est extra ipsam. Si primo modo, hoc est dupliciter, quia aut sumitur ab aliquo quod est in ipsa absolute vel respective. Si respective, sic est relatio. Si absolute, hoc est dupliciter, aut quia accipitur ab aliquo quod est in ipsa ut materia, et sic est quantitas; aut ab aliquo quod est in ipsa ut forma, et sic est qualitas. Si autem sumatur ab aliquo quod est extra ipsam, hoc est dupliciter, quia aut accipitur ab aliquo quod est penitus extra ipsam, vel ab aliquo quod est partim extra et partim intra. Si secundo modo, sic est dupliciter. Quia accipitur aut ab aliquo quod est partim intra ex parte principii, et partim extra ex parte termini, et sic est actio. Vel econtra, si partim intra et ex parte termini, et partim extra et ex parte principii, et sic est passio. Si autem accipitur ab aliquo quod est penitus extra ipsam, hoc est dupliciter. Aut quia illud non est mensura substantiae sed aliquid aliud sibi applicatum, et sic est habitus. Vel comparatur ad ipsam tamquam mensura eius, et hoc est dupliciter. Quia aut accipitur a tempore vel a loco. Si a tempore, sic est quando. Si a loco, sic est dupliciter. Quia aut dicit ordinem partium in loco aut non. Si primo modo, sic est positio. Si secundo modo, sic est ubi. Et sic patet praedicamentorum sufficientia.» Ibidem, pp. 22-23. 121

Esta sufficientia tem muitas afinidades com a de Tomás, que pode ter servido de modelo, embora não seja igual. Não utiliza a noção de “causa” para ação e paixão, mas retoma o medio modo das Categoriae decem – talvez não diretamente, mas a partir de uma sufficientia à maneira da de Kilwardby – diferenciando estas duas categorias a partir das noções de “princípio” e de “termo” de um movimento. Eventuais arbitrariedades destas divisões já foram exploradas em divisões anteriores. O comentário de Pedro de Alvérnia contém ainda uma curta questão acerca da possibilidade de aumentar ou reduzir a lista aristotélica. Como seria de esperar, a resposta de Pedro vai sempre no sentido de demonstrar que todas as categorias são irredutíveis e que não é possível estender a lista aristotélica209.

3.1.2. Simão de Faversham (c. 1260 - 1306)

O segundo autor que é exemplo de continuidade na produção de vias divisivas no último quartel do século XIII é Simão de Faversham, cujo comentário às Categorias foi escrito na década de 1280. Acerca dele, sabe-se que nasceu por volta de 1260 e que fez a sua formação em artes na Universidade de Oxford. Na década de 1280, foi mestre em Paris. É a partir do ensino na Faculdade de Artes da Universidade de Paris que se originam os seus quinze comentários por questões a Aristóteles. Em 1289, regressou a Oxford, onde se tornou doutor em Teologia. Em 1304, foi Chanceler da Universidade. Embora não fosse clérigo, teve várias funções importantes no seio da Igreja, em especial o Arquidiaconato de Cantuária em 1305, cargo mais alto a que um leigo podia chegar em Inglaterra. Morreu em 1306210. A sua visão da lógica tem a peculiaridade de interpretar a ideia de uma scientia rationalis como ciência dos actus rationis, dos atos da razão. A partir disto, Simão inclui

209 Cf. Ibidem, q. 15, pp. 26-27. 210 Cf. Ana María Mora-Márquez, «», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2018 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = . 122 a Retórica e a Poética nos livros lógicos de Aristóteles211. Contudo, tal como Pedro de Alvérnia, herda a ideia de que a lógica é a ciência das intenções segundas, embora não lhes chame assim, mas antes intenções lógicas. Estas não são conceitos autorreflexivos acerca da natureza das operações intelectuais, ou dos actus rationis. Apesar de serem produtos desses atos de razão, as intenções lógicas são atribuídas pelo intelecto a diversas coisas de acordo com diversas propriedades suas, pelo que não são propriamente conceitos de segunda ordem, mas representações de coisas fora da alma de acordo com determinada consideração relativa. Poderia dizer-se, a partir da expressão et movetur ab apparentibus in re utilizada por Simão, que as intenções lógicas são atribuídas pelo intelecto a diversas aparências que se baseiam em diversas propriedades de uma coisa212. O lugar das Categorias de Aristóteles não é nem propriamente a lógica, nem propriamente a metafísica. A sua inclusão na lógica deve-se ao facto de os atos de razão que produzem as intenções lógicas se basearem numa operação pela qual o intelecto capta a quididade ou essência de uma coisa. Assim, também em Simão, as categorias são perspetivadas como aquilo no qual se fundam as intenções segundas ou lógicas, mas a

211 Cf. Martin Pickavé, «Simon of Faversham on Aristotle’s Categories and the Scientia Praedicamentorum», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 183-220, em especial, cap. II. 212 Giorgio Pini resume a doutrina de Simão de Faversham acerca das intenções segundas em quatro pontos: «First, Simon of Faversham does not say that second intentions are produced by the reflection of the intellect on itself. Instead, he says that the intellect produces second intentions by an accidental or relative consideration of extramental things. Second, Simon defines second intentions as things understood by the intellect according to a relative consideration. Third, Simon explicitly distinguishes between a concrete and an abstract consideration of intentions. If considered concretely, intentions are things understood in a certain way, whereas they are concepts of the mind if they are considered abstractly. Fourth, Simon denies that second intentions, abstractly considered, are fictitious concepts, because intentions are based on real properties pertaining to extramental things independently of our understanding of them.» Giorgio Pini, Categories and Logic in Duns Scotus, cap. 3, p. 73. A expressão et movetur ab apparentibus in re provém das questões sobre a Isagoge de Porfírio. A passagem é citada por Martin Pickavé: «Cum autem intellectus causat tales intentiones, et movetur ab apparentibus in re; et propter hoc intellectus diversas intenciones logicales attribuit diversis rebus propter diversas proprietates. (…) Ideo, tota logica accipitur a proprietatibus rerum, quia aliter logica esset figmentum intellectus, quod non dicimus.» [Porém, quando o intelecto causa tais intenções, também é movido pelas aparências na coisa; e devido a isto, o intelecto atribui diversas intenções lógicas a diversas coisas devido a diversas propriedades. (…) Portanto, a lógica na sua totalidade é tomada a partir das propriedades das coisas, pois de outro modo a lógica seria um figmento do intelecto, coisa que não afirmamos.] Simon de Faverisham, Quaestiones super libro Porphyrii, q. 2, apud Martin Pickavé, «Simon of Faversham on Aristotle’s Categories and the Scientia Praedicamentorum», nota 12, pp. 188-189. 123 scientia praedicamentorum não é propriamente parte da lógica, posto que é uma ciência acerca do ente de acordo com a propriedade de nele se fundarem as intenções. A preocupação com as exigências de cientificidade dos Analíticos Posteriores condu-lo a formular uma longa questão inicial acerca da possibilidade de uma ciência das categorias. Ao passo que em Pedro de Alvérnia a impossibilidade de demonstração das categorias por causas o leva a dizer que a ciência dos predicamentos é uma ciência enquanto cognitio certa de descrições, em Simão, à impossibilidade da demonstração acrescenta-se também a impossibilidade da definição das categorias213. Assim, para salvaguardar o seu estatuto científico, o autor inglês esboça três requisitos que devem ser cumpridos por qualquer coisa que possa ser alvo de uma ciência: ser um ente; ser inteligível; ter partes constituintes, propriedades e paixões que possam ser provadas sobre ele214. As categorias cumprem os três requisitos. Quanto a este último ponto, Simão afirma que «qualquer predicamento é constituído a partir de duas , a saber, a partir da coisa e a partir do modo de ser (modus essendi) que se lhe sobrepõe215». Tudo aquilo que se encontra num predicamento é composto. Esta doutrina encontra-se também

213 A não ser que a noção de definição seja estendida a um sentido mais impróprio. Assim, recorre ao par quid nominis vs. quid rei para dizer que as categorias podem ter uma definição quid nominis: «Quedam enim est diffinitio proprie dicta, que datur per genus et differentias et ex prioribus secundum rationem; alia est diffinicio improprie dicta, ponens altera nomina, et is non est diffinicio dcens quid est res, sed quid significat nomen. Modo dico quod predicamentorum est diffinicio improprie dicta, ponens altera nomina, et non est diffinicio dicens quid est res, sed quid significat nomen.» [Com efeito, uma é a definição propriamente dita, que se dá pelo género e diferenças, e a partir dos anteriores segundo a razão; outra é a definição impropriamente dita, que postula outros nomes, e esta não é uma definição que diga o que é a coisa, mas o que significa o nome. Deste modo, digo que dos predicamentos existe definição impropriamente dita, que postula outros nomes, e não é uma definição que diga o que é a coisa, mas o que significa o nome.] Simon de Faverisham, Questiones super libro Predicamentorum, ed. Carmelo Ottaviano, Reale Accademia Nazionale dei Lincei, Roma 1930, q. 1, pp. 266-267. Esta edição é feita a partir do manuscrito da Biblioteca Ambrosiana de Milão com a cota C. 161 Inf.. Há uma outra edição, feita a partir de três manuscritos, editada por Pasquale Mazzarella em 1957. Infelizmente, não a pudemos consultar. Cf., para a tradução portuguesa das questões comentadas, o Anexo 10. 214 «Ad hoc enim quod de aliquo possit esse scientia tria requiruntur, scilicet quod ipsum sit ens et quod ipsum sit intelligibile et quod habeat partes constituentes ipsum, proprietates et passiones que possunt probari de hoc.» [Com efeito, quanto a isto – que sobre algo possa existir uma ciência – são requeridas três coisas, a saber, que isso seja um ente, que isso seja inteligível e que isso tenha partes constituintes, propriedades e paixões que possam ser provadas sobre ele.] Ibidem, pp. 263-264. 215 «(…) quodlibet predicamentum constituitur ex duobos, scilicet ex re et ex modo essendi sibi superaddito.» Ibidem, p. 265. 124 em Henrique de Gante, sendo impossível saber qual dos dois autores a formula primeiramente216. Depois de estabelecer que os predicamentos cumprem os requisitos para serem sujeito de uma ciência, regressa ao problema da sua indemonstrabilidade, dado o seu caráter primário. Para o resolver, utiliza um par que fez fortuna no seu período e nos séculos vindouros: demonstração quia e demonstração propter quid, ou demonstração a partir do que é anterior absolutamente (simpliciter) e demonstração a partir do que é anterior quanto a nós (quoad nos). Embora não possa existir uma ciência propter quid dos predicamentos, pode existir uma ciência quia217. O exemplo que dá do tipo de determinação dos predicamentos levado a cabo por Aristóteles é o de atribuir à substância as propriedades de não ser suscetível ao mais e ao menos, e de não ter um contrário. Estas propriedades são atribuídas antes do conhecimento da sua essência218. Estabelecido o estatuto científico da scientia praedicamentorum, segue-se a questão da unidade desta ciência, dado que não há uma unidade genérica, ou uma categoria das categorias. Da resposta a esta questão, desdobra-se a resposta acerca da diferença entre o tratamento das categorias na metafísica e o seu tratamento no tratado de Aristóteles que está a ser comentado. Como foi avançado, e seguindo de perto a interpretação de Martin Pickavé, nunca é dito explicitamente que as Categorias de Aristóteles são um tratado de

216 Cf. Martin Pickavé, «Simon of Faversham on Aristotle’s Categories and the Scientia Praedicamentorum», caps. V-VI, pp. 200-212. Sobre Henrique de Gante, cf. infra, 3.2. 217 «Scientia quidem predicamentorum non est ex prioribus et nocioribus simpliciter, quia tunc haberetur scientia de eis per diffinitionem que constituuntur ex genere et differentia; predicamenta autem non habent genus; et ideo de eis non est scientia ex prioribus et nocioribus simpliciter. Ipsa enim primo occurrit intellectui nostro, et inter ea illud quod primo occurrit est substantia. Sed scientia de predicamentis habetur ex prioribus nobis, posterioribus autem simpliciter; essencie enim predicamentorum nobis occulte sunt, sicut essencia cuiuslibet rei.» [A ciência dos predicamentos não é a partir dos anteriores e mais conhecidos na aceção simples, pois então ter-se-ia uma ciência deles pela definição que se constitui a partir do género e da diferença; porém, os predicamentos não têm género; e por isso, sobre eles não existe uma ciência a partir dos anteriores e mais conhecidos na aceção simples. Eles apresentam-se primeiro ao nosso intelecto, e entre eles, aquele que se apresenta primeiro é a substância. Mas a ciência dos predicamentos é obtida a partir dos anteriores para nós, posteriores, porém, na aceção simples; de facto, as essências dos predicamentos são para nós ocultas, do mesmo modo que a essência de seja que coisa for.»] Simon de Faverisham, Questiones super libro Praedicamentorum, p. 265. 218 Cf. Ibidem. 125 lógica. O sujeito que unifica a scientia praedicamentorum – na medida em que há uma unidade de atribuição, inferior à genérica, mas suficiente para a cientificidade – é o «ente dizível incomplexo ordenável no género segundo o sob e o sobre» (ens dicibile ordinabile in genere secundum sub et supra). Tal como em Pedro de Alvérnia, o sujeito desta ciência é o ente, não diretamente as segundas intenções. Por conseguinte, cabe-nos perguntar como se distingue esta ciência da ciência metafísica. Eis a resposta: E a partir disto, torna-se claro o modo diverso como consideram os predicamentos esta ciência e a ciência divina, posto que a ciência divina considera- os enquanto são umas certas essências e partes do ente; neste livro, porém, não se determina os predicamentos de acordo com aquilo em que são uma coisa na sua matéria absoluta, mas de acordo com aquilo em que têm tal e tal modo de predicar; e por esse motivo é dito livro dos Predicamentos219. A resposta é semelhante à de Pedro de Alvérnia, mas ao contrário deste, Simão não diz que a consideração própria das Categorias seja uma consideração lógica. É uma ciência do ente real de acordo com a propriedade de ter diversos modos de predicar. A sufficientia apresentada na questão 12 do seu comentário gira em torno da substância primeira, como tem vindo a ser habitual. Simão refere-se explicitamente ao Liber sex principiorum e, no caso do hábito, à passagem do comentário de Tomás à Física que atrás se comentou. A primeira divisão dá-se entre aquilo que se diz da substância primeira e aquilo que está ou que é produzido (quod fit) numa substância primeira. Aquilo que é dito da substância primeira segundo o nome e segundo a razão (secundum nomen et secundum rationem) encontra-se na categoria da substância. Tudo o resto é produzido nela e pode encontrar-se nela intrínseca ou extrinsecamente. Os acidentes intrínsecos são a quantidade, a qualidade e a relação. Os dois primeiros são absolutos e o terceiro não220.

219 «Et ex hoc apparet quomodo diversimode considerat ista scientia de predicamentis et scientia divina, quoniam scientia divina considerat de eis ut sunt quedam essencie et partes entis; in isto autem libro non determinatur de predicamentis secundum quod sunt res materie absolute, sed secundum quod habent talem modum predicandi et talem; et ideo dicitur liber Predicamentorum.» Ibidem, p. 266. 220 «Si absolute, aut per naturam materie, et sic est quantitas, aut per naturam forme, et sic est qualitas. Quia qualitas est informare et denominare. Si sint in ipsis in habitudine ad alterum, sic est relatio.» [Se absolutamente, ou pela natureza da matéria, e assim é 126

Aquilo que se encontra na substância por algo extrínseco distingue-se de acordo com a comparação entre esse elemento extrínseco e a substância primeira, a qual pode ser de três modos: comparação da medida com o medido; do agente com o paciente; do tido com aquilo que o tem. Nestes três modos, encontraremos os seis princípios: Se se compara com a substância primeira do mesmo modo que o agente com o paciente ou vice-versa, disso resultam dois predicamentos, a saber, ação e paixão. Com efeito, a ação do agente no paciente é causada por um certo movimento, o qual se diz ação enquanto é a partir do agente se diz paixão enquanto é a partir do paciente. Se esse extrínseco se compara com a substância primeira do mesmo modo que a medida com o medido, uma vez que a medida extrínseca não é senão dúplice, a saber, lugar e tempo, então um acidente extrínseco pode comparar-se com a substância primeira como o lugar com o locado, e assim é o predicamento do onde. (…) Se, porém, o lugar não se compara com o próprio locado absolutamente, mas com o locado enquanto é pela disposição das partes no locado, deste modo é o predicamento que é a posição. (…) Se um acidente extrínseco se compara com a substância primeira do mesmo modo que o tempo com a coisa temporal, assim resulta este predicamento que é o quando. Com efeito, o quando não é senão um certo modo de ser causado na coisa temporal a partir da disposição que o tempo tem relativamente à mesma. (…) Se, porém, um acidente extrínseco se compara com a substância primeira do mesmo modo que o tido se compara com o que o tem, assim resulta este predicamento que é o hábito. E deste modo dizemos que a veste de Sócrates se compara com Sócrates vestido; daí que aquela disposição que é causada em Sócrates vestido a partir da veste que tem é dita hábito. (…) E este predicamento do hábito não se encontra nos restantes animais que não o homem, a não ser enquanto são utilizados pelos homens. Por isso, diz Tomás, no III da Física, que as vestes e as coisas que pertencem ao revestimento, enquanto são ditas dos outros animais que não o homem, pertencem

quantidade, ou pela natureza da forma, e assim é qualidade, pois a qualidade é o que confere forma e denominação. Se se encontram nas pela disposição para outro, assim é a relação.] Ibidem, p. 274. 127

ao predicamento da substância, mas enquanto são ditas do homem, encontram-se no predicamento do hábito221.

221 «Si comparetur ad primam substantiam sicut est agens ad patiens vel e converso, sic resultant duo predicamenta, scilicet actio et passio. Actionem enim agentis in paciens causatur motus quidam, qui ut est ab agente dicitur actio, ut a paciente dicitur passio. Si illud extrinsecum comparetur ad primam substantiam sicut mensura ad mensuratum, cum mensura extrinseca non sit nisi duplex, scilicet locus et tempus, ergo accidens extrinsecus potest comparari ad substantiam primam sicut locus ad locatum, et sic est predicamentum ubi; ubi enim est quidam modus essendi causatus in locato in habitudine quam locus habeat ad ipsum; et hoc voluit significare auctor Sex principiorum, quando dixit quod ubi est circumscriptio etc., secundum quod dicimus alia esse sursum et deorsum. Si autem non comparetur locus ad ipsum locatum absolute, sed ad locatum ut est in habitudine ad partes locati, hoc modo est predicamentum quod est positio. Positio enim non est nisi quidam modus essendi causatus in corpore locato ex habitudine quam locus habet ad ipsum et ad partes eius, secundum quod dicimus aliqua sedere vel stare. Aliter enim disponuntur partes in toto cum sedet et cum stat; et sic secundum alias differentias positionis. Et voluit significare auctor Sex principiorum, cum dicit quod positio est situs etc. Si accidens extrinsecum comparetur ad primam substantiam sicut tempus ad rem temporalem, sic resultat hoc predicamentum, quod est quando. Quando enim non est nisi quidam modus essendi causatus in re temporali ex habitudine quam habet tempus ad ipsam. Et hoc voluit significare auctor Sex principiorum, quando dixit quod quando est quod derelinquitur etc., secundum quem modum denominationis aliquid esse unius diei vel unius anni. Si autem accidens extrinsecum comparetur ad primam substantiam sicut habitum comparatur ad habens ipsum, sic resultat hoc predicamentum quod est habitus. Et isto modo dicimus quod vestitus Socratis comparatur ad Socratem vestitum; unde habitudo illa que causatur in Socrate vestito ex veste quam habet, dicitur esse habitus. Et hoc est quod dicit auctor Sex principiorum, quod habitus est corporeum et eorum que circa corpus sunt adiacentia, ita quod habitus consistit in quadam applicacione eorum que circa corpus sunt ad corpus; et illud predicamentum habitus non invenitur in aliis animalibus ab homine nisi secundum quod veniunt in usus hominum. Ideo dicit Thomas super tertio Phisicorum, quod vestitum esse et talia que pertinent ad vestimentum habitus secundum quod dicuntur de aliis animalibus ab homine, pertinent ad predicamentum substantie, sed secundum quod dicuntur de homine, sunt in predicamento habitus.» Ibidem, pp. 274-275. 128

o que é dito da o que está na SP: substância SP: acidente

intrínseco extrínseco

comp. tido com relativo: comp. agente comp. medida absoluto o que o tem: relação com o paciente com o medido hábito tempo com a matéria: a partir do lugar com o quantidade coisa locado agente: ação temporal: quando em absoluto: forma: a partir do onde qualidade paciente: paixão de acordo com as partes: posição

Figura 7. Sufficientia de Simão de Faversham

Esta sufficientia é, de facto, semelhante à de Tomás de Aquino, pelo que não é de espantar que Simão se refira ao seu comentário à Física. Refere-se às categorias extrínsecas como modos de ser provocados numa substância por algo extrínseco. Aliás, logo a seguir a esta via divisiva, as categorias são agrupadas em três tipos de modi essendi, a saber, ser não noutro (esse non in alio), ser noutro (esse in alio) e ser relativamente a outro (esse ad aliud). Os dois últimos modos de ser não são exclusivos. De facto, todos os acidentes têm como modo de ser o ser noutro, mas enquanto quantidade e qualidade são absolutos, os restantes sete são relativos, o que quer dizer que quantidade e qualidade não têm, para Simão, um caráter dependente na sua essência222.

222 «Esse non in alio debetur substantie; esse in alio absolute tantum debetur qualitati et quantitati. Sed esse in alio et ad aliud est respectu relationis et aliorum sex. Alia enim sex sunt quedam relationes, vel causantur ex quadam relatione. Unde quamvis posset concedi quod dependencia ad aliud esset de essentia septem predicamentorum, tamen non credo quod sit de essentia quantitatis et qualitatis.» [O ser não noutro está destinado à substância; o ser noutro absolutamente está destinado apenas à qualidade e à quantidade. Mas o ser noutro e relativamente a outro diz respeito à relação e aos outros seis. Com efeito, os outros seis são certas relações, ou são causados a partir de uma certa relação. Daí que, embora se possa conceder que a dependência relativamente a outro seja da essência de sete predicamentos, contudo não creio que seja da essência da quantidade e da qualidade.] Ibidem, pp. 275-276. Esta doutrina repete-se em Henrique de Gante, como veremos em 3.2. 129

Quer isto dizer que um predicamento é um agregado de modos de ser? Ou serão vários níveis de determinação de um modo de ser, desde algo que é comum a vários modos até algo que seja um modo próprio? Apenas uma destas soluções poderia impedir- nos de reduzir a lista das categorias, posto que Simão afirma explicitamente que a relação e os seis princípios, que têm modos de ser idênticos, são todos relações, ou causados por relações. Outra questão que deve ser colocada é a do estatuto metafísico destes modi essendi. Veremos que em Henrique de Gante, são rationes que parecem corresponder a distinções intencionais, algo intermédio entre uma distinção real e uma distinção de razão.

3.1.3. Raul, o Bretão (c. 1270 – 1320/1321)

Mas antes, fechemos este subcapítulo com o terceiro exemplo de continuidade das sufficientiae, proveniente de um dos mais reputados modistae. Referimo-nos a Raul, o Bretão (Radulphus Brito), corolário de uma tradição que está prestes a mudar223. Raul, originário de Ploudiry, na Bretanha, estudou e lecionou na Faculdade de Artes de Paris e deverá ter recebido os diversos graus académicos entre 1295 e 1300, aproximadamente. A partir de 1299, estuda teologia, mas continua a dedicar-se ao ensino da filosofia. Torna-se bacharel em teologia, provavelmente em 1308/1309, anos em que comenta as Sentenças de Pedro Lombardo, e depois doutor, em 1313/1314. Foi regente da Faculdade de Teologia em 1315 e foi Provedor do Colégio da Sorbonne pelo menos a partir do mesmo ano, talvez antes. Estima-se que tenha morrido em 1320, ou talvez 1321224. Da sua vasta produção filosófica (16 comentários por questões e alguns Sophismata), focar-nos-emos no seu comentário às Categorias, que foi redigido no

223 Cf. Sten Ebbesen, «Radulphus Brito. The Last of the Great Arts Masters. Or: Philosophy and Freedom», in Jan A. Aertsen – Andreas Speer (eds.), Geistesleben im 13. Jahrhundert, (Miscellanea mediaevalia, 27) Walter de Gruyter, Berlim 1999, pp. 231-251. No seu estilo hiperbólico habitual, Ebbesen afirma que Raul é o último grande mestre de artes. Suspendendo o juízo acerca da sua valoração, Raul é, de facto, dos últimos autores a assumir uma série de assunções básicas que são postas em causa a pouco e pouco, a começar pela gramática especulativa modista e o isomorfismo entre o mundo, o pensamento e a linguagem que lhe subjaz. Além disso, a sua teoria das intenções segundas é uma das mais debatidas no século XIV. 224 Cf. Jean-Luc Deuffic, «Un logicien renommé, proviseur de Sorbonne au XIVe s. Raoul le Breton de Ploudiry. Notes bio-bibliographiques» in Pecia. Le livre et l’écrit, Vol. 1 (2002) 45-154; William J. Courtenay, «Radulphus Brito, Master of Arts and Theology», in CIMAGL, 76 (2005) 131-158. 130 período em que lecionou na Faculdade de Artes. Este comentário contém uma longa problematização do estatuto científico da ciência dos predicamentos, da sua pertença à lógica e da vexata quaestio acerca do estatuto metafísico das categorias. É clara a semelhança de muitas das suas doutrinas com as dos seus dois antecessores. Tal como em Pedro de Alvérnia e em Simão de Faversham, a lógica é a ciência das intenções segundas. A intenção segunda é, para Raul, uma intenção primeira à qual se acrescenta um modus essendi. O modus essendi é da própria coisa, se a intenção for tomada na sua aceção concreta, ou do intelecto, se for tomada na sua aceção abstrata, distinção já presente em Simão de Faversham225. Além disso, Raul divide a lógica em três partes, de acordo com três operações intelectuais: apreensão, composição/divisão e silogismo. Estes conceitos são importantes para se compreender de que modo o autor bretão localiza a ciência das Categorias no plano mais geral da lógica, como a ciência das intenções segundas concretas compreendidas na sua apreensão. Do mesmo modo que Simão, Raul mostra que a ciência dos predicamentos cumpre os três requisitos para a cientificidade: o seu sujeito é um ente real fora da alma, é inteligível e tem paixões demonstráveis. Também como em Simão, a ciência dos predicamentos é uma ciência quia, não uma ciência propter quid, porque os predicamentos não são conhecidos pelos seus princípios, não têm definição lógica (género e diferença específica), nem definição real, dado não constituem algo uno segundo a natureza e a espécie. As suas paixões, na verdade, são conhecidas de um modo indutivo, a posteriori226. O sujeito que confere unidade a esta ciência quia é o dizível incomplexo

225 Cf. Ana María Mora-Márquez – Iacopo Costa, «Radulphus Brito», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2018 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/spr2018/entries/radulphus-brito/, 4. A primeira questão do comentário à Isagoge, sobre se a lógica é uma ciência, encontra-se editada em Sten Ebbesen – Jan Pinborg, «Bartholomew of Bruges and his sophisma on the nature of logic» in CIMAGL, 39 (1981) xii-xv. 226 «Tunc dico quod de predicamentis non est scientia propter quid, quia scire propter quid est quando proprie passiones sciuntur de subiectis per principia et causas illarum passionum que sunt principia subiecti, modo passiones determinate de predicamentis hic non probantur per causas et principia passionum et per principia predicamentorum; immo explanatiue et inductiue probantur hic passiones de predicamentis et a posteriori. Etiam medium in demonstratione propter quid est diffinitio que explicat causas et principia passionis; modo predicamenta talem diffinitionem non habent; non enim habent diffinitionem logicam, quia illa datur per genus et differentiam; quare, etc. Nec habent diffinitionem realem quia diffinitio realis est alicuius unius secundum naturam et secundum speciem; modo predicamenta non sunt aliquod unum secundum speciem; ergo non possunt habere talem diffinitionem realem et per consequens de predicamentis 131 ordenado no género de acordo com o sob e o sobre, o qual tem unidade por analogia de atribuição227. Na questão seguinte, Raul pergunta-se sobre a pertença da ciência dos predicamentos à lógica. A sua resposta é idêntica à de Pedro de Alvérnia. As categorias enquanto fundam as intenções pertencem ao lógico. Enquanto entes reais fora da alma, pertencem ao metafísico228. Não quer isto dizer que o lógico não trate dos entes reais, mas apenas que não os trata per se. Por isso, afirma que o lógico trata dos géneros e das espécies em concreto, não abstratamente da generalidade e da especificidade. As intenções denominam coisas e essas coisas têm de ser tratadas enquanto estão a ser denominadas, ou enquanto sujeito das intenções229.

non est scientia propter quid.» [Então digo que dos predicamentos não existe uma ciência propter quid, pois o saber propter quid é quando se sabem as paixões próprias dos sujeitos pelos princípios e causas dessas paixões que são princípios do sujeito, de modo que as paixões dos predicamentos aqui determinadas não são provadas pelas causas e princípios das paixões, nem pelos princípios dos predicamentos; pelo contrário, aqui provam-se as paixões dos predicamentos de um modo explanativo e indutivo, bem como a posteriori. Também o termo médio na demonstração propter quid é a definição que explica as causas e os princípios da paixão, definição esta que os predicamentos não têm. De facto, não têm definição lógica, pois esta dá-se pelo género e pela diferença; por esta razão, etc. Também não têm uma definição real, pois a definição real é de algo uno segundo a natureza e segunda a espécie; mas os predicamentos não são algo uno segundo a espécie; logo, não podem ter tal definição real e, por conseguinte, não existe uma ciência dos predicamentos propter quid.] Radulphus Brito, Questiones super Predicamenta, q. 1, in Questiones subtilissime Magistri Rodulphi Britonis super arte veteri, Joannes Rubeus, Veneza 1499, nn.pp. [ff. 72b- 73a]. Para as traduções portuguesas dos textos aqui comentados, cf. Anexo 11. 227 «(…) predicamenta in ista scientia considerantur sub una ratione, quia omnia predicamenta hic considerantur ut sunt dicibilia incomplexa ordinabilia in genere secundum sub et supra; modo considerare illa ut sunt dicibilia est considerare ea sub una ratione; ergo de istis predicamentis est una scientia. Unde notandum est quod ad unitatem scientie non requiritur unitas scibilis secundum genus vel secundum speciem sed sufficit unitas analogie vel attributionis sicut metaphisica est una scientia que est de ente quod est unum secundum attributionem.» [(…) todos os predicamentos são aqui considerados enquanto são dizíveis incomplexos ordenáveis no género de acordo com o sob e o sobre. Deste modo, considerá-los enquanto são dizíveis é considerá-los sob uma razão una; logo, sobre estes predicamentos existe uma ciência una. Por isso, deve notar-se que para a unidade de uma ciência não se requer a unidade do conhecível (scibilis) segundo o género ou segundo a espécie, mas é suficiente a unidade de analogia ou de atribuição do mesmo modo que a metafísica é a ciência una que é sobre o ente, o qual é uno segundo a atribuição.] Ibidem, [73a]. 228 Cf. Ibidem, q. 2, [74a]. 229 «Secundum declaratur quod quicunque habet considerare intentiones ut denominant res, habet considerare res ut denominate sunt et subiecte intentionibus; modo logicus habet considerare intentiones secundas ut denominant res; et hoc dicit Auicenna quod logica est de intentionibus secundis adiuncits primis considerat enim speciem et genus in concreto, et non specialitatem et generalitatem in abstracto; modo supra predicamenta fundantur intentiones secunde sicut intentio dicibilis generis generalissimi et sic de 132

Até aqui, as doutrinas de Raul são bastante semelhantes às de Simão de Faversham e de Pedro de Alvérnia, havendo ligeiras variações entre os três autores. Mas nas questões 4 a 6 do seu comentário, Raul aprofunda bastante mais do que os seus antecessores dois problemas: se as categorias são entes reais e se um tratamento puramente lógico das categorias permite distingui-las. No que diz respeito ao primeiro problema, Raul divide cuidadosamente várias aceções de um predicamento. Um predicamento pode ser tomado como o género generalíssimo de uma coordenação, ou como a coordenação toda. Se for tomado como género generalíssimo, pode ter duas aceções, a saber, relativamente à coisa que está sob a intenção desse generalíssimo, ou relativamente à intenção. No primeiro caso, trata-se de uma diferença real do ente. No segundo, é um ente de razão, porque todas as intenções segundas concretas são entes de razão, embora o modo de ser sobre o qual se fundam seja real. Também há duas aceções diversas de predicamento quando este é tomado como a coordenação toda, desde o género generalíssimo aos indivíduos que pertencem a esse género. Os membros da coordenação podem ser ordenados a partir de modos de predicar, ou a partir de propriedades reais. No primeiro caso, o predicamento é um ente de razão; no segundo, é real230. Posto isto, é expectável que Raul afirme que o lógico não pode atingir a distinção dos predicamentos unicamente a partir de critérios lógicos. É este o assunto da quinta questão. O que interessa frisar é a razão dessa impossibilidade: é que os predicamentos não se distinguem uns dos outros, nem de acordo com a sua relação com as intenções segundas, nem de acordo com os modos de predicar. De facto, independentemente de nos encontrarmos na coordenação das substâncias ou das qualidades, são-lhes aplicadas as

aliis; ergo ad logicum spectat considerare de istis predicamentis ut supra ipsa fundantur intentiones secunde.» [O segundo declara-se: que quem quer que tenha de considerar as intenções enquanto denominam coisas, tem de considerar as coisas enquanto são denominadas e sujeitas às intenções; mas o lógico tem de considerar as intenções segundas enquanto coisas – e isto é o que diz Avicena, que a lógica é sobre as intenções segundas adjuvantes às primeiras; com efeito, considera a espécie e o género em concreto, e não a especificidade e a generalidade em abstrato; deste modo, fundam-se sobre os predicamentos as intenções segundas, como por exemplo a intenção dizível do género generalíssimo, e assim as restantes –; logo, é de esperar que o lógico considere estes predicamentos enquanto sobre eles se fundam as intenções segundas.] Ibidem, [74b]. 230 Cf. Ibidem, q. 4, [77a-77b]. 133 mesmas intenções segundas, como género ou espécie. Além disso, os modos de predicar são apenas dois: in quid e in quale. Numa linha predicamental, o superior predica-se sempre in quid do inferior, seja qual for o predicamento. Semelhantemente, o modo de predicar denominativo – quando uma coisa que se encontra num predicamento é predicada denominativamente por outro predicamento – é comum a vários predicamentos, não constitui um modo de predicar próprio de algum deles. Nega também que o lógico possa distinguir os predicamentos de acordo com os seus modos de ser, a partir dos quais se assumem os modos de predicar, já que os modos de ser não são considerados pelo lógico enquanto tais, mas na medida em que são causas das intenções231. Porém, Raul admite que o lógico pode distinguir per accidens os predicamentos, recorrendo a outra ciência para o fazer. Repare-se que Raul não nega propriamente que os modos de predicar coincidam com os modos de ser. Nega apenas que o lógico conheça os modos de ser enquanto tais. Conhece-os na medida em que são a causa das intenções e isso não é suficiente para que possa distinguir as categorias.

231 «Etiam non distinguit ea penes modos predicandi, quia modus predicandi predicamentorum aut est superioris de inferiori aut est modus predicandi denominatiuus rei unius predicamenti de re alterius predicamenti; modo penes modum predicandi superioris de inferiori non distinguuntur, quia in hoc omnia predicamenta communicant; nam sicut in genere substantie omnia superiora de inferioribus predicantur in quid, ita etiam in aliis est generibus; nec etiam distinguuntur penes modum denominatiuum, quia ille modus predicandi non est proprius modus predicandi predicamenti. (…) / Item, quia aliquis posset dicere quod logicus considerat distinctionem predicamentorum penes modos essendi ex quibus sumuntur modi predicandi, quia illos modos essendi ex quibus sumuntur modi predicandi logicus considerat illud. Primum potest negari, quia licet logicus consideret modos essendi ut sunt cause intentionum, tamen secundum id quod sunt ipsos non considerat; modo penes intentiones predicamenta non habent distingui; quare, etc.» [Também não os distingue de acordo com os modos de predicar, pois o modo de predicar dos predicamentos, ou é de um superior relativamente ao inferior, ou é o modo de predicar denominativo de uma coisa num predicamento sobre a coisa de outro predicamento; mas não se distinguem de acordo com o modo de predicar de um superior relativamente ao inferior, pois nisso todos os predicamentos comunicam – com efeito, do mesmo modo que no género da substância todos os superiores se predicam in quid dos inferiores, também é assim nos outros géneros –; também não se distinguem de acordo com o modo denominativo, pois esse modo de predicar não é um modo de predicar próprio de um predicamento. (…)/ Igualmente, alguém poderia dizer que o lógico considera a distinção dos predicamentos de acordo com os modos de ser a partir dos quais se assumem os modos de predicar, pois o lógico considera esses modos de ser a partir dos quais se assumem os modos de predicar. Pode-se negar a premissa, pois embora o lógico considere os modos de ser enquanto são causas das intenções, contudo não considera os mesmos segundo aquilo que são; mas de acordo com as intenções, os predicamentos não têm de se distinguir; logo, etc..] Ibidem, q. 5 [79a-80a]. 134

A sexta questão, onde se distingue o predicamento lógico e o metafísico, elucida melhor como se relacionam os dois níveis de tratamento. Enquanto coisa, nas duas ciências, o predicamento é o mesmo, mas a razão formal (ratio formalis) difere: Daí que, quanto à razão formal, o predicamento lógico e o metafísico distinguem-se, pois o lógico considera os predicamentos de acordo com os modos de predicar um superior de um inferior, e na medida em que esse predicamento lógico é formalmente um predicamento, enquanto que o predicamento metafísico não se diz metafísico de acordo com os modos de predicar um superior de um inferior, mas mais enquanto é uma certa diferença do ente232. Talvez mais por uma questão de pertencer a uma tradição do que propriamente por razões teóricas, que o levariam a remeter a questão para a metafísica, Raul acaba por dedicar uma questão à suficiência das categorias233. Nela, apresenta duas vias divisivas. A primeira seria correspondente à de Simplício. A segunda recebe o nome de expositio antiqua. A sufficientia Simplicii começa por dividir o ente em em ens per se subsistens e ens in alio. Os entes subsistentes per se são substâncias. Os entes noutro dividem-se em absoluto e relativo. O relativo é a relação. O absoluto é dúplice: ou é causado num sujeito por algo intrínseco, ou por algo extrínseco. Se for por algo intrínseco, encontramos novamente a quantidade, que é da razão da matéria, e a qualidade, que é da razão da forma. Os entes noutro absolutos causados por algo extrínseco dividem-se em três de acordo com três comparações: do agente com o paciente; da medida com o medido; do continente com o contido. No primeiro modo, estão ação e paixão – a ação em virtude do agente e da parte da forma; a paixão em virtude do paciente e da parte da matéria234. Até

232 «Unde predicamentum logicum et metaphisicum quantum ad rationes formales distinguntur quia logicus considerat predicamenta penes modos predicandi superioris de inferiori et penes illud predicamentum logicum est predicamentum formaliter, sed predicamentum metaphysicum non dicitur metaphysicum penes modos predicandi superioris de inferiori, sed magis ut est quedam differentia entis.» Ibidem, q. 6 [81b]. 233 William E. McMahon editou esta questão em William E. McMahon, «Radulphus Brito on the Sufficiency of the Categories», in CIMAGL, 39 (1981) 81-96. 234 «Dico breviter quod solum sunt 10 praedicamenta, nec plura nec pauciora. Et hoc probatur sic, dando sufficientiam istorum praedicamentorum, quia omne ens vel est ens per se subsistens vel est ens in alio. Si est ens per se subsistens, sic est praedicamentum substantiae. Si sit ens in alio existens, hoc est dupliciter, quia aut est ens in alio existens absolute, aut in relatione ad alterum praeterquam ad subjectum in quod est. 135 aqui, a estrutura desta sufficientia repete as de Tomás de Aquino e de Simão de Faversham, embora o par absoluto vs. relativo apareça imediatamente a seguir à divisão entre substância e acidente. Deste modo, enfatiza aquilo que já se vislumbrava em Tomás, isto é, o facto de os seis princípios não serem relativos, embora se deem por uma comparação entre duas coisas. Veremos à frente que Herveu de Nédellec aprimora a tese tomista da denominação extrínseca dos seis princípios. As quatro categorias que restam são agrupadas de um modo diverso do que fora proposto por Tomás, Pedro de Alvérnia e Simão de Faversham. Efetivamente, neles, o onde e a posição são tomados a partir da noção de medida, tendo em conta que há duas medidas extrínsecas de uma coisa, a saber, tempo e lugar. Raul, ao contrário deles, agrupa o onde e a posição com o hábito, no conjunto dos predicamentos que decorrem da comparação entre o continente e o contido:

Si sit ens in alio in relatione ad alterum praeterquam ad subjectum in quo est, sive in relatione ad alterum, sic est relatio, sive praedicamentum relationis. Si sit ens in alio absolute, hoc est dupliciter, quia vel causatur in subjecto ab intrinseco vel ab extrinseco. Si ab intrinseco, hoc est dupliciter, quia aut consequitur subjectum ratione materiae, aut ratione formae. Si consequitur subjectum ratione materiae, sic est quantitas, quia quantitas consequitur subjectum ratione materiae, ut vult Boethius supra capitulum de quantitate. Si autem consequitur subjectum ratione formae, sic est qualitas. Si autem sit ab extrinseco, hoc est tripliciter, quia aut unum comparatur ad alterum sicut agens ad patiens, aut sicut mensura ad mensuratum, aut sicut continens ad contentum. Si primo modo, sic sunt ista duo praedicamenta, actio et passio, actio ex parte agentis, passio ex parte patientis, et actio consequitur subjectum ratione formae, passio autem ratione materiae, quia sicut formae est agere, ita materiae pati.» [Digo brevemente que só existem dez predicamentos, nem mais nem menos. E isto prova-se assim, dando a suficiência destes predicamentos: pois todo o ente ou é ente per se subsistente ou é ente noutro. Se é ente per se subsistente, assim é predicamento da substância. Se é ente existente noutro, isto acontece de um modo dúplice, pois o é ente existente noutro absolutamente, ou em relação a outro para além do sujeito no qual se encontra. Se for ente noutro em relação a outro para além do sujeito no qual se encontra, ou em relação a outro, assim é relação ou predicamento da relação. Se for ente noutro absolutamente, isto acontece de um modo dúplice, pois é causado no sujeito ou por intrínseco ou por extrínseco. Se por intrínseco, isto acontece de um modo dúplice, pois ou sucede no sujeito pela razão da matéria, ou pela razão da forma. Se sucede no sujeito pela razão da matéria, assim é quantidade, pois a quantidade sucede no sujeito pela razão da matéria, como pretende Boécio no capítulo sobre a quantidade. Porém, se sucede no sujeito pela razão da forma, assim é qualidade. Se, contudo, acontecer por extrínseco, isto acontece de um modo tríplice, pois ou um se compara com o outro como o agente com o paciente, ou como a medida com o medido, ou como o continente com o contido. Se no primeiro modo, assim são estes dois predicamentos, ação e paixão; a ação da parte do agente, a paixão da parte do paciente. E a ação sucede no sujeito pela razão da forma; a paixão, porém, pela razão da matéria, pois do mesmo modo que o agir é da forma, assim o padecer é da matéria.»] Radulphus Brito, Quaestiones super librum Praedicamentorum, q. 8, ed. Edward E. McMahon, pp. 90-91. 136

Se, no entanto, um se compara com o outro do mesmo modo que a medida com o medido, assim é o quando, que é causado pela adjacência do tempo à coisa temporal. De facto, o tempo é a medida extrínseca a respeito da coisa temporal. Se se comparam um com o outro como o continente com o contido, isto acontece de um modo dúplice, pois ou de acordo com a disposição (habitudo) do continente para o contido, ou de acordo com a disposição do contido para o continente. Se de acordo com a disposição do contido para o continente, assim é hábito, pois o hábito é dos corpos e daquelas coisas que são adjacentes aos corpos – daí que é causado pela disposição do contido para o continente. Se, porém, de acordo com a disposição do continente para o contido, isto acontece de um modo dúplice, pois ou o continente se compara com o contido em si e absolutamente, e assim é onde, que é causado pela circunscrição no lugar; ou o continente se compara com o contido de acordo com as suas partes, e assim é estar posicionado ou posição, que é a ordenação das partes no lugar235.

235 «Si autem unum comparatur ad alterum sicut mensura ad mensuratum, sic est quando, quod causatur ex adiacentia temporis ad rem temporalem. Tempus enim est mensura extrinseca respectu rei temporalis. Si autem comparatur ad invicem sicut continens ad contentum, hoc est dupliciter, quia vel penes habitudinem continentis ad contentum, vel penes habitudinem contenti ad continens. Si penes habitudinem contenti ad continens, sic est habitus, quia habitus est corporum et eorum quae circa corpus sunt adiacentia, unde causatur ex habitudine contenti ad continens. Si autem penes habitudiem continentis ad contentum, hoc est dupliciter, quia aut continens comparatur ad contentum secundum se et absolute, et sic est ubi, quod causatur ex loci circumscriptione, aut continens comparatur ad contentum secundum suas partes, et sic est situs vel positio, quae est ordinatio partium in loco.» Ibidem, p. 91. 137

ente per se ente noutro: subsistente: acidentes substância

absoluto relativo: relação

intrínseco extrínseco

comp. da medida comp. do matéria: comp. do agente ao medido: continente ao quantidade ao paciente quando contido

do contido para forma: em virtude do do continente o continente: qualidade agente: ação para o contido hábito

em virtude do em absoluto: paciente: paixão onde

de acordo com as partes: posição

Figura 8. Sufficientia de Raul, o Bretão (atribuída a Simplício)

É então que afirma que esta suficiência concorda com a de Simplício. Como foi dito anteriormente, Guilherme de Moerbeke traduzira o comentário de Simplício às Categorias em 1266 e Raul teria certamente acesso à tradução latina deste texto. No entanto, esta suficiência não tem nada que ver com a de Simplício236. Trata-se apenas de dar o cunho da autoridade à sua sufficientia? Trata-se de uma reconstrução de posições dispersas pelo comentário? Será apenas um erro de atribuição? Seja qual for a resposta, não encontrámos nenhuma sufficientia igual a esta. A segunda via divisiva, denominada expositio antiqua, é a seguinte: Pode-se obter outra suficiência pela exposição antiga assim: todo o que é, ou é substância ou acidente. Se for substância, assim é o predicamento da substância.

236 Cf. infra, Figura 1. Via divisiva de Simplício, p. 28. 138

Se for acidente, ou é causado por intrínseco, ou por extrínseco, ou parcialmente por intrínseco e parcialmente por extrínseco. Se, porém, for causado por intrínseco, ou é absoluto ou relativo a algo para além do sujeito (respectivus praeterquam ad subjectum). Se for absoluto, ou sucede no sujeito pela razão da matéria, e assim é quantidade, ou pela razão da forma, e assim é qualidade. Se for relativo, assim é relação. Se, no entanto, for parcialmente por intrínseco e parcialmente por extrínseco, ou é por intrínseco pela razão da forma, e assim é ação – pois a ação sucede em algo pela razão da forma –, ou pela razão da matéria, e assim é paixão. Se for por extrínseco, ou se toma de acordo com a disposição da medida para o medido, e assim é quando – que é causado na coisa temporal a partir do tempo –, ou de acordo com a disposição do contido para o continente, e isto acontece de um modo dúplice, pois ou o contido tem o continente ou vice-versa. Se no primeiro modo, assim é o hábito, pois alguém encasacado tem casaco (aliquis cappatus habet cappam). Se o continente tem o contido, isto acontece de um modo dúplice, pois ou se compara com o contido em si ou segundo as suas partes. Se no primeiro modo, é onde; se no segundo modo, assim é posição237. Nesta via divisiva, Raul retoma o medio modo das Categoriae decem, mas distribui as categorias pelas sucessivas divisões de um modo diferente do que os outros autores que o utilizaram, como Roberto Kilwardby e Pedro de Alvérnia. Parece acomodar as divisões comuns da tradição à primeira suficiência que apresenta.

237 «Alia sufficientia potest haberi ab expositione antiqua, sic: omne quod est, aut est substantia vel accidens. Si sit substantia, sic est praedicamentum substantiae. Si sit accidens, aut causatur ab intrinseco aut ab extrinseco aut partim ab intrinseco et partim ab extrinseco. Si autem causetur ab intrinseco, aut est absolutum aut respectivum praeterquam ad subjectum. Si sit absolutum, aut consequitur subjectum ratione materiae, et sic est quantitas, aut ratione formae, et sic est qualitas. Si sit respectivum, sic est relatio. Si autem sit partim ab intrinseco et partim ab extrinseco, aut est ab intrinseco ratione formae, et sic est actio, quia actio consequitur aliquid ratione formae, vel ratione materiae, et sic est passio. Si sit ab extrinseco, aut accipitur penes habitudinem mensurae ad mensuratum, et sic est quando, quod causatur in re temporali ex tempore, vel penes habitudinem contenti ad continens, et hoc est dupliciter, quia vel contentum habet continens vel e converso. Si primo modo, sic est habitus, quia aliquis cappatus habet cappam. Si continens habet contentum, hoc est dupliciter, quia vel comparatur ad contentum secundum se vel secundum suas partes. Si primo modo, est ubi. Si secundo modo, sic est positio.» Ibidem, pp. 91-92. 139

Ao longo deste capítulo, assistimos a uma tensão em torno do lugar das categorias na lógica e na metafísica, tensão esta que é marca de um desconforto com a eventual arbitrariedade das categorias, em especial dos seis princípios. As vias divisivas têm todas as suas especificidades e até quando são utilizados os mesmos critérios de divisão, há mudanças de nível. Tudo isto pode levar a crer que este procedimento não tem justificação, pois, como já afirmara Avicena, é preciso provar que as divisões dividem corretamente os divididos. João Duns Escoto, contemporâneo de Raul, criticará as vias divisivas justamente a partir do facto de ser preciso provar porque é que as divisões são estas e não outras. O modo como articula o tratamento lógico e o metafísico das categorias rompe com a tradição, posto que, por um lado, assume que as duas ciências não se comunicam, e por outro, que existe uma ciência propter quid das categorias. Contudo, continua a defender a lista aristotélica das categorias. Antes dele, Henrique de Gante – o qual, como veremos, defende algumas posições afins às de Simão de Faversham –, Teodorico de Freiberga e Pedro de João Olivi, já haviam apresentado sérias dúvidas quanto às leituras tradicionais da doutrina aristotélica das categorias. Estes quatro autores serão o assunto do próximo subcapítulo.

140

3.2. Rutura

3.2.1. Henrique de Gante (c. 1217/1223? – 1293)

Ao longo deste capítulo dedicado ao século XIII, pondo de parte as influências de Agostinho e de Boécio em autores posteriores, o problema da Trindade tem estado ausente. Em Henrique de Gante, é no tratamento da Trindade que se criam alguns dispositivos teóricos que terão uma influência grande no modo como autores posteriores abordam as categorias. Não nos referimos apenas ao caráter composto dos predicamentos, constituídos por res praedicamenti e ratio praedicamenti. Referimo-nos também ao modo como a própria questão da suficiência da lista aristotélica passa a depender de outra questão, a saber, a questão da distinção. Que grau de distinção existe entre os predicamentos? Uma distinção real, uma distinção racional, uma distinção intermédia entre elas? Quer na Summa, quer nas Quodlibet, a reflexão de Henrique acerca da Trindade está pejada de considerações importantes sobre as categorias, não só enquanto aplicáveis a Deus, mas também na articulação das comunidades e diversidades entre Deus e as criaturas. Por isso, ao contrário do que vimos até agora, as perspetivas que aqui se apresentarão não decorrem de um comentário a Aristóteles, mas de problemas teológicos, pelo que é necessário ao intérprete de Henrique fazer uma síntese a partir de vários trechos dispersos. Apesar disso, debruçámo-nos especialmente sobre dois textos, que são o artigo 32 da Summa (1279), em especial a questão 5, e a Quodlibet XV, questão 5 (1292)238. Embora Henrique de Gante também tenha lecionado artes, é enquanto Regente de Teologia na Universidade de Paris entre 1276 e 1293 que produz as obras nas quais nos focaremos. Na condição de membro da comissão de teólogos ao serviço de Estêvão Tempier nas condenações de 1277, Henrique de Gante poderia passar por um agostiniano preocupado com os “excessos” do aristotelismo e das aportações de doutrinas filosóficas de autores árabes, mas o que é um facto é que cria uma síntese original entre estes vários

238 Muitos estudiosos de Henrique de Gante apontam também para a importância da Quodlibet VII, questão 1-2, a qual aqui não será trabalhada aprofundadamente. Infelizmente, não foi possível aceder ao volume da edição crítica que contém a Quodlibet XV. Eis as edições que foram utilizadas: Henricus de Gandavo, Summa (Quaestiones ordinariae), art. XXXI-XXXIV, ed. Raymond Macken (Opera Omnia, vol. 27), Leuven University Press, Lovaina 1991, art. XXXII, q. 5, pp. 75-121; Idem, Quodlibeta, ed. Iodocus Badius Ascensius, Paris 1518, XV, q. 5, ff. 577r-578r. 141 discursos. Na disputa entre seculares e mendicantes, sobretudo depois da bula papal de 1281 (Ad fructus uberes), é ele a referência dos seculares, mas mais uma vez, não é possível simplificar a sua posição e influência na história, já que muitas das suas doutrinas filosóficas e teológicas influenciaram mendicantes239. Os autores que trabalharemos neste subcapítulo, na verdade, constroem muitas das suas doutrinas em diálogo com a obra de Henrique, ora reutilizando ideias suas, ora contrariando, ora adaptando. Aliás, como se pôde verificar atrás, a distinção entre res e ratio está também presente em Simão de Faversham, assim como a distinção entre os três modi essendi principais, sendo impossível de saber quem forjou primeiro estas doutrinas. Os epítetos de continuidade e rutura com que se quebrou a exposição cronológica não têm o objetivo de circunscrever dois grupos, duas correntes, ou algo semelhante, mas dizem apenas respeito ao uso de vias divisivas e, com elas, a uma aceitação, com mais ou menos nuances, de um isomorfismo entre modos de ser e modos de predicar, ideia que será explicitamente recusada por Olivi e Duns Escoto.

Seguindo de perto a interpretação de Juan Carlos Flores240, a Trindade é a questão central de todo o pensamento do gandavense. É a partir da Trindade que se dá uma torção das categorias aristotélicas à maneira do que fizera Agostinho, cujo De trinitate é abundantemente citado. O caráter relacional de todas as coisas, desde a res divina às coisas criadas, altera a dignidade conferida à relação, habitualmente tomada como o esse

239 Sobre a vida e a obra de Henrique de Gante, cf. Gordon A. Wilson (ed.), A Companion to Henry of Ghent, Brill, Leida – Boston 2011, pp. 3-61; Pasquale Porro, «Henry of Ghent», in Edward N. Zalta (ed.), The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2014 Edition), URL = . Em língua portuguesa, cf. os trabalhos de Mário Santiago de Carvalho: Mário Santiago de Carvalho, A novidade do mundo: Henri de Gand e a metafísica da temporalidade no século XIII, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2001; Henrique de Gante (=Henrique de Gand), Sobre a metafísica do ser no tempo: questões quodlibéticas I, 7/8-9 e 10, introd. e notas de Mário Santiago de Carvalho, prefácio Raymond Macken, Edições 70, Lisboa 1996. Cf., ainda, o terceiro volume (1993) da Mediaevalia, disponível em linha: https://ojs.letras.up.pt/index.php/mediaevalia/issue/view/52/showToc. 240 Cf. Juan Carlos Flores, Henry of Ghent: Metaphysics and the Trinity, Leuven University Press, Lovaina 2006. Juan Carlos Flores segue o trilho aberto por José Gómez Caffarena. Este jesuíta espanhol afirmava que aquilo que dá coerência ao pensamento teológico-filosófico de Henrique de Gante é o facto de este ser herdeiro de uma metafísica platónica da participação. Cf. José Gómez Caffarena SJ, Ser participado y ser subsistente en la metafisica de Enrique de Gante, Pontificia Università Gregoriana, Roma 1958. 142 debilius. Pela exposição da noção de Pessoa, é possível verificar que há em todas as coisas absolutas, seja em Deus, seja nas criaturas (seus reflexos ou símbolos), uma tendência imanente para outro241. No entanto, na Quodlibet XV, Henrique afirma que a relação é o esse debilius, com um ser menos verdadeiro do que os próprios seis princípios242. Como explicar esta aparente incoerência? É necessário elucidar o léxico utilizado para que a expliquemos: não só a distinção entre res e ratio praedicamenti, mas também a distinção entre respectus, relatio e esse ad aliud. Na Trindade, antes de mais, há que distinguir substância, essência, Pessoa, atributo e propriedade. Destas distinções, decorrerão as outras. As Pessoas da Trindade são relações, categorialmente falando, constituídas por uma essência e uma propriedade. A sua essência corresponde à res, ou princípio quasi-material, e a propriedade à ratio, ou princípio formal. A essência das Pessoas é aquilo que lhes é comum, ou melhor, aquilo que elas comunicam. Essa essência contém um conjunto de atributos comunicáveis, portanto. As propriedades, ao contrário dos atributos, são pessoais, incomunicáveis, embora sejam a razão formal da Pessoa. Essa mesma essência, se for tomada sob uma outra razão formal, a saber, não enquanto aquilo que é comunicado, mas enquanto algo em si, é a substância divina. Assim sendo, pode dizer-se que uma mesma res, que é a essência divina, se distingue em dois predicamentos (teológicos) através de dois modi essendi: secundum se esse e ad aliud esse, ser em si e ser relativamente a outro243. Por conseguinte, «os dez predicamentos das disciplinas filosóficas reduzem-se a dois na sabedoria teológica, a saber, à substância e à relação244». Deus tem um modo de ser relacional e um modo de ser absoluto, os quais não são, de todo, incompatíveis. Enquanto absoluto, é substância. Enquanto relacional, é um conjunto de Pessoas ou relações distintas umas das outras devido às suas propriedades

241 Juan Carlos Flores define a relação em Henrique de Gante do seguinte modo: «the immanent tendency toward another at the very heart of an absolute nature». Cf. Juan Carlos Flores, Henry of Ghent, p. 190. 242 Cf. Henricus de Gandavo, Quodlibeta, XV, q. 5, f. 577vK. 243 Este resumo é baseado em Juan Carlos Flores, Henry of Ghent, cap. 3, pp. 149-186. Sobre a equivalência entre as distinções persona vs. proprietas e relatio vs. respectus, cf. Henricus de Gandavo, Summa (Quaestiones ordinariae), art. XXXV-XL, ed. Gordon Wilson (Opera Omnia, vol. 28), Leuven University Press, Lovaina 1994, art. XXXV, q. 8, pp. 81-82. 244 «Decem ergo praedicamenta philosophicae disciplinae ad duo sapientiae theologicae reducuntur, scilicet ad substantiam et relationem». Idem, Summa, art. XXXII, q. 5, p. 92. 143 incomunicáveis ou pessoais, mas cujo fundamento da relação é o mesmo. Substância e relação distinguem-se não como se Deus fosse duas res diferentes, mas enquanto tem dois modos de ser diferentes de uma mesma res. A res da substância divina é a mesma res das relações divinas, mas determinada sob razões formais diversas. Posta esta caracterização sumária, deve dizer-se que a relação, ou a substância, ou qualquer predicamento, não são um modus essendi, mas um conjunto de res e ratio (ou proprius modus essendi, modo de ser próprio), princípios quasi material e formal do predicamento245. No caso de uma Pessoa, realidade relacional, há que distinguir a Pessoa – composto da essência divina comunicável e da propriedade pessoal –, da sua razão formal, que é apenas a parte da Pessoa que faz dela Pessoa, ou a sua propriedade pessoal, a qual tem, em si mesma, um modo de ser relacional. Por exemplo, no caso do Filho, a Pessoa do Filho é o composto da essência divina que ele comunica e da sua propriedade pessoal que é a filiação, a qual, em si mesma, tem um caráter relacional, conferindo por isso ao Filho um modus essendi relacional. No caso da relação criatural, analogamente, há um princípio material, uma res praedicamenti, que é o fundamento da relação; e uma razão formal, uma ratio praedicamenti, que é aquilo que na relação faz dela uma relação, isto é, aquilo a que Henrique de Gante chama respectus. Assim, a distinção entre Pessoa e propriedade (entre Filho e filiação, por exemplo) é equivalente à distinção entre relatio e respectus. O respectus, enquanto razão formal do predicamento da relação, confere-lhe um modus essendi, o esse ad aliud, o qual, assim tomado, nem é substancial nem acidental. É um tipo de determinação diverso246.

245 No artigo 32, distingue res e ratio do seguinte modo: «Res praedicamenti est quidquid per essentiam et naturam suam est contentum in ordine alicuius praedicamenti; ratio praedicamenti est proprius modus essendi eorum quae continentur in praedicamento. Ex quibus duobus, scilicet ex re praedicamenti et ratione essendi eius, quae est ratio praedicamenti, constituitur ipsum praedicamentum et diversificatur unum praedicamentum ab alio.» [A coisa do predicamento é o que quer que, pela sua essência e natureza, está contido na ordem de algum predicamento; a razão do predicamento é o modo de ser próprio daquelas coisas que estão contidas num predicamento. A partir destes dois, a saber, da coisa do predicamento e da razão de ser dele, que é a razão do predicamento, constitui-se o próprio predicamento e diferencia-se um predicamento de outro.] Ibidem, p. 79. Para a tradução de alguns dos textos comentados, cf. Anexo 12. 246 Sobre Pessoa e propriedade, cf. Idem, Summa (Quaestiones ordinariae), art. LIII-LV, ed. Gordon Wilson – Girard Etzkorn (Opera Omnia, vol. 31), Leuven University Press, Lovaina 2014, art. LV, pp. 364-414. 144

Deste modo, sob o ponto de vista formal, há muito mais realidades relacionais do que aquelas que recaem sob o predicamento da relação. Na verdade, todas as coisas reais, divinas ou criadas, são relacionais de uma maneira ou de outra. É perfeitamente explicável, assim, que Henrique defenda que aquilo que recai sob o predicamento da relação é, de acordo com a tradição a que pertence, o ente mais débil, mais diminuto. A sua afirmação diz respeito à relação enquanto predicamento criatural, não ao respectus enquanto ratio. Henrique ensaia, em ambos os textos que aqui se glosam, uma espécie de via divisiva a partir da circunscrição de diversas rationes. Contudo, esta via é bastante diferente daquelas que temos vindo a expor nos capítulos anteriores. Parece-nos que é tácito aceitar que pode haver uma determinação posterior de uma ratio por outra que se lhe acrescenta, ou seja, há razões comuns a vários predicamentos e razões próprias que se acrescentam a essas razões comuns. É também visível que há uma noção gradativa de ser, pois uns seres são mais “verdadeiros” do que outros247. Na Quodlibet XV, questão 5, todas as categorias têm uma razão comum: ser a partir de outro (esse ab alio). Isto significa que, nesta questão, Henrique está a assumir uma noção de categoria estritamente criatural. Deus está fora da coordenação predicamental. Esta razão comum divide-se em duas, que vão distinguir substância e acidentes. A substância tem como razão própria o ser em si (esse in se, non in alio). Os acidentes têm como razão comum da sua acidentalidade o ser noutro (esse in alio)248. Subdividem-se por outras razões: uns convêm ao ser noutro absolutamente e outros em ordem a outro (in

247 Este elemento platónico do seu pensamento não é algo próprio seu, nem estranho à sua época. É algo que se encontra no Liber de causis, entre outras fontes. 248 «Sed illa ratio communis decem praedicamentis, quae est ab alio esse, primo in duas distinguitur, secundum quas praedicamentum substantiae cum hoc quod caeteris praedicamentis veriorem realitatem importat, diuiditur contra nouem praedicamenta accidentium, quae ut distinguuntur contra substantiam, in una ratione communi conueniunt, licet non in una realitate. Illarum autem duarum rationum una est esse in se, non in alio, et est propria substantiae. Alia vero est esse in alio, et est communis IX praedicamentis accidentium.» [Mas aquela razão comum aos dez predicamentos, que é o ser a partir de outro, distingue-se primeiramente em duas, segundo as quais se divide o predicamento da substância – como este trouxesse dentro uma realidade mais verdadeira do que os restantes predicamentos – por contraposição com os nove predicamentos dos acidentes, que se distinguem por contraposição com a substância enquanto convêm numa razão comum, mas não numa só realidade. Porém, daquelas duas razões, uma é ser em si, não noutro, e é própria da substância. A outra, na verdade, é ser noutro, e é comum aos nove predicamentos dos acidentes.] Idem, Quodlibeta, XV, q. 5, ff. 577rG-577vG. 145 ordine ad aliud). Os absolutos são a quantidade e a qualidade. Os restantes são relacionais e distinguem-se de acordo com os diversos modi fundandi ou referendi, os diversos modos como se fundam na (ou referem à) res dos três predicamentos absolutos. Daqui retira-se que apenas os três predicamentos absolutos constituem coisas (res) diversas. Os restantes distinguem-se de acordo com diversos modos de respectus. O respectus, que tem como modo de ser o “ser relativamente a outro” (ad aliud esse), pode tê-lo em virtude da própria coisa absoluta, ou em virtude de outra coisa à qual algo se refere na coisa absoluta. No primeiro caso, encontramos a relação propriamente dita (relatio proprie dicta). No segundo, encontramos a razão comum aos seis princípios. A relação tem um caráter intrínseco na medida em que se funda sobre alguma coisa absoluta (nas criaturas, funda-se sempre num acidente absoluto). Os praedicamenta respectiva, ou seja, os seis princípios, têm como elemento não só formal, mas também quasi-material, algo cujo modo de ser é um respectus, um ad aliud esse. A relação enquanto res é absoluta. Nos praedicamenta respectiva, o próprio fundamento sobre o qual se apoiam é, também ele, relativo, a saber, o movimento ou as disposições decorrentes dele249. Henrique conclui que os seis praedicamenta respectiva têm um ser mais verdadeiro do que a relação. A aclaração deste ponto faz-se na sua resposta a um conjunto de objeções iniciais à questão. O critério para que se saiba qual dos predicamentos relacionais tem um ser mais verdadeiro ou mais perfeito não se prende com o maior ou menor grau de ser do seu fundamento, mas com o maior ou menor grau de ser que eles

249 «Et quia in his sex praedicamentis res illa super quam fundantur, inquantum super illam fundantur, est ad aliud se habere, ut secundum hoc in his sex praedicamentis res illa super quam fundantur, inquantum super illam fundantur, circa se rationem respectus quodammodo includit quasi materialem ad respectus in quibus consistit ratio illorum sex praedicamentorum; non sic autem res super quam fundatur praedicamentum relationis, circa se talem respectum includit ut super ipsa fundetur respectus qui est proprius praedicamento relationis, eo quod res super quam fundatur praedicamentum relationis, inquantum huiusmodi, omnino absoluta est absque ordine ad aliud.» [E enquanto que nesses seis predicamentos, a coisa sobre a qual se fundam, enquanto sobre ela se fundam, é ter-se relativamente a outro (ad aliud se habere) – na medida em que, de acordo com isto, nestes seis predicamentos, aquela coisa sobre a qual se fundam, enquanto sobre ela se fundam, inclui em torno de si a razão do respectus, de um certo modo quasi- material no que diz respeito às relações nas quais consiste a razão daqueles seis predicamentos – contudo, não é assim a coisa sobre a qual se funda o predicamento da relação (relatio). Inclui em torno de si um respectus tal que sobre ele se funda um respectus que é próprio do predicamento da relação (relatio): naquilo em que é a coisa sobre a qual se funda o predicamento da relação, enquanto tal, é totalmente absoluta exceto na ordem a outra coisa.] Ibidem, f. 577vH. 146 próprios transmitem: O predicamento respetivo não é dito ter mais ser verdadeiro a partir do facto de se fundar sobre um ente mais verdadeiro, mas apenas a partir do facto de por ele transmitir um ser e uma realidade mais verdadeiros e perfeitos. Logo, embora a relação se funde sobre um ente mais verdadeiro do que os outros seis, contudo, se aqueles seis contraírem uma realidade mais verdadeira e perfeita através daquilo sobre o qual se fundam, nada impede que tenham um ser mais verdadeiro250. O exemplo que é mais explorado é o da ação e da paixão, embora Henrique discrimine os diversos modi fundandi de cada um dos seis predicamentos251. A ação e a paixão têm como fundamento do seu respectus o movimento, o qual tem um quid absoluto (pertencente às categorias da quantidade e da qualidade), mas simultaneamente esse quid tem um caráter relacional, por dizer sempre respeito a várias coisas. O mesmo não se passa com o predicamento da relação, no qual o fundamento apenas sugere a possibilidade de um respectus, o que significa que o grau de ser que é transmitido pela coisa do predicamento tomada sob a razão de um respectus é, por assim dizer, menor, ou menos verdadeiro252.

250 «(…) praedicamentum respectiuum non ex hoc dicitur verius esse habere quod super verius ens fundatur, sed solummodo ex hoc, quod ab illo verius et perfectius esse et realitatem trahit. Quanquam ergo relatio super verius ens fundetur quam alia sex, si tamen verius et perfectius illa sex ab illo super quod fundantur realitatem contrahant, non impedit quod habeant verius esse.» Ibidem, f. 577vK. 251 «Quod revera ita est, quod et declarandum est ex fundatione respectuum praedicamentorum actionis et passionis per motum. Et per hoc idem intelligendum est in aliis quatuor: quae sunt quando, quod fundatur in re temporali ex motu et adiacentia temporis, quod est mensura motus, et eius cui tempus adiacet, quod est omne existens in tempore; et ubi, quod fundatur in re locali ex adiacentia loci simpliciter per hoc quod locatum simpliciter habet esse in loco; et de situ, qui fundatur in re locali per hoc quod partes eius diversimode se habent ad locum; et de habitu, qui fundatur in habente aliquid circunstans ipsum corporaliter ex applicatione eius quod habetur ad habentem.» [De novo, isto é o mesmo do que foi declarado a partir da fundação da relação dos predicamentos da ação e da paixão no movimento. E por isso, deve-se entender o mesmo dos outros quatro, que são o quando, que se funda na coisa temporal a partir do movimento e das coisas adjacentes ao tempo, e que é medida do movimento e daquilo que é adjacente ao tempo, o qual é todo o existente no tempo; o onde, que se funda na coisa local a partir das coisas adjacentes ao lugar na aceção simples por isto, que o locado tem ser no lugar na aceção simples; o estar posicionado (situ), que se funda na coisa local naquilo em que as suas partes se têm de diversos modos relativamente ao lugar; e o hábito, que se funda no que tem algo que o circunda corporalmente a partir da aplicação daquilo que se tem naquele que tem.] Ibidem. 252 «Quoniam fundamenta relationis, quae sunt praedicamenta absoluta, et absolute, ex eo quod sunt fundamenta illius, et ad hoc quod in eis fundetur relatio, non respiciunt aliquid aliud a se, sed illa 147

A questão 5 do artigo 32 da Summa é coerente com esta abordagem dos predicamentos. Henrique atribui mais claramente as razões próprias a cada predicamento. É também mais claro um ponto metafísico que deve ser explorado: encontramo-nos no plano das essências e da sua determinação, o que implica que muitas determinações, que na existência atual são inseparáveis, devem ser aqui separadas. O esse essentiae, o ser da essência, criatural, ao contrário do divino, tem como ratio ou modus essendi o esse ab alio, o qual se subdivide em esse in se e esse in alio. O esse in alio pode ser inerente de dois modos diversos, a saber, como ratio informandi ou como ratio commensurandi. Esse in se é a razão própria da substância. Ratio informandi é a razão própria da qualidade. Ratio commensurandi é a razão própria da quantidade. Estas três rationes significam coisas absolutas, que são a parte material do predicamento. Por outras palavras, nas criaturas, há algo que elas são em si, que é a sua substância. Nisso, inerem coisas que lhe dão forma e que a medem, isto é, qualidades e quantidades. Tudo o mais que seja predicado das criaturas, é-o relacionalmente e não acrescenta nenhuma res inerente às coisas, mas apenas modi essendi ou rationes decorrentes das suas qualidades e quantidades. O respectus purus não destrinça os sete predicamentos relativos uns dos outros, dado que é apenas pela diferença no seu fundamento que é possível fazer essa distinção253. Quando um respectus se dá por uma coisa absoluta num sujeito, trata-se de uma relação no sentido próprio (relatio proprie dicta). Os exemplos dados são a semelhança e o “ser

solummodo, et praecise, et sic ipsa, quantum est ex se, inquantum sunt subiecta relationis, vel fundamenta omnino aliena sunt a natura relationis, et modicum idcirco subintrant rationem respectus in relatione, quia non nisi quasi characterizando et quodammodo addiciendo. (…) Et per hoc licet motus sit simpliciter absolutum quid, pertinens ad praedicamentum absolutum quantitatis, aut qualitatis, aut universaliter ad praedicamentum illius rei ad quam est motus, tamen ut fundatur in alterutro, semper diuersorum est, quae diuersimode respicit.» [De facto, os fundamentos da relação, que são os predicamentos absolutos, e as coisas absolutas, a partir daquilo em que são o seu fundamento, e quanto ao facto de neles se fundar a relação, não dizem respeito a algo diferente de si, mas apenas e precisamente a eles próprios. E assim eles, quanto ao que é a partir de si, enquanto são sujeitos ou fundamentos da relação, são totalmente diferentes da natureza da relação, e, portanto, entram muito pouco na razão do respectus na relação, pois não o fazem senão como que caracterizando e sugerindo de um certo modo. (…) E por isso, embora o movimento seja na aceção simples um quid absoluto pertencente ao predicamento absoluto da quantidade ou da qualidade, ou universalmente ao predicamento daquela coisa para a qual é movimento, contudo, enquanto se funda noutro, é sempre de diversos, aos quais diz respeito de diversos modos.] Ibidem, ff. 577vL-578rL. 253 Cf. Idem, Summa, art. XXXII, q. 5, pp. 92-93. 148 o dobro”, os quais se fundam respetivamente em qualidades e em quantidades, embora não acrescentem nada às mesmas254. Contudo, não se pode dizer com exatidão que não sejam reais. Os restantes seis respectus referem-se ao movimento ou a alguma disposição adquirida pelo movimento. O movimento é, como já foi avançado, algo real que pertence aos predicamentos da qualidade e da quantidade, mas que contém na sua própria natureza um caráter relacional. O movimento introduz determinações essenciais nas coisas que se movem sem que estas determinações acrescentem alguma res. Acrescentam, sim, algum tipo de informação real acerca da circunstância255. Os respectus que decorrem do movimento são a ação e a paixão, que ditam a relação entre o agente e o paciente num movimento. As disposições adquiridas no móvel pelo movimento constituem os restantes quatro predicamentos. O respectus temporalis, ou seja, a relação entre o tempo e o movimento no móvel, constitui a ratio do predicamento do quando. O respectus da continência passiva do locado no lugar é a ratio do predicamento do onde. Mas se a este respectus se acrescentar a ordem das partes no locado e no lugar, então é o estar posicionado. Nestes, compara-se o contido com o continente. No hábito, por fim, faz-se a comparação inversa do continente com o contido256. A questão que fica implícita a partir da teorização do gandavense constitui um marco no problema da suficiência das categorias. O que são estas rationes em termos metafísicos? São racionalmente ou realmente diversas? Poderá haver uma distinção intermédia entre a racional e a real? É ainda esta a pergunta que Suárez colocará nas Disputationes Metaphysicae, séculos mais tarde, para resolver o problema da suficiência

254 Para Henrique, um e outro exemplo ditam duas espécies diferentes de relação, dado que no caso da semelhança, é o sujeito no qual inere a qualidade que o torna semelhante a outro que é semelhante, e não propriamente a qualidade. No caso do dobro, não. É a quantidade do sujeito que é o dobro da quantidade de outro sujeito. Cf. Ibidem, p. 94. 255 «Discurrendo igitur per singula, dicimus quod septem praedicamenta quae de formali significatione sua potius praedicant circumstantias rerum quam rem aliquam, cum distinguuntur per accidentale quod subest respectui quem dicunt, et super quod fundatur ille respectus, ergo aut illud accidentale convenit rei subiectae secundum se et absolute, aut ex connexione quadam cum illo ad quem habet respectum.» [Portanto, discorrendo sobre cada um deles, dizemos que os sete predicamentos que, pela sua significação formal, predicam mais a circunstância da coisa do que alguma coisa, como se distinguem pelo acidental que subjaz ao respectus que eles dizem, e sobre o qual se funda esse respectus, então ou esse acidental convém à coisa sujeita em si e absolutamente, ou a partir de uma certa conexão com aquilo para o qual tem um respectus.] Ibidem. 256 Cf. Ibidem, pp. 96-106. 149 das categorias257. Henrique de Gante tem uma resposta bastante minuciosa. Afirma que há, de facto, uma distinção que não é propriamente secundum rem, mas que também não é uma distinção racional na medida em que é anterior à operação intelectual e constitui uma separabilidade real entre duas entidades, pelo menos na medida em que podem ser encontradas uma sem a outra em coisas diferentes. Referimo-nos à célebre distinção intencional (distinctio secundum intentionem). Estas distinções são teorizadas principalmente no artigo 27, questão 1, da Summa (1279) e na Quodlibet V, questão 6 (1281)258. A sua aplicação às categorias é complexa. De acordo com Roland J. Teske, a diferença entre a distinção secundum rem, a distinção secundum intentionem e a distinção secundum rationem está nas várias possibilidades de separabilidade de um distinguido relativamente ao outro. Quando os dois termos de uma distinção se predicam mutuamente, é porque nos encontramos perante uma distinção racional. Quando são inseparáveis numa mesma coisa, mas separáveis em coisas distintas, é porque nos encontramos perante uma distinção intencional. Quando são separáveis em absoluto, é porque são duas coisas e, portanto, encontramo-nos perante uma distinção secundum rem. A Summa, artigo 27, questão 1, contém uma definição detalhada de cada uma das distinções: • Distinção de razão: Certos (quaedam259) diferem apenas segundo a razão, tal como a definição e o definido, e estes de modo nenhum são separáveis, pois são isso mesmo na coisa e no intelecto indivisivelmente; e estes não se podem separar nem segundo a coisa fora (secundum rem extra) nem segundo o intelecto, do mesmo modo que um mesmo também não se pode separar de si

257 Cf. Francisco Suárez, Disputaciones Metafísicas, tomo V, XXXIX, II, pp. 711-714 258 Seguimos aqui Roland J. Teske, «Distinctions in the metaphysics of Henry of Ghent», Traditio, vol. 61 (2006) 227-245. Este artigo pretende corrigir algumas afirmações de Raymond Macken, tais como a tentativa de aproximá-lo mais de umas autoridades do que de outras, ou a suposta distinção intencional entre matéria e forma. Cf. Raymond Macken, «Les diverses applications de la distinction intentionelle chez Henri de Gand», in Wolfgang Kluxen (ed.), Sprache und Erkenntnis im Mittelalter, De Gruyter, Berlim 2013 (reimpr.), pp. 769-776. Para o fazer, Teske regressa aos textos em que Henrique de Gante trata exaustivamente das noções de res, intentio e ratio, e as respetivas distinctio secundum rem, distinctio secundum intentionem e distinctio secundum rationem. 259 Evitamos dizer o que são, para não termos de usar a expressão “certas coisas”, que aqui poderia ser enganadora. 150

próprio260. • Distinção intencional: Certos, na verdade, diferem na intenção, tal como diversas diferenças de uma espécie, as quais não se podem separar numa mesma coisa, pois caem nisso mesmo na coisa, como por exemplo o vegetativo e o sensitivo no animal irracional (brutus); mas podem separar-se em coisas diversas, tal como nas plantas se encontra o vegetativo sem o sensitivo e nos animais irracionais o sensitivo sem o racional261. • Distinção real: Certos, na verdade, diferem na coisa, e isto ou entre absolutos da parte de um e outro, ou entre relativos pelo menos da parte de um deles. Entre absolutos, como aqueles que são uma coisa e outra na natureza, tal como a matéria e a forma; e Deus poderia separar estas. Os não absolutos, mas relativos diferem na coisa de um modo dúplice: com efeito, ou a relação se funda na natureza e essência da coisa, ou sobre algum acidente na coisa. E tal relação no segundo modo pode separar-se do absoluto (…). A relação no primeiro modo, na verdade, é inseparável segundo a coisa da própria coisa remanente, do mesmo modo que a própria coisa é inseparável de si própria262. O segundo tipo de relação que constitui uma distinção real relativamente à coisa absoluta sobre a qual se funda é a relação propriamente dita, o predicamento aristotélico. Assim sendo, neste contexto, ela pode ser considerada uma entidade real, pelo menos na medida em que é realmente distinta do acidente absoluto no qual se funda, ou, pela negativa, não acrescenta nada a este. Contudo, é difícil de definir que entidade real será essa na medida em que, enquanto coisa, pelo menos noutros contextos da sua obra,

260 «Quaedam differunt secundum rationem tantum, ut definitio et definitum, et ista nullo modo sunt separabilia quia idipsum sunt in re et in intellectu indivisibiliter, et talia separari non possunt, nec secundum rem extra nec secundum intellectum, sicut neque idem potest separari a seipso.» Henricus de Gandavo, Summa, art. XXVII, q. 1, ed. Iodocus Badius Ascensius, Paris 1520, f. 161vM. 261 «Quaedam vero differunt intentione, ut diversae differentiae unius speciei, quae in eodem separari non possunt, quia cadunt in idipsum re, ut vegetativum sensitivum in bruto; sed in diversis possunt separari, secundum quod in plantis est vegetativum sine sensitivo, et in brutis sensitivum sine rationali.» Ibidem. 262 «Quaedam vero differunt re, et hoc vel absoluta ex parte utriusque, vel relata saltem ex parte alterius. Absoluta, ut quae sunt aliquid et aliud in natura, sicut materia et forma; et ista Deus posset separare. Re non absoluta sed relata differunt aliqua dupliciter: aut enim relatio fundatur in natura et essentia rei, aut super aliquod accidens in re. Et talis relatio secundo modo potest separari ab absoluto (…). Relatio vero primo modo secundum rem, inseparabilis est a re ipsa remanente, sicut res ipsa inseparabilis est a seipsa.» Ibidem. 151 ela não é diferente do acidente absoluto. Ela é diferente enquanto composto de res e ratio… O primeiro tipo de relação diz respeito ao modo como nas criaturas são realmente distintas a essência e o ser, posto que a essência de um ente criado é, a partir de si própria, indiferente ao ser e ao não ser. Ser e essência não são inseparáveis numa mesma coisa e separáveis em coisas distintas, como acontece na distinção intencional entre a alma sensitiva e a alma racional, por exemplo. Simplesmente, o ser de uma criatura tem, como já foi apontado, um caráter relacional, por ser um esse ab alio, um ser a partir de outro. Mas não nos afastemos do nosso tema. Daqui, retira-se que os três predicamentos absolutos e o predicamento da relação constituem entidades realmente distintas, embora a relação não seja uma res absoluta e não se compreenda exatamente que estatuto metafísico tem um modus essendi ou uma ratio. Apenas se pode dizer que é real, que não é intencional e que é um ser débil (esse debile). A relação seria intencionalmente distinta se fosse possível encontrá-la em conjunto com outra intenção numa mesma coisa e separada noutra, mas não é esse o caso, aparentemente. Não se consegue aplicar a diferença que há entre a alma sensitiva e a alma racional num ser humano à diferença que há entre uma relação e o acidente absoluto no qual se funda. E o que dizer dos restantes seis predicamentos relacionais? São ou não realmente distintos da relação? A questão 6 da Quodlibet V ajuda a responder a estas dúvidas, embora nela se afirme que há uma distinção intencional entre a relação e o seu fundamento. Aquilo que está em causa nesta questão é se uma relação real em Deus difere da essência divina secundum intentionem. Mais uma vez, é a partir da Trindade que Henrique se posiciona relativamente a um assunto que tem implicações metafísicas mais gerais. Nesta questão, a noção de res está reservada à res a ratitudine: aquilo que tem uma natureza absoluta, tomado enquanto essência, o qual existe como exemplar na mente divina, independentemente da sua existência real ou não263. Acerca desta noção de res, diz Henrique que «nenhum respectus postula algo na coisa além da coisa sobre a qual se funda264». Intentio, por seu turno, não é utilizada, nem no sentido de intenção segunda,

263 «Unde re differunt quaecumque diversas naturas et essentias important secundum rem, sive fuerint simplicia, ut materia et forma, sive composita, ut homo et asinus.» Idem, Quodlibeta, V, q. 6, f. 161rI. 264 «Nullus enim respectus aliquid rei ponit preter rem eius super quod fundatur.» Ibidem, f. 161rK. 152 como quando se diz que determinado termo é um género ou uma espécie, nem no sentido de intenção primeira, na medida em que esta signifique um universal. Eis como a define: Mas chama-se aqui “intenção” a algo que pertence realmente à simplicidade de alguma essência, apto para ser concebido com precisão na ausência de algo diferente, que difira como coisa absoluta que semelhantemente pertence à mesma. Daí que “intenção” é dita como que “tendência interior” (intus tentio), por aquilo em que no seu conceito a mente tende (tendit) para algo que se encontra na coisa de um modo determinado, e não para algo diferente que seja algo nessa mesma coisa. E assim são formados diversos conceitos sobre o mesmo na coisa pelo intelecto, o qual divide aqueles que são o mesmo na coisa, enquanto diversos no conceito da mente, mas iguais na coisa265. Há seis graus diferentes de diferenciação intencional, os quais podem ser agrupados em dois: as intenções que não se incluem uma à outra no seu conceito e aquelas em que um dos conceitos inclui o outro, mas não conversamente. No primeiro grupo, estão as diferenças presentes na forma de uma espécie (o vegetativo, o sensitivo e o racional numa alma humana, por exemplo) e a diferença entre um género e a sua diferença específica (animal e racional). No segundo, há quatro graus: a diferença entre uma espécie e um género; a diferença entre ser vivo e ser; a diferença entre um supósito e uma natureza; a diferença entre ente e essência266. Estas quatro diferenças intencionais decorrem de algum tipo de composição. Para dar um exemplo, a espécie não difere intencionalmente do género e da diferença específica, mas estes diferem entre si intencionalmente, transferindo essa diferença intencional para a espécie. Por fim, distingue também a ratio da intentio, dizendo que esta constitui apenas uma diferença no modo de conceber (modus concipiendi). Os exemplos dados são os da diferença racional entre uma definição e o seu definido, e a diferença racional entre os

265 «Sed appellatur hic intentio aliquid pertinens realiter ad simplicitatem essentiae alicuius, natum precise concipi absque aliquo alio a quo non differt re absoluta, quod similiter pertinet ad eandem. Unde dicitur intentio quasi intus tentio, eo quod mens conceptu suo in aliquid quod est in re determinate tendit, et non in aliquid aliud quod est aliquid eiusdem rei, et sic super idem in re per intellectum, cuius est dividere ea quae sunt idem in re, formentur diversi conceptus, ut de diversis penes conceptum mentis, eisdem autem in re.» Ibidem, f. 161rL. 266 Cf. Ibidem, ff. 161rL-161vL. 153 atributos divinos. Ratio tem o sentido de um nome geral acerca de alguma coisa concebida sob um modo que não constitui uma diferença nem na coisa, nem na intenção267. Destas três definições de res, intentio e ratio, Henrique de Gante retira o tipo de distinção existente entre os predicamentos criaturais. Além de repetir que só há três predicamentos que correspondem a res diversas, tece mais algumas considerações dignas de nota. Primeiro, que o nome “acidente” e o nome “substância” enquanto comparada com o acidente, constituem intenções segundas e distinções intencionais268. Segundo, que todos os sete predicamentos relacionais devem reduzir-se apenas a um, a saber, a relação, intencionalmente distinta da coisa absoluta sobre a qual se funda269. Por fim, e contrastando com o que fora dito, ou, pelo menos, com o que ficara por dizer clara e diretamente, só há dois tipos de relação: quando esta determina algo sobre a essência da coisa absoluta sobre a qual se funda, é racionalmente distinta da coisa absoluta; quando determina algo sobre um acidente absoluto, não enquanto tal, mas enquanto presente concretamente entre os sujeitos que estão a ser comparados, é intencionalmente distinta desse acidente absoluto270. O segundo tipo de relação é a categoria aristotélica, a qual introduz a coisa absoluta sobre a qual se funda, não lhe acrescenta nada enquanto coisa, mas é intencionalmente distinta dela na medida em que uma e outra constituem determinações conceptuais diversas inscritas na própria coisa.

267 «Sed ratio hic appellatur generali nomine aliquis circa rem, sub quo nata est concipi determinate absque eo quod concipiatur sub alio, sub quod similiter nata est concipi; et hoc sine omni eius differentiae re vel intentione, ita quod idem re et intentione conceptum diversis modis concipiendi dicitur differre secundum rationem inquantum concipitur uno illorum modorum et non alio, sicut patet in conceptione definitionis et definiti, et in diversitate diuinorum attributorum.» [Mas chama-se aqui “razão” a um nome geral acerca de uma coisa sob o qual é naturalmente apta para ser concebida de um modo determinado na ausência daquilo que é concebido sob outro sob o qual é semelhantemente apta a ser concebida; e isto sem toda a sua diferença na coisa ou na intenção, assim como se diz que o conceito do mesmo na coisa e na intenção em diversos modos de conceber difere segundo a razão enquanto se concebe um desses modos e não outro, tal como é patente na conceção da definição e do definido, e na diversidade dos atributos divinos.] Ibidem, f. 161vM. 268 Cf. Ibidem, f. 161vO. 269 «Unde septem praedicamenta alia quae ad unum predicamentum relationis habent reduci (…) non habent in se aliam rem significatam quam sit res praedicamenti absoluti, supra quam fundantur in subiecto.)» [Daí que os outros sete predicamentos, que têm de ser reduzidos a um único predicamento da relação, não têm em si outra coisa significada que seja uma coisa de um predicamento absoluto, sobre a qual se fundam no sujeito.] Ibidem. 270 Cf. Ibidem, f. 162rP. 154

Conclua-se, portanto, que para Henrique de Gante, após uma análise da distinção entre res, intentio e ratio, a lista aristotélica das categorias, se tomadas enquanto coisas reais, deve ser reduzida. Por outras palavras, a lista permanece a mesma, mas o estatuto metafísico dos seus membros faz com que possa ser reduzida, posto que nem todas as categorias têm uma res que lhes seja própria. Além disso, os sete predicamentos relacionais são redutíveis a um, o qual é apenas intencionalmente distinto da coisa absoluta sobre a qual se funda. E contudo, na Quodlibet XV, os seis princípios são considerados mais verdadeiros do que a relação no sentido próprio. Talvez não seja possível considerar as teses de Henrique de Gante de um modo coerente no conjunto da sua obra. Deixando esta questão em aberto, é, no entanto, claro que há uma proposta de redução da lista aristotélica das categorias e que apenas três delas podem ser consideradas coisas.

3.2.2. Teodorico de Freiberga (c. 1250 - 1310)

Na senda de Henrique de Gante271, há um autor, habitualmente tido por excêntrico ao mundo universitário do seu tempo, que tem uma proposta bastante particular de recondução de todos os acidentes ao per se a partir do estabelecimento da sua origem. Falamos de Teodorico de Freiberga (Dietrich von Freiberg, Theodoricus Teutonicus). Desde os estudos de Kurt Flasch que Teodorico se tornou conhecido como precursor da “revolução copernicana” de Kant, na medida em que afirmaria que o intelecto tem um papel causal, não apenas no que diz respeito às intenções segundas, mas também no que diz respeito às primeiras. Outra das teses postuladas por Flasch acerca do autor é que este se constitui como um dos exemplos da especificidade da filosofia germânica por comparação com os debates parisienses, tese também seguida (pelo menos parcialmente)

271 Por uma questão de brevidade, não será aqui tratado um autor que, no entanto, seria injusto não referir: o teólogo agostinho Tiago de Viterbo (Giacomo de Viterbo, Jacobus de Viterbio, c. 1255 – 1308) e as suas monumentais Quaestiones de divinis praedicamentis (c. 1292/1293 – 1299). Em grande medida, pelo menos no que diz respeito às categorias relacionais, Tiago adota as soluções de Henrique de Gante. Sirva de atenuante para uma ausência tão relevante. Cf. Jacobus de Viterbio OESA, Quaestiones de divinis praedicamentis, ed. E. Ypma (Corpus Scriptorum Christianorum, vol. V, 1-2), Augustinianum, Roma 1983- 1986 (qq. I-X e XI-XVII). As restantes questões estão publicadas em diversos números da revista Augustiniana entre os anos de 1988 e 1999. 155 por Loris Sturlese, na sua Storia della filosofia tedesca nel Medioevo272. Contudo, parece ser certo que, ao longo da sua vida, estudou (talvez entre 1272 e 1274), lecionou (provavelmente no convento dominicano de Saint Jacques, possivelmente entre 1281 e 1293) e adquiriu o título de mestre de Teologia (em 1296/7) em Paris. Foi Provincial da província alemã da sua ordem, sucedendo a Alberto Magno no cargo, e desempenhou diversas funções nos conventos dominicanos de Tréveris, Vurzburgo e Freiberga273. A excentricidade de Teodorico tem vindo a ser posta em causa, matizada e debatida, inclusive pelo próprio Kurt Flasch274. No que aqui nos toca, é bastante visível a influência de Henrique de Gante e da questão (muito parisiense) do estatuto da relação no seu tratado Sobre a origem das coisas predicamentais (De origine rerum praedicamentalium), escrito aproximadamente em 1286275. De facto, ambos os autores abordam os predicamentos relacionais como algo cuja razão é constituída intelectualmente. Ainda que não se saiba quem influencia e quem é influenciado, dadas as datas muito próximas dos textos nos quais se debruçam sobre esta questão, é certo que há uma afinidade entre eles.

272 Cf. Loris Sturlese, Storia della filosofia tedesca nel Medioevo. Il secolo XIII, Olschki, Florença 1996, p. 204. 273 Cf. Führer, Markus, «Dietrich of Freiberg», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2020 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = . 274 Dadas as nossas limitações na compreensão da língua alemã, foi através de comentários de outros autores que recolhemos estas informações preciosas. Em especial, cf. Pasquale Porro, «Déduction catégoriale et prédicaments relatifs à la fin du XIIIe siècle: le De origine rerum praedicamentalium de Dietrich de Freiberg et son contexte», Quaestio, 13 (2013) 197-220. A sua interpretação do De origine rerum praedicamentalium é a que aqui seguimos, a saber, a de que se trata de facto de um posicionamento novo, mas relativo a uma questão antiga: «Dans ce sens, le thème de fond (ou au moins l’un des thèmes de fond) du De origine se révèle être celui qui accompagne depuis toujours les discussions sur la relation, avec toutefois un renversement de la manière de poser la question: il ne s’agit pas de se demander ce qui reste de la relation quand on met hypothétiquement de côté la réalité de son fondement, mais ce qui reste de la relation quand on met hypothétiquement de côté l’acte de l’intellect.» Ibidem, pp. 198-199. 275 Este tratado foi traduzido para português e comentado por Luís M. Augusto em três artigos: Luís M. Augusto, «Teodorico de Freiberg. Tratado sobre a origem das coisas categoriais» in Revista Filosófica de Coimbra, 40 (2011) 507-552; 41 (2012), 297-330; 42 (2012), 607-648. Apesar do seu trabalho ser meritório, o tradutor tende a relevar a excecionalidade do autor germânico, sendo por vezes temerário em afirmações que são imprecisas, como por exemplo ao falar de uma “paisagem ensombrada” no panorama filosófico de finais do século XIII, ou da raridade do uso da expressão res praedicamentales no tempo de Teodorico. Afirma ainda que os capítulos 3 e 4 são “excrescências ontológicas” e que Teodorico escreve estes capítulos para tornar o seu idealismo inovador aceitável. Aqui propomos uma leitura bastante mais sóbria do autor, não obstante as virtudes da sistematização proposta por Luís M. Augusto, que nos foi extremamente útil. 156

O De origine rerum praedicamentalium começa pelo postulado de três modos de principiar ou originar um ente: 1) quando uma causa que está fora da essência de uma coisa a constitui no seu ser, ou seja, quando um ente é principiado por um princípio eficiente ou por um fim; 2) quando uma coisa é principiada a partir dos princípios que fazem parte da sua essência, tais como a matéria e a forma nas coisas compostas; 3) quando uma coisa toma a razão da sua entidade a partir de uma outra coisa276. Estas três rationes entis determinam os entes de diversos modos. Os dois primeiros modos dizem respeito às quatro causas aristotélicas. No primeiro modo, encontramos a razão de ente enquanto este tem princípios extrínsecos, ou seja, encontramos a razão de ente dos entes naturais, entre os quais se encontram também as inteligências, ou anjos. De facto, para Teodorico, há dois tipos de entes naturais: aqueles que estão pela sua essência aptos a participar da perfeição do seu fim, que são as

276 «Tale, inquam, ens uno modo principiatur sive initiatur ex aliquo secundum rationem causae; quod quidem fit, cum huiusmodi causale principium sit extra essentiam rei, conducit tamen et constituit rem in suo esse vel per modum principii efectivi vel per modum finis. / Alio modo principiatur res ex his, quae sunt intra essentiam eius, et ex his qualitative componentibus ipsam per essentiam subsistit; cuiusmodi sunt materia et forma in rebus compositis. / (…) Est et tertius modus, quo aliquid ex alio rationem suae entitatis trahit, innominatus quidem, fingatur autem nomen, ut libet, dummodo de propria eius ratione et veritate constet. Videtur autem plerumque hic modus attendi secundum rationem alicuius analogiae, ut infra patebit. Est autem hic modus, cum aliquid alteri sic est principium, ut ipso eodem principio existente extra essentiam eius, cuius est principium, nihilominus tamen eodem principio formaliter subsistit id, cuius est principium, inquantum rationem suae entitatis sive quiditatis ex eo trahit ipso principio existente de intellectu ipsius. Unde et cadit in ipsius definitione dicente, quid est inquantum ens.» [Um tal ente, digo, de um modo principia ou tem origem a partir de um outro segundo a razão de causa; o que sem dúvida faz com que este princípio causal esteja fora da essência de uma coisa, contudo unindo e constituindo coisa no seu ser, quer no modo de um princípio eficiente, quer num modo final. / De um outro modo uma coisa é principiada a partir desses que fazem parte da sua essência, e subsiste pela sua própria essência a partir destes componentes que a qualificam; a este tipo pertencem a matéria e a forma nas coisas compostas. / (…) Há ainda um terceiro modo no qual algo toma a razão da sua entidade a partir de uma outra coisa, um modo decerto inominado – dê-se-lhe o nome que se quiser, desde que ele se adeque à sua razão e à sua verdade. A maior parte das vezes vemos este modo ser considerado em termos de uma analogia, como se verá abaixo. Este modo é aquele segundo o qual algo é o princípio de uma outra coisa de tal maneira que graças a esse mesmo princípio existindo fora da essência daquilo do qual é o princípio, graças a esse mesmo princípio subsiste contudo formalmente aquilo do qual é o princípio na medida em que toma desse mesmo princípio, a partir da sua própria inteleção, a razão da sua entidade ou quididade. Pelo que pertence à definição desse ente exprimindo aquilo que ele é enquanto ente.] Dietrich von Freiberg, De origine rerum praedicamentalium, in Dietrich von Freiberg, Opera omnia. Schriften zur Naturphilosophie und Metaphysik, ed. Jean-Daniel Cavigioli et al., Felix Meiner Verlag, Hamburgo 1983, cap. 1, §§ 2-3 e 5, pp. 138-139 (1, 527-528). Entre parênteses, indicam-se o artigo e as páginas da tradução de Luís M. Augusto que aqui utilizamos, com ligeiras modificações. 157 inteligências, e aqueles que necessitam de algum tipo de movimento e, por conseguinte, de qualidades e da quantidade contínua para se aperfeiçoarem. O segundo modo indica a razão própria da substância, ou ente no sentido absoluto, abstraído de qualquer referência ao movimento. O terceiro modo, que não tem nome e não diz respeito às quatro causas, é subdividido em quatro no segundo capítulo da obra de Teodorico. Mas já no primeiro, o autor germânico indicia que alguns entes neste terceiro modo têm como princípio da ratio sob a qual estão a ser originados o intelecto. Eis o texto: Mas como nos entes não há senão dois tipos de princípios, a saber, a natureza e o intelecto, se tais entes não são constituídos por um ato natural, então pertencem necessariamente ao outro tipo e são reduzidos ao outro tipo de causa que é o intelecto. Não, contudo, no mesmo modo como aqueles que são a partir de uma operação tal do intelecto que são coisas de intenção segunda, os quais não pertencem de modo determinado a nenhum género de entes reais; estes são deveras coisas de intenção primeira em si de acordo com as razões próprias ordenadas num género, mais precisamente constituindo integralmente alguns dos próprios dez géneros277. Como veremos, apenas as substâncias, as quantidades e as qualidades são constituídas por um ato natural, o que quer dizer que os restantes sete predicamentos são constituídos pela ação causal ou principiante do intelecto, como argumentará Teodorico no quinto capítulo. Encontramos aqui algo semelhante ao modo como Henrique de Gante determina que um predicamento é constituído por uma res e uma ratio. Há predicamentos que se constituem a partir de rationes que não circunscrevem diversos géneros de coisas, mas que determinam formalmente uma coisa sob um determinado aspeto da sua inteligibilidade. O intelecto causa essas rationes e a coisa na qual elas se fundam, de certo

277 «Cum autem in entibus non sit nisi duplex principium in genere, natura videlicet et intellectus, si huiusmodi entia non constituuntur per actum naturae, necesse est ea alterius ordinis esse et reduci in aliud genus causae, quod est intellectus. Non autem eo modo, sicut ea, quae sic sunt ab operatione intellectus, quod sunt res secundae intentionis, quae ad nullum genus entium realium pertinent determinate: Ista enim vere sunt res primae intentionis per se secundum proprias rationes ordinatae in genere, immo aliqua ex ipsis decem generibus ex integro constituentes.» Ibidem, cap. 1, § 19, pp. 142-143 (1, 533-534). 158 modo, é aperfeiçoada por ser inteligida de um modo mais completo e perfeito278. Teodorico enfatiza que esta ação do intelecto sobre as coisas as aperfeiçoa, mas não deixam de ser posições bastante afins. Antes de nos debruçarmos sobre o capítulo 5, no qual se compreende melhor a ação intelectual na determinação dos entes, voltemos à divisão do terceiro modo de originar um ente. Este modo caracteriza-se pela pertença de um ente a outro ente e, nessa medida, divide-se em quatro de acordo com quatro tipos de pertença (ou dependência): 1) quando algo pertence a um ente segundo a sua razão formal e definitiva (ratio formalis et definitiva), ou seja, segundo a razão da sua quididade279; 2) quando algo pertence a um ente segundo esse mesmo ente tomado sob a razão de sujeito; 3) quando algo pertence a um ente-sujeito (ens subiectum) e a outra coisa que se encontra nesse sujeito; 4) quando algo pertence a um ente segundo a razão de outro ente que se encontra noutro sujeito280. Estes modos não determinam apenas a razão de algumas categorias. Determinam também outras estruturas que, de uma maneira ou de outra, estabelecem as relações corretas de dependência entre os diversos tipos de entes. Na primeira subdivisão, encontramos aquilo a que Teodorico chama de propriedades (proprietates) ou modos dos entes (modi entium) que indicam o porquê (o propter quid) da quididade de um ente. Essas propriedades podem ser privativas ou positivas. São privativas se determinam o ente na sua essência, enquanto removem umas disposições em detrimento de outras. Os exemplos dados são o par e o ímpar relativamente a um número, ou o igual e o desigual relativamente a algo uno na qualidade. Estas são determinações absolutas privativas de um ente segundo a sua essência. Outras há que são determinações essenciais não de um modo absoluto, mas em ordem a algum ente positivo, e postulam algo positivo acerca dessa essência. São propriedades como ser causa ou ser causado, ser potência passiva ou potência ativa, entre outras. Todas estas propriedades ou modos dos entes constituem também determinações intelectuais, dado que não dizem respeito a, nem são determinadas por, nenhuma operação natural. Todas

278 Cf. Ibidem, cap. 1, § 20, p. 143 (1, 534-535). 279 Teodorico dedica uma obra à noção de quididade: cf. Dietrich von Freiberg, De quiditatibus entium, in Dietrich von Freiberg, Opera omnia. Schriften zur Naturphilosophie und Metaphysik. 280 Cf. Idem, De origine rerum praedicamentalium, cap. 2, §§ 2-5. (1, 537-538). 159 elas são concebíveis na ausência de toda a mudança natural, até mesmo as razões de causa e de causado281. A segunda subdivisão contém em si as quantidades e as qualidades reais. Os membros desta, ao contrário da anterior, têm como princípio as operações naturais, não são produzidas pelo intelecto. Deste modo, os entes que pertencem a um sujeito enquanto sujeito são disposições naturais nele que não pertencem à sua essência282. Essas disposições naturais são princípios dos movimentos e das operações naturais, e podem sê-lo primariamente ou não. Primariamente, são as qualidades reais que fazem uma coisa natural agir e padecer de tal modo que adquira determinadas perfeições. Essas operações geradas pelas qualidades fazem com que apareça um outro princípio per se de tais operações, a saber, a quantidade283, ligada ao movimento local. Os restantes dois modos de pertença ou dependência de um ente face a outro são originados por estes dois primeiros. O terceiro é o que compreende em si a categoria da relação. O quarto, as restantes seis categorias relacionais. Além disso, o quarto modo tem como origem o terceiro, o qual, por sua vez, pode ter origem no primeiro ou no segundo. De facto, a relação – a qual, recorde-se, tem como razão formal o facto de ser um ente que pertence a um sujeito e a outra coisa que se encontra nesse sujeito – divide-se em dois subgrupos conforme a “outra coisa” a que pertence seja um modo do ente ou uma disposição natural (uma qualidade ou uma quantidade). A relação pode receber ou tomar

281 «De ratione enim causae et causati est, ut, sicut differunt ratione, sic et subiecto sint distincta. Et quia natura non distinguit inter rem subiectam et rationem rei subiectae, sed principium huiusmodi distinctionis est intellectus, immo intellectus est constituens rei rationem inquantum huiusmodi, ut infra ostendetur, hinc est, quod etiam ea, quae ex formali ratione rei eliciuntur, sunt acta per intellectum.» [É uma característica da razão da causa e do causado que, tal como diferem pela razão, assim são distintos pelo sujeito. E porque a natureza não distingue entre a coisa-sujeito e a razão da coisa-sujeito, sendo o princípio desta distinção o intelecto – ou melhor, o intelecto é o que constitui a noção da coisa neste modo como abaixo se mostrará – , eis porque os entes que são produzidos a partir da razão formal de uma coisa são criados pelo intelecto.] Ibidem, cap. 2, § 14, p. 148 (1, 540). 282 «Quod autem proprie pertinet ad haec entia huiusmodi secundi generis est, quod quantum ad id quod sunt, non sunt elicita a ratione definitiva subiecti sicut praedicta, sed habent causam apud naturam, a qua fiunt in subiecto in ordine ad aliquem finem.» [O que propriamente caracteriza estes entes deste segundo tipo é que, quanto àquilo que são, não são produzidos a partir da razão definitiva do sujeito como os anteriores, mas têm a causa na natureza, pela qual são criados num sujeito em relação a um certo fim.] Ibidem, cap. 2, § 22, p. 149 (1, 543). 283 Cf. Ibidem, cap. 2, §§ 28-30, pp. 150-151 (1, 544). 160 a sua entidade de um ou de outra, mas só a relação fundada numa disposição natural se encontra no predicamento da relação. Neste ponto, Teodorico pretende dar conta da questão da relação em Deus. A relação de Deus com a criatura é real ou racional? De que modo diz ou não respeito ao predicamento da relação propriamente dito? Com efeito, nem todos os relativos se encontram no predicamento da relação, ou do relativamente a algo. Se os extremos da relação forem entes de razão, então a relação fundada sobre eles é também um ente de razão. Mesmo que não sejam entes de razão, se se distinguirem um do outro apenas racionalmente, também nos encontramos perante uma relação de razão. Há ainda relações reais que não pertencem ao predicamento da relação, a saber, quando os extremos da relação se referem um ao outro pela sua essência e não por algo que se encontre neles como num sujeito284. Caso disso seria a relação entre dois extremos tomados como causa e causado. Como os extremos são reais, a relação é também real, mas não se trata de uma relação que faça parte do género do relativamente a algo, pois a causa e o causado são-no na sua própria essência, naquilo em que eles são por si. Assim, causa e causado são propriedades ou modos do ente, ou seja, entes no primeiro modo de pertença acima descrito285. No que toca às relações entre Deus e as criaturas, há umas que são reais e outras que são racionais. Nenhuma delas, contudo, corresponde ao predicamento do relativamente a algo. Para que uma relação pertença a esse predicamento, deve ter em si

284 «Dico autem “ea quae sunt in genere relationis”: Non enim omnes relativae habitudines pertinent ad hunc modum nec ad genus praedicamenti, quod est ad aliquid, puta si aliquae sunt relationes secundum rationem solum et non secundum rem. Quod quidem fit, vel cum subiecta talium relationum non sunt entia nisi secundum rationem, vel etiam si extrema ipsarum non sunt distincta nisi secundum rationem, ut cum idem secundum idem refertur ad se. Hae etiam reales relationes, quibus aliqua referuntur per suam essentiam et non per aliquam naturam repertam in subiecto, proprie non pertinent ad hunc modum nec ad genus praedicamenti, quod est ad aliquid; pertinent autem ad primum modum, ut ibi dictum est.» [Digo “aqueles que pertencem ao género da relação”, pois nem todas as relações pertencem a este modo, nem ao género de categoria que é a relação, por exemplo se algumas são relações só de acordo com a razão e não na realidade. O que é o caso quer quando os sujeitos de tais relações não são entes senão pela razão, quer se os seus termos não são distintos senão pela razão, como quando a mesma coisa se relaciona consigo mesma sob a mesma relação. as relações reais pelas quais alguns entes se relacionam pela sua essência e não por uma qualquer natureza no sujeito não pertencem propriamente a este género de categoria que é a relação; pertencem, contudo, ao primeiro modo, tal como aí se disse.] Ibidem, cap. 2, § 34b (há um erro na numeração: há dois § 34), p. 152 (1, 546). 285 Cf. Ibidem, cap. 2, § 36, p. 152 (1, 546). 161 a razão de acidente, o que quer dizer que se deve fundar numa das disposições naturais dos sujeitos da relação, isto é, em qualidades e quantidades. Assim sendo, ela toma para si o ser dos seus fundamentos, podendo ser reduzida à quantidade ou à qualidade sobre a qual se funda. Quer isto também dizer que tirando o seu fundamento, a relação não tem nada de natural nem pode ter como causa a natureza. Resta, portanto, que seja originada pelo intelecto: Mas se quisermos reduzir estes entes às suas causas, então, embora pela razão do fundamento tenham uma causa na natureza, pela razão daquilo que formal e primeiramente é significado pelo nome e no qual consiste a razão do seu próprio género, são a partir de uma operação do intelecto. De facto, a natureza não produz nem realiza nada a partir da razão de uma coisa, tal como não distingue entre a coisa e a razão da coisa, mas esta é a obra própria do intelecto, como abaixo se dirá. Se removermos destes entes o ato da razão, então não serão de modo nenhum entes quanto àquilo que é significado pelo nome, restando somente a realidade e a entidade do fundamento286. A questão é colocada pela negativa: o que fica da relação se se lhe retirar o ato de razão? A resposta é que não fica nada senão a realidade do seu fundamento. Também os seis princípios são causados por uma operação intelectual, pelo que são redutíveis à mesma causa que as relações. Contudo, diferem das relações pelo seu caráter extrínseco, sendo descritos, de acordo com a tradição, como formae extrinsecus advenientes. Posto isto, Teodorico dedica um capítulo às condições para a pertença de um ente a uma categoria, assunto no qual vai tocar, ainda que ao de leve, na questão da suficiência das categorias a partir da distinção entre a abordagem metafísica e a abordagem lógica.

286 «Si autem huiusmodi entia velimus reducere in suas causas, tunc quamvis ratione fundamenti habeant causam apud naturam, tamen ratione eius, quod formaliter et primo significatur per nomen et in quo consistit ratio sui proprii generis, sunt ab operatione intellectus. Natura enim nihil elicit nec efficit ex rei ratione, sicut nec distinguit inter rem et rationem rei, sed hoc est proprium opus intellectus, ut infra dicetur. / Si autem ab huiusmodi entibus removeamus actum rationis, tunc secundum nullum modum sunt entia quantum ad id quod significatur per nomen, sed relinquitur sola realitas et entitas fundamenti.» Ibidem, cap. 2, §§ 51-52, p. 156 (1, 550). 162

As condições para a pertença de um ente a um género são três: 1) que esse ente seja uma coisa natural ou traga consigo o ser de um coisa natural; 2) que seja um ente completo, uma vez alcançada a sua perfeição de acordo com a sua razão própria e o modo da sua essência; 3) que participe da razão comum de um género287. É na terceira condição que surge a distinção entre o modo metafísico e o modo lógico de participar da razão comum de um género, isto é, ou «segundo a natureza da coisa tomada absolutamente» (secundum naturam rei absolute) ou «segundo a razão de alguma analogia» (secundum rationem alicuius analogiae). No primeiro caso, o realis philosophus estabelece um género enquanto há uma matéria comum dos membros de um género que é distinguida em várias formas que a especificam. No segundo, o rationalis philosophus estabelece a razão comum de um género de acordo com a analogia de proporcionalidade, isto é, através de uma ratio sob a qual coisas de natureza diversa podem ser comparadas ou relacionadas. O exemplo dado é o de substância para as substâncias corpóreas e incorpóreas: elas encontram-se juntas num género porque se assemelham na ratio substandi, na razão de “estar-sob”. Sob o ponto de vista real ou metafísico, não podem fazer parte de um mesmo género porque não há uma matéria comum às duas a partir da qual se especifiquem por uma determinada forma. Segundo Teodorico, é neste modo racional ou lógico que os entes se coordenam em dez géneros, ou predicamentos. Sob o ponto de vista natural, não podem ser restringidos a dez288.

287 Cf. Ibidem, cap. 3, §§ 2-9, pp. 158-160 (2, 305-306). 288 «Alio modo accipitur communis ratio generis non secundum naturam rei in se, ut dictum est, sed secundum rationem alicuius analogiae, quae proportionalitas dicitur. Et sic plerumque rationalis philosophus secundum probabilitatem constituit unitatem generis. Verbi gratia rationem huius generis, quod est substantia, tam in incorporeis quam in corporeis accipit a ratione substanti, quamvis imponatur nomen substantiae a ratione subsistendi: venatur enim hoc nomen a modo substandi, qui proportionaliter invenitur in his rebus; sicut enim hae suis modis et proprietatibus vel etiam accidentibus substant, ita illae suis. (…) Et quoad istum secundum modum videntur entia distingui et ordinari logice et secundum famositatem (…) solum in decem genera, quae praedicamenta dicimus. (…) Secundum primum autem istorum modorum, scilicet, considerando res secundum proprias suas naturas, non coarctantur ad hunc numerum generum, sed ea, quae logica ratione sunt unius generis, secundum veritatem non sunt unius generis, ut hinc inde patet de corpore, quod est genere substantiae, et de pluribus aliis.» [Num outro modo, a razão comum de um género não é tomada de acordo com a natureza de uma coisa em si, como se disse, mas em termos de uma analogia que se chama proporcionalidade. E assim a maior parte das vezes o lógico constitui a unidade de um género de acordo com a probabilidade. Por exemplo, ele toma a razão do género que é a substância tanto nas coisas incorpóreas como nas corpóreas a partir da razão de estar-sob (ratio substandi), embora o termo “substância” seja estabelecido a partir da razão de subsistir (ratio subsistendi): 163

Todo este aparato de distinções serve para responder a duas questões controversas nos capítulos seguintes. No quarto capítulo, trata-se da questão da pluralidade de formas num mesmo ente. No quinto, a defesa da causação intelectual de coisas de intenção primeira, ou seja, a defesa de que o intelecto produz algo mais do que entes de razão. Quanto à primeira questão, Teodorico, ao abordar o ente enquanto ente – o que, no seu caso, significa abordar o ente atual sob o ponto de vista da sua quididade ou da sua essência absoluta, independentemente da consideração das suas causas –, vai afirmar que nos seus diversos níveis de determinação, desde o género generalíssimo à espécie especialíssima, não se dá uma sobreposição de diversas formas, mas sim de diversas intenções formais numa mesma forma. Estas intenções, como o nome indica, são determinações intelectuais de formas reais289. Abre-se então caminho ao elemento mais importante do De origine rerum praedicamentalium: a causação intelectual de entes de primeira intenção, que não podem ser tomados como entes de razão. É certo que já Alberto Magno, influenciado por Boécio, havia aberto o caminho ao dizer no comentário ao Liber sex principiorum que as seis formas nele tratadas são formas separadas (intelectuais, sem matéria) que participam na matéria como imagines290. Mas Teodorico, além de estender esta ideia à própria categoria da relação, determina com mais afinco de que modo algo é causado pelo intelecto e, simultaneamente, faz parte do ente que se constitui como objeto, por assim dizer, dessa causação intelectual. Em primeiro lugar, há um elemento psicológico nesta abordagem: não é o objeto inteligido que causa no intelecto a sua inteligibilidade, mas o inverso, a saber, é o intelecto que doa ao ente inteligido a sua quididade, que está na base da sua definição. Assim, há rationes que são

este termo vem do modo de estar-sob que se encontra proporcionalmente nestas coisas: assim como estas estão sob os seus modos e propriedades ou até mesmo acidentes, aquelas estão sob os seus. (…) E em relação a este segundo modo vê-se que os entes se distinguem e ordenam logicamente e, de acordo com o que é costume dizer, (…) somente em dez géneros, os quais chamamos predicamentos. (…) De acordo com o primeiro destes modos, ou seja, considerando as coisas de acordo com as suas naturezas próprias, elas não são obrigadas a este número de géneros, mas os entes que pertencem a um género por uma razão lógica não pertencem na verdade a um único género, como é evidente no que diz respeito ao corpo, o qual pertence ao género da substância, e em relação a muitos outros.] Ibidem, cap. 3, § 12, p. 161 (2, 307-308). 289 Ibidem, cap. 4, §§ 21-25, pp. 174-175 (2, 322-323). 290 Cf. supra, 2.2. 164 causadas num ente pelo intelecto, e estas são tão suas como aquilo que lhe pertence pela causalidade natural. Um ente constitui-se, portanto, por diversas causas, umas naturais, outras intelectuais. Essas rationes são distintas dos entes de razão, os quais existem puramente no intelecto. Para justificar a sua tese, mune-se das autoridades de Aristóteles, Averróis e Agostinho no que diz respeito à dependência do tempo face à alma. Com efeito, é assim que Averróis interpreta Aristóteles no que toca à relação entre tempo e movimento no livro IV da Física. Ao interpretar o capítulo 11, no qual se diz em determinado momento que se não sentíssemos ou percebêssemos uma mudança entre dois instantes, não existiria o tempo, Averróis afirma que o movimento pode imaginar-se sem o tempo, mas não o inverso, o que mostra que o movimento precede naturalmente o tempo e que o tempo é um acidente do movimento, ou acontece (accidit) ao movimento. De seguida, reafirma que quem não tem a sensação de uma mudança, também não sente o tempo, dando o exemplo das pessoas que estão em coma durante muitos anos, as quais não compreendem a passagem do tempo291. Teodorico também invoca a reflexão de Agostinho acerca do tempo no livro XI das Confissões292 para mostrar essa mesma dependência do tempo face à alma que o perceciona. Com este gesto, pretende mostrar que o predicamento do quando é criado pelo intelecto e, simultaneamente, é um ente de intenção primeira. Abre caminho para os restantes predicamentos relacionais terem o mesmo estatuto. A sua argumentação parte de uma exposição das diversas noções de causa, baseada nas quatro causas aristotélicas. Sem entrar em pormenores, o intelecto pode ser a causa eficiente, e a partir desta, também a causa final de alguns entes. A causa eficiente determina o ente em ato por relação com o seu fim próprio, o qual, por seu turno, introduz a perfeição última desse ente. A causa eficiente carateriza-se por ser “executiva” da forma. O intelecto tem exatamente essa função no que diz respeito às quididades das coisas, isto é, no que diz respeito às coisas na medida em que são pensadas ou definidas. Dado que o intelecto é um ente completo e, mais ainda, o mais formal de toda a natureza,

291 Cf. Averróis, Aristotelis de Physico Auditu libri octo cum Averrois Cordubensis variis in eosdem commentariis, ed. Iuntina secunda, Veneza 1562, IV, text. et comm. 97, ff. 177rF-178rC. 292 Cf. Agostinho de Hipona (= Santo Agostinho), Confissões, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, trad. Arnaldo do Espírito Santo et al., Lisboa 2000, XI, XIV.17 – XXXI.41, pp. 567-603. 165 então as quididades das coisas não podem causar nada nele, mas, pelo contrário, é o próprio intelecto que causa nas coisas a sua quididade293. O objeto do intelecto é a quididade, a qual não causa a inteleção do mesmo modo que, por determinados processos naturais, as coisas causam as espécies sensíveis. O modus intelligendi constitui a razão de ser (ratio essendi) de uma coisa na sua componente quiditativa294. Posto isto, Teodorico não pretende dizer que todos os entes são constituídos pelo intelecto, mas apenas que há que distinguir entre vários tipos de ente conforme a sua entidade própria, enquanto são entes, seja quiditativa ou não. E para ele há de facto entes de entes, isto é, entes produzidos pelo intelecto nos entes naturais, que conferem aos entes naturais uma outra completude devido à atribuição de medidas, relações e circunstâncias. Estes entes de entes naturais, que têm uma existência quiditativa, são os sete predicamentos relacionais295. Estes são distintos dos entes de intenção segunda ou entes de razão na medida em que o intelecto os causa em coisas que estão fora de si próprio. Eis como distingue os três tipos de entes, a saber, os entes naturais, os entes de intenção primeira e os entes de intenção segunda: É pois evidente de acordo com o que se disse que há certos entes que são puramente coisas de razão na medida em que são a partir da razão, e são ao mesmo tempo formas da parte da razão na consideração das coisas; e estas são simplesmente coisas de intenção segunda. Há ainda certos entes que são puramente coisas da natureza na medida em que segundo aquilo que são, são de acordo com a natureza e a partir de um ato natural, como aqueles que são em si mesmos princípios de um movimento natural, como a substância, a qualidade, etc. Outros, porém, são

293 «Intelligamus autem hic exempli gratia res materiales compositas ex materia et forma et earum rerum dispositiones et circumstantias. Sed huiusmodi res non habent rationem causalis influentiae respectu intellectus, et dico influentiam, quae est causae per se. Huius autem ratio est quia intellectus est ens incomparabiliter formalius et simplicius quam sint haec entia.» [Entendamos aqui, por exemplo, coisas materiais compostas de matéria e de forma e as disposições e circunstâncias destas coisas. Mas estas coisas não têm o caráter de uma influência causal em relação ao intelecto, e falo aqui da influência que é da causa per se. A razão para tal é que o intelecto é um ente incomparavelmente mais formal e simples do que o são estes entes.] Ibidem, cap. 5, § 21, p. 185 (3, 626). 294 Cf. Ibidem, cap. 5, §§ 29-30, p. 189 (3, 632). 295 Além destes, o intelecto também produz as paixões do ente e os entes matemáticos. Estes não serão aqui discutidos. Cf. Ibidem, cap. 5, §§ 48-50, p. 195 (3, 640-641). 166

como que num modo intermédio: quanto àquilo que se significa formal e principalmente pelo nome, são a partir de uma operação do intelecto, mas de acordo com a razão de alguma natureza que trazem na sua inteleção (in suo intellectu), quer esta natureza seja uma substância, quer algo concreto de uma substância; e por isso estes são coisas de intenção primeira pela razão referida296. Em Henrique de Gante, são os vários tipos de separabilidade que diferenciam a res, a intentio e a ratio. Aqui, não é esse o critério, mas sim os diferentes modos de causação de um ente. Há entes causados pelas operações naturais, há entes causados nas coisas naturais por uma operação intelectual e há entes causados pelo intelecto no próprio intelecto. Contudo, é inegável que são posições bastante próximas, embora Teodorico insista que o intelecto causa a existência de coisas reais. Em ambos, o exercício de uma suficiência das categorias altera-se relativamente àquilo que tinha vindo a ser habitual. Não há propriamente uma redução da lista, mas há decerto uma mudança no que diz respeito ao estatuto metafísico dos seus membros. Em Teodorico, há, além disso, a afirmação de que metafisicamente as categorias não são apenas dez, mas decerto mais do que dez.

3.2.3. Pedro de João Olivi (1247/1248 - 1298)

O autor que se segue na nossa exposição é Pedro de João Olivi, cuja apresentação da crítica à coincidência entre modos de ser e modos de predicar ecoará em João Duns Escoto. Olivi, franciscano controverso oriundo de Sérignan, na Provença, suscitou amizades e inimizades fortes ao longo da sua vida e até mesmo depois dela. Esta tensão

296 «Patet igitur secundum praedicta, quod quaedam sunt entia quae pure sunt res rationes eo quod sunt a ratione, et simul cum hoc sunt formae habentes se ex parte rationis in rerum consideratione; et huiusmodi sunt simpliciter res secundae intentionis. Quaedam autem sunt entia quae sunt pure res naturae eo quod secundum id quod sunt, sunt secundum naturam et ab actu naturae, ut ea quae sunt alicuius naturalis motionis per se principia, ut substantia, qualitas et cetera. Quaedam autem quasi medio modo se habent: Quantum enim ad id quod formaliter et principaliter significatur per nomen sunt ab operatione intellectus, secundum rationem tamen alicuius naturae, quam important in suo intellectu, sive haec natura sit substantia, sive aliquid substantiae concretum; et ideo huiusmodi sunt etiam res primae intentionis ratione praedicta.» Ibidem, cap. 5, § 59, p. 199 (3, 645-646). 167 culminou na demolição do seu túmulo, que se tornara lugar de culto, em 1326, após a condenação do seu comentário ao Apocalipse. De facto, Olivi teve muitos problemas com a cúpula da ordem a que pertencia, especialmente devido à sua interpretação da pobreza franciscana. Em Sobre como devem ser folheados os livros dos filósofos, escrito num ano incerto entre 1270 e 1276, no auge das disputas parisienses entre os teólogos e os filósofos que culminou nas condenações de 1277, imbuído do espírito das cartas de São Paulo, Olivi afirma sem pejo que a filosofia mundana «possui algo de verdadeiro e de útil, mas que se encontra misturado com muita falsidade e dano297». Temos aqui um mote para a sua atitude perante a tradição filosófica. A crítica à coincidência entre modos de ser e modos de predicar, bem como à justificabilidade das dez categorias, encontra-se no seu comentário por questões às Sentenças de Pedro Lombardo. Este comentário começou a ser redigido pouco depois de sair de Paris (c. 1272), mas adquiriu a sua forma final sensivelmente a meio da década de 1290. Mais precisamente, a sua crítica encontra-se na questão 28 das Quaestiones in secundum librum Sententiarum298, a qual faz parte de um conjunto de questões que tratam das propriedades gerais dos agentes. Olivi pergunta quais são os predicamentos que determinam o movimento. Como se expôs em 1.3., ao tratar da aplicação das categorias ao movimento, Avicena não se sente obrigado a seguir a famosa tese de que as categorias são dez299. Esta é uma das hipóteses propostas pelo autor franciscano. Com efeito, a questão tem um caráter quase aporético: Olivi apresenta várias posições e deixa para os sapientes o juízo sobre a verdade delas, não se decidindo por nenhuma, muito embora dedique muitas mais páginas a umas do que a outras e remeta algumas críticas particulares

297 «Attende autem quod in omnibus istis sic habet aliquid veritatis et utilitatis, quod multam habet admixtionem falsitatis et damnositatis.» Pedro de João Olivi, Tratado sobre os contratos – Sobre como devem ser folheados os livros dos filósofos, ed. lat. Sylvain Piron, trad. Luis Alberto De Boni – Joice Beatriz da Costa (Imago Mundi, vol. XI), Edições Afrontamento, Porto 2013, pp. 312-313. Sobre a vida e a obra de Olivi, cf. David Burr, L’histoire de Pierre Olivi. Franciscain persécuté, Éditions Universitaires de Fribourg – Éditions du cerf, Friburgo – Paris 1997; Tiziana Suarez-Nani et al. (org.), Pierre de Jean Olivi. Philosophe et théologien. Actes du colloque de Philosophie médiévale, 24-25 Octobre 2008, Université de Fribourg, De Gruyter, Berlim – Nova Iorque 2010. 298 Utilizamos aqui a edição crítica de Bernhard Jansen, SJ: Petrus Iohannis Olivi, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, vol. I (qq. 1-48), Ex Typographia Collegii S. Bonaventurae, Quaracchi 1922, q. 28, pp. 482-498. 299 Cf. nota 103. 168 para outras partes da sua obra. Entre as posições contrastantes, destacam-se duas onde é flagrante este desnível300. A primeira dita que a distinção dos predicamentos é tomada a partir de diversos modos de ser, proporcionais aos modos de predicar; a segunda, que não se infere a diversidade dos modos de predicar a partir da diversidade dos modos de ser. A segunda é bem mais extensa do que a primeira e contém críticas particulares a cada um dos membros da sufficientia apresentada, a qual é semelhante à sufficientia de Tomás de Aquino na versão do comentário à Física301. Não entraremos aqui em cada uma das críticas particulares. Foquemo-nos antes nas críticas gerais à ideia segundo a qual são tantos os modos de ser como os modos de predicar. São elas três: No entanto, alguns posicionam-se contra isto, ponderando que esta razão referida é nula. Em primeiro lugar, porque, como dizem, a diversidade dos modos de predicar não infere necessariamente a diversidade dos modos de ser, dado que o modo de predicar se segue mais do modo de inteligir (modus intelligendi); certas vezes, atribuímos às coisas segundo o nosso modo de inteligir aquilo que não é, de todo, segundo o modo de ser, o qual se encontra na coisa (in re). Em segundo lugar, porque um modo de ser diverso não infere necessariamente a diversidade real dos predicamentos, uma vez que uma mesma essência poderia em diversos tempos e supósitos (supposita) ter diversos modos de ser; e a essência de um género uno, e maximamente dos géneros generalíssimos, tem modos de ser diversíssimos em diversas espécies; daí que seria mister postular inumeráveis predicamentos se atendêssemos à diversidade dos modos de ser. Além disso, que um qualquer predicamento tenha um modo de ser realmente diverso relativamente aos outros não é mais provado do que o facto de ter essências diversas; com efeito, posto que apenas algumas delas não diferem senão segundo as razões reais, é certo que elas não teriam um modo de ser diverso segundo a coisa. Em terceiro lugar, porque, como dizem, postular os membros que se seguem não é provar o número dos predicamentos, mas apenas narrar; de facto, se alguém

300 Mais ainda, relacionando os conteúdos desta questão com as suas Quaestiones logicales, escritas a meio da década de 1280, é visível qual a posição para a qual se inclina. Cf. Stephen F. Brown, «Petrus Ioannis Olivi ‘Quaestiones Logicales’: critical edition», in Traditio, vol. 42 (1986) 335-388. 301 Cf. 2.2.2. 169

quiser adicionar ou subtrair alguns membros à suficiência dos predicamentos previamente feita, poderia por uma via semelhante de narração postular mais predicamentos ou menos. Portanto, quanto à eficácia da força do argumento que a predita suficiência e semelhantes tenham, seria necessário provar que não se podem postular nem mais nem menos membros, e que qualquer um dos membros postula necessariamente um predicamento realmente distinto dos outros; contudo, nada disto aqui é feito302. Ao contrário do que acontece em Teodorico e, com mais reservas, em Henrique, Olivi apresenta argumentos nos quais as rationes e os modi intelligendi não determinam as coisas secundum rem. Afirma-se, nas entrelinhas, um corte entre o pensamento e a realidade, na medida em que a inteleção não garante a representação de um modo de ser. Os modos de predicar seguem-se dos modos de inteligir, mas nem sempre os modos de inteligir se seguem dos modos de ser. Um segundo ponto importante de análise, o qual, como vimos, já se encontra em Avicena, é a dúvida sobre a eficácia argumentativa das suficiências dos predicamentos. Para serem eficazes, teriam de provar duas coisas: primeiro, que o número dos membros é exatamente aquele; segundo, que cada um dos membros postula um predicamento realmente distinto dos outros. A suficiência não o faz. A única prova disso não é uma

302 «E contra autem quidam sentiunt, rationem hanc ultimo allatam nullam reputantes. Primo quidem, quia ut dicunt, diversitas modorum praedicandi non necessario infert diversitatem modorum essendi, quoniam modus praedicandi potius sequitur modum intelligendi quam modum essendi; unde quaedam attribuimus rebus secundum modum intelligendi nostrum quae non omnino ita se habent secundum modum essendi qui est in re. / Secundo, quia modus essendi diversus non necessario infert diversitatem praedicamentorum realem, cum eadem essentia possit in diversis temporibus et suppositis diversos modos essendi habere, et essentia unius generis et maxime generis generalissimi habet modos essendi diversissimos in diversis speciebus; unde oporteret ponere innumerabilia praedicamenta, si diversitatem modorum essendi attenderemus. Praeterea, quod quodlibet praedicamentum habeat modum essendi realiter diversum ab aliis non plus est probatum quam quod habeat diversas essentias; posito enim quod aliqua eorum non differunt nisi solum secundum solas rationes reales: constat quod illa non haberent diversum modum essendi secundum rem. / Tertio, quia ut dicunt, ponere membra sequentia non est numerum praedicamentorum probare, sed solum narrare; si quis enim vellet addere aut subtrahere aliqua membra ad sufficientiam praedicamentorum praeassignatam, posset per viam consimilis narrationis ponere plura praedicamenta vel pauciora. Ad hoc igitur quod praedicta sufficientia et consimiles habeant vim efficacis argumenti oporteret probare quod non possunt plura membra poni aut pauciora et quod quodlibet membrorum necessario ponit unum praedicamentum ab aliis realiter distinctum; nihil autem horum fit hic.» Ibidem, pp. 485-486. Cf. tradução integral desta questão de Olivi no Anexo 13. 170 prova, mas sim um postulado: os modos de predicar espelham os modos de ser. Não aceitando este postulado, a suficiência não prova nada. Falaremos de Pedro de João Olivi de novo mais à frente, devido à sua influência em Guilherme de Ockham (c. 1287/1288 – 1347) num assunto particular. De facto, vimos que é problemático para diversos autores postular alguma realidade à qual correspondam a relação e os seis princípios. Porém, até agora, as três categorias absolutas permanecem intocáveis. Contudo, Olivi propõe que as quantidades, quer as contínuas, quer as discretas, não correspondem na realidade a nada que seja distinto das substâncias e das qualidades. Quando falarmos de Ockham, voltaremos a este assunto303. Para já, temos na apresentação sumária destas críticas uma base para a exposição do autor que fecha esta capítulo.

3.2.4. João Duns Escoto (1265/1266 - 1308)

João Duns Escoto é um crítico inexorável das sufficientiae. Simultaneamente, aceita que as categorias aristotélicas são dez e que todas elas correspondem a essências realmente distintas. Mais uma vez, a dificuldade em datar os seus escritos filosóficos torna difícil de saber quem influencia e quem é influenciado. Era habitual situar os seus comentários a Aristóteles entre um período avançado dos seus estudos em Oxford (c. 1295) e a sua primeira ida para Paris (provavelmente, em 1302). No entanto, o facto de haver referência a textos mais tardios e, mais ainda, o caráter caótico da transmissão manuscrita de aditamentos, rasuras e correções, torna muito plausível que Escoto tenha revisitado muitas vezes estes textos. Este apontamento é especialmente verdadeiro no que diz respeito ao seu comentário por questões à Metafísica. Há vários acontecimentos da sua vida que ajudam a explicar o caráter caótico da transmissão manuscrita das suas obras. Por um lado, foi expulso de Paris pelo rei Filipe, o Belo (1268 – 1314) em junho de 1303, devido a disputas com o papa Bonifácio VIII (c. 1235 – 1303). Por outro lado, quando morreu (inesperadamente) em Colónia, no ano de 1308, deixou incompleta uma revisão

303 Cf. infra, 4.1. 171 em curso dos seus trabalhos filosóficos de juventude304. Independentemente destas questões biobibliográficas, pode dizer-se que as suas doutrinas constituem um ponto de viragem no que diz respeito à abordagem do problema da suficiência das categorias, não só por Duns Escoto ter feito “escola”, mas também pelo facto de aprofundar, talvez como nenhum dos autores até agora apresentados, a distinção entre o nível lógico e o nível metafísico de tratamento das categorias. Com efeito, há para o Doutor Subtil um tratamento dúplice das categorias. Simão de Faversham e Raul, o Bretão haviam considerado que a ciência dos predicamentos é uma ciência quia na medida em que não há uma definição do seu sujeito nem é possível retirar dele um conjunto de princípios primeiros. Duns Escoto afirma que existe, pelo contrário, uma ciência propter quid dos predicamentos com um sujeito unívoco. Enquanto conceitos de segunda intenção, os predicamentos constituem uma parte integrante da lógica e são alvo de uma ciência propter quid, que parte de princípios primeiros e deduz silogisticamente verdades a partir desses princípios. Enquanto géneros generalíssimos do ente, não podem ser justificados nem descritos a partir do seu tratamento como conceitos, pois isso quereria dizer que há uma relação de dependência entre um nível e outro. Dado que é acidental a um ente real que esta seja pensado através de um conceito, as determinações conceptuais dos predicamentos devem ser consideradas

304 Cf. as introduções a Ioannes Duns Scotus, Quaestiones in librum Porphyrii Isagoge et Quaestiones super Praedicamenta Aristotelis, ed. R. Andrews et al. (B. Ioannis Duns Scoti Opera Philosophica, vol. I), The Franciscan Institute, Nova Iorque 1999; Ioannes Duns Scotus, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis. Libri I-V, ed. R. Andrews et al. (B. Ioannis Duns Scoti Opera Philosophica, vol. III), The Franciscan Institute, Nova Iorque 1997. Sobre as categorias em Duns Escoto, cf. John Duns Scotus, Questions on Aristotle’s Categories, trad. Lloyd A. Newton, The Catholic University of America Press, Washington D. C. 2014, Introduction; G. Pini, Categories and logic in Duns Scotus: an interpretation of Aristotle's Categories in the late thirteenth century, Brill, Leida – Boston 2002. Cf. também o debate entre Todd Bates e Giorgio Pini em torno da relação entre lógica e metafísica no pensamento de Duns Escoto: Todd Bates, «Fine-tuning Pini’s Reading of Scotus’s Categories Commentary», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 259-275; Giorgio Pini, «How is Scotus’s Logic Related to His Metaphysics», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 277-294. Todd Bates considerava excessivo interpretar Escoto como alguém que negue completamente o isomorfismo entre o nível lógico e o nível metafísico do tratamento das categorias. Existe, pelo menos, uma entidade comum distinta na coisa que corresponde a cada um dos nossos conceitos lógicos genéricos e específicos. Giorgio Pini argumenta que a leitura de Bates é “formalística”, isto é, aplica a noção de distinção formal e formalitas a este contexto lógico. Esta leitura seria errada na medida em que Escoto separaria totalmente os dois domínios. 172 acidentais aos entes reais. Não se coloca a hipótese levantada por Teodorico de haver entes de intenção primeira causados pela atividade do intelecto. Todavia, não quer isso dizer para Escoto que não se possa estabelecer a identidade e até a suficiência dos predicamentos aristotélicos. Pode, mas não através de uma via divisiva. Os géneros generalíssimos do ente distinguem-se de acordo com a diversidade das suas essências, ou naturezas. Duns Escoto trata diretamente do problema da suficiência das categorias em dois comentários por questões a Aristóteles: Quaestiones super Praedicamenta Aristotelis (c. 1295), questão 11, e Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis, livro V, questões 5-6305. Para podermos ir ao encontro da sua crítica, antes de nos debruçarmos sobre estes textos, comecemos por dar conta do tratamento dúplice das categorias nas primeiras três questões do seu comentário às Categorias: Por isso pode dizer-se que aqui são considerados os dez predicamentos enquanto se lhes atribui algo causado pela razão, pois de outro modo não podem ser considerados pelo lógico. E deste modo não têm apenas unidade de analogia, mas também de univocação; e deste modo, o unívoco neles é algo intencional, que é aqui o sujeito primeiro. Este pode denominar-se “predicamento” ou “generalíssimo”, pois todas as propriedades que aqui se determinam por si destes, determinam-se deles enquanto têm a razão de generalíssimo ou predicamento306. Enquanto sujeito de uma das partes integrais da ciência da lógica, os predicamentos são unificados num sujeito primeiro, que dita os seus princípios primeiros enquanto géneros generalíssimos. Por conseguinte, há uma ciência propter quid das categorias com

305 Cf. Ioannes Duns Scotus, Quaestiones super Praedicamenta Aristotelis, q. 11, pp. 343-354; Idem, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis. Libri I-V, lib. V, qq. 5-6, pp. 447-487. Como foi dito, é impossível datar as questões de metafísica como um todo. Cf. a tradução portuguesa destas questões no Anexo 14. 306 «Ideo dici potest quod hic consideratur de decem praedicamentis in quantum eis attribuitur aliquid causatum a ratione, quia aliter non possunt considerari a logico. Et illo modo non habent tantum unitatem analogiae, sed etiam univocationis; et illud univocum istis illo modo est aliquod intentionale, quod est hic primum subiectum. Illud potest nominari ‘praedicamentum’ vel ‘generalissimum’, quia omnes proprietates quae per se determinantur hic de istis, determinantur de eis in quantum habent rationem generalissimi vel praedicamenti.» Idem, Quaestiones super Praedicamenta Aristotelis, q. 2, n. 19, p. 262. 173 um sujeito unívoco, isto é, com um sujeito que se diz sempre da mesma maneira de tudo aquilo de que é predicado. O sujeito da ciência dos predicamentos é, precisamente, o “predicamento”, pois contém os primeiros princípios comuns aos diferentes predicamentos. Contudo, quer o sujeito “predicamento”, quer os vários predicamentos assim abordados, têm uma unidade que lhes é conferida pela razão, são intencionais, e apenas secundariamente e por acidente consideram aquilo que o metafísico considera por si. Os predicamentos são tratados logicamente enquanto algo intencional lhes é aplicado, e não enquanto entes em si. Na questão 3 do comentário às Categorias, Escoto vai exemplificar alguns dos predicados intencionais aplicáveis univocamente a qualquer predicamento: todos são géneros, todos são predicados de várias coisas diferentes na espécie, etc. Por isso, defenderá Escoto que «toda a diversidade entre coisas de primeira intenção não impede que elas possam ser concebidas pelo intelecto pelo mesmo modo de conceber307». Em consonância com estas questões iniciais, na questão 11, ao perguntar- se se existem apenas dez géneros generalíssimos, dirá duas coisas diferentes, conforme se trate do lógico ou do metafísico. Este ponto é fundamental, porque aponta para as consequências da quebra do isomorfismo entre modos de predicar e modos de ser: Então está visto que o lógico, ao considerar por si as intenções e o número dos generalíssimos apenas sob essa razão – a saber, pela qual se lhes pode aplicar esta intenção, “generalíssimo” –, deveria dizer que há mais generalíssimos do que os dez, pois as coisas intencionais (intentionalia) são mais do que estes, às quais, enquanto são inteligidas, se pode atribuir uma intenção; embora o metafísico, ao considerar o ente enquanto ente, diria que apenas existem dez. (…) Deve dizer-se que apenas existem dez generalíssimos das coisas, dos quais a distinção não é assumida devido a algo lógico apenas, mas devido às próprias essências. Com efeito, a própria intenção do generalíssimo é variada em

307 «(…) omnis diversitas in rebus primae intentionis inter se non impedit ipsas posse concipi ab intellectu per eundem modum concipiendi.» Ibidem, q. 3, n. 8, p. 269. Embora na questão seguinte Escoto diga que “ente” é equívoco para o lógico e análogo para o metafísico, alguns anos mais tarde, nas várias versões dos comentários às Sentenças, utilizará a mesma estratégia da univocidade lógica para o sujeito da metafísica, o ente enquanto ente. 174

número apenas nestas. Daí que quanto à dificuldade, ela é mais metafísica do que lógica308. Escoto antes argumentara que há mais objetos intencionais que formam uma estrutura de dependência lógica, tais como as privações, os figmentos e os não-entes, pelo que, sob o ponto de vista do lógico, também tem de haver um generalíssimo para cada um deles309. Se os predicamentos se distinguem de acordo com modos de conceber, ou a partir dos seus caracteres intencionais, então a lista deve ser expandida. Simultaneamente, nem sequer poderiam ser considerados géneros generalíssimos, pois têm um género comum a todas eles, isto é, o género “predicamento”, ou “generalíssimo”. Em suma, sob o ponto de vista lógico, há uma categoria das categorias, ou seja, não há uma diversidade primária e irredutível entre elas. A diversidade entre elas dá-se por critérios metafísicos, não por critérios lógicos. Estabelecida a cisão, estamos prontos para compreender a sua crítica aos vários projetos de derivação das categorias a partir de modos de predicar. Nas questões sobre a Metafísica, livro V, questão 5-6, depois de fazer um levantamento exaustivo de perguntas sobre várias possibilidades de redução e de ampliação da lista aristotélica das categorias, Escoto cita a mesma passagem do livro V da Metafísica que fora exposta por Tomás, na lição 9 da sua expositio, sobre as divisões do ente310. Perante a afirmação aristotélica de que o ente em si se divide em dez, o Doutor Subtil considera que «se apenas diferem segundo o modo de predicar, seriam apenas dez coisas diversas pela razão311». Um pouco mais à frente, os parágrafos 56 a 72 contêm uma crítica à derivação dos predicamentos a partir de modos de predicar – muito provavelmente tendo em vista a própria derivação

308 «Tunc videtur quod logicus, considerans per se intentiones et numerum generalissimorum tantum sub hac ratione – scilicet qua eis haec intentio ‘gneralissimum’ possit applicari –, deberet dicere plura esse generalissima quam decem, quia plura istis sunt intentionalia quibus, in quantum intelliguntur, potest intentio attribui; licet metaphysicus, considerans ens in quantum ens, diceret ea tantum esse decem. (…) / Dicendum quod tantum sunt decem generalissima rerum, quorum distinctio non sumitur penes aliquid logicum tantum, sed penes ipsas essentias. Ipsa enim intentio generalissimi est tantum variata numero in istis. Unde quoad illud quod difficultatis est, magis metaphysica quam logica.» Ibidem, q. 11, nn. 24 e 26, p. 20. 309 Cf. Ibidem, q. 11, nn. 15-24, pp. 347-350. 310 Cf. Aristóteles, Metafísica, liv. V, cap. 7, 1017a-1017b. 311 «Sed si tantum differunt secundum modum praedicandi, essent solum decem diversa ratione.» Ioannes Dunsc Scotus, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis, lib. V, qq. 5-6, n. 37, p. 455. 175 tomasiana –, seguindo-se-lhe um texto interpolado entre os parágrafos 73 e 80, possivelmente um aditamento posterior à primeira redação da questão, onde se criticam as viae divisivae para demonstrar a suficiência dos predicamentos. Escoto assume como mutuamente exclusivas a distinção dos predicamentos pela sua essência e a distinção dos predicamentos em virtude de diversos modos de predicar. Deve-se isto à distinção radical entre intenções primeiras e intenções segundas, sendo que as segundas não dão a conhecer nada das primeiras enquanto tais, na medida em que, como vimos, uma intenção segunda tem uma relação acidental com a primeira. No terceiro de três argumentos que tece, Escoto distingue ser enquanto cópula e ser enquanto predicado, mostrando que não coincidem312. Mas ainda que se assumisse esse paralelismo, Escoto tem outros dois argumentos contra a proposta de uma derivação. O primeiro deles é semelhante ao que encontrámos em Raul, o Bretão313: só há dois modos de predicar primários, a saber, in quid e in quale. A predicação in quid dá-se quando o predicado diz a essência ou parte da essência do sujeito. Um predicado in quid é predicado per modum subsistentis. A predicação in quale dá-se quando o predicado faz uma posterior determinação de uma essência. Esta divide-se em duas, a saber, in quale quid (ou in quale substantiale) e in quale accidentale. No primeiro caso, predica-se uma posterior determinação essencial, como por exemplo uma diferença específica. No segundo, predica-se uma determinação acidental. A predicação in quale faz-se per modum denominantis, ou seja, denominativamente, por relação com um nome pelo qual algo é denominado. Por exemplo, ao dizer “O homem é um animal”, “animal” é predicado in quid; ao dizer “o homem é um animal racional”, “racional” é predicado in quale quid, pois é uma determinação essencial denominada a partir de “racionalidade”; e ao dizer “o homem é alto”, “alto” é predicado in quale accidentale, pois é uma determinação acidental denominada a partir de “altura”. Qualquer uma das categorias pode ser predicada in quid e in quale314. O segundo argumento dita que só há quatro tipos de predicado – género, espécie ou definição, propriedade (proprium) e acidente – e cinco universais – género, espécie,

312 Cf. Ibidem, n. 65, p. 462. 313 Cf., infra, 3.1.3. 314 Cf. Ibidem, n. 60 e 69, pp. 461 e 463. 176 diferença, propriedade (proprium) e acidente. Os quatro tipos de predicados e os cinco universais são retirados, respetivamente, dos Tópicos de Aristóteles e da Isagoge de Porfírio315. Evidentemente, não são suficientes em número para perfazerem os dez. Muito mais importante do que isso, um predicado não sofre variação pelo facto de ser uma intenção genérica, ou específica, ou outra, pois isso é uma propriedade que lhe é atribuída pelo intelecto enquanto o compara ou compõe com outros predicados316. Repete-se de outra maneira a defesa da diversidade radical entre intenções primeiras e intenções segundas. Por fim, no texto interpolado ou aditamento sobre as vias divisivas, Escoto argumenta que elas pecam duplamente: Em primeiro lugar, porque mostram o oposto do que é proposto, a saber, que a divisão do ente naqueles dez não é primeira. Se, com efeito, se fizer [a divisão] em ente por si e ente não por si, e depois um dos membros se subdividir, ou ambos: ou qualquer divisão será apenas do nome equívoco nas coisas equivocadas, o que não prova nada, pois os nomes são arbitrários; ou algum destes dez será um conceito mais comum e imediato de ente, e assim o ente não se divide imediatamente em dez. (…) Em segundo lugar, porque todas aquelas vias divisivas não provam. Seria necessário, na verdade, provar que o dividido se divide assim, e precisamente assim, e isto quanto ao proposto, a saber, que aqueles em que se divide constituam generalíssimos317.

315 Cf. Ibidem, n. 61, p. 461. 316 «Probatio assumpti: quia ‘genus’ secundum eandem rationem dicitur de substantia et qualitate etc. Similiter ‘animal’ secundum se non variatur propter intentionem generis vel speciei, quae sibi attribuitur ab intellectu.» [Prova da assunção: porque ‘género’ segundo a mesma razão diz-se da substância e da qualidade, etc.. De um modo semelhante, ‘animal’ em si não sofre variação devido a uma intenção de género ou de espécie, que lhe é atribuída pelo intelecto]. Ibidem, n. 63, p. 461. 317 «Primo, quia ostendunt oppositum propositi, scilicet quod divisio entis in haec decem non sit prima. Si enim prius fiat in ens per se et in ens non per se, et ultra unum membrum subdividatur vel ambo: aut quaelibet divisio erit tantum nominis aequivoci in aequivocata, quod nihil est probare – quia nomina sunt ad placitum; aut aliquo istorum decem erit conceptus communior immediatior enti, et ita ens non immediate dividitur in decem. (…) / Secundo, quia omnes illae viae divisivae non probant. Oportet enim probare quod divisum sic dividitur, et praecise sic, et hoc ad propositum, scilicet quod dividentia constituant generalissima.» Ibidem, nn. 74-75, p. 464. 177

Deste modo, Duns Escoto crê que seria preciso provar exatamente porque é que determinada divisão (seja ela qual for) é a divisão certa. Derivar significa, à partida, que se substitui aquilo que é primário. Por isso, as categorias deixam de ser categorias, quer porque estão compreendidas em algo mais comum, unívoco a todas elas, quer porque, a haver esse comum, ele não poderia ter divisões imediatas. É inegável a semelhança entre a abordagem escotiana e a de Avicena. Mas tal como discutimos brevemente em 1.3., não nos foi possível descobrir se, e de que modo, Escoto teria algum tipo de acesso, ainda que mediado por algum autor, a doutrinas de Avicena que não se encontravam traduzidas para o latim. Tal como Olivi, cita a passagem do livro II da Sufficientia de Avicena que trata da aplicação das categorias ao movimento. Dessa passagem, retira-se apenas que Avicena desconfiava que houvesse alguma razão suficiente para provar que as categorias são dez. Deixamos, por conseguinte, a questão em aberto. O resto da questão 5-6 trata de estabelecer que os dez predicamentos se distinguem realmente, isto é, essencialmente, e de responder a todas as possíveis ampliações e restrições à lista aristotélica. Esta discussão inclui cada um dos predicamentos: que a quantidade se distingue da substância corpórea (nn. 83-89); que a qualidade não é o mesmo que a substância (n. 90); que a relação é diferente do fundamento da relação (nn. 91-92); que a ação e a paixão diferem da relação (nn. 93 e 97); que o onde não é relação nem lugar (nn. 94-95 e 98-100); que o quando difere da relação e do tempo (n. 96); que a posição se distingue da relação e do onde (nn. 101-102); e que o hábito não é uma relação (n. 103). Veremos em Pedro de Tomás (? – 1340) desdobramentos da sua doutrina segundo a qual os predicamentos se distinguem essencialmente uns dos outros.

Encerramos assim este subcapítulo, cujo objetivo era dar conta do aparecimento, na passagem do século XIII para o século XIV, de doutrinas das categorias que, de certo modo, colocam na boca de cena a questão da intencionalidade entre o discursivo e o real. A par dela, a questão da distinção (real, intencional, de razão) é assumida como fundamental.

178

3.3. Excurso: As categorias nos Tractatus (ou Summulae logicales) de um certo Pedro Hispano

Há uma outra linha de investigação que ainda não foi explorada. Decidimos deixá- la para o fim deste capítulo devido à impossibilidade de uma datação e contextualização corretas. Não é apenas nos comentários a Aristóteles e nas obras teológicas que a questão da suficiência das categorias é trabalhada. O manual de lógica com maior divulgação na Idade Média contém, ao contrário do que era habitual, um tratado dedicado às Categorias de Aristóteles. Referimo-nos aos Tractatus, ou Summulae logicales, de (um certo) Pedro Hispano. Têm vindo a ser propostas várias possibilidades de autoria e datação deste texto tão influente, posto que é cada vez mais insustentável a visão tradicional segundo a qual o autor dos Tractatus seria o papa João XXI. Esta visão foi defendida por Martin Grabmann, Manuel Alonso, Lambert Marie de Rijk, entre outros. José Meirinhos, que fez a mais completa recolha crítica de fontes e opiniões sobre a questão318, mostrou que, nas fontes mais antigas acerca do papa João XXI, apenas existe uma, a saber, um texto do notário Ricobaldo de Ferrara (1246 – c. 1320), que associa o papa à produção dos Tractatus319. Na verdade, são as monografias de Tobias Köhler (1760) e Richard Stapper

318 A principal obra em que José Meirinhos resume o estado da questão é a seguinte: José Francisco Preto Meirinhos, Pedro Hispano (séc. XIII), vol. 2: et multa scripsit, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto 2002. O primeiro volume é um longo catálogo de manuscritos atribuídos a Pedro Hispano, entretanto publicado separadamente: Idem, Bibliotheca Manuscripta Petri Hispani, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2011. Antes desta, Meirinhos já se debruçara sobre a questão em Idem, «Petrus Hispanus Portugalensis? Elementos para uma diferenciação de autores», in Revista Española de Filosofía Medieval, 3 (1996), pp. 51-76. Cf. ainda Idem, «Avatares da antiga atribuição de obras a Pedro Hispano / João XXI: I – os séculos XIII-XIV», in Revista Portuguesa da História do Livro e da Edição, ano XI, 23 (2009), pp. 455-510; «…II – os séculos XV-XIX», in Ibidem, ano XII, 24 (2009), pp. 437-501; José Meirinhos, «Petrus Hispanus», in T.F. Glick – S.J. Livesey – F. Wallis (dir.), Medieval Science, Technology and Medicine: An Encyclopedia, (Routledge Series of Encyclopedias of the Middle Ages) Routledge, New York – London 2005, pp. 388-392. 319 Cf. Ricobaldo de Ferrara, Pomarium Ravennatis Ecclesiae sive Historia universalis ab anno circiter DCC usque ad annum MCCXCVII, ed. Iohannes Georgius Echardus, apud Ludovico Antonio Muratori, Rerum Italicarum Scriptores, tomo IX, Milão 1726, col. 139-140 e 181. Apesar deste testemunho, a frase «Cui nomen fuit Magister Petrus Hispanus qui Tractatus in logica composuit» pode ser muito bem uma inserção mais tardia, muito embora Ludovico Muratori não aponte nada em aparato crítico que indique isso. 179

(1898) sobre Pedro Julião, o papa João XXI, que consolidam uma tendência historiográfica antiga de unificar todas as obras (médicas, lógicas, alquímicas, etc.) atribuídas a um Petrus Hispanus numa única personagem320. A prudência metodológica leva a que as hipóteses que têm vindo a ser propostas sobre vários outros possíveis autores dos Tractatus não possam ser confirmadas, como bem mostrou o dominicano Simon Tugwell, em resposta às hipóteses de Ángel D’Ors321. Independentemente de quem seja o autor, tem-se vindo a comprovar que a data da produção e primeira difusão dos Tractatus é bastante mais tardia do que aquela que havia sido proposta pelo editor crítico, De Rijk322, a saber, 1230. De facto, os primeiros comentários e glosas – a saber, de um mestre Simão (por vezes associado a Simão de Faversham), de dois Robertus Anglicus diversos e de um Guilherme Arnaud (que inicialmente havia sido confundido com um mestre que ensinou em Toulouse, entre 1235 e 1244) – são, na melhor das hipóteses, da segunda metade da década de 1270, possivelmente já da década de 1280. Além disso, a entrada dos Tractatus como livro de texto nas universidades do continente europeu só se dá no século XIV, pela mão de João Buridano. A sua utilização como manual de lógica começou por ser pré-universitária e teve a primeira difusão em escolas provinciais de ordens religiosas. O primeiro Capítulo provincial de uma ordem religiosa onde se dá conta do ensino da lógica através deste

O códice mais antigo que utilizou para editar Ricobaldo é do século XIV: Modena, Biblioteca Estense, lat. 480. 320 Cf. Johann Tobias Köhler, Vollständige Nachricht von Pabst Johann XXI, Viktorin Bossiegel, Gotinga 1760; Richard Stapper, Papst Johannes XXI. Eine Monographie, Kirchengeschichtliche Studien IV/4, Münster i. W. 1898. 321 Cf. Ángel D’Ors, «Petrus Hispanus O.P., Auctor Summularum», in Vivarium, 35 (1, 1997), pp. 21-71; Idem, «…(II): Further Documents and Problems», in Vivarium, 39 (2, 2001), pp. 209-254; Idem, «…(III). “Petrus Alfonsi” or “Petrus Ferrandi”?», in Vivarium, 41 (2, 2003), pp. 249-303. As críticas de Tugwell, dominicano conhecedor das fontes da sua ordem, às hipóteses lançadas por D’Ors de um Pedro Hispano dominicano encontram-se em dois artigos: Simon Tugwell O. P., «Petrus Hispanus: Comments on Some Proposed Identifications», in Vivarium, 37 (2, 1999), pp. 102-112; Idem, «Auctor Summularum, Petrus Hispanus O. P. Stellensis?», in Archivum Fratrum Praedicatorum, 76 (2006), pp. 103-115. 322 Cf. a introdução de Petrus Hispanus Portugalensis, Tractatus called afterwards Summule logicales, ed. crítica e introd. Lambert Marie de Rijk, Van Gorcum, Assen 1972, pp. XLIII-LX. Cf. também a introdução da tradução inglesa: Petrus Hispanus (=Peter of Spain), Summaries of logic, text, translation, introduction and notes Brian P. Copenhaver, with Calvin Normore and Terence Parsons, Oxford University Press, Oxford 2014. 180 manual data de 1279323. Infelizmente, o nosso contributo para a questão da datação e da autoria será nulo. No âmbito desta investigação, interessa-nos somente confirmar algumas das características da propagação dos manuscritos que já haviam sido mostradas por De Rijk no que diz respeito ao tratado sobre as categorias. Estes reparos servem de preâmbulo para o estudo de dois dos comentadores mais influentes deste texto em 4.2. Efetivamente, o tratado dedicado às categorias – tido por De Rijk como o terceiro tratado, precedido por um tratado sobre a Isagoge de Porfírio e sucedido por um tratado sobre os silogismos, que resume, a partir de Boécio, os conteúdos pertencentes aos Analíticos Anteriores – não tem nada de original. É decalcado do comentário de Boécio, por vezes copiando partes, por vezes resumindo ou omitindo discussões mais amplas. Assim sendo, não se encontra nele qualquer discussão sobre a suficiência das categorias. Esta surgirá não nos Tractatus em si, mas em alguns dos seus (mais de 200) comentadores. Todavia, antes de nos próximos capítulos nos debruçarmos sobre dois dos comentadores que usaram este pequeno tratado para colocar a questão da suficiência das categorias, há um conjunto de factos, verificáveis a partir da tradição manuscrita, que é conveniente tomar nota, dado o seu valor filosófico. Através da preparação da edição diplomática de um dos melhores testemunhos manuscritos deste texto – o manuscrito com a cota cod. 2 (85), do Arxiu Historic Arxidiocesà de Tarragona324, que durante algum tempo se julgava perdido –, pudemos confirmar algumas das perplexidades que já haviam sido apontadas por De Rijk: o tratado sobre as categorias, neste testemunho, encontra-se não em terceiro lugar, mas em quinto, a saber, junto ao tratado sobre a suposição. E não é o único caso. Dos manuscritos utilizados por De Rijk na sua edição crítica, três deles (Milão, Ambrosiana H 64 Inf.; Roma, Vat. Reg. Lat. 1761; e Córdova, Capit. 158) contêm esta ordem. Há ainda outros que também colocam o tratado sobre as categorias junto aos tratados sobre a suposição e as propriedades dos termos, mas ordenados de outra maneira,

323 Cf. Alfonso Maierú, University Training in Medieval Europe, Brill, Leida – Nova Iorque – Colónia 1994, p. 12. 324 Esta edição diplomática foi publicada em: https://scta.lombardpress.org/. 181 como é o caso do manuscrito de Pádua, Bib. Univ. 647325. Esta mudança de ordem não é filosoficamente neutra. De facto, ela indica, pelo menos parcialmente, de que modo as categorias eram integradas num panorama mais geral. Referimo-nos à tentativa de acomodar duas facetas da lógica que, na verdade, nunca foram inteiramente integradas uma na outra, a saber, a lógica de cariz aristotélico- boeciano e a lógica das propriedades dos termos (respetivamente, logica antiquorum e logica modernorum). Veremos que, em comentadores dos Tractatus como João Buridano, há uma ligação, nem sempre evidente, nem sempre no mesmo sentido, entre a teorização da ordem do tratado sobre as categorias dentro dos vários tratados do manual e a teorização do problema da suficiência das categorias. Buridano considera, de facto, que o tratado sobre as categorias deveria ser colocado junto ao tratado sobre a suposição, uma vez que um e outro dizem respeito aos termos. Este assunto será desenvolvido em 4.2.

325 Cf. a introdução de Petrus Hispanus Portugalensis, Tractatus, pp. XLVI-L. 182

Capítulo 4. Século XIV: intencionalidade e distinção

First we must recognize that the term moderni, while continuing to refer to “contemporary authors” throughout the fourteenth century, shifted meaning in a way that allowed it to acquire ideological content. At the beginning of the fourteenth century “modernus” was a term for an exact contemporary, and so it was used by Ockham. Inasmuch as a writer rarely mentioned contemporary opinion except to attack it, the term had a slightly negative connotation. Yet as decades passed, the moderni of one generation did not become antiqui for the next. Adam Wodeham, writing in the early 1330s, considered Scotus (lecturing by 1300) to be an “antiquus,” while Richard Campsale and Ockham (academically active c. 1310 – 1320) were "moderni." As one moves further into the fourteenth century, both at Paris and at Oxford, the dividing line between antiqui and moderni does not move forward but remains fixed, roughly around 1310. (…) Fixing the dividing line between ancient and modern doctors eventually allowed those terms to acquire new meaning based on what fourteenth-century writers had in common over against those of the twelfth and thirteenth. William Courtenay326

O século XIV é difícil de ser exposto de um modo que dê conta de todas as suas facetas por várias razões. Em primeiro lugar, proliferam autores, novas universidades, novos contextos. Em suma, uma descentralização do nosso foco em autores ligados quase sempre à Universidade de Paris. Em segundo, muitos destes autores estão pouco estudados, ou muito estudados em determinados temas e não noutros. Em terceiro, ao passo que no século XV se torna mais clara a existência de diversas “escolas” de pensamento – tomistas, albertistas, escotistas, etc. –, no século XIV, em especial na primeira metade, é visível que cada autor é um autor, por assim dizer. Palavras como nominalismo, conceptualismo ou realismo, por vezes, obscurecem mais do que iluminam.

326 William Courtenay, «Antiqui and Moderni in Late Medieval Thought», in Journal of the History of Ideas, 48.1 (1987), 3-10, cit. pp. 4-5. 183

Deve-se advertir ainda que é bastante arbitrário circunscrever os capítulos por séculos, particularmente no que toca ao século XIV, posto que há uma série de acontecimentos políticos e sociais – apenas para enumerar os mais conhecidos, o chamado cativeiro de Avinhão em 1309, o subsequente Grande Cisma do Ocidente (1378 – 1417) e a Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), para não falar da Peste Negra – que tiveram, evidentemente, influência na produção intelectual e na transmissão de textos e autoridades. Contudo, talvez se pudesse dizer isto de qualquer outra divisão temporal que se fizesse… Pesando tudo isto, talvez mais do que nos capítulos anteriores, há decerto arbitrariedade no leque de autores e na circunscrição temporal a partir dos quais escolhemos edificar o presente capítulo. Ainda assim, ensaiando uma justificação, e após uma análise cuidada, embora sempre incompleta, das fontes para a discussão da suficiência das categorias no século XIV, há um conjunto de elementos unificadores que devem ser tomados em conta. Em primeiro lugar, retomando o teor da crítica às sufficientiae em Olivi e Duns Escoto, dá-se uma decadência deste procedimento no século XIV. Autores fiéis a Escoto, como António André (Antonius Andreas, ? – antes de 1333)327, repetem, resumem e sistematizam escolarmente as suas ideias e críticas, assumindo com particular ênfase a tese de que se trata mais de uma questão metafísica do que uma questão lógica. Outros, num gesto, porventura, de respeito pela tradição que lhes antecede, retomam uma ou várias das sufficientiae expostas no capítulo anterior e, simultaneamente, estão cientes de que se trata de um procedimento aproximativo e de parco valor. É este o caso de Gualter Burley (c. 1275 – 1344), em dois dos seus três comentários às Categorias328, ou de João de Janduno (c. 1285 – 1328), no seu comentário à Metafísica. João de Janduno chega até a propor uma nova sufficientia de sua autoria para de seguida afirmar que as sufficientiae não têm validade, porque a divisão das categorias diretamente em dez é primária, e as divisões por modos de ser e de predicar

327 Sobre António André, o trabalho biobibliográfico mais completo e atualizado é o seguinte: Jaume Mensa i Valls, Antoni Andreu, mestre escotista. Balanç d’un segle d’estudis, Institut d’Estudis Catalans – Facultat de Teologia de Catalunya, Barcelona 2017. 328 Em 4.2., teremos a oportunidade de expô-los. 184 não329. A par do ocaso das sufficientiae, desenvolvem-se outros modos de abordar o problema, modos estes que, na verdade, também já haviam despontado no século anterior. Estes modos pretendem responder a problemas filosóficos que, de certo modo, adquirem autonomia, pelo menos de um ponto de vista literário. São eles dois, os quais se influenciam mutuamente. O primeiro é o problema da distinção, em particular, o da possibilidade de algum tipo de distinção intermédia entre a distinção real e a distinção de razão, ou de uma gradação de distinções reais. Este problema já estava em gestação em autores como Henrique de Gante e Duns Escoto. E, de facto, é a partir de autores influenciados por Duns Escoto, a saber, Francisco de Meyronnes (Franciscus de Mayronis, 1288? – 1328?) e Pedro de Tomás (Petrus Thomae), que se origina uma tradição de escrita de tratados autónomos que versam apenas sobre os vários modos da distinção. Desde o anónimo Tractatus formalitatum, passando por autores como Estêvão Brulefer (Stephanus Burlifer, Étienne Brulefer, c. 1460? – c. 1500?) ou António Trombetta (1436 – 1517), até chegarmos à Distinção VII das Disputationes Metaphysicae de Francisco Suárez330, o problema da distinção (colocado nestes moldes) vem para ficar. É deste corpus de obras autónomas sobre a distinção que virá um dos textos que trataremos neste capítulo, a saber, o Tractatus brevis de modis distinctionum (c. 1320), de Pedro de Tomás, o qual, numa das suas várias versões, chegou a ter como título De distinctione praedicamentorum. O outro problema fundamental que se autonomiza literariamente é o da importância

329 «Ratio illa diuisio entis est prima quae non antecedit alia ex natura rei, quia primum est ante quod nihil est; sed diuisionem entis in 10 praedicamenta non antecedit alia, quia si alia praecederet, haec esset illa quae data est iam de sufficientia praedicamentorum, quae datur per modos essendi et praedicandi; sed illa non est prior, quia enti accidunt modi essendi et praedicandi. Ergo illa diuisio in 10 praedicamenta est prior ex natura rei; unde licet multae diuisiones dentur de sufficientia praedicamentorum, non tamen multum valent, neque sunt primae.» [A razão de ser primária a divisão do ente à qual não antecede outra a partir da natureza da coisa é: porque o primeiro é aquele antes do qual nada existe; mas à divisão do ente em dez predicamentos não antecede outra, pois se outra a precedesse, essa seria uma daquelas que foram já dadas na suficiência dos predicamentos, a qual se dá por modos de ser e de predicar; mas ela não é anterior, porque os modos de ser e de predicar são acidentais ao ente. Logo, aquela divisão em dez predicamentos é anterior a partir da natureza da coisa; daí que, embora sejam dadas muitas divisões na suficiência dos predicamentos, contudo não têm muito valor nem são primárias.] Ioannes de Ianduno, Acutissimae Quaestiones in duodecim libros Metaphysicae, apud Hieronymus Scottum, Veneza 1560, lib. V, q. 13, cc. 315-316. 330 Ou mesmo até mais longe: cf. infra, notas 429 e 430. 185 de uma análise dos diversos níveis de intencionalidade para que se compreenda de que maneira o pensamento e o discurso científico versam sobre o real. Esta problematização começa a produzir tratados autónomos acerca das intenções, tais como o já aludido tratado de Herveu de Nédellec, ou ainda o De intentionibus (c. 1328 – 1334) do franciscano Giraldo Odon (Guiral Ot, Giraldus Odonis, ? – 1349)331. Não só surgem tratados sobre as intenções, como também surgem outros sobre o ente de razão332 e sobre o ser inteligível333. Além destes tratados autónomos, é frequente encontrar vastas discussões sobre a noção de intenção nos comentários teológicos às Sentenças de Pedro Lombardo, normalmente na distinção 23 do livro I, que trata de questionar se o termo “Pessoa” em Deus significa uma essência ou uma relação. Note-se, novamente, que é em questões relacionadas com a Trindade que muitas vezes surgem inovações filosóficas e conceptuais. Regressando à citação inicial de Courtenay sobre o modo como o termo moderni adquire novas conotações ideológicas, deve ser apontado que se começa a instituir, nalguns contextos, um modo “moderno” de responder a problemas filosóficos. Consiste este modo em utilizar o vocabulário da suposição e das propriedades dos termos para responder a problemas que se encontram fora do âmbito estrito da lógica. Por conseguinte, começaremos por debruçar-nos em quatro autores das primeiras décadas do século XIV cuja doutrina acerca do número e da suficiência das categorias está intimamente ligada ao modo como articulam os problemas da intencionalidade e da distinção. São eles Herveu de Nédellec, Pedro Auriol, Pedro de Tomás e Guilherme de

331 Giraldus Odonis, Opera Philosophica. Vol II: De intentionibus, ed. Lambert Marie De Rijk, Brill, Leida – Boston 2005. Para uma visão geral sobre as teorias da intencionalidade na Idade Média tardia, cf. Robert Pasnau, Theories of cognition in the later Middle Ages, Cambridge University Press, Cambridge 1997, especialmente parte 1, caps. 1 e 2. 332 Cf. Fabrizio Amerini – Christian Rode, «Franciscus de Prato's Tractatus de Ente Rationis. A Critical Edition with a Historico-Philosophical Introduction», in Archives d'histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge, 76 (1, 2009) 261-312. 333 Guillelmus Alnwick, Quaestiones disputatae de esse intelligibili et de quodlibet, ed. Athanasius Ledoux, O.F.M. (Bibliotheca Franciscana Scholastica Medii Aevi, tomo 10), ex Typographia Colegii St. Bonaventurae, Quaracchi 1937; Pedro de Tomás (=Petrus Thomae), Quaestiones de esse intelligibili, ed. Garrett R. Smith, Leuven University Press, Lovaina 2015. Não nos debruçaremos aprofundadamente sobre estes textos. Apenas os referimos para estabelecer um pano de fundo, tal como falámos sobre a apropriação da lógica de Avicena e a gramática modista no capítulo anterior. 186

Ockham. Neste último, é patente o uso exaustivo do léxico da logica modernorum para resolver problemas filosóficos. No segundo subcapítulo, ao contrário do que temos vindo a fazer, não pretendemos expor o tema proposto em profundidade, mas sim apresentar uma visão panorâmica de várias linhas de desenvolvimento daquilo que foi teoricamente construído nas primeiras décadas do século XIV. Para o fazer, partiremos de breves esboços de alguns autores selecionados. Em especial, temos a intenção de mostrar a diversidade de respostas aos desafios colocados pelas inovações teóricas de Pedro Auriol e de Guilherme de Ockham. Julgamos assim dar conta da evolução da questão da suficiência das categorias ao longo do século a partir destes dois pilares fundamentais que identificámos: intencionalidade e distinção.

187

4.1. Conformitas, formalitas ou similitudo

Os quatro autores que serão discutidos neste subcapítulo, de uma maneira ou de outra, constroem as suas doutrinas em diálogo, umas vezes direta, outras indiretamente. Este diálogo é particularmente importante no desenvolvimento das obras de Herveu de Nédellec e de Pedro Auriol. Apenas para dar um exemplo, a teoria de Auriol sobre a ação e a paixão, nas distinções 27 e 30 do seu volumoso comentário ao primeiro livro das Sentenças, faz-se a partir da crítica à questão 9 das Quodlibet I de Herveu, o qual, mais tarde, se defende na questão 8 das Quodlibet IV. Auriol, enfim, contra-argumenta novamente na questão 2 das suas Quodlibet334. Para que não nos percamos numa apresentação fragmentada dos textos e das ideias, afigurou-se-nos mais fácil apresentar cada autor separadamente, apontando, porém, as suas dissidências com os restantes.

4.1.1. Herveu de Nédellec (? - 1323)

Começar-se-á por Herveu de Nédellec (Hervaeus Natalis, Hervé Nöel), que na Quodlibet I, questão 9 (1307 – 1308), pergunta «se a operação do intelecto possível produz algo no que diz respeito à distinção dos predicamentos»335. Nascido na segunda metade do século XIII, na Bretanha, ingressou na Ordem dos Pregadores em 1276 e estudou em Paris, no convento de Saint Jacques, entre 1302 e 1307. Nos períodos de 1307 a 1309, e 1316 a 1318, foi mestre regente de teologia. Além de um comentário às Sentenças, escreveu também obras polémicas, sendo de destacar as suas críticas a Durando de Saint-Pourçain (c. 1275 – 1334), em Defensio doctrinae fratris Thomae, e a Henrique de Gante, em De quattuor materiis. São famosas, ainda, as suas volumosas questões quodlibéticas. Enquanto Mestre Geral dos Pregadores, entre 1318 e 1323, ano da sua morte, foi um dos principais promotores da canonização de Tomás de Aquino. No

334 Cf. Lauge O. Nielsen, «Peter Auriol on the Categories of Action and Passion: the Second Question of his Quodlibet», in Kent Emery Jr. – Russell L. Friedman – Andreas Speer (eds.), Philosophy and Theology in the Long Middle Ages. A tribute to Stephen F. Brown, Brill, Leida – Boston 2011, pp. 375-426. 335 Hervaeus Natalis, Quodlibeta Hervei, ed. Georgium Arrivabenum, Veneza 1513, I, q. 9: «Utrum operatio intellectus possibilis faciat aliquid ad distinctionem predicamentorum», ff. 18vb-22vb. 188 entanto, como afirma John P. Doyle, na melhor das hipóteses, Herveu pode ser considerado um “tomista eclético”336. Antes de expormos o texto principal no qual Herveu se debruça sobre a questão da suficiência das categorias, é importante referir o modo como perspetiva a noção fundamental de intenção, na sua famosa obra De secundis intentionibus (c. 1309 – 1316), contrastando-a com algumas doutrinas que tocámos brevemente em 3.2. Efetivamente, Herveu formula um conjunto de distinções sobre a noção de intenção a partir de uma crítica à doutrina de Raul, o Bretão. Como pudemos verificar atrás, era habitual no final do século XIII defender que não só as intenções primeiras, mas também as intenções segundas dizem respeito às coisas, enquanto comparadas ou relacionadas com outras coisas. Seguindo esta linha, Raul afirmava que o lógico trata das categorias enquanto intenções segundas concretas, isto é, trata dos géneros e das espécies não enquanto tais (intenções segundas in abstracto), mas enquanto coisas relacionadas com outras coisas, ou enquanto coisas que se encontram em várias coisas (ut in pluribus)337. Deste modo, a intenção tem quatro sentidos a partir de dois pares conceptuais, a saber, intenção primeira vs. intenção segunda e in abstracto vs. in concreto: • A intenção primeira in abstracto é a cognição primária da coisa (prima cognitio rei), isto é, um ato do intelecto pelo qual ele tende para algo diferente de si mesmo. • A intenção primeira in concreto não é o ato do intelecto, mas a própria coisa enquanto conhecida pelo ato. • A intenção segunda in abstracto é a cognição secundária da coisa (secunda cognitio rei), ou a cognição da coisa na sua disposição para outro (cognitio rei in habitudine ad aliud). • A intenção segunda in concreto é a coisa enquanto conhecida neste modo

336 Cf. John P. Doyle, «Hervaeus Natalis», in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, Springer, Dordrecht 2011, pp. 472-473. Sobre a vida e a obra de Herveu, as notas mais recentes baseiam-se todas em A. de Guimarães, «Hervé Nöel. Étude biographique» in Archivum Fratrum Praedicatorum, 8 (1938) 5–81. 337 O texto onde Raul expõe os quatro sentidos de “intenção” foi editado em Jan Pinborg, «Radulphus Brito’s Sophism on Second Intentions», in Vivarium XIII, 2 (1975) 119-152. Nesse sofisma, pergunta-se, justamente, se as intenções, e quais, pertencem às categorias. 189

secundário, isto é, enquanto relacionada com outras ou enquanto aplicável a várias coisas338. Herveu aponta vários inconvenientes a estas definições. Em primeiro lugar, de acordo com estas definições, as relações reais seriam intenções segundas (in concreto), caso contrário, ter-se-ia que assumir que só existem relações de razão. Se se assumir isso, porém, não se compreende o que é a intenção segunda in concreto. Em segundo lugar, não se pode distinguir as intenções em primeira e segunda de acordo com ordens ou fases da cognição, caso contrário, haveria dois tipos de intenção diversos sobre o ser real de uma mesma coisa. Herveu defende, pelo contrário, que se uma intenção versa sobre o ser real, ela é primeira. Em terceiro lugar, não se compreende qual o fundamento da intenção segunda in abstracto, dado que a coisa real não introduz no ato cognitivo secundário o seu elemento formal, a saber, a disposição para outro339. Assim sendo, o autor dominicano propõe outra divisão das intenções. Há divisões anteriores ao par intenção primeira vs. intenção segunda. A intenção em geral é uma tendência de uma potência da alma para o seu objeto. A que interessa para o presente caso, e que é exposta pormenorizadamente por Herveu, é a que diz respeito à tendência do intelecto. Essa tendência pode ser tomada de dois modos: da parte do que intelige (ex parte intelligentis), ou da parte da coisa inteligida (ex parte rei intellectae). No primeiro modo, a intenção é tomada no sentido daquilo que conduz o intelecto para a cognição de algo, nomeadamente, as espécies inteligíveis e os atos cognitivos340. No segundo modo, o primeiro par conceptual a tomar em atenção é o par in concreto vs. in abstracto, equivalente ao par materialiter vs. formaliter. A intenção da parte da coisa inteligida

338 Cf. Radulphus Brito, Aliquis homo est species, IV, §§ 49-51 in Jan Pinborg, «Radulphus Brito’s Sophism on Second Intentions», pp. 141-143. Cf. o resumo desta posição em Judith Dijs, «Intentions in the First Quarter of the Fourteenth Century: Hervaeus Natalis versus Radulphus Brito» in Stephen F. Brown – Thomas Dewender – Theo Kobush (eds.), Philosophical Debates at Paris in the Early Fourteenth Century, Brill, Leida – Boston 2009, pp. 213-223 (especialmente, p. 216). 339 Cf. Hervaeus Natalis, De secundis intentionibus. Distinctiones I et II, ed. crit. Judith Dijs, Tese de doutoramento, Leiden University, Leida 2012, d. I, q. 2, §§ 52-56, pp. 129-131. 340 Para Herveu, a espécie inteligível, o ato cognitivo, o hábito científico e o verbum mentis são distintos entre si, mas não nos debruçaremos aqui sobre essa questão. Cf. Lambert Marie de Rijk, «On Hervaeus Natalis finding his own way», in Giraldus Odonis, Opera Philosophica, vol. II, pp. 95-112. Esta obra é muito mais do que uma edição do texto de Giraldo Odon. De Rijk faz uma longa exposição do problema da intencionalidade e edita textos relevantes de diversos autores. 190 concreta ou materialmente é aquilo que é inteligido, seja isso o que for. Abstrata ou formalmente, é a disposição (habitudo) da coisa inteligida para o ato de inteligir. Aquilo que é inteligido, por vezes, é um ser real fora da alma, outras, um ser intencional (esse intentionale). Um e outro podem ser tomados essencialmente ou denominativamente. No caso do ser intencional, quando este é tomado essencialmente, é-o da parte do que intelige, ou seja, o ser intencional é essencialmente a intenção no intelecto; denominativamente, é aquilo que subjaz ao conteúdo da intenção (res subiecta intentioni, ou illa quorum sunt intentiones). Para se compreender o que é o ser intencional no intelecto, Herveu faz uso de um novo par, a saber, subiective vs. obiective ou esse subiectivum vs. esse obiectivum, os dois modos do ser intelectual (esse in intellectu). Aquilo que se encontra no intelecto subjetivamente são as espécies, os atos cognitivos e os hábitos científicos, isto é, o intelecto é como um sujeito onde estas coisas ocorrem. O ser objetivo diz respeito ao conteúdo intencional e é o tipo de ser que as intenções in concreto têm no intelecto341. Primeira e segunda intenção, por fim, não se definem pela cognição primária ou secundária da coisa, ou seja, não se definem ex parte intelligentis, mas ex parte rei intellectae. Da parte das coisas inteligidas, umas têm ser real (esse reale) e outras têm ser de razão (esse rationis) do seguinte modo: A intenção primeira que é tomada da parte da coisa inteligida, quanto àquilo que diz concreta e materialmente, não se distingue do ser real, pois aquilo que é inteligido (pelo menos quanto ao primeiro género dos inteligíveis) é muitas vezes uma coisa verdadeira fora da alma, como por exemplo homem, brancura, negridão e semelhantes. Mas aquilo que formalmente é introduzido pela intenção primeira, a saber, a disposição da coisa inteligida para o ato de inteligir, é meramente um ente de razão distinto do ser real, pois tal disposição é uma relação de razão. Também aquilo que é introduzido pela intenção segunda, tanto formalmente (a saber, a dita disposição para o ato de inteligir) como materialmente (a saber, aquelas coisas que são inteligidas secundariamente, como a universalidade, o ser

341 Cf. Hervaeus Natalis, De secundis intentionibus, d. I, q. 1, §§ 14-23, pp. 116-120. 191

abstrato e semelhantes), é dito ente apenas segundo a razão, distinto do ser real342.

Com este pequeno preâmbulo, estamos preparados para compreender a posição do autor dominicano quanto à realidade e à suficiência das categorias aristotélicas. Antes de entrar nos dois artigos da questão, Herveu circunscreve-a melhor, mostrando que aquilo que está em causa é perguntar se as categorias se distinguem umas das outras apenas na ratio intelligendi. Há dois tipos de conhecimento (notitia) no intelecto, a saber, o prático e o especulativo. Enquanto o conhecimento prático é a causa real do seu objeto, o mesmo não ocorre no especulativo, que «não causa nada de real no seu objeto»343.

342 «Intentio etiam prima quae se tenet ex parte rei intellectae quantum ad illud quod concretive et materialiter dicit, non distinguitur contra esse reale, quia illud quod intelligitur (quantum ad primum genus intelligibilium saltem) quandoque res vera est extra animam (ut homo, albedo, nigredo et consimilia). Sed illud quod formaliter importatur per primam intentionem, scilicet habitudo rei intellectae ad actum intelligendi, est mere ens rationis distinctum contra esse reale, quia talis habitudo est relatio rationis. Illud etiam quod importatur per secundam intentionem tam formaliter (scilicet praedicta habitudo ad actum intelligendi) quam materialiter (illa scilicet quae intelliguntur secundario, ut universalitas, esse abstractum et consimilia), dicitur ens tantum secundum rationem distinctum contra esse reale.» Ibidem, § 18, pp. 117- 118. 343 «Alia est notitia speculatiua: et ista nihil realis causat in obiecto suo, sed accipitur transitiue in ordine ad obiectum suum tantum secundum rationem. Vt cum dicitur quod homo intelligit celum, intelligere accipitur ibi transitiue grammatice loquendo in ordine ad celum. Ita etiam rebus ut obiectiue sunt in intellectu speculatiuo conueniunt aliqua secundum rationem intelligendi, sicut esse abstractum vel indeterminatum, sicut quando homo intelligitur separatus a singularibus. Ista abstractio seu separatio non conuenit sibi secundum esse reale, quod habet extra animam, sed prout habet esse obiectiue in intellectu cognoscente eum separatum a singularibus. Et talia dicuntur conuenire rebus secundum rationem, et ex parte intellectus speculatiui, unde de tali operatione intelligitur ista questio. Vnde nihil aliud est querere utrum talis operatio faciat ad distinctionem predicamentorum quam querere vtrum distinctio predicamentorum sit secundum rationem intelligendi tantum.» [Diferente é o conhecimento especulativo: e este não causa nada de real no seu objeto, mas assume-se transitivamente na ordem para o seu objeto, apenas segundo a razão. Por exemplo, quando se diz que o homem intelige o céu, “inteligir” aqui assume- se transitivamente (no sentido gramatical do termo) em ordem ao céu. Assim também às coisas, enquanto se encontram objetivamente no intelecto especulativo, convêm algumas segundo a razão de inteligir (ratio intelligendi), como por exemplo o ser abstrato ou indeterminado, como quando “homem” é inteligido enquanto separado dos singulares. Esta abstração ou separação não lhe convém segundo o ser real que ele tem fora da alma, mas devido ao facto de ter o ser objetivamente no intelecto que o conhece enquanto separado dos singulares. E tais são ditas convir às coisas segundo a razão e da parte do intelecto especulativo, pelo que esta questão é entendida quanto a tal operação. Daí que aquilo que se pergunta não é outra coisa do que isto: se tal operação produz a distinção dos predicamentos, o que é o mesmo que perguntar se a distinção dos predicamentos é apenas segundo a razão de inteligir.] Idem, Quodlibeta Hervei, I, q. 9, f. 18vb. Cf. a tradução integral desta questão no Anexo 15. 192

A partir da circunscrição da questão, Herveu divide-a em dois artigos. No primeiro artigo, trata da coordenação interna de um predicamento. No segundo, que é aquele que mais imediatamente toca o presente trabalho, expõe a distinção dos predicamentos. No entanto, é no primeiro artigo que Herveu discute amplamente a noção escotista de formalitas e lhe contrapõe a de conformitas, como veremos de seguida. De facto, é diferente perguntarmos como se diferenciam entre si, por exemplo, uma substância e uma quantidade, e perguntarmos como, no interior da categoria da substância ou da quantidade, se diferenciam os seus géneros e espécies. Utilizando o exemplo prototípico da árvore de Porfírio, um ser humano particular é uma substância corporal animada racional. Assim, há que perguntar: nele, a substancialidade, a corporalidade, a animalidade e a racionalidade (e até, talvez, aquilo que o diferencia de todos os outros seres humanos) são uma e a mesma coisa? Se sim, significa isso que um ser humano particular pode ser pensado de acordo com diversos conceitos, uns mais genéricos e outros mais específicos? Esses conceitos são fruto de uma operação intelectual? São fundados na realidade? E em que sentido? Herveu começa por apresentar, sem nomear o autor, a célebre posição escotista segundo a qual o género e a diferença que o especifica constituem formalidades (formalitates) diversas344. Resumindo a sua descrição, há autores que defendem que a

344 Sobre a distinção formal nos primeiros autores escotistas, cf. Timothy B. Noone, «Ascoli, Wylton, and Alnwick on Scotus’s Formal Distinction: Taxonomy, Refinement, and Interaction» in S. Brown – T. Dewender – T. Kobush (eds.), Philosophical Debates at Paris in the Early Fourteenth Century, pp. 127- 149. Além de resumir o modo como Escoto foi evoluindo no assunto ao longo da sua vida, Noone mostra que era controverso o estatuto da distinção formal, isto é, não era consensual se a distinção formal era uma distinção real ou não. Quando falarmos de Pedro de Tomás, abordaremos este assunto. No que diz respeito à posição de Escoto, na Lectura, concebe uma diferença a que chama differentia virtualis, que é anterior a uma operação do intelecto, mas que pode ser chamada diferença de razão. Na Ordinatio, afirma explicitamente que não se trata de uma distinção real. É uma distinção virtual e talvez possa ser chamada distinção de razão, se se tomar ratio no sentido de quididade. Nas Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis, confrontando-se com a distinção intencional, postula a possibilidade de vários graus de distinção real (entre duas naturezas ou entre dois supósitos; entre duas naturezas num mesmo supósito; e entre diversas razões perfetivas contidas numa natureza). A sua posição final, que é da Reportatio Parisiensis I-A, é que a distinção formal não é uma distinção real simpliciter, mas é uma distinção real secundum quid, ou distinctio ex natura rei. Cf., por ordem, Ioannes Duns Scotus, Lectura, I, Comissio Scotistica (Opera Omnia, vol. 16), Typis Polyglottis Vaticanis, Cidade do Vaticano 1960, d. 2, p. 2, qq. 1-4; Idem, Ordinatio I, Comissio Scotistica (Opera Omnia, vol. 2), Typis Polyglottis Vaticanis, Cidade do Vaticano 1950, d. 2, p. 2, qq. 1-4, nn. 400-402; Idem, Quaestiones super libros Metaphysicorum 193 diferença acrescenta uma formalidade real ao género345. Assim, a espécie é realmente diferente do género, na medida em que contém formalmente algo que o género não contém, a saber, a diferença. Apresenta três razões a favor desta posição para, de seguida, apresentar as suas cinco razões contra. Por fim, estabelece uma visão alternativa. Os três argumentos favoráveis giram em torno das noções de convenientia e repugnantia. Se duas coisas de espécies diferentes convêm no género e não convêm na diferença que as especifica, isso quer dizer que o género e a diferença têm de ser realmente e formalmente diversos. Essa diversidade não pode ser apenas conceptual, posto que a conveniência genérica não se deve ao conceito em si, mas àquilo que o conceito diz, ou ao objeto do conceito. Em segundo lugar, a duas coisas iguais repugnam as mesmas coisas. Não é esse o caso entre o género e a espécie (nem entre a espécie e o indivíduo). Em terceiro lugar, se o género e a espécie são realmente iguais, então aquilo que conviria à natureza da espécie também conviria à natureza do género. Contudo, a capacidade de rir, no ser humano, não lhe convém em virtude da animalidade, mas em virtude da sua diferença, a saber, a racionalidade346. Antes de responder a estes três argumentos, Herveu apresenta fortes razões para negar que o género e a diferença sejam formalmente distintos. A primeira prende-se com a simplicidade dos indivíduos: os indivíduos de quaisquer géneros são formas simples e ao simples repugna ser composto. Deste modo, um indivíduo não pode ser uma composição de diversas formalidades. A segunda dita que o modelo geral de diferenciação do género em espécies por diferenças utilizado é o modelo ato-potência. Assim sendo, as formalidades mais genéricas de um indivíduo seriam naturalmente aptas a transmutarem-se em coisas opostas. Num ser humano, a sua animalidade estaria naturalmente apta a atualizar-se em irracionalidade, o que é um absurdo, a não ser que se

Aristotelis, VII, q. 19, n. 44; Idem, Reportatio I-A, ed. Allan B. Walter, OFM – Oleg V. Bychkov, The Franciscan Institute, Nova Iorque 2004, d. 33, q. 2. Também sobre a distinção formal e a possibilidade de Duns Escoto ter evoluído para uma posição menos realista nos textos parisienses, cf. Stephen D. Dumont, «Duns Scotus’s Parisian Question on the Formal Distinction» in Vivarium, 43 (1, 2005) 7-62; Josh Blander, «Same as it never was: John Duns Scotus’ Paris Reportatio account of identity and distinction» in British Journal for the History of Philosophy, 28 (2, 2020) 231-250. 345 Deixaremos de parte a questão da diferença entre as formalidades nas coisas divinas e nas naturais, questão que, de resto, é apenas mencionada, mas não explorada pelo autor. 346 Cf. Hervaeus Natalis, Quodlibeta Hervei, I, q. 9., f. 19ra-b. 194 diga que o género tem a potência de se diferenciar apenas segundo a razão, e não realmente. A terceira é que, a aceitar formalidades distintas, todas elas seriam como espécies especialíssimas. A animalidade seria também uma espécie especialíssima, dado que não é realmente igual às suas espécies e, por conseguinte, não se divide em espécies abaixo de si. A quarta explora a noção de género aplicada a um caso em que se circunscreve apenas uma espécie desse género. Ele seria simultaneamente género e não- género, a aceitar a diferenciação real entre ele e a espécie pela diferença. A quinta, por fim, afirma que a coordenação intrapredicamental não seria um assunto lógico, mas sim uma ordem real, coisa que, de acordo com Herveu, é falsa. Colocadas estas objeções, Herveu propõe que um indivíduo pode ser concebido de diversos modos a partir da sua comparação com outros indivíduos. A noção fundamental que forja é a de conformitas. Trata-se de uma posição difícil de rotular como realista ou conceptualista (ou nominalista), nomes que, como foi dito no início do capítulo, tentaremos evitar. Por um lado, o autor bretão não pensa que se possa dizer que a unidade dos diversos géneros e espécies, aplicados a um mesmo indivíduo, seja apenas uma «unidade do aparente» (unitas apparentis), isto é, que um indivíduo, pensado de acordo com determinado elemento aparente nele (seja o raciocinar, ou o sentir, que confeririam unidade à espécie “homem” e ao género “animal”, respetivamente), possa ser integrado num conceito mais específico ou mais genérico. A questão é exatamente o que é esse aparente, ou porque é que é possível fazer isso. Caso contrário, responder que a unidade do género é a unidade do aparente não responde a nada, apenas transporta a dúvida para o aparente. Eis a sua resposta: E portanto, parece-me que se deve responder de outro modo. Para que isso se torne evidente, deve saber-se que, do mesmo modo que a distinção segundo a razão tem origem na coisa enquanto fundamento remoto – embora mediante o conceito no intelecto, como foi dito na questão sobre as formalidades –, assim também a conveniência ou a unidade segundo a razão, tal como os indivíduos que convêm numa espécie, e as espécies que convêm num género, tem origem na coisa enquanto fundamento remoto, embora mediante a operação do intelecto. Por isso, deve saber- se que entre coisas diversas a partir da natureza da coisa, circunscrita toda a

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operação do intelecto, existe conformidade. Esta conformidade encontra-se em maior ou menor no que diz respeito a coisas diversas e não é a própria unidade de razão, mas o seu fundamento remoto347. A conformidade (conformitas) é, portanto, anterior à operação do intelecto. É ela o fundamento remoto da unidade de razão própria dos géneros e das espécies. Deste modo, os conceitos genéricos e específicos não dizem propriamente diversas realidades distintas, mas indicam que as coisas são de tal maneira que podem ser agrupadas ou diferenciadas na medida em que sejam mais ou menos conformes. Nas palavras de Herveu: Por exemplo, entre dois homens existe uma conformidade na humanidade, e a conformidade de um deles relativamente ao outro é una em número, existente num deles enquanto sujeito e no outro enquanto termo, e vice-versa. E semelhante é a conformidade entre dois animais na animalidade, embora não seja tanta quanta a primeira. E a unidade segundo a razão que é a unidade de género, ou de qualquer outro predicável, é tomada a partir desta conformidade, que se encontra nas coisas a partir da natureza da coisa, enquanto fundamento remoto. De facto, dois homens, a partir de tal conformidade, são naturalmente aptos a mover para um conceito uno, que é de algo uno segundo a coisa, o qual, enquanto objeto uno, corresponde indeterminadamente ao homem, sem em Sócrates ou em Platão. E a unidade deste objeto que lhe convém, enquanto se encontra objetivamente no intelecto do mesmo modo que o conhecido no cognoscente, bem como a sua separação dos singulares, é uma unidade e uma separação segundo a razão. E é semelhante a conformidade entre homem e cavalo na animalidade pela qual movem para um conceito uno, o qual corresponde ao objeto “animal” indeterminado e

347 «Et ideo videtur mihi aliter dicendum. Ad cuius euidentiam sciendum quod sicut distinctio secundum rationem habet ortum a re, sicut a fundamento remoto, mediante tamen conceptu intellectus, sicut dictum est in questione de formalitatibus, ita etiam conueninetia siue unitas aliquorum secundum rationem, sicut indiuidua que conueniunt in specie, et species que conueniunt in genere, habet ortum a re sicut a fundamento remoto, mediante tamen operatione intellectus. Unde sciendum quod inter diuersas res ex natura rei circunscripta omni operatione intellectus est conformitas, et ista inuenitur maior vel minor respectu diuersorum, et ista conformitas non est ipsa unitas rationis, sed est suum fundamentum remotum.» Ibidem, f. 19va-b. 196

separado dos singulares348. As coisas são naturalmente aptas a mover o intelecto para um conceito uno. Regressando a De secundis intentionibus, esse conceito uno é o resultado de uma relação de razão entre o intelecto e a coisa, mas o seu ser objetivo (esse obiectivum) são as coisas reais enquanto concebidas de acordo com determinadas condições de pensabilidade, tais como a indeterminação e a separação dos singulares. Assim, não é necessário postular uma formalidade para cada género e diferença que o especifica, mas é apenas necessário que haja da parte das coisas a aptidão natural para mover o intelecto para um conceito uno. Esse conceito tem uma unidade de razão, certamente, mas essa unidade de razão tem fundamento remoto na aptidão natural. É possível que uma única forma mova o intelecto para diversos conceitos sem que haja necessidade de postular algum tipo de composição nela. Essa forma simples pode ser mais ou menos conforme com outras formas e, de acordo com essa conformidade ou inconformidade, mover para diversos conceitos mais ou menos determinados. Por isso, «não é inconveniente que algumas coisas difiram na sua entidade real e convenham num conceito que as represente confusamente349». Os conceitos mais genéricos são conceitos mais indeterminados, ou confusos, cuja unidade tem fundamento numa conformidade menor entre várias formas do que aquela necessária para os conceitos mais específicos350. Todos esses conceitos têm uma unidade de razão,

348 «Verbi gratia, inter duos homines est conformitas in humanitate, et conformitas unius illorum ad alterum est una numero, existens quidem unius ut subiecti, alterius ut termini et econuerso. Et simile est de conformitate duorum animalium in animalitate, licet non sit tanta quanta prima. Et ab ista conformitate que est in rebus ex natura rei accipitur unitas secundum rationem, que est unitas generis, vel cuiuscumque alterius predicabilis, sicut a fundamento remoto. Nam duo homines ex tali conformitate nati sunt mouere ad vnum conceptum, qui est unius secundum rem, cui ut unum obiectum respondet homo indeterminate sine Socrate e Platone. Et unitas istius obiecti que sibi conuenit, ut sic est in intellectu obiectiue, sicut cognitum in cognoscente, eiusque separatio a singularibus est vnitas et separatio secundum rationem, et simile est de conformitate hominis et equi in animalitate, per quam mouent ad vnum conceptum, cui respondet vt vnum obiectum animal interminatum et separatum a singularibus.» Ibidem, f. 19vb. 349 «Similiter quod alique res in entitate sua reali differant, et conueniant in vno conceptu representante eas confuse non est inconueniens.» Ibidem, f. 20ra. 350 «Ad secundum quod adducitur contra solutionem dictam dicendum quod homo et equus conueniunt in re concepta secundum rationem, scilicet, in animali. / Ad illud ergo quod dicitur contra hoc dicendum, quod conuenientia hominis et equi in animali potest attendi quantum ad duo, scilicet, quantum ad hoc quod animal conuenit homini et equo, et quantum ad hoc est ex natura rei, et est quid reale, quia ex natura rei homo habet quod sit animal; et quantum ad unitatem ipsius communis, et quantum ad hoc est secundum rationem tantum, quia unitas et indeterminatio qua obijcitur animal, ut unum obiectum indeterminatum ipsi 197 dado que são o fruto de uma relação entre o conhecido e o cognoscente, mas não são meramente um produto da razão, posto que a conformidade e a inconformidade entre as formas é algo real que conduz a que as coisas sejam pensadas de um determinado modo, e não de outro. É assim que Herveu responde às razões que defendiam a existência de formalidades. O segundo artigo da questão é influenciado pela teoria das intenções e pela crítica da noção de formalitas, substituída pela de conformitas. Herveu inicia a sua exposição por um esclarecimento prévio, que pretende estabelecer com precisão aquilo que se pergunta. Em primeiro lugar, há duas aceções diferentes de predicamento, ou género generalíssimo: De um modo, <é tomado> pelas próprias intenções da predicabilidade e da generalidade. De outro modo, pelas coisas nas quais tais intenções se fundam. E no primeiro modo, são ditas entes de razão e intenções segundas. No segundo modo, dizem o ente real no qual tais intenções se fundam. Logo, tomando predicamento e género de predicamento no primeiro modo, a divisão é entre o predicamento tomado absolutamente e este predicamento , e entre um género e este género, e esta é uma divisão de uma intenção em intenções, e de um ente de razão em entes de razão. Na verdade, a divisão do ente real em géneros ou predicamentos é como a divisão de um sujeito em acidentes, no sentido em que os entes de razão são acidentais aos entes reais. Mas a divisão do ente real fora da alma em substância, qualidade, quantidade, e restantes, é uma divisão do ente real fora da alma em entes reais fora da alma. Logo, quando se pergunta se a operação do intelecto possível, etc., os predicamentos não são tomados como intenções segundas, mas como as

intellectui consequitur animal ut est obiectiue in intellectu, licet habeat fundamentum a re, ut dictum est.» [Quanto ao segundo, contra a dita solução, deve dizer-se que homem e cavalo convêm na coisa concebido segundo a razão (in re concepta secundum rationem), a saber, no animal. Logo, quanto àquilo que é dito contra isto, deve dizer-se que a conveniência entre o homem e o cavalo no animal pode ser atendida quanto a duas coisas, a saber: quanto ao facto de o animal convir ao homem e ao cavalo, e quanto a isto é a partir da natureza da coisa e é um quid real, porque a partir da natureza da coisa, o homem é animal; e quanto à unidade do próprio comum, e quanto a isto, é apenas segundo a razão, pois a unidade e indeterminação pela qual o animal é pensado como objeto, enquanto objeto indeterminado do próprio intelecto, é consequência de “animal” enquanto este se encontra objetivamente no intelecto, embora tenha fundamento na coisa, como foi dito.] Ibidem, f. 20rb. 198

coisas nas quais elas se fundam351. Uma vez que a unidade genérica é uma unidade de razão, a divisão dos entes reais em vários géneros é uma divisão em entes de razão. Por isso, a questão de saber se os predicamentos são causados por alguma operação do intelecto possível não pode ser colocada quanto aos géneros tomados em si, como intenções segundas. Aquilo que se está a perguntar é, evidentemente, se aquilo no qual essas intenções se fundam é, de algum modo, produzido pelo intelecto. Herveu pressupõe como indiscutível que substância, quantidade e qualidade são coisas reais fora da alma realmente distintas. Por isso, discute apenas as restantes sete categorias. Primeiro, debruça-se sobre a relação, procurando ver se esta é ou não diferente do seu fundamento, o que é o mesmo que procurar ver se esta é diferente da substância, da quantidade e da qualidade, seus possíveis fundamentos. Depois, pretende mostrar de que modo as restantes seis categorias diferem das quatro primeiras. Mais uma vez, assinale-se a tendência que se vai estabelecendo relativamente ao modo como o problema é colocado: que tipo de distinção existe entre os predicamentos? A relação, de acordo com Herveu, em certo sentido não difere do seu fundamento, mas noutro sentido difere, dado que introduz dois elementos. Critica duas posições segundo as quais a relação introduz uma espécie de composição entre si e o seu fundamento. Não aceita que haja essa composição, seja ela considerada como uma composição entre uma coisa (res) e um modo ou formalidade, seja entre duas coisas. Novamente, não aceita que aquilo que funda as intenções seja algo composto. Deve ser simples: «essências diversas não podem produzir algo uno senão por composição352». Há

351 «Uno modo pro ipsis intentionibus predicabilitatis et generalitatis. Alio modo pro rebus in quibus tales intentiones fundantur. Et primo modo dicuntur entia rationis et intentiones secunde. Secundo modo dicunt ens reale in quo tales intentiones fundantur. Accipiendo ergo primo modo predicamentum, et genus predicamenti, diuisio predicamenti absolute accepti in hoc predicamentum, et generis in hoc genus, et illud est diuisio intentionis in intentiones et entis rationis in entia rationis. Diuisio vero enti realis in genera vel predicamenta est quam diuisio subiecti in accidentia, modo quo entia rationis accidunt entibus realibus. Sed diuisio entis realis extra animam in substantiam, qualitatem et quantitate, et sic de alijs est diuisio entis realis extra animam in entia realia extra animam. Quando ergo queritur vtrum operatio intellectus possibilis et cetera, non accipiuntur predicamenta pro intentionibus secundis, sed pro rebus in quibus fundantur.» Ibidem, f. 20va. 352 «(…) diuerse essentie non possunt facere vnum nisi per compositionem.» Ibidem, f. 21ra. 199 várias razões para negar esta composição. A principal, que é repetida de diversas maneiras, é que a relação advém ao seu fundamento sem que este sofra uma mutação. Se constituísse algum tipo de composição com ele, isso significaria que este seria modificado por ela353. Contudo, acaba por afirmar que a relação introduz (importat, traz dentro, literalmente) dois elementos. Utiliza o par gramatical in recto vs. in obliquo, diferenciando aquilo que é introduzido pela relação diretamente daquilo que é complementar a essa introdução. Diretamente, a relação não introduz nada que seja diferente do seu fundamento. Porém, in obliquo, introduz um terminus ad quem, um termo para o qual. Isso é suficiente para considerá-la realmente diversa do seu fundamento. O exemplo que dá é o da paternidade. Quando se diz que determinada coisa é pai, diretamente (in recto), não se está a dizer que essa coisa, em termos absolutos, é outra do que ela mesma: o pai e o sujeito dessa paternidade são exatamente a mesma coisa real. Apesar disso, a paternidade introduz um termo relativamente ao qual esse sujeito é pai, a saber, introduz obliquamente o filho. Não se pode dizer que o pai e aquilo que é pai sejam realmente o mesmo, dado que foi introduzido um terminus ad quem que não é redutível ao sujeito da paternidade. O modelo que Herveu utiliza para explicar a relação é explicitamente baseado numa analogia com o modelo da categoria da qualidade: tal como na qualidade é preciso distinguir a brancura, que é a qualidade propriamente dita, do branco, que é o sujeito denominado a partir da sua brancura, assim também na relação é preciso distinguir a paternidade, que é a relação propriamente dita, do pai, que é o sujeito denominado a partir do postulado de um terminus ad quem354.

353 Cf. Ibidem, f. 21ra. 354 «Ad cuius euidentiam sciendum quod relatio importat duo: unum in recto quod ponit in suo subiecto, et aliud in obliquo, scilicet, terminum ad quem. Verbi gratia, paternitas que est relatio patris ad filium importat aliquid in recto quod est in patre subiectiue, et filium vt terminum ad quem est in obliquo et vtrumque est de ratione ipsius relationis. Quod enim illud quod ponit in subiecto sit de ratione relationis que refertur, patet sic: de ratione relationis est quod sit alicuius ut subiecti relati per ipsam, ita quod sicut qualitas est qua qualia dicuntur aliqua formaliter, ita relatio est qua subiectum habens eam formaliter refertur; sed hoc non esset nisi in sua ratione includeret illud quod ponit in subiecto quod refert.» [Para que se torne evidente, deve saber-se que a relação introduz dois : um diretamente, que postula no seu sujeito; e outro obliquamente, a saber, o termo para o qual. Por exemplo, a paternidade que é a relação entre o pai e o filho introduz algo diretamente que se encontra no pai subjetivamente, e o filho, enquanto termo para o qual, encontra-se obliquamente; e ambos são da razão da própria relação. De facto, que aquilo que postula 200

Apercebendo-se das fragilidades da sua posição, Herveu aponta quatro dúvidas que podem ser suscitadas por ela. Debrucemo-nos sobre as três primeiras, dado que a quarta é bastante específica, sobre a possibilidade de duas relações diferentes terem o mesmo fundamento e o mesmo termo. A primeira dúvida diz respeito à unidade da relação: se introduz duas coisas, não é una, pelo menos na aceção simples, o que é algo que o próprio Herveu havia criticado. A sua resposta é que «ser uma coisa em si e essa coisa ser por si de outra não elimina que essa coisa seja algo uno355». A segunda dúvida colocada é que a relação, ao introduzir duas coisas, não tem um conceito simples. Uma vez que não são compostos por um género e uma diferença, os géneros generalíssimos devem ter um conceito simples. São dadas duas soluções. Por um lado, pode-se dizer que, quanto àquilo que introduz in recto, introduz um conceito simples. Por outro, embora um género generalíssimo deva dizer um conceito simples, contudo isso não impede que ele inclua vários conceitos num conceito análogo. A terceira questiona se duas relações opostas, na verdade, não são o mesmo que os dois fundamentos. A título de exemplo, a semelhança entre duas brancuras de dois sujeitos brancos não postula nada para além desses dois sujeitos brancos356. Quanto a esta dúvida, Herveu afirma que isso só é verdade se os dois sujeitos forem tomados simultaneamente. Tomados em si, não é. Como veremos, Pedro Auriol considera que esta teoria da relação e estas soluções são uma total nulidade. Provado que a relação é realmente diferente do seu fundamento, resta provar que os restantes seis predicamentos são realmente diferentes da relação. Herveu retoma a tese da denominação extrínseca presente em Tomás de Aquino. Rejeita, igualmente, que estes possam ser considerados como diversos modos de respectus, à maneira de Henrique de

no sujeito é da razão da relação que o refere, é patente assim: é da razão da relação aquilo que é de algo como de um sujeito relacionado por ela; do mesmo modo que a qualidade é aquilo pelo qual algumas coisas são ditas formalmente qualia, assim também a relação é aquilo pelo qual um sujeito que a tenha formalmente se relaciona; mas isso não seria assim a não ser que na sua razão incluísse aquilo que postula no sujeito que refere.] Ibidem, f. 21rb. 355 «Rem autem esse in se et illam rem esse per se alicuius non tollit illam rem esse vnum aliquid.» Ibidem, f. 21va. 356 Cf. Ibidem, f. 21va. 201

Gante. Rejeita, ainda, outra posição (nunca nomeando autores) segundo a qual os seis últimos predicamentos dizem coisas absolutas conjuntamente com uma relação. De acordo com Herveu, todos os respectus pertencem à categoria da relação e não se diversificam em vários géneros, não havendo nenhum critério para o fazer. Se um ente é relativo, pertence à relação, porque o seu ser consiste em ter-se relativamente a outro. Se não é relativo, é absoluto. Assim sendo, Herveu tem de assumir que os seis princípios são predicamentos fundados em entes absolutos. Mas não podem, contra a segunda posição que é criticada, dizer coisas absolutas conjuntamente com uma relação, uma vez que «nenhum predicamento uno inclui o conceito de dois predicamentos357». Esta opinião falha por não perceber que basta uma denominação extrínseca para diferenciar um predicamento. Embora em toda a denominação haja uma relação entre um denominante e um denominado, não é isso que o predicamento indica358. O conceito-chave da sua abordagem é, de facto, a denominação extrínseca. Relembrando o início das Categorias, são parónimas ou denominativas aquelas coisas que recebem o seu nome de outra coisa. Herveu divide a denominação em três, isto é, em dois modos de denominação intrínseca e um de denominação extrínseca. Num dos modos da denominação intrínseca, o denominado é denominado por algo que lhe é intrínseco por identidade ou por inerência. É este o modo de denominação dos três predicamentos absolutos. Noutro modo, algo pode ser denominado por algo que lhe é intrínseco, mas que introduz um termo extrínseco, como acontece no caso da relação. Por fim, algo pode ser denominado a partir de algo extrínseco na medida em que aquilo que o denomina não se encontra formalmente nele. A denominação nos seis últimos predicamentos é deste tipo. O agente, o padecido, o locado, o posicionado, o que tem um quando, o que tem algo aplicado, são denominados a partir de algo que lhes é totalmente extrínseco. De que modo a denominação extrínseca pode diferenciar predicamentos? Eis a resposta:

357 «Nullum unum predicamentum includit conceptum duorum predicamentorum.» Ibidem, f. 22ra. 358 «Est autem notandum quod licet sit inter denominans et denominatum habitudo siue respectus per se, tamen illa praedicamenta non dicunt illos respectus, immo pertinent ad genus relationis.» [Porém, note-se que, embora exista uma disposição ou um respectus por si entre o denominante e o denominado, contudo estes predicamentos não dizem estes respectus, que pelo contrário, pertencem ao género da relação.] Ibidem, f. 22rb. 202

Por conseguinte, quanto à questão que pergunta se os ditos seis predicamentos diferem realmente dos outros, deve dizer-se que, quanto à natureza denominante (natura denominans), não diferem dos três primeiros predicamentos absolutos, mas quanto àquilo que denominam, requerem outro realmente denominado por aquilo que denominam, razão pela qual denominam por uma denominação extrínseca359. Para o autor, para que estes predicamentos sejam considerados realmente diversos dos restantes, basta que introduzam uma realidade para além da que é introduzida pelo seu sujeito. Herveu exemplifica a sua tese através do predicamento da paixão. Um sujeito que padeça de algum tipo de calor, na medida em que é sujeito desse calor, pode ser chamado “quente” por uma denominação intrínseca, ou seja, o sujeito está a ser denominado a partir de uma qualidade absoluta que inere nele. Contudo, se for chamado “aquecido”, este termo, pertencente ao predicamento da paixão, introduz algo que não a qualidade, a saber, a causa eficiente do calor, ou aquilo que aquece (o calefaciens). Assim, a paixão difere da qualidade absoluta que inere no sujeito, porque introduz algo que a qualidade não introduz, mesmo que isso também pertença a algum dos três predicamentos absolutos. Conclui que «esta diversidade é suficiente para a distinção dos predicamentos, embora as próprias coisas pelas quais a denominação é tomada sejam as mesmas nuns e noutros360». Postulada a sua tese principal, de novo, Herveu prevê várias dúvidas que poderiam ser lançadas à sua posição. Em nenhuma delas se coloca o problema que já fora apontado por Raul, o Bretão e Duns Escoto, a saber, que a denominação, ou qualquer outro modo de predicação, não pode diferenciar categorias, porque todas elas podem ser predicadas in quid, in quale quid e in quale accidentale… Todavia, pode-se retirar da sua exposição que a denominação indica algo que pode ser considerado real, a saber, determinadas

359 «Ad questionem ergo qua queritur vtrum sex predicta predicamenta different ab alijs realiter, dicendum, quod quantum ad naturam denominantem non differunt a tribus predicamentis absolutis primis; sed quantum ad id quod denominant requirunt aliud realiter denominatum ab eo quod denominant prout denominant denominatione extrinseca.» Ibidem, f. 22ra. 360 «(…) que diuersitas sufficit ad distinguendum predicamenta, licet ipse res a quibus accipitur ipsa denominatio sit eadem hinc inde.» Ibidem, f. 22rb. 203 informações reais sobre as disposições entre denominado e denominante, como a causalidade. A aplicação da tese geral da denominação extrínseca a cada um dos seis princípios, em especial à ação e à paixão, será exposta em contraste direto com as posições de Pedro Auriol, o próximo autor deste capítulo.

4.1.2. Pedro Auriol (c. 1280? - 1322)

Dos autores que aqui se expõem, Pedro Auriol (ou Oriol, ou Auréolo, Petrus Aureolus) é o único autor que defende que a lista de categorias reais deve ser reduzida a cinco: as três categorias absolutas, a ação e a paixão. As restantes, inclusive a relação, não podem ter um estatuto real. Nascido provavelmente na década de 1280, perto de Cahors, no sul de França, terá ingressado nos franciscanos na província da Aquitânia. Antes de 1312, não há registos sobre a sua vida e atividade, mas é provável que tenha estudado em Paris. Em 1312, ensina no convento franciscano de Bolonha. Dois anos depois, continua a ensinar em Toulouse, possivelmente também no studium conventual. É provável que o seu extenso comentário ao I das Sentenças, praticamente terminado em 1316, provenha da sua experiência de lecionação nestes conventos. Apadrinhado pelo controverso papa João XXII (1249 – 1334), o qual pede ao chanceler da Universidade de Paris que lhe dê o magistério, torna- se mestre regente de teologia entre 1318 e 1320, ou talvez 1321, ano em que é nomeado arcebispo de Aix-en-Provence. Pouco depois, no início do ano seguinte, morre. Embora não seja hoje tão estudado como alguns outros autores seus contemporâneos, Pedro Auriol, de cognome Doctor Facundus, foi extremamente influente em assuntos tão diversos como a Imaculada Conceição, a univocidade do ente, a liberdade da vontade, os futuros contingentes e a teoria do ser objetivo (ou intencional, ou aparente). Tem a fama, merecida, de apresentar posições pouco usuais e soluções radicais para problemas tradicionais. É ele o alvo a abater pelos teólogos que o sucedem361. É também célebre

361 Christopher Schabel, argumentando contra uma tese historiográfica segundo a qual houve uma espécie de ocaso da produção teológica em Paris no período de cerca de 25 anos entre a morte de Auriol e as obras teológicas de Gregório de Rimini – ocaso este medido pela ausência de novos estudantes ingleses –, chega 204 pelo facto de construir muitas das suas posições originais a partir de críticas minuciosas a outros autores, especialmente Duns Escoto. De entre os seus contemporâneos, aqueles com quem mais se digladia são Herveu de Nédellec e Durando de Saint-Pourçain362. Tal como aconteceu em Herveu de Nédellec, é pela intencionalidade que devemos começar a situar a posição original de Pedro Auriol, em particular pela sua teoria do esse obiectivum (ou esse intentionale, ou esse apparens)363. O lugar privilegiado para a discussão desta teoria é a parte do Scriptum super Primum Sententiarum que diz respeito

a afirmar: «Peter Aureoli’s stature in medieval thought has not been fully appreciated, partly because until recently few have bothered to look at Parisian thought in the decade after him, when we would expect his impact to be felt most intensely. Aureoli comprehensively dismantled the systems of Aquinas and Scotus, and created a new, internally coherent system of thought that could not be ignored. It was so large, however, that it left little room for anyone else. Thus Landulph Caracciolo, for example, sometimes seems content to attack Aureoli as if there were no one else. Looked at from this perspective, it is no wonder Ockham and the English failed to make an impact.» Christopher Schabel, «Paris and Oxford between Aureoli and Rimini», in John Marenbon (ed.), The Routledge History of Philosophy Vol. III: Medieval Philosophy, Routledge, Londres – Nova Iorque 1998, pp. 386-401. 362 Sobre a vida e obra de Pedro Auriol, cf. Russell L. Friedman, «Peter Auriol» in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/auriol/; Christopher Schabel, «Peter Auriol» in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, pp. 935-942. Cf. também a vasta informação biobibliográfica presente numa página mantida por Russel L. Friedman e Florian Wöller: http://www.peterauriol.net/. Nela, encontram-se hiperligações para diversas edições parciais do Scriptum super Primum Sententiarum e para digitalizações de edições antigas, dos séculos XVI e XVII, das obras que ainda não têm edição crítica. 363 A nossa exposição da intencionalidade em Pedro Auriol é guiada por duas leituras: Fabrizio Amerini, «Realism and Intentionality: Hervaeus Natalis, Peter Aureoli, and William Ockham in Discussion». in S. Brown – T. Dewender – T. Kobush (eds.), Philosophical Debates at Paris in the Early Fourteenth Century, pp. 239-260; Russell L. Friedman, «Peter Auriol on Intentions and Essential Predication» in Sten Ebbesen – Russell L. Friedman (eds.), Medieval Analyses in Language and Cognition, Det Kongelige Danske Videnskabernes Selskab, Copenhaga 1999, pp. 415–430. Com efeito, tendemos a concordar com Amerini quanto ao facto de haver pontos de concórdia fortes entre a doutrina de Herveu e a de Auriol: «First, both authors endorse the view that a (first) intention is primarily the thing qua cognized and not an item existing subjectively in the intellect, like intelligible species or acts of cognition. Second, they share the idea that the thing qua cognized is the same as the extra-mental thing. This is true for singulars as well as for universals.» Fabrizio Amerini, «Realism and Intentionality», p. 248. Não nos debruçaremos sobre a contraparte sensitiva desta teoria, parte esta em que mais se usa o termo esse apparens, por razões evidentes. Contudo, tudo aquilo que se diz sobre o contacto do intelecto com as coisas é aplicável, numa fase anterior, ao contacto do sentido, o qual, tal como o intelecto, confere às coisas um novo modo de ser a que Auriol chama, dependendo do contexto, esse apparens, esse cognitum, esse obiectivum, esse intentionale, entre outros nomes. Sobre a teoria da sensação de Auriol, cf. Katherine H. Tachau, Vision and Certitude in the Age of Ockham: Optics, Epistemology, and the Foundation of Semantics, Brill, Leida 1988, em especial, cap. IV. 205

à noção teológica de Pessoa. Na distinção 23, Auriol pergunta se o nome “pessoa”, no contexto divino, significa algo de primeira intenção ou apenas de segunda364. Para responder a esta questão, dedica dois artigos à distinção entre intenção primeira e intenção segunda. No primeiro, discute aprofundadamente as posições de Raul, o Bretão, Herveu de Nédellec e de “uns certos autores” não identificados. No segundo, assinala os erros que encontra neles e, a partir desse exercício crítico, estabelece as proposições básicas da sua própria solução. A discussão da posição de Herveu é a mais longa e importante. Depois de sumariar os conteúdos do De secundis intentionibus, reduz a opinião de Herveu a cinco conclusões: 1) Coisas como ser humano e animal não são formalmente intenções primeiras (in abstracto) e coisas como a universalidade e a particularidade não são formalmente intenções segundas (in abstracto). São antes o fundamento imediato das intenções. Por outras palavras, são intenções in concreto. 2) A intencionalidade, tomada abstratamente (abstractive), é a disposição da coisa inteligida para o intelecto, a qual introduz o ser conhecido (esse cognitum), ou ser objetivo (esse obiectivum), no intelecto. 3) A disposição (habitudo) que é a intencionalidade é fundada em ato na coisa que está objetivamente no intelecto. Não se trata da coisa enquanto está fora do intelecto, ou da coisa fora do intelecto enquanto tem ser no intelecto objetivamente. É a própria coisa no intelecto, ou o próprio ser objetivo. Daí, advém o facto de a intencionalidade se poder fundar em negações e figmentos. 4) A intenção segunda in abstracto funda-se sobre o segundo género de inteligíveis, isto é, os entes de razão. A intenção segunda in concreto é o mesmo que a intenção primeira in abstracto, ou seja, é a disposição da coisa inteligida para o ato do intelecto. Por isso, todo o ente de razão se funda (remotamente) sobre um ente real enquanto tem esse obiectivum.

364 Seguimos aqui a edição de De Rijk, um dos preciosos anexos do De intentionibus, de Giraldo Odon: Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 23 in Giraldus Odonis O.F.M., De intentionibus, Anexo F, pp. 695-747. Não imediatamente sobre a noção de intenção, mas sobre a questão da formação de conceitos, cf. Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 9, p. 1, ed. R. L. Friedman – L. O. Nielsen – C. Schabel, versão 2 (julho 2009), The Peter Auriol Homepage (www.peterauriol.net); d. 27, p. 2, ed. R. L. Friedman, versão 2 (julho 2009), ibidem. 206

5) A lógica tem como sujeito próprio as intenções segundas, enquanto que a gramática e a retórica não. A gramática expõe os entes de razão que não são consequência do ato do intelecto a partir da natureza da coisa, mas a partir da instituição voluntária de alguém que os imponha. A retórica trata das causas e condições do juízo sob o ponto de vista da persuasão365. Para o Doutor Facundo, nenhuma destas conclusões é inteiramente verdadeira. De facto, aponta nelas dez defeitos. Quase todos esses defeitos são consequência de um erro inicial presente na primeira conclusão (e também na segunda), a saber, a defesa de que o esse cognitum ou obiectivum é introduzido por uma disposição da coisa conhecida para o ato de conhecer. Assim, Herveu julga que coisas como homem e animal, tomadas enquanto intenção primeira concreta, ou enquanto fundamento das intenções primeiras abstratas, não são formalmente intenções, mas as próprias coisas concebidas de um modo mais ou menos determinado, como vimos. Auriol discorda. Em primeiro lugar, não aceita que homem e animal não sejam intenções. São formados pelo intelecto e entre eles não existe uma distinção real, mas sim intencional. Em segundo lugar, para dar conta disso, pretende demonstrar que o ser objetivo não é introduzido por uma disposição da coisa conhecida à qual se apõe, como algo externo, um ato do intelecto. A coisa conhecida é, ela mesma, o produto de um ato do intelecto: Em segundo lugar, assume o falso, a saber, que se exige alguma outra relação que introduza o ser conhecido depois de um ato do intelecto tocar estas coisas objetivamente (…). Mas é manifesto que tal ser não é senão objetivo e intencional. Logo, o intelecto, ao atingi-las, dá-lhes o ser objetivo e intencional. E por conseguinte, não é verdadeiro que seja de esperar outra disposição que se chame “intenção primeira” e que exprima o ser no intelecto objetivamente. Deste modo, deve considerar-se que, pelo contrário, é pela conceção passiva que a coisa formalmente se constitui no ser concebido (esse concepto). Com efeito, ela encerra-se indistinguivelmente dentro da razão de animal, de homem e dos restantes conceitos objetivos. (…)

365 Cf. Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 23, art. 1, §§ 42-46, pp. 707-709. 207

E devido a isto, a conceção objetiva, dita passivamente, não diz respeito à coisa pelo modo do substrato. Pelo contrário, a coisa que é concebida é algo seu e está indistinguivelmente misturada com ela, pelo que a conceção da rosa é o mesmo que a rosa e o conceito do animal o mesmo que o animal. Este conceito encerra indistinguivelmente as realidades de todos os animais particulares e um certo modo de ser que é a intencionalidade, a qual não é outra coisa do que a conceção passiva366. A objeção principal, que se repete ao apontar os erros das várias conclusões é sempre esta: a intencionalidade não é a disposição da coisa inteligida para o ato de inteligir, a qual introduziria o ser objetivo. É acidental às intenções primeiras, enquanto tais, que tenham essa disposição. Pelo contrário, o ser objetivo é um modo de ser que as coisas recebem quando o intelecto contacta com elas. Por isso, a segunda conclusão é falsa. A terceira também, dado que no conceito objetivo são indestrinçáveis a coisa concebida e a conceção passiva: assim, os entes impossíveis e as negações não podem ter um conceito objetivo. Nas objeções à quinta conclusão, sobre o sujeito da lógica, mostra que a intenção segunda é comum a várias disciplinas, como a gramática e a retórica, e que, enquanto ente de razão, é uma divisão do ente e pertence à metafísica. Por conseguinte, aponta que a lógica é acerca das regras do discurso relativamente ao verdadeiro e ao falso, não acerca do conceito enquanto tal, matéria pertencente à metafísica. Esta resposta tem uma influência no modo como interpreta as Categorias de Aristóteles: nelas, são determinados os dez conceitos gerais que compreendem em si todas as intenções. Estes não são determinados enquanto conceitos, mas sim enquanto

366 «Secundo vero quia falsum assumit, videlicet quod exigatur aliqua alia relatio quam importat esse cognitum, postquam actus intellectus attingit ea obiective (…). Sed manifestum est quod tale esse non est nisi obiectivum et intentionale. Ergo intellectus in attingendo dat eis esse obiectivum et intentionale. Et per consequens non est verum quod expectetur alia habitudo que vocetur prima intentio et que exprimat esse in intellectu obiective. Unde considerandum quod secus est de conceptione passiva qua formaliter res constituitur in esse concepto. Illa enim clauditur indistinguibiliter intra rationem animalis et hominis et ceterorum conceptuum obiectivorum. (…) / Et propter hoc obiectiva conceptio passive dicta non respicit rem per modum substrati, ymo res que concipitur est aliquid sui et immiscetur indistinguibiliter sibi, unde conceptio rose idem est quod rosa, et conceptus animalis idem quod animal. Iste nimirum conceptus claudit indistinguibiliter realitates omnium particularium animalium et quendam modum essendi qui est intentionalis, qui non est aliud quam passiva conceptio.» Ibidem, §§ 70-72, pp. 718-719. 208 estes são os significados de todos os dizíveis incomplexos, matéria que serve de base para estabelecer as regras discursivas da verdade e da falsidade367. Mas o defeito apontado que mais interessa à nossa exposição é o quinto, a saber, a crítica à tese de Herveu segundo a qual as intenções segundas não pertencem a nenhum predicamento368. Pedro Auriol julga que os predicamentos esgotam todos os significados dos dizíveis incomplexos, sejam eles primeiras intenções, sejam eles segundas. De acordo com a sua leitura – apoiada pelo modo como Boécio e Simplício assinalam o sujeito das categorias, e justificada por diversas passagens em que Aristóteles e Averróis defendem que há determinadas coisas predicamentais que não existiriam se a alma não existisse369 –, é um erro considerar que a distinção dos predicamentos é uma distinção entre verdadeiras coisas (verae res) e que tudo aquilo que se encontra neles é uma verdadeira coisa. A distinção dos predicamentos é uma distinção entre diversas maneiras das palavras incomplexas (maneries vocum incomplexarum). Na gramática, essa distinção das palavras incomplexas dá-se entre diversos modos de significar. Na lógica, atende-se às condições dos significados370. Deste modo, Auriol defende que todos os universais

367 «Et hinc est quod in Predicamentis determinatur de decem conceptibus generalibus comprehendentibus omnes primas intentiones, non quidem inquantum prime intentiones sunt, sed inquantum significata sunt omnium dicibilium incomplexorum.» [E é assim que nos Predicamentos se determina os dez conceitos gerais que compreendem todas as intenções primeiras, não enquanto são intenções primeiras, mas enquanto são os significados de todos os dizíveis incomplexos.] Ibidem, § 114, p. 736. 368 Cf. Ibidem, § 39, p. 706. 369 Cf. Aristóteles, Metafísica, VI, cap. 4, 1027b31-33; Aristóteles – Averróis, Aristotelis metaphysicorum libri XIIII cum Averrois…, VI, com. 8, f. 72ra; Aristóteles, Fisica, IV, cap. 14, 223a21 e ss; Aristóteles – Averróis, Aristotelis de Physico Auditu libri octo cum Averrois…, IV, text. et comm. 97, ff. 177rF-178rC. 370 «Unde sicut gramaticus reducit omnes voces incomplexas in octo maneries secundum Donatum, vel septem secundum Priscianum, —quas vocat partes orationis et facit hanc reductionem attendendo ad modos significandi—, sic logicus reducit omnes voces incomplexas ad decem maneries quas vocat decem predicamenta, attendendo non ad modos significandi sed ad conditiones significatorum, quia quedam voces significant hoc (ut ‘homo’ vel ‘animal’), quedam quantum (ut ‘bicubitum’ vel ‘tricubitum’), quedam ad aliquid (ut ‘pater’ et ‘filius’), et sic de aliis.» [Daí que, do mesmo modo que o gramático reduz todas as palavras incomplexas a oito maneiras, segundo Donato, ou sete, segundo Prisciano – as quais chama de partes da oração, e faz essa redução atendendo aos modos de significar –, assim o lógico reduz todas as palavras incomplexas a dez maneiras às quais chama dez predicamentos, atendendo, não aos modos de significar, mas às condições dos significados, porque certas palavras significam um isto (como “homem” ou “animal”), outras um quanto (como “com dois côvados” ou “com três côvados”), outras um relativamente a algo (como “pai” e “filho”), e assim quanto aos restantes.] Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 23, § 91, p. 725. 209

(géneros, espécies, diferenças), que são as intenções segundas, pertencem ao predicamento da relação, ou do relativamente a algo: Aquilo que compete à definição também ao definido. Mas a definição da relação predicamental compete à intenção do género e da espécie: com efeito, são relativamente a algo, segundo o Filósofo, nos Predicamentos, “aqueles cujo próprio ser se tem de um certo modo relativamente a algo”; porém, é um ponto assente que ser género, ou ser espécie, se tem de um certo modo relativamente a algo, dado que o próprio ser intencional de que falam não é um ser para si (esse ad se), mas relativamente a outro (ad aliud). Logo, é manifesto que se encontram formalmente e quiditativamente no predicamento da relação371. Por fim, resume o que pretende retirar da crítica a Herveu numa proposição: «A intenção é a conceção passiva da coisa que se mistura indistinguivelmente com a coisa concebida372». Note-se que, tal como Herveu, Auriol considera que os conceitos universais têm um fundamento na coisa, não são puros produtos do intelecto. Simplesmente, não aceita que a intencionalidade seja uma disposição da coisa. Pelo contrário, a coisa recebe um modo de ser que lhe é atribuído pelo intelecto, o que faz com que a intenção, ou o conceito, seja uma mistura indistinguível de conceção passiva e coisa concebida. Esta doutrina deve ser conjugada com algo que explique porque é que, de coisas individuais distintas, se retiram conceitos universais que as agrupam. A resposta é, estranhamente ou não, bastante parecida com a de Herveu. Ao invés de se falar de uma conformitas, fala-se de uma similitudo entre várias coisas individuais, semelhança esta que é a base metafísica da determinação de espécies e géneros373. Assim, tal como os mais recentes intérpretes de Auriol têm vindo a afirmar, em especial Fabrizio Amerini, é necessário pesar bem qual a natureza do diferendo entre Herveu e Auriol. Não basta dizer que o primeiro é mais

371 «Cui competit diffinitio, et diffinitum. Sed diffinitio relationis predicamentalis competit intentioni generis et speciei; sunt enim ad aliquid secundum Philosophum in Predicamentis ‘quibus hoc ipsum est esse ad aliquid quodammodo se habere’; constat autem quod genus esse aut speciem esse est quodammodo ad aliquid se habere, unde illudmet ‘esse intentionale’ quod dicunt non est esse ad se, sed ad aliud. Ergo manifestum est quod sunt in predicamento relationis formaliter et quidditative.» Ibidem, §92, pp. 725-726. 372 «Intentio est rei passiva conceptio cui miscetur indistinguibiliter res concepta.» Ibidem, § 116, p. 737. 373 Cf. Idem, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 27, pars 2. 210 realista e o segundo mais conceptualista. Perde-se toda a riqueza da discussão com essa simplificação374. Como se pôde verificar, o Doutor Facundo constrói algumas das suas posições a partir da crítica a Herveu. É também esse o caso na questão da suficiência das categorias375. A questão 1 da distinção 30 do seu Scriptum propõe duas formas de mostrar a suficiência das categorias que ainda não se exploraram aqui. Mas não é esse o aspeto mais interessante do texto, se tomado separadamente do resto. Neste texto, Auriol pretende provar que não existem quaisquer relações reais, algo que já era presumível a partir do que acabámos de expor. Critica igualmente a teoria da denominação extrínseca para explicar os seis princípios e demonstra que entre eles, apenas a ação e a paixão podem ser consideradas reais. Comecemos pela relação. A noção que guia a perspetiva de Auriol sobre a relação é a de intervalo. Ao contrário da grande maioria dos seus contemporâneos, este autor não pensa que a relação se encontre num fundamento e que, estando nele, aponte para um termo. A relação dita um intervalo entre o fundamento e o termo, e um intervalo não pode ser algo natural, dado que exigiria que uma mesma coisa se encontrasse em dois sujeitos ao mesmo tempo, ou, alternativamente, que se pudesse afirmar que podem existir coisas reais que não podem ser sujeitos. Posto que estas hipóteses são impossíveis, resta dizer que as relações têm apenas ser objetivo no intelecto376.

374 Cf. Fabrizio Amerini, «Realism and Intentionality», pp. 249-250. 375 Fabrizio Amerini resume a posição de Auriol em dois postulados: «(i) only five categories refer to distinct extramental things according to the metaphysician, while according to the logician categories are fundamentally ten and they classify the basic kinds of simple predicable terms signifying the basic kinds of simple and positive concepts; (ii) nevertheless, all ten categories approved by the logician can be said to be rooted, ultimately, in extramental reality.» Fabrizio Amerini, «Peter Auriol on Categories» in Documenti e studi sulla tradizione filosofica medievale, 25 (2014), p. 503. 376 «Preterea, illud quod vnum existens est imaginandum, interuallum inter duo non videtur esse in rerum natura, sed in solo intellectu: tum quia natura non facit talia interualla, tum quia huiusmodi medium interuallum non videtur esse subiectiue in aliquo illorum, sed inter illa duo; vbi constat quod non est aliqua res quae subijci non possit; vnde necesse est quod tale interuallum sit solummodo in intellectu obiectiue; sed Commentator dicit tertio Physicorum quod relatio est vna dispositio existens inter duo; et apparet etiam sine ipso, quod paternitas concipitur, quasi per modum medij connectentis patrem cum filio, et sic de alijs relationibus; ergo non potest poni relatio nisi in apprehensione sola.» [Além disso, aquilo que, ao imaginar, existe como um só um intervalo entre duas coisas, não parece encontrar-se na natureza das coisas, mas apenas no intelecto, quer porque a natureza não produz tais intervalos, quer porque deste modo, o ponto intermédio do intervalo não parece encontrar-se subjetivamente em algum deles, mas entre eles os dois; 211

No primeiro artigo da questão, como é habitual, Auriol discute dialeticamente diversas posições. Em todas elas encontra defeitos e, ao expô-los, vai construindo as bases para o segundo artigo, onde defende que todas as relações – numéricas (isto é, todas as relações de divisão e multiplicação, como metade e dobro, e todas as relações que indicam algum tipo de unidade, como a identidade, a igualdade e a semelhança), do produtor com o produzido, do medido com a medida e a própria razão da relação em comum – têm um ser objetivo no intelecto. Os autores que expõe são Tomás de Aquino, Herveu, Henrique de Gante, Durando e Duns Escoto. Na rigorosa discussão da posição de Herveu, Auriol debate-se com um problema: o autor bretão não concebe que a relação seja o intervalo entre o fundamento e o termo. Por conseguinte, considera que esta se confunde com o fundamento e introduz o termo. Se se confunde com o fundamento, então temos de admitir que é apenas no intelecto que uma mesma coisa se distingue de si própria. Por outro lado, se a relação introduz um fundamento e um termo, então tem de ser o intervalo entre eles377. Os vários argumentos que lança contra Herveu giram em torno disto. Em

consta que não é coisa alguma aquilo que não pode ser sujeito; por isso, é necessário que tal intervalo se encontre apenas objetivamente no intelecto; mas o Comentador diz, no III da Física, que a relação é uma disposição existente entre duas coisas; e também sem este , é visível que a paternidade se concebe quase como um meio que conecta o pai com o filho, e é assim quanto às outras relações; logo, não se pode postular a relação a não ser apenas na apreensão.] Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, Typographia Vaticana, Roma 1596, d. 30, q. 1, f. 662aD-E. Cf. a tradução integral desta longa questão no Anexo 16. 377 «Aut enim intelligunt sic ponentes quod relatio non importet in recto aliquam habitudinem, quae concipiatur per modum medij et interualli cuiusdam inter fundamentum et terminum, sed quod tantummodo de conceptu relationis sit fundamentum in recto, et terminus in obliquo absque omni media habitudine connectente; vel intelligunt quod de conceptu relationis sit fundamentum et terminus in obliquo, et media habitudo in recto vtrumque connectens. Sic tamen quod habitudo illa non sit re differens a fundamento, sed conceptibiliter, nisi tantum ratione termini quem claudit in obliquo. Et si quidem primum detur, impossibile est illud stare, in intelligibile namque est, quod intellectus concipiat idem seipsum fundare; sed concipit quod relatio habet fundamentum et terminum; ergo necessario coacipit eam, tanquam aliquod medians inter illa, quod fundatur in vno et terminatur in alio.» [Com efeito, ou os que os postulam entendem que a relação não introduz diretamente alguma disposição, a qual é concebida ao modo de um meio e de um certo intervalo entre o fundamento e o termo – mas aquilo que é apenas do conceito da relação é o fundamento diretamente e o termo obliquamente, na ausência de toda a disposição intermédia que os conecte –; ou entendem que o fundamento e o termo são do conceito da relação obliquamente e a disposição intermédia que os conecte é-o diretamente. Contudo, assim esta disposição não é uma coisa diferente do fundamento – mas no modo de conceber (conceptibiliter) –, a não ser apenas pela razão do termo que contém obliquamente. E se se desse o primeiro, era impossível manter aquilo: de facto, é no inteligível que o intelecto concebe que o mesmo se funda em si próprio; mas concebe que a relação tem um fundamento e 212 primeiro lugar, se é negado que a relação se distingue do fundamento, então o intelecto tem de produzir algo que a distinga dele. Em segundo, se a relação é uma disposição (habitudo) entre um fundamento e um termo, então deve ser postulada como um intervalo ou uma mediação entre eles. Da discussão com os restantes autores, também retira outras determinações do conceito de relação. Em Henrique de Gante, rejeita a possibilidade da distinção intencional como distinção intermédia entre a de razão e a real. Em Durando, não aceita que a relação não introduza algum tipo de composição com o fundamento. Embora seja um intervalo, qualifica o fundamento. Em Duns Escoto, por fim, não aceita que aquilo que entra em composição com o fundamento possa ser algo real, pelas mesmas razões que já apontara em Herveu378. Eis, portanto, a teoria a que chega no segundo artigo: Acerca do segundo, deve considerar-se que, assumindo a relação por aquilo que diz formalmente e diretamente (formaliter et in recto), isto é, como disposição que inere (inexistit) no fundamento, faz a mediação entre o fundamento e o termo, e como não sendo outra coisa do que ser relativamente a outro (esse ad aliud) e respectus, então, enquanto tal, não tem ser nas coisas, circunscrita toda a apreensão inteletiva e sensitiva, mas tem ser na alma objetivamente (esse in anima obiective). Assim, nas coisas, não existem senão fundamentos e termos; na verdade, a disposição e conexão entre elas é a partir da alma na sua operação cognitiva379. De seguida, determina, caso a caso, que todos os subgéneros de relação são o fruto de uma operação intelectual, assunto que aqui não será tratado. Cumprida essa tarefa, propõe ainda que é da razão comum da relação que esta exista apenas na apreensão

um termo; logo, concebe-a como algo que os medeia (medians inter illa), que se funda num e tem termo no outro.] Ibidem, ff. 663bF-664aA. 378 A posição de Tomás é tomada como uma espécie de preâmbulo à de Herveu. Cf. Ibidem, art. 1, ff. 662bE-667bD. 379 «Circa secundum autem considerandum quod sumendo relationes pro eo quod dicit formaliter et in recto, videlicet pro habitudine quae inexistit fundamento, et mediat inter fundamentum et terminum, et quae non est aliud quam esse ad aliud et respectus, ipsa quidem vt sic non habet esse in rebus circumscripta omni apprehensione intellectiua et sensitiua, sed habet esse in anima obiectiue; ita quod in rebus non sunt nisi fundamenta et termini; habitudo vero et connexio inter illa est ab anima cognitiua.» Ibidem, f. 667bE. 213 intelectual, argumentando que ela, ao ser originada ou adquirida no fundamento, não produz nele qualquer mutação. Se é assim, então não pode ser real380. No terceiro artigo, discute os seis princípios, novamente contra Herveu (e outros). É neste artigo fundamental que determina que a ação e a paixão são entes reais fora da alma381. É também aqui que apresenta duas sufficientiae das categorias. Em primeiro lugar, Pedro Auriol não aceita – escrevendo, talvez, contra Henrique de Gante – que haja uma razão comum de respectus que permita agrupar as sete categorias relacionais. Se assim fosse, então os sete géneros não seriam generalíssimos, nem simples, nem divisões primárias do ente. Seriam antes espécies de um único género, ao qual se poderia chamar disposição (habitudo) ou respectus. Ademais, se os seis princípios forem tomados como espécies de respectus, não parece haver nada que os possa distinguir de um modo que não seja acidental. Mais importante do que isto, para Auriol, é o facto de os seis princípios não poderem, de todo, ser formalmente caracterizados como respectus. O único respectus que existe é o da categoria da relação, o qual se constitui como um intervalo que medeia um fundamento e um termo. Mesmo que seja verdade que todos eles ditem um intervalo, isso não é da sua razão própria382. Posto isto, apresenta uma proposta alternativa, que é a de Herveu de Nédellec: «os seis princípios não são formalmente respectus, mas coisas extrínsecas enquanto denominantes (res extrinsecae ut denominantes)383». Eis como Herveu aplica esta tese geral a quatro dos seis princípios: • ação: o agente é denominado pela forma fluente (forma fluens) no padecido, a qual é algo absoluto extrínseco ao agente384;

380 Cf. Ibidem, f. 673bA-C. 381 Há outras partes do Scriptum onde também o faz. Cf., em especial, Ibidem, d. 27, pars 1. 382 Cf. Ibidem, d. 30, q. 1, art. 3, ff. 676bB-677bA. 383 «(…) sex principia non sunt formaliter respectus, sed res extrinsecae ut denominantes.» Ibidem, f. 677bB. Deixámos para este momento a exposição do modo como Herveu de Nédellec aplica esta tese a cada um dos seis predicamentos, para que não houvesse repetições desnecessária e para que se compreenda melhor o diálogo entre os dois autores. 384 «Et hoc probo: quia quando dicitur agens esse agens, ista denominatio aut est a relatione agentis ad passum, aut est denominatio ipsius agentis a relatione passi ad agens, aut ab ipsa forma fluente que acquiritur in passo. Non primo modo, quia denominatio vniuscuiusque a relatione qua refertur pertinet ad genus relationis, vt probatum est. Nec secundo modo, quia esse agens non importat relationem passi qualitercumque vt de se patet. Reliquitur ergo tertium, scilicet, quod est denominatio agentis a forma 214

• paixão: o padecido não é denominado pela forma fluente que existe nele, mas pela causa eficiente ou agente, porque aquilo que faz com que algo seja produzido ou padecido não é imediatamente a forma, mas o agente385; • onde: o locado é denominado pela superfície, a qual, em si, não é o mesmo que o lugar, dado que precisa de denominar um locado para o ser386; • estar posicionado: as partes do locado são denominadas de diversos modos pelas partes do lugar387.

fluente; sed forma fluens dicit extrinsecum absolutum ab agente, cum sit in passo subiectiue; ergo, etc.» [E provo isto: porque quando se diz que o agente é agente, ou esta denominação é pela relação do agente com o padecido, ou é denominação do próprio agente pela relação do padecido com o agente, ou pela própria forma fluente que é adquirida no padecido. Não é no primeiro modo, porque a denominação de cada um deles pela relação que os refere pertence ao género da relação, como foi provado. Também não é no segundo modo, porque o ser agente não introduz uma relação com o padecido, seja de que maneira for, como é patente por si. Logo, resta o terceiro , a saber, que é a denominação do agente pela forma fluente; mas a forma fluente diz um absoluto extrínseco ao agente, uma vez que se encontra subjetivamente no padecido; logo, etc.] Hervaeus Natalis, Quodlibeta Hervei, I, q. 9, f. 22ra. 385 «Verbi gratia, calor causatus in passo ad hoc quod denominat aliquid calidum que est denominatio intrinseca nihil aliud requirit, vt sit quod denominetur per ipsum nisi subiectum in quo est. Vnde si per impossibile poneretur quod calor esset in subiecto et non haberet causam effectiuam adhuc verum esset subiectum esse calidum; sed ad hoc quod denominet aliquid vt calefaciens de necessitate necessario requirit aliam rem a subiecto, scilicet, causam effectiuam caloris.» [Por exemplo, o calor causado no padecido, quanto ao facto de denominar algo quente, que é uma denominação intrínseca, não requer nenhum outro a não ser o sujeito no qual se encontra, enquanto é o que é denominado por ele. Daí que, se, por impossível, se postulasse que o calor se encontraria no sujeito sem ter uma causa eficiente, ainda assim, seria verdadeiro que o sujeito é quente; mas quanto ao facto de denominar algo enquanto aquecedor (calefaciens), então requer necessariamente uma coisa diferente do sujeito, a saber, a causa eficiente do calor.] Ibidem, f. 22ra- b. 386 «Et similiter erit de loco et superficie, quia ad hoc quod superficies denominet, vt superficies, puta corpus esse latum, non requirit nisi subiectum in quo est. Ad hoc autem vt denominet vt locus locatum requirit aliud a subiecto superficiei.» [E seria semelhante quanto ao lugar e à superfície, porque quanto ao facto de a superfície denominar, enquanto superfície, por exemplo um corpo espaçoso, não requer senão o sujeito no qual se encontra. Porém, quanto ao facto de denominar, enquanto lugar, o locado, requer outra coisa além do sujeito da superfície.] Ibidem, f. 22rb. 387 «Ad tertium dubium dicendum quod manente eodem toto locato, et eodem toto loco possunt partes diuerse locati diuersis partibus loci applicari; ideo est aliqua diuersitas inter comparationem totius locati ad totum locum et partium ad partes.» [Quanto à terceira dúvida, deve dizer-se que, permanecendo o mesmo locado como um todo e o mesmo lugar como um todo, as diversas partes do locado podem ser aplicadas nas diversas partes do lugar; por isso, existe alguma diversidade entre a comparação do locado como um todo com o lugar como um todo, e das partes com as partes.] Ibidem, f. 22vb. 215

De facto, Herveu não discute aqui o quando nem o hábito, mas também neles se conseguiria encontrar algo absoluto e extrínseco que denominasse aquele que tem um quando e aquele que tem algo aplicado. A Pedro Auriol, interessam particularmente os dois primeiros predicamentos: ação e paixão. Mas antes de especificar, a sua crítica começa pela definição formal dos seis princípios. Os seis princípios não podem ser formalmente as coisas absolutas, ou subsistências (subsistentiae), enquanto denominam algo extrínseco. Se assim fosse, os seis princípios encontrar-se-iam subjetivamente no denominante, ou seriam subjetivamente o denominante. Deste modo, para dar o exemplo do autor, o onde encontrar-se-ia subjetivamente no locante e o lugar enquanto denominante seria o onde. Contudo, o onde é aquilo que é deixado pelo lugar, e não o próprio lugar, e o mesmo pode ser dito dos restantes seis princípios. Por isso, a posição de Herveu contém vários erros. Nem os predicamentos absolutos podem, de todo, pertencer aos predicamentos dos seis princípios (enquanto denominantes), nem os seis princípios diferem dos predicamentos absolutos apenas pela razão do denominado: Com efeito, a ação não é diretamente o calor, mas algo que deriva do calor; semelhantemente, o quando não é o tempo, mas algo que resta a partir do tempo e é adjacente ao temporal; também o onde não é diretamente o lugar, mas procede do lugar enquanto circunscrição passiva do corpo locado; e o mesmo é evidente quanto ao sentar-se, que não é diretamente as partes do lugar; nem o estar vestido é diretamente a veste, mas apenas obliquamente, porque resta e procede da veste. Logo, não é verdadeiro que os seis princípios só diferem dos três primeiros predicamentos absolutos na razão do denominado. Pelo contrário, sem dúvida diferem naquilo que principalmente introduzem de um modo direto388.

388 «Non enim actio est calor in recto, sed aliquid egrediens a calore. Similiter nec quando est tempus, sed aliquid quod ex tempore reliquintur, et adiacet temporali. Vbi etiam non est locus in recto, sed procedit a loco, tamquam passiua circumscriptio corporis locati. Et idem patet de sedere, quod non est in recto partes loci, nec vestiri est vestimentum in recto, sed tantum in obliquo, quia derelinquitur et procedit a vestimento. Ergo non est verum quod sex principia solum differunt a tribus primis praedicamentis absolutis ratione denominati, immo sine dubio differunt in eo quod important principaliter in recto.» Petrus Aureolus, Scriptum in Primum Sententiarum, d. 30, q. 1, ff. 678aF-678bA. 216

Posto isto, a questão que deve ser colocada é se aquilo que principalmente introduzem de um modo direto é algo produzido pelo intelecto ou algo real existente fora da alma. Nas palavras de Auriol, a hipóstase e a razão quiditativa de cada um dos seis princípios tem de ser algo além do denominado, caso contrário, seriam meras palavras sem significado. No caso da ação e da paixão, de acordo com Auriol, a sua hipóstase é, efetivamente, algo real existente fora da alma. No caso dos outros quatro predicamentos, a sua hipóstase e razão quiditativa é algo produzido pelo intelecto. No entanto, todos eles são, de pleno direito, predicamentos. Vejamos, em primeiro lugar, como critica a posição de Herveu sobre a ação e a paixão. Antes de mais, diga-se que Auriol e Herveu estão do mesmo lado no que diz respeito ao debate sobre o movimento introduzido por Alberto Magno no século anterior. Aquilo que está em causa nesse debate é a categorização do movimento389. O movimento pertence a alguma categoria? Se sim, a qual ou a quais? Discutindo diversas hipóteses, Alberto Magno aproxima-se da posição de Averróis, a qual, a determinada altura, ficou conhecida como a posição da forma fluens, por contraposição com fluxus formae, cujo defensor seria Avicena. O autor persa pensava que o movimento é algo distinto de qualquer categoria, posto que, nas categorias onde há movimento, ele tem a função de um princípio, tal como a matéria e a forma são princípios na categoria da substância, e não substâncias no sentido próprio. Já Averróis considerara o movimento como uma atualidade ou uma perfeição de algo, o que indicaria que o movimento pode encontrar-se em diversas categorias conforme a atualidade ou perfeição de que se esteja a falar. Esta posição, que é aceite por Herveu e Auriol, provém da definição de movimento dada por Aristóteles, no livro III da Física, segundo a qual o movimento é a atualidade do potencial enquanto potencial390.

389 Fomos tocando neste assunto, ainda que sem aprofundamento, ao expormos a influência de Avicena em Pedro de João Olivi. Cf., supra, 1.3. e 3.2. 390 Para um resumo da discussão na historiografia recente, em particular, sobre o facto de este par conceptual não ter sido estabelecido propriamente por Alberto Magno, ao contrário do que dissera Anneliese Maier, cf. Steven Baldner, «Albertus Magnus and the Categorization of Motion», in The Thomist, vol. 70, nº 2 (abr. 2006), pp. 203-235. Cf. Aristóteles, Física, III, cap. 1, 201b. Em Auctoritates Aristotelis: «Motus est actus entis in potentia secundum quod in potentia.» Jacqueline Hamesse, Les Auctoritates Aristotelis, Publ. Universitaires, Lovaina – Paris 1974, Physica 3, n. 99, p. 148. Em Alberto Magno: «Motus est entelechia sive perfectio eius quod est in potentia, secundum quod est in potentia». Albertus Magnus, Physica, ed. 217

De acordo com Herveu, a ação seria a atualidade ou perfeição (imperfeita, porque ainda em potência de atingir o seu termo, ou a sua atualidade plena) de uma forma naquilo que padece dela, não enquanto tal, mas enquanto essa forma denomina o agente. Pedro Auriol recusa que a ação seja essa forma. A ação tem de ser algo real absoluto que medeia o agente e a forma. Se um fogo (o agente) aquece (a ação) a água (o padecido) pelo calor (a forma fluente), pode-se pensar que a omnipotência divina poderia suspender a ação de aquecer e manter intacto o fogo e o calor, sem que o fogo fosse o agente do calor na água, dado que a ação estaria ausente. Se assim é, então a ação é algo real diverso do agente e da forma fluente391. Quanto à paixão, pode dizer-se algo semelhante. Esta não é o agente enquanto denomina o padecido, caso contrário, o calor do fogo seria a paixão da água. A paixão provém do fogo, mas é da água, do padecido. Assim, é preciso distinguir como duas coisas reais, ainda que se deem a inteligibilidade uma à outra, a ação e a paixão392.

Paulus Hossfeld, Alberti Magni Opera Omnia, tomo IV, pars 1, Aschendorff Verlag, Münster 1987, tomo IV, pars 1, lib. 3, tract. 1, cap. 4, pp. 156-157. 391 «Necesse quidem est ut ultra formam fluentem intelligatur aliquid aliud praeter solam denominationem, propter quod agens dicatur formaliter agens. Illud enim quod potest suspendi, manente denominato et denominante, non est solum denominatio, immo res aliqua inter illa; sed remanente forma fluente et illo quod agit potest Deus suspendere actionem, sicut patet quod, igne calefaciente aquam, potest Deus manutenere ignem et fluxum caloris in aquam, et tamen suspendere actionem ignis in aquam, quoniam ipsemet calefaciet et creabit fluxu caloris in aquam; ergo actio non est forma fluens ut denominans agens, immo exigitur inter formam fluentem et agens aliqua realitas quae dicitur actio, quam quidem Deus potest suspendere utroque remanente, ut dictum est.» [Decerto, é necessário que, além da forma fluente, se intelija algo diferente que não apenas a denominação, devido ao qual o agente é dito formalmente agente. De facto, aquilo que se pode suspender, permanecendo o denominado e o denominante, não é apenas a denominação, mas, pelo contrário, alguma coisa entre eles; mas permanecendo a forma fluente e aquilo que age, Deus pode suspender a ação – por exemplo, é patente que, estando o fogo a aquecer a água, Deus pode manter o fogo e o fluxo do calor na água, e contudo suspender a ação do fogo na água, dado que ele mesmo a aqueceria e criaria o fluxo de calor na água –; logo, a ação não é a forma fluente enquanto denomina o agente, mas, pelo contrário, exige-se de alguma realidade entre a forma fluente e o agente, que é dita ação, a qual Deus pode suspender mantendo as outras duas, como foi dito.] Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 30, q. 1, f. 678bD-E. Cf. Fabrizio Amerini, «Peter Auriol on Categories», 3., especialmente, pp. 514-516 e 518-522. 392 «Licet enim actione agens producat effectum, nihilominus actione non immediate producitur effectus nisi quatenus ex actione statim concipitur passiua productio originari, qua productum concipitur produci. Haec est enim natura utriusque productionis, quod vna dat intelligi aliam. Vnde dum agens intellectus producit effectum, ex hoc ipso concipitur effectus produci ab agente, et passio sit effectus, illatioque actionis. Quamuis ergo actio agentis attingat effectum, tamen per eam dicitur tantum agens agere, et similiter quamuis productione passiua effectus attingatur ab agente, nihilominus per eam effectus dicitur 218

Pedro Auriol remete a explicação mais alargada para a distinção 27, cuja primeira parte trata – a partir do problema trinitário de saber se o gerar é o mesmo que a paternidade e o ser gerado o mesmo que a filiação – justamente de mostrar, apoiando-se no comentário de Simplício às Categorias393, que a ação e a paixão não são relações. A primeira proposição da sua resposta é que «a origem pela qual o termo é originado é a paixão aquela pela qual o agente origina o termo é dita ação»394. Dando como exemplo o facto de um pai originar um filho, afirma que a relação de filiação não é a origem do filho, nem a relação de paternidade é a origem do pai. O que acontece é que um agente origina um efeito mediante a receção (a ação passiva) do mesmo pelo termo. A paixão é aquilo pelo qual o efeito se origina passivamente e a ação é aquilo que produz o efeito. As duas são necessárias para explicar a produção que se dá entre o produtor e o produzido. Quanto às restantes quatro categorias, Auriol argumenta que são verdadeiramente categorias, mas, tal como a relação, não indicam nada de real existente fora da alma. No que diz respeito ao onde, Auriol faz a seguinte descrição: «é algo primariamente deixado no locado pelo lugar por si (aliquid primo derelictum in locato a per se loco)395».

produci ab agente, nec agens producit per eam, ut apparet ex terminis. Vnde imaginatio in hoc decipitur, quod agens actione attingit effectum, et ita putatur, quod effectus attingatur actione; non attingitur autem immediate, nisi mediante actione passiua, sicut apparet diligenter consideranti significata terminorum.» [De facto, embora a ação do agente produza um efeito, ainda assim, o efeito não se produz imediatamente pela ação, a não ser enquanto pela ação se concebe que a produção passiva se origina, esta pela qual o produzido se concebe como produzido. Com efeito, é esta a natureza de uma e outra das produções: que uma dá a inteleção da outra. Daí que, quando o agente inteligido produz um efeito, a partir disso, concebe- se que o efeito é produzido pelo agente e que a paixão é o efeito e a consequência da ação. Logo, embora a ação do agente atinja um efeito, contudo, por ela, diz-se apenas que o agente age; e semelhantemente, embora pela produção passiva o efeito seja atingido pelo agente, ainda assim, é por ela que o efeito se diz produzido pelo agente, e não é o agente que produz por ela, como é evidente pelos termos. Por isso, nisto, a imaginação engana: o agente, pela ação, atinge o efeito, e assim pensa-se que o efeito é atingido pela ação; porém, não é atingido imediatamente a não ser mediante a ação passiva, tal como é visível ao considerar diligentemente os significados dos termos.] Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 30, q. 1, f. 680aC-E. 393 Cf. Simplicius, Commentaire sur les Catégories d’Aristote. Traduction de Guillaume de Moerbeke, tomo II, ed. A. Pattin et al., Corpus Latinum Commentariorum in Aristotelem Graecorum 5/2, Publications Universitaires de Louvain, Lovaina 1975, pp. 414-426; Simplicius, On Aristotle Categories 9-15, trad. Richard Gaskin, Bloomsbury, Londres – Nova Deli – Nova Iorque – Sidney 2014, pp. 19-64, especialmente pp. 57-58. 394 Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, d. 27, pars 1, p. 5. 395 Ibidem, d. 30, q. 1, art. 3, f. 681aD. 219

Nesta descrição da razão predicamental do onde, encontra-se subentendida a crítica a diversas posições, nomeadamente a de Herveu e a presente no Liber sex principiorum, entre outras. Como vimos, Auriol não aceita que o onde seja o lugar enquanto denominante, mas algo deixado pelo lugar no locado. Também não aceita que aquilo que é deixado no locado seja uma continência passiva, uma circunscrição, uma configuração ou uma comensuração, dado que há algo que tem um onde e não tem nenhuma dessas características: o céu. Aquilo que é deixado pelo lugar no locado é, antes, a ubitas ou alicubitas, o “ser onde” ou “ser algures”, a “ondidade” ou “alguresidade”, à falta de melhor palavra. Este quid, ou este elemento formal deixado pelo lugar no locado, não é algo real fora da alma. É algo apreendido por um intelecto ao conhecer os movimentos dos corpos e as suas magnitudes. Para provar a sua tese, argumenta por exclusão de partes, mostrando que o onde nem pode ser originado pelo lugar, nem pelo locado, nem por um movente que o imprimisse no locado. Ele é deixado pelo lugar, sim, mas não no sentido em que o lugar fosse a sua causa eficiente. O lugar é a origem formal do onde. A sua causa eficiente é o intelecto396.

396 «Hoc autem potest euidenter concludi, quoniam si alicubitas, vel esse hic et ibi, importaret realitatem aliquam a loco derelictam, illa realitas, vel esset effectiue a loco, vel ab ipso locato, vel ab ipso mouente, quod imprimeret ipsum in locatum. Sed non potest poni quod sit effectiue a loco, quia locus nil agit, vel efficit, et iterum magis est a loco formaliter et derelectiue quam effetiue. Nam si esset effectiue, posset illam realitatem Deus imprimere et conseruare sine loco, quod impossibile est. Nec potest dici quod sit ab ipsomet locato, quia nihil agit in se. Nec etiam potest dici quod sit a motore, quia talis realitas derelinquitur formaliter a loco, et est posterior eo, et ita actio motoris per prius terminatur ad locum, et ex consequenti ad talem realitatem, attingendo scilicet locum, vnde mediante loco dat vbitatem. Locus autem non est medium effectiuum, sed formale, vt dictum est. Ergo relinquitur quod talis ubitas sit a solo intellectu, qui concipit eam derelinqui in locato a loco, tamquam a quodam extrinseco et formali.» [Isto pode concluir-se evidentemente, posto que, se a alguresidade, ou o ser aqui e ali, introduzisse uma realidade deixada pelo lugar, então, ou essa realidade seria efetivamente originada pelo lugar, ou pelo próprio locado, ou pelo próprio movente que a imprimiria no locado. Mas não se pode postular que seja efetivamente originada pelo lugar, porque o lugar não age nem efetiva nada; e, de novo, é mais proveniente do lugar formalmente e ao modo de ser deixada (derelictiue) do que efetivamente. De facto, se fosse efetivamente, Deus poderia imprimir e conservar essa realidade sem o lugar, o que é impossível. E não se pode dizer que seja pelo próprio locado, pois não age em si. Também não se pode dizer que seja pelo motor, porque tal realidade é deixada formalmente pelo lugar e é posterior a ele; e assim, a ação do motor enquanto anterior (per prius) tem como termo o lugar, e a partir do consequente, tal realidade, ao atingir o lugar, pelo que dá a ondidade mediante o lugar. Porém, o lugar não é o meio efetivo, mas formal, como foi dito. Logo, resta que tal ondidade seja proveniente apenas do intelecto, que a concebe como deixada no locado pelo lugar enquanto por algo extrínseco e formal.] Ibidem, f. 683aD-F. 220

As restantes três categorias são alvo de uma exposição mais curta. A partir da determinação dos seis princípios como algo que é deixado (derelictum), seja isso real ou originado pelo intelecto, afirma que o quando é algo que o intelecto concebe sobre as coisas que estão no tempo. Dado que o tempo só existe na alma, o quando só pode ser originado pelo intelecto. O hábito é «um certo ser especial» deixado pelas coisas que são postas sobre os corpos animados de acordo com determinados fins. Os fins são estabelecidos por um intelecto. O estar posicionado é uma qualificação da ondidade (ubitas). Ficara já provado que o onde tem como causa eficiente o intelecto. Portanto, uma qualificação sua também terá397. Apesar de quatro dos seis princípios serem originados pelo intelecto, estes não deixam de ser formas simples, nem deixam de ser caracterizados como predicamentos. A sua razão quiditativa é simples, independentemente de serem reais ou não. Surgem, por fim, três suficiências. Na primeira, Auriol defende que só podem existir sete predicamentos não-absolutos. Na segunda e na terceira, que só podem existir dez predicamentos. Tivemos o cuidado acima de não negar que os seis princípios fossem algum tipo de intervalo entre duas coisas. Qualquer um deles, de facto, pode ser assim tomado. Todavia, ao fazê-lo, está-se a tomá-los não na sua razão quiditativa própria, mas na sua razão de relação. Assim, para Auriol, embora todos eles constituam relações – aliás, os seis juntos, e tudo aquilo que recai sobre eles, tomados como intervalos, constituem a própria categoria da relação –, também todos eles constituem outras razões quiditativas que não são relacionais. A sua suficiência, no entanto, parte de esgotar os vários tipos de intervalo entre duas coisas. Só se constitui algo consistente no intervalo entre duas coisas se uma coisa agir na outra. Logo, há dois predicamentos reais envolvidos nisso – ação e paixão – e quatro predicamentos gerados pela operação do intelecto a partir da consideração de três coisas, a saber, o tempo, o lugar e aquilo que está aplicado num corpo de acordo com determinada intenção. No caso do lugar, a consideração da ordem das partes gera um segundo predicamento, que é, evidentemente, o estar posicionado398.

397 Cf. Ibidem, f. 683bD-684aC. 398 «Quinta vero propositio est quod non possunt esse praedicamenta nisi septem quae sint aliquid consistens inter duo per modum interualli. / Vbi considerandum quod entia distincta non aliter colliguntur nisi quia 221

Após apresentar esta suficiência dos seis princípios, Auriol distingue três modos de conceptualizar os quatro predicamentos originados pelo intelecto. Podem ser tomados de acordo com a ação e a paixão reais: por exemplo, a ação de colocar uma armadura sobre um corpo e a paixão que esse corpo recebe. Podem, igualmente, ser tomados de acordo com as disposições ou relações que provêm dessas ações e paixões reais: a armadura é relativa ao armado e o armado é relativo à armadura. Em nenhum destes dois modos se está a conceptualizar os quatro predicamentos naquilo em que se constituem como predicamentos distintos. Só num terceiro modo isso acontece, a saber, «pelo modo da forma simples e do efeito formal deixado399». Mantendo o mesmo exemplo, a armatio, a armação, é uma forma simples, concebida pelo intelecto, deixada pela armadura no corpo armado. É esta forma simples que se constitui como um predicamento distinto, neste caso, do hábito. Após tamanha sofisticação, talvez seja de estranhar a simplicidade de uma das duas suficiências apresentadas para as dez categorias, último assunto sobre o qual nos debruçaremos em Pedro Auriol. Depois de resumir várias propostas de redução da lista, recolhidas em Simplício, e de repreender Avicena e alguns moderni Doctores por dizerem

vnum agit in alterum. Hoc autem potest intelligi fieri realiter, vel secundum intellectum. Et si realiter, tunc consurgit actio realis, et similiter passio; si vero secundum rationem aliquid concipitur vt agens in aliud, et imprimens in ipsum, non reperiuntur nisi tria. Primum siquidem tempus, quod mensurando imprimit rei esse heri, vel hodie. Et locus, qui imprimit hic esse, vel ibi. Et ea quae secundum rationem animatis corporibus apponuntur, quae imprimunt aliquem secundum rationem intentum, vtpote tutum esse, vel ornatum. Locus autem non solum imprimit hic esse, vel ibi toti locato, immo, et partes loci imprimunt partibus locati diuersimode hic esse, vel ibi. Et idcirco necesse est quod sint sex talia derelicta, scilicet, acitio et passio, quae profluunt secundum rem, quando vero, ubi, situs et habitus, quae profluunt secundum rationem.» [A quinta proposição é que não podem existir senão sete predicamentos que sejam algo consistente entre duas coisas pelo modo de um intervalo. / Deve considerar-se que não se recolhem entes distintos senão porque um age noutro. Porém, isto pode ser entendido como produzido realmente ou segundo o intelecto. E se for realmente, então surge a ação real e semelhantemente a paixão. Se, na verdade, algo é concebido segundo a razão enquanto agindo noutro e imprimindo nele, não são encontrados senão três. Primeiro, o tempo, que ao medir, imprime na coisa o ser ontem, ou hoje. E o lugar, que imprime o ser aqui ou ali. E aquelas coisas que estão aplicadas nos corpos animados, as quais imprimem algo intencionado segundo a razão, como por exemplo o ser protegido ou o ser ornado. O lugar, porém, não apenas imprime o ser aqui ou ali no locado como um todo, mas também as partes do lugar imprimem nas partes do locado os diversos modos de ser aqui ou ali. E portanto, é necessário que sejam seis as tais coisas deixadas (sex talia derelicta), a saber: ação e paixão, que dimanam segundo a coisa; quando, onde, estar posicionado e hábito, que dimanam segundo a razão.] Ibidem, f. 685aC-E. 399 «(…) per modum formae simplicis, et formalis effectus derelicti.» Ibidem, f. 685aF. 222 que se trata apenas de uma lista famosa, mas não justificada, o autor afirma que há uma sustentação a partir da natureza da coisa para a lista. A primeira sufficientia dá-se através do número de interrogações que podem ser feitas sobre as coisas simples, ou sobre as significações simples. Há tantas interrogações quantas categorias: quid est interroga pela substância; qualis est, pela qualidade; quantus, pela quantidade; quid agit, pelo agir; ubi est, pelo onde; quomodo ibi est, pela posição; quando, pelo quando; quomodo aptatus est, pelo hábito; quid patitur, pelo padecer400. Esta justificação é identificada por Pedro Auriol como sendo da autoria de Aristóteles, nas Categorias e na Metafísica: uma enumeração a partir de pronomes interrogativos, ou de algo que tenha essa função. Será também assim que Ockham justificará as categorias. O segundo modo é uma via divisiva dos conceitos, cuidadosamente forjada a partir de divisões binárias mutuamente exclusivas. Os conceitos são absolutos ou não-absolutos. Há dois tipos de conceito absoluto. Para diferenciá-los, utiliza os pronomes demonstrativos hoc (isto) e huius (disto). As substâncias são indicadas por conceitos que são hoc aliquid, são um isto-algo. As qualidades e as quantidades, são aliquid huius, algo disto, não diretamente um isto. Diferenciam-se uma da outra devido às duas partes da substância, forma e matéria, às quais correspondem determinações diferentes. A

400 «Sed manifestum est quod non sunt nisi decem interrogationes de aliquo demonstrato. Interroganti enim quid est hoc demonstratum, respondetur quod homo, lapis. Interroganti qualis est, respondetur albus, vel niger. Interrogantis quantus, respondetur bicubitus, tricubitus. Interroganti quid agit, respondetur quod bibit, comedit. Interroganti vbi est, quod hic, vel ibi. Interroganti quomodo ibi est, siue quomodo ibi stat, respondetur quod iacet, vel sedet. Interroganti quando venit, respondetur quod heri, vel hodie. Interroganti quomodo aptatus, vel paratus est, respondetur quod nudus est, vel vestitus. Interroganti cuius est, respondetur quod sui ipsius, vel alterius, seruus, vel dominus, vel magister. Interroganti quid patitur, respondetur quod patitur, vel moritur. Et claret quod nondum repertae interrogationes quae reduci non possunt ad aliquam istarum. Ergo nec respondens poterit inuenire quae infra denarium non contineantur.» [Mas é manifesto que não existem senão dez interrogações de algo que esteja a ser mostrado. Efetivamente, interrogando o que é isto que está a ser mostrado, responde-se que é um homem, ou uma pedra. Interrogando qual é, responde-se que é branco ou negro. Interrogando quanto, responde-se com dois côvados, ou três côvados. Interrogando o que faz, responde-se que bebe ou come. Interrogando onde está, que aqui ou ali. Interrogando de que modo está ali, ou de que modo está disposto ali, responde-se que jaz, ou que se senta. Interrogando quando vem, responde-se que ontem, ou hoje. Interrogando de que modo está equipado ou arranjado, responde-se que está nu ou vestido. Interrogando do que é que é, responde-se, de si ou de outro, que é servo, ou senhor, ou mestre. Interrogando de que é que padece, responde-se que padece, ou morre. E esclarece que não se encontram outras interrogações que não possam reduzir-se a alguma desta. Logo, também não se poderá encontrar respostas que não estejam contidas debaixo dos dez ] Ibidem, f. 686aA-C. 223 quantidade, como a matéria, dita o potencial, e a qualidade indica completudes e atos. Todos os outros conceitos não são absolutos, mas são concebidos como um intervalo entre duas coisas. Há dois tipos de intervalo: uns são concebidos como originados no sujeito no qual se encontram, a saber, a relação; outros, são deixados no sujeito por algo extrínseco, a saber, os seis princípios. A divisão, nestes, dá-se entre aqueles que deixam algo realmente no sujeito e aqueles que são apenas um modo de inteligir. Nos primeiros, encontramos primariamente a ação e, mediante a ação, secundariamente, a paixão. Nos quatro restantes, os que deixam apenas um modo de inteligir, três deles são a partir da natureza da coisa, dizendo respeito aos corpos naturais, e um não, a saber, o hábito. Os três que dizem respeito aos corpos naturais, ou são concebidos como deixados pelo tempo, ou pelo lugar. No que toca ao lugar, há ainda uma qualificação a partir das partes, coisa que não pode ocorrer no tempo401.

401 «Secundo vero potest idem numerus declarari dicendo quod omnis conceptus, vel est absolutus, non indigens aliquo extra se, vel non absolutus. Si ergo sit absolutus, vel est praecisus et quasi hoc aliquid, et sic consurgit primum praedicamentum, quod est substantia; si non est praecisus, sed magis vt huius, et tunc vel est dispositio et modificatio, et est praedicamentum qualitatis, vel non est actus et dispositio, et sic est quantitas. (…) Ergo sunt tria praedicamenta absoluta: vnum quod significat hoc quid, et ens simpliciter, e duo quae sunt entia secundum quid, et impraecisa, tamquam aliquid huius, quorum unum est potentiale et reliquum actuale. Eorum vero quae non sunt aliquid absolutum, si concipiuntur inter duo, quaedam oriuntur ex illo vbi sunt subiectiue, et sic consurgit genus relationis. Nam intellectus relationes oriri concipit ex substantiis. Quaedam vero non oriuntur ab eo vbi sint subiectiue, sed ab extrinseco derelinquuntur in subiecto, et sic consurgunt sex principia. Horum autem, quaedam realiter derelinquuntur ab alio in subiecto, vnum quidem primo, et illud est actio, alterum vero mediante eo, illud est passio. Quaedam autem solum derelinquuntur secundum modum intelligendi, quaedam ex natura rei, respicientia omnia naturalia, quaedam vero ex ordine rationis respicientia tantummodo corpora, vt secundum rationem disposita, vel habituata, et hoc vltimo modo consurgit praedicamentum habitus. Eorum autem quae respiciunt omnia naturalia corpora, numerus sumitur secundum tempus et locum, quia vltra aliud est quod sit aptum natum derelinquere aliquid secundum rationem circa omnia corpora. Et secundum hoc consurgit vbi et quando. Partes autem loci derelinquunt omne locatum et qualificationem vbitatis, ex quo consurgit praedicamentum positionis, vel situs. Partes vero temporis nullam talem qualificationem inducunt in quando, et ideo non oritur aliquod praedicamentum.» [Segundo, o mesmo número pode ser declarado a partir dos conceitos, dizendo que todo o conceito, ou é absoluto, não carecendo de algo fora de si, ou não-absoluto. Se é absoluto, ou é preciso e como que um isto-algo – e assim surge o primeiro predicamento, que é a substância –; ou, se não é preciso, mas sim um disto, então, ou é uma disposição e modificação – e é o predicamento da qualidade –, ou não é um ato e uma disposição – e assim é a quantidade. (…) Logo, são três os predicamentos absolutos: um, que significa um isto-quid e um ente na aceção simples, e dois que são entes secundum quid e de um modo impreciso, enquanto um algo-disto, dos quais um é potencial e o outro atual. Daqueles que, na verdade, não são algo absoluto, se são concebidos entre duas coisas, uns originam-se a partir daquilo onde se encontram subjetivamente, e assim surge o género da relação. Efetivamente, o intelecto concebe as relações como originando-se a partir das substâncias. Outros, na verdade, não são 224

conceitos

não- absolutos absolutos isto-algo: originados no originados por algo disto substância sujeito: relação algo extrínseco

potencial: indicam modos de indicam algo real quantidade inteligir atual: primário: a partir da a partir da qualidade ação natureza da coisa razão: hábito secundário: tempo: paixão lugar: quando partes: estar em si: onde posicionado

Figura 9. Sufficientia de Pedro Auriol

De acordo com Auriol, ficam aqui esgotados todos os conceitos primários, simples e irredutíveis. É depois destas duas tentativas que, numa nota, assume que não é possível demonstrar nenhum conceito primário a priori, embora isso não constitua qualquer problema: Os predicamentos, deveras, são conceitos primários, irredutíveis e conhecidos por si (per se noti), e portanto, a sua suficiência não se pode concluir a

originados por aquilo onde se encontram subjetivamente, mas são deixados no sujeito por extrínseco, e assim surgem os seis princípios. Deles, porém, alguns são deixados realmente por outro no sujeito: um, primariamente, que é a ação; outro, mediante esse, que é a paixão. Outros, porém, são deixados apenas segundo o modo de inteligir. E destes, uns são a partir da natureza da coisa, dizendo respeito a todas as coisas naturais; outros, na verdade, são a partir da ordem da razão, dizendo respeito apenas aos corpos enquanto dispostos e tidos segundo a razão. E neste último modo, surge o predicamento do hábito. Já daqueles que dizem respeito a todos os corpos naturais, o número é assumido segundo o tempo e o lugar, porque é naturalmente apto a deixar algo segundo a razão acerca de todos os corpos; e segundo isto, surge o onde e o quando. Contudo, as partes do lugar deixam em todo o locado uma qualificação da ondidade, a partir da qual surge o predicamento da posição ou do estar posicionado. As partes do tempo, na verdade, não introduzem tal qualificação no quando.] Ibidem, f. 686aC-686bB. 225

priori, mas é necessário chegar a ela pela divisão e como que a partir de uma caçada dos termos, como acontece em todas as coisas conhecidas por si402. Esta “caçada dos termos” não é arbitrária, caso contrário, ter-se-ia que assumir que tudo aquilo que é conhecido por si é arbitrário. O seu caráter primário e conhecido por si dita a impossibilidade de uma prova. Também não constitui um problema que metade da lista não corresponda a entes reais fora da alma: «não é necessário que sejam em ato fora , mas é suficiente que sejam em potência e que o intelecto as reduza ao ato403». Os predicamentos não têm de ser reais. São diversos enquanto significados ou enquanto conceitos, e isso é suficiente. Deste modo, para Pedro Auriol, a lista aristotélica é corretíssima. O que é incorreto é achar-se que os seus membros devem corresponder sempre a entes reais. Umas vezes, correspondem. Outras, não.

4.1.3. Pedro de Tomás (? - 1340)

Em Herveu de Nédellec e em Pedro Auriol, dos dois assuntos que permeiam a discussão da suficiência das categorias que apontámos no início do capítulo, o que mais pesou na exposição foi o da intencionalidade e da noção de ser objetivo, ou ser conhecido. Contudo, tal como pudemos verificar detalhadamente, a pergunta que guia as suas perspetivas é sempre a do grau, ou nível, de distinção existente entre as categorias, sendo a teoria do ser objetivo uma parte integrante da resposta a essa mesma pergunta. Em Pedro de Tomás, há um esforço de estabelecer todos os tipos de distinção possíveis e de aplicar essa taxonomia à distinção das categorias. Pedro de Tomás nasceu nas últimas décadas do século XIII, não se sabe ao certo quando. Há vários manuscritos que atestam que é proveniente da Galiza e que foi na província franciscana de Santiago de Compostela que se juntou aos Frades Menores, deslocando-se, depois, para Barcelona, onde lecionou no studium franciscano. Ao

402 «Praedicamenta quidem sunt primi conceptus, irresolubiles et per se noti, et idcirco non potest eorum sufficientia a priori concludi, sed oportet eam per diuisionem, et quasi ex terminis venari, sicut accidit in omnibus per se notis.» Ibidem, f. 686bB. 403 «(…) nec oportet quod sint actu exterius, sed sufficit quod sint in potentia et quod intellectus reducat illas ad actum.» Ibidem, f. 686bF. 226 contrário do que muitas vezes se afirmou na historiografia, não há evidência que comprove que tenha estudado em Paris ou que tenha conhecido Duns Escoto. No entanto, Pedro de Tomás via-se a si próprio como um seguidor do Doutor Subtil e conhecia com grande detalhe o seu comentário à Metafísica, pelo menos uma das versões dos seus comentários às Sentenças, o Tratado do primeiro princípio, os Theoremata e as Quodlibet. Estava também a par dos trabalhos de alguns outros scotizantes, tais como Guilherme de Alnwick (1275 – 1333) e Francisco de Meyronnes. Também se pensava que o autor estivesse de algum modo ligado a Toulouse, devido ao seu conhecimento profundo do Scriptum super Primum Sententiarum de Pedro Auriol, mas o mais provável é que cópias dessa obra circulassem em Barcelona na década de 1320. É nesta década, e também na anterior, pelo menos a partir de 1314, que ensina teologia aos seus confrades. Na década seguinte, a sua vida académica parece chegar ao fim. Muda-se em 1332 para a sede papal, em Avinhão, onde tem vários cargos administrativos. Surpreendentemente, em agosto de 1336, é acusado de feitiçaria. As circunstâncias desta acusação são desconhecidas. É possível que a crispação crescente entre o Papado e os menoritas, devido à questão da pobreza apostólica e a todos os acontecimentos em seu redor, esteja por trás deste acontecimento, mas não há documentação que o demonstre. Morre na prisão papal de Noves, perto de Avinhão, em outubro de 1340404.

404 Cf. a introdução de Claus A. Andersen, em Petrus Thomae (= Pere Tomàs), Tractatus brevis de modis distinctionum, ed. Celia López Alcalde – Josep Batalla, Institut d’Estudis Catalans – Obrador Edèndum – Universitat Autònoma de Barcelona – Universitat Rovira i Virgili, Santa Coloma de Queralt 2011, pp. 12- 271, em especial, pp. 14-25. Para informação biobibliográfica do autor, cf. também Garrett R. Smith, «Bibliotheca Manuscripta Petri Thomae», in Bulletin de philosophie médiévale 52 (2010), 161-200; Pío Sagüés Azcona, «Apuntes para la historia del escotismo en España en el siglo XIV», in AA.VV., De doctrina Ioannis Duns Scoti. Acta Congressus Scotistici Internationalis Oxonii et Edimburgi 11-17 sept. 1966 celebrati. Vol. IV: Scotismus decursu saeculorum, Comissio Scotistica, Roma 1968, pp. 3-19; Ignatius Brady, «The Later Years of Petrus Thomae OFM», in Studia mediaevalia et mariologica. P. Carolo Balic septuagesimum explenti annum dicata, Antonianum, Roma 1971, pp. 249-257; Isaac Vázquez, «Aportaciones histórico-literarias a la historia del pensamiento medieval en España», in Antonianum, 47 (1972) 641-684; Geoffrey G. Bridges, Identity and Distinction in Petrus Thomae, OFM, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1959. Nos últimos anos, Garrett R. Smith tem vindo a publicar edições críticas das obras de Pedro de Tomás: cf. Pedro de Tomás (=Petrus Thomae), Quaestiones de esse intelligibili; Idem, Quaestiones de ente, ed. Garrett R. Smith, Leuven University Press, Lovaina 2018. Também há edições críticas das suas Quodlibet e do tratado De unitate minori: cf. Idem, Quodlibet, ed. M. Rachel Hooper O.S.F. – Eligius M. Buytaert O.F.M., The Franciscan Institute, Nova Iorque 1957; Egbert P. Bos, The tract De unitate minori of Petrus Thome, Peeters, Lovaina 2002. 227

Pedro de Tomás conhecia bem o pensamento de Pedro Auriol. Mais do que isso, escreveu uma questão diretamente contra as críticas de Auriol à distinção formal. Não é esse o texto que aqui trabalharemos405. O tratado sobre o qual nos debruçaremos prende- se mais imediatamente com a distinção das categorias. Teve duas versões (principais) diferentes e a sua transmissão manuscrita é bastante complexa. Uma das versões foi editada por Egbert Bos, com o título De distinctione praedicamentorum406. A outra, foi editada por Celia López Alcalde, com o título Tractatus brevis de modis distinctionum407. A diferença principal entre as duas versões é o seu enquadramento teórico e a sua divisão interna. A versão editada por Bos começa com a seguinte frase: «Para a evidência das diferenças entre os predicamentos, tenho a intenção de proceder assim: primeiro, colocarei como premissa as coisas necessárias; segundo, tirarei conclusões408.» Segue-se uma nota sobre a diferença entra a abordagem lógica e a abordagem metafísica das categorias, fazendo uso do par intenção primeira vs. intenção segunda. É a abordagem metafísica que lhe interessa. Por conseguinte, nesta versão, o autor coloca como principal propósito da obra tornar evidentes as diferenças entre os predicamentos tomados metafisicamente, como intenções primeiras, e divide-a em dois artigos. Na versão editada por Celia López, o enquadramento dado na introdução é diferente: Uma vez que, de acordo com a opinião do Comentador, no IX da Metafísica, a distinção é uma paixão própria do ente, então, para que se veja a natureza dos entes, deve-se ver a natureza das distinções ou dos modos de distinguir a natureza. (…)

405 Cf. Petrus Thomae, De modis distinctionum, q. 4: Utrum distinctio secundum quid arguat necessario entitatem secundum quid in utroque vel in altero extremorum, Viena, Österreichische Nationalbibliothek, MS lat. 1494, ff. 55v-57r; Paris, Bibliothèque Nationale de France, Ms. Latin 3433, ff. 26r-29v. Não se deve confundir a sua obra De modis distinctionum (ou Quaestiones de modis distinctionis), com o Tractatus brevis de modis distinctionum. A primeira é um conjunto de questões sobre vários tipos de distinção. O Tractatus brevis não está organizado por questões, mas por artigos, proposições e corolários. Como teremos oportunidade de discutir, há duas versões deste tratado com algumas diferenças (teoricamente relevantes) nas divisões internas e na introdução. 406 Egbert P. Bos, «Petrus Thomae’s De distinctione praedicamentorum (With a Working Edition)» in Maria Kardaun – Joke Spruit (eds.), The Winged Chariot: Collected Essays on Plato and Platonism in Honour of L. M. de Rijk, Brill, Leida – Boston – Colónia 2000, pp. 296-312. 407 Petrus Thomae (= Pere Tomàs), Tractatus brevis de modis distinctionum. 408 «Ad evidentiam differentiarum praedicamentorum intendo sic procedere: primo praemittam necessaria, secundo concludam.» Egbert P. Bos, «Petrus Thomae’s De distinctione praedicamentorum», p. 296. 228

Por isso, acerca disto, procede-se assim: primeiro, coloquem-se como premissa algumas distinções; segundo, declarar-se-ão algumas proposições; terceiro, infiram-se certos corolários; quarto, tirem-se certas dúvidas409. Nesta versão, o objetivo principal do autor deixa de ser a distinção das categorias e passa a ser a elucidação da distinção enquanto paixão própria do ente. A distinção das categorias aparece como uma especificação desta tentativa mais geral de analisar as propriedades ou paixões transcendentes do ente. Ao invés de dividir o texto em dois artigos, divide-o em quatro: os três primeiros artigos correspondem ao primeiro artigo da edição de Bos. Apesar de tudo, trata-se do mesmo texto, embora enquadrado em projetos metafísicos distintos. Dado que é uma edição crítica, utilizaremos aqui a versão de Celia López, embora o nosso objetivo seja conhecer de que modo Pedro de Tomás aplica a sua taxonomia da distinção às categorias. Desde que Duns Escoto formulou a sua distinção formal, a qual, em diversas obras suas, tem vários nomes, formulações e aplicações, foram muitos os seus críticos e os seus defensores. Entre os primeiros escotistas (e simpatizantes da distinção formal que não se viam como seguidores de Escoto), houve duas tendências diferentes de abordar o enquadramento desta distinção. Alguns autores, tais como Tiago de Ascoli410, Guilherme de Alnwick e Tomás Wylton (? – 1327), preocuparam-se com o problema de saber se a distinção formal era uma distinção real ou se, pelo contrário, era um terceiro tipo de distinção que nem podia ser enquadrada na distinção real, nem na distinção de razão411. Outros, como Francisco de Meyronnes ou Pedro de Tomás, tentaram hierarquizar as diversas distinções recolhidas ou inspiradas em Escoto, de modo a sistematizá-las. A

409 «Quoniam secundum sententiam Commentatoris nono Metaphysicae distinctio est propria passio entis, ideo ad videndum naturam entium videnda est natura distinctionum vel modorum distinguendi naturam. (…) / Circa hoc igitur sic procedetur: primo praemittentur aliquae distinctiones; secundo declarabuntur aliquae propositiones; tertio inferentur quaedam corollaria; quarto removebuntur quaedam dubia.» Petrus Thomae, Tractatus brevis de modis distinctionum, § 1, pp. 284-286. Cf. tradução portuguesa integral desta obra no Anexo 17. 410 Não se sabe quando nasceu ou morreu. As únicas datas relacionadas com a sua vida são o facto de ter sido professor de teologia em Paris, entre 1309 e 1311, e o facto de ter sido favorável à condenação da beguina Marguerite Porete, em 1309/1310. Cf. Timothy B. Noone, «Ascoli, Wylton, and Alnwick on Scotus’s Formal Distinction: Taxonomy, Refinement, and Interaction», p. 128, nota 5. 411 Cf. nota 344. 229 distinção real, a formal e a de razão surgem no meio dessa sistematização, e não como problema principal. No Conflatus, um comentário ao primeiro livro das Sentenças, Francisco de Meyronnes apresenta uma lista de distinções que são independentes de qualquer operação intelectual, a saber: distinção essencial, distinção real, distinção formal e distinção entre quididade e modo intrínseco (apodada distinção modal pelos seus leitores futuros). A distinção essencial é a maior e a distinção modal a mais pequena. Todas elas são caracterizadas como distinções a partir da natureza da coisa (ex natura rei)412. A hierarquia das distinções presente em Pedro de Tomás é inspirada em Meyronnes, mas há alguns desenvolvimentos e inovações413. Pedro de Tomás começa por dividir a distinção em consonância com uma divisão básica do ente em ente real e ente de razão, a saber, a distinção a partir da natureza da coisa e a distinção de razão. A distinção a partir da natureza da coisa pode ser de três tipos: formal, real ou essencial. A essencial, por sua vez, contém dentro de si a distinção total subjetiva (distinctio se totis subiective) e a distinção total objetiva (distinctio se totis obiective).

de razão formal distinção a partir da natureza real da coisa total subjetiva essencial total objetiva

Figura 10. Taxonomia da distinção em Pedro de Tomás

412 Cf. Franciscus de Mayronis, Conflatus. Kommentar zum Ersten Buch der Sentenzen, ed. Hannes Mohle – Roberto Hofmeister Pich, Herder, Friburgo – Basileia – Viena 2013, d. 42, q. 5. 413 Cf. Claus A. Andersen, «Introduction» in Petrus Thomae, Tractatus brevis de modis distinctionum, pp. 91-97. Não discutiremos aqui as diferenças entre as diversas obras de Pedro de Tomás. Em geral, na questão 7 das Quodlibet e no De modis distinctionum, apresenta uma doutrina muita próxima da de Francisco de Meyronnes. No Tractatus brevis, há como que um aperfeiçoamento dessa doutrina inicial. Remetemos novamente para a introdução de Claus Andersen. 230

A distinção a partir da natureza da coisa é toda a distinção que não dependa de um ato de comparação, ou ato reflexivo, do intelecto. Das distinções que são independentes do intelecto, a formal é a menor e a essencial é a maior. Eis as definições dadas para cada uma delas: • Distinção formal: «distinguem-se formalmente aqueles que se têm de tal modo que, abstraído um do outro de um modo último, um não inclui o outro quiditativamente414». Os exemplos dados de uma distinção deste tipo são a distinção entre a bondade e a verdade em Deus, e a distinção entre o intelecto e a vontade na alma humana. A bondade não inclui a verdade quiditativamente, ou seja, nas suas respetivas razões formais ou definições, abstraído tudo o resto que não seja a definição. O mesmo pode ser dito quanto ao intelecto e à vontade. Contudo, há uma diferença entre o divino e o criado: nas coisas divinas, é possível que algumas coisas tenham simultaneamente uma identidade idêntica (identitas identica, ou identitas simpliciter) e uma diversidade formal. Nas criaturas, a diversidade formal conduz imediatamente a uma não-identidade idêntica, ou melhor, a identidade entre duas coisas formalmente diversas é uma identidade num sentido secundário, derivado, ou secundum quid, como era habitual dizer-se. Deste modo, no caso dos atributos de Deus, todos eles têm identidade simples, ou são essencialmente o mesmo que a essência divina, embora formalmente diversos. No caso do intelecto e da vontade numa alma criada, não é assim: a sua diversidade formal impossibilita a identidade idêntica, ou a identidade simpliciter. Apesar dessa não-identidade simpliciter, não é por isso que são essencialmente distintos. • Distinção real: «distinguem-se realmente aqueles que se têm de tal modo que qualquer um deles é formalmente positivo; e abstraído ultimamente um do outro, de nenhum modo um inclui o outro, e não pode ser predicado dele identicamente nem formalmente.415» Esta distinção deve ser lida em conjunto com

414 «(…) illa distinguuntur formaliter, quaecumque ita se habent, quod unum ab alio ultimate abstractum non includit quiditative reliquum.» Petrus Thomae, Tractatus brevis de modis distinctionum, § 9, p. 292. 415 «() illa distinguuntur realiter, quaecumque ita se habent quod quodlibet formaliter est positivum, et unum ab alio ultimate abstractum nullo modo includit aliud, nec potest de illo identice nec formaliter praedicari.» Ibidem, § 24, p. 302. 231

a anterior. Na verdade, tudo aquilo que é formalmente distinto, e que não seja um atributo divino ou uma paixão transcendente do ente (a qual, para o ser, se aplica quer ao ente infinito divino, quer ao ente finito criado, e daí a sua inclusão aqui), é realmente distinto. Embora a ausência de exemplos dificulte a interpretação desta distinção, para Pedro de Tomás, as noções de formalitas e de realitas não podem ser sinónimas, dado que nem toda a formalitas é uma realitas. Efetivamente, as coisas que são formalmente distintas e que, devido a isso, não podem ter uma identidade idêntica entre si, são mais bem consideradas realitates do que formalitates. Por conseguinte, as únicas coisas que podem ser caracterizadas como formalidades, de acordo com esta teoria da distinção, são aquelas cuja razão formal ou quididade é infinita. É a ilimitação da intimidade essencial (illimitatio essentialis intimitatis) que explica esta possibilidade de uma diferenciação formal e identidade essencial ou idêntica no caso dos atributos divinos e das paixões transcendentes do ente. Todas as outras coisas formalmente distintas também são realmente distintas416. • Distinção essencial: «distinguem-se essencialmente aqueles que se têm de tal modo que, existindo um, o outro não existe ou não é necessário que exista, como quando um é anterior ao outro por natureza; ou quando, corrompido ou destruído um, não é necessário que o outro se corrompa; ou quando um se pode postular sem o outro por alguma potência na existência atual.417» Esta distinção é aquela que mais comummente é chamada distinção real por outros autores. O exemplo que é dado de uma distinção essencial é o da distinção entre um ser humano e um anjo. Esta distinção tem, dentro de si, dois tipos de distinção que são formas extremas, por assim dizer, de distinção essencial, a saber: o Distinção total subjetiva: «distinguem-se total subjetivamente (se totis subiective) aqueles que se têm de tal modo que as realidades deles são

416 Cf. Claus A. Andersen, «Introduction», 2.4, pp. 121-145. Baseia a sua interpretação na leitura de Quodlibet, q. 6, e de De modis distinctionis, q. 2. 417 «(…) illa distinguuntur essentialiter, quacumque ita se habent quod uno existente aliud non existit vel non oportet existere, ut quando unum est natura prius alio, vel quando uno corrupto vel destructo non oportet aliud corrumpi, vel quando unum potest poni sine alio per potentiam aliquam in actuali existentia.» Ibidem, § 32, p. 308. 232

distintas em número, ou individualmente, ou na existência atual, ou quando a realidade de um é particularizada e dividida da realidade de outro, tal como Pedro e André, e como quaisquer indivíduos da mesma espécie418». Ser subjetivo é aqui sinónimo de ser atual, ou ser de existência atual (esse actualis existentiae). É a distinção própria do nível do indivíduo, daquilo que é numericamente uno. o Distinção total objetiva: «distinguem-se total objetivamente (se totis obiective) aqueles que não convêm nalguma realidade una ou razão quiditativa, ou dos quais não se pode abstrair algum conceito unívoco real ou razão própria»419. Esta distinção é a mais extrema de todas. É uma distinção na qual não há nenhum ser objetivo ou intencional que confira algum tipo de unidade às duas partes distinguidas num conceito comum. No caso de dois indivíduos, que são subjetivamente diversos, mesmo que sejam de espécies e géneros diferentes, há ainda uma identidade objetiva possível no conceito unívoco de ente. Mas há coisas onde a mais fraca das identidades objetivas é impossível: a distinção entre aquilo que é apenas predicado in quid e aquilo que é apenas predicado in quale, a saber, a distinção entre o ente e as suas paixões, a distinção entre as diferenças últimas de cada espécie especialíssima e a distinção entre as formas individuais ou individuantes de cada indivíduo. Em todos estes casos, é impossível encontrar um conceito objetivo unívoco que lhes seja comum. Frisemos novamente a dimensão hierárquica das distinções. A distinção total objetiva é a mais forte e a distinção de razão a mais fraca. Neste sentido, tudo aquilo que é total objetivamente distinto, é também total subjetivamente distinto (e claro, essencialmente distinto). Não só é total subjetivamente distinto, como é realmente distinto, formalmente distinto, distinto a partir da natureza da coisa e racionalmente distinto. Inversamente, aquilo que é, por exemplo, formalmente distinto, não é necessariamente realmente distinto, nem essencialmente distinto. A divisão maior inclui

418 «(…) illa distinguuntur se totis subiective, quaecumque ita se habent quod realitates eorum sunt distinctae numero vel individualiter vel in actuali existentia vel quando realitas unius est particulata et divisa a realitate alterius, sicut Petrus et Andreas et quaelibet individua eiusdem speciei.» Ibidem, § 33, p. 308. 419 «(…) illa distinguuntur se totis obiective, quae non conveniunt in aliqua una realitate seu ratione quiditativa vel a quibus non potest abstrahi aliquis conceptus univocus realis seu propriae rationis.» Ibidem, § 34, p. 310. 233 a menor, mas não conversamente. Deste modo, mesmo as subdivisões da distinção a partir da natureza da coisa e da distinção essencial têm uma hierarquia entre si420. Posto isto, Pedro de Tomás dedica o último artigo do Tractatus brevis à aplicação da taxonomia às categorias. Efetivamente, crê que pode provar que as categorias são distintas se totis subiective. A única distinção que não existe entre elas é a distinção se totis obiective. O seu procedimento consiste em percorrer as seis distinções a partir da natureza da coisa, provando ou reprovando, em cada uma delas, que os predicamentos sejam assim distintos. A primeira afirmação que faz é que todos os predicamentos são distintos a partir da natureza da coisa. Apresenta várias provas para esta afirmação, tais como afirmar que não é por um ato de comparação do intelecto que se distinguem, ou que pertencem ao âmbito de uma ciência real. Por conseguinte, têm de ser reais. Argumenta também que as partes subjetivas do ente real têm de ser entes reais. Mas as provas mais interessantes, pelo menos quanto ao presente trabalho, são as duas últimas. Na penúltima, explora a noção de intenção primeira. Tomadas metafisicamente, as categorias são intenções primeiras. Postulado isto, argumenta: A maior prova-se, pois a razão formal da intenção primeira é a partir da natureza da coisa – com efeito, a inteligibilidade da coisa é a partir da natureza da coisa –; mas a inteligibilidade é a razão formal da intenção primeira; logo, a razão formal da intenção primeira é a partir da natureza da coisa. A maior deste silogismo prova-se: porque precede todo o ato do intelecto. De facto, a aptidão ou potência de inteligir precede todo o ato do intelecto, pelo que, circunscrito todo o ato do intelecto, ainda assim as coisas têm uma inteligibilidade. Também porque a verdade e a entidade, que são as razões da inteligibilidade, são a partir da natureza da coisa421.

420 Cf. Ibidem, § 38, p. 312. 421 «Maior probatur, quia ratio formalis primae intentionis est ex natura rei, nam intelligibilitas rei est ex natura rei. Sed intelligibilitas est ratio formalis primae intentionis. Ergo ratio formalis primae intentionis est ex natura rei. / Maior istius prosyllogismi probatur: tum quia praecedit omnem actum intellectus, aptitudo enim vel potentia intelligendi praecedit omnem actum intellectus, unde circumscripto omni actu intellectus adhuc res habent intelligibilitatem; tum etiam quia veritas et entitas, quae sunt rationes intelligibilitatis, sunt ex natura rei.» Ibidem, § 45, pp. 318-320. De seguida, remete para as Quaestiones de 234

A inteligibilidade é a razão formal da intenção primeira e precede todo o ato do intelecto. Relembremos aqui Herveu e a ideia segundo a qual a intenção introduz a disposição da coisa inteligida para o ato de inteligir. A última prova que apresenta tem interesse na medida em que estabelece que as categorias se constituem a partir da distinção de modos intrínsecos, a saber, a perseitas, a inesseitas e a adalietas (tentativamente, perseidade, inerencialidade e relacionalidade422). É o único lugar de todo o tratado onde se faz menção ao modo intrínseco. Efetivamente, não se particulariza uma distinção modal na taxonomia. Estabelecido que se distinguem a partir da natureza da coisa, segue-se a segunda conclusão: todos os predicamentos são formalmente distintos. Pela definição da distinção formal, é fácil ver porque é que todos os predicamentos são formalmente distintos: abstraído tudo aquilo que não seja a sua razão formal, não se incluem uns aos outros na sua razão quiditativa. Seria preciso discorrer sobre cada um deles para demonstrá-lo. Pedro de Tomás não o faz, embora ensaie esse exercício no último dos argumentos que apresenta a favor da sua tese: a substância contém dois atributos a partir da natureza da coisa que não se atribuem a nenhum outro predicamento, a saber, a perseitas e a absoluteitas423. A terceira conclusão é que todos os predicamentos se distinguem realmente. É também pela definição da distinção real que se prova esta tese. Em primeiro lugar, o predicamento é formalmente algo positivo, dado que as privações e as negações integram os predicamentos apenas acidentalmente, não em si. Em segundo lugar, nenhum predicamento pode ser predicado de outro, nem formalmente (daí serem formalmente distintos), nem identicamente, dado que nenhum predicamento é infinito na sua razão formal, mesmo que se tome infinito num sentido laxo (permissive infinitum, nas palavras

esse intelligibili, onde trabalha exaustivamente o problema de saber se o intelecto, criado ou divino, causa alguma coisa na inteligibilidade ou no ser inteligível das coisas. 422 Cf. Ibidem, § 46, p. 320. 423 Cf. Ibidem, §§ 47-52, pp. 322-326. Talvez queira dizer que nenhum outro contém estes dois atributos em conjunto, dado que a absoluteitas, pelo menos pelo que é exposto noutras passagens, também é característica da qualidade e da quantidade. 235 de Pedro de Tomás). Os predicamentos, no panorama mais geral do ente, estão contidos sob o conceito de ente finito424. Não só os predicamentos se distinguem como realitas e realitas, mas como res e res. É esta a quarta conclusão: todos os predicamentos são essencialmente distintos. Neste contexto, tal como ocorrera em Pedro Auriol com o propósito de provar o estatuto real da ação e da paixão, faz-se uso do mecanismo teórico da potência divina: «a coisa de um predicamento, pela potência divina, pode ser postulada na existência atual na ausência da coisa de outro predicamento425». Pedro de Tomás não tem a necessidade de provar esta possibilidade no que diz respeito aos dois acidentes absolutos. Fá-lo apenas para os relativos, perguntando-se se estes podem ser postulados na ausência dos absolutos. Para o fazer, começa por afirmar que o fundamento de algo relativo é como uma causa desse relativo. É necessário demonstrar que, tomado como qualquer uma das quatro causas, o fundamento pode ser substituído ou eliminado pela potência divina. As causas eficiente e final podem ser perfeitamente disponibilizadas pela potência divina. O problema reside nas outras duas, a material e a formal. No que toca à causa formal, o fundamento não pode ter essa função, caso contrário, isso quereria dizer que os predicamentos relativos seriam formalmente absolutos e, em última análise, que o absoluto e o relativo são formalmente o mesmo, o que é absurdo. Resta, por conseguinte, a causa material. Pedro de Tomás divide a matéria, de acordo com uma divisão tradicional, em matéria “na qual” (in qua) e matéria “a partir da qual” (ex qua). O segundo tipo de matéria é próprio do composto hilemórfico que é a substância, pelo que não faz sentido postulá-la num acidente. Um acidente tem uma matéria na qual se encontra, exatamente por não ser uma substância. A potência divina poderia separar a matéria na qual o acidente relativo se encontra e, ainda assim, este continuaria a existir? De acordo com Pedro de Tomás, sim. Ao contrário do que acontece com as causas eficiente e final, Deus não pode desempenhar o papel de causa material do predicamento relativo. Porém, Deus pode sustentar a existência de um predicamento relativo sem causa

424 Cf. Ibidem, §§ 53-56, pp. 326-330. 425 «Res unius praedicamenti per potentiam divinam potest poni in actuali existentia absque re alterius praedicamenti…» Ibidem, § 58, p. 330. 236 material. Seria o mesmo que separar os acidentes absolutos do seu sujeito. A sua argumentação, depois, torna-se cristológica: se Deus, na Incarnação, cria uma natureza na ausência de um supósito, muito mais pode criar um predicamento relativo na ausência de um fundamento, posto que o supósito está mais intimamente ligado à natureza do que o fundamento ao respectus426. Por fim, chegamos às especificações da distinção essencial: o par se totis subiective vs. se totis obiective. Como seria de esperar pelo que tem vindo a ser dito, os predicamentos não podem ser considerados total objetivamente distintos, dado que há conceitos (reais, unívocos, de primeira intenção) comuns a partir dos quais estes podem ser concebidos em conjunto, a saber, o conceito de ente e seus equivalentes (isto, algo, etc.), bem como o conceito de ente finito. É esta a sexta conclusão427. Por isso, os predicamentos são essencialmente distintos no sentido em que são total subjetivamente distintos, a quinta conclusão desta parte do tratado. Por outras palavras, cada uma das categorias tem os seus próprios indivíduos reais e separáveis, ainda que apenas através da omnipotência divina. São exploradas duas objeções. A primeira é que as coisas transcendentes (ou transcategoriais, coisa que, neste contexto, significa o mesmo) se encontram em todas as categorias, pelo que há coisas cujo mesmo ser subjetivo é partilhado por elas. A segunda é que há situações em que um mesmo sujeito se encontra em duas categorias, como acontece no caso do saber (scientia), o qual, de acordo com Aristóteles, se encontra simultaneamente nas categorias da qualidade e da relação. As suas respostas mostram qual o papel das categorias no plano mais geral do seu projeto metafísico. Em primeiro lugar, os transcendentes que são partilhados por elas, na verdade, estão contraídos pelo seu ser próprio, isto é, o ser subjetivo dos transcendentes é diverso em cada uma das categorias onde se encontram. Em segundo lugar, apenas os entes por acidente podem encontrar-se em mais do que uma categoria simultaneamente. É por isso, aliás, que são entes por acidente. No que diz respeito ao caso do saber, ou da ciência, fazendo uso da autoridade de Boécio, ela está a apontar para duas naturezas

426 Cf. Ibidem, §§ 58-67, pp. 330-338. 427 Cf. Ibidem, §§ 79-80, pp. 344-346. 237 completamente diferentes ao ser incluída na qualidade e ao sê-lo na relação: «as disposições (habitudines), naquilo em que são disposições para alguma coisa, postulam- se na relação; naquilo em que, de acordo com elas, dizem algum quale, enumeram-se nas qualidades428.» Não há, em todo o tratado, uma tentativa de provar que as categorias são dez, ou mais, ou menos. O que há, da parte de Pedro, é uma taxonomia da distinção que dita que as dez categorias, tomadas pelo metafísico como intenções primeiras, são total subjetivamente distintas. O léxico da distinção criado por Pedro de Tomás e por Francisco de Meyronnes deu origem a uma tradição – duradoura, contínua, pelo menos até ao século XVIII429 – que propõe, reformula, discute ou critica as sete distinções, especialmente no seio do escotismo430.

4.1.4. Guilherme de Ockham (c. 1287/1288 - 1347)

Atingimos o último autor deste subcapítulo. Não o deixámos para o fim com o objetivo de o apresentar como um corolário, ou como o disruptor, ou como uma personagem filosófica de algum modo destacável, como é costume fazer-se com Tomás de Aquino ou Duns Escoto. Pelo contrário, deixámo-lo para o fim para mostrar que a historiografia talvez lhe tenha dado demasiado destaque, ou, pela negativa, talvez tenha negligenciado outros autores tão ou mais férteis em ideias e influência para o futuro431.

428 «Ita quoque et habitudines, in eo quod alicuius rei habitudines sunt, in relatione ponuntur, in eo quod secundum eas quales aliqua dicuntur, in qualitate numerantur.» Ibidem, § 74, p. 342. É uma citação de Boethius, In Categorias Aristotelis libri IV, PL 64, 261C. 429 Cf. Alipius Locherer, Clypeus Philosophico-scotisticus, apud Martinum Veith, Augsburgo 1742, tomo 1, disp. 4, art. 1, pp. 206-207. Esta obra, curiosamente, é dedicada ao Infante Manuel de Portugal, filho de D. Pedro II e irmão de D. João V. 430 Cf. Claus A. Andersen, «Introduction», 3.2., pp. 203-271. Neste capítulo, explora-se a influência deste tratado no futuro, desde a propagação das suas ideias (alteradas, misturadas com outras) no Tractatus formalitatum, de um autor anónimo, até ao século XVIII, passando por autores como António Trombetta, João Vallo, Nicolau de Orbellis (ou Orbelles, ou Orvaux), Agostinho de Ferrara, Pedro Tartaret, Filippo Fabri, Bartolomeo Mastri, Suárez, entre muitos outros. 431 É esta a opinião de Christopher Schabel, para quem o grande nome do tempo de Ockham e das décadas que se lhe seguem é Pedro Auriol: «Whether they were Thomists, like the Dominican Bernard Lombardi, or Scotists, like the Franciscan Landulph Caracciolo, or more independent, like the Franciscan Gerard Odonis, it was impossible for them to avoid dealing with Auriol’s theories. Simple bean counting shows 238

A vida de Guilherme de Ockham é profundamente marcada pela questão da pobreza apostólica. Foi entregue pela sua família ao cuidado dos franciscanos numa idade muito jovem, entre os 7 e os 13 anos, e foi no studium franciscano de Londres que fez a sua formação filosófica e teológica. Sabe-se que comentou as Sentenças em Oxford entre 1318 e 1319, mas voltou para Londres entre 1320 e 1324, período em que se concentra a grande maioria da sua produção filosófica e teológica. Apesar do título de Venerabilis Inceptor, que parece querer dizer que nunca se tornou propriamente mestre de teologia, há pelo menos dois documentos nos quais surge como magister. Provavelmente, esta questão tem que ver com a interrupção da sua carreira pelo facto de os seus ensinamentos terem criado sérias dúvidas a vários confrades e conterrâneos seus, em particular a João Lutterell (? – 1335), chanceler da Universidade de Oxford. De facto, Ockham teve de mudar-se para o convento franciscano de Avinhão, em 1324, enquanto aguardava os resultados dos trabalhos de uma comissão criada para avaliar se as suas teses teológicas eram heréticas. Nos anos em que lá esteve, teve tempo para rever as suas Quodlibet. A sua vida e a sua produção literária mudam completamente depois do seu encontro, em 1327, com o Ministro Geral Miguel de Cesena (c. 1270 – 1342), que o convence de que o papa João XXII é um herege, especialmente, pelos seus escritos sobre a pobreza apostólica. Depois deste encontro, Ockham dedica a sua vida a batalhar contra o papado, produzindo dezenas de escritos sobre a questão da relação entre o poder temporal e o

how preoccupied they were over the 30 years after his Parisian Sentences lectures: Auriol is the main opponent – or at least the most commonly cited theologian after Scotus – in the works of virtually every Parisian Franciscan for the next quarter century. At Oxford, only the local boy William of Ockham outranks Auriol in the Sentences commentaries of the Franciscans Walter Chatton, Adam Wodeham, and John of Rodington. Among the Parisian Dominicans, Hervaeus Natalis battled Auriol directly, Raymond Bequini actually composed a polemical work against Auriol, and Bequini’s and Bernard Lombardi’s Quodlibeta are primarily directed at Auriol. To varying degrees this is true of the Augustinians Gerard of Siena, James of Pamiers, Michael of Massa, and probably Thomas of Strasbourg. Auriol is second only to Scotus in the amount of attention he received from the Carmelite John Baconthorpe. This continued into the 1340s: for the Augustinians Alphonsus Vargas of Toledo and Gregory of Rimini, Auriol was a close second to Scotus, although Gregory of Rimini cited Ockham as often as Auriol. The Carmelite Paul of Perugia cited Auriol more than any other theologian of the thirteenth and fourteenth centuries. After the Black Death, this focus on Auriol faded to an extent, but even in the fifteenth century the Thomist John Capreolus and the Scotist Peter of Nugent considered Auriol the main threat to their champions. Auriol remained an important thinker down to the Protestant Reformation and well into the seventeenth century.» Christopher Schabel, «Peter Auriol» in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, Springer, Dordrecht 2011, p. 937. 239 espiritual. Em 1328, fugiu de Avinhão com Miguel de Cesena e outros confrades, e foi para a corte do imperador Luís da Baviera (1282 – 1347), em Pisa, em busca de proteção. De Pisa, este grupo dissidente dirigiu-se para Munique, onde Ockham viveu até à data da sua morte, em 1347432. Iremos focar-nos em três textos onde Ockham se pronuncia sobre o problema da suficiência das categorias, a saber, a sua Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis (1321 – 1324), a Quodlibet V, questões 21 a 23 (revistas em Avinhão, c. 1324 – 1325) e aquela que é muitas vezes considerada a sua grande obra, a saber, a Summa logicae (c. 1323 – 1325), cujos capítulos 40 e 41 do livro I são dedicados às categorias e à sua suficiência433. Diga-se, antes de mais, que Ockham se aproxima de Auriol nuns assuntos, mas, simultaneamente, Auriol e Herveu estão mais próximos um do outro noutros assuntos do que Ockham deles. Ao negar que haja algum tipo de realidade correspondente aos conceitos genéricos e específicos, Ockham afasta-se das formalitates (ou realitates, na taxonomia mais refinada de Pedro de Tomás) escotistas, tal como o fazem Herveu e Auriol. Posto isto, tal como eles, Ockham precisa de encontrar outra justificação para a unidade do conceito. Vimos atrás que, em Herveu, essa justificação se baseia na noção de conformitas, isto é, há graus de conformidade ou inconformidade entre as coisas que conferem um fundamento real ao facto de retirarmos de uma mesma coisa diversos conceitos mais ou menos determinados. Deste modo, a cada conceito específico ou genérico corresponde na realidade uma relação de maior ou menor conformidade entre várias coisas, e neste sentido, esses conceitos podem ser considerados reais, dado que as

432 Sobre a vida e a obra de Guilherme de Ockham, cf. Paul Vincent Spade – Claude Panaccio, «William of Ockham» in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2019 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/spr2019/entries/ockham/; Stephen F. Brown, «William of Ockham» in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, pp. 1410-1416; Alessandro Ghisalberti, Guilherme de Ockham, trad. Luís A. De Boni, Edipucrs, Porto Alegre 1997, pp. 15-36; Gedeon Gál, «William of Ockham Died “Impenitent” in April 1347», in Franciscan Studies, 42 (1982) 90-95. Há duas obras fundamentais sobre que Guilherme de Ockham que não podiam deixar de ser referidas: Marilyn McCord Adams, William Ockham, 2 vol., University of Notre Dame Press, Notre Dame 1999; Paul Vincent Spade (ed.), The Cambridge Companion to Ockham, Cambridge University Press, Cambridge, 1999. 433 Deixaremos de fora as questões sobre a relação (de atribuição dubitável a Ockham, embora aceite por muitos estudiosos). As questões sobre a quantidade, preambulares a um conjunto de questões cristológicas e eucarísticas, serão apenas brevemente mencionadas. 240 coisas estão dispostas para serem assim pensadas devido a algo real nelas. Em Auriol, não se fala de uma conformitas, mas de uma similitudo. Contudo, Auriol não aceita que o ser objetivo, ou intencional, seja introduzido por uma disposição da coisa. As intenções são uma mistura indistinguível entre conceção passiva e coisa concebida. São as coisas que recebem o ser conhecido ou intencional quando o intelecto contacta com elas. O percurso é inverso, por assim dizer. Em Ockham, em primeiro lugar, não há a necessidade de postular um ser objetivo ou intencional que seja o resultado de um ato cognitivo. Pelo contrário, a intenção é o próprio ato cognitivo abstrativo, ou seja, não é outra coisa do que uma qualidade inerente numa alma, a qual pode servir de signo e conter propriedades como conotar e supor434. A noção de ser objetivo, ou ser intencional, é vista como desnecessária. Uma das passagens mais importantes onde desenvolve esta teoria é, justamente, uma questão da Ordinatio em que debate a posição de Pedro Auriol435. Neste ponto em particular, as teorias da intencionalidade de Pedro Auriol e Herveu de Nédellec são mais afins. Contudo, Ockham está próximo deles, especialmente de Auriol, ao afirmar que a intenção se constitui como algum tipo de semelhança. Por exemplo, o conceito de uma espécie especialíssima baseia- se na semelhança máxima que existe entre coisas da mesma espécie, semelhança esta que permite que, ao apreender (pela cognição intuitiva) um indivíduo de uma espécie, se possa gerar um ato cognitivo que represente qualquer outro indivíduo dessa espécie. Para o conceito genérico, por sua vez, há uma semelhança menor entre várias espécies que permitem formar esse conceito genérico436.

434 A sua posição mudou ao longo da sua obra. Inicialmente, defendia uma teoria da existência de um ser objetivo, ou ser intencional, mas depois abandonou-a. Cf. Claude Panaccio, Ockham on Concepts, Ashgate, Aldershot – Burlington 2004, cap. 2, pp. 21 e ss. 435 Cf. Guillelmus de Ockham, Ordinatio. Distinctiones II-III, ed. Stephen Brown – Gedeon Gál, OFM, Opera Theologica, vol. II, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1970, d. II, q. 8, pp. 289-292. 436 Cf. Idem, Quodlibeta Septem, ed. Joseph C. Wey, CSB, Opera Theologica, vol. IX, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1980, I, q. 13, pp. 72-78); Summa logicae, ed. Philotheus Boehner, OFM – Gedeon Gál, OFM – Stephen Brown, Opera Philosophica, vol. I, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1974, III- 2, cap. 29, pp. 557-560. Sobre a relação de semelhança, cf. Idem, Ordinatio. Distinctiones XIX-XLVIII, ed. Girard Etzkorn – Franciscus E. Kelley, Opera Theologica, vol. V, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1979, d. 30, q. 5, p. 385. Cf. também Claude Panaccio, Les mots, les concepts et les choses. La sémantique de Guillaume d’Occam et le nominalisme d’aujourd’hui, Bellarmin – Vrin, Montréal – Paris 1992, pp. 258- 267. 241

É controverso para os mais eminentes intérpretes de Ockham se ele utiliza a noção de similitudo apenas por respeito pela tradição aristotélica, não lhe dando um sentido muito preciso e querendo dizer, na verdade, que os atos cognitivos se assemelham àquilo de que são signo apenas na medida em que há uma relação de causalidade envolvida. Seria esta a posição de intérpretes como Marilyn McCord Adams, Joël Biard e Peter King. Claude Panaccio, entre outros, defende que é filosoficamente relevante para Ockham que os conceitos sejam similitudines. Aqui, não nos debruçaremos nas minúcias da questão437. O nosso objetivo não se altera, dado que não nos interessa tanto definir o que explica a representacionalidade do ato cognitivo. Queríamos apenas apontar para algumas características do seu pensamento que nos deem um lastro teórico, tal como temos vindo a fazer. É notória, com efeito, a influência deste assunto na questão da suficiência das categorias. Na Summa logicae, o capítulo onde se define “intenção primeira” e “intenção segunda” remete a questão de saber se as intenções são algum ente de razão fictício, ou se são um ato cognitivo, para o capítulo onde é definida a noção de “predicamento”438.

437 Parece-nos, contudo, que uma parte grande do dissenso entre estes intérpretes se deve ao facto de compararem a doutrina de Ockham com doutrinas contemporâneas de filosofia da linguagem e de filosofia da mente anglo-saxónicas: ensaiam encaixar a sua teoria ora no realismo direto, ora no representacionalismo, ora noutros termos anacrónicos, e comparam as suas doutrinas com autores como Hilary Putnam e Jerry Fodor. Independentemente disso, a discussão em si é riquíssima. Para um debate concreto entre as duas interpretações, cf. Claude Panaccio, Ockham on Concepts, cap. 7; Peter King, «Ockham on the Role of Concepts», apresentação no Colloque Annuel de la Societé de Philosophie du Québec, Chicoutimi, 10 a 14 de maio de 2005, http://individual.utoronto.ca/pking/presentations/Ockham_on_Concepts.pdf (consultado a 04/09/2020). 438 O assunto também é discutido no capítulo 15, sobre o facto de o universal ser uma intenção na alma, e não uma coisa real fora da alma: «Et ideo simpliciter concedendum est quod nullum universale est substantia, qualitercumque consideretur. Sed quodlibet universale est intentio animae, quae secundum unam opinionem probabilem ab actu intelligendi non differt. Unde dicunt quod intellectio qua intelligo hominem est signum naturale hominum, ita naturale sicut gemitus est signum infirmitatis vel tristitiae seu doloris; et est tale signum quod potest stare pro hominibus in propositionibus mentalibus, sicut vox potest stare pro rebus in propositionibus vocalibus.» [E, portanto, deve-se conceder simplesmente que nenhum universal é substância, seja qual for a maneira de o considerar. Qualquer universal é, porém, uma intenção da alma, que, segundo uma opinião provável, não difere do ato de inteligir. Assim, dizem que a inteleção pela qual intelijo homem é um signo natural dos homens – natural assim como o gemido é signo de enfermidade, ou de tristeza, ou de dor; e é tal signo que pode estar pelos homens nas proposições mentais, assim como a palavra falada pode estar pelas coisas nas proposições faladas.] Guillelmus de Ockham, Summa logicae, cap. 15, p. 53 (trad. port., p. 164). A tradução portuguesa citada (com pequenas alterações, por uma questão de uniformidade com o restante trabalho) é a seguinte: Guilherme de Ockham, Lógica dos 242

Para Ockham, acompanhando a tradição, o termo “predicamento” pode ter dois significados: ou é tomado como toda a linha predicamental, ou é tomado como o primeiro e mais comum de cada linha predicamental439. No primeiro sentido, os dez predicamentos são intenções primeiras incomplexas, isto é, são atos do intelecto que constituem signos naturais de coisas que não são signos. Contudo, no conjunto de todos os termos que estão incluídos numa linha predicamental, há, por vezes, intenções segundas, a começar pelos próprios universais. Estes, tomados não como signos naturais de várias coisas – umas dentro da alma, outras fora da alma, conforme o universal –, mas como aquilo mesmo que se encontra na alma e que tem essa função, são qualidades particulares de almas particulares440. Por conseguinte, a divisão aristotélica do ente fora da alma em dez

Termos (=Summa logicae, pars 1: De terminis), trad. Fernando Pio de Almeida Fleck, Edipucrs – Universidade de São Francisco, Porto Alegre 1999. Sobre a ideia de uma linguagem mental, ou um discurso interior, e as suas inspirações no De trinitate de Agostinho, e, antes dele, na distinção entre logos endiathetos e logos prophorikos, cf. Claude Panaccio, Le discours intérior. De Platon à Guillaume d’Occam, Éditions du Seuil, Paris 1999. 439 Não se compreende por que razão Jorge Gracia e Lloyd Newton apontam para esta divisão como algo importante que Ockham transmite aos autores subsequentes. Trata-se de uma divisão comum. Cf. Jorge Gracia – Lloyd Newton, «Medieval Theories of the Categories», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/medieval-categories/, cap. 5.2. 440 «Verumtamen praedicamentum dupliciter accipitur. Uno modo pro toto ordine aliquorum ordinatorum secundum superius et inferius, alio modo accipitur pro primo et communissimo in ordine illo. Et isto secundo modo accipiendo praedicamentum, quodlibet praedicamentum est unum incomplexum primae intentionis, et hoc quia significat res quae non sunt signa. Accipiendo autem praedicamentum primo modo, sic potest dici quod quandoque in aliquo tali ordine sunt incomplexa primae intentionis, et aliqua sunt incomplexa secundae intentionis. Vel potest dici quod aliqua talia sunt primae intentionis et aliqua secundae intentionis. Sicut secundum opinionem quae ponit quod intentio vel conceptus est qualitas subiective exsistens in mente, hoc commune ‘genus’ est in praedicamento qualitatis vel relationis, nam omne genus est qualitas secundum illam opinionem. Et hoc commune 'genus' est secunda intentio vel nomen secundae intentionis, hoc autem commune 'color' est prima intentio. Et consimiliter potest dici de multis aliis.» [“Predicamento”, entretanto, é tomado de dois modos. De um primeiro modo, por toda a ordem do que é ordenado segundo o superior e o inferior; de outro modo, toma-se pelo primeiro e maximamente comum em tal ordem. E tomando “predicamento” desse segundo modo, qualquer predicamento é um incomplexo de intenção primeira, e isso porque significa coisas que não são signos. Tomando, porém, “predicamento” do primeiro modo, pode ser dito que algumas vezes numa tal ordem há incomplexos de intenção segunda; ou pode ser dito que alguns deles são de intenção primeira e outros de intenção segunda. Assim, segundo a opinião que considera que a intenção ou conceito é uma qualidade que existe subjetivamente na mente, o comum “género” está no predicamento da qualidade ou da relação, pois todo o género é uma qualidade segundo aquela opinião. E o comum “género” é uma intenção segunda ou um nome de segunda intenção; o comum “cor” é, porém, uma intenção primeira. E de maneira semelhante pode ser dito de muitos outros.] Guillelmus de Ockham, Summa logicae, cap. 40, p. 111 (trad. port., pp. 225-226). 243 predicamentos, presente no livro VI da Metafísica441, deve ser lida cautelosamente. A divisão entre ente na alma e ente fora da alma não pode ser uma divisão entre opostos mutuamente exclusivos. Depende do modo como teorizamos os entes na alma. Estes podem ser tomados significativamente, como signos que podem conotar e supor; ou como qualidades dessa alma, isto é, como entes reais realmente inerentes nessa alma. Não há, portanto, incompatibilidade com Aristóteles se se disser que nos predicamentos se encontram muitas coisas que não são entes fora da alma. Deste modo, quer no proémio ao seu comentário às Categorias, quer na Quodlibet, questão 21, quer na Summa logicae, o autor inglês reitera que o sujeito das Categorias é a palavra (vox) ou a intenção da alma de que a palavra é signo. É este o erro dos “modernos”, isto é, aqueles autores seus contemporâneos, como por exemplo Gualter Burley, que creem «que aqui são ditas muitas devido às coisas, estas que, todavia, pretendeu que fossem entendidas apenas enquanto aplicadas às palavras – e proporcionalmente às intenções ou conceitos na alma442». O isomorfismo entre os modos de ser e os modos de predicar é substituído pelo isomorfismo entre a linguagem verbal e a linguagem mental443. Deste modo, Ockham afirma por várias vezes que o sujeito das Categorias é a palavra incomplexa a partir da qual as afirmações e as negações são constituídas e que «isso é verdadeiro, tanto de incomplexos mentais, quanto de vocais; os mentais são, todavia, os principais444». A

441 Cf. Aristóteles, Metafísica, VI, cap. 4, 1027b17-1028b6. 442 «Et ignorantia istius intentionis Aristotelis in hoc libro facit multos modernos errare, credentes hic multa dicta pro rebus, quae tamen pro solis vocibus – et proportionaliter pro intentionibus seu conceptibus in anima – vult intelligi.» Guillelmus de Ockham, Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis, ed. Gedeon Gál, Opera Philosophica, vol. II, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1978, proémio, p. 136. Para a tradução portuguesa do proémio e do capítulo 7, cf. Anexo 18. Nele, também traduzimos as questões 21 a 23 do Quodlibet V. 443 A palavra é o elemento da proposição, que é o elemento do argumento na linguagem verbal. Igualmente, no intelecto, a intenção ou o conceito é o elemento da proposição mental, que é o elemento do discurso mental. A linguagem verbal é signo da linguagem mental. Para uma exposição das passagens onde o autor inglês defende este isomorfismo, cf. Claude Panaccio, Le discours intérieur, cap. 9. 444 «Et hoc est verum tam de incomplexis mentalibus quam vocalibus; mentalia tamen principaliora sunt…» Guillelmus de Ockham, Summa logicae, cap. 41, p. 116. Semelhantemente, na exposição das Categorias, afirma: «Hic est primo sciendum quod ista non est divisio rerum extra animam, sed est divisio principaliter vocum incomplexarum; et proportionaliter intentionum in anima, vel passionum animae seu conceptuum correspondentium vocibus significativis.» [Aqui, deve primeiro saber-se que esta não é uma divisão das coisas fora da alma, mas é principalmente uma divisão das palavras incomplexas; e proporcionalmente das 244 distinção das categorias não pode ser tomada a partir da distinção entre dez géneros de coisas reais. Ela é tomada, à maneira da suficiência de Pedro Auriol, a partir das interrogações que podem ser feitas sobre a substância individual445. Neste ponto, as suas propostas são idênticas. Procura encontrar um pronome interrogativo, ou algo que sirva essa função, para cada predicamento, mas admite que não os encontra para todos. Não considera isso um problema, dado que é algo que se deve apenas à «pobreza de nomes» disponíveis446. Apesar de apresentar uma justificação para o número das categorias idêntica a uma das justificações de Auriol, Ockham desenvolve a temática de uma maneira diferente. Em primeiro lugar, utiliza a noção de conotação (conotatio) para explicar porque é que uma mesma coisa real se pode encontrar em diversos predicamentos. Em segundo lugar, reduz ainda mais a lista de predicamentos aos quais correspondem coisas reais. Comecemos pelo primeiro ponto. Na exposição das Categorias, Ockham dedica alguns parágrafos ao facto de a distinção das categorias não ser uma distinção entre várias coisas, como se a cada coisa, ou a cada género de coisas, correspondesse apenas uma categoria:

intenções na alma, ou paixões da alma, ou conceitos correspondentes às palavras significativas.] Idem, Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis, cap. 7, § 1, pp. 157-158. Pouco antes desta afirmação, ensaia uma pequena justificação para o isomorfismo entre a palavra e a intenção: «Quod autem consimilis sit divisio intentionum seu passionum vel conceptuum animae, patet ex hoc quod omni propositioni vel modo propositionis in voce correspondet proportionaliter modus propositionum compositarum ex intentionibus in anima. Igitur qualia sunt incomplexa in voce, proportionaliter talia sunt incomplexa in mente; ergo similis divisio incomplexorum est in mente secundum proportionem, qualis est in voce. [Porém, que seja semelhante a divisão das intenções, ou paixões, ou conceitos da alma, é patente a partir disto: que a toda a proposição ou modo de uma proposição in voce corresponde proporcionalmente um modo das proposições compostas a partir das intenções da alma. Portanto, quais os incomplexos in voce, tais os incomplexos in mente proporcionalmente; logo, existe uma semelhante divisão dos incomplexos in mente, de acordo com a proporção, à que existe in voce.] Ibidem, p. 158. Trata-se mais de um postulado do que propriamente um argumento. 445 «Sumitur autem distinctio istorum praedicamentorum, sicut innuit Commentator VII Metaphysicae, ex distinctione interrogativorum de substantia sive de individuo substantiae.» [A distinção entre os predicamentos é tomada, segundo indica o Comentador, no Livro VII da Metafísica, a partir da distinção dos interrogativos sobre a substância ou sobre um indivíduo da substância.] Idem, Summa logicae, cap. 41, p. 116 (trad. port., p. 230). Cf. também Idem, Quodlibet, V, q. 22, art. 2, p. 567. 446 Cf. Idem, Summa logicae, cap. 41, p. 117 (trad. port., p. 231). 245

Por conseguinte, deve dizer-se que estes predicamentos são distintos, apesar de as coisas significadas por estes mesmos predicamentos não serem distintas de um modo semelhante; pelo contrário, a mesmo coisa, pelo menos nalguns casos, é significada por diversos predicamentos, embora não do mesmo modo. A razão disto é que algumas vezes, uma mesma coisa é significada por um predicamento sem conotação de outra coisa ou de diversas coisas, e sem a conotação de que ela seja uma coisa diferente ou não diferente, e geralmente sem nenhuma conotação; outras vezes, a mesma coisa é significada por outro predicamento conjuntamente com determinada conotação ou consignificação de diversas coisas. Por exemplo, o predicamento da substância introduz um determinado homem, assim como qualquer outra substância, e não conota nada. Porém, quando digo “pai”, este predicado “pai” – que está contido sob o predicamento da relação – introduz um determinado homem que é pai, conotando o seu filho, já que é impossível entender o que seja o pai a não ser que se entenda que tem um filho. E é assim no que diz respeito aos diversos predicamentos447. Embora todos os predicamentos introduzam coisas reais, que não são signos, não quer isso dizer que a cada um deles corresponda uma coisa real, ou um género de coisa. Correspondem, sim, diversos modos das coisas serem significadas por nomes absolutos ou conotativos448. Todos os nomes (e intenções) que se encontram sob o predicamento da

447 «Sic igitur dicendum est quod ista praedicamenta sunt distincta, non tamen consimiliter distinguuntur res significatae per ipsa praedicamenta, sed eadem res, saltem aliqua, significatur per diversa praedicamenta, quamvis non eodem modo. Quia aliquando eadem res significatur per unum praedicamentum sine connotatione alterius rei vel plurium rerum, et sine connotatione quod ipsa sit alia res vel non alia, et generaliter sine omni connotatione; et aliquando eadem res significatur per aliud praedicamentum cum aliqua determinata connotatione vel consignificatione plurium rerum. Verbi gratia praedicamentum substantiae importat istum hominem, sicut quamlibet aliam substantiam, et nihil connotat. Quando autem dico 'pater', hoc praedicamentum 'pater', quod est unum contentum sub praedicamento relationis, importat istum hominem qui est pater, connotando filium suum; quia impossibile est intelligere quod sit pater nisi intelligatur quod habeat filium. Et ita est de diversis praedicamentis.» Idem, Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis, cap. 7, p. 159. 448 Eis a definição de “nome conotativo” na Summa logicae: «Nomen autem connotativum est illud quod significat aliquid primario et aliquid secundario. Et tale nomen proprie habet definitionem exprimentem quid nominis, et frequenter oportet ponere unum illius definitionis in recto et aliud in obliquo. Sicut est de hoc nomine 'album', nam 'album' habet definitionem exprimentem quid nominis, in qua una dictio ponitur in recto et alia in obliquo. Unde si quaeras, quid significat hoc nomen 'album', dices quod illud idem quod ista oratio tota 'aliquid informatum albedine' vel 'aliquid habens albedinem'. Et patet quod una pars orationis 246 substância não têm conotação, são absolutos e predicam algo diretamente (ou no caso reto, gramaticalmente falando). Os acidentes distinguem-se de acordo com as diversas maneiras em que um nome, um verbo, um advérbio ou uma preposição acompanhada por um termo conotam, isto é, significam obliquamente algo para além daquilo que eles significam primariamente. Nesta comparação com Pedro Auriol, o segundo ponto a salientar é que, para Ockham, apenas a duas das categorias correspondem entes reais fora da alma: substância e qualidade. Mesmo nelas, nem tudo aquilo que faz parte da linha predicamental pode ser considerado um ente real fora da alma. Para elucidar esta questão, Ockham propõe dois sentidos diferentes para a expressão “estar num predicamento”. Num primeiro sentido, algo está num predicamento apenas na medida em que se encontre nele verdadeiramente ao ser apontado por um pronome demonstrativo. Por outras palavras, apenas coisas singulares realmente existentes se encontram deste modo num predicamento. E na verdade, há apenas dois casos de coisas singulares que podem ser assim consideradas como estando num predicamento, a saber, as substâncias primeiras e as qualidades particulares inerentes em substâncias primeiras, como por exemplo todos os universais, tomados não enquanto signos, mas enquanto algo particular realmente existente numa alma. Num segundo sentido, encontra-se num predicamento aquilo que predica significativamente esse predicamento. Neste sentido, aquilo que se encontra num predicamento não é tomado por aquilo que é em si mesmo, mas sim pelo facto de ser um signo de outra coisa. Colocando o mesmo exemplo, os universais não são tomados como qualidades particulares em almas particulares, mas precisamente como predicamentos, isto é, termos (mentais, falados ou escritos) incomplexos que significam algo de

istius ponitur in recto et alia in obliquo.» [Nome conotativo, por outro lado, é aquele que significa algo primariamente e algo secundariamente. E tal nome tem propriamente definição que expressa o quid nominis, e, frequentemente, é preciso pôr um dessa definição no caso reto e outro no oblíquo. Assim é quanto ao nome “branco”, pois “branco” tem uma definição que expressa o quid nominis em que uma expressão é posta no caso reto e outra no oblíquo. Assim, se perguntas o que significa o nome “branco”, dizes que significa o mesmo que toda a oração “algo informado pela brancura” ou “algo que tem brancura”. E é evidente que uma parte dessa oração é posta no caso reto e outra no oblíquo.] Idem, Summa logicae, cap. 10, p. 36 (trad. port., pp. 147-148). 247 determinada maneira. Assim, de acordo com o segundo sentido de “estar num predicamento”, aquilo que se encontra primariamente nos predicamentos são os conceitos, que têm a função de significar coisas de diversas maneiras449. Posto isto, seria agora necessário discorrer sobre diversas passagens, dispersas por várias obras, para encontrar argumentos específicos que mostrem que todas as categorias que não a substância e a qualidade (e a relação, excecionalmente na Trindade450) não correspondem a coisas reais existentes fora da alma. Não o faremos para as oito, mas apenas para o caso mais controverso, que é o caso do predicamento absoluto da quantidade. Influenciado por Pedro de João Olivi451, Guilherme de Ockham nega que as quantidades sejam algo diverso das qualidades e das substâncias reais que estão a ser

449 «Circa secundum dico, sicut prius dictum est, quod ‘esse in praedicamento’ dupliciter accipitur: uno modo, pro eo de cuius pronomine demonstrante ipsum vere praedicatur praedicamentum. Et sic tantum substantiae singulares extra animam sunt in praedicamento substantiae, et omnia universalia tam genera quam species quam etiam differentiae sunt verissime in genere qualitatis (…). / Alio modo accipitur ‘esse in praedicamento’ pro illo quod sic est in praedicamento quod de ipso significative sumpto praedicatur praedicamentum significative sumptum. Et sic aliqua universalia sunt in praedicamento substantiae et aliqua in praedicamento qualitatis. (…) / Circa tertium dico quod praedicamentum secundo modo acceptum componitur proprie ex conceptibus et nullo modo ex rebus extra animam quae non sunt signa (…).» [Acerca do segundo, digo que “estar num predicamento” tem uma aceção dúplice, como foi dito anteriormente: de um modo, como aquilo sobre cujo pronome demonstrativo se predica verdadeiramente um predicamento. E assim, apenas as substâncias singulares fora da alma se encontram no predicamento da substância; e todos os universais, tanto géneros, como espécies, como também diferenças, encontram-se de um modo sumamente verdadeiro no género da qualidade (…). / De outro modo, toma-se “estar num predicamento” como aquilo que está num predicamento de tal maneira que sobre isso, assumido significativamente, se predique um predicamento assumido significativamente. E assim alguns universais encontram-se no predicamento da substância e alguns no predicamento da qualidade. (…) / Acerca do terceiro, digo que um predicamento tomado no segundo modo é composto propriamente de conceitos, e de nenhum modo de coisas fora da alma que não são signos.] Idem, Quodlibet, V, q. 23, pp. 570-571. 450 Cf. Idem, Ordinatio, d. 2, q. 11, pp. 358-379. Cf. também Paul Thom, The Logic of the Trinity, cap. 11, pp. 161-180; Marilyn McCord Adams, William Ockham, part. 1, cap. 7, pp. 215-276. 451 «Quidam autem alii eiusdem opinionis dicunt ad hoc quod quantitas seu extensio nihil penitus addit realiter differens ad materiam quantam vel ad formas extensas et quantas, nisi forte unionem et situm et positionem suarum partium» [Alguns outros, porém, defendendo essa opinião, dizem a esse respeito que a quantidade ou a extensão nada acrescentam de realmente diferente da matéria quantitativa ou das formas extensas e quantitativas, exceto talvez a união, a situação e a posição das suas partes.] Petrus Ioannis Olivi, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, q. 58, vol. II, p. 440. Cf. Idem, Tractatus de quantitate (= Defensiones quorundam articulorum) in Quodlibeta, ed. Lazarus Soardus, Veneza [c. 1505], ff. 49vb-53ra. Sobre este assunto da quantidade, cf. Robert Pasnau, Metaphysical Themes. 1274-1671, Clarendon Press, Oxford 2011, parte IV, cap. 14. 248 significadas por elas. Na Summa logicae452, propõe a posição oliviana como uma hipótese plausível que corresponde à intenção de Aristóteles, seguida por alguns teólogos, mas não a assume como sua. No capítulo 10 da exposição sobre as Categorias, dedicado à quantidade, também afirma que é esta a intenção de Aristóteles: Não é a intenção de Aristóteles que a quantidade seja um predicamento que introduza uma coisa absoluta, real e totalmente distinta das coisas que se encontram no género da substância e no género da qualidade, tal como se sustenta comummente, mas a sua intenção é que nenhuma coisa seja introduzida pelo género da quantidade que não seja realmente alguma substância ou qualidade453. Há ainda um conjunto de questões sobre a quantidade, que servem de preâmbulo ao tema do sacramento da Eucaristia e do Corpo de Cristo, onde afirma novamente que, de acordo com diversas autoridades filosóficas e teológicas, a quantidade não introduz nada que seja realmente diferente de substâncias e qualidades. Os argumentos teológicos dizem respeito à transubstanciação e a questões derivadas que possibilitem uma resposta compatível com a tese canónica, a saber, que a substância do pão e do vinho deixam de existir, mas permanecem os seus acidentes454. Os filosóficos, no conjunto das obras apontadas, são inúmeros, mas podem ser resumidos a partir da especificação da quantidade nas suas partes.

452 Cf. Guillelmus de Ockham, Summa logicae, pars I, cap. 44, pp. 136-139. 453 «(…) (…) non est intentio Aristotelis quod quantitas sit quoddam praedicamentum importans rem absolutam, realiter et totaliter distinctam a rebus in genere substantiae et in genere qualitatis – sicut communiter tenetur –, sed est intentio sua quod nulla res importatur per genus quantitatis quin sit realiter substantia aliqua vel qualitas.» Guillelmus de Ockham, Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis, cap. 10, p. 205. 454 Idem, Tractatus de quantitate, ed. Carolus A. Grassi, Opera Theologica, vol. X, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1986, pp. 4-85. São três questões que servem de preâmbulo ao Tractatus de Corpore Christi. Nelas, a partir do problema da separabilidade dos acidentes relativamente ao sujeito no qual inerem, assume-se que é possível que as qualidades tenham essa existência separada do seu sujeito. Contudo, Ockham interroga-se sobre a entidade e a distinção das quantidades, que constituem tradicionalmente o outro acidente absoluto. Formula três questões: na questão 1, se o ponto é algo diverso daquilo que pertence à quantidade; na questão 2, se a linha, a superfície e o corpo se distinguem uns dos outros; na questão 3, se a quantidade é realmente distinta da substância e da qualidade. Sobre a quantidade em Ockham, cf. Marilyn McCord Adams, William Ockham, parte 1, cap. 6, pp. 169-213. 249

No capítulo 6 das Categorias, Aristóteles divide as quantidades em discretas e contínuas. As contínuas são a linha, a superfície, o corpo (ou o sólido), o tempo e o lugar. As discretas são o número e a oração (ou enunciado)455. Comecemos pelas quantidades contínuas. Neste assunto, Ockham argumenta que não é possível que um ponto seja algo realmente diferente de uma linha, que uma linha seja algo realmente diferente de uma superfície e que uma superfície seja algo realmente diferente de um corpo. Um corpo é uma substância na qual inerem qualidades, pelo que toda a quantidade contínua aponta, na realidade, para substâncias ou qualidades. Assim, a noção de quantidade contínua (permanente) é redutível à expressão “coisa una que tem parte distante de parte”456. São também quantidades contínuas, de acordo com Aristóteles, o tempo e o lugar. Sobre eles, Ockham discorre longamente na sua exposição da Física457. Na exposição das Categorias, aponta que o tempo não pode ser um acidente real uno, que tenha partes realmente distintas e que se encontre subjetivamente em algo, dado que as partes do tempo não existem atualmente e que o tempo não pode inerir num sujeito de modo nenhum, isto é, nem como um todo em todo o sujeito, nem em partes, distribuído pelas partes do

455 «São quantidades discretas, por exemplo, o número e o enunciado; são quantidades contínuas a linha, a superfícies, o sólido e, além destas, o tempo e o lugar.» Aristóteles, Categorias, cap. 6, p. 77, 4b23-25. A oração é tomada como uma quantidade discreta devido à quantidade das sílabas e das vogais, que podem ser breves e longas no grego (e também no latim). 456 «Et de quantitate quidem continua permanente tenetur per istum modum, scilicet quod quantitas continua permanens nihil aliud est nisi res una habens partem situaliter distantem a parte, ita quod ista duo 'quantitas continua permanens' et 'res una habens partem distantem a parte' sint aequivalentia in significando (…).» [Sobre a quantidade contínua permanente é sustentado que ela nada mais é senão uma coisa que tem parte espacialmente distinta de parte, de tal sorte que “quantidade contínua permanente” e “coisa una que tem parte distante de parte” são equivalentes no significar (…).] Guillelmus de Ockham, Summa logicae, I, cap. 44, p. 137 (trad. port., p. 253). 457 Idem, Expositio in libros Physicorum Aristotelis, libri IV-VIII, ed. R. Wood et al., Opera Philosophica, vol. V, The Franciscan Institute, Nova Iorque 1985, caps. 1-4, pp. 3-42 (sobre o lugar), e caps. 18-27, pp. 194-313 (sobre o tempo). 250 sujeito458. Quanto ao lugar, afirma que se diz o mesmo que já se dissera sobre a superfície459. No que diz respeito às quantidades discretas, começa pelo número. É impossível que a um número corresponda algum acidente realmente existente num sujeito. O exemplo que explora é o de uma tríade de cães. A tríade (trinitas) encontra-se como algo uno por si em cada um deles, ou divide-se neles como em partes suas? De uma maneira ou de outra, há consequências impossíveis. Por um lado, um acidente uno por si não se pode encontrar integralmente em vários sujeitos separados ao mesmo tempo. Por outro, se está dividido em várias partes que se encontram em vários sujeitos, então não pode ser um acidente uno por si. Nem mesmo a unidade pode ser um acidente real distinto da unidade essencial da própria coisa una460. A oração, por sua vez, é essencialmente uma qualidade, dado que é essencialmente um conjunto de sons, que não são mais do que qualidades. Se há uma quantidade associada a estas qualidades devido à contagem de sílabas e vogais breves e longas, esta não acrescenta nada de real à qualidade, uma vez que, tal como o número, nem é possível que se encontre realmente na oração como um todo, nem distribuída em partes pelas partes da oração461.

458 «Praeterea quod tempus non sit talis res alia, ostendo: quia omnis res per se una, habens partes realiter distinctas, si sit accidens, est in aliquo subiective tam secundum se quam secundum partes suas. Sed tempus non est in aliquo subiective tamquam unum accidens ipsius, tum quia subiectum non est subiectum alicuius nisi quod actualiter exsistit, sed partes temporis non actualiter exsistunt secundum istos; tum quia aut tempus est totum in toto et totum in qualibet parte, aut est secundum unam partem in una parte subiecti et secundum aliam in alia parte subiecti. Primum non potest dari, quia tale accidens, si quod sit, indivisibile est, tempus autem non est indivisibile. Nec secundum potest dari, quia de nulla parte temporis potest dici quod sit magis in una parte quam in alia.» [Além disso, mostro que o tempo não é tal coisa diferente: porque toda a coisa por si una que tenha partes realmente distintas, se for um acidente, encontra-se em algo subjetivamente, tanto em si como segundo as suas partes. Mas o tempo não se encontra em algo subjetivamente enquanto um acidente uno disso: porque um sujeito não é um sujeito de algo a não ser daquilo que atualmente existe; mas as partes do tempo não existem atualmente, de acordo com estes. Também porque ou o tempo se encontra todo em todo e todo em qualquer parte, ou segundo uma parte numa parte do sujeito e segundo outra noutra parte do sujeito. O primeiro não se pode dar, porque tal acidente, se é assim, é indivisível; o tempo, porém, não é indivisível. O segundo também não se pode dar, porque de nenhuma parte do tempo se pode dizer que se encontre mais numa parte do que noutra.] Idem, Expositio in librum Praedicamentorum Aristotelis, cap. 10, p. 211. 459 «Praeterea quod locus non sit tale ens, patet, quia nec superficies est tale ens…» [Além disso, que o lugar não é um tal ente, é evidente, porque também a superfície não é um tal ente...] Ibidem, p. 212. 460 Cf. Ibidem, pp. 212-213. 461 Cf. Ibidem, pp. 213-214. 251

Esta redução da quantidade à substância e à qualidade foi controversa. Autores tão diversos como Gualter Burley e João Buridano tentarão rebatê-la.

Ao longo do presente capítulo, ensaiámos mostrar que o diálogo entre estes quatro autores – por vezes direto, por vezes indireto, sendo Pedro Auriol o elemento comum, posto que é amplamente discutido pelos restantes – conduziu a diversas tentativas de perspetivar duas questões: a intencionalidade e a distinção. O problema da suficiência das categorias transforma-se, ou redimensiona-se, em torno delas. Enquanto que Pedro de Tomás argumenta que a cada uma das categorias corresponde uma distinção total subjetiva, os restantes três autores não estão certos de que seja assim. Herveu de Nédellec julga que a denominação extrínseca é suficiente para o postulado de uma distinção real entre as categorias, não sendo necessário que a cada uma delas corresponda algo realmente diverso, mas apenas que o ser objetivo, ou o ser conhecido que elas apontam denomine algo extrínseco ao sujeito que é diretamente convocado. Dado que a intencionalidade, embora originada por uma relação de razão, se constitui como uma disposição da coisa conhecida para o ato cognitivo, pode-se dizer que cada uma das categorias corresponde a algo real. Afasta-se da tradição escotista também no que toca aos conceitos específicos e genéricos numa linha predicamental: não crê que seja necessário, para postular a realidade daquilo que esses conceitos supõem, afirmar que a cada um deles corresponda uma realitas, ou uma formalitas, noções que, aliás, rejeita. Basta que a cada um delas corresponda um maior ou menor grau de conformitas, esta sim, real, entre várias coisas. A conformitas de Herveu é contraposta pela similitudo de Pedro Auriol e de Guilherme de Ockham. Contudo, enquanto Auriol julga que essa similitudo é algo que se deve à causação do ser intencional na coisa real pelo ato cognitivo, Ockham não encontra qualquer necessidade de postular um ser intencional para além do próprio ato cognitivo. Ambos apresentam a mesma suficiência, ambos consideram que às categorias correspondem termos incomplexos significantes, sejam eles tomados como palavras, sejam eles tomados como intenções ou conceitos. Apesar dessas coincidências, não falam da mesma coisa quando falam de intenções. Num, a intenção é uma mistura indestrinçável entre conceção passiva e coisa concebida. Noutro, embora a intenção seja

252 um signo de outra coisa, ela não está, de todo, misturada com aquilo de que é signo. Mais ainda, ela não passa de um ato cognitivo, caracterizável como uma qualidade na alma, que tem intrinsecamente a capacidade de significar algo de determinada maneira. Além disso, Ockham está disposto a aceitar, como entes fora da alma realmente distintos, ainda menos categorias do que Auriol. Em Auriol, aos três tradicionais predicamentos absolutos, há ainda que acrescentar a realidade da ação e da paixão. Em Ockham, nem sequer os três predicamentos absolutos são aceites como reais. Como vimos, a quantidade é escrupulosamente reduzida à substância e à qualidade. No próximo capítulo, veremos como estes autores influenciaram a discussão filosófica das categorias ao longo do século XIV. Ensaiamos, neste sentido, uma tentativa de traçar o desenvolvimento do problema da suficiência das categorias desde que este (re)aparece até quando este, por um lado, é transformado, e por outro, se estabiliza e repete em torno de algumas autoridades que fizeram escola.

253

4.2. Respostas à tendência reducionista

Não temos a pretensão de ser tão exaustivos neste capítulo quanto quisemos ser até agora. Pretendemos, antes, fazer esquissos mais breves de autores que apontem para futuros trabalhos. Esperamos ainda conseguir dar conta da diversidade de respostas aos desafios lançados pela tendência de redução das categorias reais. Por ordem cronológica (dentro do possível), mencionaremos os seguintes autores: Gualter Burley (c. 1275 – 1344), Gualter Chatton (c. 1290 – 1343/4), Gregório de Rimini (c. 1300? – 1358), João Buridano (1292 – 1363 [ou 1358/62]) e Brás de Parma (1350/4 – 1416).

4.2.1. Gualter Burley (c. 1275 – 1344)

Gualter Burley, que, dada a extensão da sua carreira, poderia muito bem ter sido exposto antes, ou a par, dos quatro autores que elegemos expor no capítulo anterior, propõe uma solução radical para esta tendência reducionista. No seu último comentário aos livros da ars vetus, terminado em 1337, propõe que a cada uma das categorias aristotélicas, não só os géneros generalíssimos, mas também cada um dos membros de qualquer uma das linhas predicamentais, correspondem coisas realmente distintas umas das outras. Propõe esta tese sem recorrer ao enfraquecimento da distinção real, seja através distinção intencional, seja através da distinção formal. Mais ainda, afirma que também as proposições, e não apenas os termos incomplexos, são uma realidade. Este clérigo secular foi membro do Merton College, em Oxford, onde foi mestre regente de artes, possivelmente entre 1300 e 1306/7. É possível que tenha começado a sua formação teológica em Oxford, talvez a partir de 1306 ou 1307, mas talvez já estivesse em Paris nessas datas. Foi nesta cidade que obteve os diversos graus académicos que o levaram a mestre regente de teologia e membro da Sorbonne, talvez em 1322, talvez um pouco mais tarde. A partir de 1327, desempenhou papéis diplomáticos ao serviço do rei Eduardo III (1312 – 1377), o rei que deu início à Guerra dos Cem Anos. De 1333 em diante, Gualter Burley fez parte de um círculo de estudiosos reunidos em torno do patronato de Ricardo de Bury (1287 – 1345), bispo de Durham, o célebre autor de

254

Philobiblon (1345). A sua produção filosófica é tão vasta quanto influente. Há várias obras da logica vetus que comentou diversas vezes, tal como acontece com as Categorias, comentadas três vezes, e o Liber sex principiorum, comentado seis vezes. É sobretudo na lógica e na metafísica que se foca, mas algumas doutrinas físicas suas seriam também muito discutidas no futuro. Nos últimos anos da sua vida, escreveu obras éticas e políticas, normalmente a pedido de outros clérigos. A historiografia marca como ponto de viragem na sua produção literária o ano de 1324, posto que é a partir desta data que Burley se afasta de uma visão tradicional dos universais e das categorias, entre outros assuntos, e se digladia com Ockham, forjando uma teoria muitas vezes avaliada como radical462. Dos três comentários às Categorias que produziu463, o segundo (c. 1301 – 1309) e o terceiro (1337) contêm capítulos específicos dedicados ao número e à suficiência das categorias nos quais elenca diversas vias divisivas.

462 Sobre a vida e a obra de Gualter Burley, cf. Marta Vittorini, «Life and Works», in Alessandro D. Conti (ed.), A Companion to Walter Burley. Late Medieval Logician and Metaphysician, Brill, Leida – Boston 2013, parte 1, cap. 1, pp. 17-47; Jennifer Ottman – Rega Wood, «Walter of Burley: His Life and Works», in Vivarium, 37, 1 (1999) 1-23; James A. Weisheipl, «Repertorium Mertonense», in Mediaeval Studies, 31 (1969) 174-224. Embora haja evidência documental para o facto de Burley ter reformulado algumas teses devido às críticas de Ockham a teorias “tradicionais” dos universais, parece-nos haver por vezes uma petição de princípio nas conjeturas dos biógrafos. Para dar um exemplo, o segundo dos quatro textos que Burley escreveu sobre a Isagoge de Porfírio – a saber, Quaestiones octo super logicam in communi necnon super Porphyrii Isagogen (ms. Wroclaw, Biblioteka Uniwersytecka, IV, Q. IV, ff. 114r-129r) –, foi datado por Mischa von Perger como sendo provavelmente do período entre 1300 e 1307. Marta Vittorini, considerando que nas questões 7 e 8, Burley tem uma posição acerca dos universais própria do período em que critica Ockham, julga que é melhor datar essa obra como posterior a 1324. Perguntamo-nos se não é possível que Burley, em obras anteriores a uma crítica direta a Ockham, não tivesse já uma posição semelhante sem que esta fosse construída como uma crítica. Quão importante é Ockham no desenvolvimento doutrinal de Burley? Não é o mesmo dizer que, em 1324, há uma resposta direta de Burley às críticas de Ockham, e dizer que, antes dessa resposta direta, Burley defendera sempre, em todas as obras, uma teoria tradicional dos universais. Admitimos, contudo, que as conjeturas de Marta Vittorini são verosímeis e baseadas num conhecimento profundo das fontes, conhecimento esse que não temos. 463 Há edições modernas do primeiro e do segundo comentário: cf. Mischa von Perger, «Walter Burley’s “Expositio vetus super librum Praedicamentorum”», in Franciscan Studies, 61 (2003) 55-96; Gualterus Burlaeus (=Walter Burley), Tractatus super librum Praedicamentorum, ed. Alessandro D. Conti, http://www-static.cc.univaq.it/diri/lettere/docenti/conti/Allegati/%20WB_praedicamenta.pdf (consultado a 24/10/2018). O editor, Alessandro Conti, está a preparar uma edição crítica neste momento. Quanto ao terceiro comentário, não existe nenhuma edição moderna, mas há diversos incunábulos com a última versão dos comentários aos livros da ars vetus. Aqui, utilizaremos o mais conhecido desses incunábulos, reeditado 255

Comecemos pelo segundo comentário, intitulado Tractatus super librum Praedicamentorum. Neste, imediatamente antes de apresentar as vias divisivas, afirma que «não se pode provar demonstrativamente que são dez os predicamentos, nem mais, nem menos464». Porém, depois desta afirmação, reporta diversas tentativas passadas. A primeira é dita ser a daqueles que consideram que o número dos predicamentos diz respeito aos modos de predicar, que são consequência dos modos de ser. A segunda é uma divisão de «todo o que é» (omne quod est). Por fim, aponta para o facto de diversos autores pensarem que os seis princípios são várias formas de respectus, pelo que seria possível fazer uma divisão das categorias em dois modi essendi, um absoluto e outro relativo, seguida de outras subdivisões. A primeira sufficientia é idêntica à de Roberto Kilwardby465. Os acidentes dividem- se a partir de dois critérios. A única diferença é que a ordem dos critérios se inverte, mas isso não traz qualquer incoerência, é a mesma proposta: em Kilwardby, os acidentes podem encontrar-se dentro, fora, ou de um modo intermédio, na substância. De seguida, cada um destes grupos subdivide-se conforme diga respeito à matéria, à forma ou ao composto hilemórfico. Burley inverte o esquema: divide primeiro a inerência dos acidentes na substância a partir da estrutura hilemórfica e só depois subdivide os acidentes conforme se encontrem dentro, fora, ou de um modo intermédio466.

em fac-simile em 1967: Gualterus Burlaeus, Super artem veterem Porphyrii et Aristotelis expositio sive scriptum, ed. Ottinus Papiensis, Veneza 1497, ff. 15va-44vb. 464 «Sciendum quod non potest demonstrative probari quod sunt decem predicamenta et non plura neque pauciora». Gualterus Burlaeus, Tractatus super librum Praedicamentorum, cap. De numero et sufficientia praedicamentorum, p. 25. 465 Cf. supra, 2.1, Figura 2. Sufficientia de Roberto Kilwardby. 466 « Si sit ens per se, sic est substantia; si sit in alio, aut ergo inheret alteri, scilicet substantie, gratia mate- rie aut gratia forme aut gratia compositi. Si gratia materie, hoc tripliciter: aut intrinsece, et sic est quantitas, quoniam quantitas inheret substantie intrinsece, et hoc ratione materie. Si extrinsece sic est ubi, quoniam ubi non inest alicui nisi ex hoc quod habet partes, et non habet partes nisi ratione materie. Aut inheret medio modo, et sic est passio. Si autem inheret ratione forme, hoc potest esse tripliciter: aut intrinsece, et sic est qualitas; aut extrinsece, et sic est quando; aut medio modo, et sic est actio. Si autem inheret substantie ratione compositi, hoc potest esse tripliciter: aut intrinsece, et sic est ad aliquid; aut extrinsece, et sic est habitus; aut medio modo, et sic est positio.» [Se for o ente por si, então é substância; se for noutro, então ou inere noutro, a saber, na substância, graças à matéria, ou graças à forma, ou graças ao composto. Se graças à matéria, isto acontece de um modo tríplice. Ou intrinsecamente, e assim é quantidade, dado que a quantidade inere na substância intrinsecamente, e isto em razão da matéria. Se extrinsecamente, assim é onde, dado que o onde não inere nalgo a não ser a partir do facto de isso ter partes, e não tem partes senão 256

A segunda sufficientia corresponde à de Simão de Faversham, a qual, como vimos, se baseia na de Tomás de Aquino467. Elimina-se o medio modo e os acidentes extrínsecos devem-se a três tipos de comparação: da medida com o medido, do agente com o paciente e do tido com o que o tem468. A terceira não é propriamente uma sufficientia completa, mas uma discussão da teoria que encontrámos em Henrique de Gante segundo a qual, além da substância, da quantidade e da qualidade, todas as outras categorias ditam vários géneros de respectus. Burley pergunta-se por que razão os seis princípios não se confundem com o predicamento da relação. A diferença entre eles e a relação é o facto de estes introduzirem uma causa extrínseca que está ausente da relação469. Assim, até aqui, Gualter Burley apenas reporta aquilo que já fora desenvolvido por outros autores antes de si. Quanto ao estatuto metafísico dos membros das categorias, de acordo com este comentário, são todos res praedicamentales, isto é, significam todos uma coisa por si num género (res per se in genere)470. No prólogo deste tratado, também afirma que as Categorias têm como sujeito principal as coisas, não as palavras, e que os dez predicamentos são as dez coisas primárias a partir das quais se conhecem todas as outras. A diferença com o seu tratamento metafísico deve-se ao facto de elas serem tratadas como

em razão da matéria. Ou inere de um modo intermédio, e assim é paixão. Se, porém, inere em razão da forma, isto pode ser de um modo tríplice: ou intrinsecamente, e assim é qualidade; ou extrinsecamente, e assim é quando; ou de um modo intermédio, e assim é ação. Se, porém, inere na substância em razão do composto, isto pode ser de um modo tríplice: ou intrinsecamente, e assim é relativamente a algo; ou extrinsecamente, e assim é hábito; ou de um modo intermédio, e assim é posição.] Gualterus Burlaeus, Tractatus super librum Praedicamentorum, cap. De numero et sufficientia praedicamentorum, p. 25. 467 Cf. supra, 2.2, Figura 5. Sufficientia de Tomás de Aquino; 3.1, Figura 7. Sufficientia de Simão de Faversham 468 Cf. Gualterus Burlaeus, Tractatus super librum Praedicamentorum, cap. De numero et sufficientia praedicamentorum, pp. 25-26. 469 Cf. Ibidem, pp. 26-28. 470 Neste ponto, discordamos absolutamente da leitura de Alessandro Conti. Não há nada no capítulo que mostre que Burley defende, à maneira de Henrique de Gante, que as sete categorias relacionais não tenham a mesma dignidade do que as absolutas, embora apresente uma opinião (a terceira) que diz que as categorias relativas são respectus ou modi reales das absolutas. Em primeiro lugar, não opta por nenhuma das três opiniões que apresenta. Em segundo lugar, afirma explicitamente que todos os seis princípios, além do respectus, são ou introduzem coisas absolutas, como a res temporalis ou o esse in loco. Em terceiro lugar, fecha o capítulo a dizer que os incomplexos de que Aristóteles fala significam uma coisa por si num género, ou uma coisa predicamental. Cf. Alessandro D. Conti, «Burley’s Theories of Categories» in Alessandro D. Conti (ed.), A Companion to Walter Burley, parte 2, cap. 6, especialmente pp. 195-197. 257 intenções segundas, isto é, a partir de uma inteleção secundária das coisas, comparadas com outras coisas. Mais uma vez, trata-se de uma posição afim àquela que víramos em diversos autores do último quartel século XIII, que consideravam que as intenções segundas eram também sobre as coisas, não na sua apreensão primária, mas comparadas com outras coisas. O que muda no terceiro tratado? Em primeiro lugar, Gualter Burley introduz a sua célebre doutrina da propositio in re. Uma vez que ela não tem propriamente ligação com o assunto da suficiência das categorias, não a iremos comentar471. No assunto que nos toca, debate-se diretamente com a teoria de Ockham segundo a qual apenas a substância e a qualidade são predicamentos realmente distintos. Além disso, omite a discussão sobre os respectus. De resto, aquilo que faz não é diferente em nada daquilo que já fizera no segundo comentário. Mais uma vez, afirma que o número das categorias é indemonstrável, mas expõe seguidamente as sufficientiae de Roberto Kilwardby e de Simão de Faversham. Para encontrar uma evolução no pensamento de Burley e relacioná-lo com a sua reação a Guilherme de Ockham, seria necessário invocar outros textos e outros assuntos. Aqui, não encontramos grandes diferenças entre os dois comentários. A sua mudança tem mais diretamente que ver com a distinção real entre o singular e o universal, não tanto com a distinção das categorias entre si472.

471 Cf. Sobre este assunto, cf. Laurent Cesalli, «Le réalisme propositionnel de Walter Burley» in Archives d'histoire doctrinale et littéraire du Moyen Âge, 68 (1, 2001) 155-221; Idem, Le réalisme propositionnel. Sémantique et ontologie des propositions chez Jean Duns Scot, Gauthier Burley, Richard Brinkley et Jean Wyclif, Vrin, Paris 2007. 472 Mesmo neste ponto em particular, causa-nos perplexidade que Hans-Ulrich Wöhler, em «Universals and Individuals», esteja permanentemente a mostrar que entre os textos dos dois períodos que habitualmente dividem a obra de Burley, a doutrina dos universais é praticamente idêntica, mas de seguida continue a apresentar o autor como se tivesse havido uma grande mudança em 1324. A única diferença que nos parece realmente notável é que os universais deixam de ser considerados partes dos indivíduos (tudo no indivíduo é individual) e “forma” passa a querer dizer dois tipos de coisa diversos, de modo a explicar que há apenas uma concomitantia entre o universal e o indivíduo: a forma perficiens materiam e a forma declarans quiditatem, sendo que a segunda não é parte do indivíduo, mas é apenas essencialmente concomitante. Deste modo, o real parece desdobrar-se em dois mundos paralelos, por assim dizer: o dos indivíduos e o das naturezas, ou essências. Apesar desse desdobramento, Burley continua a defender que os universais não têm propriamente uma unidade numérica, como os indivíduos. Cf. Hans-Ulrich Wöhler, «Universals and Individuals», in Alessandro D. Conti (ed.), A Companion to Walter Burley, parte 2, cap. 5, pp. 167- 189. Neste mesmo compêndio, Fabrizio Amerini coloca bastantes problemas àqueles que dizem que a 258

Seria preciso um trabalho mais minucioso e, certamente, a leitura das várias versões de comentário ao Liber sex principiorum473 para aprofundarmos aquilo que dissemos. Aqui, pretendemos apenas esquissar possíveis futuros desenvolvimentos. A leitura que Burley faz dos universais e das categorias teve uma influência duradoura em diversos autores dos séculos XIV e XV. Em Oxford, João Wyclif (c. 1331 – 1384)474, João Sharpe (c. 1360? – post 1415) e Roberto Alyngton (? – 1398)475, entre outros, utilizam, discutem aprofundadamente e apropriam-se das teses de Burley. Em Paris, Burley perde rapidamente relevância perante a forte e duradoura influência de João Buridano na Faculdade de Artes. No entanto, quando Buridano está a criticar, sem nomear, aqueles que defendem a propositio in re, ou aqueles que defendem que as categorias classificam as coisas reais fora da alma, ou ainda os que dizem que há uma distinção real entre a relação e o seu fundamento, é bastante provável que se esteja a referir ao autor inglês. Já em Itália, há uma propagação manuscrita muito grande dos textos do Doctor planus et perspicuus. É particularmente importante na obra de Paulo de Veneza (Paulus Nicolettus Venetus, c. 1369? – 1429). Como afirma Fabrizio Amerini, por vezes, é difícil avaliar quão influente Burley foi. Desde cedo, as doutrinas de Burley acerca das categorias e dos universais são associadas a Duns Escoto, a partir da ideia de que ambos defenderiam (ao contrário dos tomistas, por exemplo) que os universais têm algum tipo de unidade real fora da alma. Há, inclusive, diversas utilizações híbridas de doutrinas de Burley misturadas com a escotista distinção formal476.

posição de Burley constitui um realismo “exagerado”, ou quase um platonismo, quando não é esse o caso. Cf. Fabrizio Amerini, «14th Century Reactions to Burley», in Alessandro D. Conti (ed.), A Companion to Walter Burley, parte 4, cap. 13, pp. 377-409. 473 De acordo com Fabrizio Amerini, o seu comentário final ao Liber sex principiorum tem como principal fonte de inspiração o tratado de Alberto Magno. Cf. Ibidem. 474 Refira-se que João Wyclif, no contexto da produção de uma série de tratados sobre o ente, escreveu um tratado denominado De ente praedicamentali (c. 1360), o qual não será aqui trabalhado, embora não pudesse deixar de ser referido. Cf. Joannes Wiclif, De ente praedicamentali. Quaestiones XIII logicae et philosophicae, ed. Rudolf Beer, The Wyclif Society, Londres 1891. 475 Sobre o comentário de Roberto Alyngton às Categorias, cf. Alessandro D. Conti, «A Realist Interpretation of the Categories in the Fourteenth Century: The Litteralis Sententia Super Praedicamenta Aristotelis of Robert Alyngton», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 317-346. 476 Cf. Ibidem. 259

4.2.2. Gualter Chatton (c. 1290 – 1343/4)

O segundo autor que gostaríamos de assinalar cruzou-se com Guilherme de Ockham em Oxford e, provavelmente, também no convento franciscano de Londres. Trata-se de Gualter Chatton, que escreveu acerca do número das categorias num dos seus comentários às Sentenças. Nascido em Chatton, perto de Durham, Gualter entra nos franciscanos bastante novo, antes dos 14 anos. A partir de 1315, estuda teologia em Oxford. É aqui que se cruza, alguns anos depois, com o Venerabilis Inceptor e começa a criticar vários dos seus ensinamentos. A década de 1320 é a mais profícua no que diz respeito à sua produção literária, embora pouco se saiba sobre a sua vida nesse período. É possível que tenha estado durante algum tempo no convento franciscano de Londres. A partir de 1333, ou talvez um pouco antes, encontra-se em Avinhão. Morre nessa cidade dez ou onze anos depois477. A sua Lectura, comentário incompleto ao livro I das Sentenças, escrito entre 1324 e 1330, contém uma discussão acerca do número das categorias que foi longamente exposta e interpretada por Jenny Pelletier478. De facto, na distinção 8, questão 1, onde se pergunta se Deus se encontra num género (Utrum Deus sit in genere), Gualter Chatton dedica uma parte do terceiro artigo à resolução de uma série de dúvidas acerca dos predicamentos. A primeira dúvida diz respeito ao número de géneros de coisas predicamentais. A segunda dúvida diz respeito ao número dos predicamentos. É curioso que o autor separe estas duas questões. Uma coisa é perguntar quantas classes ou géneros de coisas existem. Outra, quantos são os conceitos que as definem. Contudo, como veremos, a resposta à primeira questão, de certa maneira, dita a resposta à segunda. Trata-se de um modo de mostrar àqueles que reduzem o número de categorias reais – em especial, Pedro Auriol e Guilherme de Ockham, explicitamente mencionados

477 Cf. Rondo Keele – Jenny Pelletier, «Walter Chatton», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = . 478 Cf. Jenny Pelletier, «Walter Chatton on Enumerating the Categories», in Vivarium, 54 (2016) 311-334. Eis o texto em que Chatton discute a questão: Gualterus Chatton, Lectura super Sententias, Liber I, Distinctiones 8-17, ed. Joseph C. Wey – Girard J. Etzkorn, Pontifical Institute of Mediaeval Studies, Toronto 2009, I, d. 8, q. 1, art. 3, §§ 95-120, pp. 23-29. 260

– que não se pode afirmar a existência de predicamentos diversos que não correspondam a coisas reais diversas. Se a lista de coisas reais diversas apontadas pela coordenação predicamental é menor, então o número de predicamentos também é menor, necessariamente. Vejamos como Gualter Chatton desenvolve a resposta às duas dúvidas. Quanto à primeira, são apresentadas várias opiniões. A primeira opinião é a de que apenas as coisas do género da substância são reais. A segunda, que é a de Ockham, dita que há apenas dois géneros, a saber, substância e qualidade. A terceira seria a dos que julgam que há, além desses dois géneros de coisas, algumas coisas relativas (aliqui respectus). Por fim, refere a opinião de Duns Escoto, segundo a qual há dez géneros de coisas reais479. A resposta do próprio autor à questão está incompleta, mas fica patente que Chatton, neste assunto como em outros, simpatiza com a resposta do Doutor Subtil. Remete o tratamento das categorias relativas para outra parte da Lectura e prova apenas a diversidade e existência real das três categorias absolutas480. No que toca à segunda dúvida, Chatton começa por descrever a opinião de Auriol e Ockham, segundo a qual são tantos os predicamentos quantas as interrogações que podem ser feitas acerca da substância individual481. Imediatamente a seguir, apresenta três objeções a este método. Em primeiro lugar, podem ser feitas muitas outras interrogações acerca da substância cuja resposta não constitui algum tipo de predicamento. Exemplo disso é a interrogação pelo fim de uma substância individual. Em segundo lugar, todas as dez perguntas que são colocadas sobre uma substância individual poderiam ser colocadas sobre qualquer outra coisa, como por exemplo uma qualidade.

479 Cf. Ibidem, §§ 104-107, pp. 23-24. 480 Cf. Ibidem, §§ 108-113, pp. 24-26. Jenny Pelletier aponta que, apesar de não ter escrito a parte da Lectura onde trataria deste assunto, em Reportatio, d. 30, q. 1, art. 1, o autor aplica a chamada anti-navalha (anti- razor). Trata-se de um princípio quase oposto ao da parcimónia, o qual dita que devem ser postuladas tantas entidades quantas as necessárias para que se garanta a verdade de uma afirmação. Cf. Jenny Pelletier, «Walter Chatton on Enumerating the Categories», pp. 329-330. 481 «Ad secundum dubium principale, cum quaeritur quot sunt genera praedicamentalia, opinio Aureoli est, et similiter Ockham, in Tractatu suo de logicalibus, quod numerus praedicamentorum debet sumi secundum numerum interrogationum factarum de individuo substantiae.» [Quanto à segunda dúvida principal, quando se pergunta quantos são os géneros predicamentais, a opinião de Auriol, e semelhantemente de Ockham, no seu tratado sobre as coisas lógicas, é que o número dos predicamentos deve ser assumido segundo o número de interrogações feitas sobre o indivíduo da substância.] Ibidem, § 114, p. 26. 261

Em terceiro lugar, dado que essas questões podem ser todas colocadas acerca de Deus, aceitar-se-ia tacitamente que Deus se encontra em todos os predicamentos482. Depois da crítica, apresenta os fundamentos para uma resposta: Portanto, deve dizer-se que o número de predicamentos é igual ao número de conceitos generalíssimos sob os transcendentes; com efeito, um predicamento não é senão a coordenação essencial dos predicáveis pela qual o intelecto é naturalmente apto a descer do conceito transcendente, dividindo e compondo, para que se congregue a definição específica de alguma coisa. Por isso, porque são tantas as coordenações dos predicáveis quantos os comuníssimos sob os transcendentes, e não mais, então são tantos os predicamentos quantos esses comuníssimos, e não mais. Deve entender-se por conceito transcendente aquele conceito que não convém apenas às coisas de um predicamento, quer convenha a todas as coisas ao significá-las, quer não483. A partir destas definições, o autor inglês apresenta várias hipóteses de resposta à questão do número das categorias. A primeira resposta depende do estatuto do conceito de ad aliquid. Para quem defender que o relativamente a algo é um conceito transcendente, então deve afirmar que são quatro os predicamentos reais, a saber, substância, quantidade, qualidade e relativamente a algo. Os restantes seis não são predicamentos simpliciter, ou no sentido próprio, mas são predicamentos secundum dici, ou secundum similitudinem, isto é, assemelham-se a predicamentos o suficiente para que se possa atribuir-lhes esse nome. Os que afirmam que a cada um dos dez predicamentos corresponde uma res realmente distinta, de acordo com Chatton, não podem considerar que o relativamente a algo é um conceito transcendente. Cada um dos sete predicamentos relativos tem uma coordenação própria de conceitos que aponta para coisas diversas.

482 Cf. Ibidem, §§ 115-117, pp. 27-28. 483 «Dicendum igitur quod numerus praedicamentorum aequatur numero generalissimorum conceptuum sub transcendentibus; nam praedicamentum non est nisi essentialis coordinatio praedicabilium per quam intellectus natus est a conceptu transcendente descendere dividendo et componendo ad congregandum definitionem specificam alicuius rei. Quia igitur tot sunt coordinationes praedicabilium quot sunt communissima sub transcendentibus et non plures, ideo tot sunt praedicamenta et non plura quod sunt talia communissima, intelligendo per conceptum transcendentem conceptum illum qui non convenit solum rebus unius praedicamenti, sive conveniat omnibus rebus in significando eas sive non.» Ibidem, § 118, p. 28. 262

Aqui, devemos apontar que o seu critério para a transcendência, ou transcategorialidade, de um conceito é mais fraco do que aquele que normalmente é atribuído aos transcendentes tradicionais, tais como ente, ou uno, ou até mesmo os transcendentes disjuntivos. Basta que um conceito aponte para coisas de diversas categorias, como é o caso de conceitos como ens in alio, aplicável a quantidades e qualidades. A segunda resposta tem um caráter mais pragmático: o predicamento tem a função de possibilitar a definição específica de alguma coisa. De facto, é isso que pressupõe a noção de predicamento dada no início. A coordenação essencial dos predicáveis é aquilo que torna o intelecto naturalmente apto para atingir a definição de uma coisa. Assim sendo, os dez predicamentos foram instituídos pelos antiqui como que por costume, dado o facto de serem todos eles indispensáveis para a obtenção dessas definições484. É verdade que Chatton não se compromete com nenhum número específico de categorias. Mais ainda, em nenhuma das respostas apresenta uma sufficientia ou algo do género. Contudo, as respostas são, de certo modo, complementares. Na primeira resposta, estabelece-se uma demarcação entre conceitos transcendentes e conceitos predicamentais. Na segunda resposta, mostra-se porque é que é tão consensual o uso das dez. Se se assumir o relativamente a algo como conceito transcendente, transversal à relação e aos seis princípios, talvez estes continuem a ser necessários para que o intelecto atinja naturalmente as definições específicas de cada coisa. Assim sendo, mostrar-se-ia que as coisas reais, que é aquilo que está a ser definido, têm de ser distribuídas por dez coordenações essenciais de conceitos, caso contrário, o intelecto seria incapaz de as definir. Regressando à primeira dúvida, torna-se evidente que o número de predicamentos coincide, em última análise, com o número de coisas predicamentais. Trata-se de uma proposta com elementos comuns à resposta escotiana: uma distinção das categorias (reais) de acordo com a distinção das suas essências, dado que uma categoria não é senão uma coordenação essencial de conceitos. Pensando pela negativa, fica patente um desafio aos que pretendem manter o esquema categorial aristotélico intacto sem que a cada uma das categorias corresponda um género de coisas realmente distintas: as categorias só são dez

484 Cf. Ibidem, §120, pp. 28-29. 263 se forem necessárias para a definição específica de dez géneros de coisas reais, caso contrário, a lista tem de ser reduzida. Não estamos em condições de dizer, no presente estado da investigação, se esta proposta de Gualter Chatton teve algum eco em outros autores e contextos posteriores.

4.2.3. Gregório de Rimini (c. 1300? – 1358)

Segue-se Gregório de Rimini. Até agora, não fizemos jus à riqueza intelectual dos teólogos agostinhos. De facto, não expusemos autores tão incontornáveis como Gil de Roma e Tiago de Viterbo, embora haja uma justificação para isso. No caso do primeiro autor, a omissão deve-se ao facto de René Antoine Gauthier ter descoberto que a Lectura supra logicam veterem é, afinal, obra de Guilherme Arnauld (1242 – c. 1295/1300?)485. Quanto a Tiago de Viterbo, as suas Quaestiones de divinis praedicamentis, no assunto que desenvolvemos no presente trabalho, contêm posições bastante afins às de Henrique de Gante486. Gregório de Rimini foi, sem dúvida, um dos teólogos mais importantes do século XIV. Recebeu a sua formação teológica em Paris, entre 1322/3 e 1328/9, onde estudou aprofundadamente o pensamento de Pedro Auriol. Depois desses anos de formação, lecionou em diversos studia da sua ordem, nomeadamente Bolonha, Pádua e Perúgia. Foi durante este período que entrou em contacto com as obras e as teses de diversos autores ligados à universidade de Oxford que o influenciaram, em particular Guilherme de Ockham, Adão Wodeham (c. 1295 – 1358), Ricardo Fitzralph (1299 – 1360) e Gualter Chatton. Regressou a Paris, provavelmente em 1342, e comentou as Sentenças nos anos seguintes, acabando por tornar-se mestre em Teologia em 1345. No ano seguinte regressa a Itália e ajuda a fundar um novo studium na sua cidade natal, mas passa a maior parte do

485 Cf. Andrea Tabarroni, «Lo Pseudo Egidio (Guglielmo Arnaldi) e un’inedita continuazione del commento di Tommaso al Peryermeneias», in Medioevo, 14 (1988) 371-427. 486 Cf. infra, nota 271. 264 tempo a ensinar no studium de Pádua. Em 1357, é eleito Prior Geral da sua ordem e morre no ano seguinte, em Viena487. O seu comentário aos dois primeiros livros das Sentenças, cuja versão revista data de 1346, teve uma grande propagação manuscrita e foi impresso diversas vezes entre 1482 e 1532488. Embora seja mais conhecido por outras razões, tais como a teoria do complexe significabile, ou como a sua leitura cuidadosa dos textos de Agostinho, precursora de um método filológico incipiente, aqui, focar-nos-emos brevemente em dois pontos: o primeiro diz respeito à realidade do número (livro I, distinção 24, questão 2); o segundo é a sua crítica à teoria da relação de Pedro Auriol (livro I, distinção 28, questões 1 e 2). Também no primeiro ponto, Gregório parte de uma crítica a Pedro Auriol. A questão do estatuto metafísico do número surge da tentativa de compreender o que significa atribuir a trindade, ou o três, a Deus. Embora não tenhamos exposto este ponto anteriormente, Auriol nega que o número seja algo real independente da apreensão mental. Contudo, não nega, como Ockham, que a quantidade contínua seja real489. Gregório, o Doctor authenticus, advoga que o número é algo que existe independentemente da apreensão da alma. Contudo, não aceita que o número seja como um acidente que inere num sujeito. Pelo contrário, o número é real porque indica na realidade uma pluralidade de sujeitos490.

487 Sobre a vida e a obra de Gregório de Rimini, cf. Christopher Schabel, «Gregory of Rimini», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2015 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/fall2015/entries/gregory-rimini/; Russell L. Friedman – Christopher Schabel, «Gregory of Rimini», in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, pp. 439- 444. 488 Infelizmente, não tivemos acesso à edição crítica: Gregorius Ariminensis, Gregorii Ariminensis Lectura super primum et secundum Sententiarum, 6 vols. (Spätmittelalter und Reformation Texte und Untersuchungen 6–11), ed. D. Trapp et al., De Gruyter, Berlim – Nova Iorque 1979–1984. Utilizaremos aqui uma das edições antigas: Gregorius Ariminensis OESA, Gregorii Ariminensis Super primum et secundum Sententiarum, ed. Luceantonii de Giunta Florentini, Veneza 1522 (reimpr. The Franciscan Institute, Nova Iorque 1955). 489 Cf. Petrus Aureolus, Scriptum super Primum Sententiarum, Typographia Vaticana, Roma 1596, d. 24, q. un., arts. 1-2, ff. 542aA-555aA. 490 Gregorius Ariminensis, Gregorii Ariminensis Lectura super primum et secundum Sententiarum, I, d. 24, qq. 1-2, ff. 120vbN-127raB., em especial, art. 2, f. 124rbH e ss. Seria interessante comparar esta posição com a sua teoria do complexe significabile, que se encontra no prólogo do comentário. 265

O tratamento do número na distinção 24 dos vários comentários ao livro I das Sentenças que aqui fomos referindo não foi explorado anteriormente, uma vez que raramente trabalhámos esta ou aquela categoria em particular, salvo raras exceções em que esse tratamento nos pareceu relevante para a questão mais geral da suficiência das categorias. Contudo, essa discussão é riquíssima e seria importante aflorá-la no futuro. No caso de Gregório de Rimini, apontámo-la brevemente aqui para mostrar que não nos podemos precipitar e transferir a sua posição de uns assuntos para outros. Talvez o facto de Gregório aceitar, à maneira de Ockham, que o movimento e o tempo não são coisas reais fora da alma491 nos levasse a pensar que esta tendência reducionista ecoasse noutros assuntos. Porém, pelo nosso brevíssimo e incompleto estudo dos problemas do número e da relação, não nos parece ser esse o caso. Efetivamente, também na questão da relação, Gregório não está disposto, contra Auriol, a aceitar que esta depende da apreensão da alma. Na distinção 28, começa por identificar três sentidos diferentes de “relação”. No primeiro sentido, quer dizer o relativo ou o ad aliquid, ou seja, o predicamento da relação. Neste sentido, relativum, ad aliquid e relatio são sinónimos. No segundo sentido, quer dizer aquilo pelo qual o relativo é relativo. Este segundo sentido subdivide-se em dois: pode ser um significável complexo (complexe significabile) ou pode ser aquilo acerca do qual um relativo abstrato é verdadeiro, ou seja, a realidade que torna o significável complexo verdadeiro. O segundo sentido não é aquele que Gregório pretende discutir. O que Gregório pretende perguntar não é se aquilo que faz com que o relativo seja relativo é real ou dependente das operações da alma. Pretende perguntar antes se os membros incomplexos do predicamento da relação são alguma entidade fora da alma492. É a partir daqui que discute longamente cada um dos argumentos de Pedro Auriol. A sua principal crítica, que depois se estende às diversas espécies de relação, é que é falso

491 Sobre este assunto, cf. Kevin Smith, «Ockham's Influence on Gregory of Rimini's Natural Philosophy», in Vasileos Syros et al. (eds.), Dialexeis: Akademaiko etos 1996–7, Homilos Philosophias Panepistemiou Kyprou, Nicósia 1999, pp. 107–142. Sobre as reações de Gregório de Rimini à filosofia e à teologia de Guilherme de Ockham, cf. Isabelle Mandrella, «Gregory of Rimini», in Christian Rode (ed.), A Companion to Responses to Ockham, Brill, Leida – Boston 2016, cap. 7, pp. 197-224. 492 Cf. Gregorius Ariminensis, Gregorii Ariminensis Lectura super primum et secundum Sententiarum, I, d. 24, q. 1, ff. 129vaL-bN. 266 dizer que a relação é um intervalo, ou uma disposição mediadora, que conjuga os extremos da relação493. Exemplificando com a relação de semelhança, o Tortor infantium494 defende que basta existirem duas coisas que têm qualidades da mesma espécie para que haja uma relação de semelhança entre elas. Não é necessário, de todo, acrescentar uma disposição intermédia entre elas495. Após a minuciosa crítica a cada uma das instâncias desta tese geral do intervalo, ou da disposição mediadora, desenvolve o problema da distinção entre a relação e os entes absolutos nos quais se funda. Na segunda questão da distinção 28, censura aqueles que julgam que a relação, tal como acontece na distinção entre quale e qualitas, tem algo relativo em si mesmo que se constitui como uma aliquiditas, como sendo formalmente algo. Contrariamente, vai afirmar que todas as entidades são simultaneamente absolutas e relativas. Além disso, vai também concluir que não há nenhuma entidade, inerente naquilo que é formalmente relativo, que seja distinta das entidades absolutas. Para o fazer, começa por definir entidade absoluta e entidade relativa de dois modos equivalentes, um antigo, outro moderno (a partir do léxico da lógica terminista): Para provar estas conclusões, coloco como premissa o que entendo por entidade absoluta e entidade relativa. E no modo de falar mais antigo, digo que por entidade absoluta, entendo seja o que for que é, ou é dito, algo relativamente a si (aliquid ad se), isto é, não relativamente a outro, como por exemplo, quando se diz homem ou pedra, ou brancura ou doçura, ou algum outro daqueles que são predicados relativamente a si mesmos, não relativamente a outro. Por entidade relativa, na verdade, entendo qualquer entidade que diz algo relativamente a outro, como por exemplo, quando se diz pai ou filho, dobro ou metade, ou algum outro daqueles que, em si, se predicam relativamente a outro. Ou, no modo de falar mais moderno, chama-se entidade absoluta a toda aquela da qual (ou de um termo que

493 «Ad ista facile est respondere. Primo quidem fundamentum primi doctoris falsum est: quoniam non est ponenda aliqua talis habitudo media que coniungat extrema relatiua.» [É fácil responder a estas coisas. Em primeiro lugar, o fundamento do Doutor (=Pedro Auriol) é falso, dado que não se deve postular tal disposição média que conjuga os extremos relativos.] Ibidem, f. 130vaL. 494 Esta desagradável alcunha deve-se ao facto de Gregório ter defendido, a partir de Agostinho (provavelmente, a carta 166), que os bebés que morrem à nascença sem serem batizados vão para o inferno. 495 Cf. Ibidem. 267

suponha por ela) se predica ou pode predicar diretamente (in recto) algum termo absoluto. Também a entidade relativa é toda aquela da qual (ou de um termo que suponha por ela) se pode predicar diretamente um termo por si relativo496. A partir destas definições, é claro para Gregório que todas as entidades são absolutas, uma vez que se pode perguntar de qualquer entidade o que ela é de acordo consigo própria. Mesmo quando se pergunta o que é (quid est) um pai, não é correto responder que tem um filho, ou que é aquele que gera. O que é correto é dizer qual é a sua essência497. Por outro lado, também é correto afirmar que toda a entidade é relativa na medida em que diz respeito a outras entidades de várias maneiras. No limite, toda a entidade é distinta de outras entidades e a distinção tem um caráter relativo. Além disso, toda a entidade é causa ou causada, conservadora ou conservada, princípio ou principiada. Em todos estes aspetos, uma entidade é relativa498. Após defender mais duas conclusões – que nem todo o relativo é formalmente relativo devido a alguma entidade inerente em si499 e que há alguns relativos que são formalmente relativos devido a alguma entidade inerente em si500 –, Gregório de Rimini remata a questão com a tese de que não existe nenhuma entidade relativa realmente distinta de uma entidade absoluta. Levanta dezenas de objeções e resolve-as exaustivamente. Termina dizendo que Aristóteles nunca proibiu que uma mesma coisa, numericamente una, singular, se encontrasse em diversos géneros ao mesmo tempo501.

496 «Pro probationibus autem harum conclusionum, premitto quod intelligo per entitatem absolutam et per entitatem relatiuam. Et iuxta antiquorem modum loquendi absolutum, dico quod per entitatem absolutam intelligo quamlibet que est seu dicitur aliquid ad se, id est, non ad alterum relatiue, verbi gratia, que dicitur homo vel lapis aut albedo vel dulcedo, aut aliquid aliud eorum que ad se seu non ad alterum predicantur. Per entitatem vero relatiuam intelligo quamlibet entitatem que dicitur aliquid ad alterum relatiue, verbi gratia, que dicitur pater vel filius aut duplum aut dimidium, aut aliquid aliud eorum que secundum se relatiue ad alterum predicantur. Uel iuxta moderniorem modum loquendi entitas absoluta vocatur omnis de qua seu de termino supponente pro ea predicatur vel predicari potest in recto aliquis terminus absolutus. Relatiua quoque entitas est omnis illa de qua seu de termino supponente pro ea potest in recto predicari terminus per se relatiuus.» Ibidem, f. 132rbH-132vaI. 497 Cf. Ibidem, ff. 132vaK-133raB. 498 Cf. Ibidem, f. 133raB-C. 499 Cf. Ibidem, ff. 133raD-135rbG. 500 Cf. Ibidem, f. 135rbG-H. 501 Cf. Ibidem, f. 138vaK. 268

Deste modo, afirma simultaneamente a realidade da relação e a sua indistinção das entidades absolutas. Não sabemos até que ponto estas teses sobre o estatuto do número e da relação foram influentes no futuro. Embora se saiba que o seu comentário às Sentenças foi extensamente parafraseado, especialmente no contexto germânico, que a sua teoria do complexe significabile foi alvo de muitas reflexões, assimilações e críticas no início do século XVI, e que as suas doutrinas agostinianas acerca da predestinação tiveram uma influência duradoura na sua ordem, em especial em Martinho Lutero (1483 – 1546), está por estudar a sua influência nestes assuntos em particular, como em muitos outros502. Aqui, cingimo-nos a apontar caminhos para futuras investigações.

4.2.4. João Buridano (1292 – 1363 [ou 1358/62])

João Buridano foi um dos autores que criticou a teoria do complexe significabile de Gregório. Muito mais do que isso, foi o mais influente mestre de artes de Paris do século XIV. Em especial, as suas doutrinas físicas, o seu comentário à Ética a Nicómaco e o seu comentário aos Tractatus de Pedro Hispano fizeram escola (em sentido lato) nos séculos vindouros. Quando alguém, depois dele, diz que segue a via moderna, refere-se a Buridano e àqueles que seguiram as suas pisadas, como Nicolau Oresme (c. 1320 – 1382), Alberto da Saxónia (c. 1320? – 1390) e Marsílio de Inghen (c. 1340? – 1396), não imediatamente a Ockham, embora os dois partilhem diversas doutrinas, como a rejeição da realidade dos universais ou o uso do vocabulário lógico das propriedades dos termos para resolver problemas filosóficos503. João Buridano nasceu provavelmente em 1292, na diocese de Arras, na Picardia. A partir de meados da década de 1320, torna-se mestre de artes na Universidade de Paris,

502 Pedro d’Ailly (1351 – 1420) seguiu muitas das doutrinas de Gregório. Henrique de Langenstein (c. 1325 – 1397) e Henrique Totting de Oyta (? – 1397), colegas de Pedro d’Ailly, quando fundaram a universidade de Viena, utilizaram o comentário às Sentenças de Gregório de Rimini como texto de base para a lecionação. No início do século XVI, estava bem estabelecida uma via Gregorii em teologia, especialmente no mundo de língua alemã. Cf. Russell L. Friedman – Christopher Schabel, «Gregory of Rimini», p. 443. 503 Cf. o exemplo de Nicolau de Amesterdão (Nicolaus Theodorici Amstelodamensis, ? – 1460), em Egbert P. Bos, «Nicholas of Amsterdam’s Conceptualism in his commentary on the Logica vetus» in Bochumer Philosophisches Jahrbuch für Antike und Mittelalter, 14 (2009–2010–2011) 233–298. 269 cargo que desempenha até ao fim da sua vida. Ao contrário da maioria dos autores que temos vindo a apresentar, Buridano nunca se tornou teólogo. Só se pode especular quais as razões por trás deste dado biográfico. O que se pode afirmar é que o facto de não ser teólogo, bem como o facto de não pertencer a nenhuma ordem religiosa, conferia a Buridano uma liberdade e independência ímpares para trabalhar assuntos filosóficos. Ao longo da sua vida académica, comentou quase todo o corpus aristotélico, escreveu obras autónomas sobre assuntos controversos do seu tempo e foi o introdutor dos Tractatus de Pedro Hispano em contexto universitário. Antes dele, os Tractatus eram sobretudo usados como manual pré-universitário, nomeadamente em escolas conventuais. Morreu em 1363, ou talvez entre 1358 e 1362504. Neste esquisso, pretendemos apontar para dois assuntos importantes. Em primeiro lugar, as suas diferenças com Ockham no que toca à categoria da quantidade. Em segundo lugar, como não poderia deixar de ser, o modo como responde à questão do número e da suficiência das categorias. Apesar de partilhar com Ockham algumas semelhanças metodológicas evidentes, o autor picardo difere dele em diversíssimos assuntos. Na historiografia recente, tem havido uma disputa sobre a relação entre estes autores, os quais nunca se cruzaram em vida. Em particular, discute-se até que ponto Buridano estaria por trás de uma série de condenações de doutrinas físicas inspiradas em Ockham nos estatutos de 1339 e 1340 da Universidade de Paris. Também já foi notado por diversos intérpretes que a tendência intelectualista da

504 Benoît Patar, crítico acérrimo de grandes estudiosos de Buridano, como Gyula Klima, Jack Zupko ou Joël Biard, segue em geral as datas propostas por Hubert Hubien. Na grande maioria dos textos sobre Buridano, são apontadas outras datas. Cf. Johannes Buridanus (=Jean Buridan), Les petites sommes de logique, ed. e trad. Benoît Patar, Les Presses Philosophiques, Longueuil 2016. Cf. também Jack Zupko, «John Buridan», in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), ed. Edward N. Zalta, URL = https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/buridan/; Gyula Klima, «John Buridan», in Henrik Lagerlund (ed.), Encyclopedia of Medieval Philosophy, pp. 597-603. O trabalho de maior envergadura sobre todos os aspetos da vida e da obra de João Buridano é o seguinte: Jack Zupko, John Buridan. Portrait of a Fourteenth-Century Arts Master, University of Notre Dame Press, Notre Dame (Indianapolis) 2003. Este trabalho foi alvo de uma opinião muito pouco lisonjeira de Sten Ebbesen: https://ndpr.nd.edu/news/john-buridan-portrait-of-a-fourteenth-century-arts-master/ (consultado a 02/09/2020). Sobre uma visão geral das categorias em Buridano, cf. Alexander W. Hall, «John Buridan: on Aristotle’s Categories», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 295-316. 270

ética de Buridano se encontra nos antípodas do voluntarismo de Ockham505. Na metafísica, é igualmente clara a diferença entre eles: João Buridano não está disposto a eliminar tantas entidades quantas o Venerabilis Inceptor. Sejam as espécies sensíveis e inteligíveis, sejam os modi essendi, seja o ponto, sejam as quantidades contínuas, advoga a realidade de todas estas entidades. No seu comentário à Física, debate-se com a posição dos moderni que julgam que a magnitude de uma substância se deve simplesmente à disposição das partes da matéria, não sendo, portanto, um acidente nela inerente. Recorde-se, como apontámos no capítulo anterior, que em Ockham, quantidade contínua permanente significa exatamente o mesmo que “coisa una que tem parte distante de parte”. Na questão 8 do livro I, Buridano pergunta «se toda a coisa extensiva e que tenha parte fora de parte no lugar é uma magnitude» (utrum omnis res extensive et situaliter habens partem extra partem est magnitudo)506. Concluirá que nenhuma substância é uma magnitude a partir de diversos argumentos. Alguns desses argumentos dizem respeito às propriedades da categoria da quantidade, diferentes das propriedades da substância e da qualidade, e à refutação de tentativas de reduzir determinadas quantidades contínuas a substâncias ou a qualidades. No final da resposta a todos esses argumentos, Buridano afirma que, independentemente de todos eles, é possível provar que nenhuma substância é uma magnitude a partir de experiências relacionadas com o ar. Numa primeira experiência, descreve a condensação e rarefação do ar num frasco de vidro mediante o aquecimento e a refrigeração. Numa segunda experiência, chama a atenção para o facto de não ser possível comprimir ou distender um fole totalmente isolado. Da comparação entre as duas, Buridano conclui que a magnitude tem de ser uma dimensão distinta da matéria e da forma, dado que uma mesma substância (neste caso, um mesmo ar, com as suas partes extra partes, a mesma matéria e forma) pode ter diversas magnitudes. Por conseguinte, a magnitude é um acidente que explica a extensão de uma substância do mesmo modo que, por exemplo, a

505 Cf. Thomas Dewender, «Responses to Ockham: John Buridan», in Christian Rode, A Companion to Responses to Ockham, cap. 6, pp. 173-196. 506 Cf. Johannes Buridanus, Questiones super octo Physicorum libros Aristotelis, D. Roce, Paris 1509, I, q. 8, ff. 10ra-11vb. 271 brancura explica o facto de uma coisa ser branca507. Daí o seu desacordo com a redução ockhamiana da quantidade à substância (e à qualidade). Seria de acrescentar ao estudo deste assunto uma análise à questão 7 das Quaestiones in Praedicamenta, onde se pergunta «se alguma quantidade é uma substância ou uma qualidade» (Utrum aliqua quantitas sit substantia vel qualitas)508. Quanto à questão do número e da suficiência das categorias, são dois os principais textos nos quais Buridano a trabalha. Há, em primeiro lugar, uma breve referência a este problema no seu comentário aos Tractatus de Pedro Hispano, quando comenta o terceiro livro. Mas é na questão 3 das Quaestiones in Praedicamenta que o desenvolve mais. Neste comentário às Categorias de Aristóteles, há ainda várias questões relevantes para o presente trabalho, questões estas que gostaríamos de trabalhar no futuro, a saber: a questão 7, como já referimos; as questões 10 e 11, sobre o estatuto da relação; e as questões 17 a 19, onde se explora se a ação e a paixão (questão 17), o quando e o onde (questão 18), e o estar posicionado e o hábito (questão 19) devem ser considerados géneros generalíssimos509.

507 «Non obstante tamen quod sic possent solui vel euadi rationes predicte ego ponam conclusionem quod nulla substantia est magnitudo. Et hoc declaratur supponendo quod aer manens idem secundum substantiam potest multum rarefieri vel condensari per calefationem vel frigefactionem (…). Postea ego etiam suppono per experientiam quod trahendo vel deprimendo aerem sine calefactione vel frigefactione tu non potes intantum, scilicet, ad duplum condensare vel rarefacere sicut est dictum quod hoc potest per calefactionem vel frigefactionem. (…) Dicimus enim quod sicut albedo dat esse album formaliter sic magnitudo que est extensio dat esse extensum et magnum, et sicut in eodem subiecto plus de albedine det esse albius et plus de caliditate calidius, ita plus de magnitudine maius et extensius.» [Contudo, não obstante o facto de serem assim resolvidas ou evadidas as razões anteriormente ditas, eu postulo a conclusão de que nenhuma substância é uma magnitude. E isto aclara-se supondo que o ar, permanecendo o mesmo segundo a substância, pode rarefazer-se ou condensar-se muito pelo aquecimento e pela refrigeração. (…) Depois, eu também suponho por experiência que, ao contrair ou deprimir o ar sem calefação ou refrigeração, tu não podes condensar ou rarefazer o ar, por exemplo, para o dobro, do mesmo modo que isso pode acontecer pelo aquecimento ou pela refrigeração. Por isso, dizemos que, do mesmo modo que a brancura confere formalmente o ser branco, assim a magnitude, que é a extensão, confere o ser extenso e grande (magnum). E do mesmo modo que, no mesmo sujeito, mais brancura confere um ser mais branco, e mais calor um ser mais quente, assim também magnitude confere um maior e mais extenso.] Ibidem, f. 11ra-b. 508 Cf. Johannes Buridanus, Quaestiones in Praedicamenta, ed. Johannes Schneider, Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenchaften, Munique, 1984, q. 7, pp. 48-53. 509 Cf. Ibidem, qq. 10-11, pp. 69-85, e qq. 17-19, pp. 126-159; Idem, Summulae. In Praedicamenta, ed. Egbert P. Bos (Artistarium 10-3), Ingenium Publishers, Nijmigen 1994, 3.1.8., pp. 18-19. Não conseguimos apurar quais as datas em que foram redigidos estes trabalhos. É possível, de acordo com Egbert Bos, que o comentário aos Tractatus tenha tido a sua versão final em 1335. Quanto ao comentário por questões às 272

Comece-se pelo pequeno texto que se encontra no meio das monumentais Summulae. Antes de mais, convém dizer que o texto comentado por João Buridano é bastante diferente daquele que se encontra na edição crítica dos Tractatus de Pedro Hispano, o que é algo comum a todo o comentário. Provavelmente, foi utilizado um texto que já havia sido consideravelmente alterado no curso da transmissão manuscrita. Mais ainda, o próprio comentador procedeu a diversas alterações. Isto demonstra que o manual de Pedro Hispano era apenas uma base de trabalho para que os mestres de artes, fosse nas escolas conventuais, fosse, neste caso, na universidade, organizassem o ensino das matérias lógicas e expusessem as suas próprias ideias. No caso do terceiro tratado, sobre os Predicamentos, diga-se que Buridano quis intencionalmente que este precedesse o tratado sobre a suposição (que funde os 7 tratados de Pedro Hispano sobre as propriedades dos termos)510. A razão para a mudança de ordem dos tratados511 é o facto de estes estarem ordenados em torno de três estruturas básicas: o termo, a enunciação ou proposição, e o silogismo ou argumento. De facto, é muito importante para Buridano caracterizar as categorias como termos. Todas elas são termos significativos incomplexos predicáveis ou passíveis de serem sujeitos (subicibiles). Mesmo quando Aristóteles expõe o chamado quadrado ontológico, a expressão eorum quae sunt só pode ser interpretada corretamente se disser respeito aos termos significativos512. Os termos que significam uma substância e não conotam nenhuma outra coisa, são os termos do predicamento da substância. Os acidentes conotam

Categorias, há várias redações da mesma questão, as quais indiciam que Buridano, ao longo do tempo em que foi lecionando, aprimorou versões anteriores do mesmo texto por várias vezes. Por isso, os textos podem ser de qualquer período da sua lecionação. 510 Cf. Johannes Buridanus, Summulae. De suppositionibus, ed. R. Van der Lecq (Artistarium 10-4), Nijmigen 1998, 4.1.1., p. 7. 511 Originalmente, a ordem dos Tractatus, de acordo com a argumentação de De Rijk (embora tenhamos visto que, num dos melhores manuscritos, não é esse o caso), seria: I. De introductionibus; II. De predicabilibus; III. De predicamentis; IV. De sillogismis; V. De locis; VI. De suppositionibus; VII. De falaciis; VIII. De relativis; IX. De ampliationibus; X. De appellationibus; XI. De restrictionibus; XII. De distributionibus. Buridano funde os tratados VI e VIII a XII num tratado só, e antecipa-o para junto do terceiro tratado, sobre as categorias. Além disso, o seu tratado sobre as falácias não tem nada que ver com o tratado equivalente dos Tractatus, que é o mais longo, quase do tamanho de todos os outros juntos. Por fim, o autor picardo acrescenta um tratado que versa sobre os temas dos Analíticos Posteriores que não tem paralelo na obra comentada. 512 Cf. Johannes Buridanus, Summulae. De praedicamentis, 3.1.5., pp. 14-15. 273 algo acerca da substância513. Definindo assim os predicamentos, João Buridano não crê que se possa provar que são apenas dez os predicamentos. Nem Aristóteles alguma vez postulou uma razão para mostrar que fossem apenas dez, nem seria inconveniente postular outros514. Para estender a lista, bastaria encontrar predicáveis que tivessem outro modo de predicar diverso daqueles modos pelos quais são assumidos os dez predicamentos. Apesar disso, ele próprio não encontra outro além dos dez. Na questão 3 das Quaestiones in Praedicamenta, desenvolve mais estes pontos a partir de uma teoria da distinção das categorias por modos de predicar, ou modos de conotar (ou não conotar): Saiba-se que não se pode assumir a distinção destes predicamentos da parte das coisas que os termos predicáveis supõem (supponunt), porque, como antes se argumentava, o mesmo calor é uma ação, uma paixão, uma quantidade, uma qualidade e uma relação; e o mesmo Sócrates é homem, e branco, e com três côvados, e pai, e agente, etc.. A distinção deles também não pode ser assumida numa aceção simples da parte das palavras (voces), pois não é necessário que mude o número que os filósofos comummente postulam devido à diversidade de idiomas. E além disso, para que signifiquem, as palavras são impostas arbitrariamente. Por conseguinte, os predicamentos seriam

513 «Notandum quod in hac divisione terminorum incomplexorum non cadunt omnes dictiones incomplexae, sed illae quae significative sumptae sunt praedicabiles et subicibiles. Dicit ergo quod quidam termini praedicabiles significant substantiam, sine connotatione aliena, et sunt de praedicamento substantiae. Alii significant, sive connotant, circa substantiam ita quod dicta de primis substantiis non solum significant quid est, sed qualis, et sunt de praedicamento qualitatis, et sic de aliis.» [Deve notar-se que não caem nesta divisão dos termos incomplexos todas as palavras incomplexas, mas apenas aquelas que assumem a significação de predicados e sujeitos. Diz, portanto, que alguns termos predicáveis significam uma substância, sem outra conotação, e são do predicamento da substância. Outros significam ou conotam acerca da substância, de tal modo que, ditos das substâncias primeiras, não significam apenas “o que é”, mas também “qual”, e são do predicamento da qualidade. O mesmo para os restantes .] Ibidem, 3.1.8., p. 18. 514 «Et sciendum est quod numquam Aristoteles posuit rationem ad ostendendum quod non essent alia praedicamenta praeter ista decem. Nec esset inconveniens ponere alia, si invenirentur praedicabilia habentia alios modos praedicandi, non reducibiles nec contentos sub istis modis secundum quos sumuntur haec decem praedicamenta.» [E deve saber-se que Aristóteles nunca postulou uma razão para mostrar que não existem outros predicamentos além destes dez. Nem seria inconveniente postular outros se se descobrissem predicáveis que tivessem outros modos de predicar, nem redutíveis, nem contidos sob estes modos segundo os quais se assumem estes dez predicamentos.] Ibidem. 274

aumentados a nosso bel-prazer, coisa que é inconveniente. Pelo contrário, assumem-se a partir das diversas intenções segundo as quais os termos são conotativos de diversos modos, ou também não-conotativos. A partir destas diversas conotações, provêm os diversos modos de predicar dos termos no que diz respeito à substância primeira; e assim distinguem-se direta e imediatamente devido aos diversos modos de predicar as substâncias primeiras515. Nesta resposta mais longa, Buridano mostra que a suposição de um termo, isto é, aquilo para o qual o termo aponta, ou aquilo que o termo substitui (está no lugar de…), não é suficiente para distinguir os predicamentos, pois uma mesma coisa pode ser suposta por vários termos em diversos predicamentos. Por outro lado, também não se trata de uma distinção entre palavras, porque as palavras são arbitrárias. Os predicamentos dizem respeitos às intentiones. Os termos apontam para diversas intenções sobre uma mesma coisa de acordo com diversos modos de conotar (ou de não conotar, no caso da substância). Partindo desta posição, afirma que é impossível fazer uma via divisiva das categorias «por divisões suficientes de alguma razão comum em razões específicas»516. É um esforço vão. Portanto, admite novamente que talvez fosse possível encontrar mais categorias, embora esse exercício lhe pareça inútil: Daí que, se encontrarmos alguns predicáveis comuns que tenham outros modos de predicar para além dos ditos dez, parece-me plenamente que não se deveria negar que existiriam mais predicamentos. (…) Contudo, parece-me certo que estes dez, mesmo que existam alguns outros, são os mais manifestos ou os que

515 «Secundo sciendum, quod non potest sumi horum praedicamentorum distinctio ex parte rerum, pro quibus termini praedicabiles supponunt, quia sicut prius arguebatur, eadem caliditas est actio et passio et quantitas et qualitas et ad aliquid; et idem Socrates est homo et albus et tricubitus et pater et agens etc. Nec potest eorum distinctio sumi simpliciter ex parte vocum, quia non oportet propter diversa idiomata mutare numerum, quem communiter ponunt philosophi. Et voces etiam imponuntur ad significandum ad placitum. Ideo plurificarentur praedicamenta ad placitum nostrum, quod est inconveniens. Sed sumuntur ex diversis intentionibus, secundum quas termini sunt diversimode connotativi vel etiam non connotativi. Ex quibus diversis connotationibus proveniunt diversi modi praedicandi terminorum de primis substantiis; et ita directe et immediate distinguuntur penes diversos modos praedicandi de primis substantiis.» Johannes Buridanus, Quaestiones in Praedicamenta, q. 3, pp. 17-18. 516 «Et sciendum, quod haec distinctio praedicamentorum non est per divisiones sufficientes alicuius rationis communis in rationes speciales…» Ibidem, p. 19. 275

contêm sob si a maior pluralidade de predicáveis. Por isso, é razoável que se devam enumerar estes; e não seria necessário enumerar os outros, dado que, se também existissem outros, seria fácil a partir da consideração e determinação destes dez, uma vez que seriam considerados e determinados de acordo com a semelhança ou proporção com aquelas coisas que são determinadas destes517. Como dissemos, a influência de Buridano no futuro será imensa, especialmente nas universidades então nascentes da Europa Central. Essa influência prolonga-se até ao século XVI através da impressão de edições que contêm uma exposição de João Dorp (de finais do século XIV) ao seu comentário aos Tractatus518. Quanto a esta questão da suficiência e da distinção das categorias em particular, seria preciso um estudo que ainda está por fazer.

4.2.5. Brás de Parma (1350/4 – 1416)

E chegamos ao fim deste capítulo com mais um comentador dos Tractatus de Pedro Hispano, o qual nos permite exemplificar a discussão do nosso tema na Itália da segunda metade do século XIV. De facto, neste período, é comum dar bastante realce ao aparecimento de um conjunto de autores humanistas que combatem ferozmente as subtilezas lógicas da escolástica, particularmente em Florença. Referimo-nos a autores como Francisco Petrarca (1304 – 1374), Collucio Salutati (1331 – 1406) ou Leonardo Bruni (1370 – 1444). Contudo, houve, como em muitas outras universidades transalpinas, também uma influência da via moderna no ensino da filosofia nas universidades italianas,

517 «Unde si aliqua praedicabilia communia inveniamus habentia alios modos praedicandi praeter dictos decem, apparet mihi omnino, quod non esset negandum, quin essent plura praedicamenta. (…) Sed tamen mihi apparet pro certo, quod ista decem, si sint aliqua alia, sunt magis manifesta et continentia sub se maiorem pluralitatem praedicabilium. Ideo rationabiliter ista magis enumerari debuerunt, nec oportebat alia enumerare, dato etiam quod essent alia, quia ex consideratione et determinatione istorum decem erat facile de aliis, cum occurrerent, considerare et determinare secundum similitudinem vel proportionem ad ea, quae de istis determinata sunt.» Ibidem, pp. 19-20. 518 Cf. Johannes Buridanus – Johannes Dorp, Perutile compendium totius logice Joannis Buridani cum preclarissima solertissimi viri Joannis Dorp expositione, ed. Petrus Ioannes de Quarengiis Bergomensis, Veneza 1499. 276 em particular em assuntos lógicos e físicos. Um dos representantes mais importantes desta via em Itália foi, decerto, Brás de Parma (Blasius de Parma, Biagio Pelacani). O doctor diabolicus, conhecido, entre outras coisas, pela sua tentativa de naturalizar o fenómeno religioso, pelo desenvolvimento de uma tendência (inglesa) de matematização da física e por defender posições éticas controversas relativamente ao suicídio e à morte heroica, foi, de acordo com Anneliese Maier, tão importante para a filosofia italiana da segunda metade do século XIV quanto Ockham foi para a inglesa, ou Buridano para a francesa519. Fez uma parte da sua formação filosófica em Paris, mas foi em Pavia que terminou os seus estudos em filosofia e medicina. A partir de 1374, foi professor de lógica, filosofia natural, filosofia moral, medicina e astrologia em diversas universidades, a saber, Pavia (de 1374 a 1378 e de 1389 a 1407), Bolonha (de 1378 a 1384), Pádua (de 1384 a 1388 e de 1407 a 1411), Florença (1388) e Parma (de 1412 a 1415)520. As suas Questiones super Tractatus logice magistri Petri Hispani (1374 – 1388) foram sendo escritas e reescritas ao longo da lecionação nas três primeiras universidades por onde passou. Não se trata de um comentário completo, nem há nenhum texto particular que esteja a ser comentado, como acontecera em Buridano. Brás de Parma organiza grupos de questões a partir das temáticas próprias dos cinco primeiros tratados de Pedro Hispano. O terceiro, dedicado às categorias, não contém uma questão específica acerca do número e da suficiência das categorias, mas podemos encontrar nele uma série

519 Cf. a introdução de Joël Biard e Graziella Federici Vescovini, em Blasius de Parma (=Blaise de Parme), Quaestiones super Tractatus logice magistri Petri Hispani, ed. Joël Biard – Graziella Federici Vescovini, J. Vrin, Paris 2001, pp. 7-36. Sobre a naturalização do fenómeno religioso através de explicações astrológicas, cf. Christophe Grellard, «Une histoire naturelle des religions: Blaise de Parme, les astres et les sectes», in Joël Biard – Aurélien Robert (eds.), La philosophie de Blaise de Parme. Physique, psychologie, éthique, SISMEL – Edizioni del Galluzzo, Florença 2019, pp. 59-82. Sobre a física, cf. os artigos de Graziella Federici Vescovini, Daniel A. Di Liscia, Sabine Rommevaux-Tani e Nicolas Weill- Parot no mesmo volume. Sobre a ética, cf. o artigo de Aurélien Robert, também neste volume. 520 Sobre a vida e a obra de Brás de Parma, o trabalho mais completo e atualizado é de Graziella Federici Vescovini, «Pelacani, Biagio», in Raffaele Romanelli et al. (eds.), Dizionario biografico degli Italiani, vol. 82: Pazzi – Pia, Istituto dell'Enciclopedia italiana fondata da Giovanni Treccani, Roma 2015, pp. 95-100. Está disponível em linha: https://www.treccani.it/enciclopedia/biagio-pelacani_(Dizionario-Biografico)/ (consultado a 09/10/2020). A introdução às Quaestiones super Tractatus logice magistri Petri Hispani contém também abundante informação e bibliografia acerca do autor. 277 de posições que nos permitem dar conta do percurso do nosso tema na transição do século XIV para o XV521. Este comentário permite mostrar que, no final do século XIV, debate-se mais sobre as três categorias absolutas do que sobre as restantes. Isto é verdade também no que diz respeito à redução da lista de categorias às quais correspondem coisas realmente distintas522. Deste modo, a par de questões mais habituais, como a questão acerca da realidade da relação, há também questões sobre se a substância se constitui como um predicamento, se a quantidade é algo diferente da substância e da qualidade, se o número é algo diferente das coisas numeradas, entre outras. Das quatro principais categorias, aliás, aquela acerca da qual se colocam mais questões é a da quantidade, a qual, tal como em Guilherme de Ockham, não supõe por algo real que seja distinto de substâncias e qualidades. Brás afirma por várias vezes que os membros que recaem sobre os predicamentos e que constituem as várias linhas de coordenação do superior e do inferior, ou do mais geral e do menos geral, são termos, quer sejam tomados como termos in voce, quer como termos in scripto, quer como termos in mente. Por isso, a questão da realidade que estes termos supõem é, como já temos vindo a ver em alguns outros autores, independente da questão do número e da suficiência dos predicamentos. Em nenhuma passagem destas questões parece haver, da parte de Brás, qualquer tentativa de reduzir a lista aristotélica.

521 Este tratado foi estudado em profundidade por Jöel Biard: cf. Joël Biard, «Le traité sur les Catégories de Blaise de Parme», in Joël Biard – Irène Rosier-Catach (eds.), La tradition médiévale des Catégories (XIIe-XVe siècles), Peeters, Louvaina-a-Nova 2003, pp. 365-378; Idem, «The Status of Categories and its Epistemological Stakes in the Fourteenth Century: The Case of Blasius of Parma», in Sten Ebbesen – John Marenbon – Paul Thom (eds.), Aristotle’s Categories in the Byzantine, Arabic, and Latin Traditions, pp. 245-262. 522 Trata-se de um tendência crescente, com antecedentes nos anos 1320 e 1330, como pudemos verificar em Ockham. A título de exemplo, Robert Andrews publicou recentemente uma questão de um autor pouco estudado, a saber, Tomás Maulevelt (ou Manlevelt), que chega a propor que se nega a existência da substância. Os comentários lógicos desse autor têm vindo a ser estudados em maior profundidade por Alfred van der Helm e é possível que sejam um pouco mais tardios, de 1360. Independentemente disso, é certo que há uma tendência para começar a discutir a possível redução das próprias categorias absolutas a termos, ou conceitos, ou intentiones que não correspondem a coisas reais diversas. Cf. Robert Andrews, «Thomas Maulevelt’s Denial of Substance», in Lloyd A. Newton (ed.), Medieval Commentaries on Aristotle’s Categories, pp. 347-368; Thomas Manlevelt, Questiones libri Porphyrii, ed. Alfred van der Helm, Brill, Leida – Boston 2014. 278

Ao perguntar-se se aquilo que se predica in quale pertence ao predicamento da qualidade, afirma o seguinte: E primeiro, esta conclusão: que não é devido ao facto de estes ou aqueles termos significarem uma qualidade que estes ou aqueles termos são postuláveis no predicamento da qualidade. É evidente, pois então seriam suficientes para nós dois predicamentos. O consequente é falso; e sustenta-se a consequência, porque qualquer termo, no mundo, significa uma qualidade ou uma substância, posto que tudo o que é, é substância ou qualidade523. Tal como para Ockham, também para o doctor diabolicus existem apenas duas categorias que correspondem a coisas realmente distintas no mundo524. Na terceira conclusão desta mesma questão, após mostrar que não é pelo facto de um termo significar determinado género de coisa no mundo que este pertence a esta ou aquela categoria, Brás de Parma postula a sua tese acerca daquilo que divide ou distingue as categorias: É devido ao facto de estes ou aqueles termos terem um modo de predicar conotativamente in quale, e ao facto de terem tal modo de interrogar, que estes ou aqueles termos são postulados no predicamento da qualidade. Com isto, quero dizer que os predicamentos são divididos de acordo com a divisão dos termos que têm um diverso modo de significar, conotar e interrogar. Por exemplo, dizemos que todos os termos que predicam in quid são postuláveis num predicamento, os que predicam in quantum ou quanto (quot) são postuláveis noutro, e os que predicam in quale postulam-se no predicamento da qualidade525.

523 «Et primo de ista conclusione quod non propter istos terminos vel illos significare qualitatem, isti termini vel illi sunt ponibiles in predicamento qualitatis. Patet statim quia tunc duo predicamenta nobis sufficerent. Consequens est falsum, et tenet consequentia quia quilibet terminus mundi significat qualitatem vel substantiam, eo quod omne quod est est substantia vel qualitas.» Blasius de Parma, Questiones super Tractatus Logice, III, 15, p. 320. 524 De acordo com Magali Roques, por vezes, Brás chega a reduzir a qualidade a algo que emerge da matéria, podendo, portanto, afirmar que tudo o que existe é substância. Cf. Magali Roques, «Blaise de Parme et la quantité», in Joël Biard – Aurélien Robert (eds.), La philosophie de Blaise de Parme, pp. 175- 196. 525 «Propter isto terminos vel illos habere modum praedicandi connotative in quale et talem modum interrogandi, isti termini vel illi ponuntur in praedicamento qualitatis, ut vellem dicere quod praedicamenta sunt divisa secundum divisionem terminorum habentium diversum modum significandi, connotandi, et interrogandi, ut dicimus quod omnes termini predicantes in quid sunt ponibiles in uno predicamento, predicantes autem in quantum vel quot sunt ponibiles in alio predicamento, et predicantes in quale ponuntur 279

Aqui, parece haver uma síntese entre a via interrogativa de Auriol e de Ockham, e a resposta de Buridano segundo a qual diversas conotações ou diversos modi praedicandi ditam a diversidade dos predicamentos. Algumas questões atrás, confirma-se que Brás descarta a quantidade como real, encontrando-se mais próximo de Ockham do que de Buridano neste ponto. Todavia, coloca esta hipótese como provável, não como certa, dado que a quantidade contínua (ou a extensão) pode, pelo menos no campo da possibilidade (ou daquilo que a potência divina poderia fazer), separar-se da substancialidade de um corpo. Assim, ao passo que lhe parece indubitável que a quantidade discreta (ou o número) contenha dentro de si termos conotativos que indicam na realidade substâncias a partir de determinadas propriedades suas, não está tão certo disso quanto à extensão. Considera até defensável qualquer uma das opiniões, embora a tese reducionista seja a mais provável. Como pudemos verificar na nossa exposição sobre Ockham, trata-se de algo que já acontecera no autor inglês. Esta hipótese arrojada é colocada como a mais provável, não como certa. O argumento sobre a possibilidade de separar a extensão da substancialidade de um corpo encontra-se no terceiro artigo da questão 5: «toda a extensão pela qual Sócrates é extenso pode ser removida do próprio Sócrates, permanecendo este em todo o seu ser perfeito»526. Pouco depois, afirma que quem defender a posição contrária, posição igualmente provável, tem de afirmar que a coisa extensa é a sua extensão e conceder que «uma mesma substância quantitativa pode encontrar-se sob esta ou aquela extensão maior, menor, ou igual, e isto mediante o movimento local»527, ou seja, tem de defender que a extensão é o mesmo que ter partes distantes de partes, à maneira de Ockham. Este retrato breve de Brás de Parma serve o propósito de exemplificar os caminhos percorridos pelo problema da suficiência das categorias na transição do século XIV para o século XV.

ut in predicamento qualitatis.» Blasius de Parma, Questiones super Tractatus logice magistri Petri Hispani, III, 15, p. 320. 526 «… tota extensio qua Socrates est extensus potest removeri ab ipso Socrate manente in suo esse perfecto.» Ibidem, III, 5, p. 269. 527 «… eadem substantia quanta posset esse sub alia et alia extensione maiori vel minori vel equali, et hoc mediante motu locali…». Ibidem, p. 270. 280

Neste capítulo, julgamos ter mostrado de que modo se esboroa a assunção de que às categorias corresponde algum tipo de realidade. Mostrámos também que continua a haver quem defenda essa correspondência, por vezes inovando no modo como se posiciona perante as tentativas mais reducionistas. Tornou-se patente que não é fácil ditar uma tendência geral, posto que, conforme a categoria particular que esteja em causa, conforme o autor, conforme o contexto, há várias hipóteses colocadas. O que é certo, parece-nos, é a desconfiança geral numa via divisiva ou sufficientia das categorias. Para justificar o número e a divisão das categorias, a questão colocada passa a ser, quase sempre, a da distinção: o que distingue as categorias? Essa questão, além disso, separa-se muitas vezes da questão da realidade correspondente a cada uma delas. De facto, embora tenhamos falado de um reducionismo, não encontrámos nenhum autor que propusesse uma redução da lista aristotélica das categorias. Da parte dos que reduzem as categorias reais a duas ou três, o que encontrámos, pelo contrário, foram justificações da lista que prescindem da necessidade de uma correspondência entre as divisões categoriais e as divisões do ente, ou do ente (finito) nas suas determinações não- transcendentes. Futuramente, gostaríamos de explorar este tema nos séculos seguintes, ensaiando descobrir de que modo se dá o ocaso de uma lista que reuniu tão grande consenso durante centenas e centenas de anos. Também gostaríamos de estudar aqueles autores que negam a utilidade de todo o esquema de coordenação predicamental, seja ele considerado como um esquema de organização de termos, seja ele considerado como uma taxonomia do real. Referimo-nos a textos como a Destructio sive eradicatio totius arboris Porphyrii, de Agostinho Triunfo de Ancona (1243 - 1328)528. Pretendemos ainda vir a explorar os tratados autónomos sobre o conceito que surgem na segunda metade do século XIV, como o de Pedro de Ailly (1351 – 1420)529.

528 Cf. Augustinus de Ancona, Destructio sive eradicatio totius arboris Porphyrii, ed. Johannes Antonius de Benedictis, Bolonha 1503. 529 Cf. Paul Vincent Spade, Peter of Ailly: Concepts and Insolubles, Reidel, Dordrecht 1980; Egbert Bos – Stephen Read, Concepts. The Treatises of Thomas of Cleves and Paul of Gelria, Peeters, Lovaina – Paris 2004. 281

Por agora, julgamos ter evidenciado exaustivamente cerca de dois séculos de uma longa e frutuosa discussão.

282

Considerações finais

É já grande e necessária prova de inteligência ou perspicácia saber o que se deve perguntar de modo racional. Pois que se a pergunta é em si disparatada e exige respostas desnecessárias tem o inconveniente, além de envergonhar quem a formula, de por vezes ainda suscitar no incauto ouvinte respostas absurdas, apresentando assim o ridículo espetáculo de duas pessoas, das quais (como os antigos diziam) uma ordenha o bode enquanto outra apara com uma peneira. Immanuel Kant (1787)530

Ao longo da nossa exposição sobre o problema da suficiência das categorias na escolástica medieval latina, fomos evidenciando as conclusões a que chegámos. Assim sendo, nestas considerações finais, resta-nos traçar um breve resumo que descreva, sinteticamente e com rigor, o percurso deste problema nos dois séculos tratados. Pudemos verificar que a sufficientia era um procedimento didático comum utilizado para justificar a completude de diversas listas, no contexto do ensino universitário. Apontámos, igualmente, que esse procedimento se enraíza em tentativas semelhantes presentes nos Tópicos de Aristóteles e em diversos comentários de Boécio. As primeiras sufficientiae da lista aristotélica das categorias, que datam, aproximadamente, das décadas de 1230/1240, provêm de comentários às Categorias produzidos na Faculdade de Artes da Universidade de Paris. Têm como critérios de divisão pares e tríades retirados de diversas fontes. Das Categoriae decem, os autores retiram a tríade dentro – fora – parcialmente dentro, parcialmente fora (da substância). Do Liber sex principiorum, retiram o par adveniente intrínseco – adveniente extrínseco. Diretamente de Aristóteles, utilizam a tríade matéria – forma – composto para distribuir

530 Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos – Alexandre Fradique Morujão, Fundação Calouste Gulbenkian, 8ª edição, Lisboa 2013, I, 2ª parte, intr., III, p. 93 (B82-83, A58). 283 as categorias nas diversas partes da estrutura hilemórfica. Vimos que Roberto Kilwardby e Nicolau de Paris, que escrevem sensivelmente no mesmo período e contexto, apresentam sufficientiae bastante diversas entre si. Em ambas, todavia, não se recorre a qualquer divisão das categorias pela diversidade da sua predicação. O objetivo é, antes, enquadrar o aparato categorial aristotélico numa visão metafísica coerente. Kilwardby, em meados do século, aponta também para uma ideia, já latente nas fontes, de que há sete categorias que não são coisas (res), mas disposições das coisas (habitudines rerum). O que é uma habitudo? É ou não real? Eis a pergunta que começa a ecoar. De seguida, mostrámos como Alberto Magno propõe uma tese que se torna a opinio communis na década seguinte: há modos de predicar próprios a cada categoria, e estes podem ser derivados de modos de ser. Tomás de Aquino desenvolve esta assunção e distribui as categorias na sua sufficientia a partir de subdivisões dos modos de predicar per se. De extrema importância é o facto de os dois autores terem visões bastante diferentes sobre os seis princípios. Esta diferença marca duas tendências que se vão repetir. Alberto Magno, à maneira de Kilwardby, enfatiza o caráter relacional, de habitudo, dos seis princípios. Por outro lado, baseando-se no Liber sex principiorum e nas obras teológicas de Boécio, caracteriza-os como imagines de puras formas participadas nas coisas materiais. Tomás de Aquino não segue esse caminho. Aquilo que caracteriza os seis princípios é a denominação extrínseca, coincidente com o modo de predicar per se quarto modo. Assim, embora este ponto se torne mais explícito em Herveu de Nédellec, o Doutor Angélico propõe que é suficiente que uma categoria denomine algo extrínseco sobre o seu sujeito para que seja considerada realmente distinta deste. Não precisa de apontar para algum tipo de entidade não-absoluta com um estatuto real débil e difícil de definir. Depois destes dois dominicanos, bifurcámos a nossa linha cronológica. Uma primeira linha marca continuidades, a outra, ruturas. De facto, no último quartel do século XIII, são repropostas, com aprimoramentos, nuances e diferenças de enquadramento, sufficientiae baseadas na tese de Alberto segundo a qual se derivam os modos de predicar dos modos de ser. Vimos que a gramática modista e a complexificação da discussão das

284 noções avicenianas de intenção primeira e intenção segunda contribuíram imensamente para que esta tese florescesse. Assistimos, igualmente, a uma problematização cada vez maior da relação entre lógica e metafísica. Cada um dos três autores apresentados contém especificidades notáveis. Em Pedro de Alvérnia, autor de breves palavras, há uma sistematização maior da sufficientia: as divisões são sempre binárias e mutuamente exclusivas. Em Simão de Faversham, encontramos pela primeira vez a ideia de que as categorias nem se distinguem apenas pelos seus modos de ser, nem apenas pelas coisas que supõem, mas são um composto de res e modus (ou ratio). E ressurge a pergunta: o que é um modus, ou uma ratio? Em Raul, o Bretão, por fim, no virar do século, há uma assunção de que a questão da distinção das categorias não é uma questão que possa ter uma resposta lógica, mas sim metafísica. Em Henrique de Gante, a questão da suficiência encaminha-se mais patentemente para a questão da distinção. De facto, constitui-se aqui uma rutura: partilhando a ideia de Simão de Faversham acerca do caráter composto das categorias, Henrique acaba por assumir que os modi não correspondem a algo real, mas sim a intenções, ou distinções intencionais, não no sentido aviceniano do termo, mas sim daquilo que é inseparável numa mesma coisa e separável em coisas diferentes. Além disso, desenvolve a ideia de habitudo rerum, ou respectus, muito extensamente, a partir da problematização da Trindade cristã. Retoma a tese agostiniana de que a relacionalidade, ou o respectus purus, é uma determinação diversa daquelas que distinguem a substância dos acidentes. O caráter relacional de todas as categorias que não a substância, a quantidade e a qualidade, e a distinção dos seis princípios apenas pelos seus modi referendi, contribuem para o nascimento de uma tendência para reduzir a lista de categorias reais. A rutura levada a cabo por Teodorico de Freiberga é, de certa maneira, sui generis, embora não diga nada que já não tivéssemos encontrado, pelo menos, de um modo difuso, em Alberto Magno e em Henrique de Gante: há categorias que são coisas de primeira intenção e que, no entanto, são produzidas pelo intelecto. O que é sui generis na sua tese é o facto de o real, em Teodorico, não ser definido como o ente fora da alma, posto que há entes produzidos pelo intelecto que são, de pleno direito, considerados reais. Trata-se de uma espécie de espelho invertido de algumas doutrinas do século XIV, que, como

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Teodorico, afirmam que há categorias que são produzidas pelo intelecto, mas, ao contrário dele, negam o seu estatuto real. Os últimos dois disruptores na passagem do século são Pedro de João Olivi e Duns Escoto. É devido às suas críticas que se dá o ocaso da sufficientia como procedimento privilegiado para demonstrar a completude e justeza da lista aristotélica. As sufficientiae são narrações, não provas, e ainda que fossem provas, provariam exatamente o oposto daquilo que é pretendido. Entre eles, no entanto, não podia haver maior distância quanto à apreciação do estatuto metafísico das categorias. Olivi é um dos primeiros a propor que um dos, até agora, intocáveis, predicamentos absolutos não é real, a saber, a quantidade, ideia que ecoa num longo debate no século XIV. Escoto, por sua vez, considera que todas as categorias se distinguem pelas suas essências e são, de pleno direito, reais. Também esta tese será alvo de desenvolvimentos no século XIV. Vimos que a própria transmissão dos Tractatus de Pedro Hispano contém uma característica que demonstra uma tensão na tentativa de enquadrar as Categorias de Aristóteles nas disciplinas lógicas. Sobressai a tendência de lê-las como uma introdução à teoria do termo e das suas propriedades. O último capítulo, dedicado ao século XIV, torna manifestas as diversas tendências que se vinham a criar no século anterior. Em primeiro lugar, há uma problematização profunda das noções de intenção e de ser objetivo que contribui para a redução do número de categorias, se tomadas como entidades reais. Em segundo, as sufficientiae, ou são abandonadas, ou reconfiguradas como divisões de conceitos. Em terceiro, a questão fundamental que os autores colocam para responder ao problema da suficiência da lista aristotélica passa a ser a questão da distinção. É essa a questão que Herveu de Nédellec coloca acerca da relação e dos seis princípios. A relação não é realmente diferente do seu fundamento, mas introduz um termo que o seu sujeito, por si só, não introduz. Os seis princípios não diferem das coisas absolutas, mas fazem com que elas denominem algo que lhes é extrínseco. Deste modo, todas estas categorias são consideradas reais, não por introduzirem uma entidade diversa, mas por apresentarem o modo como se relacionam ou interagem as diversas entidades reais. Mais ainda, são reais na medida em que as coisas estão dispostas para serem assim

286 pensadas, de acordo com a sua noção de intencionalidade. Esta noção é rejeitada por Pedro Auriol, que julga que o ser intencional não é causado por uma disposição das coisas, mas pelo intelecto. É, aliás, algo que, pela operação intelectual, gera uma mistura indestrinçável entre o ato de conceber e a coisa concebida. Assim sendo, pondo de parte a ação e a paixão, as restantes categorias não-absolutas são um produto do intelecto. Contudo, isso não quer dizer que não sejam categorias. Uma categoria é, para Pedro Auriol, uma coordenação de conceitos. O escotista Pedro de Tomás também coloca a questão da distinção e está na origem, em conjunto com Francisco de Meyronnes, de uma tradição de produção de tratados autónomos que apresentam taxonomias da distinção. De acordo com este autor, todas as categorias têm entre si uma distinção essencial se totis subiective, isto é, todas elas constituem essências diversas que contêm indivíduos separáveis, pelo menos pela ação divina. Guilherme de Ockham, parcialmente em sintonia com Pedro Auriol, julga que é claro que as categorias são termos, e, em primeiro lugar, termos mentais, ou conceitos. A questão de saber se estes termos apontam para coisas reais não dita se eles fazem ou não parte de uma categoria. Com ele, nem as sete categorias relacionais, nem a quantidade constituem algo que possa ser chamado real. Apenas a substância e a qualidade contêm termos que supõem por coisas reais, mas isso não é algo que seja verdade relativamente a todos os seus membros. A sua proposta de sufficientia é semelhante a uma proposta de Pedro Auriol: as categorias são tantas quantas as interrogações que podem ser feitas acerca da substância primeira. Auriol chega a dizer que as categorias, pelo seu caráter primário, não têm qualquer justificação a priori. Encontrá-las é fazer uma “caçada de termos”. Evidentemente, esta resposta é insatisfatória. Gualter Chatton propõe que o número de categorias só pode ter como critério o número de coisas realmente diversas. Gualter Burley, por sua vez, robustece o estatuto real, não só das categorias, mas das proposições. Contudo, retorna às velhas sufficientiae, embora saiba que estas não têm um grande valor. Parece-nos, com efeito, começar a haver uma penúria de possibilidades de justificar a lista aristotélica. E Buridano, de facto, não se preocupa muito se a lista pode ser

287 aumentada ou não. Se puder, se houver outros modos de predicar que não sejam subsumidos pelos membros desta lista, aumente-se. No entanto, não deixa de considerar essa busca inútil. As categorias têm uma utilidade própria, que é mostrar as diversas conotações que podem ser feitas acerca de uma substância primeira. Gregório de Rimini e Brás de Parma são um exemplo de todas estas tensões criadas. Nem um, nem outro, apresentam uma suficiência. Tendem a discutir, ao pormenor, se esta ou aquela categoria em particular tem um estatuto real ou não. À discussão do estatuto da relação e dos seis princípios, acresce um longo debate acerca da quantidade.

Voltando à epígrafe, será que também as tentativas de resolver o problema da suficiência das categorias consistem, segundo a expressão de Kant, em aparar a ordenha com uma peneira? O problema, desde o início, foi mal colocado? Os instrumentos para o resolver são os errados? Foram feitas as perguntas certas? Porquê a insistência na lista? Talvez fosse quase impossível abdicar das categorias aristotélicas para este modo de fazer filosofia muito particular que é o comentário a Aristóteles. Por isso, é provável que a questão nem pudesse chegar a ser colocada a não ser por aqueles que simplesmente desprezavam o pensamento aristotélico como um todo. Mesmo no que toca a assuntos teológicos, em particular a Trindade, mas também a Eucaristia, a partir do momento em que os termos da discussão incluem o vocabulário categorial aristotélico, torna-se muito difícil abandoná-lo. Por outro lado, sob um ponto de vista pragmático, a lista aristotélica era suficientemente útil e eficaz para os propósitos dos seus utilizadores. Se considerarmos com detalhe os modos de discutir o problema, como aqui tentámos fazer, aquilo que se obteve obliquamente nestas tentativas de justificação, porventura com um modelo de conceptualização que hoje nos é distante, é de tal modo proveitoso que estas interrogações devem seguramente ser relativizadas. Futuramente, temos o objetivo de prosseguir o duplo caminho que aqui abrimos: por um lado, completar e publicar as traduções de textos filosóficos medievais sobre a suficiência das categorias (ver volume 2); e, por outro, prosseguir a análise das discussões para compreender plenamente como a autoridade de Aristóteles nesta matéria, após séculos e séculos de tentativas, se exaure e capitula.

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