Anuário Antropológico

v.40 n.1 | 2015 2015/v.40 n.1

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/aa/1318 DOI: 10.4000/aa.1318 ISSN: 2357-738X

Editora Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB)

Edição impressa Data de publição: 1 julho 2015 ISSN: 0102-4302

Refêrencia eletrónica Anuário Antropológico, v.40 n.1 | 2015, «2015/v.40 n.1» [Online], posto online no dia 01 junho 2018, consultado o 27 abril 2021. URL: http://journals.openedition.org/aa/1318; DOI: https://doi.org/ 10.4000/aa.1318

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SUMÁRIO

Conferências

Diálogos Brasil‑México : a estreitar laços Wilson Trajano Filho e Carla Costa Teixeira

Cidades, diversidades e cidadanias na antropologia mexicana Guillermo de la Peña

Cidadania, direitos e diversidade Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Artigos

O exercício da sombra : a experiência de uma etnografia Rose Mary Gerber

As comunidades negras rurais nas ciências sociais no Brasil: de Nina Rodrigues à era dos programas de pós-graduação em antropologia Carlos Alexandre B. Plínio dos Santos

Construção de territórios geríveis : (in)definição do lugar do crime contra pessoas na internet Mariana Cintra Rabelo

São Tomé e Príncipe : pelo trabalho, o homem novo e o socialismo contra os costumes da terra Augusto Nascimento

A tragédia da Piedade : o grande drama da República Arno Vogel e Regiane Ferreira

A proposta da Tecnologia Comparada Rainer Miranda Brito

Chegar à Terceira Margem : um caso de prosa, paixões e maldade Graziele Dainese

Não ser empregado, não ter empregado : o trabalho com a família, para a família e suas variações Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

“Alteridade contextualizada” : variações ashaninkas sobre o branco José Pimenta

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Resenhas

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MONTERO, Paula. 2012. Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas Etnografias Salesianas (1920-1970) São Paulo: Edusp Alexandre Jorge de Medeiros Fernandes

SANSONE, Livio (org.). 2012. A política do intangível : museus e patrimônios em nova perspectiva Salvador : Edufba Rita de Cássia M. Santos

VICENTINI, Cláudia. 2014. Corpo : adoecimento mental e hierarquia na Polícia Militar goiana Goiânia : Editora UFG Vinicius Prado Januzzi

BORGES, Antonádia (org.). 2014. Antropologia : razão e poder na pesquisa etnográfica contemporânea Brasília, DF : Thesaurus Andreia Vicente da Silva

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BORGES, Antonádia Monteiro ; MACHADO, Lia Zanotta ; MOURA, Cristina Patriota (orgs.). 2014. A Cidade e o Medo Brasília : Verbena/Francis Krislane de Andrade Matias

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Conferências

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Diálogos Brasil‑México : a estreitar laços

Wilson Trajano Filho e Carla Costa Teixeira

1 Em uma conferência proferida em 1997, sintomaticamente, no 49º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Quito, Equador, o decano da antropologia brasileira, professor Roberto Cardoso de Oliveira, chamava a atenção para o fato de que as antropologias das periferias estavam interessadas basicamente no que se passava nos seus próprios territórios ou regiões, e os seus praticantes pouco conheciam o que se produzia nas outras comunidades antropológicas periféricas, dedicando‑se prioritariamente ao diálogo (fantasioso no mais das vezes, diríamos nós) com a produção realizada nos países do centro (Cardoso de Oliveira, 2006). Nessa mesma ocasião, nosso decano propunha que a concentração das pesquisas nos próprios territórios nacionais dos antropólogos seria um dos indicadores úteis para o exame comparativo das antropologias que fazemos nas periferias do sistema mundial.

2 Alguns anos mais tarde, um dos autores do presente texto, comungando a mesma linha de pensamento, afirmava que a produção antropológica brasileira se caracterizava pela dominância dos temas nacionais e que eram poucos os antropólogos a se aventurarem em pesquisas fora de nossas fronteiras, mas apontava para tênues sinais de mudança (Trajano Filho & Martins, 2004). Em 2014, esse mesmo autor ressaltava que havia nos departamentos de antropologia das universidades brasileiras cerca de 30 pesquisadores doutores com experiência de pesquisa em contextos africanos (Trajano Filho, 2014). Essas mesmas instituições abrigam atualmente mais de meia centena de antropólogos com interesse de pesquisa em outras partes do mundo. Passados mais de quinze anos da conferência do professor Roberto Cardoso de Oliveira, observa-se uma gradual mas evidente tendência ao alargamento de horizontes de pesquisa na antropologia feita no Brasil.

3 Apesar da crescente internacionalização da antropologia brasileira, permanece entre nós o sentimento difuso de que conhecemos pouco o que se faz na antropologia da América Latina. Esse sentimento é ainda mais dolorido e provocador quando se trata do México, por se tratar de uma comunidade antropológica muito grande, muito qualificada e, de certo modo, semelhante à brasileira, no que diz respeito ao seu

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relacionamento com o Estado nacional. Sabemos hoje que esse sentimento é recíproco, havendo entre os antropólogos mexicanos um genuíno interesse em conhecer e estreitar os laços institucionais e o diálogo intelectual com os colegas brasileiros.

4 As trocas intelectuais entre cientistas sociais dos dois países datam pelo menos do início dos anos de 1960, quando Rodolfo Stavenhagen passou uma temporada no Centro Latino‑Americano de Ciências Sociais, no Rio de Janeiro, na época dirigido por Manuel Diegues Jr. Data desse período o encontro do sociólogo mexicano com Roberto Cardoso de Oliveira, então baseado no Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde então, foram muitos os encontros envolvendo antropólogos brasileiros, mexicanos e latino-americanos, como a II Reunión para la Integración de la Enseñaza en las Investigaciones Antropológicas e o 6º Congresso Indigenista Interamericano, realizados no México, em 1968, o 8º Congresso Indigenista Interamericano, sediado em Brasília, em 1972, e o Seminário Latino‑Americano de Antropologia, ocorrido nessa mesma cidade em 1987. Mas de algum modo a sede por um diálogo mais intenso e regular fez com que, em 2012, um grupo de antropólogos dos dois países engendrasse esforços para promover reuniões bienais regulares de modo a ultrapassar esse fosso e intensificar as trocas intelectuais entre as duas comunidades. Foi assim que surgiram os Encontros de Antropólogos Mexicanos e Brasileiros (EMBRA). As comunidades antropológicas de Brasil e México, como já havia sido ressaltado em 2012, quando da publicação das conferências do I EMBRA, guardam afinidades históricas e de relevância em seus respectivos campos científicos nacionais e latino-americano, não apenas pela qualidade de sua produção acadêmica, mas também devido às fortes presenças que atualizam, embora de forma distinta, nas esferas públicas de seus países. Tais afinidades têm se frutificado com a publicação de textos e livros clássicos da antropologia brasileira na Coleção Clásicos y Contemporâneos en Antropología (CIESAS, UIA, UAM‑1), que, por meio do acesso gratuito a autores brasileiros em espanhol, permite intensificar a permeabilidade entre essas tradições disciplinares.1 Com a mesma orientação, a articulação entre CIESAS, Embaixada do Brasil no México e Editora da UnB permitiu lançar a Biblioteca Mexicano-Brasileira de Antropología y Ciencias Sociales.2 No Brasil, coletâneas organizadas de forma conjunta por antropólogos brasileiros e mexicanos podem ser encontradas no acervo de publicações da Associação Brasileira de Antropologia,3 bem como artigos de antropólogos mexicanos podem ser lidos em vários periódicos brasileiros de reconhecida relevância4 e vice-versa.5

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Imagem 1 : Publicações oriundas do diálogo entre as comunidades antropológicas de Brasil e México

5 Se a leitura mútua de escritos antropológicos mexicanos e brasileiros é fundamental para a construção de um campo comum de preocupações e reflexões e para a proposição de novas perspectivas comparativas, há que destacar a relevância da troca de experiências face a face na sua consolidação. Tais experiências, tanto em eventos da Associação Latino‑Americana de Antropologia, de Antropologia do Mercosul, e, mais recentemente, nos Encontros (bienais) entre Antropólogos Mexicanos e Brasileiros quanto na permuta de professores em estadias prolongadas (a ministrarem palestras, minicursos e cursos regulares de pós-graduação) e nos intercâmbios de estudantes de pós-graduação, são centrais ao adensamento das relações sociais tão caras à longevidade das proximidades intelectuais. Afinal, são essas situações que tornam possível a articulação de redes de investigadores que, mais ou menos institucionalizadas, geram convites, publicações e novos eventos. Foi no espírito de continuidade e renovação dessas iniciativas institucionais que o Departamento e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade de Brasília (DAN e PPGAS/UnB) organizaram o II Encontro entre Antropólogos Mexicanos e Brasileiros (II EMBRA), de 3 a 6 de novembro de 2013, em articulação com o Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS). Se o I Encontro, realizado dois anos antes na Cidade do México, focalizou a identificação e discussão de temas de interesse comum, em Brasília, a segunda versão do Encontro contribuiu para que pesquisadores antropólogos de ambos os países delineassem uma agenda de trabalho conjunta, com vistas a permitir articulações entre instituições, bem como constituíssem redes de investigadores binacionais a fim de desenvolver atividades e pautas de pesquisa continuadas.

6 Realizado no Memorial Darcy Ribeiro, o II EMBRA congregou 158 antropólogos de ambos os países, entre os quais 93 professores e pesquisadores, 40 pós‑graduandos e 25 graduandos. Além da diversidade de momento de formação profissional, é preciso destacar a diversificada pertença institucional dos participantes. Afora a presença de

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antropólogos das instituições organizadoras, PPGAS/UnB e CIESAS, muitos colegas vieram de outras instituições de ensino e pesquisa. Se considerarmos a origem institucional dos brasileiros, por exemplo, cerca de 60 % dos participantes eram da Universidade de São Paulo, da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade Federal de São Carlos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal Fluminense, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidade Federal do Amazonas, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, da Universidade Federal do Pará, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da Universidade Federal do Paraná, entre outras.

Imagem 2 : Memorial Darcy Ribeiro (UnB)

7 Visto desse ângulo, o II EMBRA fez mais do que aprofundar as relações entre o PPGAS/ UnB e o CIESAS — relações estas que, desde 2007, adquiriram a forma de um convênio institucional que prevê projetos institucionais de pesquisa ; intercâmbio de professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação ; troca de informação, documentação e publicações científicas ; e encontros de estudo, reuniões, cursos, seminários, colóquios e simpósios. Os quatro dias de evento propiciaram a ampliação da rede institucional de diálogo entre as comunidades antropológicas brasileira e mexicana horizontal e verticalmente, ou seja, a sua expansão para várias das mais de vinte pós‑graduações em antropologia social existentes no Brasil e, também, a articulação entre gerações de antropólogos seniores e juniores — condição necessária à reprodução dessas redes além de seus articuladores originários. Se em sua versão anterior o EMBRA já trazia a marca da diversidade de instituições brasileiras participantes, sua realização em Brasília possibilitou amplificá-la.

8 Ao lançar um olhar transversal sobre as temáticas abordadas nas duas edições do Encontro, em 2011 e 2013, pode-se vislumbrar um processo de delineamento de áreas de interesse compartilhadas. Tal processo parece apontar para a combinação de áreas já consolidadas no campo da antropologia — em diferentes contextos nacionais e próprias às histórias da disciplina no Brasil e no México —, com recortes de problemas que têm

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desafiado mais recentemente a antropologia da perspectiva dos mexicanos e brasileiros.

9 É interessante, antes de prosseguir no aprofundamento dessa dimensão do evento, apresentar a forma como tem se dado a definição do temário a compor sua agenda de debates : a comissão organizadora da instituição sede constrói uma proposta inicial, que servirá de base para a comissão da instituição coorganizadora (DAN e PPGAS/UnB em 2011 ; CIESAS em 2013) propor alterações e mapear antropólogos de seu país que possam participar do evento em cada mesa/painel ou grupo de trabalho, que vem a ser definido após um vai e vem de ajustes entre as comissões. Tal dinâmica tem permitido, além da alternância das responsabilidades que qualificam a organização de um encontro binacional, a produção de certo modo de fazer institucional que exercita o respeito às dinâmicas próprias a ambas as comunidades nacionais, ao mesmo tempo em que atualiza um desenho não existente anteriormente — é um evento multitemático que não tem se articulado, como em geral se observa, por iniciativa das associações científicas antropológicas de nenhum dos países envolvidos. Por meio dessa experiência de produção institucional, antropólogos mexicanos e brasileiros vêm a construir mais do que uma agenda comum de pesquisas : compartilham procedimentos organizacionais próprios aos seus contextos e, assim, apreendem as especificidades dessa dimensão tão importante da produção intelectual, que, frequentemente oculta, é condição de sua realização.

Imagem 3 : Mesa de Encerramento do II EMBRA

10 Com isso em mente, pode-se agora retomar o olhar transversal anunciado anteriormente. Na consulta às programações, verifica‑se que algumas temáticas se mantiveram nas duas edições do Encontro, outras foram especificadas, desdobradas ou reorientadas, e novas foram propostas. Ao buscar traçar esses fios de continuidade e renovação com os da consolidação e desafio nos temas antropológicos abordados em

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ambos os eventos, destacam-se sem qualquer alteração nominal : Globalização e Migrações ; Formação da Nação e Relação com o Estado ; e Gênero, Corpo e Sexualidade. Já outros temas se mantiveram com reorientação de foco : direitos humanos ; ética em pesquisa ; políticas públicas ; antropologia médica/da saúde ; educação ; e antropologias nacionais. Entre as propostas ou abordagens novas para temas clássicos da antropologia, encontram-se : (um novo olhar sobre) economia ; (transnacionalidade do) religioso ; riscos e desastres ; e recursos naturais, ecologia e sociedade. O que assume relevância inquestionável na pauta de discussão, contudo, são as reflexões em torno da etnicidade, diversidade cultural e formação do Estado e da nação. Essa relevância é claramente tributária da importância analítica e política dos estudos sobre o “ser indígena” em ambos os contextos nacionais : na teoria das relações interétnicas, nas elaborações renovadas da categoria de indigenismo, no enfrentamento dos desafios de pensar a cidadania indígena (mas não apenas) e as concepções de igualdade e diferença, bem como na evocação de Guillermo Bonfil Batalla e Roberto Cardoso de Oliveira como fundadores do diálogo ao qual se dava continuidade por meio do I e do II EMBRAs.

11 A organização formal se manteve a mesma nos dois encontros, que tiveram a duração de quatro dias. Pelas manhãs, ocorreram as mesas-redondas, compostas por dois pesquisadores de cada país, e às tardes, os grupos de trabalho, formados por três ou quatro investigadores de cada país e um comentador responsável pela síntese das ideias apresentadas. Nos dois primeiros dias, as atividades foram iniciadas com conferências magistrais proferidas por um representante da cada comunidade antropológica. O professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira (PPGAS/UnB) apresentou o texto “Cidadania, direitos e diversidade”, e o professor Guillermo de la Peña (CIESAS– Occidente), a conferência “Ciudades, diversidades y ciudadanias en la antropología mexicana”. Essas conferências, agora publicadas no Anuário Antropológico, representam o que há de melhor no pensamento desses renomados e respeitados pesquisadores e, dessa maneira, são bastante representativas da qualidade da pesquisa feita na antropologia dos dois países.

12 Se ficarmos restritos aos títulos, certamente seremos iludidos por uma aparente diversidade temática das conferências. No entanto, um exame mais cuidadoso dos textos vai nos revelar que, apesar de não ter havido concertação entre os dois conferencistas, as problemáticas da cidadania e dos direitos (de minorias e movimentos sociais associados à diversidade étnico-cultural) e das diferentes concepções da igualdade e da diferença no mundo cívico adquirem uma centralidade que decorre, sem dúvida, da importância política e teórica que a temática indígena tem tido nessas duas comunidades antropológicas. Isso se dá mesmo quando tal temática não se conforma como objeto de interesse primário dos conferencistas, como é o caso.

13 A conferência de Luís Roberto Cardoso de Oliveira é um desenvolvimento de suas investigações na área da antropologia jurídica (1996, 2011). Nesse texto, o autor examina as complexas relações entre as noções de cidadania e igualdade de direitos. O texto tem como interesse primeiro o exame de uma tensão entre duas concepções de igualdade em competição no mundo cívico brasileiro, que, conforme aponta o autor, padece da boa conformação para definir os limites e as zonas de atuação de cada uma dessas concepções. Guiado pela perspectiva comparativa que habita o cerne da boa prática antropológica, o autor examina ainda os modos de ver e vivenciar a igualdade de direitos nos Estados Unidos e na França, isto é, como uma expressão de respeito à dignidade de todos os cidadãos. O caso brasileiro tem para Cardoso de Oliveira uma

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singularidade paradoxal, já que há nessa sociedade circunstâncias em que a igualdade é vivida como valor da esfera pública e em que o tratamento igualitário é esperado ; nessa mesma sociedade, no entanto, não são raras as ocasiões em que o espaço público é marcado por práticas de discriminação cívica, com os atores acionando direitos e privilégios que implicam tratamento diferenciado segundo o status e a condição social.

14 Praticante de uma antropologia socialmente interessada, Cardoso de Oliveira quer compreender como uma noção de igualdade que implica direitos diferenciados pode não ser ofensiva à dignidade dos cidadãos, como acontece na maioria dos casos que ele analisa. Para tal, o autor aciona mais uma vez seu olhar comparativo, dirigindo‑o ao caso do Quebec e suas demandas de reconhecimento como uma sociedade distinta do restante do Canadá. Cardoso de Oliveira mostra que, longe de ser uma arbitrariedade, a demanda quebequense pela quebra do tratamento uniforme e pelo reconhecimento de uma identidade distinta é, no fundo, a condição para a valorização da identidade quebequense e para o exercício de direitos igualitários no mundo cívico. Para os moradores do Quebec, a percepção do tratamento uniforme e a falta de atenção à peculiaridade dessa província são percebidas como um ato de inferiorização ofensivo à dignidade dos cidadãos. Assim, de modo diverso do tratamento diferenciado, que no Brasil discrimina direitos de acordo com a condição social e o status do cidadão, a demanda pelo reconhecimento do Quebec como uma sociedade distinta é motivada pelo desejo de gozar, no plano da cidadania, o mesmo status e a mesma dignidade.

15 Uma situação semelhante à quebequense é encontrada pelo autor no caso das demandas por direitos diferenciados de indígenas, quilombolas e populações tradicionais brasileiras. Contudo, as minorias étnico-culturais no Brasil se veem perante um Estado e uma sociedade com uma grande dificuldade em respeitar esses direitos e mesmo em tratar com a devida consideração as demandas de tratamento diferenciado. Uma exclusão discursiva por parte do Estado e da sociedade mais ampla atua de modo a negar ou reduzir a dignidade das minorias, muitas vezes não as considerando interlocutores plenos.

16 O texto “Ciudades, diversidades y ciudadanias en la antropología mexicana”, de Guillermo de la Peña, vem trazer para o público de antropólogos brasileiros um quadro bastante instigante e de certa maneira inusitado da antropologia feita no México nos últimos 50 anos. De la Peña inicia seu texto referindo-se ao estereótipo que caracterizaria a antropologia mexicana do século XX como a disciplina voltada para o estudo das comunidades indígenas, tratadas como localidades de pequeno porte, corporadas e fechadas em si mesmas. O autor ressalta que, de fato, o mundo indígena rural e suas comunidades tradicionais foi a grande estrela da antropologia feita até cerca de 1960 sobre o México, por mexicanos ou não. Mas mesmo os estudos hoje clássicos de Wolf (1955), Redfield (1956) e Caso (1948) apontavam que não se podia compreender o universo tradicional das populações indígenas sem levar em conta a sua relação ambivalente com o mundo urbano.

17 É ao universo das cidades que a conferência de de la Peña se volta. Seu texto passa em revista as investigações antropológicas sobre as cidades realizadas nos últimos 50 anos no México. De saída, o autor mostra que essas pesquisas questionaram dicotomias duradouras no pensamento social mexicano, como as do rural/ urbano, tradicional/ moderno, indígena/nacional e local/global. De maneira muito curiosa, porém, a antropologia urbana feita no México não abandonou o interesse pelo mundo indígena ; pelo contrário, o renovou. O trabalho antropológico nas cidades aporta novos

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conhecimentos sobre os indígenas do país — tanto os que passaram a viver nas cidades como os que estão em fluxo e os que permanecem nas comunidades rurais indígenas —, bem como lançar uma nova luz sobre a complexidade sociocultural da nação mexicana.

18 A história do México nos revela que, depois da violência da revolução, o governo deu início a um programa de reforma agrária de grande escala que já havia repartido, por volta de 1960, uma enormidade de terra entre a população rural. Essa reforma, iniciada depois de 1921, com outras políticas públicas, consolidou por algum tempo um campesinato relativamente viável no país, apesar das relações assimétricas entre a economia camponesa e o agronegócio capitalista. Porém, a expansão do capitalismo industrial na segunda metade do século XX acarretou uma crise sem precedentes no mundo rural e um processo intenso de urbanização do país. A emergência das cidades como tema caro à antropologia mexicana se deve, portanto, a mudanças sociais profundas nesse período que vieram a configurar as cidades mexicanas como cenário muito importante para a vida social. Em 1960, cerca de metade dos 35 milhões de mexicanos viviam em pequenas localidades. Em 2010, somente 20 % da população de 110 milhões viviam em comunidades desse tipo.

19 Nos anos de 1960, marco do início do processo de urbanização mexicano, os antropólogos daquele país não tinham um instrumental teórico e metodológico para fazer pesquisa nas cidades sem que se abandonassem a visada etnográfica e o interesse simultâneo, que tanto caracteriza a disciplina antropologia, na cultura e na organização social. A rica conferência de Guillermo de la Peña vem nos mostrar que esse desafio foi enfrentado pelos colegas mexicanos, que, com êxito, responderam aos problemas de escala que assolam a investigação, em sociedades complexas, das ambíguas relações entre projetos individuais e demandas coletivas em contextos marcados pela fluidez das fronteiras e das relações entre minorias étnicas e Estado nacional nos processos de demandas de direitos e reconhecimento.

20 Na década seguinte, ocorreu uma inflexão na antropologia urbana mexicana, que abandonou as tipologias das cidades estabelecidas por Redfield e a consequente forma de abordá-las como uma totalidade observada do exterior. A intenção a partir de então foi compreender etnograficamente as cidades, com foco na perspectiva dos grupos que as formavam. Entraram em cena nos estudos urbanos ideias de rede e de marginalidade, sobretudo as redes e a estratégia de sobrevivência dos pobres urbanos, majoritariamente indígenas que deixaram as suas comunidades rurais tradicionais. Os estudos sobre a pobreza trouxeram um quadro do mundo urbano mexicano como um espaço de reorganização comunal, de reprodução da desigualdade e de reforço do controle social por meio das complexas relações de patronagem exercidas por caciques urbanos. Esses estudos sobre marginalidade e informalidade enfrentavam o problema da escala etnográfica no complexo e vasto meio urbano, que escapa à observação direta do antropólogo com base na ideia de rede social traçada desde uma pessoa ou um grupo familiar investigado. Foi com essa solução metodológica que se ampliou o leque das investigações urbanas, que passaram a cobrir os espaços de proletarização da força de trabalho nos centros urbanos (industriais, mineiros, turísticos etc.), os movimentos sociais que se tornavam os novos sujeitos coletivos urbanos e os fluxos e circuitos migratórios que conectavam e colocavam em rede as cidades mexicanas entre si e com as zonas rurais e urbanas nos Estados Unidos, para onde convergia grande parcela dos imigrantes mexicanos.

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21 Em todos esses estudos (muitos deles enfocando um espaço urbano claramente transnacional), sobressaía a importância dos vínculos de natureza corporada na vida das pessoas no meio urbano. De modo muito interessante, eles desvelaram a vasta gama de respostas que os migrantes indígenas do campo para as cidades davam ao dilema da manutenção ou do rompimento dos laços comunitários e da identidade étnica no novo ambiente da cidade. Com a crise da economia camponesa, quando se migrou de modo permanente para as cidades, as estratégias de sobrevivência muitas vezes levaram os migrantes a formar verdadeiros vilarejos urbanos, enclaves étnicos nas cidades, onde se reelaborava parcialmente o mundo social e cultural das comunidades corporadas rurais, no qual a ajuda mútua e outras estratégias tradicionais ressignificadas davam o tom da vida urbana.

22 Surgiu então uma pletora de movimentos sociais com demandas indígenas por direitos específicos a partir de 1970. Guillermo de la Peña mostra que, se as reformas constitucionais de 1992 e 2001 reconheceram alguns desses direitos, bem como algum grau de autonomia cultural, política e jurídica às comunidades indígenas, os indígenas citadinos abordados nas investigações da antropologia urbana não foram de modo algum atendidos em suas demandas. Assim, um dos grandes dilemas da antropologia urbana atualmente feita no México tem a ver com a urgente questão de compreender as dificuldades encontradas pelos indígenas das cidades para exercer seus direitos culturais e políticos. Isso se faz parcialmente com uma documentação etnográfica rigorosa dos inúmeros casos de discriminação negativa vivida pelos indígenas das cidades e de violações ao direito à diversidade. E se faz, também, com o registro cuidadoso das formas de resistência oferecida pelos indígenas à brutal hostilidade que nega ou retira os direitos de cidadania diferenciada aos indígenas que vivem nas cidades.

23 Como se deve ter notado da breve exposição dessas conferências, há uma convergência entre os dois autores no exame da temática das demandas por direitos e na detecção das formas de discriminação negativa associadas à negação do reconhecimento dos direitos específicos de minorias étnico‑culturais. Isso não nos parece produto do acaso ou da idiossincrasia das escolhas dos pesquisadores. A centralidade da questão indígena nas comunidades antropológicas mexicana e brasileira, o engajamento intelectual e político dos antropólogos nas lutas das minorias étnico‑culturais e a postura crítica que eles têm das perspectivas excludentes que, de algum modo, prevalecem nas culturas políticas brasileira e mexicana são fatores que devem ser levados em conta na compreensão dessa convergência.

24 Os participantes do II EMBRA puderam assistir a duas instigantes conferências que provocam o espírito em busca de novos caminhos analíticos e teóricos. Por exemplo, a nosso ver o diálogo Brasil–México consolidado nesse segundo encontro de antropólogos pode instigar Cardoso de Oliveira (ou investigadores de seu grupo de pesquisa) a alagar seu interesse comparativo e elaborar novas comparações que suplementem as tradicionais com o mundo anglo-saxão e francês. Comparar noções de igualdade e cidadania e de tratamento diferenciado entre México e Brasil pode trazer à baila novas luzes e problemas.

25 A antropologia urbana mexicana revista por Guillermo de la Peña pode servir de espelho para realçar facetas da antropologia urbana feita no Brasil. Igualmente, esta última pode, pela comparação, aportar um novo entendimento aos estudos dos antropólogos mexicanos sobre as cidades passados em revista numa das conferências

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magistrais do II EMBRA. Pelo espelhamento, notamos que a antropologia urbana feita no Brasil não se destacou pela centralidade dada aos fluxos migratórios indígenas para as cidades. Por exemplo, não abundam estudos como o de Nakashima e Albuquerque (2011) sobre os Pankararu em São Paulo. Igualmente pela reflexão espelhada, acreditamos que estudos urbanos realizados no México não deram destaque à questão do estigma, dos estilos de vida, dos grupos marginalizados e dos projetos individuais que tanto caracterizaram a antropologia urbana liderada por Gilberto Velho (1973, 1981, 1994) no Museu Nacional. A marginalidade mexicana parece ser a do mercado e não a da cultura. As razões desses caminhos diferenciados escapam à nossa competência, mas podem bem ser examinadas pelos especialistas dos dois países interessados numa perspectiva comparada que proponha outros diálogos entre essas duas vibrantes e maduras tradições do fazer antropológico.

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AUTORES

WILSON TRAJANO FILHO

Wilson Trajano Filho é Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador associado ao Max Planck Institute for Social Anthropology em Halle-Saale (Alemanha). Antropologia da África e do colonialismo, processos de crioulização e cultura popular são suas principais áreas de pesquisa. Contato : trajano[at]unb.br

CARLA COSTA TEIXEIRA

Carla Costa Teixeira é professora o Depto. de Antropologia da Universidade de Brasília, no qual é coordenadora do Laboratório de Antropologia, Saúde e Saneamento (LASS) ; é pesquisadora do CNPq e tem se dedicado principalmente ao estudo dos seguintes temas : etnografia da vida política, políticas públicas de saúde indígena e relações entre saúde e saneamento.

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Cidades, diversidades e cidadanias na antropologia mexicana

Guillermo de la Peña Tradução : Luis Cayón

Antropólogos, indígenas e cidades

1 O estereótipo sobre a antropologia mexicana do século XX é que ela se dedica ao estudo e à exaltação das comunidades indígenas e, quando se fala de comunidades indígenas, alude-se a localidades nucleares, pequenas e corporativas. No entanto, aqui tratarei de outro tipo de pesquisa antropológica mexicana : a que tem focalizado o estudo das cidades, trazendo novos conhecimentos sobre o mundo indígena e, também, sobre a complexidade social e cultural da nação. Este tipo de pesquisa questiona algumas dicotomias persistentes nas ciências sociais mexicanas - rural versus urbano, indígena versus nacional, local versus global -, enfrentando certos desafios teóricos, metodológicos e políticos.

2 É verdade que muitas pesquisas antropológicas no México trataram do mundo indígena, considerando-o como circunscrito às localidades rurais (Caso 1948 ; Wolf 1995, Redfield 1960), mas, ao mesmo tempo, se pensou que não se poderia entender os mundos comunitários sem levar em conta suas relações ambíguas (simbióticas, dependentes ou conflitivas) com os mundos urbanos. Assim, Gamio (1922) apontou a subordinação dos habitantes nahuas do Vale de Teotihuacán tanto às fazendas próximas como à cidade vizinha de Texcoco e, inclusive, à capital nacional. Redfield (1940) mostrou as transformações dos assentamentos humanos da região maia de Yucatán pela penetração da cultura urbana. Wolf (1956 : 1065) afirmou que “as comunidades não se deviam ver como sistemas autocontidos e integrados [mas como] terminações de uma rede de relações grupais [que incluem as cidades]”. Para o caso das comunidades indígenas, Aguirre Beltrán (1958) propôs que essas relações grupais se constituíam no marco de um sistema regional de dominação, no qual as elites urbanas mediavam e limitavam a ação do Estado e a operação do mercado : um tipo particular de sistema

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regional, manejado a partir da cidade, gerador de uma economia pré‑capitalista que freava a aculturação e propiciava a reprodução das diferenças étnicas e estatais.

3 Em todos esses enunciados, embora se afirmasse a interdependência entre a cidade e o campo, ao mesmo tempo, se conjecturava uma separação física entre os índios rurais e os mestiços ou brancos urbanos, o que corresponde a uma dualidade econômica, política e cultural. Em Yucatán, Redfield e seus colaboradores reconheceram a existência de migrantes do campo à cidade de Mérida, porém, postulavam que, ao mudar de residência, os indígenas maias perdiam sua inscrição étnica (Hansen & Bastarrechea 1984). Em contraste, as pesquisas realizadas em Oaxaca por Covarrubias (1946) e por Malinowski e de la Fuente (1957) retrataram cidades onde os índios residentes (em particular os zapotecas) tinham um protagonismo central nos mercados. Estas pesquisas desmentiram o pressuposto de que a persistência do mundo indígena era uma função do seu confinamento nos povoados rurais, sujeitos a um domínio agrário pré‑capitalista. Apesar disso, a atenção da maioria dos antropólogos mexicanos e mexicanistas continuou centrada nos indígenas rurais até a década de 1960 (Kemper & Royce 1983)1.

4 O instrumental teórico e metodológico dos antropólogos não estava desenhado para fazer pesquisa nas cidades. Desta maneira, os estudiosos das urbes enfrentaram novos desafios para resolver novos problemas sem perder sua identidade dentro da disciplina, sem abandonar o trabalho etnográfico nem o interesse pela cultura mediada pela organização social. Neste texto, abordarei três desses desafios. O primeiro é o problema da escala da pesquisa numa sociedade complexa. O segundo refere-se à relação entre as decisões individuais e as demandas coletivas num contexto flutuante. E, o terceiro, enfrenta a definição e a localização política dos índios urbanos no Estado nacional. Porém, antes é necessário explicar brevemente a mudança radical que se operou no México durante a segunda metade do século XX, quando passou de um país eminentemente rural a um país predominantemente urbano. Como consequência, as cidades se converteram num cenário importante para o trabalho antropológico.

A urbanização intensa e as respostas da antropologia

5 Desde 1921, uma vez terminada a violência da Revolução Mexicana, o governo iniciou um programa de reforma agrária que se intensificou na década seguinte. Já em 1960, havia‑se repartido vários milhões de hectares, o que facilitou a retenção, a acomodação e o crescimento da população rural (Alba & Potter 1986). Graças à reforma agrária e às políticas públicas de educação, saneamento e comunicação, juntamente com o apoio e a proteção estatal à produção agrícola e ao mercado interno, consolidou-se um campesinato pobre, mas relativamente viável no país, embora se visse como crescentemente ameaçado pelas relações contraditórias e assimétricas entre a economia camponesa e a agricultura capitalista (Stavenhagen et. al. 1968, Warman 1976, de la Peña, 1980).

6 Em 1960, o número de mexicanos atingia 35 milhões e a metade deles ainda habitava em localidades com menos de 2.500 moradores. Em contraste, meio século depois, México tornou-se predominantemente urbano (Unikel 1978, Alba 1984, Anzaldo & Barrón 2009). Em 2010, a população total ultrapassou os 110 milhões, e deles só 20 % vivia em pequenas localidades, enquanto mais de 70 % morava em assentamentos com uma população superior a 15.000 habitantes. No total, 117 áreas urbanas contavam com

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mais de 100.000 pessoas, e dez delas com mais de um milhão. Dentre as muitas causas desta mudança, devemos incluir o desmantelamento neoliberal da reforma agrária e das políticas protecionistas que afetou gravemente a factibilidade da economia camponesa. Hoje, para a maioria da população mexicana, a viabilidade vital e a concepção de um futuro aceitável se situam num horizonte urbano, embora nas cidades a pobreza seja quase tão notória quanto no campo2.

7 Desde a década de 1960, os livros polêmicos de Oscar Lewis (1959, 1962) mostraram as possibilidades do enfoque antropológico para a compreensão da vida urbana no país. Lewis não se interessava pelas relações interétnicas, mas em propor uma visão alternativa à dicotomia rural/urbano de Redfield e em descrever o surgimento do que ele chamou de “cultura da pobreza”. Por sua vez, o interesse dos antropólogos mexicanos em estudar as cidades, em especial depois do movimento estudantil de 1968, não era exclusivamente acadêmico e teve um componente político marcado : a crítica ao capitalismo precisava da análise da vida urbana, localização por excelência da exploração. Como em outros países de América Latina, no México, criticavam-se os modelos anglo‑saxões sobre o subdesenvolvimento e olhava‑se com simpatia o marxismo e a nascente teoria da dependência (Cardoso & Faletto 1969, Frank 1970). Além disso, vários antropólogos mexicanos manifestaram a necessidade de entender a constituição e as mutações sociais das sociedades indígenas em termos de classes e não só através da aculturação (Stavenhagen 1969 ; Pozas & Horcasitas de Pozas 1985). Nesse contexto, os antropólogos começaram a enfrentar os novos desafios que apontei anteriormente. Tratarei primeiro do problema da escala.

A questão da escala

8 Nos estudos de comunidade, a escala não era considerada um problema porque coincidia com o assentamento em questão. Redfield (1940) realizou o primeiro esforço importante em definir a cidade moderna como uma totalidade. Em consonância com a sociologia urbana, que floresceu em Chicago depois da primeira guerra mundial, conceitualizou o urbano como o polo oposto ao mundo folk, como ele o chamou3. Assim, a cidade de Mérida deveria ser entendida em termos de três características : a substituição das relações primárias pelas relações secundárias - o que incluía o enfraquecimento do parentesco e da vizinhança -, a crescente importância do indivíduo como sujeito autônomo e a secularização da vida cotidiana. Em consequência, procurou documentar as maneiras como desaparecia a organização espacial dos bairros coloniais para dar lugar a uma distribuição regida pelo valor comercial da terra urbana. Da mesma forma, apontou a mudança no padrão de estratificação social fechado, baseado em critérios de raça, etnia e parentesco, para o padrão de estratificação aberto, fundamentado em critérios de classe e mobilidade social.

9 Anos depois, Redfield reconheceria a necessidade de distinguir entre dois tipos de cidades : ortogênicas e heterogênicas. Na primeira, as transformações obedeciam a uma “ordem moral” e, na segunda, a uma “ordem técnica” (Redfield & Singer 1954). A distinção ressaltava as diferentes funções que podiam cumprir as cidades, as quais correspondiam à presença de grupos e hierarquias sociais particulares. No México, os antropólogos (junto aos sociólogos e aos geógrafos urbanos) falavam da necessidade de construir uma tipologia mais complexa que incluísse cidades dominantes sobre regiões indígenas, centros agrícolas, enclaves mineiros, enclaves industriais (company towns),

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portos marítimos, centros burocráticos, centros mercantis, núcleos turísticos e urbes fronteiriças (Nolasco Armas 1981 ; de la Peña 1993). Em cada um destes tipos aparecia uma função predominante, porém, havia urbes que combinavam múltiplas funções, como as metrópoles macrorregionais (Guadalajara, Monterrey, Puebla) e a “megalópole mundial” da extensa zona urbanizada do Vale do México (ver Bataillon & Rivière d’Arc, 1973 ; Rivière d’Arc, 1973 ; Ward, 1981 ; Icazuriaga, 1992). Embora todos os casos de urbanização se vinculassem à expansão do capitalismo industrial, também se aceitava a diversidade de fatores econômicos e das relações sociais constitutivas de cada tipo de cidade e da organização do espaço urbano.

10 As ideias de Redfield e da Escola de Chicago tiveram repercussões importantes na orientação das pesquisas antropológicas mexicanas. Por exemplo, no final dos anos 1960, houve um caso interessante de aplicação do modelo de distribuição das terras urbanas, baseado na demanda comercial dos terrenos, num estudo sobre o bairro La Merced, do centro da Cidade do México (Valencia, 1965). La Merced foi um bairro aristocrático no final da época colonial e no começo do século XIX, mas se converteu gradualmente no cenário de um enorme mercado agrícola : o antigo casario senhorial cumpria o papel de depósito e os grandes monopolizadores conviviam com centenas de tiangueros4 e camelôs. Esse estudo destacava a substituição da paróquia pelo mercado de terra como fator-chave na organização do espaço urbano. Contudo, outros trabalhos nas décadas seguintes documentaram diferentes lógicas de transformação espacial : em muitas cidades, persistia a organização tradicional em bairros e paróquias, uma organização - ou “ordem moral”, como diria Redfield - que inclusive podia condicionar as oscilações do valor da terra (Nolasco Armas, 1981 ; de la Peña & de la Torre 1990 ; Portal & Safa 2005). Ao mesmo tempo, aparecia claramente o fenômeno da expansão de um novo tipo de zona que fugia da lógica da urbanização mercantil : os assentamentos periféricos chamados de “irregulares” (um eufemismo para nomear a ilegalidade).

11 Depois de 1970, no auge da pesquisa antropológica urbana, o mais notável foi a substituição do interesse em entender a cidade como uma totalidade observada “de fora” (ou “de cima”) pelo interesse etnográfico de compreendê-la a partir da perspectiva dos diversos grupos que a conformavam. Lewis (1959, 1962) escolheu a perspectiva de analisar famílias e indivíduos que formavam parte da cultura da pobreza, definida em termos de carências individuais e de passividade frente à urbe confusa e excludente. Em contraste, Lomnitz (1975) rejeitou essa visão negativa e ressaltou os símbolos e os valores positivos associados às relações de reciprocidade e solidariedade entre parentes, conterrâneos e vizinhos, mas também aos laços clientelistas que atavam os migrantes pobres àqueles que lhes davam empregos precários ou proteção política. Assim, a sobrevivência dos chamados marginados urbanos explicava-se por sua participação ativa na construção de redes sociais horizontais e verticais. O conceito de rede se inspirou nos estudos africanistas dos antropólogos de Manchester (Mitchell, 1969) e o conceito de marginalidade, de inspiração marxista, apareceu nas ciências sociais latino-americanas da época para se referir à desconexão entre uma grande parte dos setores populares e a economia industrial capitalista (Nun, 1969 ; Quijano, 1972)5. No entanto, na década de 1980, o conceito de “economia informal” se opôs ao de marginalidade, usado para argumentar que as conexões existiam, sim, mas não se limitavam ao clientelismo político. Muito pelo contrário, os setores populares mais precários não estavam “à margem” do capitalismo industrial nacional e transnacional, mas sim subordinados a este mediante a subcontratação e o trabalho a domicílio, onde os trabalhadores careciam de contratos

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e benefícios previdenciários (Arias, 1985 ; de la Peña & Escobar, 1986 ; Escobar, 1986 ; González de la Rocha, 1988). Igualmente, as grandes empresas comerciais distribuíam porções importantes das suas mercadorias através dos tiangueros. Contudo, essas pesquisas confirmaram a importância das redes urbanas horizontais e verticais como recurso fundamental para as estratégias de sobrevivência dos pobres. Desta forma, os estudos sobre a pobreza ofereceram uma visão da cidade como espaço de reorganização comunal e, simultaneamente, de reprodução da desigualdade e do reforço do controle social, graças ao patronato dos poderosos. Os estudos dos caciques urbanos como intermediários na operação deste patronato completavam o panorama (Cornelius, 1975 ; de la Peña, 1986).

12 Os estudos sobre marginalização e informalidade situavam a escala da informação etnográfica urbana nas redes sociais, geralmente traçadas a partir de um indivíduo ou de um grupo familiar. Outras pesquisas centravam sua atenção nos espaços de proletarização da força de trabalho. Fizeram-se histórias locais, etnografias de centros industriais e mineiros, e de novos e velhos bairros de operários. Nessas pesquisas, perguntava‑se pela influência do sindicalismo e de outras formas de associação de trabalhadores na criação de espaços culturais e de convivência, sustentados na consciência de classe e nas lutas pelos direitos trabalhistas (Novelo & Urteaga, 1979 ; Novelo, 1987 ; Sariego, 1985 e 1991 ; Durand, 1986 ; Nieto Calleja, 1998 e 2005 ; Gabayet, 1988 ; Reygadas, 2002). Outro foco importante de pesquisa nas décadas de 1970 e 1980, do qual foi pioneiro o livro organizado por Alonso (1980), foi o dos movimentos sociais dos novos habitantes “irregulares” (muitos deles envolvidos na economia informal) que demandavam espaços de moradia e serviços públicos. A escala desses estudos estava marcada pelo movimento social em si, onde se destacava o surgimento de um novo sujeito coletivo urbano (Castells, 1983) : os colonos organizados cujos protestos permitiam identificar certos componentes constitutivos da cidade moderna, como a política governamental, as estratégias do capital imobiliário e a manipulação da opinião pública pela mídia (Sariego, 1988 ; Safa, 1990 ; Reguillo, 1996 ; Nivón, 1998). Os movimentos urbanos, ao mesmo tempo que se situavam numa escala própria, definiam as chaves para entender o contexto urbano inclusivo no qual operavam e as relações de poder que enfrentavam.

13 Nos últimos trinta anos, aparece uma etnografia multi-situada sobre os circuitos migratórios que ligam entre si as comunidades e as cidades mexicanas e também as ligam às zonas rurais e urbanas nos Estados Unidos : um horizonte que inclui o local, o regional, o nacional e o global, a partir da formação de núcleos de população mexicana para além da fronteira norte (Escobar Latapí et al., 2012 ; Massey et al., 1987 ; Durand, 1994 ; Mummert, 1999). A tese de Wolf sobre as comunidades como “terminais de grupos” (e de relações de poder) adquiriu uma dimensão internacional, assim como ocorreu com a visão sobre as redes urbanas como chave para delimitar o objeto de estudo. Os migrantes, graças a suas redes, criam microcosmos substitutos dos seus lugares de origem, gerando, assim, uma dinâmica de interdependência multilateral, intensificada pelas tecnologias de comunicação eletrônicas6. Na comunidade mixteca, em Oaxaca, Federico Besserer (2004, 2007) invoca o conceito de hiperespaço (Jameson, 1991) para analisar o vigor das relações sociais comunitárias em espaços transnacionais descontínuos que formam uma geografia comunitária coletiva. Os terminais urbanos de tais relações formam parte desses hiperespaços e condicionam analiticamente a escala

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dos estudos nas cidades : a definição do que é relevante na urbe e na vila precisa de olhares que partem do global (Appadurai, 1996).

14 Um aspecto da vida urbana fortemente relacionado com a questão da escala nos estudos antropológicos da cidade é a importância e a intensidade que podem ter os elos corporativos na vida dos indivíduos. Este é o segundo desafio.

Comunidades e associações no turbilhão urbano

15 A distinção entre sociedades simples e sociedades complexas remonta à aurora do pensamento sociológico e antropológico. Weber (1964) definiu o conceito de comunidade como um conjunto humano no qual o senso de pertencimento se fundamenta na afetividade e no reconhecimento partilhado de uma hierarquia considerada natural, a qual contrasta com o conceito de associação baseado no interesse individual e na negociação da hierarquia. A partir de tal perspectiva, os assentamentos rurais corresponderiam à primeira categoria, onde os indivíduos se identificariam naturalmente com as normas comunitárias e a ordem hierárquica. Por sua vez, os assentamentos urbanos teriam o caráter de associações que permitiriam a cada indivíduo eleger uma vida como ser autônomo, vinculado por contratos livres com seus semelhantes. Assim, Redfield (1940) presumia que as relações sociais inevitavelmente adquiriam um caráter múltiplo e disperso ao se situarem na escala urbana. No entanto, já vimos que na cidade coexistem escalas de variada dimensão e natureza.

16 No seu estudo sobre os migrantes mazahuas na Cidade do México, Arizpe (1978) descobriu que alguns homens com maior grau de escolaridade podiam se inserir em empregos formais que lhes permitiam estabelecer-se de forma definitiva, levar suas famílias, criar elos com grupos urbanos diversos e iniciar o caminho da assimilação. Num estudo sobre migrantes mixtecos na mesma cidade, Butterworth (1962) constatou algo parecido e destacou também a importância de conseguir moradia própria e legal como fator de castelhanização, assimilação (e “descomunalização”). Outras pesquisas urbanas recentes mostram que a estabilidade laboral e a segurança de moradia podem coincidir com o desinteresse por manter tanto uma identidade étnica e linguística, como contatos com a parentela e o lugar de origem (Romer 2005, Barragán 2006). As gerações jovens também aspiram a uma mobilidade social ascendente mediante uma escolarização maior que aquela dos seus pais. Os índios jovens sentem particularmente a pressão de romper com o passado para se libertar do estigma que carrega a identidade étnica em contextos racistas. No caso dos migrantes não indígenas, o desejo de romper com o passado pode ser ainda mais forte, pois a saída do mundo rural está quase sempre motivada pela vontade de abandonar um contexto desvantajoso, conseguir melhores serviços de educação e saúde para a família e se integrar plenamente nas ocupações e estilos urbanos (Balán et al., 1973 ; de la Peña & Escobar, 1986). Poder-se-ia pensar, logicamente, que a vida na cidade conduz à ampliação do número de relações sociais com pessoas alheias aos grupos primários e, portanto, enfraquece a intensidade das relações internas destes grupos (Wilson & Wilson, 1945).

17 Porém, outros estudos urbanos revelam a persistência das relações primárias como condicionantes fortes da ação individual. Por exemplo, o grosso dos migrantes mazahuas na Cidade do México estudados na década de 1970 praticava uma “migração por revezamento” (Arizpe, 1980) organizada na matriz familiar. A maioria da família

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permanecia no povoado de origem, mas os membros se revezavam para passar temporadas na cidade, trabalhando em tarefas informais (venda ambulante, serviço doméstico, construção). Desta maneira, complementava‑se a precária economia camponesa e mantinha‑se a “ordem moral” da família e da comunidade. Isto ocorria também com migrantes trabalhadores de vilas nahuas situadas a leste da Cidade do México (Bueno, 1994). No entanto, depois de 1970, por causa da crise na economia camponesa, muitas famílias saíram definitivamente das suas comunidades para se estabelecer em cidades mexicanas ou em lugares dos Estados Unidos sem que, necessariamente, essa migração definitiva destruísse lealdades corporativas. Como a crise na economia urbana não tem sido menor que a do mundo rural, os migrantes pouco (ou nada) escolarizados só têm conseguido obter empregos informais e moradias em colônias “irregulares” ao chegar às cidades mexicanas. Então, as intensas relações de confiança e ajuda mútua com parentes e conterrâneos tornam-se necessárias. Formam-se, assim, núcleos de “caipiras urbanos” e “citadinos étnicos” (Gans, 1962a ; 1962b) : verdadeiros enclaves onde se reelabora o mundo social e cultural dos lugares de origem. Estes enclaves não necessariamente implicam a contiguidade das moradias e, embora estejam dispersos no espaço urbano, as famílias convergem em contextos rituais, laborais e recreativos. Além disso, é frequente entre os índios conservar-se a endogamia étnica.

18 Várias pesquisas têm documentado exemplos paradigmáticos de “citadinos étnicos”. Mora (1996) estudou um grupo de famílias mixtecas originárias da pequena vila de Allende (Oaxaca), residentes na Cidade de Nezehualcóyotl, que conservavam os rituais tradicionais domésticos e se reuniam para celebrar os ritos de passagem dos seus membros, praticavam a ajuda mútua, comunicavam‑se frequentemente com os parentes que permaneciam na vila e organizavam todos os anos uma visita coletiva durante a festa do santo padroeiro. Uma organização de conterrâneos igualmente forte foi encontrada por Lane Ryo Hirabayashi (1993) na Cidade do México entre os zapotecos da Serra Juárez (Oaxaca) que usavam as bandas de música como pivô de múltiplos vínculos interfamiliares. Em Guadalajara, Martínez Casas (2000 ; 2007) e Rojas Cortés (2006) mostram que famílias otomis procedentes de Santiago Mezquititlán (Querétaro) encontraram um nicho de trabalho na fabricação e venda de artesanato e guloseimas, no qual participam homens, mulheres e crianças. Persiste entre eles um cargo comunitário : o zelador que vigia o cumprimento dos costumes comunitários e da endogamia do grupo e que encabeça as visitas à comunidade e as peregrinações a um santuário reputado como milagroso. E podem citar-se muitas outras pesquisas análogas que destacam o surgimento de um sujeito indígena nas cidades7. Além dos enclaves étnicos, existem enclaves religiosos, como a colônia Hermosa Provincia, em Guadalajara, onde residem exclusivamente membros da da Luz do Mundo, uma vigorosa instituição evangélica de viés pentecostal (de la Torre, 1995) ; ou, simplesmente, grupos de vizinhos unidos por redes solidárias, como aqueles que aparecem no estudo de Lomnitz já citado.

19 Os exemplos mencionados referem-se a famílias de escassos recursos para as quais é imperativo contar com apoios pessoais como “estratégia de sobrevivência” no meio urbano hostil. Contudo, a intensidade e densidade das relações sociais na cidade não são exclusivas dos pobres. Em Guadalajara e San Luis Potosí, as pesquisas respectivas de Domínguez Rueda (2013) e Chávez González (2014) nos mostram pessoas e famílias das etnias zoque, tenek e nahua que já atingiram estudos universitários e mobilidade social ascendente sem perder o sentido de pertencimento étnico nem a proximidade com a

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comunidade ou a parentela. O trabalho de Lomnitz e Pérez Lizaur (1987) na Cidade do México sobre uma numerosa família empresarial demonstra que, entre as classes altas, manter a comunicação próxima e frequente com a parentela, os compadres e as amizades confiáveis é um valioso recurso para acessar a informação estratégica, cooperar e se apoiar nos negócios. Algo parecido depreende-se das pesquisas de Smith (1981) e Hurtado (1993) sobre as elites políticas do país.

20 Então, a pergunta analítica é : em que condições se reproduzem, ressignificam ou se criam relações de tipo comunitário na cidade, muito além do círculo familiar imediato ? As pesquisas antropológicas apontam sete fatores condicionantes, mas não determinantes : 1) Que as relações duradouras de confiança sejam um recurso valioso e inclusive necessário. Isto acontece entre famílias trabalhadoras que precisam cooperar e trocar favores para não sucumbir em contextos hostis, mas também no arriscado mundo dos negócios competitivos e das carreiras políticas. 2) Que a existência e a persistência deste tipo de relações tenham um status público de prestígio ou que pelo menos não conduzam a um status desprestigiado. 3) Que o pertencimento a uma comunidade seja funcional para o desempenho de atividades benéficas para seus membros. 4) Que as famílias ensinem a seus filhos o valor das relações comunitárias e com a parentela. 5) Que surjam e se mantenham na comunidade os discursos que justifiquem sua existência e a apresentem em termos positivos. 6) Que os valores da comunidade se expressem pública e periodicamente, por exemplo, em atividades de cooperação, em rituais religiosos ou laicos, e em movimentos sociais. 7) Que esses valores sejam explícita ou implicitamente defendidos e aceitos na esfera pública.

21 O primeiro deste fatores, por si só, não leva à formação de uma comunidade, mas ajuda, sim, a que a comunidade formada se consolide. Quando não se cumpre o segundo fator - por exemplo em ambientes de discriminação racial ou étnica - pode se neutralizar pela funcionalidade das relações e, quiçá principalmente, pela força moral da socialização familiar e dos discursos, símbolos e atividades comunitárias. Agora, o último fator nos leva diretamente à discussão sobre a cidadania dos grupos minoritários e, em particular, dos índios citadinos.

Na cidade sem cidadania ?

22 Nem a Constituição liberal de 1857 nem a revolucionária de 1917 fizeram qualquer menção aos indígenas. No entanto, ambas promoveram a igualdade legal de todos os mexicanos, sem distinção de credo ou “raça”. A Constituição de 1917 reconheceu - sob certas condições - a propriedade coletiva das comunidades agrárias, ou seja, os índios. Para defender esta propriedade, os índios se uniram aos movimentos sociais que proclamavam demandas camponesas. A partir de 1970, surgiram movimentos sociais com demandas especificamente indígenas. Em resposta a elas, as reformas constitucionais de 1992 e 2001 reconheceram não só os direitos agrários dos povos e das comunidades indígenas, mas também, ainda que de forma limitada, sua autonomia cultural, jurídica e política (López Bárcenas 2005). No entanto, as reformas não levaram em conta os índios das cidades. Um desafio a mais para a antropologia urbana do México tem sido entender as possibilidades e os obstáculos que encontram os índios para exercer seus direitos culturais e políticos na cidade.

23 Não há um único estudo sobre indígenas urbanos no México que não mostre exemplos impressionantes da discriminação negativa que sofrem pelo fato de serem indígenas. A

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miúde, esta discriminação quer se justificar com um discurso que os apresenta como gente rústica, ignorante e pouco inteligente. Suas línguas são qualificadas como “dialetos” e aqueles que as usam em público são, quase sempre, objeto de chacota e desprezo, e a mesma coisa ocorre com os que usam indumentárias tradicionais. Nos hospitais e nos escritórios governamentais, sua dificuldade de comunicação linguística pode provocar hostilidade e reclamações, e as escolas são, em geral, palcos de escárnio para as crianças identificadas como “índios”, entre muitos outros exemplos. Nem na legislação federal nem na grande maioria dos governos municipais e estatais existem previsões efetivas para reconhecer e garantir os direitos indígenas em zonas urbanas8.

24 Os estudos antropológicos têm documentado múltiplas violações ao direito à diversidade (língua, costumes e símbolos externos) e ao direito à representação política própria. Também constatam que uma forma de resistência frente à hostilidade é a “invisibilidade” : o ocultamento da etnicidade em situações públicas (Martínez Casas, 2007), ou francamente a busca pela assimilação. Porém, também mostram que a resistência dos índios urbanos vem assumindo formas de organização e propostas de representação pública que lançam olhares críticos sobre as respostas governamentais, ainda muito insuficientes (Igreja Lemos, 2004 ; Martínez Casas, 2008). Por sua vez, as próprias organizações étnicas (por exemplo, a Assembleia de Migrantes Indígenas da Cidade do México, que publica um boletim eletrônico muito bem-sucedido) instam os antropólogos a contribuir para pôr fim à visão colonialista que exclui os “índios” do direito à cidade e à cidadania. A consolidação da democracia mexicana não vingará sem o reconhecimento de uma cidadania étnica, no contexto de uma nação plural e equitativa na qual a revitalização comunitária enriqueça as oportunidades pessoais de vida e a unidade da nação. Por isso, os três desafios da antropologia urbana confluem na explicação das condições em que se torna possível tal reformulação da realidade nacional.

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NOTAS

1. Nessa época, com algumas exceções, o mundo antropológico ocupava-se muito pouco das urbes (Hannerz 1986 [1980] : 11). Inclusive, aqueles que trabalham esse tema sentiam-se na obrigação de justificar sua suposta excepcionalidade (Lacarrieu 2007). A exceção mais importante foi o conjunto de obras africanistas das décadas de 1950 e 1960 (Mitchell 1966). Na década de 1970, os

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estudos urbanos se converteram numa prática frequente (Mangin 1970, Southall 1973, Roberts 1978). 2. Pelo menos uma terceira parte das pessoas consideradas como indígenas vive nas cidades. Ver Pérez Ruiz (2002), CONEVAL (2014 : 38), Martínez Casas (2014). 3. Sobre a Escola de Chicago, ver Hannerz 1986 [1980], cap. II. 4. N.T. Vendedores ambulantes. 5. Vale a pena dizer que não se tratava das redes sociais da época da informática. 6. Roberts e Erin (2007) documentam a importância que as urbes mexicanas têm adquirido, em especial nos últimos 40 anos, como zonas expulsórias de migrantes para os Estados Unidos. Eles falam de um “processo de causação cumulativa” gerado pelas redes sociais e que conduz à concentração de conterrâneos em certos lugares. Porém, esses migrantes urbanos, com frequência, foram originariamente migrantes rurais para cidades mexicanas, cujas redes, portanto, têm pelo menos três pontos de ancoragem. 7. Uma lista destes trabalhos seria excessivamente longa. Dois bons exemplos podem se encontrar nos volumes organizados por Yanes et. al. (2004, 2005, 2006) e Durin (2008). Ver também de la Peña (2010). 8. O Instituto Nacional Indigenista (1948-2003), substituído pela Comissão Nacional para o Desenvolvimentos dos Povos Indígenas, apenas se ocupou um pouco dos índios urbanos na última década.

AUTORES

GUILLERMO DE LA PEÑA

Guillermo de la Peña é membro do CIESAS desde 1987. Fundou e dirigiu a Revista del Centro de Estudios Educativos e o Programa de Antropología de la Educación no CISINAH e o CIESAS Occidente. É autor de inúmeras publicações e recebeu diversos prêmios, dentre eles o Premio Nacional de Investigación Urbana y Regional (1990), o Premio Jalisco en el área de ciencia (1993), a Beca Guggenheim (1994-1995) e foi agraciado como professor emérito pelo Colegio de Jalisco (2013). Contato : gdelapen[at]ciesas.edu.mxfr

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Cidadania, direitos e diversidade

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Gostaria de agradecer a Wilson Trajano Filho pelos comentários e pelas observações ao texto.

1 A noção de cidadania tem sido fortemente associada à igualdade de direitos, caracterizando talvez o principal símbolo das democracias no Ocidente — seja com ênfase num status igualitário no mundo cívico e na universalização de direitos, como em Marshall (1976), seja por meio da ideia de tratamento igualitário, como em Honneth (2007) ou na visão de D’Iribarne (2010), que, para dar conta do universo de distinções vigente na França, propõe a precedência de uma igualdade relativa no plano da dignidade. De todo modo, ainda que essas diferenças de perspectiva indiquem aspectos importantes da relação entre direitos e cidadania, nenhuma delas enfatiza adequadamente o significado do caráter local e contextualizado das concepções de igualdade (Cardoso de Oliveira, 2013), nem dá a atenção devida aos problemas decorrentes de demandas de direitos baseadas na singularidade étnico-cultural de minorias diversas. Depois de assinalar a existência de uma tensão entre duas concepções de igualdade no Brasil, e suas implicações para a universalização de direitos no plano da cidadania, farei uma breve referência às demandas por reconhecimento do Quebec como uma sociedade distinta no Canadá, agora para apontar os limites da concepção de igualdade como tratamento uniforme para a legitimação dos direitos de cidadania. Concluirei minha exposição com algumas observações sobre direitos de minorias associados à diversidade étnico‑cultural.

2 Embora a ideia de igualdade cidadã não seja exercida da mesma maneira nas várias democracias ocidentais, pois estaria sempre associada a sensibilidades cívicas locais (Cardoso de Oliveira, 2013), a literatura é unânime em contrastar essa condição moderna com a situação hierárquica vigente entre estamentos durante o antigo regime na Europa. Nesse quadro, uma das peculiaridades da cidadania no Brasil seria a combinação de lógicas igualitárias e hierárquicas no espaço público (DaMatta, 1979, 1991), ou a existência de uma situação jurídica paradoxal combinando princípios constitucionais liberal-igualitários, de um lado, e um sistema judiciário hierárquico, de outro (Kant de Lima, 1995, 2008). Na mesma direção, vários autores chamam a atenção para a pessoalização das relações sociais no espaço público, em que se dá lugar ao favor

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e ao jeitinho com o objetivo de beneficiar aqueles que nos são próximos, frequentemente em prejuízo de terceiros.

3 Tais práticas se contrapõem aos princípios de impessoalidade e de imparcialidade, associados à igualdade como um valor, cuja principal marca nos sistemas jurídicos ocidentais seria a precedência do princípio do contraditório nas disputas jurídicas, e o corolário da igualdade de armas e de oportunidades no processo. Inspirado nessa tradição interpretativa, tentei uma aproximação inicial ao dilema brasileiro identificando uma desarticulação entre esfera pública e espaço público, caracterizando “[…] a primeira como o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de mundo são publicizados e estão sujeitos ao exame ou debate público”, e o segundo “[…] como o campo de relações situadas fora do contexto doméstico ou da intimidade no qual as interações sociais entre cidadãos efetivamente têm lugar” (Cardoso de Oliveira, 2011 :24‑26). Em outras palavras, procurava dar conta da aparente contradição entre a defesa de direitos iguais na esfera pública e as práticas sistemáticas de desrespeito a esses mesmos direitos na vida cotidiana dos atores, ao acionar as relações pessoais para obter tratamento privilegiado sem qualquer preocupação com o direito dos outros (Cardoso de Oliveira, 2011 :129‑171). Talvez o desrespeito a filas seja o exemplo mais comum e mais aparente dessa contradição.

4 Num segundo momento, em diálogo constante com as pesquisas sobre o tema produzidas no InEAC, especialmente com os trabalhos de Roberto Kant de Lima e seus colaboradores, dei-me conta de que a ideia de desarticulação entre esfera pública e espaço público era importante, mas insuficiente para entender o dilema.1 Propus então a existência de uma tensão entre duas concepções de igualdade no Brasil : (1) a concepção de igualdade como tratamento uniforme, dominante em nossa Carta Constitucional de 1988 e bem expressa na noção de isonomia jurídica ; e (2) a concepção de igualdade como tratamento diferenciado, cujo principal símbolo é uma frase de Rui Barbosa (1999 : 26) segundo a qual “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”. A peculiaridade desta última concepção na comparação com outras concepções de igualdade vigentes no Ocidente é que, para a realização da igualdade no plano da justiça, se faz necessária a relativização ou a diferenciação de direitos no plano da cidadania, conforme o status e a condição social do cidadão.

5 Para situar adequadamente o problema, vou retomar proposta argumentada em outro lugar sobre a importância de levarmos em conta nesse campo a existência de uma forte associação entre as ideias de igualdade, dignidade e equidade (Cardoso de Oliveira 2013), cuja articulação parece-me uma referência central para a análise sociológica dos direitos e da cidadania. Nesse sentido, vou explorar brevemente aspectos centrais das concepções de cidadania vigentes na França e nos Estados Unidos, cujas revoluções marcaram profundamente a ideia de democracia no Ocidente, ao tempo em que caracterizariam sociedades nas quais a cidadania ganha contornos distintos, expressos em diferentes modalidades de articulação entre as noções de igualdade e dignidade na vida social e na política. Enquanto a ideia de dignidade caracterizaria um valor universal, que nas democracias ocidentais marcaria a igualdade de condição e de status no plano da cidadania (Taylor, 1994), ao mesmo tempo que, em suas diversas manifestações, daria contornos locais à substância moral da igualdade, a equidade, terceiro termo dessa equação, marcaria a necessidade de articular a relação entre igualdade e dignidade com concepções locais sobre correção normativa. Em outras

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palavras, é sempre necessário averiguar em que medida e de que maneira práticas e formas de tratamento vigentes encontrariam respaldo nas concepções locais do que seria correto, adequado ou justo.

6 Embora a noção de cidadania nos dois países esteja associada a uma visão radical sobre a igualdade de direitos entre os cidadãos, essa igualdade não é vista da mesma maneira nos dois lados do Atlântico. Na França, prevaleceria a ideia de que direitos e cidadania são categorias indivisíveis, fazendo com que todos os franceses compartilhem a mesma condição no plano da cidadania, com os mesmos direitos (Holston, 2008 : 39-81). Tal quadro explicaria as dificuldades para a aceitação dos judeus — cuja capacidade de assimilação à nova ordem era questionada — logo após a Revolução de 1789 e ainda hoje caracterizaria a resistência a demandas multiculturalistas (Amselle, 1996), percebidas como uma negação da igualdade republicana. Já nos Estados Unidos, a ênfase seria na universalização dos mesmos direitos, nas mesmas situações, para todos os cidadãos, o que não supõe a assimilação dos diversos grupos sociais que compõem o país a uma cultura dominante, ainda que haja dificuldades em aceitar demandas multiculturais em contextos importantes, como o que envolve o debate sobre alterações no core curriculum do ensino universitário (Gutmann, 1994).

7 Entretanto, em ambos os casos a igualdade de direitos seria vivida como expressão de igual respeito à dignidade de todos os cidadãos. De certa forma, poderíamos dizer que as concepções de igualdade, no plano da cidadania, estariam sempre acompanhadas da percepção de que todos os cidadãos, em seu conjunto, desfrutariam da mesma dignidade, cuja substância moral ganharia contornos específicos nos respectivos mundos cívicos.

8 Ao analisar o caso brasileiro, tenho chamado a atenção para nossas práticas de discriminação cívica, que ocorrem sempre que temos dificuldade em identificar nos interlocutores a substância moral das pessoas dignas (Cardoso de Oliveira, 2011). Se essa certa facilidade em negar ou desprezar a substância moral da dignidade tem consequências negativas para a cidadania no Brasil, o respeito à dignidade do cidadão talvez seja a principal condição para o exercício da igualdade cidadã na percepção dos próprios atores, onde quer que a cidadania esteja em questão. Como mesmo as sociedades democráticas e igualitárias no Ocidente convivem com a existência de assimetrias e conjugam direitos e privilégios, a igualdade cidadã é vivida e valorizada especialmente no mundo cívico, definido como “o universo onde o status de cidadania deveria ter precedência em todas as interações entre atores, e o tratamento igualitário (usualmente uniforme) deveria ser esperado” (Cardoso de Oliveira, 2013 :141). Nesse aspecto, o que singularizaria o Brasil na comparação com outras democracias não seria a existência de direitos e privilégios, mas a falta de um mundo cívico bem-conformado, que definisse com clareza as fronteiras entre os espaços de vigência de uns e de outros.

9 Em outras palavras, ainda que cada mundo cívico tenha contornos específicos e formatos distintos nas sociedades democráticas, sempre que sua estrutura é bemconformada, as fronteiras entre os espaços de vigência de direitos e privilégios são razoavelmente claras para o cidadão. Nas monarquias europeias contemporâneas, por exemplo, as famílias reais desfrutam de uma série de privilégios que estão situados fora do mundo cívico local, e não ofendem a dignidade do cidadão. Manifestação recente do Rei Juan Carlos da Espanha ilustra bem esse ponto : pronunciando-se sobre o processo judicial decorrente das acusações contra seu genro relativas a corrupção e desvio de recursos públicos,2 atingindo o cerne da família real, Juan Carlos afirmou que seu genro

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deveria ser julgado como qualquer cidadão. Na mesma direção, falando sobre a hierarquia de profissões vigente na França e do acesso privilegiado a certos direitos de férias e pensão por parte dos assalariados classificados como cadres (gerentes, que exercem funções de direção), D’Iribarne (2010 :52) sugere que essas diferenças não afetariam a percepção de igualdade no plano da cidadania, na medida em que não negariam igual respeito à dignidade de todas as profissões.

10 Com o objetivo de tornar ainda mais clara a relação entre igualdade e dignidade, gostaria de propor que tanto a Revolução Americana como a Revolução Francesa foram detonadas por eventos que acentuaram a percepção de insulto à dignidade dos atores. Isso fez com que desigualdades vigentes no plano dos direitos se tornassem inaceitáveis a partir de determinado momento.

11 Talvez o principal símbolo da Revolução Americana seja a manifestação conhecida como Boston Tea Party (em 16 de dezembro de 1776), quando, revoltados com a cobrança de impostos pela coroa inglesa, os colonos estadunidenses bradaram a famosa frase : “No taxation without representation”. Apesar de a cobrança de impostos não poder ser feita de forma unilateral pela coroa desde a Bill of Rights de 1689, quando passou a depender de anuência do Parlamento Britânico, só na metade do século XVIII a falta de representação dos colonos no Parlamento foi questionada, não se aceitando mais a ideia de uma representação virtual, e a situação começou a ser vivida como uma exclusão que negaria a dignidade dos colonos. Meu argumento é que, do ponto de vista sociológico, para que haja mobilização em torno de bandeiras de tratamento igualitário, não é suficiente que uma situação de desigualdade seja identificada ; é imperativo que essa desigualdade seja vivida como abuso ou como ofensa à dignidade daqueles que fazem a demanda.

12 Da mesma maneira, as mobilizações sociais que desembocaram na Revolução Francesa não foram motivadas apenas pela percepção da desigualdade vigente entre os estamentos, mas pela avaliação de que o status quo passara a ser vivido como uma situação humilhante para o Terceiro Estado (camponeses, trabalhadores e burguesia), que correspondia, talvez, a mais de 2/3 da população total. Tal perspectiva é bem representada no livro de Emmanuel Joseph Sieyès (1988) Qu’est-ce que le Tiers État ?, que teve enorme repercussão na época e continua sendo uma referência central para a compreensão do período. O livro é um manifesto, com grande força retórica, e começa com três frases : “o que é o Terceiro Estado ? — tudo” ; “o que ele tem sido até o momento na ordem política ? — nada” ; e “o que ele demanda ? — a ser alguma coisa”. Em conjunto, as três frases representam bem a indignação do Terceiro Estado com as iniquidades vigentes, e o caráter da motivação para as demandas de transformação. Trata-se de uma afirmação da dignidade do Terceiro Estado, e uma rejeição da condição humilhante que lhe estaria sendo imposta. O livro vendeu dezenas de milhares de cópias nas vésperas da Revolução, e chamava atenção para todos os abusos que o Terceiro Estado vinha sofrendo na relação com o Primeiro e o Segundo Estados, respectivamente religiosos e nobres.

13 Voltando o foco para o Brasil e para os dilemas decorrentes da tensão entre as duas concepções de igualdade mencionadas acima, contrapondo tratamento uniforme e tratamento diferenciado, gostaria agora de dar alguns exemplos e apontar algumas de suas implicações. Os principais exemplos em nossa legislação da concepção que prega tratamento diferenciado, desigualando direitos, seriam as leis que definem direito à prisão especial para portadores de diploma universitário (além de uma série de outras

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categorias) e o foro privilegiado (por prerrogativa de função) dos políticos (Teixeira Mendes, 2005). Trata-se de duas situações centrais para a cidadania, pois regulam o acesso à justiça, nas quais a própria lei diz que os cidadãos brasileiros não devem ser tratados da mesma maneira. Quando é emitida uma ordem de prisão preventiva (antes do julgamento e da eventual condenação) para um cidadão brasileiro com diploma universitário, ele deverá ser encaminhado para uma prisão com acomodações especiais, separadamente dos presos comuns. Da mesma maneira, um político que esteja exercendo mandato em qualquer nível de governo (no executivo ou no legislativo) terá direito a foro privilegiado nos tribunais, mesmo que esteja sendo acusado de um crime comum, como um assassinato. Além do tratamento especial normativamente previsto, o direito a foro privilegiado tem sido manipulado por políticos que, quando se veem próximos a uma provável condenação nos tribunais superiores, renunciam ao mandato, fazendo com que seus processos sejam enviados para juízos de primeira instância, onde serão reanalisados. Como a extensão do tempo processual decorrente desse procedimento amplia muito as possibilidades de prescrição dos crimes, o foro privilegiado tem sido visto como uma garantia de impunidade.

14 Esses dois institutos jurídicos têm sido questionados e tem havido iniciativas para eliminá-los, ainda que sem sucesso. Tais questionamentos constituiriam mais um exemplo da tensão entre as duas concepções de igualdade, que também aparece numa série de outros contextos onde o foco não é exatamente a lei ou a norma, mas o modo como estas são aplicadas. Aqui não me refiro apenas à forma como operam as instituições do Estado responsáveis por fazer justiça, como o judiciário e a polícia, mas a várias situações nas quais os próprios cidadãos acionam alternativamente direitos e privilégios, e entram em conflito devido à falta de consenso a esse respeito.

15 Além do desrespeito a filas a que me referi e das frequentes tentativas de acionar relações para levar vantagem no espaço público, é notório o tratamento diferencial dado pela polícia a ricos e pobres (especialmente negros), abordando os primeiros com deferência e os últimos com desrespeito e desconsideração (Kant de Lima, 1995). A propósito, o caso da blitz na Favela Naval, em São Paulo, registrado por uma câmara escondida em março de 1997 representa um exemplo extremo das práticas abusivas da polícia em relação aos pobres : cerca de dez soldados da polícia militar pararam uma viatura numa esquina, e todos que passavam por lá eram abordados com todo tipo de agressão física e verbal. O objetivo dos policiais era de extorquir dinheiro, e uma das vítimas morreu com um tiro.3

16 Na mesma direção, leis que demandariam tratamento uniforme entre os cidadãos são aplicadas pelo judiciário conforme o status e a condição social dos jurisdicionados, frustrando as expectativas daquele que, ao ser assim inferiorizado, vê sua dignidade ameaçada. Tal situação é particularmente aparente em causas de dano moral, como no caso de um juiz e de sua esposa que, ao retornarem de uma viagem, tiveram a bagagem extraviada. Eles processaram a companhia aérea demandando reparação pelos prejuízos materiais, assim como pelo dano moral, e ficaram surpresos quando, na avaliação do dano moral, o Juízo estabeleceu uma indenização muito maior para o juiz do que para a esposa, que ficou revoltada e apelou da decisão.4

17 Cada vez mais esse tipo de tratamento diferencial tem sido considerado ofensivo à dignidade do cidadão, que não vê justificativa para a relativização de seus direitos e questiona a legitimidade de tais práticas, que lhe parecem arbitrárias. Antes de concluir esta conferência com algumas observações sobre direitos diferenciados de minorias

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étnico-culturais no Brasil, gostaria de fazer uma referência às demandas de reconhecimento do Quebec como uma sociedade distinta. Essas demandas confrontam diretamente a legitimidade da concepção de igualdade como tratamento uniforme em certos contextos e circunstâncias no mundo cívico.

18 Desde 1982, quando a Constituição Canadense foi emendada por uma carta de direitos e liberdades, após ter sido “patriada” (transladada) do Parlamento inglês, onde ficava guardada até então, o Canadá vive uma crise constitucional devido à recusa do Quebec em aceitar a emenda então promulgada. A nova carta de direitos e liberdades é interpretada como uma negação dos direitos coletivos dos quebequenses, na medida em que tornaria inconstitucional a Lei nº 101, que protege a língua francesa no Quebec, e ameaçaria a autonomia da província em áreas consideradas importantes para a afirmação de sua identidade. Por outro lado, ao estabelecer condições restritivas para o acesso à escola de língua inglesa no Quebec e limitações na utilização de letreiros em inglês no espaço público, a Lei nº 101 feriria os direitos individuais dos cidadãos canadenses, que não teriam a mesma liberdade de escolha nessas áreas.5

19 Embora à primeira vista a quebra do tratamento uniforme pareça uma arbitrariedade, os quebequenses têm boas razões para interpretar as restrições estabelecidas pela Lei nº 101 como uma necessidade para evitar a imposição da língua e da cultura inglesas, o que eliminaria a possibilidade de os quebequenses escolherem viver em francês. Além disso, como procuro argumentar em outro lugar (Cardoso de Oliveira, 2011), a história do Quebec estimula a percepção do tratamento uniforme e da falta de atenção à singularidade quebequense no Canadá como um ato de inferiorização, que desvaloriza ou nega a identidade linguístico-cultural da província. Aos olhos do Quebec, o reconhecimento de sua identidade distinta seria a condição para a valorização de sua dignidade e para o exercício de direitos igualitários no mundo cívico.

20 Contrariamente ao tratamento diferenciado proposto por uma das concepções de igualdade em tensão no Brasil, que discrimina direitos conforme a condição social e o status do cidadão, o tratamento distinto reivindicado no Quebec é motivado pelo desejo de gozar o mesmo status e a mesma dignidade dos demais canadenses no plano da cidadania. Da mesma forma, as demandas de direitos diferenciados de indígenas, quilombolas e populações tradicionais no Brasil são motivadas pelo desejo de igual respeito à singularidade e à dignidade desses grupos no plano da cidadania. Além da demanda de respeito ao modo como esses grupos ocupam e exploram os seus territórios, historicamente mais fácil de ser argumentada no caso dos indígenas (apesar das dificuldades de implementar e defender esses direitos), suas lideranças querem garantias de que serão ouvidas e levadas a sério em suas reivindicações. Elas demandam também valorização de suas identidades e tratamento digno na interlocução com a sociedade mais ampla. Não obstante, o Estado brasileiro e a sociedade mais ampla têm demonstrado enorme dificuldade em respeitar os direitos desses grupos, como uma farta literatura demonstra. Para finalizar, gostaria de fazer duas breves referências aos trabalhos de Ronaldo Lobão e Alcida Ramos, que enfatizam o caráter discriminatório da dificuldade de ouvir o ponto de vista dos grupos, caracterizando uma política neocolonialista que provoca ressentimentos (Lobão, 2010), ou uma situação de fricção epistêmica (Ramos, 2014) entre perspectivas à primeira vista incomensuráveis. Lobão descreve vários cenários em que segmentos das chamadas populações tradicionais (pescadores artesanais, extrativistas etc.) têm que se ajustar a modelos impostos pelas políticas de Estado para ter acesso a seus territórios, mesmo que esses modelos tenham

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pouca relação com seu modo de vida e sua identidade de grupo (2010 : 129‑152). O autor chama atenção ainda para o caráter subalterno do processo de inclusão desses grupos nas políticas de Estado, ao não terem voz na definição das condições de exploração de seus territórios (Lobão, 2010 : 292), as quais nem sempre são adequadamente compreendidas pelos beneficiados (idem : 265 e 282).

21 Tal situação, que eu caracterizaria como de exclusão discursiva e que nega ou desvaloriza a dignidade dos grupos ao não considerá-los interlocutores plenos, é ainda mais acentuada no caso dos indígenas, como assinala Ramos. Segundo a autora, as dificuldades das sociedades indígenas brasileiras na relação com o Estado se expressam de forma particularmente aguda nas situações em que acionamos, de modo arbitrário e descontextualizado, os conceitos de democracia, poder e nepotismo para descrever práticas indígenas. Em artigo instigante, Ramos (2014) chama atenção para nossa má compreensão do sentido desses conceitos entre os indígenas ao impormos como suas características essenciais : o princípio do voto (a metade mais 1) em vez dos esforços de buscar consenso ; o princípio da coerção (o uso legítimo da força) em vez da persuasão ; e o princípio da impessoalidade em vez das práticas de reciprocidade. Ramos elabora um argumento sofisticado em relação à verdadeira fricção epistêmica que envolve esse não diálogo, mas eu gostaria de insistir aqui que, no plano da cidadania, a dificuldade em ouvir e valorizar a interlocução do outro implica necessariamente processos de discriminação cívica. Finalmente, se a noção de dignidade é constitutiva da igualdade no plano da cidadania quando examinamos a vigência de critérios radicalmente universalistas, ela tem um peso ainda mais significativo quando o reconhecimento da singularidade de minorias étnico-culturais se torna condição para o respeito a direitos.

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NOTAS

1. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT-InEAC, com sede na UFF e sob a coordenação geral de Roberto Kant de Lima. 2. Veja notícia sobre depoimento de Iñakli Urdangarin, genro do rei e duque de Palma Maiorca, publicada no Diário de Notícias, de Portugal, em 25 de fevereiro de 2012. Disponível em : < http:// www.dn.pt/inicio/pessoas/interior.aspx?content_id=2325852>. Acesso em : 15/12/2014. 3. As imagens foram divulgadas no Jornal Nacional (noticiário de maior audiência na televisão brasileira) em 31 de março de 1997 e tiveram grande repercussão. 4. Este caso me foi relatado por uma colega que era professora do juiz autor da causa em um curso de pós-graduação. 5. Vale lembrar que o Canadá é um país oficialmente bilíngue. De acordo com a Lei nº 101, apenas as crianças cujo pai e/ou a mãe tivesse estudado em escola de língua inglesa no Canadá poderiam ser matriculadas em escolas anglófonas.

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AUTOR

LUÍS ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA

Luís Roberto Cardoso de Oliveira é professor titular de antropologia na UnB, onde leciona nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social e em Direito. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e vice-coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – InEAC. Doutorou-se pela Harvard University em 1989 e foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (2006-2008). Tem experiência de pesquisa no Brasil, nos EUA, no Canadá e na França. A maior parte de suas publicações está disponível em seu repositório na Internet : https://brasilia. academia.edu/LuisRobertoCardosodeOliveira. Contato : LRCO.3000[at]GMAIL. COM

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Artigos

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O exercício da sombra : a experiência de uma etnografia

Rose Mary Gerber

NOTA DO EDITOR

Recebido em 02/12/2013 Aprovado em 18/03/2014

Introdução

1 Neste texto, apresento algumas reflexões baseadas no trabalho de campo realizado por ocasião de minha pesquisa com mulheres pescadoras no litoral catarinense, em que me propus a fazer uma etnografia por meio do exercício da sombra. Viver esse exercício me exigiu uma entrega intensa ao mundo das pescadoras, disciplinando meu corpo e aguçando minha escuta na busca por compreendê-las. Nessa busca, não só afetei, mas fui também afetada de forma irremediável por elas. Colocar-me como sombra teve o propósito de um exercício pessoa–pessoa, de uma afetação in extremis.

2 Apresento minhas reflexões em três tópicos. No primeiro, busco situar o leitor no contexto do exercício de meu campo, que é mar, expondo algumas peculiaridades, como tempo e temporalidade, ventos, esperas. Em seguida, falo sobre o que denominei de perda da inocência, trazendo ponderações sobre uma aventura antropológica. No último tópico, falo sobre o que propus como exercício da sombra, que diz respeito a uma etnografia realizada por meio de um denso mergulho no cotidiano das pescadoras, colocando meu corpo à disposição desse empreendimento.

Mergulhar em um campo que é mar

3 Além da relação terra–mar–praia, no decorrer de minha pesquisa, percebi que teria que ficar atenta aos diferentes tempos e ritmos. “Melhora do tempo”, “tempo bom”, “tempo

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ruim”, “mudança de tempo” eram expressões que remetiam não exatamente a questões de clima ou temperatura, mas ao tempo bom para a pesca, que, para alguns peixes, como a tainha, quanto mais frio, melhor. Ou ao “mau tempo”, definido como tempo ruim, que contava sempre tempo para que o tempo melhorasse. Por conseguinte, diferentes ritmos preenchiam meu trabalho de campo.

4 Ingold & Kurttila (2000), ao discutirem questões relacionadas ao conhecimento tradicional como advindos das práticas da localidade, citam os Sami, da região Norte da Finlândia, que usam a expressão weather (tempo) em contraposição à expressão dos cientistas, climate (clima). O clima diz respeito a variáveis que são medidas, como temperatura, precipitação e pressão atmosférica. Já o tempo diz respeito a calor ou frio, época de colheita, tempestade. Em vez do clima, que é registrado pelos cientistas, o tempo é experimentado pelo grupo como o ambiente obedecendo ao ciclo das estações. Os autores postulam que não se trata de prescrições culturais, mas do conhecimento que vem da prática, das experiências de vida e movimento naquele lugar. Concordo com os autores sobre esse aprendizado se dar na prática, ocorrendo nas relações intra ou intergeracionais.

5 Ao que Ingold e Kurttila (2000) se referem como diferentes épocas que compõem uma experiência, Bachelard (1994) denominou de ritmanálise, segundo a qual a vida é ondulação. “O calendário das frutas é o calendário da ritmanálise. A ritmanálise procura em toda parte ocasiões para ritmos” (Bachelard, 1994 :133). Ingold e Kurttila (2000) falam de época de colheitas. Bachelard (1994), de épocas de um calendário. Em meu campo, dizia respeito às épocas que compunham um calendário anual de peixes, camarão, siri ; calmarias ou tempestades ; fartura ou escassez. Nessa ritmanálise que rege a vida, o ciclo das estações orienta não só os períodos de ir ao mar ou esperar, mas a própria experiência de quem vivencia esses tempos.

6 “Tempo bom” ou “tempo ruim” dizia respeito às épocas de fartura ou escassez de pescado. Porém, é mais do que isso. A marcação cronológica dos relógios, que eu buscava definir com as pescadoras para saber quando sair ao mar, era um tempo aproximado que me davam como referência, mas o que contava era a observação de mudanças muito sutis na luminosidade do céu. As saídas para o mar, inicialmente combinadas para as cinco da manhã, em Florianópolis, por exemplo, mostravam-se mais complexas do que eu estar nesse horário na praia. “O tempo era simplesmente algo que não podia ser consignado” (Barley, 2006 :101).

7 Guardadas as diferenças, recorro a Barley (2006) no sentido de expor o quão difícil era conciliar a angústia por querer avançar no trabalho de campo e o tempo necessário de espera. A temporalidade (Bachelard, 1994) que compunha as muitas idas e vindas me mostrava que não era eu quem definia, nem tampouco eles – pescadores e pescadoras - propriamente, mas uma conjunção de fatores que faziam parte do que denominavam de tempo.1 Tratava-se de chegar no horário combinado, mas ficava-se à espera de algo que, no princípio, não entendi : todos, ou parados, ou conversando, aguardavam, até que de repente corriam em direção às embarcações. Era um matiz de luminosidade no céu em que já não era noite, mas também de dia não se tratava. Era naquela mudança sutil que saíamos para o mar na Armação do Pântano do Sul, em Florianópolis.

8 Em Barra do Sul, nas saídas para ver as redes que tinham sido colocadas no dia anterior próximo ao costão, o horário orientador era em torno das seis da manhã, mas a saída dependia de fatores como o clarear do dia, aliado à situação de mais ou menos agito na saída da barra. Esse era considerado o local mais perigoso, pois tratava-se de passar a

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fronteira da tranquilidade do abrigo que está antes da barra e o mar aberto. Já para a pesca do baiacu em São Francisco do Sul, dona Paulina poderia sair às sete, ou às nove ; e voltar às dezessete, às vinte ou às vinte e duas horas, dependendo do nível da maré. Esses tempos não seguiam o crono do relógio, mas o ritmo cronos (Leach, 1974) que o começo do nascer do dia, a agitação na saída da barra ou o movimento das marés indicava, ou ainda que o agito do mar impedia.2

9 As pescadoras, ao mesmo tempo que estavam sintonizadas com o que os meteorologistas diziam, observavam ciclos e mudanças constantes, em que a composição era sempre plural.3 Não havia um vento, mas qualificações de vento : sul, nordeste, este, leste, rebojo, lestada, terral, conforme me explicou dona Merabe : lestada é o vento que mais deixa o mar agitado ; traz tempestades que costumam durar às vezes quinze dias, mas é o que traz fartura, traz tudo. Com o vento terral, não dá para pescar. Ele só leva a pessoa para fora, para o golfo do mar. É um vento que vem da terra e dura cerca de três dias. O rebojo é um vento que não dá para ir para fora. Ele não engrossa o mar, mas é muito forte. Também não traz nada ; só leva, e dura cerca de dois dias. Entre o sul e o leste, seria o rebojo. Rebojo por quê ? Porque reboja, como uma máquina lava (Merabe, 60 anos).

10 Safira, que viveu por vinte anos em uma ilha e que observava diariamente as mudanças do tempo, ao explicar as formas de manifestação do vento, contou-me que há, inclusive, briga de ventos : passava meia hora de vento sul. Daqui a pouco, o nordeste vencia o sul […]. Outro dia a briga é este/sueste. Entre o leste e o oeste tem o norte, que os antigos chamam de nortão duro […]. Tem o noroeste, que é um vento quente, que fica entre o terral e o norte. É um vento doentio, quente, de novembro, dezembro. Para nós, o melhor é o nordeste, porque é seguro, o tempo firme, água quieta, limpa, calmaria. É mais no verão. É um vento que limpa o tempo (Safira, 38 anos).

11 O vento influencia o sucesso ou insucesso da pesca. Há ventos mais temidos, de um modo geral, como o leste, ou lestada, e o terral, que vem da terra. Chegam com força e permanecem dias, impossibilitando qualquer atrevimento na pesca.

12 Os pequenos barcos são puxados para os ranchos ou amarrados até que o tempo melhore. Para tanto, é preciso que o vento mude, pois, contra vento, só outro vento.

13 Os tempos interferiam nas saídas para o mar. Mas não se tratava de um tempo de espera ociosa, e sim repleto da agilidade das mulheres em remendar ou fazer redes, lavar roupa, fazer comida, comprar mantimentos, olhar a embarcação averiguando se tudo está bem. Não havia um tempo de descanso definido no que diz respeito a fim de semana. O tempo bom de pesca guiava os dias de trabalho, inclusive sábados, domingos e feriados. O tempo ruim dava uma trégua nas idas ao mar. Essas temporalidades interferiam diretamente no tempo que eu levava para realizar o que era, previamente, combinado com as mulheres, pois, quando me diziam que o tempo não estava bom, queriam dizer que teríamos que dar, de fato, tempo ao tempo, e esperar a melhora do vento, da maré, do mar agitado.

14 Roberto Cardoso de Oliveira (1995 :2) propõe mostrar “os limites do método, ou Minha cabeça fervilhava quando ouvia comentários que, a princípio, me eram ininteligíveis : “ou vai entrar uma lestada ou um terral. Ontem já deu rebojo”. […] o que poderia estar em seu lugar”. As contradições, a diversidade, as inquietações que emergem quando estamos no exercício do campo contribuem com o aprendizado de nosso ofício. Fazer um campo que é mar exigiu-me muita paciência e um exercício contínuo de espera e observação antes de ser acionada pelas mulheres para o que inicialmente, a meu ver,

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constituía participar de seus cotidianos — o que, muitas vezes, me deixava angustiada pela sensação de não estar fazendo nada a não ser observar e esperar.

15 Via-me inquieta, pois sentia-me perdendo tempo. Uma espécie de agito interior irritava- me. “Odiava desperdiçar tempo, detestava perdê-lo” (Barley, 2006 :101). Muito distante da sensação de aventura nas saídas para o mar, ficar esperando me fazia sentir que faltava algo, que havia uma incompletude nos momentos, mais de observação do que de participação, até que busquei me aquietar e viver apenas o que me estava sendo disponibilizado. Foi aí que os tempos de espera se converteram em tempos de muita conversa, em que procurava compreender os meandros das vidas das mulheres, observando e experimentando o que faziam enquanto se esperava o tempo melhorar. Instigava-as a me contar como viam suas vidas, por que optaram por embarcar ao invés de atuar em terra. Enfim, foram tempos de escuta de narrativas sobre aventuras vividas, dores, alegrias, dificuldades, aprendizados. Por vezes, elas choravam ; outras, era eu quem não conseguia me conter com as suas narrativas, o que fazia, por vezes, meu humor oscilar entre a solidariedade e uma profunda angústia, solidão e decepção comigo mesma por não ter me contido.

16 Perguntava-me constantemente : estava fazendo bem o que fazia ? Estava utilizando- me corretamente do método etnográfico ? Seria aquela a melhor forma de fazer o campo ao qual me propunha ? Agitava-me uma angústia por desejar ter uma resposta certa que desse conta de esclarecer as muitas questões. Bachelard (2008), ao discutir obstáculos epistemológicos, afirma que precisamos estar atentos ao processo de construção do conhecimento científico, em que emergem contradições, erros e insuficiências. É preciso honestidade e paciência, fazendo-se central buscar formular bem os problemas e conviver com uma constante reformulação de perguntas, pois tudo é construído e reconstruído continuamente. “Todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído” (Bachelard, 2008 :18). Nessa construção e reconstrução, constantemente eu me questionava sobre o fazer antropológico ; nesses momentos, emergiam ponderações sobre o que, no dizer de Fonseca (1999), diz respeito a um mal-estar sobre incompetência nas linguagens locais e dinâmicas sociais.

Sobre a perda da inocência

17 Ao discutir a necessidade de uma contínua discussão teórica sobre os caminhos da observação participante, em que postula que é necessário valorizar tanto a observação quanto a participação e expressa o desejo de saber por que a observação participante se transformou em participação observante, Ruth Cardoso (1988) remete-se ao texto de Roberto da Matta (1978).4 De acordo com ela, o autor mostra que nossa formação postula o planejamento do trabalho, mas não nos prepara para ver com olhos críticos nossos humores, cansaços, infortúnios.

18 Segundo a autora, às vezes, os relatos limitam-se às aventuras dos antropólogos sem colocá-las, de fato, como etapas que irão compor o processo de conhecimento, construído em um questionar-se contínuo. Bachelard (2008 :8) propõe mostrar o que chama de dificuldades das abstrações corretas “ao assinalar a insuficiência dos primeiros esboços, o peso dos primeiros esquemas, ao sublinhar também o caráter discursivo da coerência abstrata e essencial, que nunca alcança seu objetivo num só golpe”. Barley (2006), por sua vez, diz que se trata de erro e revisão constante. Eu

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acrescentaria que o próprio campo se encarrega de nos colocar permanentemente em estado de atenção e autorrevisão. O dia em que o mar me mostrou sua força me permitiu avançar em questionamentos sobre os limites da minha observação, que se queria também participação, entendendo ambas como centrais no investimento antropológico. Nesse sentido, no início de meu campo, quando eu contava a colegas da antropologia ou demais pessoas que estava iniciando uma pesquisa com pescadoras, a maioria demonstrava curiosidade e admiração : com mulher de pescador ? Com pescadoras mesmo ? Que vão para o mar ? A seguir, não raro, resumiam que consideravam que eu estava vivendo uma verdadeira aventura.

19 Assim, logo após o início dos embarques, a vaidade seduziu-se e tudo parecia, de fato, uma grande aventura até o dia em que o mar mudou de repente, e o tempo passou de bom a ruim. Primeiro, olhei o mar de baixo para cima, de dentro da pequena embarcação, pois ele cresceu tão rapidamente que fiquei estática, embora extasiada com o que via. Só conseguia pensar que parecia estar diante de uma grande catedral, inspiradora de respeito. Em seguida, o mar agitado jogou a embarcação para cima, e com ela fui junto no breve desequilíbrio de meu corpo. Ao olhá-lo de cima para baixo e observar o que me parecia uma grande boca que recebia violentamente água de quatro direções, e que vindo de quatro direções se encontrava no centro, eu só consegui pensar, antes de projetar meu corpo para cair dentro da embarcação : não adianta saber nadar ! Naquele momento, assimilei que estava em um campo tão perigoso quanto instigante. Acabou a aventura-fantasia e começou uma aventura antropológica.5 Segundo Cardoso (1988 :13), a nossa Aventura Antropológica pode lembrar a visão romântica que cerca os antropólogos, quase sempre confundidos com excêntricos aventureiros que se lançam em estranhas viagens por regiões desconhecidas ou espaços urbanos inabituais. Mas, mesmo rejeitando estas pinceladas românticas, não seria enganoso dizer que a pesquisa é sempre uma aventura nova sobre a qual precisamos refletir.

20 A autora não aprofunda uma discussão sobre o que ela própria apresenta. No entanto, entendo ser interessante ter claro que, ao adjetivarmos “aventura” — uma aventura “antropológica” —, estamos qualificando uma experiência que nada tem de romântica ou excêntrica. Pelo contrário, trata-se de um exercício que, no dizer de John Vann Maanen (2004,) implica superar a inocência que permeia a aventura-fantasia, se considerarmos que a aventura antropológica seria o exercício da própria etnografia. Diz Maanen (2004 :427) : “a etnografia não é mais pintada como um procedimento relativamente simples de olhar, escutar e aprender, mas antes como algo próximo a uma intensa prova de fogo epistemológica”. O autor refere-se ao que denomina de fim da inocência, inocência esta que pressuporia que a etnografia emerge mais ou menos naturalmente de uma simples estada em campo. Maanen enfatiza que a etnografia não estará dada em um primeiro momento, mas precisará ser construída no aguçamento do olhar em campo.

21 Nesse direcionamento, pondero que a imersão em campo, cuja exigência primeira, tema há muito discutido na disciplina, diz respeito a ter os sentidos voltados para a observação de sutilezas, a exemplo do antropólogo inocente de Barley (1983), em que é preciso tempo para apreendê-las por meio da atenção ao que será extraído, selecionado, é como um verdadeiro processo de garimpagem em que “o trabalho de campo tem muito em comum com a mineração” (Barley, 2006 :136). “É preciso muito esforço para extrair algumas onças de ouro”, enfatiza Barley. Considero esse aspecto central, pois muitas vezes estamos tão determinados a garimpar em um lado que

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podemos não nos dar em conta, em um primeiro momento, que as onças de ouro podem estar de outro.

22 Enquanto Cardoso (1988) empreendia uma discussão visando compreender os meandros entre observação participante e participação observante, Clifford Geertz (1989 :19), ao defender a centralidade de uma descrição densa, afirmava que em “todo empreendimento nós já estamos explicando e, o que é pior, explicando explicações. Piscadelas de piscadelas de piscadelas”. Concordo com Cardoso sobre ser a participação tão importante quanto a observação, e concordo que a busca de uma descrição densa, preconizada por Geertz, é central. Por outro lado, há campos e campos e formas distintas de compor o fazer antropológico : uma pluralidade. Nas palavras de Menezes Bastos (2010 :3), tomaríamos “essa pluralidade […] como uma primeira grande marca da antropologia, uma pluralidade que tem sido — e é — tensa”. Embora saibamos há muito que é preciso olhar, observar, participar de tudo e viver a experiência com o máximo que nos é possibilitado, muitas vezes o campo não se apresenta como inicialmente imaginamos, e é preciso tempo para entrar na vida das pessoas, mas também para assimilar que elas entram nas nossas e que não há nada em nós de neutro, nem de inodoro, nem de asséptico. Corroboro com Mônica Dias (2007 :86), quando afirma que é “impossível negar que pessoas e suas relações são nossos objetos de estudo”. Mas que também não podemos esquecer : “a via é de mão dupla” (Dias, 2007 :86).

23 Em alguns trabalhos de campo, a possibilidade viável é a observação ; em outros, é possível exercitar a participação, aliando uma e outra. Porém, quero ponderar o que estou denominando de exercício da sombra. Ou seja, uma busca por apreender meandros, sutilezas, temporalidade, corporalidade, em seus cotidianos por meio de uma experiência de observação e participação densa. Isso é possível em um mergulho não só profundo, mas extenuante, vivido em uma tensa suspensão e expectativa que emerge da tríade ver–sentir–experienciar repetidamente o exercício etnográfico. Ou seja, “não resistir ao contato com o outro […]. Isso não significa tornar-se o outro, mas permitir ser atingido por ele […]” (Dias, 2007 :91).

24 Ser atingido pelo outro passa, dessa forma, pelo exercício de repetir a observação, repetir a convivência, repetir momentos como se nada fosse acontecer e, de repente, tudo acontece.6 Fazer etnografia como sombra é estar presente de forma intensiva e repetitiva, pois a repetição permite viver a experiência densa que inclui o inesperado. Em minha experiência, fazer etnografia, às vezes, era ficar sentada na praia observando aquilo que parecia não ter sentido. Mas dei-me conta de que esse era o sentido. O campo me trouxe um aprendizado do próprio sentido da pesca : uma espera e repetição contínua em que, às vezes, se produz muito ; outras, nada. Às vezes, avança-se na compreensão do outro ; outras, tudo fica em suspensão.

25 A etnografia, como repetição da experiência, permite-nos uma densificação à medida que observamos se um fato é extraordinário ou ordinário. E é no ordinário, segundo DeCerteau (1994), que é possível perceber a criatividade e as formas como as pessoas conseguem se reinventar, se recriar no seu cotidiano. Essa observação contínua, cansativa e exaustiva permite-nos construir a etnografia como método, como epistemologia, como um conjunto de saberes-fazeres que dizem respeito à antropologia. Embora cada vez mais outras disciplinas estejam fazendo uso do exercício etnográfico, o saber-fazer etnografia, dentro da antropologia, tem a especificidade desse convívio, desse mergulho de longa duração que nos afeta de tal forma a povoar “inclusive nossos momentos de repouso, fazendo-se presentes nos sonhos” (Tornquist,

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2007 :69). Isso porque o exercício etnográfico, como ato de repetição criadora, não se dá apenas pela observação, participação ou análise racional, mas como um processo afetivo-emocional que faz sentido, corroborando com Tornquist (2007 :68), “sobretudo pelo processo de deixar-se afetar por ele”.

26 As embarcações entravam e saíam todos os dias. Assim foi o meu fazer etnografia no cotidiano da pesca, buscando compreender como as mulheres são e vivem como pescadoras : “um ato solitário” (Maluf, 2010, s/p) que se realiza com o aporte de nossos pares. Acredito que só assim é possível fazer e ser feito, como resumiu Menezes Bastos (2010). Roy Wagner (2010 :29) diz que “um antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estudo”. Tão difícil quanto viver essa experiência é, a partir de nossos próprios significados, encontrar formas de comunicar a experiência vivida, inventando a cultura do outro e, assim fazendo, inventando formas de fazer antropologia.

O exercício da sombra

[…] Enquanto aguardava a vinda do mecânico, Simão e Marques ficaram conversando comigo. Um senhor que passava em outro carro parou e veio sorrindo em nossa direção, curioso para saber o que houve. Marques, muito rápido, disse : “ah, padre, a bateria do carro da Rose pifou”. “E quem é ela ?”, perguntou o padre. Simão, que além de pescador é diácono, foi respondendo : “é uma antropóloga que está aqui pesquisando a gente, com as nossas mulheres”. “Antropólogo ? Mas o que é uma antropóloga ?” Nestas alturas, embora eu já estivesse cansada com um padre tão curioso, fiquei, eu, curiosa para ver o que Marques iria responder, o que ele, prontamente fez : “olha, padre, é tudo ólogo, óloga. O senhor é teólogo. Ela é antropóloga. E se bem estamos entendendo, com o trabalho da Rose, uma antropóloga é aquela pessoa que vê a gente do fio do cabelo ao dedão do pé. Tudo o que o senhor imagina, ela está vendo com a gente. Tudo. Aonde a gente vai, ela vai junto, em tudo […]. Como ela diz, é uma sombra” (Trecho de meu diário de campo).

27 Embora eu me propusesse a estar em tudo com o intuito de ver o máximo possível, estava muito claro para mim que seria sempre alguém exterior àqueles espaços, lição que já tinha vivido intensamente em meu trabalho de campo no mestrado, quando fui alertada que, mesmo que vivesse cem anos ali, eu jamais seria um deles. Essa convicção vai ao encontro da afirmação de James Clifford (1983) de que, embora o etnógrafo tente se inserir na sociedade que estuda, é e será sempre um outsider : o etnógrafo, antes de tentar misturar-se na sociedade em estudo, “desempenha o papel do seu estrangeiro”. Um intruso amistoso, mas determinado, pressionando constantemente contra interdições usuais, o etnógrafo vem para ver como alguém que, precisamente por causa da sua exterioridade com respeito a instituições nativas, improvavelmente os falsificará (Clifford, 1983 :144).

28 Sendo eu uma outsider, queria encontrar uma maneira de me aprofundar no cotidiano das pescadoras.7 Foi assim que, ao me preparar para as primeiras conversas com elas, visando expor a proposta de minha pesquisa, só consegui denominar o que e como gostaria de realizá-la recorrendo à expressão “sombra”. Expliquei-lhes que isso significava que, o que fizessem e aonde fossem, ali eu estaria. Por outro lado, se era eu a sombra, o propósito era o de serem elas a luz, o que nos traz a questão visibilidade– invisibilidade ; ver e ser visto. Mais do que observação, uma participação visceral, colada, grudada. Outra ponderação poderia ser pensada nos meandros de Nietzsche (2007), em que a sombra seria um eu do meu eu, antropóloga, uma viajante que saiu em

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busca das pescadoras.8 Luz e sombra como um mesmo e como a relação entre mulheres em diálogo : antropóloga e pescadoras.

29 Após ouvirem e concordarem com a proposta de ser eu uma sombra, embora inicialmente me poupassem do esforço, no andamento da pesquisa rapidamente me colocaram a trabalhar, fazendo exigências, mandando, orientando, às vezes se irritando devido ao meu ritmo mais lento e minha fraqueza física. A receptividade das pescadoras e de suas famílias foi muito boa, e todas levaram a sério quando eu lhes dizia que propunha que o método da pesquisa se pautava por eu ser uma sombra delas : criticavam ou sugeriam o que eu deveria fazer enquanto elas faziam. “Vamos lá, minha sombra” ; “anda, sombra” ; “se é pra ser sombra, empurra daí” eram comentários jocosos e acompanhados de risos, assim como ordens do tipo “puxa”, “empurra”, “lixa”, “separa”, “carrega”.

30 A proposta do exercício da sombra dizia respeito a colocar-me à disposição do campo no sentido de, sem limites, deixar-me afetar por ele, disciplinando meu corpo à medida que o campo me capturava na entrega em que me propus ser total, no sentido em que postula Kelly Cristiane da Silva (2007 :233) : “é preciso deixar-se capturar ou ‘perder-se’ pela experiência de campo”. Exercitar a sombra teve como proposta, mais do que aplicar o “método etnográfico procurando entender qual o sentido dessas práticas” (Fonseca, 1999 :16), deixar-me absorver pelas práticas e, sem me tornar o outro, colocar meu corpo, minha emoção, minha razão à disposição para melhor compreender o outro e, posteriormente, problematizar essa experiência. Longe de ceder à ingenuidade de um caminho em que “a reflexividade parece se materializar apenas no modo confessional” (Fonseca, 1999 :7), a tentativa foi de realizar um exercício etnográfico que reverberasse em minhas vísceras, seja nas saídas para o mar, seja no presenciar a morte dos peixes, seja na escuta atenta das narrativas de sofrimento de mulheres pescadoras.

31 Com o passar do tempo, as pescadoras mostraram-se muito à vontade, demonstrando o que, inicialmente, me pareceu ser um aproveitamento da mão de obra quando ocorria o que poderíamos denominar de um desdobramento da sombra. Sombra e seu duplo trabalhavam juntos, mas cada qual em atividades diferentes visando agilizar a realização das muitas tarefas, o que me era verbalizado na expressão “enquanto” : “enquanto eu faço isso, fazes aquilo”. “Enquanto eu puxo daqui, tu puxas dali” ; “enquanto eu empurro a embarcação, tu pegas a estiva” ; “enquanto eu limpo o peixe, tu colocas no saco”. Mais tarde fui me dar conta de que o trabalho de campo, efetivamente, “nos endivida. Precisamos retribuir a dádiva e não somos exatamente nós que detemos o controle de sua temporalidade” (Tornquist, 2007 :48). Não se tratava, portanto, de um simples aproveitamento de minha mão de obra, mas de uma retribuição imediata à dádiva do campo em que tive que pagar, enquanto o realizava, a dívida que tinha contraído.

32 Os desmembramentos foram muitos, repetindo gestos e atividades com minha presença–sombra : ir para o mar, voltar, puxar as redes e as embarcações, estender roupas, amassar pão, ir a cultos religiosos, limpar a casa, atender clientes, pesar e empacotar os produtos, ir ao mercado, lixar embarcações, empurrá-las para o mar. Onde a pescadora fosse ou o que fizesse, ali estava eu. De manhã à noite. Noites dormindo em suas casas ; madrugadas acordando em suas portas. Entretanto, no agito contínuo do extenuante exercício da sombra, preservei momentos de isolamento, pois entendo e concordo que se faz necessário resguardar o que Gilberto Velho (2004) denominou de tempo psicológico : aquela necessidade, tanto minha quanto delas, de ter

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um tempo uma sem a outra. Se em alguns momentos eu me sentia cansada, irritada, com vontade de ficar sozinha, por que elas não sentiriam o mesmo ? Assim, propositadamente, reservei momentos para ficar afastada e preservar-nos, pois, mesmo que buscasse evitar ou que não quisesse, já tinha feito o que Barley (2006 :209) afirma : “todos os antropólogos alteram de alguma maneira o povo que estudam”.

33 No entanto, ao dito de Barley, eu acrescentaria que o campo também nos altera. Às vezes, irremediavelmente. No disciplinar meu corpo por meio do exercício da sombra, entreguei-me totalmente às pescadoras e, assim me entregando, “tornei-me outra pessoa” (Silva, 2006 :252), tornei-me outro corpo. Elas já tinham alterado minha vida, pois não só a sombra as acompanhava. Demonstravam uma atenção constante no que a sombra indicava sobre elas, o que me permitiu perceber que se, por um lado, eu queria viver de forma intensa o cotidiano das pescadoras, por outro, estava provocando nelas uma espécie de auto‑observação à medida que se viam nas reações da sombra projetada, grudada de forma contínua e persistente. Exercitar-me como sombra implicou, portanto, um exercício interpessoal. Mais do que afetação (Favret-Saada, 2005), eu qualificaria essa afetação com uma expressão de Amorim (2008) : in extremis.

Considerações finais

34 Michel de Certeau (2008 :65), ao tratar sobre a operação historiográfica, levanta questões como “o que fabrica o historiador quando faz história ? Para quem trabalha ? Que produz ? […] O que é esta profissão ?” Por outro lado, Gilles Deleuze e Félix Guattari (2009 :10), na obra O que é a filosofia ?, afirmam que simplesmente chegou a hora de perguntar o que é a filosofia, embora tenham uma resposta que não variou : “mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão, seria necessário também que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão”. Tanto nas questões de De Certeau (2008) quanto na alusão à hora final de Deleuze e Guattari (2009), inserem-se paisagens, personagens, condições e incertezas que, muitas vezes, nos remetem a Menezes Bastos (2010) sobre ser irrespondível de maneira cabal esta questão : o que é a antropologia ?

35 Quando Deleuze e Guattari (2009 :9) afirmam que “talvez só possamos colocar a questão […] tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente”, apontam para o fato de que não é que não viemos nos questionando sobre o que é a antropologia ; parece, na realidade, que nos propomos a “não ficar só na rama, mas em deixar-nos engolir por ela” (Deleuze & Guattari, 2009 :9). Ao usarem a figura da rama, os autores remetem-nos a pensar sobre uma busca contínua de aprofundamento, de ir da rama à raiz de nossas questões, angústias e dúvidas e, ao nos deixar engolir, por ela passar, de certa forma, a fazer parte dela, e ela de nós.

36 O exercício da sombra visando a uma observação–participação–experiência densa se aliou a uma escuta feita com os olhos. Explico-me melhor : como percebi que algumas pescadoras não me olhavam diretamente, larguei papel e caneta, o que me permitiu olhá-las totalmente nos olhos e ter delas o mesmo retorno. Isso propiciou uma despreocupação em anotar o que era dito e me permitiu estar com o corpo todo em um estado de atenção em que não só os ouvidos, mas os olhos passaram a fazer parte de uma escuta atenta, inteira. Esse exercício se propôs da sombra : etnografia imbuída de afetações, o que significa permitir “perceber as pessoas de carne e osso como sujeitos sociais — inclusive eu mesma” (Tornquist, 2006 :69).

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NOTAS

1. Bachelard (1994), ao falar do que define como temporalidade, diz que em tudo há uma ritmanálise que modula momentos de agito e de descanso, em uma composição temporal que faz parte da duração. Aqui, do fazer-se pescadora e do viver na/da pesca. 2. Leach, em uma discussão sobre a valoração e as formas de ver o tempo, rememora três estórias sobre o deus Cronos, pai de Zeus, citando como ritual mais importante o festival conhecido como Cronia, que “ocorria no tempo da colheita, no primeiro mês do ano, e parece ter sido uma espécie de celebração do Ano Novo” (1974 :198). O autor esclarece que o tempo de cronos não é aquele como o consideramos, pautados “em relógios, rádios, observatórios astronômicos” (Leach, 1974 : 192). “O tempo de Cronos é uma oscilação, um tempo que vai e vem, que nasce e é engolido e é vomitado, uma oscilação do pai para a mãe, da mãe para o pai, repetidamente” (Leach, 1974 :199). Cronos, portanto, é oscilação. 3. Minha cabeça fervilhava quando ouvia comentários que, a princípio, me eram ininteligíveis : “ou vai entrar uma lestada ou um terral. Ontem já deu rebojo”. 4. Eunice Durham (1988) considera dois tipos de participação : a objetiva (que estaria mais afeita aos trabalhos com povos indígenas) e a subjetiva (realizada nas cidades), sobre a qual é preciso

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ter cuidado para não cair em análises com base em categorias nativas. Pondera ainda sobre os meandros de quando uma pesquisa passa de observação participante a participação observante, resvalando na militância. Para a autora, ter- se-ia que ponderar uma discussão apurada sobre questões teórico-metodológicas e epistemológicas aí envolvidas. Segundo ela, a observação participante é um trabalho importante, mas é preciso avançar na procura de novos caminhos. Considero que a observação participante é o que nos propicia a aproximação com o campo. É o princípio do que o decorrer do tempo em campo permitirá vivermos, que estou qualificando como uma experiência densa. Entendo que cabe um salto em termos de avançarmos no que Malinowski (1976 [1922]) postulou. A observação participante do autor estava contextualizada em uma antropologia feita a partir da varanda, se podemos assim pensar. Atualmente, considero que precisamos qualificar nossa estada em campo como participação que contempla observação, inserção no cotidiano, afetação e disponibilidade de vivenciar uma experiência densa. 5. Michel Leiris (2007), ao falar sobre “a África fantasma”, comenta que o campo lhe permitiu desmistificar ilusões. Na apresentação da obra, Fernanda Peixoto afirma que “é de decepção que nos fala Leiris ao longo do relato : a partida, rodeada por imagens românticas e fantasias de evasão ; o cotidiano em terra estranha ; o regresso, definido antes por frustrações que por conquistas […]. A narrativa aponta assim para a desmistificação da viagem, das realidades encontradas e do próprio trabalho etnográfico como possibilidade de acesso ao ‘outro’” (Leiris, 2007 :31). Considero que a ida a campo propicia e coloca à prova qualquer romantismo, ingenuidade ou ilusões iniciais que, por sua vez, nos alertam, como no meu caso ; ou nos decepcionam, a exemplo de Leiris (2007). Mas eu argumentaria que também nos surpreendem e nos fornecem subsídios para pensarmos sobre o próprio exercício etnográfico. Se não tivesse se decepcionado, se frustrado, Leiris (2007) não teria como escrever A África fantasma. Ou seja, não teria deixado uma contribuição tão rica sobre tópicos vivenciados em campo. 6. Michel Leiris (2007 :32) fala sobre o que considera uma rotina monótona permeada pela mesmice. Esta tem o efeito permanente de paralisar o tempo em que, segundo ele, nada acontece : “as cidades e os lugares se sucedem no correr das horas, das jornadas, das estações, dos meses do ano. Mas como a viagem etnográfica não narra aventuras — ao contrário, está enraizada na rotina —, seu registro frisa monotonia e tédio”. Considero que é aí, no que parece a mesmice, que está a possibilidade e de onde emerge a experiência da etnografia. 7. Outsider : intruso. Uso o termo no sentido de Elias (2000), ou seja, pensando que eu não era nem seria membro daquele grupo social. Embora não fosse rejeitada ou excluída, estava claro ser eu “de fora”. Portanto, de certa forma, uma intrusa. Por outro lado, Becker (2008 :15) utiliza o termo no sentido de “alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo”. Embora eu me propusesse a viver em campo as regras estipuladas pelo grupo, não fazia nem faria parte dele. Eu e as pescadoras sabíamos disso. 8. No diálogo entre a sombra e o viajante, o viajante afirma : “[…] para que haja beleza do rosto, clareza da palavra, bondade e firmeza de caráter, a sombra é tão necessária quanto a luz. Não são adversárias : antes, elas tomam amigavelmente a mão uma da outra e quando a luz desaparece, a sombra foge atrás dela” (Nietzsche, 2007 :14).

RESUMOS

O objetivo desta escrita é apresentar, com base em minha pesquisa com pescadoras embarcadas na pesca artesanal em Santa Catarina, sul do Brasil, reflexões sobre o exercício de uma etnografia

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em que me propus a colocar-me como sombra. Longe de implicar uma conversão, a experimentação da sombra diz respeito a uma imersão densa no mundo do outro, sua forma de ser e estar no mundo, em que o exercício etnográfico prescinde da repetição e da vontade de vivenciar uma afetação in extremis. Ou seja, um estar em campo que exigiu uma disponibilização por inteiro de meu corpo e minha racionalidade, mas também afetividade e emoção.

The objective of this piece of writing is to present, based on my inquiry with fisherwomen boarded in the craft fishing in Saint Catarina, South of Brazil, reflections on the exercise of an ethnography in which I intended to put myself like shadow. Far from implicating a conversion, the experimentation of the shadow concerns a dense immersion in the world of the other, their form of being and of being in the world, in which the ethnographic exercise is done without the repetition and without the will of surviving an affectation in extremis. In other words, this exercise demanded the availability of my entire body and rationality, but also affection and emotion.

ÍNDICE

Keywords: ethnography, anthropology, adventure, shadow, fisherwomen Palavras-chave: etnografia, antropologia, aventura, sombra, pescadoras

AUTOR

ROSE MARY GERBER

Rose Mary Gerber é mestra (1997) e doutora (2013) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Vinculada à Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) como analista técnica de formação superior IV, atua principalmente nas seguintes temáticas : comunidades pesqueiras, indígenas e agrícolas ; relações de gênero e geração ; e educação ambiental. E-mail : romagerber[at]gmail.com.br.

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As comunidades negras rurais nas ciências sociais no Brasil: de Nina Rodrigues à era dos programas de pós-graduação em antropologia

Carlos Alexandre B. Plínio dos Santos

NOTA DO EDITOR

Recebido em 13/03/2014 Aprovado em 20/05/2014

1 Durante várias décadas, no Brasil, houve uma grande carência de trabalhos científicos sobre o negro brasileiro em contexto rural. O negro em contexto urbano, ao contrário, foi pauta de vários estudos, que privilegiavam discussões sobre seus aspectos físicos e culturais. Com efeito, muitos estudiosos, ao pesquisarem grupos negros, destacaram traços culturais de origem africana, os quais seriam indicativos de uma etnicidade. Esses traços seriam mais nítidos em grupos de negros urbanos, e sua ausência indicaria uma diferenciação apenas no nível do preconceito racial. Como observado por Bandeira (1988:21), pesquisadores como Roger Bastide, Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa, que comungavam com esse ponto de vista, defendiam a tese de que as condições de vida do negro em situação rural eram culturalmente desagregadoras, posto que dificultavam a persistência de cultos, ritos, tradições e deixavam-lhes poucas ocasiões e espaços de interação entre si. A vida urbana em relação à vida rural oferecia melhores condições de persistência de traços culturais africanos e, conseqüentemente, de maior potencialidade de formação de uma identidade étnica forjada na resistência cultural.

2 Tal posicionamento contribuiu para que o foco das pesquisas sociológicas e antropológicas sobre o negro recaísse em contextos urbanos. As comunidades negras rurais, ao serem vistas como “desagregadas culturalmente”, foram colocadas à margem das pesquisas acadêmicas do final do século XIX até a segunda metade do século XX.

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3 Neste artigo, pretendo justamente elucidar, por meio de um panorama histórico dos estudos sobre relações raciais nas ciências sociais no Brasil, como se deram as mudanças de foco das pesquisas sociológicas e antropológicas sobre o negro. Nessa direção, discutirei quatro momentos históricos principais (período heroico, de Nina Rodrigues a Édson Carneiro; período carismático, de Donald Pierson a Florestan Fernandes; período burocrático, do Projeto Unesco aos programas de pós-graduação em antropologia – PPGA; e a era do estudo sobre as comunidades negras rurais nos PPGAs), evidenciando o modo como a ênfase quase exclusiva nos negros urbanos foi dando espaço, a partir da década de 1960, a uma maior visibilidade dos negros em ambiente rural.

4 Para além disso, na última parte deste artigo serão listadas dissertações e teses em antropologia cujo foco são as comunidades negras rurais ou o negro em ambiente rural. Trata-se de trabalhos produzidos entre 1960, quando havia apenas um PPGA, e dezembro de 2013, ano em que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) registrou 22 PPGAs em funcionamento no Brasil.1 Ante a dificuldade em pesquisar in loco as teses e dissertações nas cidades em que estão localizados os 22 PPGAs, pesquisa que ultrapassaria os objetivos do presente artigo, explorei o banco de teses e dissertações dos sítios dos PPGAs; das bibliotecas virtuais dessas instituições; do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict); e da Capes. Para essa exploração, foram utilizadas as palavras-chaves: campesinato, negro, quilombola, relações raciais, racismo, comunidade negra e escravidão.

Período heroico: de Nina Rodrigues a Édson Carneiro

5 A segunda metade do século XIX foi marcada por um contexto intelectual dominado por uma concepção evolucionista do mundo. Segundo essa concepção a humanidade era uma só, com uma única origem ou história, e teria se desenvolvido linearmente por estágios. Cada estágio seria caracterizado por um padrão de comportamento, de forma que todas as sociedades que se encontrassem no mesmo estágio de evolução seriam semelhantes entre si, ainda que jamais tivessem tido qualquer tipo de contato umas com as outras.

6 Nessa época, o universo intelectual era bastante influenciado pelas ciências naturais e, nesse contexto, a biologia e a psicologia fisiológica — matérias cujas fronteiras se confundiam — tiveram papel decisivo no estabelecimento de uma teoria que marcava uma correlação entre cultura e raça, sendo esta última tida como determinante no comportamento humano. Nessas teorias, havia um determinismo hierárquico racial em que negros, índios e mestiços estavam em níveis inferiores aos das pessoas brancas.

7 Os primeiros estudos sobre o negro no Brasil seguiram essa argumentação. O pensamento de Raimundo Nina Rodrigues pode ser visto como ilustrativo desse período. Médico por formação e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, ele escreveu, entre 1886 e 1906, uma série de artigos sobre medicina, associada muitas vezes à questão racial. Em suas obras, sua preocupação repousava em estabelecer critérios rigorosos de classificação das raças (Corrêa, 2001). Ao utilizar a raça como parâmetro biológico principal da desigualdade, Nina Rodrigues combinou-a com outros indicadores, também biológicos, para responder a questões sociais. Em um de seus mais famosos livros, Os africanos no Brasil, publicado em 1932, após seu falecimento, encontram-se vários artigos escritos num segundo momento de sua produção

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intelectual, quando sua preocupação estava calcada em observações históricas e etnográficas.

8 Diferentemente de Nina Rodrigues, Francisco Oliveira Vianna contribuiu bastante na propagação dos ideais racistas. Em seu livro Evolução do povo brasileiro (1923), principalmente na segunda parte, “Evolução da raça”, fica claro seu apoio ao mito do arianismo. O autor apregoa diferenças hierárquicas entre brancos, negros e índios, descrevendo esses dois últimos grupos como negativos para a formação da civilização brasileira. Oliveira Vianna defendia que somente com a migração de uma massa ariana pura esse problema poderia ser solucionado, dado que tal massa aumentaria rapidamente o teor ariano no sangue dos brasileiros, o que levaria ao progresso da sociedade brasileira. Em 1932, Oliveira Viana publica o livro Raça e assimilação, porém, ainda preso a ideias raciais de autores do século XIX, continuava a desprezar qualquer argumentação histórica ou etnológica, valorizando abusivamente o biológico (Laraia, 1997).

9 Na década de 1930, surge no Brasil uma geração de intelectuais preocupados em produzir pesquisas sociais voltadas para a compreensão dos problemas do país, a qual enxergava a mestiçagem como constitutiva da identidade nacional (Schwarcz, 2007). Entre esses intelectuais, destacam-se Sérgio Buarque de Hollanda, que em 1936 publicou Raízes do Brasil, e Caio Prado Jr., autor de Formação econômica do Brasil contemporâneo, de 1942. Porém, foi a partir dos trabalhos de Gilberto Freyre, na década de 1930, que os estudos das relações raciais começaram a sofrer grandes mudanças.

10 Na Universidade de Colúmbia, Freyre foi aluno do antropólogo Franz Boas, que o ensinou a diferenciar raça de cultura. Essa diferenciação fica clara em seu livro Casa- grande & senzala, publicado em 1933. Nesse livro, Freyre fez uma interpretação dos grupos raciais que compõem a sociedade brasileira, desqualificando os argumentos biológicos e introduzindo os estudos culturalistas como modelo de análise. Posteriormente, o autor utilizaria o critério histórico- cultural, para focar os acontecimentos singulares no tempo e no espaço, a fim de encontrar os traços culturais passíveis de observação sobre as raças.

11 Tendo como enfoque a miscigenação e o mulato como símbolo da democracia racial, Freyre apontou o contato sexual entre senhores brancos e escravos negros como ponto de partida para a elaboração de seus conceitos a respeito da informalidade e da flexibilidade racial. A miscigenação, para ele, seria uma solução brasileira para os diferentes padrões culturais e teria causado uma democratização social no país. Ele partiu do pressuposto de que a formação brasileira seria marcada por “um processo de equilíbrio de antagonismos”, que teria resultado num processo de harmonização. Para Laraia (1986), Casa-grande & senzala […] se constitui na verdade no depositário de toda uma ideologia racial, que se expressa através de uma constelação de mitos que tradicionalmente a têm sustentado. O mito do luso-tropicalismo, que se choca com a realidade da “África portuguesa”, o mito do “senhor amável” (cf. Harris, 1964:65‑78), uma variante da representação cordial do homem brasileiro; e, finalmente, o mito da democracia racial, desde que para Freyre o preconceito existente decorre da situação de classe e não de raça (Laraia, 1986:163).

12 Outro estudioso que influenciou os estudos sobre relações raciais no Brasil foi o médico Arthur Ramos. Em 1928, ele foi nomeado legista do Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, Bahia. Foi nesse período que nasceu seu interesse sobre a questão do negro no Brasil, pois já era conhecido nacionalmente como discípulo de Afrânio Peixoto e

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herdeiro intelectual de Nina Rodrigues (Corrêa, 2001). Na década de 1930, Ramos publicou, com a ajuda de Édson Carneiro e a colaboração de Afrânio Peixoto e Maria Amélia Couto Nina Rodrigues (Dona Marica), viúva de Nina Rodrigues, duas obras deste: O animismo fetichista dos negros baianos (1935) e As coletividades anormais (1939).

13 Havia, segundo Corrêa (2001), sensíveis diferenças teóricas entre Ramos e Nina Rodrigues. As principais seriam: a) a ênfase de Ramos na aculturação e acomodação racial, em contraposição à análise do conflito racial de Nina Rodrigues; b) a análise de Ramos sobre o conceito de “afro‑luso‑brasileiro”, que era mais próxima de Gilberto Freyre do que de Nina Rodrigues; c) a relevância da psicanálise nas obras de Ramos entre 1933 e 1937; e d) o uso do método psicanalítico de Arthur Ramos — depois assumindo o método “culturalista” de Franz Boas, em contraposição ao método histórico-evolutivo de Nina Rodrigues (Barbosa, 2002).

14 Em 1934, Arthur Ramos publicou uma de suas obras mais importantes, O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Neste livro, utilizando a psicanálise no estudo da cultura, discutiu a origem étnica dos negros brasileiros e suas manifestações culturais, além de se dedicar ao estudo do sincretismo religioso entre religiões africanas e religiões “brancas” (catolicismo e espiritismo). Seus estudos tiveram como base empírica os negros da cidade de Salvador. Nessa obra, Ramos trabalhou com o pensamento pré- lógico de Levy-Bruhl, como afirmou Laraia (1986:162): “se Nina Rodrigues errou porque se atrelou ao racismo de Gobineau, Ramos pecou por adotar o etnocentrismo de Levy- Bruhl, expresso em sua teoria sobre o pensamento pré-lógico”.

15 Posteriormente, em 1937, Ramos lançou o livro As culturas negras no novo mundo, segundo o próprio autor, um ensaio de psicologia social e antropologia cultural. Nessa obra, discutiu com os principais teóricos sobre a temática negra na América — Herskovits, Freyre, Fernando Ortiz, entre outros —, ao examinar os padrões de culturas que os negros transportaram da África para o Novo Mundo e o destino que tiveram. Para isso, demonstrou, por meio de estudo comparativo, as influências que as culturas negras tiveram no quadro étnico-cultural do Brasil, da região do Caribe e dos Estados Unidos. Em 1943, publicou uma extensa pesquisa bibliográfica sobre as populações de origem africana, entre outros temas, condensada em dois volumes de sua Introdução à antropologia brasileira. Ramos publicou ainda outros livros, todos tendo como temática principal as relações raciais.

16 Outro pesquisador que recebeu certa influencia dos estudos de Nina Rodrigues foi Manuel Raimundo Querino. Descendente de africanos e autodidata, Manuel Querino trabalhou como assistente de pesquisas de Nina Rodrigues. Foi também recruta na Guerra do Paraguai, pintor, escritor e desenhista — diplomado pelo Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Chegou a ser membro da Câmara Municipal pelo Partido Republicano em Salvador e era abolicionista da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, na Bahia (Aguiar, 1955). Antes de Gilberto Freyre, Querino já trabalhava em suas obras a cultura negra pelo aspecto histórico- cultural, demonstrando as contribuições culturais dessa cultura na sociedade baiana e brasileira. Nesse sentido, diferenciava-se da linha argumentativa de Nina Rodrigues e se aproximava da teoria culturalista de Boas.

17 Apesar de certas divergências teóricas, Nina Rodrigues influenciou também os estudos de Édson Carneiro, pesquisador negro, filho do escritor Antonio Joaquim Souza Carneiro — estudioso da cultura afro-brasileira que publicou, em 1937, o livro Os mitos africanos no Brasil. Édson Carneiro diplomou-se, em 1936, em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito da Bahia. Com Arthur Ramos, divulgou, nas décadas de 1930 e

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1940, o pensamento da “escola Nina Rodrigues” (Corrêa, 2001). Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia em 1941. Movido pela temática cultural negra, Édson Carneiro escreveu diversos livros.

18 Os estudos sobre o negro, desencadeados por Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto e Gilberto Freyre, cada qual com suas especificidades, exerceram influência na formação intelectual de Arthur Ramos e Édson Carneiro. Mariza Corrêa (1998) relata que Freyre afirmava ter aconselhado Ramos a estudar antropologia e largar o psicanalismo e seus “excessos marxistas”. Nessa linhagem, estabelecida pela conciliação de ideias sobre a questão racial, fica clara a constituição das filiações acadêmicas no campo das ciências sociais (Peirano, 1992).

19 Na divisão que faz da história da antropologia, Roberto Cardoso de Oliveira chama esse primeiro período de “heroico”. Caracteriza-o como marcado pelo conceito de cultura, pelos aspectos românticos e pela não institucionalização da disciplina. Para ele, os autores mais fortes desse período foram Curt Nimuendajú, pela temática etnologia indígena, e Gilberto Freyre, pela antropologia da sociedade nacional (Cardoso de Oliveira, 1988).

Período carismático da antropologia: de Donald Pierson a Florestan Fernandes

20 Na década de 1930, teve início a institucionalização das ciências sociais com a criação, em 1933, da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) e, em 1934, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) na USP. A primeira tinha como objetivo a formação de funcionários técnicos para as administrações do país; já a segunda, a formação de professores secundários (Rubim, 1996). A FFCL, em seus primeiros anos, teve como alunos Egon Schaden, Gioconda Mussolini, Florestan Fernandes, Lucila Hermann, Jurn Philipson, Carlos Drumond e Antonio Candido, entre outros. Alguns desses alunos estudavam simultaneamente nas duas instituições (Pierson & Cunha, 1947).

21 Em 1939, com a admissão de Donald Pierson como professor de sociologia e antropologia social da ELSP, desenvolveu-se uma base acadêmica que procurava incentivar a formação de cientistas na área social por meio de pesquisa empírica (Rubim, 1996). Pierson foi o principal representante teórico da Escola de Chicago no Brasil. Formou, entre 1939 e 1949, duas gerações de pesquisadores, entre eles Oracy Nogueira e Florestan Fernandes (Mendoza, 2005). Pierson iniciou seus estudos sobre a integração e a mobilidade social dos negros na Bahia em 1935, sob a orientação de Robert Ezra Park. Para Park, o Brasil era um laboratório de relações raciais, por ser um país onde não havia “problema racial”. Tal afirmação se baseava em viagens de visitantes americanos ao Brasil, como James Byrce e Theodore Roosevelt (Guimarães, 2004). Ao seguir a tese de Park, Pierson adotou a hipótese de que o preconceito racial seria o principal obstáculo à integração dos negros, em detrimento dos aspectos de aculturação.

22 Pierson foi responsável pela criação, em 1941, da pós-graduação na ELSP e, em 1942, publicou nos Estados Unidos o livro Negroes in Brazil: a Study of a Race Contact at Bahia, resultado de suas pesquisas na Bahia de 1935 a 1937. Essa obra enfocava as relações raciais entre negros e brancos em Salvador, tida por Pierson como uma cidade

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medieval. Para o autor, em Salvador não havia grupos raciais ou de cor, por isso não existia o racismo. Nesse sentido, a discriminação com base na raça tinha caráter individual e não coletivo. Pierson ressaltava que o problema dos descendentes dos escravos era econômico e educacional, de modo nenhum racial. A Bahia seria então um exemplo da convivência pacífica entre brancos europeus e africanos para o mundo, especialmente para os Estados Unidos (Pierson, 1942). Segundo Laraia (1986:165), os trabalhos de Freyre e de Pierson caracterizam a primeira das posições acadêmicas sobre o assunto: aquela que atribui às diferenças de classes e das tensões sociais o problema do negro. A segunda posição seria aquela que, mesmo admitindo a existência do preconceito, alega que o critério de cor é irrelevante para a definição dos diversos grupos sociais.

23 A Bahia também atraiu a pesquisadora Ruth Landes, que iniciou seus estudos no Brasil como doutoranda em antropologia da Universidade de Colúmbia, em 1938. Em suas pesquisas, Landes apontou singularidades do candomblé da cidade de Salvador, por exemplo, a tendência ao aumento gradual do poder feminino e do número de mães de santo nos candomblés mais tradicionais, e de “homossexuais passivos” nos candomblés de caboclo. Além disso, demonstrou como a noção de “ciência da cultura”, trabalhada pelos americanos entre os anos 1930 e 1960, substituía a ideia de raça como paradigma central da disciplina. Publicou, em 1947, os resultados de sua pesquisa no livro The City of Women, editado em português somente em 1967, pela Civilização Brasileira.

24 No início da década de 1940, iniciaram os trabalhos antropológicos do médico Thales de Azevedo. Nessa época, após contato com Josué de Castro, num curso de extensão sobre alimentação e nutrição na Universidade do Brasil, localizada no Rio de Janeiro, Azevedo começou seus estudos voltados para aspectos sociais da saúde e da medicina que passariam a dominar a sua produção intelectual. Em 1943, assumiu a primeira cadeira de antropologia e etnografia, na recém- criada Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia, dirigindo seu interesse para a antropologia cultural. Posteriormente, foi convidado por Anísio Teixeira para dirigir, com Charles Wagley, da Universidade de Colúmbia, e Luiz Aguiar da Costa Pinto, da Universidade do Brasil, o projeto de Pesquisas Sociais da Universidade de Colúmbia (Maio, 1999).

25 Azevedo exerceu, por meio de seus escritos, grande influência nos estudos sobre relações raciais no Brasil. Entre suas obras sobre essa temática, destaca- se Cultura e situação racial no Brasil (1966). Nessa obra, preocupado com os processos culturais e sociais, base dos problemas brasileiros, o autor discute as relações entre mestiçagem, preconceito, estereótipos e status social; a integração social; e o sincretismo religioso. Ao analisar a importância da cultura e da situação racial no Brasil, esforça-se em descrever e entender a realidade nacional.

26 Nesse contexto, há que destacar as influências do antropólogo Melville Jean Herskovits nos estudos sobre as relações raciais no Brasil.2 Ex-aluno de Franz Boas, Herskovits, tendo como alicerce suas reflexões sobre o relativismo cultural, orientou antropólogos como Octávio da Costa Eduardo, René Ribeiro e Ruy Coelho. Costa Eduardo defendeu, em 1948, a tese The Negro in Northern Brazil, a Study in Acculturation, na Universidade de Washington. Nesse trabalho, estudou comparativamente uma comunidade negra rural na cidade de Santo Antônio e outra comunidade negra urbana em São Luís, estado do Maranhão. Seu objetivo foi destacar aspectos da cultura negra africana nessas duas comunidades. A tese de Costa Eduardo foi a primeira a ter como objeto de pesquisa uma comunidade negra rural. René Ribeiro defendeu sua dissertação de mestrado The Afrobrazilian Cult- Groups of Recife — a Study in Social Adjustment na Universidade

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Northwestern, em 1949. Em sua tese, trabalhou com grupos negros na cidade de Recife. Já Ruy Coelho realizou seu trabalho de campo em Honduras e defendeu sua tese de doutorado, The Black Carib of Honduras, a Study in Acculturation, na Universidade Northwestern, em 1955.

27 Em 1943, no período de institucionalização da antropologia, com o apoio de Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, foi organizado um projeto para promover o primeiro Congresso Brasileiro de Antropologia, em comemoração à reabertura daquele museu no Rio de Janeiro. Porém, somente em 1948, por meio de uma portaria do ministro da Educação e Saúde, foi constituída uma comissão para organizar o congresso. Essa comissão foi composta inicialmente por Álvaro Fróes da Fonseca, Edgar Roquette-Pinto, Arthur Ramos e Heloisa Alberto Torres (Corrêa, 1997). Na data da reunião da comissão, porém, divergências entre Ramos e Torres fizeram com que os dois fossem representados por Castro Faria. Somente cinco anos depois dessa reunião, ou seja, em 1953, foi realizado o Congresso, nas dependências do Museu Nacional, sob a presidência de Herbert Baldus. Nesse evento, nasceram as primeiras ideias para a criação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em 1955, na Bahia. A ABA foi sucessora da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia (SBAE), fundada por Ramos em 1941 (Azeredo, 1986; Corrêa, 1997).

28 Na década de 1950 foram criados, no Rio de Janeiro, os primeiros cursos na área de etnologia indígena. Em 1955, o primeiro foi o Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Cultural, no Museu do Índio, órgão do então Serviço de Proteção aos Índios. O curso foi desenhado por Darcy Ribeiro e teve a colaboração docente, entre outros, de Roberto Cardoso de Oliveira. O segundo curso ocorreu em 1957, também por iniciativa de Darcy Ribeiro: Curso de Formação de Pesquisadores Sociais, promovido no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (Melatti, 1983).

29 Nessa década, Ramos, Freyre e Herskovits, por meio da imagem que sustentaram internacionalmente de que o Brasil era um grande “laboratório das relações raciais”, contribuíram, com o sociólogo Franklin Frazier, para o desenvolvimento do projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. Segundo esses intelectuais, o Brasil poderia ser a vitrine para outros povos aprenderem sobre a convivência pacífica entre negros e brancos. Observa-se que o objetivo do projeto não era entender como funcionavam as relações culturais entre negros e brancos no Brasil, e sim como as ideologias que estavam nessas relações poderiam servir de instrumento na transformação consciente de outras sociedades, principalmente a europeia, em direção a uma ordem justa (Maio, 1999).

30 Inspirada por essa imagem, a Unesco patrocinou, de 1951 a 1952, várias pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. As primeiras investigações foram desenvolvidas em Salvador — posteriormente, foram abrangidas as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, com o objetivo de demonstrar os detalhes de uma experiência no campo das interações raciais no Brasil. Participaram dessas pesquisas Ruy Coelho, Alfred Métraux, Thales de Azevedo, Charles Wagley, Roger Bastide, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Paulo Estevão de Berredo Carneiro e Gilberto Freyre, entre outros (Maio, 1999). Conforme Thales de Azevedo (1996:16), esses estudos apontaram que atuava no Brasil “um preconceito étnico cautelosamente disfarçado pela ideologia da não-discriminação”.

31 Como parte desses estudos da Unesco, foi publicado apenas em francês, em 1952, o livro Race et classes dans le Brésil rural, com os seguintes ensaios: “Les relations raciales dans une communauté rurale Du Recôncavo (État de Bahia)”, de Harry William Hutchinson;

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“Les relations raciales à Minas Velhas, communauté rurale de la région montagneuse du Brésil central”, de Marvin Harris; “Les relations raciales dans la région aride du sertão”, de Ben Zimmerman; e por último “Les relations raciales dans une communauté rurale de l’Amazonie”, de Charles Wagley. Trata-se de uma coletânea, organizada por Charles Wagley, de ensaios sobre estudos de relações raciais em áreas rurais.

32 Apesar da primazia desse trabalho no que se refere às relações raciais em zonas rurais, Wagley estava preocupado em observar a existência ou não do preconceito de raça. Ao final das pesquisas, concluiu que os estudos confirmavam as teorias de Pierson (1942) de que, no Brasil, quer na zona rural, quer na urbana, não existia preconceito de raça e sim de classes sociais. Essa assertiva estava próxima da interpretação de Freyre (1994) sobre a convivência relativamente harmônica entre grupos raciais no Brasil. Como observaram Bastide e Fernandes, na obra Brancos e negros em São Paulo (1959), o problema de Wagley e Pierson foi generalizar uma conjuntura racial peculiar da Bahia para o restante do Brasil.

33 Foi a partir dos anos 1950, com as pesquisas de Fernandes, que ocorreu no Brasil uma mudança na abordagem dos estudos sobre a questão racial. Crítico do mito da “democracia racial”, um postulado de Freyre, Fernandes demonstrava a temática racial por meio do ângulo da desigualdade. Sua trajetória acadêmica teve início em 1944, quando concluiu, com poucas condições financeiras, o curso de bacharelado e licenciatura em ciências sociais na FFCL/USP. Nessa época, foram seus professores Roger Bastide, Emílio Willems, Alfred Radcliffe-Brown e Donald Pierson, entre outros (Ianni, 2004b). Posteriormente, entre 1946 e 1947, cursou pós-graduação em sociologia e antropologia na ELSP. Em 1947, defendeu sua dissertação de mestrado A organização social dos Tupinambá e, em 1951, doutorou-se com a tese A função social da guerra na sociedade Tupinambá. Nesses dois trabalhos acadêmicos, Fernandes utilizou-se do método funcionalista (Melatti, 1983). Em 1953, fez a livre-docência com o trabalho Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia, e em 1964 tornou-se catedrático com a obra A integração do negro na sociedade de classes (Ianni, 2004b).3

34 Nessa obra, Fernandes introduziu novos parâmetros, novas vertentes sociológicas e o materialismo histórico para a reflexão teórica da interpretação da realidade social brasileira. O autor examinou a situação do negro na cidade de São Paulo a partir da abolição da escravatura, tendo como referência a sociedade de classes. Questionou a ideia de “democracia racial” ao atribuir a desigualdade racial a duas heranças do regime escravocrata que impediram os negros de competir com os imigrantes: o racismo e a incapacidade de integração à ordem social competitiva (Rios & Mattos, 2005). Segundo as pesquisadoras Rios e Mattos, para Fernandes, a herança deformadora da escravidão seria apenas um dos fatores a explicar a desorganização social que ele percebia como característica da população negra. Essa desorganização se traduziria na ausência de ligações familiares sólidas, de iniciativa e disciplina de trabalho, de solidariedade de raça ou de classe, levando a um tipo de comportamento por vezes patológico. Para a explicação dessa situação de patologia social, teriam contribuído elementos conjunturais e psicológicos, e não apenas a herança. Assim, as expectativas frustradas dos libertos com a liberdade, o rápido desenvolvimento da cidade em moldes capitalistas e competitivos e a introdução dos imigrantes europeus em larga escala teriam contribuído também para a desorganização social do negro. […] Fernandes sugere que a ordem racial herdada da escravidão foi um dado estrutural que persistiu, sobrevivendo ao pós- abolição (Rios & Mattos, 2005:20-21).

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35 Há que ressaltar que tanto Fernandes como Freyre, dois marcantes pensadores sobre as relações raciais no Brasil, abordam a estrutura social, que é feita de tensões e movimentos; porém, o primeiro a retrata pelo viés da harmonia social (miscigenação racial), e o segundo, pelo conflito social (classes sociais). Freyre e Fernandes diferem profundamente em suas avaliações do modo pelo qual a escravidão determinou a atual configuração das relações raciais no Brasil. No entanto, apresentam dois pontos em comum: consideravam a escravidão o fator determinante da situação racial do Brasil, e seus estudos focalizavam a construção do Estado‑nação.

36 Para Cardoso de Oliveira, o período entre o final dos anos 1940 e o princípio da década de 1950 foi o “período carismático da antropologia”, caracterizado pela introdução do conceito de estrutura. Florestan Fernandes — no campo da antropologia da sociedade nacional — e Eduardo Galvão — no campo da etnologia de vertente culturalista — foram figuras centrais desse período. Eles conseguiram reunir em torno de si e de seus projetos científicos e acadêmicos inúmeros estudantes de antropologia (Cardoso de Oliveira, 1988), entre os quais o próprio Cardoso de Oliveira.

Período burocrático: do Projeto Unesco aos PPGAs

37 Na metade da década de 1950, como desdobramento do Projeto Unesco, iniciou-se a pesquisa de Fernandes sobre as relações raciais na região meridional do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A pesquisa contou com a participação do pedagogo Anísio Teixeira, do antropólogo Charles Wagley e dos sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Cardoso e Ianni iniciaram suas carreiras acadêmicas sob a orientação de Fernandes, cujas pesquisas sobre a condição social dos negros descendentes de escravos foram fruto do convite insistente de Bastide e do financiamento da Unesco (Garcia Jr., 2004).

38 O Projeto Unesco influenciou direta ou indiretamente a realização de várias pesquisas que resultaram em publicações sobre a questão racial brasileira. Entre as publicações, destacam-se: O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança (1954), de Costa Pinto; As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de ascensão social (1955), de Azevedo; Relações raciais no município de Itapetininga (1955), de Nogueira; Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana (1959), de Bastide e Fernandes; e A integração do negro na sociedade de classes (1965), de Fernandes.

39 Ocorreram também influências desse projeto nos trabalhos de Ianni e Cardoso. Em Ianni, em sua dissertação de mestrado, Raça e mobilidade social em Florianópolis, defendida em 1956, e em sua tese de doutorado, Negros na sociedade de castas, defendida em 1961. Com relação a Cardoso, em sua tese de doutorado, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, defendida em 1962. Essas duas teses, orientadas por Fernandes, trouxeram a problemática da integração dos negros à sociedade de classes formada no período pós- abolição. A primeira retratou as relações raciais em Santa Catarina, e a segunda, no Rio Grande do Sul.

40 Posteriormente, Cardoso e Ianni publicaram o livro Cor e mobilidade social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional (1960). Segundo os autores, o Brasil estaria se transformando em uma sociedade de classes, e a estratificação por raça seria uma herança do passado colonial

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que, embora persistisse, seria aos poucos substituída por discriminações de classe. As desvantagens raciais existiam como um legado do passado de escravidão. Apesar da grande influência teórica de Fernandes nessa obra, Cardoso e Ianni conseguiram desvendar o preconceito racial e tudo que o envolve como crença ou conduta. Ou seja, para os autores, a atitude preconceituosa para com o negro é apenas a parte mais evidente de uma verdadeira ideologia legitimadora do controle exercido por uma etnia sobre a outra (Brandão, 1977).

41 Em 1954, Nogueira marcou sua entrada na discussão sobre as relações raciais ao apresentar seu texto “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem — sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil ” no XXXI Congresso Internacional de Americanistas. Segundo Guimarães (1999:169), esse artigo […] serviu também de síntese erudita da dicotomia entre o Brasil e os Estados Unidos, em termos das relações entre brancos e negros. Era o ingrato destino de uma reflexão, que fora apropriada por uma política identitária nacionalista que buscava, a todo custo, firmar o caráter “democrático” e “brando” das relações raciais no Brasil, em contraste com o resto do mundo, notadamente os Estados Unidos.

42 No Brasil, os estudos sobre as relações raciais foram explorados, sobretudo, por sociólogos. Entre os poucos antropólogos que se dedicaram a elas, destaca-se João Baptista Borges Pereira (Melatti, 1983), que, inspirado ainda pelas pesquisas da Unesco, defendeu sua dissertação de mestrado em antropologia, Cor, profissão e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo, em 1964, na USP, sob a orientação de Egon Schaden. O autor realizou extensa pesquisa de campo entre 1959 e 1964 e, ao utilizar o rádio como objeto de análise, investigou dois processos: “a integração do homem de cor à faixa de convivência sócio-profissional”; e “a participação na sociedade e cultura amplas desse contingente humano que ganhou novas qualificações sociais, através de sua integração à estrutura das empresas radiofônicas” (Borges Pereira, 1967:20).

43 Esse período também foi marcado pela mudança geográfica das pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Num primeiro momento, essas pesquisas estavam concentradas na Bahia e em Pernambuco; posteriormente, passaram a ter como referência São Paulo, estendendo-se, em seguida, para Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Foram os estudos do Projeto Unesco, com novas perspectivas teóricas, que motivaram a mudança geográfica das pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Segundo Ianni (2004b), essa mudança ocorreu em virtude de São Paulo, na época, já ser uma sociedade de classes e mais urbanizada. A sociedade de classes estava em franco desenvolvimento, havendo, portanto, uma sociabilidade diferente daquela existente no Nordeste, a qual estaria próxima a uma sociedade de castas. […] Acredito que isso levou Caio Prado, Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira a perceberem que esse cenário era um laboratório excepcional para a análise de problemas sociais. Aqui [São Paulo] a questão racial aparecia de uma maneira mais explícita. […] Enfatizo esse argumento de que no patamar em que eles estavam — a sociedade do Centro-Sul — havia uma urbanização intensa e recente, classes sociais evidentemente em formação e a industrialização, onde foi possível descortinar que o preconceito racial não se reduzia ao preconceito de classe (Ianni, 2004b:12).

44 Na década de 1960, ganharam força os “estudos de comunidade”, “fundamentados na observação direta de pequenas cidades ou vilas com as técnicas desenvolvidas pela Etnologia no estudo das sociedades tribais” (Melatti, 1983:17).4 Para Melatti (1983:18),

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[…] com os estudos de comunidade pretendia-se chegar a uma visão geral da sociedade brasileira, através da soma de muitos exemplos distribuídos pelas diversas regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudos estavam quase sempre voltados para objetivos específicos, como mudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes, educação e vários outros.

45 Até 1960, segundo Melatti (1983), a antropologia brasileira caracterizou- se pela justaposição das influências europeia e norte-americana, as quais foram responsáveis pela união um tanto híbrida, respectivamente, de funcionalismo com aculturação.

46 Foi principalmente a partir da década de 1970, impulsionada pela formação dos programas de pós-graduação em antropologia, que houve a terceira grande mudança no campo dos estudos de relações raciais, pois as comunidades negras rurais, ou o negro em ambiente rural, começaram a ser alvo de pesquisas antropológicas. Essa perspectiva teve início nas fundamentações teóricas de Roberto Cardoso de Oliveira sobre identidade e etnia, bem como nas pesquisas de Otávio Velho, Klaas Woortmann e João Baptista Borges Pereira, sobre campesinato e comunidades negras rurais.

O estudo sobre as comunidades negras rurais na era dos PPGAs

47 Como já assinalado, os estudos sobre as relações raciais passaram por várias interpretações, ganhando fôlego com a institucionalização das ciências sociais, em 1933, mais especificamente com a criação da ELSP, e, em 1934, com a formação da FFCL/ USP. Posteriormente, na década de 1960, com os primeiros PPGAS — do Museu Nacional/UFRJ (1968), da Unicamp (1971) e da UnB (1972) —, essa institucionalização entrou numa fase de consolidação.

48 Desde o início dos PPGAs no Brasil — mestrado e doutorado — até dezembro de 2013, foram produzidas 2.512 dissertações de mestrado e 938 teses de doutorado. Desses trabalhos, 77 tiveram como foco, direto ou indireto, as comunidades negras rurais e/ou o negro em ambiente rural (Anexo 1).5

Tabela 1 — Dissertações e teses por PPGA sobre comunidades negras rurais (1968 – 2013)

Dissertações Instituição e Teses sobre Total sobre Dissertações Teses sobre ano de criação comunidades comunidades produzidas produzidas comunidades do PPGA negras rurais negras rurais negras rurais

UnB (1972) 307 121 16 5 21

UFRGS (1979) 255 88 8 4 12

Museu Nacional/ UFRJ 550 366 4 3 7 (1968)

USP (1972) 206 193 3 3 6

UFSC (1985) 238 64 3 2 5

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UFPE (1977) 106 52 5 – 5

Unicamp 280 7 3 – 3 (1971)

UFF (1994) 161 28 1 3 4

UFMG (2005) 51 – 4 – 4

UFPR (1991) 165 14 – – –

UFRN (2005) 41 – 8 – 8

UFBA (2006) 7 1 – – –

UFPA (2010) 8 – 1 – 1

UFPI (2008) 15 – – – –

UFSE (2009) 31 – – – –

Ufam (2008) 20 – – – –

UFG (2009) 23 – 1 – 1

UFSCar (2007) 48 4 – – –

UFPEL, UFGD e ––––– UFPB, UFMT*

Total 2.512 938 57 20 77

* Os PPGAs dessas instituições foram criados a partir de 2011 e não possuíam dissertações e teses defendidas no período da pesquisa.

49 De acordo com esses dados, podemos depreender que os PPGAs que mais pesquisaram as comunidades negras rurais no mestrado foram os da UnB (16 dissertações), da UFRGS (8 dissertações) e da UFRN (8 dissertações). No doutorado, o PPGA da UnB continua em primeiro, com 5 teses, seguido do programa da UFRGS, com 4 teses. Ao realizar este levantamento, percebi que o volume de trabalhos acadêmicos inseridos nessa temática vem crescendo lentamente. Para uma melhor análise dessa produção, dividi a “era da pós‑graduação em antropologia” em três períodos.

Tabela 2 — Os três períodos da era dos PPGAs

Períodos Dissertações Teses Total do período

Início dos PPGAs a 1988 6 2 8

1989 a 2003 14 3 17

2004 a 2013 37 15 52

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Total dos períodos 57 20 77

50 O primeiro período inicia-se com a criação dos PPGAs e vai até 1988 — ano em que foi promulgada a Constituição Federal brasileira, na qual foi inserido, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o artigo 68, que estabeleceu direitos territoriais para os remanescentes das comunidades dos quilombos. O segundo período vai de 1989 a 2003 — ocasião em que foi criado o Decreto nº 4.887, que regulamentou o procedimento de regularização fundiária das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O terceiro começa em 2004 e finaliza em 2013, data final desta pesquisa.

51 Para uma análise das teses e dissertações dos PPGAs, temos que nos remeter à conjuntura em que foram produzidas, pois as temáticas escolhidas pelos pesquisadores estão relacionadas com seus contextos temporais. No primeiro período, destaco os seguintes temas: identidade; relações interétnicas (negro e branco); bairro rural (forte influência dos “estudos de comunidade”); trabalho (produção e economia); parentesco; religiosidade (aqui estão inseridas as festas aos santos); e frentes de expansão e conflito de terra.

52 No segundo período, os temas giraram em torno de etnicidade; movimento negro; territorialidade; religiosidade; conflito de terra; legislação (principalmente o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); e identidade e parentesco. Nesse período, várias comunidades negras rurais começaram a ser analisadas como remanescentes de quilombos. Iniciava também nesse momento o processo de ruptura da antropologia com a historiografia sobre a conceituação do termo “quilombo”.

53 No terceiro período, as temáticas estavam assim focadas: legislação/direitos (principalmente o Decreto 4.887/03); territorialidade; parentesco; papel do antropólogo; identidade; quilombo rural e/ou urbano; religiosidade; conflito de terra; movimento quilombola e relações interétnicas (negros, índios e brancos). Nessa fase, boa parte das teses e dissertações foi realizada tendo como fio condutor a territorialidade agregada à identidade quilombola e o referencial teórico centrado na categoria grupo étnico.

54 Vários trabalhos desse terceiro período também enfatizam a recriação de elementos da memória, servindo os laços das comunidades negras atuais com grupos do passado para materializar e construir o presente etnográfico. Isso levou essas comunidades a estabelecerem uma nova relação com o passado, reconstruindo-o. Hobsbawm e Ranger (2008) chamaram esse fato de “invenção de tradição”, isto é, uma reapropriação de velhos modelos ou antigos elementos de cultura e de memória para novos fins, em que o passado serve como conjunto de conhecimentos simbólicos. Como afirmou Klaas Woortmann (1990:17), “a tradição, então, não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constrói as possibilidades do futuro”.

55 Apesar de as teses e dissertações abordarem diversas temáticas em diferentes décadas, aplico, como forma de análise, o “princípio dialógico”, que “consiste em manter a dualidade no seio da unidade” (Morin, 1990:107). Nesse sentido, observo que, nos três períodos da era dos PPGAs, as “comunidades negras rurais” foram pesquisadas seguindo uma única estrutura baseada nas categorias culturais nucleantes, centrais para o campesinato: terra, família e trabalho. Segundo Woortmann (1990:23), essas

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categorias “são nucleantes e, sobretudo, relacionadas, isto é, uma não existe sem a outra”. Woortmann (1990:23) considera […] a cultura como o universo de representações de um grupo, categoria ou sociedade. […] Percebo a cultura ainda como um sistema onde diferentes núcleos de representações estão em comunicação uns com os outros, como que formando uma rede de significados. Essas categorias nucleantes agregam conjuntos de significações, os quais, em sua comunicação dentro do universo de representações, se articulam e compõem uma totalidade. […] Assim, naturalmente, cada cultura terá categorias nucleantes específicas, mas, ao que parece, existem certas categorias comuns às sociedades camponesas em geral, como terra, família e trabalho.

56 As temáticas abordadas pelas teses e dissertações analisadas estão articuladas por essas categorias culturais nucleantes, as quais se ligam diretamente à reprodução social do campesinato. Como detectou Durham (1973), em seus estudos sobre migração rural, ocorre uma uniformidade e permanência de elementos tradicionais na sociedade rural brasileira. […] Essa uniformidade se deve, sobretudo à semelhança fundamental na constituição da unidade produtiva, que é a família conjugal, no modo de organização dessa unidade em grupos de vizinhança, nos padrões e técnicas de trabalho e na possibilidade de acesso ao meio de produção essencial, a terra (Durham, 1973:46, grifos meus).

57 Nesse sentido, independentemente dos contextos sociopolíticos e das temporalidades, na sombra de todas as pesquisas está a reprodução social das comunidades negras rurais, as quais possuem como princípios organizatórios as categorias culturais nucleantes terra, família e trabalho.

58 Ainda na esfera acadêmica, foram criados vários grupos de pesquisas que investigam, direta ou indiretamente, as comunidades negras rurais/quilombolas. Esse fato também tem ajudado a aumentar o número de pesquisadores que estudam essas comunidades. De acordo com o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, do CNPq, até 2010, eram 14 grupos cadastrados na área predominante ciências humanas/antropologia (Anexo 2).6 Esses 14 grupos de pesquisa congregam 163 pesquisadores e 131 estudantes envolvidos na produção científica de elementos que estão relacionados com as comunidades negras rurais quilombolas.

Considerações finais

59 Atualmente, ao discorrermos sobre as histórias das comunidades negras rurais, trabalhamos com processos sociais dinâmicos que revelam novas facetas da época pós- abolição. A memória coletiva dessas comunidades demonstra as especificidades dos grupos de camponeses negros, seus caminhos de constituição e sua luta em ocupar e garantir a terra. Gusmão (1992:117) faz a seguinte observação sobre esses grupos de camponeses negros: […] as especificidades de que são portadores os tornam parte do universo camponês brasileiro e, ao mesmo tempo, os diferenciam a partir da condição étnica, da história particular que lhes deu origem. Muitas vezes, vivendo em terras devolutas ou públicas, constituem-se como posseiros; por vezes pequenos proprietários, constroem coletivamente a vida sob uma base geográfica, física e social, formadora de uma territorialidade negra. Dentro dela elaboram-se formas específicas de ser e existir enquanto camponês e negro.

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60 São esses camponeses negros que ficaram à margem, durante décadas, do foco das ciências sociais. Como demonstrado, do período que se iniciou com Nina Rodrigues, passando por Freyre e Fernandes até chegar ao Projeto Unesco, ocorreu uma carência de estudos acadêmicos sobre o negro no contexto rural brasileiro. A partir da década de 1960, com a formação dos primeiros PPGAs, as comunidades negras rurais começaram a ser alvo de estudos acadêmicos. Porém, até os anos 1980, ainda eram poucas as obras científicas sobre essa temática, tendo Borges Pereira (1983:12) observado uma “comprovada falta de trabalhos científicos sobre o negro brasileiro em ambiente rural”.

61 Nas décadas de 1990 e 2000, alguns fatores contribuíram para que houvesse um aumento no número de trabalhos acadêmicos sobre as comunidades negras rurais: a ampliação dos PPGAs; a criação de normas constitucionais e outros dispositivos legais; a atuação política de vários antropólogos; e a atuação do Movimento Negro e do Movimento Quilombola. Outro ponto que merece destaque foi a ressemantização do termo “quilombo” na década de 1990.

62 Os estudos sobre as comunidades negras rurais, se juntarmos a produção acadêmica de dissertações e teses, os laudos e os relatórios antropológicos e os grupos de pesquisa, vêm passando nos últimos anos por um significativo processo de visibilização tanto no meio acadêmico como fora dele. Nesse sentido, o “fazer antropológico”, dentro e fora da academia, tornou-se imprescindível na elaboração de políticas públicas voltadas a essas comunidades.

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ANEXOS

Anexo 1 – Teses e dissertações sobre comunidades negras rurais

Nº Título Ano Autor Instituição

Peões, pretos e congos: Carlos R. UnB 1 relações de 1974 Brandão (Mestrado) trabalho e identidade étnica

Produção camponesa em Lagoa Maria O. da C. UnB 2 1977 da Pedra: etnia e patronagem Telles (Mestrado)

Aqui nós somos pretos: estudo Aniceto UnB 3 de etnogra as sobre negros 1996 Catanhede fi (Mestrado) rurais no Brasil Filho

Isso tudo os velhos sabiam: representações da velhice na UnB 4 1996 Juliana Sellani comunidade rural negra de Rio (Mestrado) das Rãs

reapropriação da tradição a partir do presente: um estudo Liliana de M. UnB 5 sobre a Festa de Nossa Senhora 1997 Porto (Mestrado) do Rosário de Chapada do Norte/MG

Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penúria João B. de A. UnB 6 dos morenos: a identidade 1999 Costa (Mestrado) através de um rito em Brejo dos Crioulos

Espinho: desconstrução da Miriam V. R. UnB 7 2000 racialização negra e escravidão Rosa (Mestrado)

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Confrontos discursivos sobre território no Brasil: o caso das UnB 8 2001 Siglia Z. Doria terras dos remanescentes de (Doutorado) quilombos

A Comunidade Kalunga e a interpelação do Estado: da Danielli J. UnB 9 2003 invisibilidade à identidade França (Mestrado) política

Do tempo da sussa ao tempo do forró: música, festa e Thaís T. de UnB 10 2006 memória entre os Kalunga de Siqueira (Mestrado) Teresina de Goiás

Carlos Quilombo Tapuio (PI): terra de Alexandre B. UnB 11 2006 memória e identidade Plínio dos (Mestrado) Santos

Aprendendo a ser negro: reinterpretações acerca da UnB 12 2007 Lea R. Sales identidade étnica em São (Mestrado) Cristóvão/MA

Senhores e possuidores livres e desembargados: a liberdade Miriam V. R. UnB 13 2007 antecipada e o uso solidário da Rosa (Doutorado) Terra em Espinho

Conflitos e identidades do passado e do presente: política Carmela M. Z. UnB 14 2008 e tradição em um quilombo na Pereira (Mestrado) Amazônia

Aquilombar-se: um panorama histórico, identitário e político Bárbara O. UnB 15 2008 do Movimento Quilombola Souza (Mestrado) Brasileiro

Os Gurutubanos: territorialização, produção e Aderval Costa UnB 16 2008 sociabilidade de um quilombo Filho (Doutorado) norte-mineiro

Práticas produtivas e políticas públicas: uma experiência Paula B. de UnB 17 2010 quilombola no Vale do Ribeira/ Melo (Mestrado) SP

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Fiéis descendentes: redes- Carlos irmandades na pós-abolição Alexandre B. UnB 18 entre as comunidades negras 2010 Plínio dos (Doutorado) rurais Santos sul-mato-grossenses

“Não vê que neste mundo não tem cabaça”. Espacialidades e Luciene de O. UnB 19 identidades em Barra de 2011 Dias (Doutorado) Aroeira – TO

Eu moro no prata, no ouro e no bronze: processos de UnB 20 territorialidade e etnicidade no 2013 Raoni da Rosa (Mestrado) Quilombo Povoado do Prata - TO

Pro povo é festa, pra gente é outra coisa: cultura popular, UnB 21 2013 Caio Csermak raça e políticas públicas na (Mestrado) Comunidade Negra dos Arturos

Museu Talhado: um estudo de Josefa S. B. Nacional/ 22 organização 1975 Cavalcanti UFRJ social e política (Mestrado)

Museu Campesinato: ideologia e Nacional/ 23 1981 Luiz E. Soares política UFRJ (Mestrado)

Os Arturos: casa, descendência Museu e identidade social de uma Érika M. B. de Nacional/ 24 1999 comunidade negra de Assis UFRJ Contagem, Minas Gerais (Mestrado)

Museu A Comunidade do Sutil: história Miriam F. Nacional/ 25 e etnogra a de um grupo negro 2000 fi Hartung UFRJ na área rural do Paraná (Mestrado)

“Etnias federais”: o processo Museu de identi cação de fi José M. de P. Nacional/ 26 “remanescentes” indígenas e 2002 A. Arruti UFRJ quilombolas no Baixo São (Doutorado) Francisco

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Fazendo a unidade uma Museu perspectiva comparativa na Nacional/ 27 construção 2004 Sara A. Arroyo UFRJ de Itamoari e de Jamary como (Doutorado) quilombos

Família, escravidão, luta: Museu histórias Monica F. Nacional/ 28 2011 contadas de uma antiga Figurelli UFRJ fazenda (Doutorado)

Os caipiras negros do Vale do Renato da S. USP 29 Ribeira: um estudo de 1980 Queiroz (Mestrado) antropologia econômica

Castainho: etnogra a de um fi Anita M. de Q. USP 30 bairro 1980 Monteiro (Mestrado) rural de negros

Negros de cedro: estudo Mari de N. USP 31 antropológico de um bairro 1981 Baiocchi (Doutorado) rural de negros em Goiás

Vila Bela: território branco, Maria de L. USP 32 espaço negro; um estudo de 1986 Bandeira (Doutorado) identidade étnica

Quilombos e políticas de USP 33 reconhecimento: o caso do 2009 Lívia R. Lima (Mestrado) Campinho da Independência

Entre quilombos e palenques: um estudo antropológico sobre Vera R. R. da USP 34 políticas públicas de 2012 Silva (Doutorado) reconhecimento no Brasil e na Colômbia

Desdobramentos culturais em identidades cruzadas: negros Morgana G. C. UFPE 35 2000 quilombolas e índios Atikum no de Oliveira (Mestrado) sertão de Pernambuco

O quilombo ‘Negros de Gilu’ em Itacuruba: emergência Tercina M. L. UFPE 36 2007 etnoquilombola e B. Bezerra (Mestrado) territorialidade

Serrote do gado brabo: identidade, territorialidade e Francisco M. UFPE 37 migrações em uma 2008 G. Ferreira (Mestrado) comunidade remanescente de quilombo

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Reconhecimento étnico e políticas públicas de desenvolvimento agrário: o José A. da UFPE 38 2009 caso dos agricultores Silva Júnior (Mestrado) quilombolas da comunidade do Timbó em Pernambuco

Estrela: uma comunidade Alice F. do N. UFPE 39 2012 quilombola em Pernambuco Maciel (Mestrado)

Festa de Nossa Senhora Imaculada da Conceição: articulação, sociabilidade e Rui L. da S. UFRGS 40 2001 etnicidade dos negros do Santos (Mestrado) Rincão dos Pretos do município de Rio Pardo/RS

O planeta dos negros no mundo dos brancos: estudo sobre a manutenção e atualização Ana P. C. de UFRGS 41 2004 das fronteiras étnicas de uma Carvalho (Mestrado) comunidade negra na cidade de Canoas/RS

Ritual do maçambique: religiosidade e atualização da Mariana B. UFRGS 42 identidade étnica na 2005 Fernandes (Mestrado) comunidade negra do Morro Alto/RS

Reconhecimento de direitos face aos (des)dobramentos da Miriam de F. UFRGS 43 história: um estudo 2005 Chagas (Doutorado) antropológico sobre territórios de quilombos

Comunidade remanescente de quilombos do Morro Alto: uma análise etnográ ca dos campos fi Cíntia B. UFRGS 44 de disputa em torno da 2006 Müller (Doutorado) construção do significado da identidade jurídico- política de remanescentes de quilombos

‘De gente da Barragem’ a ‘Quilombo da Anastácia’: um estudo antropológico sobre o Vera R. R. da UFRGS 45 2006 processo de etnogênese em Silva (Mestrado) uma comunidade quilombola no município de Viamão/RS

Anuário Antropológico, v.40 n.1 | 2015 75

Entre a Avenida Luís Guaranha e o Quilombo do Areal: estudo Olavo R. UFRGS 46 etnográ co sobre memória, 2006 fi Marques (Mestrado) sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre

Anastácia, Manuel Barbosa e Ferreira Fialho, famílias e Luciano S. UFRGS 47 territórios negros: tradição e 2007 Costa (Mestrado) dinâmica territorial em Gravataí e Viamão/RS

O espaço da diferença no Brasil: etnogra a de políticas fi Ana P. C. de UFRGS 48 públicas de reconhecimento 2008 Carvalho (Doutorado) territorial e cultural negro no sul do país

Entre gingas e cantigas: etnogra a da performance Janaina C. UFRGS 49 fi 2010 entre os morenos de Tavares, Lobo (Mestrado) RS

“O mundo é composto”: territorialidade e cosmologia na Bethânia D. UFRGS 50 comunidade quilombola 2011 Zanatta (Mestrado) Angelim I, Conceição da Barra – Espírito Santo

Sobre raízes e redes: territorialidades, memórias e identidades entre populações Olavo R. UFRGS 51 2013 negras em cidades Marques (Doutorado) contemporâneas no sul do Brasil

O trabalho da memória: um estudo antropológico de Emilia P. de Unicamp 52 1993 ocupação camponesa no sertão Godoi (Mestrado) do Piauí

Arte e festa no quilombo: processo de construção Maria E. P. Unicamp 53 2004 turística de um bairro rural da Fortes (Mestrado) Mantiqueira

Caminhos criativos da história: Marcelo M. Unicamp 54 territórios da memória em uma 2008 Mello (Mestrado) comunidade negra rural

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De negros a adventistas, em busca da salvação. Estudo de UFSC 55 1990 Vera I. Teixeira um grupo rural de Santa (Mestrado) Catarina

No tempo das águas cheias: Joseline S. B. UFSC 56 memória e história dos negros 1999 Trindade (Mestrado) do Curiaú – AP

Projeto político do território Osvaldo M. de UFSC 57 negro de Retiro e as lutas pela 2005 Oliveira (Doutorado) titulação das terras

A constituição local: direito e Luis F. C. e UFSC 58 território quilombola em Bairro 2008 Cardoso (Doutorado) Alto, Ilha do Marajó, Pará

Visagens e profecias: ecos da Raquel UFSC 59 2013 territorialidade quilombola Mombelli (Mestrado)

Negros, parentes e herdeiros — um estudo da reelaboração da Osvaldo M. de UFF 60 identidade étnica na 1999 Oliveira (Doutorado) Comunidade de Retiro, Santa Leopoldina – ES

Nem muito mar, nem muita terra. Nem tanto negro, nem tanto branco: uma discussão Fábio Reis UFF 61 sobre o processo de construção 2003 Mota (Mestrado) da identidade da comunidade remanescente de quilombos na Ilhas de Marambaia/RJ

Canelatiua, terra dos pobres, terra da pobreza: uma territorialidade ameaçada, Patrícia P. UFF 62 2011 entre a recusa de virar terra da Nunes (Doutorado) base e a titulação como terra de quilombo

“Tambor dos pretos”: processos UFF 63 sociais e diferenciação étnica 2012 João Siqueira (Doutorado) no rio Jaú, Amazonas

Remanescentes das comunidades de quilombo: da Carlos E. UFMG 64 2008 re-significação ao imperativo Marques (Mestrado) legal

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Herdeiros de Chico Rei: mito de origem e etnogênese da Ricardo A. da UFMG 65 2008 comunidade quilombola de Silva (Mestrado) Pontinha

A “textura da vida diária”: materialidade e paisagem no Evelin L. M. UFMG 66 2011 cotidiano do Quilombo Marques Nascimento (Mestrado) (Vale do Mucuri/MG)

Organização social e regimes de propriedades numa José C. L. UFMG 67 2013 comunidade quilombola Ferreira (Mestrado) paraense

Entre parentes: cotidiano, Glória C. de O. UFRN 68 religiosidade e identidade na 2005 Morais (Mestrado) serra de Portalegre – RN

Identidade, memória e Wellington de narrativas na dança de São UFRN 69 2007 J. Gonçalo do povoado Mussuca/ (Mestrado) Bon m SE fi

Os forrós da Serra da Gameleira (São Tomé/RN): Flávio R. F. UFRN 70 2009 etnicidade, festa e Ferreira (Mestrado) sociabilidade

O zambê é nossa cultura. O coco de zambê e a emergência Cyro H. UFRN 71 2009 étnica em Simbaúma, Tibau do Almeida (Mestrado) Sul

Antropologia das mediações: dos “pretos de coqueiros” à Stephanie C. UFRN 72 2010 comunidade quilombola do vale P. Moreira (Mestrado) do Ceará Mirim

Natureza de mulher, nome de mãe, marca de negra: identidades em trânsito e Ana G. E. UFRN 73 2010 políticas do corpo na Boschemeier (Mestrado) comunidade quilombola de Boa Vista dos Negros

Nego veio é um sofrer: uma etnogra a da subalternidade e Bruno G. M. UFRN 74 fi 2012 do subalterno numa irmandade Silva (Mestrado) do Rosário

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“É a luta da gente!”: juventude Maira S. de L. UFRN 75 e etnicidade na Comunidade 2012 Freire (Mestrado) Quilombola de Capoeiras (RN)

Do tempo dos pretos d’antes aos povos do Aproaga: Irislane P. de UFPA 76 patrimônio arqueológico e 2012 Moraes (Mestrado) territorialidade quilombola no Vale do Rio Capim (PA)

A performance da Folia de São Sebastião: aspectos simbólicos Reigler S. UFG 77 2013 de um ritual na comunidade Pedroza (Mestrado) quilombola Magalhães – GO

Anexo 2 — Grupos de pesquisa/CNPq

Nº Nome do grupo Instituição

1 Antropologia do Desenvolvimento e Meio Ambiente no Piauí UFPI

Universidade Estadual 2 NUPE – Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão Paulista

Educação e Relações Étnicas: Saberes e Práticas Educativas do Legado Universidade Estadual 3 Africano e Indígenas do Sudoeste da Bahia

Paiol – Grupo de Pesquisa sobre Cultura e Políticas Universidade Federal 4 Culturais no Meio Rural de Viçosa

5 NUQ – Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais UFMG

O Negro e suas Participações Societárias: na Educação, na Cultura, na Universidade Federal 6 Política, na Economia, na Religião, na História, na Identidade, na do Saúde, na Mídia e na Seguridade Alimentar Tocantins

LACED – Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e 7 UFRJ Desenvolvimento

Pontifícia Universidade 8 Laboratório de Antropologia dos Processos de Formação Católica/RJ

Universidade Federal 9 Grupo de Estudos Rurais e Urbanos do Maranhão

10 Saberes e Ideologias Tradicionais UnB

Núcleo de Pesquisas em Territorialização, Identidade e 11 UFAM Movimentos Sociais

12 LAE – Laboratório de Arqueologia e Etnologia UFRGS

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Universidade Federal 13 Grupo de Estudo da Cultura Afro-Brasileira Rural de Pernambuco

14 NEPE – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade UFPE

NOTAS

1. Os programas de pós-graduação em antropologia são os da : Universidade Federal da Bahia (UFBA) ; Universidade de Brasília (UnB) ; Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ; Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ; Universidade Federal Fluminense (UFF) ; Universidade Federal de Sergipe (UFSE) ; Universidade Federal do Piauí (UFPI), que possui pós- graduação em antropologia e arqueologia ; Universidade Federal do Amazonas (Ufam) ; Universidade Federal de Goiás (UFG) ; Universidade Federal do Paraná (UFPR) ; Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Museu Nacional ; Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) ; Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ; Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ; Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) ; Universidade Federal do Pará (UFPA) ; Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ; Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) ; Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ; Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) ; Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) ; e Universidade de São Paulo (USP), que possui pós-graduação em ciências sociais (antropologia e sociologia). 2. Herskovits também exerceu grande influência nas antropologias mexicana e colombiana. No México, seu principal discípulo foi Gonzalo Aguirre Beltrán, que estudou o processo de aculturação nas trocas socioculturais entre negros, índios e brancos e analisou a integração do negro na sociedade de classes daquele país (Aguirre Beltrán, 1967). Na Colômbia, seu discípulo foi José Rafael Arboleda, o primeiro a estudar antropologicamente os grupos negros colombianos (Friedemann, 1984). 3. Fernandes publicou vários livros sobre relações raciais durante sua carreira. Sobre sua obra, ver Florestan Fernandes : sociologia crítica e militante, organizada por Octavio Ianni (2004a). 4. Uma lista desses trabalhos pode ser consultada em Melatti (1983). 5. Ressalto que esse montante pode ser maior. Dados os limites impostos pela não disponibilidade em acessar a íntegra de todos os trabalhos produzidos, algumas teses e dissertações podem não ter sido consideradas. 6. O Diretório dos Grupos de Pesquisa é um projeto desenvolvido no CNPq desde 1992 que se constitui em bases de dados sobre os grupos de pesquisa em atividade no país (Fonte : http:// dgp.cnpq.br/buscaoperacional/).

RESUMOS

Proponho, neste artigo, traçar uma breve análise dos estudos sobre relações raciais, nas ciências sociais no Brasil, com o intuito de demonstrar que o foco dos estudos sociológicos e antropológicos sobre o negro estava delimitado predominantemente em contextos urbanos até a década de 1960. As comunidades negras rurais, vistas como “desagregadas culturalmente”, foram colocadas à margem desses estudos no período citado. Esse quadro só começou a ser modificado

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com a criação dos programas de pós-graduação em antropologia, os quais investigaram múltiplos temas que, aos poucos, deram visibilidade às comunidades negras rurais.

I propose, in this article, to outline the studies on race relations in Brazilian social sciences in order to demonstrate that sociological and anthropological studies about black populations were predominantly limited to urban contexts until the 1960s. Rural black communities, seen as “culturally broken”, were placed in the margins of these studies. This situation only began to be modified with the creation of graduate programs in anthropology, whose researchers investigated multiple themes that gradually shed light on rural black communities.

ÍNDICE

Keywords: rural black communities, social sciences, race relations, PPGAs Palavras-chave: comunidades negras rurais, ciências sociais, relações raciais, PPGAs

AUTOR

CARLOS ALEXANDRE B. PLÍNIO DOS SANTOS

Carlos Alexandre Barboza Plínio dos Santos é mestre e doutor em antropologia pela Universidade de Brasília/UnB. Realizou Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/ InEAC da UFF (bolsa CNPq). Atualmente, é Pesquisador Colaborador Pleno do PPGAS/DAN/UnB, onde realiza estágio pós-doutoral (bolsa Capes). Tem desenvolvido sua investigação na área de antropologia do campesinato e comunidades negras quilombolas. Além de artigos publicados em livros e periódicos científicos, é autor dos livros Negros do Tapuio: memórias de quilombolas do sertão piauiense (Editora Appris, Curitiba, 2012) e Fiéis descendentes: redes- irmandades na pós-abolição entre as comunidades negras rurais sul-mato-grossenses (Editora Universidade de Brasília, Brasília, 2014). Contato: carlosalexandrebps[at] gmail.com

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Construção de territórios geríveis : (in)definição do lugar do crime contra pessoas na internet

Mariana Cintra Rabelo

NOTA DO EDITOR

Recebido em 29/12/2013. Aprovado em 20/06/2014. Em que aspecto uma ação através da internet pode ser territorializada ? O que (des)caracteriza a internet como um território mundial ? As ações e interações estabelecidas na internet, aquilo que se vive, se expressa e se recebe por meio dela, têm obrigatoriamente um caráter transnacional ?

1 O objetivo deste artigo é analisar retóricas que orientam processos de (in) definição de competência judicial para julgamento de crimes contra pessoas por meio da internet, tendo como questão central a produção de uma imaginação territorial. A discussão embasa-se em documentos de acórdãos do Tribunal Regional Federal (TRF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) julgados em 2003, 2004, 2006 e 2008. Os julgamentos envolvem conflitos de competência judicial em casos de crimes de racismo e pornografia infantil propiciados pelo uso da internet, sendo matérias previstas em acordos internacionais ratificados pelo Brasil.1 O material é privilegiado para interrogar sobre imagens territoriais produzidas em processos de legitimação de atuação jurídico-penal. Os acórdãos lidam com três fatos : a. um rapaz brasileiro, em sua casa no Brasil, comumente faz download de pornografia em seu computador através de uma rede de compartilhamento P2P (peer-to-peer). Parte desse material foi identificado como pornografia infantil durante investigações policiais e, ainda, esse mesmo conteúdo foi detectado em um site alemão (Brasil, 2004) ;

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b. em Aparecida de Goiás, um casal formado por um homem e uma mulher fotografou e filmou crianças e adolescentes em contexto pornográfico. Depois, depositou tais materiais na internet (Brasil, 2003, 2006) ; c. um grupo de pessoas de diferentes cidades e estados brasileiros (é sabido, Paraná e Minas Gerais) posta conteúdos discursivos, em português, de caráter ofensivo e discriminatório que incitam preconceito racial em páginas da internet (Brasil, 2008).

2 No que concerne ao primeiro caso, havia uma presunção nos processos de que o trânsito de imagens havia passado por servidores cadastrados além das fronteiras nacionais. No entanto, é importante ressaltar que isso não gera necessariamente a conclusão de que as imagens passaram por pessoas situadas em território estrangeiro. Em relação ao segundo caso, não havia uma suposição, a priori, de ações em outras localidades que não a cidade mencionada, ou seja, o único local diretamente presumido era Aparecida (GO), que envolve as interações relatadas e que corresponde ao local de uso do computador e internet. E, acerca do terceiro relato, desde o primeiro acionamento da justiça federal (para pedido de quebra de sigilo dos dados dos suspeitos), havia um entendimento de que a circulação dos discursos incitadores estava articulada em diferentes estados brasileiros.

3 Os acórdãos foram construídos sobre o seguinte conflito : em qual território jurídico aconteceu a ação ilícita e seu resultado ? A partir da produção interpretativa que daí se desdobra, é pertinente perguntar de que forma e quando interações numa pequena cidade ou ações individuais, estabelecidas mediante a internet, poderiam ser enquadradas como condutas de proporções “internacionais” ou locais.

4 As presentes discussões foram suscitadas por relatos etnográficos durante pesquisa que realizei no Grupo Especial de Combate aos Crimes de Ódio e Pornografia Infantil na Internet (GECOP), do Departamento de Polícia Federal (DPF), em 2012. Meus interlocutores e os documentos analisados apontavam para uma tensão entre interpretações que conduzem o trabalho policial e aquelas determinadas pela autoridade judicial diante de um contexto de poucas previsões jurídicas e legislativas, o de crimes contra pessoas cometidos através da internet.2 As primeiras investigações de pornografia infantil na internet, realizadas pela Divisão de Direitos Humanos do DPF, datam de pouco antes dos anos 2000. Durante uma década aproximadamente, pairava certa insegurança acerca da continuidade jurídica da persecução iniciada, visto que juízes e juízas federais declinavam competência para instâncias estaduais e/ou exigiam provas inalcançáveis da repercussão internacional e das condutas investigadas.3 Foi-me relatado que, no começo dos anos 2010, essa atuação persecutória tornou-se menos instável, apesar de haver um entendimento nativo de que juízes ainda não estão inteirados em sua totalidade sobre a matéria de investigações na internet e sobre jurisprudências acerca de definições de competência judicial. A mudança é creditada a julgamentos ocorridos nos anos 2000 que corroboraram um entendimento mais coordenado entre juízes e juízas criminais federais e estaduais sobre qual instância deve processar e julgar tais casos, com referência especial ao acórdão do STF de 2006, o HC 86289-6 (Brasil, 2006), a ser discutido neste artigo.

5 A partir da pesquisa no GECOP, pude atentar-me para a construção de uma imaginação territorial e internacional das experiências de uso da internet como interpretação em negociação e disputa. A territorialização das condutas adotadas no uso da internet foi um fator central para análise das atividades desenvolvidas no GECOP e de seu histórico institucional.4 Os conflitos de (in)definição territorial revelam mais do que uma

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significação para os rumos jurídico-penais de um caso. Evidenciam : (a) processos de transformação de noções espaçotemporais, nos sentidos de Anderson (2008), em que relações sociais são locadas a territórios sociais e imaginadas como uma experiência de tais territórios ; e (b) a construção de territórios em objetos e ferramentas de gestão, com base nas concepções de Souza Lima (1995, 2002a, 2002b) acerca da imbricação entre conhecimento e gestão política na compreensão de mecanismos de controle sobre territórios.5

6 Esses são os feixes teóricos centrais para a presente análise. Parto, portanto, do pressuposto de que disputas e enquadramentos de interações em termos de extensões territoriais podem ser analisados como dispositivos de governo, seguindo uma contribuição metodológica foucaultiana para compreender como se atualizam ideias e experiências territoriais sobre sociabilidades virtuais (Foucault, 2002, 2008a, 2008b).

O lugar dos fatos na sensibilidade jurídica

7 O material de discussão é fruto de pesquisas eletrônicas sobre acórdãos de conflito de competência judicial para julgamento de práticas da internet previstas como ofensas a direitos humanos.6 As interpretações de juízes e juízas, ministros e ministras acerca da localização dos fatos ilícitos são foco das discussões. Portanto, faz-se necessário apresentar algumas questões jurídicas e legais que embasam as decisões das magistradas e dos magistrados.

8 A localização de uma conduta sob lentes jurídicas é elemento a ser escrutinado observando-se a atualização da “sensibilidade jurídica” 7 que o produz. Portanto, não deve ser interpretada como constatação factual nem com foco “na capacidade isolada de indivíduos”, mas sobre as perspectivas locais, reconhecendo-se o “poder imaginativo, construtivo ou interpretativo” (Geertz, 1997 :324) do direito e do sistema jurídico em questão.

9 Para que o direito penal brasileiro seja aplicável, é requisito identificar a ocorrência da conduta delituosa e, para isso, é imprescindível definir o lugar dos fatos (ação e resultado).8 A localização de uma ação ilícita consiste em definir onde, de que forma, por quais meios e em que momento um indivíduo agiu corporalmente, com vontade, perseguindo determinada finalidade que posteriormente motivou a ação penal.

10 A definição jurídica do lugar dos fatos ilícitos é construída pelas ferramentas legais e cognitivas do direito penal, que, por sua vez, limita a si mesmo por princípios que condicionam a abrangência da soberania do Estado brasileiro sobre o “território nacional” (Jesus, 2009).9 O direito penal é, assim, um sistema interpretativo que enquadra as ações humanas nos termos de seus efeitos jurídicos e, ainda, preconcebe uma relação íntima e normativa de pertencimento e comprometimento entre os indivíduos, suas ações e o território nacional.

11 O primeiro acórdão que analiso foi julgado pelo TRF de São Paulo em 2004 (Brasil, 2004). Fora detectado pela Polícia Federal que o protocolo de acesso à internet (IP) de um cidadão brasileiro estava associado, mediante acesso direto, a um site alemão que continha material de pornografia infantil. Assim, por meio de investigações policiais, essa pessoa se tornava suspeita de divulgação de pornografia infantil na internet.10 Para identificar o suspeito e localizar sua residência, foi movido um pedido de quebra de sigilo, à justiça federal, dos dados cadastrais do usuário na provedora do acesso.

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12 Ao dar parte do pedido, a juíza federal da 4ª Vara Criminal de São Paulo entendeu que não era de sua competência o julgamento da matéria e, sim, da justiça estadual. A matéria, então, foi apresentada ao TRF pelo Ministério Público, solicitando o reconhecimento de competência da justiça federal para processar e julgar os fatos. A partir do decline da juíza, houve uma quebra no fluxo de aplicação jurídico-penal.11 E iniciou-se um processo de negociação acerca do enquadramento normativo do caso com a finalidade de produzir uma compreensão legitimada sobre a aplicabilidade jurídica. Esse enquadramento foi dado pelo Recurso Criminal em Sentido Estrito (RCCR) 48.936– SP, cuja ementa diz :

13 I - Extraterritorialidade condicionada da Lei Penal Brasileira (art. 7º, II, a, do CP) concernente ao Princípio da Justiça Universal ou Cosmopolita. Aplicação concomitante da Teoria da Ubiqüidade em relação ao lugar do crime eis que delito de execução transnacional (art. 6º do CP).

14 II - A execução e consumação ocorreu através da Internet, englobando, ao menos, dois países : Brasil e Alemanha. Fato que, aliado à existência de acordo internacional tratando do tema, conduz à competência da Justiça Federal para processamento e julgamento do feito.

15 III - Crime instrumentalmente conexo à rede telemática, considerando-se a utilização da rede mundial de computadores para consecução da prática criminosa (delito informático impróprio).

16 […]

17 V - A previsão de combate internacional à pornografia de menores, prevista em decreto, encontra, em seara legislativa interna, consonância e arrimo no delito previsto no art. 241 do ECA, antes e depois da redação dada pela lei 10.764/03 (Brasil, 2004 :ementa).

18 O TRF deferiu por unanimidade o pedido do Ministério Público de conferir competência à justiça federal, um resultado embasado por dois eixos. Primeiro, a compreensão sobre o lugar dos fatos com ênfase na noção de que a ação teve repercussões em diferentes territórios nacionais. Segundo, a aplicação do princípio da extraterritorialidade, visto que, além de ter sido praticado por brasileiro e tocado território estrangeiro, o suposto crime está previsto em convenção de proteção a direitos humanos ratificada pelo Brasil.

19 No acórdão, a internet aparece como meio de comunicação que permitiu que determinada ação tivesse efeitos em diferentes territórios. Foi dessa forma que o lugar dos fatos pôde ser ubiquamente reconhecido no Brasil — como lugar da ação corpórea de “apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar”12 (BRASIL, 1990a) conteúdo de pornografia infantil e do cadastro do IP de acesso — e na Alemanha, como lugar do resultado e território de cadastramento do site onde estavam as imagens.

20 Na interpretação da juíza da vara criminal, não havia, em princípio, nenhum elemento no processo que fixasse a competência da justiça federal. Contudo, os autos percorriam um contexto em que promotores e promotoras e policiais federais produziam conhecimentos diversos acerca de crimes propiciados pelo uso da internet. A “transnacionalidade” é o enquadramento produzido nesse acórdão do TRF e, nele, a internet aparece como ferramenta que possibilitou a articulação territorial. Essa imaginação acionada pela experiência do uso da internet é traduzida pela categoria “englobar”, que revela a compreensão final de um caráter “transnacional” do feito

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ilícito, aparecendo a internet como instrumento desse efeito. Contudo, é importante frisar que a territorialidade do delito não é deslocada para a experiência da internet ; esta é apenas chave para reconhecer territórios juridicamente geríveis. A internet é entendida como meio de comunicação que possibilita a repercussão de ações sobre territórios distintos.

21 Como foi apresentado, “o que aconteceu” está em questão e “onde” é o elemento que precisa ser adequado às concepções da sensibilidade jurídica. Diferentes interpretações sobre o uso da internet estão sendo lançadas neste contexto, e os processos de conflito de competência judicial são um empreendimento de negociação dessas perspectivas e de sua aplicação legitimada.

Traduções jurídicas e imaginação territorial

22 Os julgamentos e a produção de decisões em instâncias superiores possuem caráter ritual, trazendo à tona as chaves interpretativas (Goffman, 1974) que permitem que certo conflito seja objeto de redefinição em um nível de autoridade cada vez menos passível de ser desacreditado ou renegociado. Sendo a localização do crime o objeto de negociação e disputa, nos termos de Goffman, há lâminas, referentes à interpretação do objeto de análise social, que vulnerabilizam a própria análise e não permitem, em primeiro momento, a sua definição compartilhada.13 Ou seja, elas oferecem limites à aplicação do enquadramento jurídico-penal quando da definição do lugar do crime.

23 Quando diferentes instâncias judiciais são acessadas e questionadas, esse ritual empreende a restauração das possibilidades de tradução pacífica entre o mundo dos fatos, o ordenamento jurídico e a organização prática judicial, uma vez que encontra no universo das leis a interpretação que autoriza a atuação judicial para a gestão jurídico- penal de uma situação.

24 Os julgamentos das matérias de conflito de competência operam sobre os ramos hierárquicos das relações entre tribunais, juízas e juízes, promotoras e promotores, e polícias, definindo limites e legitimidades de suas atuações segundo significações territoriais : “quem” exerce autoridade e “onde”, dentro de uma arena de relações bem marcadas de poder (TRF, STJ, STF). Quando processa e decide, a instância de julgamento, centrada no poder relativo de seus ministros e ministras e seus desembargadores e desembargadoras, atualiza uma propriedade em exaurir conflitos baseados na confusão de definição situacional.

25 O segundo e terceiro processos que discutirei foram conduzidos pelo STJ (BRASIL, 2003) e pelo STF (BRASIL, 2006), respectivamente. São julgamentos de pedidos de habeas corpus impetrados por réu condenado a três anos e quatro meses de reclusão por ter, com outra pessoa, fotografado, filmado e postado na internet imagens de menores de idade em contexto pornográfico.14 A partir da condenação, o réu deu entrada a pedidos de habeas corpus em que, a cada negativa, era acionada a instância judicial superior.

26 A condenação veio da 5ª Vara da Seção Judiciária Federal do Estado de Goiás : os réus (o homem e uma mulher) foram julgados por corrupção de menores15 e por “fotografar” pornografia infantil e “publicar” na internet. O réu recorreu com um pedido de habeas corpus, alegando incompetência da justiça federal para processar o caso, pois o crime não havia se consumado fora do país. O pedido foi, assim, apreciado pela 4ª Turma do TRF da 1ª Região, que ratificou a competência da justiça federal. A parte, novamente,

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recorreu e o pedido passou a ser julgado pela 6ª Turma do STJ. Esse tribunal também firmou a competência da justiça federal. A parte recorreu outra vez e, por fim, o caso tornou-se matéria de apreciação do STF.16

27 Começarei pela discussão do acórdão do STJ (Brasil, 2003). Antes, é importante dizer que, além de a definição do lugar do crime ser questionada no recurso, está em questão o tempo do fato ilícito. De acordo com o direito penal, o momento do crime é determinado pelo momento da ação (ou omissão), e não pelo momento do resultado (Brasil, 1940 :art. 4, caput). Dessa forma, alega o impetrante : “a conduta foi praticada em Aparecida de Goiás” e, ainda que a internet “projete o fato para o exterior (o que efetivamente acontece), há separação no tempo e no espaço, entre a ação e o resultado, ainda que por diminuta fração de tempo” (Brasil, 2003, citações em voto :20).

28 O primeiro juiz a votar é o relator do processo, ministro Paulo Medina, que declara a incompetência da justiça federal e a competência da justiça comum para julgar o caso. Em seu voto, argumenta que o tempo da ação de fotografar é diferenciado e anterior ao momento de publicação, e que o crime previsto no artigo 241 do ECA já estava consumado pelo ato de “fotografar”.

29 O segundo a votar é o ministro Carlos Fontes de Alencar, que entende que a competência é da justiça federal. Em seu voto, assinala que a questão não se encontra no acesso, que pode ou não ter ocorrido no estrangeiro, nem na divisão sequencial dos atos de “fotografar” e “publicar”, como entendeu seu colega anterior, mas na intenção dos atos : Senhor Presidente, de acordo com a leitura da denúncia, as fotografias e a filmagem foram atos praticados para posterior publicação na Internet. […] O crime não ocorreu no estrangeiro porque ninguém acessou o endereço dado. Tal circunstância é irrelevante para afastar a competência da Justiça Federal. Com meus louvores ao eminente Advogado e Professor, entro em colisão de entendimento com o eminente Ministro-Relator e denego a ordem de habeas-corpus (Brasil, 2003, voto :7).

30 Já o terceiro voto não consta de apresentação, apenas concorda com o anterior e denega o habeas corpus. O quarto e último voto, do ministro Paulo Gallotti, também coaduna os dois anteriores e enfatiza que a “manifesta intenção de divulgação no exterior” (ou seja, de colocar as imagens na internet) é a prova para determinar a aplicação da extraterritorialidade. Assim, com três votos a um, o pedido de habeas corpus é indeferido, e a competência da justiça federal é estabelecida pelo STJ.

31 Destaco, primeiramente, a relação entre tempo e local do crime — os ministros foram provocados a responder sobre a realidade do fato ilícito. Como é possível perceber na diferença de interpretação entre o relator e os demais, a imaginação temporal está ligada à imaginação territorial. Se os núcleos do tipo penal, “fotografar ou publicar”, forem dissociados na concepção “do que aconteceu” (como votou o ministro Paulo Medina), a ação ilícita e seu resultado são localizados em Aparecida de Goiás, na casa onde o casal fez as fotos e usou o computador. Apenas o ato de “publicar” as imagens na internet, como consumação do crime, teria o poder de acionar outra imaginação territorial. Algumas interpretações estão postas : a. que os atos ilícitos deveriam ter sido “consumados” coordenadamente, compondo o mesmo dano jurídico de expor menores em contextos pornográficos. Dessa, desdobram-se duas compreensões : uma, de que fotografar e publicar foram ações realizadas no Brasil, atraindo competência da justiça comum, e que, ainda que o material fosse acessado fora de território

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nacional, esse acesso não significaria o resultado do crime, mas apenas seu exaurimento (esse argumento irá embasar a defesa do réu no julgamento do STF) ; a outra, de que as ações propiciaram uma repercussão internacional, atraindo competência da justiça federal (essa interpretação depende exclusivamente de traduções específicas sobre o uso da internet, como nos três votos que corroboraram a decisão final). Ou b. que a publicação se deu em momento separado, ou seja, a ação ilícita em julgo é a de fotografar, atraindo competência da justiça comum (esse é o entendimento do relator e da defesa do réu).

32 A tradução final produzida pelo acórdão do STJ foi de que o fato teve, ou deveria ter tido, resultados no exterior (Brasil, 1988 :art. 109, V). Publicar e fotografar, necessariamente separados num tempo cronológico, são ações ligadas num tempo jurídico pelo aspecto volitivo da ação ilícita. A “intenção” permite que a imagem de ações localmente circundadas seja transformada na ideia de que os fatos poderiam ter tido efeitos no estrangeiro.

33 O uso da internet tem um papel interpretativo central nesse julgamento por meio da ação típica de “publicar” com a ideia de efeitos possíveis em territórios estrangeiros. Por várias vezes nos votos, a internet foi referida como “rede mundial de computadores”, categoria que aciona certa imaginação. No voto do ministro Fontes de Alencar, a inserção de dados na internet define a potencialidade transnacional do crime, de tal forma que não seria necessário o acesso ao conteúdo em locais estrangeiros.

34 Tanto na decisão do STJ como no primeiro acórdão analisado (Brasil, 2004), o uso da internet é nuance que vulnerabiliza a localização jurídica. Mas há alguns aspectos a serem considerados sobre como foram construídos entendimentos em cada caso. No julgamento do TRF, ela apareceu como uma rede de comunicações que possibilitou um efeito transnacional. Já no julgamento do STJ (Brasil, 2003), a imagem de uma potencialidade transnacional parece deslocar a compreensão situacional para uma concepção de que a internet modifica necessariamente o enquadramento territorial das ações por ela perpetradas (resguardadas diferenças de entendimento entre magistrados).

35 Pois bem, após a recusa do pedido de habeas corpus pelo STJ, o réu recorre ao STF. Nesse fórum, novas informações compõem o processo. Há a afirmação de que houve acesso na Bélgica e na França aos conteúdos pornográficos postados. E a defesa, agora, lança mão do argumento de que a consumação do crime se deu no Brasil e de que o acesso às imagens no estrangeiro corresponde apenas ao exaurimento do crime.

36 No STF (Brasil, 2006), os votos expressam uma maior diversidade de compreensões dos ministros do que no STJ, e é importante remontar tais argumentos.17 Iniciando, apenas o ministro Marco Aurélio assenta competência da justiça comum : Não tenho a menor dúvida de que o crime se consumou no Brasil. A partir dessa consumação — e a publicação se fez na inserção no computador que aqui se encontrava —, a partir dessa publicação é que se procedeu a diversas remessas, possivelmente, até mesmo, para endereços da internet situados no País. Não tenho como confundir o que se contém no mencionado inciso V a ponto de proceder à leitura desse preceito como a revelar o englobamento, o alcance de apanhar não a prática do crime como está no dispositivo, mas as repercussões diversas, múltiplas, que não se referem à configuração do tipo ocorridas no estrangeiro (Brasil, 2006 :311).

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37 Nesse voto, o ministro concorda com o pedido de habeas corpus e afirma que os efeitos possíveis de “englobamento” de territórios nacionais não estão atrelados à concretização da ação ilícita em si. Ele não deixa de considerar que houve repercussões internacionais após a “publicação” de imagens, mas coaduna o argumento que separa o tempo entre esses efeitos e a ação ilícita que os provocaria. E não há questionamento sobre o que gera ou geraria o uso da internet ; os argumentos são relativos à previsibilidade dos crimes em convenções internacionais e à separação temporal que permite um enquadramento territorial local.

38 Outros três votos, dos ministros Carlos Brito, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence, assentam competência da justiça federal. Apresento-os em bloco por aproximação dos argumentos : No caso, penso que o resultado do crime é a própria ocorrência do dano sofrido pelo bem jurídico tutelado. O que se deu com o instantâneo, o desembaraçado acesso de qualquer pessoa às fotos exibidas pela rede mundial de computadores, o momento da consumação do crime, no caso, deu-se exatamente com a disponibilização das fotos para qualquer pessoa. (Brasil, 2006 :306. Voto do ministro Carlos Britto). O tipo era publicar. Com inserção das fotos na rede internacional, deu-se a publicação imediatamente, de modo que os resultados, também, se produziram no exterior desde aí (Brasil, 2006 :308. Voto do ministro Cezar Peluso). Aqui, o crime se consuma com a publicação, que é tornar disponível, acessível, pela rede da internet, determinada mensagem (Brasil, 2006 :314. Voto do ministro Sepúlveda Pertence).

39 A noção de uma potencialidade transnacional da experiência da internet é novamente acionada como chave interpretativa para enquadrar o tempo e a territorialidade do crime. E, também, o uso das categorias “rede mundial” e “rede internacional” retroalimenta a imagem de que diferentes territórios nacionais podem ser tocados. Essa interpretação, é bom lembrar, determinou o resultado do acórdão anterior.

40 Restam, agora, dois argumentos a serem levantados, o do ministro e relator do processo, Ricardo Lewandowski, e o do ministro Carlos Britto, que realiza uma confirmação de voto ao final do julgamento. O relator expõe as vulnerabilidades interpretativas que estão em negociação nesse julgamento. Explicita que o uso da internet oferece entraves interpretativos à aplicação do direito penal, com a lei vigente na época do crime, principalmente no que diz respeito à compreensão do resultado do crime : O desenvolvimento da rede mundial de computadores, em ambiente virtual de armazenamento de informações binárias, ultrapassou as possibilidades de previsão do legislador acerca das eventuais decorrências do fenômeno. […] Tanto que a lei foi posteriormente alterada para adequá-la às circunstâncias da realidade. O questionamento que aqui se apresenta, no entanto, trata em se saber quando ocorre o resultado do crime do artigo 241 do ECA, na sua redação original, quando praticado através do ambiente virtual (Brasil, 2006 :302).

41 A ênfase recai mais uma vez sobre o tipo referido em lei, “publicar”, para a definição de como se deu, o que gerou e que danos causou o crime. Segundo o ministro, o que está em negociação é no que consiste esse “publicar” em “ambiente virtual”.

42 Na forma como o relator conduz seus argumentos, três pontos se destacam. Primeiro, a afirmação de que o desenvolvimento da tecnologia da “rede mundial de computadores” traz novas realidades a serem compreendidas pelo ordenamento jurídico-penal. Segundo, a referência à internet como um terreno específico, “ambiente virtual”. E, terceiro, a explicação sobre de que terreno se trata, relegando a ele um funcionamento

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próprio e, assim, transformando a imaginação do espaço-tempo das condutas na internet : No ambiente virtual há a disponibilização de material eletrônico, o qual somente passa a ser inteligível ao ser humano quando de seu acesso por outro usuário. A sensação de imediatidade da imagem nos leva a crer que tenhamos entrado em outro ambiente, quando, na verdade, solicitamos o envio da informação digital. Acessar, portanto, em ambiente virtual, significa solicitar o envio de informações, e recebê- las. Ao recebermos o sinal transmitido pelo servidor de arquivos, essa informação é então processada e transformada em imagem. A consumação da conduta “publicar”, quando em ambiente virtual, na modalidade de disponibilizar imagens, como é o caso que se apresenta, somente ocorre quando a informação binária passa a ser inteligível ao receptor. E isso somente ocorre após o efetivo recebimento das informações eletrônicas pelo solicitador do acesso. Exaure-se o crime no mesmo instante da consumação, sendo dela dependente (Brasil, 2006 :302, grifos meus).

43 Então, para o relator, o ato de “publicar” na internet tem significado próprio. Ela é caracterizada como terreno específico de sociabilidades. A ação de “publicar” só se torna efetiva, ou seja, as imagens só se tornam disponíveis para o público quando são recebidas mediante o acesso desse público. Assim, em sua interpretação, o crime se consuma no mesmo momento em que exaure seus efeitos (de expor menores em situação degradante). O esforço argumentativo é de colocar a ação por meio da internet em um quadro compreensível pelo direito, localizando-a em terreno conhecido de sociabilidades que podem ser antecipadas. Trata-se da produção de reconhecimento e conhecimento acerca de trocas e circulação de discursos na internet, de sua engenharia e territorialidade em termos de nação, das ações e da verdade dessas ações a serem antecipadas. Isso pode ser analisado à luz de um poder de segurança, em que os espaços ganham noção de meio como “suporte e elemento de uma ação” (Foucault, 2008a :27). É sobre a ação que se concentram esforços de regularização desse ambiente “multivalente e transformável” (Foucault, 2008a :27). E é uma ação não entendida, a princípio, pelo aspecto de uma vontade individual, mas por uma noção de produção de acontecimentos que geram efeitos sobre a inteligibilidade do meio.18

44 Há duas peculiaridades que quero destacar sobre esse voto. Primeiro, nele há uma compreensão situacional do fato. A extraterritorialidade, aqui, só existe porque houve acesso de terceiros em território estrangeiro : “a competência firmada no caso em concreto deveu-se ao fato de que a consumação do ilícito ocorreu além das fronteiras nacionais, especificamente em território europeu” (Brasil, 2006 :304). As ações devem ser entendidas contextualmente ; não se trata de significar a experiência da internet como de uma potencialidade internacional. A imagem acionada aqui é outra.

45 A segunda toca no ponto central de produção do acórdão do STF : “o avanço da tecnologia não significa permissão de que a conduta humana esteja livre de responsabilização penal” (Brasil, 2006 :301). E tal produção vincula e loca uma noção territorial específica à experiência da internet, como a “experiência em ambiente virtual”. Há uma tradução da internet à luz das concepções normativas como um território gerível.

46 Por fim, a confirmação de voto do ministro Carlos Brito : Senhor Presidente, também entendo que, hoje em dia, quem entra na rede mundial de computadores em caso que tais não tem como deixar de iniciar o crime no Brasil e se expor ao risco da consumação fora do Brasil. É imediata. Uma coisa puxa a outra. É da natureza desse tipo de comunicação eletrônica (Brasil, 2006 :315).

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47 O magistrado finaliza o processo referindo-se a nuances interpretativas contidas nos votos de seus colegas. Aciona novamente a imagem da potencialidade transnacional, dando ênfase aos efeitos das ações possibilitadas pelo uso da internet ; porém, agora, como efeitos necessários de sua “natureza”.

48 O julgamento do STF trouxe à tona empreendimentos de imaginação territorial focada no funcionamento “técnico” e até “natural” da internet. A interpretação concebe as ações como realizadas na internet e, ainda, como geríveis em seus efeitos, seja sobre o próprio meio, seja sobre a afetação mútua dos indivíduos que nele atuam.19 Essa transformação (Goffman, 1974) não corresponde à delimitação de um território nacional ou internacional, mas a tradução realizada tem como fio condutor a compreensão de tais experiências em termos de nação. Um rol de interações passará, então, a ser inteligível sob uma ordem cognitiva de espaço-tempo transformada pela sensibilidade jurídica.

Conflitos de competência : (in)definições do lugar do crime

49 Por fim, abordo o último acórdão, o Recurso Criminal em Sentido Estrito julgado no TRF da 1ª Região (Brasil, 2008).20 A matéria ocupa-se de incitação à prática de “preconceito de raça, cor, etnia (art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89)” em sites da internet.

50 A juíza federal da 4ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais remeteu à competência da justiça estadual de Belo Horizonte (MG) os autos de um processo instaurado por uma Procuradoria Regional (no Paraná) em que, após a quebra de sigilo telemático dos sites, verificou-se que a maioria dos IPs eram localizados em Minas Gerais. A juíza defendeu que “tanto o resultado quanto a execução do crime […] ocorreram dentro do território nacional” (Brasil, 2008 :1). De acordo com ela, a simples divulgação do delito pela Internet não atrai, por si só, a competência federal. Faz-se necessária, para a fixação do Juízo Federal, a comprovação da internacionalidade, que se dá com o nexo de causalidade entre ação e o resultado (Brasil, 2008 :2).

51 A necessidade de “comprovação da internacionalidade” revela a dimensão situacional da compreensão da magistrada sobre os fatos. Não havia nada que colocasse o uso da internet como uma imprescindibilidade de risco, alcance, englobamento, repercussão ou experiência internacional. Essa visão da juíza é importante para que eu possa diferenciar pontos levantados até agora, portanto, abro um longo parêntesis.

52 Como isso que chamei de “compreensão situacional” da magistrada difere dos outros argumentos apresentados e se articula com eles ? Na fala dela, não é negada a possibilidade de que o resultado do crime aconteça em diferentes territórios, mas essa possibilidade está ligada a um entendimento da internet como meio de comunicação que, como tal, permite que haja efeitos de determinadas ações em diversas dimensões do espaço e do tempo ; essa perspectiva também é apresentada no acórdão do TRF (Brasil, 2004).

53 Já no argumento do ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do STF (Brasil, 2006), a “compreensão situacional” aparece de outra forma. O ministro defende que a transnacionalidade não está atrelada necessariamente ao uso da internet. Contudo, a explicação que é acionada sobre a internet e seu uso realiza outro tipo de tradução, que

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não tem como ênfase um meio de comunicação capaz de “englobar” diferentes pontos de ação. O conhecimento desse meio de comunicação como meio de sociabilidades é a transformação central manejada em seu voto. A “compreensão situacional” é possível e realizável sobre um contexto acerca do qual há conhecimento e antecipação jurídica.

54 É sob a lente de conhecimento do funcionamento da internet que o julgamento do STF encaixa, na definição dos fatos, os aspectos temporais. Ação, interação e seus respectivos efeitos são reconhecíveis nesse meio : por exemplo, o exaurimento do crime (danos outros), através da internet, dá-se necessariamente com a consumação da ação de “publicar”.

55 Ainda, para concluir sobre as vulnerabilidades interpretativas e as traduções produzidas em cada caso, no primeiro acórdão analisado (Brasil, 2004), a internet não está sendo imaginada como um território. No segundo julgamento (Brasil, 2003), também não, mas há nuances mais complexas. No STJ, uma série de possibilidades de interação virtual é transformada em experiência específica, reconhecida como contendo uma potencialidade própria de ação e efeitos sobre territórios, a internacionalidade. Essa experiência pode ser fragmentada em pontos de ação e ancorada em áreas fixas e, então, ser interpretada em termos de território nacional, apesar de não poder ser automaticamente enquadrada no simbolismo de territórios político-geográficos, mesmo sendo produtora de confusão dessas fronteiras.

56 Dito assim, acredito ter exposto mais detalhadamente as diferenças e aproximações das chaves acionadas nos votos e dos enquadramentos firmados nos acórdãos ; portanto, fecho o parêntesis. Volto, agora, ao julgamento de crimes de racismo pelo TRF (Brasil, 2008). Após o decline de competência, o Ministério Público Federal entrou com recurso no TRF da 1ª Região para solicitar a determinação da competência da justiça federal para julgar o caso, o que foi deferido pelo TRF.

57 Esse acórdão reserva alguns pontos interessantes. Ele é, praticamente, composto de citações de decisões judiciais acerca de conflitos de competência em casos de pornografia infantil na internet, entre os quais estão argumentos do STJ (Brasil, 2003) e do STF (Brasil, 2004). Cabe ressaltar a força de acionamento da decisão do STF como recurso de autoridade, visto sua posição máxima de poder de definição “do que está acontecendo” à luz das sensibilidades jurídicas. Como adiantou Geertz (1997 :262), os acórdãos são “a marca simbólica que dá autenticidade à retórica jurídica”.

58 Embasado na citação de argumentos já analisados aqui e de distintos acórdãos, o juiz Tourinho Neto, do TRF da 1ª Região, define seu voto e o acórdão. Dessa forma, a veiculação de discursos racistas por meio da internet protagonizados por brasileiros, aqui residentes, com acesso protocolado no Brasil e em ação primeira em território brasileiro, foi enquadrada como de potencial repercussão internacional. O conflito foi contornado pelo conhecimento e pela autoridade de definição, outrora proferidos por outras cortes. Em uma das citações, está outro julgamento do STJ de 2007 : todavia, no caso em apreço, urge enfrentar questão espinhosa : onde ocorre a consumação em se tratando de crime cometido por meio da rede mundial de computadores ? […] É certo, ainda, que tais informações são acessíveis em qualquer parte do mundo em que se disponha de um terminal de computador conectado à referida rede. E é justamente esta diversidade de locais em que a informação pode ser acessada que revela o engessamento das normas de direito processual penal frente às inovações tecnológicas perpetradas pelo homem, ante a dificuldade de identificação do local

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da consumação do ilícito, como exige a regra geral contida no art. 70 do Código de Processo Penal, para fixação da competência (Brasil, 2008 :4).

59 Assim, há um limite experimentado e promulgado ao enquadramento do direito penal sobre ações através da internet. E diferentes esforços imaginativos, nos termos de Anderson (2008), são acionados para realizar uma transformação dessas barreiras que se impõem justamente sobre a compreensão espaçotemporal dos fatos a serem definidos e geridos.

60 Nesses julgamentos, toda a inteligibilidade em jogo busca reenquadrar uma representação normativa centrada na definição de territorialidades, seja pela reformulação de noções escalares em termos de territorialidades nacionais, seja pela retórica do simulacro21, seja pela construção de uma “comunidade imaginada” como “mundial”. Mas, necessariamente, essa tradução produz novas “sensibilidades aos espaços que o mundo contém” (Harvey, 1996 :265).

61 Aformaeosrumosdesedimentaçãodetaisproduçõesimaginativasnaaplicação jurídico- penal são matérias muito profícuas para novas pesquisas. Os documentos abordados inserem‑se em um contexto em que conhecimentos diversificados são produzidos na gestão das condutas realizadas através da internet. Tais dissidências vão sendo “contornadas” (Geertz, 1997 :331) e apropriadas dentro da própria estrutura hierárquica e territorializada do sistema jurídico-penal : os níveis de autoridade em “descrever o mundo” vão sendo acionados, e essas descrições são negociadas e ratificadas.

Outras perspectivas analíticas

62 A proposta deste artigo foi de adentrar a centralidade que a definição de territórios assume no tratamento jurídico-penal de crimes praticados através da internet. Uma vez que a definição espaçotemporal do crime é elemento necessário à atuação da organização jurídico-penal, a localização revelou-se empreendimento interpretativo imprescindível acerca da verdade das condutas ilícitas. E, nesse sentido, também da própria legitimidade de gestão persecutória dessas condutas. O objeto central de análise foi a maneira como o lugar do crime é negociado e estabelecido nos votos, relatórios e acórdãos finais. As interações e trocas virtuais ofereceram desafios à gestão jurídico- penal ; procurei discutir esses limites de interpretação e, principalmente, como tais fissuras são resolvidas por uma sensibilidade jurídica ancorada no reconhecimento de ações territorializadas.

63 Não havia prescrições normativas que delimitassem as fronteiras e extensões dos mecanismos de segurança sobre a internet à época dos casos analisados.22 Contudo, se aos espaços físico-geográficos são atribuídas as condutas humanas significativas para o direito penal, se é sobre essa seara que o ordenamento jurídico se exerce, se organiza e caracteriza suas possibilidades de ação, é nesses termos que a internet será escrutinada e traduzida.

64 As reformulações interpretativas de magistrados e magistradas sobre o lugar dos fatos e da competência judicial revelam que o enquadramento do ambiente virtual estava e está em contexto de transformação e de imaginação territorial.

65 O poder de produzir legitimação jurídica está depositado justamente na capacidade de realizar essa tradução. Declinar competência judicial, nos casos em questão, é redefinir

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os termos da tradução (keying), é acionar a chave interpretativa (key) que permite o reenquadramento da situação (“o que está acontecendo”), de forma a dirimir a tensão de como se deve aplicar o direito penal objetivo.

66 Acredito que as discussões levantadas neste artigo propiciam outras entradas analíticas e etnográficas, principalmente, sobre processos de construção de imaginaçõesterritoriaisdepertençaeexperiênciainternacional. Osacórdãosdiziam respeito também a novas imagens de poder estatal em processos de legitimação. Não foi foco deste artigo, mas a forma como as retóricas de previsão em tratados internacionais estão presentes nos votos aciona pertenças e legitimidades. Nesse sentido, o desenvolvimento de dispositivos de governo em torno de uma atuação imaginada como transnacional também é emblemático para os enquadramentos produzidos.

67 A ideia de uma polícia articulada por uma agenda governamental mundial era central para as atribuições de meus interlocutores no GECOP.23 Essa ideia perfaz os diversos entendimentos das polícias, dos promotores e das promotoras e dos desembargadores e das desembargadoras que solicitavam o reconhecimento de competência da justiça federal para processar e julgar crimes contra pessoas perpetrados pela internet nos anos 2000. É importante que se estude esse contexto de construção de um respaldo operacional cada vez maior sobre processos imaginativos de espaços “mundiais”, “globais”, “internacionais”.

68 Taisprocessosestãoemcorrespondênciacomumaconstante“reterritorialização” (Gupta & Ferguson, 2000) que marca as análises antropológicas do mundo pós-moderno no final dos anos 1880 e, principalmente, nos anos 1990. São territorialidades cujos significados não se esgotam e em que identidades, sentimentos e definições de instâncias “locais”, “regionais”, “nacionais” são disputados em complexos campos de poder. Esses processos são, em sua essência, “escalares”.24 A operacionalidade de uma “governamentalidade transnacional” e um território imaginado como “global” não substitui o sistema de Estados nacionais, pelo contrário, reforça a legitimação da autoridade estatal sobre o “local” (Ferguson & Gupta, 2002 :981).

69 É importante perguntar sobre o engendramento de uma “governamentalidade transnacional” e os mecanismos que aí se executam. E, ainda, perseguir as possibilidades e limites em que o artefato da nação, como sentimento e autoconsciência (Anderson, 2008), pode ser transportado para um contexto de imaginação de novas territorialidades. Também considero profícua para futuros artigos a centralidade do conhecimento e reconhecimento de territórios na definição de populações e, a partir de então, o delineamento de ações de gestão sobre elas em seus movimentos. Assim como trabalhei em Rabelo (2013), é rentável abordar uma tradução jurídica de territórios como empreendimento de reconhecimento de ações de uma alteridade.

70 Sendo assim, é imprescindível resgatar os conceitos de tutela e conquista de Souza Lima (1995), especialmente em discussões sobre menoridade e produção de uma alteridade enquadrada como carente de administração. E resgatar, também, os conceitos de governamentalidade (Foucault, 2002) e seus mecanismos ligados à segurança e à atualização ininterrupta de reconhecimentos acerca do que é do Estado, do que é nacional, da demarcação de um território a ser conquistado e da legitimação de atuações sobre as populações em movimento.

71 Concluindo, a produção de noções territoriais locadas à experiência da internet atualiza um poder de gestão sobre as causas e os efeitos das condutas humanas aí perpetradas. Os julgamentos estudados protagonizam um empreendimento de gestão sobre ações e

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seus efeitos em espaços e sociabilidades conhecidos, remontando a uma noção de meio e tendo a imaginação jurídica de territórios nacionais como eixo producente.

72 O manuseio de jurisprudências, no trabalho persecutório policial no GECOP, trouxe à tona um ponto sensível da relação entre a potência de hibridismos da virtualidade e os dispositivos jurídicos penais : a construção de um consenso sobre a internet como território gerível é um processo recente e não absoluto. Os acórdãos aqui analisados fazem parte de um contexto em que as interações na internet estão sendo juridicamente entendidas como sociabilidades de “repercussão internacional”, ainda que em questionamento e divergência.

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______. 2002a. “Sobre gestar e gerir a desigualdade : pontos de investigação e diálogo”. In : ______. (org.). Gestar e gerir : estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro : Relume Dumará : Núcleo de Antropologia da Política/ UFRJ. pp. 11-22.

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______. 2002b. “Diversidade cultural e política indigenista no Brasil”. Tellus, 3(10) :11-21. Disponível em : http://laced.etc.br/site/pdfs/Diversicultural.pdf. Acesso em : 25/03/2013.

VIANNA, Adriana de Resende Barreto. 2002. Limites da menoridade : tutela, família e autoridade em julgamento. Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

NOTAS

1. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação Racial, de 1968 (Brasil, 1969), e Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990 (Brasil, 1990a). 2. A dissertação, Salvar cordeiros imolados : a gestão do combate à pornografia infantil na internet e a proteção de crianças (Rabelo, 2013), teve como foco empírico as representações sobre crianças e adolescentes no trabalho da Polícia Federal na apuração de crimes de pornografia infantil na internet, o que propiciou a identificação de procedimentos centrados na definição de territórios de gestão. Foi conclusivo que as práticas etnografadas no GECOP se rearranjam e incidem cotidianamente sobre o delineamento de novos terrenos de intervenção, tais como a circulação de imagens e discursos na internet. 3. De acordo com a Constituição Federal de 1988, é de competência dos juízes e das juízas federais processar e julgar “crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente” (Brasil, 1988 :art. 109, inciso V). 4. Tais discussões encontram-se no segundo capítulo de minha dissertação, “Localizar e individualizar : construção de territórios geríveis” (Rabelo, 2013). O capítulo aborda a provocação empírica sobre uma (des)naturalização da internet como território transnacional e a construção de legitimidade de gestão persecutória. Com base nesses dois feixes, a discussão recai sobre processos de transformação e tradução de terrenos sociais em noções territoriais em termos político-geográficos e jurídico-penais. É importante enfatizar que a oportunidade de escrever este artigo me possibilitou novo estudo dos acórdãos e novas compreensões dos votos dos magistrados e das magistradas e dos resultados dos julgamentos. Portanto, algumas questões que levanto se diferenciam das conclusões elaboradas na dissertação. 5. A partir dos estudos sobre as práticas administrativas indigenistas no Brasil, o autor aponta a incidência de novos e velhos saberes que marcam diferenças sociais e significam os espaços sob a forma de uma administração cotidiana de sujeitos e relações concebidos como carentes de organização e controle (Souza Lima, 1995). 6. Os documentos analisados são de inteiro teor dos acórdãos, relatórios, ementas e acórdãos finais. Além disso, recorri, quando encontrei, a outros dados na internet sobre os processos para compreendê-los melhor. Alguns limites se impõem aqui, principalmente, pela forma com que tive acesso aos acórdãos, sem contato com o conteúdo dos relatórios policiais e dos recursos feitos por advogados e advogadas ou promotores e promotoras. É fato também que determinadas nuances do julgamento são perdidas, mesmo no que diz respeito às falas dos magistrados e das magistradas. Contudo, documentos possibilitam discussões sob uma perspectiva privilegiada, pois traduzem movimentos de construção, negociação e “sedimentação” de verdades (Vianna, 2002 :87). E, assim, analiso-oscomo producentes de realidade, como artefato de construção do universo simbólico institucional. 7. Para Geertz (1997 :325), o direito deve ser estudado pela antropologia como um “saber local” e a ideia de sensibilidade jurídica reside sobre esse “complexo de caracterizações e suposições, estórias sobre ocorrências reais, apresentadas através de imagens relacionadas a princípios abstratos”.

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8. Como aponta Geertz (1997 :254), uma vez que a representação jurídica dos fatos é normativa na modernidade, “o lugar dos fatos no universo dos julgamentos” torna-se central para sua atualização. 9. De acordo com o Código Penal, o “lugar do crime” é aquele onde ocorre a ação e onde se produziu (ou deveria ter produzido) o resultado (Brasil, 1940 :art. 6º, caput). A competência de processar e julgar um delito é determinada justamente a partir do lugar do crime (Brasil, 1941 :art. 70, caput). Ainda, há um princípio que sujeita à lei brasileira os crimes que tocam territórios estrangeiros (na ação ou no resultado) quando são cometidos por brasileiro ou brasileira e estão previstos em tratados e convenções ratificadas pelo país : princípio da extraterritorialidade (Brasil, 1941 :art. 7º, inciso II, alíneas a e b). 10. O caso foi julgado em 2014, e o réu foi absolvido por falta de provas. O relatório do julgamento conclui que ele utilizava programas de compartilhamento, como eMule e Kazaa, para baixar conteúdos diversos, incluindo pornografia de uma forma geral ; porém, não ficou constatada nenhuma evidência de que ele havia publicado materiais no site alemão nem de que baixava, armazenava ou compartilhava pornografia infantil. Esse julgamento pode ser encontrado no Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região, edição nº 95/2014, sob o número 2003.61.81.006185-7. 11. Este acórdão foi escolhido para a presente análise por ser exemplar dos relatos trazidos a mim por meus interlocutores do GECOP. Segundo eles, a partir do pedido de quebra de sigilo de dados cadastrais, a investigação da Polícia Federal na internet tem seu tempo de execução estendido e sua efetivação vulnerabilizada pelo não consenso jurídico de competência (que, acredita-se no GECOP, é da justiça federal por se tratar de ações propiciadas pelo uso da internet). 12. Esta redação foi dada pela Lei nº 10.764, de 2003, que altera o texto original do artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dizia : “fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (Brasil, 1990b). 13. A ideia de “lâminas” advém do vocabulário de Goffman (1974) como conceito que abarcaria variadas dimensões de um “enquadramento” ( frame), ou seja, seriam as nuances, fragilidades e consistências de dado esquema de interpretação da realidade. Segundo o autor, a realidade é definida situacionalmente por “lâminas”. 14. A ação típica, aqui, é aquela prevista no artigo 241 do ECA antes da alteração feita pela Lei 10.764, de 2003 (Brasil, 1990b). 15. Corrupção de menores é fato típico previsto no Código Penal na redação anterior à Lei 12.015, de 2009 (Brasil, 1940 :art. 218). 16. Este acórdão foi escolhido por ter sido citado em dois documentos etnográficos do GECOP. Em ambos, as citações exemplificavam e justificavam a competência da justiça federal nos crimes contra a pessoa perpetrados pela internet. Para o contexto que estou abordando, esse acórdão tem uma importância específica, pois o STF é a corte máxima de resolução de conflitos de interpretação judicial : acionar suas resoluções e votos corresponde a lançar mão de argumento de autoridade que não pode ser desacreditado. 17. Nesta análise, os votos serão apresentados por blocos de discussão e não na sequência em que foram proferidos no julgamento. 18. É importante perceber que as chaves argumentativas que localizavam a transnacionalidade das ações partindo da intenção do réu no julgamento do STJ (Brasil, 2003) foram deslocadas para outras compreensões no STF (Brasil, 2006). No primeiro, a disciplina (Foucault, 2008a) talvez fosse um mecanismo importante de discussão no que concerne a técnicas de medição de subjetividades. 19. “O meio vai ser portanto aquilo em que se faz a circulação. […] É esse fenômeno de circulação das causas e dos efeitos que é visado através do meio. E, enfim, o meio aparece como um campo de intervenção em que, em vez de atingir os indivíduos como um conjunto de sujeitos de direito capazes de ações voluntárias […], [o] que vai se procurar atingir por esse meio é precisamente o

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ponto em que uma série de acontecimentos, que esses indivíduos, populações e grupos produzem, interfere com acontecimentos de tipo quase natural que se produzem ao redor deles” (Foucault, 2008a :28). 20. Este acórdão foi citado em documento do GECOP, um modelo de representação à justiça federal para solicitar quebra de sigilo cadastral de usuários de internet. Ele foi acionado como discurso de autoridade para legitimar a atuação da justiça federal em julgamentos de crimes de ódio e pornografia infantil na internet. 21. No sentido de Harvey (1996), simulacro entre símbolos e signos como diferentes estados de expressão da realidade. 22. Somente em abril de 2014 foi aprovado o Marco Civil Regulatório da Internet, que normatiza as ações estatais sobre a internet e seus usos (Brasil, 2014). 23. Segundo meus interlocutores, há um “consenso” e uma preocupação “mundial” a respeito do combate a práticas vinculadas ao abuso sexual infantil. 24. “Escalar”, como apontam Anderson (2008) e Herzfeld (1993). Este explica que não se trata de comparações de tamanho físico ou abrangência estatística, mas de imagens que permitem que as relações sociais locais sejam emocionalmente locadas em territórios sociais, com um senso de coesão tal que a experiência destes se caracterizaria como um “simulacro da sociabilidade” (Herzfeld, 1993 :100-101).

RESUMOS

Este artigo analisa a centralidade que a definição de territórios assume em conflitos de competência judicial em casos de crimes contra pessoas perpetrados através da internet. A discussão recai sobre um contexto produtivo de enquadramentos de imaginação e autoridade jurídica. Como podem ser territorializadas ações ilícitas perpetradas pela internet ? Como, nesses casos, se atualiza a aplicação do direito penal ? Com base no estudo de acórdãos, é possível apreender processos de negociação e transformação das sensibilidades de espaço-tempo acerca da experiência da e na internet. Procuro mostrar que a construção da internet como território juridicamente gerível e, neste contexto, de feições transnacionais ou com potencialidade internacional é um empreendimento de gestão recente, datado principalmente dos anos 2000, e não absoluto.

This paper analyses the juridical interpretations of conducts performed on the internet, focusing on the central role that the definition of territories assumes on the legal-penal treatment of illicit activities against people. The objective is to discuss how the juridical practice can produce frameworks related to territories and territorial experiences. How can the virtual illicit actions in territorial terms be constructed? How is the criminal law usage updated in these cases? It is possible to recognize, on the judicial speeches, how they trigger and recreate sensibility regarding the space and time of internet usage. The discussion focuses on recent and relative processes that build the internet as a transnational territory or as an international potential environment.

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ÍNDICE

Keywords: Internet, human rights, jurisdiction, territory, transnationality Palavras-chave: internet, direitos humanos, competência judicial, ; território, transnacionalidade

AUTOR

MARIANA CINTRA RABELO

Mariana Cintra é mestra em antropologia social pela Universidade de Brasília, com pesquisa etnográfica sobre Polícia Federal, tutela, menoridade, sexualidade e violência. Atua acadêmica e profissionalmente na área de direitos humanos e enfrentamento à violência contra mulheres e LGBTTTs. Atualmente, é professora de sociologia do quadro efetivo da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Escreveu a dissertação Salvar cordeiros imolados : a gestão do combate à pornografia infantil na internet e a proteção de crianças (RABELO, 2013). Contato : mcintrabelo[at]gmail.com.

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São Tomé e Príncipe : pelo trabalho, o homem novo e o socialismo contra os costumes da terra

Augusto Nascimento

NOTA DO EDITOR

Recebido em 06/01/2014 Aprovado em 23/04/2014

Introdução

1 Em São Tomé e Príncipe, independente a 12 de julho de 1975, até há anos certos traços da vida ou da cultura material não eram apreciados por serem (ou deixarem de ser) africanos. As hipotéticas raízes africanas eram (e, de certo modo, ainda são) irrelevantes para a concepção em que esses traços eram tidos pelos são-tomenses.1 Algumas menções valorizadoras da africanização dos modos de vida, das instituições políticas e de uma democracia radicada na cultura local têm replicado um vector da recente produção do conhecimento nas ilhas, a saber, a depreciação ou, até, o olvido da europeização que, prezada até há anos, hoje destoa da narrativa simplista e equivocada do reencontro dos são-tomenses com as suas raízes culturais africanas.2

2 De alguma forma, também as alusões à africanização como destino natural do país seleccionam a realidade analisada.3 Ou, amparadas pelas recentes mudanças no tecido social são-tomense, esquecem a história. Com o seu quê de reactivas à usurpação da imaginada autenticidade islenha pelo colonialismo, por um lado, e tendencialmente maniqueístas, por outro, essas alusões reflectem um movimento de procura de uma identidade verdadeira, na qual supostamente se deveria inspirar uma governação justa e competente num mundo em acelerada mutação. Trata-se de uma lucubração vã que se debate inutilmente contra os efeitos da interacção do arquipélago com o mundo

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globalizado. No plano analítico, continua-se a idealizar os são-tomenses, que, apesar disso, são cada vez mais seres do mundo e cada vez menos só ilhéus.

3 No tocante à história, entre as agressões à imaginada identidade são-tomense, indica-se a do mundo global, responsável pela inculcação do que ainda lembra a odiosa subjugação passada. Em contrapartida, não se costuma mencionar o eurocentrismo das propostas socialistas dos dirigentes independentistas, de resto, consonantes com o que a vida social e colectiva continha de europeizado. Tal é convenientemente ignorado e, qual passe de mágica, menciona-se desde há anos uma resistência cultural contra os colonos e contra a impregnação da terra por costumes europeus ou ocidentais, agora prestes a serem removidos em razão da reassunção dos valores africanos espezinhados no tempo colonial.4 Repetindo-nos, embora o facto seja esquecido ou menosprezado, os valores ditos africanos também foram arredados no pós-independência, especialmente nos primeiros anos do regime de partido único. Pelo menos, tal era o desígnio do poder independentista e, segundo a sua própria qualificação, revolucionário.

4 Após a independência, em 1975, a política fez-se da gestão de modos de vida — concretamente, da contenção e do abaixamento das expectativas dos ilhéus —, ao mesmo tempo que se tentava instituir o trabalho e o bem do povo como fins últimos dos ilhéus.

A chegada da independência e a inopinada revolução a caminho do socialismo

5 Mesmo admitindo que as guerras em três colónias portuguesas só podiam ter como corolário a independência de todas elas, incluindo o arquipélago equatorial, a verdade é que, após o 25 de Abril de 1974, a política acelerou e ganhou rumos inesperados para os são-tomenses. Talvez mesmo entre os poucos ilhéus que esperavam pela independência, à guisa de um fruto amadurecido, raríssimos terão imaginado uma evolução política como a construída pelo Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (doravante, MLSTP).

6 Após o 25 de Abril, as autoridades coloniais rapidamente evoluíram para uma disposição demissionária.5 Na voragem dos acontecimentos, abdicariam dos quesitos negociados quanto à expressão da população em eleições livres. Numa colónia onde não existira luta, as autoridades portuguesas não só reconheceram como apoiaram o MLSTP, reconhecido internacionalmente. A consulta realizada dias antes da independência foi um simulacro de eleições (MacQueen, 1998), com o que não se nega que, naquele contexto, o MLSTP as vencesse facilmente. Esse simulacro foi politicamente útil ao MLSTP por não permitir aquilatar da representatividade social de outros projectos políticos.

7 Devemos colocar a hipótese de que, após o 25 de Abril, para os próprios dirigentes do MLSTP, as vias foram se abrindo para além do que eles próprios teriam imaginado, que a resistência conservadora da diminuta e pouco activa elite da terra terá sido menor do que anteviam e que a adesão popular, de tão pronta, parecia garantia segura para os seus desígnios de transformação social (que a curto prazo se reduziria às privações quotidianas). Pretendendo-se convictos de que o apoio popular seria consistente e duradouro, aplicaram o guião socialista.6 Esse processo de transição, em muito

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condicionado pela trajectória do colonialismo português, pesaria na subsequente evolução política.

8 A par da disposição politicamente cúmplice das autoridades portuguesas — que, de colonial-fascistas tinham passado a pró-socialistas —, a conjuntura internacional era o principal factor de credibilização do projecto socialista do MLSTP. Salientava-se a evolução desfavorável para o imperialismo devida à criação do campo socialista após a II Guerra e apontava-se como marcante a derrota americana no Vietname. Com os ventos da história a seu favor, os dirigentes7 do MLSTP acenavam ainda com uma ideologia socialista, que, embora imprecisa, aparecia como atraente contraponto à situação vivida até então.

9 Pergunta-se, para além do súbito propósito descolonizador dos portugueses e da conjuntura internacional, que condições locais favoreceram a aceitação, quase sem resistência, quando muito com resignação, de um projecto de sociedade oposto ao colonial.8 Diga-se, apesar da euforia da independência, alguns teriam a percepção de que o socialismo não servia. Ainda assim, a independência desenhada pelo MLSTP vingaria por inelutável.

10 Ao tempo, havia algo de salvífico na ideia de independência, atributo estendido aos seus arautos. A independência significava uma redenção do que, de repente, podia ser publicamente denominado de discriminação, exploração e humilhação, práticas inaceitáveis perpetradas pelos colonos. Ao invés da propaganda dos derradeiros anos do colonialismo, os colonos apareciam como indivíduos de fora e diferentes, com os quais os ilhéus, naquele momento de exaltação política, não sentiam qualquer afinidade.

11 Para além da carga emocional, a adesão à independência vindoura decorreu de crescentes condicionalismos sobre os ilhéus. Primeiro, dos arautos da boa nova, jovens da Associação Cívica Pró-MLSTP que retornaram à terra natal após o 25 de Abril para, munidos de uma linguagem revolucionária aprendida nos meios académicos da metrópole, instigarem à insurgência contra o colono.9 O apelo à violência contra os colonos comportava uma dimensão constrangedora para alguns ilhéus e terá mesmo suscitado a animosidade de serviçais, parte deles cabo-verdianos, que se tinham acomodado às roças.10 Outros condicionalismos, que pesariam sobre a população nos anos seguintes, decorreram da trajectória tornada inexorável pelo acordo entre o MLSTP e o alto-comissário, Pires Veloso, firmado justamente para suster os alegados excessos de jovens imaturos da Cívica. O apaziguamento político e social resultante desse acordo creditou os dirigentes do MLSTP para a condução do país. Que as ilhas caminhassem para o socialismo científico e para um regime autoritário, tornara-se algo de menor importância para as autoridades portuguesas que, mesmo se cépticas e até avessas a tal projecto, estavam interessadas numa transferência de poderes sem distúrbios nem violências, abstendo-se de interferir num destino tornado alheio.

12 Naquela conjuntura, o socialismo aparecia como inspirador do apoio à libertaçãode África.11 Diga-se, ossinaispolíticospoderãonãoteridoostensivamente contra os pensamentos, anseios e modos de vida, em parte europeizados, dos são-tomenses, enleados também pela possibilidade de resgate da riqueza até então indevidamente apropriada pelos roceiros. Depois de décadas de discriminação racial, o socialismo e a igualdade ter-se-ão afigurado um bem (não por acaso, os ex-serviçais, alguns dos quais reféns do paternalismo dos roceiros, não terão necessariamente partilhado esse ponto de vista).

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13 A aceitação dos contornos socializantes das propostas do MLSTP ter-se-á igualmente devido à convicção, ou à esperança velada, dos ilhéus de que tal independência não iria contra o seu modo de vida e contra os códigos sociais, que, decerto também por influência do isolamento e da microinsularidade, eram tidos como intemporais e irrevogáveis. Afinal, a independência era proposta por pessoas criadas na terra.

14 Todavia, os valores e modos de vida seriam postos em causa pela condução política e, mais precisamente, pelo intento de construção do homem novo. Em suma, a imposição de um desenho político específico da independência fez-se por meio de um misto de receio e esperança, assim como da apresentação de um conglomerado ideológico engrossado pela ideia de equidade, de alguma forma ligada ao desígnio de construção do homem novo. Tais intenções comportavam muito voluntarismo. Por exemplo, o lema da igualdade, conquanto moralmente validado, mascarava uma assimetria política.12

15 O MLSTP inscreveu no seu programa a luta contra o neocolonialismo e o neoimperialismo, deliberadamente colocando tensão na vida colectiva. Essa cruzada transformou-se numa luta desigual contra são-tomenses cujas acções pudessem ser conotadas com as ameaças neoimperialistas ou com a defesa dos interesses estrangeiros.13

16 Simultaneamente, os dirigentes do MLSTP transformaram a adesão à independência na aceitação das suas políticas socializantes, subestimando o possível desfasamento entre o desejo de independência e a adesão a um regime socialista. Por isso, deixou de bastar ser são-tomense. Ser revolucionário passava a ser um objectivo para os são-tomenses. Revolucionário era aquele que participava com empenho na “reconstrução do nosso país”, na “transformação da nossa sociedade”. Era dito, quem tivesse lutado contra o colonialismo, mas não participasse activamente naquela reconstrução não podia ser considerado revolucionário (Costa, 1978). Replicava-se uma ideia de Nkrumah, a saber, a velha luta contra o capitalismo era obsoleta, pelo que cumpria substituí-la pelo amor ao trabalho e pelo incremento da produtividade (Cooper, 2009).

17 Apesar da agressividade política, a consolidação do poder não advinha apenas da repressão. Essa consolidação pressupunha a construção de uma base de apoio, assente não apenas em políticas de redistribuição, mas também, quando não sobretudo, na prossecução do objectivo da igualdade, no engajamento na revolução chegada ao arquipélago com a independência.

18 Porém, a ideia da predisposição generalizada para a luta é errónea. No caso vertente, deve admitir-se que, esfumada a euforia da independência, o grosso das motivações dos ilhéus se tenha recentrado nas necessidades e nos prazeres quotidianos, que os ocupavam mais do que eventuais ideias nacionalistas ou revolucionárias. Mais do que lutar contra o neocolonialismo ou o neoimperialismo, os são-tomenses almejavam viver sem constrangimentos. Até então, a vida local fora marcada por um certo individualismo que o MLSTP quis apeado a favor do vínculo orgânico da igualdade e do homem novo, qual substituto da harmonia e da paz do tempo colonial. Ao tempo, esse novo laço entre os ilhéus, revestido da linguagem da modernização, norteava-se pelo fito do progresso social, a lograr pelo trabalho.14 Por isso, paulatinamente os ilhéus foram objecto de um cerco político escorado em ditames morais acenados pelos dirigentes que invocavam o ideal do homem novo. Ao mesmo tempo que combatia o catolicismo, o MLSTP julgou-se apto a instilar a sua moral, autorreferenciada, algo volátil e arbitrária. No fundo, numa base moralista — até na medida em que, em nome de bem-aventuranças futuras, se ignorava a assimetria e a colisão de interesses entre os

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indivíduos —, instava-se os são-tomenses a uma apartação dos valores terrenos. Não emanando de uma moral, cuja observância seria deixada à determinação de cada um, antes de um palavreado político,15 o inalcançável objectivo do homem novo16 tornava-se mais exigente e imperativo do ponto de vista das condutas, que deviam comprovar o apoio ao MLSTP e ao respectivo líder.

19 Para além de implicações não despiciendas no tocante à desestruturação e à ineficácia das instituições, o desígnio de levar as pessoas a alterar rotinas e a refazer os seus modos de vida trazia implícita a ideia da adesão à leitura que os dirigentes faziam do passado colonial (e, tacitamente, do modo como só os dirigentes estavam isentos do pecado do colonialismo, pelo que era legítimo esperar que as pessoas se redimissem pelo estoicismo). Não tardaria muito, a revolução e o homem novo tornar-se-iam uma canga para os ilhéus. Enquanto as autoridades tiveram força anímica, ainda se julgaram capazes de vincular os conterrâneos a uma serôdia fidelidade a lemas políticos que o passar dos anos mostrava serem desfasados da realidade. Por isso, a despeito da promessa de uma futura sociedade igualitária, rapidamente erodiria o imaginado apoio aos desígnios do MSTP.

20 Alguns dirigentes deduziriam o advento do socialismo das narrativas simplistas e truncadas de outras revoluções. A exemplo dos demais nacionalistas das colónias portuguesas, os dirigentes do MLSTP não quiseram reconhecer que a sociedade por cuja independência tinham lutado era bem mais complexa do que a sua ideologia os fazia pressupor. Não reconhecer a realidade, mormente a criada pelas mudanças sociais nos derradeiros anos do colonialismo, era o primeiro passo para a tentar adequar à força aos desígnios políticos. Tal passava pela exclusão de outras perspectivas que não a da ideologia socialista. A vulgata marxista ortodoxa cerceou o passo a outros saberes.17 Desse modo, a ideologia tornou-se a justificação da discricionariedade que, independentemente das intenções, pautaria a governação.

21 Porque os independentistas quiseram crer na ilusão de que um povo despolitizado se iria comprometer com valores socialistas e propostas políticas que chocavam com horizontes de vida sedimentados pela previsibilidade dos derradeiros anos do colonialismo e pela exiguidade da vida social num território microinsular ? Como os dirigentes acreditaram na mutação da natureza humana por força da ideologia e de uma teleologia profana ? A admitir que não tivessem uma visão totalmente instrumental da tomada de poder em 1975, porque os dirigentes não equacionaram a erosão da euforia e da exaltação colectiva em torno da independência e, daí, o refluxo da adesão às suas propostas ?

22 Os dirigentes pretextaram crer numa espécie de sabedoria intuitiva do povo — uma entidade abstracta, idealizada para caucionar os seus objectivos —, sabedoria que, não obstante a (aparente) despolitização no regime colonial, subitamente o levava a abraçar valores que até então lhe eram estranhos e acarretariam mudanças no seu dia a dia. Na verdade, os dirigentes do MLSTP acabaram a impor políticas socialistas, associando-as a uma independência dita verdadeira. Desse modo, ataram os seus conterrâneos à lealdade para com eles.

23 Ora, precavidamente, os dirigentes não acreditavam na aceitação da bondade dos seus desígnios pelo povo — no que, mesmo se involuntária e inconscientemente, imitavam a duplicidade dos colonos —, pelo que assinalaram uma fasquia de realização colectiva, a do homem novo. Na prática, tal fasquia servia para condicionar escolhas e (tentar) prevenir dissensões por meio do apertado controlo das vidas pessoais. Como decerto

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desconfiavam das próprias crenças, abriram espaço para a instilação do medo. No arquipélago, após 1975, o homem novo e a organização colectiva, justificada pela pretensa luta contra o fantasmático neocolonialismo, redundaram no controlo dos indivíduos. Não faltavam razões, não a ameaça neoimperialista, mas, por exemplo, a inconfessada convicção da necessidade de autoridade para governar, para mais num contexto alegadamente adverso e com vista a uma ambiciosa e radical mudança social. Supostamente, a luta era contra a ameaça externa, mas a contenção e a repressão recaíam sobre os ilhéus.

24 Dado que, por um lado, a distribuição igualitária da riqueza era impraticável e que, por outro, não se lograva corresponder às expectativas geradas pela independência, criar- se-ia uma nova humanidade, da qual avultavam o desprendimento (qual sorte de libertação pessoal) e a abnegação em prol do bem comum. Ora, como a exigência de abnegação era socialmente refractada, acabava por se instituir uma certa continuidade perante a era colonial, quando o individualismo e, até, a extravagância eram condutas permitidas a brancos ricos. Se, na era colonial, a assimetria era acomodada pela interiorização da diferença racial e pelo imobilismo do meio local, que ajudava a naturalizar as diferenças sociais, após 1975, tal assimetria não deixaria de indiciar a duplicidade dos dirigentes que, mesmo participando festivamente nas jornadas de trabalho cívico, não se sujeitavam ao que prescreviam aos seus concidadãos.

O voluntarismo do homem novo

25 Embora certamente anterior, a menção ao homem novo apareceu no comício da juventude de 5 de Novembro de 1976. Aí se aludiu à formação politizada da juventude nas escolas. No encerramento do Seminário Nacional de Alfabetização, em que o presidente Pinto da Costa salientou “o carácter pedagógico da Revolução, que é a acção cultural por excelência”, surgia o homem novo. Lembrou-se o imperativo de os educadores “abandonarem o ‘seu’ mundo alienado, de modo a se integrarem no mundo real das massas populares, fazendo suas, as aspirações revolucionárias do nosso povo” (Costa, 1978 :II, 115).

26 Segundo Pinto da Costa, pretendia criar-se um “homem novo, liberto do egoísmo, do individualismo, do amor ao dinheiro e de todas outras taras da sociedade colonial” (Costa, 1978 :II, 99). Todavia, o presidente reconhecia igualmente que “o substrato colonial ideológico, a mentalidade colonial continua ainda a existir nas nossas populações” (Costa, 1978 :II, 100). Portanto, uma das frentes da luta pela reconstrução nacional afigurava-se particularmente difícil : era o caso da “criação de uma nova mentalidade, sem a qual poderemos gritar em todos os comícios que queremos construir uma sociedade nova, mas não conseguiremos efectivamente se não tivermos um homem novo”. Importava, pois, lográ-lo com o trabalho de politização (Costa, 1978), noutros termos, com a inculcação de uma moral, quando não por meio do constrangimento e da coerção.18

27 O instrumento com que os dirigentes condicionaram as opções dos conterrâneos foi a meta voluntarista do homem novo. Parecendo entroncar na aspiração a uma libertação total, o homem novo seria o rótulo para tornar aceitável para os ilhéus a sua transformação em homens socialistas, naturalmente com os condicionalismos daí decorrentes. Tal objectivo passava por impor uma nova moral nas escolas, tornadas um instrumento de ideologização sob a máscara da libertação da alienação.19 O homem novo

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sumarizava um desígnio voluntarista de criação de uma ordem normativa pressupostamente baseada no consentimento dos são-tomenses, desapegados de interesses pessoais, entrementes trocados pela generosidade do engajamento nos objectivos colectivos.20

28 Inferida de pronunciamentos avulsos, a definição idealista do homem novo era a de quem trabalhava e se procurava cultivar, fundando numa nova visão do mundo a sua ética, atida não ao interesse individual, mas ao colectivo. Tal seria o tónus de uma consciência política assente numa visão do devir do mundo, que, para maior eficácia, assumia tons moralistas, tal como sucedera com os discursos de governantes nos derradeiros anos do colonialismo.

29 O lema do homem novo tornou-se recorrente em vários países, mormente em Angola,21 cujo governo suportava o arquipélago e o regime do MLSTP. Apesar de o devermos encarar como um idealismo resultante da ideologia que se reproduzia pela voz dos que eram e dos que se julgavam actores, em parte terá sido por causa do quase constante definhar das possibilidades de realização das ambições e das necessidades dos são- tomenses que, de forma cada vez mais insistente, se foi aludindo ao homem novo. Daqui resultou uma definição amovível e vaga do homem novo, o que, por si só, comportava um elemento constrangedor, pois colocava cada indivíduo na condição de estar em falta perante qualquer preceito discricionariamente invocado por um mandante. Malgrado os idealismos — em que militantes do MLSTP terão acreditado22 —, o guia das pessoas era o medo, racionalizado e mascarado por meio da interiorização e reverberação de desígnios políticos ignorados até à data da independência, mas desde então repetidos ainda que olhados com crescentes desafeição e desapego.

30 Por paradoxal que possa parecer, o discurso moralizante tentava precaver a apropriação da política pelos ilhéus. Contra o individualismo, a insinuada dignidade do trabalho transmudava-se na apartação das “massas” na política.23 A despeito de os lemas políticos terem avassalado o rarefeito espaço público, dada a incessante ritualização da política sobreveio o esvaziamento da política como campo de composição e de competição entre diversos interesses.

31 Aparentemente propondo uma base política consensual, assente na igualdade entre todos, o MLSTP enveredou pela demanda de objectivos políticos, económicos e sociais que requeriam entrega e, indirectamente, privações, a suportar por conta da lealdade ao MLSTP, travestida de lealdade política e moral ao povo. Embora admitamos a crença de dirigentes e militantes num genuinamente generoso propósito de transformação social,24 aferida por valores políticos e éticos que abominavam o passado de discriminação e de exploração,25 cumpre não avaliar as acções pela repetição do palavreado aprendido. O lema do homem novo continha um elemento de coacção. Decerto, aos dirigentes não escaparia a percepção de que o homem novo era um instrumento de controlo social, desde logo exercido por cada indivíduo sobre si próprio. Na circunstância, tal instrumento servia o propósito do abaixamento do padrão de necessidades e da fasquia dos desejos, logo, das demandas sociais. Em rigor, para a governação, o problema não era a resposta a novas necessidades, supostamente desencadeadas pela independência. Tratava-se, sim, de fazer recuar as necessidades criadas nos derradeiros anos do colonialismo, que, na transição para a independência, o comum dos são-tomenses terá imaginado ser impossível negar. Nos anos subsequentes à independência, o lema do homem novo teve a função de acomodar os ilhéus a padrões de vida supostamente conformes com uma moral dita revolucionária — que consistia na

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abdicação do desejo — e com um regime de inspiração socialista pautado pelo monopólio e pela centralização do poder.

32 A par do empobrecimento da sociedade, o da acção política tornou o discurso dos governantes parente de um sermão, tal a forma como hoje se tem de encarar, por exemplo, a recriminação às filas para a aquisição de vinho, onde a posição de cada pessoa era assinalada pelos respectivos garrafões (Costa, 1978). Ora, bem mais dramáticas seriam as filas para a aquisição de pão e leite nos anos seguintes. Em todo caso, as filas para aquisição de vinho expunham o que de verniz continha o ímpeto revolucionário, preterido por um aguçado desejo ou pelo sentido de oportunidade relativo à posterior comercialização da bebida.

33 Dissemo-lo, modelado por meio de alusões ao quotidiano, o homem novo era não uma senda idealista, mas um instrumento de política, de preservação do poder e de condicionamento dos indivíduos, obrigados a observar uma moral não codificada e, por isso, insusceptível de ser observada.26 No tocante aos comportamentos, a vontade dominante era, por um lado, sussurrada, por outro, mote para uma barragem ideológica que plasmava o quotidiano local. Não se estipulava uma moral, mas, por isso, a discricionariedade suscitava receio.

34 Tal como no tempo colonial, ao poder independentista parecia vantajosa a instilação do medo. Ainda que as infracções a uma moral mal definida depois não constituíssem objecto de punição, emergia o espectro da discricionariedade. À instigação à denúncia — que o presidente Pinto da Costa distinguia da dos “bufos” à ordem da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) —, seguiu-se a instituição do Tribunal Especial para actos contrarrevolucionários27 e, em finais de 1979, depois da amotinação contra o recenseamento e da imputação de tentativa de golpe a Miguel Trovoada, do processo de rectificação,28 a considerar como um processo contínuo. 29 Aparentando suscitar a autocrítica dos militantes, apenas se induzia temor nos governados. Acto contínuo, 1980 foi instituído como o ano da participação e controlo popular.30 Seguir- se-iam, ainda, a “ofensiva organizacional” e as “actividades de emulação”. Nenhuma dessas acções teria quaisquer efeitos, apenas disseminariam o temor a que, progressivamente, os ilhéus responderiam com uma aparência de obediência.

35 Após 1975, demandou-se às pessoas que, obtido o incomensurável ganho da independência, se sacrificassem em nome do país e do povo. Para lidar com o penoso dos incessantes sacrifícios, representava-se o estado de privações como transitório. Enquanto isso, as pessoas comentavam à boca pequena a duplicidade de modos de vida dos governantes — que, note-se, muitas pessoas tinham visto crescer desde miúdos e de quem conheciam aspectos da intimidade em tudo antagónicos ao que apregoavam —, que a dignidade das funções do Estado não justificava. Tal determinava a corrosão da ética laboral que, por conveniência táctica, os governantes explicavam pelos efeitos deletérios da memória das condições degradantes da prestação de trabalho no tempo colonial.

A atitude no trabalho e o controlo laboral

36 Ao terem prometido o progresso e o desenvolvimento, as autoridades obrigaram-se a lidar com o acréscimo de expectativas associadas à independência. A verdade é que, tendo aumentado salários, nem por isso obtinham maior produção. Noutro plano, quebrar a dependência do imperialismo ou do neocolonialismo podia ser apresentado

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como um louvável objectivo político, mas não convencia porque surgia associado a crescentes privações. A crença no desenvolvimento das forças produtivas não previra tais problemas.

37 Alguma da pulsão transformista advinha das teorias da modernização em voga nos anos 1960, época da descoberta do desenvolvimento. Tais teorias propunham a superação dos obstáculos apostos pela cultura e por modos de vida costumeiros ao desenvolvimento. Essa superação era algo a ser induzido pelas elites modernizadoras, tal a concepção em que os dirigentes se tinham. Com o desígnio do desenvolvimento e como meio para o alcançar, a (eurocêntrica) ideologia socialista fornecia a caução ética e política para os propósitos voluntaristas, que, não era ignorado, iam contra relações e hábitos da terra. Por exemplo, a religião católica era vista como estranha e opressora, e a religiosidade presumidamente africana, como descartável porque retrógrada. Ainda assim, para o MLSTP, os conterrâneos poderiam persistir nas suas superstições, acreditar na veracidade da sua crença religiosa ; poderiam, até, ser veladamente reticentes às propostas políticas, mas deveriam aplicar-se no trabalho, tal o imperativo consensual em qualquer sociedade próspera e civilizada.

38 Para os independentistas, o subdesenvolvimento, considerado um intuito perpetuado pelo colonialismo, era intolerável.31 Contudo, nas ilhas, o ansiado desenvolvimento nunca poderia ser uma realidade imediata. Apesar da celebrada mudança na titularidade das roças, o modelo de propriedade ficou praticamente intocado (Eyzaguirre, 1986). A política de substituição das importações revelou-se onerosa e o acréscimo da produtividade só podia assentar no desempenho de cada indivíduo. O palavreado sobre o homem novo relacionava-se com a intenção de impor uma moral de trabalho conducente a ganhos de produtividade decorrentes do maior zelo produtivo. Tal moral não foi, nem ela nem as suas traduções concretas, objecto de discussão pública, sendo apenas mote de monólogos dos políticos.

39 Para o MLSTP, cada são-tomense tinha o dever de combater o subdesenvolvimento. Na verdade, os seus dirigentes cedo terão descoberto de que não lograriam superar o subdesenvolvimento e que, na melhor das hipóteses, estava em causa produzir para, se possível, pagar as despesas do Estado, problema agravado com a queda das cotações do cacau na década de 1980.32 Fosse como fosse, tal implicava uma compaginação do desempenho individual com o esforço colectivo ou, noutras palavras, uma maior devoção dos são-tomenses ao trabalho, assim tornado o seu principal objectivo de vida.

40 Os governantes queriam revestir a dedicação ao trabalho de uma ética transcendente. Instavam à contenção do desejo da materialidade decadente, que os são-tomenses deviam trocar pela valiosa realização em prol do progresso do nosso povo, expressão, como outras, denotadora de um paternalismo um pouco dissonante do corriqueiro nos derradeiros anos do colonialismo, quando a prestação laboral já não podia depender da coerção extraeconómica. Por maioria de razão, mormente pela contradição flagrante entre uma hipotética coerção generalizada e os lemas da ideologia socialista, os governantes são-tomenses recorreram principalmente à persuasão. Era muito mais fácil a retórica política de fundo moral do que a condução de homens no trabalho para o que os são-tomenses não tinham apetência.

41 O permanente incitamento ao empenho no trabalho justificava-se pela libertação da alienação colonial, a qual, como se disse, incluía os efeitos danosos da memória do trabalho para o colono explorador.33 A comparação entre as relações laborais antes e depois de 1975 foi formulada pelos governantes em termos ideológicos e imprecisos. Já

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os termos em que, na rua, as pessoas cotejavam as condições laborais em ambos os períodos eram politicamente mais limitados, mas, para elas, irrebatíveis. Justamente, parte da corrosão das relações de trabalho e da perda das hierarquias brotava da avaliação desfavorável do regime laboral no pós-independência, avaliação sem direito a verbalização clara no espaço público, mas operante nos ambientes laborais, o que obrigava à reverberação de tom moralista nos discursos políticos.

42 No ver dos dirigentes, os seus conterrâneos pareciam reféns de atavismos avessos ao progresso das “forças produtivas”, crucial para o futuro bem-estar. A questão era como induzir ao trabalho sem aflorar essa questão pouco grata aos são-tomenses, que a independência, apesar de suposições em contrário, não resolvera. Subsistia, pois, a questão de saber como suscitar, sem recorrer à coacção, uma ética laboral numa natureza humana que parecia fazer jus à caricatura colonial dos ilhéus como indolentes.

43 Na verdade, embora com outro invólucro, assomava a questão fulcral do colonialismo, a do trabalho.34 Mais melindrosa ainda era a questão do trabalho braçal e, em especial, o trabalho na propriedade de outrem, condição deixada para os ex-serviçais. Embalados pelas suas convicções, os dirigentes escusaram-se a ponderar a perspectiva dos trabalhadores, mormente os ex-serviçais, acerca da distribuição injusta do trabalho nas roças, que, embora nacionalizadas, eles sentiam como propriedade alheia. E para não terem de encarar o absentismo dos trabalhadores como a resposta possível à repartição injusta do trabalho e dos proventos, retratavam o alheamento e o absentismo como atitudes resultantes da alienação colonial. Ora, se para os dirigentes a nacionalização implicava a igualdade, para os trabalhadores, a assimetria não se cingia às diferenças funcionais, nem estas eram justificadas pelo diferencial de competência, antes reconhecida aos colonos, mas não aos são-tomenses que tinham os substituído na condução das roças e, aspecto crucial, deles, ex-serviçais.35

44 Como se disse, o Estado, insuflado a cada dia, dependia da receita da exportação de cacau. Para além de prevenir mobilidades sociais indesejadas, terá sido essa a razão para a nacionalização das roças, preterindo-se a criação de um tecido de pequenos proprietários. Tratava-se já não de expropriar os roceiros, entrementes afastados pelas convulsões do período de transição, mas de controlar os trabalhadores e, na posse do Estado, mediar o circuito desde a produção à venda no mercado mundial.36

45 Portanto, para além do que, a coberto de uma proposta redentora da humanidade africana, o homem novo continha de indução ao apoio ao MLSTP, esse lema desdobrou-se numa justificação do controlo da prestação produtiva dos trabalhadores que tinham de ser solidários entre si. Dada a fraca incorporação tecnológica, o crescimento dependia do empenho no trabalho braçal. No fim, a ideia de homem novo desembocava numa legitimação do controlo da jornada produtiva, mormente nas roças, curiosamente atenuada no ocaso do colonialismo. As noções que tinham passado a reger a sociedade são-tomense, incluindo a de homem novo, eram vagas. Mas diziam respeito ao acatamento da ordem e da hierarquia e ao empenho no trabalho. Nesse particular, avultava a indução ao uso esforçadamente produtivo do tempo disponível.

46 Supostamente mobilizadora, em especial para os dirigentes que a enunciavam, a meta do homem novo rapidamente foi percebida como um ónus, que só servia para fundamentar exigências, por vezes inapropriadas por desconhecimento das tarefas e cada vez mais despropositadas em razão da célere erosão dos salários. O desígnio do homem novo afigurava-se um ónus por evidenciar a assimetria de poder e a desigualdade

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entre quem o apregoava e quem a ele tinha de corresponder. Diga-se, convictos da bondade dos seus propósitos — que implicavam, entre outras diferenças, a existente entre mandar e trabalhar —, alguns dirigentes prescindiram de imaginar o quanto os ilhéus e os ex-serviçais se alheariam das noções de progresso e de trabalho e, bem assim, de se engajar na criação de um homem novo, pouco atractivo ante a vida de que tinham sido espoliados. Tratou-se de uma resistência passiva, mas, a prazo, bem mais corrosiva do que a anteriormente movida contra o colonialismo. Afinal, e malgrado o autoritarismo do regime de partido único, a introdução do juízo político desnaturalizara as relações sociais e as assimetrias políticas entre os são-tomenses. Em razão do ideário anticolonial, a diferença racial do colonialismo passara a parecer injusta e falha de sentido. Mas, também após 1975, contra a afirmação de que todos eram iguais se sentia a diferença entre governantes e governados, aliás, evidente nas coreografias do poder.

47 A noção de homem novo, na aparência uma novidade, revelava que nem o paternalismo nem a moral se arredavam do juízo político. Na circunstância, os apelos ao trabalho ombrearam com caracterizações de personalidade dos são-tomenses. Conforme salientou o “camarada presidente Pinto da Costa” num comício alusivo ao Plano, importava combater o vício do egoísmo, um mal existente no país : “primeiro eu, segundo eu, terceiro eu, quarto eu e quinto, se sobrar alguma coisa, ainda dificilmente dou a alguém”.37 Fosse o egoísmo um traço de personalidade, fosse uma atitude decantada pelo colonialismo, o certo é que sobrevivia. Talvez a explicação também se relacionasse com o facto de nem a insegurança causada pelo horizonte de privações infindas, nem a assimetria entre dirigentes e governados fomentarem sentimentos solidários.

48 Pinto da Costa não podia deixar de fazer fé no que ele mesmo dizia ainda não se observar, a saber, “um andar lento sim, mas certo na criação do ‘Homem Novo’ aqui no nosso País”. Em contrapartida, concretizava, “há ainda ‘Homens Velhos’, muito velhos” que, a despeito do esforço colectivo, “continuam a roubar o Povo”, na circunstância, a não trabalhar. Asseverava, pois, “dentro das estruturas criadas a nível do Estado a nível das Empresas, mesmo aqueles que não queiram cumprir, aqueles que são preguiçosos são obrigados a fazê-lo”.38 Como outras, esta revelar-se-ia uma jura vã.

49 Chegara-se, pois, à constatação de que a “socialização dos meios de produção não modificou automaticamente o comportamento secular do trabalhador perante o trabalho imprimido pelo sistema colonial”. Ao invés, a estatização gerara noções erradas “sobre o papel do trabalho na formação da nova sociedade que todos aspiram” — concretamente, a da possibilidade de trabalhar menos, um erro resultante da falta da consciência do trabalhador sobre o facto de se ter tornado proprietário.39

50 A ideologia socialista e o lema do homem novo turvavam a interpretação da realidade que se queria vergada aos intentos voluntaristas de transformação social. Independentemente das promessas do período de transição, era de presumir que os trabalhadores, tendo em mente a fasquia das demandas laborais atendidas no ocaso do colonialismo, esperassem outras consequências do facto de passarem a ser proprietários (ou de lhes dizerem que o eram), que não a de terem de trabalhar mais por isso, quando, ademais, essa exigência não recaía sobre todos por igual. Ao contrário da visão dos governantes, para os trabalhadores, o facto de se terem tornado proprietários não se traduzia em benesses palpáveis. Afinal, laborava a ideia da honra de não ter de trabalhar, privilégio que passara dos administradores das roças para os

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dirigentes e de que, de certo modo, se beneficiavam igualmente os funcionários do Estado.

51 Era dito, perante as dificuldades económicas com que o país se deparava, a baixa de produtividade podia fazer fracassar os intentos políticos “se não houver uma tomada de consciência, ao nível nacional, sobre a situação real do país, e se não houver um engajamento de todos sem excepção para modificá-la”.40 Na realidade, não existia tal engajamento, sucedia até o inverso, porque paulatinamente se arreigava a convicção de que, para o destino do “país”, os esforços de todos e, sobretudo, de cada indivíduo eram irrelevantes.

52 As raras interpelações acerca da pertinência dos diagnósticos e das soluções políticas impostas eram tolhidas com argumentos de autoridade, expediente à primeira vista pouco consentâneo com desígnios revolucionários, mas conveniente à implantação da vontade dos mandantes por meio do centralismo democrático.

53 Durante anos, a invocação de argumentos de autoridade sobrepujou qualquer debate. A entrega do corpo replicava-se na rendição do espírito, na abdicação do direito de duvidar em nome da vontade colectiva e da sapiência da liderança, tais os quesitos de uma espécie de vinculação orgânica que fazia de cada ilhéu um são-tomense autêntico. Por exemplo, acerca de um modelo de ensino pressupostamente baseado na ligação da teoria à prática, era dito, “os cubanos sabem porque eles fizeram uma revolução cultural”, máxima reproduzida porque ditada de cima, não por se conhecer muito acerca da “revolução cultural”.

54 O curso desses argumentos tinha um papel político, a saber, o da autolegitimação, o de, por entre medos, calculismos e oportunismos, firmar lealdades e obediências às chefias. Embora aparentasse pugnar pela mudança, o MLSTP queria, por um lado, a sociedade tutelada e, por outro, a mobilidade social e a emergência de elites controladas desde a cúpula. Não espanta que a crítica ao individualismo caminhasse a par da concentração de poder e que não sobrasse lugar para apegos e afeições que disputassem tempo e espaço à lealdade para com a liderança política.

55 Éplausívelconsiderartaisatitudescomoderivadasdapobreculturainstitucional legada pelo colonialismo, cujas instituições observavam procedimentos legais, mas desprovidos de legitimidade política. Após a independência, tal fraqueza institucional foi potenciada pelas convulsões políticas e, mais decisivo, pela aliciação implícita ao enfileiramento — por meio das organizações ditas de base, da juventude, dos trabalhadores, das mulheres e dos pioneiros, na verdade, organizações vocacionadas para a demonstração pública de apoio ao MLSTP e ao líder, Pinto da Costa — com as chefias dotadas de uma autoridade geralmente indiscutida. O acatamento proporcionava as trajectórias ascensionais, isto é, os favores dependiam da lealdade e da anuência acrítica.41 Tal resultava num bloqueio do pensamento e da acção no tocante a propostas, económicas e outras, eventualmente inovadoras. A creditação cega ou temerosa, que, invocando a ideologia, se fazia da liderança paralisou os indivíduos e a sociedade, desde logo desincentivando os esforços de inovação ou de debate, à partida encarados como causa de entropia ou desqualificados pela presunção de serem motivados por interesses pessoais.

56 Ao crescendo de exigências, a espaços acompanhadas da retórica da autocrítica dos dirigentes, sobrevieram a passividade e a duplicidade do grosso da população. Tais condutas tornaram-se o estratagema dos “de baixo”, que, embora inicialmente

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temerosos, paulatinamente foram percebendo a inconsequência das ameaças de punição.42

57 Não podendo ser abertamente coerciva, a indução ao trabalho requeria um ambiente onde a autoridade se fazia presente (que a capacidade de mando efectivo conhecesse uma rápida erosão era uma constatação que não tinha outra consequência que a insistência em ameaças veladas de sanção), mormente por meio da retórica que, pretendendo ser política, era moral. Mas, a cada dia, as ordens perdiam carga impositiva ; disseminava-se a ideia de que, não podendo ser contrariadas, as ordens se destinavam a não ser cumpridas, para o que, por exemplo, se podia alegar falta de meios. Da mesma forma, a dado passo, poucos ligariam aos incentivos nos discursos dos governantes, alguns dos quais terão sido sentidos como ameaças, mesmo se não eram pronunciados como tal.

58 Como se referiu, na propalada alienação legada pelo colonialismo incluía-se a repulsa ao trabalho resultante da memória das condições degradantes impostas pelo regime colonial. Ora, presumindo-se essas removidas com a independência e a nacionalização das roças, não se justificava a subsistência de tal resíduo da alienação colonialista. Sem menção à moral “burguesa” ou europeia relativa ao trabalho, a libertação da alienação43 não podia significar a dissipação do tempo. De caminho, não se aludia à recusa do trabalho braçal e na terra como um traço da demarcação perseguida pelos ilhéus44 perante os ex-serviçais. Diferentemente, adoptava-se um discurso positivo ante os ex- serviçais, que, todavia, era contrariado nas práticas laborais nas roças e que, previsivelmente, não apagava as desvantagens em relação aos ilhéus.

Contra os costumes da terra, o homem novo

59 Na aplicação do modelo socialista, mimetizavam-se as cartilhas soviética e cubana, sem equacionar a adaptação local do socialismo e, sobretudo, sem cuidar de tradições africanas, imputáveis ao atraso das forças produtivas, por um lado, e esperançosamente condenadas a definhar, por outro. Mesmo quando se consideravam os valores da terra (incluindo a sua tradução folclórica) como traços idiossincráticos — pressupostamente distintos dos valores dos colonos, em que parte dos são-tomenses diferenciados fora socializada —, os independentistas trocavam de bom grado os traços da terra pela ideologia socialista. Noutros termos, os independentistas nunca gizaram fazer do Estado um instrumento de promoção da identidade nacional relacionada com uma dada cultura que eventualmente contradissesse os seus propósitos políticos e a sua ideologia.

60 Com efeito, mesmo se no plano retórico prestavam homenagem a particularismos locais, os dirigentes do MLSTP precisavam de os desvalorizar para que eles não se opusessem à sua proposta de transformação da natureza humana. Os valores da terra politicamente relevantes, isto é, com impacto social não seriam forçosamente os artefactos culturais, as crenças ou os hábitos. Prezar-se-ia, quando muito, o que esses artefactos ou hábitos propiciavam de conforto dos indivíduos, conciliando-os com a vida e a condição humana. Nalguma medida, os valores da terra — os de uma sociedade imobilista, na qual o fechamento de horizontes estava interiorizado e era encarado como natural — estavam corporizados numa pequena elite, que era cosmopolita, individualista e, pouco tempo antes, estava acomodada à situação colonial (que, aliás, aquela elite não descrevia como tal). Foi essa acomodação que, após 1975, o MLSTP invectivou e quis trocada por um vínculo orgânico, de natureza política, conducente à

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modernização e à transformação social, em resultado do que esse movimento se perpetuaria no poder, isto é, na condução do povo.

61 Em tese, o apego aos costumes ou aos imaginados valores da terra não colidia com a obediência política, com a fidelidade à condição de são-tomense, naqueles anos aferida pela adesão ao MLSTP.45 Mas os dirigentes não resistiram à propensão voluntarista, concretamente, a afrontar as práticas da terra que teriam por nocivas ou retrógradas.46 Por isso, tentaram-se a combater a feitiçaria, prendendo os feiticeiros.47 Tal como sucedera na fase do colonialismo pautada pelo crescendo do racismo e pela ostentação da força, o propósito de afrontamento de modos de vida de populares politizou dilemas e atitudes que, noutras circunstâncias, não teriam relevância social.

62 Justamente, a superioridade moral arrogada pelas autoridades quedava amputada pela sua visão pouco compreensiva, antes meramente normativa e baseada na coerção. Assim, os dirigentes mostraram-se incapazes do entendimento da crendice ou do feiticismo como, por exemplo, uma atitude de refúgio, quiçá determinada por uma compreensão do mundo e de escolhas mais limitadas do que as deles, políticos. Tal como no tempo colonial, os dirigentes enveredaram pelo alarde de força contra quem não a tinha.48 Ao invés do observado no ocaso do colonialismo, a independência anunciava-se por um acréscimo de violência simbólica, e não só do Estado. Aos governantes, alguns deles não imunes a um inconfessado receio do feitiço, terá restado repetir as acusações sobre o charlatanismo dos feiticeiros ou, em alternativa, o silêncio sobre a inconsequência da citada atitude de força.

63 Se noutros países africanos o processo de indução do homem novo visava forjar uma homogeneidade social contra os particularismos etnolinguísticos e, simultaneamente, formar uma consciência modernizadora avessa a afloramentos tradicionalistas e retrógrados,49 aos governantes são-tomenses, pouco dados à teorização, animava-os o propósito de uma transformação social e cultural que pressupunha relegar para segundo plano ou mesmo erradicar os atavismos entendidos como reminiscências do colonialismo ou do atraso dele decorrente.50 No limite, acreditava-se que tais atavismos retrógrados se esvaneceriam por via do progresso das forças produtivas. Quando assim não fosse, restava a indução do Estado, que, por escolha dos seus dirigentes, se revelava um Estado de pendor autoritário e cioso de ser um guia em todos os domínios da vida colectiva e, até, em aspectos da vida individual.51

64 Porém, talvez os dirigentes lidassem menos mal com o que considerariam crendices do que com o apego aos signos de outrora. Como dizia Pinto da Costa, ainda existiam “no nosso País pessoas complexadas que só se sentem bem em companhia daqueles com quem podem conversar sobre o tempo passado juntos, no Rossio, no Bairro Alto, sobre os beberetes nas caves de Lisboa, ao som do fado e guitarradas. Trata-se de pseudo- africanos, complexados, sem personalidade, que não se identificam com coisa alguma, que vivem num mundo à parte, diferente do das massas populares” (Costa, 1978 :II, 88). A coberto da denúncia de um apego serôdio ao passado, aflorava uma definição de cidadania — são-tomense e do mundo52 — mutilada, desde logo, pela sujeição dos desejos e das necessidades aos limites definidos pela ortodoxia política (e pela dominação que ela servia), a que acrescia o alinhamento político sugerido aos ilhéus na esteira da opção do país pelo lado (presumidamente) certo da história.

65 Ora, mesmo quando se lhes pregasse que o objecto do seu afecto eram os seus e a sua terra, os são-tomenses não podiam deixar de sopesar as suas vidas, concretamente o empobrecimento após 1975, e daí concluir que a independência não tinha de se revestir

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dos contornos políticos impostos pelo MLSTP. Tampouco tinha de implicar a privação da liberdade individual, mais amputada ainda do que o fora nos derradeiros anos do colonialismo.

66 O homem novo foi uma manobra de enleamento com vista a criar uma base de apoio ao MLSTP e a prevenir dissensões nas “massas”. Não chegou a ser um meio de cerzir as fissuras abertas pela desilusão porque, perante a redução do homem novo ao esforço produtivo, rapidamente se esboroou o élan do homem novo e do socialismo. Não deixa de ser interessante que, em inícios da década de 1980, se falasse em criar o Partido, intenção que logo se deixou cair. Depois, a seca de 1983-1984 deitou definitivamente por terra as ideias socialistas.

67 Diga-se, se em algum momento após 1975 se julgou possível inculcar uma identidade nacional53 — próxima da lealdade a um desígnio socialista, muito identificada com o homem novo e contra os valores da terra —, era também por se perceber que tal identidade não existia ou que, noutros termos, o apego à terra e um certo sentimento de irmandade entre os são-tomenses não tinham tido uma tradução política, mormente contra o colonialismo. Logo, em vez de uma identidade nacional, de conteúdo cultural, ensaiou-se inculcar uma identidade política, que resumiria o empenho dos são- tomenses na construção do socialismo na sua terra. A promoção de uma identidade nacional, isto é, de uma cultura nacional ou da terra foi subalternizada, para não dizer desprezada, diante da ideologia socialista.

68 Fosse como fosse, a via política, proposta em 1975 e desde então cada vez mais imposta, colidiu não com uma idiossincrasia da terra, decantada e celebrada desde o tempo colonial, mas com o gradual alheamento dos são-tomenses, que fez desmoronar o homem novo, ao mesmo tempo que minava a legitimidade de governantes desacreditados quer pelas crescentes privações sobrevindas com a independência, quer pela distância afectada ante o comum dos ilhéus. Anos antes da mudança do regime monopartidário para a democracia representativa, já o homem novo morrera. Morrera ainda antes dos primeiros sinais do reconhecimento pelos governantes do falhanço da via encetada em 1975.

Notas conclusivas

69 Diversamente dos casos angolano e moçambicano, onde o homem novo pressupostamente também corresponderia a uma identidade nacional a inculcar nos indivíduos e a sobrepor-se a particularismos etnolinguísticos e culturais, no arquipélago equatorial, no plano da vida colectiva e social considerado uma sociedade tendencialmente homogénea, a meta do homem novo prendia-se com o desejo de imposição de uma visão do mundo e de uma ética conforme ao projecto político socializante do MLSTP, desígnios em tudo diferentes do que pautara o quotidiano dos ilhéus até à independência.

70 Quanto pesa a manipulação do desejo e da necessidade nas possíveis configuração e condução dos processos políticos, mormente dos desencadeados por alterações políticas de vulto ? E, não menos importante, de que modo o condicionalismo dos comportamentos altera a memória dos factos ? Essas são as perguntas a responder em ulteriores trabalhos. Deixo, porém, uma anotação pessoal : conhecendo algo da vida em São Tomé e Príncipe na era colonial, tendo observado a progressiva lassidão dos imperativos da revolução, óbvios a partir de meados da década de 1980, tendo presente o

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curso da política e da sociedade após 1990, revelou-se elucidativa, para não dizer espantosa, a observação da mutação dos comportamentos pela qual as pessoas, depois das convulsões do período de transição para a independência, se adequaram, ao menos aparentemente, aos objectivos do MLSTP.

71 Ainda que, em razão da omnipresença dos chavões alusivos à revolução e ao socialismo, pareça paradoxal, ensaiou-se a supressão da política. Qual extensão ou consequência do desafio de desalienação, assente no despojamento dos interesses supérfluos e na busca da superioridade moral, a condição de são-tomense passava (de forma não declarada) pela abdicação da luta pelo poder e da competição social, pela aceitação apriorística da bondade da governação à luz da presunção de que as palavras dos dirigentes reflectiam a realidade. Enchendo o quotidiano de um palavreado político eivado de moral, queria- se erradicar a luta política, que não poderia brotar senão de vaidades pessoais. Conquanto pudesse não ter sido elaborado para esse efeito, o discurso do homem novo acabava por servir para dissimular duplicidades e contradições, por adquirir o carácter de discurso moral a que, porém, faltava uma contumaz dimensão coerciva. Concebido de forma voluntarista, o homem novo era uma reificação com que, afinal, se pretendia responder à essencialização dos são-tomenses traçada com acrimónia ou com condescendência nos discursos coloniais.

72 Entre os ilhéus, talvez o homem novo nunca tenha sido levado muito a sério, sobretudo a partir do momento em que o que avultou foi a demanda de mais trabalho. Tal desígnio dos governantes poderá ser interpretado como uma racionalização para um novo, embora dissimulado, projecto de engenharia social assente na denúncia da aversão ao trabalho manual, entre outros aspectos. Libertando-se da alienação incutida pelo colonialismo, os ilhéus deviam adoptar uma atitude mais empenhada no trabalho, mormente no trabalho braçal. Porém, só o facto de, convocando ao trabalho esforçado, tal lema implicar o estreitar da distância entre ilhéus e ex-serviçais já constituía motivo para uma resistência (não declarada) dos ilhéus, que, evidentemente, não se convenciam com o engajamento performativo dos dirigentes nas roças, aquando das jornadas de trabalho cívico.

73 Impõe-se, por fim, avaliar o papel do saber social que, anos a fio, como que secundou um estatismo pós-colonial, o qual, em vez do propalado, cobria a reprodução e a ampliação de assimetrias sociais e políticas. Tais assimetrias não eram assimiláveis às do colonialismo por a sua imoralidade ser sanável no seio das sociedades tornadas independentes. Mas, nalguns casos, não terão sido menos gravosas, porque a intrusão estatal não terá sido menos opressiva do que em certas fases do colonialismo.

74 Com laivos de continuidade ante o paternalismo do discurso dos derradeiros anos do colonialismo, pareceu que o homem novo assentara arraiais, mas, muito mais cedo do que alguns terão imaginado, quer a incomodidade a nível interno, quer as mudanças no mundo minariam, primeiro, e desmentiriam, depois, tal percepção.

75 Contra todo o saber teórico (feito uma réplica do voluntarismo político, que, ao tempo, parecia aceitável para os cientistas), a proposição saiu precisa e contundente (em termos hoje considerados rudes) da boca de um são-tomense em inícios dos anos 1980 : “isto do comunismo com o preto não dá…” Em São Tomé e Príncipe, todos sabiam isso, muito antes de, por fim, todos disso terem dado pública fé.

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NOTAS

1. Apesar da microinsularidade, da extroversão económica, da rala diversidade económica social e da quase nula dinâmica de acumulação interna, os são-tomenses compunham um tecido social que se diferenciava daquele dos serviçais importados para trabalhar nas roças. Todavia, devido à marginalidade a que foram condenados por décadas de políticas de favorecimento dos roceiros e demais colonos, a diferenciação entre os são-tomenses não era muito pronunciada. Também por isso foi relativamente fácil aos independentistas tratar os seus conterrâneos como um todo social homogéneo. Aos falarmos de são-tomenses, como que pressupondo uma dada homogeneidade, estaremos, mais do que a incorrer num simplismo equivocado, a salientar a perspectiva de que os ilhéus eram encarados — como povo ou massas — pelos seus conterrâneos independentistas fiados no poder mobilizador e transformador da sua ideologia. Na verdade, para além do que continha de induzido pela exaltação com a independência que desagravava anos de rebaixamento social, a presunção de uma partilha de interesses entre os são-tomenses derivava do lastro da definição racializada da nação colonial, que, durante décadas, tendera a excluir dessa nação os colonizados. A par disso, a aceitação dos ideais socialistas decorria de uma matriz cultural parcialmente europeizada, o que, de resto, levou vários autores a considerar que, mais do que africano, o arquipélago seria crioulo (uma discussão que não cabe neste trabalho). 2. A ideologia trazida pela independência só não foi mais inimiga da cultura popular pela inconsequência da política voluntarista dos dirigentes. O propósito dos independentistas era trocar a cultura retrógrada — um reflexo do atraso das forças produtivas ou um resquício colonial — pela redentora ideologia socialista. Ao tempo, a noção de cultura era instrumental. Hoje, todos se rendem à cultura e à identidade, designadamente, à são-tomensidade. 3. Ao contrário do que por inércia se pensa, só o facto de se ter trocado a bandeira portuguesa pela são-tomense nas vestimentas dos grupos folclóricos indicia que não existia um destino político natural para as ilhas. 4. Em todo caso, tal resistência não teria impedido nem a dominação política, económica, cultural e ideológica da população são-tomense pelos colonos durante séculos (por exemplo, Costa, 1978), nem a alienação daí resultante, pois que se a impunha extirpar após a independência. Evidentemente, não se indagou como é que resistência e dominação tinham coexistido nos termos comummente referidos. Na verdade, ninguém se questionou por, no meio da propaganda política da época, tais asserções terem passado a ser lemas autorreferenciados. 5. Na circunstância, a posição portuguesa rapidamente passou a ser a de alijar o que se entendia ser uma carga sem interesse económico ou estratégico. 6. A sobreavaliação da adesão popular às propostas socialistas ocorreu noutros países (para o caso de Moçambique, veja-se Cabaço, 2010). Restará saber em que medida tal sobreavaliação da adesão aos projectos socializantes, em parte explicável pela conjuntura política das independências, resultava da distorção provocada pelo enfoque ideológico ou era duplicemente acalentada como justificação de um vanguardismo voluntarista e da posição de poder. 7. Nem a microinsularidade justificaria uma equivocada concepção do grupo dos dirigentes como um grupo homogéneo, imune a clivagens e a dissensões que, de resto, irromperiam nos primeiros anos após a independência. Porém, antes da independência eram efectivamente poucos os militantes do MLSTP. Depois da independência, o MLSTP recrutou militantes e alargou a sua base de apoio, mas, por via do centralismo democrático, eventuais divergências eram caladas e a militância era mais uma transmissão das directivas do partido do que um fermento de reflexão e discussão política. De forma crescente, a rua percebia os dirigentes como os envolvidos na política

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e próximos da cúpula do MLSTP, logo, distintos do comum dos são-tomenses. No escopo deste texto, não cabe uma investigação sobre as dissensões que só viriam a ter consequências políticas em finais da década de 1980, prenunciando o fim do regime de partido único. 8. Diferentemente da situação vivida em Cabo Verde — ver, por exemplo, testemunho de Germano Almeida, citado em Lopes (2002). 9. A essa distância, dir-se-ia que a importação da luta pela independência ocorreu a destempo porquanto, após o 25 de Abril, as autoridades portuguesas foram rapidamente evoluindo para a negociação da independência com os movimentos de libertação internacionalmente reconhecidos. Pautada pelo permanente desafio às autoridades do período de transição, mesmo quando já integravam elementos do MLSTP, a actuação da Associação Pró‑MLSTP acabaria por ser sentida como radical, como criadora de acrimónia entre os são-tomenses, pelo que o seria o próprio MLSTP a neutralizar politicamente os jovens da Cívica (Seibert, 1999). 10. Chamadas de roças no arquipélago, as fazendas de café e, posteriormente, de cacau foram o esteio da economia colonial. Diferentemente do sucedido noutras ilhas, os trabalhadores importados — designados serviçais — permaneceram nas roças, que, enquanto estrutura económica, sobreviveram à própria independência. Tendo sido nacionalizadas, permaneceram como esteio económico, agora conduzido por ilhéus que substituíram os roceiros e administradores brancos. No tempo colonial, os roceiros laboravam no sentido de impedir a integração social dos trabalhadores no meio local. Por isso, bem como por preconceitos recíprocos, serviçais e ilhéus viviam como que apartados. Nos derradeiros anos do colonialismo, alguns serviçais cabo-verdianos tendiam a identificar-se com os patrões, mais do que com os são- tomenses. 11. Acerca do marxismo e do socialismo como emblemas da libertação de África, veja-se, por exemplo, Arnold (2005) ; sobre as razões e justificações com que os dirigentes nacionalistas das colónias portuguesas optaram pelo socialismo real ou “científico”, veja-se Macamo (2012). Divergiria de Macamo no sentido em que, embora entendendo a radicalização política como fruto da luta prolongada, não deixaria de ponderar o quanto essa radicalização também teve de escolha dos dirigentes então chegados ao poder. Sem admitir essa carga volitiva, a radicalização política acaba por justificar as opções de que hoje os governantes de antanho se pretendem demarcar pela mera rasura da história. 12. Na prática, assistia-se à concentração de um crescente poder num grupo cada vez mais restrito, o que tornava irrelevantes as diferenças entre serviçais e ilhéus — diferenças que as políticas sociais e o tempo também atenuariam. 13. Tratava-se de uma definição acessível, chã, de neoimperialismo (Costa, 1978). Com isso, abria- se o caminho a uma imaginada luta de classes. 14. Para os pensadores de esquerda, propugnadores de uma sociedade igualitária, mesmo se à custa do abandono de culturas tradicionais, as mudanças implicavam a adopção de valores eurocêntricos (Falola, 2003), como o apego ao trabalho. Assim sucedeu no arquipélago. 15. Poderá considerar-se que essa designação contém uma subliminar carga valorativa, em detrimento de um desejável veio explicativo. Ora, tal designação atém-se à natureza do discurso, mais repetitivo do que elaborado, destinado a obter a adesão dos ilhéus aos lemas e objectivos dos dirigentes. Ao prometerem amanhãs ridentes para a ocasião da consecução de metas produtivas e do desenvolvimento, sempre inalcançados, os governantes justificavam-se quanto ao não cumprimento das suas promessas. A designação de palavreado, sugerida pela noção de duplipensar — parafraseando Gellner (1995), a da adesão ostensiva a um dogma, na circunstância, o marxismo, apesar da crescente convicção na sua falência perante a resiliência da realidade social — remete menos a conteúdos doutrinários (não valerá muito a pena discutir o grau de reflexão e de interiorização do marxismo) do que a uma descrença calada, mas crescente, entre os governantes quanto aos caminhos impostos aos seus concidadãos. Fosse como fosse, enquanto não se perfilaram outros horizontes políticos, os dirigentes são-tomenses não cessaram de aludir

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a lemas marxistas — por exemplo, o do centralismo democrático — e de tentar baixar a fasquia dos desejos e das necessidades em nome do homem novo liberto da alienação do capitalismo decadente. Relativamente a Moçambique, no tocante à progressiva perda de sentido da noção de homem novo como “fraseologia” sem adesão à realidade social, tornada progressivamente numa “cópia desgastada de si mesma”, veja-se Macagno (2009). Na realidade, só por força de se querer crer num futuro cenário político se ignorou a complexidade da realidade social, que não era apenas a da pluralidade dos grupos etnolinguísticos, mas, por exemplo, a da complexificação da vida e da cultura urbana, de que a visão ideológica de inspiração marxista e a noção de homem novo não davam conta ; antes, pretendiam conter. 16. Conforme Macagno, “o homem novo é, em última instância, um produto, cuja pureza nunca se termina totalmente de alcançar” (2009 :23). Assim se justifica a constante injunção à adesão aos objectivos da chefia política. 17. Adiante-se que, em São Tomé e Príncipe, apesar do voluntarismo político do pós- independência, a animosidade contra técnicos ou intelectuais foi escassa, não só pelo ambiente cultural rarefeito, quanto também por os poucos indivíduos academicamente diferenciados logo se terem tornado ideólogos e políticos. Enquanto isso, todo o saber foi secundarizado perante a ideologia ; veja-se, por exemplo, Nascimento (2007). 18. A exemplo do sucedido em Moçambique, a importação para o campo dos nacionalistas dos males a combater pelos revolucionários (Cabaço, 2010) foi um processo adoptado em São Tomé e Príncipe. Ali, a discussão política era substituída por alusões aos desvios morais, de que, como noutros países, os únicos isentos de pecado seriam os dirigentes ou, mais precisamente, o dirigente ou o líder. 19. Tal a garantia de uma pátria renovada. Cf. Revolução, nº 3, 22 de agosto de 1975, pp. 3 e 7. Revolução era um jornal do Ministério da Informação, que começou a ser publicado em São Tomé após a independência. Foi o jornal do regime de partido único. Sua periodicidade tornou-se irregular. 20. Recuperando um veio organicista e comunalista do pensamento social, o ideário socializante do MLSTP considerava que o ilhéu não era individualista ; antes, pertencia a uma cultura e a uma sociedade cujos valores e pressupostos interiorizara (Gellner, 1995) ou, na circunstância, interiorizaria depois de libertado da alienação colonial. Essa visão permeou os ideários nacionalistas, tornando-se quase uma norma. 21. Em Angola, a palavra de ordem da construção do homem novo foi inscrita no hino nacional. Acerca do intento de sobreposição de uma identidade nacional, baseada no homem novo, aos particularismos culturais das várias nações ou ex-nações em Angola, veja-se Araújo (2005). Todavia, convirá não perder de vista que, em vários países, entre eles São Tomé e Príncipe, a imposição de padrões culturais sintetizados no homem novo era menos uma questão de cultura do que de sedimentação do poder, que passava pela imposição de uma ideologia equiparada a uma cultura ou identidade nacional. 22. De acordo com Couto (1997), os militantes do MLSTP eram movidos pela convicção de estarem empenhados numa missão revolucionária — a que se opunham inimigos internos e externos — de construção de uma pátria renovada, que passava pela construção do homem novo, liberto da mesquinhez do egoísmo, do oportunismo e do individualismo. Essa caracterização aplicar-se-á ao clímax da exaltação com a independência. Mas um tal sentimento de comunhão finou-se pouco depois. 23. Em termos comparativos, veja-se Cooper (1993). 24. Contudo, não se pode excluir a hipótese de que, na boca de alguns dirigentes, o diferimento das promessas correspondesse a uma desculpa que camuflava a duplicidade, crescente à medida que avultavam as dificuldades de concretização das promessas independentistas.

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25. Tema tão mais frequentemente lembrado nos comícios quanto era apropriado como justificação (não necessariamente percebida como enviesada) das dificuldades experimentadas no pós-independência. 26. De acordo com Macagno (2009), o homem novo socialista ou comunista tornou-se uma expressão usada tanto por seguidores quanto por detractores do comunismo desde os anos de 1920. Tal noção implicava não apenas a transformação da ordem económica como também uma transformação da personalidade dos indivíduos. Não se lograva tal engenharia social e moral sem alguma tortuosidade e violência. 27. Revolução nº 55, 1º de setembro de 1979, p. 5. 28. Nas intenções, um procedimento mimético do levado a cabo em Angola na sequência do golpe de 27 de Maio. 29. Revolução nº 60, 15 de dezembro de 1979, p. 1. 30. Revolução nº 61, 15 de janeiro de 1980, p. 1. 31. Deste modo, o colonialismo não se resumia à dominação indevida dos europeus ; antes, estendia-se aos efeitos da dominação internacional do capitalismo, tal a interpretação dos líderes nacionalistas das colónias portuguesas (Macamo, 2012). 32. Diferentemente de Angola, onde a extracção petrolífera permitia ao Estado prescindir da restante actividade económica, em São Tomé e Príncipe, a produção de cacau era vital. 33. A ideia de que a renitência ao trabalho provinha da memória do trabalho gravoso no regime colonial tinha algo de enviesado e, provavelmente, de dúplice. Tratava-se de uma visão não discutida por paternalismo ou conveniência, que denotava a abdicação de interrogar as relações de poder no pós-independência. 34. No final do colonialismo, em tempo de apaziguamento político, os portugueses tinham retornado à convicção de que os são-tomenses tinham algumas das qualidades de “civilização”, conquanto não fossem diligentes. À boca pequena, essa caricatura terá corrido entre os dirigentes no pós-independência. Só recentemente é que os governantes recuperaram as menções à necessidade do trabalho. Porém, dados o fosso entre ricos e pobres e a desconfiança acerca das origens ilegítimas da riqueza dos políticos, qualquer alusão à necessidade de trabalhar queda imediatamente desqualificada. 35. Podemos pensar que a adopção do socialismo e, em particular, das nacionalizações tinha a ver com uma concepção da época que os militantes do MLSTP adoptaram por conforme à evolução do mundo e economicamente mais eficaz. Igualmente podemos supor que os dirigentes do MLSTP tenham elaborado sobre as vantagens de uma estatização das roças e do comércio para efeitos de apropriação de uma renda a favor do Estado e de si próprios. Terão calculado que a cativação da renda das grandes propriedades ou roças seria mais fácil e politicamente menos onerosa do que a extracção do sobreproduto dos pequenos proprietários independentes em que, pela divisão das roças, se poderiam ter tornado os ex-serviçais (hipótese que, no período de transição, certamente formou as expectativas destes, mormente os cabo-verdianos). Mas não contaram com a desmoralização da força de trabalho imigrada, que não via vantagens na nova situação. 36. Em termos comparativos, acerca quer da expropriação do excedente do tecido rural pelos governantes, factor de atraso em África, quer das premissas de reversão desse quadro indutor de subdesenvolvimento, veja-se Mbeki (2009). 37. Tratava-se do Plano 79, um guião de actividades e objectivos a serem alcançados nos vários sectores de actividade económica, apresentado num comício público provavelmente em inícios de 1979. Veja-se o jornal Revolução, nº 46, de 23 de fevereiro de 1979, pp. 4-5. 38. Revolução, nº 46, 23 de fevereiro de 1979, pp. 4-5. 39. Revolução, nº 53, 15 de julho de 1979, pp. 6-8 e 11. 40. Revolução, nº 53, 15 de julho de 1979, pp. 6-8 e 11. 41. Uma tentativa de reabilitação do papel do MLSTP não deixa de apontar o desvio relativamente aos seus supostos objectivos. Para Couto (1997), perdeu-se o espírito colegial à

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medida que se verificou a concentração de poderes nas mãos do presidente, a serviço de quem o MLSTP acabou por se colocar. Sendo o presidente do MLSTP um superior hierárquico relativamente ao Bureau Político, da iniciativa e da autoridade colegiais passou-se a um sistema guiado pela vontade um indivíduo. Em detrimento do espírito inicial do MLSTP, as instâncias do partido passaram a executar a vontade do líder. Ao mesmo tempo que todos os privilégios iam para o governo, as bases sentiram-se abandonadas pela cúpula. A visão algo de idílica de Couto patenteia-se na ausência de interrogação quanto ao papel do líder do partido e presidente da República, Pinto da Costa, como se tais desvios tivessem ocorrido ao arrepio da sua vontade. Aliás, não se tratava de desvios, mas do corolário da ideologia socializante e da estruturação do MLSTP de acordo com a rigidez do centralismo democrático. 42. Uma perspectiva voluntarista e simplista poderá ver nessa duplicidade uma reminiscência da resistência passiva do tempo de escravatura. Sem descartar tal relação, as atitudes esquivas ou dúplices eram fruto de uma cultura institucional portuguesa, em muito debilitada pela ditadura. Para a aparente regulação institucional contribuíra a previsibilidade dos procedimentos administrativos e a contenção política e social facilitada por se tratar de uma ilha, o que, tal como em Portugal, suscitou a duplicidade, o fingimento de obediência, o atendimento à conveniência social. Em parte, essa atitude passou do tempo colonial para o pós-independência. 43. Na época, tal não era sinónimo de uma (hipotética) africanização da vida, mas, sim, de denodo no trabalho em vista do bem colectivo e do progresso. 44. Hodges e Newitt (1988) lembraram o antagonismo ou a demarcação dos ilhéus perante os serviçais. Para eles, os ilhéus eram permeáveis a concepções elitistas e enjeitavam a identidade africana. O trabalho braçal era desdenhado. A alienação sociocultural, não completamente dissipada pela independência, era um obstáculo à formação do homem novo. Embora de acordo com essa interpretação, realçaria o quanto de artificial tinha a ideia de alienação, ideia da qual, todavia, os dirigentes não prescindiam. 45. Se quisermos estabelecer um paralelo, lembremos que, de acordo com Gabriel Fernandes, a luta de Cabral pelo homem novo, além de denotar a preocupação humanista, deixava subentendido que ele não se guiaria por “um apego ingénuo ao lugar e à tradição” (2006 :207). Também em Angola, na segunda metade dos anos 1960, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) evoluiu no sentido de uma radicalização política que obliterou a anterior valorização das tradições. O MPLA passou a defender a edificação de uma nova sociedade (Bittencourt, 2010). Após a independência, o “tradicional passa a ser visto […] como atrasado e refratário ao novo poder”, que devia organizar a sociedade em função da ciência com vista ao “desenvolvimento das forças produtivas” (Bittencourt, 2010 :139). Entre os dirigentes são-tomenses perpassava alguma sobranceria relativamente à tradição local. O homem novo, derivado de uma política firmada em bases ditas científicas, era a alavanca da remoção da alienação colonialista, de que as manifestações culturais e várias formas de consciência eram subprodutos espúrios. 46. No período de transição, houve lugar ao aproveitamento dos costumes da terra. A concedermos que a vassoura, usada em “ritos mágicos”, tinha um efeito purificador (Santo, 2001), a varridela simbólica dos colonos era um acto purificador da terra. Em todo caso, não era preciso ir além da função corriqueira da vassoura para perceber o significado do gesto, o do desejo compreensível de varrer o colono e de se apropriar da respectiva riqueza. 47. Em finais de 1975, foram presos cerca de 40 curandeiros acusados de serem exploradores e ladrões (Seibert, 1999). Em Angola, observou-se acrimónia idêntica contra as religiões e, em especial, contra os feiticeiros (Bittencourt, 2010). 48. São Tomé e Príncipe era uma colónia cuja vida colectiva era europeizada, o que não impedia que certas crenças tributárias de cosmovisões inspiradas pela religiosidade africana tivessem o seu curso nas relações entre as pessoas. O MLSTP propôs-se lutar contra tal obscurantismo, mas isso não quer dizer que as pessoas, incluindo os militantes que reproduziam o ideário marxista por tal fazer parte do seu papel, vivessem em congruência com esse ideário ou tivessem arredado

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temores relativos ao poder do feitiço (nos anos 1980, foi-me dito que alguns ministros teriam medo do feitiço). Por hipótese, apesar da europeização da vida e do tirocínio escolar, nem todos seriam portadores de uma convicção racionalmente estribada sobre o poder dos feiticeiros, que se sobrepusesse à eventualmente inculcada em contextos familiares. Como se disse, a prisão destes terá animado os mais militantes, mas era um passo inconsequente, destinado, sobretudo, a inculcar receio quanto à possível arbitrariedade policial a mando dos governantes. 49. Para o caso de Moçambique, veja-se Cabaço (2010). Ainda que se possa admitir que a luta de libertação foi um acto de cultura, tal não elide a dimensão de violência e de voluntarismo subjacente à prossecução do homem novo. A não a ser a espaços, o autor não equaciona o que essa proposta continha de violência — conscientemente exercida — sobre os naturais de Moçambique. Nesse particular do voluntarismo e da violência, e ainda que com diferenças de grau e tempo, encontramos alguma similitude nos percursos encetados nos países independentes em 1975. Com efeito, a tentativa de engenharia social e de mudança de mentalidades foi similar nas ex-colónias portuguesas, mais por ímpeto ideológico do que por uma eventual similitude de circunstâncias nos vários contextos, na realidade, assaz diversos entre si. 50. Em São Tomé e Príncipe, não se teorizava acerca de uma idiossincrasia da terra, o que só veio a ter lugar depois da falência da ideologia socialista. 51. Por exemplo, com referência a Moçambique, relaciona-se a formulação de um “marxismo caseiro” com a preocupação de educar, produzir e criar o homem novo, tendo as grandes batalhas ideológicas sido travadas no campo da educação (Macagno, 2009). Todavia, queda por detalhar os laços entre o “marxismo caseiro” e o homem novo, entre o trabalho de elaboração ideológica e a mutação (dir-se-á, a acomodação) das gentes, porventura determinada também pelo receio da faceta intrusiva e discricionária do exercício da autoridade após a independência. Aliás, em São Tomé e Príncipe, ensaiou-se induzir um homem novo a despeito das escassas reflexões teóricas sobre a adequação do marxismo. Acrescente-se que, para além do embevecimento dos intelectuais com a teoria supostamente fundada na luta, nesses processos políticos tudo laborava no sentido de a liderança se tornar o único referente da lealdade dos homens (facto que tende a sobreviver até hoje nas liças políticas). Já a formulação ideológica se tornou um facto secundário (na esteira do que, até hoje, em São Tomé e Príncipe são quase irrelevantes as eventuais diferenças programáticas, doutrinárias e ideológicas entre os agrupamentos políticos). 52. Pensar na construção do homem novo como um desígnio de tornar os indivíduos cidadãos do mundo — supostamente, uma intenção de Amílcar Cabral, para quem o homem novo devia encontrar as “vias culturais” que o tornassem “cidadão do mundo” (Fernandes, 2006 :207) — só fazia sentido como acusação panfletária ao colonialismo. Afinal, todos os regimes de partido único laboraram no sentido do fechamento das expectativas dos seus cidadãos. 53. Não suscitara sequer uma tradução erudita tão a gosto das lideranças nacionalistas. Das manifestações folclóricas, tinham-se feito uns registos etnográficos do final do colonialismo.

RESUMOS

A independência de São Tomé e Príncipe, em 1975, foi um projeto de um grupo muito restrito de exilados. O arquipélago tornou-se independente sob a liderança do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) e Pinto da Costa. Apesar de alguns militantes viverem no Gabão e não serem socialistas, o MLSTP, apoiado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola, tornou-se socialista. Depois de 1975, sob a ditadura do partido único, o MLSTP tentou impor uma

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política que enfatizava o valor do trabalho e o ideal do homem novo. Este artigo explora a diferença entre os valores políticos dos activistas do MLSTP e os valores da terra, mostrando como o fosso entre esse projecto político e os valores da terra pesou na evolução política do país no pós-independência.

The independence of São Tomé and Príncipe, in 1975, was a project of a very restricted group of exiled individuals. The archipelago became independent under the leadership of the Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) and Pinto da Costa. Even though some of those individuals lived in Gabon and were not socialist, MLSTP was supported by the Movimento Popular de Libertação de Angola and became socialist. After 1975, under a one-party rule, MLSTP tried to impose a new policy that emphasized the value of work in a socialist country and the ideal of a new man. This papers explores the gap between the political values of the exiled activists of MLSTP and the ‘homeland values’, and shows how this gap shaped the political development of the country after independence.

ÍNDICE

Keywords: São Tomé and Príncipe, socialism, new man Palavras-chave: São Tomé e Príncipe, socialismo, homem novo

AUTOR

AUGUSTO NASCIMENTO

Augusto Nascimento é investigador auxiliar com agregação do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa. Contato : anascimento2000[at]gmail.com

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A tragédia da Piedade : o grande drama da República

Arno Vogel e Regiane Ferreira

NOTA DO EDITOR

Recebido em 13/05/2014 Aceito em 27/09/2014

Introdução

1 Em 1909, o Brasil caminhava para as comemorações de seus vinte anos de República. Muita coisa tinha acontecido no decorrer dessas duas décadas sob um regime novo. Era uma República, tanto quanto possível modelada pelos sonhos dos muitos discípulos de Augusto Comte, que, atravessando o Atlântico, tinham aportado um vasto material de pensamento e propaganda. Este logo floresceu nos círculos de conversas e nas tertúlias da intelectualidade. A classe que essas ideias novas encontraram nesse recém- constituído circuito de sociabilidades era uma classe descontente com o antigo regime : a classe militar. Cansados e inconformados com a posição de subalternidade que esse circuito lhes reservava, lutavam em favor de uma ascensão em bloco do seu grupo social.

2 Dela fazia parte Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, aspirante do Exército brasileiro e redator do jornal A Província de São Paulo. Era estrela de primeira grandeza no firmamento literário nacional, graças ao seu já então famoso livro Os sertões, um ensaio sociológico da guerra de Canudos que bem se podia considerar “um poema épico em prosa” (Coutinho, 1966 :13). Era homem de ciência, geógrafo, etnógrafo, filósofo, historiador, e um magnífico estilista. Naquele momento, entretanto, era sobretudo o protagonista de um escândalo de grandes dimensões que, em 1909, abalou o país inteiro, culminando com sua morte após trocar tiros com o jovem aspirante do Exército Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Anna Emília.

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3 Euclides era casado com Anna Emília Solon Ribeiro, filha do Marechal Solon Ribeiro, o qual tinha lutado na Guerra do Paraguai e sido uma das figuras emblemáticas da Proclamação da República. Apesar dos méritos inegáveis conquistados nas campanhas militares do Prata e na Tríplice Aliança, o exército não teve garantido o prestígio e a posição almejada. Inspirados na Revolução Francesa, haviam desafiado e finalmente golpeado o regime monárquico.

4 O drama trágico que acabaria destruindo a vida do casal teve início quando Anna encontrou Dilermando, sobrinho de umas amigas. Encantada com o garbo, a beleza e a juventude do jovem aspirante, envolveu-se num romance extraconjugal com ele. Quando o caso veio a público, pôs em questão a honorabilidade de sua família inteira, principalmente a do seu marido. A crise conjugal agravou-se porque os mecanismos de controle social, as intrigas e fofocas, as denúncias à boca pequena e a ação da família e dos amigos não lograram qualquer efeito sobre Anna Emília.

5 Como a senhora Cunha não ouvia os apelos familiares, Euclides sentia-se cada vez mais pressionado a lavar sua honra e a da família. Com um senso de dever elevado e movido pela saída da esposa de casa para ir ao encontro do amante, no domingo 15 de agosto de 1909, o aspirante encaminhou-se até a casa de Dilermando, aonde chegou anunciando “vim para matar ou morrer”. No confronto entre os dois, ocorrido na Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro, o escritor terminou sendo morto, passando, a partir daí, a ser santificado pela sociedade por ter morrido em nome de um princípio tão caro a todos — a honra. Os jornais performaticamente trataram de comunicar “o fato” à capital do país e a toda a população brasileira. A morte de Euclides ficou conhecida a partir de então como a “tragédia da Piedade”, em explícita analogia com as tragédias gregas. Chegou-se a invocar diretamente os símbolos da tragédia, por exemplo, a categoria fatalidade. O aprofundamento das investigações revelou que Anna e Dilermando eram, de fato, amantes. Um julgamento de massa pelos jornais aplicou a sentença. Euclides fora canonizado, e o casal adúltero, hostilizado.

6 O mal-estar social causado pela tragédia perdurou por décadas, agravando-se com a morte de Euclides da Cunha Filho, quando também ele tentava lavar a honra do pai. Em 1916, aconteceu, portanto, uma reprise de 1909. Como Anna e Dilermando fossem impedidos de contar sua versão da história aos jornais, vieram a se publicar livros para restaurar a reputação daqueles que haviam sidos tratados como párias.

7 Submergir no mundo das relações sociais brasileiras do início do século XX, onde encontramos homens e mulheres que pautam suas condutas pelo valor da honra, é empreender um estudo antropológico. Nesse estudo, utilizam-se materiais históricos e literários com o objetivo de discutir o custo social da honra.

Materiais etnográficos

8 A título de material etnográfico, reunimos seis livros de épocas distintas, uma coletânea de excertos de Euclides escrita aos seus amigos e um dossiê publicado na Revista da Biblioteca Nacional, além de recortes de jornais. Os livros Anna de Assis : história de um trágico amor (1987) e Águas de amargura : o drama de Euclides da Cunha e Anna (1990) constituem uma polêmica entre os descendentes de Euclides da Cunha e Dilermando de Assis. O primeiro foi um depoimento de Judith de Assis, filha de Anna Emília e

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Dilermando ; o segundo foi um depoimento a Adelino Brandão do marido de uma das netas de Euclides, Eliethe da Cunha Tostes, filha de Manoel Afonso.

9 O próprio Dilermando de Assis escreveu livros em sua autodefesa para restaurar seu prestígio social : Um conselho de guerra. A morte do aspirante da Marinha : Euclydes da Cunha Filho. Defeza do Tenente Dilermando Cândido de Assis (1916) e A tragédia da Piedade : mentiras e calúnias da “A vida dramática de Euclides da Cunha” (1951), uma resposta aos jornais. Foi editada também a biografia A vida dramática de Euclides da Cunha (1938), escrita por Eloy Pontes e publicada pela editora José Olympio, dirigida, na época por Gilberto Freyre.

10 A coletânea Euclydes da Cunha a seus amigos (1938), editada por Francisco Venâncio Filho, um dos maiores biógrafos do escritor, traz um conjunto de excertos das cartas escrita por Euclides aos seus amigos, revelando um pouco de sua personalidade e detalhes do mundo social ao qual pertencia.

11 Já em 2009, foi publicado, em comemoração ao centenário da morte de Euclides, o livro Matar ou morrer : o caso de Euclides da Cunha, que se revelou uma rica fonte de análise ; e também o “Dossiê Euclides da Cunha”, editado pela Revista de História da Biblioteca Nacional, que reuniu artigos de autores nacionais e estrangeiros em torno da representação do herói nacional desde o seu nascimento até a sua morte.

Quadro 1 : Relação de publicações utilizadas

Ano Título Autor Editora

Um conselho de guerra. A morte do aspirante da Tipogra a Dilermando de fi 1916 Marinha: Euclydes da Cunha dos Assis Filho. Defeza do Tenente Annaes Dilermando Cândido de Assis

A vida dramática de Euclides 1938 Eloy Pontes José Olympio da Cunha

Companhia Euclydes da Cunha a seus Francisco 1938 Editora amigos Venâncio Filho Nacional

A tragédia da Piedade: mentiras e calúnias da “A vida Dilermando de 1951 O Cruzeiro dramática de Euclides da Assis Cunha”

Anna de Assis: história de um 1987 Je erson Andrade Codecri trágico amor ff

Joel Bicalho Tostes Águas de amargura: o drama Rio Fundo 1990 em depoimento a de Euclides da Cunha e Anna Editora Adelino Brandão

Matar ou morrer: o caso de Luiza Nagib Eluf Saraiva Euclides da Cunha

2009

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Revista de História da Biblioteca Dossiê Euclides da Cunha Biblioteca Nacional Nacional

12 É importante salientar que os documentos reunidos na obra Águas de amargura : o drama de Euclides da Cunha e Anna, que pertencem aos arquivos pessoais da família Da Cunha, têm um problema. O autor apresenta trechos escritos por Anna que parecem confidências pessoais registradas num diário, mas não revela de forma clara a origem. Ele, às vezes, não inclui as datas das cartas escritas por Euclides da Cunha. Essa situação tornou um pouco difícil a utilização desses documentos, mas não impossível.

13 Deparamo-nos, ainda, com outro obstáculo, na medida em que não encontramos informações sobre os livros lidos por Anna Emília. Supomos que suas leituras teriam sido os clássicos de sua época : os romances franceses de Honoré de Balzac, de Gustave Flaubert, de Émile Zola e do russo Leon Tolstoi. Apoiando-nos no pressuposto de Victor Turner (1982) de que a problemática abordada nas obras artísticas é um reflexo do social e, ao mesmo tempo, influencia as ações do leitor, quando comparamos alguns depoimentos de Anna com as narrações de Honoré de Balzac, encontramos na senhora Cunha os mesmos dilemas vivenciados pela personagem Julie, do romance A mulher de trinta anos.

14 Nos recortes dos jornais da cidade do Rio de Janeiro, principal meio de comunicação e formação da opinião pública, foram encontradas as notícias da morte de Euclides e de sua grande repercussão. Salientamos que o acontecido apenas ficou conhecido como a “tragédia da Piedade” graças à performance dos jornais.1 Ao chamá-lo de “tragédia”, os periódicos evocaram as tragédias gregas e, com elas, todos os atributos que tem a palavra “tragédia”, como a “fatalidade”, a “violação da regra” e a “noção de destino”, influenciando a interpretação e reflexão dos leitores.

15 No acervo on-line da Biblioteca Nacional, encontramos notícias da época nos jornais que foram preservados. Infelizmente, não foi possível identificar os autores das notícias e, em algumas, o título da matéria. Estima-se que haja muito mais notícias sobre o caso do que foi possível reunir. Temos a relação dos jornais que foram utilizados :

Quadro 2 : Jornais em circulação no Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX

Década Jornal

1900 a 1919 Gazeta de Noticias

1900 a 1919 Jornal do Brasil

1900 a 1919 O Paiz

1901 a 1919 Correio da Manhã

1906 a 1916 O Seculo

1910 a 1927 A Rua

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1912 a 1919 A Epoca

1911 a 1919 A Noite

Fonte : Arquivo da Biblioteca Nacional. Disponível em : . Acesso em : 31/01/2014.

O tema da honra

16 Seria um engano imaginar que o tema da honra se restringe aos antigos, isto é, às sociedades ditas tradicionais. Embora, modernamente, ela não desempenhe o mesmo papel, sua presença ainda se faz notar. Para compreender a problemática nela implicada, é necessário levar em conta o contexto histórico, político, social e religioso no qual a categoria “honra” se apresenta em cada caso.

17 Halvor Moxnes (1993), em seu artigo Honor and Shame, uma revisão da literatura sobre o tema da honra, sustenta que essa noção é universal, apresentando-se, no entanto, de forma diversa nas mais variadas culturas, pois depende de como é socialmente construída e interpretada. […] A noção de honra passou por uma série de transformações : nas obras mais antigas do cânon literário ocidental, os poemas homéricos, existe em algo como uma forma primitiva ainda encontrada nas sociedades muçulmanas, mas uma tradição de ceticismo relativamente sobre a honra surgiu no pensamento clássico romano grego, e a cristandade exerceu uma forte pressão no sentido de moralizar a noção que se tornava cada vez mais forte no Renascimento que alcançou seu auge no século XIX, quando a honra tinha como cerne um vínculo com a moralidade cristã, com a integridade pessoal, com o patriotismo, com as ideais de lealdade e de boas maneiras (Cairns, 2011 :24).

18 A linhagem do pensamento antropológico que viria a ocupar-se desse assunto remonta à década de 1960, tendo como marco fundador a coletânea Honor and Shame, the Values of Mediterranean Society, organizada por J.G. Peristiany e publicada em 1965.2 Desde então, o tema tem sido abordado em múltiplas publicações, sobretudo coletâneas, cujas contribuições tratam dele em contextos históricos bem como atuais, com o argumento explícito de que “a honra causou mais mortes do que a peste”, como se pode ler numa resenha dedicada a outra dessas antologias conhecidas, -Honor and Grace in Anthropology (Peristiany & Pitt-Rivers, 1992).

19 A honra, com todos os seus atributos, é, portanto, um valor. Os sujeitos estão dispostos a matar ou morrer em seu nome. E, com bens materiais, como terra e dinheiro, ela é apontada por Turner (2008) como um dos vários elementos responsáveis por desencadear um drama social, pois constitui uma regra cara à sociedade, sendo capaz de suscitar, em primeira instância, uma crise. Ela “é o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos”. Não obstante, como causadora de um drama, “também [o é] aos olhos da sociedade” (Pitt-Rivers, 1977 :1). Numa tradução genérica do grego timê, “honra” significa, ao mesmo tempo, “o nosso valor aos nossos próprios olhos e aos olhos dos outros e à estima conferida por outrem” (Cairns, 2011 :29). A honra é, pois, “fundamentalmente o reconhecimento público de um padrão social” (Moxnes, 1993 : 20).

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20 A problemática que envolve homens e mulheres do mundo da honra está relacionada ao lugar que cada um deles ocupa na sociedade. “O aspecto desta que se associa com o status social descende preferencialmente pela linha do varão, como os títulos hereditários, mas em seu aspecto moral a honra do varão vem principalmente da mãe” (Pitt-Rivers,1968 :517).Tal mundo é marcado pelas trocas de favores, gentilezas e afrontas. Reconhecer o outro como digno de honra é estabelecer uma reciprocidade. Negá-la quer dizer que não reconhece o outro como parte desse mundo e, portanto, não se compartilha com ele os mesmos valores ; por isso, ele não é digno de respeito, tornando-se um pária (Appiah, 2012).

21 Na sociedade medieval, o senso de honra ordenava-se partindo da aristocracia, que o desfrutava devido ao seu poder, seu valor e sua proximidade ao rei, até chegar aos que careciam da honra em absoluto : “os hereges e os proscritos, os que se dedicavam a ocupações infamantes e aos condenados por infâmia” (Pitt-Rivers,1968 :517).

Do pundonor à proibição dos duelos

22 O pundonor, o ponto de honra, surgiu nas cortes da Itália renascentista pela necessidade de estabelecer um código de comportamento para regular as competições que envolviam o valor da honra. “Foi, portanto, uma instituição pseudolegal que governou a esfera da etiqueta social onde a lei não era competente ou se recebia mal” (Pitt-Rivers, 1968 :519). Quatro séculos de discussões foram necessários para estabelecer “os pretextos das ofensas, as formalidades do desafio, o duelo e as circunstâncias pelas quais se julgava que a honra se perdia ou se redimia [se lavava]”(1968 :518).

23 O ofendido não pode deixar de responder ao insulto, sob pena de banimento do grupo. Segundo as regras, é proibido delegar a outrem a sua obrigação, a menos que a sua idade, seu sexo, seu estado de saúde ou seu status eclesiástico o impeça de agir. Quando um ato que fere a honra ocorre na presença de testemunhas, os envolvidos são obrigados a reagir. Não é possível fingir o desconhecimento do fato ; todos participam daquilo que presenciam (Pitt-Rivers, 1968).

24 A pessoa que sofreu o insulto não pode demorar em respondê-lo, e os membros da família podem lembrá-lo do seu dever. Se não agir, outro poderá tomar atitude que lhe cabe, fazendo com que fique desonrado perante todos os membros da comunidade. Diante disso, o sujeito não tem muita escolha : “compreende que se expõe às conseqüências conjuntas da covardia e da vingança, ele deve decidir-se, ‘a contragosto’ como se diz, ou exilar-se” (Bourdieu, 2002 :67).

25 Ao longo da história, tudo se transformou. O código de honra relativo ao duelo, em alguns momentos permitidos, foi condenado pela igreja e, posteriormente, também pelo Estado moderno. Em um determinado período, o duelo era realizado nas feiras, em ocasião de festividade — tais ocasiões “permitiam o arranjo das disputas remetendo a decisão ao julgamento divino ; era um modo de prova” (Pitt-Rivers, 1968 :519). Com o surgimento do Estado moderno, no entanto, pautado no poder centralizado, ocorreu a necessidade de criar leis universalmente obrigatórias a toda a Europa cristã (Peters, 1985 :51). “[Os] soberanos aspiravam tomar o arranjo das disputas das mãos imprevisíveis da divindade e submetê-los à jurisdição dos tribunais” (Pitt-Rivers, 1968 : 519).

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26 As normas da lei, contudo, não “satisfaziam os requisitos do homem de honra, pois obrigavam-no a pôr sua honra nas mãos de outros, impedindo-o de agir por si mesmo”. O Estado moderno tentou devolver a honra com pagamento em dinheiro, algo que não oferecia satisfação válida. “O arranjo deste tipo exclui a possibilidade de demonstrar o valor pessoal mediante a exibição do valor próprio.”A honra pede fidelidade às pessoas, e a lei, aos princípios abstratos — a primeira “se relaciona com as pessoas e se centra na vontade, e a segunda reduz as pessoas a categoria jurídicas, o que implica o ataque ao princípio fundamental da autonomia pessoal” (Pitt-Rivers,1968 :519). Elas são, portanto, contraditórias. No início do século XX, no Brasil, as regras do mundo da honra e do mundo moderno entraram em conflito num episódio conhecido como a “tragédia da Piedade”. Nesta, o escritor Euclides da Cunha foi morto após tentar lavar sua honra. O suposto assassino foi absolvido alegando legítima defesa, mas isso não agradou a opinião pública. Naquela época, ainda, o adultério era considerado crime.3 Para o código de honra, no entanto, não se podia arrogar ao Estado a resolução do conflito. A pessoa lesada, no caso, o esposo traído, tinha de tomar uma atitude, mesmo que significasse a perda de sua vida.

O contexto histórico do drama

27 No Brasil, na segunda metade do século XIX, ainda durante a vigência do regime monárquico e escravocrata, verificou-se uma verdadeira avalanche filosófica europeia. O positivismo do francês Augusto Comte difundiu-se entre a burguesia urbana, graças, sobretudo, ao apostolado desenvolvido por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira (Hilton, 1974 :539). Em virtude desse apostolado, os adeptos da corrente positivista se multiplicaram e começaram a agir com grande ímpeto em favor de suas ideias. Com elas, nasceu também o espírito do futuro regime republicano (Pontes, 1938).

28 A obra de Augusto Comte já vinha sendo discutida, desde 1850, no Rio de Janeiro, então capital do Império e berço das ideias efervescentes da teoria positivista. Estas haviam se difundido extraordinariamente entre os estudiosos da matemática, das ciências físicas e naturais e da engenharia civil. O centro de sua difusão foi originalmente a Escola Central, criada em 1858, e em seguida a Escola Militar, onde Euclides da Cunha seria apresentado ao positivismo (Pontes, 1938). Desse modo, o melhor da produção intelectual, literária e científica do mundo europeu, principalmente a francesa, ingressou no círculo de conversas da intelectualidade brasileira da época. As filosofias de Stuart Mill, Spencer, Schopenhauer, Hegel, Hartmann, Schelling, Littrée e Laffite, além das teorias de Lamarck e Darwin sobre a seleção natural, conquistaram e inquietaram os espíritos mais refinados do país. O mesmo aconteceu na literatura, onde primeiro Balzac, Sthendal e Merimée, e pouco tempo depois “Flaubert, Zola, Daudet, Maupassant, os [irmãos] Goncourts, […] Dostoiévski, Turguenieeff, Tolstoi, Dickens, Meredith, Hauptmann” monopolizavam os interesses dessa elite intelectual, influenciando notavelmente o pensamento social brasileiro (Pontes, 1938 :8).

29 Essa avalanche de ideias provocou impaciências filosóficas, entrechoques das doutrinas, lutas de ideias, gerando “efeitos imprevistos” (Pontes, 1938 :8). No final do século XIX, dois acontecimentos vieram a marcar profundamente o país. O primeiro deles foi o fim da escravidão, em 1888 ; e o segundo foi a queda da monarquia e consequentemente a instauração da República, em 1889 (Lima, 2000). Esta última se insere no âmbito de um grande movimento que “se operava silenciosamente” (Faoro, 1974 :361). Era um

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fenômeno complexo, no qual um “setor da sociedade se elev[ou], como camada monolítica, dentro da ordem imperial”, não almejando os títulos da nobreza, mas o status de camada importante na nova ordem republicana. Essa elevação e a consequente irradiação de seu novo status, em bloco a todos os seus integrantes, assumiram o “caráter de [um] cataclisma”, de grandes proporções “no equilíbrio do poder reinante, ao deslocar grupos e instituições tradicionalmente ancoradas na maquinaria política” (Faoro, 1974 :361).

30 Apesar das honras conferidas ao Exército após suas glórias conquistadas na Guerra do Paraguai, seus integrantes não compartilhavam o prestígio dos juízes, bacharéis, políticos e oficiais da Marinha. Continuavam alijados dos tabuleiros em que se jogava o “novo arranjo do poder” (Faoro, 1974 : 363), o que lhes causava profunda inquietação e ressentimento. Graças a sua boa formação na Escola Militar, esses quadros da instituição militar não eram mais iletrados, embora continuassem a ser vistos como caçadores de escravos fugidos. Cansados dessa subalternidade, resolveram insurgir-se contra ela, respondendo ao regime monárquico quando este pretendeu engajá-los na assim chamada questão servil : “nós não somos capitães do mato”. A partir daí, tramaram reverter o jogo da mesma forma que os burgueses na Revolução Francesa (Martins, 1996).

31 Em meio a essa efervescência social, nasceram Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha e Anna Emília Solon Ribeiro. Ambos protagonizaram uma tragédia que marcou profundamente o país, sobretudo porque um desses personagens iria notabilizar-se como um grande escritor : Euclides da Cunha, o herói nacional que destacar-se-ia também por sua luta intransigente no Exército a favor do republicanismo, utilizando a melhor de suas armas, a palavra, com a qual travou muitas batalhas na redação do jornal A Província de São Paulo (Lima, 2000).

O roteiro etnográfico da tragédia

32 No final de setembro de 1905, enquanto o consagrado escritor Euclides da Cunha chefiava a comissão de demarcação dos limites do Acre em Alto Purus, sua esposa, Anna Emília, estava na capital do Brasil, Rio de Janeiro, residindo na pensão Monat com o filho caçula, Manoel Afonso. Os dois mais velhos moravam, a essa altura, num internato. A crise financeira familiar obrigou-a a diminuir as despesas. Longe do marido e dos filhos, Anna pôde gozar a agradável companhia das amigas Lucinda e Angélica Ratto (Andrade, 1987 :19).

33 Anna Emília estava casada com Euclides havia quinze anos. A menina deslumbrada, que entrara na igreja e dissera sim, transformara-se numa mulher preocupada com a aproximação da velhice, angustiada por não aproveitar os anos da sua mocidade (Tostes & Brandão, 1990). Da mesma forma que Julie, personagem do romance de Honoré de Balzac, poderia pensar : “o casamento, a instituição em que hoje se apóia a sociedade, leva-nos a sentir sozinhas […]” (2013 :104).

34 Essa solidão logo teria fim com a chegada do sobrinho das suas amigas, o aspirante do Exército Dilermando de Assis, “um deus louro” que veio na primavera : “Deus pagão, de alguma lenda nórdica, que o destino fez atravessar em meu caminho” (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :16). O espírito da jovem sonhadora e romântica despertara. A partir daí, viveria com a “[…] impressão de que a vida dela esta[ria] única

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e exclusivamente mediada pelo amor do sujeito amado e a serviço dele […] (Simmel apud Oltramari 2009 :671).

35 Anna se viu, de uma hora para outra, infringindo as leis da sociedade (Balzac, 2013) ao trair o seu marido, inaugurando, portanto, a primeira fase do drama social. Alugou “uma casa na rua Humaitá e lá vive[u] dias, semanas, meses de uma paixão intensa e exaltada” (Andrade,1987 :44). Um bilhete interrompeu tudo : “Estou a bordo do Tennyson. Mande-me buscar. Euclides” (Andrade,1987 :44). Diante das circunstâncias, a esposa foi com seu amante recebê-lo para evitar suspeitas : um compromisso de honra obrigou-me a esse vexame. Retirar-me naquele instante, tendo permanecido em companhia de sua mulher durante tantos meses, seria denunciar o extremo a que chegaram as nossas relações. Eu tive que o fazer, para evitar mal maior. Errei ? Não errei ? Quem poderá dizê-lo ? O maior erro já estava consumado. O certo é que sofri bastante (Andrade, 1987 :44-45).

36 O marido voltava para casa — para sua família, para sua esposa, para a cama dela. “Na mesma noite do dia em que voltou, dormimos juntos, afinal ainda somos marido e mulher. Veio com fôlego de gato. De meia dúzia de gatos. Diria melhor de bode ; de galo quando pula do poleiro de manhã cedo” (Tostes & Brandão, 1990 :15). Mas havia alguém que, em segredo, perturbava a harmonia do lar : Dilermando. Ele quebrara a convenção familiar. Anna passou a viver sob o mesmo teto com os dois homens : o marido e o amante. “Daqui a quantos meses, se nascer um filho, nem eu saberei de quem é. Se dele [de Euclides] ou de quem eu amo de verdade” (Tostes & Brandão, 1990 :15).

37 Por solidariedade, talvez, alguém enviou um bilhete anônimo para Euclides comunicando-lhe o que se passara na sua ausência. Quando consultada, Anna negou tudo : por um instante, tive ímpetos de lhe dizer que era verdade. Ainda bem que me contive. Foi melhor para todos. Reagi, lançando-lhe em rosto de covardia de quem se escondia para não se ferir. Como é que ele ia dar crédito a infames bilhetes anônimos ? Jurei-lhe que jamais iria profanar meu corpo, que só a ele pertencia. Que ele me matasse, acaso julgasse o contrário. Antes, morrer do que ao menos pensar em quebrar o juramento que lhe fiz de ser fiel até o fim da vida (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :15).

38 A traição espiritual foi a única coisa que admitira ao marido. “Euclides disse que não dava importância o que tivesse podido pensar, uma vez que seu corpo não fora profanado” (Andrade, 1987 :47). Mas a semente da desconfiança estava lançada.

39 Desconfortável com a situação, Dilermando partiu para o Rio Grande do Sul, onde continuaria sua formação na escola de Artilharia do Exército. Tudo parecia terminado. Aqueles dias não passariam de belas recordações. No ventre de Anna, entretanto, crescia uma criança, uma espécie de “dedo acusador” (Tostes & Brandão, 1990 :15). Seu segredo estava ameaçado. Consultei o Dr. Érico. É amigo, é de confiança. Explicou-me. Se a criança nascer de 180 dias da concepção, é de D. Nascendo depois de 180 dias, tanto do ponto de vista da medicina como da lei, será de Euclides. Nem ele nem eu poderemos dizer o contrário. Muito menos o meu querido. Será crime, nem que eu diga que a criança é filha de outro, de nada adiantará. A filiação “adulterina” não seria registrada. Será sempre filho de Euclides. Tivemos relações, assim que chegou. Vivemos juntos. Não há saída (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :18).

40 Até o nascimento do menino Mauro, em julho de 1906, Anna viveu angustiada. Tinha medo de que Euclides descobrisse sua falta e que a sua família a visse desonrada. Naquela época, seria difícil encontrar solidariedade de amigos e familiares, pois

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cometera uma falta grave. O pequeno, contudo, faleceu logo.4 Velando o corpo do menino, dizia : sete dias te amamentei, e era a minha vida que transferia para teu corpinho frágil, repousa aqui, sob a indiferença de uma campa, onde um símbolo aritmético que perpetua para mim a lembrança do número de dias em que te apertei nos braços. Sete dias vivos ; um dia — morto. Morto ? Perdoa-me se digo mal. Vivo, sim. Mauro, mouro, moreno agalopado no tempo, como um guerreiro do Islã, alfange em riste, a investir contra a eternidade. Lá, onde os anjos te receberão, se já não te receberam, e onde eu te encontrarei quando, livre das quimeras e desenganos, mergulhar na concha do infinito, para conviver contigo, para sempre, nesses azuis sem fim, aonde só os anjos e os inocentes como tu são transportados (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1987 :27).

41 Euclides registrou-o como Mauro Ribeiro da Cunha, seu filho. Após o luto pela morte do bebê, Anna continuou a viver ao lado de seu marido e filhos. Em janeiro de 1907, contudo, Dilermando retornou à capital para passar férias. Soube, ali, tudo que se tinha passado (Assis, 1916). A paixão latente, imediatamente, uniu Anna a Dilermando. Mais um capítulo da história começava a ser escrito, quase uma reprise da primeira parte. Anna engravidou. Desta vez, tinha certeza de que o filho era de seu amante.5 Ao fim das férias, ele retornara a Porto Alegre (RS).

42 Anna arriscou-se, novamente, insistindo no relacionamento, mesmo a distância. Ela desejava viver, acima de tudo, sua paixão. Bebera na fonte do “mito do amor romântico” ; comprara, talvez, sem saber, “a idéia contemporânea de amor-paixão, antiga idéia grega do tipo de amor Eros, um tipo de amor ligado à falta, ou seja, ao sofrimento, […] aquele amor que busca ser alcançado” (Borges apud Oltramari 2009 : 700). Em sinal de carinho, trocavam cartas. Muito sinto não poder abraçar-te em adeus.

Que fazer ? ! Assim, o quis a fatalidade, assim o quis o destino. Haverão de nos consolar e nos amar ainda mais, não é ? Pouco tempo haveremos de estar separados e este servirá para aumentar a sede de nosso amor mais irracional, mais terno, mais enlaçado em que nos haveremos de rolar como umas conchas levadas e trazidas pela maré que beija as areias da praia, saudadas por um sol cheio de vida e de calor como para nós é a esperança que nos dá alento e conforto. Abraça bastante a nossa flor por mim, beija-a e suga-lhe o perfume e o mel como as abelhas para ouvir-me, (ilegível) ainda que pouco, pois não sou egoísta. Adeus, beijo-te muito, e sou só teu (Assis 1908 apud Andrade,1987 :59).

43 Os rumores e as fofocas logo advertiram Euclides do que se passava, pois […] “os valores do grupo são claramente afirmados em fofocas e escândalos, já que um homem ou uma mulher é sempre condenado por falhar em viver de acordo com esses valores” (Gluckman, 1963 :313). Foram eles que intensificaram a crise entre o casal, inaugurando a segunda fase do drama social postulada por Turner (2008), a intensificação da crise.

44 Anna estava próxima de dar à luz quando Euclides, doente de hemoptise, “grita[va], exasperado, que não se afast[asse], que permane[cesse] ao seu lado e prov[asse] ser sua mulher. Estende[u] a bacia de sangue” e lhe propôs um ordálio, isto é : provar sua inocência através de um desafio. A partir daí, ela seria culpada ou inocente daquilo de que a acusavam — “beba. E prove assim que me ama” (Andrade, 1987 :53). Anna recusou.

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45 A preocupação com as atitudes do marido logo cedera lugar à alegria da maternidade. O menino Luiz nascera saudável, aos nove meses. Anna tratou, rapidamente, de escrever uma carta ao amante, comunicando-lhe a graça do nascimento. A ilusão de Anna de viver uma história de amor eterno, um amor transcendente (Oltramari, 2009), era o motor das suas ações. Mesmo longe, não desistiu de Dilermando. Em novembro de 1907, ele participava da felicidade de ter um filho. Euclides, no entanto, referia-se ao pequeno como “a espiga de milho em meio ao cafezal” (Assis, 1916).6

46 Anna continuava esperando Dilermando como uma menina espera pelo primeiro namorado. Ele preenchera seu vazio. Sua esperança era que acontecesse uma espécie de milagre para livrá-la da situação na qual se encontrava. Estou cansada deste casamento. Não me atrai o papel de D. Anna… Nem de chegar à velhice ao lado de um cadáver ambulante, e sem maior espaço que o desta casa, enquanto lá fora a juventude, a força, a beleza, a saúde, o vigor de meu amor me prometem um mundo de felicidade. Ele me rejuvenesce. Quem me dera morrer agora, enquanto sou amada. Meu Deus ! Eu não quero ficar velha ! Eu não quero ficar indesejada ! (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :19).

47 Além de cansada do casamento, seguia alentando um sonho. Sua mãe teve de entrar em cena para impedi-la de romper o matrimônio. Iniciou-se, então, a terceira fase do drama social (Turner, 2008), aquela na qual se costumam acionar os mecanismos de controle ou de regeneração do tecido social. Dona Túlia tentou chamá-la à realidade, recordando-lhe os sacrifícios que uma mulher precisa fazer em prol de sua família (Andrade, 1987). Parecia-se a Julie, que não queria continuar vivendo “descontente como uma atriz que não soube representar bem o seu papel” (Balzac, 2013 :98). Continuava, nesse sentido, a desafiar “as leis da sociedade”, que lhe exigiam fazer feliz o seu marido (Balzac, 2013 :77). Os conselhos de sua mãe não surtiram efeito. O primeiro dos mecanismos de controle tinha-se revelado, portanto, ineficaz.

48 Os irmãos e amigos de Anna, entretanto, continuavam a pressioná-la. Mas ela não desejava, em definitivo, “conviver desordenadamente com o escritor”, pois mantinha “viva sua união com Dilermando” (Andrade, 1987 :57). Não se curvaria aos apelos. Com o ímpeto de uma Solon Ribeiro, dizia : “não há Madalenos. Só Madalenas. Mulher não pode ter desejo” (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :14).

49 Anna continuava, pois, dando rédea solta aos seus anseios. No passado, buscara o amor nos braços de Euclides : “quando meu corpo cheio de tremido o procurava, nos bons tempos em que era a esposinha, dona de casa […], gritava de amor” (Tostes & Brandão, 1990 :16). Euclides, por sua vez, condenava o amor-paixão. Considerava-o um “não amor — um desvario” ; “um desejo impulsivo, que explode fulminante, como faísca elétrica atraída ao pára-raios” (Tostes & Brandão, 1990 :48). Aquilo que Euclides desprezava era o maior anelo de Anna, justamente aquele que seu amante satisfazia : mas eu sei que foi ele quem revelou em mim o quanto de amor acumulei, inutilmente durante esses dezesseis anos que estou unida a Euclides ? […] Depois [de conhecê-lo], senti que sou alguém. Nasci com o condão da sensibilidade. Para amar. Amar perdidamente, aqui ou além, pouco importa, mas amar. Amor de um homem ? Sim, mas de um homem que seja um deus. Poderão me chamar de ambiciosa. Acusar- me de impudor. Ignoram que eu toda sou alma, ambição de amar, que nada mitigue e farte (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :16, grifo nosso).

50 Ao jovem deus louro de olhos azuis, ela clamava : “Meu amor ! Meu amante !” (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :16), ao passo que Euclides, severo, condenava esse mesmo sentimento com palavras duras : “amor blasfemo, insano, sensual.

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Propositadamente erótico, até à indecência […]. Amor veneno, como de Tristão por Isolda… Amor paixão, incompatível com as leis que regem o mundo […]”. Para ele, o verdadeiro sentimento amoroso era “sofredor e benigno”, “aquele que se porta com a decência” (Tostes & Brandão, 1990 :48). Anna Emília, em contraste, acusava “os homens”, num verdadeiro libelo em favor das mulheres : os homens inventam filosofias que servem muito para eles, e depois querem nos forçar a pensar da mesma maneira. Um dia, ainda há de aparecer uma mulher filósofa que mude tudo isso. Mudar ? Sim. Por que não ? Mudaram o império em república, as províncias em estados, a Corte em Capital Federal. Quem sabe venham mudar também em relação às mulheres (Ribeiro sem/ano apud Tostes & Brandão, 1990 :14, grifo nosso).

51 Vivia, nesse sentido, um drama análogo ao da Julie de Honoré de Balzac — como ela, uma mulher de trinta, para a qual o casamento “era conveniente aos olhos da sociedade, mas horrível na realidade” (Balzac, 2013 :97). Para ilustrar esse ponto, bastaria reler o relato das senhoras Ratto ao jornal Correio da Manhã de 18 de agosto de 1909 : desde o regresso [da casa do sogro] de d. Anna, o casal vivia debaixo da maior exaltação de ânimos e de rixas, prolongando-se esse estado de coisas até quarta feira, 11 corrente. Neste dia, d. Anna, a pretexto de que iria procurar uma casa, para mudar-se, depois de violenta alteração com seu esposo, retirou-se de casa para a de sua progenitora, no Campo de S. Cristóvão, onde pernoitou. No dia seguinte, isto na quinta feira, d. Anna esteve na estação da Piedade, para onde foi em companhia de seu filho Lulu e de Dinorar, a fim de ir falar com Dilermando, regressando para São Cristóvão, no mesmo dia. No dia seguinte, sexta feira, à noite, depois de ter d. Anna se dirigido novamente para casa de Dilermando, esteve na casa de sua sogra, em São Cristóvão, o Dr. Euclydes Cunha, a quem exprobando o procedimento de sua esposa, della se queixava amargamente allegando que aquella situação não poderia continuar […]. No sabbado, não tendo sua esposa regressado à casa, o dr. Euclydes Cunha estava, com isso, perturbado, promettendo que poria um termo na situação.

52 Entretanto, “poucos percebem a crise de excitação sopitada”. Era preciso, nesse sentido, ser mais do que um amigo comum para que Euclides lhe fizesse confidências : “as magoas ficam-lhe no peito, cahindo as gottas, formando cavernas sombrias” (Pontes, 1938 :282). Em A vida dramática de Euclides da Cunha, Pontes contava ainda que, diante do “desfecho trágico de um film americano”, Euclides, tomado por forte emoção, teria dito alto e bom som : “é assim que eu compreendo” (1938 :282).7

53 Os passos subsequentes da tragédia encontram-se registrados nas folhas do processo ; nos depoimentos publicados pelos jornais da época ; nos demais livros escritos sobre o drama ; e na biografia de Euclides da Cunha. Caminhavam, todos, para o clímax, para o desenlace trágico. O penúltimo dia da vida de Euclides da Cunha, 14 de agosto de 1909, tinha raiado : […] no sábado, 14 de agosto, [Euclides] chamando [Euclides Filho], assim como seus irmãos Solon e Affonso, lhes dissera que eles não tinham mais mãe, que Euclides ficaria no ginásio, que Solon se empregaria e que outro iria para um colégio ; Solon disse que ainda esperaria o dia seguinte e iria procurar pela [mãe], dando-lhe Euclides, a quantia de mil-réis (Eluf, 2009 :45). Por um momento, pareceu haver, ainda, uma esperança de reconciliação do casal : Euclides mandara o filho, Solon Ribeiro, buscar a mãe (Andrade, 1987). Cerca de seis e meia horas da tarde, estava no quarto da casa em que residia com seu pai quando foi chamado por ele ; indo à sua presença, lhe disse seu pai : sua mãe

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é adúltera, não dormiu na casa da mãe dela, e não tendo dormido aqui, em algum lugar há de estar (Eluf, 2009 :46-47).

54 Solon estava disposto a trazê-la de volta para casa, mas não logrou o seu intento. Dilermando o impedira, dizendo-lhe que esperasse o amanhecer. Todos os mecanismos de reconciliação tinham, pois, falhado. Inaugurou-se, então, a quarta fase do drama social, aquela em que pode ocorrer a reintegração do grupo social perturbado ou o reconhecimento do cisma : as partes em conflito se separam definitivamente. Ao anoitecer daquele dia, Euclides mostrava-se “bastante agitado”, como revelaram as irmãs Ratto ao Correio da Manhã de 18 de agosto de 1909 : […] sentado à mesa de jantar tomando um café juntamente com as senhoras Ratto, que estavam em sua casa, perguntara a uma dessas senhoras o que merecia uma mulher que traía o marido, respondendo dona Angélica que o marido devia matar a mulher e que em seguida devia cuspir sobre o rosto dela (Eluf, 2009 :45).

55 Angélica e Lucinda Ratto, tias de Dilermando de Assis, aconselharam-no a matar Anna Emília. Lembraram-no de como se tratava uma mulher que havia cometido uma falta.8 Outrora amigas de Anna, desejavam, agora, vê-la punida. O tempo ia passando. Anna Emília e seu filho Solon não retornavam. Euclides ia se convencendo de que não lhe restava outra coisa senão lavar sua honra. A vergonha, o escárnio público e o banimento social pareciam-lhe, cada vez menos, uma alternativa aceitável. Diante dessas circunstâncias, e pressionado a tomar uma decisão, exclamou em tom exaltado : “Basta !” Fizera sua escolha. Traçara seu destino. No domingo, logo depois de se levantar da cama, Euclides da Cunha chamou seu filho, como ele, chamado Euclydes e, entregando-lhe a chave de seu cofre de segurança, disse-lhe que a guardasse, pois encerrava a segurança de seu futuro. E como notasse que essa declaração alarmara o espírito de creança, o escriptor ajuntou bondosamente que dizia aquilo temendo que lhe acontecesse algum desastre (Correio da Manhã, 20 de agosto de 1909).

56 Em seguida, Euclides deixou o menino, o qual viu pela última vez. Partiu para concluir sua vingança. Mas, antes, precisava de uma arma. Pensou, imediatamente, no primo Nestor da Cunha. “Visita tão matinal”, no entanto ; “precisava de uma explicação” (Andrade, 1987 :82). Contou-lhe da existência perturbadora de um cão hidrófobo. Numa pequena conversa, o primo lembrou-o de que era aniversário de morte de seu pai, o tio Antônio, como Euclides costumava chamá-lo. Este, logo, pensou que era uma grande coincidência.

57 Tinha, agora, tudo de que necessitava para executar sua vingança : “um revólver Smith and Wesson, calibre 22” (Andrade, 1987 :82), que acabara de conseguir, e o endereço dos irmãos Assis, que lhe fora fornecido pelas irmãs Ratto. Estava decidido a “matar ou morrer” (Andrade, 1987 :69). Seguiu, então, viagem para o bairro da Piedade. Lá, caminhando pela Estrada Real, buscou a casa de número 214. Fez algumas perguntas, pediu informações, até que, enfim, encontrou o endereço. “Diante do portão, em frente ao jardim, seu coração estremeceu mais uma vez” (Dantas apud Andrade, 1987 :87).

58 Naquele minuto, talvez tivesse hesitado, pensando em voltar para casa. Mas algo o impelia a continuar. Esse algo era sua consciência do dever. Após ter enfrentado e vencido “o clima, o beribéri, a febre, a fome, a sede, os peruanos, as cachoeiras, os rios e as florestas, os naufrágios”, e sua própria “gente” — na “longa missão no Alto Purus” — e os “jagunços de Antônio Conselheiro”, ele não permitiria que a esposa e o amante ofuscassem as glórias que conseguira com ardor em muitas batalhas. Não se tornaria

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um “covarde”, permitindo que se destruísse a sua reputação, a sua imagem. Ele era, afinal, um homem honrado (Tostes & Brandão, 1990 :55).

59 Euclides partiu para o confronto. Adentrou a moradia dos irmãos Assis com ímpeto e, numa reação brusca, alvejou o jovem Dinorah, que morava com o irmão. Apareceu, logo, Dilermando, seu adversário. Os dois travaram um embate.

Figura 1 : Duelo entre Euclides da Cunha e Dilermando de Assis

Fonte : . Acesso em : 25/01/2014.

60 Euclides acusara-o de pertencer a uma “corja de bandidos”. Anos mais tarde, Dilermando contaria, em depoimento, que lhe dissera para fugir, pois não queria machucá-lo. Como, no entanto, Euclides não quisesse escutá-lo, e tratando de defender- se, atirou contra o escritor : precavidamente, temendo uma possível emboscada, penetro na sala de visitas. Chego até a porta e vejo Euclides caído, junto à escada, acionando desesperadamente a tecla do gatilho e pronunciando palavras confusas : Bandidos… Odeio… Honra… Euclides ouve gritos de D. Anna e dos meninos, escondidos na despensa, e caminha até à sala de jantar. Que pretendia ele ? […] Temia, por outro lado, a sorte de Anna e dos meninos […]. Vi também Euclides de revólver em punho, movendo agitadamente a cabeça, como que à procura do local de onde partiam os gritos (Andrade, 1987 :71). O Correio da Manhã de 20 de agosto de 1909 narrou os fatos da seguinte maneira : Euclydes ia retirar-se, estando já no jardim quando Dilermando, armado ainda de seu revólver, chegou à porta de casa e disse : — Rua, seu cachorro ! Assim insultado Euclydes ia a responder o desaforo, quando Dilermando o alvejou em pleno peito, disparando a arma.

61 A esta altura Euclides estava morto, e Dinorah e Dilermando, feridos. Na manhã daquele domingo, na Piedade, Solon, Euclides Filho e Manoel Affonso perderam o pai. E Anna ficara viúva.

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62 Os amigos de Euclides foram, rapidamente, avisados : “a notícia chega confusa à casa de Coelho Netto — Euclides gravemente ferido, traga Afrânio. Aturdido, Coelho Netto imagina a hypottese de desastre” (Pontes, 1938 :283). Esta haveria de confirmar-se logo em seguida. Quando chegou à casa de Dilermando, espantou-se ao ver “numa cama o cadáver de Euclydes da Cunha transpassado de balas” (Pontes, 1938 :283). No dia seguinte, falaria à Câmara sobre a morte de seu amigo — “o grande moço patriota, o heróe, o angelino, o genial Euclydes Cunha”, “um dos mais robustos representantes literários da língua portugueza”. Ali chegando, ante uma casa de aspecto miserável, pareceu-me, de improviso que estava entrando, páginas adentro, pela obra do grande mestre grego, tendo à frente de meus olhos o episodio dos Atrides : era, francamente um trecho de Oréstia, tal a grandeza da tragédia (Correio da Manhã, 17 de agosto de 1909).

63 Ao comparar a tragédia da Piedade com a de Oréstia, de Ésquilo, Coelho Netto talvez previsse o futuro por meio de uma evocação literária. Tal como sucedera a Orestes, os filhos de Euclides foram pressionados, das mais diversas maneiras, a vingar a morte do pai. Solon, o mais velho, morrera vítima de uma emboscada, no Amazonas, em 1915. Não podia, pois, cumprir o dever filial da vingança de sangue. Como esta é imprescritível, coube a Euclides Filho executá-la. E, assim, estava por abrir-se um novo capítulo da tragédia.

64 Com seus apenas 16 anos, o menino Euclides Filho perdera o pai e, com ele, a possibilidade de conviver com o restante de sua família. Chegou a morar com a mãe, Dilermando e os irmãos : “em dado momento, Dilermando, julgou inconveniente a permanência dos rapazes em sua companhia”. Os mais velhos foram confiados ao Marechal Cândido Mariano Rondon e ao Sr. José Carlos Rodrigues. E o menino caçula, Manoel Afonso, “ficou aos cuidados da tia Alquimena” (Andrade, 1987 :111‑112).

65 Anna, certa vez, recordou a rixa que Euclides Filho tivera com um colega. Este dissera- lhe : “não me bato contigo porque tu és um covarde. Pois se ainda não tiveste coragem de matar o assassino de teu pai” (Andrade, 1987 :111‑112). Esses clamores e lembretes para que vingasse a morte do pai tratavam de pressioná-lo.

66 Em 1916, com 21 anos, Euclides Filho era aspirante da Marinha de Guerra do Brasil. Até aquele ano, não cultivara com o padrasto nenhuma relação amistosa. Chegara a se enfurecer quando o irmão Manoel Afonso fugira do internato e, em seguida, da casa de seu tutor, Nestor da Cunha, para ficar com a mãe. Dizia que o irmão mais novo não podia se dar com o assassino do pai. Manoel Affonso, porém, não desejava morar com Nestor Cunha, e muito menos que este fosse seu tutor, pois “numa refeição, à mesa, ele acusou a sua mãe de ‘assassina de seu pai e de seu irmão Solon” (Andrade, 1987 :112).

67 O juiz de órfãos, por sua vez, julgou que o menino poderia continuar ao lado da mãe até a nomeação de um novo tutor. O advogado da causa percebeu o quão transtornado Quidinho estava por tê-la perdido e exclamou alto e bom som : “Euclides Filho está muito nervoso, anda neurastênico e é preciso uma providência” (Andrade, 1987 :114). A convivência do menino Manoel Affonso com o padrasto perturbara-o. Euclides Filho, então, “trabalhando pela voz da tradição e recebendo, diariamente, insinuações sobre o dever que tinha de vingar a morte do pai, um dia decidiu matar Dilermando de Assis” (Andrade, 1987 :265‑266).

68 Quidinho escolhera o dia 4 de julho de 1916 para executar sua vingança. Armou-se de um revólver. Segundo Dilermando de Assis (1951 :172), ele havia deixado um bilhete, no qual dizia que Nestor da Cunha tinha-lhe conseguido a arma. Ocorreu, então, outro

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embate. E, novamente, Dilermando enfrentou um Cunha, desta vez, no Cartório da Vara de Órfãos. Mais uma vez, matou e quase foi morto por um homem cujo nome era Euclides. A tragédia se repetira.

69 O caso não demorou muito para ir a julgamento. Na defesa de Dilermando, atuou Evaristo de Moraes, o mesmo advogado que o defendera da primeira vez. E, em 27 de setembro de 1916, Dilermando de Assis foi, uma vez mais, absolvido. Os dois Conselhos de Guerra absolveram-no, em grande parte, graças à brilhante defesa de seu advogado.9 A favor de Euclides da Cunha, o promotor apresentou o seguinte argumento : depois de fazer a apologia de Euclides da Cunha, […] declarou, categoricamente, que o mesmo partiu para a casa onde se achava Dilermando, com a esposa do escritor, Anna, com a evidente intenção de matar ou morrer […]. Era direito de Euclides invadir a casa para reaver o filho, que mesmo nascido da união da esposa adúltera com o réu não tivera, porém, sua filiação contestada pelo escritor […]. Falou que Euclides conhecia os fatos que lhe enodoavam a honra, concluindo que, assim agindo, guardando o segredo de sua desdita, demonstrara que não era um desequilibrado nem um desvairado, mas um verdadeiro forte. Guardou o segredo de sua mágoa. Demonstrou, assim que não era um desequilibrado nem um desvairado, mas um homem forte. Por último, em nome dos brios do Exército, pediu a condenação de Dilermando de Assis. Em defesa de Dilermando, argumentou Evaristo de Moraes : o grande tribuno carioca iniciou a defesa formulando um repto ao promotor público, alegando que, na época, se propalava que o réu Dilermando fora um protegido de sua vítima […]. Relembrou Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau, aos quais chamou de sinceros por terem confessado os seus pecados carnais. Quem não teve desses pecados aos 17 anos ? Em seguida, sustentou a doutrina que admite o adultério, desde que o seu responsável tenha pouca idade, classificando de convenções sociais as manifestações hipócritas dos que não têm coragem de confessar suas fraquezas […]. Divagou sobre a ação da imprensa que rebaixou o réu à categoria de homicida comum. Negou o direito, defendido pelo promotor, de Euclides da Cunha entrar na casa de Dilermando. Falou, por fim, do exercício de legítima defesa por parte do réu, não só em relação à sua própria pessoa, como em defesa da adúltera. Justificou a impossibilidade de Dilermando fugir, alegando o ridículo do aspirante a oficial fugir em trajes menores, pés nus, dando as costas ao agressor de sua própria casa. A própria lei — argumentou Evaristo de Moraes — sustenta que não se pode fugir, sempre que essa fuga seja vergonhosa e perigosa […]. Analisou a alegada condescendência de Euclides da Cunha com o adultério, alegada pelo promotor, aludindo que o grupo social repelia essa condescendência, que seria um verdadeiro ménage à trois, só sustentável quando a família estivesse destruída pelo amor livre.

70 Diante desses argumentos, Dilermando de Assis foi absolvido em 5 de maio de 1911 Uma nova sessão de julgamento pela morte de Euclides, em 3 de maio de 1913, adiada para junho de 1914, confirmou a inocência de Dilermando (Andrade, 1987).

71 Na segunda tragédia, aquela que envolveu Euclides Filho, o Jornal do Commercio relatou o julgamento, ocorrido em 28 de setembro de 1916. Nele, argumentava Evaristo de Moraes : pergunta-se : é ou não é de admitir a justificativa de legítima defesa, em face da boa interpretação da lei, da doutrina e da jurisprudência ? A defesa privada deriva psicologicamente do instinto de conservação, instinto primitivo, básico da existência, que, sendo o primeiro a aparecer, é o último a abandonar a criatura humana. Por isso Cícero viu na legítima defesa uma prescrição da lei natural, (non scripta, sed nata lex). Tão imprescritível é essa lei suprema que diante dela, cedem os sentimentos mais afetivos, as injunções do respeito filial, as

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contemplações para com o infortúnio e para com a inconsciência. Certo, sustentava o princípio da legítima defesa — assente no instinto da própria conservação — o trágico grego Sófocles, pondo na boca de Édipo as seguintes palavras em resposta às imprecações de Creonte, quando o acusava pelo homicídio do próprio pai : “Responde-me esta pergunta : — Se alguém agora mesmo aqui se aproximasse de ti e te quisesse matar, que farias, homem justo ? Buscarias saber se o assassino era teu pai, ou pelo contrário, o punirias de pronto ? Seguramente, se ligas a importância à tua vida, castigarias o agressor, sem te inquietar com a legalidade do teu ato ?” […] O indivíduo que age em estado de legítima defesa representa um instrumento de defesa do qual a sociedade se utiliza em uma situação de perigo iminente (Su la legitima difesa, 2ª. Edição, pág. 7) (Andrade, 1987 :130) O advogado mostrou ainda que, para Dilermando, não havia outra possibilidade senão a de agir em legítima defesa : 1º) tinha sérios motivos para sentir a sua vida em perigo, quando, já gravissimamente ferido, buscava a porta e era ainda alvejado pelo agressor, que ninguém continha ; 2º) que não se lhe apresentara, ao espírito, naquela ocasião, outro meio de escapar à morte, diverso do que empregou ; 3º) que ele não estava apenas emocionado, mas, sim, completamente perturbado, em razão das graves lesões recebidas, das quais quatro, porém, eram mortais (Andrade, 1987 :132).

72 A sentença fora proferida. E, mais uma vez, Dilermando fora declarado inocente pelo Conselho de Guerra. O tribunal da opinião pública, entretanto, não parecia querer convencer-se da sua inocência. Aliás, para Assis, este era “o lado mais revoltante da história : enfrentar a opinião pública” (Andrade, 1987 :61). Em seu livro A tragédia da Piedade : mentiras e calúnias de “A vida dramática de Euclides da Cunha”, tomou, em sua defesa, os argumentos de Lailler & Vonovem : a semente de uma acusação, por mais vazia que pareça, lançada ao espírito da opinião pública sedenta de emoções, ávida de escândalos com que alimente a sua curiosidade, deve fatalmente frutificar… E no dizer do grande Waldeck – Rousseau, a justiça das multidões substituindo-se a justiça da lei (Lailler & Vonovem 1897 apud Assis, 1951 :54-55). Nestor da Cunha, primo de Euclides, era um dos que faziam parte daquela multidão inconformada. Se a denúncia da Justiça pública não classificou o crime de assassinato de Euclides da Cunha como um ato de emboscada, nós teremos a franqueza de assim classificá-lo. Este homizio tornava-se, pois um ato aviltante da honra do desventurado escritor, provocador da explosão da sua dignidade em desagravo da mesma honra. O seu assassino tinha homiziado em sua casa (onde se deu o crime) a esposa e o filho mais velho do desgraçado escritor e mais outra criança que se tornou o ludibrio do mesmo escritor […]. “Era aquele homizio um ato de tácito acordo entre eles, agravado pela natureza das relações entre o assassino de Euclides da Cunha e a ex- mulher deste” […] (Tostes & Brandão, 1990 :109 ; grifo nosso).

73 Por duas vezes, a família Da Cunha não viu, pois, restaurada a sua honra. Restara uma única esperança — Manoel Affonso. Este, no entanto, rompeu com o código do mundo da honra.

74 Os jornais da época deram aos acontecimentos de 15 de agosto de 1909 o apodo de “tragédia da Piedade”. E de fato a sociedade da época entendeu que aquilo que se passara no bairro da Piedade era, sem sombra de dúvida, uma tragédia. Lia-se : Lamentável Tragédia : O prosseguimento do inquérito — novas diligências — o exame das armas — Notas e informações ( Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1909).

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Os depoimentos obtidos hontem pela policia do 23° districto levantam, finalmente, o véo, já tênue, que envolvia esse triste caso da estrada real de Santa Cruz e desvendam em sua repulsiva nudez factos e caracteres que mais pungente ainda tornam o drama doloroso em que foi sacrificado o saudoso e intemerato Euclides da Cunha (O Paiz, 18 de agosto de 1909).

Figura 2 : Correio da Manhã (RJ), 18 de agosto de 1909

Fonte : Biblioteca Nacional. Disponível em : . Acesso em : 15/01/2014

Figura 3 : Correio da Manhã (RJ), 20 de agosto de 1909

Fonte : Biblioteca Nacional. Disponível em : . Acesso em : 15/01/2014

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Figura 4 : Gazeta de Notícias, 6 de julho de 1916

Fonte : Biblioteca Nacional. Disponível em : . Acesso em : 15/01/2014

Todos os elementos dramáticos que inspiraram os teatrólogos gregos estavam presentes nesse caso : a honra, um valor caro à sociedade ; as harmatías, “os erros, as faltas graves de um membro maior da família [que] contaminam a todos a que ela estejam vinculados” (Brandão, 1991 :37) ; e a noção de fado (ou destino). Como nas tragédias gregas, os violadores da regra tinham de ser punidos. Era necessário restaurar a boa consciência da sociedade que fora abalada. A “tragédia da Piedade” foi, portanto, um escândalo no verdadeiro sentido da palavra — “o desmentido brutal das crenças mais queridas” (Carvalho, 1995 :220). “Os depoimentos hontem publicados pela imprensa […] vieram causar o mais profundo abalo no espírito público pelo novo aspecto, ainda mais doloroso, que passou a ter o tristíssimo caso” (Correio da Manhã, 19 de agosto de 1909).

75 A multidão agitava-se : “e a grita manifesta-se isófona, vibrante e felina como o pregão ardoroso da sarabatana estrídula de seu instigador… A turba delira bradando o ‘Crucifige !’” (Assis, 1951 :49). Iniciou-se, então, “a execução pública da coletividade através dos jornais” (Canetti, 1983 :54) — “um assassinato sem risco, permitido, recomendado, compartilhado com muitos outros constitui uma sensação irresistível para a grande maioria dos homens” (Canetti, 1983 :51).

76 Anna Emília e Dilermando de Assis enfrentaram, a partir daí, o que bem se poderia classificar, com Elias Canetti, como uma “massa de perseguição” (1983 :50) : Mais uma vez compareceu ontem à barra do júri, Dilermando de Assis, o assassino de Euclides da Cunha. Mais uma vez ficou adiado esse julgamento tão imperiosamente reclamado pela voz pública, para a satisfação à sociedade de um delito monstruoso. A falta de alguns jurados deu motivos mais a esse adiamento. Lá esteve o réu, entretanto — audacioso e cínico, a cuspir seus olhares de escárneo sobre a multidão que o espreitava como um ente desprezível e asqueroso (Folha do Dia, 1951 :48). […] Dr. Euclides foi covardemente assassinado, e não nas condições anteriores ditas ; não há legítima defesa ; donna Anna Solon estava de facto na casa do crime desde a tarde de terça feira (Correio da Manhã, 20 de agosto de 1909 ; grifo nosso). Segundo Dilermando de Assis, sua “defesa jamais foi aceita pela imprensa” — Dizia — Contra o Ten. Dilermando de Assis tudo ; a favor nada ; “Nem que nos pague contos de réis”, declarou o jornalista a um amigo que lhe apresentara um artigo, “defendo-me” (Assis, 1951 :85). […] A selvagem brutalidade de Dilermando e Dinorah, que não quiseram evitar o conflito (Assis, 1951 :231). O bandido Dilermando (que faz parte do nosso infeliz Exército — cheio de patifes —, pois que se assim não fosse della não faria parte) há muito que deveria estar morto a bem da moral pública o civilidade actual (A Noite, 5 de junho [sem ano]).

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Dilermando de Assis, o assassino de Euclydes da Cunha, chega ao Rio (A Época, 19 de julho de 1914).

Figura 5 : Notícias do jornal O Paiz sobre a tragédia da Piedade

Fonte : GloboEsporte, 21 nov. 2012. Disponível em : . Acesso em : 15/01/2014.

77 Não parece impróprio, nesse sentido, dizer que o casal foi vítima de uma espécie de rito de sacrifício. “Fora preciso que fosse condenado, arremessado ao abismo”— sacrificado. “Esta é a questão. Assim, ordenaram os grandes do país” (Assis, 1951 :52), “porque eu um simples peão, matei um rei. Porque eu, um aspirante anônimo, matei um deus”, disse Dilermando (Andrade, 1987 :61). A sociedade não perdoa quando se trata de julgar os caluniadores “de um valor” (Dampierre, 1954 :332), porque o escândalo “[…] mina a base dos valores recebidos, revela que não são intangíveis, torna ridículo o respeito que se pode ter por eles. O respeito pelo valor, esta ação corrosiva ganha inevitavelmente o valor em si e joga descrédito sobre ele” (Dampierre, 1954 :335).

78 Anna e Dilermando foram os bodes expiatórios, as vítimas do sacrifício. A expiação é o estabelecimento da aliança rompida (Mauss & Hubert, 1999), a restauração da harmonia social. Nesse sentido, as dramatis personae de um ritual estão claramente colocadas : as vítimas, Anna Emília e Dilermando de Assis ; o sacrificante, a sociedade ; e o sacrificador, os jornais, representantes da opinião pública.10 As palavras foram a arma utilizada nesse tipo de sacrifício, por meio da difamação, calúnia e intriga. Elas constituíram um meio de destruição da imagem alheia, tornando as pessoas desonradas, indignas de respeito, proscritas da sociedade. As vítimas sofreram, portanto, uma morte social.

79 Até o final de sua vida, Dilermando de Assis preocupou-se em “lavar sua honra”. Em seu livro A tragédia da Piedade : mentiras e calúnias de “A vida dramática de Euclides da Cunha”, escrito em sua defesa, declarou a respeito dos jornalistas : e assim, mentindo a si próprios e à sociedade incauta e de boa-fé — os jornais — oferece[ram] suas teorias evangelizadoras animando a crendice alheia, incitando-a a prosseguir na vingança, arrastando-lhe interjeições de cólera, armando-lhe o braço carrasco e sepultando, mercenariamente, no mais cruel dos ódios, o espírito frágil e impotente da desolada vítima (1951 :51).

80 A sensação de ser “um eterno e irremediável condenado” (Assis, 1951 :38) foi um estímulo para Dilermando escrever e publicar os livros que apresentavam sua versão da história — segundo ele, “a verdade dos fatos”. Estava convencido de que tinha de “lavar sua honra”, poder-se-ia dizer, da mesma forma que Euclides da Cunha. Dilermando fazia “parte de uma classe onde não podem ter força moral os que não defendem sua honra custe o que custar”. Preocupava-se também com sua “próle já numerosa e

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crescente ainda” (1951 :39). Sentia que sua descendência também fora maculada. Seus filhos “cresceram como vítimas dessa perseguição atroz contra Anna e Dilermando” (Andrade, 1987 :284). A propósito, sua filha Judith recordava em um de seus depoimentos : veja, que eu e meus irmãos crescemos com aquele estigma, são filhos de Anna e Dilermando. Quando voltamos da ilha de Paquetá, já quase todos moços, sofremos muita discriminação. Éramos olhados como filhos de um assassino e de uma mulher infiel, traidora. Filhos de uma mulher vaidosa, e doidivana […]. Quantas vezes lá mesmo na ilha de Paquetá, quando eu me aproximava de um grupo de meninas, pedindo para brincar também, elas se afastavam e diziam : não, mamãe não deixa. Você é filha de assassino. E os meus irmãos recebiam o mesmo tratamento (Andrade, 1987 :284 ; grifos nossos).

81 Com a morte de Anna, Dilermando e Euclides, seus descendentes continuaram a lutar entre si para lavar a honra das respectivas famílias. E, por extensão, a honra de cada um de seus membros. Poder-se-ia dizer que as famílias Assis e Da Cunha tornaram-se rivais da mesma forma que os Montecchio e os Capuleto, da tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Também nela a vingança é o centro gravitacional da situação dramática (Polti, 1973). O embate entre duas pessoas converteu-se, em ambos os casos, numa luta entre famílias. Estas duelavam publicando livros com a finalidade de, exculpando-se, incriminar seus desafetos na tragédia da Piedade.

82 Os livros Anna de Assis : história de um trágico amor e Águas de amargura : o drama de Euclides da Cunha e Anna são armas dessa contenda. O primeiro, escrito por Judith, filha de Anna e Dilermando, visava apagar na opinião pública a imagem demoníaca com que os jornais tinham carimbado sua mãe e seu pai. Apresentava as razões que tinham sido a força motriz das ações de Anna. Em contrapartida, retratava um Euclides diferente daquele imaginado pelo público, o homem visto por sua mãe.

83 Joel Bicalho Tostes escreveu, com Adelino Brandão, outra obra. Era um euclidiano do grêmio fundado em memória do grande escritor. Veio a integrar a família Da Cunha pelo seu matrimônio com Eliethe, neta de Euclides. Seu livro é dedicado às irmãs Eliethe da Cunha Tostes e Norma da Cunha Póvoa, que, “falecidas em 1989, sempre souberam defender a memória de quem realmente merece defesa” (1990 :7). Os autores pretendiam o “desmascaramento de um livro medíocre”. Afirmavam, nesse sentido, que as informações contidas na obra de Judith eram “absolutamente falsas”, taxando de mentirosa a declaração de que Euclides tinha arrancado o menino Mauro dos braços da mãe, privando-o do seio materno. Por causa disso, a criança teria vindo a falecer com apenas sete dias de nascida, vítima de inanição. No mesmo diapasão, pintaram um retrato de Anna bem pouco lisonjeiro, como se pode ler no seguinte trecho : […] o linguajar de Anna tem o sabor da linguagem de uma freira, de repetente cantando canções de bordel, no coro da capela ; ou de uma “madame” que surgisse, por bruxaria, numa clausura de carmelitas, contando anedotas de suas meninas (Tostes & Brandão, 1990 :139).

84 Caso viesse a existir uma terceira obra, para responder a esta, Tostes & Brandão declaravam, de antemão : “esperamos que estas páginas sejam suficientes. Mas se necessário, ou se assim nos forçarem os ousados caluniadores, nosso arquivo, mais uma vez, voltará a responder-lhes com novos documentos” (1990 :9). Quando esse livro foi escrito, já tinham se passado 81 anos da morte de Euclides da Cunha, mas os descendentes brigavam como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. A tragédia,

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portanto, não atingiu só os personagens que viveram num momento específico, mas ultrapassou gerações, suscitando discussões sobre valores e direitos.

Considerações finais

85 Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha e Anna Emília Solon Ribeiro nasceram e viveram numa sociedade envolta em um conturbado e profundo processo de mudança. Ambos, pertencentes a um grupo descontente com o regime monárquico — visto como epítome do atraso —, ansiavam pela República, na qual viam a encarnação da vida civilizada e do progresso.

86 Como correspondente do jornal A Província de São Paulo, Euclides tinha presenciado ativamente o maior dos dramas sociais daquele tempo, a Guerra de Canudos. Do seu ponto de vista, esta ilustrava cabalmente o conflito entre a civilização, representada pelas tropas republicanas, e a barbárie, encarnada pelos jagunços de Antônio Conselheiro. Em 1901, em nota preliminar ao seu magnum opus Os sertões : campanha de Canudos, tinha escrito, a respeito desse embate : “a civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável ‘força motriz da História’ que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (Cunha, 1902 apud Coutinho, 1966 :93). Nesse contexto, Antônio Conselheiro representava, aos olhos de Euclides, o “grande homem pelo avesso” : […] o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte e tendo uma função exclusiva : apontar aos pecadores os caminhos da salvação. Satisfez-se sempre com esse papel de delegado dos céus. Não foi além. Era um servo jungido à tarefa dura ; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionado pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível (Cunha, 1902 apud Coutinho, 1966 :196).

87 Para Euclides, Conselheiro tinha todos os atributos de um grande homem, mas enviesados para a barbárie. Do nosso ponto de vista, diríamos que o próprio Euclides era “o grande homem pelo direito”, o herói nacional da República, isto é, da civilização.

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Figuras 6 e 7 : Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro

Fonte : Coutinho (1966 : 92 ;145)

88 Se Conselheiro “era o profeta emissário das alturas que apontava o caminho da salvação, Euclides anunciava o futuro : “estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos. A afirmativa é segura” (1902 apud Coutinho, 1966 :144). Da mesma forma que a “multidão aclamava” Conselheiro, “representante das suas aspirações mais altas”, o mundo “civilizado” louvava em Euclides o emissário do evangelho laico.

89 Em 1897, esse arauto da civilização definiu a si mesmo, numa dedicatória poética a Lúcio de Mendonça, com os seguintes versos : Em falta de um postkarte, iluminura Que enquadre do que penso ou sinto a imagem, Em relevo, na artística moldura De um trecho fugitivo de paisagem — Aí vai, para saudá-lo no remanso De um lar, onde terá digno conchego, Este caboclo, este jagunço manso — Misto de celta, de tapuia e de grego… (apud Coutinho, 1966 :656)

90 Esse “jagunço manso”, esse mestiço que tinha um pé na tradição e outro na modernidade, viu-se repentinamente metamorfoseado em “jagunço bravo” com a traição de sua esposa. Não rompeu com o script cultural (Turner, 2008 :11). Acabou agindo como faria provavelmente qualquer jagunço de Conselheiro, ou seja, qualquer sertanejo : vingando-se, lavando sua honra com as próprias mãos, da mesma forma que um bárbaro. Ele não fora, pois, civilizado ; não se comportara civilizadamente, deixando ao Estado a tarefa de diminuir as contendas entre os seus súditos. Estava condenado à civilização, mas não se curvava às interjeições desta. Euclides submetera-se ao costume,

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mas Anna Emília recusou-se a fazê-lo. Quebrou as convenções, traindo o marido (Schehr, 2008) e dando margem a um escândalo.

91 No Brasil do início do século XX, havia “uma dupla moral sexual — que a homens permitia toda sorte de aventuras amorosas e da mulher esperava pureza, recato, dedicação incondicional ao marido, à casa e aos filhos” (Rocha-Coutinho, 1994 :85). Era, pois, o adultério encorajado nos homens, mas reprimido nas mulheres (Schehr, 2008). Por isso, Anna, certa vez, escreveu : “homem não peca, por isso pode prevaricar […]. Só os maridos têm honra a vingar” (Ribeiro sem/ ano apud Tostes & Brandão, 1990 :14). Desde o final do século XIX, porém, as mulheres desejavam homens que as percebessem também como amantes ; que fossem mais do que pais zelosos e maridos provedores. Anelavam homens-amantes. Anna relatou, oportunamente, o que havia encontrado nos braços de Dilermando : Passei uma tarde gloriosa e feliz com D. em nosso ninho de amor. Dormi no ombro de Hércules, os meus suores se misturando aos seus suores. Nossos cheiros se misturando, me entontecendo, me transportando. O sol refulgindo lá fora. O calor. Ele me acaricia lentamente, e suas mãos musculosas e seus dedos fortes vão descobrindo os segredos que existem em mim (Tostes & Brandão, 1990 :19). Euclides, por sua vez, estava convencido de que sempre soubera satisfazer “todos os desejos” da sua esposa, pois sempre a amara e lhe fora fiel. Segundo ele, […] minha mulher se queixou da profissão e trabalhos da vida que levei até aqui, e que me obrigou a meses de ausência… Neste caso, sua mãe, minha sogra… Meu sogro também era militar. Foi para [a] guerra do Paraguai, como tantos oficiais e soldados… Uma guerra que durou cinco anos… Neste caso, a mulher do meu sogro, todas as esposas dos soldados e oficiais que partiram para guerra, dos milhares que foram para só regressarem anos depois, [tinham] ficado liberadas para todas as aventuras… E as mulheres dos maridos que viajam embarcados, dos marinheiros, dos oficiais da Armada, dos que andam pelo mundo a serviço de sua pátria, seriam as mais libertinas das mulheres. Para elas, não haveria lar. Tudo ficaria reduzido a prostíbulos (Tostes & Brandão, 1990 :54).

92 Anna quebrou o paradigma de comportamento da mulher virtuosa encarnado por sua mãe. Como se respondesse a Euclides, disse : “e se fosse ao contrário ? Se as mulheres viajassem, como se portariam os maridos à espera ?” Não por acaso ocorreu-lhe, nesse momento, o triste destino da Penélope de Ulisses, sobre o qual havia lido certa vez na escola. Minha mãe ficou uma porção de anos esperando meu pai, que partiu para a guerra, como na história de Ulisses. […] Pobre Penélope. O marido podia dormir com quantas princesas ou escravas quisesse, lá por Tróia. Ela não. Tinha que se manter como se não tivesse nervos, carne, sangue, envelhecendo a fiar (Tostes & Brandão, 1990 :14).

93 Parecia que nada poderia abalar seu amor por Dilermando. Nem mesmo a morte de Euclides Filho, quando este, num duelo travado com seu padrasto para “lavar a honra” de seu pai, foi abatido a tiros. Contudo, um deslize acabaria com a união do casal : Dilermando, uma espécie de Tristão da lenda céltica, o seu “deus grego”, traiu-a. Nessa ocasião, Anna saiu de casa com os filhos, proferindo a seguinte frase, que ficou famosa : “você é o único homem que não tinha o direito de prevaricar” (Andrade, 1987 :159). Levou anos sem falar com Dilermando. Numa conversa que os dois tiveram a portas fechadas, já no final de sua vida, não o perdoou. Negou-se a dar-lhe o beijo do perdão, isto é o beijo de amante, que ele havia implorado (Eluf, 2009).

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94 Imbuída do espírito da modernidade, Anna colocou sua vontade acima de tudo (Guénon, 2001). Em suas declarações públicas, nunca apareceu como mulher arrependida, mas como uma romântica : “eu não errei, eu amei”, dizia (Andrade, 1987 :292). Colocou sempre o seu amor-paixão por Dilermando acima de tudo. Sacrificou o seu matrimônio, vinculo indissolúvel aos olhos da tradição.

95 Anna buscava a “inovação dos padrões” (Turner, 2008 :13). Já Euclides não admitia perder a honra, valor que lhe era conferido pelo ethos vigente no patriarcado, e provavelmente reforçado pelo costume — absorvido nas mais diversas instituições sociais, da família ao exército, passando pela moral positivista burguesa, que o fortaleceu ainda mais (Hilton, 1974). Seguiu, portanto, o paradigma tradicional do pater‑família. Anna, no entanto, aspirou ao amor, pois “só se ama uma vez na vida” (Andrade, 1987 :292). Quebrou um paradigma e, ao mesmo tempo, tornou-se um. O dilema de ambos residia, portanto, nos seus interesses desencontrados.

96 Como que numa confiança cega em seus anseios mais profundos, Euclides e Anna passaram a agir em conformidade com eles. O ato de um implicava uma reação do outro, em nome do valor de que não podiam, de forma alguma, abrir mão. Nas palavras de Monteiro Lobato, eles foram “vítimas da deusa fatalidade” (1946 apud Andrade, 1987 :179). O próprio Euclides, em carta ao poeta Vicente de Carvalho, parecia pensar a mesma coisa ao escrever-lhe : “quem definirá um dia essa maldade obscura e inconsciente das causas, que inspirou os gregos à concepção indecisa de Fatalidade ?” (Andrade, 1987 :84). Causas inconscientes encaminharam os dois no rumo da tragédia. E, como definia Hegel, com grande sagacidade e pertinência : “Tragik ist der Konflict, nicht zwischen Recht und Unrecht, sordern zwischen Recht und Recht”.11 Quanto a Euclides e Anna, ambos estavam plenamente convencidos de suas “razões”, o que contribuía para tornar o trágico fato um acontecimento inelutável.

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NOTAS

1. “Uma performance acontece enquanto ação, interação, e relação. Deste modo, uma pintura, um romance” — do mesmo modo os noticiários de jornais — podem ser performativos ou serem analisados ‘enquanto’ performances” (Schechner, 2011 :4). 2. A tradução portuguesa foi publicada pela Fundação Calouste Goulbenkian, de Lisboa, em 1971. 3. No Brasil, a prática do adultério já foi capitulada como crime no artigo 240 do Código Penal, revogado em 2005 pela Lei 11.106. Disponível em : . Acesso em : 13/12/2013. 4. Para explicar a morte da criança, há dois relatos : (1) depoimento de Judith, filha de Anna : “[Anna] implorava para que ele lhe entregasse a criança, mas o marido não cede aos seus suplícios. O pequeno Mauro faleceu e foi enterrado por Euclides no quintal da casa. Ele mesmo comunica a morte do menino à esposa, que o chama de assassino. A criança morreu porque fui impedida de amamentá-la. Perdi meu filho que morreu de inanição” (Andrade, 1987 :54) ; (2) depoimento de Norma Cunha, neta de Euclides. “A versão veiculada no capítulo 7 do livro de Anna de Assis, às páginas 53 e 54, é não somente aberrante, mas falsa. Segundo os autores, Anna teria deixado Euclides enterrar o cadáver do filho no quintal da casa, silenciando o crime, ocultando o cadáver e nada dizendo à polícia nem ninguém até a morte” (Tostes & Brandão, 1990 :27). 5. Há duas afirmações contraditórias sobre a paternidade de Luis. De um lado, Tostes, marido da neta de Euclides da Cunha, sustenta que o menino é filho de Euclides. Do outro lado, Judith, filha de Anna, afirma que de Dilermando é o pai. 6. Palavras que lhe eram atribuídas por Dilermando. 7. Euclides teria confessado ao seu amigo Coelho Netto depois de uma sessão de cinema, enquanto discutiam o filme. Eloy Pontes, infelizmente, não disse o nome do filme. 8. No romance Colomba, de Merimée (1965), a personagem feminina, Colomba, tem a obrigação de le’mbrar ao homem da família, Orso, a necessidade de vingar a morte do pai. As mulheres não podem “lavar a honra”, mas são encarregadas de lembrar os que têm o dever de fazê-lo. 9. Ambos os casos são relatados e comentados no livro Grandes advogados, grandes julgamentos : no júri e noutros tribunais, de Paulo Filho (2004). Disponível em : . Acesso em : 15/02/2014. 10. Vítimas os bodes expiatórios foram os animais ; o sacrificante é o “sujeito que recolhe assim os benefícios do sacrifício ou sofre seus efeitos”. Pode ser “um indivíduo, uma coletividade,

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família, clã, tribo, nação ou sociedade secreta” ; e “o sacrificador é o sacerdote, o mediador entre a massa e a vítima” (Mauss & Hubert, 1999 :159). 11. Dessas palavras resulta que “a tragédia não é o embate entre certo e errado, mas entre um direito e outro direito”.

RESUMOS

A “tragédia da Piedade”, o grande drama social republicano do início do século XX, que envolveu toda a sociedade brasileira de 1909, é o objeto desta pesquisa, cujo tema é o valor da honra. O cenário dessa tragédia foi o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e seu palco, o subúrbio da Piedade. O escritor Euclides da Cunha foi uma das dramatis personae do acontecimento, ao lado da sua esposa, Anna Emília, e do amante dela, Dilermando de Assis. Euclides, famoso pelo seu opus magnum Os sertões : campanha de Canudos, diante da traição de sua esposa, tomou a decisão de lavar sua honra com sangue. No duelo, contudo, foi morto por Dilermando. O homicídio do marido traído pelo amante de sua esposa tornou-se um escândalo, suscitando, como problema de pesquisa, o custo social do valor da honra.

This article is about the ‘tragédia da Piedade’. Its main theme is honor and its social costs. It analyzes a criminal case which happened in Brazil at the beginning of the twentieth century, when the Republican regime was just finishing its first decade of existence. The dramatis personae of the tragedy involved Brazil’s most famous writer, Euclides da Cunha, the renowned author of Os Sertões: Campanha de Canudos. He lived in a society which was changing, and where patriarchal tradition and State Law coexisted side-by-side. When Euclides’ wife, Anna Emília, betrayed him, he reacted as a traditional male would have done. He decided to wash his honor with blood. But, in the showdown with the young lover of his wife, Dilermando de Assis, he was killed by his opponent, unleashing a full-blown social drama which shook the very foundations of the whole society of Rio de Janeiro, the capital of Brazil at the time. The case, which reached its peak in a neighborhood called ‘Piedade’, became something of a national scandal about honor and shame, guilt and vengeance.

ÍNDICE

Keywords: honor, betrayal, tragedy, scandal, brazilian republic period Palavras-chave: honra, traição, tragédia, drama social, brasil republicano

AUTORES

ARNO VOGEL

Arno Vogel é professor titular de antropologia do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce) e membro fundador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), onde dirigiu o Centro de Ciências do Homem. Atualmente é membro do Grupo Assessor Especial da Coordenação Geral de

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Cooperação Internacional (CGCI/Capes) e do corpo editorial de AVÁ Revista de Antropologia e Cuaderno Urbano, na Argentina ; e de Antropolítica e Anthropológicas, no Brasil. Contato : arnovogel17[at]gmail.com

REGIANE FERREIRA

Regiane Ferreira é Mestre em Sociologia Política (UENF) e assistente do Prof. Dr.Arno Vogel. Atualmente, está ministrando as disciplinas : Antropologia I, Antropologia III e Antropologia IV do curso de graduação em Ciências Sociais (UENF). Em 2014, organizou e ministrou, ao lado do professor Dr. Arno Vogel, o minicurso Euclides da Cunha : Glória e Tragédia (UENF). Contato : regianesilfer[at]gmail.com

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A proposta da Tecnologia Comparada

Rainer Miranda Brito

NOTA DO EDITOR

Recebido em 08/04/2014 Aprovado em 20/10/2014

A tênue ousadia de uma proposta1

1 Em 1935, ocorria a primeira impressão de L’encyclopédie française, que, assegurada e planejada no início da década pelos historiadores Lucien Febvre (1878‑1956) e March Bloch (1886‑1944), distribuía entre vinte tomos uma ilustre seleção de intelectuais franceses abordando imensas tematizações. Artes, matemática, biogênese, evolução humana, religião e tantas outras temáticas derivadas passaram pela famosa compilação, que sobreviveu até 1966. Mas ela é aqui, em verdade, apenas uma escusa ; é o futuro intuitivo de um de seus colaboradores o motivo dessa menção. André Leroi-Gourhan, responsável pelo capítulo I da seção A do tomo VII. “O homem e a Natureza” (L’ homme et la nature), abre como um peculiar verbete a seção “Formas elementares da atividade Humana” (Formes élémentaires de l’activité humaine) já com a assertiva : “[…] [a] Tecnologia é o estudo dos meios pelos quais o homem reage ao seu ambiente. Mais especificamente, é o estudo dos procedimentos que lhe permitem utilizar os materiais disponíveis em seu ambiente físico” (Leroi-Gourhan, 1936 :10-3).

2 Poderia, se rememorasse Leroi-Gourhan seus contemporâneos, ter iniciado esse verbete com os velhos e previsíveis, mas não menos comuns e desejados na Sociologia/ Etnologia francesa da época, exemplos entre o natural indomado, aquele da óbvia e sublime rusticidade mágica, e o humano sagaz, aquele da superação estratégica do que lhe era instintivo e, por isso, um catalizador negativo de sua transgressão à natureza. Mas não o fez ; vinha, afinal, Leroi-Gourhan por uma estranha trajetória intelectual : um conhecedor do oriente, tendo realizado missões de pesquisa arqueológicas no pré-

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guerra no Japão, alguém dotado de denso conhecimento linguístico de mandarim e russo, o que lhe garantiu uma posição menos dolorosa na resistência francesa quando retornando ao país em 1939. Não obstante, mesmo nos turbulentos tempos de guerra, manteve essa estranha trajetória em contínuo desvio em relação às expectativas institucionais sobre os produtos de suas pesquisas.

3 Por que optou Leroi-Gourhan, jovem pesquisador adjunto ao grupo de estudantes responsáveis pela reorganização do antigo museu pariense etnográfico de Trocadero, em quebrar uma óbvia expectativa intelectual em um verbete anexado à seção nomeada como uma “introdução” à Antropologia, Etnologia e Etnografia ? Por que não estavam ali os tão comuns e desejáveis exemplos do “Homem” e da “Natureza”, tão bem encarnados por Augustus Pitt Rivers (1827‑1900) e seu legado/modelo de estudos antropológicos, mas sim aquele amontoado de detalhes descritivos entre o “Homem” e a “Natureza” trasvestidos de “matéria” ? Talvez a resposta seja parte do futuro intelectual de Leroi-Gourhan, em especial no que tange a suas primeiras produções bibliográficas autorais, quase dez anos depois, na qual consistentemente germinou a assertiva manifestada nesse capítulo da enciclopédia. Se nesse verbete há pelo menos uma incomum opção de apresentação do tema “Homem e Natureza”, não o é pelo motivo de uma pura reprodução dos movimentos intelectuais da Etnologia daquele início de século quando ainda com os primeiros contatos com a Antropologia, esta ainda exclusivamente anglófona e que não raramente se propunha como uma ciência natural. Não estava Leroi-Gourhan próximo a esse recente contato com a então disciplina anglófona ; seus textos e sua futura trajetória intelectual sequer se aproximariam factualmente de categorias pragmáticas como as de “função social” de Radcliffe-Brown, da preponderância da espécie e suas necessidades intransponíveis de Bronislaw Malinowski e dos aspectos deterministas ambientais de áreas culturais de Friederich Ratzel e Franz Boas. Optou Leroi-Gourhan por uma exceção explicativa, por uma ousada alternativa própria. Trilhou uma pequena transgressão pessoal que projetou corolários bastante distintos das considerações acerca da “Tecnologia” da Sociologia/Etnologia francesa, que a considerava como um subtópico do fato social de causas fundamentais ao “social” subordinadas. Rompia definitiva e claramente com o nome maior da Sociologia/ Etnologia francesa da primeira metade do século XX : rompia com seu professor Marcel Mauss (1872-1950).

4 Embora a continuidade de uma certa linhagem alternativa da Sociologia/ Etnologia francesa, aquela de E. Durkheim > M. Mauss > A. Leroi-Gourhan (como reiteram por exemplo Bromberger et al, 1986 ; Lemmonier, 1980, 1992 ; Sigaut, 1992), seja o foco e a justificativa das raras menções antropológicas a Leroi-Gourhan, não é essa suposição integralmente verdadeira. Se foi Leroi-Gourhan aluno e discípulo de Mauss, o foi durante sua permanência na escola de altos estudos e no instituto de Etnologia da Universidade de Paris, culminando em 1936 numa monografia (1936b) e em 1945 em seu doutorado (1946) ; e foi precisamente nesses anos de encontro com Mauss que a aparente continuidade dessa linhagem foi frustrada : houve problemas pessoais e intelectuais sérios entre o mestre e seu discípulo.

5 Afinal, por que teria produzido um discípulo de Mauss, detentor das inovadoras e ousadas intuições teóricas acerca da dádiva, uma monografia sobre Geografia física das populações do Reno e um doutorado de Arqueologia sobre o pacífico norte, escritos nos quais mais da metade das economias textuais se compunham de análises rupestres, análises líticas e áreas de migrações e ocupações humanas pré-históricas ? Por que,

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enfim, o teor sociológico (do socius), tão caro e próprio ao mestre se reduz a minúsculos comentários nos dois principais documentos escolares tecidos pelo discípulo que, em teoria, deveriam celebrar a união intelectual entre ambos ? A declaração de Mauss sobre a conclusão e o teor dos escritos da monografia e do doutorado de Leroi-Gourhan foi de que “se sentia uma galinha que chocava um pato” (Leroi-Gourhan & Rocquet, 1982 :35) ; a tensão crescente entre ambos, apesar de pouco lembrada, existiu não só nas entrelinhas. Em toda obra de Mauss as referências ao seu discípulo, em especial nos tópicos envolvendo a Tecnologia, ou tecnologia (sempre em minúsculo, nos termos de Mauss), beiram a inexistência. Quando a tratar de “técnicas” e/ou “tecnologia”, embora nunca as defina de fato, Mauss enaltece explicitamente, por exemplo, os escritos do etnobotânico, linguista e etnólogo André-Georges Haudricourt (1911-1996), pelo qual nutria grande apreço pessoal e intelectual, a fim de ocupar as lacunas de citação que supostamente poderiam ser divididas com alusões ao discípulo Leroi-Gourhan.

6 A suposta continuidade dessa linhagem desconsidera, quando evocada nos textos e nos discursos acerca de Leroi-Gourhan, os acidentes e a pluralidade da obra de um intelectual que se aliou, e se enunciou, como imerso em diversas disciplinas sem tornar clara sua predileção por uma disciplina específica. A manifestação daquele descuido, promovido pela suposta ideia daquela linhagem alternativa sobre as filiações da etnologia francesa que enleia Mauss e Leroi-Gourhan como uma responsabilidade de causas uníssonas assim atribuindo ao segundo a “sombra do mestre e suas ideias”, diz respeito a um considerável desconhecimento de grande parte dos socioantropólogos acerca do passado substantivo da Etnologia francesa. E, se extremado tal desconhecimento, evidencia um inevitável favoritismo de alguns autores na, hoje, disciplina antropológica, promotor de uma espécie de sinédoque propositalmente ingênua ; isto é, tomando a pequena parte “André Leroi-Gourhan” pelo virtuoso todo “Marcel Mauss” sem que o teor paradoxal dos escritos do primeiro sejam relevados às proposições do segundo. Se hoje, século XXI, a disciplina antropológica goza de alguma unidade, não fora ela, outrora, senão uma intensa confusão de indicações de nomes intelectuais, teorias e pragmatismos mais e menos célebres que não se atavam em absoluto como uma unidade disciplinar reconhecível.

7 O caso Leroi-Gourhan e Mauss, com a exceção de que estes estabeleceram um finito compromisso institucional e pedagógico, não é tão diferente da situação Tarde (1843‑1904) e Durkheim (1858‑1917). Na mesma condição em que a oposição entre Tarde e Durkheim não possibilita miscigená-los a uma una proposta de “Sociologia”, já que disputavam formulações muito distintas da disciplina assim nomeada, os compromissos entre Leroi-Gourhan e Mauss não sustentavam uma atividade intelectual teórica e metodológica comum ; Leroi-Gourhan não foi uma ilustração do legado da Sociologia/Etnologia francesa, pois sim uma de suas partes malditas e talvez indesejadas (Stiegler, 1992). Não corroborava, Leroi-Gourhan, a supremacia da Sociologia perante a profusão de possibilidades da Etnologia ; afirmava, pois, enfaticamente no primeiro período de seu percurso intelectual que “[…] [os] limites da etnologia são imprecisos e arbitrários […]” (1993a :20). Havia, nesse primeiro momento autoral de Leroi-Gourhan, uma lúcida insistência pela não unificação disciplinar da Etnologia ; tratar-se-ia esta antes de uma fenda disciplinar do que de uma interdição temática.

8 De todas as áreas disciplinares nas quais poder-se-ia submergir o nome e os escritos de Leroi-Gourhan – Peleontologia, Arqueologia, Geografia, Antropologia, Etnologia –

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insisto aqui em um neologismo, ou em uma apropriação mais rigorosa de um termo geral utilizado pelo autor que não se atava a nenhuma disciplina especificamente. Esse neologismo provém do segmento ligeiramente contemporâneo ao período de sua tese, entre 1936 e 1946, que não se configurou como um emblema disciplinar devido aos rumos pelos quais as pesquisas de Leroi-Gourhan se enveredaram posteriormente, mas manifestou-se sobretudo como uma latente e lúcida alternativa de investigação material : a Tecnologia comparada. Foi esse um período relativamente curto se levada em conta a longa produção intelectual de Leroi-Gourhan, mas talvez o mais curioso em relação àqueles que o sucederam : foi este um período inteiramente experimental e propositivo. Alongou-se por dois volumes, publicados em 1943 e 1945 (1993a, 1993b), uma concisa investigação que além de retornar às quebras de expectativa presentes em seu verbete de 1936 na Enciclopédia francesa, avançou como uma via paralela à unificação monodisciplinar da Etnologia francesa. Abriu esse neologismo, por um breve período, um veio de ambição e rigores um tanto incomuns ; pretendia Leroi‑Gourhan tratar, como a maioria de seus contemporâneos, do “Homem” na sua escala mais delicada, aquela do prisma da evolução. Não o faria, entretanto, a Tecnologia comparada pelas mesmas vias que os evolucionistas britânicos fizeram, tampouco como os ligeiramente evolucionistas franceses dos inícios da socioantropologia ansiavam concretizar a agenda ; fizera-o Leroi-Gourhan, por meio da Tecnologia comparada, pelo contraste não nominalista do que se obliterava nos discursos sobre a humanidade.

9 Fizera-o por meio dos recursos excêntricos à humanidade : pela matéria-prima e pela matéria-em-obra. E poder-se-ia iterar ainda que o fizera “para” e não só “a partir” [d]esses recursos ; a humanidade, neste caso, é apenas uma orientação, na maior parte da proposta da Tecnologia comparada. É, a humanidade, apenas um singelo relevo de união nos trilhos pelos quais percorrem metodicamente as comparações entre características e caracteres materiais que se chocam a esta categoria maior, a “humanidade”, por um breve período de atrito : como aquele de uma troca de trilhos por um vagão em uma linha férrea. Isto é, rápida e perigosamente se cruzam para uma tópica e irreversível função de reorientação de curso. Não possuem maiores vínculos do que esse, da troca de trilhos, condizente a uma porção ínfima do itinerário. É, todavia ,a “humanidade” inevitável ; sentirá sua pressão de elevação todo vagão em trânsito pelos trilhos. E por ser inevitável, é precisamente lacônica. Se observada pela ótica da progressão do caminho e do alongamento dos trilhos em um horizonte cada vez mais amplo, torna-se irrisória como fundamento do percurso. Trata-se, pois, a humanidade apenas de uma característica pontual em uma exponencial e progressiva junção de andamentos ponto a ponto : um pequeno detalhe comum em um complicado e sui generis processo de evolução.

10 E é por meio dessa ousada consideração que um caminho de um método experimental se abre : uma trilha metodológica que se nega a expelir a evolução para longe da matéria, fundindo-as, evolução e matéria, na irredutível maleabilidade da atividade técnica como problema de articulações entre espessuras, densidades e texturas materialmente objetivas.

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Articulações e contrastes entre matéria e atividade técnica

11 Poder-se-ia começar o detalhamento da proposta pela pergunta : mas qual é, afinal, o conceito de tecnologia envolvido no ambiente sociológico francês da primeira metade do século XX ? Embora não seja Mauss o único a citá-lo e engendrá-lo analiticamente, já que também se poderia afirmar que o fizeram parcialmente nomes como George Montandon (1879‑1944), Henri Hubert (1872‑1927), André Schaeffner (1895-1980) e mesmo Robert Hertz (1881‑1915), é na obra de Mauss que todas as menções ao termo encontram abrigo conceitual. Sendo assim, que tecnologia é esta de que fala Mauss, sempre em minúsculo, da qual se afasta por princípio Leroi-Gourhan ?

12 Há sobretudo três momentos nos quais Mauss explicita seu vocativo de tecnologia : em seu “Manual de Etnografia” (2002c), em um pequeno artigo nomeado “As técnicas e a tecnologia” (2004) e em um artigo sobre as divisões e proporções da Sociologia (2002a). Nesses três documentos os termos “técnica” e “tecnologia” estão alocados de duas formas : como termos recorrentes de um subtópico ou como seções consideráveis, praticamente como subtítulos. E por que essa disposição interessa ? Porque, antes de atingir as definições transcritas de Mauss de “técnica” e “tecnologia”, é conveniente salientar como se apresentam essas definições.

13 Se no artigo sobre divisões e proporções da Sociologia o termo “tecnologia” surge apenas uma vez, “técnica” aparece diversas vezes como substantivo que divide vírgulas com motes tais como “religião”, “moral”, “economia”, “estética” e “sociedade”. No artigo “As técnicas e a tecnologia” e na seção “Tecnologia” do manual, os termos “técnica” e “tecnologia” se cambiam com certa liberdade ; a estratégia de Mauss nesses dois documentos é fazer com que a tecnologia seja uma alteração escalar das técnicas. Isto é, afirmando que a tecnologia “[…] pretende concisamente estudar todas as técnicas, toda a vida técnica dos homens desde sua origem como humanidade até nossos dias. Ela está na base e no topo de todas as investigações acerca deste objeto [da técnica como fato social]” (2004 :434). O comentário no manual de etnografia não é tão distinto, mas é neste que as definições surgem objetivamente, ao passo que no artigo anterior as definições se confundem com digressões sobre a ligação de todos os fatos sociais com este em específico, a técnica. E eis uma pré-apresentação de definição de Mauss : a técnica é uma manifestação social, um fato social como qualquer outro, possuindo portanto a especificidade de um domínio próprio que pode ser aglomerado em sua multiplicidade por meio do estudo desse aglomerado de fatos sociais : por meio da tecnologia. A tecnologia é, desse modo, antes uma ciência (um conjunto organizado de conhecimentos relativos a certos fenômenos) macroscópica de ocorrências microscópicas, da técnica.

14 E enfim chego à definição de Mauss desse específico fato social : “[…] [as técnicas] se definem como atos tradicionais agrupados para a obtenção de um efeito mecânico, físico ou químico conhecidos como tais”. Eficácia e tradição : é disso que se trata a técnica, como confirma em seu texto sobre as técnicas do corpo (2002b :10). E a Sociologia (e a Etnologia), como a ciência dos fatos sociais, está então integralmente apta a investigá-las, está completamente autorizada a promover sua própria “tecnologia”. E o faz Mauss segundo seus princípios. Divide-a em quatro aspectos : I) técnicas do corpo ; II) técnicas gerais de usos gerais ; III) técnicas especiais de usos gerais e industriais gerais de usos especiais ; IV) industriais especializadas de usos especiais (2002c :26). O

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esmiuçamento de cada aspecto não é preciso e não raramente essa divisão, apresentada como tabela no manual de etnografia, é um tanto ignorada no decorrer do texto. A tecnologia promovida pela ótica dessa Sociologia seria uma modalidade de apreensão de determinados fatos sociais ; – que, curiosamente, apesar de possuírem as técnicas um domínio sociológico próprio para investigação, aquele da tecnologia, não exigem métodos distintos daqueles axiomatizados por ests disciplina dos fatos sociais totais. E viabiliza tal consideração um alargamento da disciplina perante seus âmbitos de investigação efetivamente ? Possivelmente não. A expansão de atuação da Sociologia se realiza ao custo da esterilização desse novo tópico de interesse : é apreendido apenas sociologicamente, nada é acrescido ou alterado no método sociológico para a promoção de sua “tecnologia” ; continua o mesmo e integralmente sociológico (do socius). Embora propositiva aqui, essa acusação é um tanto injusta, já que uma disciplina sempre intenta se definir por seus axiomas. Porém, no caso da “tecnologia” como tópico, muito se ignora ao encará-la sob esse prisma pouco interessado no rigor das articulações materiais e mais obcecado pela teorização metodicamente submetida às grandes intenções de uma Sociologia geral (ou de uma Etnologia).

15 E o problema é que “[o]s quadros classificatórios das técnicas não foram estabelecidos por tecnólogos, mas sim por etnólogos que tinham mais em vista uma repartição dos produtos de um grupo estudado por meio de divisões cômodas do que uma análise da fabricação [destes produtos]” (Leroi‑Gourhan, 1993a :13). Viram, esses etnólogos, a forja e não o trabalho da metalurgia, a vestimenta e não o tear minucioso das fibras. Que tecnologia é esta que se direciona ao produto e não à produção ? É a “tecnologia” supracitada, aquela da dúbia solução : classificar as técnicas pela sua eficácia. É essa a tecnologia em questão, de Mauss e tantos outros, sempre em minúsculo, submetida às explanações sociologizantes. Mas insiste Leroi-Gourhan, na obra da proposição da Tecnologia comparada (1993a ;1993b), em promover um desvio : a má delimitação da Etnologia como uma circunstância, mesmo com a sombra megalomaníaca da Sociologia por perto, pode impulsionar um estudo tecnológico não sociologizado das técnicas.

16 Prosseguindo o rápido confronto entre Mauss e Leroi-Gourhan, chega-se aos termos : o que tem a dizer Leroi-Gourhan acerca do termo “tecnologia” ? Alguma coisa bastante indireta a ser descrita mais adiante ; por ora, basta afirmar que a Tecnologia, no caso de Leroi-Gourhan, sempre em maiúsculo, é um complexo de processos-exercícios metodológicos de estudos acerca das técnicas. A questão é, no fundo, a técnica e seus procedimentos materiais de estudo. Essa implicação desloca então o texto em direção à técnica, ou ao que acerca dela pode tal exercício tecnológico considerar.

17 E o que diz Leroi-Gourhan acerca da técnica ? Pouco ; quase nada, mas o dito é de algum modo intrigante e ignora quase por completo, não fosse o rápido agradecimento formal no início da obra-gênese da proposta, a pessoa e os trabalhos de Mauss. Leroi-Gourhan enfatiza que sua proposta não se trata em absoluto de conceituar as técnicas, de torná- las conteúdos de um ofício descritor enciclopédico, mas sim de investigar a composição tópica de conjuntos tecnicamente articulados. E o que são tais conjuntos tecnicamente articulados ? Nada senão a matéria em sua densidade mais radicalmente material (1993a :18). E por que classificá-la de tal maneira ? Para que seja apreendida como determinante por si só ; é a técnica, afirma Leroi-Gourhan, que está subjugada à matéria e não o contrário, como alega a taxonomia da tecnologia de Mauss como tópico sociológico.

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18 Assim se anuncia na abertura do caminho pelo qual seguirá a Tecnologia comparada : as divisões propiciadas pela proposta dizem respeito a um percurso da atividade material em um leque seletivo, não exaustivo portanto, das possibilidades de objeção oferecidas por determinadas estruturas de conjuntos tecnicamente articulados. Não há, enfim, nessa proposta-obra de dois volumes uma definição categórica e universalizante de técnica ; e por quê ? Porque não há conjunto tecnicamente articulado capaz de ser apreendido se não pelas vias de uma aferição tecnológica sempre particular. Precisar um conjunto tecnicamente articulado é conceber uma tópica alteridade material que se arranja circunstancialmente. Embora inicialmente, na abertura do volume I da obra, o autor ilustre seu esboço de dois provisórios aspectos de um binarismo tecnológico : são assim nomeados o fato e a tendência. Conquanto sejam ambos considerados uma parte crucial dos escritos de Leroi-Gourhan (Mura, 2011), não proponho aqui que assumam esses dois aspectos dimensões maiores do que aquelas originalmente reservadas na obra em questão, ou seja, a de apontamentos bastante rápidos e confusos que conduzem apenas inicialmente o inquérito material da proposta.

19 É, pois, importante citar os conceitos de fato e tendência com um certo rigor, dado que são uma síntese possível, conquanto talvez não a aqui preferível, da proposição geral da obra de Leroi-Gourhan : são fato e tendência “[…] duas ordens de fenômenos de naturezas distintas […]” (1993a :27) respectivamente alinhadas a (I) uma ordenada peculiar de cada implemento reificado como caso, bem como a (II) uma diretriz previsível, retilínea e inevitável de um implemento técnico. O fenômeno da tendência é uma progressão de uma ordem lógica, estabelecido por aquilo que, afirma Leroi‑Gourhan, independe dos detalhes de apresentação da matéria : pela natureza de uma existência de determinados materiais arranjados como um conjunto técnico possível. Uma ferramenta qualquer, como uma faca ou um machado, denuncia sua tendência quando concebida no sílex lascado, cronologicamente anterior a ambos : há algo de contínuo entre seus contornos e suas funções possíveis que ultrapassa o teor dos materiais pelos quais são constituídos.

20 A tendência é um horizonte de possíveis na existência técnica dos materiais articulados : trata-se de um limite de função de um determinado objeto passível de se anexar a uma específica tarefa material. A tendência é, de alguma forma, um esquadro móvel deslizante sobre um extenso painel acerca de uma organização inorgânica ; é neste extenso painel que a diacronia absoluta encontra uma configuração completamente aleatória. Pois como pode ser um conceito aleatório ? Pode por este se tratar apenas de uma expectativa ; e esta é orientada pelo primeiro fenômeno : aquele do fato, definido como algo “[…] imprevisível e particular […] [um fenômeno] único, inextensível, [uma espécie de] compromisso instável que se estabelece entre as tendências e o ambiente [material]” (1993a :27). Enquanto a tendência, previsível e em alguma medida aleatória, ordena-se diacronicamente, percorrendo por etapas cada quadrante de um extenso painel de possibilidades, o fato demarca a transição entre essas etapas de deslocamento, reificando essa progressão por acontecimentos materiais específicos : um objeto, uma ferramenta, um processo técnico material. O fato é o ajuste momentâneo a que um esquadro móvel, a tendência, precisa se submeter quando um detalhe no painel é observado. Poderia dissertar muito acerca do fato e da tendência. Mas como já anunciado, não têm ambos um lugar aqui maior do que aquele delegado por Leroi- Gourhan na obra em questão ; servem a este texto da mesma forma que servem ao empreendimento do autor : são um controle temático inicial de método. Atuam como

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eixos de localização para a imensa e inacreditável massa de comparações realizadas por Leroi-Gourhan sobretudo no primeiro volume da obra. E tanto o servem apenas como um controle temático inicial que se apresentam decrescentemente ao longo do volume I, ao ponto de se ausentarem no volume II. Possivelmente tais conceitos sejam questões não tão fundamentais quanto poderiam ser ; uma evidência dessa não tão fundamental importância pode ser notada quando salientado o contraste entre o volume I e o volume II do obra. No primeiro caso, fato e tendência só são ressaltados em cerca de 10 páginas das 327 e no segundo sequer surgem como subtópicos. E, embora esses complicados detalhes de contraste possam ser aferidos, não serão feitos aqui senão à luz do fundamento deste texto : por meio da proposta metodológica em questão. Quando, ao tratar de maneira seletiva e mínima ambos os volumes, percebe-se que o fôlego do método proposto por Leroi-Gourhan à medida que se progride na obra se robustece proporcionalmente ao aumento de sua recusa em se qualificar como Etnologia. E por quê ? Porque a Tecnologia comparada não é mais, ao longo do percurso de escrita dos volumes I e II, apenas um experimento casual realizado em uma folga da Etnologia, mas uma necessidade sintática da experiência de uma fenda disciplinar : uma flexão disciplinar por meio do regime de comparação material progressivamente menos conceitual. E então o fato e a tendência, conceituais, dissolvem-se já nos inícios da obra para serem incorporados pelos tópicos-problemas materiais e circunstanciais da obra em curso avançado, no volume II, agora repleta de motes ilustrativos menos teorizáveis do que antes.

Da divisão da obra, tipologia e organização

21 Mas não se enveredará aqui nos detalhes de conteúdo da obra, como já declarado, porque não há tempo e texto suficientes para que o faça e porque seria desejável que o leitor fizesse contato direto com ambos os volumes. E para que aqui se possa prosseguir numa análise não conteudista sem que o argumento acerca do contraste interno à obra esmaeça, é crucial reiterar sua disposição : “Evolução e técnicas” (Évolution et techniques) é uma obra de dois volumes : “O homem e a matéria” (L’ homme et la matière) de 1943 (1993a) e “Ambiente e técnica” (Milieu et technique) de 1945 (1993b), ambos reeditados respectivamente em 1971 e 1973. O subitinerário da obra é anunciado num tripé : técnicas de fabricação, técnicas de aquisição e técnicas de consumação. No entanto, os sumários denunciam algo sobre o teor dos volumes : houve um desvio entre eles.

22 No volume I (1993a), o qual antecipadamente poder-se-ia reclamar como determinista, “o homem e a matéria”, a divisão ocorre em cinco partes : I) estrutura técnica das sociedades humanas ; II) meios elementares de ação sobre a matéria ; III) transportes ; IV) técnicas de fabricação ; V) primeiros elementos de evolução técnica. Soa tal estrutura textual como um compromisso tipológico ? Certamente, e o é na medida em que o esforço consiste em atingir o elementar da matéria, o imponderável da tarefa laboral. Encadeia-se, no miolo desse volume, uma taxonomia. Mas uma outra taxonomia das técnicas, aos moldes do que fez Mauss ? Talvez sim, se apreendida por seu claro determinismo entre as descrições de técnicas e os exemplos que sustentam como exercícios, após cada assertiva, de generalização acerca do grupo humano. E talvez não, se notado seu contido conteúdo materialista, este das etapas evolutivas dos conjuntos técnicos, como um método de comparação entre longas durações (milênios). Teor, este

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último, que se apressadamente considerado se torna refém de uma acusação restritiva, capaz de qualificar tal discrepância de tipologias, quando mais distantes de Mauss, como materialmente fundamentalistas.

23 E é verdade ; avançado o itinerário das classificações de Leroi-Gourhan, neste primeiro volume da obra, o leitor depara-se, meio às divisões supracitadas, com um capítulo de título inusitado : “Meios elementares de ação sobre a matéria”. Tal capítulo, varrendo essencialmente com muito esmero subtópicos como a percussão e a preensão como fundamentos cinéticos dos gestos, anunciava átomos da atividade humana caracterizados por uma tipologia inescapável. Afinal, o que está excluso do “meio elementar de ação sobre a matéria” ? A proposição é clara : “[o]s meios elementares são em si significativos […] [pois] correspondem a um certo estado de evolução técnica […]” (1993a :43). Não há fuga ; tudo cabe a uma correspondência em um estado de evolução que, em absoluto, só pode oferecer essa assertiva por meio de uma detalhada tipologia que crie uma gama de possibilidades para identificação dos meios de ação, das ferramentas e de seus modos de uso. Para estabelecer correspondências era preciso diversificar as possibilidades de identificação dos casos materiais.

24 A pretensão das correspondências rapidamente é abandonada e Leroi-Gourhan não chega sequer a tocar na questão novamente, sobrando apenas as detalhadas tipologias, os desenhos de angulação do trabalho com diversas ferramentas, a diversificação das possibilidades dos “meios materiais de ação”. Não por acaso, devido ao detalhe e ao cuidado de Leroi-Gourhan com sua tipologia, é por meio desse aspecto, além dos conceitos de fato e tendência, que um revisionismo tecnológico da obra de Mauss surge através de uma linhagem de autores da “Antropologia da técnica” atualmente (Mura, 2011 ; Sautchuk, 2007). Embora este texto pretenda se afastar dessa definição disciplinar da “Antropologia da técnica”, esta posterior aos esforços de Leroi-Gourhan e menos interessadas em sua proposição de transdisciplinaridade, é urgente citá-la por sua inquestionável excelência, atualidade e criatividade teórico-metodológica.

25 E o compêndio classificatório no volume I prossegue : dividida a matéria em relação às atividades pelas quais se pode tangê-la, a classificação bastante metódica de Leroi- Gourhan continua pelo que nomeia por estados de conjuntos técnicos. Isso reitera a definição já citada dos conjuntos tecnicamente articulados, com a adição de novas divisões progressivamente ordenadas, evolutivas portanto, que remontam a um modo de conjunção em cada espécie de conjunto técnico : I) pré-artesanal ; II) protoartesanal ; III) artesanal isolado ; IV) artesanal agrupado ; V) industrial. Segundo Leroi-Gourhan, em : I) não há distinção plena de atividades desempenhadas entre os membros de um grupo no que tange à fabricação, à aquisição e à consumação ; há, portanto, uma generalização de tarefas ; II) não há distinção de atividades entre os membros de um grupo no que tange à fabricação e à aquisição, embora haja predileção de algumas atividades de consumação por alguns membros para todo o restante ; há, pois, uma responsabilidade de alguns membros quanto ao preparo alimentar e à aquisição de materiais, mas não acerca da fabricação ; III) há uma especialização de atividades de fabricação para alguns membros e uma especialização secundária, menos numerosa e metódica, no que tange à consumação e à aquisição ; IV) formam-se grupos específicos para tarefas de fabricação específicas que se dedicam à aquisição e à consumação como uma segunda especialização, desempenhada quando a atividade de fabricação não está em curso ; V) os membros agrupam-se sob contornos visíveis de especialidades de

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fabricação, aquisição e consumação em médias e grandes proporções de meios de ação delegados ao exterior do grupo.

26 Em síntese, o volume I se aglutina em torno de uma das três divisões fundamentais da obra : a fabricação. A preponderância dada por Leroi-Gourhan à fabricação ocupou um volume exclusivo e densamente classificatório, embora não o seja totalmente. Exemplos desse teor não classificatório surgirão mais adiante neste texto.

27 No volume II (1993b), o qual antecipadamente poder-se-ia reclamar evolucionista, “ambiente e técnica”, a divisão ocorre em quatro partes : I) técnicas de aquisição ; II) técnicas de consumação ; III) problemas de origem e difusão ; IV) evolução e técnicas. Esperar-se-ia uma estrutura similar à do volume I ; e desta possibilidade uma estrutura ligeiramente distinta ressurge, com dois anos de distância do volume I, sem uma razoável introdução teórica ou qualquer esboço de problematização dos capítulos subsequentes. Assim se apresenta e se alonga o segundo volume : repleto de ilustrações manuais, todas possivelmente feitas pelo autor, sobre processos de encabamento de ferramentas de corte, texturas e dimensões de arcos e bestas, flechas e dardos conforme suas distribuições espaçotemporais. A divisão do texto prossegue, nas primeiras centenas de páginas, como uma densa exposição estreitamente fisicalista de facas, arcos, dardos, flechas e calçados (e outros, variados a partir desses). Leroi- Gourhan compõe os capítulos do texto com um rigor descritivo consideravelmente maior do que no volume anterior, dando a impressão de que para prosseguir neste volume é preciso espantar qualquer intenção de teorização que não se comprometa integralmente com uma metódica postura de descrição funcionalista.

28 O funcionalismo em questão não tem parentesco com a acepção teórico-metodológica da socioantropologia europeia, pois sim com uma acepção literal : do “como funciona”. Isso caracteriza o volume II como uma espécie de ilustração material-funcionalista ; e por quê ? Porque a disposição textual parece isso ter sugerido. Por exemplo, os dois primeiros capítulos, carregados de descrições bastante pontuais, dispõem-se da seguinte forma : I) ferramentas e/ou objetos ; II) objeções oferecidas às ferramentas e/ ou aos objetos. A primeira disposição diz respeito exatamente à organização unitária das ferramentas em determinadas tarefas sem que estas, as tarefas, submetam suas unidades físicas a um roteiro de possibilidades previsíveis : a situação bélica não pode definir qualitativamente em absoluto o arranjo dimensional e textural de uma faca, de um dardo ou de um machado. É no entanto a segunda disposição mais interessante acerca da qualidade material de um objeto : as situações dos recursos materiais disponíveis para que uma tarefa seja desenvolvida comprometem de maneira muito mais visceral a moldura funcional de um objeto. É à objeção entre matéria e atividade técnica que se deve atentar o contraste de ferramentas, por exemplo.

29 Neste volume, o texto segue assim, sem muitas classificações enciclopédicas de técnicas, ferramentas e objetos, estas razoavelmente presente no volume I. Manifesta-se agora um vigor descritivo menos comprometido com a tematização da descrição e mais indissociado dos procedimentos de comparação nos processos técnicos agora evocados como associativo-aglutinativos. Está em pauta a associação, a função como derivada de uma circunstância em que não compete ao analista descritor, ao tecnólogo comparativo, compreender um fundamento, mas apenas tomar nota de alguns aspectos plásticos. Pois uma explicação que conceba o fundamental, uma espécie de ex nihilo, impede que o ambiente técnico surja em sua unidade dinâmica derivada de “ […] impulsos da Evolução em si” (1993b :344)

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30 E assim expõe Leroi-Gourhan um importante mote desse segundo volume : o ambiente técnico. Desdobrado em dois, interno e externo, o ambiente estende-se “para dentro” : o primeiro, interno, como um vetor abstrato de criação, profusão e normatização de ferramentas e/ou objetos em momentos mais imediatos de existência técnica (a expectativa de uma criação/produção, o desejo de uma reificação) ; e o segundo, externo, à Geografia, à Zoologia, ao circuito e às rotas de contato com outras condições técnicas, ao circundar material (ao imponderável da realização tópica da tarefa). A confusão material imposta pelo ambiente técnico recoloca a Tecnologia comparada em um contínuo menos nomeável e mais descritivo.

31 Há um contraste na natureza das introduções do volume II e do volume I ; e existe contraste porque em vez de surgirem grandes proposições como diretrizes do texto ou desse segundo volume simplesmente continuar linearmente seu antecessor, dispõe-se de mesclas entre impasses sobre como comparar alguns materiais, ferramentas e suas funções. Leroi-Gourhan duvida, oscila entre descrever possibilidades da existência de criações técnicas específicas e empréstimos generalizados de parcelas de sistemas técnicos. Um tanto confuso ? Certamente. Mas é nesta confusão que se mostra a ousadia da proposta da Tecnologia comparada no interior da obra ; pois chega enfim ao ponto de reflexionar, de insinuar desvios e incertezas de uma estrutura antes, no volume I, tão rigidamente delimitada pelas tipologias técnicas.

32 Alguns anúncios iniciais do volume I, por exemplo, o fato e a tendência junto dos “meios elementares de ação sobre a matéria”, são sutilmente suprimidos, dissolvidos na massa procedimental e contrastiva do volume II. Ou talvez tenham sido corroídos pela nova disposição do texto ; o rearranjo permitiu que a caça, a guerra e a pesca se conjurassem, pelo aspecto da aquisição, quase que numa permuta através de situações “[…] partindo das armas […]” (1993b :68). Permitiu também que a habitação, a vestimenta e a alimentação se encadeassem, pela rubrica da consumação, através da criação de animais, suas mortes, seus preparos e sua utilização não diretamente alimentar ; um “[…] plano rigorosamente lógico […]” (1993b :141) de preparação e absorção ingestivas, apropriação de tecidos não ingestivos e edificações específicas suscitadas por cada operação anterior. Ou seja : metodicamente encadeados pelos detalhes descritivos materiais não necessariamente respectivos.

33 Mesmo os “domínios” da atividade técnica (caça, habitação, etc) chegavam a se misturar, através de unidades menores e mais generosas, a uma descrição não setorizada de suas constituições. As ordens de grandeza de um utensílio em análise variaram e alteraram (ou colocaram em risco) a arquitetura teórica autossuficiente desses “domínios”. Pois é mais com o movimento associativo entre matéria e ambiente técnico, e não mais com a elementaridade da ação entre humanidade e matéria, que se comprometem as articulações de tarefas específicas e suas soluções igualmente específicas. E assim se revela uma assimetria : humanidade e matéria não se equiparam, pois o que se estabelece entre ambas não é uma descomprometida e generalizável questão de determinação. A cinética entre o orgânico e o inorgânico tem seu fundamento na natureza de cada especificidade materialmente articulada, sendo a generalização, como método ou teoria acerca da articulação material, a falta mais grave : aquela do nivelamento da alteridade radical, circunstancial, contida em cada objeção material.

34 Embora o volume II cumpra onomasticamente tarefa de retratar dois temas restantes anunciados no volume I, as técnicas de aquisição e as técnicas de consumação, a

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teorização sobre eles é ligeiramente obliterada pelos detalhes descritivos material- funcionalista de Leroi‑Gourhan. A virtude do minimalismo teórico desse volume está justamente em Leroi‑Gourhan conseguir contrastar tantas circunstâncias técnicas por implicá-las como recursos suficientes para a articulação material. Não são necessários os discursos sobre essas circunstâncias, mas apenas a atenção descritiva acerca de como ocorrem : objeções tópicas entre articulações materiais específicas. Minimalista e volumoso, continua esse volume ainda mais fiel à Tecnologia comparada que seu antecessor : o problema técnico se configura sobretudo como um desafio à descrição.

35 Há ainda nesse volume dois capítulos bastante diferentes da massa de contrastes materiais até então presentes no corpo textual : “Os problemas de origem e difusão” e “Evolução e técnicas” são dois detalhados capítulos que reelaboram o que foi dito no volume I de maneira um tanto mais ousada : em vez do fato e da tendência, há agora evolução e criação. E eis que surge o esteio central do evolucionismo de Leroi‑Gourhan : Henri Bergson (1859‑1941) e suas intuições acerca de uma evolução criadora. A matéria, desta vez no volume II, antecedeu sua proposição no volume I : é agora uma questão que propicia o desequilíbrio, a instabilidade às articulações técnicas e não mais o fundamento. É através dessa mudança de aspecto que a descrição comparativa agora antecede, e dispensa, os insights teoréticos ; é através dessa instabilidade que a Etnologia como esperança disciplinar para a o exercício da Tecnologia comparada não figura mais como possibilidade. A determinação da “ação sobre a matéria” do volume I não resistiu à variação, ao experimento de método implantada pela evolução difusa e fragmentária dos conjuntos tecnicamente articulados no volume II.

36 Houve portanto uma mudança ; houve uma espécie de radicalização da proposta que nesse volume enfim iniciava algum experimento comparativo (e por isso duvidava) a almejar alguma independência crítica em relação à Etnologia (e à Sociologia). É nesse segundo momento da obra que se pode, enfim, falar de uma estável proposta da Tecnologia comparada. Isso significa que o volume I seja uma versão inferior da proposta. Para fins gerais e pragmáticos, ambos os volumes são um contínuo do desenvolvimento da proposta. E para fins mais específicos, metodologicamente atentos, o volume II é uma reelaboração positiva do texto e dos argumentos do volume I, estabelecendo-se entre eles um desnível bastante conveniente para uma percepção mais fina da proposição da Tecnologia comparada.

Evolução e Tecnologia

37 Não é raro que menções a Leroi-Gourhan sejam acompanhadas de termos como “evolucionista” e “determinista”, como acima se reclamou para cada volume da obra. Para Leroi-Gourhan, tais nomeações eram certamente justas, embora não muito ilustres devido aos prejuízos históricos atados aos termos. E resta saber : o que é esse evolucionismo determinista ? A resposta, que deveria beirar entre nossos conhecimentos históricos da disciplina antropológica alguma obviedade, não tem qualquer missão com a obscura vulgata do evolucionismo e do determinismo britânico dos inícios do século XX. Realizar tal conexão é desconsiderar as declarações de Leroi- Gourhan sobre a Tecnologia comparada e seu frutífero embate com a Etnologia (e com a Sociologia). Tais nomeações dizem respeito mais precisamente aos procedimentos pelos quais se guiou Leroi-Gourhan ; dizem respeito à ordem analítica do que se elegeu para esta obra como “átomo” : a matéria e seus entornos.

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38 Longe de uma vaga categorização, o evolucionismo determinista em questão é este que se prestou a formular perguntas sobre “como se articulam materialmente o funcionamento de algumas ferramentas”. Leroi‑Gourhan sequer se propôs a criar uma categoria bem definida de ferramenta – tarefa esta assumida anos mais tarde por Simondon – embora a distinguisse da generalidade dos objetos ; e assim o fez com um cuidado excepcional para se indagar acerca de um conflito, de uma guerra que tinha como presença contínua esses elementos os quais chamou de ferramentas e, em alguns casos, objetos. Almejava atingir Leroi-Gourhan o entremeio dessa guerra entre humano (organismo específico), ambiente e matéria. É dessa encenação analítica que a ferramenta desponta como o melhor exemplo de investigação e assim curiosamente definida como produto entre força + matéria (1993a :319). Há dois universais nessa equação que, como dito anteriormente, elucidam muito pouco acerca dos esforços de particularização técnica ilustrados ao longo dos dois volumes da obra. Contudo, tais universais exemplificam a ferramenta como resultado de colisões inevitáveis entre três naturezas de organização de unidades distintas quando isoladamente concebidas (organismo, ambiente e matéria). As técnicas não são, pois, um produto da atividade humana, mas sim um universal englobante também, mas não só, da humanidade. As técnicas, aclara Leroi-Gourhan, são mais universais que a humanidade. Todas as espécies, notadamente do reino animal, enfrentam cotidianamente uma guerra de contato com seus ambientes e a matéria que os compõem ; lutam contra e a favor de corpos bióticos e abióticos mais e menos rebeldes.

39 Eis o determinismo, arraigado e desenvolvido no volume I, de Leroi-Gourhan : a situação técnica material é inevitável. Ocorre sem exceção em quaisquer ocasiões, uma vez se tratando de uma condição tópica inexorável da experiência dos seres. E por isso possui condições elementares de acontecimento que não dizem respeito, em absoluto, ao desenvolvimento diacrônico das populações e tampouco aos detalhes de acontecimento material em cada conjunto tecnicamente articulado. É, portanto, como elaborado no volume II, um problema igualmente vital : uma via de evolução. A condição de repetição de soluções para essa inexorável guerra altera, cumulativamente, os termos cotidianos do conflito : repetir o contato entre superfícies é promover uma progressão que tende ao aprimoramento, isto é, que busca a eficácia nesse inevitável combate material.

40 Evolucionista e determinista, dito dessa forma, Leroi-Gourhan fez dessa sua obra um compêndio hiperdetalhista de técnicas e seus modos de operação, bem como dos seus resultados momentaneamente estáveis, as ferramentas, sustentados por esta ilustre desconhecida noção de evolução sem que sua fonte primária sobre o mote, Henri Bergson (2003), fosse diretamente citada. Mas é por meio do orientalista e filósofo Jean Przyluski (1885‑1944), mencionado em agradecimento no início do volume I da obra e citado algumas vezes no volume II, que a evolução se manifesta como um regime comparativo. Valorativo relativo ? Não. E por quê ? Porque não cabe à Tecnologia comparada estabelecer um parâmetro de equivalências relativas, mas sim um teor absoluto interno ao exercício comparativo. Quais limites conceber para a Tecnologia ? Uma acepção que começa a ser superada [embora ainda vigente] atribui classicamente à Etnologia o estudo de povos “arcaicos” , de tal forma que a questão em torno do civilizado moderno não pertenceria ao campo dos etnólogos […] [E] neste ponto, no que concerne à Tecnologia e por extensão à Etnologia, minha posição é categórica : não há uma ruptura, se não verbal, entre tais fronteiras misteriosas em torno do civilizado. A

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Tecnologia, termo preciso no vocabulário industrial moderno, estende-se do televisor à pedra lascada (Leroi-Gourhan, 1993a :316).

41 Reitero : a Tecnologia comparada é sobretudo uma postura de concessão analítico- descritiva de absolutos materiais. O exercício desse absoluto consiste em se “enlamear” naquilo a que se dedica uma especial atenção de pesquisa ; um absoluto material, um processo técnico, é absoluto no sentido em que não permite a analogia, pois trata-se de um irredutível fenômeno que, fora de sua condição, deixaria de sê-lo. Isto é, não seria possível por meio de um estudo tecnológico, se realizado como proposto por Leroi- Gourhan, tornar um acontecimento técnico, ou mesmo o resultado objetivo desse acontecimento, cambiável analogicamente por outro.

42 A conduta de contraste da Tecnologia comparada ocorre no plano do funcionamento singular, circunstancial, da coerência técnica interna em um determinado caso técnico sem que a extração de um princípio abstrato seja seu objetivo imediato ou conclusivo ; o que, de uma postura relativista (para estabelecer um contraponto paradigmático na Antropologia), em um sentido amplo, junto do universo teórico‑metodológico que a acompanha, pretende-se justamente o contrário : cambiar primeiros planos em torno de um plano de fundo. Câmbio impossível para a Tecnologia comparada, pois não há para esta senão o absoluto material sempre próprio de uma diferença absoluta e não relativa (como no caso do relativismo). E não é, quase majoritariamente a socioantropologia contemporânea de Leroi-Gourhan, e mesmo a das décadas subsequentes, instituída quase majoritariamente no rigoroso exercício da diferença relativa, dir-se-ia no relativismo ? Isto é, instituída por uma instauração da “relação” entre primeiros e segundos planos que não hesitam nessa instauração ?

43 A confusão aqui elaborada diz respeito à frequente ideia de que o “relativo” é necessariamente “outro” ; o que, talvez, seja um entendimento muito generoso do termo/conceito. Já que o “relativo” necessariamente nega o absoluto, pois coloca elementos distintos num prisma de equivalência primária e disfarça tal equivalência com o discurso sobre os detalhes de cada elemento. E não por acaso os inimigos vigorosamente combatidos na Antropologia euro-americana dos séculos XX e XXI, como inimigos da alteridade, que talvez de fato o tenham sido, foram os absolutos metodológicos. Mas no caso da Tecnologia comparada o absoluto é uma recusa da cambialidade de situações e de supostas equivalências entre alteridades. A estratégia para Leroi-Gourhan é outra : a de um irredutível que só permite conexões quando efetuadas pela excessiva e rigorosa descrição funcional de uma lógica interna a uma específica articulação material, e apenas isso, de um procedimento técnico. É uma tarefa de impossível comparação em todos os aspectos, exceto quando decorrente do procedimento material cuidadosamente descrito e analisado. Eis porque a Tecnologia comparada é tão trabalhosa e complicada ; trata-se de uma tarefa exaustiva de conhecimento tácito caso a caso, na concepção de um absoluto, que se verte numa tentativa textual de descrição e análise muito mais incertas sobre “como serem feitas”. Essa tarefa é um método e sempre um experimento ; e, na acepção de Leroi-Gourhan, é tão suficiente e trabalhosa quanto qualquer densa Etnologia/Sociologia realizada em distantes paisagens não ocidentais.

44 Leroi-Gourhan justifica por que a complexidade da Etnologia não pode por inteiro ser propriamente Tecnologia : “[a] Etnologia continuou a dedicar mais interesse às instituições que aos objetos, mais interesse aos objetos que às técnicas que os suscitaram” (1993a :313). No início do volume subsequente afirma :

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É difícil, para o etnólogo, viver o totemismo ou o matriarcado, já a Tecnologia não exige senão um esforço físico ; a descrição de fatos religiosos ou sociais está fortemente ligada ao estado interno do observador e a um esforço ainda maior em conter suas reações pessoais ; a Tecnologia se dispõe ao contrário como um estudo de todo experimental (Leroi-Gourhan, 1993b :10).

45 A Tecnologia possui, portanto, uma vantagem. E, conquanto continue como a senhora de todas as honras possíveis, e é a ela inclusive que Leroi-Gourhan direciona alguma aliança, a Etnologia não é integralmente suficiente : é preciso afirmar, e Leroi-Gourhan como um etnólogo o faz, que a Etnologia, ou mais extensamente a socioantropologia, não pode investigar materialmente os conjuntos tecnicamente articulados se não frustrando sua episteme e seus métodos em prol de uma experimentação que se limite à condicional da lida com a matéria. E se a Tecnologia comparada toma corpo como experimento, o faz junto de um horizonte já mencionado : o da evolução. A evolução tem importância nessa obra de Leroi-Gourhan menos devido à humanidade e mais devido às técnicas, os ditos conjuntos tecnicamente articulados ; e embora a lufada conceitual dessa evolução certamente venha de Henri Bergson, é Jean Przyluski (1942) o citado para o desenvolvimento diádico do ambiente técnico : ambiente interior, a expectativa de uma produção/ criação, e ambiente exterior, a reificação de uma tarefa, funcionam ambos como um “[…] organismo que se situa na intersecção de duas séries de fatos […]” (Leroi-Gourhan, 1993b :396). Tais ambientes não são necessariamente complementares, mas conexos. E, se estão estruturalmente dispostos tais qual um organismo, não é mais tão estranha a proposição evolutiva : os conjuntos tecnicamente articulados são o inorgânico em tendência de organização. E, como se trata de uma evolução, acontece esta em seu sentido mais bergsoniano : da criação absoluta de uma “[…] continuação real do passado pelo presente, uma duração que seja um hífen ou um traço de união […]” (Bergson, 2003 :24), repleta de divergências e alimentada pela novidade implacável.

46 Se é possível aqui estabelecer um conectivo direto e positivo entre Bergson e Leroi- Gourhan, fazê-lo é ressaltar que Leroi-Gourhan (1993b :338) considerou tão rigorosamente Bergson, notadamente a proposição de elã, que o pôde transgredir internamente : as interrupções do contínuo da evolução sobre as quais escreveu Bergson, aquelas por exemplo da precipitação do inorgânico objetivo em uma série criadora-evolutiva, tornam-se nos escritos de Leroi-Gourhan não mais exemplos de pequenas desacelerações dessa evolução, mas sim inscrições dos fluxos de percursos materiais essencialmente criativos que, na acepção de Leroi-Gourhan, se não fundamentalmente sobrepostos ao fenômeno humano, estabelecem com este um emparelhamento de sucessões. Isto é, os materiais, a matéria, evoluem coordenadamente em relação à humanidade sem nela necessariamente dissolverem seus cursos de progressão. E eis novamente a proposição quase contraditória de Leroi- Gourhan : as técnicas são um tanto mais universais que a humanidade.

47 Isso não significa uma transferência qualitativa de propriedades entre o orgânico e o inorgânico, para tanger um dos debates da Antropologia contemporânea, entre coisas e pessoas. Tampouco significa um nexo explicativo fenomenológico, ou ontológico, entre orgânico e inorgânico. E, em contraste com este debate extremamente contemporâneo, e numeroso, potencializado pela Antropologia do século XXI, Leroi-Gourhan, ao menos este da década de 1940, é cada vez mais antiquado e inadequado : é um materialista que pouco se importa sobre quem é nativo ou não ; sua obsessão é sobre como se articulam alguns materiais para tarefas específicas e como é possível acerca deles realizar

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descrições tecnicamente objetivas. O comprometimento de Leroi-Gourhan, assim como o de Simondon, é aquele de uma dobra de dentro, plenamente acessível e discutível com quem quer que seja, inclusos os nativos. Não há discurso para ser relatado e tampouco práticas a serem transcritas ; há somente um punhado tópico, funcional e integralmente recursivo sobre uma atividade técnica. O problema da Tecnologia comparada, de toda a sua investigação, inicia e se limita ao desafio do contraste descritivo entre as técnicas em seu curso de acontecimento material.

O desfecho e a feitura

A continuidade do esforço técnico [da humanidade] […] faz da Tecnologia uma disciplina onde os valores comuns ao restante da Etnologia não são senão parcialmente aplicáveis. Se buscarmos o parentesco real da Tecnologia, é em direção à Paleontologia, à Biologia, num sentido amplo, que é preciso se orientar (Leroi‑Gourhan, 1993b :439).

48 Prossegue Leroi-Gourhan, contudo, afirmando que similaridade não é identidade : a Tecnologia não procede equiparadamente à Paleontologia e/ou à Biologia. Estabelece a Tecnologia com ambas, escrevia Leroi-Gourhan em 1945, uma via perspectiva distinta sobre causas similares ; apontamento este que intentava explicitar do interior da Tecnologia comparada o apego necessário desta às implicações, aos contrastes e, quando realizada sob extremas condições de rigor descritivo-funcional, à comparação. A esta, à comparação, a qual reconhecer-se-ia como a mais ardilosa etapa de todo empreendimento tecnológico proposto por Leroi-Gourhan, dedicou-se pouca precisão neste texto, pois também muito pouco acerca dela escreve Leroi-Gourhan. E talvez assim o seja porque a séria tarefa da comparação, a de emparelhar o heteromorfismo entre técnicas e/ou objetos para estabelecer uma ordem serial de conexões materiais, não poderia surgir senão no fim de todos os esforços exaustivos de investigação material.

49 Faz tanto sentido realizar a comparação tecnológica externa, sempre entre conjuntos tecnicamente articulados distintos, como não fazê‑la. E nesse quesito a Tecnologia comparada de Leroi-Gourhan não comparou, ao menos nos termos daqueles que pragmaticamente o fazem, ou seja, nos termos dos antropotecnólogos, queencontramadisciplinaantropológicapelasquestõesda Ergologia, casoilustrado por Geslin (2012). Tampouco o fez nos termos dos antropólogos e sociólogos europeus contemporâneos, como o fizeram pelo conflito de perspectivas sobre as divisões entre procedimentos materiais e imateriais – como bem ilustrado pela coletânea organizada por Riles, 2006 – ou pela paradoxa profusão de concepções entre objetos e sujeitos (Julien & Rosselin, 2009), pela tentativa de superação de alguns conceitos entre seres e objetos pelo acontecimento cotidiano dos fenômenos bióticos (Ingold, 2010) ou pelo avanço teórico‑metodológico rumo ao multirrealismo de outras ontologias, célebre esforço presente em Henare et al. (2007).

50 Leroi-Gourhan teve muita cautela para que a massa textual não sucumbisse perante o exercício conclusivo, este condizente com comparação ; afinal um estudo que considere as técnicas materiais, tópicas e em ato é suficiente e já demasiado perspicaz, não exigindo o exercício externo de comparação. Mas se a comparação diz respeito menos a um possível exercício conclusivo externo, este de emparelhar conjuntos tecnicamente articulados distintos, e mais sobre aquele procedimento mínimo de encadeamento funcional no interior de um conjunto, certamente o “comparar” é todo o processo

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investigativo da Tecnologia proposta por Leroi-Gourhan. É possível confiar, apesar dos riscos de tal assertiva, nesta acepção de “comparação” e na possibilidade desta suficiência, desse poderoso esforço mínimo que nada tem de pouco trabalhoso e qualitativamente vazio. O minimalismo ao qual se afeiçoou este texto, na tentativa de promover consonância na obra de Leroi-Gourhan, diz respeito a escala de atenção de um estudo material rigoroso e não ao teor quantitativo dos “dados por ele produzidos”. Dir-se-ia assim que a Tecnologia comparada é uma aposta metodológica minimalista.

51 Mas ainda assim é difícil afirmar que tenha Leroi-Gourhan realizado por muito tempo um estudo de Tecnologia comparada ; e por quê ? Pouco se sabe porque. Seus trabalhos futuros, menos desconhecidos em absoluto mas ainda muito obscuros para a Antropologia da segunda metade do século XX em diante, investiram com fervor na Arqueologia e em algo de teoria sobre evoluções linguísticas e estéticas dos grafismos humanos ; trabalhos os quais nenhum deles retomou seriamente o que foi escrito nesta obra de dois volumes de gênese da Tecnologia comparada. Devido a esse obscuro “abandono” dessa obra pelo autor, seria talvez melhor evocá-la antes como esboço de uma proposta do que de um modelo consagrado ou um composto teórico-metodológico disciplinar aplicável. Características essas que, no Brasil, não raramente quase todo aluno de Ciências Sociais ouve e lê acerca dos modelos, da aplicabilidade dos “autores clássicos das três áreas”. Talvez por não terem elaborado propostas, pois sim demonstrado uma série de fatores-problemas e “aplicações” de compreensão ou explicação dos mesmos, tenham esses “autores clássicos” ilustrado uma unidade teórico-metodológica bastante característica. O que não é o caso de Leroi-Gourhan, este bastante fragmentário : sua circunstância de escrita e proposição foi, no que envolve a Tecnologia comparada, estritamente implicativa. Sem explicações, sem compreensões, apenas um experimento de descrição de muitos detalhes cada vez mais específicos.

52 Se foi preterida pelo criador, seja lá por qual motivo, a Tecnologia comparada foi por outro lado inspiração fundamental para que Simondon, alguns anos depois, produzisse toda a sua massa de textos concernentes à técnica. Alegou Simondon com entusiasmo, numa entrevista concedida à Jean Le Moyne, quando questionado sobre a gênese absoluta do objeto técnico : “[h]á uma pré-história do objeto técnico, que é a ferramenta. E a ferramenta é de um ensinamento riquíssimo […] [a qual foi estudada] de maneira extraordinária por Leroi-Gourhan” (Le Moyne et al, 2009 : 126). A referência a Leroi-Gourhan nos textos de Simondon é intensa e se espalha em sua tese complementar de 1958 (Du mode d’existence des objets techniques), e em todos os cursos subsequentes até o fim de suas atividades intelectuais. Não seria possível enumerar e especificar cada referência a Leroi-Gourhan nos escritos de Simondon aqui ; tal tarefa requereria um texto próprio.

53 Embora este outro materialista “sem escola” que foi Simondon muito tenha escrito sobre o cerne da Tecnologia comparada sem anunciar diretamente essa motivação, é justo que a ele se credite o grande empenho em não deixar a Tecnologia comparada esmaecer. Havia um compromisso direto de Simondon com a proposta, dela tendo se apropriado em meados da década 1950 ; compromisso enunciado claramente em um de seus cursos sobre a invenção e o desenvolvimento das técnicas (L’ invention et le développement des techniques) de 1968, ministrado na Sorbonne e na École Normale Supérieure a pedido de Georges Canguilhem (1904‑1995). A escolha desse curso é precisa por um simples motivo : porque seu material técnico descritivo e gráfico é muito denso e de difícil organização. Simondon propõe durante o curso atravessar os problemas da metalurgia,

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das ventilações de minas, dos processos de construção e de exercício de arquitetura, culminando nas implicações da eletricidade e na distribuição-produção de informação em algumas máquinas por ele eleitas como exemplos. E por que tal itinerário ? A resposta não poderia ser mais interessante : porque é por meio de um plano descritivo material que algo de técnico pode perder sua generalidade para se tornar uma circunstância de um funcionamento sempre particular. A “[…] atividade técnica é uma maneira de constituir a organização [particular] de uma atividade orientada [específica] dos seres organizados […]” (Simondon, 2005 :225) ; a atividade técnica promove o ajuste entre os impasses materiais que todos os seres organizados enfrentam cotidianamente. Como tangenciar esses impasses, essas variações se não promovendo desvios pontuais e rigorosos em cada circunstância técnica ?

54 Embora possa soar abrangente, o curso de Simondon é muito pontual : um plano de estudo de problemas específicos de invenção e desenvolvimento de inúmeras circunstâncias técnicas (devidamente acompanhadas de densas descrições e esquemáticos desenhos). Seus exemplos têm uma curiosa estratégia textual : a de visar sempre o medium escalar entre um nível macrotécnico, de extensas redes de articulação material, e outro microtécnico, de elementos-unidade internos a um sistema de funcionamento. Visa, portanto, ao mesotécnico : o objeto que se articula para baixo, com os elementos que o constituem como unidade coerente, e para cima, com outros objetos ou com um conjunto de objetos com os quais partilha fontes energéticas e/ou uma cadeia direta de procedimentos. Tal estratégia possibilita que Simondon descreva parcialmente processos técnicos tanto de aspectos de maior amplitude, como o transporte de minérios em uma mina subterrânea, como de menor amplitude, como um transformador de voltagens ferranti. E assim o faz sem abandonar o primordial da Tecnologia comparada : a descrição rigorosa dos detalhes como experimento de método.

55 E configura a postura de Simondon um modelo de estudo ? Não necessariamente ; como se poderia repetir suas descrições se se tratam de coisas tão específicas e oscilatórias ? Talvez esteja mais para uma iniciativa exemplificada : o autor demonstra como fez descrições em cada caso, em cada escala, nada mais, nada menos. O curso inicia com o seguinte subtítulo : “plano geral de estudo para o problema das técnicas”. Divide Simondon (2005 :83‑85) neste primeiro momento três possibilidades de estudo das técnicas : I) estudo de base a partir da funcionalidade (relação do ser vivo com o ambiente) ; II) estudo psicológico e reflexivo panorâmico ; III) estudo de Tecnologia comparada. O curso, extenso e detalhado, percorre pontualmente todas essas três possibilidades de estudo das técnicas ; afirma Simondon, logo após tê-las apresentado no início do curso, que as três se orientam diferentemente em direção a regimes de realidade que não possuem muito em comum senão um rastro do progresso da tecnicidade. Isto é, um rastro da modulação das margens de articulação material para um funcionamento/uso, gradativa e assim manifestada etapa a etapa em um processo evolutivo específico. Mas o que mais interessa neste texto é a terceira dessas possibilidades : […] [trata] a tecnologia comparada […] [da] resolução de problemas (mediação instrumental) nos animais e na ordenação dos diferentes meios [materiais] em função do ato de suas utilidades funcionais […] e de seu aperfeiçoamento, ou autocorrelação interna, que consiste em um critério normativo do ato de invenção a instituir tais mediações (Simondon, 2005 :85).

56 O reconhecimento explícito da proposta da Tecnologia comparada por Simondon não só o compromete integralmente, devido a sua obra textual acerca da técnica, com essa

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postura metodológica, como o torna um exemplo de realização integral dessa proposta. Não é em Leroi-Gourhan que se pode ler a experimentação pragmática e radicalizada da proposta, mas nas produções de Simondon, notadamente no curso aqui referenciado, onde o método da Tecnologia comparada se expõe antes como um gabarito do que como um modelo. Ou seja, como um parâmetro para o reajuste de perfis estritamente métricos, escalares de um estudo imediatamente material ; um modelo talvez servisse mais à réplica da forma do que ao contraste de modulação entre diversas formas, coisa que é toda a Tecnologia comparada. Diria Simondon (2005 :101) a esse respeito que o sentido do objeto técnico, como exemplo sintético de toda matéria articulada em seu entorno, é nada mais e nada menos do que seu funcionamento : que seu modelo é sua série funcional objetiva.

57 Se Leroi-Gourhan pretendia um afastamento da Etnologia, da socioantropologia, não o desejava negativamente : tratava-se mais de uma questão de conveniências disciplinares do que de uma grande divergência intelectual. Simondon por sua vez sequer se aproximou da questão e, se rigorosamente considerado, a Antropologia, para fins onomásticos, inevitavelmente teria de cambiar de nome. Afinal, não é por acaso que o autor evoque a Mecanologia como sinônimo de seus esforços sobre a técnica (Le Moyne et al, 2009), em vez de creditar à Antropologia, onomasticamente, como um ponto profícuo para se desviar. Na ótica de Simondon, para que a Tecnologia comparada usufruísse de toda a sua capacidade experimental, uma delimitação onomástica como a da Antropologia também seria epistemológica. Dizia : “antropocêntrica”, pois se nem à individuação orgânica – tema com o qual obteve parte de seu doutorado principal – creditava a possibilidade de uma socioantropologia como ferramenta investigativa (2007 :181), tampouco seria ela possível na movediça recursividade materialista da condição técnica dos conjuntos tecnicamente articulados. Nem sequer à cibernética Simondon confiou tal possibilidade, deixando de lado muitos de seus interlocutores ciberneticistas ao longo do tempo ; então qual seria a disciplina capaz de incorporar tal proposta metodológica ?

58 Talvez a Antropologia contemporânea esboce simpatia por essa possibilidade, mas não se sabe se Simondon retribuiria tal simpatia ; talvez a Antropologia contemporânea possa ser simpática a um experimento de Tecnologia comparada, devido às suas recentes “viradas” teórico-metodológicas, mas de qualquer forma há de se desconfiar de sua suposta franca ousadia. Pois, antes de simpatizar com o compromisso de Simondon e sua segunda versão da Tecnologia comparada, talvez pudesse a disciplina impulsionar um revisionismo de seus fundamentos, de seus “autores clássicos”. Afinal Leroi‑Gourhan esteve cravado nos inícios da disciplina, mas tão raramente foi notado e considerado no contemporaneidade dela.

59 A realização de um experimento de Tecnologia comparada tal qual o fizera Simondon (e Leroi-Gourhan) ainda não está no horizonte da Antropologia contemporânea (com exceção de certos aspectos dos já citados autores da “Antropologia da Técnica”) por diversos motivos, desde o fator histórico do triunfo de certos autores até a quase hegemônica centralidade da análise antropológica em torno dos discursos e enunciados entre pesquisadores e pesquisados, estes tão pouco interessados nos detalhes materiais de uma circunstância técnica. Mas talvez Simondon tenha podido pragmatizar a proposta apenas por estar às margens das disciplinas e em um razoável vácuo de colaboração com outros autores durante seus frutíferos anos intelectuais (de 1955 até meados da década de 1980), liberando-o de eventuais orientações departamentais e de

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burocracias disciplinares. A solução onomástica encontrada por Simondon, inspirada em um pequeno livro de Jacques Laffite (1972), foi a de cunhar publicamente o fomento de uma Mecanologia como uma fenda entre as disciplinas, tal qual a Tecnologia comparada, que tivesse como fundamento a alagmática, a ciência das operações e das mudanças de estado.

60 Nesse aspecto disciplinar, é ainda importante ressaltar a clareza das dissidências promovidas por Leroi-Gourhan, ou melhor, na gênese da Tecnologia comparada (algo também dito por Beaune, 2011) : a Tecnologia comparada é sobretudo uma dissidência do exercício de sobreposição promovido pela Etnologia, e não sua negação. Isso significa não a mistura dos métodos e das abstrações sobre eles, e sim uma maior relevância da possibilidade de uma produção paralela à Etnologia (e à Sociologia), para que, no momento anterior à centralização de explicações e/ou compreensões como cerne dos debates teórico-metodológicos, a implicação material também conquistasse um pequeno e legítimo espaço disciplinar. A Tecnologia comparada seria, portanto, apenas uma trabalhosa e detalhista implicação material.

61 Para além de dizer alguma coisa importante sobre a história da disciplina antropológica, ou de suas pretéritas e futuras origens onomásticas, a Tecnologia comparada ilustra uma tentativa, seja como proposta nessa obra de Leroi-Gourhan, seja como realização mais radical nas atividades de pesquisa de Simondon, de projeção de um espectro de dentro para fora da Antropologia ; um espectro projetado paralelamente à disciplina, a serviço de uma investigação relativamente desconexa do “cerne antropológico”, mas inevitavelmente emparelhada pelas implicações produzidas por esse espectro. Talvez seja essa uma via alternativa, uma vez que se pode deste modo, enfim, radicalizar a premissa de que é preciso divergir pela diferença disciplinar sem, necessariamente, exercitar a negação dos caminhos disciplinares. A Tecnologia comparada não precisa, e não pode devido aos entraves institucionais hoje bastante ardilosos, conquistar a sonhada diplomática autonomia como desejou Leroi-Gourhan e como, não tão diplomaticamente, ansiava Simondon ; ao menos, não por enquanto. Talvez haja ainda uma dívida da Antropologia com seu passado e um dever dos antropólogos com suas premissas de pluralidade e descolonização de pensamento que possa à Tecnologia comparada oferecer uma lacuna de método, uma possibilidade de exercício. Pois se há um lugar para esse espectro, para a Tecnologia comparada, não o é certamente no veio da Antropologia, mas provavelmente ao seu lado, ou em suas bordas, como uma fugaz e tópica aparição que a cutuca para mostrar um pequeno punhado de detalhes no chão, sobre a mesa e nas lascas de um material qualquer.

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NOTAS

1. Este texto é um arranjo entre uma pesquisa bibliográfica e um comentário crítico sobre uma alternativa subdisciplinar que rondou a história da Antropologia. Este texto-arranjo intenta expor como algo pretérito da disciplina antropológica pode ainda figurar como um viável investimento de criação metodológica, mesmo que em alguma medida paralela, nos arredores da Antropologia contemporânea. Todas as citações presentes neste texto são traduções livres e realizadas por mim. Este texto é de alguma forma um agradecimento aos motivos de método do Laboratório de Experimentações Etnográficas (LE-E - UFSCar) e ao grupo Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe ‑ Unicamp).

RESUMOS

Houve uma proposta bastante peculiar de estudo materialista no passado da sociologia e etnologia francesa ; foi esta a Tecnologia Comparada, formulada por André Leroi-Gourhan. Apesar de a figura de Leroi-Gourhan suscitar não raramente uma grata lembrança de Marcel Mauss, as divergências metodológicas entre ambos eram consideráveis. Os impasses promovidos entre a Tecnologia Comparada, ao longo de sua gênese, encrustaram-se como firmes desvios nos caminhos na etnologia e sociologia francesa em seus inícios. Tratava essa proposta tecnológica de conceber como suficiente o aporte metodológico perante as técnicas em suas circunstâncias irredutivelmente materiais, sugerindo que houvesse nos conjuntos tecnicamente articulados um vetor de evolução paralelo à evolução orgânica. As implicações deixadas pela proposta, apesar de ignoradas pelas socioantropologias do século XX, foram vigorosamente apropriadas e retrabalhadas por Gilbert Simondon. Para além de poder retratar algumas indisposições metodológicas no passado da etnologia e sociologia francesa, ou mesmo de fazê-las despontar na antropologia contemporânea, a Tecnologia Comparada tem, décadas após sua formulação e sua radicalização, notáveis coisas a dizer sobre seu incomum método.

There was a peculiar material study proposition in the past of the French Sociology and Ethnology, the proposal of Comparative Technology by André Leroi-Gourhan. Despite the ordinary reminder of positive connections between Marcel Mauss and Leroi‑Gourhan, there were substantial dissonances between both. The dilemmas emerging along the genesis of the Comparative Technology were many and differed punctually from the paths of French Ethnology and Sociology in their beginning. Such technological proposition suggested radicalizing a material methodological approach before the irreducible material circumstances of techniques,

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indicating the existence of a parallel evolutionary vector to the organic evolution in the technically articulated sets. The implications of such proposal, although ignored by the socioanthropological mainstream of the 20th century, were vigorously reframed by Gilbert Simondon. Apart from reflecting some methodological indispositions in the past of the French Ethnology and Sociology, or even in the contemporary Anthropology, the proposal of Comparative Technology many years after its original elaboration has remarkable things to tell about its unusual method.

ÍNDICE

Palavras-chave: técnica, tecnologia, metodologia, Leroi-Gourhan, antropologia Keywords: technics, technology, methodology, Leroi-Gourhan, anthropology

AUTOR

RAINER MIRANDA BRITO

Rainer Miranda Brito é graduado em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. Desenvolve pesquisa, financiada pela FAPESP, em torno da construção e da manutenção fabril-artesanal de violas (cordofone brasileiro de dez cordas) no interior do estado de São Paulo. Desenvolve, como efeito de pesquisa, a possibilidade de um pragmatismo metodológico para as Ciências Sociais de grande parte da obra de Gilbert Simondon e de alguns apontamentos propositivos de André Leroi-Gourhan, empreendimento em contínua realização no Laboratório de Experimentações Etnográficas (LE-E) da UFSCar e com o grupo Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe), vinculado ao IFCH/Unicamp. Tem experiência em estudos de Tecnologia Comparada e em estudos epistemológicos em torno da Técnica e Tecnologia. E-mail : rnrmi[at]imap.cc.

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Chegar à Terceira Margem : um caso de prosa, paixões e maldade

Graziele Dainese

NOTA DO EDITOR

Recebido em 29/01/2014 Aprovado em 21/05/2014 Uma versão deste texto foi apresentada no seminário Giros etnográficos em Minas Gerais : casa, conflito, comida, prosa, política, festa e o diabo, realizado no Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em agosto de 2012. Tal versão será publicada na coletânea dos textos apresentados na ocasião (Comerford, Carneiro & Dainese, no prelo). Este texto é baseado em pesquisa de campo, cujo principal resultado foi minha tese de doutorado, defendida em novembro de 2011, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (Dainese, 2011). Realizada de maio a julho de 2008 e de abril a outubro de 2009, a pesquisa de campo se concentrou no município de Santa Abadia do Pradinho (região Alto do Paranaíba, estado de Minas Gerais), principalmente em uma de suas localidades rurais, a Terceira Margem. Todos os nomes aqui mencionados tanto de pessoas quanto de lugares (à exceção da denominação regional e do estado da Federação são fictícios.

1 Atividade rotineira e prazerosa, a “prosa” atrai os moradores da localidade Terceira Margem, algo que se nota na valorização da “boa prosa” e no que isso traduz, ou seja, a celebração do viver junto. Do rápido cumprimento feito àquele que se encontra ao parlatório cultivado nas casas, a fala se desdobra em diversas narrativas : “conversar”, “prosear”, “contar causo”, “falar dos outros”, “não falar”, “chamar na conversa”. Desse modo, quem sabe conduzir a prosa é reconhecido pela habilidade. “Boa de prosa” é a pessoa que conhece a arte de prolongar o encontro por meio das palavras, seja com as novidades que anuncia, seja com antigas histórias, que ganham o interesse de quem ouve menos pelo ineditismo e mais pela forma como são contadas.*

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2 A atenção às palavras, sua circulação e o que as faz circular são questões prementes para os margeenses. E isso se dá não porque todos almejam ter habilidade como contadores de causo ou ser reconhecidos como “bons de prosa” ; na Terceira Margem, a prosa é tanto condição quanto termômetro para o relacionar. É nas casas que a troca de palavras se estende, por ser acompanhada pela interrupção do trabalho e pela oferta da comida. Quando a conversa acompanha toda a “cerimônia” da visita, é porque a troca de palavras foi eficaz ao conectar pessoas : nesses momentos em que a prosa “combina”, cria-se a intimidade necessária às relações entre parentes e conhecidos.

3 Mas aquilo que cria vínculos, também pode desestabilizá-los. Como veremos ao longo deste texto, um dos exemplos dessa potencialidade da fala é o “pouco caso”, tal como se define a indiferença sinalizada pela ausência das palavras : a falta de cumprimento no momento de um encontro, além de sinalizar ruídos na relação, pode potencializar a ruptura que está à espreita. Num lugar onde se valoriza a união e a harmonia, saber conversar é, sobretudo, saber conviver.

4 Baseado nas condições que possibilitaram minha convivência entre os moradores dessa localidade, este artigo parte dos caminhos que percorri com o objetivo de conhecer as experiências daqueles que ali moram. Dessas condições, destaco a vivência de um acontecimento que, a princípio, poderia colocar em risco minha permanência na comunidade. Algo que só não aconteceu porque três mulheres Quirina, Idalina e Leocádia, ao ouvirem de minha boca o fato de que tinha sido acusada por outra moradora da comunidade de ter relações afetivas (um “caso”) com seu marido, dosaram minha preocupação inicial. Assim como eu, essas mulheres estavam preocupadas com minha convivência com os outros moradores a partir do momento em que o “caso” se disseminou pelas casas e ruas da localidade. No entanto, diferente de mim, elas sabiam que desses “casos” havia muitos causos e que, tomando novos rumos, as palavras (reforçadas pelos comportamentos que elas criam e sugerem) ajudam a desfazer (ou ao menos a modular) suas próprias criações, até as mais malfazejas.

5 Da relação com essas três mulheres, surgiram os conselhos e as lembranças sobre situações semelhantes que elas ou pessoas que conheciam tinham vivido. Dos conselhos orientados segundo a observação que aquela situação suscitava à memória, elas me contavam sobre as relações entre próximos (parentes, vizinhos, conhecidos, homens e mulheres daquele lugar) e de como estas relações se efetuavam com base nas conversas e em outras trocas de palavras. Das efetuações mais significativas, destacam-se os “desentendimentos”, situações de conflitos que se apresentavam constrangedoras àqueles que fundamentavam sua convivência na proximidade e na ajuda mútua. Desentender-se é coisa comum entre os mais chegados, no entanto, é por bem da própria intimidade que, para tais acontecimentos, haja “controle”. Como será descrito ao longo deste trabalho, o incidente vivido por mim na localidade era pleno de “desentendimento”, uma situação em que se o “controle” é de prata, as palavras são de ouro.

6 Neste artigo, a tradução etnográfica que fiz sobre a vida na Terceira Margem segue acontecimentos relacionados à minha vida nesse lugar no intuito de problematizar o que os margeenses tinham a me dizer sobre suas vidas. Do que foi vivido nessa localidade, a “prosa” surge como prática fundamental seja para estreitar os vínculos propiciados pela proximidade geográfica, consanguinidade e afinidade, seja para colocar em questão esses mesmos vínculos. Partindo de um “caso” criado e fomentado pela “falação”, foco as medidas que essas mulheres e eu observamos naqueles dias de

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trabalho de campo a fim de etnografar as conversas e outras práticas que encontram centralidade no uso das palavras, tendo em vista, principalmente, as situações em que as relações mais íntimas tomam rumos conflitantes e tortuosos.

Chegar à Terceira Margem

7 “Você vive por aí visitando, o povo faz gosto de gente que chega, que proseia. Mas toma cuidado com as conversas ! Tem gente que gosta de falar e, quando você encontrar gente assim, tem que cuidar pra não falar também.” Foi assim que Liduína, minha anfitriã na Terceira Margem, me recebeu na ocasião em que me mudei para a localidade. Após meses seguindo o rastro dessa margeense pelas casas dos outros moradores, conheci e me fiz conhecida de seus parentes e outras pessoas próximas, a ponto de um deles me oferecer sua casa, para que eu ali pemanecesse ao longo da semana. Foi Leocádia, irmã do cunhado de Liduína, que fez a oferta, mencionando o vazio daquele espaço na maior parte dos dias, já que ela morava em Várzea do Andrequicé e vinha para a Terceira Margem durante uns poucos finais de semana. Com o objetivo de viver o cotidiano de um morador daquela localidade, prontamente aceitei sua sugestão de ocupar o lugar nos períodos de sua ausência.

8 O conselho de Liduína no momento de minha chegada como moradora, reafirma as condições que me permitiram estar ali : demonstrando gosto e dedicação a esse hábito cultivado pelas pessoas, minhas constantes “visitas” possibilitaram a convivência que agora eu insistia em estreitar. A proximidade das casas facilita o contato entre os moradores dessa comunidade, e esse contato parece ser afirmado pela própria geografia do lugar. Situada na região do Alto Paranaíba, no estado de Minas Gerais, Terceira Margem é uma das vinte localidades rurais que circunscrevem o diminuto núcleo urbano de Santa Abadia do Pradinho. A relativa proximidade desse núcleo urbano permite aos moradores da localidade transitar da cidade para a roça, assim como receber os chegantes desse e de outros destinos. Por sua vez, a organização geográfica local, marcada pelas casas que circulam a praça e pelas fazendas que se espraiam nos campos adjacentes, reforça a ideia de uma vida gregária, bastante valorizada pelos margeenses e cultivada na movimentação constante das pessoas por esse espaço. Na praça, a capela e o cruzeiro e o único comércio ali instalado um boteco formam uma espécie de centro que chama à convivência, principalmente nas constantes festas e celebrações religiosas.

9 É por meio desse ir e vir, vivido particularmente nas casas uns dos outros, que os margeenses qualificam suas relações : tornam-se “conhecidos”, dizem. E esses encontros ganham particularidade adiante de tantos outros contatos que os moradores estabelecem com o mundo. Pois há encontros diversos nesta existência, seja com aqueles que ali chegam “de fora”, durante a política, seja com quem se trocam apenas olhares rápidos pelas ruas da cidade, em conversas mais espaçadas com os técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e nas andanças pelo mundo afora. Quando o fluxo de pessoas se estabiliza nas casas, principalmente nas cozinhas, é que há possibilidade de o estrangeiro se transformar em conhecido e de o conhecido se tornar “como se fosse parente”.

10 A dinâmica das chegadas pressupõe que se tornar conhecido e até mesmo parente é uma condição em aberto, criada pelo exercício da hospitalidade. À maneira como observou Redfield (1964) sobre a importância dos rituais de adoção na criação do

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pertencimento entre a comunidade e seus integrantes mais recentes, os margeenses valorizam as relações que se estabelecem por meio da “visita”. De modo que essa prática ao orientar a chegada e a recepção ao desconhecido, também pode gerar a permanência que possibilita um vínculo mais estreito. No entanto, na Terceira Margem, a “visita” não é uma prática que orienta apenas a relação com o estrangeiro, pois também conecta aqueles relacionados pela proximidade geográfica e pelos laços de consanguinidade e afinidade. Essa dimensão do visitar aproxima-se daquela retratada por Wagley, em seu estudo sobre Itá (1977). Segundo o autor, tal prática refere-se às relações internas à comunidade. Para tanto, a dinâmica da visita é destacada como um aspecto importante das relações de compadrio. Apresentado como uma possibilidade de alargar o círculo de relações pessoais, o compadrio depende de alguns fatores fundamentais para que essas relações possam se estreitar : as visitas que os afilhados fazem aos padrinhos é um deles.

11 Localizada em uma casa da comunidade, eu estava geograficamente mais próxima, situação que me favorecia o contato com os vizinhos. No entanto, se a proximidade geográfica cria os vizinhos, não é ela que os torna conhecidos, pois, para tanto, importa a maneira como tecem a proximidade social. Nesses lugares, a proximidade geográfica é valorizada, na medida em que proporciona um circuito particular de interação, orientado pela “visita” e pela “ajuda”. A partir do momento em que fui morar na localidade, a proximidade proporcionada pelo habitar também me possibilitou participar mais intensamente desses circuitos.

12 Justamente por isso, eu deveria saber que essas relações frequentemente seguem rumos diferentes daqueles vividos entre os moradores e seus visitantes. Visitando, a pessoa é alvo da “cerimônia”, posta em curso quando se trata de “receber bem”. A oferta de café, de comida e de assento e o descanso do trabalho são atitudes anfitriãs, que sinalizam um encontro mais demorado e, para tanto, demandam que os presentes tenham assunto para sustentá-lo. É que a visita demanda a prosa e a prosa estende o visitar, de modo a criar intimidade entre as pessoas, transformar a relação a ponto de se tornarem mais conhecidas.

13 A “cerimônia” dá curso à prosa, no sentido de criar as condições para provocá-la, estendê-la, matizá-la com elementos vários, visto que às vezes ela própria deve ser motivo de assunto : elogiar o alimento recebido, o talento da dona da casa na cozinha e o esmero da oferta é atitude esperada de quem chega. Nas situações em que a conversa segue longa, numa toada sem mal-entendidos, sem silêncios, esse é o anúncio de uma afinidade, um sinal de que a combinação assim criada pode se tornar mais intensa, mais contínua.

14 Como moradora, eu teria outras possibilidades de convivência, e isso também me assinalava Liduína, afirmando que o bom da vida é poder chegar, poder estar junto para o prosear — afirmação que continha uma ressalva, pois o que é bom demanda jeito, requer saber. Liduína me dizia que conviver é bom, mas é preciso atenção. O cuidado aconselhado sinalizava a dedicação necessária ao contato mais familiarizado. Entre parentes e conhecidos, não há “cerimônia”, reconhecem os moradores da Terceira Margem. Quem muito se visita pode, aos poucos, deixá-la de lado. Principalmente entre vizinhos, as chegadas constantes às casas podem prescindir do intervalo criado pela parada no trabalho e pela oferta do alimento. Isso não significa que a presença seja menos notável. Ao passo que se chega e que se recebe, as formalidades do “visitar”

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podem se tornar mais sutis e, nesses casos, a sutileza traduz pressupostos particulares a esses encontros.

15 É próximo quem visita ; porém, alguém mais próximo não faz visita, aparece de outro modo. Sua presença é andar, chegar às casas. O “visitar”, apesar de sintetizar a dinâmica da hospitalidade, não traduz todas as chegadas, visto que a troca constante de recepção e presença modula a própria forma de receber e de se fazer presente. Quem constantemente “faz visita” muito provavelmente deixa de ser “visita”, visto que o contato assim cultivado proporciona a modulação da proximidade e da distância entre as pessoas. Não se trata de estabelecer uma proximidade cada vez mais estreita, mas sim de transformar constantemente o próprio encontro, segundo essa dinâmica do contato vivido nas casas.

16 Mas, mesmo no contexto em que o ir e vir dos mais próximos não exige todos os meandros observados entre quem se quer conhecer, a troca de palavras não deixa de ser uma maneira de qualificar o contato. Quando as palavras já não precisam de “cerimônia” para se reproduzirem, ou seja, quando a conversa já começa no gritar pelo dono da casa (“ô de casa”), é porque essa relação se estreitou no constante prosear. Entre os mais chegados, a palavra deve circular constantemente, pois os margeenses abominam a indiferença. Nas ruas das localidades e da cidade, bem como nas capelas, o encontro com o próximo pressupõe, ao menos, a troca do cumprimento que assinala o reconhecimento da existência de cada um. A falta do cumprimento explicita uma disposição ao “pouco‑caso”. Essa é uma maneira homeopática de cultivar a distância, pois é sabido que tal atitude, dada a frequência, pode afastar as pessoas. Também pode acontecer de esse silêncio circunstancial explicitar as tensões da convivência : torna-se indício de que algo não vai bem na relação. E, assim, transforma-se em preocupação para quem é alvo dele, pois frequentemente as pessoas tentam entender o porquê do descaso. Em um contexto no qual a união e a harmonia são valores que devem ser constantemente afirmados, o “pouco-caso” é uma disposição nada meritória.

17 Ainda atentos ao conselho de Liduína, percebe-se que dedicação também é precaução. Liduína chama à atenção : “tem gente que gosta de falar e, quando você encontrar gente assim, tem que cuidar pra não falar também”. A anfitriã refere‑se aos outros moradores e aos rumos que a conversa pode tomar quando a convivência se cria em vizinhança. Nesse sentido, demonstrar habilidade com as palavras não consiste apenas num requisito para ser reputado como “bom de prosa” ou, ao menos, para não ser reconhecido como alguém dado à indiferença (“pouco-caso”). Afinal, a fala, para os moradores da Terceira Margem, detém outras propriedades.

Do que o povo fala

18 Os margeenses reconhecem que, sob o pretexto de uma conversa amena, é possível que alguém se faça presente em uma casa com o propósito de comentar situações que frequentemente devem ser restritas a determinados ambientes, transformando assim qualquer encontro em oportunidade para “falação”. Nas situações em que a visita se fazia motivada pela necessidade de comentar a vida do vizinho, era comum alguém dizer : “chegou aqui com aquela fala mansa”. Um “fala mansa” sempre faz da conversa uma oportunidade para se dedicar à “falação”. Isso acontece quando se tematiza o que se passa entre os moradores da localidade.

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19 É certo que, devido à proximidade geográfica, nem sempre tais acontecimentos necessitam de divulgadores, visto que podem ser observados diretamente. Mas essa proximidade não diminui o trânsito de crianças e adultos pelas ruas e casas, cuja constância traz as novidades observadas na comunidade. Tratar de acontecimentos relacionados aos outros moradores não deixa de ser um hábito que motiva as chegadas tão valorizadas nesse contexto social. À semelhança do que Norbert Elias e John Scotson (2000) descreveram para a comunidade Winston Parva, na Terceira Margem, ainda que criticadas, as fofocas tornam os encontros mais interessantes. Sem elas, a vida perde “muito do seu tempero” (Elias & Scotson, 2000 :122).

20 A troca de palavras é pouco dada à estabilidade. Sabendo disso, as pessoas nem sempre estão preocupadas em qualificar a fala como fofoca ou boa prosa. Mas há situações que fazem com que o reconhecimento dessa característica seja algo tão imperativo, a ponto de exigir que as pessoas observem zelosamente o que vão falar. É o que acontece quando os inoportunos “desentendimentos” estão à espreita.

21 A valorização de momentos nos quais “tudo está controlado” e/ou de uma vida que “segue controlada” explicita uma tendência em esconjurar o que pode desestabilizar a existência. Dessas desestabilizações, os conflitos vividos entre parentes e conhecidos destacam-se como mais preocupantes. “Desentendimentos”, como os margeenses definem as tensões explicitadas, são eventos malfazejos, visto que trazem “sofrimento” para as pessoas. Viver em desentendimento também preconiza uma possibilidade de ruptura da vida coletiva, uma desestabilização radical demais para que possa ser aventada por qualquer morador : um “desentendimento” contínuo traz sofrimento justamente porque, sob seu jugo, a existência torna-se sem graça, por vezes, insuportável. “Viver longe do meu povo”, algo que ocorre devido às mudanças geográficas, é um fardo do qual se queixam os margeenses. Quando essa distância é criação de um “desentendimento”, ou seja, quando as pessoas se afastam por conta de algum conflito, o “sofrimento” pode ser ainda maior, pois explicita a capacidade de cada um de estabelecer as condições que o fazem padecer.

22 Tamanha preocupação com os “desentendimentos” também indica que se trata de acontecimentos constantes, mais do que as pessoas desejariam que o fossem. Mas o que é notável à existência do conflito, tal como é vivido pelos moradores da Terceira Margem, é a necessidade de viver uma vida marcada pela autodisciplina e pelo cuidado dedicado ao relacionar. “Ter controle” é expressão recorrente entre os margeenses, e uma de suas traduções possíveis diz respeito a esse entendimento de que, assim como há comportamentos que criam desacordos, há atitudes que visam se furtar às dissensões mais radicais. Logo, não se trata de uma vida que se faz sem conflito, pois mais importante do que evitar divisões e distanciamentos é o conhecimento que cada um aciona nessa vivência, de modo a evitar que as tensões se reproduzam continuamente.

23 Se a moradia em uma casa na Terceira Margem significava um maior contato com os outros moradores, tal intimidade também possibilitava conhecer as tensões ali existentes. Considerando que esse morar era em casa de Leocádia, eu entrava na localidade já participando de um dos desacordos mais perenes ali vividos. Trata-se do “desentendimento” entre Leocádia e sua cunhada, a Nenha, esposa de Seu Domingos e irmã de Liduína. Desde seu casamento com Domingos, Nenha misteriosamente rompera relações com Leocádia, sua mãe e suas irmãs, permanecendo em silêncio sobre o motivo que a levou a não mais se relacionar com os parentes do marido. Foi a própria Leocádia

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que achou por bem me contar sobre a discordância entre ela e a cunhada. Tendo em vista que foi Nenha quem se afastou e nunca mais trocou palavra com sogra e cunhadas, Leocádia me recomendava não falar sobre ela, tampouco sobre o acontecimento, em presença de Nenha.

24 Em razão desse cadinho de tensões difusas e explícitas, não era por menos que Liduína se preocupava com a fala. O conhecimento de minha anfitriã sobre o bom convívio enfatizava que, tão importante quanto ter precauções com o falar, era o fato de não dar o que falar. Por isso, suas orientações sobre o viver na localidade, além daquelas relacionadas à participação nas conversas afeitas à “falação”, versavam sobre outras particularidades de minha presença ali : sendo solteira e morando sozinha, eu fazia por bem não receber homens em minha casa. “Em casa de mulher sozinha, homem não entra, o povo fala”, disse-me a moradora. Ainda que tenha mencionado um ou dois moradores mais inconvenientes, ela se preocupava mesmo era com seu cunhado, o irmão de Leocádia. Acostumado a cuidar da casa na ausência dessa moradora, Seu Domingos deveria mudar os hábitos devido a minha presença ali. Desconfiando da atenção masculina a essas sutilezas que as mulheres aprendem a respeitar desde criança, Liduína sempre acompanhava o cunhado quando este resolvia chegar até a casa, seja para cuidar da horta, seja para prosear com a nova moradora.

25 Da série de atitudes e comportamentos mais afeitos à “falação”, destaca-se a observação das medidas de proximidade e distância entre os gêneros. Pais e filhas, irmãos e irmãs estão acostumados a permanecer juntos em casa mesmo na ausência das mães. No entanto, no que tange à presença de um homem que não mora na casa, as “meninas” são orientadas a recebê-los à maneira da “gente de fora” : à porta da sala. Quem chega também deve anunciar a presença e aguardar a recepção de quem se encontra em casa — atitude que todo conhecido faz por bem observar, de modo que, sabendo que não há homem na casa, o comum é que o homem que chega se anuncie à porta ou, quando mais conhecido, que a chegada se faça acompanhada do aviso : “ô de casa”. Essas situações correspondem não apenas ao contato com as “meninas”, mas a toda ocasião na qual a ausência masculina se soma à presença feminina. Nesse contexto, quando um “conhecido” chega a uma casa, a avaliação sobre tal ato pode pontuar sua responsabilidade em ter chegado num momento e de uma forma inadequados. Todavia, também não se desconsidera a atuação feminina na modulação da presença. É algo que uma “mãe de família” deve ensinar à filha “menina” e que, ao se tornar adulta, a mulher deve observar.

26 Difícil era seguir tantos conselhos quando o próprio ofício exigia de mim a busca constante pelas conversas, bem como a proximidade dos homens e do universo masculino, como a política. Tendo em vista que cheguei à localidade acompanhada por políticos e interessada em saber sobre o tema, não foram poucas as vezes em que fui associada à política e aos seus acontecimentos. Vinculada à divisão, a política é feita de “partidarismos” que arriscam as relações de parentesco e amizade. Além disso, é na política que os comportamentos humanos são dominados pelas “paixões” e pelo “interesse”, forças que levam aos “desentendimentos” e das quais voltarei a falar ao longo do texto. Embora “política” não seja exclusividade dos homens, dado que as mulheres também participam dessas atividades, é notável a associação entre tais práticas e o universo masculino.

27 Por todas essas coisas e por muitas outras que escapam ao meu entendimento, poucas semanas depois da minha vinda como moradora, todas as preocupações de Liduína se

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concretizaram quando, numa visita à casa de Nenha, essa mãe de família aproveitou a ocasião para me “chamar na conversa”.

Criações da conversa

28 Nenha me “chamou na conversa” explicitando um desconforto que há tempos guardava para si : pessoas vinham até sua casa dizer que eu estava tendo um “caso” com seu marido. Apesar de ter ficado em silêncio por muito tempo, a moradora me disse que não via mais sentido em assim proceder, uma vez que toda a comunidade já estava sabendo do assunto. Ainda que eu tenha argumentado sobre o absurdo daquela situação, a moradora se demonstrava menos interessada em ouvir meu ponto de vista e mais preocupada em fazer com que a “falação” deixasse de entrar em sua casa.

29 O interesse em não dar continuidade à “falação” também deveria ser meu, algo que foi assinalado não apenas por Nenha, mas também pelas mulheres que ouviram meus relatos após o ocorrido. Considerando que todos os envolvidos diretamente no disse- me-disse eram pessoas muito próximas (gente da mesma família) e que essa tinha sido justamente a família que me recebeu na localidade, aos meus olhos, a situação se encaminhava para minha despedida do local. Mas, mesmoqueoacontecidosugerissequesetinhaconfiguradoum“desentendimento”, Idalina e Quirina (mulheres que, assim como minha primeira anfitriã, Liduína, tornaram-se muito próximas de mim ao longo da pesquisa) argumentavam que a ausência apenas confirmaria o que a fofoca suspeitava. O melhor era permanecer no local e “ter controle”.

30 “Chamar na conversa” refere-se a uma modalidade de diálogo que já nasce tensa, porque visa trazer à tona assuntos capazes de pôr em risco qualquer relação. Entretanto, se durante uma conversação como essa a tensão pode se distender, ainda é possível administrá-la sem causar grandes rupturas. Muito piores são os atos de violência, recriminados, mas vivenciados por mulheres da localidade que “perdem a cabeça” e enfrentam sua possível adversária — não com palavras, mas com socos ou puxões de cabelo. As mulheres reconheciam : ao manter a conversa a sós, Nenha tinha “tido controle”.

31 Apesar de o “chamar na conversa” ter evitado a violência, isso não significava que eu estaria livre de outras consequências desabonadoras. As mulheres argumentavam que, após aquela conversa com Nenha, certamente um ou outro conhecido se afastaria de mim. Além da própria Nenha e de sua filha Geni, Maria Alexandrina, filha de Liduína, foi dessas pessoas que passaram a me tratar com certa displicência. Dado que o distanciamento de relações constantemente cultivadas é um motivo de lamento para os margeenses (isso sem falar na reputação pouco honrosa que as fofocas atribuíam a mim), as mulheres se preocupavam com o meu “sofrimento”. No entanto, tal reconhecimento estendia-se também à Nenha, pois todas elas sabiam como é o “sofrimento” criado por uma “falação”. De modo que, quando uma “mãe de família” “chama na conversa”, esse é um sinal de dedicação às suas relações : diziam as mulheres que Nenha deveria estar preocupada com o próprio casamento ao afirmar que não queria aquela “falação”.

32 De todo modo, o “desentendimento” entre Nenha e mim tinha sido criado e dele já se ouvia falar nas casas de outros moradores. Nesses momentos, tornava-se mais imperativo o conselho de Liduína sobre as precauções. Entre elas, deixar a casa de

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Leocádia e voltar a fazer visita foi uma das possibilidades aventadas para que eu permanecesse no lugar. Essa seria uma forma de me manter mais distante de Seu Domingos, mas também dos outros moradores, a fim de que tanto eu quanto as mulheres que se mantiveram próximas a mim pudéssemos avaliar o rumo que os acontecimentos tomariam ao longo dos dias.

33 Nesse sentido, apesar de me aconselharem a não me afastar da Terceira Margem, também foi significativa a atenção de minhas vizinhas às modulações da presença. Pois retornar à localidade como “visita” era uma forma de não me distanciar, mas por outro lado não me manter muito próxima. Essa condição também era propícia às minhas conhecidas, visto que elas pouco sabiam as consequências que o incidente teria sobre suas relações. Ainda que muitas dissessem que não deixariam de conversar comigo, mesmo se Nenha delas se afastasse, era com preocupação que notavam um ou outro sinal de indiferença vindo daqueles que se afastaram de mim após o “chamar na conversa”. Embora nem sempre sinalizassem a ruptura, é fato que esses indícios sugeriam a possibilidade de isso acontecer a qualquer momento.

34 Outros comportamentos destacavam-se como propícios a evitar que as dissensões se intensificassem. Dos conselhos sugeridos pelas moradoras, um era o “não tocar no assunto”, a fim de evitar que as palavras potencializassem o “desentendimento”. Nas chegadas que me ajudariam a manter relações com as pessoas, eu deveria ter cuidado com os assuntos tematizados. Em certos encontros, principalmente naqueles em que alguém desconsiderasse a boa conduta e falasse sobre o ocorrido em casa de Nenha, orientavam-me a não estender o tema, desconversando-o. Para definir essa maneira de lidar com um “fala mansa”, as moradoras explicavam : “faz por bem falar e não falar”. Nas situações mais difíceis de fazê-lo, poderia até mesmo ficar em silêncio ou expressar uma frase solta, que, aparentemente sem sentido, não o era para aquele que me provocava à conversa. Aprendi essas maneiras observando-as em seus próprios momentos, alguns mais, outros menos imperativos no que tange ao “falar e não falar”, a exemplo de uma festa de aniversário na qual abordei Quirina sobre o paradeiro de um livro de fotos que eu tinha emprestado a sua vizinha. Após um breve silêncio, ela me respondeu : “aquele livro é muito bom, todo mundo quer olhar”. Desorientei-me com o absurdo da resposta. Meu estranhamento baseava-se no fato de que, dias antes, essa mesma moradora tinha vindo me falar que eu não deveria ter emprestado o livro para sua vizinha. Todavia, num contexto em que a “falação” cultivou um “desentendimento” e num momento em que várias pessoas nos acompanhavam, minha abordagem desconsiderou os perigos provindos das palavras mal colocadas. Nessa hora, minha interlocutora não titubeou em desconversar : na evitação da resposta a minha pergunta, lançou o comentário genérico sobre o interesse das pessoas no livro.

Fazer maldade

35 No contexto de um “desentendimento” associado à “falação”, a atenção às conversas foi central no mapeamento dos possíveis fatores relacionados à situação que vivíamos naquele momento. As recomendações de Quirina, Idalina, Leocádia e Liduína destacam a capacidade criativa da fala. Assim como se entende que a conversa pode promover proximidade e união, reconhece-se que “desentendimentos” surgem das conversas.

36 Sobre essas possibilidades, os moradores não desconsideram o uso que algumas pessoas podem fazer desse hábito tão valorizado, ao acioná-lo na criação dos

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“desentendimentos”. Haja vista a série de atos que se sustentam na conversa, mas que subvertem seu poder de aproximação, à medida que são concebidos como fatores de distância : a “falação”, o “chamar na conversa”, bem como o “tocar no assunto”. Essas práticas sugerem o uso malfazejo que se pode fazer da fofoca para atingir as pessoas. Nesses casos, a função da “falação” assemelha-se ao que foi observado por outros pesquisadores, em contextos sociais bastante diversos — a exemplo do que retratou Fonseca (2004) sobre os moradores de uma vila da periferia de Porto Alegre, assim como descreveu Campbell (1964) sobre os pastores gregos (os Sarakatsani).1

37 A proximidade entre Seu Domingos e mim, quando tematizada nas casas, poderia muito bem ser entendida como essas conversas que se fazem com o objetivo de entreter. Porém, para as moradoras, quando as chegadas visavam reproduzir esse assunto na casa de Nenha, a conversa dificilmente tinha como objetivo o entretenimento. Por isso, mesmo que a “falação” já corresse as casas da comunidade através das várias presenças que comentavam o suposto caso entre Seu Domingos e mim, para Quirina e minhas outras conhecidas, o responsável pela “falação” era quem tinha chegado à casa de Nenha e lhe falado da história. As moradoras argumentavam : “isso daí é a inveja da pessoa que foi lá na casa dela”.

38 A fala, ao reproduzir um assunto reconhecido como capaz de criar “desentendimento” àquele que nele está envolvido, é identificada com o “fazer maldade”. Entende-se que essa fala seja suscitada pela “inveja”, que tem o potencial de provocar outras “paixões” desencadeadoras de “desentendimentos”, como o “ciúme”. Assim, a inveja promove o infortúnio, pois favorece a emergência de um estado intranquilo e difuso chamado desconfiança, bem como o distanciamento entre as pessoas. Nesse sentido, além de provocar ânimos, a fala é vetor de afetos escusos.

39 É preciso entender que, para os moradores da Terceira Margem, há forças que participam da existência, e suas manifestações podem provocar dissensões. Trata-se das “paixões”. Há contextos da vida social, como a política, nos quais essas forças encontram condições favoráveis de se alastrarem. Além do “partidarismo” que transforma o contexto social (“na política, tem que ter lado”, premissa que orienta as reordenações de pertencimentos sociais, desconfigurando e reconfigurando coletivos), os comportamentos são transformados porque a política se atualiza como influência : “a política é paixão”. Por conta disso, durante as campanhas eleitorais municipais, os comportamentos se transformam, e até mesmo os moradores mais dedicados às relações entre parentes e conhecidos podem sucumbir a essa “paixão” e dar curso às “provocações” que tanto afastam os mais chegados.

40 Mas a vida talvez fosse mais tranquila se existisse apenas a política. As potências desestabilizadoras não concernem apenas ao “partidarismo” e seus princípios, visto que a existência dos “lados” não é uma prerrogativa de apenas uma atividade ou de um contexto da vida social. As pessoas também são compostas por “lados” : o “lado bom” e o “lado não tão bom”. Transmitidos pelo sangue e regidos pela influência das paixões, os lados manifestam-se na vida cotidiana, por meio de atitudes e comportamentos. Desentendimentos podem ser criados por comportamentos que correspondem à manifestação do lado não tão bom.

41 A paixão que se manifesta nas campanhas eleitorais municipais e a paixão que se expressa no dia a dia se assemelham na maneira como influenciam a vida pessoal e coletiva. Para além do contexto das campanhas eleitorais, o termo “política” deixa de ser sinônimo de paixão e especifica-se em outros nomes : “inveja”, “ciúme” e “ambição”.

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Embora mude de nome, sua manifestação no mundo é similar ao que se observa nos contextos políticos, pois reflete a alteração de comportamentos e atitudes individuais e tem efeito sobre a vida coletiva : dotadas de agência, as paixões fazem fazer coisas (Latour, 2002), motivando provocações, “desentendimentos”.

42 Os margeenses reconhecem que as paixões são influências perenes sobre os comportamentos, e por isso podem se manifestar nos contextos mais valorizados da convivência. Pois, assim como há pessoas mais reconhecidas pelas vezes em que foram dominadas pelos próprios afetos, reconhecem-se pessoas que fazem uso de suas propensões a fim de criar “sofrimentos” alheios. Tal reputação denota uma habilidade da pessoa em se dedicar às atitudes reconhecidamente propícias à disseminação de acontecimentos desafortunados, a exemplo dos “desentendimentos”. Dessas atitudes, são exemplares as chegadas que se fazem no intuito de falar sobre acontecimentos que podem também influenciar a vida daquele que ouve. Nesses momentos, está em questão a fala que pretende suscitar no ouvinte a “desconfiança”, os “ciúmes” e outros afetos com o potencial de distanciá-lo das pessoas.

43 Da centralidade das conversas na feitura da “maldade”, destaca-se a semelhança com o que Favret-Saada (1977), em pesquisa realizada no Bocage Francês, descreveu em relação ao sistema de feitiçaria. Ainda que na Terceira Margem eu não tenha ouvido menções a feitiços e/ou feiticeiros, assim como os camponeses do Bocage, os margeenses não desconsideram que a fala possa atualizar o mal. No Bocage Francês, a fala pronunciada numa situação de crise será identificada pelo desenfeitiçador como o mote da repetição de um mau feiticeiro. Em um contexto mais próximo ao que retrato neste trabalho, Carneiro menciona, sobre uma localidade rural do Norte de Minas Gerais, a associação da conversa aos efeitos desabonadores, afinal, “determinadas palavras são [o] ‘mesmo que dar veneno’” (2010 :103).

44 Devido à existência dos afetos escusos (as “paixões”), qualquer um pode “fazer maldade”. No entanto, é preciso considerar que, assim como há pessoas que evitam tratar de determinados assuntos, como afirmei acima, há aquelas mais propensas a chegar às casas dos outros no intuito de motivar conversas cujo efeito pode ser pernicioso sobre quem as recebe. Embora Quirina e Idalina afirmassem que não sabiam da “falação” sobre o suposto caso vivenciado entre Seu Domingos e mim, com o passar dos dias, Quirina reconheceu que sabia que a “falação” corria às casas. Espantada, perguntei por que ela não tinha me avisado antes de Nenha me “chamar na conversa”. E Quirina respondeu : “eu não ouvi da boca da Nenha, não tinha ouvido ainda da sua boca, pra evitar desentendimento, eu não ia ser a primeira a tocar no assunto”. Ao silenciar, tanto para mim quanto para Nenha, sobre o que a “falação” tematizava nas casas, seu intuito era evitar que ela mesma fizesse a maldade das menções descabidas. Mesmo após suscitado o “desentendimento”, a moradora achou por bem esperar que eu lhe contasse. A partir daí, sentiu-se à vontade para falar sobre o que já sabia muito antes de o “chamar na conversa” ocorrer.

45 Aqui resgato novamente o trabalho de Favret-Saada (1977) para marcar semelhanças e diferenças entre sistemas nos quais a fala atualiza o mal : enquanto, no Bocage Francês, a fala pronunciada numa situação de crise será identificada pelo desenfeitiçador como o mote da repetição de um mau feiticeiro, na Terceira Margem, a fala, ao reproduzir um assunto tão pleno em “desentendimentos” para quem nele está envolvido, pode ser identificada com a maldade em ato. Por conta disso, o sistema da fofoca menos perniciosa segue o terceiro : alguém perto, mas longe o bastante do assunto a ponto de

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não ser envolvido. Para que o “tocar no assunto” não gere “paixão”, é preciso que o afetado pelas fofocas verbalize primeiro. Nesse caso, a fala tanto não provoca quanto não demonstra os ânimos de quem enuncia ; ao menos, não os ânimos escusos.

46 No que tange às situações de “desentendimento”, principalmente ao saber vivê-las, destaca-se também um saber reconhecer a origem dos conflitos. Menos interessadas em elencar um culpado para excluí-lo do seu círculo de relações, as moradoras se preocupavam em conhecer quem começou a fofoca. Esse mapeamento também é parte da disciplina imposta a si e à relação com os outros quando o que está em questão é um “desentendimento”. Ninguém quer proximidade com um fofoqueiro, mas manter-se muito distante, a ponto de ignorá-lo, tampouco é atitude inteligente. Afinal, dificilmente o “fazer maldade” será uma prática involuntária, até mesmo porque, tendo em vista que a fofoca é também um meio de comunicação, as pessoas sempre sabem do que acontece. Desse modo, a atitude ingênua em demonstrar desconhecimento ao “tocar no assunto” não é um recurso convincente. Todavia, é possível “tocar no assunto” e não “fazer maldade” principalmente quando aquele que “toca” o faz porque o envolvido no assunto o fez primeiro.

Ameaças familiares

47 A particularidade desse circuito de “falação” pressupõe a intencionalidade em chegar à casa de alguém para falar de algo cujos efeitos conflituosos são reconhecidos. Desse modo, o “fazer maldade” também pode ser denominado de “coisa feita”. Em outras regiões de Minas Gerais, a expressão “coisa feita” é acionada nos contextos em que se fala sobre as ameaças místicas, a exemplo da feitiçaria. Porto (2007), em seu estudo no Vale do Jequitinhonha, refere-se à correlação entre a intencionalidade de alguém em prejudicar outra pessoa e as consequências dessa intencionalidade. As semelhanças entre o “fazer maldade” e a experiência da feitiçaria, conforme descrita por essa autora, não se limitam ao uso de uma mesma expressão (a “coisa feita”), pois nas duas práticas está em questão a intencionalidade de alguém e os efeitos dessa intencionalidade. Porto (2007) argumenta que o feitiço não se define pelo uso de meios, instrumentos e conhecimentos específicos, e que a intenção provém sempre de alguém distante daquele que é alvo das consequências maléficas. Entre os margeenses, a proximidade também é condição do malfeito e essa efetuação depende do uso que se faz das conversas, algo que se nota ao atentarmos para outras particularidades da circulação das palavras.

48 Da “coisa feita”, conforme observei entre os margeenses, além de a conversa ser o principal meio de “fazer maldade”, o circuito que corresponde à conversa mais perniciosa pressupõe um conhecimento específico : aquele relacionado ao “tocar no assunto” com quem nele está envolvido. Esse é um saber partilhado pelos moradores da Terceira Margem : as pessoas reconhecem os efeitos de um “tocar no assunto”. Sendo assim, a “coisa feita” dificilmente será protagonizada por alguém distante da vítima, visto que o “tocar no assunto” pressupõe um conhecimento da intimidade da vítima, ou seja, dos acontecimentos que, ao serem comentados, podem deflagrar ânimos capazes de distanciar pessoas.

49 Há ainda outro aspecto que define o “fazer maldade” como uma prática própria às relações entre próximos. Tal aspecto se apreende de outras peculiaridades : lembramos que o “fazer maldade” ocorre por meio da conversa, principalmente daquela cultivada

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nas casas uns dos outros. Dado que quem chega a uma casa é sempre alguém muito próximo, o “fazer maldade” é prática mais comum entre parentes e conhecidos. Mas a proximidade entre as pessoas não é fator suficiente para o entendimento da dinâmica do “fazer maldade”, afinal, se o fosse, outras chegadas poderiam ser atribuídas a esse ato. É preciso considerar que a motivação de alguém chegar para tratar de assuntos conflituosos pode também ser percebida como “boa vontade”, a exemplo das menções de Quirina e Idalina à possibilidade de a pessoa chegar à casa de Nenha e contar sobre o “caso” na tentativa de “salvar um casamento”. Mesmo que seja reconhecida a potencialidade dessas conversas em suscitar os “desentendimentos”, isso não quer dizer que as pessoas não se dediquem a esses assuntos tendo em vista uma predisposição em auxiliar o outro, bem como em buscar auxílio.

50 O que diferencia o mesmo ato como “boa vontade” ou como atitude movida pelas “paixões” é a observação sobre a trajetória daquele que se faz próximo. Tão importante quanto o circuito pernicioso das conversas é a reputação de quem chega à casa de alguém. Nos dias que antecederam ao “chamar na conversa”, contrariando os próprios hábitos, Maria Alexandrina chegou à casa da tia com uma constância surpreendente. No entanto, sua presença só foi significativa para sua responsabilização no “fazer maldade” porque Maria Alexandrina é reconhecida como “pessoa ruim”. Tal atributo reforça seu papel na criação dos acontecimentos que me distanciaram de alguns moradores na Terceira Margem.

51 Ao longo dos últimos dias em que permaneci na localidade, quando nos encontrávamos nas ruas, Maria Alexandrina cumprimentava-me ou partilhava comigo algum comentário genérico. Percebendo tais iniciativas, Quirina e Idalina consideravam que eu não deveria repeli-las, tampouco deveria ficar muito próxima de Maria Alexandrina. Aconselhavam-me a responder aos cumprimentos e frequentar a casa de Liduína (a mãe de Maria Alexandrina), sinalizando com essas atitudes o desinteresse em manter o “desentendimento”.

52 No que concerne às ameaças à vida em comum, os margeenses preocupam-se com o que pode advir do contato com pessoas estranhas. Mas tampouco desconsideram que cada parente e conhecido possa se comportar de modo ainda mais potente no que concerne às ameaças. Assim como há pessoas que observam mais e pessoas que observam menos o “controle” das situações e dos comportamentos propícios aos inconvenientes da vida em comum, há aquelas que sabem fazer uso dessas situações, bem como dos seus comportamentos, a fim de criar esses inconvenientes.

53 Embora “paixões” e “boa vontade”, assim como seus “lados”, “bom” e “não tão bom”, sejam elementos constitutivos das pessoas, não é essa existência que define a reputação de pessoa “boa” ou “ruim”. Nesse mapeamento das qualidades pessoais, é importante a observação das condutas e dos comportamentos associados a esses afetos que fazem com que a pessoa seja avaliada sob tais condições. Sempre quando se fala de alguém, é mencionando a capacidade que o conhecido tem de ser bom e de ser ruim em vários momentos de sua vida. Qualquer um está suscetível a ser “boa pessoa” ou “pessoa ruim”, assim como é possível, mesmo tendo vivido um longo período da vida “no descontrole”, transformar-se em “boa pessoa”. As variações observadas no comportamento de uma pessoa ao longo da vida são pensadas como consequências de um processo que muitos identificam com as contingências que cada um experimenta durante sua trajetória : seus sofrimentos e suas alegrias, cuja repercussão pode ser analisada diretamente sobre as relações com conhecidos e parentes. É como me diziam

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sobre uma de minhas anfitriãs, Quirina, quando mencionavam que eu tinha a sorte de não ter conhecido a “Quirina difícil”. De acordo com sua prima, “essa daí não cumprimentava ninguém, vivia brigando com a nora, a mulher do filho mais novo. Mas foi ficando velha, parece que se controlou, é mulher que reza bastante e já sofreu por demais na roça. Hoje, Quirina é pessoa das mais boas”.

Mais do dito quando dito

54 Maria Alexandrina não era um exemplo de “boa pessoa”, diziam minhas conhecidas. Pelo contrário : brigas e afastamentos cultivados em relação a sua irmã mais nova, mexericos difundidos pelas ruas e casas da localidade, ambição cultivada em sua relação com os técnicos da Emater e com os políticos que a procuravam para ajudá-los em suas campanhas foram os principais fatores assinalados pelas mulheres para tentar me convencer de que aquela minha conhecida não era das mais confiáveis. O fato de ser mulher dedicada à igreja não diminuía em nada sua má reputação, pelo contrário, parecia mais um elemento de destaque no histórico de atitudes malfazejas : “pra que tanta reza se só faz o mal ? Nem reza muda aquela lá”, diziam-me. A reputação de Maria Alexandrina atestava não apenas a carência de domínio dos seus afetos mais perniciosos, mas também habilidade em fazer uso desses afetos para alcançar certos fins. Embora sejam reputados como “pessoas ruins”, esses moradores demonstram capacidades tão peculiares que provocam não apenas críticas, mas também espanto e, porque não, admiração e “inveja”.

55 “Maria Alexandrina é capaz de enganar até os políticos”, disse-me Quirina. Falou sobre as vezes em que, “trabalhando a política” para Zica (extensionista da Emater que havia se candidatado ao cargo de vereadora em campanhas passadas), Maria Alexandrina não escondia dos outros moradores que seu voto não era da candidata, mas sim de outro candidato à vereança, que concorria pela mesma sigla de Zica. Apesar de falar abertamente sobre suas opções políticas, as quais contrariavam os apoios que explicitava durante as campanhas eleitorais, Maria Alexandrina mantinha relações próximas e era procurada pelos políticos na localidade. Quirina e Idalina reconheciam que essas habilidades de transitar pelo universo dos políticos, e até mesmo “enganá- los”, permitiam a Maria Alexandrina o usufruto dessas presenças e dos bens que elas traziam à comunidade. Como exemplo, citavam a procura dos candidatos à casa de Maria Alexandrina e o fato de Zica muitas vezes designá-la como mediadora entre a comunidade e a Emater, conferindo-lhe a função de representante da localidade.

56 Dias após me relatarem esses acontecimentos, Quirina e Idalina questionaram se eu tinha comentado com as pessoas da cidade algo sobre o “desentendimento” vivenciado na Terceira Margem. Calculei que esperavam de mim uma resposta negativa, por isso disse que não. Desapontadas, as moradoras incentivaram-me a contar para Zica. Argumentavam que essa seria uma forma de Zica não mais frequentar apenas a casa de Maria Alexandrina e passar a chegar às casas dos outros moradores.

57 O fato causou-me espanto naquele momento, pois a atitude de minhas conhecidas parecia muito similar ao que elas me diziam sobre a “inveja” e outras propensões atraentes às “pessoas ruins”. No entanto, tal espanto se dissipou tão logo prestei atenção nas outras situações muito peculiares àquele contexto, com destaque para as versões que as próprias mulheres davam às causas do “desentendimento” entre Nenha e mim. Em diversos momentos, uma ou outra diziam : “onde já se viu falarem de você

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ter um caso com Seu Domingos ? Isso é coisa de gente que não tem cabeça”. Tais opiniões sinalizavam que elas não admitiam que o caso tivesse ocorrido. No entanto, muitas vezes essas menções pareciam ter mais o efeito retórico de expurgar o desentendimento, a falação e suas causas do que necessariamente de expressar preocupação com o que de fato acontecera entre Seu Domingos e mim. Esse ponto de vista tornou-se explícito já nas primeiras conversas sobre como viver aquele “desentendimento”, quando Quirina me disse que a “tentação” era coisa que estava no mundo e que mulheres e homens poderiam sucumbir aos seus efeitos : ora, ela mesma já tinha feito uso de rezas e bênçãos para se precaver das investidas de um vizinho. Apesar de casada, Quirina sabia que poderia “perder a cabeça”, sucumbir a suas “paixões” e se comportar de modo pouco afeito ao que se espera de uma mãe de família.

58 Essas coisas acontecem, o mundo anda cheio das “tentações”, da “maldade do povo” e de outros perigos, e as pessoas são frágeis demais para permanecerem atentas o tempo todo, afinal, cada um traz em si as forças que, disseminadas no mundo, podem fazê-las sofrer. Ninguém é sempre “controlado”, mas isso não significa que essa disposição possa ser esquecida. Com esses ensinamentos e tantos outros, as mulheres sugeriam-me que, mais importante do que o que tinha acontecido entre Seu Domingos e mim, era o caminho que a vida tomaria dali pra frente, após Nenha anunciar o que chegou aos seus ouvidos. Daí sim : “é preciso ser controlado !” Mas o “controle” tampouco recria um mundo supostamente vivido em equilíbrio e harmonia antes de as coisas se atualizarem como “descontroladas” : como modalidade de relação, sua eficácia está em tentar dar certa ordem ao caos, mas este sempre escapa às ordenações mais almejadas. Sendo assim, é preciso saber viver o que se apresenta à existência. Embora frequentando a casa de Liduína, não me reaproximei de sua filha, Maria Alexandrina. Tampouco pude voltar a me relacionar com Nenha e sua filha. De Seu Domingos, também me afastei. Nenha não mais conversou com Quirina, sua conhecida desde a infância, demonstrando assim que nossas medidas não foram suficientes para evitar o rompimento entre essas moradoras : meu “desentendimento” não deixou de contaminar outros vínculos, trazendo distanciamentos e rancores. Com Idalina, Nenha dosou o intervalo das distâncias e atualmente já troca dois dedos de prosa.

Fica o dito pelo escrito

59 Permaneci na Terceira Margem até o final do período que tinha me proposto. Uma tentativa de retorno às visitas aconteceu em setembro de 2012, momento no qual a filha mais velha de Quirina iria se casar. Recebido o convite, vieram à tona os acontecimentos que vivemos na Terceira Margem e, num certo sentido, colocaram mais lenha numa fogueira cujas chamas se inflamavam na cadência da convivência. Pois o convite não viera sem a ressalva : Leocádia prontificou-se a ir até a Terceira Margem verificar entre seus conhecidos se meu retorno ocorreria em boa hora. O convite dirigido a mim não consistiria numa provocação de Quirina a Nenha ? Isso me foi dito por Leocádia, tentando se antecipar ao que os outros moradores poderiam pensar do convite feito por Quirina e da presença dessa convidada. Outro motivo para o reencontro era levar a tese de doutorado para elas conhecerem, texto que foi lido apenas por Leocádia. Mas será que minhas outras conhecidas queriam ver escrito tudo o que me fora dito de forma tão contida, cuidadosa, quase em segredo ? Não aprendi que deveria ter cuidado com as palavras ?

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60 A prosa seguiu seu rumo flutuante : entre as mulheres que discutiram minha presença entre eles novamente, entre elas e mim sobre o efeito das palavras escritas. Este texto registra o entendimento que faço do caso contado e do que foi vivido durante um período do trabalho de campo nessa comunidade, numa tentativa que, em si mesma, é limitada. Pois o dito parece ter algo que excede o escrito, foi o que me sugeriu Quirina quando lhe contei sobre o que versava a tese. Ouvindo o relato hesitante e preocupado, numa fala que tentava expressar não só os acontecimentos que descrevi, mas também minha preocupação em descrevê-los, Quirina recebeu o calhamaço de papel de minhas mãos. Não precisou ler para me aconselhar tranquilidade : “o que você escreveu é só história que o povo conta”. A frase de Quirina surgiu aos meus ouvidos carregada de outros efeitos : tão novos quanto a visita que fazia após um ano de despedida. Por enquanto, desse momento de reencontro fica apenas a ideia de que as palavras escritas não tomam os mesmos rumos daquelas que são ditas.

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NOTAS

1. “[…] Fofoca serve para informar sobre a reputação dos moradores de um local, consolidando ou prejudicando sua imagem pública […]. Atacar, pela fofoca, os atributos de um ou de outro é atentar contra o que há de mais íntimo no indivíduo, a imagem que ele faz de si” (Fonseca, 2004 : 29). “The prestige of an individual, or a family, is constantly evaluated in the community through gossip about personality and events. To be gossiped about is in most cases to be criticized adversely […]” (Campbell, 1964 :312). A referência ao trabalho de Cláudia Fonseca importa aqui também pelas conexões que ela estabelece entre uso da palavra, gênero e gestão das relações. Dados os limites deste artigo, a comparação mais profícua com esse e outros trabalhos que pensam esse tema, bem como uma descrição mais atenta aos problemas de gênero colocados por essa experiência etnográfica, serão alvo de investimentos futuros.

RESUMOS

Baseado nas condições que possibilitaram minha convivência entre os moradores da comunidade Terceira Margem, este artigo parte da narração de um incidente que colocou em outros termos minhas relações nessa localidade. Dessas relações, destaco a aproximação de três mulheres que, com conselhos e orientações, ajudaram-me na vivência daquele acontecimento. Fundamentais para a continuidade da minha presença entre os moradores, esses conselhos e orientações tornaram-se importantes também para a análise do modo de vida local, na medida em que, aconselhando, essas mulheres me falavam sobre seus próximos e sobre como essas relações se efetuavam. À luz das atitudes e dos comportamentos que elas e eu observamos nos dias subsequentes ao incidente, apresento uma etnografia dessas relações, tendo como foco a “prosa” e outras práticas centradas no uso das palavras.

Based on the conditions that enabled my acquaintanceship with the residents of the Terceira Margem community (Minas Gerais state), this paper narrates an incident which changed my relationships in the locality. Among these relationships, I highlight the approximation of three women who helped me to experience that event by providing me with advice. Such pieces of advice, which were fundamental to the continuation of my presence among the residents, also became essential to the analysis of the local way of life, as these women spoke to me about their close relationships and about how these relations worked. In light of the attitudes and behaviors that the women and I observed in the days following the incident, I present an ethnography of these relationships focusing on the ‘prose’ and other practices based on the use of words.

ÍNDICE

Keywords: disagreements, prose, evil; proximity, distance Palavras-chave: desentendimento , prosa, maldade, proximidade, distância

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AUTOR

GRAZIELE DAINESE

Graziele Dainese é antropóloga, formada em ciências sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestra em antropologia social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em antropologia social pelo Programa de Pós‑Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, faz pós-doutorado nessa mesma instituição. Publicou trabalhos na área da antropologia da política, tratando de temas referentes aos movimentos sociais e estudos sobre a política vivida em comunidades rurais. Suas principais áreas de interesse de pesquisa seguem os estudos de antropologia da política, com ênfase sobre conflito, formas de participação e mobilização e modos de pertencimento. Mora na cidade do Rio de Janeiro. Contato : grazidainese[at]hotmail.com

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Não ser empregado, não ter empregado : o trabalho com a família, para a família e suas variações

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

NOTA DO EDITOR

Recebido em 16/04/2014 Aprovado em 27/09/2014

Introdução

Você sabe qual é o único empregado que não quer ser patrão ? O guia de cego. Que ele não quer ser o cego, né ? (risos). Então, todo empregado quer ser patrão. E comigo não foi diferente (seu José Mário, informante).

Para mim é tão odioso seguir quanto guiar (Nietzsche, 2001).

1 Este artigo apresenta um fragmento do mundo da sulanca — organizado em torno de pequenas unidades familiares e vicinais de produção de vestuário de baixo custo.1 O produto desses fabricos é, em geral, comercializado nas chamadas feiras da sulanca, distribuídas principalmente pelo estado de Pernambuco (mas também presentes, em menor proporção, nas unidades federativas da Paraíba, de Alagoas e da Bahia), região Nordeste do Brasil. Das feiras da sulanca essas mercadorias são distribuídas, pela mediação dos sacoleiros, para a maior parte das cidades brasileiras e vendidas por lojas especializadas em roupas de baixo preço.2 Mas a escala de expansão desses bens de

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consumo, produzidos no agreste pernambucano, é bem maior — seguindo, por exemplo, para o Paraguai (Rabossi, 2008) e mesmo para Angola (Lira, 2008). Assim, o universo social estruturado com base na sulanca situa-se entre dois polos de um contínuo : de um lado, a capilaridade de suas unidades produtivas (difusas pela maior parte das residências de trabalhadores que se autodenominam sulanqueiros) ; de outro, a expansão transnacional e transcontinental de suas mercadorias.

2 O presente texto concentra-se sobre o primeiro aspecto — o caráter capilar das oficinas familiares de vestuário, onde amiúde parentes e vizinhos trabalham juntos. O ponto aqui é a centralidade do trabalho com a família, para a família, para si, com vizinhos, com conhecidos etc., bem como seus contrastes e similaridades com as relações de assalariamento, no contexto da produção e comercialização de vestuário no agreste de Pernambuco. Esse talvez seja um dos aspectos socioculturais dos trabalhadores da região cuja saliência pode ser observada já nos primeiros dias de uma investigação. Na cidade de Caruaru (em seus bairros operários), na feira da sulanca, como de resto, nos municípios vizinhos de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, ouvi quase diariamente de meus interlocutores uma variação ou outra das frases : “aqui a gente só trabalha com a família”, ou “não tem empregado de fora, não”. O ser patrão, na epígrafe, deve ser nesse sentido interpretado como patrão de si mesmo, e não dos outros, ou no máximo da própria família. Para ilustrar essa afirmação, pode-se citar outra fala de José Mário, trabalhador que me hospedou em sua casa e principal interlocutor da pesquisa, com sua esposa, dona Eugênia. Como resposta a um comentário que fiz certa feita em sua presença — argumentando que as costureiras e os costureiros de Caruaru e da região, proporcionalmente, ficavam mais com o dinheiro fruto de seu trabalho do que trabalhadores de outras regiões, nas quais não se dispunha da feira como espaço de comercialização direta —, ele disse : você tem razão quando diz que aqui o dinheiro fica na mão do trabalhador. Daquele que trabalha pra si. Pro costureiro de confecção, nem tanto. Agora, quem tá no fabrico próprio trabalhando ganha dinheiro. O dinheiro da feira vai menos pra mão do tubarão, mesmo (grifo meu).

3 Antes, porém, de considerar esse trabalho para si e, com ele, a organização familiar — e vicinal — do trabalho na costura e comercialização de vestuário, nesses locais, apresento alguns dados genéricos como meio de fornecer um contexto para as reflexões mais específicas que se seguirão nas próximas seções do texto. Esse contexto refere-se particularmente ao município de Caruaru e aos trabalhadores da sulanca. Residi nessa cidade por cerca de quatro meses, ao que se somaram algumas visitas curtas a Santa Cruz do Capibaribe e Toritama.

4 Caruaru, que dista 130 km de Recife, possui um território com 921 quilômetros quadrados onde, segundo o censo realizado pelo IBGE em 2010, habitam 314.951 pessoas. Pode-se a isso somar uma população flutuante que reside intermitentemente na cidade, perfazendo algo em torno de 500.000 habitantes. São, por exemplo, estudantes de cidades adjacentes — e até mesmo de Recife, de Campina Grande, além de outros locais da Paraíba — que vêm para esse município atraídos pelos campi da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Centro de Educação Federal de Ensino Técnico (Cefet), ou ainda por outras universidades privadas ali existentes. Além disso, já que as feiras da sulanca de Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe (as três principais cidades do polo de vestuário do agreste pernambucano) realizam-se em dias diferentes, muitos sacoleiros que vêm para a região em busca das mercadorias tendem a permanecer parte da semana hospedados em uma dessas três cidades. Seu José Mário

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certa vez me disse o seguinte a esse respeito : “muita gente vem pra Caruaru porque o dinheiro da feira da sulanca vem de fora e fica aqui”.

5 O grande volume de pessoas que chegam a Caruaru reforça um tema nativo dos mais difundidos — a centralidade geográfica da cidade no estado de Pernambuco, especificamente, e do Nordeste brasileiro, em geral. Essa centralidade é apresentada como uma das razões pelas quais a cidade tem se desenvolvido economicamente com base na feira da sulanca. A própria Feira de Caruaru (da qual a feira da sulanca constitui apenas um segmento, embora o mais importante do ponto de vista econômico) é sempre mencionada como alguma coisa que precede a própria cidade, tendo se plasmado com base no intenso trânsito de pessoas (provenientes da zona da mata, do sertão, do norte, do sul) por esse lugar central. A ênfase nativa sobre tal centralidade constitui a razão pela qual optei por me estabelecer em Caruaru.

6 No que se refere às condições ambientais, Caruaru pertence ao semiárido nordestino, com clima seco, chuvas escassas e mal distribuídas, com maior incidência de abril a junho. A temperatura varia entre 25 ºC e 35 °C no verão e de 15 ºC a 20 °C no inverno. Por ser uma região sujeita a estiagens, a cidade insere-se no Polígono das Secas, com índice pluviométrico anual de 500 mm. O município pertence ainda à mesorregião do agreste pernambucano, sendo também parte da microrregião denominada Vale do Ipojuca. Em 2006, o IBGE, por meio de um censo agropecuário, registrou uma “população rural” de 36.853 pessoas — o que demonstra, por efeito de contraste, a proeminência do meio urbano.

7 Na esfera urbana, por seu turno, o setor mais importante da economia caruaruense é certamente aquele ligado ao que a população local chama de “sulanca”. No setor de produção e comercialização de peças de vestuário da região, “sulanca” constitui um termo de significado mais ou menos abrangente. Referindo-se inicialmente ao tecido (a helanca) que serviu, por algum tempo, como matéria-prima principal da produção de vestuário, ele passou a designar também o produto acabado, o local onde as peças são comercializadas (“feira da sulanca”), bem como o conjunto das unidades produtivas da região, o “polo da sulanca”. A versão mais comumente formulada pela população local para dar conta das origens da palavra “sulanca” é uma junção de “sul” (referido, sobretudo, à região Sudeste do país, supostamente o local de onde vieram os primeiros retalhos que serviram de base para a costura de roupas) e “helanca” (tecido de que os retalhos eram constituídos). Outra explicação sugere que o termo seria uma simplificação da expressão “sucata de helanca”, referindo-se à acepção pejorativa do termo evocada, sobretudo, pelos empreendedores para os quais essa palavra estigmatiza os produtos de suas confecções. Há, por outro lado, aqueles que sustentam que o termo constitui uma marca da identidade dos produtos de vestuário agrestinos. Não é incomum ouvir dos caruaruenses formulações do tipo : “moda tem em todo lugar, sulanca só tem aqui”.

8 Outros termos foram derivando do primeiro. É o caso de “sulanqueiro”, que se refere simultaneamente ao dono de um fabrico — ao qual se contrapõe o dono de confecção, que não é sulanqueiro, mas empreendedor ;3 a um costureiro de vestuário — seja ele empregado de outrem ou produtor por conta própria (ou, como veremos aqui, produtor com a família e para a família) ; a um comerciante da sulanca na feira ; e a um sacoleiro, que vem na maioria das vezes de outros estados, ou mesmo de outros países, adquirir as peças de vestuário para revendê- las em sua região. Os empreendedores, por seu turno, definem-se relacionalmente, em contraposição às características fundamentais dos

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sulanqueiros. Inversamente, estes últimos podem se autonominar também empreendedores e, por vezes, empreendedores-sulanqueiros. Daí que o significado específico dessas e de outras categorias nativas só possa ser capturado contextualmente. Para fazer jus à sua polissemia, é necessário talvez imaginar uma forma de “pluralização nominalista das categorias” (Goldman, 2006 :168) que seja capaz de organizar um relato de suas variações de sentido em cada caso.

9 Segundo um Estudo de Caracterização Econômica do polo da sulanca realizado, em 2003, pela UFPE, Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama possuíam, naquele ano, cerca de 14.000 unidades produtivas de vestuário, das quais apenas 8 % eram formais, com CNPJ. Mensalmente, no mesmo período, o polo movimentava 1,6 bilhão de reais, sendo detentor de 14 % da produção nacional de roupas e 73 % do volume produtivo de Pernambuco.

10 No que se segue, apresento a organização social dos fabricos (e também das chamadas facções), embasada no trabalho com a família e para a família. Esses arranjos produtivos fundamentam-se em uma oposição entre os da família e os de fora. O pertencimento ao primeiro grupo frequentemente constitui condição de possibilidade para trabalhar junto ; os de fora são potencialmente perigosos, porquanto pouco inspiradores de confiança. Daí a preferência pelo trabalho com a família. E, mais do que trabalhar com a família, os sentidos expressos nas falas e nas práticas de meus interlocutores pressupõem que os rendimentos financeiros proporcionados por esse trabalho devem sempre deixar alguma coisa de valor para a família. A seguir, são consideradas as ambiguidades da noção de trabalho com a família. Depois, apresenta-se o significado do trabalho para a família, desde um ponto de vista nativo. Por fim, fecha-se o relato destacando dois contrastes desses princípios comparativamente às características gerais em tese associadas ao capitalismo.

O trabalho com a família

11 Para a maioria dos sulanqueiros com os quais tive a oportunidade de conversar em Caruaru, a oposição entre os da família e os de fora constitui o critério aparentemente mais importante para a seleção daqueles em quem se pode confiar e, por conseguinte, com os quais se pode trabalhar. Os de fora são potencialmente perigosos e geram desconfiança, embora esse modelo possa ser relativizado na prática. A disseminação dessas unidades sociais constituídas por grupos de familiares que compõem similarmente uma corporação profissional é um dado recorrente : todo mundo aqui no Salgado vai te dizer a mesma coisa. Você só vai ouvir essas coisas que eu tô te dizendo. Todo mundo trabalha com a família, ninguém trabalha com empregado, não, é muito difícil você ver. O cabra é registrado, é com o CPF, não tem firma registrada, não. Então ele trabalha com a família, que é mais difícil de o parente botar no pau [isto é, na justiça, para exigir os direitos trabalhistas]. Você pode olhar aqui na etiqueta, esse número aqui é o meu CPF. Quando é só a família que trabalha no fabrico, não precisa de CNPJ. O CNPJ só precisa se o fabrico tiver funcionário de fora (Diano, sulanqueiro).

12 Testemunhamos aqui uma versão daquilo que Juarez Rubens Brandão Lopes menciona, também com base em depoimentos de trabalhadores do Nordeste e do interior de São Paulo, como “trabalho por conta própria”. A aproximação entre essa expressão empregada pelo autor de Sociedade industrial no Brasil e o que meus interlocutores chamam de trabalho com a família não é fortuita. Encontramos regularidades nos dois

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casos. A comparação dos testemunhos registrados por Brandão Lopes com os sulanqueiros é pertinente, sobretudo, se consideramos o processo de urbanização relativamente recente de Caruaru, decorrente do desenvolvimento econômico propiciado pelo setor de vestuário. Isso se coaduna com a origem rural daqueles trabalhadores entrevistados pelo autor. Segue-se um exemplo extraído de seu livro que, além de referir-se ao trabalho por conta própria, evoca a interpenetração de ofícios, que também caracteriza os sulanqueiros : as atividades agrícolas dos nordestinos, como também, embora menos frequentemente, as dos migrantes do interior de São Paulo, aliam-se muitas vezes às comerciais. Os chefes das famílias de muitos operários ocupam-se ao mesmo tempo das lavouras e exercem profissões no pequeno centro comunal. O pai de um pernambucano, por exemplo, além de sitiante, era barbeiro “em casa e na feira”. O de um baiano era “fazendeiro e ambulante”. Um paulista, de Piracicaba, conta que seu pai tinha um sítio, mas que também trabalhava por conta própria, e acrescenta “o sítio era para manter a família e os negocinhos eram para tocar a vida”. […] O pai de um operário de São Lourenço do Turvo (São Paulo), enquanto seus filhos arrendavam terras naquela localidade para plantar algodão, foi comprador “por conta própria” de aves e ovos para vender em São Paulo (Brandão Lopes, 1964 :35, grifos meus). Uma página antes, o “trabalho com a família”, tal qual meus interlocutores o formulam, aparece ainda num contexto rural : por morte do chefe da família a propriedade não é dividida, continua de todos. Mesmo que emigrem componentes da família, continua a viúva, auxiliada por alguns filhos, a viver no sítio, que é propriedade “de todos”. Várias entrevistas refletem essa situação. Um operário, natural do Ceará, exemplifica : “Eu tenho um terreno. Meu irmão trabalha lá, o que ele tirar (da roça que fizer) é dele”. […] Outros entrevistados nordestinos, vindos de lugares onde já há maior comercialização da agropecuária, contam casos em que eles, ou algum parente, vendem a sua parte da propriedade aos irmãos, “para ficar na família” (Brandão Lopes, 1964 :34).

13 A perspectiva de manter o patrimônio familiar que testemunhamos aqui traz implicações importantes para nossa reflexão, na medida em que essa mesma tradição forjada pelos trabalhadores rurais apresenta certa durabilidade — ou aquele efeito de histerese a que se refere Pierre Bourdieu — no novo contexto urbano de Caruaru e da região.4 Trata-se do trabalho para a família, que será retomado na próxima seção, segundo as formulações de dona Eugênia, esposa de seu José Mário e grande colaboradora deste trabalho. Semelhantemente, o trabalho com a família parece constituir uma herança camponesa incorporada nos habitus daqueles então novos trabalhadores urbanos.

14 Por outro lado, o trabalho com a família decorre de outras motivações, além dessa busca pelo trabalho por conta própria — a saber, evitar problemas com a justiça trabalhista. Tudo se passa como se trabalhar com a família constituísse uma panaceia contra a ativação, por parte dos trabalhadores de fora, de seus direitos. Poder-se-ia dizer, em outras palavras, que trabalhar com a família constitui uma garantia contra os trabalhadores que, em outro contexto, foram classificados como os que gostam de botar questão (Sigaud, 1994 :140 ; Leite Lopes, 1988 :378). Conversando com sulanqueiros que trabalham no Santa Cruz Moda Center — uma espécie de shopping center de vestuário de Santa Cruz do Capibaribe —, tive a oportunidade de registrar argumentos nos quais ficam claras as relações entre parentesco, organização familiar do trabalho e desconfiança em relação aos de fora, relacionadas à ativação da justiça trabalhista. Por exemplo :

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Pesquisador : no fabrico de vocês trabalha alguém de fora da família ? Sulanqueiro : não, a gente não trabalha com gente de fora, não. Funcionário de fora dá muito problema. P : que tipo de problema ? S : dá problema. Na hora que você não tem mais condições de manter aquela pessoa trabalhando, tem que pedir pra sair, aí o cabra trabalha dois, três anos com a gente e chega e pergunta : “você vai pagar quanto pra eu sair ?” [isto é, pagar indenizações trabalhistas]. Então a gente só trabalha com a família mesmo. Tem umas dez pessoas trabalhando, meus filhos, minha esposa. Eu tenho seis filhos. Alguns já são casados e trabalham em casa mesmo, as minhas noras trabalham também. E eu tenho outros filhos que ainda não são casados e trabalham comigo e com a minha mulher, em casa. Então trabalha a família toda. De vez em quando tem um parente com dificuldade, um primo, alguém da família, né, a gente ajuda também (notas em caderno de campo de 27 de julho de 2011).

15 Esse fragmento de entrevista oferece algumas pistas para a interpretação dessa relação entre o trabalho familiar e o desejo de evitar problemas com a justiça trabalhista. Por exemplo, a noção de ajuda, que aparece na última frase : nesse contexto, ajuda constitui uma categoria ambígua. De um lado, parentes que se encontram em situação econômica ruim podem ser integrados à produção de um fabrico familiar e fugir do desemprego ; de outro, a noção de ajudar um parente pode ser uma forma tácita do modo de dominação baseado na dádiva a que se refere Bourdieu (2002). Assim é que conheci uma costureira cuja sobrinha passou a residir em sua casa, durante a pesquisa. “Eu estou ajudando ela. Eu trouxe ela pra minha casa e estou colocando ela pra trabalhar comigo”, disse minha interlocutora. Como contrapartida da morada concedida, essa moça, com uns 15 anos, encarregou-se de grande parte das tarefas domésticas, além de ajudar sua tia na limpeza e embalagem das roupas produzidas em seu fabrico. Por inumeráveis vezes ao longo de alguns dias, quando visitei essa sulanqueira para entrevistá-la, ouvi os também incontáveis chamados e delegações de afazeres à menina por parte de sua tia. A ajuda familiar, a incorporação de um parente no trabalho de um fabrico domiciliar e, por vezes, também sua recepção como novo morador da casa podem trazer como contrapartida, por assim dizer, uma espécie de onipresença das obrigações, já que, nesses casos, o espaço residencial e o espaço do trabalho se confundem. Não se trata de acusar a costureira de explorar sua parenta, senão de considerar as ambiguidades da ajuda familiar. Uma das características desse modo de dominação baseado na dádiva é precisamente a autoexploração decorrente do reconhecimento da dívida por parte dos dominados.5

16 Essa questão da exploração e autoexploração no interior de uma família que constitui também uma unidade doméstica de produção é, precisamente por essa dualidade de estatuto, um tema complexo e difícil de ser abordado. Acredito que as mesmas razões enunciadas pelos sulanqueiros para trabalhar com a família constituem também os aspectos que dificultam a análise desse universo. Precisamos nos deter aqui sobre essa ambiguidade central e refletir seriamente sobre ela. Por um lado, ajudar a família ; por outro, evitar problemas com a justiça trabalhista. As fronteiras entre a ajuda genuína e a exploração do familiar são muito fluidas para permitir qualquer generalização. Cabe mesmo indagar se há contradição entre os dois polos ou, parafraseando Bourdieu, uma relação inteligível entre eles. Defrontei-me com essa ambiguidade já nos contatos iniciais com esse universo social. Ela está presente no primeiro registro em meu caderno de campo referente à fala de um sulanqueiro e professor : hoje nós observamos duas realidades no polo de confecções do agreste. Primeiro, a realidade dos fabricos onde as famílias trabalham juntas. Normalmente toda a

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família, ou uma grande parte dela, encontra-se envolvida com a produção de roupas. É muito comum você encontrar fabricos onde não tem salários fixos, mas um orçamento familiar gerido pelos pais. A maioria desses fabricos vendem autonomamente seus produtos na feira da sulanca. A segunda realidade são as facções, onde as peças são produzidas e fornecidas para uma empresa formal que só coloca a etiqueta com a marca e revende a preços mais elevados. Alguns desses fabricos são formais, mas são poucos. A maioria é informal, com registro na etiqueta do CPF do produtor. Nos dois casos, você vai ver o trabalho infantil ligado á limpeza, ao acabamento e à embalagem dos produtos. E, como professor de escola pública, eu vejo muitas vezes que os lucros da sulanca pras crianças fazem com que elas não valorizem o estudo. Muito aluno fala pra mim : “para que estudar, professor ? Se o meu pai não estudou e ganha mais do que você ?” Os lucros do trabalho manual contribuem para uma desvalorização do trabalho teórico, na escola (Eugênio, sulanqueiro e professor).

17 Essa descrição constitui uma espécie de prólogo para abordarmos as relações entre parentesco e autoexploração familiar — do que a exploração do trabalho infantil e a autoexploração infantil é um caso particular. Sulanca, trabalho infantil e uma polêmica decorrente da baixa escolarização dos sulanqueiros constituem aspectos importantes no contexto do setor de vestuário caruaruense. A maioria dos sulanqueiros ricos se dá bem é trabalhando mesmo, ninguém estudou, não. Estudar, fazer faculdade pra trabalhar pros outros, eu não quero. O Enrique mesmo [seu irmão de 12 anos], até ele já fala que o estudo atrapalha ele a ganhar dinheiro. Porque ele tem que fazer pouco aqui, porque tá estudando. E ele queria ganhar mais, né ? Ele queria parar de estudar, a gente que não deixou (Diano, sulanqueiro, grifo meu).

18 Testemunhamos aqui aquela ambiguidade relacionada à autoexploração familiar. Não se trata apenas de exploração do parente por parte do dono do fabrico — embora esse seja também um lado do fenômeno, já que o recurso ao trabalho infantil inscreve-se no registro da “redução dos custos com a produção” —, mas da autoexploração da criança motivada pela expectativa de aumento de seus rendimentos financeiros. O recurso ao trabalho familiar pode, nesse sentido, assumir vários sentidos. Vejamos esta descrição do processo produtivo : aqui na garagem eu mesmo corto o tecido e depois mando para as costureiras de facção. São duas facções com três, quatro costureiras cada uma. Tudo aqui do bairro mesmo. Então eu trabalho com uma média de oito costureiras. Por jaqueta eu pago R$ 2,20 às costureiras. Depois de montada, a mercadoria volta pra cá. Aqui, eu mesmo faço o cós, faço a riata (tira estreita de jeans, ou outro tecido, empregada para fazer o passador e o cadarço de uma calça). Aí, depois, meu irmão Enrique faz o caseado. Eu pago R$ 0,03 a ele por cada peça que ele faz. Até ficar pronta, uma peça passa pela mão de umas oito pessoas. Depois do caseado, vem a lavanderia, as peças vão pra casa da minha tia, que mora lá do outro lado daquela rua (apontando para uma rua contígua à sua). Ela tem um fabrico maior, com muitos funcionários, costureiros, costureiras. E ela tem lavanderia lá. Então eu lavo as minhas peças lá, porque ela me dá desconto também. Todo descontinho, em cada etapa, que você consegue faz diferença na hora de vender. Se eu fosse pagar lavanderia pra um estranho, eu ia pagar R$ 1,70, R$ 1,80 por peça lavada. Como eu faço com ela, eu pago R$ 1,40. E ela também faz esse bordado aqui, ó [mostra-me o bordado nas costas de uma jaqueta]. Eu pago, em média, R$ 1,00 por peça bordada. Umas peças, o bordado é R$ 1,10, outras é R$ 0,90, outras é R$ 0,80, outras R$ 1,20, depende de quantas cores tem o desenho. Se eu fizesse fora, também ia pagar mais caro que isso. Pra mercadoria, R$ 0,10 que você ganha por etapa é tudo ; R$ 0,10 na limpeza, R$ 0,10 na lavanderia, R$ 0,10 no bordado, R$ 0,10 no caseado e no produto final você pode botar um real mais barato. Depois disso, a peça volta pra cá pra fazer a limpeza e pregar botão. A gente mesmo prega o botão

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aqui, naquela máquina ali [apontando para a máquina]. A limpeza, eu pago menino. Pago R$ 0,10 por peça limpa. Aqui tem essa vantagem que a gente pode usar menino, em cidade grande você já não pode usar menino, né. Que a fiscalização é maior, né. Aqui, a gente não sendo registrado tem a opção de usar menino. Em cidade grande, você não vê menino trabalhando. O mesmo serviço que você paga R$ 120,00 para o adulto, paga R$ 60,00 pro menino. E sempre trabalhando com a família. Porque mesmo sem registro, a pessoa trabalha sem registro, a costureira, e depois coloca no pau, vai na justiça e pega os direitos dela. Mesmo sem registro. A justiça vai e te obriga a pagar o tempo de serviço da costureira, o INSS, o FGTS, as férias, o 13º. Então a gente só trabalha com a família, mesmo (Diano, grifos meus).

19 Por um lado, trabalhar com as costureiras do bairro e, mais ainda, com a tia constitui uma modalidade de troca mercantil não separada totalmente de um princípio de reciprocidade no qual os parentes se ajudam, reduzindo os custos com a produção ; de outro, há a vantagem de usar menino, encarnada na redução em 50 % dos custos com remuneração da mão de obra. O próprio irmão se insere de bom grado nesse sistema, chegando ao ponto de desejar sair da escola para trabalhar mais — o que certamente é motivado por aquela redução em 50 %.

20 Assim como a produção nos fabricos, a comercialização, na feira da sulanca, não prescinde do trabalho infantil. Assisti, em 14 de julho de 2009, a uma reportagem da TV local que tratou do tema. Segundo a matéria, muitas crianças passam as madrugadas na feira da sulanca — o que testemunhei ao passar algumas noites no parque da feira. Frequentemente na companhia dos pais, os filhos começam a trabalhar desde o início da feira, às 3h. Um pai entrevistado afirma que o filho insiste em ir com ele, “para ter o dinheirinho dele”. Em contrapartida, uma funcionária do conselho tutelar, entrevistada no mesmo telejornal, afirma que esse discurso dos pais é um subterfúgio utilizado para legitimar o trabalho ilegal dos filhos. Essa afirmação levanta um problema que extrapola a questão do trabalho infantil, perpassando por toda a realidade do mundo da sulanca no agreste pernambucano : a relação entre a legitimidade social da sulanca (um setor de produção e comercialização informal) e sua ilegalidade (ausência de CNPJ e de pagamento de impostos, recurso ao trabalho infantil etc.). Assim, do ponto de vista dos marcos normativos, tanto o trabalho dos filhos na feira quanto a produção informal das peças de vestuário constituem práticas ilícitas dos trabalhadores da sulanca ; por outro lado, a legitimidade social de tais práticas, desde um ponto de vista nativo — incluindo as próprias crianças —, raramente é posta em questão. Se em certos casos nos defrontamos com as questões da exploração e autoexploração familiar, do trabalho infantil e, como corolário, da evasão escolar, noutros exemplos, o trabalho em casa e com a família garante aos trabalhadores vantagens a que dificilmente eles teriam acesso sendo empregados de outrem. Há relativa liberdade na organização dos momentos de trabalho e de lazer — inclusive com certa interseção entre eles, como quando trabalham na costura ouvindo música —, e alvedrio também no que se refere às formas de se vestir e se alimentar durante o trabalho.

21 Um exemplo das situações de interação, na pesquisa de campo, pode ilustrar esses benefícios do trabalho com a família. Conheci um sulanqueiro chamado Sinovaldo abordando-o diretamente em sua oficina, que é também a garagem de sua casa. Ele se encontrava sentado diante de uma máquina de costura e tinha, de seu lado esquerdo, uma pilha de jaquetas de jeans sem o cós. O rapaz e a máquina estavam bem próximos, pelo lado direito, à parede que delimitava sua garagem, onde também, lateralmente à pilha de jaquetas, se via um carro esportivo não muito antigo. Sinovaldo trajava uma bermuda de malha, calçava sandálias de borracha e encontrava-se sem camisa, uma

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liberdade que não se tem trabalhando pros outros. Perguntei-lhe se ele poderia me falar um pouco sobre seu trabalho e ele me disse para voltar no dia seguinte.

22 Retornei, pois, no horário combinado. Desta feita, Sinovaldo encontrava- se acomodado diante de outra máquina de costura, localizada não na garagem, como a que ele usava no dia anterior, mas em uma varanda à frente de sua residência que se liga à garagem pelo lado direito desta (do ponto de vista de um observador localizado na rua). Ao seu lado, agora havia tiras de jeans com cerca de cinco centímetros de largura e um metro de comprimento. Em sua garagem, era possível ver outro carro, diferente do que se encontrava ali no dia anterior. O primeiro veículo, por sua vez, estava estacionado na rua, diante de Sinovaldo, com o porta-malas aberto e o som ligado em um volume consideravelmente alto. A música que tocava pertencia ao gênero localmente conhecido como forró estilizado. Sinovaldo se encontrava trajado exatamente como no dia anterior, não usando, semelhantemente, camisa. Ao seu lado, havia um pacote de biscoitos que ele comia enquanto se ocupava da costura. Assim como seus trajes e suas práticas expressam certa liberdade, seu depoimento revela um vocabulário característico de trabalhadores por conta própria, relacionado aqui menos aos fabricos familiares do que àquela segunda modalidade de trabalho domiciliar — as facções. Ele fala, por exemplo, que possui clientes e não patrões, como é o caso em outras regiões do Brasil onde se verifica o sistema de facção na produção de vestuário (por exemplo, em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, onde realizei pesquisa de campo, os empresários fornecedores de facção para costureiras domiciliares são, por estas, frequentemente referidos como patrões). Facção é melhor. Tendo uma clientela boa, é muito melhor. Eu mesmo trabalho pra vários sulanqueiros. Todos são aqui do bairro do Salgado mesmo. Agora, se eu produzisse a peça toda, não ia poder ter todos esses clientes (Sinovaldo, grifo meu).

23 Saliente-se também o fato de que o trabalho das facções, tal qual aparece na fala de Sinovaldo, quase sempre supõe relações profissionais com pessoas do bairro. Além disso, o trabalho com a família se acompanha da vantagem de poder lançar mão de mais de um ofício ou atividade econômica simultaneamente. Isso supõe flexibilidade do horário de trabalho e versatilidade profissional dos sulanqueiros — que quase sempre são também feirantes.6 Aqui em casa trabalham quatro pessoas na sulanca. E tudo da família mesmo. Todo mundo trabalha com isso aqui. E minha mãe, além de trabalhar na sulanca, trabalha com carne também. Toda sexta feira, a partir das seis horas da tarde, já tem carne aqui. Aí o que sobra, a gente vende na feira do Salgado sábado e domingo (Sinovaldo).

24 Outra vantagem do trabalho com a família, do ponto de vista de meus interlocutores, refere-se à interpenetração entre o tempo do trabalho, os períodos de relaxamento e lazer e os momentos de execução das tarefas domésticas. É o que nos conta esta sulanqueira, ao fazer uma avaliação das melhores e piores formas de trabalho no ramo : trabalhar no fabrico, pra mim, é pior do que em casa. No fabrico tem salário certo, isso é verdade, mas eu tenho também os compromissos de casa. Que trabalhando no fabrico fica difícil de fazer as coisas de casa. Em casa, quem faz o horário sou eu mesma. Aqui eu trabalho o tempo que eu quiser. Os direitos também a gente não recebe no fabrico. Porque eu não tinha carteira assinada. Era tudo gente de casa que trabalhava lá, tudo da família. Então, eu não fiz questão de indenização não, visse ? (dona Jacira, sulanqueira).

25 Vale destacar três pontos da trajetória e do depoimento de dona Jacira : 1) sua socialização profissional se deu no interior da esfera doméstica e da família, com a mãe ;

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2) o trabalho em casa oferece a vantagem de “fazer o horário que quiser” e cumprir os “compromissos de casa” ; e 3) novamente, a referência aos direitos trabalhistas não pagos e não exigidos pelo trabalhador por ser “tudo gente de casa, tudo da família”.

26 Os itens 1 e 2 ilustram a fluidez das fronteiras entre trabalho profissional, tarefas domésticas e lazer, encarnadas na autogestão do tempo por parte de dona Jacira. O terceiro ponto retoma a relação entre exploração e autoexploração familiar e direitos do trabalhador. Mas, desta vez, não se trata de um depoimento do empregador, senão da funcionária dizendo também de sua parte, que “não fez questão da indenização” por ser “tudo gente de casa que trabalhava lá, tudo da família”. Esse caso mostra que não se trata apenas do recurso à mão de obra de parentes e vizinhos como uma panaceia contra a justiça trabalhista. A família e as relações de parentesco parecem, mais do que isso, constituir um idioma para as relações de produção. Mas não apenas para elas. O trabalho com a família e a distribuição social do trabalho pela vizinhança constituem um caso privilegiado para a observação de outros aspectos dessas “relações multiplex”, que incluem parentesco, família, vizinhança, amizade, afinidade, por vezes, religião e, evidentemente, trabalho. Essas várias camadas de relações sociais podem eventualmente tornar pouco nítidas também as fronteiras entre elas. Assim, referindo- se ao fabrico onde seu próprio filho trabalha, situado ao lado de sua residência, dona Jacira nos permite entrever certa contiguidade semântica entre parentes, vizinhos e conhecidos. Nesse fabrico que meu menino trabalha, o dono só coloca gente conhecida, visse ? Ele tinha duas meninas ali que costuraram pra ele uns quinze dias. Só que elas não estavam dando produção e foram dispensadas. Aí elas colocaram ele na justiça e ele teve que fazer um acordo de R$ 500 para cada uma pra não ter problemas. Então agora ele não coloca mais desconhecido pra trabalhar lá, não. Só coloca gente conhecida, gente da família ou vizinho.

27 Se, em que pese o princípio mais ou menos compartilhado por meus informantes de trabalhar com a família, os conhecidos e vizinhos — como temos testemunhado aqui — podem também ser integrados à produção dos fabricos familiares, inversamente, os parentes podem ser preteridos. Esse é o caso ilustrado no relato de William, outro interlocutor que encontrei em Caruaru. Segundo ele, o pequeno fabrico de seu cunhado encerrou as atividades por conta de conflitos internos entre os parentes com os quais ele trabalhava. Nas palavras de William, esse é um caso no qual o trabalho com familiares nos fabricos teve resultados contrários ao que amiudadamente se comenta. Meu cunhado colocou parentes que não eram parentes. Eram os seus cunhados, suas cunhadas. Aí ele pagava igual pra todo mundo, mas como todo mundo tinha proximidade, tinha intimidade, isso atrapalhou. Porque um começou a falar que produzia mais que o outro e que tinha que ganhar mais. Então, neste caso, ter colocado pessoas da família foi pior. O problema foi entre cunhadas e a proximidade de ser parente atrapalhou, não ajudou, não. Então meu cunhado decidiu fechar o fabrico (William).

28 Há, pois, que se considerar igualmente aqueles casos, não pouco frequentes, nos quais a vizinhança, o parentesco ritual e o ser conhecido constituem condição de possibilidade para trabalhar junto, ao passo que outros parentes ou da família são preteridos. Temos visto que, sobretudo as relações de produção entre vizinhos, seja por relações de facção, seja por uma forma de cooperação entre família nuclear, família extensa e conhecidos, constituem um aspecto central do universo da sulanca. Destarte os limites da família encontram-se amiúde em aberto e podem englobar parte da vizinhança concebida “como uma família” (Comerford, 2003). Essas fronteiras constituem, pois, matéria de

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negociação, conforme salienta largamente Ana Claudia Marques (2002) acerca de regiões próximas do sertão de Pernambuco.

O trabalho para a família

29 Se, na seção anterior, observamos os problemas que os sulanqueiros veem em ter empregados de fora, agora elencamos os problemas de trabalhar para os de fora. Dona Eugênia, quando me relatou uma parte de sua história de vida — com a de seu marido, José Mário —, apresentou-me uma verdadeira metáfora existencial a esse respeito : o Zezinho tinha muita vontade de abrir um negócio no ramo dele, né ? Feito ele trabalhava em São Paulo. E pensamos em montar uma fábrica de mármore. E aí, nessa época, apareceu um homem aqui dizendo : “eu sempre tive vontade de montar um negócio desses, mas nunca tive ninguém que entendesse do ramo pra me orientar”. Aí Zezinho entrou com esse homem e ficou de encarregado da produção. Mas aí o tempo foi passando, a firma foi crescendo e a gente foi percebendo que esse senhor estava enricando sem valorizar o trabalho do Zezinho. Então ele cansou-se disso e saiu da firma.

30 A percepção de que “esse senhor estava enricando sem valorizar o trabalho de Zezinho” constitui uma genuína recapitulação da história que dona Eugênia um dia me narrou referente aos primórdios da sulanca em Caruaru — seu relato tendo assumido, aos meus olhos, ares de um mito fundador. Segundo ela, durante a década de 1970, dom Augusto de Carvalho, 2º bispo da diocese de Caruaru, estimulou muitas das costureiras que trabalhavam, como assalariadas, em camisarias da cidade a iniciar a produção de roupas por conta própria, em casa, para vender na feira de Caruaru. Minha informante reconstituiu então, de memória, as incitações de dom Augusto : “vocês sabem costurar, mas só costuram o que já vem cortado, vocês têm que aprender a cortar”.7 E dom Augusto organizou um curso de corte e costura nas dependências da igreja católica para aquelas mulheres, ao fim do qual disse a elas : agora que vocês sabem cortar e costurar, façam como as mulheres de Santa Cruz. Não trabalhem mais pra estes donos de camisarias, não. Eles estão explorando vocês, estão enricando ! Olhem pra eles e olhem pra vocês ! Façam como as mulheres de Santa Cruz : costurem as suas roupinhas em casa pra vender na feira (dona Eugênia reproduzindo de memória a fala de dom Augusto). Dona Eugênia continua : algumas mulheres ouviram a fala do senhor bispo e não deram ouvidos. Outras seguiram o conselho do senhor bispo. Ele teve uma importância muito grande pros pobres dessa terra ! Ele devia ser mais lembrado ! Com o tempo, a gente foi percebendo que os donos das camisarias estavam enricando e as costureiras estavam ficando pra trás. Aí, depois que a gente começou a costurar em casa pra vender na feira, eles perderam o monopólio, né ? E muitos deles caíram tanto que tiveram que começar a vender do nosso lado na feira. Agora você veja, de patrões eles passaram a ter que vender lado a lado com a gente, em pé de igualdade (dona Eugênia).

31 Como aqueles donos de camisarias passaram a vender “em pé de igualdade” com suas ex-funcionárias, assim também, diante do enriquecimento do dono da marmoraria sem a valorização do trabalho de seu José Mário, o casal decidiu aplicar todas as economias familiares no trabalho por conta própria : depois disso, teve uma noite que a gente não conseguiu fechar o olho. Não conseguiu dormir a noite toda. E então eu virei-me pra Zezinho e disse : “vamos pensar aqui o quê que a gente vai fazer da nossa vida”. Então pensamos um monte

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de coisa. E eu virei-me pra ele e disse : “por que é que a gente não investe na fábrica de mármore que você sempre teve vontade ?” E Zezinho dizia : “não dá pra abrir um negócio desses porque é muito caro, não tem condições de comprar uma máquina industrial”. E eu perguntava : “mas não dá pra gente começar com uma máquina manual e depois a gente compra a industrial ?” E ele disse : “sim”. Aí nós decidimos aplicar todas as nossas economias na fábrica de mármore… (dona Eugênia, grifo meu).

32 A trajetória desse casal de trabalhadores — o marmorista José Mário e a costureira Eugênia — expressa bem dois princípios de vida que eles transmitiram a seus filhos. A esse respeito, o próprio filho do casal disse-me, certa vez, que sua mãe lhe ensinou duas lições valiosas, que ele guarda para sua vida inteira. Em primeiro lugar, todo trabalho tem que deixar alguma coisa material pra família — de preferência, uma casa, um terreno, algo que não se pode perder (um carro, por exemplo, pode ser roubado mais facilmente do que um terreno ou uma casa). “Em vez de comprar um carro, comprem um terreno e construam uma casa”, dizia dona Eugênia a seus filhos. Com efeito, assim que começaram a trabalhar, dona Eugênia comprou um terreno em nome dos filhos e disse que eles deveriam juntar e pagar o terreno. Fui informado ainda de que o terreno fora comprado de uma prima, no mesmo bairro onde reside a família. Assim, dona Eugênia agia muito coerentemente com sua visão de mundo : em primeiro lugar, o trabalho dos filhos deveria deixar algo sólido como aquisição perene para a família. Em segundo lugar, sendo mãe, dona Eugênia sentia-se totalmente no direito (sendo, a esse respeito, legitimada pela maneira como seus filhos e seu marido concebem a família) de gerir o dinheiro ganho pelos filhos, comprando um terreno para que eles, em conjunto, fossem pagando aos poucos. Essa atitude de dona Eugênia coaduna-se também com a segunda lição que ela transmitiu aos filhos : “não trabalhem pros outros, não. Trabalhem pra família, que a família cresce junto”.

33 Finalmente, identificamos uma modulação mais individualizada do trabalho para a família, referida por meio de expressões semanticamente contíguas — o trabalho para si ou para mim. Poder-se-ia dizer, evocando a noção levistraussiana, que tais expressões são como “transformações” do trabalho para a família. Uma trabalhadora do Santa Cruz Moda Center ilustra bem essa noção do trabalho para si, além de denunciar as arbitrariedades a que os que trabalham para os outros têm de se submeter : eu não parava em firma nenhuma porque falava o que tava certo. Eu tenho a língua solta. Se eu via uma coisa errada, eu falava. Uma vez eu trabalhava em um fabrico produzindo saias jeans. Aí teve uma vez que os homens decidiram faltar tudo no mesmo dia. E tinha uns fardos de jeans que tinham chegado que tinha que levar pro segundo andar. Aí a patroa mandou as mulheres carregarem aqueles fardos. E eu falei : “eu é que não vou carregar isso fechado assim. A gente carrega de peça em peça. Abre os fardos e pega de peça em peça e vai passando em fila, de mão em mão, até chegar lá em cima, ou então carregue a senhora mesmo. E outra coisa, isso aí nem meu trabalho é. Isso é trabalho pros meninos”. Hoje em dia, eu trabalho pra mim mesma. Eu faço o meu horário e ninguém me perturba. Eu penso assim : eu não vou ficar me matando de trabalhar pros outros só pra ter uma aposentadoria e chegar na velhice e pegar aquele dinheirinho pouco pra ter que cuidar da minha saúde ruim. Hoje em dia, eu pego a mercadoria em consignação de uns quatro ou cinco fabricos que têm nos fundos da minha casa (Jaqueline, grifo meu).

34 As três últimas frases desse trecho revelam uma filosofia do trabalho que perpassa pelo agreste pernambucano — de Caruaru a Santa Cruz do Capibaribe. Trabalhar para os outros é submeter a própria saúde ao desgaste do esforço físico sem “colher os frutos” propiciados por esse esforço, cujas consequências podem comprometer a própria

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aposentadoria — que é um dos benefícios habitualmente atribuídos ao trabalho assalariado formal, com carteira assinada e garantia dos direitos.

Não ser empregado, não ter empregado : a sulanca sobre o pano de fundo do capitalismo

35 Temos já alguns relatos acerca das modulações impostas sobre o capitalismo por parte de tradições indígenas (Sahlins, 1997 ; Gordon, 2006). Na antropologia urbana, esses fenômenos não deixam de estar presentes, embora sejam, por vezes, menos visíveis. Os dois princípios aqui apresentados de trabalhar com a família e para a família apresentam contrastes com a lógica idealmente associada ao capitalismo — notadamente, a tendência à expansão da empresa, que pressupõe a contratação de profissionais especializados, bem como ao reinvestimento dos lucros na persecução de mais lucro. O trabalho com a família em geral exclui a contratação impessoal de pessoas de fora. Por seu turno, o trabalho para a família significa que os rendimentos financeiros devem sempre deixar para ela alguma coisa de valor. O dinheiro em si não possui tanto valor senão no momento em que é convertido em um patrimônio perene para a família — um terreno, uma casa etc. Esses dois princípios organizadores do trabalho nos fabricos constituem, portanto, aspectos que os distinguem da lógica industrial clássica, segundo a qual a expansão do capital pressupõe a contratação impessoal de profissionais especializados de fora, e os lucros da empresa devem reinserir-se ad infinitum no circuito do mercado, permanecendo em circulação, ao contrário de sua conversão em um patrimônio estável.8

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. O recurso ao formato itálico é empregado aqui para registrar termos e expressões locais ou acepções nativas de formulações mais genéricas, principalmente quando elas aparecem pela primeira vez. Termos em idioma estrangeiro também aparecem em itálico. 2. O termo “sacoleiro”, no Brasil, refere-se aos comerciantes nômades responsáveis pela circulação de mercadorias entre regiões do país e mesmo para outros países. 3. Fabrico refere-se frequentemente a unidades familiares de produção. Fabricos podem estar circunscritos a uma residência apenas ou difusos pelas casas de familiares e vizinhos. Os fabricos constituem, pois, o próprio objeto desta comunicação, focada como está na organização familiar e vicinal do trabalho na sulanca. 4. “Mas a eficácia própria do habitus observa-se com toda a clareza em todas as situações em que não é o produto das condições de sua actualização : é o que acontece quando agentes formados numa economia pré-capitalista se deparam, desarmados, com as exigências de um cosmos capitalista ; ou ainda quando pessoas idosas perpetuam, à maneira de Dom Quixote, disposições deslocadas e anacrônicas ; ou quando as disposições de um agente em ascensão ou em declínio na estrutura social, novo rico, homem de fortuna que perdeu a posição social, estão em dissonância com a posição que ele ocupa. Tais efeitos de histerese, de atraso na adaptação e de defasamento contra- adaptativo, encontram a sua explicação no caráter relativamente durável, o que não quer dizer imutável, dos habitus” (Bourdieu, 2001 :267). O que apresento nesta comunicação é um caso no qual esse caráter durável dos habitus concorre para a adaptação dos trabalhadores em um novo contexto urbano, marcado pelo trabalho informal, onde a pequena produção familiar aparece como alternativa econômica no horizonte das possibilidades estruturais. Não se trata, pois, de uma defasagem contra-adaptativa, como a apresentada por Bourdieu em seus exemplos, embora a dinâmica de perpetuação relativa dos habitus seja a mesma.

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5. “Assim, neste sistema, existem apenas duas maneiras — que, afinal de contas, formam uma só — de segurar alguém de forma duradoura : a dádiva ou a dívida, as obrigações abertamente econômicas da dívida ou as obrigações morais e afetivas criadas e mantidas pela troca […]. É preciso saber perceber uma relação inteligível — e não uma contradição — entre estas duas formas de violência que coexistem na mesma formação social e, às vezes, na mesma relação” (Bourdieu, 2001 :204). 6. Registre-se que, no contexto nativo, a flexibilidade é motivada pelo trabalho com a família e para a família, e não pela lógica do management e das novas técnicas de dominação no trabalho, disfarçadas de “técnicas de gestão da produção”. Embora essas práticas possam ser observadas nos fabricos, a noção de flexibilidade, desde um ponto de vista nativo, refere-se antes à interpenetração de ofícios e a certa liberdade profissional associada às tradições artesanais do que ao vocabulário economicista. Para uma crítica a essa noção de flexibilidade no contexto da “invasão neoliberal”, ver Bourdieu (2011). 7. Claramente, o que está em jogo aqui é o domínio da arte (Alvim, 1983 ; Leite Lopes, 1976) como estratégia de desproletarização. “A arte é uma atividade produtiva que se liga à individualidade do agente, é uma posse sua. Pertence ao indivíduo que durante o processo de trabalho transforma o objeto de trabalho através da ‘inteligência’” (Alvim, 1983 :55). A produção de peças de vestuário, nas camisarias, nesse período se dava por “cooperação complexa” (Alvim, 1983 :56), o que caracterizava “a perda da arte” por parte das costureiras, porque “vários operários seriam encarregados da execução do mesmo produto” (Alvim, 1983 :56). Sobretudo, os cortadores ocupavam-se de uma importante etapa do processo produtivo, cabendo às costureiras apenas a costura dos modelos já cortados. O que dom Augusto tinha em mente, naquele contexto, parece ser essa noção do artista que domina todas as etapas de sua arte : “o fazer do artista ressalta o aspecto artesanal de seu trabalho, no sentido de ver sua obra acabada após ter percorrido ele próprio as etapas necessárias à sua realização” (Leite Lopes, 1976 :36). 8. Esse fenômeno não constitui peculiaridade do agreste pernambucano. Laweyan, bairro de Solo, cidade da região central de Java, onde Suzanne April Brenner fez trabalho de campo, constitui um bom exemplo comparativo. Ao contrário de certos significados do dinheiro, no modo de produção capitalista — “capital de giro”, por exemplo —, em Laweyan, o dinheiro não adquire valor real senão no momento em que é “domesticado” — retirado de circulação, conservado no interior da esfera doméstica como um crescente warisan, isto é, uma herança, um legado para os filhos. “We saw in the last chapter, however, that Money, ordinarily associated with the kasar realm of the marketplace — a realm that most Javanese would consider to be outside the domain of ‘culture’ altogether — can be transformed into something alus, of cultural value, through the process of domestication and conservation. If value may be said to originate in conservation, then the continued act of conservation over time not only creates, but also increases and regenerates, value. It is by removing an object from circulation, and in particular, by refraining from exchanging it for something that would satisfy one’s immediate desires, that it becomes culturally valuable. At the same time, taking money out of circulation by turning it a warisan is the opposite movement from that of capital, where money must keep circulating. This basic means of generating cultural value from wealth, then is fundamentally odds with capitalist enterprise and its insistence on the perpetual reinvestment of money toward the pursuit of more money” (Brenner, 1998 :187-188).

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RESUMOS

O artigo apresenta um fragmento do mundo da sulanca (no contexto do agreste de Pernambuco, Brasil), que se encontra organizado, sobretudo, em torno de pequenas unidades produtivas familiares e vicinais de vestuário de baixo custo — os chamados fabricos. As noções centrais do relato referem-se ao trabalho com a família e para a família, acrescidas de algumas variações. Na primeira parte, são consideradas as ambiguidades da noção de trabalho com a família. Em seguida, apresenta-se o significado do trabalho para a família, desde um ponto de vista nativo. Por fim, fecha- se o relato destacando dois contrastes que esses princípios apresentam comparativamente às características gerais em tese associadas ao capitalismo.

The paper presents a piece of the world of sulanca (in the context of Pernambuco, Brazil), which is organized especially by means of neighbor and familiar small factories of cheap clothes: the fabricos. The central notions of the text are the work with the family and for the family, and some variations. The ambiguities of the notion of work with the family are considered in the first part of the article. In the second part, the meaning of the work for the family is presented from the native point of view. Finally, two contrasts between this native logic and the capitalist principles are approached.

ÍNDICE

Keywords: family, work, sulanca, sulanqueiros, clothes Palavras-chave: família, trabalho, sulanca, sulanqueiros, vestuário

AUTOR

WECISLEY RIBEIRO DO ESPÍRITO SANTO

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é doutor em antropologia social (PPGAS/ MN/UFRJ), pesquisador do Núcleo de Antropologia do Trabalho, Estudos Biográficos e Trajetórias (NuAT/ PPGAS/MN/UFRJ) e do Colégio Brasileiro de Altos Estudos (UFRJ) e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato : wecisley[at]gmail.com

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“Alteridade contextualizada” : variações ashaninkas sobre o branco

José Pimenta

NOTA DO EDITOR

Recebido em 27/10/2014 Aprovado em 02/02/2015

1 Numa passagem bem conhecida de Raça e história dedicada à reflexão sobre o etnocentrismo, Lévi-Strauss (1987 : 21) relata uma estranha anedota. Durante os primeiros anos da colonização das Grandes Antilhas, diz ele, enquanto os europeus se perguntavam se os índios eram humanos, ou seja, se tinham alma, estes últimos imergiam os prisioneiros brancos para verificar se seus cadáveres eram sujeitos a putrefação. Apesar da assimetria de poder, esse exemplo e tantos outros revelam que o encontro colonial sempre foi uma conversa de mão dupla marcada por tocas incessantes, interpretações e reinterpretações sobre o outro e seu mundo. Se os índios das Américas sempre instigaram o imaginário ocidental, os povos indígenas, desde seus primeiros contatos com os brancos, também nunca cessaram de se interrogar sobre a nossa alteridade.1

2 Na Amazônia, o encontro colonial foi particularmente dramático. O poder e a violência do branco levaram-no a ocupar um lugar central nas filosofias dos povos indígenas da região, e a etnologia das terras baixas da América do Sul, principalmente nos últimos vinte anos, tem dado ao tema das representações do branco uma importância significativa. Assim, vários autores procuraram explorar a história do contato e articulá-la com dimensões da vida de um determinado povo indígena : mitologia, cosmologia, noções de sociabilidade, corporalidade etc. Desvelando os significados do branco e algumas dimensões que lhe são comumente associadas, como as doenças e as mercadorias, esses trabalhos têm mostrado que o branco é um entre vários outros, mas também um outro muito peculiar, frequentemente associado a uma alteridade extrema ou, pelo menos, bastante ambígua e complexa, que precisa ser domesticada ou pacificada.2

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3 Como outros povos indígenas da Amazônia, os Ashaninka têm uma visão peculiar dos brancos. Entre os seus outros, ele constitui a alteridade mais enfatizada e mais radical, situada no limbo da humanidade. A partir da minha experiência etnográfica com os Ashaninka do Rio Amônia, da região do Alto Juruá, no Acre, este artigo articula as concepções cosmológicas desse povo indígena com sua história de contato com o mundo ocidental. O objetivo central é desvendar algumas facetas que a categoria “branco” apresenta na cosmologia ashaninka e discutir sua dinâmica na história do contato. Após uma apresentação da cosmologia nativa e do mito de origem do branco, ambas reveladoras de uma estreita conexão entre este último e o os espíritos maléficos, mostro como a violência do contato interétnico tem sido expressa nas imagens extremamente negativas associadas aos “gringos” e “comunistas”, dois tipos de branco que são caracterizados por um comportamento violento e se destacam na história recente desse grupo. Por fim, termino expondo algumas tentativas ashaninkas de pacificação ou domesticação do branco que expressam a complexidade e a ambiguidade de suas relações atuais com o mundo ocidental e seus representantes.

Elementos da cosmologia ashaninka : a dicotomia entre o bem e o mal

4 O universo ashaninka apresenta as principais características dos sistemas cosmológicos xamânicos das terras baixas da América do Sul, ou seja, a divisão do cosmos em camadas, a existência de um mundo invisível por trás do mundo visível e o papel do xamã como mediador entre essas dimensões. Como notaram Brown e Fernández (1991 : 13), a particularidade ashaninka talvez resida na sua concepção extremamente dualista do universo, onde os espíritos são bons ou maus, definindo claramente as fronteiras entre o bem e o mal.

5 De modo geral, apesar de pequenas variações linguísticas e etnográficas, a visão do mundo dos índios do Rio Amônia encontra muitas semelhanças com as descrições feitas por Elick (1969 : 201-237) e Weiss (1969) entre os Ashaninka do Peru. Com efeito, os meus interlocutores apresentam o universo como verticalmente dividido em camadas ou níveis superpostos que podem ser reduzidos a três dimensões principais : um mundo celeste, um terrestre e outro subterrâneo. Esses três mundos são povoados por diversos seres e possuem características próprias.

6 Nesse universo tripartido, o mundo celeste é o mais elaborado. Chamado genericamente henõki (literalmente “em cima”), ele é composto por pelo menos três camadas e é a residência dos bons espíritos. No topo do céu, em inkite, encontra-se Pawa, o todo-poderoso Deus Criador. No nível imediatamente inferior, vivem os tasorentsi, que têm poderes sobrenaturais e características divinas. Liderados por Pawa, pai de todos eles, esses semideuses completam o panteão ashaninka que criou o universo e decide seu rumo. Como diz o xamã Aricêmio, um dos meus principais interlocutores, um tasorentsi é “como um Deus, ele pega qualquer coisa, sopra e transforma em outra coisa”.3 Abaixo desses tasorentsi, sempre em henõki, encontram-se outros espíritos bons, que também são “verdadeiros filhos de Deus”. Alguns informantes identificam essa camada do céu como pitsitsiroyki. Dizem que é onde Pawa faz seu “julgamento final”, selecionando, após a morte, os Ashaninka que ele reconhece como filhos legítimos e que deseja guardar ao seu lado no céu, ou seja, aqueles que

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agiram em suas vidas terrestres seguindo seus ensinamentos. Como os deuses, esses afortunados tornam-se imortais.

7 Os moradores do céu vivem uma existência feliz, habitam lugares paradisíacos, onde possuem lindas casas e profusas roças. Eles bebem piyarentsi (bebida de mandioca), tocam músicas, dançam e nunca brigam. Lá, também existe um rio cuja água, como diz ainda Aricêmio, é “limpa como espelho”, “diferente de todas as outras águas da terra”. Esse rio possui fartura de peixe e propriedades mágicas. Quando vai pescar, um ashaninka do céu enche imediatamente sua tarrafa, volta para casa e entrega os peixes à esposa, que, após cozinhá-los e alimentar a família, joga as espinhas na água, o que faz os peixe renascerem imediatamente. O rio também é a fonte da eterna juventude : “é água de Deus mesmo. Se você bebe ela, você nunca morre, nunca fica doente, nunca fica velho, sempre novo. Nunca quebram os teus dentes, nunca cai o teu cabelo. Tua pele nunca fica machucada”, descreve Aricêmio.4

8 Contrastando com esse mundo paradisíaco, o mundo subterrâneo é lúgubre, perigoso e temido pelos índios. Reino de forças maléficas, dos demônios e das doenças, é o mundo da morte e dos espíritos do mal, chamados genericamente kamari.5 Os índios do Rio Amônia pouco falam sobre esse lugar. Afirmam que ele é habitado por seres perigosos e que nenhum ashaninka moraria lá. Dizem não gostar de pensar nesse universo porque poderiam atrair os espíritos ruins. Como Elick (1969), não obtive nenhum termo nativo para qualificar esse nível, chamado por alguns informantes simplesmente de “inferno” em português. Todos os índios do Rio Amônia com os quais tive a oportunidade de conversar afirmam, no entanto, que esse mundo subterrâneo existe e situa-se “embaixo” (isawiki) da terra.6

9 Entre esses dois extremos existe o mundo terrestre. É o mundo visível, tal como o conhecemos e o experimentamos. É o lugar habitado pelos humanos e os seres mortais de modo geral. No Rio Amônia, como entre os Ashaninka da região peruana do Pichis estudados por Elick, esse mundo é chamado kipatsi (terra).7 É um lugar transitório caracterizado pela ambiguidade, pelo confronto constante entre o bem e o mal. Embora distintos, os mundos do universo ashaninka não são totalmente separados, e o mundo terrestre é o lugar onde tanto os espíritos bons quanto os maléficos se manifestam aos humanos.

10 Embora sejam geralmente invisíveis, os espíritos bons transitam pela terra e procuram guiar a existência dos Ashaninka. Como dizem os índios do Rio Amônia, o próprio Pawa, mesmo morando no topo do mundo celeste, manifesta sua presença na terra de várias formas. O Sol, por exemplo, é chamado oriya e também referido como Pawa. O astro é considerado a materialização da coroa de Pawa, cujo intenso brilho ilumina o mundo e impede aos homens de ver o seu rosto.8 Outra manifestação do mundo celeste na terra pode ser exemplificada na relação estreita que os Ashaninka mantêm com os pássaros japiins (Cacicus cela, ave passeriforme da família Icteridae). Muito respeitados pelos índios, eles são considerados os mensageiros de Pawa na terra. Embora esses seres sejam visíveis somente sob a forma de ave, os Ashaninka dizem que eles são humanos e vivem em sociedade como eles : têm roças, bebem piyarentsi, usam kamarãpi (ayahuasca) etc. No entanto, uma diferença crucial separa os homens ashaninkas dos pássaros : estes últimos não conhecem as imperfeições da vida terrestre e da condição humana. Os japiins não brigam entre si. Vivem numa sociedade ideal, em harmonia, de acordo com os ensinamentos de Pawa. Em suma, a sociedade dos japiins é a projeção ideal da sociedade ashaninka, o paraíso na terra.

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11 Um processo semelhante ocorre em relação aos espíritos maléficos, que não só têm o poder de subir na terra para caçar as almas dos Ashaninka, mas também se encontram em vários lugares da paisagem terrestre onde o principal demônio é mankoite. Esse demônio tem sua moradia em alguns barrancos encontrados ao longo dos rios do território ashaninka. Embora seja geralmente invisível, os índios dizem que ele possui forma humana e que um encontro com ele anuncia uma morte iminente.

12 O xamã (sheripiari) atua como mediador entre esses níveis e realidades. Ele viaja no tempo e no espaço, entre o mundo visível dos homens e o mundo invisível dos espíritos. Com o auxílio do tabaco, da coca e da ayahuasca, comunica-se de modo privilegiado com os espíritos bons do céu. Sua atuação é geralmente voltada para o bem, já que sua principal função é proteger os homens das agressões do mundo inferior. Porém, ele também pode fazer alianças com forças malignas e colocar a vida humana em perigo.

13 Assim, a visão ashaninka do universo apresenta um caráter extremamente dualista. No cosmos hierarquizado por Pawa, não existe muito espaço para a ambiguidade dos espíritos. Eles são geralmente bons ou ruins e manifestam sua presença de diferentes maneiras na terra habitada pelos homens. Constantemente assediados pelo confronto entre o bem e o mal, os Ashaninka vivem uma existência imprevisível num mundo em frágil equilíbrio. Fundadora da hierarquia do cosmos e de sua visão do mundo, essa dicotomia entre o bem e o mal é um princípio estruturante da sociedade nativa e fundamental para entender o lugar atribuído ao branco. Enquanto os Ashaninka foram feitos à imagem de Pawa e são idealmente associados ao bem, o branco, como é de se esperar, mantém laços estreitos com os espíritos maléficos e as forças do mal. Com efeito, na ordem natural do cosmos, todos os seres que vivem no céu, sejam eles deuses ou homens imortais, podem ser considerados itomi Pawa (filhos de Deus). Assemelhados à categoria de “espíritos bons”, eles são genericamente chamados amaxenka ou asheninka, ou seja, uma extensão da própria autodenominação. Já o branco, associado à categoria dos espíritos maléficos, é a antítese dos Ashaninka.

A origem do branco : o mito do Inka

14 Na língua ashaninka, o branco é genericamente chamado de wirakotxa, um termo quéchua.9 Sua origem ocupa um lugar de destaque na mitologia nativa e ilumina muitas de suas características atuais. Os índios do Rio Amônia afirmam que o primeiro wirakotxa que seus antepassados conheceram foi o espanhol. Ele surgiu do fundo de um lago em decorrência de uma pescaria realizada por um poderoso tasorentsi, filho de Pawa, chamado Inka.10 Dessa forma, o mito que narra a chegada do branco é conhecido como “o mito do Inka”. Em todas as versões que recolhi, a trama descritiva dos eventos é semelhante, variando apenas os detalhes. Resumo, a seguir, a versão contada por Alípio, um senhor de cerca de sessenta anos, morador da aldeia Apiwtxa dos Ashaninka do Amônia. Antigamente, o wirakotxa morava dentro de um lago. O Inka foi pescar com outro ashaninka. Era de madrugada. Eles escutaram uma galinha no fundo do lago e o Inka disse : — Rapaz, vamos pegar isso ? — Não precisa, não, deixa assim mesmo, não vamos mexer, não. No outro dia, a mesma coisa. De novo [foi pescar no lago], ouviu galinha, ouviu cachorro latir no fundo do lago. Não sabia o que era, mas estava curioso […]. Inka foi ver Pawa.

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— Não mexe, não, meu filho ! Mas Inka não escutou e foi mariscar [pescar]. Escutava galinha, assim bem pertinho, escutava cachorro. “Vou pegar galinha.” Botou anzol com banana […]. Saiu galinha. Botou de novo, saiu cachorro. Escutou de novo um barulho. Pegou banana e saiu o branco. Foi assim que o wirakotxa subiu na terra. Pawa ficou brabo e perguntou : — Por que tu foi buscar wirakotxa ? — Papai, eu fui só pegar galinha e wirakotxa saiu. — Eu não quero esse branco aqui junto com a gente. Eu deixei ele lá [no fundo do lago], mas você gostou dele, agora pode ficar com ele ! Agora, eu vou embora e vocês [os Ashaninka] vão ficar com wirakotxa e trabalhar pra ele.

15 Essa pescaria perturbaria profundamente a ordem natural do cosmos criado por Pawa. Antes de mostrar suas principais consequências, vejamos algumas características desse mito.

16 O primeiro ponto que merece destaque é que a chegada do branco na terra é um ato indígena, ou seja, os Ashaninka colocam-se na posição de principais atores da história. De modo algum se trata aqui de uma especificidade desse povo. Existem vários exemplos na literatura antropológica desse protagonismo nativo, mas esse fato é importante na medida em que nos convida a relativizar as histórias contadas a partir do etnocentrismo ocidental, no qual os índios aparecem somente como vítimas dos brancos. Assim, o surgimento do wirakotxa é o resultado da desobediência de Inka ao deus que, ao criar o mundo, havia separado os Ashaninka dos brancos. Na mitologia indígena, a irresponsabilidade de Inka é mais um exemplo de uma longa lista de erros cometidos pelos primeiros filhos de Pawa nos tempos originais. O conjunto desses erros explica a situação atual dos Ashaninka e justifica as imperfeições do seu mundo.

17 A presença da galinha e do cachorro associados ao branco não é fortuita. Esses animais foram trazidos pelos europeus e eram desconhecidos dos Ashaninka, que têm um acervo muito rico de mitos para explicar o surgimento dos principais animais nativos. No início dos tempos, contrariamente à galinha e ao cachorro, muitos animais eram ashaninkas que foram transformados por Pawa ou por algum tasorentsi, perdendo assim sua aparência humana.11 Não existem, entre os índios do Rio Amônia, mitos que expliquem o surgimento da galinha e do cachorro. Embora essas duas espécies tenham nomes indígenas, txaapa e otsitsi, respectivamente, a única referência mitológica associada a elas é o mito do Inka, que as faz surgir do fundo do lago, onde eram fiéis companheiras do branco. O fato de Inka ter pescado primeiro esses dois animais é considerado um sinal de advertência de Pawa ao seu filho para ele interromper sua atividade infeliz. Embora não haja registro de nenhuma outra associação da galinha com o branco, a analogia entre branco e cachorro é corriqueira entre os índios do Rio Amônia. Assim, em relação à aparência e ao comportamento do branco, é frequente ouvir que ele é “feio como cachorro”, “sovina como cachorro”, “fedorento como cachorro”, “sujo como cachorro”, “malandro como cachorro”, “desconfiado como cachorro”.

18 Ao desobedecer e romper as regras, Inka provocou a cólera do Deus-Criador e foi responsabilizado pelo fato de Pawa ter abandonado a convivência com seus filhos. Os meus interlocutores afirmam que os Ashaninka eram originalmente os únicos moradores da terra, onde viviam felizes em companhia de Deus. Cansado das sucessivas desobediências dos primeiros ashaninkas, aos quais ele tentava transmitir uma educação perfeita (“ensinar como viver”), Pawa teria decidido morar no céu, usufruindo da imortalidade e de um mundo perfeito. Deixou, então, os Ashaninka sozinhos na

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terra, salvando-se somente aqueles que agissem em conformidade com seus ensinamentos.

19 O erro primordial de Inka condenou os Ashaninka a conviver com os brancos na terra e levou a consequências desastrosas para os índios. Segundo alguns relatos, após surgir do fundo do lago, o branco foi viver numa região separada dos índios (wirakotxa kipatsi), que eles situam “rio abaixo”, “onde acaba o rio” (kirinka) ; os Ashaninka viviam no centro da terra ou na cabeceira do rio (katõko).12 Os brancos, no entanto, não permaneceram naquele lugar e se espalharam rapidamente pela terra, passando a andar “em todo canto”, atormentando a vida dos índios. Veremos, no final deste artigo, que o mito do Inka está estreitamente relacionado às mercadorias industriais e ao poder tecnológico do branco. Por enquanto, centrarei a análise em algumas características decorrentes desse mito que nos ajudam a compreender a associação de imagens que os Ashaninka constroem sobre os wirakotxa.

O outro mais distante : representações simbólicas sobre o wirakotxa

20 Apesar das diferenças nos detalhes, todas as narrativas que recolhi no Rio Amônia sobre a origem do branco descrevem a pescaria e apresentam o Inka como o principal protagonista e o único responsável pelo seu surgimento. Uma cena semelhante da pescaria é relatada por vários etnólogos que trabalharam com esse povo indígena, embora o autor da cena nem sempre seja identificado como Inka.13 No entanto, todos os relatos míticos indicam a origem aquática do wirakotxa, cuja moradia original era o fundo de um lago que alguns Ashaninka do Rio Amônia localizam, sem maior precisão, na região do Ucayali. Assim, a água como habitat original do branco parece consenso na literatura etnográfica sobre esse povo indígena. Essa associação parece-me fundamental para entender a concepção nativa sobre os wirakotxa. Embora os Ashaninka do Rio Amônia digam que o branco é atsiri (ser humano ou gente), sua humanidade é, por essência, diferente da dos Ashaninka. De modo geral, o branco é visto de forma extremamente negativa e associado à morte. Essa especificidade do wirakotxa está estreitamente relacionada com sua origem aquática.

21 Weiss (1969 : 67) mostrou que muitos lagos do território ashaninka situam-se em terras altas, de acesso difícil, e que os índios atribuem a esses lugares propriedades sobrenaturais. O autor não explorou muito a associação dos brancos com a água, indicando simplesmente que esses moradores do fundo dos lagos eram capazes de respirar nesse ambiente, onde possuíam suas casas, seus animais etc. Essa associação entre brancos e água aparece de modo mais claro num trecho do livro La Cerro de los Sal, de Stefano Varese, que pode ser considerado a primeira etnografia produzida sobre esse povo indígena. Nessa passagem, o antropólogo peruano salienta que, para os Ashaninka, a água, componente fundamental da vida, também é intimamente associada à morte. Los blancos estaban dentro de una laguna ; en el agua que es fons et origo, matriz de todas las virtualidades y posibilidades existenciales. Las aguas simbolizan la sustancia primordial de la que nacen todas las formas y a la que vuelven finalmente por regresión o cataclismo al término de un ciclo histórico o cósmico. Las aguas del estanque, de la pequeña laguna […], simbolizan el origen de la materia y al mismo tiempo son las puertas de acceso al mundo subterráneo donde reside el Nónki, la gran serpiente monstruosa, simbolizada en el arco de iris. La laguna es la entrada al

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abismo subterráneo del Nónki, origen de enfermedades y muerte […]. El Nónki, dragón monstruoso, serpiente primordial, símbolo de las Aguas cósmicas, de las Tinieblas, del Abismo, de la Muerte, o sea de lo amorfo y do lo virtual, está asociado con estos nuevos seres, los viracocha, no creados por el Dios Oriátsiri14 con el resto del Universo, ni perdidos y transformados en animales como gran parte de la humanidad primordial campa, sino aparecidos por equívoco e contra la voluntad de la humanidad campa. De las aguas, protomateria por excelencia, y de la laguna, abismo y residencia del dragón, salen los blancos […]. El blanco es homologado al Nónki, es identificado simbólicamente con el enemigo de la humanidad que provoca la muerte […] (Varese, 1968 :129-130).

22 Nem todas as afirmações contidas nesse trecho são confirmadas pelos meus dados. Por exemplo, os meus interlocutores no Rio Amônia afirmam que Pawa também criou os brancos, mas os manteve originalmente separados dos Ashaninka, embaixo da terra. Tampouco eu teria como afirmar que os meus interlocutores do Rio Amônia veem a água como a fonte e origem de tudo. Eles contam, por exemplo, que os primeiros humanos, ou seja, os Ashaninka, foram criados a partir da terra e não da água.15 No entanto, a simbologia negativa associada ao anaconda e a tríade água–branco–morte estão fortemente presentes no Rio Amônia.

23 Para os meus interlocutores, as cobras (mãki) são tabus alimentares e a “cobra grande” (jiboia ou anaconda), chamada nõke, é considerada ao mesmo tempo a “mãe das águas” e um espírito maléfico (kamari). Seus lugares de moradia prediletos são os lagos onde os Ashaninka afirmam que pescar (akatxatsi) pode ser um ato perigoso. Nõke é muito temida pelos índios do Amônia, que lhe atribuem poderes sobrenaturais : capacidade de engravidar mulheres menstruadas, de roubar almas, trazer doenças etc. Aricêmio contou-me que nõke também pode ser a incorporação de um xamã (sheripiari) que deseja fazer o mal.

24 Os Ashaninka do Amônia também consideram que a chuva (inkani) pode trazer espíritos maléficos. A visão do arco-íris (oye), ou seja, chuva com sol, é a manifestação de uma briga entre o bem e o mal. O arco-íris é a tentativa periódica e desesperada de nõke para alcançar inkite, o nível mais alto do céu. Como ela é maligna, Pawa não permite sua entrada e suas tentativas são sempre frustradas. Os meus interlocutores detestam a visão do arco-íris, que os deixa irritados e profundamente inquietos. Dizem que, quando nõke sai para “passear em henoki” (“céu”, “em cima”), seu poder maléfico cresce, multiplicando as probabilidades de doença ou morte entre os índios. Diante da manifestação de um arco-íris, é comum ver um ashaninka tentar inibir o poder de nõke, fazendo o gesto de cortar o ar com um terçado na direção do fenômeno. Aricêmio disse- me enfaticamente que “chuva com sol é como kamari”.16

25 Entre os Ashaninka do Rio Amônia, a água (niake) também é associada ao fim do mundo. O dilúvio é um tema recorrente na mitologia amazônica e, embora não se apresente de maneira muito saliente entre os meus interlocutores, aqueles que evocam o fim do mundo descrevem sempre muita chuva e a subida repentina das águas dos rios e dos lagos, inundando a terra. Aricêmio relatou um grande dilúvio que aconteceu no passado mítico, matando quase toda a humanidade, sobrevivendo apenas um grande xamã chamado Ãtawiyari.17 Ao usar o kamarãpi (ayahuasca), Ãtawiyari conversou com Pawa, que o alertou da iminente subida das águas. Ele avisou os outros ashaninkas da tragédia que se anunciava, mas estes debocharam da sua preocupação e preferiram ficar se embriagando no piyarentsi (bebida de mandioca fermentada e também nome da festa onde é consumida). Ãtawiyari tinha um casal de filhos pequenos e foi o único que tomou

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providências contra a grande enchente. Ele enterrou seus filhos num buraco, numa terra alta, providenciando comida por vários dias, e construiu uma balsa para escapar da inundação. Na vazante, desenterrou o casal, que começou a procriar. Assim os Ashaninka se multiplicaram novamente.18

26 Por sua estreita associação com a água e sua simbologia negativa, a visão que os Ashaninka do Rio Amônia constroem do branco assemelha-se à categoria genérica kamari, usada para qualificar os espíritos maléficos. Como ocorre com todos os “pecadores” e agentes do mal, o destino post-mortem dos brancos não é o céu, mas o “inferno”, que se situa embaixo da terra. Assim, quando se referem ao nível subterrâneo onde vivem os kamari, os Ashaninka descrevem um mundo semelhante às cidades dos brancos, ou seja, um mundo densamente povoado onde existe muita mercadoria, carros, aviões, “casas altas” (prédios) e luzes. Como o branco originalmente, os habitantes desse mundo subterrâneo conseguem respirar na água. Na terra, brancos e kamari também continuam estreitamente associados. Weiss (1969 : 146) já notava que o mankoite, principal demônio terrestre dos Ashaninka, do qual falamos anteriormente, vive de maneira semelhante ao branco : suas casas têm os mesmos objetos, possuem mercadorias etc. Mas a associação dos brancos com os espíritos maléficos não está somente na cosmologia ou no passado mítico. Ela também se manifesta no cotidiano da aldeia Apiwtxa. Uma anedota parece-me bastante significativa da imagem negativa do branco na socialização das crianças.

27 Durante o meu trabalho de campo, fui várias vezes chamado kamari por crianças ashaninkas. Geralmente, esse apelido se manifestava sob a forma de brincadeira. Após os primeiros meses de distância e de desconfiança e apesar das dificuldades linguísticas, o contato com as crianças tornou-se mais fácil e foi essencial para que eu conquistasse progressivamente a confiança dos adultos. Várias vezes, ao me aproximar de um pequeno grupo de crianças, uma delas gritava “kamari ! kamari !”, causando imediatamente os risos e a dispersão das demais. Na realidade, tratava-se de um convite para uma brincadeira na qual esperavam que eu desempenhasse o meu papel natural de fantasma. Mas nem sempre foi um jogo. Um casal de irmãos, um menino e uma menina de mais ou menos três e dois anos de idade, acreditavam que eu fosse realmente um kamari com forma humana. Quando visitava essa família, a simples visão da minha chegada causava pavor nas duas crianças, que se protegiam atrás da mãe, berrando e observando, com um olhar aterrorizado, cada movimento meu. Essa situação repetiu-se durante toda a minha estada na aldeia, de tal forma que nunca consegui permanecer por mais de cinco minutos na casa dessa família. Um dia, ao encontrar o pai desacompanhado, pedi-lhe esclarecimentos. De um tom sorridente, explicou-me que eu não devia me preocupar, que seus filhos ainda eram pequenos e não estavam acostumados a ver brancos. Para elas, eu era como um kamari, “um fantasma”, “um morto vivo” ; “como uma onça que iria comê-los”.19

28 Associado à morte, o branco também é responsável por muitas doenças (matsiarentsi) que os índios acreditam advir de seres maléficos ou de um feitiço de um xamã maldoso ligado a forças obscuras. Diante das perigosas e desconhecidas doenças dos brancos (mãtsiari wirakotxa), o conhecimento dos sheripiari (xamãs) é ineficaz. Sem a presença do branco, os Ashaninka estariam livres dessas enfermidades mais perigosas e teriam uma vida saudável. Como diz Aricêmio, “branco tem catarro [gripe]. Se wirakotxa tivesse ficado no lago, ninguém não morreria mesmo. Pawa estaria com a gente na terra, cuidando de nós. Não teria doença. Todo mundo sadio”.

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29 Além da morte e das doenças, um comportamento extremamente violento é outra característica essencial do branco. Após sair do lago, dizem os Ashaninka, o wirakotxa desceu o Rio Ucayali e se multiplicou, voltando posteriormente para o território indígena, onde começou a espalhar o terror. A violência atribuída ao branco, já salientada pelos primeiros etnólogos, como Varese (1968 : 124‑125) e Weiss (1969 : 342), também se encontra nos relatos dos Ashaninka do Rio Amônia : o wirakotxa saiu do lago. Primeiro, ele chamava espanhol. Invadiu a casa do Inka. Depois chegaram todos os wirakotxa e todo o mundo correu. Pawa escondeu suas filhas. Branco matava todo o pessoal, pegava menino, pegava mulher para namorar à força, botava fogo nas casas, matava tudo (Antônio).

30 A violência do branco não é simplesmente simbólica. Ela é o marcador mais significativo de uma experiência histórica de mais de quatrocentos anos de relações dos Ashaninka com os representantes do mundo ocidental. Como entre os Kayapó (Turner, 1993), a “colonização da consciência”, para retomar uma expressão de Jean e John Comaroff (1992 :235-263), foi acompanhada por uma consciência da colonização que nos relatos indígenas articula princípios cosmológicos e história do contato. Desde a chegada dos espanhóis, essa consciência vem sendo alimentada pela constante violência colonial, associando intimamente os brancos aos kamari, representantes cosmológicos do mundo da morte. No auge da economia da borracha, por exemplo, a violência e o terror tão bem descritos por Taussig (1986) no Putumayo colombiano repetiu-se em outras regiões amazônicas. No Peru, essas atrocidades estão associadas às figuras sanguinárias dos patrões do caucho, como Carlos Scharf, Julio César Arana ou Carlos Fitzcarraldo. Imortalizado pela câmara de Werner Herzog, este último atuou principalmente no Ucayali. Com sua milícia, ele assombrou a região, sendo responsável por correrias sanguinárias, cujas lembranças ainda estão vivas na memória ashaninka. Longe de Lima, nas trevas orientais, o “rei do caucho” da história oficial desvendava sua crueldade. Do desespero do cativeiro ao terror da morte, Renard-Casevitz reuniu alguns testemunhos indígenas de suas atrocidades : […] mães que matavam seus bebês esmagando-lhes o crânio contra as vigas da casa- prisão para que não fossem escravos ; […] os que comiam terra para se suicidar ; corpos cobertos de gasolina e queimados vivos para iluminar as refeições campestres de Fitzcarraldo ; mulheres que recusavam a concubinagem tinham as costas dilaceradas e cobertas de pimenta, eram trancadas sob o sol ardente em cubículos de zinco até morrerem ; corpos torturados, almas mutiladas… (1992 : 209-210).

31 A violência dos brancos continuou após a crise da borracha. Nos últimos cinquenta anos, missionários, principalmente norte-americanos, e guerrilheiros peruanos de movimentos revolucionários de extrema esquerda passaram a incorporar, aos olhos dos Ashaninka, as figuras mais extremas da violência colonial. No Rio Amônia, na década de 1980, num contexto histórico marcado por uma exploração intensiva de madeira em seu território e pelo acirramento dos conflitos interétnicos, os índios tiveram que lidar com os fantasmas destas duas figuras da alteridade do branco : os “gringos” e os “comunistas”.

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“Gringos” e “comunistas” : imagens contemporâneas do terror

32 Na década de 1980, diante da intensificação da exploração madeireira em seu território, os Ashaninka do Rio Amônia começaram a se organizar politicamente para a defesa de seus direitos, principalmente para a demarcação de sua terra, que foi finalmente reconhecida pelo Estado brasileiro em 1992. Esse período foi marcado por tensões e conflitos entre ashaninkas e brancos. Buscando manter seu lucrativo negócio, os madeireiros da região procuraram dividir os índios : espalhavam rumores sobre a chegada iminente de “gringos” e “comunistas”, semeando dúvidas e medos em muitas famílias indígenas.

33 Para os Ashaninka do Rio Amônia, essas duas categorias de branco evocam dois tipos de wirakotcha caracterizados por um comportamento extremamente violento e aterrorizante. O termo “gringo” designa geralmente os brancos não brasileiros (ou não peruanos), mas, sobretudo, os missionários americanos ; “comunista”, por sua vez, refere-se aos membros da guerrilha peruana de extrema esquerda, não só do Sendero Luminoso (SL), mas também do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). É difícil saber se alguns colonos brancos tinham conhecimento do universo simbólico que essas duas categorias mobilizavam, mas é provável que vários deles estivessem informados da experiência histórica de muitos ashaninkas com os “gringos” e “comunistas” no Peru. Para entender o significado que os índios do Amônia atribuem a essas duas categorias de branco, faz-se necessário contextualizá-las na história desse povo e conectá-las com as concepções nativas sobre os kamari. Começamos pelos “gringos”.

34 As representações que os Ashaninka têm dos “gringos” são historicamente associadas à sua visão dos missionários norte-americanos. Apoiadas e incentivadas pelo Estado, as missões estadunidenses multiplicaram-se na Amazônia peruana durante o século XX.20 Embora tenham fornecido certa proteção contra os patrões caucheiros e o trabalho escravo, elas nunca abdicaram de seu trabalho de propagação da fé cristã iniciado pelos jesuítas e franciscanos na época colonial e alteraram profundamente o modo de vida dos índios : criminalização do xamanismo, proibição da poligamia, integração forçada ao mercado etc.

35 Apesar de poucas experiências de vida nas missões, todos os Ashaninka do Amônia têm uma visão extremamente negativa dos “gringos”.21 Em termos simbólicos, eles são associados a espíritos malignos (kamari). Assim, a menção aos “gringos” evoca seres sobrenaturais, violentos e canibais, uma alteridade radical apavorante. Como no depoimento a seguir de um morador da aldeia Apiwtxa, os missionários americanos são acusados de sequestrar os Ashaninka, principalmente crianças (internatos), para utilizar a gordura de seus corpos na fabricação de motores de avião, meio de transporte predileto dos missionários norte-americanos na Amazônia : Tinha gringo no Peru. Ele fazia comunidade e botava nome, chamava colônia. Eles matavam também. Por isso eu vim aqui. Eles tiravam óleo do pessoal para fazer avião que vai lá em cima. Tirava o óleo da gente para meter no avião. Eram os gringos americanos, como chamam, eles fazem isso. Eles fazem todas essas coisas com o óleo da gente, faziam uma manteiga, depois faziam motor, faziam avião na terra deles […]. Ele queria levar as crianças para tirar óleo e fazer funcionar os motores. Por isso, gringo tem muito avião (Shomõtse).

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36 Relatos desse comportamento violento e predador associado aos “gringos” também são encontrados em outros grupos indígenas da Amazônia ocidental e têm uma longa história. Taussig (1986 : 245), por exemplo, mostrou que, durante a colonização do Andes Central, os espanhóis atribuíam propriedades mágicas à gordura dos corpos indígenas. Imaginavam que extrair a gordura dos corpos saudáveis dos nativos curaria as feridas dos soldados ou que ela também poderia ser usada na fabricação de medicamentos. Essas ideias baseavam-se numa crença popular da região na existência de um fantasma chamado nakaq ou pishtaco, que usava o sangue, a gordura ou a pele de suas vítimas para preparar medicamentos, derreter sinos das igrejas ou lubrificar motores. Bem conhecidas na literatura etnográfica andina, as referências ao pishtaco, crença de origem pré-hispânica, são mencionadas pelos cronistas e espalharam-se gradualmente para a região amazônica (Ansión, 1989 ; Bellier & Hocquenghem, 1991).

37 Esse imaginário que associa os “gringos” ao pishtaco ou a outros seres sobrenaturais violentos e predadores varia em função dos povos indígenas e dos momentos históricos, mas permanece muito atual na Amazônia peruana. Assim, Santos e Barclay (2011) mostraram como ele foi mobilizado recentemente pelos índios Awajún, Wampis e Ashaninka para interpretar as políticas atuais de colonização da Amazônia. Nas etnografias, também encontramos várias versões do pishtaco ou de outros seres sobrenaturais com as mesmas características. Entre os Piro, por exemplo, os missionários americanos estão associados ao pelacara, um ser predador que alcança a imortalidade roubando periodicamente a pele dos índios para rejuvenescer e revigorar seu corpo envelhecido (Gow, 1991 : 245). Os Tikuna, que vivem na região de fronteira Brasil–Colômbia–Peru, também consideram que os “gringos” são canibais. Dizem que eles se alimentam da carne dos índios e usam o cérebro de suas vítimas para fazer funcionar as aeronaves ou as máquinas que constroem (Lopes Garcés, 2000 : 255). Gordura ashaninka, pele dos Piro ou cérebro dos Tikuna, esses três exemplos ilustram a violência simbólica associada aos missionários, cujo comportamento predador, desumano e antissocial se alimenta da absorção canibal dos corpos indígenas. Eles também mostram que, apesar de vítimas dessas atrocidades, os índios também estão na origem do poder do branco, pois este só existe se nutrindo do âmago indígena.

38 No final de 1980 e início de 1990, os Ashaninka do Amônia participaram ativamente da Aliança dos Povos da Floresta, que foi particularmente importante na região do Alto Juruá (Pimenta, 2007). Nesse contexto, eles receberam apoio financeiro de organizações não governamentais (ONGs) estrangeiras cujos representantes os visitavam periodicamente. Em 1990, uma estudante dos Estados Unidos também efetuou uma curta estadia com algumas famílias ashaninkas do Amônia para estudar o xamanismo (Woodward, 1991). Para os colonos brancos, a presença desses “gringos” no Amônia era uma oportunidade inesperada para disseminar, propositalmente ou não, o medo nas mentes indígenas.

39 As crenças ashaninkas sobre os “comunistas” datam da década de 1960, quando esse povo indígena passou a enfrentar os movimentos de guerrilhas de extrema esquerda que invadiram seus territórios na Amazônia peruana, espalhando o terror em muitas comunidades. Em 1965, o MIR, inspirado na revolução cubana, já tinha estado presente entre os Ashaninka antes de ser duramente reprimido pelas autoridades (Brown & Fernandez, 1991). Fundado em 1969, o SL disseminou gradualmente sua propaganda maoísta entre os índios da Selva Central, entrando, em algumas regiões, em concorrência com o MRTA, uma dissolução do antigo MIR. Muitas vezes conectados ao

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narcotráfico, esses movimentos passaram a atuar na Amazônia peruana, principalmente na década de 1980, onde procuraram doutrinar os Ashaninka e incorporá-los à luta revolucionária. Com a repressão do Estado, os índios ficaram no meio do fogo cruzado, sofrendo da violência dos “comunistas” e de acusações periódicas de cumplicidade com os guerrilheiros por parte do poder oficial.

40 Assim, no final da década de 1980 e início dos anos 1990, o estado de guerra que se estabeleceu na Amazônia peruana teve consequências desastrosas para muitas comunidades ashaninkas : treinamento militar forçado, execuções sumárias, doutrinação, assassinatos de lideranças etc. O sofrimento desse povo indígena diante dos guerrilheiros mobilizou a opinião pública internacional e resultou numa vasta literatura. De acordo com Espinosa (1993 : 80-82), em 1990, o SL controlava a região do Rio Ene e do Alto Tambo ; no ano seguinte, cerca de dez mil ashaninkas viviam sob domínio da guerrilha, a maioria como escravos. Estima-se que, entre o final de 1980 e o início de 1990, os movimentos guerrilheiros do SL e MRTA mataram 3.500 ashaninkas e expulsaram mais de dez mil de suas terras (Veber, 2009 : 47). Diante de tamanha violência, os Ashaninka não permaneceram passivos e adotaram diferentes estratégias. Mobilizando suas redes de solidariedade e de aliança étnica, muitos resistiram com armas.22 Outros procuraram escapar das garras dos “comunistas” migrando para áreas mais seguras, por exemplo, o Brasil.

41 No Rio Amônia, apenas um pequeno grupo familiar teve contato direto com os movimentos de guerrilha no Peru. Em sua maioria, os meus interlocutores não podem ser considerados refugiados de tais conflitos e também ignoram as divisões ideológicas da política ocidental. No entanto, como acontece com os “gringos”, todos constroem um imaginário singular sobre os “comunistas”, associados com a morte e as forças maléficas. Embora alguns tenham testemunhado o terror dos guerrilheiros, esse imaginário é alimentado principalmente por histórias passadas de boca em boca, quando os índios visitam parentes e amigos no país vizinho ou simplesmente quando recebem visitas do Peru. Assim, todos os Ashaninka do Amônia estão conscientes das atrocidades cometidas pelos guerrilheiros em seus compatriotas peruanos e, como eles, usam os termos “comunista” e “terrorista” como sinônimos. Sheriwango, filho de Aricêmio, testemunhou essa violência : nesse tempo, comunista andava matando pessoal no Ucayali, pegava pessoal e matava. Pegava mulher e matava, matava menino, matava velhinho, aleijado, matava ashaninka, matava peruano, matava tudo. Era terrorista peruano, um wirakotxa. Tudo o que encontrava, matava […]. Às vezes chegava numa casa, encontrava uma mulher que estava vivendo com o marido, levava a mulher para namorar com ela, se ela não namorasse com ele, matava. Pegava menino […]. Matava tudo, tudo, tudo. Não escapava ninguém […]. Eu vi muitos matarem os parentes. Eu vi assim. Seguravam um ashaninka assim e metiam bala nele. Eu vi. Não é história. Eu vi, eu vi tudo isso. Mataram pessoas perto de mim. Eu vi um menino assim, deitado morto. Eles tinham armas, assim, grandes […]. Eu não sei qual era o problema deles, mas eles entravam na comunidade, pegavam o pessoal e faziam a reunião deles. Pegavam todos, homens, meninos, todos para a reunião deles. Se um chefe fizesse um problema, aí matava… Ele gosta de matar gente. Não sei de onde ele vem, ele chegava, assim, do mato […]. Comunista é terrorista, é a mesma coisa. Ele tem droga também. Ashaninka não gosta de comunista (Sheriwango).

42 Os colonos brancos do Rio Amônia, empregados das empresas madeireiras, estavam provavelmente informados sobre o conflito entre os Ashaninka do Peru e os movimentos de guerrilha e procuraram usar o medo dos “comunistas” para combater a

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mobilização dos índios em defesa de seus direitos. A família do líder Antonio Pianko, em torno do qual os Ashaninka estavam politicamente organizados, mas também seus aliados indigenistas23 eram frequentemente acusados de trabalhar para os “gringos” e de ser “comunistas”. Gerenciada pela família Pianko, a cooperativa indígena era o alvo privilegiado desses rumores. Criada em 1986 com o apoio da Funai para buscar uma alternativa econômica à exploração madeireira, ela foi instrumentalizada pelos colonos brancos como uma prova da presença de “comunistas” entre os índios. Com seus amigos “gringos”, os “comunistas” planejavam controlar as famílias indígenas do Rio Amônia, que passariam a obedecer a um chefe que, progressivamente, tiraria sua liberdade, valor fundamental da sociedade nativa. Se a maioria dos Ashaninka continuou a confiar em suas lideranças, os rumores associando a família Pianko aos “comunistas” dividiram algumas famílias.

43 À imagem de “comunista” estava agregado o narcotráfico, uma praga nessa região de fronteira e, na época, intimamente ligado aos movimentos de guerrilha peruanos. Por mascarem a folha de coca, que tem um lugar importante no seu universo simbólico, os Ashaninka e, sobretudo, a família Pianko foram acusados de se associar aos “comunistas” para produzir cocaína em quantidade em laboratórios clandestinos escondidos na floresta. Totalmente infundadas, essas acusações contribuíram para aumentar as tensões entre brancos e índios. A Polícia Federal brasileira chegou a acreditar nas denúncias. Em busca de drogas, fez revistas periódicas do artesanato indígena que era vendido pela cooperativa. No início dos anos 1990, também procedeu a uma operação em território ashaninka durante a qual foram destruídos alguns pés de coca no roçado de um xamã importante, conhecido como Jorge. Revoltado com as acusações que o assimilavam a um narcotraficante, ele preferiu enfrentar o medo dos “gringos” e dos “comunistas” e voltou para o Peru, acompanhado por alguns membros de sua família. Sua partida é considerada até hoje uma grande perda, já que seus conhecimentos xamânicos eram únicos e pouco foi transmitido. Após a demarcação da terra indígena, investigações da Polícia Federal comprovaram a ligação de alguns colonos brancos com o narcotráfico ; alguns deles eram os propagadores dos boatos envolvendo os índios.

44 No Rio Amônia, os rumores de “gringo” e “comunista” nunca chegaram a provocar conflitos armados, mas, em razão de seus significados históricos e das representações associadas a essas duas categorias de branco, provocaram inquietações entre os índios e azedaram significativamente suas relações com os colonos. Figuras aterrorizantes do wirakotxa contemporâneo, essas duas representações da alteridade extrema continuam assombrando os pesadelos dos Ashanainka.

Para concluir : o branco pacificado e seus limites

45 Associadas à morte e aos espíritos maléficos kamari, as categorias “gringo” e “comunista” são as formas contemporâneas mais extremas e violentas do branco, mas não são as únicas. A ameaça dessas duas figuras, embora sempre latente, tornou-se hoje mais distante. As configurações do contato interétnico mudaram e levaram progressivamente os Ashaninka do Rio Amônia a fazer múltiplas distinções entre os brancos, de tal modo que eles afirmam que hoje existem “várias qualidades de wirakotxa”, nem todas negativas.

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46 A nacionalidade pode ser um critério de distinção, embora não seja muito relevante. Os Ashaninka sabem que existe branco brasileiro e branco peruano, e dizem que a diferença entre eles é, basicamente, a língua. Alguns índios consideram que os brancos peruanos são mais violentos que os brasileiros, em razão da associação feita entre peruanos, “comunistas” e traficantes de cocaína, mas, de modo geral, essas diferenças se dissolvem na qualidade genérica do branco : “todos são wirakotxa”.

47 Ao longo dos últimos vinte anos, os índios do Rio Amônia entraram no mercado de projetos ditos de “desenvolvimento sustentável” e receberam visitas periódicas de diversos brancos com os quais criaram relações de parceria e até amizades. De modo geral, esses wirakotxa mostram-se respeitosos de sua cultura e os apoiam em suas reivindicações, atitudes muito distantes do comportamento de um kamari. Alguns desses brancos, membros de ONGs ou antropólogos, são estrangeiros, o que os levou também a tornar mais complexa a categoria “gringo”. Assim, eles afirmam hoje que “gringo” não é “todo igual”. Sabem que com alguns “gringos” podem fazer “projeto”, geralmente sinônimo de mercadorias (Pimenta, 2006), que outros compram seus artesanatos e que outros, ainda, podem passar longos períodos na aldeia e se tornar, aos poucos, amigos — meu caso, por exemplo. Quando pacificados ou domesticados, esses brancos são apresentados como txai e até ayompari, duas figuras de uma alteridade pacificada que merecem alguns comentários.

48 McCallum (1997) mostrou que a palavra txai, usada por homens Kaxinawá no Acre para se referir a seus cunhados ou primos cruzados bilaterais, foi gradualmente ampliada para incluir antropólogos, indigenistas da Funai e ativistas de ONGs defensoras da causa indígena. Esse dinamismo linguístico é um exemplo da abertura ameríndia para a alteridade e mostra a possibilidade de estabelecer alianças com o outro, inclusive o branco, transformando-o num afim potencial. Provavelmente pelo fato de os Kaxinawá serem o povo indígena mais numeroso do Acre e os falantes de línguas pano, a maioria dos índios da região, o termo txai tornou-se transcultural e onipresente nas relações interétnicas no Acre, tanto entre índios e brancos como entre povos indígenas. Amplamente usado no contexto indigenista regional, ele também é frequente utilizado pelos Ashaninka para qualificar os brancos que se mostram amigáveis e índios de outros povos. Os meus interlocutores possuem, no entanto, outro termo que, como txai, exemplifica essa abertura para a alteridade.

49 Parte do repertório linguístico ashaninka, o termo ayompari é raramente empregado nas conversas em português, ou seja, no contexto interétnico, mas pode ser usado quando os Ashaninka se referem aos brancos que eles consideram mais próximos. Txai e ayompari não são exatamente sinônimos. Um ayompari é um amigo muito mais próximo que um txai. O ayompari está intimamente relacionado aos bens industriais e ao sistema de troca indígena. Tive a oportunidade de explorar detalhadamente seu significado em outras ocasiões (Pimenta, 2006, 2009). Limitar-me-ei, aqui, a apresentar brevemente algumas de suas principais características para ilustrar a dinâmica da categoria “branco” e salientar sua diversidade interna.

50 Explicar o termo ayompari nos conduz novamente à mitologia indígena. Para os índios do Rio Amônia, o Inka não é somente responsável por alterar a ordem natural do universo ; ele também deu aos ocidentais os poderes que Pawa destinava originalmente aos Ashaninka, sobretudo, o poder de fazer mercadorias. Ao contrário dos outros tasorentsi, o Inka não vive no céu, mas numa terra distante, em companhia do branco, ao qual ele ensina a fazer os bens industriais.24 Para os meus interlocutores, a

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superioridade tecnológica e econômica do mundo ocidental é apresentada como o resultado do roubo de um conhecimento sagrado destinado originalmente aos Ashaninka ou de uma traição do Inka. Espoliados desse saber no tempo mítico, os índios tornaram-se economicamente dependentes dos brancos, com os quais tiveram que aprender a se relacionar, ou seja, a trocar. Na sua forma genérica, o termo ayompari é o nome dado pelos índios tanto ao seu sistema de trocas como a seus parceiros. Ele pode ser traduzido em português por “amigo” e/ou “parceiro de troca”. Originalmente interno ao grupo, usado para se referir a um ashaninka com o qual não se tinha relações de parentesco, mas se pretendia estabelecer aliança, o termo ayompari foi reinterpretado em razão das contingências históricas. Hoje, é usado pelos índios do Amônia para se referir a alguns brancos que se tornaram parceiros e amigos.

51 A pacificação do branco também ocorre quando ele entra na esfera do parentesco. Na aldeia Apiwtxa, existem dois casos de casamento de uma mulher indígena com um homem branco e dois outros de mulheres brancas com homens ashaninkas, embora os casamentos interétnicos sejam práticas pouco comuns entre esse povo indígena (Lenaerts, 2004). Não vou me estender aqui nessa questão, que merece uma reflexão à parte. Ela me parece, no entanto, a forma mais aperfeiçoada de pacificação ou domesticação do branco, embora nunca seja completa, ou seja, ela nunca chega a dissolver a alteridade. Assim, os índios do Amônia têm muita consideração por esses brancos, que fazem parte da sua família e vivem com eles, mas nunca são assimilados. São sempre tratados pelos termos de parentesco ; porém, nenhum é considerado um ashaninka. Eles ocupam uma posição ambígua na sociedade indígena : ao mesmo tempo de dentro e de fora.

52 Essas várias modalidades de pacificação do branco são importantes e indispensáveis num mundo que os Ashaninka descobrem cada vez mais complexo e no qual a relação com os wirakotxa tornou-se uma necessidade. A diversidade da categoria “branco” contribui para relativizar fortemente a imagem que o associa aos espíritos maléficos. Entretanto, se o branco pode ser mais próximo ou mais distante, sua alteridade nunca se dissolve inteiramente e, de modo geral, os Ashaninka continuam tendo uma visão bastante negativa do branco, intimamente ligada a suas características morais e a seu modo de vida.

53 Além de ainda ser identificado com a categoria genérica de kamari, o branco coleciona defeitos : sovina, ladrão, violento, mentiroso, falso, ignorante etc. A esses atributos morais, acrescenta-se uma aparência física pouco graciosa aos olhos indígenas : feio (“como um cachorro”), cabelo enrolado, pele clara etc. Para os Ashaninka, o mundo dos brancos, caracterizado sobretudo pela vida nas cidades, também é incompreensível e desprezado. Embora estejam atraídos pelas mercadorias que o mundo urbano exibe, os índios do Amônia não demonstram vontade de morar na cidade. Viajar para a cidade é sempre uma necessidade e nunca um desejo.25 Quando voltam, reclamam da comida, do barulho, da falta de espaço e, principalmente, da necessidade de ter dinheiro para existir socialmente no mundo dos brancos, que é marcado pela sovinice e pelo egoísmo, valores contrários à generosidade e solidariedade encontradas na sociedade ashaninka. Assim, a cidade é sempre associada ao dinheiro (koriki), ou melhor, à falta dele. Enquanto a floresta provê as necessidades básicas dos índios, na cidade, eles devem pagar por tudo : comer, beber, dormir etc. A sovinice do branco contrapõe-se à generosidade ashaninka como a vida na cidade à vida na aldeia. Apenas uma vez ouvi um interlocutor afirmar que gostaria de morar na cidade, um desejo rapidamente

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temperado pelos aspectos negativos que tal mudança implicaria. Seu depoimento, bastante indignado com a nossa mesquinhez, é revelador da visão dos índios do Amônia sobre o mundo dos brancos : rapaz, eu gostaria de morar na cidade. Eu sou velho, não posso andar no mato, meus olhos não veem mais para caçar porquinho, veado… Agora, fico dependendo dos meus filhos, que trazem comida para mim. Eu não gosto muito disso, não. Gosto de caçar eu mesmo. Eu gostaria [de morar na cidade], mas eu também conheço pessoal da cidade. Se tu não tem dinheiro, tu não come. Pessoal não vai te chamar : “Rapaz, vem almoçar”. Ele não é amigo. Se fosse amigo, ele falava : “Bora comer”. Não chama nada. Eu já andei lá. Aqui, esse pessoal [os brancos] vem, chega, bebe, come. Pode comer ! Come macaxeira [mandioca], banana, qualquer coisa, bebe caiçuma [nome dado regionalmente à bebida fermentada de mandioca]. Agora, na cidade, nem dá um pedaço de banana madura. Por isso, eu digo assim. Quando eu vou à cidade, o pessoal não me dá nada. O pessoal não me diz : “Toma esse cigarro, vamos pegar um guaraná para nós tomar”. E aqui, o pessoal toma caiçuma. Todo branco bebe caiçuma aqui sem pagar nada. Na cidade, paga para beber até água ! Aqui não paga nada. Tu pode comer tudo o que tu quiser aqui. Esse pessoal, ele gosta de vir aqui porque come de graça […]. Quando tu vai à cidade, ele não dá comida, não ! Por exemplo, na vila [Marechal Thaumaturgo], quando eu vou receber o meu dinheiro [aposentadoria], todos esses que vêm aqui, eles não falam : “Bora, César [seu nome português], vamos almoçar”. Nada ! Tu tem que comprar tudo. Tu paga e come. Branco, ele vem para cá : “Cadê a caiçuma ? Cadê ?”. Caiçuma também custa, rapaz ! Custa para fazer, tem que pegar macaxeira, bota fogo para cozinhar, lavar e machucar. É trabalho ! O branco come bolacha, bombom e não dá nada ! Eu não gosto, não. Aqui, quando vem em casa de um ashaninka, pessoal dá toda a comida, macaco, veado, dá tudo ! Aí, branco acha bom. Quando chega ashaninka em casa de branco, tem carne, tem fruta madura, mas não dá para nós. Branco é sovina. Brasileiro é sovina (Shomõtse).

54 Assim, apesar de tentativas de pacificação, o comportamento violento, associal e egoísta do branco, presente de maneira explícita na cosmologia e no mito do Inka, continua contrastando fortemente com a honestidade e a generosidade, qualidades essenciais de todo ashaninka e virtudes indispensáveis de qualquer ayompari, o tradicional parceiro de troca e verdadeiro amigo. Apesar de algumas imagens mais complacentes, o wirakotxa, de modo geral, segue representando o espelho invertido do Ashaninka. Originário do fundo do lago, ele não deixou de desempenhar o seu papel de kamari e ainda é associado à violência, real ou simbólica, que define sua infeliz natureza. Contrariamente à ordem natural do cosmos criado por Pawa, na qual o bem e o mal estavam claramente separados, cada um no seu devido lugar, o mundo humano onde vivem os Ashaninka, hoje em companhia do branco por causa da irresponsabilidade de Inka, é um mundo cada vez mais complexo e nele as essências se misturam. O branco permanece um ser negativo por natureza, mas também se tornou uma figura multifacetada que pode ser pacificada e com a qual se pode conviver. Quando perguntei ao xamã Aricêmio sobre o branco, ele logo me advertiu da complexidade do assunto e tentou se esquivar, dizendo que não entendia nada “desse negócio de branco”. Diante da insistência do antropólogo “gringo”, provavelmente o mais estranho de seus ayompari, acabamos conversando. Deixo o leitor com as palavras de Aricêmio. Num tom irônico, bem característico dos Ashaninka, ele expressa muito bem a complexidade e ambiguidade do wirakotcha no mundo atual : agora não pode saber bem [o que é o branco]. Antigamente sabia, mas agora é tudo uma mistura. Tem muita qualidade de wirakotxa. Tem espanhol, peruano, brasileiro. Tem wirakotxa gringo também. É tudo a mesma coisa. Tudo é wirakotxa. Primeiro, era espanhol. Aí, misturou com outro wirakotxa. Tem wirakotxa bem pretinho agora

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(risos). Tem wirakotxa com olho assim [a referência aqui é aos olhos puxados dos membros de uma equipe da televisão japonesa NHK, que fez uma reportagem na terra indígena no início da década de 1990]. Tu já viu esse ? (risos). É tudo uma mistura. […]. Eu não entendo de mais nada, rapaz ! Tem wirakotcha bom, tem outro tipo que é ruim mesmo ! É tudo branco, mas é branco diferente (risos). Tu entende ? (risos). Eu não entendo mais nada desse negócio de wirakotcha (risos) (Aricêmio).

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NOTAS

1. A primeira parte do título é inspirada no artigo de minha professora e hoje colega Mariza Gomes e Sousa Peirano (1999) intitulado “Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada)”. Embora discuta aqui questões muito diferentes, optei por usar esse título em homenagem à autora e em reconhecimento de seus valiosos ensinamentos. Agradeço à CAPES pela concessão de uma bolsa de Estágio Sênior de pós-doutorado na University of British Columbia (Vancouver / Canadá), que facilitou a escrita deste artigo. 2. Não citarei aqui esses trabalhos em razão de sua enorme quantidade, que inviabiliza qualquer tentativa de listagem. A título de exemplo, mencionarei somente a coletânea organizada por Albert e Ramos (2002). 3. Os mitos ashaninkas oferecem bons exemplos do perspectivismo tal como definido por Viveiros de Castro (1996). No início dos tempos, muitos animais, plantas, astros e até determinados lugares tinham uma aparência humana e eram filhos de Pawa. Em decorrência do comportamento desses primeiros ashaninkas, seus corpos foram progressivamente transformados para adquirir sua forma atual, que é somente a maneira pela qual eles são visíveis aos olhos humanos. Essas transformações foram realizadas com o sopro de Pawa ou dos tasorentsi. 4. A existência desse rio mágico também é apontada por Elick (1969) e por Weiss (1969), que usa o nome de Hananeríte. Segundo este último autor, esse termo é derivado de hanáneki (criança) e também considerado “o rio da eterna juventude” : “There the good spirits bathe to regain their youth and so maintain their immortality” (Weiss, 1969 :82). 5. O termo kamari é composto pela raiz kam, cujo significado é “morrer”, “estar morto”. Uma pessoa morta é chamada kamikari, e a palavra kamari pode ser usada em diferentes contextos, onde adquire significados variados, sempre relacionados com a morte ou alguma coisa ruim : espírito maléfico, fantasma, demônio, doença etc. Weiss (1969 : 85) afirma que os espíritos kamari vivem sob a autoridade de um chefe supremo chamado koriospiri. Meus dados não permitem confirmar essa hipótese. 6. Embora creia que não existem palavras na língua ashaninka para traduzir as noções judaico- cristãs de “inferno” e “paraíso”, alguns índios do Rio Amônia usam esses termos em português e todos acreditam num destino post-mortem, distinguindo um “lugar ruim” e um “lugar bom”. Elick (1969) referiu-se a esse mundo subterrâneo simplesmente como “the lower world”, “the dark world below”, “the original home of disease spirits and other demonic beings” etc. Weiss (1969) apresentou uma visão mais complexa desse mundo, que seria composto por dois níveis : Kivínti (-1) e Šarinkavéni (-2). O primeiro é a residência de “bons espíritos”, ao passo que o segundo pode ser qualificado de “inferno dos Campa” (Weiss, 1969 :84). Weiss salienta, no entanto, que o nível Kivínti é mencionado por poucos índios, muitos considerando que, abaixo da terra, só existe o mundo dos demônios, do qual também o autor só recolheu vagas informações. Os relatos que recolhi entre os Ashaninka do Rio Amônia não mencionam esse primeiro nível do mundo subterrâneo. 7. Weiss (1969 :65-66) também reconhece o uso desse termo para identificar o mundo dos humanos, mas prefere usar o nome Kamaveni, literalmente, “a terra da morte”, para diferenciá-la dos outros mundos habitados pelos espíritos imortais. 8. Note-se que o Sol era uma divindade andina pré-colombiana. O astro foi o principal deus dos incas, que acreditavam que seus imperadores eram filhos dele (Clastres, 1980 : 86). O culto a essa divindade é uma das muitas influências andinas visíveis entre os Ashaninka. Veremos adiante outros exemplos que têm uma relação direta com o branco.

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9. Segundo Clastres (1980 :88), os índios andinos também denominaram os primeiros espanhóis de “viracocha”, originalmente um deus, cultuado por populações aimarás e quéchuas que o consideravam o criador de todas as coisas e um herói civilizador. Esse termo também é usado por outros povos indígenas dessa região amazônica para se referir aos brancos, como os Piro do Baixo Urubamba (Gow, 1991 :85, nota 25). 10. Uma das numerosas influências incaicas visíveis na mitologia dos Arawaks subandinos e em alguns povos Pano do oeste amazônico é a crença em um herói cultural chamado Inka (ou Inca), geralmente associado ao poder tecnológico e à chegada dos brancos. Para uma discussão do Inka entre alguns povos Pano, ver, por exemplo, Erikson (1992) e Calavia Sáez (2000). 11. Essas transformações não são sempre o resultado de um comportamento negativo dos primeiros Ashaninka. Elas também podem decorrer de atos heroicos. Por exemplo, o beija-flor (shomõtse), apesar de ser o filho mais frágil de Pawa, foi o único que conseguiu levantar uma escada para o Deus subir ao céu. Em agradecimento, Pawa transformou-o nesse pequeno pássaro. Como o japiim, o beija-flor é sagrado, considerado um mensageiro de Deus. 12. Mendes (1996, vol 2 : 1-12) recolheu um mito no Rio Amônia que apresenta uma localização mais complexa. Seu interlocutor também relatou a tentativa frustrada por parte de Pawa de construir uma cerca para separar os Ashaninka dos brancos. 13. Para outras versões desse mito na literatura etnográfica, ver, por exemplo, Varese (1968 : 124-125), Weiss (1969 : 342), Mendes (1991, vol. 2 : 1-12) e Ioris (1996 : 168-169). 14. Embora o autor não especifique, trata-se aqui de Pawa em pessoa. Entre os Ashaninka do Rio Amônia, oriya é o Sol, a coroa de Pawa, e atsiri pode ser traduzido como “gente”, “ser humano”, “homem” etc. Mesmo Pawa sendo Deus, ele pode ser personificado com a aparência humana de um ashaninka, vestindo uma kushma (vestimenta tradicional) etc. 15. Contrariamente ao branco, cuja origem é a água, os Ashaninka não só habitam a terra como também a têm como matéria-prima. Com efeito, o mito de origem dos Ashaninka conta que eles foram os primeiros humanos, nascidos de uma brincadeira da filha de Pawa, que, nos tempos míticos, se sentia solitária enquanto seu pai e seus irmãos criavam o mundo. Ela então decidiu fazer um casal de bonecos de barro e lhes deu vida. Ao tomar conhecimento da brincadeira da filha, Pawa teria ficado chateado com tanta ansiedade, pois ele mesmo, depois de preparar o mundo, planejava a criação dos humanos. A impaciência da filha acabou resultando na mortalidade dos Ashaninka, que Pawa planejava fazer de pedra e, portanto, eternos. 16. Segundo Mendes (1996 : 21), nõke também seria o dono do pitsithari (barro que as mulheres indígenas usam no tingimento do algodão), que ele sonega. Como mostrarei adiante, ser sovina é também uma das principais características atribuídas ao branco. A autora relata ainda o uso de outras técnicas para combater as manifestações do arco-íris : jogar cinza quente para cima para que ela caia nos olhos da serpente e impedir que nõke veja os Ashaninka ; e soprar na boca de uma garrafa em sua direção, pois o som estridente decorrente dessa ação lembraria o som de uma faca cortando a serpente gigante. 17. O nome Ãtawiari refere-se aqui a um personagem específico, mas também é usado para indicar a categoria dos grandes xamãs que viveram no passado mítico e que são considerados tasorentsi, ou seja, semideuses. 18. Para uma versão da história de Ãtawiyari, ver Mendes (1991, vol. 2 : 31-39 ; 1996 : 51-56). 19. A onça (kasherari) pode ser a reencarnação de um sheripiari maldoso e sinônimo de morte. A associação entre kamari e seres canibais é corrente. É interessante notar que a Lua (Kashiri), como mostrou Weiss (1969 : 112-114 ; 264-284), também é vista pelos Ashaninka como um ser canibal que se alimenta de mortos. Como nõke, ela briga periodicamente com o Sol (eclipses). 20. Entre as principais missões, encontram-se o Summer Institute of Linguistics, o South American Indians Missions ou ainda o Seventh-Day Adventist. Sobre o impacto dessas missões entre os Ashanika, ver, principalmente, Bodley (1970).

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21. No Rio Amônia, poucas famílias tiveram contato direto com missionários que nunca atuaram do lado brasileiro da fronteira. No entanto, alguns índios chegaram ao Amônia no final da década de 1980 e início dos anos 1990, no auge dos conflitos com os brancos. Eles fugiram do Peru, justamente em razão da violência dos “gringos” e dos “comunistas”. 22. Em dezembro de 1990, por exemplo, o MRTA assassinou Alejandro Calderón, então presidente da Federação das Comunidades Ashaninka do Vale do Pichis (Anap). Em represália, os índios reuniram centenas de guerreiros. O “exército ashaninka” expulsou o MRTA e seus aliados da região e ocupou de forma pacífica, durante três meses, a pequena cidade amazônica de Puerto Bermúdez, posteriormente entregue ao exército peruano (Veber, 2009). 23. Foi o caso, por exemplo, do sertanista Antônio Macedo e dos antropólogos Terri Aquino e Margarete Mendes, que frequentaram muito a região do Amônia nesse período, defendendo os indígenas e apoiando suas reivindicações. 24. A maior parte das versões do mito do Inka afirmam que, após ter surgido do fundo do lago, o branco capturou o Inka, guardando-o prisioneiro até hoje e roubando seu conhecimento ; outras o apresentam como uma espécie de traidor que teria esquecido seu povo e optado por viver em companhia dos ocidentais, repassando-lhes o conhecimento tecnológico que Pawa destinava originalmente aos Ashaninka. 25. As viagens ocorrem geralmente para receber algum benefício do governo (aposentadoria, Bolsa Família etc.), mas também podem ser motivadas por algum problema de saúde ou uma necessidade política. O principal destino é o pequeno município de Marechal Thaumaturgo, mais raramente Cruzeiro do Sul. Note-se, no entanto, que alguns ashaninkas do Rio Amônia já viajaram para cidades mais distantes, como Brasília, Rio de Janeiro e até cidades do exterior, como Paris.

RESUMOS

Como outros povos indígenas da Amazônia, os Ashaninka têm atribuído um significado muito peculiar ao branco, que eles destacam em seus discursos como a alteridade mais radical. Com base em uma pesquisa realizada com os Ashaninka do Rio Amônia (Alto Juruá, no Acre), este artigo articula as concepções cosmológicas desse povo indígena com sua história de contato com o mundo ocidental para desvendar algumas faces da categoria “branco”. Partindo da cosmologia nativa e do mito de origem do branco, que revelam sua estreita conexão com os espíritos maléficos, mostro como o contato tem se expressado na história recente desse povo em imagens extremamente negativas associadas aos “gringos” e “comunistas”, dois tipos de branco caracterizados por um comportamento violento. Termino apresentando algumas tentativas dos Ashaninka de pacificar o branco. Embora nunca sejam totalmente sucedidas, elas relatam um outro amigável e testemunham a complexidade e a ambiguidade dessa categoria nos dias atuais.

Like other Amazonian indigenous peoples, the Ashaninka have given the Whiteman a very specific meaning stressed in their discourses as the most radical of alterities. Based on field research among the Ashaninka of the Amonia River (Upper Juruá in the state of Acre), this article brings together their cosmological conceptions and the history of their contact with the Western world in order to unveil some facets of the category Whiteman. Beginning with the native cosmology and the origin myth of the Whiteman, and their close connection with evil spirits, I show how contact has been expressed in this people’s recent history in the form of extremely

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negative images associated to “gringos” and “communists.” These are two types of the Whiteman deemed to be exceedingly violent. I end by presenting some Ashaninka attempts to pacify the Whiteman. Although not completely successful, they describe an amiable Other and reveal the complexity and ambiguity of this category nowadays.

ÍNDICE

Keywords: Ashaninka, whiteman, cosmology, history Palavras-chave: Ashaninka, branco, cosmologia, história

AUTOR

JOSÉ PIMENTA

José Pimenta é professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. Contato : josepimenta17[at]gmail.com

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Resenhas

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SANTOS, Ricardo Ventura ; GIBBON, Sahra & BELTRÃO, Jane (orgs.). 2012. Identidades emergentes, genética e saúde : perspectivas antropológicas Rio de Janeiro : Garamond ; Fiocruz

Andréa Borghi Moreira Jacinto

REFERÊNCIA

SANTOS, Ricardo Ventura ; GIBBON, Sahra & BELTRÃO, Jane (orgs.). 2012. Identidades emergentes, genética e saúde : perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro : Garamond ; Fiocruz. 272 pp.

1 Entre perspectivas provocadas pela leitura de Identidades emergentes, genética e saúde, há uma sensação paradoxal de tempos que se embaralham. Em alguns momentos, o leitor parece percorrer discussões familiares ao final do século XIX e início do século XX, bem como preocupações da antropologia em firmar objetos próprios de pesquisa, e recusar determinismos biológicos na explicação do comportamento humano entre diferentes grupos. Em outros momentos, os capítulos trazem a surpresa de reconhecer que o futuro é hoje. Várias cenas imaginadas em tempos passados, fantasias da ficção científica, estão no presente de práticas e discursos contemporâneos, entrelaçados às tecnologias genéticas, à reprodução assistida, às possibilidades abertas pela pesquisa com células-tronco, às estratégias e intervenções do biopoder e da biopolítica sobre a vida humana.

2 Os trabalhos que compõem o livro foram originalmente apresentados em seminário associado à 27ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, ocorrida em Belém, em julho de 2010. Representam esforço conjunto entre antropólogos, historiadores, geneticistas, filósofos e pesquisadores da saúde coletiva para enfrentar a complexidade

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das biopolíticas e produzir conhecimentos sobre biologia humana, sociedade, cultura e política, atravessando campos de aproximações e tensões. A publicação, além de registro e resultado do seminário, pode ser considerada como marco institucional, na medida em que integrou atividades do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, recém-implantado naquele momento.

3 O livro é estruturado em três partes, além da apresentação. Ao traçar o panorama da publicação, os organizadores Ricardo Ventura Santos, Sahra Gibbon e Jane Beltrão fazem uma revisão teórica significativa sobre a questão de como tecnologias biológicas estão reconfigurando as noções do humano. Discutindo novas práticas e políticas da vida desencadeadas pela genômica ou nova genética, por tensões e trocas entre campos disciplinares nas implicações sociopolíticas, éticas e jurídicas desses cenários, os organizadores revisam um debate que atravessa vários capítulos, sobre interfaces entre raça, saúde/doença e tecnologias emergentes. Um dos objetivos do livro seria contribuir para o campo teórico com perspectivas do contexto latino-americano, particularmente brasileiro, por meio das várias entradas que os capítulos oferecem sobre o tema. Os cenários e práticas descritos revelam como dinâmicas transnacionais da genômica, como ciência global, se articulam a contextos e arenas nacionais, regionais e locais.

4 A primeira parte do livro é intitulada “Saúde, genética e sociedade : novas/ velhas questões, novas/velhas configurações”. Os três capítulos que a compõem têm enfoque teórico e conceitual. Sandra Caponi, em “Degeneração e eugenia na história da psiquiatria moderna”, enfrenta o campo da psiquiatria, revendo historicamente perspectivas abertas pelas correntes da degeneração e da eugenia. Analisa os dois conceitos, que procuravam identificar um tipo médio e normal de humanidade, econstruirexplicaçõeseparâmetrosbiológicosparacomportamentos considerados desviantes — processo associado à patologização de sofrimentos e à medicalização da “anormalidade”. Do surgimento da psiquiatria ampliada em meados do século XIX, o percurso aponta, neste novo século, o fortalecimento de explicações biológicas para comportamentos, desigualdades e conflitos sociais.

5 No segundo capítulo, “‘Agressividade’ e ‘violência’ : a difícil tarefa de conceituar o diálogo entre geneticistas e cientistas sociais”, Gláucia Silva enfrenta a (im)possibilidade do diálogo entre ciências sociais e biomédicas. Analisa contrastivamente os artigos do médico Renato Flores e da socióloga Maria Cecília Minayo, ambos sobre agressividade e violência, porém em percursos argumentativos e conclusões extremamente divergentes. Entre a tensão de abordagens, a autora identifica a renovação da clássica dicotomia natural/cultural, fazendo, paralelamente à crítica sobre a visão biologizante das relações sociais, a crítica dos limites do antropocentrismo da antropologia.

6 O bloco finaliza com o trabalho de Luiz David Castiel, um exercício etnográfico virtual que descreve sítios na internet e um mercado que oferece longevidade e serviços de futurologia. “Saúde, longevidade e genética : um olhar biopolítico” revisa enunciados biológicos sobre teorias do envelhecimento e discursos sobre longevidade humana, retomando a perspectiva do biopoder por meio da noção de “epidemiopoder”. Faz também descrições interessantes de redes de especialistas que circulam entre prestigiosos institutos de pesquisa, fazendo uso de linguagens “guerreiras” e religiosas.

7 “Reprodução, molecularização e biopolítica em si” nomeia a segunda parte da publicação, em que contextos e sujeitos históricos e políticos tornam- se mais visíveis. O

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primeiro texto é também homenagem a Rosely Gomes da Costa, antropóloga precocemente falecida, que deixou contribuição importante à pesquisa sobre reprodução assistida e ao debate sobre questões étnico-raciais. Em “Doação de sêmen e classificação étnico-racial no Brasil”, são discutidas as determinações legais relativas à doação de sêmen e ao anonimato do doador, em contraposição às práticas rotineiras das equipes médicas na relação com casais que buscam inseminação artificial. A etnografia apresenta dados obtidos em dois bancos de sêmen na cidade de São Paulo e entrevistas com médicas responsáveis por esses bancos, além de mediadoras entre casais que buscam a inseminação, e os doadores. O critério da “semelhança imunológica” avaliada pela tipagem sanguínea e fenotípica, de responsabilidade da equipe médica, é redimensionado na análise dos questionários e das técnicas de coleta de informações, que mostram como certas decisões médicas baseiam-se em critérios de classificação racial atravessados por leituras ideológicas e subjetivas. Dilemas jurídicos e éticos levantados pela classificação racial no campo da saúde reprodutiva no Brasil finalizam o capítulo.

8 O texto seguinte, de Naara Luna, amplifica essa discussão em “Identidade genética no debate sobre o estatuto dos fetos e embriões”. Enfrenta o debate público sobre o estatuto de fetos e embriões, concentrando-se em como dados genéticos são acionados em diferentes perspectivas teóricas, políticas e ideológicas nos embates jurídicos em torno de duas ações tramitadas no Supremo Tribunal Federal. A primeira ação questiona o artigo da Lei de Biossegurança autorizando o uso de embriões para produção de células-tronco embrionárias ; e a segunda pleiteia autorização para antecipação de parto de anencéfalo sem necessidade de recurso na Justiça. Acompanhando o debate público, observa-se como a biologia e suas tecnologias têm contribuído para a “genetização do ser humano e das relações familiares” ( :145).

9 Esse bloco finaliza com Marko Monteiro e Ricardo Vencio, em “A ‘molecularização’ do câncer de próstata : reflexões sobre o chip de DNA”. Complexo, o capítulo desafia o leitor à discussão sobre representação e materialidade. Entre visões e intervenções sobre o corpo analógico e o corpo digital, a análise acompanha a passagem de descrições vindas da anatomia, patologia e fisiologia, para outras vindas de processos de digitalização do corpo, que privilegiam a análise molecular e genética, com possibilidades e consequências específicas de manipulação dos corpos.

10 “Tecnologias genéticas e identidades étnico-raciais emergentes” é o título da última parte do livro, discutindo questões de identidades étnico-raciais em arenas e lutas de grupos específicos. Em “Usos da leucopenia e diferença racial no Brasil contemporâneo”, Elena Calvo analisa discursos sobre raça expressos ora como realidade social, ora como realidade biológica, mobilizados de diferentes modos em processos de construção de verdades. São observados discursos no âmbito de indústrias químicas cujos trabalhadores correm risco de contaminação por benzeno, e como a indústria, em seu embate com operários e sindicatos, procura justificar baixas contagens de leucóticos não como efeito de contaminação, mas pelo que seria da natureza racial dos operários. Outro campo de discursos refere- se ao uso da leucopenia como especificidade racial tanto por ativistas da área política da saúde da população negra quanto por cientistas no debate sobre uso de valores de referência ditos raciais para o leucograma.

11 O capítulo seguinte, de Michael Kent, conduz aos Andes : “A importância de ser Uro : movimentos indígenas, políticas de identidade e pesquisa genética nos Andes

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Peruanos”. Traz breve etnografia desenvolvida entre os Uros, grupo indígena que vive em ilhas flutuantes de junco no Lago Titicaca, descrevendo suas articulações com geneticistas, que ofereceram indícios e argumentos para reinscrever o grupo no cenário político local, tensionado por outras etnias e ambientalistas em torno de direitos territoriais e reconhecimento da identidade indígena.

12 O encerramento é de Verlan Valle Gaspar Neto, Ricardo Ventura Santos e Michael Kent, em “Biorevelações : testes de ancestralidade genética em perspectiva antropológica comparada”. Observa-se como, de diferentes modos, esses testes trazem implicações sobre noções de raça e etnicidade, e afirmação de identidades. São comparadas três empresas que comercializam testes de ancestralidade genética nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Brasil, observados o merchandising desses produtos, os contextos institucionais das empresas, os contextos sociopolíticos e o entrelaçamento dessas questões às escolhas metodológicas dos testes. Paralelamente ao potencial de redefinição de espaço e tempo das identidades, oferecida pelos testes de ancestralidade, a pesquisa revela a maneira pela qual “a diversidade genética não se mostra como uma realidade biológica, mas, antes, como construída através de práticas científicas específicas” ( :239).

13 A obra enriquece o debate no campo da biopolítica e dos estudos sobre corpo e saúde, explorando diferentes cenários e grupos no Brasil e em outros contextos nacionais. É uma oportunidade para cientistas humanos no desafio de transitar entre perspectivas da genética e dos estudos de saúde, e para os cientistas da biomedicina se aproximarem do olhar antropológico. Trata-se de reconfigurações não somente de identidades emergentes nas interfaces entre genética, saúde, tecnologia e antropologia, mas das próprias fronteiras disciplinares.

AUTORES

ANDRÉA BORGHI MOREIRA JACINTO

Ministério da Saúde

Anuário Antropológico, v.40 n.1 | 2015 237

BLÁZQUEZ, Gustavo. 2012. Los actos escolares : el discurso nacionalizante en la vida escolar Buenos Aires : Miño y Dávila

Amurabi Oliveira

REFERÊNCIA

BLÁZQUEZ, Gustavo. 2012. Los actos escolares : el discurso nacionalizante en la vida escolar. Buenos Aires : Miño y Dávila. 271 pp.

1 O trabalho de Gustavo Blázquez, Los actos escolares : el discurso nacionalizante en la vida escolar, pode chamar a atenção dos leitores brasileiros inicialmente por se voltar para um campo que, ainda pouco consolidado aqui, possui outra tradição intelectual na Argentina : o da antropologia da educação. Vale destacar as pesquisas realizadas pelo Programa de Antropologia e Educação da Universidade de Buenos Aires, que desde 1992 tem articulado as discussões nessa seara no país vizinho.

2 Trata-se de um livro que possui certa heterogeneidade por abarcar duas pesquisas realizadas na segunda metade dos anos de 1990. A primeira parte resulta de uma pesquisa de mestrado em investigações educativas da Universidade Nacional de Córdoba, cuja etnografia foi realizada em 1995. A segunda parte resulta de uma dissertação de mestrado em antropologia social defendida no Museu Nacional em 1998. Diferentemente do primeiro trabalho, este segundo volta-se primordialmente para os “nativos de papel”, como o autor denomina, utilizando-se largamente da obra de Norbert Elias (1897–1990) para o processo de investigação por meio de diversas fontes da “sociogênese do ato escolar”.

3 A primeira parte do livro está organizada em cinco capítulos, que possibilitam ao leitor, especialmente o não argentino, se situar no panorama histórico dos denominados atos escolares, que são definidos pelo autor desde a introdução como “[…] un tipo de

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representación dramática realizada en las escuelas en ocasión de una serie de fechas establecidas oficialmente y de acuerdo con formas también sancionadas por las autoridades estatales” ( :13). Seria por meio de tais atos que se recordariam os acontecimentos históricos e se confirmariam os valores cívicos fundantes da argentinidade.

4 Blázquez recua no tempo e inicia sua discussão ainda no século XIX, quando ocorre a chamada Revolução de Maio, que remete à emancipação política do então vice-reinado do Prata, com o subsequente advento da Argentina como país. Porém, seu olhar não se volta necessariamente para os grandes acontecimentos, mas sim para os fenômenos cotidianos que passam a se desenrolar nessa nova realidade, com ênfase naqueles que envolvem as crianças escolarizadas e na participação delas nas comemorações que se sucedem. A hipótese que o autor levanta e vai tentando demonstrar por meio de uma etnografia histórica é a de que o Estado passa a se constituir performaticamente a partir do final do século XIX e início do século XX. Mais que isso, Blázquez preocupa-se em demonstrar que as crianças não eram apenas “figurantes” nesse processo, mas agentes que produziam uma conduta exemplar a ser seguida pelos adultos ; essa conduta forjava uma dada concepção de nacionalidade, construindo performaticamente o Estado e tendo seu ápice nas comemorações de maio. É importante frisar ainda o ponto de vista assumido de que o processo de instauração do Estado é sempre inconcluso, de tal modo que as performances vivenciadas no espaço escolar constituem esse continuum. Inclusive, essa performance possibilita uma objetivação da pátria que ganha forma nos corpos dos sujeitos nas chamadas “peregrinações patrióticas”, desfiles realizados por alunos, passando por pontos geográficos da cidade que também adquiriam significado nesse processo de construção nacional.

5 O autor finaliza a primeira parte focando as atividades realizadas durante o centenário da independência da Argentina, cuja celebração implicou o desenvolvimento de várias “técnicas de nacionalização” que se relacionavam diretamente com o ambiente escolar, principalmente por meio da nacionalização do currículo e da promoção das performances patrióticas. É interessante o destaque dado à chamada “Educação Patriótica”, que visava “[…] superar la limitación de la enseñanza de los valores nacionales que estaba vinculada sólo a ciertas asignaturas que funcionaban como locus de la Nación en la escuela” (:131). Por meio desse novo espaço na escola, a performação da nação iria além de festejos pontuais, que se concentravam nos meses de maio e junho.

6 Na segunda parte, estruturada em mais cinco capítulos e um epílogo, o foco recai sobre como os atos escolares se inserem em uma rede de relações mais amplas. Os intercâmbios são classificados entre aqueles que “[…] conducen a la producción del acto y aquellos que, en forma de evaluación, se realizan con posterioridad a la performance escénica” (:151). No primeiro grupo de intercâmbio, encontramos : a) aqueles realizados entre as professoras, com destaque para a circulação de textos utilizados para produzir performances ; b) os que envolviam as professoras e os familiares, ficando a centralidade da ação a cargo das professoras, que em última instância, por meio da seleção dos papéis que as crianças ocupariam nos atos escolares, definiam o lugar social de cada criança (e família) ; c) os vivenciados entre os familiares, que se davam principalmente na confecção dos trajes para as comemorações patrióticas, bem como na circulação de equipamentos fotográficos, por exemplo ; e d) aqueles entre os alunos, que se davam de forma bastante complexa, tendo em vista que o modo com que

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participavam se modificava à medida que eles passavam a ter outras vivências escolares.

7 Os intercâmbios de avaliação podem se referir a uma avaliação imediata, que se substanciava principalmente por meio dos agradecimentos da performance executada, ou de forma mediada, que se referia ao “concepto”. Este último era uma nota outorgada pela diretora ao final do período letivo, que constava em uma ficha detalhada. Nessa ficha, a elaboração dos atos escolares não representava um item específico posto de forma explícita, mas era, no final das contas, um dos pontos de maior relevância na avaliação.

8 O autor realiza ainda um exercício comparativo entre os atos patrióticos escolares do século XIX e aqueles etnografados em 1995, chegando à conclusão de que, por meio desses atos, o passado se fazia presente, reforçando um discurso nacionalizante. Cada performance, observada nas diversas escolas, elabora uma leitura do mundo colonial e dos acontecimentos ocorridos na Revolução de maio, que se materializava nas práticas dos alunos. Por exemplo, os rituais voltados à bandeira, especialmente a “Promesa a la Bandera”, são interpretados como ações de caráter sacrificial : nesses momentos, os alunos realizam uma performance bastante emotiva na qual juram sacrificar sua própria vida pela comunidade nacional, o que é analisado em termos de violência performativa.

9 Ao final, o autor fixa-se de forma mais clara na etnografia atual de três escolas, analisando como os atos escolares, que se referem tanto à celebração da fundação da cidade de Córdoba quanto à declaração da independência, colaboram para a construção de um imaginário nacionalizante. Por meio dessa descrição, o leitor pode apreender como o “nós” emerge das práticas escolares, especialmente desses atos performativos ; fica evidente que, longe de configurar algo dado, a ideia de nação é construída e reconstruída continuamente, e o que Blázquez faz é apontar o lugar da escola nesse processo.

10 O trabalho de Blázquez mostra-se relevante não apenas por se aventurar na antropologia da educação, campo de investigação ainda pouco explorado, mas também por realizar um contínuo e vigoroso esforço de relacionar as práticas cotidianas vivenciadas na escola com a construção do Estado-Nação. Este emerge dos atos escolares descritos, seja no caso daqueles que foram investigados por meio das fontes históricas, seja no dos que surgiram no trabalho de campo contemporâneo. Seguindo a esteira inaugurada por Norbert Elias, podemos afirmar que Blázquez nos demonstra o lugar central ocupado pela escola e pelas crianças no processo civilizador.

AUTORES

AMURABI OLIVEIRA

UFSC

Anuário Antropológico, v.40 n.1 | 2015 240

MONTERO, Paula. 2012. Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas Etnografias Salesianas (1920-1970) São Paulo: Edusp

Alexandre Jorge de Medeiros Fernandes

REFERÊNCIA

MONTERO, Paula. 2012. Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas Etnografias Salesianas (1920-1970). São Paulo: Edusp. 520 pp.

1 Missionários e antropólogos, em princípio, são muito semelhantes. As similaridades iniciam-se porque ambos enfrentam a alteridade como uma questão fundamental, na medida em que estão (e estiveram) atuando nas fronteiras de seus mundos, saindo dos seus espaços originários de socialização para contextos distantes e desconhecidos. O “outro”, diferente e exótico, parece resplandecer nos seus ofícios. Mas, segundo a narrativa disciplinar, missionários também são diferentes: a vontade de produzir mudança social — classificada de maneira indistinta (e inadequada) como “proselitismo” — é rechaçada como agenda por antropólogos. Isso acaba por tornar os missionários uma espécie de caricatura da comunidade antropológica, especialmente para definir que a antropologia não corrobora tais empreendimentos de “conversão”.

2 Mas as viagens aos humanos de terras distantes e desconhecidas e a divergência de agendas não são as únicas aproximações possíveis. Assim como os antropólogos, os missionários produziram e ainda produzem etnografia, registrando suas experiências com populações exóticas e traduzindo-as em concepções de humanidade. Exceto pelo conhecimento da obra de Maurice Leenhardt, pastor evangélico reconhecido como um dos ancestrais da moderna antropologia, poucos antropólogos sabem que as igrejas

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cristãs, inclusive a Igreja Católica Apostólica Romana, foram (e são) instituições que abriga(ra)m e financia(ra)m inúmeros etnógrafos missionários.

3 Sabendo da riqueza desse empreendimento relativamente desconhecido, Paula Montero tem lançado os seus investimentos de pesquisa para compreender a produção de conhecimentos etnográficos feita por missionários. Na obra Selvagens, civilizados e autênticos: a produção das diferenças nas Etnografias Salesianas (1920-1970), ela analisa algumas monografias feitas por padres salesianos sobre os grupos indígenas Bororo e Xavante, do Mato Grosso, e sobre as populações do Rio Negro, objetivando compreender como a prática missionária constrói, simbolicamente, a alteridade em diferença.

4 As quatro principais obras analisadas por Montero foram publicadas em diferentes períodos e por diferentes missionários, o que a faz tomar uma perspectiva diacrônica sobre como essas monografias classificavam as populações indígenas. O título da obra mostra três categorias que se sucederam dentro desses sistemas discursivos — se os padres salesianos dos anos 1920 chamavam certas populações de “selvagens”, essa categoria deixou de ser utilizada para representá-las, passando para “civilizados”, durante os anos 1950, e culminando em “autênticos”, no contexto indigenista dos anos 1970.

5 O livro, composto por sete capítulos, destina os seus três primeiros para contextualizar a atuação das instituições de que faziam parte os escritores dessas monografias: a Congregação Salesiana e a Igreja Católica. Num esforço relativamente denso para os propósitos atribuídos ao livro, esses capítulos expõem, por meio de uma revisão bibliográfica e de documentos da Igreja, a história da Igreja Católica no seu movimento de expansão no chamado “Novo Mundo”. Entre os fenômenos históricos trazidos, Montero destaca o papel do Concílio Vaticano I (1869–70) para a expansão da Igreja Católica, a posição da Congregação Salesiana no contexto socioeconômico de criação do Estado italiano durante o século XIX e as propostas de expansão territorial do Estado brasileiro na República. Tal trajetória narrativa, à medida que traz um potencial de imaginação sobre como as relações sociais entre missionários e populações missionadas conviviam, permite introduzir o leitor a uma compreensão sobre o quão essas monografias são produtos de relações históricas construídas em longo prazo.

6 Além de dar profundidade histórica às monografias, Montero traz, nesses três capítulos iniciais (e principalmente no terceiro, “A arquitetura da missão e suas lógicas”), aspectos sociológicos da atividade missionária, como as relações hierarquizadas da Igreja Católica, os modos de organização material da ação missionáriaeosprojetosemodelosdeinteraçãocomaspopulaçõesindígenas. Todos esses fenômenos são destacados pela autora porque são úteis para potencializar sua análise sobre as monografias, visto que ela indica as condições de observação implícitas nas descrições etnográficas. Entretanto, se o tom diacrônico perpassa por toda a obra, relatando as continuidades e descontinuidades da Igreja Católica em seus aspectos macro-históricos e as transformações da etnografia, o capítulo 3 toma um tom distinto, na medida em que assume certa estabilidade histórica da ação missionária em seus aspectos organizacionais perante os indígenas.

7 Os capítulos 4 a 7 conformam-se como o núcleo mais relevante da obra, visto que se trata de uma análise textual das monografias etnográficas dos salesianos. Ainda que indique a intenção de narrar as mudanças temporais nos estilos narrativos e nas intencionalidades de cada obra (“para quê e por que os padres salesianos as

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produziam?”), no capítulo 4, “A produção do outro na antropologia salesiana”, a autora avalia as monografias em seu conjunto, chegando à conclusão de que o que caracteriza as produções etnográficas salesianas nos diferentes textos são os recursos do tempo biográfico e da polifonia. O “tom biográfico”, na primeira pessoa, registrava as angústias, os desejos e os questionamentos dos missionários enquanto faziam seus trabalhos de campo. Segundo Montero, esse relato, que explicita a posição de autor- missionário, tinha a intenção de expor um testemunho salvacionista.

8 Em relação à polifonia, ou seja, o acréscimo das vozes indígenas na narrativa, Montero entende que isso revelaria uma estratégia de autoridade etnográfica, como se não houvesse práticas mediadoras dos missionários na representação dos indígenas. No entanto, o olhar minucioso da antropóloga revela que os textos são ecos de um conjunto específico de personagens, pois as narrativas foram produzidas por meio da relação com informantes privilegiados. O que me parece mais interessante, por sua vez, é a preocupação cirúrgica da autora em revelar as intenções dos indígenas em ser informantes dos missionários. Os relatos missionários, percebe Montero, demonstram que os indígenas procuravam se comunicar, mobilizados pela busca de ter recursos materiais e simbólicos (aprendizado da língua portuguesa, por exemplo).

9 No capítulo 5, focado nas monografias que classificam os indígenas como “selvagens”, a autora apresenta uma gramática que indexa as práticas de reprodução social observadas pelos padres em um esquema conceitual próprio do período histórico. Nessa gramática, os esforços dos missionários seriam o de indexar os indígenas em categorias como “tempo mítico”, “totemismo” e “gênesis”, formulando novos esquemas de entendimento comum. Em outros termos, a tradução etnográfica seria uma forma de os missionários e os índios compreenderem um ao outro.

10 Por fim, os capítulos 6 e 7 dão continuidade à análise das grades de leitura dos missionários sobre a alteridade, mas demonstrando as transformações advindas pelos períodos históricos subsequentes e articulando esses novos discursos diante de novos interesses e ações missionárias. Nesse sentido, as condições históricas são de fundamental importância na análise textual das monografias. Entendo que esse é o principal insight da obra de Montero, na medida em que permite abrir um leque de possibilidades para pensar os missionários como sujeitos históricos e mutáveis, algo relativamente negligenciado por parte da análise antropológica. O leitor não deve se assustar pela quantidade de páginas.

11 O livro é rico em ilustrações, que ocupam mais de 160 páginas, o que demonstra um interesse editorial em não reduzir as imagens. Estas, entretanto, não são objeto de análise, como a própria autora afirma na introdução, o que faz com que não haja dispositivos textuais que as ancorem às narrativas.

12 Por fim, algumas questões gerais precisam ser comentadas. A primeira decorre da pergunta etnográfica que perpassa por todo o livro — “como os missionários transformaram a alteridade em diferença?”. Em nota de rodapé no quinto capítulo, Montero cita que esses personagens escreveram textos “etnográficos”, ainda que “missionários” (:264). A existência de esforços dos missionários em realizar reflexões sobre inúmeras outras questões, como a teologia missionária, as técnicas de conversão e as narrativas históricas das missões, parece-me indicar que sua ansiedade epistêmica fundamental era justificar e tornar desejável a mudança sociocultural produzida pelas missões. Nesse sentido, “conhecer o outro” era um objetivo incidental para um processo maior. Fica, portanto, a questão de saber se o retrato feito pela autora não

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destaca um aspecto vestigial dentro dos esforços missionários. Se sim, penso que isso deveria ser mais bem dimensionado.

13 Essa consideração de que a obra focaria um aspecto vestigial do empreendimento missionário, por sua vez, leva-me a uma segunda questão, que se trata do tipo de bibliografia e, consequentemente, das ferramentas de análise que a autora utiliza. Categorias como “autoridade etnográfica” (James Clifford) e “invenção da cultura” (Roy Wagner) foram produzidas para textos cujo interesse era compreender a produção dos antropólogos sociais. Roy Wagner, por exemplo, afirma que o livro A invenção da cultura tem propósitos epistemológicos (e não etnográficos). Nesse sentido, entendo ser importante refletir se esse instrumental teórico seria adequado para compreender textos missionários, já que as ferramentas propostas por Wagner e Clifford reservam-se a uma meta-antropologia.

14 Levanto essas questões, mas não tenho o propósito de responder a elas nesta resenha. De qualquer maneira, elas são muito importantes para qualquer cientista social que esteja preocupado em fazer um estudo sobre missões religiosas. Relatos de cunho etnográfico e as semelhanças entre os ofícios de antropólogo e missionário vão povoar a mente de quem se propõe a esse desafio. Montero, por aliar esses dois personagens a partir de ansiedades de conhecimento tão semelhantes, traz uma obra com um grande potencial reflexivo por colocar o missionário como sujeito passível de análise antropológica.

AUTORES

ALEXANDRE JORGE DE MEDEIROS FERNANDES

FD/UnB

Anuário Antropológico, v.40 n.1 | 2015 244

SANSONE, Livio (org.). 2012. A política do intangível : museus e patrimônios em nova perspectiva Salvador : Edufba

Rita de Cássia M. Santos

REFERÊNCIA

SANSONE, Livio (org.). 2012. A política do intangível : museus e patrimônios em nova perspectiva. Salvador : Edufba. 352 pp.

1 “Quem diria que museus, patrimônio, arquivos, arqueologia, memória e tradições pudessem se transformar em instrumento de luta ou em argumentos para a construção de operações comerciais como aquelas que percebemos hoje ?” (:7). Com essa indagação, Lívio Sansone abre o livro A política do intangível, por ele organizado e por meio do qual apresenta aos leitores o quanto surpreendentes podem ser os resultados das investigações sobre a dimensão política do patrimônio imaterial em contextos diversos.

2 Conformado por uma perspectiva que combina pesquisa histórica e etnografia contemporânea, A política do intangível oferece aos leitores um panorama das políticas patrimoniais no eixo Sul-Sul, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX, alcançando os dilemas e debates do início do século XXI. Nesse amplo quadro de investigação, destaca-se o caráter transnacional da obra, com a apresentação de contextos das políticas culturais na Colômbia, no Peru, em Cabo Verde, em Cuba e em diferentes regiões do Brasil, que permitem compreender comparativamente o funcionamento da política de patrimonialização de bens imateriais no período analisado.

3 A leitura transversal dos capítulos mostra como, ao longo do século XX, ocorreu um movimento político semelhante nos países do eixo Sul através do qual se passou da

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criminalização e perseguição às práticas culturais das populações subalternizadas à sua valorização. Inicialmente, tal mudança se deu no escopo do nacionalismo-folclorismo, para depois desembocar numa mercantilização da cultura via turismo. Além disso, o conjunto de textos apresenta a cultura como um espaço de disputas em torno do qual a legitimidade dos movimentos culturais é circunstanciada, transitória e, em muitos casos, dependente do reconhecimento internacional para ser operacionalizada no interior dos contextos nacionais e locais analisados.

4 A política do intangível dá continuidade às reflexões elaboradas por Sansone há mais de uma década, quando iniciou, com outros antropólogos e historiadores, a Fábrica de Ideias. Pensada primeiramente como um curso que buscava fomentar o intercâmbio entre estudantes e docentes de diversas nacionalidades e com interesse na temática dos estudos étnico-raciais, a Fábrica de Ideias foi pouco a pouco ampliando os seus objetivos e tornando-se um espaço de adensamento das reflexões sobre patrimônio, cultura, política e novos contextos de patrimonialização. Essa publicação, por exemplo, resulta do Seminário Internacional Memória, Patrimônio e Identidade, organizado no XIII Curso do Fábrica de Ideias, em 2010.

5 Composta por quinze capítulos, A política do intangível pode ser lida em três linhas gerais. A primeira relaciona-se à análise e às proposições sobre a temática do Museu Digital. Nesse conjunto, podemos apontar os textos de Marcelo Nascimento, Jamile da Silva e Myrian Sepúlveda e o manifesto de Livio Sansone, que permitem definir o conceito de museu digital (MD) e os seus dilemas e desafios no mundo contemporâneo. Com base na experiência do museu digital da memória afro-brasileira, Sansone descreve o seu projeto como a combinação de instrumento de pesquisa, serviço público e agenda política que envolvem a repatriação digital, a doação digital, a etnografia digital, a generosidade e solidariedade digital. O MD é definido por ele como um lugar privilegiado para estimular o uso da memória social pelos grupos subalternizados.

6 O capítulo de Marcelo Nascimento, por sua vez, fornece ao leitor um escopo conceitual importante na diferenciação entre MD e a simples postagem de conteúdos na internet. Não se trata apenas da digitalização de documentos, mas da criação em web dos elementos de um museu, tais como exposição, dimensão preservacionista e patrimonialista, espaço de consagração e rememoração. Ao mesmo tempo, Nascimento destaca o caráter singular dos MDs : imaterialidade, ubiquidade, provisoriedade, hipertextualidade e interatividade. Myrian Sepúlveda lembra que os MDs podem recuperar memórias não preservadas por meio da investigação de acervos não institucionalizados. Para Jamile Borges, os MDs são a possibilidade de construção de uma nova geopolítica do conhecimento através da qual os subalternizados podem acessar e reinventar a memória construída sobre eles, ao mesmo tempo em que desafiam o consagrado papel dos antropólogos de falar por eles. Ainda retomando o artigo de Sepúlveda, os museus (sejam eles digitais ou presenciais) possuem a capacidade de suscitar lógicas indenitárias, de pertencimento e inclusão ; e, nisso, reside o seu potencial criativo.

7 Em uma segunda linha, podemos mencionar os capítulos que analisam a trajetória histórica de movimentos culturais e artísticos apontando para uma direção comum : da perseguição e proibição a elementos nacional-folclóricos à ressignificação, no contexto contemporâneo da política de patrimonialização dos bens imateriais, como instrumento de luta política. Desse segundo conjunto fazem parte os textos de Antônio Evaldo sobre o bumba-meu-boi, no Maranhão. O autor elege a festa do bumba-meu-boi

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como elemento privilegiado de observação do processo de conformação da colonização francesa do Maranhão, como tradição local inventada pelas elites intelectuais e políticas. O autor demonstra ainda como esse elemento passou a ser submetido a novas significações no contexto atual.

8 Em outro capítulo dessa linha, Agrimaria Santos analisa o caso dos Paparutas, no Recôncavo Baiano. Através de sua observação, vemos os elementos da cultura popular e negra serem utilizados como meio de revitalização do município de São Francisco do Conde. Santos apresenta a constituição de identidades com base em heranças culturais compartilhadas e não em critérios étnicos. São as dificuldades enfrentadas num ambiente de pobreza e de pertença a um espaço socialmente compartilhado que constituem a unidade social no contexto analisado. Por fim, há o texto de Ana Rita Machado sobre a festa do Bembé, também no Recôncavo Baiano, que, inicialmente realizada em comemoração ao fim da escravidão, passa a conjugar elementos do sagrado e do religioso. Detendo-se na passagem entre um domínio e outro, Machado percebe no Bembé o elemento de comunhão que permite reinscrever as memórias sobre essa prática.

9 Na terceira e última linha, temos o conjunto de capítulos que oferecem ao leitor o contraponto internacional aos contextos nacionais analisados. Fazem parte dessa linha os textos de Pedro Alexander Hernández sobre Cuba, no qual se analisa a trajetória de algumas figuras significativas, como Antonio Maceo, para explorar o não uso do patrimônio documental existente na ilha sobre o pensamento negro e a questão racial. O capítulo de Gláucia Nogueira, sobre o Batuko de Cabo Verde, examina a passagem desse gênero musical restrito e tradicional à mercantilização por meio da difusão e internacionalização. No contexto das políticas culturais contemporâneas, a ressignificação do Batuko, longe de desautorizá-lo, revela a força e pujança da cultura cabo-verdiana. O texto de Karen Bernedo, sobre o Peru, estuda o caso do museu da memória da tortura (Museo Itinerante de Arte por la Memoria) e demonstra o potencial contemporâneo dos museus. Nesse caso em particular, as memórias subalternas, até então silenciadas, ganham usos performáticos.

10 Compõem ainda essa linha os textos de Sérgio Andrés Sandoval, que busca compreender as trajetórias dos irmãos Zapata Olivella na Colômbia e sua busca pela recuperação e conformação de uma tradição cultural colombiana baseada, sobretudo, nos elementos negro e indígena. A recuperação histórica da trajetória familiar vem a contribuir ainda para a compreensão dos processos de formação identitários nacionais em uma perspectiva mais particularista. Ainda sobre a Colômbia, são analisadas as conexões contemporâneas entre turismo e patrimônio que permitem entrever as disputas em torno das políticas nacionais e das demandas mais particulares. No capítulo de Carlos Andrés Meza, conhecemos os meios pelos quais, no contexto colombiano, o processo de espetacularização dos elementos afro tem invisibilizado o conflito em torno dos bens necessários aos grupos. O contexto indígena colombiano, por sua vez, nos é apresentado por Margarita Chaves e Giselle Nova, que mostram como a idealização do indígena e do mundo rural continua a operar como critério de validade no reconhecimento dos grupos autóctones. Reiteram-se assim os limites das políticas que operacionalizam a cultura como elemento de regulação e não de compreensão da dinâmica social.

11 O ponto alto do livro sem dúvida consiste na precisa combinação entre a abordagem histórica e a antropológica, com um olhar minucioso e sensível, acerca das práticas

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patrimoniais em contextos e períodos variados. A política do intangível constitui uma importante contribuição ao campo de estudos do patrimônio e vem somar-se às reflexões empreendidas por seus autores e coordenadores, além de demonstrar a rentabilidade de projetos como o da Fábrica de Ideias, que desde 1998 produz significativas reflexões acerca dos domínios da política patrimonial.

AUTORES

RITA DE CÁSSIA M. SANTOS

PPGAS/MN/UFRJ

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VICENTINI, Cláudia. 2014. Corpo fardado : adoecimento mental e hierarquia na Polícia Militar goiana Goiânia : Editora UFG

Vinicius Prado Januzzi

REFERÊNCIA

VICENTINI, Cláudia. 2014. Corpo fardado : adoecimento mental e hierarquia na Polícia Militar goiana. Goiânia : Editora UFG. 152 pp.

1 Corpo fardado : adoecimento mental e hierarquia na Polícia Militar goiana é o fruto mais maduro colhido por Cláudia Vicentini de sua dissertação de mestrado, defendida em 2012 no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás. Trata-se de obra sólida e de fôlego, cujo conteúdo é atravessado por abordagens antropológicas perspicazes nas discussões sobre saúde, violência e instituições. O foco etnográfico na Polícia Militar, vista a partir de dentro, incorpora ainda um viés temático que vem ganhando relevância acadêmica nas últimas décadas. Refiro-me aos estudos com elites e com grupos up, cada vez mais ouvidos desde o seu ponto de vista nativo, concordemos ou não com ele.

2 A principal contribuição de Corpo fardado reside na perspectiva apresentada por Vicentini ao lidar com os sujeitos que conviveram com ela. Aproximando- se da antropologia da saúde, a antropóloga procura desnudar os processos de adoecimento mental vivenciados por policiais militares, argumentando que suas condições e suas experiências estão diretamente relacionadas ao modo como se estrutura a Polícia Militar (PM) brasileira, às suas regras e normas formais e informais, aos seus códigos ditos e àqueles que permanecem nas entrelinhas.

3 Vicentini apresenta seu trabalho em três capítulos, uma introdução e uma seção última em que se despede dos leitores com considerações finais. Atravessando essa divisão, a

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obra é permeada por três focos argumentativos : o primeiro, relacionado ao próprio trabalho de campo da autora ; o segundo, no qual são trazidos à tona o histórico e a constituição da Polícia Militar no Brasil, bem como outros estudos etnográficos de temática similar ; e, por último, o foco mais relevante do livro, no qual a antropóloga se aprofunda em seu contexto etnográfico, conectando seus dados de campo aos aspectos mais englobantes do universo em que se inseriu. Agregados, esses focos compõem um quadro analítico revelador e sociologicamente completo dos meandros do mundo policial no Brasil.

4 A autora entrevistou e ouviu policiais militares em processo de atendimento psiquiátrico no Hospital da Polícia Militar de Goiás (HPM/GO), principal locus de seu trabalho de campo : homens à espera de laudos médicos e burocráticos responsáveis por direcionar seus futuros na corporação militar. Estando em situação liminar, esses cabos e soldados — as posições mais baixas na pirâmide hierárquica da PM — não estão ali para serem tratados. Aguardam tão somente pareceres, encaminhamentos periciais, uma vez que possíveis tratamentos só serão feitos posteriormente, se houver recomendação do saber psi que ali direciona as relações sociais. Enquanto encaram essa situação, por indicação expressa de alguém hierarquicamente superior, ou mesmo por iniciativa própria, esses policiais não podem formalmente avançar nos degraus hierárquicos da corporação, nem mesmo usar suas armas.

5 Tomando como base a categoria de sofrimento social dos escritos de Arthur Kleinman, Veena Das e Margareth Lock, segundo a qual os processos de angústia, dor e doença devem ser encarados também sob o prisma sociológico, porque encerram contextos políticos e institucionais mais amplos, a antropóloga expõe quatro tensões constituintes do exercício policial militar no país e traça com precisão a vivência liminar dos policiais militares aos quais teve acesso em sua etnografia. A primeira delas advém da hierarquia e da disciplina fundantes da estrutura organizacional da Polícia Militar. Cabos e soldados, protagonistas etnográficos da obra, dificilmente conseguem ascender na carreira, dados os inúmeros obstáculos institucionais que dão a impressão, a quem está nos degraus inferiores da corporação, de que dali é impossível progredir. Se estão passando por processos periciais, então, o que é hierarquicamente improvável se torna burocraticamente impossível.

6 A segunda tensão envolve o relacionamento da PM com o Exército brasileiro. Juridicamente, policiais militares estão submetidos às decisões e regras do Exército, sem que sejam beneficiados com recursos e benesses simbólicas compartilhadas por aqueles que compõem “de fato” o corpo militar. A terceira tensão se dá entre militares e não militares, entre aqueles que integram a corporação responsável pela segurança pública ostensiva e nós, os da rua, sujeitos comuns quase sempre vistos, alguns mais do que outros, como desorganizados e transgressores da lei. Por último, estão os policiais militares — e aí se inserem também as policiais, parcela percentualmente mínima no quadro geral da PM —, sujeitos ao ideal de masculinidade compartilhado entre os que ali se formam e preconizado pelas instâncias superiores da corporação. Ser policial é ser guerreiro, é ser acima do tempo, como se diz nativamente, enfrentar tudo e todos sem demonstrar fraqueza ou dor. Nesse sentido, estar na condição de paciente do HPM/ GO, ainda mais como paciente demandante de atendimento psiquiátrico, é não ter resistido às pressões rotineiras do fazer policial.

7 Aqui entram em cena as categorias de estresse e o significado social da farda no universo militar. Em suas narrativas, ao tentarem explicar o porquê de estarem ali ou o que

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esperam da situação em que se encontram, os policiais recorrem ao estresse. Se estão doentes, agrediram e torturaram alguém ou desrespeitaram indevidamente seus superiores, é porque estavam estressados. A fala de um dos interlocutores da autora é emblemática : “É o trabalho, a rotina. Vai indo assim e chega um ponto que a pessoa estoura. O estresse do serviço. Nem a farda eu queria vestir mais, queria desaparecer […]. A hierarquia é pesada, a disciplina, o regime, a gente tem que obedecer e não tem papo” ( :127).

8 Ao se dizerem estressados, os policiais militares procuram se livrar do peso do que fizeram e, sobretudo, encaixar-se no molde simbólico de masculinidade ali compartilhado. Não foi cometido esse ou aquele ato violento por fraqueza ou por conta de comportamentos considerados impróprios para alguém que se entende como viril ; tudo passa, em razão do estresse, a ser fortuito e casual. Afastam-se os policiais também de serem encarados como indivíduos doentes, como querem fazer crer os comandos superiores da PM, ao tentarem isentar a instituição da qual fazem parte dos conflitos presentes entre aqueles que a constituem.

9 Outro ícone do contexto social vivido pelos policiais militares, a farda também é incorporada aos processos de adoecimento. Ela representa a incorporação do ethos policial, a passagem da banalidade do mundo comum ao protagonismo (relativo) exercido como persona da segurança pública. Pode-se não estar vestindo a farda, que ainda assim ela estará encravada no policial. O uniforme policial é, no limite, para os indivíduos que o trajam, a tradução física dos ditames e das normas pregados nos códigos da Polícia Militar. A farda, a Polícia Militar, está colada aos corpos dos indivíduos.

10 Algo a mais pode ser entendido do estresse e da farda, eu diria, e é com base na análise dessas noções nativas que a autora constrói seu principal argumento. Além de integrar um conjunto discursivo de resistência, tais noções dizem sobre o que é a Polícia Militar no Brasil. Atribuindo-se protagonismo às narrativas dos policiais militares, fica mais nítido que as circunstâncias atuais do mundo policial estão atreladas ao seu exercício profissional e aos constrangimentos de ser membro de uma instituição como é a PM. A violência e a repressão de suas relações internas e o contexto de violência e agressividade vivido nas ruas engendram potenciais situações de estresse, fortalecendo iniciativas violentas e desmedidas de cabos e soldados que estão em oposição direta a qualquer princípio básico de proteção à vida e de direitos humanos.

11 Destaco o panorama traçado por Vicentini em sua obra. O sofrimento social dos policiais militares é enraizado historicamente ; não custa lembrar que a corporação foi emoldurada em suas linhas mestras por agentes políticos do período ditatorial. Ainda que tenham sido incorporados elementos entendidos como democratizantes ao seu corpo de membros, como conferências e audiências públicas, ou mesmo iniciativas de policiamento comunitário, a PM continua patinando em episódios de violência brutal e abuso de autoridade. Isso porque, como mostra a pesquisadora, a violência é o fluido que dá energia à ação policial no Brasil. Toma-se aqui o cuidado metodológico devido — e, por que não, também político — de não estabelecer um recorte maniqueísta nesse argumento, colocando os policiais como simples torturadores e agentes exclusivamente violentos. O interesse revelado na obra, por assim dizer, nas formas de organização da instituição policial, em suas regras ditas e não ditas, permite a Vicentini ir além. A violência deixa de ser um aspecto individual para se configurar como estrutural e principiológica. Em um ambiente fortemente marcado pela violência, por hierarquia

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rígida e desigualdades internas, por exigências restritas de gênero e de comportamento, não se torna difícil que as coisas “saiam do controle”, continuando, ainda assim, a ser inaceitáveis.

12 Corpo fardado é, portanto, obra imprescindível para compreendermos o policial goiano e a Polícia Militar com base em seu próprio mundo. Trata-se de uma etnografia reveladora, capaz de tirar-nos da comodidade acrítica tão frequente nos debates sobre as instituições policiais. É uma demonstração ímpar, enfim, de que a antropologia e as boas reflexões etnográficas têm muito a contribuir para entendermos os mundos e os fardos que nos envolvem.

AUTORES

VINICIUS PRADO JANUZZI

PPGAS/UnB

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BORGES, Antonádia (org.). 2014. Antropologia : razão e poder na pesquisa etnográfica contemporânea Brasília, DF : Thesaurus

Andreia Vicente da Silva

REFERÊNCIA

BORGES, Antonádia (org.). 2014. Antropologia : razão e poder na pesquisa etnográfica contemporânea. Brasília, DF : Thesaurus. 190 pp.

1 Antropologia : razão e poder na pesquisa etnográfica contemporânea é uma coletânea de artigos escritos como resultado das discussões propostas no curso “Epistemologia da Antropologia”, realizado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia na Universidade de Brasília em 2013. Antonádia Borges, professora do curso e organizadora do livro, é quem faz sua introdução e primeiro capítulo. Os demais seis capítulos foram escritos por alunos do mesmo curso.

2 As reflexões desse volume foram desenvolvidas como uma autocrítica do fazer antropológico, tendo como norteador o conceito de “embruxamento”, originalmente associado à tônica capitalista da despolitização. Stengers e Pignarre, propositores dessa categoria, explicam que o feitiço do capitalismo tem o poder de imobilizar o pensar e paralisar a ação coletiva organizada. A sua magia seria responsável por nos resignar diante de regras com as quais não concordamos ou para as quais nem mesmo cogitamos buscar uma explicação. Não duvidamos de seus métodos de enredo, já que os interpretamos como representações e os desacreditamos como ilusões. Na verdade, aquilo que pensamos ser a fonte do nosso saber — o uso da razão — é o que acaba por finalizar a nossa captura em suas teias, provocando uma espécie de entorpecimento.

3 Inspirados por essa discussão, os autores dos capítulos do livro propõem estratégias de resistência àqueles “feitiços” que estão ancorados em nossa tradição conceitual

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disciplinar. Para tanto, certas situações-limites do trabalho antropológico são problematizadas e questionadas. O objetivo é sempre encontrar saídas para labirintos teórico-metodológicos surgidos ao longo dos trabalhos de campo que foram realizados com diversos atores e em diferentes lugares. Para tanto, partem de uma concepção de razão e poder que, por um lado, rechaça a separação entre sujeito e objeto e, por outro, aposta na simetria entre sujeitos de conhecimento.

4 Arenas de toque entre os textos servem para encorajar a discussão e, ao mesmo tempo, instigar a dúvida — como parece ser o desejo dos autores ao escreverem essas contribuições interessantes para provocar o auto-olhar de todos nós. As ideias de Gabriel Tarde, Bruno Latour, Alfred Gell, Tim Ingold e Eduardo Viveiros de Castro são acionadas para fomentar debates nos quais paradigmas clássicos modernos da antropologia são postos à prova. A contestação de dualismos — como natureza e cultura, estrutura e prática, discurso e ação, corpo e mente — é feita com base em situações duvidosas e inesperadas enfrentadas no cotidiano das pesquisas antropológicas.

5 O ponto central de todos os textos é pensar a busca da “verdade” como proposta de uma antropologia moderna, principalmente de paradigma durkheimiano, como um dos principais entraves contemporâneos da nossa disciplina. A procura incessante pela decifração, pela referencialidade, pelo afastamento, pela purificação das emoções é debatida como jaula que aprisiona nossos sentidos. Ver, ouvir, falar, tocar, caminhar : a partir de situações de encontro com anfitriões humanos e não humanos, cada um desses territórios dos sentidos é acionado a fim de nos convidar a repensar a nossa entrada no mundo.

6 Por exemplo, no artigo de abertura do volume, Antonádia Borges descreve a incredulidade com que ouviu seu interlocutor lhe contar a respeito de um sonho que enunciava a morte deste último. Ela reconhece que essa falta de comprometimento, essa gafe cometida por ela, é da mesma seara daquelas que cometemos ao pensar as histórias que ouvimos em nosso cotidiano de pesquisa como grandes “ilusões”. Neste ponto, o debate centra-se na referencialidade automática e no apego aos protocolos atemporais de depoimentos e entrevistas. Estes últimos são vistos como armas de um auto-ataque impetrado àquilo que acreditamos estar construindo com a utilização de nossas teorias e métodos de pesquisas. A proposta da autora é “levar a sério” o que ouvimos dos sujeitos com os quais conversamos e não tentar alimentar um roteiro construído com base em sequências lógicas de um discurso científico naturalista moderno.

7 Nesse mesmo caminho, no segundo capítulo, Simone Soares reconta as experiências de Manuel, um pescador com o qual aprendeu muitíssimo, em Raposa no Maranhão, sobre o poder das águas e a atração da tarrafa (um instrumento tradicional de pesca). Ela argumenta a respeito da crença na nossa autoridade interpretativa constituída por um pretenso poder do saber científico. Assim como fez Borges, Soares questiona os métodos antropológicos de busca pela informação que muitas vezes propõem porquês e discursos que só nos distanciam da compreensão do que está sendo falado e demonstrado pelos atores. A aposta em um “saber localizado” e em “conversas compartilhadas” seriam saídas para a produção de um tipo de conhecimento que se constitui na prática, e não a priori, com perguntas planejadas e discursos engessados. A autora sugere um redirecionamento do olhar buscando o foco dos interlocutores, que

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não necessariamente estão olhando na mesma direção proposta pelo campo teórico da disciplina.

8 É a mesma ideia de contestação do poder conferido ao cientista social que fez Lucas Amaral propor dar-se ao ridículo. Para tanto, o autor conta sua experiência com o uso das substâncias psicoativas huni e rumã durante um ritual realizado em Brasília sob a liderança de jovens xamãs do Acre. Ele debate o reconhecimento da agência de seres sagrados como ponto de partida para entender suas experiências, ou melhor, “seu compartilhamento da energia do universo” (:83). Ao mesmo tempo, conversa a respeito dos parâmetros de distanciamento antropológico que tornariam um trabalho legítimo quando narra as dificuldades que teve para reordenar ideias experimentadas em sua participação observante nas “mirações”. Ao se declarar a favor de uma não purificação do conhecimento antropológico, ele nos desafia a deixar transparecer dúvidas e contradições de memórias que não terão necessariamente uma sequência lógica, em termos clássicos, mas que ainda assim são interessantes para pensar e relacionar, ou para se deixar movimentar.

9 Outro viés importante das críticas da coletânea é a inconformação com os padrões metodológicos de reconhecimento do campo de trabalho. Esse ponto instiga Rafael Lasevitz, que escreveu um texto inspirador. Ele reconta suas experiências ao vasculhar a feira da Kantuta, em São Paulo, um reduto popular de bolivianos. Ao passear pelas barracas, observar as pessoas, ouvir suas músicas, ele debate a inquietação que mora em todos nós quando escolhemos nossos objetos de estudo buscando a originalidade (: 129) ou, em outros termos, disputando poder no campo disciplinar.

10 O fato é que, na tentativa de fugir das repetições, dos lugares-comuns, o autor se perde no tempo e no espaço — assim como Tatiane Duarte descreve ter se perdido no Congresso Nacional ao procurar seus interlocutores integrantes da Frente Parlamentar Evangélica. Ambos, Lasevitz e Duarte, cada um à sua maneira, com seu estilo e com as implicações próprias do seu terreno, mostram que é justamente nesse desnortear e no desespero causado pela perda de referências que se constrói a tonalidade, o compasso, o ritmo. Nesses casos, a saída proposta para os enlaces que nos aprisionam em campo (e na teoria) é a assunção da parcialidade do nosso ponto de vista. É reconhecer o tratamento da alteridade como um processo contínuo. Esse ponto também é tocado por Fausto Alvim no sexto capítulo. No caso deste último autor, a sugestão para fugir da caixa que nos aprisiona é assumir que a realidade é complexa, multifacetada, nebulosa e aberta a múltiplas visões, condições e experimentações.

11 Por fim, e não menos interessante — aliás, um dos pontos altos do livro —, no último capítulo Aline Balestra nos convida a usar a ideia de “sentir com os olhos” (:165). Ela se baseia na experiência de frequentadoras de academias de ginástica em São Paulo para debater os dualismos corpo e mente, beleza e saúde como uma forma de contestar visões teleológicas generalizantes. Ao propor usar um corpo que se movimenta e se relaciona com o ambiente, Aline nos encoraja a uma atitude etnográfica aberta à possibilidade de dissolver as fronteiras conceituais e repensar a assimetria entre sujeitos. Nesse sentido, a relação entre o nosso conhecimento e o dos nossos anfitriões — para usar o substantivo proposto na introdução por Borges como uma alternativa crítica à expressão “interlocutores” (:15) — é construída quando nos permitimos pensar o mundo como ambiente ampliado no qual os elementos são tomados como entidades atuantes. É uma “produção de subjetividade” que refuta consensos genéricos e se propõe criativa a partir de um caráter especulativo que encoraja à experiência.

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12 Enfim, ao contestar teorias e metodologias de ação, ao propor indagações, ao incentivar a dúvida, o livro pode inspirar tanto estudantes quanto antropólogos já titulados. Afinal, com base em uma bibliografia atual e em questões disciplinares em debate, tenciona quebrar a noção de poder como um domínio do pensador e propõe uma revisão da relação observador e observado. Incentiva-se o compartilhamento das ideias e dos sentimentos como possibilidade de encontrar não uma verdade, mas um sentido para o nosso ofício, que se pensa em convívio com agências variadas em tempos e espaços diversos. Contudo, ao criticar os métodos etnográficos e ao enterrar as certezas teóricas, Antropologia : razão e poder nos instiga a uma busca que todos nós já sabemos (e como é difícil esse reconhecimento) que não será possível alcançar, embora o interessante seja poder tentar trilhar…

AUTORES

ANDREIA VICENTE DA SILVA

Unioeste

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BRAZ DIAS, Juliana & LOBO, Andréa de Souza (orgs.). 2012. África em movimento Brasília : ABA

Nilton Rodrigues Junior

REFERÊNCIA

BRAZ DIAS, Juliana & LOBO, Andréa de Souza (orgs.). 2012. África em movimento. Brasília : ABA. 299 pp.

1 Circulação, trânsito, fluxo e mediação são alguns dos conceitos que perpassam pelo livro organizado por Juliana Braz Dias e Andréa de Souza Lobo, da Universidade de Brasília. A obra reúne dezesseis antropólogos e antropólogas, divididos em quatro partes : (i) “Movimento como valor”, (ii) “Fluxos e refluxos”, (iii) “Projetos migratórios, pertencimento e exclusão” e (iv) “Metodologias em trânsito”. Falar que todos os capítulos estão baseados em dados etnográficos parece- nos “chover no molhado”, afinal, são experiências etnográficas, sensibilidades de idas e vindas. São antropólogos e antropólogas que circulam. Dois textos abrem a coletânea e dão o timbre do livro. No primeiro, “Sobre fluxos e(m) contextos africanos”, as organizadoras lançam o desafio de construir “novas visões sobre o espaço, o tempo e os processos de classificação” (: 10). E com feliz argumentação colocam os textos que seguem em movimento. O segundo, de Wilson Trajano Filho, “A África e o movimento : reflexões sobre os usos e abusos dos fluxos”, apresenta uma reflexão, no mínimo instigante, a respeito dos usos e abusos da ideia de “fluxo”, vocábulo que aciona alguns conceitos : “identidades múltiplas ou situadas, culturas híbridas, fronteiras porosas e flexíveis” (:24). Para o autor, não há uma particularidade nos fluxos da África, que costumam ser abordados sob quatro enganos. Primeiro, considerar a globalização como um rompimento absoluto das territorialidades. Segundo, tratar os fluxos como se só ocorressem unidirecionalmente, da periferia para o centro. Terceiro, enfatizar “a primazia dada aos

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fluxos intersocietários de larga escala” ( :33). Quarto, pressupor uma dissimetria entre a África em movimento e os seus observadores e suas sociedades imóveis.

2 O capítulo de João Vasconcelos, que abre a parte I — “Manera, essMuv ? : a mobilidade como valor em São Vicente de Cabo Verde” —, investiga a mobilidade na ilha cabo- verdiana de São Vicente : “um ingrediente central e constante da forma de vida de boa parte da população” (:49). Aponta para a incompletude da pessoa que não passa pela experiência da mobilidade, sendo a emigração a “forma mais aventureira de mobilidade” (:56). Para a maioria dessa população, “estar parado não é bom” (:58).

3 Andréa de Souza Lobo, em “Vidas em movimento : sobre mobilidade infantil e emigração em Cabo Verde”, apresenta a mobilidade infantil como elemento estruturante, que coloca o fluxo para além das emigrações e dos deslocamentos entre fronteiras. Tanto nesse capítulo como no anterior, de João Vasconcelos, o argumento é o de que o movimento cabo-verdiano é mais do que uma ação de cruzar fronteiras. Crianças que brincam de passar de uma casa para outra, que levam comida e trazem sentido, esse é o tema do texto, que não nega que a migração seja um fenômeno sociológico importante para entender Cabo Verde, mas afirma que “a organização familiar local é permeada por signos de mobilidade” (:67) — daí a compreensão de que os cabo-verdianos vivem de “malas prontas”.

4 Juliana Braz Dias, em “Música cabo-verdiana, música do mundo”, expõe de forma magistral de quais maneiras a música, considerada um elemento permeável às fronteiras étnicas, culturais e geográficas, não é aceita de modo inflexível, afirmando que “nem todos os trânsitos sonoros são possíveis, aceitos ou desejados” (:87). A autora apresenta as mornas, ritmo símbolo da nação cabo-verdiana, como a música que mais possibilita as mobilidades, pois mais dialoga com as representações musicais ocidentais. Não pude deixar de pensar no nosso samba ao ler que “o Ocidente cria, portanto, a ideia de ‘música do mundo’, mas o faz reforçando uma visão muito particular sobre o mundo” (:91).

5 Ramon Sarró e Joana Santos, no capítulo que abre a Parte II — “Gênero, missão e retorno : passado e futuro da Igreja Kimbanguista em Lisboa” —, tratam dos kimbanguistas, um grupo religioso fundado por Simon Kimbangu, do Congo. Trabalhando com uma antropologia do evento, os autores descrevem a “volta” do corpo de Mamá Mwilu, esposa de Simon, para a cidade santa de N’Kamba, sede mundial da igreja. Esse retorno vai ser acionado para explicar os fluxos dos fiéis de Lisboa em direção à África, fluxo esse marcado, cosmologicamente, pelo retorno de todos os africanos da diáspora : “prepara-te para o regresso’ constitui um mote da Igreja” (:125).

6 Milton Guran, no capítulo “O refluxo da diáspora africana em perspectiva : Angola, Benim, Togo, Nigéria, Gana, Libéria e Serra Leoa”, traz uma bela exposição sobre os agudás, os afro-brasileiros que voltaram para a África. Esse retorno enfrentou a incompatibilidade com a terra natal, necessitando da elaboração de memórias feitas de uma bricolagem de culturas.

7 Em “Uso e abuso do afro do Brasil na África”, Lívio Sansone lembra que esse continente “é uma entidade cujas fronteiras e geografia são tão físicas quanto políticas, românticas e morais” (:151). Partindo dessa premissa, apresenta-nos uma África construída de dentro para fora e de fora para dentro, construção que, mesmo assentada em projetos antirracistas e identitários, transforma a África em um continente estático, favorecendo as interpretações pré ou antimodernas.

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8 O capítulo que abre a Parte III é de Lorenzo Macagno — “Os ‘chineses’ de Beira, Moçambique : itinerários de uma dispersão”. Em um belo e arrojado texto, o autor apresenta os luso-afro-chineses por meio da descrição do Chee Kung Tong Club, uma associação beneficente criada em 1923 em Beira, Moçambique, para “promover o bem- estar moral e material da comunidade chinesa” (:179). Esse capítulo nos possibilita pensar as relações dos projetos identitários com os projetos de Nação.

9 Kelly Silva, autora de “Sobre pretéritos e afetos, algumas inquietações e provocações”, dispõe-se a refletir sobre o texto de Lorenzo Macagno nesta coletânea e sobre o filme de Teresa Prata Terra sonâmbula, baseado na obra de Mia Couto. Sua leitura utiliza-se da chave dos afetos, não desprezando, entretanto, os aspectos das estruturas de poder. Ao concluir, afirma que “tanto no texto de Lorenzo Macagno como no filme de Teresa Prata os afetos, as emoções são meios de construção de certas ordens e formas de subvertê-las a um só tempo” ( :207).

10 Pilar Uriarte Bálsamo, em“Diásporaafricanaenaviosdecarganamodernidade : um estudo das migrações irregulares desde a África Ocidental ao Cone Sul”, faz- nos navegar com alguns migrantes clandestinos entre a África Ocidental e o Cone Sul. Para a autora, a clandestinidade, quase sempre feita em navios de carga, atualiza simbolicamente as representações da escravidão africana e da violência da diáspora desse continente. Alguns significantes — viagem, aventura, fuga, luta pela sobrevivência, acidente — são acionados nas representações desse movimento migratório.

11 O capítulo de Claudia Bongianino, Denise da Costa e Sara Morais, “Para ultrapassar o mar”, abre a Parte IV abordando o mar como lugar de trânsito e de perda, representado nas imagens. As autoras refletem sobre as linguagens cinematográficas surgidas na África pós-colonial. Tratam da relação do cinema e das independências das nações africanas. Para elas, “falar dessas imagens é falar também, e principalmente, de muitas vidas em fluxo” (:243).

12 Antônio Motta, em “Da África em casa à África fora de casa (notas sobre uma exposição em trânsito)”, trata de uma exposição no Museu da Abolição, no Recife, que juntou afrodescendentes, simpatizantes e africanos e que revelou uma arena de disputa de significados atribuídos à África. Se para os africanos acionar os ideais modernos, globalizantes e cosmopolitas era o principal objetivo, para os afro-brasileiros, era acionar a ideia de sobrevivência de uma africanidade em terras brasileiras. Esse embate revelou uma disputa em torno das representações da África, que os africanos ambicionam “plural e dinâmica, sincronizada com fluxos culturais globalizados” (:266).

13 Fechando o livro, João de Pina-Cabral apresenta a obra de Henri-Alexandre Junod em “Um livro de boa-fé ? A contraditoriedade do presente na obra de Henri- Alexandre Junod (1898‑1927)”. Conforme o autor, “Junod é o pai incontestado da antropologia da África Austral” ( :271). Junod escreveu, além de trabalhos etnográficos, alguns romances ; é sobre esses textos que Pina-Cabral se debruça. Na obra de Junod, há uma incompatibilidade entre dois mundos : paganismo e civilização, África e Europa, negros e brancos. Sua construção narrativa arrepia- nos, pois seu argumento está baseado na ideia de que a civilização, leia-se Europa, não só é superior, mas deve manter-se “pura”, não havendo, portanto, em sua obra, a possibilidade de mistura. Entretanto, Pina- Cabral adverte : “é fácil criticar Junod como preconceituoso, segregacionista, racista até ; é menos fácil ver que não nos libertamos ainda dos esquemas conceptuais que moldavam o seu mundo” ( :295).

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14 O livro nos coloca em movimento. Fluxos de saberes, fluxos de inquietações, fluxos que nos desalojam e nos confrontam com as ideias e os ideais civilizatórios ocidentais. Cada leitor, estudante, professor e o público em geral encontram no livro uma fonte de conhecimento da África, de seus fluxos ; mas encontram também a possibilidade de pensar seus fluxos etnocêntricos, territoriais e simbólicos. Cada autor soube com maestria provocar o leitor a esses movimentos, afinal, “estar parado não é bom” ; bom é “estar de malas prontas”.

AUTORES

NILTON RODRIGUES JUNIOR

Faculdade CNEC da Ilha do Governador

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BORGES, Antonádia Monteiro ; MACHADO, Lia Zanotta ; MOURA, Cristina Patriota (orgs.). 2014. A Cidade e o Medo Brasília : Verbena/Francis

Krislane de Andrade Matias

REFERÊNCIA

BORGES, Antonádia Monteiro ; MACHADO, Lia Zanotta ; MOURA, Cristina Patriota (orgs.). 2014. A Cidade e o Medo. Brasília : Verbena/Francis. 184pp.

1 A cidade e o medo é uma coletânea que possui temática extremamente atual : o medo e as maneiras como ele é vivenciado, discutido e representado em diversas situações, segundo as reflexões de pesquisadoras e pesquisadores pertencentes a regiões geográficas, contextos e perspectivas acadêmicas diferentes.

2 Em 2007, as autoras e pesquisadoras do Laboratório de Vivências e Reflexões Antropológicas : direitos, políticas e estilos de vida (LAVIVER) organizaram o Seminário Internacional Medo : Perspectivas Urbanas, em Brasília. Esse evento foi composto pelas mesas-redondas “Construções Culturais dos Direitos, Medos e Violências” e “Imagens Públicas do Medo e da Insegurança”, bem como pela exibição do filme Cidade Sitiada – Seus Fantasmas e seus Medos (Eckhart & Rocha, 2000). As apresentações feitas dentro dessa programação serviram de base para as três sessões que compõem o livro. Nelas, profissionais habilitados nas áreas de Antropologia, Geografia, História, Saúde Coletiva e Sociologia trouxeram reflexões sobre pesquisas realizadas na Argentina, África do Sul e nas cidades brasileiras de Goiânia, Porto Alegre e Rio de Janeiro, bem como no Distrito Federal (DF) e em munícipios como Santo Antônio do Descoberto e Cidade Ocidental, que compõem o chamado Entorno do DF.

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3 A primeira seção do livro é composta por três capítulos que, com base em perspectivas diversas, contam histórias em que o medo aparece como figura central. Em “Medo, insegurança e violência”, o saudoso Gilberto Velho revisita as origens do medo no Brasil até a contemporaneidade, período em que a “cultura da violência”, em junção a outros fatores, contribui para a “consolidação de um modo de vida em que a possibilidade de agressão, roubo, sequestro e assassinato passam a fazer parte da rotina de vida de boa parte da população” (:20‑21). Vera Malaguti Batista, em “A memória do medo na cidade do Rio de Janeiro”, reflete sobre o medo nessa cidade na virada do século XX para o século XXI, tendo como hipótese norteadora que “a difusão do medo, do caos e da desordem serviu sempre para detonar estratégias de disciplinamento e controle de massas empobrecidas […] e não foi abalado nem pelo fim da escravidão, nem pela proclamação da república e nem na transição democrática” (:23). Em “Cidade sitiada, o medo como intriga”, Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert apresentam pesquisa conduzida há alguns anos que culminou no filme etnográfico Cidade sitiada – seus fantasmas e seus medos. As autoras enfocam a “cultura do medo” acompanhando a trajetória de quatro pessoas que, apesar de residirem na mesma cidade, possuem trajetórias totalmente diferentes.

4 A segunda seção do livro apresenta pesquisas conduzidas por três cientistas sociais que refletem sobre medo, mudanças e transformações em espaços urbanos. Em “O sentimento de insegurança e o medo na Argentina”, Gabriel Kessler discorre sobre as várias dimensões e hipóteses relacionadas ao chamado campo da “insegurança subjetiva” (:56), percebidas com base em pesquisa empírica conduzida em diferentes locais da Argentina entre 2004 e 2006. Em “Bunkers para a psique : como comunidades cercadas têm permitido a privatização do apartheid na África do Sul democrática”, Richard Ballard analisa as estratégias espaciais utilizadas por uma parcela da população branca sul-africana com o intuito de criar “zonas de conforto” (:70), ou “apartheid privatizado”(:84), como denomina o autor. Cristina Patriota de Moura reflete sobre o medo sob a perspectiva do urbano, da segregação espacial e social e da proliferação condomínios no “crescente processo de fortificação identificado nas cidades brasileiras” (:99). A autora analisa uma situação de tensão vivida em um condomínio em Goiânia e apresenta algumas reflexões sobre expansão urbana e processos de produção de medos em Brasília.

5 “Políticas” é a terceira e última seção dessa obra e traz reflexões sobre violência de gênero e doméstica, movimentos sociais, políticas e discursos governamentais. Lia Zanotta Machado, em “O medo urbano e a violência de gênero” analisa as dimensões do medo e da violência de gênero e doméstica no meio urbano. “Segurança pública e representações sociais, um viés interpretativo”, de autoria de Maria Stela Grossi Porto, apresenta questões gerais sobre a área de segurança pública com base na temática do medo, utilizando dados empíricos referentes ao Distrito Federal e região. Mabel Grimberg, em “O problema do medo nos piquetes”, descreve uma ocupação/ acampamento ocorrido em maio de 2001 no município argentino de La Matanza e analisa a reconfiguração do medo, suas perspectivas, as experiências subjetivas e o modo como o medo consegue reunir pessoas e sentimentos. Para Grimberg, o medo “em seu duplo caráter de construção social e experiência subjetiva torna-se o núcleo aglutinador de imagens e discursos” (:150). Na primeira parte do capítulo “Funerais, política e medo na África do Sul contemporânea”, Antonádia Monteiro Borges reflete acerca da natureza do medo e sobre as relações entre esse sentimento e as pessoas que

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produzem Antropologia. A autora defende que “as ciências sociais, embora lidem com fatos da ordem do humano, por vezes chamada de ordem social, enfrentam constantemente esse drama de tentar demonstrar conhecimento sobre situações que necessariamente ocultam uma de suas dimensões constituintes” (:152), sendo esse o caso do medo. O capítulo também apresenta reflexões sobre o contexto de funerais na África do Sul ligados ao Landless People Movement e, consequentemente, ao acesso de famílias negras a terras que foram usurpadas no passado naquele país.

6 A perspectiva multidisciplinar, presente na diversidade de temáticas e enfoques de cada um dos dez capítulos, traz dados instigantes e capazes de motivar outros pesquisadores a pensarem nas múltiplas dimensões que o medo pode ter em contextos urbanos. Outro ponto positivo é que a interpretação dos textos não sairá prejudicada, caso o leitor opte por ler os capítulos separadamente, em vez de seguir a ordem proposta pelas organizadoras.

7 Composto por capítulos construídos com base em reflexões consistentes, o livro abarca diversidades históricas, espaciais e políticas trazendo diferentes interpretações sobre os processos de construção social de inseguranças, medos e violências. Uma estratégia interessante adotada em todos os capítulos é que estes foram escritos em linguagem acessível a pessoas de diferentes campos científicos, não estando restritos ao público acadêmico das Ciências Sociais.

8 Outro ponto importante é que, ao final do livro, há uma breve biografia sobre cada uma das organizadoras, autoras e autores que contribuíram com seus textos para essa obra. Nessa seção, estão presentes informações sobre formação acadêmica/titulação, atuação profissional, produções e áreas de interesse. Esses dados são importantes para compreendermos, ainda que superficialmente, o contexto das autoras e dos autores. Seria interessante se pudéssemos ter acesso também aos contatos das pessoas que produziram os capítulos.

9 A cidade e o medo nos inspira com a diversidade de cenários, questões e reflexões sobre o medo sentido e criado nos espaços das cidades. Para além de profissionais que pesquisam a área, a obra será de grande valia aos gestores, especialistas e autoridades que estão planejando políticas e lidando com as corporações responsáveis por mitigar a insegurança e a violência.

AUTORES

KRISLANE DE ANDRADE MATIAS

PPGAS/UnB

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