UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS, CAMPUS GUARULHOS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

MARIANA STEFANNY MOISÉS DUZZI

Pieter Bruegel, Philip Galle e na impressão de As sete virtudes (1559- 1560): rede de impressores e Confessionalização nos Países Baixos

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História.

Orientação: Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima

GUARULHOS 2021 1

MARIANA STEFANNY MOISES DUZZI

PIETER BRUEGEL, PHILIP GALLE E HIRONYMUS COCK NA IMPRESSÃO DE AS SETE VIRTUDES (1559-1560): REDE DE IMPRESSORES E CONFESSIONALIZAÇÃO NOS PAÍSES BAIXOS

Trabalho de conclusão de curso, sob orientação do Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima, apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História.

GUARULHOS 2021 2

DUZZI, Mariana Stefanny Moises.

Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock na impressão de As sete virtudes (1559-1560): rede de impressores e Confessionalização nos Países Baixos. Mariana Stefanny Moises Duzzi. – 2021.

Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2021. Orientação: Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima.

1 Virtudes; 2. Gravuras; 3. Confessionalização. 4. Redes de impressores

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PIETER BRUEGEL, PHILIP GALLE E HIRONYMUS COCK NA IMPRESSÃO DE AS SETE VIRTUDES (1559-1560): REDE DE IMPRESSORES E CONFESSIONALIZAÇÃO NOS PAÍSES BAIXOS

Trabalho de conclusão de curso, sob orientação do Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima, apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em História.

Aprovação: ___/___/______

Prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dra. Flávia Galli Tastch Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Rui Rodrigues Universidade Estadual de Campinas 4

Ao meu bisavô, Cesário (in memoriam)

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AGRADECIMENTOS Escrever a monografia durante a pandemia me fez repensar e valorizar ainda mais os laços, os afetos e o companheirismo de tantas pessoas incríveis que tornaram meus dias melhores. É um privilégio poder me cercar de amigos que se fizeram presente nos momentos bons e nos mais difíceis. Em especial, agradeço ao meu professor e orientador, Luís Filipe Silvério Lima, que me apresentou a área de História Moderna. Obrigada por sua amizade, conselhos, orientações profissionais, aulas sensacionais e histórias engraçadas. Agradeço também ao professor Rui Rodrigues, da Unicamp, que prontamente ofereceu caminhos para o desenvolvimento dessa pesquisa e também sua continuidade. Obrigada, professores Jaime Rodrigues e Denilson Botelho, pela orientação e todos os momentos compartilhados durante minha participação no grupo PET- História. Agradeço, igualmente, aos demais professores da EFLCH e todos os funcionários da Unifesp, especialmente às mulheres que trabalharam no Restaurante Universitário, que permitiram que a vida de uma estudante fosse mais prática e feliz.

Agradeço aos meus veteranos e amigos mais próximos, Marcos e Elias, que compartilharam comigo a aflição das provas e o prazer de comemorar cada tarefa cumprida. Aos meus colegas de turma, Flora, Thamyres e Matheus, pela amizade e cumplicidade. Ao meu querido amigo, Danilo, alguém que tenho muito carinho e me ajudou a estar hoje na Unifesp. Às minhas amigas que moram comigo, Bruna, Juliana, Julia, obrigada por compartilhar comigo os momentos mais pessoais possíveis e, especialmente, obrigada pelo carinho, pelas trocas e todo apoio. Às minhas amigas queridas, Bianca e Gabrielle, agradeço pela amizade mais sincera e divertida, pelas conversas, agora adaptadas por ligação e, principalmente, por estarem sempre por perto.

Também agradeço aos meus colegas do grupo de pesquisa ‘Poder e religião na Época Moderna’, Aline, Lury, Beatriz, Heloíse, Mayumi, Bruno, Bruna, Lívia, com um agradecimento especial à Verônica, que me ajudou em tantos momentos durante o desenvolvimento dessa pesquisa; à minha amiga Victoria, cuja amizade é um verdadeiro acalanto - somos uma ótima dupla de trabalho e de amizade; e ao meu companheiro, Vinícius, por me ajudar a passar pelos momentos mais difíceis, por compartilhar sonhos e projetos e tornar a vida mais especial possível. Por fim, agradeço a minha família – meu pai, minha mãe, minha irmã, meu avô e meu tio e minha vó, com todo carinho do mundo-, que sempre me estimulou a estudar e me permitiu acreditar que a vida poderia ser diferente. Dedico, por fim, um imenso agradecimento e que seja viva toda memória à professora Márcia D’Aléssio, que foi uma mulher admirável e certamente uma das melhores professoras que eu tive o prazer em ter aula, e ao meu bisavô, Cesário Estevam, que foi um homem forte, sagaz e que me ensinou a importância da honestidade e do trabalho. Que suas lembranças estejam sempre presentes! 6

RESUMO Nessa pesquisa monográfica, investigamos as representações iconográficas das virtudes cardeais e teologais na série de gravuras As sete virtudes, publicada por Hieronymus Cock, entre 1559 e 1560 em Antuérpia, a partir dos desenhos de Pieter Bruegel e das gravações de Philip Galle. A série representa as alegorias de Caridade, Esperança e Fé, como virtudes teologais, e de Prudência, Justiça, Fortaleza, Temperança, como virtudes cardeais. Nosso interesse tem sido explorar a mudança iconográfica nas representações de virtude a partir das disputas confessionais das décadas de 1550 e 1560, bem como problematizar se essas disputas projetaram uma mudança na iconografia de As sete virtudes. Baseado em análises iconográficas, textuais e materiais da série, bem como processo de produção coletiva, impressão e circulação das gravuras, propomos que a As sete virtudes se constituiu como exemplar retórico-visual pedagógico e catequético, que propunha um modelo prático e didático de vida em virtude, supostamente alinhado a uma chave erasmiana de espiritualidade. Por seu turno, esses objetos manifestavam opiniões político-religiosas específicas diante dos processos mais rígidos de disciplinamento social e Confessionalização, da segunda metade do século XVI.

Palavras Chave: virtudes, gravuras, Confesssionalização, redes de impressores

ABSTRACT In this monographic research, we investigated the iconographic representations of the cardinal and theological virtues in the series of engravings The Seven Virtues, published by Hieronymus Cock, between 1559 and 1560 in , from the drawings of Pieter Bruegel and the copper plates of Philip Galle. The series represents the allegories of Charity, Hope and Faith, as theological virtues, and Prudence, Justice, Fortitude, Temperance, as cardinal virtues. Our interest has been to explore the iconographic change in representations of virtue from the confessional disputes of the 1550s and 1560s, as well as to question whether these disputes projected a change in the iconography of The Seven Virtues. Based on iconographic, textual and material analyses of the series, as well as the collective production process, printing and circulation of the engravings, we propose that The Seven Virtues constituted itself as a pedagogical and catechetical rhetorical-visual example, which proposed a practical and didactic model of life in virtue, supposedly related to the appropriation of erasmian humanism. In turn, these objects expressed specific political-religious opinions in face of the stricter processes of social discipline and Confessionalization, of the second half of the 16th century. Keywords: virtues, engravings, Confessionalization, printer networks.

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Sumário Introdução ...... 10

Capítulo 1: Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock: mercado editorial e redes de impressão em Antuérpia e ...... 17 a. Aux Quatre Vents: guilda de São Lucas e censura ...... 19 b. Redes de impressão: uma revisão da noção de autoria...... 21

Capítulo 2: As sete virtudes: balanço bibliográfico e iconografia das virtudes ...... 26 a. Balanço bibliográfico...... 28 b. Gravuras de As sete virtudes: visualidade, textualidade e aspectos materiais...... 30 I. Charitas ...... 32 II. Spes...... 39 III. Fides...... 44 IV. Prvdentia...... 51 V. Ivstitia...... 55 VI. Fortitvto...... 62 VII. Temperantia...... 68

Capítulo 3: Mudanças e tradições iconográficas em As sete virtudes: Confessionalização e Humanismo Erasmiano ...... 76

Conclusão...... 86

Referências Bibliográficas...... 89

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Lista de Figuras

Figura 1 - Charitas (1559), da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26cm x 33,6cm, placa 22,5cm x 29,2cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 33 Figura 2 - Die Liebe (1510), uma de sete gravuras de virtude, Augsburgo. Desenho, placa e impressão por Hans Burgkmair. Folha 15,7cm x 6,8cm. Rijksmuseum, Amsterdam...... 34 Figura 3 - Caritas (1530), uma de sete gravuras de virtude, Leiden. Desenho, placa e impressão por Lucas van Leyden. Folha 16,5cm x 11,1cm. Leiden. Rijksmuseum, Amsterdam...... 34 Figura 4 - Charitas (1539), terceira de sete gravuras de virtude, Frankfurt am Main. Desenho, placa e impressão por Hans Sebald Beham. Rijksmuseum, Amsterdam...... 34 Figura 5 – Spes (1559), da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,8cm x 31,4cm e placa 22,3cm x 28,8cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 39 Figura 6 - Spes Proxima (1531), Emblematum liber, Augsburgo. Heinrich Steyner, (primeira edição). Em Alciato at Glasgow...... 42 Figura 7 - Spes (1545), desenho por Heinrich Vogtherr, impresso por Rudolph Wissenbach, 23.5 × 33.4 cm Gotha, Ducal Museum (Landesmuseum)...... 42 Figura 8 - Fides (1559), da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,2 cm x 30,2 cm e placa 22,3cm x 28,7 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 45 Figura 9 - Der Glavb (1510), uma entre as sete gravuras de virtude, Augsburgo. Desenho, placa e impressão por Hans Burgkmair. Augsburgo. Rijksmuseum, Amsterdam...... 49 Figura 10 - Fidez (1530), uma entre sete gravuras de virtude, Leiden. Desenho, placa e impressão por Lucas van Leyden. Leiden. Rijksmuseum, Amsterdam...... 49 Figura 11 - Fides (1539), uma entre sete gravuras de virtude, Frankfurt am Main. Desenho, plava e impressão por Hans Sebald Beham. Rijsmuseum, Amasterdam...... 49 Figura 12 – Prvdentia (1559), da série As sete virtudes. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26,1 cm x 33,5 cm e placa 22cm x 29,5 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 51 Figura 13 - Die Firsichtikait (1510), uma entre sete gravuras de virtude, Augsburgo. Desenho, placa e impressão por Hans Burgkmair. Rijksmuseum, Amsterdam...... 53 Figura 14 - Prvdencia (1550), uma entre sete gravuras de virtude, Flandres. Desenho, placa e impressão por Cornelis Massijs. British Museum, Londres...... 53 Figura 15 - Ivsticia (1559), da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26 cm x 33,5 cm e placa 22,5cm x 29cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 56 9

Figura 16 - A justiça Cega (1494), no livro Stultifera Navis ou Narrenschiff (A nau dos Insensatos), Sebastian Brant. Brasileia...... 60 Figura 17 - Uma xilogravura retirada do livro Bambergensis (1510), de Johann Freiherr zu Schwarzenberg...... 60 Figura 18 - Fortitvde (1560), da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26 cm x 33,7 cm e placa 22,3cm x 29,2cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 63 Figura 19 – Temperantia (1560) da série As sete virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,4 cm x 31,2 cm e placa 22,3cm x 28,7cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque...... 69 Figura 20 – Temperancia (1539), uma entre sete gravuras de virtude, Frankfurt am Main. Desenho, placa e impressão por Hans Sebald Beham. Rijksmuseum, Amsterdam...... 70 Figura 21 – Temperancia (1550), uma entre sete gravuras de virtude, Flandres. Desenho, placa e impressão por Cornelis Massijs. British Museum, Londres...... 70 Figura 22 - Fortvna (1541). Desenho, placa e impressão por Hans sebald Beham. Frankfurt am Main. Rijksmuseum, Amsterdam...... 71 Figura 23 - Fortvna (1576). Desenho Jan Collaert (II), placa e impressão Philip Galle. Antuérpia. Rijksmuseum, Amasterdam...... 71

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INTRODUÇÃO

Esta monografia analisa a série de gravuras As sete virtudes, gravada por Philip Galle, a partir dos desenhos de Pieter Bruegel, e impressa pela oficina de Hieronymus Cock, Aux Quatre Vents, entre 1559 e 1560. A série representou as três virtudes teologais - CHARITAS (Caridade), SPES (Esperança) e FIDES (Fé) e as quatro virtudes cardeais, PRUDENTIA (Prudência), IVSTITIA (Justiça), FORTITVDO (Fortaleza) e TEMPERANTIA (Temperança). Buscamos mapear o universo de produção e circulação das gravuras, examinando como essa iconografia representou as virtudes diante dos conflitos religiosos e confessionais das décadas de 1550 e 1560.

Desde o tardo-medievo e sobretudo no período quinhentista, a Cristandade europeia experienciou profundas metamorfoses no seio da vida religiosa e política. A edição crítica do Novo Testamento, publicada por Erasmo em 1516 (Londres) e a Bíblia Poliglota Complutense, produzida pelo Cardeal Cisneros e impressa em 1520 (Alcalá), ofereciam os textos originais da Revelação e demonstravam o amplo interesse dos estudiosos em retomar à religião pelo conhecimento ad fontes. Buscava-se uma tendência de retorno ao passado para recuperar fontes sobre religião, política e ética presente em autores da era clássica e cristã, de modo que a própria Cristandade pudesse ser renovada.1 Embora esse movimento de retorno às referências do passado tenha se dado de maneira distinta nos territórios da Cristandade, em todos os casos mobilizaram uma interação plural entre as tradições textuais do classicismo greco-romano, da patrística e da escolástica. Quentin Skinner fornece elementos para compreendermos a dimensão desse debate para o ambiente civil cristão pré-renascentista. Na península italiana, entre 1370 e 1440, os primeiros vislumbres do movimento humanista italiano teriam perpetuado ideais de vida civil e cristã para o espaço das cidades. A partir da conciliação entre vida política e virtude, que encontraram no classicismo romano, definiam o modelo do triunfo da concórdia sobre a discórdia civil. Seriam especialmente os textos de Cícero, Sêneca e Juvenal (e menos a matriz aristotélico-tomista) que, segundo Skinner, ofereceram os caminhos para a produção de Espelhos de Príncipe na Itália.2 A afirmação de Skinner não é, contudo, consensual entre historiadores que estudam a

1 EIRE, Carlos. “Forerunners of the Catholic Reformation”. In.: Reformations the Early Modern Word, 1450-1650. New Haven e Londres: Yale University Press, 2016. pp.86-87. 2 Cf. Quentin Skinner. “Introduction: the reality of the Renaissance”. Visions of Politics, vol. 2. Londres: Cambridge University Press, 2004. pp.1-10. 11 renascença italiana. Embora também enfatize a eminência de um caráter republicano nas cidades italianas, John Pocock sugere a tradição aristotélica de ética como norteadora do ideal do vivere civille, cuja participação política desenvolveu um valor fundamental para garantia de liberdade.3 Essa afirmação se estende, também, ao ambiente francês, cuja ética aristotélico-tomista foi, igualmente, pertinentes às produções de Espelhos de Príncipe, a dizer pelos tratados de Gil de Roma, em seu Le livre du governement des princes (1444) e Nicolau Oresmo, em sua glosa escrita sobre a ética política na obra de Aristóteles, Le Livre de Ethiques D'Aristote (1371- 1377), que discutiam a importância das virtudes para o princípio do “bem comum”.4 Esses textos sobre moral e virtude, produzidos no tardo-medievo, embora fossem endereçados ao príncipe, poderiam ser amplamente lidos por outros setores da sociedade, através de cópias impressas e manuscritas. Os valores da virtude para o espaço civil foram também difundidos em pinturas e afrescos, como aparece na Alegoria do Bom Governo (1337-1340), de Ambrogio Lorenzetti. Ainda que possamos sugerir um hibridismo em tradições para a ética das virtudes cristãs, há que se observar que os espaços de diálogo, para onde esse debate circulou, criaram referências comuns sobre o que se propunha à conduta moral no ambiente civil e cristão. Como seus precursores italianos, os humanistas do Norte também se enxergavam como regeneradores do corpo político e social cristão e se apropriou das tradições para elaborar uma síntese cívica. Advertiam que o florescimento das cidades seria alcançado apenas na posse da virtus e o que fosse louvado em virtude deveria ser colocado em ação. Recuperaram o princípio da vita activa, que propunha a consciência das ações terrenas e a primazia da natureza humana como capazes de elevar o homem na vida política e à salvação.5 O que destoa, contudo, é a inclinação religiosa e devocional com a qual a ética das virtudes se estendeu às regiões do Norte. A inclinação à piedade e às formas de espiritualidade, típicas do humanismo no norte europeu estiveram intimamente relacionadas ao ambiente das reformas religiosas. Neste caso, antes mesmo que as doutrinas protestantes e católica alterassem e incorporassem as virtudes ao

3 John Pocock. “Vita Activa and Vivere Civille”. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition. London: Princeton University Press, 1975. pp. 49-80. 4 ASSIS, Ricardo Fontes. “Os Espelhos de Príncipes, registros históricos medievais”. In.: Texto para comunicação em Usos do passado XII Encontro Regional de História Anpuh, 2006. p. 02. 5 A ausência do elemento religioso nas obras de Skinner e Pocock (e outros autores que abordam o republicanismo e civismo italiano) dificultam compreender em que medida a guinada religiosa do humanismo ocorreu com primazia na Norte em relação à Itália. Sabemos, contudo, que eruditos como Marsílio Ficino e Giovanni Pico della Mirandola exploraram os horizontes religiosos desse humanismo ao ambiente italiano e inspiraram toda uma geração de eruditos a interessar-se pelo estatuto da fé em regiões fora da Itália. 12

âmbito confessional. Erasmo foi um dos primeiros precursores deste humanismo e seus textos desempenharam um papel fundamental para o que veio a ser chamado de ‘humanismo cristão’ neerlandês, efervescente durante a segunda metade do século XV e primeira metade do século XVI. Conforme sugere Rui Rodrigues, para Erasmo, seria a semelhança com Cristo que fundamentaria uma vida de santidade cristã, menos atrelada à devoção exterior e mais ligada no coração da fé. A junção entre vida cívica, retórica, pedagogia e catequese convergiram, no humanista, para a compreensão de que a educação pudesse ser ensinada e apreendida para atingir o Sumo Bem, - uma noção de natureza humana que tem empréstimos na filosofia neoplatônica, tomista e na Patrística.6 Essa noção sobre a natureza do homem resguardou, em Erasmo, uma perspectiva positiva sobre a condição humana e sua inclinação ao bem. Seu entendimento sobre a capacidade de escolha e aperfeiçoamento moral permitia, no humanista, que a ética pudesse ser introduzida pela pedagogia e pelo conhecimento.7 O caráter devocional pelo qual foi pautada a ética das virtudes no Norte não deve ser, contudo, associado isoladamente a Erasmo. Juan Luís Vives, Guilherme Budé, Tomas More foram, de igual modo, conciliadores da tradição clássica com o ideal de reparação para o mundo cristão. Há também que indicar a abrangência da deuotio moderna e do espiritualismo que, nos Países Baixos, sustentavam a devoção religiosa como uma prática interior, em crítica aos hábitos monásticos puramente formais. A ênfase da piedade deste humanismo teria encontrado terreno no desejo de reforma cívica e espiritual que se desenvolveu no Norte que, ao menos até as reformas confessionais do século XVI, manteve raízes na tradição clássica e cristã. A junção de vida cívica e espiritual fundamentava a noção das virtudes como o caminho para que homens e mulheres pudessem lograr seu fim último na glória e beatitude da união com Deus, assim como indicavam razões de convivência pública, enquanto preparavam esses sujeitos como membros do corpo político e social cristão.8

6 RODRIGUES, Rui. Entre o dito e o maldito: Humanismo erasmiano, ortodoxia e heresia nos processos de confessionalização do Ocidente, 1530-1685. São Paulo: Tese de Doutorado pela Universidade de São Paulo/FFLCH, 2012. p. 316 7 Rodrigues sugere que no texto de Erasmo, Annotationes sobre o Novo Testamento, o uso de Romanos 5:12, esboça a opinião do humanista sobre o pecado original. Ao situar a expressão in quo omnes peccauerunt (“em que todos pecaram”), Erasmo teria sustentado que Paulo falava, nessa passagem, “de pecados pessoais cometidos à imitação daquele de Adão, e não numa decorrência de todos no pecado do primeiro homem.” Idem., pp. 317-318. 8 Antes que possa presumir o lugar comum que parte da bibliografia adotou sobre ‘um humanismo crítico ao escolasticismo’, cabe questionar de quais críticas estamos falando e em que medida tais objeções indicam um rompimento com essa tradição. Ao que parece, a retomada dos clássicos e da Patrística não teria anulado, por completo, a matriz aristotélico-tomista nas sociedades da primeira modernidade. Compreender o debate sobre ética e virtude no quinhentos exige, por seu turno, um esforço em perceber os limites entre antigas e novas tradições, entre o ‘velho’ mundo medieval e o ‘novo’ mundo moderno e como elas se estruturam mediante às práticas sociais e político-religiosas da Cristandade europeia. 13

A síntese que esboçamos acima sobre o debate entre ética e virtude no espaço cristão humanista foi um percurso para a pesquisa, que de início propôs problematizar as virtudes frente às dinâmicas confessionais. Demo-nos conta de quem nem as discussões morais e nem tampouco as formulações confessionais poderiam ser pensadas com propriedade sem que considerássemos os antecedentes, especialmente no que concerne ao modo como o humanismo complexificou a ética cristã nos moldes clássicos do vivere civille. Tratou-se de um projeto que, ao se apropriar de antigas tradições, criou postulados éticos, especialmente pensados em razão dos sentimentos de reforma espiritual que estiveram presentes antes mesmo da estruturação dogmática confessional. Contudo, a proposta de pensar as virtudes frente às dinâmicas confessionais manteve-se válida para a pesquisa. Por dois motivos: primeiro, porque as reformas religiosas incorporaram as noções de virtude aos dogmatismos confessionais e instauraram uma disputa moral que perpassou pelas noções de virtude, sobretudo, no que concerne a natureza humana e a salvação; segundo, porque nosso objeto de estudo, a série As sete virtudes (1559-1560), foi produzida num momento cujos conflitos confessionais projetaram espaços de experiência e conflito ainda mais potentes do que nos anos antecedentes, ou, mesmo iniciais das reformas religiosas. Interessa perguntar em que se alterou a virtude, a partir do alinhamento entre ética e doutrina confessional? Na esfera teológico-moral, Martinho Lutero havia reposicionado em outros moldes a teoria moral cristã, que quer para onde pendesse – nas adaptações da Igreja à filosofia escolástica ou nas especificidades do humanismo cristão cívico –, concebia a importância do livre-arbítrio e de uma vida de obras e virtude como o caminho da salvação.9 No tratado De Libertate Christiana (1520) endereçado ao papa Leo X, o reformador dizia “Só pela fé e pelo uso eficaz da palavra de Deus, se pode ter a salvação”.10 Com essas palavras, Lutero não só ressignificava a síntese da natureza humana, que reunia cristianismo e passado

9 O reformador protestante reinterpretou a passagem bíblica escrita por Paulo, em Romanos 3:23 “todos pecaram e estão aquém da glória de Deus”, que via na queda de Adão e Eva a natureza do pecado no homem. Se todos eram manchados pelo pecado original, não seriam as obras, as virtudes e a boa conduta que salvariam, uma vez que nenhum homem poderia aperfeiçoar seus atos de modo a alcançar sua própria justificação. Ele diz, sobre o pecado radical, “é uma raiz que deixa sua marca em tudo o que cresce a partir de si [...] também é entendido como a tentativa da pessoa em estabelecer a sua própria justiça perante Deus, olhando para si mesma e entendendo-se como capaz de se justificar por força própria”. Trata-se de um texto póstumo às primeiras objeções de Lutero. Contudo, o fundamento do pecado original como corruptível já havia aparecido em textos anteriores do reformador. LUTERO, Martinho. “Debate do Reverendo Senhor Dr. Martinho Lutero Acerca do Humano”, 1536. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1992b, v.3. p. 195. 10 Edição traduzida da versão Latina para o inglês (2003): “Faith alone is the saving and efficacious use of the Word of God, according to Rom. 10[:9]: “If you confess with your lips that Jesus is Lord and believe in your heart that God raised him from the dead, you will be saved.” Furthermore, “Christ is the end of the law, that everyone who has faith may be justified” [Rom. 10:4]. Again, in Rom. 1[:17], “He who through faith is righteous shall live.” The Word of God cannot be received and cherished by any works whatever but only by faith”. LUTERO, Martinho. On Chritian liberty. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003. p.07. 14 clássico, mas invertia a ordem das virtudes teologais: caridade como sinal daqueles que creem, Fé como fidúcia, no presente, sobre a salvação futura e esperança para o desejo futuro em ser salvo.11 Mais radicalizado, ainda, foram as formulações calvinistas, sumarizadas em Institutio Christianae religionis (primeira publicação em 1536), que ganhou terreno fértil nos Países Baixos e ressaltou a depravação total da natureza humana e a eleição condicional salvífica.12 Do mesmo modo, a Reforma Católica, desdobrada pelo Concílio de Trento, reafirmou o entendimento escolástico, de matriz aristotélico-tomista, sobre a importância do livre-arbítrio versus o servo-arbítrio luterano/calvinista, porém, numa chave dogmática. Com isso, assegurou os sacramentos como mediadores entre Deus e o homem e manteve as linhas tradicionais das virtudes: caridade, primeira e principal virtude, externalizada pelas obras, esperança ligada à fidúcia na salvação e fé para crer na trindade e nas escrituras. Durante as primeiras décadas das reformas religiosas, precisamente as décadas de 1520 e início de 1530, embora tenham-se multiplicado as dissidências religiosas, pensava-se que a reconciliação pudesse vir pela via de um projeto ecumênico e reconciliador para as partes cindidas. Contudo, como aponta Rodrigues, os anos de 1540 e 1550 marcaram uma profunda desesperança quanto a uma possível restauração, não só da religião como de toda christianitas.13 Em 1555, a Paz de Augsburgo, assinada entre Carlos V e as forças da Liga de Esmalcalda, ratificava os núcleos confessionais e estabelecia a política de cujus regio, ejus religio, isto é, a religião do príncipe (católico ou luterano) deveria indicar a confissão dos súditos. Foi, também, um momento em que, nos Países Baixos, se embruteceram as dinâmicas de censura e heresia, bem como as contendas internas entre as múltiplas facções religiosas. Por fim, é precisamente o recorte temporal da década de 1550 que as produções historiográficas costumam indicar um ponto de virada mais brutal entre as disputas religiosas, como sugerem os textos de Rodrigues, Woltjer e Spaans.14 Foi nesse ambiente político-religioso hostil dos Países Baixos que a série As sete virtudes foi produzida e publicada. As gravuras introduzem um programa iconográfico voltado

11 Conforme aponta Silvério Lima, “as obras seriam, assim, decorrência de um estado presente, não uma ação que busca um futuro desenlace”. LIMA, Luís Filipe Silvério. “Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII: Esperança de Israel, Esperanças de Portugal e Door of Hope”. O que nos faz pensar, 26, 41, 2017. p. 87.

12 Cf., João Calvino. Institutio christianae religionis. Edição de Genebra, 1559. 13 RODRIGUES, Rui. op. cit., pp. 443-444.

14 Cf., Idem. pp.443-446; SPAANS, Joke. “Reform in the Low Countries”. In.: R. Po-Chia Hsia (editor). A Companion to the Reformation World. New Jersey: Blackwell Publishing Ltd, 2004. pp. 118-134; WOLTJER, Juliaan. “Public Opinion and the Persecution of Heretics in the , 1550–59”. In: Judith Pollman e Andrew Spicer (org.), Public Opinion and Changing Identities in the Early Modern Netherlands. Brill: Leiden e Boston, 2007. pp. 87-106. 15

às práticas cotidianas e com referências evidentes sobre tempo e espaço. A proposta visual das virtudes é, contudo, diferente da série executada anteriormente por Hieronymus Cock, Pieter van der Heyden e Pieter Bruegel, Os sete pecados capitais (1556 - 1558), cujo padrão visual incorpora seres fantásticos e demoníacos na composição. A reprodução das imagens sugere que a série de virtudes foi produzida como oposto-complementar aos pecados, ainda que as gravuras indiquem um ambiente visual completamente destoante entre as séries. Por ora, nosso interesse de pesquisa se volta à análise da série de virtudes.15 Buscaremos demonstrar que a série foi pensada como uma produção retórico-visual, que pretendia ensinar e catequizar os comportamentos éticos do cristão a partir de modelos práticos da vida em virtude; ao passo que também indicava, na prática espiritual e civil, a possibilidade de restauração da concórdia cristã. Essa pesquisa é resultado de dois anos de Iniciação Científica na área de História Moderna. Nossa questão inicial girou em torno compreender se as disputas confessionais teriam produzido uma mudança iconográfica nas representações de virtude, que tem As sete virtudes como um expoente visual. Essa questão se manteve válida durante o desenvolvimento da pesquisa. Contudo, conforme fomos esmiuçando o programa iconográfico da série e sua rede de produção e impressão, percebemos que a proposta iconográfica fugia ao dualismo confessional protestante/católico, tendo o potencial de ser um exemplar erasmiano de visualidade, produzida por impressores orientados por esses princípios. De igual modo, nos pareceu interessante compreender os efeitos pretendidos para a produção dessa série, sobretudo em se tratando de um exemplar erasmiano de virtude num momento em que os dogmatismos confessionais suplantavam qualquer tendência de concórdia religiosa. Demos ênfase à iconografia, textualidade e alguns aspectos materiais, naquilo que pôde alçar essa pesquisa. Compreendemos esses pontos de análise como dimensões importantes para os estudos iconográficos, uma vez que auxilia localizarmos a imagem em meio a sua produção social e cultural. Indicaremos os resultados de pesquisas nos capítulos que seguem essa monografia. No capítulo 1, abordaremos sobre o mercado editorial em Antuérpia e Haarlem e naquilo que concerne ao trabalho colaborativo de produção e impressão de As sete virtudes. A partir de uma revisão bibliográfica, interpelaremos os limites de uma noção de autoria calcada na figura de

15 Partimos de indícios que apontam a produção da série de virtudes como oposto-complementar à série de vícios. No entanto, os programas iconográficos são particularmente distintos em ambas representações. Há um interesse de pesquisa por estudar ambas as séries, Os sete pecados capitais e As sete virtudes, num eventual mestrado, buscando compreender o que teria levado à transformação do padrão iconográfico de uma série para a outra e, se em alguma medida, essas diferenças iconográficas projetariam diferentes propostas político- religiosas em disputa no confessionalismo neerlandês. 16

Bruegel e buscaremos apresentar os demais impressores como sujeitos relevantes para essa produção, não apenas por suas habilitadas técnicas, como por suas opiniões político-religiosas. No capítulo 2, apresentaremos nossos esforços de análise e interpretação sobre cada composição da série de virtudes, explorando seus aspectos iconográficos, materiais e textuais. Por fim, no capítulo 3, apresentaremos uma análise enquanto série frente à problemática de pensá-las diante dos conflitos confessionais e de uma mudança no padrão iconográfico das virtudes. Tratam-se de análises indiciárias e iniciais que, neste momento, apontam caminhos mais do que trilham.

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CAPÍTULO 1

Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock: mercado editorial e redes de impressão em Antuérpia e Haarlem

Durante a década de 1550, os principais centros de impressão nos Países Baixos experienciaram um aumento considerável nas produções de gravuras, textos, emblemas, pinturas e objetos artísticos retratando temas religiosos e políticos. De acordo com dados da Universal Short Title Catalogue, a cidade da Antuérpia, principal centro editorial dos Países Baixos, passou de nona posição, em 1540, para quarta posição, em 1558, em relação aos principais centros de impressão do continente europeu.16

Em comparação com as décadas anteriores, os materiais empreendidos dispunham de maior variedade na técnica e nas formas artísticas, possivelmente relacionado à formação de redes de impressores na região e às vantagens que o trabalho colaborativo trazia à produção e comercialização dos impressos. Os estudos de Antony Griffiths, que abordam as transformações do impresso na Europa a partir da década de 1550, assim como Timothy Riggs e Jan van der Stock, que discutem o desenvolvimento desses empreendimentos em Antuérpia, concordam sobre uma expansão nas atividades de impressão durante a segunda metade do século XVI.17

Os câmbios culturais entre regiões da Europa e a expectativa de um comércio marítimo trazia, pela imprensa, a possibilidade de que esses materiais circulassem para além de seus locais de produção. Além disso, após as reformas religiosas da década de 1520, impressos religiosos e de instrução moral estiveram entre os principais assuntos publicados em oficinas, uma vez que o público, cada vez mais interessados por temas da religião e salvação, compravam esses materiais, que eram baratos, animados e com referências conhecidas.

Foi no início da década de 1550 que Hieronymus Cock e sua esposa, Volcxken Diercx, publicaram as primeiras impressões pela oficina Aux Quatre Vents. No mesmo ano, receberam,

16 “The Largest European Print Centres from 1450-1650”. In.: Universal Short Title Catalogue. Conjunto de dados editados por Graeme Kemp, março de 2020. Acesso: 10.05.2020. 17 GRIFFITHS, Antony. An Introduction to European Printmaking 1550-1820. Londres: The British Museum, 2016; RIGGS, Timothy Allan. Hieronymus Cock (1510-1570): Printmaker and Publisher in Antwerp at the Sign of the Four Winds. Dissertação de Mestrado pela Universidade de Yale, 1972; VAN DER STOCK, Jan. Printing Images in Antwerp – The Introduction of Printmaking in a city: Fifteenth Century to 1585. Roterdã: Sound Vision Interactive Rotterdam,1998. Além disso, a bibliografia que aborda o mercado de impressos na Europa também costuma dividir a temporalidade entre primeira época, 1450-1550, e segunda época, 1550-1680. 18 do governo central de Antuérpia, a licença que legalizava a permanência da oficina e atestava Hieronymus Cock como impressor oficial na cidade.18 Ao longo de toda a existência de Aux Quatre Vents – que manteve suas atividades editoriais após a morte de Hieronymus Cock, em 1570, com a administração da oficina por Volcxken Diercx, sua esposa –, foram admitidos mais de 12 gravuristas e 30 desenhistas, dentre eles o gravador Philip Galle, que passou a trabalhar com Hieronymus Cock em 1557, e o criador de desenhos e pinturas, Pieter Bruegel, cujas primeiras composições que desenvolveu para o impressor datam 1555.

Juntos, produziram e publicaram a série de gravuras As sete virtudes, entre 1559 e 1560, que apresentam as três virtudes teologais – caridade, esperança e fé –, e as quatro virtudes cardeais - prudência, justiça, fortaleza e temperança. Embora a série tenha sido publicada na cidade de Antuérpia, por meio da Aux Quatre Vents, nossos estudos sugerem uma conexão com o centro editorial de Haarlem, uma vez que Philip Galle, na época em que produziu as placas para cada gravura, ainda vivia e trabalhava nessa cidade. Como impressores, Pieter Bruegel, Hieronymus Cock e Philip Galle estabeleceram contatos regulares com o mundo das letras e tinham, em sua rede de relacionamento, estudiosos provenientes de círculos de erudição humanista. É o caso de e Hadrianus Junius, dois eruditos humanistas e impressores que também viviam em Haarlem e frequentemente compunham versos para gravuras publicadas por Hieronymus Cock.

O catálogo de exposição, Pieter Bruegel the Elder: Drawings and Prints, editado por Nadine M. Orenstein para o Metropolitan Museum, informa a possibilidade de que os versos em latim, escritos na margem das gravuras, pudessem ter sido produzidos por Coornhert ou Junius. Essa hipótese não tem sido explorada em pesquisas sobre a série, talvez, pela falta de evidências diretas. Também não foi possível ir mais a fundo nessa hipótese durante a pesquisa, uma vez que seria preciso um estudo nos acervos belgas e holandeses para verificar tal possibilidade. Contudo, não gostaríamos de ignorar que Coornhert e Junius estiveram envolvidos com o círculo de produção e impressão de Bruegel, Galle e Cock durante os anos de publicação da série. Esse círculo parece ter configurado, entre os impressores, não apenas um interesse comercial como também político-religioso, com potencial de intervenção nos conflitos confessionais das décadas de 1550 e 1560.

18 VAN DER STOCK, Jan. Printing Images in Antwerp – The Introduction of Printmaking in a city: Fifteenth Century to 1585. Roterdã: Sound Vision Interactive Rotterdam, 1998. p. 45. 19

Nosso objetivo, com esse capítulo, será remontar o ambiente de produção, impressão e circulação de As sete virtudes. Por um lado, sugerimos uma produção coletiva e colaborativa entre os impressores, contestando um olhar de pesquisas que tratam a autoria da série calcada, apenas, em Bruegel; por outro, pretendemos sugerir como a impressão das gravuras esteve sujeita a uma rede mais ampla de produção (direta ou indiretamente), orientada por interesses político-religiosos pensados para os Países Baixos.

a. Aux Quatre Vents: guilda de São Lucas e censura

Ao longo do século XVI, o mercado editorial na Antuérpia atingiu alto nível de sofisticação e exigência técnica. O trabalho colaborativo entre desenhistas, gravuristas e impressores dominou as produções editoriais do período, tornando os impressos, produções mais plurais do que singulares. A primeira oficina de impressão, estabelecida em Antuérpia, é atribuída a Jan van der Berghe, um cortador de blocos que passou a produzir xilogravuras, em 1452. Cem anos depois, em 1550, Hieronymus Cock fundaria Aux Quatre Vents, sendo discutida entre pesquisadores contemporâneos como uma das principais e mais centralizadas oficinas de impressão que já existiu em toda Europa moderna.

A maioria dos impressores oficiais teriam ingressado na guilda de São Lucas, uma corporação de artífices que regulou a produção de imagens em Antuérpia e Haarlem. Jan van der Stock argumenta que a guilda foi responsável por traçar as origens e a posição social das primeiras oficinas de impressão na cidade. Hieronymus Cock foi o primeiro, dos produtores, a ingressar em São Lucas, em 1546. Pieter Bruegel se associou poucos anos depois, em 1551 e, nessa altura, viajou para a Itália, onde aprimorou a técnica de pintura e criação de desenhos.19 Philip Galle, por outro lado, é mencionado pela primeira vez nos registros da guilda apenas em 1569. Possivelmente, o gravador teria ingressado antes, uma vez que em 1563 fundara sua própria oficina de impressão. Ainda que muito talentoso, Philip Galle era um novato quando gravou a série de virtudes e, talvez, a repercussão das gravuras tenham alavancado suas atividades posteriores.20

19 RIGGS, Timothy. Hieronymus Cock: Printmaker and Publisher in Antwerp at the sign of the Four Winds. Tese de Doutorado pela Universidade de Yale, New Haven, 1972. p.20. 20 SELLINK, Manfred. Philip Galle: Engraver and Print Publisher in Haarlem and Antwerp. Tese de Doutorado pela Universidade de Vrije, Leiden, 1997. p.48. 20

Nos Países Baixos sob domínio Habsburgo, a guilda de São Lucas não apenas regulamentou o mercado artístico flamengo, como financiou obras de interesses político- religiosos que estivessem de acordo com as conveniências do governo central. As políticas de censura, que atravessaram as décadas de 1550 e 1560, passaram a orientar a produção de imagens a partir das diretrizes da guilda, com o objetivo de identificar e proibir impressos e pinturas consideradas subversivas.21 Em 24 de novembro de 1557, o rei Filipe II teria determinado que o conselho da cidade criasse uma guilda para regulamentação de editores em Antuérpia. Os conselheiros não criaram uma guilda específica, pelo contrário, associaram os impressores à São Lucas, que agora obedecia às políticas de censura.22 O que mudou, a partir da promulgação do decreto, foi a regulamentação e fiscalização da técnica de impressão, bem como o conteúdo veiculado no impresso, que deveria obedecer a critérios políticos e religiosos – não inflar sedição e nem apoiar práticas heréticas.23

As políticas de censura, que atravessaram as décadas de 1550 e 1560, repercutiram no trabalho da guilda, mas também incentivaram a construção de fraternidades religiosas, sociedades de retórica e denúncias comunitárias, numa tentativa de manter o disciplinamento na cidade. O fato dos impressores de As sete virtudes possuírem licenças para exercer seus ofícios indicou, em alguma medida, uma declaração de confiança sobre o que seria impresso. As licenças, contudo, não são indícios suficientes de que a oficina seguiu um padrão rígido de

21 “The suspicion that the use of materials was at least a significant factor in the guild's arguments is supported by the judgment of August 1460. It is the earliest documented example in which the St Luke's Guild explicitly invoked its privileges to demand that someone become a member. The dispute can be roughly reconstructed on the basis of the magistrate's judgment. The guild officials had demanded that the scribe Benedictus Peter Henricxzoon join its ranks because he had decorated a variety of books with illustrations and illuminated them with gilded letters. Benedictus formally denied the charges, submitting that he himself did not make miniatures or gilded letters, but that he sometimes purchased miniatures separately for insertion in his manuscripts. He also had some of his manuscripts illuminated in a miniaturist's studio. And he was quite entitled to do so, he added. He was acting within the letter of the law, Benedictus emphasized, since he did not produce the illuminations himself, nor did he have them made in his own home. The magistrate upheld Benedictus' argument without qualification, ruling that he was not required to join the guild, but that the guild was obliged to inscribe him if he so desired.” VAN DER STOCK, J. op cit., p. 37. 22 Jan van der Stock narra o episódio escrito em uma missiva régia, de 24 de novembro de 1557, em que Filipe II pede aos oficiais que encontrem uma forma de controlar e regulamentar o trabalho e materiais impressos em oficinas de edição. A maneira mais eficiente que o conselho da cidade argumentou para obter controle sobre as oficinas de impressão foi exigir que eles se juntassem à guilda de São Lucas, criando uma subdivisão dentro da corporação, para critérios de análise minuciosa sobre a produção destes impressos. Ibidem., p.39.

23 A censura com objetos impressos, ainda que tenha ganhado estímulo e abrangência a partir da anexação dos impressores à guilda, ocorreu, em Antuérpia, em momentos anteriores, com regulamentos que exigiam uma autorização prévia das autoridades para o ato de imprimir. A incriminação de imagens teve particular destaque com a promulgação do Édito de Worms, decretado pelo imperador Carlos V, em 1521. A cerimônia onde foram queimados os retratos de Martinho Lutero consagrou a rejeição de uma parte das autoridades eclesiásticas e civis e até mesmo da população contra princípios protestantes, embora tenha, de igual modo, inflado o movimento pela reforma. As prescrições expressas no index de Lovânia, em 1546, autorizavam o ato de imprimir desde que os impressores tivessem uma permissão do governo central comprovando terem boa conduta e exercerem seu trabalho nos limites da ortodoxia. Ibidem., p. 45. 21 ortodoxia e nem, tampouco, que os objetos impressos deixavam de veicular temas polêmicos, possivelmente debatidos de forma mais ampla nas dinâmicas de circulação.

O caso emblemático da série As sete virtudes revelará a tênue relação entre ortodoxia e heterodoxia político-religiosa, cuja produção situou os limites dos debates confessionais na segunda metade do século XVI. Discutiremos sobre isso nos capítulos seguintes. Não obstante, a série também oferece caminhos para pensarmos as gravuras como produções coletivas. Ainda que a bibliografia contemporânea reconheça as muitas mãos que trabalharam para produção e impressão das virtudes, a autoria da série acaba, por um lado, sendo atribuída ao poder inventivo de Pieter Bruegel ou, por outro lado, à hierarquia de Hieronymus Cock como representante de um interesse comercial, a quem se atribuía plena autoridade sobre o conteúdo veiculado. Não pretendemos negar as hierarquias que direcionaram os lugares de produção da série, mas propor que se trata de uma produção coletiva, tanto pelas habilidades técnicas de cada um dos sujeitos como pelo conteúdo político-religioso veiculado. Em suma, podemos sugerir que se trata de uma rede de impressão interessada nas possibilidades comerciais e político-religiosas de suas impressões.

b. Redes de impressão: uma revisão da noção de autoria

Numa virada historiográfica recente, a noção de autoria tem sido suplantada pela perspectiva de um trabalho colaborativo. Contudo, num momento em que as interpretações históricas mais recentes estão cada vez mais marcadas por uma abordagem coletiva da produção dos impressos, no que tange à série As sete virtudes, ainda prevalece uma noção de autoria centrada em Bruegel. A bibliografia mais clássica e de referência sobre Bruegel, que também estudou a série das virtudes, foi responsável por fixar essa noção. Em pesquisas do século passado – (Charles de Tolnay, 1939), (Adriaan Barnouw, 1947), C. G. Stridbeeck (1956), Irving Zupinck (1969) -, assim como em catálogos de exposição - Le Catalogue des estampes de Pieter Brueghel (1908), Graphic Words of Pieter Bruegel the Elder (1963, reeditado em 2014) e mesmo no mais recente Pieter Bruegel: Drawings and Prints (2000) -, a produção de As sete virtudes é significada como fruto da maestria artística do desenhista, geralmente acompanhada do ‘significado moral’ que teriam prescrito suas produções.24 No entanto, conforme sugere

24 Das obras mencionadas, consultar, TOLNAY, Charles. Pierre Bruegel l'ancien. 2 vols. Brussels: Nouvelle société d'éditions, 1935; BARNOUW, Adriaan. The Fantasy of Pieter Brueghel. New York: Lear, 1947; STRIDBECK, C.G. “Combat between Carnival and Lent' by Pieter Bruegel the Elder: An Allegorical Picture of the Sixteenth Century”. In.: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 19, 1956; ZUPNICK, Irving. “The influence of Erasmus' Enchiridion on Bruegel's Seven virtues”. De Gulden Passer. Jaargang 47, 1969. pp. 225-235. Dos catálogos 22

Roger Chartier pensando sobretudo o mundo do livro, o debate sobre autoria em impressos e manuscritos da época moderna expõe o problema e os limites de uma situação histórica em que “a propriedade das obras não era em primeiro lugar a do próprio autor, nem a originalidade o primeiro critério a comandar a sua composição ou apreciação.25

Atualmente, Jan van der Stock tem chamado atenção às habilidades técnicas de Bruegel dentro de uma chave mais ampla de relacionamentos pessoais, artísticos e comerciais que o desenhista manteve, especialmente, com Hieronymus Cock e Hans Franckaert.26 Para o historiador da arte, a reconstrução das redes de relacionamento de Bruegel oferece caminhos para pensarmos tanto a execução de seus desenhos e pinturas como os projetos empreendidos por Hieronymus Cock nos primeiros anos de atividade da Aux Quatre Vensts, cujas habilidades do desenhista teria contribuído para o sucesso das gravuras executadas.27 Manfred Stefan Sellink também estudou a trajetória de Philip Galle como gravurista e impressor nas cidades de Haarlem e Antuérpia e destacou as conexões que teriam balizado as relações de Galle, não apenas no campo editorial, como também em círculos do humanismo cristão.28 Segundo Sellink, Philip Galle esteve envolvido com círculos letrados de Harleem e Antuérpia e, quando

mencionados, consultar, BASTELAR VAN, René. Catalogue raisonné des estampes de Bruegel l'Ancien. Bruxelas: G. Van Oest & Cie, 1908; KLEIN, Arthur. “The World of the Seven Virtues, Plus One”. In.: Graphic Worlds of Peter Bruegel the Elder. North Chelmsford: Courier Corporation, 1963; ORENSTEIN, Nadine M. (org.). Pieter Bruegel The Elder Drawings and Prints. New York: The Metropolitam Museum of Art. Yale University Press, New Haven and London, 2001.

25 CHARTIER, Roger. “Escutar os mortos com os olhos”. Dossiê Humanidades. Revista Estudos Avançados 24 (69), 2010. p. 18. 26 Além dos laços de amizade, Bruegel teria desenvolvido trabalhos em conjunto com Hans Frackaert, um rico comerciante e Rederijker em Antuérpia, que financiou e participou da execução de desenhos e pinturas com Bruegel. Do mesmo modo, Bruegel teria trabalhado com Hieronymus Cock e executado a maior parte de seus desenhos para Aux Quatre Vents, de onde pode se atribuir parte do sucesso artístico e comercial do desenhista. 27 Bruegel fez doze desenhos retratando paisagens neerlandesas. Esses desenhos foram gravados pelos irmãos Doetecum e publicados em 1555 pela Aux Quatre Vents, sendo consagrados, pela literatura de época, como o retrato da paisagem neerlandesa - cósmica e universal. Jan van der Stock demonstra que parte do sucesso inicial de Hieronymus Cock na direção de Aux Quatre Vents teria ocorrido pelas habilidades de Bruegel, uma vez que seu processo inventivo o firmou como um dos principais pintores e criadores de desenho nos Países Baixos. Cf., VAN DER STOCK, J. “Pieter Bruegel, a Preliminary Reconstruction of his Network”. In.: Essay in Context. Kunt Historisches Museum Wien: Hannibal, 2020. A bibliografia que aborda sobre a trajetória artística de Bruegel e seu processo criativo é extensa. Para consultar as demais pesquisas, sugerimos começar pelos trabalhos de Margareth Sullivan (2010), Barbara A. Kaminska (2014) e Anthony M. Huffman (2016). 28 Philip Galle não gravou desenhos apenas para Hieronymus Cock. Algumas de suas placas foram impressas pelos editores Martin Peeters e . Ele também gravou desenhos de outros inventores, como . Em tratando-se de uma rede de relações mais amplas, Galle também teria trabalhado com editores do sul dos Países Baixos, dentre os quais é conhecido o contato com Frans Hogenberg, Gerard Mercator e , todos envolvidos com o mercado editorial e pertencentes a grupos letrados, alinhado com princípios do humanismo cristão. Cf., SELLINK, Manfred. Philips Galle (1537-1612) Engraver and Print Publisher in Haarlem and Antwerp. Dissertação Acadêmica. Universidade de Vrije.1997, p. 18 23 fundou sua própria oficina editorial, publicou gravuras que mobilizavam conteúdos religiosos semelhantes a seus mestres, Dirck Coornhert e Marteen van Heermskerk.29

As primeiras placas que Philip Galle gravou para Hieronymus Cock datam 1555.30 Durante dez anos, a maior parte do que gravou foram a partir de composições de Pieter Bruegel. Contudo, somente entre 1569 e 1570, o gravurista se mudou para Antuérpia.31 Ao que parece, quando Philip Galle produziu placas da série de virtudes, ainda vivia em Haarlem, trabalhando com seus mestres Dirck Coornhert e Marteen van Heemskerck. A partir disso, podemos sugerir duas possibilidades: primeiramente, embora a série tenha sido publicada em Antuérpia, a produção ultrapassou os limites da cidade e, possivelmente, conectou centros editoriais importantes nos Países Baixos, como a cidade de Haarlem; segundo, há que se considerar, de forma mais precisa, a possibilidade de as instruções em latim serem oriundas de Dirck Coornhert, uma vez que as placas possivelmente foram entalhadas por Philip Galle na oficina do impressor-humanista, a única oficina de impressão profissional em Haarlem. Essas evidências indicam a necessidade de um tratamento de revisão mais adequado para produção da série de virtudes que, se pensadas a despeito de uma conexão entre os principais centros editoriais dos Países Baixos, podem apontar caminhos interessantes sobre as dinâmicas de impressão e circulação.

Uma nova tendência tem se consolidando entre pesquisadores contemporâneos ligados ao campo da História da Arte, a qual busca situar o trabalho colaborativo desses impressores por meio da categoria de redes artísticas e comerciais. Diferente daquela que destaca a autoria em Bruegel, alguns trabalhos desse campo tendem a enfatizar o trabalho do impressor e a preeminência das oficinas de edição. Dalvid Landau e Peter Parshall traçaram dois mercados de impressão paralelos no século XVI: oficinas individuais, que faziam todo o processo de invenção, gravação, impressão e distribuição de impressos; e oficinas colaborativas, que

29 Ibidem., 510p. 30 Timothy A. Riggs argumentou que, para uma determinada impressão, o gravador foi pago mais do que o dobro em relação ao inventor. A razão tenha se dado, talvez, ao fato de que a placa, ao contrário do desenho, era o objeto que possibilitava a impressão e a venda das gravuras. Deve-se, no entanto, observar que a gravação da placa exigia mais tempo de trabalho do que a construção do desenho. Isso significa que, enquanto o gravurista era mais bem pago no montante das horas trabalhadas, o desenhista era mais bem pago a cada hora trabalhada. RIGGS, Timothy Allan. op. cit., p. 62 31 Segundo Sellink, “Philips Galle seems to have concentrated on setting up his own business as a print publisher from 1563 onwards. From this year, Galle began printed and publishing his own engravings in Haarlem. […] Galle produced in Haarlem as a print publisher from 1563 to 1570.” Cf., SELLINK, op. cit., p. 18. 24 utilizavam da cooperação e especialização de uma classe profissionalizada de inventores, gravuristas e encadernadores. Aux Quatre Vents estaria enquadrada nessa segunda categoria.32 Num mesmo sentido, Matthew Lincoln, por meio de abordagem quantitativa e aplicando métodos de análise de redes para estudar pontos de contato entre impressores nos Países Baixos (séc. XVI-XVIII), sugere a explicação de “incentivos mercantis” nas principais oficinas editoriais. Lincoln demonstra que a faixa de tempo entre 1550 e 1600 foi, para as oficinas de impressão flamengas, um momento de centralização de determinados impressores em relação ao mercado editorial, ao passo que também cresceu o grau de conexões empenhado por esses sujeitos. O termo centralização e conexão é usado, respectivamente, para indicar os impressores que mais publicaram e empreenderam a partir do no trabalho colaborativo. Segundo os dados apresentados, entre as décadas de 1550 a 1560, teria ocorrido uma centralização de publicação nas mãos de impressores específicos, ainda que o número de agentes envolvidos no trabalho coletivo tenha tido uma variação mais tímida.33 Os dados parecem corroborar com o que fora enunciado por David Landau e Peter Parshall sobre a oficina de impressão Aux Quatre Vents ter publicado uma grande quantidade de impressos no período e contratado artífices especializados para a execução das gravuras. Para Lincoln, essas práticas teriam sido responsáveis pelas mudanças na estrutura editorial e comercial dos Países Baixos, uma vez que oficinas editoriais mais centralizadas e consolidadas, como Aux Quatre Vents, recebiam mais incentivos e possuíam melhores condições de empreender projetos, diversificar técnicas e admitir artífices.34 As informações sistematizas pelos autores mostram a centralidade de Aux Quatre Vents no ambiente artístico e comercial no período em que a série de virtudes foi produzida e publicada.

Devemos considerar os limites dessa abordagem que, como já mencionamos, incide exclusivamente no impressor e na relevância comercial dos impressos publicados, na medida em que considera o sujeito como um empreendedor especialmente interessado na venda desses materiais. Compreender os interesses mercantis, ainda que seja um aspecto importante da análise, não oferece caminhos suficientes para entendermos a produção frequente de gravuras com temas religiosos que foram empreendidas na oficina.

32 LANDAU, David e PARSHALL, Peter. The Renaissance Print, 1470-1550. Connecticut: Yale University Press, 1994. pp. 260-283 apud LINCOLN, Matthew. “Social Network Centralizarion Dynamics in Print Production in the Low Countries, 1550-1750”. International Journal for Digital Art History, n. 2. 2016, p. 135. 33 Análise dos gráficos apresentados na figura 5. As variações são semelhantes em bases de dados do British Museum e no Rijskmuseum.

34 LINCOLN. op. cit., pp. 135-155. 25

Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock parecem ter alinhado seus interesses artísticos e comerciais com suas opiniões político-religiosas, especialmente complexas diante do cenário caótico dos Países Baixos nas décadas de 1550 e 1560. Pelo que sugere a pesquisa, tais opiniões religiosas estiveram ligadas a uma visão menos ortodoxa dos confessionalismos insurgentes, inspirados num posicionamento de humanistas moderados que viviam nessas regiões. Poderiam até ser classificados como erasmianos em espírito, marcados por uma ética humanista preocupada com a espiritualidade cristã e a vida nas cidades. A ênfase cristã é características de muitas gravuras publicadas pela Aux Quatre Vents que, por sua vez, estiveram inteiramente de acordo com o humanismo neerlandês do século XVI, conforme veremos no capítulo seguinte, a partir da análise de cada gravura de As sete virtudes.

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CAPÍTULO 2

As sete virtudes: balanço bibliográfico e iconografia das virtudes

Entre 1559 e 1560, Hieronymus Cock encomendou a Pieter Bruegel a produção de sete gravuras de virtude, nomeadas em latim – CHARITAS, SPES, FIDES, PRVDENTIA, IVSTITIA, FORTITVTO e TEMPERANTIA. Os desenhos foram enviados no mesmo ano a Philip Galle, um recente artesão introduzido na técnica de cortar blocos que residia na cidade de Haarlem quando gravou os desenhos, e impressas pela Aux Quatre Vents à medida que as placas ficavam prontas. Tanto os desenhos quanto as gravuras foram produzidas em folhas avulsas, com medidas pouco distintas, que se ajustam ao tamanho de um fólio. Além do conteúdo iconográfico, cada um dos desenhos e impressos possui uma legenda de ordem moral, escrita em latim, na margem inferior da composição. As legendas foram escritas por outras mãos, talvez Dirck Coornhert ou Hadrianus Junius. É possível que esses versos tenham sido incorporados ainda nos desenhos de Bruegel, uma vez que a caligrafia e a cor da tinta, que leva a assinatura e datação do desenhista, diferem nos versos de cada gravura. Elas podem ser autorais, uma vez que Coornhert e Junius escreveram tratados e textos sobre ética e, também, referências a autores cristãos, como em CHARITAS e SPES, cujos versos fazem menção às obras de Lactâncio e Juan Luis Vives, respectivamente. O programa visual de cada gravura de As sete virtudes apresenta composições carregadas de símbolos religiosos, provérbios populares e cenas cotidianas, que reúnem e camuflam diferentes estratos da sociedade neerlandesa. No centro das composições, as figuras alegóricas de virtude comportam objetos típicos de sua representação e no entorno são representadas cenas de virtude, misturando arquétipos e modelos a serem seguidos com advertências que ironizam más ações. As possibilidades para encomenda da série de virtudes pode estar, como sugere Arthur Klein, no sucesso de vendas da série executada anteriormente, Os sete pecados capitais,35 assim como no potencial político-religioso que a iconografia das virtudes teve durante toda era cristã e, especialmente, frente às disputas confessionais do século XVI. As representações de virtudes e vícios ganharam espaço relevante no ambiente cristão, desde o tardo-medievo à primeira modernidade. As transformações no espaço político-religioso que a Cristandade experienciou – tanto pelas dinâmicas de poder entre estados seculares e o

35 KLEIN, Arthur. “The World of the Seven Virtues, Plus One”. In.: Graphic Worlds of Peter Bruegel the Elder. North Chelmsford: Courier Corporation, 1963. p. 116. 27 papado, como pelos processos de reformas religiosas –, desdobraram-se no ambiente civil cristão por meio do debate teológico-político, que recuperavam autores clássicos e os adaptavam a padrões ético-morais que deveriam exercer o governante e o conjunto da sociedade cristã. Essas novas formulações foram retratadas em sequências iconográficas, com imagens de virtudes e vícios representando modelos de bom governo sem que se descurasse, contudo, da dimensão cristã. Nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti sobre o “Bom e o Mal Governo”, pintados entre 1337 e 1340 na sala do Conselho do Palácio Público de Siena, foram representadas as construções do bom e do mau governo. Por um lado, o modelo de bom soberano comporta as virtudes teologais sob sua cabeça e as virtudes cardeais ao seu redor. No contra-modelo, a imagem demoníaca do tirano comporta os pecados capitais e outros vícios que permeiam o cenário iconográfico.36 Igualmente, a chamada “nova iconografia das virtudes”, surgida no século XV, foi responsável por padronizar um conjunto de referências iconográficas que, durante a primeira Época Moderna, configuraram o programa visual dessas imagens. Primeiramente no ambiente francês e flamengo, as virtudes passaram a ser representadas separadamente dos vícios e, ao mesmo tempo, portar atributos que permitiam sua diferenciação e rápida identificação. Uma iluminura, hoje na biblioteca de Ruão, trazia textos de Aristóteles sobre ética e política para o cristão e as personificações alegóricas foram portadas de símbolos que padronizaram os modelos imagéticos das virtudes.37 Essa nova forma de representação das virtudes dominou a iconografia cristã no final da Época Medieval e início da Época Moderna. Muitos impressores nos Países Baixos, Sacro Império e Itália retrataram as virtudes a partir de atributos fixados pela nova iconografia da virtude, conforme indica o levantamento iconográfico que realizamos durante a pesquisa. Contudo, as representações geralmente esboçam a figura alegórica sozinha, sem cenas no entorno da composição. A inclusão do ambiente civil parece ter sido uma característica própria, ao menos até aquele momento, de Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock ao executar As sete virtudes. Essa nuance nos levou, durante a pesquisa, questionar se essa série se conformaria como um expoente de uma mudança iconográfica na representação das virtudes, relacionado às disputas confessionais no interior da sociedade cristã.

36 SKINNER, op cit., pp. 39-67. 37 A bigorna em Fortaleza, a peneira em Prudência, o relógio e o freio em Temperança, a colmeia em Esperança, etc. OLIVARES MARTÍNEZ, Diana: "Virtudes simbólicas", Base de dados digital de Iconografia Medieval. Universidad Complutense de Madrid, 2015. Disponível em: < Base de Datos Digital de Iconografía Medieval (ucm.es)>. 28

Neste capítulo, partiremos de um balanço bibliográfico dos estudos da série para, em seguida, apresentar nossos esforços de análise e interpretação das composições singularmente. Sintetizaremos, numa análise iconográfica, os aspectos de mudança e permanência que figuram o programa visual de cada gravura da série de virtudes.

a. Balanço bibliográfico

Pela riqueza das técnicas e a multiplicidade de alusões iconográficas, As sete virtudes é, até hoje, uma das composições mais conhecidas do ambiente holandês da primeira modernidade e, paradoxalmente, uma das menos pesquisadas a fundo. Ainda que as criações de Bruegel e Galle e as impressões de Cock tenham ganhado certa notoriedade nos últimos anos, especialmente no mundo acadêmico e em museus do Norte da Europa, não surgiram trabalhos recentes que se dedicassem significativamente a essas impressões. Quando a publicação de As sete virtudes esteve prestes a completar seu aniversário de 400 anos, estudiosos interessados nos desenhos de Bruegel dedicaram-se em oferecer explicações iconográficas às complexas composições. Charles Tolnay (1935) foi um dos primeiros a colocar em debate a série iconográfica, indicando-a como uma sequência satírica que ironizava ritos confessionais, com uma espiritualidade depositada em cerimônias religiosas e uma humanidade que teria extinguido seus sentimentos naturais de bondade.38 Alguns anos depois, na contramão dos escritos de Tolnay, Adriaan Barnouw (1947) sugeriu que as composições ilustravam modelos de virtude tal como seus títulos, uma vez que as alusões iconográficas indicavam exemplos da virtude a serem praticados.39 C. G. Stridbeeck (1956), ao analisar a pintura A luta entre o carnaval e quaresma (1559) teria sugerido a hipótese de que se tratava de uma ênfase espiritualista sobre as práticas tolas do carnaval e da quaresma. Nesse caso, a sátira, aludindo a um paradoxo na composição, alimentaria a noção de que Bruegel tivesse sido inclinado a uma ‘igreja interna’ e, por isso, não apenas o carnaval como também a quaresma seriam alusões críticas. Essa ênfase teria sido comum em outras composições do desenhista, como em FIDES, que Stridbeck sugere como uma crítica ao protestantismo e ao catolicismo confessional.40

38 TOLNAY, Charles. Pierre Bruegel l'ancien. 2 vols. Brussels: Nouvelle société d'éditions, 1935. apud STRIDBECK, C.G. “Combat between Carnival and Lent' by Pieter Bruegel the Elder: An Allegorical Picture of the Sixteenth Century”. In.: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 19, 1956. pp. 96-109.

39 BARNOUW, Adriaan. The Fantasy of Pieter Brueghel. New York: Lear, 1947. apud KLEIN, Arthur. “The word of the Seven Virtues, plus one”. In.: Graphic Words of Pieter Bruegel the elder, 2°ed. New York: Dover, 2014. pp. 213- 217. 40 STRIDBECK, C.G. op. cit., pp. 96-109. 29

Esses trabalhos foram pioneiros em oferecer uma explicação visual à série e, até hoje, costumam ser citados em pesquisas sobre Bruegel. As produções de Stridbeck foram responsáveis por construir a imagem de “Bruegel espiritualista” que, todavia, é associada ao desenhista sem que se explique em que se tratou essa forma de devoção. Essa imagem característica de Bruegel também consagrou a forma como suas produções iconográficas foram assimiladas em catálogos de exposição, que buscavam apreender o ‘significado moral’ de suas gravuras, num binarismo interpretativo que, ora compreendeu as composições como sátiras e críticas à sociedade neerlandesa do século XVI, ora como modelos de instrução para a prática da vida em virtude. Irving L. Zupnick, num texto publicado para revista Gulden Passer em1969 e disponibilizado pela DBNL - Digitale Bibliotheek voor de Nederlandse Letteren em 2016, enfatizou o caráter satírico de As sete virtudes e argumentou que tais sátiras estiveram embasadas numa ‘influência’ erasmiana, especialmente de Enchiridion (1503), uma vez que, assim como o tratado de Erasmo, a série apresentaria críticas às práticas de religiosidade externas, ao egoísmo e a um mundo totalmente confuso.41 Embora o autor tenha percebido a série como uma referência às ideias de Erasmo, talvez, o maior problema de sua proposta esteve na forma perfunctória com que apresentou as orientações religiosas de Enchiridion, ainda presa a uma chave simplista de Reforma e Contrarreforma. Também operou a partir da noção de ‘influência’, que pode ter ocultado as possibilidades de interpretar as composições a partir de sua própria cultura visual. Por outro lado, Arthur Klein, no catálogo Graphic Words of Pieter Bruegel the Elder (de 1963, reeditado em 2014), foi mais cauteloso ao sugerir que as composições são ambíguas e que seria difícil sugerir, a partir delas, uma interpretação crítica ou propositiva sobre as virtudes. Para o autor, trata-se de entender as esferas visuais em composições separadas, como no caso de TEMPERANTIA que poderia evidenciar uma noção negativa das artes liberais, enquanto CHARITAS manifestaria práticas de boas obras.42 De fato, compreender As sete virtudes nos demonstrou ser uma tarefa complexa, tanto pela pluralidade visual e material das composições, como pelas possibilidades de produção recepção que suscitou para época e espaço em que foi produzida. Pensá-las em vista de um

41 Segundo Zupnick, Erasmo teria sugerido, em Enchiririon, que as virtudes feitas pelos homens são falsas, ilusórias e aquém do verdadeiro espírito do Cristianismo. O autor se utiliza desse enunciado para argumentar que a gravura FIDES apresentava um paradoxo, cujas alusões referem-se à fé vazia e externa. Cf., ZUPNICK, Irving. “The influence of Erasmus' Enchiridion on Bruegel's Seven virtues”. De Gulden Passer. Jaargang 47, 1969. pp. 225- 235. 42 KLEIN, Arthur. “The World of the Seven Virtues, Plus One”. In.: Graphic Worlds of Peter Bruegel the Elder. North Chelmsford: Courier Corporation, 1963. 30 binarismo interpretativo limitaria as possibilidades de historicizá-la. Nosso esforço de análise, inicial para um trabalho monográfico de graduação, caminha numa dupla direção: partir da série para pensar as particularidades de cada composição e entender as composições para oferecer sentido ao conjunto da série. Não se trata somente de uma análise interna da fonte e dos signos pictóricos, mas também de trazer as composições à vista de seus aspectos materiais, sua rede de produção e das querelas político-religiosas do quinhentos. Além das bases de dados online do Rijksmuseum, The Metropolitan Museum e British Museum, partimos do catálogo Pieter Bruegel the Elder: Drawings and Prints, organizado por Nadine M. Oreinstein, em 2001. É o catálogo mais completo e detalhado sobre as produções de Bruegel que está disponível ao acesso público e oferece, inclusive, informações técnicas e materiais sobre a série. Segue, contudo, as mesmas suposições de Stridbeck, interpretando a série como composições paradoxais, satíricas e pessimista sobre as virtudes.43 Todavia, é o catálogo que sugere a hipótese sobre Hadrianus Junius e Dirck Coornhert serem os responsáveis pelas legendas em latim nas margens de cada gravura. Como já mencionamos, essa sugestão não tem sido trabalhada em pesquisas mais recentes, mesmo com a retomada das produções de Bruegel, rememorada pelo aniversário de 450 anos de sua morte, em 2019, bem como o atual interesse historiográfico por ‘redes de impressão’.44 Utilizamos as informações contidas no catálogo para levantar possibilidades de uma análise material da série, ainda que elas não sejam suficientes para uma abordagem mais detida. Acreditamos que as gravuras sugerem uma visualidade mais complexa e plural do que apenas caracterizá-las como sátiras ou ressalva às virtudes. Elas foram produzidas em um ambiente político-religioso de conflitos e sua iconografia reúne essa diversidade. Esperamos que o olhar mais detido que faremos de cada composição da série, a seguir, possa demonstrar esses diálogos.

b. Gravuras de As sete virtudes: visualidade, textualidade e aspectos materiais

No início do século XVI, as novas condições de produção da imagem, a partir de gravuras, ressignificaram as práticas culturais e visuais em muitas cidades europeias. Para além

43 ORENSTEIN, Nadine M. (org.). Pieter Bruegel The Elder Drawings and Prints. New York: The Metropolitam Museum of Art. Yale University Press, New Haven and London, 2001. pp. 177-178.

44 Uma possibilidade de explorar essa hipótese seria consultar os tratados sobre ética, escritos por Dirck Coornhert e Hadrianus Junius e pensá-los em vista das legendas na série. Contudo, algumas dessas obras estão indisponíveis a partir do Brasil ou necessitam de uma disposição específica para consultá-las no original. Pretendemos explorar essa possibilidade com a continuidade da pesquisa num eventual mestrado. 31 dos centros editoriais, esses objetos foram capazes de circular numa dimensão geográfica impossível de mensurar em qualquer esforço científico. Enquanto suporte, alocavam temas variados que poderiam servir às possibilidades de instrução pedagógica, disputas político- religiosas, hostilidade a grupos opostos, práticas de devoção e modelos de disciplinamento. Em suma, as gravuras no século XVI foram meios pelos quais se manifestaram práticas culturais de uma sociedade que se valeu de contradições e conflitos internos. Como tal, acessá-las pode oferecer caminhos para pensarmos as referências visuais e a circulação dos pensamentos e práticas religiosas nas classes média, alta e no público leigo.

Conforme nos lembra Jan van der Stock, para que o público se interessasse por adquirir esses materiais, teria pesado menos o critério estético-qualitativo e mais o preço e o assunto tratado.45 O tema religioso e cívico das virtudes teria sido um dos mais acessados à época. Em nosso levantamento iconográfico (que não se pretende exaustivo, mas sim ser indiciário e subsidiário para a análise da série), coletamos cerca de 80 gravuras com tema de ‘virtude’, produzidas como séries iconográficas por impressores diversos, entre 1500 e 1579, nas regiões dos Países Baixos, Itália e Sacro Império. Evidentemente, a quantidade foi muito maior que a coletada aqui. Ainda que a produção de imagens de virtude não seja uma excepcionalidade do século XVI, a recorrência do tema no período foi extraordinária, muito em vista de como as reformas religiosas realocaram essa tradição para outro patamar do debate teológico-moral.

Foi nesse contexto de disputas teológicas, mas também de construção de uma iconografia, que a série As sete virtudes foi produzida, entre 1559 e 1560. O intervalo entre a produção dos desenhos e a impressão das gravuras foi particularmente rápido: cerca de um ano. Isso se vale especialmente se compararmos com outras produções em série empreendida pelo mesmo grupo de impressores, como Os sete pecados capitais, que levou cerca de três anos entre os desenhos e a impressão. A pouca padronização entre uma composição e outra também nos leva a crer na urgência com que essa série foi publicada: somente CHARITAS possui data; TEMPERANTIA não possui a assinatura de Hieronymus Cock, como nas composições anteriores; IVSTITIA não carrega os nomes de nenhum dos impressores que, nesse caso, pode estar relacionado com um cuidado com as práticas de censura do período; e a assinatura de Philip Galle não aparece em nenhuma das composições, o que não era habitual em gravuras publicadas por Cock, que geralmente incluíam os nomes de seus gravadores.

45 VAN DER STOCK, J. Printing Images in Antwerp: the introduction of a printmaking in a city. Roterdã: Sound and Vision Interactive, 1998. p.136. 32

Se, por um lado, a materialidade sugere a agilidade com que essa série foi produzida, por outro, não deixa de revelar a expectativa dos impressores por produzir gravuras comercializáveis, com referências concretas sobre o tema, o tempo e o espaço que se referem. O programa visual menciona uma série de assuntos habituais, facilmente identificáveis aos olhos do expectador. Essas matérias são referenciadas por práticas cotidianas – como salgar a carne em PRVDENTIA e ir à igreja em FIDES –, ou, expectativas religiosas de uma consciência coletiva – como a ênfase apocalíptica em FORTITVTO. A sensação realista da visualidade foi intensificada do desenho para a gravura, na medida em que Philip Galle, com linhas sutis, hachuras finas e efeitos de luz e sombra, criou composições com efeito tridimensional. Os versos na margem, escritos em latim, podem indicar um interesse de que as gravuras fossem não apenas consumidas em seu território de produção, mas também que circulassem por outros espaços da cristandade. Por esses e outros elementos, acreditamos que essa série teria sido publicada não só pelo interesse mercantil, mas por suas possibilidades de intervenção frente aos debates político-religiosos.

A sequência de produção e impressão da série ocorreu na ordem de CHARITAS (1559), SPES (1559), FIDES (1559), PRVDENTIA (1559), IVSTITIA (1559), FORTITVTO (1560) E TEMPERANTIA (1560). A seguir, traremos elementos de análise e interpretação singulares de cada composição de virtude para, depois, retomar a interpretação no conjunto da série.

I CHARITAS (1559)

Tanto o desenho quanto a gravura foram criados e publicados em 1559, em Antuérpia. O desenho é traçado com pena em tinta marrom escura, numa folha de 22,4cm x 29,9cm. Na composição, assinado e datado no canto esquerdo BRVEGEL 1559, e no centro inferior, “CHARITAS”. Por outra mão, uma legenda na margem inferior que diz “Speres tibi accidere quod altere accidit ita denum excitaberis ad opem ferendam si sumpseris eius animum qui opem tunc in mali/ constitutus implorat”.46 A gravura a partir do desenho foi produzida pela técnica em intaglio, com um único estado de impressão. A folha tem tamanho de 26cm x 33,6cm, enquanto a placa cobriu a dimensão de 22,2cm x 28,9cm. No canto inferior direito, a assinatura

46 ORENSTEIN. op. cit., P. 180. 33

Brvegel 1559 e no centro inferior CHARITAS e H. Cock excude. Na margem inferior, a legenda que diz:

SPERES TIBI ACCIDERE QVOD ALTERI ACCIDIT, ITA DEMVM EXCITABERIS AD OPEM FERENDAM / SI SVMPSERIS EIVS ANIMVM QVI OPEM TVNC IN MALIS CONSTITVTVS IMPLORAT.

ESPERA QUE O QUE ACONTEÇA COM OS OUTROS ACONTEÇA COM TU; SOMENTE ASSIM, TU SERÁS DESPERTADO PARA OFERECER AJUDA, SE FIZER SEU O SENTIMENTO DO HOMEM QUE APELA POR AJUDA EM MEIO À ADVERSIDADE.47

Figura 1 - Charitas (1559), primeira de sete gravuras da série de virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26cm x 33,6cm, placa 22,5cm x 29,2cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque.

A gravura traz a alegoria da Caridade, representada por uma mulher no centro da composição, entornada por atributos tradicionais da “nova iconografia da virtude”, como o coração flamejante, que segura na mão esquerda, e o pelicano, que pousa sobre sua cabeça. Na cristandade, o atributo do coração flamejante foi associado ao amor e, por isso diretamente ligado às representações da Caridade, lembrando a todos sobre o amor de Cristo, da Virgem Maria e dos Santos da Igreja.48 Diferentemente de Invidia (1558), da série Os sete pecados capitais, em que a alegoria come o coração (também muito semelhante ao fruto de Eva), em Charitas o coração é levado para perto do peito e queima, como o coração do cristão, quando a ele é infundida a graça do amor. Em complemento, no livro Iconologia, por Cesare Ripa, o

47 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem. p. 181.

48 LEXICON, Herder. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 1990. P. 64. 34 coração, em Caridade, “queima quando ama, porque atraindo para si algum objeto digno, faz atrair sangue ao coração, [...] que queima por similaridade.”49 O pelicano, disposto sobre a cabeça da alegoria, alimentando as crias com o sangue do peito, demonstra uma abdicação de si em virtude do próximo.50 É, em essência, o símbolo católico da doação (Pelicano Eucarístico), em analogia ao sacrifício de Jesus Cristo, que, na Eucaristia, oferece seu próprio corpo e sangue para alimentar sua igreja.51

A alegoria da caridade dá a mão às duas crianças, que estão ao lado. Embora esse não seja um atributo da “nova iconografia das virtudes”, foi um modo comum de representar a virtude da caridade durante o século XVI, como também aparece em gravuras que vemos de Hans Burgkmair, Die Liebe (1510), Lucas Van Leyden, Caritas (1530) e Hans Sebald Beham, Charitas (1539).

Figura 2 - Die Liebe (1510), uma Figura 3 – Caritas (1530), uma de sete Figura 4 – Charitas (1539), terceira de de sete gravuras de virtude, gravuras de virtude. Desenho, placa e sete gravuras de virtude, Frankfurt am Augsburgo. Desenho, placa e impressão por Lucas van Leyden. Folha Main. Desenho, placa e impressão por impressão por Hans Burgkmair. 16,5cm x 11,1cm. Leiden. Rijksmuseum, Hans Sebald Beham. Rijksmuseum, Folha 15,7cm x 6,8cm. Amsterdam. Amsterdam. Rijksmuseum, Amsterdam.

49 No trecho selecionado de Iconologia, “Il cuore si disse ardere quando ama perche mouendosi glispiriti di qualche oggeto degno, fanno restrin gere il sangue al cuore, il quale perla calidità d’esto alterandosi, si dice che arde per similitudine”. RIPA, Cesare et al. Della Novissima Iconologia. Pádua: Pietro Paolo Tozzi, 1624. p. 95. 50 OLIVARES MARTÍNEZ. op. cit. Disponível em: .

51 “Sou como um pelicano do deserto, que fustiga o peito e alimenta com o próprio sangue os seus filhos”. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulos, 2006, Salmo 102. 35

Conforme indica Cesare Ripa, a representação das crianças aponta para a dimensão tripartite das virtudes teologais, bem como o triplo poder da Caridade, pois Fé e Esperança, sem ela, não significam nada.52 Também, podemos aludir ao contato com as crianças as mensagens de Jesus, no livro de Lucas: “Todo o que recebe este menino em meu nome, a mim é que recebe; e quem recebe a mim recebe aquele que me enviou; pois quem dentre vós for o menor, esse será grande”.53 Não há, nesse sentido, maior virtude, senão a caridade, que aproxima os cristãos dos ensinamentos de Cristo.

O entorno da composição apresenta as sete obras de misericórdia corporais – dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos, vestir os nus, visitar os enfermos, visitar os presos e enterrar os mortos. O conjunto da composição revela a imbricada relação entre a virtude teologal da caridade e a inclinação da alma pelas paixões que, quando boas, conferem sentido prático para a vida em virtude, pelas quais incluem a dimensão cristã do perdão, da correção fraterna e o suporte ao sofrimento do outro. As sete obras corporais da misericórdia eram, antes mesmo do século XVI, parte dos preceitos da igreja cristã, sendo mais propriamente incorporadas nas práticas do catolicismo. Elas estão embasadas biblicamente no Evangelho de Mateus, quando é apresentada a narração do Juízo Final 54 e, durante as reformas católicas do século XVI, teriam justificado a salvação por obras, conforme reafirmado no “Decreto sobre a Salvação, Cap. XVI - Dos frutos do batismo (justificação), isto é, do mérito das boas obras, e da essência deste mesmo mérito”, do Concílio de Trento, (1545- 1563).55

52 RIPA, op. cit., p. 94. 53 Lucas, 9:48. 54 “Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, se sentará no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então, o Rei dirá aos que estão à direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim’. Os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar? Responderá o Rei: ‘Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. Ele se voltará em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: ‘Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes’. Também estes lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? E ele responderá: ‘Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer’. “E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna”. Mateus, 25: 31-46.

55 “Como pois o mesmo Cristo Jesus influe a sua virtude continuamente nos justificados, como cabeça em seus membros, e vide nos ramos, a qual virtude sempre antecede as suas boas, obras as acompanha, e segue; e sem ella de nenhum modo poderiaõ ser agradaveis a Deo;nem meritorias, deve-se crer que a estes justificados nada mais lhes falta, para com as ditas obras que foraõ feitas em Deos, poderem plenamente, segundo o estado dessa vida, satisfazer 36

No primeiro plano, à direita da alegoria, homens e mulheres oferecem pães a um grupo de famintos. Aqueles que dão de comer são entornados por vestes e sapatos nobres, possivelmente sujeitos de estamentos médios e altos da sociedade borguinhã. Os que recebem o alimento são pobres, famintos, esguios e aleijados. Uma provável cena de caridade e misericórdias aos famintos. A sutileza da advertência crítica de Bruegel aparece, contudo, na mesma cena, representada por dois homens sadios, que tentam enganar os outros para receber os pães. Embora estejam escondidos na multidão e por trás de suas vestes, são reconhecidos por um terceiro sujeito. A admoestação revela que a mentira vem à tona. No canto oposto, à esquerda da alegoria, há homens e mulheres da nobreza e da plebe, que oferecem roupas aos que não possuem, vestindo os necessitados. O princípio da cena demonstra os gestos de caridade como um dever de todos, de ricos e pobres.

No segundo plano, à direita, homens e mulheres que oferecem água aos que tem sede, enchendo jarros e tigelas para distribuir aos sedentos. Em cima do barril, Bruegel teria desenhado um funil que, na composição, pode indicar não apenas a filtragem da água, como das boas e más ações, assim como as muitas jarras espalhadas pela cena, que traz a expectativa da abundância e da renovação espiritual. Na ação ao lado, um morador recebe três peregrinos em sua casa, que é humilde e nada adornada, mas possui uma imagem sacra. Mais ao lado, duas pessoas visitam os doentes – um homem acamado e uma mulher com gota que, em oração, espera a misericórdia divina para a cura de suas enfermidades.

No último plano da composição, um homem e uma mulher visitam presos em uma cadeia, que se surpreendem pela chegada dos visitantes. De dentro da prisão, pessoas se admiram com as cenas de misericórdia que acontecem no ambiente externo. Um terceiro preso, com as mãos amarradas, olha a paisagem externa através de uma porta semiaberta. As práticas da caridade são tantas que mesmo os que estão privados de liberdade podem experienciar. À direita, dois homens trabalham juntos para enterrar um caixão.

a Lei Divina, e a seu tempo (morrendo em graça) conseguirem a vida eterna. Dizendo Cristo nosso Salvador: se alguem beber da agua, que eu lhe der, naõ tera sede eternamente; mas rebenterá nele uma fonte de agua, que corre para a vida eterna. [...] Naõ se deve omitir: que ainda que nas Sagradas Letras se attribui tanto as boas obras, que ainda aquelle, que a hum de seus minimos irmãos der hum copo de agua fria, prometa Cristo que naõ deixará de ter sua paga.” Cf., O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento em latim, e portuguez, op. cit., (6a sessão, cap. 16), pp. 135-136. 37

O plano de fundo exibe árvores secas e indica a ausência de uma boa colheita. A oposição entre os primeiros planos e o plano de fundo constrói o axioma da composição: ser caridoso mesmo na falta, pois há quem necessite e esse foi o ensinamento de Cristo.

Na passagem bíblica de Mateus, capítulo 22, Cristo haveria deixado dois principais mandamentos ao cristão, dentre os quis foram ressignificados à matriz da caridade:

Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu espírito. Este é o máximo e o primeiro mandamento. E o segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.56

Seria essa, também, a moral retirada do verso que acompanha a gravura: ‘ESPERA QUE O QUE ACONTEÇA COM OS OUTROS ACONTEÇA COM TU; SOMENTE ASSIM, TU SERÁS DESPERTADO PARA OFERECER AJUDA, SE FIZER SEU O SENTIMENTO DO HOMEM, QUE APELA POR AJUDA EM MEIO À ADVERSIDADE’. O trecho era antigo e bastante conhecido entre humanistas e estudiosos cristãos. Foi retirado do tratado de Lactâncio, Epítome, capítulo quinto. A inscrição aparece também em um livro de Cornélio A Lapide, famoso por seus comentários bíblicos no século XVII.57 O programa visual da gravura, com a união entre texto e imagem, propõe um chamado à empatia e à misericórdia pelo próximo como ato caridade.

Em entradas de dicionários de época, Charitas é, frequentemente, relacionada aos conceitos de ágape, benevolentia e misericórdia, que pode estar associado à ligação entre dimensão da virtude e os afetos.58 Pelos atributos da iconografia, pode-se mensurar a relação entre Caridade como uma dimensão do amor (ágape). Essa palavra, do grego agapein, traduzida para o latim como Charitas, designa um amor quase inteiramente altruísta. Como aponta Josef Pieper, um amor que não busca ganhar a vida, mas ousa perdê-la e se opõe a toda motivação baseada no desejo de recompensa.59 Por isso, o amor da caridade cristã é essencialmente fraternal e, pelos afetos, tem a benevolência e a misericórdia como fim, mas pela virtude, tem a cristo com fim último e absoluto. Por isso, o pelicano se abdicaria do próprio sangue para dar às crias; o coração flamejante e o cuidado com as crianças seriam, antes de tudo, representações

56 Mateus, 22: 37-39.

57 LAPIDE, Cornelius. Commentarii in sacram scripturam. Melta: Ed. Typis Societatis Bibliographicae, 1846. 58 Cf. Dicionário de John Rider, Bibliotheca Scholastica (1589), Ágape tem como explicação Charitas, muito caridoso; dicionário de Claude Hollyband, A Dictionary French and English (1593), Benevolentia tem como explicação boa vontade. Ambos disponíveis pela base de dados Lexicons of Early Modern English. Também no dicionário de John Palsgrave, Lesclarcissement de la Langue Francoyse (1530): “Iay mercy ou compassion dune personne. Good lorde haue mercy vpon me: Mon dieu ayes mercy de moy.” Para testar se esses conceitos fazem sentido para a noção de Caridade implicada na gravura, pesquisamos suas entradas em dicionários quinhentistas. Ainda que sejam dicionários da língua inglesa e francesa, ajudam a compreender a historicidade do conceito que estamos abordando. 59 PIEPER, Josef. Faith, Hope, Love. São Francisco: Ed. Ignatiuss, 2011. p. 211. 38 de um amor que é, em essência, destinado ao outro, bem como a figura alegórica que não se destacaria em relação aos demais personagens da composição, indicando a simplicitas da vida daquele que tem a caridade como maior virtude.60

CHARITAS apresenta uma representação positiva da virtude, contudo, a complexidade e ambiguidade de aspectos iconográficos indiciários na composição nos permite sugerir a incidência de uma crítica social e político-religiosa por trás do que dita a esfera ideal na gravura. Próximo à assinatura BRVEGEL 1559, no primeiro plano da gravura, dois objetos chamam a atenção do expectador – um cinto e uma tigela vazia. No desenho criado por Pieter Bruegel, entretanto, haveria um terceiro objeto – um chicote de galhos, que foi retirado na gravura, possivelmente a pedido de Hieronymus Cock, talvez, por se tratar de uma alusão explícita à punição. A partir desses indícios, interessa dois pontos: o que Bruegel quis sugerir com a tigela e ferramentas de punição? Porque Hieronymus Cock (ou outro agente no processo de gravação e impressão) teria optado por retirar o chicote de galhos na impressão? É possível que Bruegel quisesse ironizar o tratamento com os pobres, cujos governantes, a igreja e os cidadãos se utilizavam mais de punições do que qualquer prática de misericórdia e caridade. Entendendo a dimensão que a crítica de Bruegel pudesse ter com a circulação das gravuras, Cock teria optado por retirar o chicote e suavizar a ironia. Por onde quer que passasse, a composição poderia ser bem recepcionada, seja pelo caráter espiritualista que buscava despertar, nas pessoas, a prática da virtude, ou pelas sutis críticas que fez às autoridades no que tange o tratamento com os pobres.

60 Entrada Lexicográfica para Simplicitas em Rafael Bluteau (1638-1734): “simplicidade. Sinceridade, animo singelo. Synceritas, ou simplicitas, atis. Fem. Ovid.§ Attributo Divino. He negação de composição, a qual denota independencia de partes constituentes, & por consequencia significa hum modo de ser perfeyto, com o qual tem o Ente toda a sua essencia, sem ajuntamento de cousa algüa, & numa entidade simplez, que he tudo o que he; & assim Deos he simplez, & simplicissimo, porque a sua essencia não he composta de muytos, mas he toda hüa, & por isso perfeytissima.” 39

II SPES (1559)

Tanto o desenho quanto gravura foram produzidos e publicadas em 1559, em Antuérpia. O desenho é traçado com pena e tinta marrom escura e possui dimensão de 22,4cm x 29,5cm. Assinado e datado no canto direito “BRVEGEL 1559” e no centro a inscrição “SPES”. Por outra mão, com tinta vermelha amarronzada, uma legenda em latim que diz “Iucundissima est spei persuasio et vite imprimis Necessaria inter tot aerommas peneq[ue] intolerabilis”.61

Figura 5 - Spes, segunda de sete gravuras de virtudes, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,8cm x 31,4cm e placa 22,3cm x 28,8cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque. A gravura foi produzida por Philip Galle pela técnica em intaglio e publicada por Hieronymus Cock em um único estado de impressão. A folha tem 24,8cm x 31,4cm, enquanto a placa possui 22,3cm x 28,8cm de dimensão. No canto inferior esquerdo, BRVEGEL INV, centralizado SPES e no canto inferior direito H. Cock excu. Na margem inferior, uma legenda em latim que diz:

IVCVNDISSIMA EST SPEI PERSVASIO, ET VITAE IMPRIMIS/ NECESSARIA, INTER TOT AERVMNAS PENEQ[EU] INTOLERABILIS

61 ORENSTEIN. op. cit. P. 184. 40

A CONVICÇÃO OU CRENÇA (PERSUASIO) QUE A ESPERANÇA NOS DÁ É MUITO MIMOSA E ESSENCIAL PARA UMA EXISTÊNCIA EM MEIO A TÃO INSUPORTÁVEIS AMEAÇAS 62

A gravura exibe a alegoria da Esperança, representada por uma mulher no centro da composição, entornada por atributos associados à sua iconografia: a âncora – expectativa de terra aos marinheiros -, a pá e a foice – esperança de uma boa colheita ao agricultor –, e a colmeia – expectativa de bom rendimento de mel. No entorno, um mar tempestuoso ameaça invadir a cidade. Os barcos naufragam e os homens, em alto mar, buscam se salvar segurando- se em objetos que encontram. Na cidade, homens e mulheres rezam e esperam pela calmaria. O contraste entre o ambiente marítimo e citadino cria um oposto complementar na composição – esperança e desespero. Contudo, a proposta da composição não se resolve apenas pela visualização do contraste diagonal da gravura, como também em elementos menores, em cada cena da composição, e no contraste horizontal, que separa os primeiros planos e o plano de fundo.

Partiremos da âncora, um atributo novo na iconografia da esperança. A ligação entre a virtude e a âncora é fundada pela epístola de Paulo aos Hebreus:

Esperança esta que seguramos qual âncora de nossa alma, firme e sólida, e que penetra até além do véu, no santuário / onde Jesus entrou por nós como precursor, Pontífice eterno.63 Mesmo marcada pela tradição bíblica, até meados do século XVI, a âncora não teria aparecido na iconografia da esperança. Luís Filipe Silvério Lima sugere que ela foi retratada pela primeira vez em um óleo de Lorenzo Leonbruno (1523-1525), conhecido por Alegoria da Fortuna. De acordo com o autor, nessa primeira aparição, a âncora teria assumido um caráter pagão e pessimista, assimilado pelas referências ao mundo clássico em que a fortuna joga dinheiro, cetros e mitras para os vícios, enquanto que para as poucas virtudes são jogados instrumentos carcerários.64 Em perspectiva cristã, a primeira aparição da âncora numa iconografia da esperança foi SPES, da série As sete virtudes. Ela parece indicar a espera (esperança) como um lugar seguro para a ação. Não se trata, contudo, de não agir, mas de crer

62 Tradução de Luís Filipe Silvério Lima, a partir de sua fala no Simpósio sobre Huizinga, Unicamp/Campinas, em 25 de setembro de 2019. p. 06.

63 Hebreus 6:17-20. 64 Luís F. Silvério Lima informa que o “óleo foi produzido entre os círculos cortesãos e humanistas de Mântua e inspirado ao que parece pelos textos de Luciano (Sobre a Calúnia, em torno de um episódio e de uma pintura de Apeles, cuja evocação talvez tenha sido motivada pela ascensão de seu competidor Giulio Romano em Mântua), tem uma referência no mundo clássico ao mesmo tempo que um tom pessimista, onde a fortuna joga dinheiro, cetros e mitras para os vícios e instrumentos carcerários para as poucas virtudes no quadro, à direita. A esperança, bem como o tempo saturnal só observam, do lado dos vícios.” Cf. Luís Filipe Silvério Lima, sobre sua fala no Simpósio sobre Huizinga, Unicamp/Campinas, em 25 de setembro de 2019. p.06. 41 na ação da providência de Deus. Essa primeira inclusão pode estar relacionada com a recepção dos textos bíblicos, que foram traduzidos, impressos e lidos ad fontes durante o século XVI nos Países Baixos. Desde a primeira aparição em SPES, a âncora foi incorporada aos atributos da iconografia da esperança, sendo reproduzidas de muitas formas para indicar a relação de esperança com o tempo.

A desordem na composição indica que a esperança é a virtude da confiança (fidúcia), pois quem confia, espera na providência, mesmo na turbulência e no caos. Nesse sentido, o programa visual catastrófico lembra o cristão da principal proposição do cristianismo em tempos difíceis: acreditar e esperar em Deus, tanto na vida terrena como na salvação. Essa dimensão é aparente nas demais cenas da composição. No primeiro plano, à direita da alegoria, três presos esperam por sua liberdade. A esperança está nas grades abertas da prisão, assim como o falcão encapuzado que pousa na janela, pois “quando retirado o seu capuz de falcoaria, tal qual o pássaro da gaiola, voaria livre”.65 No andar superior, duas pessoas penduram uma jarra na janela, esperando que a chuva possa encher o jarro. Os presos atam suas mãos, em sinal de oração. Esse gesto também alude a própria condição do prisioneiro, uma vez que o condenado poderia evitar penas mais duras adotando essa postura como sinal de obediência e arrependimento. No porto, em segundo plano, uma mulher grávida, como sugeriram Van Gelder e Borms, suplica a Deus com as mãos atadas.66 No cais, um homem que pesca com três varas no mar turbulento, espera as águas acalmarem para ter uma boa pescaria novamente. Mais adiante, um homem reza com as mãos atadas e o incêndio destrói uma construção. Um grupo de homens coopera para apagar o fogo, mas sem desespero. Um homem preso no telhado pede socorro e suplica a Deus por sua vida.

No ambiente marítimo, as águas turbulentas engolem os homens que naufragam nas naus. Eles buscam se agarrar nos restantes materiais dos barcos, mas se esquecem da oração. Estão desesperados com o presente, com suas vidas terrenas, mas se esquecem de esperar na providência. Enormes peixes no mar aguardam o naufrágio dos homens para atacá-los ao que parece tratar de uma alusão aos desígnios da providência, numa referência à história bíblica do profeta Jonas que, ao tentar escapar da incumbência divina de pregar em Nínive, foi lançado ao mar e engolido por um grande peixe.67 O desespero não é, contudo, generalizado. No primeiro

65 Ibidem. p. 05.

66 GELDER, J. G. van; BORMS, J. Brueghel's ņeven deugden en ņeven hoofdņonden. Amsterdam – Antuérpia, 1939. Apud BERGSTROM, I. “The Iconological Origins os “Spes” by Pieter Bruegel the Elder”. Nederlands Kunsthistorisch Jaarboek (NKJ) / Netherlands Yearbook for History of Art, vol. 7, 1956, p. 56. 67 LEXICON, Herder. op. cit., p. 31. 42 plano, um homem levanta as mãos ao céu e clama por sua salvação. Ainda que venha a perder sua vida no mar, ele espera em Deus pela justificação. O porto, muito próximo das naus, mostra a esperança por terra firme, mas os homens que se deixam levar pelo desespero não percebem o que tem a sua frente e caminham em direção ao mar profundo. Chegar em terra firme, como demonstra a composição, é ação para quem não deixa confiança abalar e perseveram em meio às adversidades, como os dois homens que conseguem chegar ao porto.

Numa reflexão proposta por Silvério Lima, a esperança se uniu aos símbolos da vida marítima, não apenas pela referência à âncora em Romanos, mas pela centralidade que a vida no mar tomou às comunidades dos Países Baixos, que sobreviviam do comércio marítimo durante o século XVI.68 Essa proposta é particularmente relevante, especialmente porque a associação da esperança aos símbolos marítimos teria aparecido em impressos anteriores, como no emblema “Spes próxima”, no Emblemata (1531), de Andrea Alciato e na xilogravura anterior, também chamada Spes, produzida em 1545 em Zurique, por Heinrich Vogtherr.

Figura 6 – Spes Proxima (1531), Emblematum liber, Augsburg, Heinrich Steyner, (primeira edição). Em Alciato at Glasgow.

Figura 7 – Spes (1545), desenho por Heinrich Vogtherr, impresso por Rudolph Wissenbach, 23.5 × 33.4 cm Gotha, Ducal Museum (Landesmuseum).

No caso de Vogtherr, a esperança apoia os pés sobre uma gaiola com um pássaro, carrega uma colmeia e uma pá nas mãos e equilibra um navio sobre a cabeça. I. Bergstrom identificou uma semelhança iconográfica entre SPES de Bruegel e Voghtherr em que, além dos símbolos tradicionais da ‘nova iconografia das virtudes’, incluíram os símbolos náuticos (com

68 LIMA, Luís Filipe Silvério. op. cit., p. 07. 43 exceção da âncora) e o preso que espera a liberdade.69 Contudo, segundo Silvério Lima, “a Esperança de Vogtherr, menos do que olhar para os céus em espera, está envolta pelos atributos e figuras de quem espera a salvação por meio de símbolos da vida terrena: como o preso que espera ser solto”.70 Pensando que Vogtherr teria se envolvido com os levantes anabatistas das décadas de 1520 e 1530, seria essa composição uma crítica à salvação por elementos terrenos e não pela fé? E que tipo de reflexão Bruegel estaria sugerindo ao incorporar os mesmos atributos iconográficos que vemos na gravura de Vogtherr? Há espaço para aprimorar essa investigação. A SPES de Bruegel parece qualificar a ação do preso e das pessoas que rezam para o céu como um gesto de esperança. Essa dimensão parece manter a fidúcia como um elemento da virtude; como quem espera pela providência, tanto para tranquilidade terrena como pela salvação da alma, no futuro.

Vemos essa mesma alusão no texto em latim, que acompanha a gravura: A CONVICÇÃO OU CRENÇA (PERSUASIO) QUE A ESPERANÇA NOS DÁ É MUITO MIMOSA E ESSENCIAL PARA UMA EXISTÊNCIA EM MEIO A TÃO INSUPORTÁVEIS AMEAÇAS. Silvério Lima identificou a origem da legenda como um trecho do livro De Anima et Vita, de Juan Luis Vives.71 O trecho, contudo, revela um aspecto importante para interpretar a composição, pois Vives não se referia aqui à esperança como virtude teológica, mas a ela como paixão anímica. Segundo Silvério Lima, neste livro de 1538, Vives estabeleceu a relação da alma com a vida a partir do princípio organizativo e de movimento, que está em Aristóteles, e também como substância imortal e imaterial, que se vê em Platão.72 Menos que desenvolver a esperança como virtude, Vives propôs pensá-la a despeito dos ânimos da alma, talvez, traçando as paixões como um movimento importante para manter-se firme diante das adversidades. A incorporação do trecho na composição reúne virtude teologal aos afetos e oferece a pista de interpretarmos essa composição não apenas a despeito da salvação, como a virtude indicaria, mas em relação à vita activa, cotidiana, que pede ao cristão que se mantenha firme diante das turbulências.

Por isso, o oposto complementar da composição indica a contraposição entre esperança e desespero. Não apenas nas cenas menores – entre sujeitos esperançosos e desesperados, mas no contraste diagonal – entre mar tempestuoso e cidade. São nas tribulações que o cristão é testado, em sua paciência, a esperar por algo melhor, como sugere a carta de Paulo aos

69 BERGSTROM.

70 LIMA, Luís F. Silvério. Comunicação sobre Esperança apresentada no Simpósio Huizinga e a Modernidade, em setembro de 2019.

71 De Anima et Vita (1538), lib. III, cap. IX (“De Spe”). 72 LIMA, Luís Filipe. op. cit. p.07 44

Romanos: “Não só isso, mas nos gloriamos até das tribulações. Pois sabemos que a tribulação produz a paciência. A paciência prova a fidelidade e a fidelidade, comprovada, produz a esperança. E a esperança não engana. Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. 73

As referências, na composição, indicam que o afeto e a virtude da esperança deveriam ser entendidos na vida humana, no cotidiano da cidade, no campo e no mar. Mas tais alusões não seriam sem propósito, pelo contrário, estão enraizadas nos eventos que sacudiam os Países Baixos e abriam um campo de incertezas e desespero. As descobertas do Novo Mundo, os conflitos religiosos; um mundo praticamente invertido na esteira do que se propunha como a verdadeira prática da devoção. A solução que aparece na gravura está na oposição entre os primeiros planos e o plano de fundo, que é emblematicamente interessante. O campo e o mar calmo contrastam com o cenário caótico. Os camponeses seguem arando o campo, como na pintura a óleo de Bruegel, A paisagem com a queda de Ícaro (1558) e, ainda que as árvores estejam secas, o trabalho continua sendo feito. Assim também acontece no mar, onde as naus não naufragam. E quanto mais distante, mais calmo parece ser o cenário. A composição indica que é preciso seguir com esperança, por mais turbulenta que seja a vida, pois o refrigério da alma só vem com a salvação.

III FIDES (1559)

Tanto o desenho como a gravura foram produzidos e publicados em 1559. Essa foi a terceira composição e última representação das virtudes teologais. O desenho foi feito com tinta marrom escura, por Pieter Bruegel, e possui dimensão de 22,5cm x 29,5cm. No canto inferior direito, assinado e datado BRVEGEL 1559, no centro, FIDES e, na cruz, INRI. Por outra mão, na margem inferior, “fides máxime a nobis conseruanda est praecipue in religionem, quia deus prior et potentior est quam homo”.74 A gravura foi produzida por Philip Galle, em intaglio, e publicada por Hieronymus Cock em dois estados. O fólio tem 24,2 cm x 30,2 cm, enquanto a placa tem 22,3cm x 28,7cm. No canto inferior direito, a assinatura Bruegel Inu, no centro FIDES e no canto esquerdo Cock exe. Na cruz, INRI e na margem inferior, uma inscrição em latim:

73 Rom, 5: 3-5. 74 ORENSTEIN. op. cit. p.178. 45

FIDES MAXIMÈ Á NOBIS CONSERVANDA EST PRAECIPVE IN RELIGIONEM, QVIA DEVS PRIOR ET POTENTIOR EST QVAM HOMO.

DEVEMOS MANTER A FÉ ACIMA DE TUDO, PRINCIPALMENTE NA RELIGIÃO, POIS DEUS VEM ANTES DE TODOS E É MAIS PODEROSO QUE O HOMEM.75

Figura 8 – Fides (1559), terceira de sete gravuras de virtude, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,2 cm x 30,2 cm e placa 22,3cm x 28,7 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque. A gravura exibe a alegoria de fé, representada por uma mulher com vestes de religiosa, como se fosse uma freira, no interior de uma igreja, que carrega as tábuas das leis de Moisés sobre a cabeça e as Escrituras nas mãos, sobre a qual pousa uma pomba com auréola. Ambos elementos indicam a importância do Antigo e Novo Testamento, revelado aos homens pelo Espírito Santo. A freira está sobre uma cripta aberta, rodeada de objetos que nos lembram a passagem de Cristo pelo mundo, relatada em episódios no Novo Testamento. Os três vasilhames com ouro, incenso e mirra, à direita recordam o nascimento de Cristo e os presentes que recebeu dos reis magos.76 Mais adiante, um vasilhame empratado recorda a história da mulher, Maria de Betânia, que ungiu os pés de Cristo com perfume e teve seus pecados perdoados.77 À

75 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem. p. 179.

76 Mateus 2:1-16. 77 E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei em tua casa, e não me destes água para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e os enxugou com os cabelos de sua cabeça. Não me deste ósculo, 46 esquerda, as moedas da traição de Judas e a espada com a orelha de Malco, golpeada por Pedro, trazem a ambiguidade moral que existe no humano – traição e lealdade –, mesmo entre aqueles que foram escolhidos como apóstolos. O galo, à esquerda, recorda a passagem bíblica, a qual Pedro negou Cristo por três vezes, antes do galo cantar. A lamparina, ao lado, recorda que Cristo é a luz do mundo, como na passagem de João 8:12, “O Senhor Jesus disse: Eu sou a luz do mundo; quem me segue de modo algum andará em trevas, mas terá a luz da vida.”

Contudo, o que se destaca, no primeiro plano, são os atributos da paixão e ressurreição. Ferramentas do martírio e da crucificação de Jesus preenchem o cenário que está a alegoria – o chicote de galhos, o martelo e os pregos que pregaram as mãos e os pés de Cristo, a cruz, também exposta com a inscrição INRI, a coroa de espinhos, a escada com a qual foi retirado seu corpo, a lança que perfurou suas costelas e a esponja com vinagre. O santo sudário com a face de Cristo, a cruz vazia e a cripta aberta apenas com a túnica são atributos que lembram a todos do sacrifício e ressureição.78 Os elementos da paixão e ressurreição ressaltam um ponto de inflexão de um debate que estava instaurado nas décadas de 1550 e 1560 sobre o tema da justificação pela fé ou por obras.

Durante a década de 1550, inúmeras cidades livres e Igrejas territoriais produziram documentos confessionais que, ainda que não fossem amplamente disseminados ao público, informam que o debate sobre salvação e eleição foi central nas esferas da vida civil e religiosa. Não apenas pelas confissões oficiais, catolicismo e luteranismo, como também campos religiosos extraoficiais, como era o próprio calvinismo à época, que esteve disseminado nas práticas religiosas dos Países Baixos. A Confissão Galicana (1559), cujo principal autor foi Calvino, apresentava a Igreja reformada da França. Essa mesma confissão teria, segundo Rodrigues, inspirado a Confissão Belga (1561), escrita por Guido de Brès para os fiéis calvinistas que estavam dispersos por toda parte nos Países Baixos.79 No que diz respeito ao tema da salvação, a Confissão Belga dizia

mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com ungüento. Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama. E disse-lhe a ela: Os teus pecados te são perdoados. E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados? E disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz. Lucas, 7:44-50.

78 Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. João 3:16 Ele foi entregue à morte para pagar todos os nossos pecados e ressuscitado para nossa completa justificação. O justificado tem Paz com Deus. Romanos 4:25. 79 Cf., SCHAFF, Philip. Creeds of Christendom, with a History and Critical Notes. vol. I. The History of Creeds. New York: Harper and Brothers, 1877. pp. 377-374 47

Finalmente, cremos conforme a palavra de Deus que, quando chegar o momento determinado pelo Senhor - o qual todas as criaturas desconhecem -, e o número dos eleitos estiver completo, nosso Senhor Jesus Cristo virá do céu, corporal e visivelmente, assim como subiu ao céu (Atos 1:11), com grande glória e majestade. Ele se manifestará Juiz sobre vivos e mortos, enquanto porá em fogo e chamas neste velho mundo para purificá-lo.80 O texto, enunciado na Confissão Belga, contrariava a doutrina do catolicismo cristão, como escrito e reafirmado no 6° sessão do Concílio de Trento, cap. III, “Mas ainda que elle morreo (1) por todos, com tudo nem todos recebem o beneficio da sua morte; mas sómente aqueles, a quem se communica o merecimento da sua Paixaõ”.81

A salvação foi, de fato, o principal debate pelo qual se diferenciavam as múltiplas confissões que estavam se firmando no século XVI. A alusão confessional explicita no programa visual de FIDES demonstra como o tema da fé dividia a Cristandade em muitas doutrinas e, certamente, tais referências eram explícitas aos olhos da audiência. Diante de um debate que foi intenso à época, a gravura serviu como um posicionamento dos impressores sobre os temas da fé e da salvação, ainda que de forma muito sutil. Para tentarmos chegar a uma interpretação, a análise da composição deve considerar as cenas representadas singularmente, bem como a oposição visual vertical, que contrapõe os dois campos separados pela coluna central, e a oposição horizontal, que contrapõe o primeiro plano aos demais.

As cenas que ocupam os planos seguintes da composição apresentam uma série de ritos confessionais, relacionados a alguns dos sacramentos católicos e mantidos pelo luteranismo. À direita, uma multidão celebra um casamento (o matrimônio); mais adiante, homens e mulheres recebem a comunhão (eucaristia); na extremidade, uma criança é batizada (batismo) e, no fundo da composição, um homem confessa seus pecados ao padre (reconciliação). A composição é dividida por uma coluna centralizada, um dos pilares da igreja que apoia a cruz, e exibe uma profunda rachadura no meio. No campo oposto, à esquerda, um pregador realiza um sermão a uma multidão e, mais adiante, um sacerdote faz a transubstanciação no ato de consagração na

80 “Finally we believe, according to God’s Word, that when the time appointed by the Lord is come (which is unknown to all creatures) and the number of the elect is complete, our Lord Jesus Christ will come from heaven, bodily and visibly, as he ascended, with great glory and majesty, to declare himself the judge of the living and the dead. He will burn this old world, in fire and flame, in order to cleanse it”. [Tradução Livre] ______. The Belgic Confession, Artigo 37: The Last Judgment. Disponível em: < BelgicConfession.pdf (crcna.org)>.

81 O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento em latim, e portuguez. Lisboa: Na Officina Patriarc. De Francisco Luiz Maneo, 1783, t. I, pp. 99, (6° sessão, cap. 7). 48 missa (ordem). O ambiente da igreja, que enquadra a composição, é ornamentado por santos, quadros e objetos sacros.

Nas cenas singulares da composição, Bruegel enfatizou o modo como homens e mulheres praticavam os ritos sacramentais e se comportavam diante do sermão. Um dos homens, que se prepara para receber a eucaristia, olha fixamente para cruz e o sudário. Ele parece internalizar o sentido da comunhão, pois está ali para receber o sacrifício do corpo de Cristo, que foi crucificado. No sermão, pelo contrário, ainda que haja homens e mulheres atentos à pregação, na extremidade esquerda, um homem boceja, desinteressado pelo que fala o pregador. Outros sujeitos se camuflam atrás das colunas e, mesmo no interior da igreja, não participam de nenhum ritual sagrado e, mais do que isso, parecem não se preparar para uma vida de devoção. Próximo ao púlpito, um monge dá de costas ao pregador para ler um livro, talvez a Bíblia. Parece que sua ação só se justifica por antepor as Escrituras em prioridade. Na extremidade direita da composição, alguns homens presentes na cerimônia do casamento, se distraem com um galo, que está apoiado sobre uma coluna no primeiro plano. Essa cena é uma das mais emblemáticas da gravura, pois a representação do galo parece indicar um duplo significado para o conjunto da composição.

A representação do galo apoiado na coluna advém de uma tradição iconográfica milenar, de origem greco-romana e posteriormente adaptada ao cristianismo. Conforme apresentou S. A. Callisen, a primeira alusão ao galo sobre a coluna esteve em ânforas panatenaicas, usualmente apresentadas como prêmios aos vencedores dos jogos realizados durante o verão em Atenas. Em seguida, a tradição cristã passou a representá-lo como uma alusão a Pedro, na cena em que Cristo anuncia que seu discípulo o negará três vezes antes do canto do galo. Essa adaptação cristã aparece em sarcófagos, como o que esteve no Museu de Latrão (n.174, placa 121),82 bem como num objeto de marfim, presente no Museu Arqueológico Nacional de Florença. Para o autor, a representação do galo pode estar associada à figura de Pedro como ‘ideal penitente’, isto é, uma pessoa que teria se arrependido após ter cometido um dos maiores pecados possíveis.83 Certamente, disposto no primeiro plano, o galo parece aludir à conhecida tradição iconográfica associada a Pedro e sua natureza humana.

82 O Museu de Latão tornou-se inativo em 1970. As referências que Callinsen menciona sobre os sarcófagos não indicam as datas dos objetos, mas sua localização no antigo museu. 83 Callinsen apresenta uma série de objetos que carregam a representação do galo sobre a coluna. Para mais informações, Cf., CALLINSEN, S. A. “The Iconography of the Cock on the Column”. In.: The Art Bulletin, vol. 21, n.2, 1939. pp. 160-178. 49

Em desenhos e pinturas de Bruegel, entretanto, o galo também simboliza a luxuria e desejos carnais, como aparece em LVXVRIA, da série Os sete pecados capitais (1556-1558) e em FORTITVDO, desta série de virtudes. Nesse caso, Bruegel parece ter construído uma segunda referência ao galo, uma vez que os homens que estão na cerimônia do matrimônio deixam-se distrair pelo animal. A admoestação é, então, direcionada às práticas puramente visíveis, na medida em que estes sujeitos experienciam o casamento (seja pela cerimônia ou pela vivência sacramental), mas são luxuriosos e adúlteros em seu interior.

A respeito da alegoria, a composição se distancia da representação iconográfica da Fé, que vigorou até o começo do quinhentos. Essa tradição, advinda da iconografia das virtudes do século XV, representou a alegoria carregando um cálice e uma hóstia, como aparece nas gravuras de Hans Burgkmair, Der Glaube (1510); Lucas Van Leyden, Fidez (1530) e Hans Sebald Beham, Fides (1539). Em FIDES, por outro lado, a figura alegórica carrega as Escrituras e se reveste de cenas que remetem a vida de Cristo. Talvez, essa nova forma de representar possa ser pensada a despeito do que sugere o programa visual quando se contrapõe o primeiro plano às demais cenas da composição. Trata-se de uma noção de fé como virtude e prática. Nesse caso, especialmente desvinculada de uma superficialidade dos sacramentos, mas vivificada no interior de uma vida cívica e religiosa.

Figura 10 – Fidez (1530), uma entre Figura 11 – Fides (1539), uma entre sete Figura 9 – Der Glavb (1510), uma gravuras de virtude. Desenho, plava e entre as sete gravuras de virtude, sete gravuras de virtude, Leiden. Desenho, placa e impressão por Lucas impressão por Hans Sebald Beham. Augsburgo. Desenho, placa e Frankfurt am Main. Rijsmuseum, van Leyden. Rijksmuseum, Amsterdam. impressão por Hans Burgkmair.. Amasterdam. Rijksmuseum, Amsterdam. 50

Estamos diante de um exemplar erasmiano de fé? Certamente, trata-se de uma das composições mais sugestivas da série quanto a isso. O axioma apresenta a verdadeira fé como o viver semelhante a Cristo, um fundamento que foi central em Erasmo e desenvolvido em Enchiridion. Segundo Rodrigues, a preeminência de Cristo na vida espiritual constituiu o coração da fé para Erasmo, “sem a qual ela degenera em mera devoção exterior”.84 O programa visual não condena os sacramentos e nem mesmo os ornamentos sacros no interior da Igreja, contudo, chama a atenção para o que é central – uma vida de verdadeira devoção que tem a Cristo como exemplo, moral e ensinamento.

Há, por fim, um último elemento que merece ser destacado, o qual diz respeito à religião. A legenda em latim, na margem inferior da composição, enfatiza: “DEVEMOS MANTER A FÉ ACIMA DE TUDO, PRINCIPALMENTE NA RELIGIÃO, POIS DEUS VEM ANTES DE TODOS E É MAIS PODEROSO QUE O HOMEM”. A ênfase está na fé como um elemento não apenas relacionado à prática espiritual, mas como uma dimensão importante da religião que, como mencionamos acima, foi central para as dinâmicas confessionais e constituiu-se como um divisor de águas para a formação de novos campos religiosos. A legenda instrui pela solidez da fé, uma vez que a unidade da Igreja e da Cristandade teria sido rompida com a estruturação dogmática dos novos grupos religiosos. Visualmente, a referência à divisão no interior da Cristandade se vê pela coluna central, com uma rachadura que toma do topo à cruz. É possível que os conflitos confessionais tenham sido tão intensos à época que produziram incertezas quanto à conservação da Igreja e da religião cristã.

O que parece haver nessa composição é a defesa da condescendência religiosa, um elemento que Rodrigues aponta como essencial em Erasmo; um estado temporário que pudesse levar, novamente, a Igreja para uma possível restauração da concórdia cristã.85 A condescendência parece estar direcionada ao catolicismo e luteranismo confessional, uma vez que os elementos do sacramento e do sermão (mesmo com divergências) aproximavam ambas confissões. Se, na composição, os sacramentos e o sermão são secundários em relação à vida em Cristo, eles também são secundários em relação ao que se pretendia informar como a verdadeira fé. FIDES traz à tona as práticas de devoção interior como mais essenciais à fé do que os conjuntos dos dogmas que dividem a Igreja de Cristo.

84 RODRIGUES, Rui. op. cit., p. 52. 85 Ibidem., p.479. 51

IV PRVDENTIA (1559)

Tanto o desenho como a gravura foram criados e publicados em 1559 e compõe a quarta composição de As sete virtudes, primeira dentre as virtudes cardeais. O desenho foi criado por Pieter Bruegel, com pena e tinta marrom escura e possui dimensão de 22,5cm x 29,8cm. No canto esquerdo inferior, assinado e datado como BRVEGEL 1559, e no centro PRVDENCIA. Por outra mão, uma legenda em latim na margem inferior, que diz “Si prudens esse cupis in futurum prospectum in ostende et quae possunt contingere animo tuo cuncta propone”.86 A gravura, gravada por Philip Galle, em intaglio, foi publicada por Hieronymus Cock em duas edições. A folha tem dimensão de 26,1cm x 33,5cm, enquanto a placa tem 22cm x 29,5cm. No canto inferior direito, assinado Bruegel inuentor; no centro PRUDENTIA e, no canto inferior esquerdo H. Cock excu. Na margem, uma legenda em latim que diz

SE PRVDENS ESSE CVPIS, IN FVTVRVM PROSPECTVM IN OSTENDE, ET/QVAE POSSVNT CONTINGERE, ANIMO TVO CVNCTA PROPONE

SE VOCÊ DESEJA SER PRUDENTE, PENSE SEMPRE NO FUTURO E TENHA TUDO EM MENTE.87

Figura 12 – Prvdentia (1559), quarta de sete gravuras de virtude, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26,1 cm x 33,5 cm e placa 22cm x 29,5 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque.

86 ORENSTEIN. op. cit., p. 182.

87 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem. p. 183 52

Trata-se da composição mais laboriosa da série As sete virtudes, em que tanto a alegoria como as cenas representadas aludem à relação entre prudência com ênfase em tarefas de trabalho cotidiano. Os atributos da alegoria incluem símbolos que indicam uma previsão judiciosa do espaço e do tempo. A mulher, no centro da composição, segura na mão esquerda um espelho, significando o autoconhecimento que, para a cultura visual da época moderna significava a capacidade de refletir a realidade formal do mundo visível, sendo um instrumento de autorreflexão e, ao mesmo tempo, reflexo do universo.88 Em Iconologia, de Cesare Ripa, o espelhamento se projeta como o caminho da cognição, uma vez que ninguém pode regular suas ações se seus defeitos são desconhecidos.89 Com a mão direita, a alegoria carrega um caixão longo e esguio, que propõe a reflexão sobre a inevitável morte que aguarda todos os homens. Conforme apresenta Cesare Ripa, o caixão “designa a necessidade de olhar para o fim e o sucesso das coisas, uma filosofia da meditação contínua da morte, a reflexão sobre a própria miséria”.90 Ladeando a alegoria, uma série de instrumentos remetem ao trabalho doméstico, no campo e no mar. Uma peneira sobre a cabeça indica a necessidade de separar o bem e o mau, a verdade e a mentira. Peneirar é purificar e aperfeiçoar, ganhar o útil e descartar o inútil. Prudência apoia-se sobre uma escada, entornada de baldes, mangueira, anzol, e instrumentos de arado – informando as tarefas e o trabalho como ações prudentes.

As cenas menores informam, igualmente, a valorização da prudência por tarefas laboriosas. À esquerda, três mulheres salgam a carne e fazem o pré-preparo do alimento. A criança, à frente, guarda uma moeda em um cofre, enquanto dois homens carregam sacos de batata para dentro de uma casa, onde um enorme porco disseca. Um homem se ocupa de iluminar o caminho para a boa execução da tarefa. À direita da alegoria, uma mulher apaga o fogo embaixo de uma caldeira, enquanto, acima, na composição, um médico dá o diagnóstico a um homem doente, próximo da morte, que recebe a extrema unção do padre. Na cena ao lado, homens se antecipam ao guardar dinheiro em um baú, enquanto outros recolhem lenha para encher o celeiro. Na janela, cinco vasilhas de conserva guardam o alimento futuro, cada uma ao seu formato, para que se utilize a que mais se adéque à necessidade. Um cachorro, mais adiante na composição, se refugia em um tronco de árvore. Com um significado simbólico na iconografia, o cachorro é o cão pastor, que tem a função de vigiar e conduzir o rebanho, também aludindo à prudência como a virtude que dimensiona razão e ação.91 No plano de fundo, três

88 CIRLOT. J. E. A Dictory of Symbols. Londres: Routledge, 2001. P.211 89 RIPA, op. cit., p. 535. 90 Ibidem. p. 535. 91 CIRLOT. op. cit. p. 84. 53 homens trabalham para reformar uma casa em ruínas e, atrás, camponeses seguem arando o campo. Barcos, transportando mercadorias, atravessam um canal que divide a cidade, possivelmente empenhados para o comércio local. Do mesmo modo, ao fundo da composição, homens trabalham para reformar uma igreja.

Essa é uma das poucas composições da série que não tem uma clara divisão de planos, pelo contrário, com exceção da justaposição da alegoria, todas as cenas são diluídas no cenário, criando a perspectiva de um espaço civil circular e judiciosamente medido. A própria paisagem indica um ambiente harmonioso e aprazível à convivência. Há uma perspectiva positiva e propositiva sobre a virtude, que deveria dimensionar todas as ações da vida pelo uso da razão.

PRVDENTIA se distingue da forma tradicional da representação, caracterizada, até meados do século XVI, pela figura alegórica sozinha, que segura uma serpente ou um peixe rêmora. Assim aparece nas representações de Hans Burgkmair, Die Firsichtikait (1510) e Cornelis Massijs, Prvdencia (1550), ambas publicadas e difundidas em regiões do Sacro Império e Países Baixos. O que teria intencionado os produtores da gravura a ressignificar a representação da virtude, incorporando novos elementos à alegoria e diluindo-a em meio às cenas cotidianas?

Figura 13 - Die Firsichtikait (1510), Figura 14 – Prvdencia (1550), uma entre sete uma entre sete gravuras de virtude, gravuras de virtude, Flandres. Desenho, placa Augsburgo. Desenho, placa e e impressão por Cornelis Massijs. British impressão por Hans Burgkmair. Museum, Londres. Rijksmuseum, Amsterdam.

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Talvez, um primeiro elemento que podemos indicar, esteja na relação importante que pretenderam emitir entre juízo e tempo, manifestada externamente pela execução de tarefas cotidianas e da concórdia na cidade. O sujeito prudente é capaz de sobrepor os tempos – passado, presente e futuro – e, mais do que isso, realiza essa ação de modo consciente para o agir no âmbito da sociedade. É o que informa a legenda que acompanha a imagem: SE VOCÊ DESEJA SER PRUDENTE, PENSE SEMPRE NO FUTURO E TENHA TUDO EM MENTE.

Ainda que tanto a legenda como a composição omitam a dimensão com o passado, a ligação com o extrato do tempo se manifestaria, na gravura, pela ação dos personagens, os quais, reconhecendo vivências passadas de ações mais ou menos prudentes, fazem uso do juízo para agir no presente e se antecipar a despeito da necessidade futura. Com isso, os impressores parecem trazer em perspectiva a tópica ciceroniana da historia magistra vitae, bem conhecida em sociedades cristãs europeias pela circulação de gêneros literários de Espelhos de Príncipe. Adaptada à Cristandade, a tópica ciceroniana se fundiu com o esquema linear de conjecturas bíblicas, sem deixar de incluir, como sugere Koselleck, “os limites dentro dos quais é possível deixar-se instruir para o futuro a partir do passado”.92

Não aprofundaremos sobre esse aspecto propriamente, embora seja pertinente aos horizontes de uma reflexão futura. O que nos interessa, contudo, é sugerir que a perspectiva positiva e propositiva de PRVDENTIA estaria na capacidade pedagógica e exemplar pela qual essa gravura foi construída e endereçada. Associando experiências passadas às ações presentes, a incumbência de homens e mulheres prudentes consistiria em antecipar-se no juízo e no exercício cívico para antever qualquer adversidade futura, ainda que submetidas à providência divina. A representação ressaltou menos atividades nobiliárias e mais tarefas cotidianas, executada por camponeses e pelo público vulgar, como genuínos exemplos de virtude. O empenho foi para que homens e mulheres vissem, a partir de seus afazeres diários, os modelos de virtude; ao passo que indicavam a prática da virtude na vida camponesa em detrimento de elementos nobiliários e suntuosos.

Embora trazendo à tona a importância da prudência para as tarefas diárias, a composição parece revelar uma profunda ênfase religiosa, em que tudo que é terreno torna-se efêmero e padece diante da vida celestial. O caixão, as moedas, o espelho e os animais mortos lembram a ação do tempo e a brevidade da vida, como no estilo de natureza morta, que começava a se

92 Segundo Reinhart Koselleck, o círculo de influência de Cicero perdura até a experiência histórica cristã. Não raro, foi catalogado em bibliotecas de mosteiros, como coletânea de exemplos, sendo amplamente disseminados. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contraponto, 2007. p.44 55 tornar comum em pinturas neerlandesas do século XVI. Ainda que PRVDENTIA não seja uma típica representação desse gênero pictórico, coloca-se a reflexão sobre a medida do equilíbrio entre vida terrena e espiritual, como na alusão iconográfica que Bruegel faz a um possível provérbio neerlandês, representado pela colher equilibrada numa vasilha de farinha na extremidade esquerda da composição, que pode indicar cautela para não edificar a prudência essencialmente em coisas frágeis. Do mesmo modo, as alusões de uma reforma material da igreja, no fundo da composição, trazem, simbolicamente, a reflexão sobre qual tipo de reforma religiosa deveria ser levada pelos anseios de mudança espiritual e dogmática. Coloca-se, na esfera da prudência, a possibilidade de reflexão, a partir da razão, acerca das transformações religiosas e de uma espiritualidade cívica cultivada.

V IVSTICIA (1559)

IVSTITIA foi a quinta composição desenhada e publicada no conjunto da série de virtudes, em 1559. Pieter Bruegel desenhou com pena e tinta marrom, numa folha avulsa, com dimensão de 22,4cm x 29,5cm. Na tribuna, uma inscrição IVSTICIA e na extremidade inferior esquerda 1559 BRVEGEL. Na margem inferior, uma legenda em latim, que diz: “Scopus legis est aut ut eum quem punit emendet aut poena eius caeteros meliores reddet aut sublatis malis ceteri / securiores vivant”.93 A gravura da composição não possui nenhuma assinatura ou datação. Ela foi grava por Philip Galle, em intaglio, e publicada por Hieronymus Cock, em folha avulsa, em um único estado de impressão. A folha possui dimensão de 26cm x 33,5 cm, enquanto a placa tem 22,5cm x 29cm. Sabe-se que houve outra edição de Lebeer II (de II). O papel da impressão carrega uma marca d'água de ‘veado’ completo no canto inferior esquerdo, bem como a inscrição latina:

SCOPVS LEGIS EST, AVT EV[M] QVE[M] PVNIT EMENDET, AVT POENA/EIVS CAETEROS MELIORES REDDET AVT SVBLATIS MALIS CAETERI SECVRIORES VIVA[N]T.

O OBJETIVO DA LEI É OU EMENDAR AQUELE QUE É PUNIDO, OU MELHORAR OUTROS COM SEU CASTIGO, OU DEIXAR MAIS SEGURA A VIDA DOS OUTROS ATRAVÉS DA DESTRUIÇÃO DO MAL.94

93 ORENSTEIN. op. cit., p. 186. 94 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem., p. 187. Com a sugestão de Rui Rodrigues [EMENDET AVT] para [EMENDAR AQUELE QUE É PUNIDO]. 56

Figura 15 – Ivsticia (1559), quinta de sete gravuras de virtude, Antuérpia. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26 cm x 33,5 cm e placa 22,5cm x 29cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque. IVSTICIA é, a nosso ver, a gravura mais emblemática da séria de virtudes e, também, a que encontramos maiores dificuldades para apontarmos direções sobre o programa visual. Pensar o cenário iconográfico carregado de punições junto de uma legenda que instrui para a prática da justiça não foi apenas uma dificuldade dessa pesquisa, como se ancora na bibliografia que estudou essa gravura. Segundo Gerd Schwerhoff (2018), as análises de IVSTICIA apoiam- se em três linhas interpretativas: primeiro, uma vertente que descreve a imagem como um exemplar onde a justiça é aplicada, compondo a verdadeira alegoria da virtude, um atributo positivo;95 segundo, uma vertente que situa a interpretação da iconografia como alusão a um ‘mundo de ponta-cabeça’, onde se destacam as fraquezas humanas em detrimento da justiça;96 e, por último, uma linha que compreende a composição como satírica, uma crítica ao domínio da casa Habsburga sobre as formas mais brutais de ação da Inquisição católica nos Países Baixos.97 Em sua pesquisa, Schwerhoff propõe uma análise da composição a partir das suposições levantadas a despeito de uma crítica à justiça e à Inquisição. Como conclusão, aponta para três possibilidades: que IVSTITIA pode ser lida como uma representação crítica da

95 Nessa linha, destacam-se as pesquisas de Axel Romdahl (1905), Carl Gustav Stridbeck (1956) e historiadores jurídicos que interpretam a justiça como uma afirmação da validade da justiça criminal institucionalizada. 96 Os trabalhos de Charles de Tolnay (1925) e Ludwing Munz (1961) dão enfoque ao cenário negativo que rodeia a virtude. 97 Encontra-se ancorada na interpretação de Jürgen Müller, relatados em catálogos de exposição do Metropolitan Museum (2001) e Kunstsammlungen Chemnitz (2014). 57 justiça criminal contemporânea; que essa crítica esteve dirigida à perseguição religiosa que ocorreu no ambiente neerlandês em 1560 e que a imagem de Bruegel pode ser entendida como anátema pictórico dessa instituição.98

Seria possível questionarmos até que ponto Bruegel (e os demais impressores) podem ser lidos como críticos da Inquisição, bem como se essa composição estabelece uma relação com a justiça criminal coetânea. Não pretendemos desenvolver essas duas discussões, mas apontar para uma das hipóteses levantadas pelo autor, a qual compartilhamos para análise e interpretação dessa gravura: é sugestivo que essa composição manifesta uma perspectiva sobre as perseguições religiosas que ocorreram durante as décadas de 1550 e 1560.

A alegoria de justiça está em pé, sob uma tribuna situada no pátio externo de um prédio. Ela usa uma venda nos olhos, segura uma balança na mão direita e uma espada na esquerda. Em frente à tribuna, uma ferramenta de tortura se destaca no chão. Muitas cenas de tortura e punição tomam os demais planos da composição. No primeiro plano, um homem está deitado sobre uma tábua de madeira. Ele é amarrado pelas mãos e pés, enquanto seu corpo é esticado e contorcido por um assistente. Próximo de sua cabeça, uma vela é colocada para que ele sinta o calor do fogo, ao passo que dois homens derramam o líquido de uma jarra em um funil colocado em sua boca. Completando o quadrante da tortura, um terceiro segura uma tocha acesa, que goteja óleo quente nas pernas do acusado. Um pouco mais atrás, o magistrado, carregando uma vara de espinhos na mão, narra algumas palavras, talvez da condenação, ao escriba, que transcreve no livro. Essa cena, embora brutal, não desperta a atenção da multidão; apenas o homem que segura o balde parece se comover. Os dois escribas, localizados na extremidade oposta, parecem garantir e relatar a execução da cena.

Num segundo quadrante, uma cena de julgamento público acontece, para qual foi preparada a mesa da cerimônia. Um juiz, que carrega uma vara de espinhos na mão, lê a sentença para dois réus, enquanto um escriba registra os protocolos do julgamento no livro. Um dos acusados segura um crucifixo na mão, talvez porque queira ou seja obrigado a fazer um

98 Nas palavras de Schwerhoff, “To sum up. First, Bruegel’s Justitia can not only be read as a representation of contemporary criminal justice but also with some certainty as a criticism of contemporary legal practices. Secondly, it is highly probable that this critique was specifically directed towards the actual religious persecution taking place in the Netherlands around 1560, which was extraordinarily severe when compared to the rest of Europe. Thirdly, given that contemporary discourse was increasingly seasoned with polemics and commentary targeting ‘the Inquisition,’ Bruegel’s image can plausibly be understood as a pictorial anathema of that institution.” SCHWERHOFF, Gerd. “Virtue or Tyranny? Pieter Bruegel, Justitia, and the Myth of the Inquisition”. In.: Hans van Ruler (org.), Pieter Bruegel the Elder and Religion. Leiden; Boston: Brill’s Studies in Intellectual History, vol.27, 2018. pp. 109-110. 58 juramento e, ao redor de seu corpo e braços, é amarrado por uma corda, presa pelo meirinho armado logo atrás. Magistrados e leigos assistem ao julgamento. Enquanto alguns se comovem pela sentença, outros parecem não se sensibilizar. Dois homens parados atrás da cena do julgamento dão de costas às práticas de tortura, enquanto conversam entre si, e um terceiro tem o rosto ocultado pela construção ao lado. Na cena, três homens se destacam pela feição de pavor com que presenciam o julgamento, um deles olha diretamente ao expectador para fixar a percepção da atroz sentença. Num terceiro quadrante, no canto inferior direito da alegoria, uma decapitação está para ocorrer. O executor ergue a espada, enquanto agarra o cabelo do condenado, que está segurando uma cruz com as duas mãos. Poucas pessoas assistem à cena, mas um homem abre a boca com espanto pela execução, enquanto o padre profere a extrema unção. Mais atrás, um homem seminu é acorrentado a um poste, sendo espancado por um carrasco empunhando um chicote de galhos. A multidão observa espantada o homem flagelado. À direita, outro condenado é suspenso pelos braços e pés, enquanto cinco magistrados orientam a execução sem transparecer compaixão.

No prédio, um homem tem a mão decepada, (talvez por cometer um crime de roubo?), enquanto outro condenado é levado para o mesmo destino. Nobres e magistrados garantem a execução. Na construção externa do prédio são estendidos oito brasões de armas, com o que parece ser alguns dos estados imperiais do Sacro Império – talvez, numa hipótese de ser os estados eleitores de Colônia, Brandemburgo Tréveris, Saxônia e Boêmia.99 Do topo, é estendida uma corda com o que parece ser uma coroa de espinhos com o rosto de um homem que carrega um brasão sem símbolo. Mais para trás, a paisagem revela outras punições no horizonte, bem como uma multidão que se dirige para presenciar. Pessoas são queimadas, enforcadas e penduradas em volantes, rodeados por corvos que esperam a carne morta. Um homem é crucificado à direita, numa colina, onde estão dois observadores que observam o horizonte de execução.

A composição traz elementos novos à iconografia da justiça, a começar pela alegoria central. Embora a figura carregue os atributos tradicionais da iconografia – a espada, que informa a função punitiva, e a balança que demonstra o julgamento e as sentenças justas -, os olhos vendados é um novo atributo da virtude, que informa a imparcialidade necessária e rígida

99 Os brasões indicados na iconografia de IVSTITIA são semelhantes aos brasões representados na xilogravura colorida, Águia de Quaternion, por Hans Burgkmair e Jost Negker. Apresentamos a hipótese de que sejam os brasões dos estados eleitores do Sacro Império Romano, contudo, é preciso um exame mais detido dessas imagens, pois muitos dos brasões são igualmente semelhantes aos símbolos heráldicos de regiões dos Países Baixos. 59 para cumprir o dever de julgar e punir. Os olhos vendados da justiça surgem, como característica iconográfica, no século XVI. Anteriormente, Segundo Simmonds, a cultura greco-romana representava a justiça com forma e prestígio de donzela, com um semblante severo e temível, um olhar aguçado, uma dignidade e solenidade que era imponente. O propósito dessa aparição era que ela pudesse inspirar medo no ímpio, coragem no bem e exemplo aos religiosos e juízes. “Ele [juízes e religiosos] deveria ser digno, santo, austero, não corruptível, não suscetível a lisonja e inexorável para com os ímpios e culpados, vigorosos, sublimes e poderosos, terríveis em razão da força e majestade da equidade e verdade.”100 A visão clara e aguçada da justiça, que vigorou na antiguidade, oferecia o atributo da não corruptibilidade do julgamento.

A primeira vez que se tem registro da alegoria da Justiça com os olhos vendados é no livro com xilogravuras de Sebastian Brant, A nau dos insensatos, produzida em 1494, na Alemanha. Essa xilogravura mostra um bobo amarrando os olhos da Justiça com uma venda, da qual Simmonds interpretou como uma forma de ridicularizar a Justiça, criticar a ausência de julgamento, a ignorância e a desonestidade dos tribunais.101 Após essa primeira aparição, a venda nos olhos da Justiça ganhou a significação de denunciar a cegueira da justiça que era exercida por juízes corruptos e ineptos. Adriano Prosperi argumenta que:

No trabalho de Brant, observou Von Moller, a cegueira não era um atributo simbólico igual ao da espada ou da balança, mas sim um fato negativo incidental, um obstáculo criado pela loucura humana. A denúncia dessa loucura foi recordar aos leitores a necessidade de eliminar a venda e de restaurar à justiça a visão perspicaz. Sobre o tema do sentido cristão de vida e morte, ele reinterpretou sua denúncia da loucura daqueles que queriam viver ignorando o julgamento de Deus, preferindo prazeres mundanos ao reino dos céus.102 Igualmente, numa xilogravura de Bambergensis, de Johann Freiherr zu Schwarzenberg, da edição de 1510, foi exibido um tribunal de cinco juízes usando chapéus de bobo e vendas

100 “He ought to be dignified, holy, austere, incorruptible, not susceptible to flattery and inexorable towards the wicked and guilty, vigorou, lofty, and powerful, terrible by reason of the force and majesty of equity and truth”. SIMMMONDS, Andrew. “The Blindfold of Justice”. American Bar Association Journal, Vol. 63, n°. 9 (September, 1977), p. 1164. 101 loc cit., p. 1164.

102 “In Brant’s work, Von Moller observed, blindness was not a symbolic atribute on a par with the sword or the scale but rather na incidental negative fact, na obstacle created by human folly. The denunciation of the folly was to recall for readers the need to eliminate the blindfold and to restore to Justice the sharp-sightedness of her vision. On the subject of the Christian sense of life and death he reiterated his denunciation of the folly of those who wanted to live ignoring God’s judgment, preferring wordly pleasures to the kingdom of heaven”. PROSPERI, Adriano. Justice Blindfolded: The Historical Course of an Image Catholic Christendom, 1300-1700. Leiden: Brill, 2018. p.36 60 nos olhos. Neste primeiro momento, o atributo da cegueira da justiça fora visto como um elemento negativo, crítico e de denúncia sobre os atos de injustiça.

Figura 16 – A justiça Cega (1494), no livro Figura 17 - Uma xilogravura retirada do livro Stultifera Navis ou Narrenschiff (A nau dos Bambergensis (1510), de Johann Freiherr zu Insensatos), Sebastian Brant. Brasileia. Schwarzenberg.

Todavia, o significado negativo da justiça vendada atribuída à cegueira foi se transformando nas décadas seguintes do século XVI, talvez relacionado à recepção do direito romano nas regiões do Império espanhol. A venda passou a ser considerada um atributo de imparcialidade nas instituições que executavam o direito e recebeu um significado positivo, na medida em que a justiça vendada não vê a espada que pune e nem cede às bajulações e súplicas dos condenados.103 Segundo Prosperi, a diferenciação na forma de representar esteve ligada a uma limitação insuperável na barreira que separava a Europa católica e protestante no século XVI. Enquanto a representação dos olhos aguçados permaneceu em vigor e foi aceito como atributo da justiça por pessoas que permaneceram fiéis à Igreja de Roma, no mundo protestante a imagem da Justiça vendada foi exaltada como alusão à imparcialidade do príncipe cristão.104

Diante da disputa na iconografia da justiça, num momento do quinhentos em que as representações começavam a mudar, seria a alegoria vendada de IVSTITIA uma virtude que apela pela imparcialidade ou uma ironia que referenciava os atos brutais de violência? Parece que IVSTITIA carrega referências iconográficas de livros jurídicos, como o Praxis rerum criminalium, de Joost de Damhouder, que apareceu pela primeira vez em 1554.105 Este livro

103 SIMMONDS. op. cit., p.1164. 104 PROSPERI. op. cit. p.36 105 DAMHOUDER, Joost. Praxis rerum criminalium, elegantissimis iconibus ad materiam accommodis illustrata, praetoribus, propraetoribus, consulibus, proconsulibus, magistratibus, reliquisque id genus iustitiariis ac officiariis apprimè utilis ac necessária. Antuérpia: 1555. Disponível em: Biblioteca Digital Luso Brasileira. 61 coetâneo foi o manual padrão sobre direito penal na Europa e tem mais de 56 xilogravuras que retratam os crimes e procedimentos jurídicos em vigor.106 As práticas punitivas que aparecem em IVSTITIA são retiradas desse manual anterior. As cenas de execução, tortura e as atividades protocolares dos magistrados seguem uma forma muito semelhante com o programa visual da gravura.

A representação da alegoria vendada em conjunto com as cenas de tortura e execução dos demais planos indicam que o programa visual alude às práticas penais e códices jurídicos vigentes nos Países Baixos, durante a segunda metade do século XVI. Contudo, não há nada na representação que demonstre uma crítica aos códices, às práticas punitivas e às instituições em essência. O que existe (e, talvez, possamos tirar alguma interpretação sobre isso) é um dualismo na recepção das pessoas que presenciam as práticas punitivas: alguns se assustam enquanto outros tratam com naturalidade. Poderíamos interpretar, como sugere Desmond Manderson, que as pessoas da cena – as que não se importam – são igualmente cegas para as implicações de suas ações.107 Ou, então, que Bruegel e os demais impressores trataram de apresentar as novas formas de execução dos códices, em transformação (e controvérsias), que, aos poucos, modificavam as tradições do direito medieval, baseado em disputas entre duas partes.108 Se partirmos do texto que acompanha a imagem, “O OBJETIVO DA LEI É OU EMENDAR AQUELE QUE É PUNIDO, OU MELHORAR OUTROS COM O SEU CASTIGO, OU DEIXAR MAIS SEGURA A VIDA DOS OUTROS ATRAVÉS DA DESTRUIÇÃO DO MAL”, observaremos que se trata da justiça enquanto virtude. Se a representação imagética mobilizasse uma sátira à justiça, como a maioria dos pesquisadores afirmam, e a legenda em latim trouxesse à tona a justiça como virtude, então, texto e imagem apontariam para direções distintas. Em nossa interpretação das demais composições da série, com exceção de SPES, nenhuma outra gravura indica para uma oposição entre texto e imagem. Se fosse esse o caso, IVSTITIA apontaria para uma mudança na relação entre texto e imagem e, talvez, uma crítica mais contundente aos códices e punições.

Por ora, não entraremos a fundo no mérito sobre IVSTITIA reivindicar uma crítica ou não aos códices e instituições da época, uma vez que necessitaria uma pesquisa mais

106 Joos de Damhouder foi um jurista que trabalhou em Bruges como consultor jurídico para a cidade de 1537 até 1550, quando foi nomeado escrivão do Tribunal Penal de Bruges. O Praxis Rerum Criminalium sistematiza suas experiências no tribunal criminal e foi produzido como um manual prático de processo penal. Cf., Tarlton Law Library. Disponível em: < Home - Praxis Rerum Criminalium - Tarlton Law Library at Tarlton Law Library (utexas.edu)>. 107 MANDERSON, Demond. “Blind Justice”. In.: Popovici and L. Smith, eds., McGill Companion to Law, 2015. Disponível em: https://www.mcgill.ca/companion/list/blind-justice. 108 SCHWERHOFF, Gerd. op. cit., p. 85. 62 aprofundada sobre as possibilidades de recepção do direito romano e as práticas jurídicas do século XVI. Há, entretanto, uma clara referência à dimensão religiosa retratada na gravura, como os homens executados que carregam um crucifixo nas mãos e a crucificação de um sujeito, à direita, que pode aludir à crucificação de Cristo.

De acordo com Schwerhoff, cerca de 3 mil pessoas foram condenadas por heresia na Europa, entre 1520 e 1560 e quase um terço dessas execuções ocorreu na Holanda dos Habsburgos. A partir de 1557 também os protestantes se viram cada vez mais na mira de perseguições, que se concentravam especialmente nos centros urbanos do sul da Holanda, Brabante e Flandres.109 Há, também, casos de sujeitos menos ortodoxos que foram condenados pela Inquisição, como o humanista erasmiano Damião de Góis, que em 1540 publicou um tratado que exortava o reconhecimento do cristianismo etíope e propunha uma estratégia de reconciliação no plano religioso.110

Considerando as controvérsias religiosas produzidas pelas rígidas ortodoxias confessionais da segunda metade do quinhentos, sugerimos pensar na possibilidade de que os produtores tenham composto e publicado a virtude da justiça menos como crítica às instituições ou à justiça como virtude (nem mesmo como sátira), mas especialmente para trazer a público o juízo sobre os limites das perseguições religiosas e das condenações por heresia. O fato de não haver assinatura na gravura, indica talvez uma consciência que tinham sobre as possibilidades de interpretação da composição por conta das controvérsias religiosas, ao passo que a publicação em duas tiragens informa o desejo pela circulação desse conteúdo de forma mais ampla. Tratava-se da representação de uma cena cotidiana, ainda que evoque um teor sensacionalista. Como Cristo, que foi perseguido e crucificado por sua fé, também homens eram condenados por suas crenças. A gravura parece retratar isso de forma a recordar a piedade do público para as consequências de uma rígida perseguição religiosa.

VI FORTITVDO (1560)

FORTITVDO foi a sexta composição produzida e publicada no conjunto da série de virtudes, em 1560. Bruegel desenhou a composição com pena e tinta marrom, em uma folha

109 Ibdem, p. 103. 110 MARCOCCI, Giuseppe. “A Inquisição no mundo português de quinhentos”. Revista de História, São Paulo, n. 164, p. 65-100, jan./jun. 2011. 63 avulsa, com dimensão de 22,5cm x 29,5cm. Foi assinado, na extremidade direita, BRVEGEL, e datado na extremidade esquerda, 1560. No centro, a inscrição FORTYTVDO e na margem inferior, duas linhas de letras fantasia. No verso, um carimbo de coleção de Wihelm Koller (Lugt 2632) e de Franz Koenigs (Lugt suppl. 1023a).111

A gravura foi impressa no mesmo ano, por Hieronymus Cock, a partir da gravação de Philip Galle, com técnica em intaglio. Foi impressa em folha avulsa, com duas tiragens. A folha tem dimensão 26cm x 33,7cm, enquanto a placa tem 22,3cm x 28,7cm. Na extremidade direita, assinado BRVEGEL INVENTOR, no centro FORTITVDO e no canto esquerdo Cock exc. Na margem inferior, uma legenda em latim que diz:

ANIMVM VINCERE, IRACVDIAM COHIBERE, CAETERAQ[VE] VITIA ET, AFFECTVS/COHIBERE, VERA FORTITVDO EST

VENCER A ALMA, CONTER A RAIVA E OUTROS VÍCIOS E EMOÇÕES: ESTA É A VERDADEIRA FORTALEZA112

Figura 18 – Fortitvde (1560), sexta de sete gravuras de virtude. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 26 cm x 33,7 cm e placa 22,3cm x 29,2cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque.

111 ORENSTEIN. op. cit. p. 188. 112 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem., p. 189. 64

A gravura apresenta atributos particularmente singulares, senão mesmo destoantes e completamente diferentes das demais composições de As sete virtudes. É a única gravura que possui seres místicos na composição (anjos e monstros), que batalham entre si. O programa visual é divido entre os planos verticais – com humanos à direita e monstros à esquerda –, e na contraposição entre primeiro plano e os demais planos da composição. É, do mesmo modo, uma gravura de ação, cujo movimento dos personagens ocorre da direita para a esquerda.

A alegoria de fortaleza é representada por um anjo no centro da gravura. Esse é um aspecto singular de FORTITVDO, pois essa é a única das representações da série em que a alegoria não é representada por uma figura feminina. Na composição, foram incluídos alguns dos atributos comuns associados a ‘nova iconografia das virtudes’: a coluna, ao lado da alegoria, que alude à solidez e a bigorna, que simboliza a resistência inabalável da virtude.113 Os impressores, contudo, modificaram a tradição iconográfica da virtude que, conforme indica Cesare Ripa, foi geralmente representada por uma figura feminina lutando com um leão.114 Ao invés do leão, a alegoria domina um dragão, maior dentre os monstros retratados na composição; enquanto pisa sobre sua cabeça, mantém o animal imóvel segurando-o por uma corda. Haveria aqui uma transformação na relação entre alegoria e dragão, pois, conforme indica Suzanne Burris, algumas das representações anteriores da virtude retrataram fortaleza puxando um dragão em miniatura de uma torre, mas não pisando sobre sua cabeça.115

Burris sugere alusões apocalípticas na gravura, o qual parece ser um caminho interpretativo interessante, sobretudo se pensarmos que, ao longo do quinhentos, profecias escatológicas foram vivificadas em toda Cristandade. Segundo a autora, FORTITVDO apresenta elementos singulares de sua composição que podem ser associados ao Livro das Revelações, como a passagem bíblica que traz a referência ao dragão.

Depois disso, vi um anjo descer do céu. Tinha nas mãos a chave do Abismo e uma grande corrente. Ele agarrou o Dragão, a antiga Serpente, que é o Diabo, satanás. Acorrentou-o por mil anos e lançou-o dentro do Abismo. Depois, trancou e lacrou o Abismo, para que o Dragão não seduzisse mais as nações, até que terminassem os mil anos.116 Embora o dragão não esteja sendo jogado no abismo, como aponta a profecia de João, outras figuras demoníacas ao redor de fortaleza estão sendo derrotadas e jogadas num buraco.

113 KLEIN. op. cit. p. 118. 114 RIPA, op cit., p. 205. 115 BURRIS, Suzanne Lynn. Pieter Bruegel the Elder’s Apocalyptic Fortitude. Denton: Tese de Doutorado pela University of North Texas in Partial, 1997. p. 27. 116 Apocalipse, 20: 1-3. 65

Mulheres e homens batalham com animais utilizando instrumentos cotidianos – vassouras, facas, machados e espadas. Os animais recordam a construção iconográfica da série anterior produzida por Bruegel e publicada por H. Cock, Os sete pecados capitais e estão simbolicamente associados a esses pecados: o sapo da avareza, o pavão da vaidade, o peru da inveja, o porco da gula, o burro da preguiça, o galo da luxúria e o urso da ira.117 Tais elementos iconográficos indicam FORTITVDO como um programa visual que instrui a batalha espiritual e cívica que cristãos deveriam travar contra os vícios, os pecados e a trivialidade.

No segundo plano, as quatro torres da cidadela acoplam bandeiras que, segundo Burris, indicam um dos principais símbolos apocalípticos da gravura. No interior das bandeiras, a imagem de quatro animais alados compõe as partes de um tetramorfo, mencionado no Livro das Revelações e em Ezequiel 1, 10.118 Os animais simbolizam os quatro evangelistas do Novo Testamento: águia, touro, anjo e leão, que representam, respectivamente, João, Lucas, Mateus e Marcos.119 A autora argumenta que desde a primeira era cristã, o símbolo dos quatro evangelistas fora incorporado em um complexo pictórico de interpretação do Livro das Revelações, como aqueles presentes nos Mosaicos do Arco Triunfal de Basílica de São Paulo Extramuros, datados de c. 450.120 Essa associação vigorou no imaginário pictórico cristão, de modo que, possivelmente, os impressores de FORTITVDO conheciam a simbologia.

Tais referências seguem nas demais cenas da composição. Dentro da cidadela, vinte e quatro esferas em forma de auréolas indicam, segundo Burris, os vinte e quatro anciãos que são mencionados no Apocalipse de João, 4: 2-5.121 Do mesmo modo, no interior da cidadela, quatro anjos protegem o local, os quais, somados com os demais anjos da composição – a alegoria e os dois que estão em batalha –, aludem a uma passagem descrita no Livro das Revelações, que diz: “Este é o significado secreto das sete estrelas que viste na minha mão direita, e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas”.122

117 Em Os sete pecados capitais, Bruegel desenhou, para cada vício, um animal simbólico típicamente asociado à iconografía dos pecados. 118 Quanto à semelhança dos seus rostos: tinham a semelhança de homem; à mão direita tinham os quatro o rosto de leão; e à mão esquerda o rosto de boi; também tinham o rosto de águia. Ezequiel, 1: 10. 119 BURRIS, Suzanne. op. cit. p. 14 120 Ibidem., p.15. 121 “Imediatamente, fui movido pelo Espírito. Havia no céu um trono e, no trono, alguém sentado. Aquele que estava sentado tinha o aspecto de uma pedra de jaspe e cornalina; um arco-íris envolvia o trono com reflexos de esmeralda. Ao redor do trono havia outros vinte e quatro tronos; neles estavam sentados vinte e quatro anciãos, todos eles vestidos de branco e com coroas de ouro na cabeça”. Apocalipse. 4: 2-5. 122 Ibidem., p. 16. 66

Do interior da cidadela, um exército de soldados vai em direção às figuras monstruosas que, conforme são derrotadas, se refugiam atrás de um escudo de cerco. Essa cena, em específica, toma um grande espaço na gravura e denota o fluxo direcional da composição, que ocorre da direita para a esquerda, também como uma alusão apocalíptica, pois segundo a tradição bíblica, as ‘ovelhas de Deus’ estariam à direita, para que se pudesse fazer distinção entre os escolhidos e os renegados.123 Mais a fundo, um exército de homens. liderado por dois anjos, avança sobre os monstros, que correm para se refugiar dentro de um ovo. O horizonte da composição reforça a oposição dos planos verticais: enquanto, à direita, o ambiente é harmonioso - com árvores, animais e uma igreja -, à esquerda, são expostas forcas e cenas de destruição.

Um aspecto relevante da gravura está na calda do dragão domado, presa em uma prensa de impressão. Essa referência é bastante importante para o conjunto da composição, sobretudo ao refletirmos sobre o poder simbólico que possui o dragão na representação. Ele é o maior de todos os monstros e, junto à alegoria, compõe a tópica central da gravura. A referência pode indicar que os impressores viam na circularidade das impressões um potencial político- religioso.124

Se por um lado Suzanne Burris apresenta uma abordagem significativa ao decifrar as alusões apocalípticas presentes na composição, por outro, não aborda o potencial político- religioso da união entre a virtude da fortaleza e as referências apocalípticas. Compreender o uso que se fez da união de referências é importante, pois a construção imagética da composição é totalmente diferente da iconografia tradicional de fortaleza, sendo essa diferença situada, justamente, nas alusões apocalípticas. Nos limites do levantamento iconográfico que realizamos ao longo da pesquisa, FORTITVDO foi a única gravura que unificou elementos de virtude e apocalipse. Embora as alusões apocalípticas sejam visualmente reconhecíveis, não é sobre esta noção que a gravura foi pensada, produzida e difundida, mas enquanto virtude cardeal. Deste

123 “Imediatamente após a aflição desses dias, o sol escurecerá, a lua perderá seu brilho, as estrelas cairão do céu e as potências celestes serão abaladas. E então aparecerá no céu o sinal do filho do homem, e todas as raças da terra baterão no peito; e ver-se-á o filho do homem vir sobre as nuvens do céu com poder e grande glória [...]. Ele colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda, então o rei dirá aos da direita: vinde, abençoados de meu pai, recebei como herança o reino que vos foi preparado desde a fundação do mundo [...]. Então ele dirá aos da esquerda: ide para longe de mim, malditos, no fogo eterno que foi preparado para o diabo e para seus anjos [...]”. Mateus, 24- 25. 124 Essa hipótese pode ser pensada a despeito do que Elizabeth Eisenstein argumenta sobre o potencial revolucionário dos impressos, no fim do século XV e início do XVI. Tal acepção rendeu um longo debate na historiografia que estuda os meios de comunicação visual e textual na Primeira Modernidade. Roger Chartier e Fernando Bouza relativizam o impacto da imprensa como agente revolucionário (ou, ainda, como agente de transformação profunda das relações e culturais), na medida em que identificam a incidência e importância de manuscritos e outras práticas tradicionais de comunicação, como os manuscritos e as tradições orais. 67 modo, a interpretação iconográfica não deve circunscrever-se em compreender apenas os significados e símbolos da composição, mas também os padrões de intenção em unificar ambas noções.

Pela tradição cristã, as virtudes que precedem fortaleza são Prudência e Justiça. Isso significa que sem Prudência e Justiça não há fortaleza. A tradição da virtude é evocada pela legenda que acompanha a composição “VENCER A ALMA, CONTER A RAIVA E OUTROS VÍCIOS E EMOÇÕES: ESTA É A VERDADEIRA FORTALEZA”. Da legenda, é possível pensarmos sob duas acepções. A primeira está no controle das paixões da alma, ratificada não apenas pela instrução da legenda, como na batalha contra os vícios, esboçada no programa visual. A segunda está na própria concepção de Fortaleza enquanto virtude, que é precedida por Prudência, isto é, o uso da razão. Nesse sentido, FORTITVDO orienta pelo disciplinamento moral, a partir do juízo, para que, assim, seja possível conter os vícios e as paixões da alma, especialmente a raiva. Esse padrão de volição é o que orienta para a virtude da fortaleza.

Pela leitura tomista, fortaleza refere-se à prontidão para cair em batalha. Ela pressupõe vulnerabilidade, pois o homem corajoso precisa ser disposto a sofrer ofensas.125 A lesão final e mais intensa é a morte e, por isso, ela também aponta para a prontidão de morrer em batalha. Conforme argumenta Pieper, a mais alta conquista da Fortaleza é o martírio, que é a essência de toda Fortaleza cristã.126 Contudo, não se trata do martírio em si, mas como um meio de preservar um bem maior, mais essencial. Nesse sentido, a virtude implica a ação prudente e justa da fortaleza a fim de que se possa preservar um bem mais elevado que, em meados do quinhentos, poderia ser a defesa da Igreja cristã, da Respublica Christiana e a vida espiritual e cívica. Fortaleza é a única que também compõe um dos sete dons do Espírito Santo. Tomás de Aquino abordou a virtude como a graça que permitiria ao cristão ir além dos medos naturais em defesa de um bem maior. Ela é alcançada somente nos mais altos níveis de santidade na terra e prefiguram o começo da vida eterna. Pela perspectiva tomista, não se pode descurar a dimensão da esperança da vida eterna, que está presente na coragem da fortaleza.127

125 Por ofensas entende-se todo assalto à inviolabilidade natural, toda violação da paz interior. PIEPER, Josef. Four Cardinal Virtues. Indiana: Ed. Universidade de Notre Dame, 1990. p. 115. 126 Ibidem., p. 118. 127 “When, in the experience of extreme anguish, the strengthening and comforting illumination of natural certainties- the metaphysical ones not excepted-wanes and changes into the half-light of uncertainty, He gives man that unshakable though veiled supernatural certainty of the final happy victory, without which, in the supernatural order, battle and injury are objectively unbearable. In the gift of fortitude the Holy Spirit pours into the soul a confidence that overcomes all fear: namely, that He will lead man to eternal life, which is the goal and purpose of all good actions, and the final deliverance from every kind of danger”. Ibidem., pp. 137 e 138 68

Se há fundamento na análise proposta por Suzane Burris, acerca das alusões apocalípticas em FORTITVDO, sugere-se pensar as batalhas e as adversidades, que constituem o programa visual, como um estágio necessário da vida do cristão que espera a vida eterna. Ser corajoso significa não apenas sofrer ferimentos de morte, mas também esperar a vitória, tanto no mundo terreno como espiritual. Na vida mundana, fortaleza implica a luta contra o pecado, bem como a manutenção da fé cristã, o que explica os homens e mulheres que vencem os animais dos vícios; na esfera espiritual, pressupõe a espera pela vida eterna, na qual residem com os muitos atributos apocalípticos da composição.

Outra possibilidade interpretativa da composição, possível de ser operacionalizada em conjunto com as referências apocalípticas que mencionamos, está na oposição visual (direita e esquerda) que, de alguma forma, parece evocar a unidade da Christianitas, num sentido mais amplo da ortodoxia, contra tudo que possa deturpar a concórdia da Cristandade, sejam os pecados ou a heresia que está fora da fé cristã. Nesse sentido, se por um lado o programa visual de FORTITVDO parece estar relacionado com as esperas apocalípticos do século XVI, por outro instrui o cristão na vida moral e cívica a partir de direcionamentos espirituais construídos pelo fundamento da Cristandade. Os motivos para evocar um engajamento espiritual pela fortaleza cristã poderiam ser muitos, uma vez que conflitos políticos-religiosos permearam a reprodução e circulação dessa gravura na metade do século XVI.

VII TEMPERANTIA (1560)

TEMPERANTIA foi a última composição a ser produzida e publicada no conjunto da série As sete virtudes, em 1560. Bruegel compôs o desenho com pena e tinta marrom, com dimensão de 22,5cm x 29,8cm. No canto esquerdo inferior, assinado BRVEGEL e na aba de um papel, 1560. No vestido da alegoria, TEMPERANCIA e na margem inferior, um verso em latim, que diz: “Videntum ut nec voluptati dediti prodigi et Luxuriosi appareamus nec avara tenacitati sordidi aut obscuri existamos”.128 A placa foi gravada por Philip Galle, com tamanho de 22,3cm x 28,7cm, a partir da técnica em intaglio. A gravura, impressa por Hieronymus Cock no mesmo ano, foi publicado numa folha avulsa, com 24,4cm x 31,2cm, em única tiragem. Leva somente a assinatura BRVEGEL, no canto esquerda composição. No vestido da alegoria, o

128 ORENSTEIN., op. cit., p.190. 69 nome TEMPERANTIA, com uma correção do latim em relação ao desenho. Na margem uma legenda em latim, que diz:

Figura 19 - última de sete gravuras de virtude. Desenho por Pieter Bruegel, placa por Philip Galle e impressão por Hieronymus Cock. Folha 24,4 cm x 31,2 cm e placa 22,3cm x 28,7cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque. VIDENDVM, VT NEC VOLVPTATI DEDITI PRODIGI ET LVXURIOSI/ APPAREAMUS, NEC AVARA TENACITATE SORDIDI AVT OBSCVRI EXISTAMUS.

DEVEMOS TER EM CONTA QUE, NA DEVOÇÃO AOS PRAZERES SENSUAIS, NÃO NOS TORNEMOS PERDULÁRIOS E LUXURIOSOS, MAS TAMBÉM QUE NÓS, POR CONTA DA GANÂNCIA AVASSALADORA, NÃO VIVAMOS NA SUJEIRA E NA IGNORÃNCIA.129

A alegoria da temperança está no centro da composição, vestindo um longo manto com guarnição de pele no punho direito e sapatos que, segundo Yoko Mori, eram habituais da nobreza borguinhã.130 Ela carrega alguns dos símbolos tradicionais da virtude: o relógio sobre a cabeça, simbolizando a justa medida e o controle do tempo; o freio na boca, que visa o controle das palavras; as rédeas na mão direita, para controlar os excessos e os óculos, na mão esquerda, para ver claramente o bem e o mau. A figura alegórica tem uma cobra viva enrolada na cintura,

129 Tradução para o português a partir da tradução em inglês. Ibidem., p. 191. 130 Esse traje enfatiza que a nobreza não precisava andar sendo sempre transportada a cavalo. MORI, Yoko. “The Iconography of Pieter Bruegel the Elder’s Temperance”. In.: The World of Bruegel in Black and White from the Collection of the Royal Library of Belgium. Tóquio: Bunkamura, 2010. p.29. 70 simbolizando a sabedoria da virtude (sapientia), e está apoiada com os pés sobre uma palheta de moinho de vento.131

Atrás da alegoria, uma bola chama a atenção do expectador. O objeto, que foi desenhado em uma composição posterior de Bruegel, Festival dos tolos (1570), também aparece em representações coetâneas de temperança, como em gravuras de Cornelis Massijs, Temperancia (1550), publicada em Flandres, e Hans Sebald Beham, Temperancia (1539), publicada em Frankfurt am Main.132 Além da bola, as composições trazem os símbolos tradicionais da iconografia, que também aparece em TEMPERANTIA – ampulheta e outras medidas do tempo –, e são, como indica Cesare Ripa, a própria natureza da virtude, que por meio do hábito acalma e modera os apetites da alma, tendo o tempo como medida desse movimento.133

Figura 20 – Temperancia (1539), Figura 21 – Temperancia (1550), uma uma entre sete gravuras de virtude, entre sete gravuras de virtude, Flandres. Frankfurt am. Desenho, placa e Desenho, placa e impressão por Cornelis impressão por Hans Sebald Beham. Massijs. British Museum, Londres. Main. Rijksmuseum, Amsterdam. Ainda que a tradição iconográfica da virtude seja evocada na gravura, a bola somente passou a circular na iconografia temperança em meados do século XVI. Segundo Yoko Mori, a bola em TEMPARANTIA sugere o controle das ações tolas, como aquelas que Bruegel

131 Bruegel não traz outros dos símbolos tradicionais da iconografia da temperança, como o Elefante de Pierio, que Cesare Ripa argumenta ter sido um símbolo tradicional da virtude por simbolizar sabedoria e equilíbrio. (Cf., RIPA, p. 660). Igualmente, Bruegel também não retratou o jarro e a taça de vinho que a alegoria costumeiramente portava, como uma alusão a quem derrama simetricamente o líquido como sinal de equilíbrio. Essa característica aparece em muitas das gravuras coletadas no levantamento, como na iconografia de Die Mesikant de Hans Burkmair, produzida em 1510, em Augsburgo; assim como em Temperancia, de Lucas Van Leyden, produzida em 1530, em Leiden; e Temperancia, de Hans Sebald Beham, produzida em 1539, em Frankfurt am Main. 132 Temperancia, da série As sete virtudes, de Marcantonio Raimondi, produzida entre 1510 e1527, na Itália, no qual o inventor desenha o freio e as rédeas na mão direita da figura alegórica. 133 RIPA, op. cit., p. 660. 71 satiriza em Festival dos tolos.134 Entretanto, uma nova sugestão, sobre a alusão da bola, aparece se observarmos as gravuras de Hans Sebald Beham, Fortvna (1541) e Philip Galle, Fortvna (1576). Em ambas, a fortuna é representada junto de uma bola, indicando as vicissitudes da felicidade. É possível, nesse sentido, sugerir que TEMPERANTIA tenha encaminhado a alusão da fortuna na representação, não apenas pela semelhança iconográfica das composições, mas, porq ue virtude e fortuna foram temas debatidos em conjunto durante a renascença.

Figura 23 – Fortvna (1576). Desenho Figura 22 – Fortvna (1541). Desenho, Jan Collaert (II), placa e impressão placa e impressão por Hans sebald Philip Galle. Antuérpia. Rijksmuseum, Beham. Frankfurt am Main. Amasterdam. Rijksmuseum, Amsterdam.

Segundo Timothy Kircher, o pensamento renascentista sobre a fortuna baseou-se numa gama de fontes clássicas, patrísticas e medievais. Em fontes cristãs, a partir dos escritos de Agostinho (De civitate dei), Boethius (De consolatione philosophiae) e Tomás de Aquino (Summa contra gentiles), a fortuna foi submetida à providência divina, numa forma mais abstrata e ontológica sobre as condições imediatas da vida que testaram a virtude de alguém. Os efeitos emocionais e terrenos da fortuna foram derivados de Cícero (Tusculanae, De officiis) e especialmente Sêneca (Epistulae morales e De remediis fortuitorum), em que a fortuna conotava às circunstâncias favoráveis ou adversas, bem como mutabilidade e temporalidade. No curso do Renascimento, pensou-se em como as virtudes e a livre arbítrio se relacionariam à fortuna, às vezes contra ou a favor de sua influência.135 A alusão da fortuna em

134 MORI, Yoko. op. cit. , p. 29. 135 KICHER, Timothy. “Fortune in Renaissance Philosophy”. In: Sgarbi M. (eds) Encyclopedia of Renaissance Philosophy. Cham: Springer, 2019. pp. 01-06. 72

TEMPERANTIA traz um debate fulcral entre os círculos de erudição e, em conjunto com as demais cenas da composição, informa a associação entre a virtude da temperança com o conhecimento e a eloquência, sobretudo nas questões civis.

Ao redor da personificação, os impressores representaram cenas de instrução relacionadas às sete artes liberais: lógica, gramática, retórica, aritmética, música, geometria e astronomia. Arthur Klein argumenta que estudiosos dessa gravura frequentemente atribuíram uma interpretação negativa e satírica na relação entre temperança e as artes.136 Yoko Mori, em contrapartida, sugere que a gravura exibe a temperança como a virtude que preza pela autocontenção, bem como a execução das técnicas e atividades do intelecto. Tal referência encontra em TEMPERANTIA sua primeira associação, uma vez que a gravura teria sido pregressa em relacionar virtude e artes liberais.137

Desde a antiguidade clássica, as artes liberais foram investidas como a ciência necessária para a formação educacional das pessoas. Na teologia medieval foram interpretadas como essenciais para os estudos religiosos e filosóficos, para o qual direcionava-se a possibilidade de aperfeiçoar a leitura das Sagradas Escrituras e promover a liberdade do homem por meio da prática de seus ofícios.138 Na primeira modernidade, tornaram-se parte do currículo universitário e visava transmitir conhecimentos gerais e desenvolver capacidades intelectuais gerais, dividindo-se entre o Trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (geometria, aritmética, música e astronomia).139 Durante o século XVI, as personificações das artes liberais foram representadas enfileiradas ou individualmente, como aparece na gravura de Virgil Solis, Sete artes liberais, publicada na primeira metade do século. A maioria das representações foi feita por meio de figuras alegóricas femininas, exibindo os atributos das sete artes liberais.140 TEMPERANTIA, entretanto, contraria essa tradição, representando as sete artes liberais em cenas de educação e pedagogia humanista. Na aproximação com círculos de erudição, a representação das artes, na composição, perde o seu caráter alegórico e é representado num ambiente tangível da cidade.

Na composição, os homens que executam os ofícios das artes são das classes nobres e educadas da sociedade borguinhã. Certamente, ainda que a gravura tenha tido condições para

136 KLEIN. op. cit. p. 132 137 MORI. Yoko. op. cit. p.30 138 Ibidem. p.34 139 ______. Liberal Arts”. In.: Encyclopedia Britannica. Disponível em: < https://www.britannica.com/topic/liberal- arts>. Acesso: 11.04.2019 140 MORI. op. cit. p.35 73 circular para um público mais amplo, são aos humanistas e eruditos que TEMPERANTIA faz referência. Em Gramática, no primeiro plano, um professor instrui seus alunos para o conhecimento do alfabeto. A espátula de madeira, que carrega na mão, e o chicote de galhos na cintura, indicam a ambivalência da educação – pelo ensino e disciplinamento. Os alunos estudam por conta própria e usam roupas características da aristocracia flamenga. Um dos garotos, interessados no ensino, leem livros e pergaminhos. Em Aritmética, no canto oposto, três homens fazem cálculos matemáticos – um comerciante corteja um livro e uma quantia em dinheiro e, ao seu lado, dois assistentes o auxiliam no manejo da contabilidade com a matemática.

Em Dialética, no segundo plano à esquerda, cinco homens debatem em círculo. Segundo Alex Romdahl, os homens representam vários setores religiosos: os três mais jovens são protestantes, o mais velho é judeu e os outros dois são católicos.141 O livro maior, desenhado ao lado, parece ser a bíblia. Numa outra possibilidade, o diálogo dos homens pode significar o conhecimento passado pelos mais velhos aos jovens, uma vez que os velhos tinham mais sabedoria, pela experiência de ter vivido mais. Em Geometria, mais a fundo na composição, um homem sobe no topo de uma coluna com um esteio, enquanto outro usa a bússola para fixar a posição de uma nova edificação. No chão, um terceiro homem mede o ângulo da arquitetura com uma ferramenta com roda, enquanto outro sujeito olha debaixo para a coluna, a fim de verificar a precisão correta das medidas. Entre o topo e a base da coluna estão as decorações em forma de taças de vinho com botões. Mais atrás, homens carregam canhões e atiram num pássaro no topo de uma arara, usando um mosquete e uma besta de mão. Acertar o alvo requer a técnica da geometria. Em Música, à direita, meninos e monges cantam e tocam em um coral, sob uma marquise ornamentada. Eles utilizam instrumentos – alguns não tão comuns – violino, arpa gótica, alaúde, órgão, corneta e gaita de foles. Astronomia é exibida a mais fundo na composição – um astrônomo que fica em pé em um globo e mede a posição das estrelas e a fase da lua. Um segundo homem mede o tamanho da terra e estuda as nuvens e o clima. Ambos utilizam um grande compasso como medidor. Por último, em Retórica foi representada uma encenação ao pleito. Três homens encenam o convencimento de uma peça à multidão. Um quarto homem, atrás do palco, olha surpreso para o ambiente visual retratado na composição.

Yoko Mori, em sua análise da gravura de TEMPERANTIA, sugere a composição como uma ordem inversa à virtude, em que as sete artes liberais representariam, na verdade, excessos

141 ROMDAHL, Alex L. Pieter Bruegel den alder. Stockholm, 1994. P.123-124 apud MORI, Yoko. Op. cit., p. 36. 74 e deficiências.142 Não compartilhamos das mesmas opiniões de Mori, pelo contrário, a composição parece enfatizar que a arte de viver bem é um exercício de hábito, que só pode ser alimentado pelo conhecimento que permite realizar, na pessoa, a virtude que já se conhece. Dirck Coornhert apontou para uma reflexão sobre isso, em Zedekunst Dat is Wellevenskunste (1585): “o conhecimento não é estático: é uma força dinâmica, algo aprendido ao agir de tal maneira que a virtude que se aprende se torna hábito. Viver bem é um hábito adquirido ao longo do tempo e sua habilidade é baseada na razão.”143

Outra dimensão de uma interpretação de TEMPERANTIA pode ser pensada a partir da legenda que acompanha a imagem. O texto diz: DEVEMOS TER EM CONTA QUE, NA DEVOÇÃO AOS PRAZERES SENSUAIS, NÃO NOS TORNEMOS PERDULÁRIOS E LUXURIOSOS, MAS TAMBÉM QUE NÓS, POR CONTA DA GANÂNCIA AVASSALADORA, NÃO VIVAMOS NA SUJEIRA E NA IGNORÂNCIA. Por um lado, a legenda evoca a sujeira e a ignorância como faces de uma vida fora da virtude, por outro, enfatiza a tradição cristã de temperança, que equilibra o corpo e a mente contra os prazeres carnais.

Tomás de Aquino via na temperança a capacidade pela autopreservação altruísta do ser humano, controlando os desejos internos do homem, sobretudo o impulso natural do prazer sexual e da gula.144 Esse era o sentido tradicional e mais enraizado da virtude cristã, que vigorou até a primeira modernidade. Corrnhert traz essa mesma percepção em seu tratado sobre ética:

Temperança é a virtude que governa contendo o corpo e a alma. Ela é a inimiga da gula e da luxúria e amiga de seu oposto. A temperança apoia os desejos de ser virtuoso e destrói o desejo de pecar; controla os desejos dos prazeres da carne. O fruto da temperança é a proximidade com Deus. 145 Para ele, temperança está associada a sabedoria (sapientia), sendo por meio da verdade e da sabedoria que o homem pode alcançar a moderação de seus atos. Assim, "uma pessoa disciplinada pode controlar toda a sua ação e obter auto-regulação através da racionalidade".146

142 Em retórica, por exemplo, argumenta que a cena alude às disputas religiosas, que debatiam vagarosamente as confissões, mas falhavam em dar atenção às Sagradas Escrituras. Em gramática, a autora sugere a falta de conhecimento do professor e o excesso da criança, sendo este um caso que falta temperança, Ibid., p.35. 143 COORNHERT, p.31.

144 PIEPER, op. cit., 1990. p. 150. 145 “Temperance leads one to virtue and away from sin, to control over the pleasures of the flesh, and to maintenence of physical well being. It measure of what is necessary for human satisfaction is to eat, to moisten the throat, and to be protected from the cold. Temperance supports the desire to be virtuous and destroys the desire to sin; controls the desires of the pleasures of the flesh. The fruit of temperance is closeness to God.” COORNHERT, Dirck. op. cit. p. 390-396. 146 “A person of discipline can control all his actions and achieve self-regulation through rational moderation.” Ibid. p. 390-396. 75

Portanto, TEMPERANTIA traz esse duplo sentido: primeiro, o conhecimento para que se entenda a virtude e a vida cívica, segundo o controle dos prazeres sexuais, como sentido tradicional cristão. Seu significado se alude aos princípios do humanismo, que incluem a valorização das artes (ars), ciência (scientia) e razão (ratio) como organizadores do mundo. Vejamos, por exemplo, que a fortuna, no centro da composição, não toma a atenção de ninguém. Como símbolo cristão, a bola da fortuna poderia lembrar a todos das loucuras da ambição. TEMPERANTIA dimensiona, nesse sentido, a busca por conhecimento para a manutenção tanto da virtude interior, mas em apelo a concórdia do espaço cristão citadino.

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CAPÍTULO 3

Mudanças e tradições iconográficas em As sete virtudes: Confessionalização e Humanismo Erasmiano

Feito uma análise e interpretação de cada gravura, podemos agora traçar algumas conclusões sobre o conjunto da série no que diz respeito à matéria das virtudes que ela congrega, bem como as mudanças e permanências iconográficas durante as disputas confessionais. Em todas as composições, a figura alegórica carrega os atributos visuais da ‘nova iconografia das virtudes’. Tratava-se de uma característica da iconográfica medieval, disseminada pelo reavivamento das discussões éticas sobre a conduta do príncipe e do súdito cristão. A visualidade da série demonstra a manutenção de uma tradição cristã-medieval que, ao menos até a metade do século XVI, continuava viva em produções imagéticas de virtudes. Entretanto, sua permanência em círculos de impressores não foi estática e nem alheia às transformações no cenário intelectual, político e religioso da época, pelo contrário, indicam as mudanças gradativas que a própria ressignificação do conceito de virtude experienciou na sociedade cristã da primeira modernidade.

A sistematização mais densa de que se teve sobre as virtudes no ambiente cristão foi desenvolvida por Tomás de Aquino, em Suma Teológica, a partir de uma adaptação do pensamento aristotélico sobre a virtude como a justa medida – aquela que se opõe aos excessos e deficiências. Tomás de Aquino ofereceu a descrição e explicação das virtudes teologais e cardeais em vista dos pilares do cristianismo. Elas foram classificadas como bons hábitos, que aperfeiçoam a alma e a ação do homem, dando-lhe condições de fazer o melhor com a liberdade dada por Deus. Ele encontra na reta razão a possibilidade do agir conforme o hábito da virtude que, no caso das virtudes cardeais tem a prudência (uma virtude do intelecto) como guia da ação e, das virtudes teologais, tem a Deus como início e fim último.147

147 Sobre as virtudes cardeais: “Assim como nos dispomos a proceder retamente em relação aos princípios universais, pelo intelecto naturalmente, ou pela ciência habitual, assim também, para nos dispormos bem em relação aos princípios particulares de nossas ações, que são os fins, é preciso que sejamos aperfeiçoados por certos hábitos que, de alguma forma nos tornam conatural o correto julgamento do fim. E isso se faz pela virtude moral, porque o virtuoso julga retamente sobre o fim da virtude. Logo, a razão reta do agir, ou seja, a Prudência, exige que o homem tenha a virtude moral”. Cf., Tomás de Aquino. Suma Teológica. Iª IIª, IV, q. 58, a. 5. São Paulo: Loyola, 2004. Sobre as virtudes teologais: “É necessário, pois, que lhes sejam acrescentados por Deus certos princípios pelos quais ele se ordene a bem-aventurança sobrenatural, tal como está ordenado ao fim que lhe é conatural por princípios naturais que, porém, não excluem o auxílio divino. Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, primeiro por terem Deus como objeto, no sentido que nos orientam retamente para ele; depois por serem infundidos só por Deus; e, finalmente, porque essas virtudes são transmitidas unicamente pela revelação divina, na sagrada escritura”. Cf., Tomás de Aquino. Suma Teológica. Iª IIª, IV, q. 62, a. 1. São Paulo: Loyola, 2004. 77

É relevante recuperarmos a sistematização tomista das virtudes, pois, do ponto de vista teológico-filosófico, a série As sete virtudes parece reivindicar mais detidamente essa reflexão moral. Tanto os atributos simbólicos da figura alegórica, antecipados pela ‘nova iconografia das virtudes’, como as legendas em latim, evocam o lugar da ética tomista no que diz respeito ao uso da razão e do livre-arbítrio. Além disso, as composições trazem o princípio de que somente o hábito das virtudes seria capaz de colocar em ordem as paixões e afetos da alma. Em suma, tratava-se de uma visão francamente positiva da natureza humana, a qual preservava uma noção tomista sobre as potencialidades do homem de ser inclinado ao bem, mesmo após a queda de Adão e Eva, desdobrada numa cooperação entre natureza e graça divina.

Outra dimensão importante dessa relação está na ordem de produção e impressão das gravuras da série. Conforme argumenta Skinner, a ordem e hierarquia das virtudes não deve ser pensada como coincidência, pelo contrário, pode indicar a tradição ética a qual se pretendeu seguir.148 Primeiramente, as três virtudes cardeais – em ordem por CHARITAS, SPES E FIDES -, revelam a precedência da graça de Deus na vida humana e, possivelmente, a inclinação à caridade como a principal e fundamental virtude teológica; segundo, as quatro virtudes cardeais – em ordem por PRUDENTIA, IVSTITIA, FORTITVDO e TEMPERANTIA-, indicam uma tradição tomista cristã, bem como a recuperação de Cícero, que viam na precedência de Prudência a capacidade de transformar a igualdade em justiça, a coragem em fortaleza e a governança instintiva em temperança.149

Nesse sentido, tanto a manutenção dos atributos da ‘nova iconografia das virtudes’ como a inclinação aristotélico-tomista da ética tendem a revelar uma forma tributária à tradição cristã- medieval das virtudes, um princípio que esteve em transformação e disputa durante os conflitos político-religiosos da primeira modernidade. Há que se confirmar, contudo, o papel que essas querelas desempenharam na própria execução da série, a partir de uma mudança no programa visual que incluiu cenas cotidianas às representações de virtude. Aqui reside uma dificuldade em pensar uma análise enquanto série, na medida em que cada gravura apresenta um aspecto diferente da organicidade social.

148 SKINNER (data), op. cit., p.61. 149 A tradição, em grande parte herdada de Cícero, enumera que a hierarquia entre as três restantes virtudes morais é Justiça, Fortaleza e Temperança. Tomás de Aquino cita Aristóteles como sua autoridade para a alegação adicional de que é manifesto que Prudência é mais excelente do que qualquer outra virtude moral. Em contraste, a visão senequista inverte a hierarquia entre as virtudes cardeais. A Justiça, em vez de ter precedência sobre as outras virtudes morais, é colocada em último lugar na lista. Segundo Skinner, este é o ordenamento que o próprio Sêneca adota em sua discussão sobre a "virtude perfeita", no curso do qual ele enumera as quatro principais virtudes como Temperança, Fortaleza, Prudência e Justiça. Idem., p. 63. 78

Em suma, poderíamos sugerir que a série evoca a uita actiua, pensada para todo corpo orgânico da sociedade – os diferentes estratos sociais (camponeses, nobres, clérigos, homens de letras) e as instituições (universidades, igrejas, corporações jurídicas) –, são incorporadas como uma dimensão da ciuitas. O princípio da vida ativa teria sido recuperado em Cícero e foi um importante pilar na constituição do humanismo cívico no Norte, na medida em que propôs a participação cívica e erudita para a concórdia nas cidades. A série constrói a vida cotidiana pela participação dos concidadãos no ambiente político, religioso e intelectual; seria, assim, o ideal de civilidade. Por um lado, trata-se de um programa visual que retrata a cotidianidade da vida nos Países Baixos, uma vez que essas regiões possuíam uma longa tradição de representação comunal e cívica, por outro lado, reafirma a proposição do civismo como modelo político-religioso, talvez, muito parecido com os Espelhos de Príncipe, mas direcionado para a comunidade.150

Uma análise das gravuras enquanto série não permite sugerir que as composições evoquem puramente sátiras e críticas ao mundo visível, como a maior parte da bibliografia sugeriu. Por outro lado, também não significa que as composições deixam de apontar um juízo sobre as práticas de virtude e civismo. Em nossa análise, sugerimos que As sete virtudes operam conjuntamente as virtudes e as paixões, o exemplo e a crítica, numa produção que, mesmo sendo pensada de forma seriada, carrega nuances que distinguem cada composição. As três primeiras gravuras, CHARITAS, SPES E FIDES, tal qual lembra a noção de virtude teologal, incorporam de forma mais explícita o elemento religioso no que parece ser uma proposta de espiritualidade e de comportamento do cristão diante das incertezas religiosas. Não deixa, contudo, de apontar advertências, como a atenção às práticas puramente sacramentais, a intolerância com grupos desviantes da norma social e a falta de esperança daqueles que se deixam abalar pelos infortúnios. As quatro gravuras seguintes, PRUDENTIA, IVSTITIA, FORTITVDE E TEMPERANTIA, tal qual sugere a noção de virtude cardeal, apresenta a dimensão das práticas civis e políticas, mas chama a atenção para que o mundo terreno não se sobreponha ao espiritual e que as punições não sejam severas a ponto de se perder de vista o princípio disciplinador da justiça. Em suma, trata-se de uma proposta de disciplinamento que,

150 Nesse sentido, é curioso que nenhuma das gravuras aludam as virtudes e o civismo ao príncipe. Embora não seja um aspecto que exploramos nessa pesquisa, acreditamos que ausência de qualquer alusão ao príncipe ofereça pistas sobre a condição política que os Países Baixos, sob domínio Habsburgo, experenciavam durante as décadas de 1550 e 1560. Tratava-se de uma política de progressiva centralização político-administrativa por parte da coroa habsburga dentro dos territórios neerlandeses que, em alguma medida, feria as liberdades e tradições daquela sociedade. 79 em sua dimensão retórica, encaminha o exemplo da virtude e da advertência num mesmo programa visual.

A inserção do ambiente cívico em As sete virtudes inaugura uma mudança na iconografia das virtudes, que acreditamos estar alinhada a uma inspiração erasmiana do humanismo cristão. Essa mudança na tradição iconográfica não está, todavia, firmada a partir das disputas confessionais, mas numa proposta anterior, de matriz tomista e erasmiana, que encaminha a fé para uma vivência mais adequada da ética numa sociedade que, aí sim, tem os conflitos confessionais como parâmetro e circunstância. Durante a pesquisa, não foi possível consultar as obras de Erasmo e, por isso, a perspectiva de uma interpretação das gravuras considerando uma proposta erasmiana de espiritualidade e civilidade é fundamentada, sobretudo, no que a bibliografia diz sobre Erasmo e os círculos desse humanismo.

Conforme sugere Rodrigues, a origem do humanismo erasmiano liga-se às atividades de Erasmo de Rotterdam (1466-1536), um dos homens mais impressos de seu tempo e com um papel exemplar para restauração das fontes e da religião.151 Esse humanismo, nos Países Baixos, constituiu-se em torno dos movimentos de reforma espiritual do século XVI, num processo que se avizinhava antes das reformas protestantes e católicas, mas que se alocou em outro patamar a partir das especificidades confessionais. Os impressores da série – Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock – são de duas ou três gerações depois de Erasmo e a publicação das gravuras se deu vinte e três anos após sua morte. Trata-se de um ambiente em que a herança erasmiana se fazia, ainda, muito presente no seio das comunidades neerlandesas, bem como a defesa de uma espiritualidade religiosa autocentrada, uma vez que as ortodoxias confessionais colocavam os dogmas como esferas cada vez mais segregadas no interior da Cristandade.

A categoria Confessionalização tem sido utilizada para descrever e problematizar de maneira mais geral esse momento da História Moderna, que compreende a divisão da Cristandade ocidental marcada pela definição de um campo próprio de existência religiosa entre católicos e protestantes. Segundo Rodrigues, as disputas confessionais conformaram-se em mecanismos e processos pelos quais grupos religiosos, oriundos da cristandade dividida, buscaram recriar a estrutura da respublica christiana dentro de suas próprias esferas confessionais.152

151 RODRIGUES, Rui. “A contribuição erasmiana para a reforma da igreja”. Revista Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 9, n.2, 2017. pp. 494-495. 152 RODRIGUES, op. cit., 2012. p. 443. 80

Essa delimitação confessional foi vista como um problema por Erasmo, pois sua defesa esteve em torno de um conjunto de dogmas mínimos como o núcleo essencial da fé cristã. Ao fim e ao cabo, o humanista se posicionava em vista da restauração da respublica christiana em um único corpo político-religioso, embora reformado pela síntese de uma espiritualidade cívica.153 Os desdobramentos religiosos do século XVI foram, contudo, na contramão de um núcleo dogmático comum. As confissões protestantes, bem como os grupos radicais derivados das reformas teriam se multiplicado no interior da sociedade neerlandesa. Do mesmo modo, a releitura tridentina da tradição católica teria ratificado tradições e dogmas religiosos. As divergências confessionais se dividiam, especialmente, a partir do debate ético-teológico, do qual trazia as virtudes e a percepção sobre a natureza humana na esteira das disputas confessionais.

O contexto de publicação da série (décadas de 1550 e 1560) foi, ainda, muito mais rígido em termos confessionais do que o outrora experienciado por Erasmo. A Paz de Augsburgo, assinado em setembro de 1555 por Carlos V e as forças da Liga Esmalcalda, estabelecia os territórios confessionais entre os príncipes luteranos e católicos. O tratado, contudo, não incluía as muitas confissões derivadas das reformas protestantes, como a calvinista e anabatista, que tinham cada vez mais adeptos nos Países Baixos. Segundo Schwehoff, cerca de 1.300 pessoas foram condenadas por heresia na região, entre 1520 e 1560, e por volta de mil dos condenados eram anabatistas, cuja perseguição atingiu seu pico após a rebelião de Munster em 1535.154 O Édito contra a heresia, sancionado em 1550 pelo rei Filipe II, estabelecia que ninguém deveria

Formulada na historiografia alemã da década de 1970, a categoria de Confessionalização ganhou expressividade no campo da história ocidental, à medida que debateu as dinâmicas dos conflitos religiosos e o processo de secularização dos Estados modernos. Na tentativa de explicar os conflitos religiosos pela Confessionalização, Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling repensaram o papel das confissões no início da modernidade, bem como as dinâmicas entre religião e Estado. Reinhard sugeriu que a Confessionalização buscou a estruturação de um conjunto social ao redor do princípio da fé, ao passo que os grupos opostos reconheciam esses princípios e se distinguiam de seus adversários. A necessidade de normalizar crenças e comportamentos passava por padrões de propaganda, catecismos e normas transmitidas ao público por meio de textos e imagens. As igrejas garantiam o disciplinamento onde e quando as instituições estatais não conseguiam. Seu colega, Heinz Schilling, apontou que os processos confessionais colaboraram com as dinâmicas de modernização da sociedade europeia latinizada, não em oposição às forças religiosas de confessionalização da época, mas entrelaçadas com elas. Nesse processo, a época confessional teria sido um “Vorsattelzeit der Moderne” (selamento da modernidade), aquilo que teria corroborado para acelerar os processos de mudança na estrutura social, cultural e política. Cf., REINHARD, Wolfgang. “Pressures toward Confessionalization? Prolegomena to a Theory of the Confessional Age”. Tradução. In DIXON, C. Scott (ed.). The German Reformation: Blackwell Essential Readings. Oxford: Blackwell, 1999. pp. 169-92. Apud RODRIGUES, Rui. op. cit., 2012. 400-405 e SCHILLING, Heinz. Early Modern European Civilization and its political and cultural dynamism. The Menahem Stern Jerusalem Lectures. Lebanon: University Press of New England, 2008. p.14. 153 Idem., p. 498. 154 SCHWERHOFF, op. cit., p. 103. 81

[...] imprimir, escrever, copiar, manter, esconder, vender, comprar ou dar em igrejas, ruas ou outros lugares qualquer livro escrito por Martinho Lutero, John Ecolampadius, Ulrich Zwinglius, Martin Bucer, João Calvino e outros hereges reprovados pela Santa Igreja; nem quebrar ou ferir as imagens da Santa Virgem ou santos canonizados; nem em sua casa possuírem convenções, ou estão presentes em qualquer tal, em que hereges ou seus adeptos ensinam, batizam ou formam conspirações contra a Santa Igreja e o bem-estar geral. Além disso, todos os leigos foram proibidos de conversar ou disputar sobre as Escrituras Sagradas aberta ou secretamente, ou ler, ensinar ou expor; ou para pregar, ou para entreter qualquer uma das opiniões dos hereges mencionados acima [...].155 Aqueles que não cumprissem o Édito deveriam ser punidos. Caso não persistisse a desobediência, os homens deveriam ser executados com espada e as mulheres enterradas vivas. Se houvesse a persistência da desobediência, eles seriam executados na fogueira. Em ambos os casos suas propriedades deveriam ser confiscadas pela coroa.156

As perseguições inquisitoriais eram permitidas em esferas papal, episcopal e secular, o que dificultava quaisquer práticas confessionais não católicas no território dos Países Baixos Habsburgo. Pieter Titelmans, um dos inquisidores nomeados pelo papa, creditou um total de 127 execuções e 82 sentenças de morte proferidas apenas entre 1559 e 1563.157 Segundo Juliaan Woltjer, Antuérpia teria atraído adeptos de outras confissões pelo ambiente plural dessa cidade, que permitiu o exercício confessional em esfera privada e, em alguns casos, pública. Gaspar van der Heyden e Adriaan van Haemstede, calvinistas de confissão, fizeram pregações frequentes em casamentos, banquetes e ambientes privados. Segundo o autor, o distanciamento político da coroa habsburga em territórios dos Países Baixos fez com que a coroa não tivesse real ciência de uma opinião pública essencialmente plural em termos confessionais,

155 “No one,” said the edict1 “shall print, write, copy, keep, conceal, sell, buy or give in churches, streets, or other places, any book or writing made by Mar-tin Luther, John Ecolampadius, Ulrich Zwinglius, Martin Bucer, John Calvin, or other heretics reprobated by the Holy Church; nor break, nor otherwise in-jure the images of the holy virgin, or canonised saints; nor in his house hold conventicles, or illegal gatherings, or be present at any such in which the ad heretcs of the above-mentioned heretics teach, baptize, and form conspiracies against the Holy Church and the general welfare… Moreover, we forbid,” continues the edict, in name of the sovereign, “all lay persons to converse or dispute concerning the Holy Scriptures, openly or secretly, especially on any doubtful or difficult matters, or to read, teach, or expound the Scriptures, un-less they have duly studied theology and been approved by some renowned university; or to preach secretly, or openly, or to entertain any of the opinions of the above¬-mentioned heretics; Cf., MOTLEY, John Lothrop. Extract from The Rise of the Dutch Republic: History by Jhon Lothrop Motley. Londres: George Routledge and Sons; Broadway, Ludgate Hill, 1880. pp. 01-02.

156 Idem., pp. 02-03.

157 SCHWERHOFF, op. cit., p. 104. 82 acompanhada por uma ‘conspiração de silêncio’ entre os oficiais de Filipe II sobre as reais práticas religiosas no ambiente neerlandês.158

Tratava-se, portanto, de um momento em que, tal como sugere Rodrigues, o caminho de uma restauração da Christianitas colocava-se inviável aos moldes pretendidos por Erasmo. Era de se esperar, contudo, que esses círculos continuassem a valorizar uma série de elementos importantes para aquele humanismo, como o letramento, a espiritualidade cívica, a condescendência religiosa e a pedagogia. Porém, nesse contexto mais rígido também foram obrigados a aderir às confissões de fé dos grupos aos quais permaneciam ligados.

A distinção confessional é, nesse sentido, bastante nítida em As sete virtudes. Trata-se de um alinhamento aos princípios da Igreja de Roma (que o próprio Erasmo nunca rompeu), na medida em que indicou a matriz tomista das virtudes numa visão positiva sobre a capacidade de homens e mulheres adquiri-las, ainda que pesasse a esse alinhamento uma proposta visual menos dogmática e mais devocional. A defesa do livre-arbítrio, no contexto das disputas confessionais, tornou-se uma marca distintiva do catolicismo romano em oposição ao servo- arbítrio luterano. Contudo, a partir dessa ética, se a natureza humana poderia ser inclinada ao bem, também poderia estar propícia aos infortúnios dos vícios. A pedagogia e a catequese aparecem na série como um traço desse humanismo erasmiano, que via a instrução do conhecimento como ferramenta para não corruptibilidade do homem. Deste modo, a série evoca uma retórica visual que disputava não apenas as virtudes, mas o debate ético-teológico, em geral.

A interpretação de uma matriz erasmiana surge justamente a partir desse padrão pedagógico-catequético, que configura o caráter positivo entre as virtudes e natureza humana e insere a visualidade das práticas de virtude como guia de espiritualidade e civismo cristão. Segundo Rodrigues, a pedagogia e a catequese foram essenciais, em Erasmo, para a instrução da fé, cujo ensinamento deveria incluir tanto a doutrina como a admoestação. Suas obras, Intitutio principis christiani (primeira edição em 1516) e Enchiridion militis chritiani (primeira edição em 1504), amplamente difundidas no ambiente neerlandês do século XVI, ofereciam clara ênfase pedagógica, a primeira pensada para o príncipe e a segunda dirigida a um amigo para instrução pessoal na vida em virtude. Do mesmo modo, uma coletânea de escritos

158 “This article will suggest that the gap between the strict laws against heresy and their actual implementation on the ground was accompanied by a conspiracy of silence among Philip’s officials, that left the king very much under-informed about the real state of public opinion around this issue in the Netherlands.” Idem., p. 87. 83 funcionais, publicado sobre o título Colloquia, em 1522, teria se destinado ao aprendizado da conversação em outro idioma, mas também ao caráter pedagógico e formativo que instruía o cristão na religião e na vida. 159 Em termos religiosos, essas obras trataram de uma dimensão mais ampla da fé, que deveria ser igualmente instruída e ensinada para que as práticas religiosas estivessem em conformidade com uma vida espiritual que desse premência a uma vivência em Cristo e no que ele ensinou. Uma ênfase em propostas pedagógicas e catequéticas à luz de Erasmo é, nesse sentido, apreciada em As sete virtudes, ainda que com suas especificidades.

Os sacramentos não deveriam ser práticas vazias da fé e as obras de caridade deveriam se instruir pelos mandamentos de Cristo; as punições não deveriam transpor os ditames da justiça, mas servir como correção do mau; e a prudência deveria ser ditada pela razão e pela espera na providência divina; a esperança e a fortaleza seriam guias para que o cristão não perdesse a confiança e nem se abalasse em matéria de fé. A alusão ao conhecimento como dimensão essencial da vida em virtude é expressa de forma mais nítida na última composição da série, TEMPERANTIA, que encerra a seriação indicando a instrução como o caminho da espiritualidade cívica. A pedagogia é expressa especialmente pelo caráter didático que as gravuras evocam os temas da virtude, indicando em tarefas cotidianas mais acessíveis a eminência de uma espiritualidade cristã; a catequese é instruída tanto no programa visual quanto nas legendas, que contemplam a ética das virtudes na chave teológica e apresenta uma admoestação, geralmente um exemplo de mau comportamento ou uma advertência nas inscrições.

É, de fato, bastante complexa a dimensão religiosa e civil que as gravuras evocam. Em alguma medida, poderíamos sugerir que elas foram pensadas para intervir não apenas diante das disputas confessionais, mas da própria desordem social que era experienciada nos Países Baixos em meados do século XVI. Se os impressores compreenderam a necessidade de uma série de gravuras que unificasse o tema das virtudes cristãs às práticas civis, possivelmente, foi porque se experienciava um ambiente social carente de disciplinamento social e concordância civil, à semelhança do que se idealizava como o modelo da christianitas. Em dimensão político- religiosa, pretendia-se que essas imagens pudessem modificar a paisagem urbana para onde circulassem e, em termos comerciais, interessava que o público preocupado com esses temas pudesse adquirir e compartilhar as gravuras.

159 RODRIGUES, op. cit., p. 311-312. 84

Esses materiais, possivelmente, tiveram demanda para circular para um público mais amplo, atribuindo-lhes os mais variados usos cotidianos. Flávia Galli Tatsch sugere que gravuras flamengas possivelmente circularam para além-mar, a partir do século XVI, como alguns dos impressos publicados por (1514-1589), amigo próximo de Hieronymus Cock, que teve suas impressões divulgadas na Espanha e em colônias pelo mundo.160 Se quiséssemos nos concentrar apenas no ambiente neerlandês, podemos sugerir que esses objetos foram introduzidos em espaços públicos e privados de lojas, tavernas e moradias no que pudesse incitar diferentes utilidades: propagandas político-religiosas, coleções, revendas em feiras, etc.

Segundo Jan van der Stock, no final da década de 1550, o preço médio de uma gravura nos Países Baixos custou cerca de 0,156 denier, um preço que permitia a um artesão mal pago adquirir esses objetos facilmente, sem comprometer sua paga mensal.161 Uma estimativa nos permite indicar que em uma única tiragem poderiam ser impressas 1.000 gravuras, uma quantidade comum para um empreendimento como o de Hieronymus Cock.162 Deve se considerar, ainda, as descobertas recentes que relevam que algumas gravuras tiveram mais de um estado de impressão, como deve ter sido o caso de FIDES, PRVDENTIA, FOTITVDO E TEMPERANTIA, cuja prova foi feita a partir de alterações de letras nas legendas.163 Além disso, a multiplicidade de estratos sociais representados nas composições tendem a informar o interesse de que esses materiais fossem comprados de forma mais ampla. Em suma, trata-se de um objeto que, por sua própria condição de gravura, foi compartilhado por um público diverso e em ambientes plurais, uma vez que o preço e o tamanho desses materiais facilitavam o transporte e a distribuição.

Há, contudo, uma demanda específica que a série parece ter contemplado: os próprios círculos de impressores, letrados e humanistas, os quais não eram poucos na altura das décadas de 1550 e 1560, e foram particularmente íntimos de Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock. A produção de gravuras religiosas, como As sete virtudes, foi frequente entre impressores

160 GALLI, Flávia. “A circulação de gravuras flamengas no vice-reino do Peru: transferência de modelos e inventividade”. Domínios da Imagem, Londrina, v. 9, n. 17, p. 7-25, jan./jun. 2015. 161 VAN DER STOCK, op cit., 1998. p. 123 162 Cf., Jan van der Stock (1998), nota 68: “Scribner 1981b, p.05. He adds, “we have no reliable estimates of the numbers in which the popular woodcut circulated”, According to B. Weber, it was possible, at any rate, for several thousand impressions of a woodcut to be printed (Weber, 1972, p.30, nota 71); Febvre and Martin give 1,000 to 1,500 as the average number of copies made of a typographically printed book (with illustrations); see Febvre and Martin, 1986, pp. 217-19;”. 163 ORENSTEIN, op cit., p. 193. 85 ligados a esse humanismo cristão, dentre os quais pode-se sugerir Dirck Coornhert, Marteen van Heemskerck, Hadrianus Junius, Abrahan Ortelius e muitos outros. Há indícios, não suficientemente examinados ainda, que podem indicar conexões de ordem político-religiosa mais ampla, consideravelmente fortes a ponto de conformarem redes de impressão entre essas oficinas editorais, a fim de que fossem produzidos gravuras e impressos de todo tipo que manifestassem suas opiniões diante nos processos confessionais. O caso de As sete virtudes é uma entre muitas produções que, por um lado, apresentou os conflitos e incertezas que operavam na Cristandade, por outro, propôs uma prática espiritual e cívica que, se conduzida a partir da razão e disciplinamento, poderia corrigir os problemas religiosos e cívicos experienciados e restaurar a concórdia da Cristandade fragmentada.

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CONCLUSÃO

Como resultado dessa pesquisa, creio que a série de gravuras As sete virtudes possa ser pensada como uma produção iconográfica bem mais complexa do que geralmente se considerou em pesquisas que buscaram investigá-la. Julgamos que a série traz, em sua composição visual, textual e material, uma congruência de elementos que dizem respeito tanto a uma tradição medieval-cristã sobre as virtudes, quanto a aspectos contemporâneos, típicos de como esse círculo de impressores, apropriando-se de uma tradição do humanismo cristão erasmiano, se posicionou diante das controvérsias religiosas das décadas de 1550 e 1560, nos Países Baixos.

Se por um lado a série incorporou elementos tradicionais do que se chamou “nova iconografia das virtudes”, referente a um modo particular de representá-las separadamente dos vícios e atribuindo-lhes atributos iconográficos característicos, por outro lado, constituiu-se enquanto expoente de uma mudança iconográfica na representação das virtudes, na medida em que as alegorias foram representadas em conjunto com exemplos práticos do que esses produtores propunham como ideal de comportamento do cristão nas esferas espiritual e civil. Em suma, trata-se de um programa visual que aponta para uma sistematização mais densa das virtudes teologais e cardeais que, no ambiente cristão, foram sumarizadas pela recuperação de autores clássicos, da patrística e escolástica

A apropriação dos atributos da ‘nova iconografia das virtudes’ informa não apenas uma tradição visual comum às representações de virtude, mas uma reafirmação da esfera cristã- medieval para onde foram forjadas essa tradição. Tanto os atributos da alegoria como as legendas na margem inferior das gravuras inferem uma apreciação positiva das virtudes, geralmente associado a uma síntese tomista de suas formulações éticas no que tange à relação entre natureza e graça. A adequação do epítome tomista é apresentada na série numa compreensão de que a alma do cristão não era, por natureza, totalmente corrompida pelo pecado, cabendo à razão e ao arbítrio as diretrizes para uma escolha adequada da vida em virtude. Na série, a prática das virtudes cristãs não opera apenas na alma, mas na valorização da uita actiua, inspirada em Cícero, para qual as virtudes deveriam ser pensadas no exercício político e civil da respublica. Em termos filosófico-teológico, a série As sete virtudes busca, nas aspirações de Cícero e Tomás de Aquino, uma síntese para que as virtudes se realizassem no mundo cristão, incitando a partição espiritual e cívica nos moldes da uita atiua.

A síntese que vemos na série, entre passado clássico e cristianismo, foi construída por Erasmo alguns anos antes e ofereceu o sumo teórico deste humanismo durante o século XVI. 87

Contudo, no momento de produção e circulação dessas gravuras, enfrentava-se um contexto mais rígido dos conflitos religiosos e dos processos de disciplinamento social no mundo neerlandês, que prejudicava qualquer proposta de espiritualidade e civismo nos moldes do que se pretendia idealizado por esse humanismo. Esse momento mais embrutecido da Confessionalização elucida uma participação mais ativa de impressores em vista de temas religiosos.

O posicionamento de Pieter Bruegel, Philip Galle e Hieronymus Cock deu-se na construção da série de virtudes pela proposta de produzir um exemplar retórico-visual das virtudes que, por um lado, lhes qualificassem no cenário artístico-comercial e, por outro lado, pudesse modificar a paisagem urbana para onde esses impressos circulassem. Propunha-se que a série pudesse ser um instrumento pedagógico, cuja prática da virtude foi transmitida por padrões visuais, textuais e materiais suficientemente didáticos, com exemplos claros de virtude na vida cotidiana, em ambientes da cidade, do campo e do mar. Ao mesmo tempo, instruía-se, pela catequese, os princípios morais da fé cristã, conduzidos nas gravuras pelo conhecimento que ensina as virtudes e pela advertência de práticas inadequadas. Os padrões catequético- religiosos foram suscitados, na série, pela primazia de uma espiritualidade que excedesse os ritos externos, a premência de Cristo e seus mandamentos na vida espiritual e cívica, e uma conduta ética que ensinasse o cristão a utilizar-se do arbítrio para prática de boas obras e conduzir suas almas à salvação eterna.

Contudo, a defesa do livre arbítrio e de uma esfera positiva da natureza humana não poderia, nesse contexto confessional mais rígido, deixar de reportar à confissão de fé à qual pertenciam os impressores. A marca da não corruptibilidade completa da alma do cristão esteve associado aos princípios do catolicismo, em oposição ao servo-arbítrio luterano, que via, na queda do homem, a mancha pelo pecado original e a redenção apenas pela graça de Deus. É, nesse sentido, ambígua a própria composição visual que, por um lado, preza pela secundarizarão da estrutura dogmática em vista de uma espiritualidade interiorizada e, por outro lado, reafirma o núcleo essencial do catolicismo confessional que, embora construído numa tradição crista de corpo universal, nesse ponto, reafirmava a Cristandade a partir de sua própria esfera confessional e em detrimento de campos religiosos opostos.

Finalmente, devemos sugerir que a série foi pensada para intervir diante das disputas confessionais, mas, especialmente, frente à própria desordem social e religiosa que era experienciada nos Países Baixos. Seria, nesse sentido, um guia prático para o cristão de 88 disciplinamento espiritual e cívico que, através das práticas de virtude, pudesse recuperar a concordância civil e religiosa, à semelhança do que se idealizava como o modelo da christianitas. Essas gravuras não foram, contudo, produzidas e difundidas isoladamente, pelo contrário, fazem parte de rol de imagens, textos e estampas empreendidos por esses e outros impressores ativos nas décadas de 1550 e 1560. Assim como o estudo da série tende a sugerir uma produção conectada entre os centros editoriais de Antuérpia e Haarlem, um olhar mais amplo sobre a produção de imagens político-religiosas, empreendidas nesse período, poderia oferecer caminhos para investigarmos redes de impressores suficientemente fortes, apropriados desse humanismo erasmiano, a ponto de firmarem laços político-religiosos ativos frente às disputas confessionais.

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