A Paulistânia, O Mineiro E O Italiano
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A Paulistânia, o mineiro e o italiano: processo histórico, acesso à terra e aexperiência histórica e cultural numa Moda de Viola. THIAGO RIGHI CAMPOS DE CASTRO* Resumo Parte integrante da pesquisa de mestrado intitulada "A Paulistânia, o mineiro e o italiano: processo histórico, acesso à terra e a experiência histórica e cultural numa Moda de Viola", esta comunicação apresenta alguns resultados e análises ainda parciais e em processo. Aqui são discutidos aspectos relativos ao que possa ser a Paulistânia e abordadas questões históricas referentes ao acesso e à disputa pela propriedade da terra nesta região. O ponto de partida para tanto é a letra da Moda de Viola O mineiro e o italiano - composição de Teddy Vieira e Nelson Gomes. Por meio da análise das relações sociais, econômicas, jurídicas e de poder, assim como de alguns elementos que dão sentido e coesão à narrativa desta obra, intenta-se investigar em que medida esta canção popular pode ser compreendida enquanto síntese do processo histórico e da experiência histórica e cultural da região no período compreendido entre os séculos XVI e início do XX. * Mestrando do programa de pós-graduação multidisciplinar em Culturas e Identidades Brasileiras (IEB-USP), é Bacharel em História (USP) e em Música Popular (UNICAMP). O Mineiro e o Italiano (Teddy Vieira e Nelson Gomes) 2 O mineiro e o italiano viviam às barras dos tribunais Numa demanda de terra que não deixava os dois em paz Só em pensar na derrota o pobre caboclo não dormia mais O italiano roncava: nem que eu gaste alguns capitais Quero ver esse mineiro “voltar de a pé” pra Minas Gerais “Voltar de a pé” pro mineiro seria feio para os seus parentes Apelou para o advogado: fale para o juiz pra ter dó da gente Diga que nós somos pobres que meus filhinhos vivem doentes Um palmo de terra a mais para o italiano é indiferente Se o juiz me ajudar a ganhar lhe dou uma leitoa de presente Retrucou o advogado: o senhor não sabe o que está falando Não caia nessa besteira senão nós vamos “entrar pro cano” Este juiz é uma fera, caboclo sério e de tutano Paulista da velha guarda família de 400 anos Mandar a leitoa para ele dar a vitória para o italiano Porém chegou o grande dia que o tribunal deu o veredicto Mineiro ganhou a demanda, o advogado achou esquisito Mineiro disse ao doutor: eu fiz conforme eu lhe havia dito Respondeu o advogado que o juiz vendeu e eu não acredito Jogo meu diploma fora se nesse angu não tiver mosquito Di fato, falou o mineiro, nem mesmo eu estou acreditando Ver meus filhinhos “de a pé” meu coração vivia sangrando Peguei uma leitoa gorda, foi Deus no céu me deu esse plano De uma cidade vizinha, para o juiz eu fui despachando Só não mandei no meu nome Mandei no nome do italiano. “[…] o poder sugestivo da música é formidável." Mário de Andrade 1. A Paulistânia 3 Paulistânia. Hermes Fontes, em algumas crônicas escritas para o jornal Correio Paulistano entre 1917 e 1918, serviu-se deste vocábulo como sinônimo para São Paulo1. No Clube Piratininga2 foi título de revista e, para Martins Fontes, de livro3. O editor Heitor de Moraes que a Fontes o título soprou: nos ouvidos de Moraes, "Paulistânia" soava como "Terra Paulista", tal qual os portugueses tinham sua Lusitânia e os povos germânicos sua Germânia. Mas foi Joaquim Ribeiro, na obra Folklore dos Bandeirantes, de 1946, quem propôs que Paulistânia era termo seu, um neologismo criado "para designar o espaço vital dos antigos paulistas" (RIBEIRO, 1946: 185), um substantivo a ser usado, a partir de então, para se fazer referência à região que, em sua opinião, foi "uma das células fundamentais da formação do Brasil" (RIBEIRO, 1946: 13). O autor acreditava que, além de útil, Paulistânia era um nome que vinha "de encontro à compreensão geográfica e histórica da região do bandeirismo" (Idem: 185). O que seria, entretanto, esta "região do bandeirismo"? Qual era, afinal, sua extensão, abrangência, tessitura? Quais foram os limites da "Terra Paulista"? Do que se tratava e como se constituiu, por fim, este espaço vital dos antigos paulistas? Em uma primeira aproximação, pode-se pensar esta "região do bandeirismo" simplesmente como sendo a área geográfica desbravada e percorrida pelos bandeirantes que, desde o século XVI até meados do XVIII, partiram rumo aos sertões4 à busca de índios para escravizar, ouro para enriquecer, reduções jesuíticas ou quilombos para destruir5. Feito sem dúvida monumental - em tudo aquilo que possa conter de benemérito ou condenável -, no mais das vezes tratado como heroico e, quase sempre, de forma ufanista, a empreitada daqueles andarilhos seminômades ainda causa espanto. Pense-se num Raposo Tavares a percorrer mais de 10 mil quilômetros de pés descalços, sem ou quase sem recursos (fossem eles da ordem que 1 A coleção do jornal Correio Paulistano encontra-se disponível para consulta e pesquisa no Arquivo do Estado de São Paulo. A consulta em microfilme compreende o período de 1854 (ano de início da publicação) a 1928. 2 Tendo suas raízes na Revolução Constitucionalista de 1932, o Clube Piratininga foi fundado por famílias tradicionais da aristocracia paulistana, em 16/12/1934, no bairro de Higienópolis, cidade de São Paulo. (fonte:https://www.clubepiratininga.com.br/sobre-nos, consultado em 30/05/2018) 3 FONTES, Martins. Paulistânia. São Paulo: Martins Fontes, 1984 (1a. edição 1934). 4 “Sertão, segundo Walnice Galvão, a partir de pesquisas de Gustavo Barroso, já era utilizado na África e Portugal antes do Brasil e não tem o sentido de designar um lugar deserto ou estéril como muitas vezes se supõe, mas sim o de nomear o interior e regiões que estão distantes do litoral." ARAÚJO, Lucas Antonio de. Tensões e ajustes entre tradição e modernidade nas definições de padrões da música sertaneja entre os anos 50 e 70. Tese de Doutorado – UNESP. Franca : [s.n.], 2014. Para aprofundar-se na discussão sobre significados, usos e questões à volta do termo Sertão ver: BOLLE, Wille. grandesertao.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2004. FERRETE, J. L. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja? Rio de Janeiro: Divisão de Música Popular de Instituto Nacional de Música/ Funarte (Coleção MPB, n. 18), 1985. 5 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil São Paulo: Companhia das Letars, 1995; http://atlas.fgv.br/marcos/bandeiras-e-bandeirantes/mapas/objetivos-das-bandeiras, consultado em 30/05/2018. fossem), pelejando em território desconhecido, inóspito, "desafiando as insídias de um mundo ignorado e talvez inimigo" (HOLANDA, 1986: 26). 4 O mapa a seguir ilustra as rotas dessas bandeiras e entradas e dá a (assustadora) dimensão do que foram estas aventuras: fonte: http://atlas.fgv.br/marcos/bandeiras-e-bandeirantes/mapas/bandeiras-e-entradas (consultado em 30/05/2018) Isto representa muito em quilômetros e ousadia: estas incursões ao sertão foram decisivas para a "a expansão do domínio português terra adentro" (RIBEIRO, 1995: 106) e contribuíram para dar ao Brasil - em linhas gerais e no sentido Centro-Oeste-Sul - um contorno geográfico bem próximo àquele que hoje conhecemos. Ao esgarçar os limites de Tordesilhas, alargando o domínio português em detrimento ao indígena, espanhol ou jesuítico, abriram o caminho para uma ocupação efetiva que ainda tardaria a se concretizar. Andando, andando, andando, estes velhos paulistas, brasilíndios e mamelucos como quis Darcy Ribeiro (Idem: 106), abraçaram o sertão "desde os campos de Coritiba às serras do Espírito Santo, Bahia, Goiás e campos de Mato Grosso, [dominando] toda a região de Minas Gerais" (RIBEIRO, 1946: 149). Foram, também, "até as ribanceiras do rio Iguassú, de um lado e do rio Parana de outro, estiveram5 na "região alta catarinense, [na] serrana rio-grandense [e na] do vale do médio rio Paraíba", lá no que hoje é território do Estado do Rio de Janeiro (ELLIS JR., 1948: 14). Esta, portanto, a "região do bandeirismo": http://atlas.fgv.br/marcos/descoberta-do-ouro/mapas/o-papel-das-minas-na-unificacao-do-brasil (consultado em 30/05/2018) Se por meio desta epopeia de preação, busca pelo ouro e disputa por terras e almas os homens daquela época6 deixaram de apenas arranhar o litoral tal e qual caranguejos7, seria preciso, contudo, mais tempo e um novo contexto histórico para que esta vasta área geográfica se constituísse, de fato, enquanto uma "Terra Paulista". Pois o contexto histórico necessário para tanto emergiu no (e traspassou o) século XVIII: com o forte declínio do comércio de escravos indígenas e a descoberta de ouro8 na área das Minas Gerais, as atividades que impulsionavam as incursões bandeirantes pelo interior extinguiram-se, gerando “estagnação e decadência” (PRADO Jr., 2011: 68-69) e promovendo, 6 Séculos XVI e, principalmente, XVII. 7 SALVADOR, Frei Vicente do. Historia do Brasil 1500-1627. Livro Digital (PDF). Fundação Darcy Ribeiro. Disponível em http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/historia-do-brasil-1500-1627-frei-vicente-do- salvador/ 8 Bem como o ápice e o declínio de sua exploração. em praticamente toda a área de sua expansão, uma “fixação generalizada do paulista ao solo” (CANDIDO, 2001: 103). 6 Uma vez assentada, aquela população de famigerados9 foi, aos trancos e barrancos, tomando posse de terras, cultivando roças mais perenes, criando animais para fins de abate, ordenha ou transporte, erigindo espaços comuns de culto e lazer, formando bairros rurais e pequenas vilas. Por corolário, foi-se engendrando uma verdadeira tessitura cultural que, de mais a mais, se fazia comum à grande maioria dos habitantes da vasta região apontada no mapa acima (ainda que a comunicação entre diferentes núcleos fosse precária ou nula).