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Mahfouz Ag Adnane.Pdf

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Mahfouz Ag Adnane

Movências tamacheque além-fronteiras: conexões, performances em narrativas insurgentes em festivais culturais saarianos (2001-2017)

Doutorado em História

São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PRPG - Secretaria Acadêmica da Pós-Graduação

Mahfouz Ag Adnane

Movências tamacheque além-fronteiras: conexões, performances em narrativas insurgentes em festivais culturais saarianos (2001-2017)

Doutorado em História

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História sob a orientação da Profa. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci.

São Paulo 2019 3

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL E PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação da Publicação Sistema para Geração Automática de Ficha Catalográfica para Teses com dados fornecidos pelo autor

AG259 Ag Adnane, Mahfouz

Movências tamacheque além-fronteiras: conexões, performances em narrativas insurgentes em festivais culturais saarianos (2001-2017) / Mahfouz Ag Adnane. -- São Paulo, 2019. 370p. il.; 210 × 297 mm.

Orientador: Maria Antonieta Martines Antonacci. Tese (Doutorado em História) -- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em História, 2019.

1. História da África. 2. Festivais culturais. 3. Kel Tamacheque. 4. Saara. 5. Música africana I. Antonacci, Maria Antonieta Martines. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em História. III. Título.

CDD 960 961 969 916

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Banca Examinadora

Assinatura Nome ______

Assinatura Nome ______

Assinatura Nome ______

Assinatura Nome ______

Assinatura Nome ______

Defesa de Tese realizada em 21 de março de 2019

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Este doutorado recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, processo n.88887.149650/2017-00.

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DEDICATÓRIA

Esperando que todo reconhecimento e recompensa dos conhecimentos aprendidos,

revenham a quem criou e facilitou seu caminho:

Adnane Ag Almoukalam ( in memoriam ) e Oumouhani Walet Abdou Razak, meus pais.

Attuta Ag Nafe’a, Oumar Ag Almehdi, Ismaïl Ag Ali, por terem lutado pela escola de

Inelfis onde iniciei.

Salma Walet Azamzami, Alhabib Ag Almouctafi, Dr. Abderrahmane Ag Fakik,

Hindou Walet Abdou Razak, Ahmed Ag Najiyoune, Dr. Moussa Ag Almoujtahid,

Sidi Mohamed Ag Aljuneidi, Denise Dias Barros.

A homens, mulheres de todas as idades que lutaram e lutam por Azawad.

Tinariwen, inspiradores de meus melhores horizontes: Ibrahim Ag Alhabib, Abdallah

Ag Alhousseini, Iyadou Ag Lech.

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AGRADECIMENTOS

Tanimert é a palavra que usamos na língua tamacheque para expressar o sentimento de agradecimento. Inúmeras foram as pessoas, grupos e instituições que, de diferentes maneiras, permitiram que esta tese se concretizasse. A cada gesto, palavra e apoio, meu agradecimento profundo . Sem pretender esgotar, nomeio algumas das pessoas e instituições que me auxiliaram nessas travessias de continentes e conhecimentos. Inicio pela dedicada e atenciosa orientadora, Profa. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci que me acolheu e dirigiu minhas leituras além de viajar e incentivar o desafio do trabalho de campo e da escrita em português. Sou grato aos docentes do Programa de Pós-Graduação em História e à PUC-SP que viabilizaram institucionalmente minha permanência no Brasil e que abriram campos de saberes instigantes e comprometidos com projetos de sociedade justa e igualitária. Agradeço ainda à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, que forneceu o suporte fundamental. O Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora, CECAFRO, foi o lugar de construção de minha identidade afrobrasileira que se somou à experiência saariana tamacheque e me inseriu o mais suavemente possível no dolorido mundo do racismo brasileiro, inspirando a luta de sermos o que somos, altivamente. Antonieta, Amailton, Bebel, Célia, Silvane, Victor, Ana Paula, Priscila, Sabrina, Rafael, Liliane, Jaergenton: seguimos juntos! A Casa das Áfricas foi o coletivo indispensável e inesquecível que não apenas viabilizou minha vinda ao Brasil como tornou mais significativo todo o processo de formação com inúmeros seminários, grupos de trabalho, militância, palestras e outras atividades culturais: Denise Dias Barros, Débora Galvani, Marina Pastore, Jair Guilherme Filho, Edson Eduardo Ramos, Cleide Vitorino, Valdir Pierote, Abdoul Hadi Savadogo e Marina Lima vivem de muitos modos nas linhas dessa tese. Aos mestres Paulo Farias, José Luís Cabaço, Marina Berthet. À Daniela Moreau pelo apoio constante e generoso. À Diones Dias e família por me acolher como filho. À Magaly Romao, Luciana Barbosa pelas leituras e revisões. No , incluindo Azawad, meu reconhecimento: Ao Centro Cultural Tumast, à Mohamed Ag Ossad e Issa Dicko, ambos abriram caminhos que permitiram conhecer o universo artístico tamacheque em . À Instituição Festival au Désert nas pessoas de Manny Ansari, Illili e Vieux. Às/Aos artistas: Fadimata Walet Oumar, Keltoum Walet Emastagh, Mina Walet Oumar, Souleymane Ag Anara, Issa Ag Hadani, Badi Ag Aghaly e Hamouna (de Aratan n’Akal), Aba e Tawwal (Etran de Timbuctu); Mossa Sidi e seu produtor Ousmane Maiga. Agradeço, também, a Mohamed Ag Ahmedou (Wanafella Yamane) que me colocou em contato com artistas em M’Hamid El Ghizlane. À Mohamed Ag Ismail, pela fraternidade constante. Entre as pessoas que foram particularmente generosas nos percursos no Marrocos, destaco, Abdenasser Khabbar e família, Mohammed El Mahdi An Nassik, Mohamed Benour, Ibrahim Sbaï e a familia Laghfiri - Hassane, Aziz e Ali, e grupos musicais da cidade, Generation Taragalte e Les Jeunes Nomades.

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AG ADNANE, Mahfouz. Movências tamacheque além-fronteiras: conexões, performances em narrativas insurgentes em festivais culturais saarianos (2001-2017) , 2019. 357p. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

RESUMO

Este estudo aborda movências de práticas expressivas tamacheque, derivadas da música ichúmar ou movimento cultural techúmara, em circuitos saarianos, constituídos nas últimas décadas. Musicalidade, oralidade, visualidade, performances e história cultural - presentificadas nos festivais, encontros intercomunitários e outras configurações performáticas em meio urbano -, reenviam à problemática da fragmentação do Saara e do Sael por fronteiras territoriais, culturais e estéticas. A pesquisa, focada no período entre 2001 e 2017, tem base em levantamento e análise documental (publicações, catálogos dos eventos, websites , documentos oficiais) e pesquisa de campo no Mali e no Marrocos - realizada em 2016 e 2017. A atenção recai sobre a constituição de fontes alicerçadas nas dinâmicas de oralidade, com entrevistas e observações em festivais, encontros musicais diversos, espaços culturais urbanos e diálogos com artistas, produtores, agentes de cultura e festivaleiros. No contexto de processos que deram forma geopolítica e territorial aos atuais Estados nacionais da África do Oeste e do Norte, houve silenciamentos e descasos de sua composição cultural plural. Na situação malinesa ocorreram, igualmente, diversas ações por parte da sociedade tamacheque, tanto voltadas a reconhecimento sociocultural quanto de busca de autodeterminação, fazendo recurso às armas. Após acordos de paz de conflito armado (1990-1996) entre a sociedade tamacheque e os governos centrais do Mali e do Níger, diversos artistas e agentes de cultura organizaram festivais e encontros intercomunitários, valorizando sua presença no Saara e no Sael. Os festivais contemporâneos apoiam-se em expressões artísticas e manifestações éticas, políticas e estéticas de encontros intercomunitários como tamakanit ou takubelt . A mobilidade contemporânea da sociedade tamacheque inclui movências saarianas, interligando espacialidades, constituindo fator de impacto tanto no cenário cultural das capitais e grandes cidades, como nas reuniões anuais que cadenciam o nomadismo tamacheque, e em outras festividades locais. A plasticidade das identidades e mixidade de linguagens e expressões estéticas tecem ampliações de horizontes e de diálogos a fim de viabilizar a marcha histórica e cultural das sociedades do e no Saara, entre elas, a tamacheque.

Palavras-chave: Festivais culturais; Kel Tamacheque; História do/no Saara; Música e oralidades africanas.

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AG ADNANE, Mahfouz. Movences tamacheque beyond borders: connections, performances in insurgent narratives at Saharan cultural festivals (2001-2017), 2019. PhD thesis - - History Graduate Program, Pontifical Catholic University of São Paulo (PUC-SP).

ABSTRACT

This study deals with movences of expressive tamacheque practices, coming out from the ishumar music or the teshumara cultural movement, in Saharan circuits, established in the last decades. Musicality, orality, visuality, performances and cultural history - present in the festivals, intercommunal meetings and other performances in the urban environment - refer to the problematic and Sael fragmentation by territorial, cultural and aesthetic borders. The research, focused on the period between 2001 and 2017, is based on a survey and documentary analysis (publications, catalogs of events, websites, official documents) and field research in Mali and - held in 2016 and 2017. The focus is on the constitution of sources based on the dynamics of orality, with interviews and observations at festivals, various musical encounters, urban cultural spaces and dialogue with artists, producers, cultural agents and festivals. In the context of processes that gave geopolitical and territorial form to the current national states of West and North Africa, there was denial and negligence of their plural cultural composition. In the Malian situation, there were also several actions by the tamacheque society, both with a view to socio-cultural recognition and self-determination through arms. After peace agreements of armed conflict (1990-1996) between Tamacheque society and the central governments of Mali and , various artists and cultural agents organized festivals and intercommunal meetings, valuing their presence in the Sahara and the . Contemporary festivals rely on artistic expressions and on the ethical, political and aesthetic manifestations of intercommunal encounters such as tamakanit or takubelt . The contemporary mobility of tamacheque society includes the Saharan movements, interconnecting spatialities is a factor of impact both in the cultural scene of capitals and large cities as in the annual meetings of the nomadic life and in the local festivities. The plasticity of identities and the mix of aesthetic languages and expressions provide a broadening of horizons and dialogues in order to make possible the historical and cultural march of the societies of and in the Sahara, among them the tamacheque.

Key words : Cultural festivals; Kel Tamacheque; History of/in the Sahara; African oralities and music.

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Sumário

Lista de Figuras 12 Lista de Siglas 13 ABERTURA. Caminhares do estudo 14 Problematização, objetivos e contextualização 25 Sobre a metodologia 31 Sobre as fontes 44 CAPÍTULO 1. Da descolonização: contextualização histórica e importância dos Festivais culturais na África saelo-saariana após independências 50 Culturas e poéticas insurgentes: condições e história da emergência dos Festivais do Saara azawadiano 51 Cenários de ameaças: dramas políticos e guerras 59 Indagações e quadro histórico contextual 67 Oeste da terra do islã: sentidos vagos de nome Magrebe 76 Ressurgimento e reconhecimento imazirren: a partir de Marrocos e Argélia 82 Sobre festivais culturais, pan-africanismo e nacionalismos 87 Artes na construção do Estado-nação no Mali. Bienal Cultural artística 100 Pensar as implicações dos festivais saarianos para (re)abrir acesso ao futuro 110 CAPÍTULO 2. Dos encontros intercomunitários aos festivais no Saara de Azawad: performances, utopias e desafios 114 Sentidos, motivações, composições da noção de festival 117 Festivais em narrativas e performances pluralizadas 123 Les Nuits Sahariennes de Essuk: conexões e movências de Tadamakat 125 Territorialidades, encontros e diálogos intercomunitários: plasticidade e experiências 133 Manifestações culturais em experiências de alteridades entrelaçadas: diálogos transversais Tamacheque, Wadaabe e Songhoi 161 CAPÍTULO 3 . Festival au Désert: performances em dunas, caminhos e percepções entre sonho e realização 169 Tin-Essako: primeira edição (2001) no coração do Azawad 174 : ambiência e musicalidade em terras dos Tinariwen (2002) 178 Cosmopolitismo e força histórica de Timbuctu na sedentarização do Festival au Désert 178 Essakane: tempo da sedentarização (2003 a 2012) 183 Percepções do Festival au Désert 201 11

Exílio do Festival au Désert: contradições da guerra e a Caravana pela Paz 211 CAPÍTULO 4. Festival Taragalte: musicalidade tamacheque além-fronteiras 222 Novas ancoragens dos festivais e da música no/do Saara 232 Festivais e cenários de expressões amazir do Marrocos 257 CAPÍTULO 5. Movências em territórios urbanos: cenários interculturais ou confront(ação) simbólica e narrativa? 272 Centro Cultural Tumast: cenário de entrelaçamentos comunitários e de diálogos 275 Território cultural tamacheque em Bamako 283 Visualidades e musicalidades: Keltoum Walet Emastagh 292 Composições e pluralidade da diáspora tamacheque em Bamako 299 Vida em comum: movências entre festivais e encontros intercomunitários em um casamento em Bamako 303 Ensaios de tessituras culturais partilhadas: dualidades e recusa 306 CONCLUSÃO. Recorrer à esperança em horizontes confiscados 318 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 338 REFERÊNCIAS DE FONTES ORAIS. ENTREVISTAS TRANSCRITAS 365 REFERÊNCIAS FÍLMICAS 368

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Lista de Figuras

Figura 1. Indicação dos limites do Saara e do Sael com a divisão política atual. 70 Figura 2. Espaço geográfico amazir, conforme regiões. 83 Figura 3. Região de com localidades tamacheque. 130 Figura 4. Panorama do Festival Tamoqqest de Anchawadj, 2007-2008. 151 Figura 5. Logo do Festival Tamasonghoi. 165 Figura 6. Cartaz da Caravana da Paz com percurso no Mali e no Marrocos, 2015. 215 Figura 7. Divulgação do percurso da Caravana da Paz de 2015 na África e na Europa. 217 Figura 8. Localização dos festivais Taragalte e des Nômades. 230 Figura 9. Inscrições rupestres situadas em Timiderte, Zagora, no Marrocos. 231 Figura 10. Identidade visual das três primeiras edições do Festival Taragalte. 238 Figura 11. Imagem da homenagem à Timbuctu pelo Festival Taragalte de 2012. 240 Figura 12. Identidade visual da edição do Festival Taragalte, em 2012. 240 Figura 13. Cartaz da edição do Festival Taragalte de 2013. 241 Figura 14. Cartaz do Festival Taragalte de 2015. 243 Figura 15. Primeira chamada do Festival Taragalte de 2017. 244 Figura 16. Tabalhos de Bannour expostos em seu ateliê em Zagora. 246 Figura 17. Localização das populações Imazighen. 248 Figura 18. Álbum vencedor do Grammy de 2018, gravações em M’Hamid El Ghizlane. 255 Figura 19. Quadro de letras tifinar/tifinagh. 258 Figura 20. Presença da tifinar no Marrocos. 259 Figura 21. Letra yaZ, símbolo da liberdade, de Moulid Nid Ouissadan. 262 Figura 22. Moulid Nid Ouissadan no espaço expositivo, Taouline, 2017. 263 Figura 23. Entrada do Museu Tiskiwin, em Marraquexe. 268 Figura 24. Concertos de Fadl Fattah e Aratan n’Akal no Centro Cultural Tumast. 287 Figura 25. Concerto de ano novo no Centro Cultural Tumast. Mulheres dançando, 2017. 288 Figura 26. Pinturas de Keltoum Wallet Emastagh. 294 Figura 27. Primeiro álbum de Tinariwen, Ténéré de 1993. 295 Figura 28. Cenários de uma casamento-festival em Bamako. 304 Figura 29. Casamento-festival, Balkis Walet Mohamed Ali Ag Attaher. 305 Figura 30. Ambiente noturno do espaço Songhoi em Bamako. 313

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Lista de Siglas

AQMI, Al- Qaeda no Magrebe Islâmico CEDEAO, Comunidade Econômica dos Estados da África do Oeste CJA, Congresso pela Justiça de Azawad CMA, Congresso Mundia Amazir CMA, Coordenação dos Movimentos de Azawad CPA, Coalizão dos Povos da Azawad CTEA, Conselho Transitório do Estado de Azawad FIS, Frente Islâmica de Salvação GIA, Grupo Islâmico Armado GSPC, Grupo Salafista para a Predicação e o Combate IRCAM, Instituto Real da Cultura Amazir MFUA, Movimentos e Frentes Unificadas de Azawad MNLA, Movimento Nacional de Azawad MSA, Movimento para a Saúde da Azawad MTNM, Movimento Tuaregue do Norte do Mali MUJAO, Movimento de Unicidade e Jihad na África de Oeste OCI, Organização do Comitê Islâmico OCRS, Organização Comum das Regiões Saarianas ONU, Organização das Nações Unidas OUA, Organização da União Africana UA, União Africana

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ABERTURA. Caminhares do estudo

A música, muito presente na construção social tamacheque, tornou-se mais e mais importante para a compreensão de culturas insurgentes e de dinâmicas de colonialidade africana pós-independência no contexto da história, cultura e política da contemporaneidade saariana.

A compreensão dos caminhos e desdobramentos de sentidos da música contemporânea tamacheque - decorrente do movimento ichúmar ou techúmara 1 que emergiu nos anos 1980 -, em múltiplos itinerários culturais saarianos 2 do final do século

XX e início do XXI, constitui o fulcro dessa pesquisa de doutorado. Estes circuitos culturais ancoraram-se, por um lado, na história dos festivais africanos dos primeiros anos após a formação dos Estados-nação, no bojo, portanto, da fragmentação de nações sociológicas 3, devido à criação e à rígida consolidação de fronteiras geopolíticas. Por outro, apoiaram-se em manifestações ancestrais de encontros sazonais intercomunitários tamacheque. Encontros que têm ocorrido após o período de mobilidade para pastorícia, em diferentes formatos, para celebrações comuns e para a resolução de conflitos, debates sobre as grandes questões do momento e a renovação de alianças.

Nestes eventos, ética e estética reafirmam-se de forma intensa por meio de diferentes linguagens: músicas, danças, ritmos, poéticas e performances. A poesia

1 Depois da independência do Mali, houve forte repressão, após a eclosão de uma revolta em 1963-1964 (região do Adrar), por parte dos novos dirigentes, levando ao exílio uma parte da juventude, denominada localmente por alfillaga. O cerceamento e a fragmentação dos territórios tamacheque criaram entraves econômicos que resultaram em migrações intensas e grande contingente de pessoas sem meios para garantir sua sobrevivência. Para descrever essa situação, nasceram os neologismos derivados do termo francês chômeur (desempregado), como achamor ou ichúmar (singular e plural, respectivamente), ambos declinados conforme as regras da língua tamacheque (HAWAD, 1999; AG ADNANE, 2014). Nas décadas de 1980-1990, esse movimento assumiu a forma de luta social com uma vertente armada e outra cultural, conhecida como techúmara ou ichúmar. 2 Lembrando que os Kel Tamacheque se encontram em grande parte em regiões saarianas (Argélia, Líbia, Mali, Níger), mas igualmente no Sael do oeste africano (Mali, Burquina Faso e Níger). 3 O austríaco Otto Bauer dissociava “Nação” e “Estado”, noções que se confundiram após a Revolução Francesa (BAUER, 1987, p. 196). A nação é, antes de tudo, comunidade cultural e que não se confunde nem com o conceito de nação-Estado nem de Estado-nação (uma expressão do nacionalismo burguês). 15

(tesawit ) e a música ( iswat, asekbal ou aseddal ) acompanham e agregam, segundo

Mécheri-Saada (1994, p.58) sentidos plurais e abertos aos momentos rituais mais significativos na vida da pessoa, do grupo, da vida familiar e, ainda, das reuniões e assembleias musicais e poéticas que a sociedade Kel Tamacheque conheceu e desenvolveu ao longo de seus processos históricos e culturais. Mesmo que tais manifestações sejam cada vez mais desafiadas pelas transformações, permanecem como referenciais para as gerações atuais de diferentes maneiras e intensidade. Esses gêneros de experiências estéticas estão na base da emergência de novas musicalidades ligadas à migração e à experiência urbana nacional e transnacional.

O contexto da história africana do século XX constituiu, assim, um importante campo de ancoragens deste estudo, entendendo que, na experiência tamacheque, os festivais saarianos não se separam das formas de lutas para protagonizar suas experiências políticas e culturais. Tais festivais movimentam-se nos limites da fragmentação do Saara e do Sael que deram forma geopolítica e territorial à construção dos atuais Estados nacionais da África do Oeste e do Norte.

Sombras nômades desertaram seu modo de vida depois de verem arrancados o teto de seu universo pelo colonizador (o homem moderno), declarou o poeta tamacheque da região do Aïr, Mahmoudan Hawad (1987) . O estabelecimento das fronteiras administrativas coloniais afetou de forma decisiva os pilares econômicos, geográficos, sociais e simbólicos da sociedade Kel Tamacheque cuja marginalização cultural, econômica e política formaram o cerne das temáticas das canções do movimento ichúmar

(AG ADNANE, 2014) e alimentaram a formação dos festivais do final dos anos 1990.

Esta pesquisa de doutorado respondeu a um conjunto de questões cuja preocupação centrou-se na compreensão da história contemporânea de uma sociedade do

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Saara, cuja juventude desenvolveu diversas estratégias para encontrar espaços políticos e culturais nos novos estados africanos, desenhados a partir da descolonização do continente. Do mesmo modo, houve preocupação com as configurações adotadas no contexto da história dos festivais, dos encontros intercomunitários e dos espaços culturais urbanos relacionados com o mundo tamacheque contemporâneo. Importava compreender as novas dinâmicas assumidas e os circuitos da musicalidade da Techúmara no interior da mobilidade contemporânea. O interesse, recaiu, desse modo, sobre os festivais culturais, internacionais e locais, realizados no Saara tamacheque após os tratados de paz assinados em fins do século XX no Mali. A estes se somaram os encontros intercomunitários tamacheque, renovados por dinâmicas translocais.

Os festivais que ganharam um alcance internacional, constituiram-se como fruto das injunções entre saberes locais e projetos globais, arte e economia, cultura e política.

Música, dança, artes visuais e ritmos reconfiguraram-se como cultura de mobilização e não podem ser compreendidos sem reflexão sobre sua ancoragem nos contextos dos múltiplos deslocamentos, dos campos de refugiados e de exílio. Sendo produto do exílio tornaram-se, igualmente, construções translocais e interculturais.

A música tamacheque permanece atualizadando-se em diferentes meios e situações performáticas, sendo que os espaços culturais aqui em discussão, realizaram-se em campo de presenças compartilhadas e em interações, dentro de universo de movências que ainda possuem imbricações com modos de vida nômade 4 no Saara. Persistem diversas

4 Imbrincados nas paisagens e na espacialidade nômade, entendida como socialmente produzida como campo de circulação entre lugares balizados pelo acesso a pastagens ( teyache ) e à água ( aman ). A mobilidade de pastoreio possibilita, ainda, o exercício da edificação das territorialidades, dos pertencimentos, da historicidade e de formas de poder (RETAILLÉ, 1998; 2005). Suas fronteiras são, porém, negociadas, dentro de premissas de uso comum dos recursos, mesmo por membros de comunidades que se deslocam a partir de outras territorialidades. O acesso à água é fator fundamental de estabilização temporária ou de experiências de sedentariazação e urbanização. Diversos núcleos urbanos foram criados em lugares em que a água era acessível ou abundante, este é o caso de Timbuctu, nome que significa: aquela (tin ) de Buctu (nome feminino). 17 formas de resistência cultural, de luta emancipatória e de retomada do poder da palavra política e econômica.

Houve, no entanto, um conjunto de questões relevantes que permaneciam abertas.

Quais foram os ideais dos/as criadores/as dos festivais culturais internacionais? Seriam os espaços interculturais capazes de construir bases para coesão nacional não excludente?

Isto é, capazes de reconhecer a legitimidade de sua pluralidade linguística, sociocultural e de experiências históricas anteriores diferenciadas. Haveria ainda, em nossos dias, possibilidades para ampliar suas potencialidades econômicas, intercâmbios de linguagens e projetos transnacionais em que a sociedade tamacheque e as diferentes populações do

Saara, em sua diversidade, sejam participantes? Serão eles capazes de fazer soar vozes dos Kel Tamacheque no sentido de interrogar, questionar e trincar o discurso hegemônico, que tem sido incapaz de ir além da tragédia do confronto? Conseguirão expressar em seus encontros, projetos históricos e geográficos da antiga civilização amazir 5 (berbere), à qual os Kel Tamacheque pertencem?

Cabe ressaltar que sendo tamacheque da região de , minha história pessoal permanece entrelaçada ao desafio intelectual de trabalhar as temáticas relevantes para a sociedade Kel Tamacheque. Faço parte de um número não muito expressivo de jovens que puderam frequentar a universidade e, portanto, de uma geração que se engajou nas lutas de seu tempo e que se confrontou com muitos desafios perante sua comunidade.

Tenho procurado assumir lugar de “intelectual orgânico” (GRAMSCI, 1978), que vive entre mundos e dialoga com uma historiografia específica de forma crítica, procurando estar atento às perspectivas internas e aos processos históricos significativos

5 Adaptação do termo Amazigh/Imazighen (Amaziɣ, m. sing.; Imaziɣen, m. pl.). Ver: Encyclopédie Berbère, vol. IV, Aix-en-Provence, 1987, p. 562-568.

18 para contemporaneidade tamacheque e saariana. Possuo um estatuto particular na sociedade tamacheque, denominado Kel Essuk, constituída por uma complexa rede de tiwšaten, uma delas é a minha comunidade, a Icharamatane. Kel Essuk guarda uma estreita relação com a palavra escrita, tendo se constituído historicamente como comunidade de estudiosos do Islã, da língua árabe e de sua literatura. Percorri grande parte de meus estudos em língua árabe, iniciando em uma escola fundada por iniciativa de Atouta Ag Nafe’, retornado de anos de exílio em Meca, com apoio do chefe Alhabib

Ag Almoctafi e de outros intelectuais Icharamatane. Seja os permaneciam exilados em al-Ḥidjāz, tais como Mardas Ag Nafe’, Alkawsari Ag Azamzami, Ahmed Ag Nagiyoune,

Ismail Ag Ali, ou formados nas escolas coloniais francesas e dos primeiros anos da independência do Mali, como Moussa Ag Almoujtahid, Mohamadine Ag Ousmane,

Oumar Al Mahdi, Abdou Rahamane Ag Fakik, Ibrahim Ag Hamou, Rhissa Ag Mohamed

Ahmed, Talhata Ag Achafe’i. Mais tarde, estudei em escolas franco-árabes de Gao,

Bamako e segui para o Cairo, com bolsa de Al-Azhar. Optei pelo estudo de História, desenhando um horizonte de conhecimento dentro de uma perspectiva política. No Cairo estudei o francês e, também, fiz mestrado em estudos de África contemporânea na

Universidade do Cairo. Depois, com apoio da Casa das Áfricas, foi possível construir os estudos pós-doutorais no Brasil. Essa trajetória centrada na escrita não silenciou minha experiência cotidiana e a vida de pastor de animais no deserto, nem minha a paixão pelos poemas declamados - também, muito presentes entre os Kel Essuk - e pela poética insurgente da música Ichúmar. Conheci suas canções, ainda menino e as cantava uma a uma, aprendidas por meio das fitas cassetes de tios e tias. A Techúmara era, naquela

época, tema do dia-dia entre adultos, jovens e crianças. Os Kel Essuk alimentamos, com igual intensidade, o gosto pelas noites animadas por contos entre amigos e em família. Os contos e as narrativas de histórias antigas foram muito presentes, não só quando crianças. 19

Minha avó materna, suas irmãs e outras tias, são talentosas artistas da palavra. A experiência de sobreviver à repressão armada do exército do Mali, quando morreram muitos familiares, não pode ser apagada e foi talvez, a maior lição política que recebi. A herança Kel Essuk mais profunda se expressa, para mim, no dever de não abdicar do esforço do conhecimento. Não oponho a palavra Kel Essuk, escrita ou oral, à poética e

ética Ichúmar. Mas vale ressaltar que historicamente, os Kel Essuk constituíram um dos segmentos da sociedade tamacheque que mais trabalharam pela aceitação do islã entre nós e da língua árabe, tensões relevantes existiram na disputa de narrativas e de formas da escrita, sendo que a escrita tifinar, em minha região, em desuso. As novas gerações

Kel Essuk movem-se, porém, no entrelaçamento dos poemas do movimento da techúmara e que existe interesses no aprendizado da escrita tifinar. Se não fizermos, quem mais poderia fazer isto? Recentemente um de meus primos, Mohamed Ag Mohamed, realizou sua dissertação em literatura em Bamako, reunindo e discutindo os contos tamacheque e sua tese versou sobre poemas Kel Essuk, deixados em manuscritos por seu avô. Outro exemplo, é o trabalho recente de cheikh Al’ateq Ag As’doudine, em que discutiu a história saariana com bases em fontes orais Kel Essuk.

Recorro à dimensão existencial de minha trajetória das anotações de viagens de pesquisa para me inscrever enquanto pesquisador que vai à campo, refazendo laços e renovando interrogações, ao mesmo tempo que retornava à casa, em 2016, em intenso conflito:

Passaram cinco anos longe da terra que viu meu nascimento e em que passei a minha infância e uma parte da juventude. Mesmo vivendo em minha própria casa com minha família brasileira, é impossível não sentir a falta da terra natal e de suas lembranças. Durante esses últimos cinco anos, também, havia e ainda há um conflito armado, inicialmente entre o Movimento de Libertação de Azawad (MNLA) e as forças armadas do Mali. Isto levou à destruição de cidades, vilas e acampamentos. Outras forças se intrometeram no meio da guerra. Estas eram péssimas para os dois lados tradicionais deste conflito, mas, sobretudo para o MNLA. Tratava-se de grupos radicais e jihadistas que ocuparam todas as grandes cidades de Azawad;

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centenas de milhares de pessoas fugiram refugiaram-se nos países vizinhos. Além de deslocados internos sem nenhuma política de apoio, a região viveu e vive anos de secas severas. Então, ia me permitir (re)ver meus parentes sobreviventes destas tragédias (...). Foram cinco anos passando horas no facebook e whatsApp conversando, dialogando e criticando as lideranças de Azawad: um verdadeiro movimento virtual. (AG ADNANE, anotações do caderno de campo, novembro, 2016) O tempo da pesquisa de campo no Mali, foi então, igualmente, um tempo de confrontação pessoal intensa, desde a viagem até a permanência na capital Bamako, onde realizei grande parte das entrevistas e observações e o estudo adquiriu maior densidade:

Um desafio para mim foi a minha ida para Bamako. Gostaria que a minha passagem fosse para Gao através de Niamey, Nuaquechote, Ouagadougou ou qualquer outra capital de um país vizinho. Contudo, estava preparado para enfrentar essa dificuldade desde que decidi comprar a passagem. Estar em Bamako ganhava um significado contraditório de traição ou aceitação do Acordo de Argel 6, que tanto recusei e critiquei. A guerra deixou resíduos de ódio entre nós, militantes de Azawad e os malineses que não aceitam a separação, que acreditaram num só país, numa só fé e num só objetivo, mesmo sem uma política realista para dar corpo a estas palavras de ordem. Sendo assim, encontrar malineses era um desafio que tinha que enfrentar entre e Bamako, pois sabia que no aeroporto marroquino teriam muitos malineses com quem iria compartilhar o mesmo voo. Pela primeira vez em anos, não poderia me apresentar como azawadiano. Então, decidi dizer “sou de Gao” para as pessoas com quem mantivesse contatos. Fiquei lembrando cenas de guerra e crimes que aconteceram desde 2012, levando-me a conflitos e a suas vítimas, que foram muitas entre os meus. Como se diz no meio tamacheque: “o sangue de mártires ainda não secou e não esquecemos de Anara” 7.

6 Tratado de paz assinado em 2015 entre o Governo do Mali e a Coordenação dos Movimentos de Azawad (CMA) com mediação da Argélia e Comunidade Internacional (ONU, União Europeia, União Africana, CEDEAO, Organização de Comitê Islâmico, OCI), além dos Estados Unidos, França, Burkina Faso, Níger e Mauritânia. 7 Anara foi grande erudito da comunidade de Kel de Gao, assassinado com mais de cinquenta pessoas de sua sociedade, de acordo com a versão oficial. Porém, segundo várias pessoas com quem conversei ou entrevistei, o massacre de Wadi Charaf (1994) afetou mais de duzentas pessoas. 21

Bamako é o símbolo do Estado do Mali que amargurou minha alma. Contudo, era uma cidade que gostava. Nela passei bons momentos da minha vida e ainda guardo boas lembranças. Fiz uma parte da minha formação em suas escolas e, meus tios, primos, primas e outros parentes, ali ainda residem. Nunca quiseram sair desde as rebeliões dos anos 1990-1996 até 2012, mesmo nos momentos mais perigosos. Isto quer dizer que

Bamako, para uma pessoa como eu, representa uma complexidade e mesmo um drama não apaziguado, uma ferida sempre exposta.

Este foi, portanto, um desafio paralelo ao estudo, mas, com muitas conexões e passagens entre si. Em diversas ocasiões saltei de pesquisador para ser uma espécie de interlocutor, desejando dar meu próprio testemunho. Mas, não se trata de um estudo biográfico, ainda que a biografia do pesquisador seja a fonte de motivação e risco de excessivo envolvimento em um ir e vir contínuos.

O exercício da autocrítica tem sido um aprendizado difícil e vacilante. As pessoas com quem dialoguei em posições diversas, grande parte dos que vivem em Bamako estão com o estado do Mali, pois, como em todo conflito, as posições são múltiplas e não lineares. O Estado do Mali permanece, a meu ver, o responsável maior pelos crimes e

foram centenas ,(اق) massacres contra minha gente; só entre meus parentes Kel Essuk de pessoas eliminadas sumariamente pelo exército da República do Mali (ou amali 8 como alguns Kel Tamacheque ironicamente chamam o país). Sentia grande raiva tanto do governo quanto das lideranças de Azawad que assinaram o documento conhecido, oficialmente, por “ l’Accord pour la Paix et la Réconciliation au Mali issu du processus d’Alger ”. Nesse tenso e fraturado contexto, iniciei esta pesquisa.

8 O termo em tamacheque significa camelo, metaforicamente, “aquele que ataca e mata”. Nas redes sociais, tem sido utilizado Mal-i, reforçando a ideia de mal.

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A discussão sobre a pesquisa feita por alguém do próprio meio, da própria cultura tem levantado um conjunto de discussões e parece importante sublinhar algumas, pois a reflexão sobre si em um processo de pesquisa, explicita posições que participam dos caminhos metodológicos e da compreensão que se constrói (OUATTARA, 2004).

Mamadou Diawara (1985) lembrou, mesmo que haja, no contexto africano, um anseio de rompimento de perspectivas subalternizantes, a pesquisa “chez soi” tem vantagens e inconvenientes. Para a compreensão histórica e social importa possibilitar olhares plurais e múltiplos, a partir de posições epistemológicas e abordagens diferenciadas. Além do esforço de desenhar os caminhos e métodos da pesquisa, a escolha do campo, as colaborações e os sítios de observação, aliam-se à construção processual dos objetivos do estudo (DIAWARA, 1985; 2010).

Dida Badi Ag Khammadine (2007, 2010, 2012), pesquisador tamacheque argelino, refletiu sobre aproveitamentos e expectativas geradas nessas relações de pesquisa, notadamente, por interlocutores/as mais próximos/as por afinidade cultural ou familiaridade. Mesmo que este estudo tenha tido apoio em trabalho de campo multi- situado (MARCUS, 1995), com diferentes graus de proximidade cultural e linguística, movimenta-se entre localidades capazes de ancorar a conectividade cultural, passada e presente, a movência tamacheque-amazir no contexto do renascimento da consciência de laços históricos comuns entre territorialidades saarianas.

Ag Khammadine (2010) propôs três tendências no campo dos estudos tamacheque realizados por europeus que se mostram cada vez mais especializados, mas com grandes lacunas. Ele sublinhou, além disso, os temas de interesse e visões de pesquisadores africanos que denominou de pesquisadores nacionais não-tamacheque, discutindo a emergência, nos anos 1970, de pesquisas realizadas por tamacheque na Argélia, Níger e

Mali, configurando a “primeira vez que autóctones passam do estatuto de objeto de estudo 23 para atores que pensam sua sociedade à partir de seu interior” (AG KHAMMADINE,

2010, p.33)

Entre os europeus, a primeira tendência reagrupou um conjunto de trabalhos realizados por militares e administradores, a exemplo dos estudiosos reunidos na associação La Rihla, Amicale des Sahariens - com estudos sobre os Kel Tamacheque e sobre o Saara. Com sede em Paris, Rihla possui mais de 800 membros, “acolhendo desde

1946 todos aqueles que se sentem preocupados com o Saara por causa de suas atividades passadas ou presentes, seu gosto por viajar pelo deserto ou, simplesmente, porque nasceram, moram lá ou por seu interesse” (Rahla, online )9. Publicam há mais de 30 anos a revista trimestral, referência em Bamako, Le Saharien 10 .

A segunda tendência, surgida nos últimos anos, teve como referências a posição de André Bourgeot (1995) e Casajus (1995). Estes autores, em sua interpretação exógena, desfendem a ideia de fragmentação, afirmando que não existiria uma sociedade tamacheque, mas várias, rigidamente hierarquizadas e em constantes conflitos. Dessa forma, não existiria qualquer possibilidade da emergência de uma nação. Esta abordagem recebeu adesões entre intelectuais africanos nacionais-não tamacheque no Níger e Mali, sobretudo. Dida Badi Ag Khammadine (2001, 2010) citou como exemplos, Salifou

(1993/94) e Hamma (1994), ambos do Níger e vinculados às estruturas do poder nacional de seu país.

Na terceira tendência, a sociedade Kel Tamacheque foi compreendida como organização política composta por confederações ( tiwšaten ) com língua comum, além de cultura e modo de organização do poder semelhantes. Tem tido como expoentes Edmond

Bernus (1993) e Hélène Claudot-Hawad. Houve um despontar de pesquisadores Kel tamacheque, cuja composição difere nos diferentes países em que se encontram. São

9 Associação Rahla http://www.les-sahariens.com/la-rahla-amicale-des-sahariens/ 10 http://www.les-sahariens.com/le-saharien/

24 pouco numerosos em todos eles, mas, sobretudo na Argélia, onde Ag Khammadine apontou apenas duas pessoas, ele mesmo e Marmouri (1993). Pesquisadores de nacionalidade malinesa, ele destacou alguns: Ehya Ag Sidiyenne Ag Albostane (1996),

Eghleze Ag Foni (1979, 1990), Mohamed Ag Erless e, do Níger, Mohamed Aghali-

Zakara (1979, 1992) e Ghubaid Ag Alojali (1975), entre outros.

Mbembe relembrou, como fez Fanon, que há uma dimensão intersubjetiva que implica a descolonização de si ou autodescolonização como nomeia o autor (MBEMBE,

2010), concernente a todos 11 . Se “nós queremos andar o tempo todo, noite e dia, na companhia do homem, de todos os homens”, como destacou Abdelkebir Khatibi (2002) em “A memória tatuada”, precisamos multiplicar muito as possibilidades de inscrição, também, na linguagem acadêmica, da sociedade Kel Tamacheque, com suas vozes, corpos e perspectivas para ampliar conversas entre si e viabilizar a dialogia na relação com outros. Ainda importa prolongar o tempo das caravanas quando era possível ter notícias de uma parada a outra, encontrar-se de tempo em tempo e dialogar uns com os outros.

A expectativa desse trabalho, que deverá ser traduzido rapidamente, é de ser compartilhado com a comunidade Kel tamacheque, particularmente, com os Kel Essuk e

Icharamatan de Zalab-labé. Em diversas ocasiões do estudo de campo, recebi recomendações para que não deixasse de mencionar determinados temas ou passagens, que preocupavam esta ou aquela pessoa ou grupo diretamente envolvido. A própria temática foi questão levantada em minha comunidade de origem, Icharamatan. Disseram que consideram importante que realize, no futuro, estudos sobre temas locais, estimados por eles mais urgentes. Trajetórias como a minha já não são únicas, mas permanecem exceção. Então, encaro como responsabilidade, pois não ando só, não falo apenas por

11 “L’autodécolonisation concerne tous les hommes”. 25 mim, nem ouço só a mim mesmo. Produzo narrativas e argumentações relacionadas à grande rede de interlocutores/as, pensadores/as, artistas, músicos e estudiosos/as.

Problematização, objetivos e contextualização

Os festivais e encontros intercomunitários são performances pautados na cosmologia, na estética e na ética da espacialidade e temporalidade saarianas com forte presença do nomadismo tamacheque ( ihinan ), enquanto modo de organização social, de construção espacial, material e simbólica, a partir da prática extensiva do pastoreio

(tamadint ), portanto, o rebanho compõe, igualmente, a base social. O nomadismo tem implicações sociais e culturais complexas nas relações interpessoais, na língua, nas artes, na formação e clivagens de linhagens, diferenciações entre as tiwšaten , além de percepção de si, integração e construção da paisagem e da própria territorialidade. Dessa maneira,

não pode ser reduzido a um modo de vida itinerante associado a um tipo particular de economia (pastoralismo e comércio de caravanas). Também representa um pensamento, uma abordagem intelectual, uma compreensão particular do mundo que torna possível decifrar as realidades e agir sobre elas (CLAUDOT-HAWAD, 2007). Além disso, festivais e encontros intercomunitários são constituídos pela força da palavra oral, elemento decisivo em abordagens diferenciais de compreensão de suas singularidades e propriedades, mesmo que a escrita co-exista e corresponda, ela também, a um conhecimento ancestral (caso da escrita tifinar/ tifinagh ) ou incorporado como no caso do árabe, principalmente, pelas tiwšaten (confederações) Kel Essuk e Kel Ansari e do francês, pelas gerações que últimos decênios passaram pela escolarização do sistema de ensino oficial no Mali ou Níger.

Em estudo que trabalha movências culturais saarianas, focado na historicidade tamacheque, os festivais, concertos, celebrações festivas, encontros intercomunitários e ritualidades, advém de reinvenções criativas a partir de sofrimentos, imperativos

26 econômicos, fraturas socioculturais internas e intercomunitárias, além das intricadas questões políticas. Mas, inscrevem-se, igualmente, como expressões de plasticidade e mixidade identitárias que transgridem, no seu fazer histórico e cultural, a narrativa hegemônica das histórias nacionais.

A cultura, que se expressa e se recria nos festivais e nos encontros intercomunitários, revela múltiplas dimensões das relações humanas e dessas com a natureza, sendo pensada como “algo comum a todos”, pois as sociedades, sugere

Raymond Williams em Recurso da Esperança, possuem “uma própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados” (WILLIAMS, 2015, p.5). Instituições, conhecimentos e artes são campos partilhados de ação que, pela experiência e debate ativos se constroem e reconstroem “em cada modo de pensar individual” (idem).

Acredito que a criação dos festivais, ainda que inserida em contextos africanos mais amplos, com sentidos diferenciados, emergiram localmente, em histórico cultural com especificidades. Emanaram da poesia e música ichúmar dos anos compreendidos entre 1960 e meados dos anos 1990, de anseios por encontros intercomunitários, cujo alvo era a própria sociedade Kel Tamacheque, distanciada de si e fragmentada pela colonização e colonialidade pós-independência.

A sociedade buscava a si mesma e a música possuía, fundamentalmente, os elementos subjetivos para tal apelo. Os festivais dos anos 2000, operaram em outra direção, voltados ao repensar as conexões e extraversões (BAYART, 2000) em relações menos hostis ou percebidas como tal. À música e à poesia - expressões da oralidade e ritmo – agregam-se outras dimensões de encontro performáticos com suas narratividades e paisagens. 27

É preciso enfatizar aqui as expressões culturais tamacheque, mesmo quando se constroem e se apresentam em festivais com objetivos voltados para o diálogo translocal, onde musicalidade, dança, gestualidade, culturas materiais e simbólicas não podem ser separadas categoricamente umas das outras. Além disso, não admitem ser cindidas da sua historicidade e territorialidade saarianas com suas conexões e fraturas. A oralidade recusa o binarismo e o dualismo, abre à experiência, sendo intertextual e, deste modo, uma prática cultural em regimes de expressões e comunicações próprias. Não se pode isolar a oralidade da estética, da ética, da corporeidade e da vida política, pois a poesia é cantada e dançada, a política é dramatizada e teatralizada em dinâmicas em que uma completa e transforma a outra. Desde as independências, as expressões estéticas tamacheque têm fortalecido redes orais de transmissão e favorecido movências da luta cultural e política para além das fronteiras nacionais e mesmo do continente africano.

Os festivais saarianos, que se organizaram nos últimos decênios, articularam cultura poético-musical e história política além de ampliar as territorialidades de pertencimentos por reconexões intra e transaarianas. Eles circunscrevem, igualmente, esferas de confrontação entre perspectivas e estratégias diante de dilemas sociais, políticos e econômicos atuais, acirrados pela emergência de guerras desde 2012 e pela grande complexidade das novas configurações dos conflitos intercomunitários. O estudo dos festivais indicou, ainda, a importância das interligações entre festivais saarianos, como é o caso do Festival au Désert tamacheque no Mali e os Festivais de M’Hamid El

Ghizlane, no Saara marroquino, Taragalte e Festival dos Nômades.

O marco simbólico recaiu sobre o Festival au Désert, em suas edições realizadas entre 2001 e 2012, por ter tido um lugar de destaque interno e externo, além de ter permitido a articulação de um conjunto de questões históricas e conceituais; e por ter se constituído em festival internacional herdeiro direto das dinâmicas da música Ichúmar

28 dos anos 1980-90. Muitos outros festivais foram organizados em diversos países em que os Kel Tamacheque vivem: Argélia, Líbia, Mali e Níger. Entre os objetivos do festival em estudo, estavam a intenção de modificar visões estereotipadas sobre a população desse imenso território, pois contrapunha-se à ideia vulgarizada de que não haveria história/cultura/economia/arte no Saara. Contudo, o crime internacional organizado criou, nos últimos anos, novos e grandes obstáculos. Neste contexto, Ahmed Ag Hamama considerou que “o festival restringiu seus objetivos, com a insegurança, com os eventos de 2012 e os jihadistas - que entraram na região e que interditaram toda atividade musical, com guitarra e outros instrumentos musicais-, o festival foi punido e está sendo punindo”

(Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama. 2017).

Os diferentes tipos de festivais e os encontros intercomunitários formaram, assim, manifestações da cosmogonia, de performances e temporalidades de culturas pautadas por formações sociais pastorís nômades que transbordaram sua ação e abriram diálogos para além da nação sociológica (TSHIYEMBE, 2000) 12 e do Estado do Mali. Por meio do estudo sobre os festivais culturais, percebe-se que a sociedade procurou: 1) construir bases para coesão nacional baseada no convívio da diferença; 2) ampliar possibilidades econômicas, intercâmbios de linguagens e projetos transnacionais. As reuniões anuais e os espaços de socialização nos campos de refugiados relevam, por sua vez, formas de auto recriação e esforço de auto inscrição (MBEMBE, 2001).

A música tamacheque, na forma de festivais e de concertos locais, tem carregado narrativas insurgentes de dramas que continuam a fazer ressoar, no século XXI, dimensões da luta histórica tamacheque contra sua marginalização pelos Estados-nação

12 Mwayila Tshiyembe (2000; 2001; 2005) distingue a nação jurídica, o Estado, da nação sociológica, a etnia. Por etnia compreende tanto de uma comunidade de língua, laços de sangue, religião e história comuns com o desejo de viver junto. Constitui o alicerce da nacionalidade que os estados pós-coloniais se limitam a constatar a existência, que consideram privada de memória histórica, de modos de ordenação do poder, como se fossem justaposições estabelecidas pela vontade colonial. 29 africanos que rejeitaram sua pluralidade. Neste contexto, o Festival au Désert no Mali - e outros que o sucederam -, constituiu parte de estratégia, ao mesmo tempo, de extraversão histórica (FARIAS, 2004; BAYART, 2000), de denúncia da situação social da sociedade tamacheque, de diálogo entre as diferentes sociedades que coabitavam no interior das fronteiras nacionais e com fortalecimento dos laços entre os próprios Kel Tamacheque.

Os Festivais foram percebidos neste estudo, como cenários de combate contra a desapropriação de si não isentos de riscos. Neles reconfiguraram-se memória e narrativas, instâncias de luta contra a alienação e a opressão. “O corpo em marcha, produz a multiplicação dos horizontes”, concluiu Claudot-Hawad (2007) 13 , condesando sentidos capazes de contornar o estreitamento de perspectivas sociais e culturais, reenviando à problemática de fricções interculturais criadas ou intensificadas pelas fronteiras. O drama subjacente permanece sendo o sentimento de derrota gerado na construção do controle e da hegemonia política e econômica de Estados impostos, destituídos da nação a lhes dar ancoragem e sem serem gestados de forma endógena. Eles consagraram, desse modo, a ruptura histórica desencadeada pela intrusão colonial e os colonialismos de muitas faces de colonialidade de poder, de saberes e de modos de ser.

Nos contextos de independência colonial, geraram-se novos circuitos de poderes que produziram, por sua vez, marginalizações e experiências históricas que não correspondiam aos símbolos mobilizados - por meio da língua, ritmo, estética, heróis culturais e históricos, entre outros -, para respaldarem projetos nacionais de países como o Mali e o Níger.

Os festivais constiuíram, igualmente, um campo de disputas e de interesses locais, regionais, nacionais, até mesmo transnacionais, de pessoas e de grupos. Houve dimensões

13 “Le corps en marche produit la multiplication des horizons”.

30 exteriores e orientações que conferiram camadas de sentidos diferenciadas de significados aos eventos, inserindo-os em circuitos de lógicas distintos. Hélène Claudot-Hawad (2009, p.5/6, online ) sublinhou que “o conceito de ‘festival’ se tornou globalizado nos últimos anos, incluindo, em particular, demonstrações de tradições organizadas com o objetivo de impulsionar o turismo em áreas rurais que se tornaram periféricas. Ele teve sucesso

óbvio em muitos lugares e continentes”.

Antonacci (2016), chamando atenção para a descolonização de corpos e saberes a fim de desconstruir o racismo como episteme constitutiva da lógica colonial, permitiu apreender liminaridades e narrativas rebeldes. A metáfora do corpo, evocando uma possibilidade de pensar o mundo criou, no caso tamacheque, um mundo que se produz no movimento em performances que fundem letra, imagem, voz, ritmo em inscrições culturais dos laços com o deserto. Como, então, dar sentido ao corpo-mundo pela margem?

Os festivais formaram, no mundo Kel Tamacheque, cenários de práticas expressivas (CIDRA, 2002) 14 , que deixaram entrever, entre outras, diversas formas de recusa à violência simbólica (BOURDIEU, 2001) e aos arbítrios das elites instaladas com os Estados-nação. Nessas manifestações culturais, emanadas do Saara, fortemente pautadas em conjugações, música, palavra e a língua, desempenharam papel fundamental, criando cenários formas expressivas. Juntas elas deram suporte aos festivais para a criação de paisagens e ambiências capazes de atrair pessoas de diferentes horizontes, potencializando ou renovando sentidos. Por isso, os festivais saarianos precisam conectar

14 Rui Cidra (2002) sugeriu o conceito de culturas expressivas ou práticas expressivas, afim de articular campos de criação artísticos que não se acomodam às classificações fixadoras como música, poesia, teatro, dança etc. 31 meio ambiente, paisagens, histórias, memórias e expectativas em concepção capaz de reunir questões fundamentais de seu tempo, espaço e relações.

O estudo de festivais que emergiram no contexto da territorialidade tamacheque

(e em suas conexões saarianas), precisam ser, igualmente, entendidos nessas dimensões, como um grande entrelaçamento de linguagens capazes de mobilizar, durante alguns dias, simultaneamente, experiências condensadas e densas de mobilização do extraordinário, redimensionado a partir da própria cotidianidade das pessoas nesses grandes encontros.

A musicalidade tamacheque, aliando-se a diferentes práticas expressivos ancoradas em festivais, passou a integrar a produção artística africana, valorizando, particularmente, as sociedades nômades do deserto.

As artes conjugadas em sua mixidade (MIXINGE, 2000) e plasticidade, aliadas a reflexões, geram experiências que podem ser poderosas, política e existencialmente, para a configuração de novo devir.

Sobre a metodologia

O estudo construiu-se desde a montagem de um corpus , formado de modo relacional a partir de um roteiro, a fim de trabalhar um conjunto de eventos culturais

(festivais, encontros intercomunitários, espaços urbanos de cultura tamacheque), de relevância para a história e modos de vida dos Kel Tamacheque, diferenciados, efêmeros, mas recorrentes, praticados em espaços precisos, com ampliação de suas esferas públicas.

São eventos que formaram circuitos culturais, por mais de uma década no Mali, e que continuam a se constituir em outras regiões saarianas, como encontros organizados em torno a uma memória musical e política em termos de modos de vida. Marcados por fluidez, envolvem encontros e performances de atitudes culturais e desejos, desafiando a compartimentalização de produções expressivas, com reduções e rotulagens, ou a economia de comoditização da cultura e da alteridade.

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A pesquisa de campo, base empírica fundamental do estudo, foi realizada segundo orientações metodológicas da história oral, conforme argumentações de Alessandro

Portelli, como “narração dialógica que tem o passado como assunto e que brota do encontro de um sujeito que chamarei de narrador e de outro sujeito que chamarei de pesquisador - encontro geralmente mediado por um gravador ou um bloco de anotações”

(PORTELLI, 2010, p.210).

No entanto, a pesquisa não pode ficar circunscrita aos diálogos e entrevistas, pois foram meses de trabalho intenso, que implicaram em observações e participação em conjunto de atividades e eventos em Bamako, Gao e Zalabe-labe, no Mali; em M’Hamid

El Ghizlane, , Zagora, Taliouine, Tiznit, Agadir, Béni Mellal, Khouribga,

Casablanca e Rabat, no Marrocos.

A narrativa possui, também, sua dimensão social, como intertexto de expressividades diversas e entre formas conscientes dos “riscos de tratar relatos orais gravados como se fossem documentos escritos, que podem ser estocados agora e analisados mais tarde” (CRUIKSHANK, 2006, p.163). Importa o resultado de debruçar sobre as formulações, os entendimentos, vocábulos e conceitos elaborados pelos interlocutores, pois não há, a meu ver um arcabouço conceitual capaz de apreender a temática dos festivais e dos encontros intercomunitários nas sociedades saelo-saarianas, sobretudo, nômades como os Kel tamacheque.

Rosaldo (1980) insiste na necessidade de se estudar com atenção os depoimentos orais, olhar para eles, indagar seus contextos específicos, pois organizam o entendimento dos acontecimentos em seus lugares e temporalidades. Na análise, cabe restituir o contexto em que agem nossos interlocutores diretos e indiretos com quem partilhamos de um modo ou outro, a autoridade da narração finalizada na forma de tese. Afinal, enfatiza 33

Etienne François (2006) “o objeto histórico é sempre o resultado de sua elaboração pelo historiador: em suma, que a história é construção”. Além disso, intersubjetiva, envolvendo encontros e desencontros de relações humanas.

No intuito de compreensão dos sentidos, experiências e circuitos dos festivais culturais saarianos em sua multiplicidade (e desdobramentos após 2012, tanto em

Bamako como em sua itinerância), com ênfase nas manifestações públicas e comunitárias tamacheque, assumo na pesquisa o desafio metodológico de articular fontes distintas

(escritas, orais e visuais). Acredito que seja temática pertinente para o debate sobre as assimetrias de poder no contemporâneo africano, silenciadas pelas hegemonias culturais

(GRAMSCI, 1978) ou outras formas de dominação sem hegemonia, que proliferaram após as independências no bojo da recusa da pluralidade de experiências culturais e práticas históricas que compõem os territórios que proclamaram como seus.

Para a análise, foram reunidos e discutidos, de maneira detalhada, os sentidos atribuídos aos festivais, as conexões culturais e sociais entre artistas, as formas de organização, os diferentes sentidos e as práticas expressivas presentes em programações de festivais e encontros intercomunitários nas regiões de Azawad no Mali, com suas ramificações no circuito Tamacheque-Amazir, no Marrocos. Além de realizar leitura crítica da literatura publicada em diferentes meios (impressos e digitais), trabalhei com diálogos estabelecidos com interlocutores/as em pesquisas de campo. Estas foram realizadas no Mali (Bamako, Gao e Zalab-labé) entre novembro de 2016 e fevereiro de

2017, e no Marrocos (M’Hamid El Ghizlane, Zagora, Talouine, Tiznit, Agadir,

Marraquexe, Rabat e Casablanca), realizado em outubro-novembro de 2017, quando foi possível participar do Festival Taragalte, cuja ligação com a música tamacheque é intensa.

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A construção do corpus para análise foi realizada considerando as entrevistas e as situações diferenciadas quanto a contextos e objetivos de cada festival: festivais culturais de âmbito internacional; concertos de âmbito local ou regional; encontros intercomunitários anuais da vida nômade no Mali na contemporaneidade - takubelt, temakannit, tamoqqast, tamadacht 15 - como as manifestações culturais realizadas na construção de novas territorialidades, como espaços culturais em centros urbanos não- tamacheque como em Bamako, após a impossibilidade de continuidade devido à guerra e a ocupação obscurantista nas regiões de Azawad, no norte do país. Os festivais culturais, assim como os encontros intercomunitários, apoiam-se na narratividade de suas memórias forjadas na oralidade, que se torna elemento chave para o trabalho do historiador

(BENJAMIN, 1987b; HAMPÂTÉ BÂ, 1980; VANSINA, 1980).

Foi possível construir um repertório de expressões orais (TAYLOR, 2013) provocadas seja por conversações formalizadas, como entrevistas registradas, seja por diálogos espontâneos, seguidos de anotações do que a memória pode reter - que tornam presente prismas e percepções do passado (VOLDMAN, 1992), como de vivências em torno da temática dos festivais. O repertório advém de patrimônios orais e audiovisuais, que se somam à sua textualização, constituindo parte da construção epistemológica da história do tempo presente. Importa reunir um conjunto de conhecimentos, perspectivas e experiências transmitidas, fundamentais para o historiador pensar o tempo do presente na conjugação de anseios passado/futuro.

O repertório decorrente de dispositivos performáticos, não imobilizam ou congelam expressão e compreensão, repondo movimentos que não são acolhidos em arquivos. Lidamos com saberes e conhecimentos transmitidos verbalmente. As

15 Variações regionais da forma de nomear esses eventos. 35 entrevistas - registradas em áudio ou vídeo -, transformaram-se na passagem do verbal para o escrito e nas traduções do francês, do árabe ou da língua tamacheque para português. Esse processo foi parte da metodologia de trabalho do pesquisador que se torna, assim, autor de sua escrita, sem perder de vista opções de estilo que operam neste processo.

A construção de fontes, caraterizadas por diálogos, contém dimensões epistemológicas e éticas particulares, reenviando à reafirmação constante de saberes que veiculam, de memórias cantadas e performadas, de identidades que garantem sentido aos movimentos da própria existência. Conforme assinalou Karsa walet Elghelas (1996), a

Mahmoudan Hawad: “quando os Kel Tamacheque abandonarem sua identidade ( temusa ), tornar-se-ão mortos-vivos”.

As narrativas em sociedades herdeiras de tradição oral constituem-se em práticas históricas e performances ancoradas em corpos, desafiando verdades estabelecidas

(ANTONACCI, 2016), sendo que a música, a gestualidade, o cenário e a ritualidade parcialmente revividas nos festivais culturais tamacheque, encarnam suas formas de interações socioculturais, desenhando laços e coesão. Os circuitos de festivais e os encontros intercomunitários, em narrativas e inscrições performaticamente apreendidas, renovam-se e abrem novas questões em ritmos e movimentos sem perder de vista “seus universos culturais no aqui agora, com recursos audiovisuais próprios” (ANTONACCI,

2018). As linguagens são múltiplas, nelas o corpo em movimento é “expressão de consciência de si” (MONGA, 2010, p.130) e de seu pertencimento ancestral e político; é lócus da produção de narrativas, pois, como enfatiza Célestin Monga (2010, p.133-134), no corpo se expressam as expectativas sociais e as responsabilidades de práticas históricas. Assim, compreende-se serem os festivais espaços privilegiados de narradores

36

(BENJAMIN, 1987a) tamacheque, em que se inscrevem história, cultura e política viva e em movimento.

A tradição oral evidencia sua dinâmica em interstícios de processos culturais históricos, como ressaltava Benjamin, reconfigurando experiências e vivências na perspectiva de tradições atualizadas, renovadas e presentificadas em experiência integral

(ou total), como espaço alcançado desde longe pela narração que repousa sobre a renovação, tanto na vida íntima como na vida comunitária. Conforme Stuart Hall (2000), a reconstrução, reinvenção e atualização da tradição se inserem nas condições históricas de cada momento e se apoiam na contingência política de rituais, liturgias e poéticas de gêneros orais (BENJAMIN, 1987a, HALL, 2000), via símbolos, metáforas, linguagens intertextuais de dimensões com significados, estéticas, éticas e políticas.

Os espaços culturais, enquanto manifestações da palavra tamacheque, são aqui estudados no movimento da história político-cultural de produção e transmissão do pensamento tamacheque no Saara. Suas práticas narrativas, enraizadas na sua memória social, em suas visões de mundo e valores ganham corpo em muitas linguagens. Diz Fabio

Leite (2008) que, em sua configuração vinculada às práticas históricas, “a palavra é geralmente relacionada com a problemática do conhecimento e sua transmissão, que se articula em vários níveis da realidade social” (1995/1996, p.106). Do mesmo modo, a palavra tamacheque – oral, ritual ou escrita - inscreve-se em dimensões narrativas muito complexas, presentes em todo universo histórico-cultural, realizando-se em corpos em performance - conforme Zumthor (1997) - na cultura material e sensível, como na arquitetura de sua territorialidade sempre em movimento.

Na sociedade tamacheque, palavra escrita e palavra oral formam ambientes de corpos em ação, sendo complementares e entrelaçados em experiências históricas e em 37 seus horizontes. Nos encontros intercomunitários tamacheque, como o gani no Aïr

(Níger), ou/e a takubelt, nas regiões de Gao e Kidal (Mali), observam-se laços entre linguagens e saberes conforme sugeria Zumthor (2007). Deste modo, compreende-se, por exemplo, que os instrumentos musicais possuam suas bases nos fonemas da língua, sendo sua música, linguagem e ritmos emanados do Saara. O guitarrista tamacheque Bombino

(MILESI, 2017) considera que o Saara é o melhor lugar para compor e tocar, enquanto

Ibrahim Abraibone, de Tinariwen, argumenta que sua música é cadenciada pelo passo do camelo andando na areia do Saara (STOUDMANN, 2012). Aziz Sahmaoui, músico iniciador do grupo University of Gnawa, que conheci e entrevistei em M’Hamid El

Ghizlane, durante o Festival Taragalte, converge para essa ideia do impacto subjetivo e espiritual da ambiência e atmosfera do deserto sobre a criação musical.

Lá existem algumas coisas que nos penetram. Há uma abertura, que é este sofrimento. Há esses olhos que se abrem na cabeça. Parece que vemos, não com nossos próprios olhos, mas com outros olhos que se abrem dentro do nosso coração. E imaginamos coisas e frequentemente há ministros invisíveis em volta de nós que não vemos. Esses seres que não vemos, apreciam o que fazemos. Isto quer dizer que quando esses ministros invisíveis em volta de nós nos veem eles dizem: esta pessoa é séria e quer criar algo. Então eles vêm em silêncio, você os vê e eles lhe sopram no ouvido. E é esta a magia que sai e surge de nós. De onde vem esta coisa? Ela não vem de lugar nenhum, mas ela surge de nós mesmo. É graças a estas vibrações, é graças a esses ministros do A criação !(ام) invisível que, de repente, você diz uau! al ilham chegou! (Entrevista 15, Aziz Sahmaoui. M’Hamid El Ghizlane, 2017). Para Aziz, um festival é, antes de tudo, “um assunto humano e uma relação humana”, refletindo sobre a motivação das pessoas de retornarem ao festival encenado sobre as dunas do Saara no sul do Marrocos.

A primeira noite eles/elas ficam nervosas/os e no dia seguinte acordam diante desta grande beleza incrível que é o deserto, diante desta liberdade. Mas, o que é esta liberdade? É este espaço interminável onde você pode viajar, todo o corpo, mas, também, como olhar. Teu olhar voa até a eternidade e até o infinito. Isso é incrível. É isso que as pessoas amam. De repente, elas se sentem livres, gostam do deserto e voltam todos anos para rever esse deserto e rever amigos. Isto é mais uma vez, uma história humana, não é? (Entrevista 15, Aziz Sahmaoui. M’Hamid El Ghizlane, 2017).

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Na expressividade musical, palavra, língua 16 e corpo desempenham papel importante e entrelaçados para configurar ritmos e cadências. “O ritmo acompanha a respiração, por isso existem frases e pausas. Os silêncios servem para pensar o que foi dito, ouvir o outro, como em uma conversa”, comentou Márcia Dib (2010), em seu estudo sobre música árabe que, acredito ser, também, válido para outras formas culturais como a experiência sonora saariana tamacheque. Aziz é contundente sobre a importância da experiência do silêncio e da abertura de horizontes na experiência do deserto:

Há esta vibração, mas é uma vibração que é um som no silêncio. incrível no qual , 17 ُ(ُن) e sukún ُ(ُت) Silêncio imenso, sukut residem milhares de respostas. Ao escutar este silêncio você se purifica e se torna leve. Finalmente, em se purificando, você se torna um espírito novo; é um novo nascimento, ficando apto para aprender, para compreender e a criar novas coisas (Entrevista 15, Aziz Sahmaoui. M’Hamid El Ghizlane, 2017). A palavra nos situa na experiência do espaço e na vivência de vazio existencial, mas ainda remete às sociedades, sua história e composição de suas identidades múltiplas.

O autor de “Les Gens de la Parole”, Dominique Casajus (2000), considera que os Kel

Tamacheque se situam em relação à alteridade pela palavra, seja os mais próximos, seja os mais distantes; a arte de dirigir-se ou não a um inimigo estabelece as fronteiras de identidades comunitárias e define relações de alteridade. Ser mestre da arte da palavra, nos diferentes gêneros orais históricos, é competência de grande prestígio, sendo extremamente valorizada (CLAUDOT-HAWAD, 2005). Processos que se fazem em pleno movimento de construção de si e de relações com seus Outros, em “uma história humana”, conforme Aziz.

A palavra assume um lugar preponderante, tanto como modo de expressão e comunicação - na literatura, história, imaginário, jurisdição -, quanto na vida política e

16 Semelhante observação acerca da relação palavra e fenômenos musicais foi feita por Kazadi wa Mukuna, 2006 em seu estudo mutações e permanências de elementos da música Bantu de Angola e República Democrática do Congo (então Zaire), na música popular brasileira (2006). 17 Respectivamente, silêncio e repouso. 39 religiosa, assim como na construção de saberes que são enunciados e transmitidos em

“lógica do oral” (DIAGNE, 2005; 2012). O autor analisa a palavra como suporte da comunicação e as técnicas orais no sentido de desenvolver, gerir e transmitir saberes, modelando o pensamento lógico e o espírito humano. A oralidade emana de sistemas contextuais e “ela engendra um modo particular de agenciamento do pensamento, comandado por recorrer a procedimentos decorrentes de tensões (constrangentes) do fato oral” (DIAGNE, 2005, p. 17) 18 . Dentre tais técnicas, chama atenção para a centralidade da dramatização nos diversos tipos de oralidade.

Acredito ser relevante entender os concertos e os festivais como formas de dramatizações socioculturais que recriam (ou dão continuidade), por sua vez, aos encontros intercomunitários, constituídos na sociedade tamacheque em diversas configurações e em diferentes regiões, independentemente dos países em que se encontram atualmente. Neste caso, a trama encenada (cantada, gestualizada e atuada) trabalha, entre outros temas, o drama histórico da construção de identidades (RACHIK,

2016), que possam dar continuidade, no contemporâneo da sociedade Tamacheque (e das diversas sociedades saarianas, igualmente desmembradas em suas redes de proximidades e de conexões) em suas espacialidades e temporalidades saarianas, sobretudo após o fracionamento de seus mundos, ocorrido a partir das fronteiras coloniais (de espacialidades e do pensamento sobre si).

Todo festival precisa conectar ambientes, pessoas, histórias e uma proposição forte, significativa e mobilizadora. Karin Barber (1987), pesquisadora que viveu, ensinou e participou como atriz de grupos de teatro yoruba, na Nigéria, argumenta, em suas

18 Traduzido do francês: “elle engendre un mode particulier d'agencement de la pensée, commandé par le recours à des procédures découlant des contraintes du fait oral”.

40 reflexões, que criação e transmissão manifestam-se em combinação. Creio que esta é uma importante indicação metodológica, também para o estudo de festivais. Diz ela:

Muitas formas populares africanas 19 manifestam-se através de uma combinação de música, dança, traje, mímica, canção e discurso. Nestas formas, o significado não pode ser apenas extrapolado a partir das palavras, mas é transmitido por todos os elementos em combinação. Existem muitas formas populares africanas de espetáculo que se assemelham ao music hall britânico, na medida em que são compostas de uma miscelânea de números distintos – uma canção, um sketch , um apontamento de comédia, um número de dança, mas que, apesar de tudo, patenteiam uma atitude coerente. Em casos extremos, o sentido é veiculado pelo simples facto de o espectáculo se conseguir realizar; em regimes muito repressivos, o facto de as pessoas continuarem a reunir-se para actuar e participar constitui uma afirmação de identidade e um desafio. Assim, interpretar o que as artes populares dizem não é linear (BARBER, 1987, p.2-3). O estudo sobre os festivais que emergiram no contexto da territorialidade tamacheque precisam ser, igualmente, entendidos como um grande entrelaçamento de linguagens capazes de avivar, durante alguns dias, uma experiência condensada e densa de práticas expressivas, de mobilizações do extraordinário redimensionado a partir da própria cotidianidade das pessoas.

Um festival faz apelo a um sonho, um anseio de memória futura, um projeto que refaz elos entre gerações de presente, passado e futuro. Iyadou Ag Lech, do grupo

Tinariwen, explorou esse devir relacional, dentro de um projeto de diálogo com o Mali, enquanto Estado nacional. Seria, assim, um modo de criar possibilidades de reconhecimento mútuo, de entrelaçamentos humanos:

Eu acho que o festival é algo, também, muito politizado, muito estratégico, pois fomos abandonados e fomos esquecidos por todos e, sobretudo, pelas mídias. O Mali nunca se interessou em expor nossa cultura, nunca mostrou a nossa música e nada da nossa cultura em seu canal nacional ou na rádio. Isso é um problema muito grave. Nós ganhamos esta política, pois pensamos em festival como alternativa e o fizemos. Então, foi muito bom e agora é o exterior que vem para nos ver. As pessoas não viam nada nos meios de comunicação sobre o que

19 A autora adotou, posteriormente, conforme ressaltou Nuno Domingos (2012), o conceito de culturas populares (e não mais artes populares), englobando práticas expressivas diferenciadas de distintos períodos da história africana, consideradas como leitura do mundo, em gêneros que oferecem narrativas sobre sociedades de África. 41

estava acontecendo em nossa terra e não conheciam, também, a bela vida que nós temos, compreende? Acredito que foi uma estratégica, uma chance, promover um festival, pois isto nos aproximou muito, também, entre nós (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016). As artes conjugam reflexões, geram experiências, podem ser poderosas politica e existencialmente. Bubakar Mohamed Samaké atribui importância às relações regionais e

às dinâmicas de alianças e mediações de conflitos cotidianos no Festival de Anchawadj

(edições em 2006 e 2008). Para Samaké, festival significa encontro ( tamoqqest ), neste caso encontro da comunidade:

Etimologicamente tamoqqest ou tamokhest em tamacheque, significa encontro [termo feminino]. Encontro para debater todas as problemáticas dos Tuaregues hoje. Os problemas de caravanas, os problemas de transumância, os problemas de pastagens, de casamentos, de conflitos etc. Todos os problemas da sociedade foram discutidos e debatidos durante essas duas edições (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. Bamako, 2016). Um festival pode assumir, no contexto tamacheque, a realização de antídotos à fragmentação, à paralisia (mesmo que momentânea) e um modo de contornar o aprisionamento imposto, entre outros fatores, por fronteiras de Estados-nação. O exílio político e a migração em busca de trabalho, sobretudo no norte do continente e, mesmo na Arábia Saudita, tornaram-se exigência para a sobrevivência econômica e, de certa maneira, para a continuidade do sentimento de honra por ser mobilidade e busca de suplantar humilhações. Esta alternativa não foi, porém, unânime, pois muitos homens e mulheres consideram a migração igualmente humilhante.

Na história política dos tamacheque, a resistência ( zemmer ) e a revolta ( tanakra ) assumiram, no século XX, uma dimensão diaspórica unificadora, pois criaram conexões novas entre as diferentes confederações, para sustentarem recusas ao domínio francês (e, posteriormente, aos Estados-nação em que foram involuntariamente divididos). Hassan

Rachik (2016, p.108), antropólogo marroquino, considerou que “a circulação identitária pode ultrapassar as barreiras identitárias” ao trabalhar criticamente sobre a história das composições no contexto magrebino. Para o autor há margens de escolhas deixadas às

42 pessoas a partir de um repertório existencial, político, axiológico e religioso que pode ser herdado, decretado, prescrito, imperativo (totalitário ou seletivo), cumulativo, plural ou adquirido.

Essa perspectiva de análise parece interessante para adensar movimentos de circulação de músicas, músicos, festivais e pessoas que visitam ou se envolvem nestes concentrados eventos culturais saarianos, como o Festival au Désert ou o Festival

Taragalte. Jean-Godefroy Bidima (2002) postulou a ideia de uma travessia em três eixos: desmontagem dos mitos fundadores, diálogo com a modernidade e dilemas da transcontinentalidade, em reciclagens de tradições que dialogam com atualizações de mitos.

A migração moderna intensificou-se e ampliou sua rede interna de sustentação, como no caso dos deslocamentos de um território tamacheque a outro de diferentes regiões administrativas. Os itinerários dessa mobilidade involuntária constituíram-se numa forma de continuidade de luta em que a sociedade teve que se redefinir, se reinterpretar para incluir suas diásporas e suas novas formas de mobilidade enquanto estratégias para projetar alternativas. A necessidade de mudanças sociais foi assumida sem, contudo, romper com suas profundas ancoragens territoriais e culturais. Hélène

Claudot-Hawad apontou essa percepção ao discutir a poética de Mahmoudan Hawad:

A experiência de dominação e de marginalização – política, social, cultural – ressentida por muitos tuaregue no contexto da ordem dos Estados modernos, são traduzidas por uma imagem recorrente: a de um corpo mutilado, amputado, ferido e impedido de se mover. Diante da fragmentação e da paralisia do corpo social, territorial, individual, revive a ideia de que é preciso remontar, soldar, relembrar para restituir sua mobilidade. As narrativas, a poesia, os cantos e outras expressões culturais são atravessadas por esta questão lancinante: como dar novamente corpo ao mundo. Isto é, dotá-lo de um suporte que o torne inteligível e o ponha de novo em movimento (CLAUDOT- HAWAD, 2007). 43

A maneira como nas artes, particularmente nos festivais culturais em estudo, a mixidade e os entrelaçamentos são abordados, indica uma pista de análise das entrevistas e das observações de campo. Adriano Mixinge (2000), historiador e crítico de arte angolano, fala de uma emergência estética pós-colonial em todas as manifestações da cultura. A arte revela, nesta perspectiva, seu compromisso com as origens, com a história, com a tradição desde leituras de continuidade, de mudanças e reinvenções alheias a rupturas.

Dialoguei com 48 entrevistas, individuais (majoritariamente) e grupais, com tempo de conversação variando de 20 minutos a 2 horas de duração: 24 no Mali

(individuais e grupais), 6 no Brasil (individuais) e 15 no Marrocos (individuais e grupais).

Ressalto que duas pessoas, Manny Ansari e Issa Dicko, foram entrevistadas em dias ocasiões diferentes. A entrevista com Mina Walet Oumar, cantora do grupo Tinariwen, realizou-se por meio de redes sociais que serviram, igualmente, para viabilizar conversas, visando precisão de informações ou para correções, em várias ocasiões no ano de 2018.

Além disto, recuperei para a discussão, as observações registradas durante a pesquisa de campo.

As línguas usadas nas entrevistas (escolhidas por cada pessoa) - tamacheque,

árabe ou francês -, expressam a grande variedade de situações em que nossos encontros ocorreram. Acredito que espelham, de certo modo, mudanças em andamento e, sobretudo, a situação de guerra com as migrações e deslocamentos decorrentes, que, também, inviabilizou viagens para as diversas regiões dos encontros intercomunitários no Mali (a exceção de Gao e Zalab-labé), assim como impediu os encontros intercomunitários e festivais de se produzirem nesse período da pesquisa.

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Sobre as fontes

1. Escritas. Documentos publicados, livros, artigos científicos, artigos de jornais, entrevistas publicadas, sites e blogs . Documentação da Associação Aitma, além da pesquisa feita na web a partir do Brasil, fazendo levantamento na biblioteca do Instituto Real da Cultura Amazir (IRCAM) e em livrarias de Rabat, Tiznit, Maraquexe, Casablanca e Agadir Marrocos.

Foi realizado, também, levantamento de um conjunto de entrevistas publicadas na web com artistas envolvidos com a história dos festivais do Saara tamacheque, que compõem parte do corpus , como fonte escrita.

2. Orais. Entrevistas e diálogos anotados.

Realizei pesquisa de campo no Mali (novembro de 2016 a fevereiro de 2017) e no Saara marroquino, durante o Festival Taragalte (outubro/novembro 2017). As entrevistas foram registradas (áudio ou vídeo), transcritas nas línguas de comunicação. Além disso, procedi às primeiras leituras para observar as temáticas mais relevantes em cada uma delas, permitindo a construção do plano de tese.

No Mali, trabalhei em Bamako, Gao e Zalab-labe, dialogando com:

1. Fadimata Walett Oumar, artista e líder do Grupo Tartit (Bamako). Foram realizadas duas entrevistas, individual e em grupo. 2. Ahmed Ag Hamama, produtor cultural, iniciador da retomada de Tamakanit na metade dos anos 1990 e professor em escolas nômade e em campos refugiados na Mauritânia, criados com o conflito de 2012 no Mali. 3. Boubakar Samaké, artista e produtor cultural (Bamako). 4. Moussa Sidi Ag Ikna, guitarrista de Tinaouker, (Gao). 5. Ousmane Amadou Maiga, produtor cultural (Gao). 6. Alhabib Ag Almouctafi, sábio e chefe tradicional de Zalab-labe e Omar Ag Almoustakim, professor de escolas nômades (Bamako); 7. Issa Dicko produtor cultural (ex produtor de Tinariwen), diretor do Festival Essuk, iniciador e co-diretor do Festival au Désert em Essakane Timbuctu (Bamako), conselheiro cultural do Centro Cultural Tumast em Bamako. 45

8. Entrevista de grupo: Albacher Ag Goubaye ativista de Zalab-labé, Zilkifli Ag Assalat, sábio de Zalab-labé, Alhabib Ag Almouctafi, Mohamed Issouf Ag Mohamed (Gao). 9. Mohamed Ag Ossad, diretor do Centro Cultural Tumast (Bamako). 10. Rhissa Ag Hadani, músico e produtor do grupo Aratan N’Akal (Bamako). 11. Badi Ag Aghali, músico do grupo Aratan N’Akal (Bamako). 12. Hamouna Ould Tayib, músico Aratan N’Akal (Bamako). 13. Abba (Mohamedoune Ag Ambery), líder e músico do grupo Etrane de (Bamako). 14. Tawale (Mohamed Mitta Ag Mohamed), produtor do grupo Etrane de Timbuktu (Bamako). 15. Fadl Ould Fattah, músico de Arawane - Timbuctu. Guitarrista que acompanhou Tinareiwen (Bamako). 16. M'Barka Dembele, guitarrista da cantora malinesa Khaira Arby (Bamako). 17. Mohamed Ag Ahmedou, produtor cultural que participou várias vezes do Festival au Désert de Essakane, Festival Taragalte, Festival dos Povos Nômades, Festival Tuisa de Tanger, Festival Ganga de Palmeraie, Festival Akabar, entre outros festivais no Mali, no Marrocos e no Níger (Bamako); 18. Keltoum Walet Emastagh, artista e promotora do grupo Chet Akal (Bamako). 19. Mohamed Ag Ida, engenheiro de Menaka, Talatayt (Bamako). 20. Lalla Walet Ilyas, ativista de Direitos Humanos de Menaka, Talatayt (Bamako). 21. Ilyas Ag Ayouba e família, militante por Azawad (Bamako). 22. Oumar Ag Almahdi, economista e membro da comunidade de Zalab-labe (Bamako). 23. Ahmed Ag Hamad Ahmed, membro da comunidade Cherifen, organizador de festival Anchawadj. 24. Mohamane Alasane Maiga, agente cultural de Bourem.

No Marrocos, foram realizadas doze entrevistas individuais e duas coletivas durante as atividades do Festival Taragalte/Caravana da Paz.

1. Manny Ansari, produtor do Festival de Timbuctu-Essakane (M’Hamid El Ghizlane).

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2. Lalla Badi, cantora e especialista no instrumento de percussão, tendé, tamacheque da Argélia (M’Hamid El Ghizlane). 3. Mohamed Bannour, artista visual e membro da organização do Festival Taragalte (M’Hamid El Ghizlane). 4. Aziz Sahmaoui, músico marroquino de Marraqueche e líder do grupo University of Gnawa (M’Hamid El Ghizlane). 5. Alain Weber, diretor artístico do Festival de Fez de Música Sacra do Mundo (Festival de Fès des musiques sacrées du monde), (M’Hamid El Ghizlane). 6. Ibrahim Sbaï, co-diretor do Festival Taragalte (M’Hamid El Ghizlane). 7. Mohamed Doumbia, diretor administrativo do Festival sobre o Níger (Festival sur le Niger) de Segu no Mali, (M’Hamid El Ghizlane). 8. Ali Laghfiri, guitarrista do grupo Jeunes Nomades (M’Hamid El Ghizlane). 9. Aziz Laghfiri, festivaleiro, agente de turismo e habitante de M’Hamid El Ghizlane. 10. Brahim Maalouf, músico do grupo Génération Taragalte (M’Hamid El Ghizlane). 11. Guindo do grupo Ali Farka Touré Band, Mali (M’Hamid El Ghizlane). 12. Fatou Seidi Ghali e Alamnou Akrouni, guitarristas e voz do grupo Les filles de Illighadad , Níger (M’Hamid El Ghizlane). 13. Grupo de festivaleiros de M’Hamid El Ghizlane (Chegaga). 14. Moradores de M’Hamid El Ghizlane (conversas anotadas). 15. Hassan Laghfiri, agente turístico (M’Hamid El Ghizlane).

Em São Paulo

1. Iyadou Ag Lech, baixista do grupo Tinariwen (São Paulo). 2. Abdallah Ag Alhousseini, guitarrista, compsitor e cantor do grupo Tinariwen (São Paulo). 3. André Jolly, produtor cultural francês que esteve no Festival de Essakane (São Paulo). 4. Omar "Bombino" Moctar, guitarrista tamacheque do Níger (São Paulo). 5. Toumani Kouyaté, artista e djeli do Burkina Faso e do Mali e um dos organizadores do Festival sur le Niger de Ségou (Mali) (São Paulo). 47

6. Cheick Tidiane Seck, músico malinês e co-promotor do Festival sobre o Níger de Ségou. (São Paulo).

3. Observações em espaços culturais. Discussão registros (audio, video e anotações) de conversas e situações emblemáticas em espaços culturais em Bamako: Centro Cultural Toumast, Espaço Songhoi, Associação Chet Agna (Keltoum), Centro Cultural Francês e celebrações familiares.

4. Fontes etnográficas em festivais. Festival Taragalte . Estudo realizado durante a edição de 2017 em M'Hamid El Ghizlane, região de Zagora, no Saara do Marrocos, objetivando a compreensão de dinâmicas cotidianas, as inter-relações entre músicos tamacheque e outros artistas imazirren (do Saara), as atividades da Caravana da Paz, conduzida por Manny Ansari. Esta parte das atividades de pesquisa adensou às bases empíricas para trabalhar a ideia de movências tamacheque além-fronteiras.

Outros Festivais : Festival Fescauri, Sibi, edição de 2016; Festival Dogon, Bamako, edição de 2016.

5. Fontes fílmicas .

AG ANARA, Souleymane (Direção e produção). Groupe Majdou . Niamey 2017, audiovisual, 4min.17seg. Disponível em: https://youtu.be/1YQ6q9tSj74 Acesso em: 25 Dez. 2018.

EssakaneFilm, conjunto de audiovisuais. https://vimeo.com/thelastsongbeforethewar.

KRASKOUSKAS, Kiley. The Last Song Before the War (The story of the most remote in the world & the battle to make it happen ). Canadá, Cor, Inglês/Tamacheque/Songhai, NTSC, 2013, 74min (Consultoria de Aboubacrine Ansar).

MaliDesertFest, conjunto de audiovisuais. www.youtube.com/user/MaliDesertFest.

SAHELIEN VIDEOS. Tanakra . 2018, 2min.33seg. Disponível em: https://youtu.be/BoZZhCpRxDU Acesso em: 25 Dez 2018. Aly Ag Mohamed

SHAWARTZ. Johana. They will have to kill us first . Inglaterra, Cor, Inglês/Tamacheque/Songhai, NTSC (DVD formats), 2016, 100min.

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A transcrição e a tradução foram quase todas realizadas pelo pesquisador, com algumas exceções, como a preciosa colaboração de Abdoul-Hadi Savadogo (como uma parte da entrevista a Toumani Kouyaté) e de primos: Mohamed Issouf Ag Mohamed,

Mohamed Issouf Ag Assalat, Ayouba Ag Oumar. O conhecimento da língua tamacheque, além da francesa e da árabe, juntamente como os códigos culturais fundamentais por parte do pesquisador, favoreceram um contato direto e aprofundado com os diferentes interlocutores que aceitaram colaborar. Isto não me exime da necessidade de assumir uma atitude reflexiva acerca das relações interpessoais durante a pesquisa, tanto durante as entrevistas quanto na interpretação e nas formas de restituição.

Nas leituras iniciais para apreciação temática, focando cada entrevista separadamente, o objetivo foi sublinhar passagens que definissem palavras-chave; narrativas de eventos da história dos festivais e pessoais; dimensões regionais, interações interpessoais e intercomunitárias. Após a realização das entrevistas e as primeiras audições e leituras sistematizadas, foi sendo construída a arquitetura da tese que se alicerça, portanto, em construção narrativa que emerge nessas interações entre vozes da pesquisa de campo. Para a escrita de cada capítulo consultei os/as autores/as de leituras prévias, renovando constantemente a pesquisa bibliográfica a fim de ampliar e aprofundar a compreensão em cada passagem.

A tese organiza-se em cinco capítulos, em movimento de compreensão histórico conceitual dos festivais tamacheque no Saara central e do Oeste, pensando as culturas expressivas e poéticas insurgentes em festivais e encontros intercomunitários do Saara azawadiano - com suas ressonâncias -, em suas inscrições africanas, culturais e históricas.

Assim trabalhei na elaboração do primeiro capítulo: “Da descolonização: contextualização histórica e importância dos Festivais culturais na África saelo-saariana após independências”. 49

No segundo capítulo, “Dos encontros intercomunitários aos festivais no Saara de

Azawad: performances, utopias e desafios”, no contexto das movências de festivais, dos encontros intercomunitários e dos desdobramentos da música ichúmar da década de 1980, acompanhei experiências no Mali, configuradas enquanto formas de manifestações culturais comunitárias extravertidas (BAYART, 2000).

O foco do terceiro capítulo “Festival au Désert: performances em dunas, caminhos e percepções entre sonho e realização” voltou-se para narrativas sobre constituição, motivações, percepções, dinâmicas e consequências, seus principais produtores e redes de suporte do Festival au Désert (optei por não traduzir) que intervieram para viabilizar suas diferentes edições. Procurei realçar suas edições e momentos emblemáticos até as represálias que sofreu, pelo obscurantismo e guerra, juntamente com o conjunto de manifestações festivas e, consequente, inviabilização desde 2012. Em seguida, discuto a emergência da Caravana pela Paz como forma de mobilização e de itinerância simbólica do Festival au Désert.

Festival Taragalte, em M’Hamid El Ghizlane e os circuitos culturais amazir no

Saara marroquino, compõem a conexão dos circuitos saarianos no Marrocos, fornecendo as bases do quarto capítulo: “Festival Taragalte: musicalidade tamacheque além- fronteiras”.

Bamako é o cenário do estudo discutido no quinto capítulo da tese: “Movências em territórios urbanos: cenários inter/culturais ou confront(ação) simbólica e narrativa ?”, abordando territórios urbanos expressivos que surgiram desde cenários de paisagens cotidianas das migrações. Consequências da mobilidade tamacheque das últimas décadas, mas, sobretudo, das configurações que assumiram desde o conflito iniciado em 2012 e que ainda perdura.

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CAPÍTULO 1. Da descolonização: contextualização histórica e importância dos Festivais culturais na África saelo-saariana após independências

Na descolonização africana houve movimentos intensos que provocaram exercícios de remontagens socio-culturais, de reorganização das diferenças e de circulação de pessoas e culturas (MBEMBE, 2010). Neste contexto, novas proposições de sociedades emergiram com fluxos intensos e com tramas complexas e móveis. Os festivais culturais e os encontros intercomunitários tamacheque inscrevem-se como insurgências em campos performáticos e poéticos ichúmar ampliados, convocando os Kel

Tamacheque - ou Imajaghen 20 -, à crítica cultural e política. Na canção de Abdallah Ag

Oumbadougou 21 , músico da região do Aïr (Níger), observa-se insistentes evoções para que a sociedade não perca a capacidade de se insurgir contra o abandono de sua língua

(tilest ), escrita ( tifinagh ), história ( issiwilan ), honra ( sarho ), sinalizando o papel fundamental da mulher ( tamajaght ) - da mãe ( anna ) -, na transmissão da tanakra (levante, revolta), ou seja, da capacidade de insurgir-se contra a opressão.

Ai, pobres Imajaghen khay imadray imajaghan que não sabem a fala no tempo waren-assen magrad dagh azzaman o levante [está] sobre vocês imajaghen tanakra fallawan imajaghen não deixem vossa honra, warhin toyem sarho nawan, não deixem vossa mãe war toyem anna nawan [uma] mulher tamacheque que vos gerou todos tamajaght kawan terawat iket nawan lhes deixou vossa língua tamacheque toyawanad tilest nawan tamashak que todos devem falar tatssiwalam iktnawan ela vos deixou histórias em tifinar toyawanad issiwilan tifinagh que devem escrever e aprender tat-aktabam taghram tanat que vossos filhos não partam shaghat nawan warza tagal onde estiverem, ensinem-lhes a se insurgir widan tallam saghratan ad ankaran

O poeta lamenta a dificuldade dos “ imajaghen” e apela para a valorização da cultura e para o imperativo de mudanças a fim de compreender o discurso do tempo

20 Expressão mais utilizada nas regiões Kel Tamacheque do Níger. 21 AG OUMBADOUGOU, Abdallah. “Ghay Imidraye Imajaghene”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=OS24szGBJAM&feature=youtu.be 51 presente (magrad dagh azzaman ). Esse apelo remete às críticas da própria sociedade Kel

Tamacheque, desencadeadas pelo movimento da techúmara, migrações e exílios. Era preciso romper dinâmicas de poder inoperantes, hierarquias e diferenciações sociais e culturais, repensar a herança cultural tamacheque, oral e escrita, além de reforçar o sentimento de pertencimento e de interrelações entre os diversos grupos sociais e as diversas tiwšaten (confederações), impulsionando relações mais horizontais para formar uma sociedade tamacheque capaz de se inscrever com integridade no contemporâneo.

Nessas dinâmicas ocorrem “transformações profundas da sociedade sobre os planos militar, político, ideológico e social”, segundo Mahmoudan Hawad (2012), sendo que as noções de tumast (o que somo todos juntos, nação) aliadas a de tamurt (referência organizadora do pertencimento, cultura), tornaram-se mais e mais relevantes por reforçarem uma perspectiva mais abrangente de sociedade e pertencimentos.

As experiências cotidianas e os horizontes gerados nas dinâmicas da sociedade, tornaram-se mais relevantes do que as geografias políticas definidas pelos Estados-nação.

Neste capítulo pretende-se situar contornos do movimento cultural em que surgiu a musicalidade da guitarra tamacheque, considerada como inseparável da experiência saariana, que a seu turno, é debitaria tando da história dos primeiros anos após as independências, como dos movimentos culturais mundializados atuais.

Culturas e poéticas insurgentes: condições e história da emergência dos Festivais do Saara azawadiano

A Techúmara, enquanto movimento musical, revelou a necessidade de renovação da própria sociedade (Ag DOHO, 2010) e circunscreveu alternativas estéticas, políticas e intergeneracionais, além de favorecer a circulação da palavra das margens, ampliando e modificando horizontes. O movimento cultural da Techúmara - bases dos concertos e

52 festivais atuais – está conectado a um movimento de resistência cultural 22 , política e territorial que, diversas vezes, assumiu formas de luta armada. Como espaço de expressão artística, surgiu do encontro da poética tamacheque, da difícil experiência de migrações pós-coloniais e das lutas políticas que daí emergiram. O rock do tenere (deserto) é a música dos jovens da geração dos anos 1980, que fizeram da guitarra o símbolo fundamental de formas de ação e arma política. Sua música era destinada a uma comunicação tanto interna (buscando a tomada de consciência da opressão vivida e adesões à luta), como externa (visando sensibilizar e tornar conhecidas além-fronteiras, lutas pelo direito de narrar sua história, de defender seus territórios e modos de vida).

Em 1963, após a independência do Mali, os Kel Tamacheque revoltaram-se contra as autoridades do novo país. Foram duramente reprimidos, com fortes confrontos e grandes perdas humanas e animais (TINARIWEN, 2012 Álbum Tassili). Os anos seguintes foram pontuados por migrações, devido à repressão e às imensas dificuldades geradas pela grande seca de 1973 e 1974, mais tarde pela de 1984 e 1985 (SIRCOULON,

1984-1985; SPITTLER, 2000; LECOCQ, 2004; RANDALL, 2005, entre outros). A fragmentação do território, tributos e outros modos de entraves da economia e da mobilidade foram percebidos como pilhagens, configurando para Pliez (2006), as condições de continuidade da resistência mesmo após as independências.

O impacto de migrações e experiências comuns no exílio diminuiu a identificação das federações políticas tamacheque para dar lugar a um crescente sentimento de unidade, fortalecendo a dimensão identitária da Tumast/ temust (nação) tamacheque. A Techúmara

22 Nesta tese, resistência ( zemmer, aggagh fel man, em tamacheque) é assumida como processo multilinear e heterogêneo, tanto na forma como em conteúdo (PAIVA, 2014), pois resistir compreende um grande número de práticas contra-hegemônicas que se manifestam, igualmente, no campo das linguagens e expressões culturais, pois podem assumir a forma de estratégias de poder (FOUCAULT, 1985) cotidianas, móveis com estratégias multiformes e criativas, já que emergem em situações de distribuição desigual de força (CERTEAU, 1994). 53 reinscreveu o próprio sentimento de orgulho de ser tamacheque – temuja’ra ou temushar’a –, renovando seus ideais que, segundo Hawad (1995, p.13), viu-se diante do dilema: reinventar-se ou ressecar e morrer. Pois, após a insurgência liderada por Kawsan

Ag Kidda 23 e a repressão à revolta de Zeyd Ag Attaher, em 1963-4, no Mali, juntamente com as grandes secas, sem real suporte dos Estados do Mali e do Níger, gerando forte sentimento de desolação que levou a sociedade a se dobrar sobre si mesma 24 .

A poesia cantada - nome atribuído por Nadia Belalimat (2008) ao gênero musical tamacheque predominante em nossos dias - tornou-se expressão poética e política de jovens exilados do Mali e do Níger, tanto no sul da Argélia como no sul da Líbia, a partir dos anos 1960. Há, igualmente, nessas expressões culturais uma leitura crítica radical da ordem social (BOILLEY, 1999, p. 402-403). Dois fundadores do grupo Tinariwen,

Abaraybone (Ibrahim Ag Alhabib) e Intiyeden (Ag Ablal), foram precursores das primeiras experiências e tiveram versos compostos em Tamanrasset. Essa nova música de encontros mais intimistas, de convívio e de festas, assumiu um papel de coesão decisivo. Suas músicas foram, então, registradas em fitas cassetes, difundindo-se, assim, por todo o espaço cultural tamacheque.

No final da década de 1980, Abaraybone e Intiyeden foram para os campos de treinamento militar de Muammar al-Kadafi, na Líbia. Lá, encontraram Kedhou Ag Ossad,

Mohamed Ag Itlal (Japonês) e Alhassan Ag Touhami, conhecido como Ahar ou

Abenneban e, posteriormente, Abdallah Ag Alhousseini, integrou o grupo. Dizem, no documentário “Teshumara, les guitares de la résistence touarègue”, que decidiram dedicar-se à música unicamente quando compreenderam, em 1981. Muammar al-Kadafi não apoiou realmente a causa tamacheque como prometido, mas utilizou os jovens

23 Seu nome pode ser encontrado com diferentes grafias, como Kaocen, Kaossen, Kaosen. 24 Ver sobre a temática: Bellil; Badi,1993; Klute, 1995; Keïta, 2005; Lecocq, 2010.

54 tamacheque, que estavam nos seus campos de treinamento, para combater contra Israel, na Palestina ou no Líbano, (BOILLEY, 1999, p.427-428).

A poesia dos Ichúmar como produção estética da revolta iniciada em 1963 exigia, segundo Belalimat (2003), ser lida no contexto da própria tanakra (revolta/ revolução ou luta). Deste modo, explicou que seu interesse não derivava de qualidades estéticas construídas pelos critérios de composição da língua tamacheque e da oralidade poética clássica. Desde o início de 1980, as fitas de áudio das primeiras canções tornaram-se um enorme sucesso. As mensagens refletiam um novo mundo tamacheque que estava se formando nas diásporas, exílios e nas lutas política e cultural.

A poesia ( tessawit ) e a música ( iswat , issouhagh, assekbal, addal ou asseddal ) acompanham e agregam, segundo Mécheri-Saada (1994, p.58) sentidos múltiplos e abertos aos momentos rituais mais significativos na vida de pessoas, grupos ou famílias, assim como das reuniões e assembleias musicais e poéticas que a sociedade Kel

Tamacheque conheceu e desenvolveu ao longo de seus processos históricos e culturais.

Mesmo que tais manifestações sejam cada vez mais desafiadas pelas transformações, permanecem como referenciais para as gerações atuais de diferentes maneiras, circunstâncias e intensidades. Esses gêneros de experiências estéticas estão na base da emergência de uma nova música ligada à migração e à experiência urbana transnacional.

O movimento da Techúmara rompeu com hierarquias sociais em diferentes dimensões da cultura tamacheque, tanto no comportamento social como na dinâmica musical, produzindo profunda renovação da sociedade (AG DOHO, 2010), que conheceu uma situação caracterizada por insílio, conforme Benedetti (1984, 1988). Tal situação de se perceber ou de se sentir como estrangeiro/a em seu próprio território, resilta da marginalização, opressão e/ou negligência do Estado. Arudeyni Ismaguil (apud 55

GENTHON, 2012, p.131) - músico tamacheque do Níger - entendeu que foi preciso construir uma ampla aceitação social de performances dos instrumentos e da nova poética cantada, mantendo a inspiração e a referência das formas culturais anteriores. A guitarra representou, ainda, um instrumento de mudança na linguagem de trocas públicas entre idades e entre os gêneros para os jovens (AMICO, 2010; BENSIGNOR, 2006; EL

ANSARI, 2011).

Até os anos 1990, o grupo Tinariwen - um dos maiores símbolos da dimensão musical da Techúmara - não havia ainda se organizado em associação profissional, nem comercializado suas músicas, considerando-se a serviço da luta tamacheque. Nesse período, as fitas e a produção musical foram criadas para serem ouvidas pelos próprios

Kel Tamacheque. A música ichúmar conheceu, assim, uma forma de transmissão marcada pela oralidade, transmitida à distância graças aos toca-fitas e festas (durante todo o período entre 1980 e 1990).

Os encontros intercomunitários, por sua vez, foram retomados com as ações que permitiram o retorno da paz, celebrada em Timbuctu no ano de 1996. A primeira takubelt, nesse contexto, foi a de Essuk em 1997, em que muitas comunidades tamacheque das regiões de Gao, Timbuctu e Kidal participaram, além de grande presença do Estado do Mali.

Os laços entre as gerações constroem um fio de continuidade entre a luta de 1963, a experiência na Líbia nos anos 1980 e as lutas de 1990, no Níger e no Mali, até nossos dias. A produção musical da Techúmara religa gerações diferentes, homens e mulheres, desde a independência, sobretudo no Mali, Níger e Argélia. Numerosos foram os grupos e músicos que surgiram e trilharam os caminhos do renomado grupo Tinariwen no Mali e, também, de Takrist n’Akal, de Abdallah Ag Oumbadougou, do pioneiro projeto

56

Desert Rebell, no Níger. No Mali tornaram-se grupos conhecidos: Terakaft; Tartit;

Tamikrest; Amanar de Kidal, Azawad de Menaka; Imarhane de Timbuctu entre outros.

No Níger ficaram renomados: Toumast, Atri n’Assouf, Koudede, Etran Finatawa, Hasso

Akotey, Hamid Ekawel e Omar Moctar (Bombino).

A música dos Ichúmar, segundo Issa Dicko (apud VALENTINO, online ) transformou-se em elemento essencial para a promoção da imagem dos Kel

Tamacheque, dotando-a de visibilidade para além das suas fronteiras. Como movimento, fez circular reflexões sobre as questões problemáticas fora do território saariano. O percursionista Aghaly Ag Mohamadine declarou, em entrevista a Nicolas Roux, que os

Kel Tamacheque desejaram passar, por meio da guitarra, sua mensagem para além de seus territórios: “n osso combate é a guitarra (…). Se eu parar na rua e falar de nossa situação, ninguém me escuta, mas, se eu toco a guitarra, então as pessoas me escutam” (MOHAMADINE, apud ROUX, 2010, online ).

Em 1991 ocorreram as primeiras tentativas de acordo entre o governo central do

Mali e alguns líderes do Movimento Popular de Libertação de Azawad (MPLA) 25 , liderado por Iyad Ag Aghaly, um afaghis de Kidal. O acordo sobre a cessação das hostilidades foi assinado entre o Governo da República do Mali, por um lado, com o

Movimento Popular de Azawad e a Frente Islâmica Árabe, por outro, no dia 6 de janeiro de 1991, em Tamanrasset. Este foi o primeiro acordo entre os movimentos de Azawad e as autoridades de Bamako, conhecido como acordo de Tamanrasset 26 . Em 11 de abril de

1992, foi assinado o Pacto Nacional pelo governo do Mali e pelos líderes dos

25 Após este acordo que ocorreu em Tamanrasset, em 1991, o nome de tal movimento virou MPA, pois voltou de ideia de libertação e reconheceu a integridade territorial do Mali com uma certa autonomia que nunca existiu. 26 Ver o conjunto do texto deste acordo: http://www.unesco.org/culture/fr/indigenous/Dvd/pj/TOUAREG/TouaregC4_2.pdf. 57

Movimentos e Frentes Unificados do Azawad (MFUA), intermediado por seu secretário geral, Zeidane Ag Sida Lamine, da comunidade Chamanammas de Gao.

Contudo, os anos seguintes da assinatura do Pacto Nacional foram ainda mais violentos, sobretudo em 1994 porque tais acordos não foram imediatamente aplicados, obtendo-se normalidade apenas em 1996. O exército nacional e as milícias pró-governo do Mali continuaram realizando crimes contra civis tamacheque e mouros, entre 1992 e

1996, ano de celebração da renomada cerimônia “Flamme de la Paix” (Chama da Paz).

Este foi um ato simbólico que teve a participação do então presidente do Mali, o historiador Alpha Oumar Konaré, que ateou fogo, ele mesmo, em mais de 3000 armas devolvidas pelos Movimentos e Frentes Unificadas de Azawad (MFUA). Outras personalidades políticas do continente africano (de Burkina Faso, Mauritânia, Argélia,

Líbia, para citar algumas) participaram da cerimônia, assim como os representantes da

Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização do Comitê Islâmico (OCI), da

Organização da União Africana (OUA) 27 , da Comunidade Econômica dos Estados da

África do Oeste (CEDEAO) e de governos europeus, como o da França.

Foi a partir daquele mesmo ano (1996) que Tinariwen, juntamente com outros artistas, passaram a se dedicar exclusivamente à música, divulgando a arte e o modo de vida tamacheque em outras regiões do Saara e fora dele. Assim, os membros do grupo que participaram da rebelião foram trocando armas por instrumentos musicais, a luta armada por luta cultural, formando escolas de música, envolvendo-se em diferentes projetos de reconstrução econômica, política e de valorização cultural. Ações que permitiram a um número muito significativo de jovens tamacheque aprender a tocar

27 Em 09 de setembro de 1999 tornou-se União Africana, UA.

58 violão e guitarra elétrica, levando à criação de numerosos grupos musicais no mundo tamacheque.

A paz que se estabelecia era, porém, muito frágil, pois estes acordos continuaram sendo mal aplicados ou ignorados, resultando em novas revoltas a exemplo da ocorrida em 2006, no Mali (SAINT-GIRONS, 2008) 28 . As negociações com os poderes centrais foram distintas e seguiram processos dialógicos diferenciados em Niamey e em Bamako.

O Níger tem conseguido garantir um processo de superação do conflito, enquanto o Mali tem vivido um dos momentos mais dramáticos de sua história nacional, pois até o presente, o país não encontrou caminhos para a paz. As estratégias de negociações criaram grandes tensões e dividiram as opiniões e as posições das lideranças, dos combatentes e da população tamacheque e malinesa de forma ampla.

A rebelião tamacheque e árabe de 1990, foi uma luta pela real integração ao

Estado-nação malinês e suas instituições (BOILLEY, 2009, 2011). Esse ambiente de descontentamento cresceu entre 2000 e 2012. Boilley (2011, online ) considerou importante distinguir três momentos caracterizados por: revolta isolada (1963-64), lutas pela integração nacional e geopolítica saariana (1990-1996 / 2000) e internacionalização dos conflitos locais (2006-2011). O conflito transformou-se em guerra com vários atores em cenário de geopolítica internacional que, desde 2012, seguiu fazendo inúmeras vítimas, principalmente, na região de Azawad, no norte do Mali, e, mais recentemente, no Macina, região central, envolvendo em primeiro plano, as comunidades Fula, com a criação da Frente de Liberação de Macina (FLM), em janeiro de 2015 (ZENN, 2015;

WHITEHOUSE, STRAZZARI, 2015), além do movimento extremista liderado por

Hamadoun Koufa (CISSÈ, 2018).

28 E, em 2007, no Níger. 59

Cenários de ameaças: dramas políticos e guerras

Mesmo sem ser objetivo direto deste estudo, o debruçar sobre os conflitos armados pelos quais a sociedade tamacheque e o conjunto das populações do Mali e do

Saara têm vivenciado desde 2012, tornou-se importante situá-los. Isto porque tais questões modificaram relações e horizontes de vida, perpassando toda a experiência cultural, especialmente as expressões musicais, além de afetar diretamente a viabilização dos festivais e dos encontros intercomunitários. Para isto, retomo questões políticas fundamentais que ligam Argélia e Mali, envolvendo a região saariana em que vivem os

Kel Tamacheque, raramente lembrada nas análises da situação atual, cujo cenário de guerras tem ameaçado as sociedades locais e regionais.

Neste sentido, a primeira situação, que teve consequências relevantes para a segurança, foi o modo como as eleições ocorridas em 1991, na Argélia, repercutiram durante anos consecutivos. Naquele ano, a Frente Islâmica de Salvação (FIS) da Argélia, obteve grande vitória no primeiro turno das eleições legislativas. Os militares não reconheceram os resultados e conduziram a FIS à ilegalidade, desencadeando um período de violências que degenerou em guerra civil. Desde então, um influente grupo de generais passou a escolher os chefes de Estado argelino até 1999, ano em que Abdelaziz Bouteflika concorreu como candidato único, permanecendo no poder até nossos dias.

Bouteflika liderou o processo que finalizou com a Guerra Civil em 2002 e o estado de emergência em 2011. Apesar de medidas e esforços para restituir a paz na Argélia, controlar as explosões de violência de grupos rebeldes 29 e da política de “concórdia civil”, houve insurgentes que não cederam. Dessa forma, os relbeldes fundaram outros grupos

29 O Grupo Salafista para a Predicação e o Combate (GSPC), fundado em 1998, por Hassan Hattab - dissidência do Grupo Islâmico Armado (GIA), criado desde 1996.

60 que em 2006 se tornaram Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), em articulação com a rede Al-Qaeda. AQMI - liderado por Abdelmalik Drukdel (Abu Mussab Abdul Wadud), que instalou suas bases em território malinês durante o primeiro governo de Amadou

Toumani Touré -, foi o primeiro responsável pela desestabilização social e econômica de

Azawad, agindo durante quase dez anos sem que o Estado assumisse a proteção da população. AQMI constituiu, igualmente, uma das principais razões das dificuldades que enfrentaram os festivais e as manifestações culturais da história contemporânea tamacheque, inicialmente devido à instabilidade econômica, mobilidade territorial e aos sequestros que operavam na Argélia e Níger, refugiando-se no Mali 30 . Tais descontroles, juntamente com a invasão da Líbia, o assassinato de Muammar al-Kadafi e a desestabilização da Líbia, constituiram fatores decisivos na insurgência de 2012, pelo

Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA).

Após quase três meses de guerra com sucessivas derrotas do Exército Nacional do Mali, um grupo de militares, liderado pelo capitão Amadou Haya Sanogo, organizou o golpe de estado ocorrido no dia 22 de março de 2012. O então presidente, Amadou

Toumani Touré, conseguiu fugir do palácio governamental, mas foi obrigado a deixar o país. Sanogo assumiu a condução do país durante os meses seguintes, devido à pressão da CEDEAO, UA e da Comunidade Internacional, cedeu o cargo para Dioncounda

Traoré, presidente da Assembleia, que assumiu a transição conforme a constituição malinesa de 1991.

A situação dos migrantes tamacheque em Bamako tornou-se mais difícil. Em duas ocasiões (22 de fevereiro e em 22 de março), casas de pessoas classificadas como

“mògow jemaw” (pessoas de pele clara) foram alvo de uma sequência de ataques, além

30 Em 2003, Abdul Razzaq al-Para, então líder do GSPC, sequestrou 32 turistas europeus, mas libertou a todos após receber um resgate de 5 milhões de dólares. 61 de pilhagens e linchamentos. Um caso amplamente documentado foi a pilhagem das casas e estabelecimentos (clínica e farmácia) de uma família tamacheque em Kati, na proximidade da base militar dos putschistas liderados por Amadou Sanogo.

Esses eventos evidenciaram a fragilidade da sustentação social e política para que membros da sociedade tamacheque pudessem continuar a viver na capital. Entre as famílias instaladas desde décadas em Kati, considerando-se malinesas com muitos de seus membros nascidos e crescidos naquela cidade, estava a da ex-ministra e ex- funcionária da ONU, Zakiatou Walet Halatine e a de Aboubacrine Assadeck Ag

Hamahadi, renomado professor de matemática da Universidade do Mali.

Nas regiões de Timbuctu, Gao e Kidal, as forças do MNLA haviam expulsado, até o fim de março de 2012, os soldados do Mali, sendo que em 6 de abril do mesmo ano, o MNLA declarou unilateralmente, a partir de Gao, a independência de Azawad.

Bilal Ag Acharif, secretário geral do movimento, foi escolhido como presidente do

Conselho Transitório do Estado de Azawad (CTEA), composto por 28 membros.

Pouco tempo depois, os grupos fundamentalistas AQMI31 , Ansar Dine 32 e

MUJAO 33 , disputaram o poder com o MNLA, criando grande tensão na cidade de Gao.

Lembrando que o grupo Ansar Dine era liderado por Iyad Ag Aghaly, conhecido líder 34 que havia assinado sozinho em Tamanrasset, sem consulta às bases, o contestado acordo com o Mali de 1991. Quanto ao grupo MUJAO, vários de seus membros foram

31 Grupos de origem é argelina, com presença no Sul do Saara, favorecidos pela ausência de estruturas civis e econômicas do Estado do Mali. Organizam-se por batalhões ( katibat ) e brigadas ( seriat ), em permanente recomposição. 32 Ou Ansar Eddine. Seu fundador, Iyad Ag Ghaly apareceu em um audiovisual como imã com centenas de combatentes em , em13 de março de 2012. Naquela ocasião declarou o nome de seu movimento Ansar Dine, que significa apoiadores da religião, afirmando que lutava pela aplicação literal da charia islâmica. 33 Movimento de Unicidade e Jihad na África de Oeste, braço de AQMI que se tornou autônomo em 2011, comandados por Mokhtar Belmokhtar que desenvolve atividades de contrabando e tráfico. 34 Secretário geral do Movimento Popular para a Libertação de Azawad, MPLA, cuja fratura deu origem ao Movimento Popular de Azawad MPA.

62 reconhecidos pela população local como sendo, em sua maioria, Lemhar 35 , Songhoi e

Fula 36 . Ansar Dine foi composto majoritariamente por Kel Tamacheque, sobretudo de

Kidal ( ifoghas e seus aliados). Os grupos fundamentalistas locais (malineses), Ansar

Dine e MUJAO, aliaram-se a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), formado por estrangeiros, em sua maioria argelinos (ex-combatentes de FIS, que se tornou GSPC e

GIA). O AQMI apoiou o MUJAO durante seus confrontos com o Movimento Nacional para a Libertação de Azawad para a tomada das grandes cidades de Azawad, ou seja, do norte do Mali, na primavera de 2012 37 .

Em Timbuctu, membros de AQMI, de MUJAO e de Ansar Dine foram acusados de destruir os túmulos de santos sufi em maio de 2012, que integravam a lista de

Patrimônio Mundial da UNESCO. No fim do mês de junho, vários locais em Timbuctu foram atacados com picaretas e pás (JEPPIE, 2015, p. 85), em evento que levou à condenação de Ahmad Al-Faqi Al-Mahdi, membro de Ansar Dine, a nove anos de prisão

35 Populações de língua árabe da região nordeste do Mali e do Níger que haviam migrado da Mauritânia a fim de apoiar os árabes Kuntas, ainda no período colonial, contra os tamacheque Iwillimiden Kel Attaran (Timbuctu e Gao). Os árabes de Tilemsi (Tangara) da região de Gao se mantêm mais próximos ao estado. 36 Dissidência de AQMI, MUJAO foi fundado por Hamada Ould Mohamed Kheirou, Ahmed al-Tilemsi e Sultan Ould Bady, membros de AQMI. O MUJAO foi criado como katiba (coluna militar), constituída por combatentes lemhar do norte do Mali, Porém, a criação de Ansar Dine em 2012, identificado como tamacheque, favoreceu a regionalização com várias katibas , fundando o MUJAO. Porta voz do MUJAO, Abou Walid Al-Sahraoui, Abdel Hakim, tornou-se responsável por Gao e Oumar Ould Hamaha, chefe militar e da segurança. Chérif Ould Taher, lemhar, conhecido traficante de drogas foi considerado desde 2012 o segundo homem na hierarquia do grupo. Yoro Ould Daha e Aliou Mahamane Touré ficaram como responsáveis pela polícia islâmica de Gao (SERVICE CANADIEN DU RENSEIGNEMENT DE SÉCURITÉ, 2014). O MUJAO era composto por cerca de mil combatentes, divididos entre katibas: katiba Oussama ben Laden , comandada por Ahmed Ould Amer, conhecido Ahmed al-Tilemsi; katiba Usman Dan Fodio comandada por Bilal Hicham e, depois, por um beninense chamado Abdoullah; katiba Salah Din , comandada por Sultan Ould Bady (aliou-se a Ansar Dine no final de 2012) e, por fim, a katiba Ansar Suna , composta principalmente de Songhoi, tendo sido subdividida, posteriormente em quatro katibas : Abdallah Azzam; Zarqaw; Abu Leith Ellibi e Mártires. (RATO, 2016; SERVICE CANADIEN DU RENSEIGNEMENT DE SÉCURITÉ, 2014). 37 A bibliografia sobre o tema é vasta. Ver Raineri, Strazzari, 2017; Barbet, 2016; Scheele, 2009; Service Canadien du Renseignement de Sécurité, 2014. 63 pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, em 27 de setembro de 2016 (JANIER,

2016, online )38 .

O MNLA 39 , expoente do nacionalismo tamacheque, obteve ao longo do processo apoio de grande parte das confederações, tiwšaten como de pessoas de outras sociedades, mouras e songhoi, declarando-se como movimento de luta por direitos e por justiça de todas as populações da região de Azawad. Conquistou diversas cidades possivelmente sem a colaboração destes grupos, porém se aproveitaram de brechas, beneficiando-se, ainda, de maior arsenal bélico. Consequentemente, houve crescente capacidade de espraiamento dos grupos extremistas que atuavam na região desde muitos anos (via tráficos e sequestros).

Tais grupos travaram vários combates contra o MNLA, que permaneceu na defesa de perspectiva de construção de um estado laico, terminando por manter lugares mais simbólicos de narrativa e de resistência, aspirando apoios ao demonstrar que seria capaz de fundar um país. A orientação do MNLA foi criticada por MUJAO e AQMI, que viram sua defesa da democracia e da pluralidade religiosa como posição ocidental e profana.

Em Gao, o MNLA conviveu, principalmente, com o MUJAO, sendo que as tensões aumentaram porque legitimou-se como movimento nacionalista, depois de realizar assembleias e reuniões com a população, à diferença de MUJAO, que se fortaleceu, sobretudo, devido à adesão Songhoi e Fula, que criaram suas katibas .

38 JANIER, Aymeric. Mausolées de Tombouctou: le jugement historique de la CPI Le Monde, 29 de setembro de 2016 ( online ). Disponível em: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2016/09/29/mausolees- de-tombouctou-le-jugement-historique-de-la-cpi_5005207_3212.html. Acesso em: 9 dez. 2018. 39 Criado da fusão do MNA (Movimento Nacional de Azawad), uma organização estudantil e do MTNM (Movimento Tuareg do Norte do Mali), um grupo armado. Hoje está subdividido em MSA-Gao, Movimento para a Saúde da Azawad de Gao; MSA-Menaka, Movimento para a Saúde da Azawad, CJA- Timbuctu, Congresso pela Justiça de Azawad; CPA-Timbuctu, Coalizão dos Povos da Azawad.

64

Mesmo que em maio de 2012 tenha ocorrido tentativa de acordo 40 por parte dos líderes de Ansar Dine e MNLA, as bases e os oficiais do MNLA opuseram-se a qualquer aproximação com Ansar Dine 41 . Várias outras contendas ocorreram entre os combatentes do MNLA e MUJAO 42 , sendo que as forças do MNLA terminaram expulsas das grandes cidades, ficando os grupos extremistas como controladores daquelas regiões.

Em janeiro de 2013, em operação conjunta AQMI, MUJAO e Ansar Dine progrediram na direção do sul, atacando a localidade de Konna, expulsando dela o último contingente do exército do Mali ao norte das cidades de Sevaré e Mopti. Nessa ocasião, o presidente interino do Mali formalizou o pedido de apoio militar à França. Algumas horas depois, em 11 janeiro de 2013, as forças especiais francesas já estavam em Sevaré, em intervenção nomeada de Operação Serval. O Instituto Ahmed Baba, guardião de inestimáveis manuscritos, foi destruído por grupos fundamentalistas.

Durante estes momentos cruciais em que MNLA declarou guerra aberta contra os grupos extremistas, Abu Mussab Abdul Wadud 43 (conhecido também pelo nome

Abdel Malik Drukdel) transmitiu um vídeo-mensagem aos malineses para conseguir seu apoio, informando que a ação conjunta de AQMI, MUJAO e Ansar Dine salvaram o país da fragmentação:

O problema de vosso país, antigo e recente, é um problema entre os muçulmanos. Ele pode ser resolvido internamente pela reconciliação entre os próprios muçulmanos sem nenhuma gota de sangue. Todos vossos sábios, vossos nobres e os notáveis de vosso país estão

40 O controvertido acordo, assinado por Iyad e Bilal, não durou 24 horas. 41 Em pesquisa de campo, vários interlocutores afirmaram que Ansar Dine não havia apoiado MUJAO na sua guerra contra o MNLA, contrariando o que militantes divulgaram nas redes sociais naquela época. Contudo, Ansar Dine - após a intervenção francesa e decisão do MNLA de combater o terrorismo ao lado dos franceses e chadianos -, confrontou com MNLA em várias batalhas. 42 Ver: https://www.france24.com/fr/20121116-mali-nord-mujao-mnla-combats-islamistes-rebelles- touareg-ansar-dine-gao-violences-combats. 43 Declaração de Abdel Malik Droukdal, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GX3UXOBYBwA. 65

convencidos e cientes disso. O que os infiéis ( kuffaar )44 estrangeiros têm a ver com vosso país? A França mente quando afirma estar interessada na unidade territorial do Mali, pois as evidências indicam claramente o contrário. Não foi ela que apoiou o Movimento de Libertação de Azawad para permitir o controle do norte do Mali e estabelecer um Estado independente? Mas, graças a vossos irmãos mujahidiin e vossos filhos islamistas do Norte, os planos diabólicos do MNLA foram derrotados 45 . Foi lançado um recurso que opunha laicidade-extremismo religioso de um lado, autonomia regional 46 /independência-manutenção da unidade nacional, de outro. A situação ficou tensa e muito confusa na própria mídia e governança malinesa. Após efêmera proclamação de independência do Estado de Azawad, em 6 de abril, seguiram- se confrontos múltiplos. Teria havido uma insurgência usurpada? Certamente ocorreram desdobramentos sombrios, favorecendo o crescimento e espraiamento de poderes de extremistas e do crime organizado, expondo o papel forte do tráfico (conhecido localmente como “barões da máfia saariana” mouros da comunidade lemhar malinesa) e da indústria de drogas, cujos membros disfarçam-se, segundo seus interesses, como extremistas religiosos ou como rebeldes (MORGAN, 2013; SCHEELE, 2009, 2011).

O país mergulhou em série de conflitos, abrindo caminho para verdadeira falência do Estado, comprometendo a frágil soberania devido a operações estrangeiras (Serval e

Barkhane contraterrorismo em operação da França, e da Organização das Nações Unidas,

MUNISMA 47 ) com ampliação de suas bases militares 48 . Hüsken e Klute (2010)

44 Plural de kaafir , termo árabe que significa infiel. إن ا ا اة ھ دا ا و أن دا ) A transcrição de sua fala em árabe 45 ا أ دون أن اق ة دم واة. و و وز وأن ن ون ا ن ار اء (...) إن ب أ ص ة ا ح إ ذ، و أ أ ا، أ ھ د أزواد ض اة ل ( وإ دو ؟ إا اھ وأ ال ا ھ ر ا 46 No sistema malinês, governadores de regiões são cargos de confiança, sendo definidos centralmente, em Bamako. Autonomia foi a bandeira que substituiu de um lado a defesa da integração sem mudança na estrutura de governo. De outro, foi também adotada após as negociações e a derrota da proclamação da independência. 47 Missão Multidimensional Integrada para Estabilização das Nações Unidas do Mali, formada em abril de 2013. 48 A bibliografia sobre o tema é vasta, ver Galy, 2013; Keenan, 2012; Lecocq, Mann, Whitehouse; Pelckmans; Badi, 2013; Cissè, 2015; Claudot-Hawad, 2014; Barbet, 2016; Cissé, 2015; Diop, Traore, 2014.

66 propuseram o conceito de heterarquia para favorecer a compreensão das formas atuais de organização política advinda do entrelaçamento de ordens estatais e não estatais, com grande pluralidade de grupos de poder concorrentes e em constante mutação, desde a

Líbia até o Mali. Para os autores, a centralização do poder político na região foi desafiada pela proliferação de grupos não estatais, com capacidades de redesenhar alianças locais, nacionais e transnacionais.

Poesia, música, dança e o conjunto de expressões criativas, seja na vida urbana ou nos acampamentos tamacheque, sofrem intensamente desde o crescimento do absolutismo que se impôs nos últimos anos - desigualmente, mas com grande penetração em diferentes regiões do Mali -, deixando marcas nas relações, vidas cotidianas e nas iniciativas culturais. Em 2012, guitarras, amplificadores, alto-falantes e microfones foram arrancados das casas e queimados em inúmeras situações, atingindo mesmo artistas renomados como os de Tinariwen. Contudo,

Nos anos 90, antes de sucumbir à pregação do movimento de proselitismo paquistanês Jama'at al Tablighia, Iyad Ag Aghaly gostava de fumar e sair com músicos de Tinariwen. Ele até compôs canções e poemas de amor, de rebeldia e sobre a beleza de sua casa no deserto. Agora a música e, com ela, uma importante fonte de coesão e bem-estar comunitários, desapareceu ou se tornou subterrânea em todo o território sob seu controle (MORGAN, 2014, online ). Manny Ansari sinalizou que tal ameaça já havia iniciado em Essakane, pois membros de AQMI haviam acampado, em 2007, nas dunas de Timbuctu para vigiar o

Festival au Désert. Na ocasião, disseram ser muçulmanos assim como os organizadores do festival, mas foram demonstrando que tinham outras intenções: “temos um inimigo comum, que é o ocidente. Foi quando entendi que as coisas ficariam difíceis” (Manny

Ansari apud MORGAN, 2014, online ). Percebe-se, assim, que em 2012 houve uma eclosão de situações de grande ebulição, vivenciadas, bem antes dessa data, apenas pelas populações do norte do país. Estas, porém, não possuíam apreensão geral da grande ameaça representada pela implantação gradativa de AQMI, no Mali. A recusa de debater 67 publicamente, o silêncio ou a ignorância irresponsável de intelectuais além do modo sensacionalista de abordagem midiática, compõem outro conjunto de responsabilidades pelo agravamento da crise.

Indagações e quadro histórico contextual

Repensar a noção de festival e contextualizar os festivais tamacheque no campo de eventos culturais africanos, evidencia passo importante na construção de entendimento em relação aos festivais saarianos. Em entrevista realizada com Toumani Kouyaté, uma das principais lideranças da esfera cultural, tanto no Mali quanto em Burquina Faso, o artista foi enfático.

A única coisa que pode tirar a África da lama, é a palavra, a oralidade. Quando falamos de globalização cultural, temos que olhar para o nosso continente, porque o poder de sua oralidade é único no mundo, do mesmo modo como se olha para a Europa no plano econômico. Na realidade, a escrita tem seu lugar no concerto das nações; mas não é ela que poderá conferir valor à oralidade africana (KOUYATÈ apud MBOGO, 2007). A pesquisa da historicidade dos festivais culturais em África, assim como de sua música fundada em poética política de oralidades ancestrais (que implicam a palavra dos antigos Kel aru / Kel ibda , dos antepassados, imarawan ) precisam encontrar métodos que não impeçam ou silenciem seus sentidos e significados históricos, culturais, políticos e artísticos na pluralidade de suas expressões. Esta preocupação esteve muito explícita, entre outras ocasiões, durante a conversação com os notáveis de Zalab-labé 49 sobre os festivais por eles organizados. Alhabib Ag Almouctafi acentuava a necessidade de que fossem conhecidos os lugares históricos e os sentidos da presença de edjadetan (estelas mortuárias) na construção da história Icharamatane (Entrevista 7 Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017).

49 Ver sobre a Takubelt de Zalab-labé no capítulo 2.

68

Os festivais saarianos contam e guardam dimensões da história africana e das artes que buscam encontrar seus sentidos, segundo lugares e momentos singulares, fortes e fugazes no tempo, mas com capacidade de alimentar interesses políticos e socioculturais, trocas, circulações e mestiçagens. Estes sentidos, além de múltiplos, frequentemente, revelam-se contraditórios.

Em todos os continentes, segundo Pascale Goetschel e Julie Verlaine (2013, vídeo, online ), houve um grande aumento, mesmo na Europa e na América do Norte, de festivais após a II Grande Guerra Mundial, com destaque para a música pop e o rock .

Mas, além da música, diferentes manifestações ligadas às novas mídias (cinema, fotografia etc.) e a diferentes formas de culturas expressivas (CIDRA, 2002), foram sendo integradas aos festivais, aumentando a complexidade desses eventos efêmeros, mas muito densos e intensos.

É importante revisitar estes festivais, com suas diferentes ênfases, cenários culturais e políticos e com seus múltiplos legados, a fim de melhor compreender a festivalização da África na descolonização. Sobretudo nas últimas décadas, os festivais configuraram-se como espaços de articulações culturais, palco de lutas emancipatórias anteriormente escamoteadas pela ideologia pan-africanista. Mas, igualmente, pela forte politização da memória, como ressaltou Sten Hagberg (2006) com uso da cultura como usina de “novos tradicionais” (ARNOLDI, 2006) e de “futuros tradicionais”

(CLIFFORD, 2004). A cultura se tornou, simultaneamente, motor de emergência e fabricação de nacionalismos excludentes.

Por que teriam os festivais saarianos, sobretudo no Mali, sido tão tardios, devendo esperar o século XXI para sua insurgência? Que fios os interligaram a ideais pan- africanistas em suas utopias iniciais? Que articulações criaram com as insurgências dos 69 imazirren, a “primavera berbere”? Que conexões estabeleceram com a festivalização do mundo amazir nas últimas décadas: Marrocos, Argélia, Líbia, Níger, Burquina Faso?

Tecer os elos históricos e culturais dos Festivais com os movimentos de contestação identitária amazir (amazigh) é uma exigência desta pesquisa por diferentes motivos. Está em direta ligação com a história do norte da África, construída pela perspectiva europeia, cujas origens assentam-se “no Zeitgeist da era colonial”

(TILMATINE, 2007). Desta forma, a reescrita da história do norte da África, há muito tempo na agenda, “seria amplamente justificada caso seja baseada em um reexame prévio e multidisciplinar das condições ideológicas, metodológicas ou epistemológicas que determinaram as histórias que nos foram propostas até agora (TILMATINE, 2007, p.226).

Os laços ancestrais, a história comum em experiências de longa duração, além do domínio francês e da complexa formulação da existência de uma África ao norte do Saara e Saariana branca ( bidan ), em oposição à África negra ( sudan ), subsaariana, devem ser pontuados. Os Kel Tamacheque, população amazir cuja presença se faz no centro-sul do

Saara e no Sael (conforme figura 1 a seguir), ficaram descentrados ou ficaram sem lugar na história instituída no pós-independências. Outro motivo, correlato a este último, advém de lugares de performances e renovação de identidade saariana plural dos Festivais saarianos atuais. Em sua condição de carrefour de diferentes povos, os festivais configuram expressões de luta por reconhecimento político e social tanto em sua dimensão cultural profunda, a amazir, como de enraizamento territorial saariano e de entrelaçamentos culturais históricos. Portanto, africana antes do termo África, já que a formação da ideia de África é bem posterior a sua formação social.

70

Figura 1. Indicação dos limites do Saara e do Sael com a divisão política

___ limite - - - transição Fonte: La documentation française 50

A ideologia pan-arabista 51 (que buscou reunir árabes e arabizados), liderada por

Gamal Abdel Nasser (Egito) nos anos 1950 e depois dele, o coronel al-Kadafi (Líbia) a partir dos anos 1970, expandiu o poder do chamado mundo árabe para o interior de grande parte da África, levando a perseguições e negação de populações locais (autóctones) que resistiram ou estiveram à margem da influência Otomana, mesmo que tivessem se tornado muçulmanas.

As narrativas historiográficas, incluindo produções de historiadores e intelectuais africanos (durante a colonização e primeiras gerações após a formação dos novos estados- nação), reforçaram a imagem de que não houve populações e histórias no Saara africano.

Os elos ambivalentes e ambíguos entre pan-africanismo e pan-arabismo (no bojo do processo de descolonização no contexto afro-asiático de não-alinhamento) constituíram parte de lacunas em narrativas históricas, sobretudo desde uma perspectiva crítica africana. Responderam aos interesses da guerra fria, mas também de movimentos libertários, alianças de reivindicações independentistas, à lógica de blocos de poder, além

50 https://www.ladocumentationfrancaise.fr/cartes/territoires-et-amenagement/c001760-les-differentes- limites-du-sahara# 51 Com raízes na derrota e desmembramento do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial, o renascimento árabe, Nahda (do final do séc. XVIII até a década de 1950), chamou à unidade árabe a fim de que o nacionalismo árabe pudesse suceder ao Império Otomano. Exaltava, ainda, a grandeza da dinastia Omeyda (Umayyad). (DUPONT, 2009) 71 de interesses específicos de lutas afro-americanas e, ainda, da diáspora árabe e africana da segunda metade do século XX até nossos dias.

Uma das questões que precisam ser discutidas e criticadas refere-se à concepção pan-arabista e suas implicações para populações imazirren (imazighen ). O pan-arabismo, conhecido na língua árabe como al-urūba ou al qawmiyat al’arabiyat , nasceu no exílio, desenvolvido pela imigração sírio-libanesa no Ocidente, como maneira de se posicionar frente à questão do Império Otomano naquela época. Integrou os projetos de nacionalistas dos países africanos ditos “árabes”, durante a descolonização e após as independências como anteriormente referido. Vários autores árabes al-urūbiyīn [plural de al-urūbi ] negam ainda em nossos dias, a existência dos imazirren como independentes e diferenciados dos árabes (e descendentes), que migraram da Península Arábica durante as conquistas islâmicas (VIII e IX) ou posteriormente. Neste contexto, Ezz Addine Al

Manassirat, no seu livro “al-Mas’alatu al-Aamazighiyyat fi al Maghrib wa al Jazáir” 52 , enfatizou que

o urúbi democrático percebe os imazirren como árabes descendentes de Kan’ane, que migraram após a derrota de Jalút, portanto sua língua, que na sua origem é uma das línguas árabes, pode ser ensinada nas escolas. O urúbi ditatorial sempre olha os imazirren como traidores e sua língua como estrangeira, não tendo nada na tessitura marroquina. O amazir democrático aceita o Islã e o árabe como dois elementos da “união” do povo marroquino, porém esses perdem sua especificidade cultural dentro da união do grande Magrebe e, por fim, uma quarta tendência que acredita em pan-amazarrismo , querendo a língua tamazirt como uma língua oficial, paralelamente à língua árabe. Essa tendência considera que eles são autóctones, são os proprietários da terra e os árabes invasores, defendendo a escrita de sua língua em alfabeto latino com apoio dos franceses” (AL MANASSIRAT, 2009, p. 9). Neste texto, o pensamento hegemônico pan-arabista (ur ūba ), mesmo entre autores considerados sensíveis à questão tamazirt, continuam negando a história de civilizações ainda mais antigas que as da península arábica. Al Manassirat criticou os árabes,

ا ) Ou seja: A questão amazir no Marrocos e na Argélia: a problemática de diversidade de língua 52 .(از اا واب ا اد ا ااد: ا اة

72 considerados “não democráticos ou ditadores”. Todavia, sua crítica não foi muito além quando abordou a questão amazir. Os intelectuais imazirren insurgem-se, contudo, persistindo em argumentação crítica a este tipo de abordagem histórica, que os ignora e silencia no debate e confrontação entre narrativas históricas divergentes, como parte da colonialidade do pensamento hegemônico.

No final dos anos 1970, manifestou-se o início do declínio do pan-arabismo no século XX (ou mais propriamente, do nacionalismo árabe), sendo intensificadas lutas contrárias às ideias e políticas de arabização ( urūba ) de Nasser, Ben Bella, Allal al-Fassi,

Burguiba e al-Kadafi. Uma das mais importantes frentes dessa política foi a arabização, que deveria substituir, progressivamente, o francês pelo árabe clássico e moderno, no ensino e na administração e serviços.

Na análise crítica da história de cerca de cinquenta anos de pós independência do

Marrocos (1956) e da Argélia (1962), as políticas de arabização impuseram de modo exemplar, uma marca de grande envergadura: a recusa da multiplicidade cultural de sua composição. A questão amazir diz respeito à maior parcela da população

(ROSENHOUSE; GORAL, 2006), que são de ascendências indígenas na acepção de serem descendentes de formações socais com mais de quatorze séculos anteriores às primeiras incursões árabes.

No Marrocos, logo após a independência, o Rei Hassan II estabeleceu que os cinco pilares da identidade marroquina seriam: o Islã, a monarquia constitucional, a unidade nacional, o rito maliquita e a língua árabe, sendo que todos deveriam se identificar a tais fundamentos da nação marroquina. O fato novo advém da ideologia nacionalista do

Estado moderno com suas instituições que pretenderam ser capazes de criar uma comunidade homogênea com base na religião e na homogeneidade cultural, em 73 detrimento de especificidades locais (RACHIK, 2016). Para Mohamed Boudihane

(2013), o Marrocos não é árabe ainda que haja uma parcela da população de ascendência

árabe, coexistindo, também, uma influência de interesses francese, dizendo:

a arabização do Marrocos é uma herança colonial francesa. Então, para completar sua libertação [dos Imazirren] e para a restauração de sua plena soberania, é preciso lutar contra o que restou da herança colonial francesa, que ainda se faz presente no Marrocos. Isto significa sua libertação da ideologia pan-arabista que é um dos resultados da colonização francesa. Essa libertação está condicionada à volta do reconhecimento identitário autóctone amazigh do Marrocos, conforme era antes da invasão francesa, quando o país era amazigh - terra, povo e poder -, sem negar sua diversidade linguística, cultural, étnica e religiosa 53 (BOU DIHANE, 2013, p. 45 ). As contestações amazir começaram após a declaração do primeiro presidente da

Argélia independente, Ahmed Ben Bella, durante seu discurso de 5 de julho de 1962, ao enunciar: “a arabização da Argélia é necessária, pois não há socialismo sem a arabização e não há futuro para este país sem a arabização”. Desde então, a sociedade civil amazir argelina entrou em confronto com o regime de Ben Bellah. Em 29 de setembro de 1963, foi criado o partido Frente das Forças Socialistas, liderado por Hussayn Aït Ahmed, cuja proposta pluricultural conflitava com a visão de cultura e língua unicamente árabe da

Frente de Libertação Nacional (FLN).

Em 19 junho de 1965, o coronel Houari Boumédiène chegou ao poder na Argélia, após um golpe militar contra o primeiro presidente da Argélia independente, estabelecendo um sistema autoritário e autocrático. Tornou-se um dos principais idealizadores da arabização da Argélia e da aplicação de estratégias para construir o que chamou de “nova Argélia” 54 . Para isto, a língua do país seria unicamente árabe, negando as línguas dos imazirren, como a tamazigrt no Norte (Cabília), a tamacheque no sul

53 Traduzido do árabe pelo pesquisador do texto de Boudihane (ou Bou Dihane): “Para um país de identidade Amazir no Marrocos”. 54 Boumédiène estudou em escolas corânicas na região de Guelma (na madassa El Kettani de Constantine), na Universidade de Zeitouna (Tunísia) e em al-Azhar (Egito).

74

(Ahaggar e Tassili N’Ajjer), chaoui (M’zab) no este do país. Boumadiène, que realizou toda sua formação em língua árabe, definiu em seu discurso de novembro de 1968, sua importância na política do país nos seguintes termos:

a arabização ‘ ta’rib ’ não pode ser realizada apenas pelo Estado. Outros esforços devem ser, igualmente, realizados pela elite arabizada [...]. As mesquitas estão à disposição destas elites para alfabetizar e ensinar árabe aos adultos (BOUMADIENE apud AMIR, 2008, online ). O ensino constituiu o primeiro campo a passar por uma grande reformulação e a arabização na educação foi sua primeira medida. Neste contexto, argumentou em um de seus discursos:

o ensino não pode ser verdadeiro se não for nacional, a formação mesmo que seja de nível superior, permanece incompleta se não for adquirida na língua do país. Isto pode até constituir um perigo para o equilíbrio da nação e o desenvolvimento de sua personalidade. Portanto, pode levar a desvios que podem dificultar uma orientação clara e válida (BOUMADIENE apud AMIR, 2008, online ). Nos anos 1974 e 1975, foi estabelecida a proibição oficial da adoção de nomes imazirren, gerando manifestações da população da Cabília contra o presidente

Boumadiène, durante um jogo de football em Tizi Ouizzi, que carregava faixas onde se lia frases como "a língua tamazirt viverá".

Na década seguinte, o país viu eclodir inúmeras manifestações sociais que foram chamadas, em seu conjunto, de Tafsut imaziɣen (Primavera Amazir). O evento desencadeador foi a proibição, pelo governo argelino, de palestra sobre poesia antiga em língua tamazirt, que Mulud Mammari deveria fazer na universidade de Tizi Ouizzi, capital da Cabília (MADJEBER, 2005). Ao mesmo tempo, foi cancelado concerto do grupo musical Imazirran Imulan, pelo mesmo motivo. Essa repressão cultural continuou, enquanto grandes artistas e pensadores foram perseguidos, eliminados ou exilados. Foi o caso do cantor e militante Matub Lunes, assassinado pela polícia argelina no dia 9 de julho de 1998. 75

Vale ressaltar a ação política de músicos do grupo Imazirran Imulan, que no festival da canção argelina de 1973, tendo sido finalista, teve seu nome alterado de

Imazirren Illulan, homens livres, para Imazighen Imulan, descaracterizando o sentido inicial. Muito reconhecido por ter renovado, juntamente com outros grupos, o estilo musical na Cabília, o grupo foi militante da identidade amazir tanto na Cabília como em outras regiões 55 (MEHENNI, 2004). Seu líder, Ferhat Mehenni 56 , conhecido como Ferhat

Imazighen Imulan, além de ser cantor é homem político 57 .

Depois de mobilizações de estudantes e professores, em greve de abril de 1980, a

Tafsut imaziɣen (Primavera Imazirren), com grandes mobilizações populares na Cabília para defender sua língua e sua cultura, seguidas pelo Marrocos - que rapidamente se levantou -, surgiram numerosas associações de lutas identitárias. Seus objetivos são culturais e políticos, em tensão que tem sido crescente e intensa, sobretudo em regiões como Rife, Atlas Médio, Alto Atlas, Anti Atlas, Vale do Draa, Saara central e do oeste

(Marrocos e Argélia). Vale lembrar que os primeiros movimentos associativos levaram, em 1967, à criação da Associação Marroquina de Pesquisa e de Intercâmbios Culturais 58 , em Rabat, cujo objetivo declarava ser a defesa da cultura e das artes populares

(ROLLINDE, 1999).

Atualmente, são muitos os pesquisadores ,como Charles-André Julien (1994), que assumem que a maior parte da população falante de árabe no Marrocos tem ascendência amazir (berbere). Todavia, a crise do ensino vem mostrando que a arabização dos ciclos primários e secundários, instituída nos anos 1980, teve impactos, hoje considerados como

55 Ver: http://www.music-berbere.com/artiste-ferhat-imazighen-imula-ia-60.html. 56 Suas canções foram conhecidas como canções de esperança do povo Cabília. 57 Fundador e primeiro presidente do Movimento para a Autonomia da Cabília (MAK). Desde 31 de maio de 2010, tornou-se presidente do governo provisório da Cabília no exílio (Anavad). 58 Association Marocaine de la Recherche et des Echanges Culturels.

76 negativos. Resultou em uma geração de analfabetos bilíngues, em francês e em árabe, sendo suas línguas maternas, a darija e as línguas de variantes de tamazirt ( amazighes ).

A situação na Argélia tem sido igualmente delicada e desafiadora para a compreensão histórica, pois, oficialmente, somente a Cabília foi reconhecida como espaço de cultura e de língua tamazirt. Mas a Argélia continua, sobretudo no Sul, região de Ahaggar e Azdjer (Tassili n’Ajjer), a conduzir sua política de arabização, fazendo recurso a punições, torturas e manipulações políticas e midiáticas. O estranhamento (ou insílio como definia o escritor uruguaio Mario Benedetti) tem sido um componente do sofrimento cultural constante na história das sociedades amazir.

Oeste da terra do islã: sentidos vagos de nome Magrebe

Há uma grande discussão sobre os sentidos do termo Magrebe. São inúmeros os intelectuais e políticos que têm afirmado que o norte do continente africano está tão fortemente associado aos árabes que, para o senso comum e mesmo para muitos pesquisadores, o norte da África passou a ser considerado não africano. Mas, permanece a questão: como foi esse processo? Quem são os principais defensores dessa interpretação da história e da composição sociológica da região?

Alguns afirmam que ocorreu pela chegada dos árabes e pela difusão da língua do sagrado Alcorão. Há quem afirme que, sendo árabes ou imazirren, são igualmente árabes por serem muçulmanos: “o Islã nos arabizou” é uma exclamação constante nas conversas.

Este discurso unitário serve à supremacia árabe, desconsiderando a compreensão universalista da religião islâmica. Esta perspectiva tem sido criticada por muçulmanos não árabes, entre estes, os imazirren que recusam a noção de África árabe. A África não necessita perder suas narrativas identitárias para se assumir como muçulmana, existindo outras sociedades muçulmanas no continente, como hauçá, wolof ou fula, às quais não se 77 atribuem o qualificativo de árabe. Se a opção pelo Islã apaga a história e as identidades socioculturais e linguísticas de sociedades imazirren africanas, porque o mesmo não ocorreu com turcos, iranianos ou indonesianos - para citar alguns exemplos e construir meu argumento em relação a considerações em termos de civilização considerada árabe?

Há, portanto, um processo de construção histórica ideológica que remete à visão colonizadora que urge atenção crítica para ser desconstruída.

Diversos autores consideram que a arabização das culturas anteriores à emergência e expansão muçulmana (entre meados do século VII e início do VIII da era cristã), ocorreu por pressão do califado Omíada 59 . Outros associam o Islã no Magrebe à ascendência árabe dos atuais reis marroquinos. No entanto, o que teria provocado a arabização de populações do território do Marrocos atual? Seriam elas de ascendência

árabe? O que ocorreu, então, com a população autóctone que ali vivia? Segundo os historiadores e arqueólogos ainda restam muitas lacunas e dúvidas (MAUNY, 1970;

HUNWICK, 1999; LUGAN, CUOQ, 1984; INSOLL, 2003).

Ou ainda: porque não são considerados turcos? Além de que, porque as populações da península arábica não foram consideradas turcas, já que tiveram mais de cinco séculos de domínio otomano? Ou ingleses, após passarem pela colonização inglesa?

Cabe lembrar que, diversamente do norte do continente africano, as regiões muçulmanas, numerosas em vários continentes, continuaram com suas línguas e mantém presença em narrativas históricas como muçulmanas, mas não árabes. Resta aberta, portanto, a indagação: por quais as razões as sociedades imazirren “saíram da história”? De certa forma, os Festivais imazirren, seja no deserto do Saara, seja, nas regiões montanhosas do

59 Ver ainda sobre a história do Islã na África do Oeste: Mauny, 1961; Levtzion, 1994.

78

Marrocos, Argélia e Tunísia, recolocam em pauta suas inscrições culturais e musical

ímpar.

A compreensão da ideia de Magrebe revela-se, portanto, tarefa complexa. Por onde iniciar e como situar seus conflitos culturais sob o manto do pertencimento árabe?

O uso do termo Magrebe contém, ainda, embates políticos, culturais e identitários, compondo uma das vertentes de pensamento que retiram da noção de África, tanto qiestões relacionadas à geografia política, como a suas bases populacionais. Isso tem consequências profundas para as sociedades imazirren, sejam Kel Tamacheque, Cabília,

Mozabit, Nafussa, Chawiya, Ishilhayn, entre outros.

De todo modo, nas referências escritas por autores árabes medievais (geógrafos e historiadores), toda a região era denominada bilad al berber , o que significa terras dos berberes . Toda a geografia e nomes de localidades permanecem com denominações locais em tamazirt 60 (Siwa, Tassili n’ajjer, Agadir, etc), assim como as inscrições rupestres em tifinar (ou tifinagh/tifinaɣ, escrita amazir) existentes desde Bahriya e Siwa, no Egito, até Figuig no Marrocos (ZAKARA e DROUIN, 2007). Há ainda as apelações de: 1) ifriqiya que remete à arabização do termo latino usado pelos romanos, para se referirem a uma região do norte do continente africano, que correspondia à atual Tunísia sem seus desertos, ao noroeste da Líbia, como à costa nordeste da Argélia. Trata-se do nome que árabes atribuíram à Província Romana na África, estabelecida por Roma, conservada por bizantinos e que, finalmente, se tornou uma província islâmica nas terras dos imazirren.

Como marco histórico, lembro que Ibn Khald ūn ( 1956-1959, p. 193 ) usou o termo

60 Adaptação para o português do termo tamaziɣt/tamazight, f.sing; ama ziɣ, m.sing. 79 al maghrib al-aqsa 61 , terra do poente distante, para designar a região que coincide, aproximadamente, ao atual Marrocos em suas regiões mais próximas ao Atlântico. O al- maghrib al-awsat (Magrebe central), corresponderia à atual Argélia, Tunísia e parte da

Líbia (Ifriqyia) e o Magrebe mais próximo ( almagrib al-adna ) era referido a uma parte da atual Líbia e parte da Argélia. Porém, a maioria de cronistas e geógrafos do período de Ibn Khaldūn, entendia por Magrebe todo o Norte da África, incluindo, por vezes, o

Egito e Cirenaica, enquanto o geógrafo al-Maqdisi, compreendia que Magrebe designava o Norte da África, a Espanha e a Sicília.

Segundo Monès (2010, p.271), para “Ibn Khaldūn, no momento da conquista

árabe, as mais importantes confederações de cabilas butr eram aquelas dos zanāta, dos matghara e dos nafzāwa”. É possível pensar que os zanāta tenham exercido alguma supremacia, pois butr constituia denominação atribuída por eles a todos os grupos nômades. Zanāta era neto de um certo Māzīgh, sendo que aparentemente, os barāni igualmente descendiam de Māzīgh, palavra que significa “homem livre”. Na época, as mais fortes confederações reconhecidas por Ibn Khald ūn, eram as dos awrāba, dos hawwāra e dos sanhādja 62 .

A presença de árabes muçulmanos já ocorria desde o século VII, mas a migração

árabe foi significativa apenas no século XI, quando a dinastia Fatimida mandou reprimir por ter proclamado sua independência, a dinastia Amazir Sanhādja (Ziridas ou Izirien,

61 Al-Magrib al-Adnâ comprendia a região de Trípoli a Bugía (Béjaïa); al-Magrib al-Awsat, de Bugía aos Montes Taza y el Magrib distante ía dos Montes Taza ao Atlántico. 62 Os kutāma e os Sanhādja povoavam o Magrebe central, incluindo o maciço de Aurès (Awrās) e o país Kabā’il (a Grande Cabília), habitando as regiões de Tāhert e Tlemcen. Outro grupo de Sanhādja vivia nas terras desérticas do Sul do Wādī Dar’a (Oued Dra) e espalhava-se pela faixa saariana, que se estende ao longo da costa atlântica até o rio Senegal. As suas mais importantes cabilas eram os lamtūna, os massūfa, os djuddāla, os gazūla (djazūla), os banū wārith, os lamta e os Tarka. Estes últimos são os famosos tuaregues (al-Tawārik), senhores do grande Saara até os dias atuais. Todos estes grupos eram nômades cameleiros. Alguns genealogistas excluem totalmente os kutāma dos Sanhādja e dos berberes, fazendo-os descender dos árabes e conferindo-lhes uma genealogia sul-arábica himyarita.

80

Cabília atual 63 ), governante de Ifriqyia (entre 1048 e 1163)64 . O pesquisador Gabriel

Camps (1984) considerou que mesmo que tais invasões árabes nômades Banū Hilal contra os zíridas (hilalianas) não tenham tido peso demográfico importante, foram determinantes no plano cultural e socioeconômico.

O Magrebe geopolítico passou a incluir a Mauritânia, a Líbia e o território disputado do Saara Ocidental na década de 1950 (GAUDIO, 1991, p. 92; Kahlouche,

1997, p. 55-69), constituindo regiões que passaram por distintas colonizações: francesa, espanhola e italiana. Com a colonização francesa, o termo Magrebe ficou designando, mais especificamente, o Marrocos, Argélia e Tunísia (BENNAFLA, 2008, p. 15), enquanto que a arabização das terras dos imazirren, constantemente transformadas, corresponde a processo extremamente complexo, tendo tido grande impulso durante o período do protetorado francês no Marrocos, na Tunísia e durante a colonização da

Argélia. Foi naquele período e contextos que minorias árabes receberam formação em escolas francesas, aliando-se, ao assumirem o poder, à Liga dos Estados Árabe (BLIN,

1988).

A “questão árabe” como paradigma para a compreensão das sociedades do norte do continente africano passou, deste modo, por várias fases: desde conflito armado de conquista territorial a confrontos culturais e políticos, durante todo o século XX. Mas, após os anos 1980, eclodiram manifestações contrárias por meio da ação de ativistas imazirren, lutando pelo reconhecimento de sua língua, de seus nomes prórpios e, portanto, contra a exigência de converção cultural e sua marginalização contidas nas políticas de arabização.

63 Fundado por Ziri ibn Menad. Foram destruídos pelos Almorávidas. 64 Ver : Ibn Khald ūn. Histoire des Berbères et des dynasties musulmanes de l'Afrique septentrionale, Introduction XIII. 81

Abdallah Laroui (1980) sintetizou o desafio com a interrogação: “somos africanos ou

árabes? A amaziridade ( amazighité ) é árabe, africana ou europeia?” Por que a insistência em levar o Marrocos para o mundo árabe, cortando completamente suas raízes saarianas e subsariana? Percebe-se que, além de impreciso, o termo Magrebe, em grande parte, remete

à forma de extraversão específica e interesses de elites ou mesmo de estrangeiros, beneficiando geoestratégias nascidas de outras demandas. A história do norte do continente permanece dúbuia, entre fronteiras de uma história europeia ou uma história

árabe, enquanto a perspectiva amazir mantèm-se excluída, ignorada como reconheceu

Hussain Monès (2010, p.268-269), no volume III da História Geral da África (UNESCO).

Magrebe é, assim, termo artificial e vago (LAROUI, 1970, p. 13-14). Chafik

(2000), ativista do movimento amazir, delineou os contornos da questão nestes termos:

“o Marrocos é árabe por uma de suas línguas e de suas culturas, é amazir por sua identidade e seu povo e, sendo amazir, é, também, africano”. Mas, se África ( Ifriqiya ), palavra que passou a nomear o continente, tem origem na língua tamazirt , como negar à sua população matrizes na africanidade? Como recusar o reconhecimento de sua existência e o direito a sua diferença? Mohamed Chafik enunciou, de forma explícita, tal questão: “o grande rei Mmiss-N-Izza (Massinissa) foi o primeiro a lançar o slogan vinte e dois séculos atrás: ‘África para os africanos!’. Desde então, os norte-africanos não pararam de enfrentar armas de invasões” (CHAFIK, 2000, p. 13-14). E, ainda persistem, como assinalou o escritor da Cabília, Mouloud Mammeri (1989), entre muitos outros.

Essa permanência permitiu a ressurgência de organizações e de movimentos de reconhecimento linguístico e cultural.

82

Ressurgimento e reconhecimento imazirren: a partir de Marrocos e Argélia

Condamner les Berbères à un rôle historique passif, c’est à dire quasiment nul, en ne voyant en eux qu’une infatigable piétaille et une bonne cavalerie au service de dominateurs étrangers, même si on reconnaît que ces contingents furent les vrais conquérants de l’Espagne au VIIIème siècle et de l’Egypte au Xème siècle, n’est qu’une aberration non dépourvue de racisme. Elle doit être rejetée.

Gabriel Camps A estratégia de unificação identitária amazir e árabe como mediterrâneas e africanas sob a formulação de Magrebe, já não se sustentava e fragilizava a defesa da tamghrabit como marrocanidade, defendia o filósofo Ahmed Assid (do IRCAM).

Considerando ser a língua expressão da consciência da população e que as duas línguas efetivamente praticadas no Marrocos eram a tamazirt e a darija (variação do árabe coloquial marroquino) e não o árabe clássico ou moderno, este último deveria ser compreendido como terceira língua. O árabe clássico desenvolveu-se no Marrocos, sobretudo, nos espaços oficiais, na educação formal, jornais e encontros acadêmicos.

Com a morte de Nasser em 1970, o pan-arabismo fragilizou-se, surgindo fraturas mais fortes, devido tanto aos acordos de Camp David, de 1978 (quando o Egito decidiu assinar acordo com Israel separadamente de seus aliados árabes, por ocasião do conflito de 1973, entre Israel e Egito, com participação constante de vários países árabes), quanto pela guerra entre Irã e Iraque (1980-1988). Um novo-arabismo se produziu pelos médias

árabes transnacionais, liderados pela Rede Al-Jazeera, criada em 1996 no Qatar, que estimulou a ideia de comunidade árabe supranacional, pensada como “esfera cultural comum politizada, de uma forma que Nasser e outros políticos nunca poderiam ter feito”

(PINTO, 2015-2016). Este movimento, no entanto, confrontou os nacionalismos berberes ou imazirren, movimentos que cresciam, notadamente, na Tunísia, Argélia e Marrocos. 83

Na Líbia, autoritarismo do então regime, certamente, impedia qualquer manifestação pública que contrariasse a ideologia arabista defendida pelo Coronel Muammar al-Kadafi.

A figura que segue ilustra graficamente as regiões de abrangência do Congresso

Mundia Amazir (CMA). A militância havia sido, porém, iniciada no Marrocos independente, no final da década de 1960.

Figura 2. Espaço geográfico amazir, conforme regiões .

Fonte: Congresso Mundial Amazir 65

Parte significativa da reação contemporânea à interpretação que converte o mundo amazir em árabe, foi organizada por meio da Agraw Imazighen (Academia Amazir), pelo Congresso Mundial Amazir (1995) 66 , e pela Assembleia Mundial Amazir. Nestes eventos, as artes e manifestações culturais transformaram-se em plataformas de complexas performances de renascimento político, de expressão de recusa à ideologia da arabização imposta. Além disso, soldaram laços transnacionais vinculados às lutas pelo reconhecimento da língua tamazirt (tamazight), como língua oficial no Marrocos e

Argélia (CHAKER, 1989; RACHIK, 2003; POUESSEL, 2010).

65 https://www.congres-mondial-amazigh.org/cma/. 66 ONG que reúne associações voltadas para a ação social, cultural, de desenvolvimento e de proteção do meio ambiente dos países da Tamazgha (norte da África e Saara) e da diáspora. Ver https://www.congres- mondial-amazigh.org/cma/.

84

O Congresso Mundial Amazir procurou criar narrativas de coesão entre populações habitantes de regiões montanhosas e desérticas, com grande distância entre si, em diversos Estados-nação: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Níger, Mali,

Mauritânia, Burkina Faso, Egito e Ilhas Canárias. A diáspora amazir se fez, principalmente, para Europa, - França, Países Baixos, Bélgica, Alemanha, Itália e

Espanha -, data da colonização e das duas grandes guerras. Encontra-se, também, nos

EUA e Canadá 67 . Segundo Delpech (2007, p.194), existiam cerca de seis milhões de cidadãos franceses de origem amazir (primeira e segunda geração) no início deste século

XXI.

Na Argélia e no Marrocos, os primeiros documentos de fundação do Movimento

Cultural Amazir atestam a ocultação da dimensão amazir na história oficial dos países, no caso da Carta de Agadir 68 , do Marrocos, e da “falsificação e mistificação da história do povo argelino, em particular e do norte da África em geral”, no documento adotada na

Cabília (TILMATINE, 2007). Em março de 2000, foi publicado o Manifeste berbere 69 , escrito por Chafik, com as sete maiores reivindicações do movimento, tendo sido assinado por um milhão de pessoas, incluindo acadêmicos, escritores, poetas, artistas, industriais e executivos:

1. A abertura de um diálogo nacional em torno da tamazirt; 2. O reconhecimento constitucional da tamazirt como língua nacional e oficial; 3. O desenvolvimento econômico das regiões habitadas por imazirren; 4. O ensino da linguagem tamazirt; 5.A reescrita da história marroquina; 6. A valorização da tamazirt nos meios de comunicação oficiais; valorização das artes imazirren;

67 Ressalto que houve uma deportação em massa para Nova Caledônia após a derrota da resistência liderada por Adel-Kader. 68 Ver: http://www.axl.cefan.ulaval.ca/afrique/maroc-charte_agadir-1991.htm 69 Ver: http://www.axl.cefan.ulaval.ca/afrique/berbere-manifeste-2000.htm 85

7. A cessação imediata da arabização que afetou as regiões imazirren e o incentivo às associações e à imprensa amazir, reconhecendo sua utilidade pública e concedendo-lhes apoio financeiro e logístico. Tais reivindicações apresentam-se como demanda democrática por parte do movimento pelos direitos humanos. Em 17 de outubro de 2001, o rei assinou o decreto que deu origem ao Instituto Real de Cultura Amazir (IRCAM), projeto formulado por uma comissão por ele designada, composta por Mohamed Chafik, Hassan Aourid,

Abdelwahab Ben Mansour (historiador), Rochdi Chraïbi (diretor do gabinete real), e

Meziane Belfikh (conselheiro do soberano).

O IRCAM é, ao mesmo tempo, instituição universitária e órgão consultivo encarregado de aconselhar o rei sobre todas as questões imazirren. Sua equipe acompanhou a implantação do ensino da língua tamazirt, iniciado em 2003, em trezentas escolas, prevendo que até 2010, todas as escolas deveriam oferecer pelo menos três horas a seu ensino. Os festivais de música e poesia imazzirren explodiram em meio a grande movimentação cultural e econômica nessa visibilização de expressões culturais de grande parte da população. Entre os festivais destacam-se: Festival Timitar, de 2 a 9 de julho, em

Agadir; Festival Tiwan de música e poesia moderna amazir, em ; Festival Isuraf, em Al Hoceima; Festival de Artes Atlas, em Azilal.

Estes festivais imazirren participavam de um fenômeno amplo. Alain Weber, curador de diversos festivais que conheci em M’Hamid El Ghizlane, salientou que a emergência de grande número e de tipos diferentes de festivais, deriva do crescimento exponencial da world music nos últimos 30 anos. “Estes festivais nasceram no final dos anos 1980 e início dos anos 1990” (Entrevista 27, 2017), quando emergiram várias correntes musicais. Nas décadas de 1960 e 1970, músicos de diferentes horizontes - do ou do rock como realçou Alain Weber (diretor de diversos festivais) -, sinalizaram desejo de descoberta da música do outro, perspectiva importante como fenômeno

86 identitário diante das mudanças econômicas do planeta. “É verdade que ocorreu uma forma de idade de ouro dos festivais durante os anos 1990 (...) inicialmente somente nos países ocidentais, mas que se estendeu a outros países, como Marrocos e Tunísia”

(Entrevista 27. Alain Weber. 2017).

A capacidade do Festival Taragalte, de manter a convivência coesa dos festivaleiros em proposta refletida de valorizar suas artes interconectadas com a dimensão ambiental e os desafios cotidianos de sua população, é um fator relevante. Há um interesse pela “música do outro, a música tradicional que, ao mesmo tempo, constitui um lugar de valorização da sua própria música pessoal, de sua região ou da sua comunidade”

(Entrevista 27. Alain Weber. 2017). Taragalte, entre os festivais de música do mundo, conseguiu se tornar um lugar de intercâmbios e de encontros musicais, ao qual os participantes retornam ou expressam desejo de participar a cada edição. Nesse movimento, “diferentes tendências nascem se apoiando na fusão. Isto é, na mistura, música mais tecnologia com uma base tradicional” (Entrevista 27. Alain Weber. 2017).

A word music, classificação de encontros que incluem categorias como música

étnica, música folclórica e alguns estilos populares, com elementos não ocidentais, conecta-se, na história cultural das transformações da Europa e Estados Unidos, tanto pelo ativismo negro, como pelo impacto das migrações e do papel de inúmeros africanos e africanas nas duas Grandes Guerras do século XX, especialmente, na segunda. A politização encarnada pelos festivais tem sido estudada em outros contextos, lembrando que esta situação ficou intensa nos enfrentamentos dos “blocos atlântico e soviéticos” e, também, quando as populações procuram, via tais manifestações artísticas, encarnar a nação inteira” (GOETSCHEL, HIDIROGLOU, 2013, p.15).

87

Sobre festivais culturais, pan-africanismo e nacionalismos

Depois de situar o ressurgimento amazir recorro à Conferência de Manchester

(1945) e às lutas pela independência com intuito de ressaltar a importância de festivais culturais do pan-africanismo e negritude para a problematização da noção de africanidade, transmitida como legado para as políticas culturais dos Estados-nação.

Após a libertação de grande parte de países africanos nos anos 1960, a África mantinha fraturas e divergências, interrogando-se constantemente sobre como, quem e por quais interesses (re)definir o que é África e como estabelecer suas relações regionais e continentais. Aprofundaram-se as controvérsias que se expressaram, também, nas artes dentro do continente. Os movimentos e as ideias do Pan-africanismo 70 e da

Negritude 71 , após o 5º Congresso Pan-Africano em Manchester (1945) 72 - que marcou o início do envolvimento direto de africanos 73 e debates sobre a emancipação africana do domínio colonial -, foram ambos frutos das relações que se estabeleceram entre os negros africanos e da diáspora atlântica (RALSTON; MOURÃO, 2010, p. 876). No plano da história política, o contexto era de grande o questionamento do colonialismo que emergiu, sobretudo durante a segunda grande guerra europeia do século XX.

70 Entendido de um lado, como consequência da luta dos afro-americanos e antilheses pela libertação e como laços transcontinentais construídos entre os negros africanos e da diáspora tendo como expoentes fundadores, os norte-americanos Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois, além dos caribenhos Edward Blyden e Henry Sylvester Williams, Jean Price-Mars e Georges Padmore. De outro, após seu 5º. Congresso cujo tema central foi a libertação da África colonizada e os processos de liberação dos países africanos, como movimento político e cultural de coesão no interior do próprio continente (KODJO; CHANAIWA, 2010). 71 Formulado por Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor como movimento de valorização das raízes culturais africanas emergiu na experiência de ambos em Paris. 72 A Conferência de Brazaville, convocada pela França Livre guiada pelo General De Gaulle por (Comitê Francês de Libertação Nacional (CFLN), janeiro de 1944, reuniu políticos franceses no exílio e funcionários de alto escalão das colônias africanas, contando - devido à premência de reposicionamento da França em relação a suas colônias africanas depois de sua invasão pelas tropas alemãs e do alinhamento das colônias africanas -, com o governo de Charles de Gaulle no exílio, opondo-se ao Marechal Philippe Pétain (governo de Vichy). Na pauta estavam as reformas políticas, sociais e econômicas pretendidas pelo poder colonial na África sob controle francês (CASTOR, 1984). Lembrando que o Congo-Brazaville foi a base de organização da liberação do território metropolitano, graças ao apoio decisivo de Félix Éboué ao apelo de De Gaulle. Éboué foi nomeado ministro da defesa do império e, depois, governador da África Equatorial Francesa, AEF (CASTOR, 1984). 73 Na organização estavam: Kwame Nkrumah, da Costa do Ouro (Gana); Peter Abrahams, da África do Sul e Jomo Kenyatta, do Quênia (KODJO; CHANAIWA, 2010).

88

Depois da conquista da independência em Gana, em 1957, o pan-africanismo, como movimento e do ponto de vista operacional, foi transferido das Américas e da

Europa para o próprio continente africano. As ideias pan-africanistas ganharam impulso na conferência de Acra em 1958, que contou com a presença de grandes lideranças dos novos países africanos 74 . Esse fenômeno começou mudar a partir da Conferência dos

Chefes de Estados Africanos, então independentes, e da Conferência dos Povos da África, ambas organizadas em Accra, no ano de 1958, pelo líder de Gana, Kwame Nkrumah, na qualidade de um dos secretários do Congresso de Manchester.

Duas questões dividiram os pan-africanistas naquele momento, com sérias ramificações futuras: territorial e política. Na primeira, defenderam de um lado, o pan- africanismo apoiado em solidariedades territoriais transaarianas e, de outro, o pan- africanismo com base em solidariedade racial transatlântica, entendendo África como raça negra (africanos e negros na diáspora). No plano político, as perspectivas divergiram sobre as formas de relações com as potências coloniais, entre uma luta de libertação, denominada de radical e representada pelo Grupo Transaariano de Casablanca ou Bloco de Casablanca de 1961 e uma posição de integração/cooperação, representada pelo Grupo ou agrupamento de Monrovia (MAZRUI; WONDJI, 2010, p.586).

Para os dirigentes dos novos países do Norte do continente africano, tais como

Argélia, Egito, Marrocos, a primeira perspectiva não fazia sentido, pois indicava sua exclusão defendendo, portanto, a unidade desde uma concepção geográfica da África. Por outro lado, vários países africanos apoiaram a segunda opção, que encontrou adesão dos negros da diáspora. O grupo de Casablanca reagrupou Gana, Guiné, além do Marrocos,

74 Kwamé N’Krumah, Georges Padmore, Namdi Azikiwe (Nigeria), Jomo Kenyatta, Gamal Abd El Nasser, Wallace Johnson, Banda Hasting, Sékou Touré, entre outros. 89

Egito e Mali 75 , divergindo das posições do grupo de Monrovia 76 , com doze países da francofonia independente como Senegal, aos quais se somaram a partir de 1961, a Libéria,

Serra Leoa, Nigéria, Togo, Somália, Tunísia, Etiópia, Líbia e Quênia (ZERBO, 2003).

No plano cultural, o pan-africanismo dos novos Estados-nação conferiu importância central à produção literária e artística (BARBOSA, 2011/2012, p.141). No mesmo sentido, “as independências criaram uma situação nova, dando aos Estados africanos os meios, e, simultaneamente, a obrigação de inventar políticas culturais”, apesar de houver dinâmicas criativas anteriores. Assim, os Estados-nação africanos independentes fizeram da cultura “uma das suas principais prioridades da construção nacional” (M´BOKOLO,

2011, p.676).

De acordo com Buchmann (1962), se o pan-africanismo foi definido nas lutas anticoloniais, de independência e por unidade africana, também, abriu vias para os nacionalismos africanos. A criação de políticas culturais, pensadas como um elemento de desenvolvimento econômico e social, ocorreu em quase todos os países. M´Bokolo (2011, p.676) ressaltou os exemplos do Senegal, pois seu presidente Senghor “se empenhou na defesa e ilustração da cultura negro-africana”, e do Gana, onde Kwame N’Krumah estabeleceu “organismos e institutos do Estado encarregados de realizar o programa de seu partido em matéria de criação de editoras do Estado, construção de um teatro de

Estado, apoio aos grupos musicais ‘tradicionais e modernos’, promoção de uma produção cinematográfica nacional etc.” (M’BOKOLO, 2011, p.677).

Dakar, Argel, e Lagos foram cenários de quatro grandes Festivais Pan-

Africanos e da Pan-Negritude, onde foram celebradas duas décadas de consecutivas de

75 Além de representantes da Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina. Ressalto a adesão recebida das lideranças das regiões sob colonização portuguesa. 76 Conferência dos Estados Africanos Independentes de 1961.

90 independências (1960-1970) e emergência dos Estados-nação da maior parte das regiões africanas. O que significaram aqueles Festivais? Indicaram a rejeição das visões presentes nas exposições coloniais ou foram, ainda que parcialmente, sua continuidade? Que noções de cultura foram defendidas, atuadas e/ou dramatizadas? Quem a conduziu, financiou e quais desdobramentos ocorreram nas sub-regiões, particularmente no Sael e no Saara?

A fim de trabalhar estas indagações, se focaliza os eventos que se tornaram paradigmáticos: Primeiro Festival Mundial das Artes Negras de Dakar em 1966; Festival

Cultural Pan-Africano de Argel, em 1969 e, no Segundo Festival Mundial da Cultura

Negra e Africana 77 , o FESTAC, de Lagos em 1977. Cabe lembrar que houve outros festivais historicamente relevantes, como o Concerto “Soul to Soul”, ocorrido no Gana em 1971. Em 1974, dois alinharam-se com iniciativas de grandes eventos no continente africano, do então Zaire (atual República Democrática do Congo), onde ocorreu “The

Rumble in the Jungle”, luta de box entre e George Foreman financiada pelo governo de Mobutu Seko. Por outro, Zaire 74, Festival de Música Africana, juntamente com o soul e o blues afro-americanos e a música latina, principalmente, caribenha, contou com a presença de artistas reconhecidos como , Spinners,

BB King, T.P.O.K. Jazz, , a orquestra Fania, Tabu Ley, ,

Abeti e . Tratava-se de celebrar a união entre as elites de África e sua diáspora, como haviam feito o Senegal (FESMAN, em 1966) e Gana (Soul to Soul em 1971).

O Segundo Festival Mundial de Cultura e Artes Negras e Africanas ou II Festival

Negro e Africano das Artes e da Cultura, FESTAC, que ocorreu nos meses de janeiro e fevereiro de 1977, em Lagos e Kaduna, deu continuidade ao encontro de Dakar de 1966.

O FESTAC’77 ocorreu dois anos após o fim da guerra civil na Nigéria e o país ainda

77 Ou II Festival Negro e Africano das Artes e da Cultura. 91 ressentia seus efeitos. A situação era delicada e as ambições, grandes. Entre os objetivos do Festival foram realçados: garantir o renascimento, ressurgência, propagação e promoção da cultura, civilização e valores negros e africanos; apresentar a cultura negra e africana em concepção ampla; evidenciar as diversas contribuições dos povos negros e africanos para as correntes universais do pensamento e das artes; promover artistas negros e africanos, artistas e escritores, facilitando a sua aceitação mundial; promover a compreensão internacional e inter-racial; facilitar o retorno periódico às origens africanas de artistas e escritores negros da diáspora (FALOLA, 2002; p. 282).

Cenário da música, dança, teatro, além das heranças de filosofia africana, o

FESTAC exaltou a nacionalidade e os povos negros. Estiveram presentes cerca de dezesseis mil artistas e festivaleiros de 56 países da África e da diáspora: Stevie Wonder, dos Estados Unidos, Gilberto Gil, do Brasil, Bembeya Jazz National, da Guiné, Mighty

Sparrow, de Grenada, Les Ballets Africains, sul-africana Miriam Makeba e Franco

Luambo Makiadi.

Dakar foi o cenário da primeira grande manifestação cultural, artística internacional do continente africano, com programação muito variada e pluridisciplinar

(FICQUET; GALLIMARDET, 2009). Fruto dos esforços da vertente pan-africana da negritude com apoio do general de Gaulle, o primeiro Festival Mundial das Artes Negras em 1966, cujo tema central foi “função e importância da arte negra e africana para os povos e na vida dos povos”, o festival foi um marco simbólico das independências.

O objetivo principal de Senghor foi organizar um evento histórico para permitir descobrir as capacidades culturais do mundo negro. Dakar respondia a um movimento que ocorreu em sintonia com as correntes culturais mundiais 78 . Para Senghor, a negritude

78 Interessante o paralelismo com os festivais no Brasil, em 1965, quando foi realizado o “I Festival de Música Brasileira.

92 deveria ser a essência da luta africana, preferindo o combate intelectual ao conflito armado.

Este evento celebrava, pela primeira vez na África, a criatividade e a diversidade das artes e dos pensamentos do continente e de suas diásporas. Sob o estandarte, simultaneamente, estético e ideológico da negritude, da qual a revista Présence Africaine era a plataforma, este projeto se inscrevia na continuidade dos Congressos dos Escritores e Artistas Negros de Paris (1956) e de Roma (1959) (FICQUET; GALLIMARDET, 2009, p.134). O evento alinhava-se ao movimento das reuniões pan-africanistas, que desde o final da primeira década do século XX reunia intelectuais africanos, afro-latinos e afro- americanos que lutavam por representação política, contra o colonialismos e regimes de discriminação 79 .

no início era intenção dos presidentes de organizar grandes encontros de artes da África Ocidental Francesa (AOF). Léopold Sédar Senghor, se antecipou, montou um projeto e buscou subvenção. Os presidentes recusaram-se a participar, pois Senghor ambicionou centralizar tudo, para que tudo passasse pelo Senegal. Os outros presidentes disseram que não era possível e, então Ahmed Sékou Touré organizou evento separado e, cada presidente passou a organizar algo separadamente. Então, Senghor frustrou-se pela rejeição de outros presidentes. Seu primeiro ministro não concordava, pois ele tinha uma visão política mais pan-africanista e mais consciente que Senghor (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015). Os argelinos consideraram um insulto a todos os povos africanos que sofriam com o colonialismo europeu, a participação francesa no evento cultural organizado por

Senghor. Justificando sua ausência devido ao patrocínio do General de Gaulle, a Argélia ou “país de um milhão e meio de mártires”, conforme referida na literatura, não participou no Festival das Artes Negras de Dakar. Para seus líderes, a resistência e luta pela libertação da África deveria se manter como elemento comum, ou seja, aquilo que gerava coesão no pan-africanismo. Apesar das críticas, contudo, reclamava sua identidade e seu pertencimento ao continente africano. A Guiné Conacri de Sekou Touré, foi outro país a

79 Ver https://gradhiva.revues.org/1560#quotation. 93 recusar sua participação no evento de Senghor, juntamente com os socialistas africanos e diaspóricos tais como Cuba de Fidel Castro.

É importante lembrar que em 1965, antes de sua destituição pelos militares,

NKrumah havia organizado o Festival Owi Sefié, o primeiro grande encontro de valores culturais, artesanais e artísticos dos Ashanti.

Akwasidae Owi Sefié era o rei dos Ashanti e o pai da rainha Pokou, ancestral dos Baoulé. Quando Owi Sefié faleceu foi decidido que o poder se transmitiria de tio materno para o sobrinho - filho da irmã. O poder deveria ser da rainha Pokou, mas seu irmão mais novo Awi Owi Sefié expulsou a sobrinha e ela fugiu para a Costa do Marfim. Lá criou o Estado que a gente chama hoje de Baoulé. Na travessia do rio Pokou sacrificou seu filho, este gesto se chama “baoulé”. Os ganenses festejam isso em toda parte. Mesmo hoje a festa do Owi Sefié acontece (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015). Foram diversas as manifestações que fizeram das práticas expressivas das sociedades de cada país, um apelo à formação das novas nações. Koyaté assinalou outros encontros artísticos ocorridos de 1960 a 1966, como entre os Mossi, Bobo, Senoufo e, também, em Tlemcen (Argélia) como cenários de “grandes reuniões das artes e da cultura que reuniam artistas e artesões” (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015).

A música estava no centro das expressões culturais e dela emergiram figuras emblemáticas como Zenzile Miriam Makeba, da África do Sul e, um cosmopolitismo urbano ganhou proeminência, sobretudo nas capitais.

No início dos anos 1960, Ahmed Sékou Touré organizou o Festival Pan-africano da Música. Neste momento recebeu muitos músicos de todas as partes da África, entre os quais Miriam Makeba 80 - que se mudou para Guiné e lá ficou até sua morte - como resultante desse grande encontro pan-africanista da música (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015) . Um estudo detalhado poderá mostrar de forma aprofundada a complexidade e intensidades dessas iniciativas que não se restringem às ações governamentais que aconteceram difusamente. Nesse sentido, depois do evento do Sékou Touré em 1962,

80 Mais informações sobre a artista: https://www.cairn.info/revue-bulletin-de-l-institut-pierre-renouvin1- 2014-2-page-111.htm.

94

Félix Houphouët-Boigny organizou o Fórum Internacional da Cultura Africana, que ocorreu somente uma vez. Reuniu todas as culturas africanas e suas diferentes expressões artísticas, artesanais e culturais. Muito tempo depois foi Houphouët que o organizou em 1984-1985. O Fórum foi substutído pelo Mercado das Artes e Espetáculos da África (MASA). Com a guerra de 1997, o evento parou durante muitos anos, mas depois, foi retomado (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015) . A espiritualidade ganhava, além disso, reuniões em forma de festival nos anos

1960, caso do rastafári .

Haylé Sélassié criou o Festival Rastafarisme, que foi um festival espiritualista. Sim, na Etiópia havia um grande movimento reunindo artes e espiritualidade, chamado Festival Nyahbinghi – hoje desaparecido. (...) O festival Nyahbinghi era espiritual e inspirado nas recomendações de Nya, a rainha Nyah de Bingui apoiada por Nyahbinghi. Era a rainha do Rastafarismo. O festival reunia negros de todas as partes do mundo. Além da Etiópia, houve o Festival dos Mortos na Mauritânia. Creio que é mantido até hoje (Entrevista 13. Toumani Koyaté, 2015). Este movimento carregava em si muitas contradições, presentes desde a colonização, pois muitas vezes criou uma atmosfera de espetacularização das práticas expressivas das diferentes sociedades, pois o contexto de atribuição de sentidos não era incorporado. Dificilmente foram percebidos como lugares de produção de conhecimento.

As expressões culturais, linguagens e formas de elaboração das questões sociais, reduziam-se a políticas de governos, ficando mais e mais desvinculadas do pensamento social e histórico que lhe conferiam sentidos e densidade existencial.

Para os responsáveis argelinos da Frente de Libertação Nacional, FLN, a negritude de Senghor, aceitava a continuidade da colonização na África mesmo após a independência. O governo de Boumadiène decidiu, então, organizar outro evento que correspondesse a suas orientações políticas de recusa à colonização como base e como modo de reunir todas as tendências africanas, independentemente do debate racial. Entre

21 e 27 de julho de 1969, ocorreu em Argel o primeiro Festival Cultural Pan-Africano 81 ,

81 https://www.youtube.com/watch?v=DaPLGDSigzU. 95 reunindo grande parte da África, tronando-se lócus de expressão das vozes anticolonialiais e resposta ao FESMAN de Dakar.

Fundamental para os movimentos de liberação, a cultura foi temática e desafio por ser considerada inseparável do conceito de desenvolvimento, que intencionavam levar avante, tornando-se, assim, instrumento de mudanças de mentalidades. Foi nesse contexto que Mario Pinto de Andrade afirmou em sua conferência, realizada durante o festival em

Argel que

a cultura foi uma arma de combate no momento da tomada de consciência política, no momento do surgimento do movimento libertário. Mas, atualmente, com a dinâmica da liberação nacional, esta luta é em si, um ato cultural, o quadro material que permite as condições ideais para descontração de nossa cultura (ANDRADE, 1969, vídeo, online ). O tema do simpósio do festival foi intitulado “Sobre a cultura africana e seu papel na luta de libertação, consolidação da unidade africana e o desenvolvimento econômico e social da África”. Em outubro de 1970, a OUA organizou o Primeiro Workshop de

Folclore, Dança e Música Africana, em Mogadíscio, na Somália, no intuito de dar continuidade a essas ações culturais no continente. Contudo, a segunda edição do Festival

Pan-africano ocorreria apenas em 2009, novamente em Argel (Entrevista 13. Toumani

Kouyaté, 2015).

O Segundo Festival Mundial de Cultura e Artes Negras e Africanas ou II Festival

Negro e Africano das Artes e da Cultura, FESTAC, que ocorreu nos meses de janeiro e fevereiro de 1977, em Lagos e Kaduna, deu continuidade ao encontro de Dakar de 1966.

O FESTAC’77 ocorreu dois anos após o fim da guerra civil na Nigéria, enquanto o país ainda ressentia seus efeitos. A situação era delicada e as ambições, grandes. Entre os objetivos do Festival foram realçados: garantir o renascimento, ressurgência, propagação e promoção da cultura, civilização e valores negros e africanos; apresentar a cultura negra e africana em concepção ampla; evidenciar as diversas contribuições dos povos negros e

96 africanos para as correntes universais do pensamento e das artes; promover artistas negros e africanos, artistas e escritores, facilitando a sua aceitação mundial; promover a compreensão internacional e inter-racial; facilitar o retorno periódico às origens africanas de artistas e escritores negros da diáspora (FALOLA, 2002; p. 282).

Cenário da música, dança, teatro, além das heranças de filosofia africana, o

FESTAC exaltou a nacionalidade e os povos negros. Estiveram presentes cerca de dezesseis mil artistas e festivaleiros de 56 países da África e da diáspora: Stevie Wonder, dos Estados Unidos, Gilberto Gil, do Brasil, Bembeya Jazz National, da Guiné, Mighty

Sparrow, de Grenada, Les Ballets Africains, a sul-africana Miriam Makeba e Franco

Luambo Makiadi.

O músico malinês Cheik Tidjane Seck, que participou de diversos festivais pan- africanos, comentou que “fez o show de fechamento em Argel”, mas que não esteve no festival organizado em Dakar, realizado no mesmo ano. Em seu entendimento, esta iniciativa não foi efetivada a contento, “terminando por fragilizar as culturas africanas”

(Entrevista 26. Cheick Tidiane Seck. 2017).

Para Carlos Moore, bem como para Abdias do Nascimento, que compartilhavam a visão da vertente da negritude de Senghor e diferiam da posição de Fanon, a “proposta da Nigéria e seus aliados, entre eles a ditadura militar do Brasil, os países da Liga Árabe e Cuba” significava colocar-se “sob a tutela de um movimento árabe-africano pretensamente ecumênico do qual estaria ausente por completo toda colocação sócio racial” (MOORE, 2002, p. 20-21). Victor Rabello Piaia assinalou em sua análise que

No entanto, já contava com algumas discordâncias em relação aos fundadores da ideia do pan-africanismo da Negritude, especialmente do presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, que criticava duramente o posicionamento de países como o Brasil, Cuba, a Liga Árabe e até da própria Nigéria de que o pan-africanismo deveria ficar sob a tutela de um movimento árabe-africano teoricamente ecumênico, que lutaria sem que as bandeiras sócio raciais fossem levantadas” (PIAIA, 2012, online ). 97

Ainda que seja um debate relevante por diferentes outros motivos, neste estudo, aponto desdobramentos da clivagem da África que conferiu dilemas cotidianos para as sociedades saarianas. Neste contexto, a referência à Liga Árabe remetia aos seguintes países: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, mas também, Mauritânia, Djibuti,

Somália e Sudão. Portanto, não corresponde nem mesmo à classificação racial negra,

“verdadeiros africanos”, árabe (“estrangeiros” e brancos). O amálgama entre árabe e amazir teve como uma de suas implicações, o ocultamento social, político e cultural amazir. Ammar Kessab indicou a atualidade dessas questões nos seguites termos:

os Festivais saarianos na história pan-africanista do início do século XX, carregavam clivagens geopolíticas e ambiguidades ideológicas na definição do que é África pois, ainda que os discursos oficiais dos países do Magrebe reivindiquem um componente identitário “africano” infalível, os países da África subsaariana não estão plenamente convencidos de que seus “irmãos brancos” são africanos por direito próprio” (KESSAB, 2009, online ). Em debate estavam perspectivas concorrentes, que expuseram a problemática do pertencimento e da legitimidade norte-africana, denominada “árabe”. Deveriam os norte- africanos participar plenamente? A questão permanece aberta e foi sendo elaborada de modos distintos e em planos muito diversos, tendo consequências significativas e duradouras para as sociedades saarianas.

Kessab (2009, online )82 constatou, ao comparar as relações culturais entre África negra e Magrebe, tendo os festivais como barômetro de trocas oficiais, que existiam

“somente três festivais no Norte dedicados à cultura africana. Dois deles são produzidos no Marrocos (Festival du cinéma africain de Khouribga (Festival international des musiques africaines “Magic Draâ” à Zagora), e um na Argélia (Festival arabo-africain de danse folklorique de Tizi-Ouzou)”. Na África subsaariana, “nenhum evento tem sido

82 http://africultures.com/festival-culturel-panafricain-dalger-vs-festival-mondial-des-arts-negres-8640/.

98 organizado com o objetivo de aproximar os festivais ditos ‘africanos’” (KESSAB, 2009, online ).

Que implicações trouxe a perspectiva do que é África para as experiências culturais cotidianas e para os festivais e encontros intercomunitários? De modo específico, interessa acompanhar a formação e persistência de redes de relações interculturais, com seus fluxos e refluxos históricos, alcances e sentidos de alianças e de filiações culturais entre os Kel Tamacheque no Saara, seus espaços culturais e, igualmente, seu cosmopolitismo abrangente.

Interessante indagar, ainda, sobre a classificação de regiões como Ahaggar, pois

Tamanrasset possui intensas atividades culturais, sendo berço da música ichúmar, principalmente de Tinariwen nos anos 1980, como da poética cantada do tendé 83 de Lalla

Badi e de todo movimento de criação da associação “Salvar o imzad ”84 , que organiza o

Encontro Internacional do Imzad. Na Argélia, há igualmente um conjunto de festivais que permite pensar dinâmicas culturais que protagonizam esforços de manter a consciência da territorialidade tamacheque: Festival Internacional das Artes de Ahaggar, em

Tamanrasset (com coparticipação de Argélia, Mali, Líbia, Mauritânia e Níger), Festival

Internacional de Abalessa Tin Hinan e Festa Tuaregue Tradicional de Sebeiba (Tassili n'Ajjer), entre outros 85 . Não é uma lista exaustiva, mas permite apontar um elemento relevante neste debate sobre os festivais no Saara, que é sua intensidade e realidade pan- saariana com fortes conexões com o Sael, apesar do grande desconhecimento e de reconhecimento restrito à região. Todo esse cenário corrobora para a melhor compreensão de que o Festival au Désert e o Festival Taragalte compõem um vasto conjunto de

83 Instrumento monocórdio da música de mulheres tamacheque imzad, amzad, inzad ou anzad . 84 Ver: https://www.imzadanzad.com/ ou https://www.iemed.org/publicacions/quaderns/10/q10_243.pdf. 85 Esta dimensão dos festivais saarianos deverá ser objeto de estudos futuros, pois dão continuidade às minhas pesquisas iniciadas no mestrado. 99 iniciativas saarianas, pouco conhecidas internacionalmente e insatisfatoriamente trabalhadas nas esferas nacionais de seus países.

Tal permanência de culturas transfronteiriças saarianas entre Argélia, Níger, Líbia e Mali, nomeadamente tamacheque, mas não apenas, tornou visível incongruências da simplificação e jogos de exclusão que se instauraram na separação entre Magrebe e África

Negra. Tal clivagem assentou-se, igualmente, em rígido e estático modelo geográfico, defendido pelas lideranças pan-africanistas e que continua presente nas análises atuais.

Uma das dimensões problemáticas desses debates - que remete a questões centrais deste estudo sobre os festivais culturais tamacheque e saarianos -, é a dificuldade de entendimento da complexidade das expressões artísticas africanas, que mesmo intelectuais do continente desconhecem ou acham legítimo desconsiderar.

As dinâmicas dessas sociedades norte-africanas percorrem, muitas vezes, trajetórias distintas das escolhas de seus dirigentes, como é o caso dos festivais saarianos que tecem redes de pertencimentos em territorialidades diferenciadas das erguidas pelas fronteiras referendadas a partir de processos coloniais. Inscrevo nessa ótica, a importância, nesta pesquisa, da tessitura de entrelaçamentos pela conexão entre festivais de dois polos plenos de clivagens políticas, conceituais e acadêmicas, porém, carregados de sentido para as populações que vivem, criam e se comunicam em regimes de oralidade numa espacialidade de horizontes existenciais que percorrem o Saara 86 e nele habitam.

Retornando ao problema suscitado pela interrogação sobre o que é África ainda cabe indagar: quem a define e com quais interesses? Muryatan Santana Barbosa, abordou o tema, afirmando a atualidade dessa discussão: “Esta visão crítica do pan-africanismo, em especial, daqueles pan-africanismos centrados na unidade cultural – como a da

86 Sublinhando que os países marcados pelo grande deserto são: Argélia, Chade, Egito, Líbia, Mali, Mauritânia, Marrocos, Níger, Saara Ocidental, Sudão e Tunísia.

100 negritude francófona –, vem sendo corroborada por uma série de intelectuais das mais variadas origens e formações, nas últimas décadas” (BARBOSA, 2011/2012, p. 148-149).

Acredito que permaneça viva a necessidade de debates mais aprofundados, analisando perspectivas plurais e consequências macro e micro sociais das opções dos teóricos.

A reivindicação amazir institui um terceiro termo, desconsiderado (ou deliberadamente excluído) nos festivais pan-africanos no século XX. Tal insurgência encontra ressonâncias nas dinâmicas culturais tamacheque em suas dimensões relacionais transaarianas exercidas cotidianamente, quase sempre muito distante das capitais decisórias. Isto poque apontam perspectivas criadas desde a vivência de desqualificações, que não podem ser apreendidas no binarismo e na simplificação.

As pressões políticas por cidadania cultural emergiram de contextos muito diversos, com grandes diferenciações históricas e em meio a esforços intelectuais e programáticos de instauração de um arcabouço, predominantemente urbano, com orientação dos fluxos de negociações entre ocidente negro engajado e elite africana, negra e não-negra. No bojo da guerra fria, países buscaram construir um campo transnacional de artes, de espetáculos, de intercâmbios confluindo acumulação de capital simbólico na constituição de cidadanias e nacionalismos.

Artes na construção do Estado-nação no Mali. Bienal Cultural artística

A década de 1960 foi de intensas atividades culturais no continente africano, devido à pulsação das novas nações. Os eventos culturais, como os festivais de música, cinema, teatros e as grandes orquestras, foram criados para levar à frente projetos nacionais de cultura. Toumani Kouyaté exemplificou esse clima.

Cada país criou um grande evento que permitia aos outros países da África virem até ele para o conhecer e o descobrir, visitando, a seu turno, esses outros países. O Festival do Sudão foi um grande encontro de artes e cultura que reuniu muitos caravaneiros para trocar seus 101

saberes. Em 1965, houve o grande evento das artes e da cultura de Dahomey (atual Benin), nomeado de Festival Béhanzin - nome do rei Béhanzin que foi deportado e exilado. Em sua homenagem criaram esse evento que reunia Benin e Nigéria, pois era conduzido também pelos Anango 87 . Em 1968, Gnassingbé Eyadéma do Togo fundou o Festival das Artes de Plumes, não lembro o nome exato (Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015). A República Mali impulsionou, naquele processo de descolonização, a construção da identidade cultural da nação por meio de grande aporte de políticas públicas, entre outros, nos campos da música, da fotografia e do teatro. Seu primeiro presidente, Modibo

Keïta, compreendeu que a política nacional cultural deveria reorientar as dinâmicas locais a fim de estabelecer sentimento de unidade nacional, consolidar a independência política e econômica por meio da independência cultural. Esta política foi executada com base na modernização e valorização da fusão de elementos endógenos e exógenos.

Os ritmos e musicalidade vindos das américas, especialmente de Cuba, chegava ao Mali via a rádio de Brazaville, por meio da música congolesa, criando admiradores e modificando a experiência local. Mama Sissoko, guitarrista, contou a Florent Mazzolleni

(2011b, p.108) que sua orquestra, a Biton 88 havia sido criada com sopros e instrumentos de corda. Vinham de Brazaville, com os congoleses, as músicas cubanas (como congas e tumbas). Ainda no período colonial, também no Mali, as formas musicais locais passaram a ter o jazz mesclado a elas na mesma linha que Acra, Dakar ou Conacri. Segou já contava, em 1952, com duas orquestras de jazz que animavam as noites dançantes da juventude da

“boa sociedade seguviana” (MAZZOLENI, 2011b, p.107). Suas orquestras se fundiram posteriormente (1954), formando a Aliance de Jazz de Segou que, em 1960, foi assumida pelo Estado.

87 Yoruba. 88 Super Biton de Segou, uma das duas primeiras orquestras da capital bambara.

102

A animação e o otimismo eram grandes em Bamako, dando também espaço para as artes visuais, a exemplo da criatividade de fotógrafos como Adama Kouyaté, Seydou

Keïta, Malick Sidibé. Era no contexto da juventude urbana de uma sociedade em aceleradas mudanças e imersa nas músicas das rádios que as emissões de rock , twist , soul ou funk tornavam-se emblemas do impulso modernizante malinês.

A marca do governo de Modibo Keïta se impôs dentro de sua visão socialista, mantendo laços privilegiados com a Costa do Marfim e o Senegal. Recepcionou em 1964, ano de sua reeleição, Fidel Castro, Sekou Touré, Haylé Selassié, Senghor e Che Guevara com a Orquestra Regional de Segou 89 , conduzida por Amadou Bâ, que havia tocado com

Louis Armstrong em Bamako em sua turnê de 1960. Amadou Bâ mesclava metais além de ter inovado com a introdução da guitarra elétrica (MAZZOLENI, 2011b, p.108).

No campo dessa política cultural, foram marcantes as Semanas Nacionais da

Juventude, que reuniam na capital, jovens de diferentes delegações regionais em domínios artísticos diversos. Isso ocorreu em torno de temáticas de entrelaçamento cultural, a cada ano, na primeira quinzena de julho, entre 1962 e 1968 (quando Keïta foi deposto). No encerramento da quinta Semana Nacional da Juventude, em 1967, o presidente qualificou a iniciativa como “reuniões anuais de jovens de todas as nossas regiões que participam de competições saudáveis, de todos os tipos, permitindo que eles se conheçam melhor e reforcem as bases da nação do Mali” (KEÏTA apud BOCOUM;

YALCOUYÉ , 2016, online ).

Modibo Keïta não obteve sucesso no projeto de unificação nacional, isolando a sociedade tamacheque após a revolta de 1963-64 (BOILLEY, 1999; LECOCQ, 2010). Os

Kel Tamacheque haviam perdido militarmente a guerra contra os franceses, mas não

89 fusionada com a Super Biton em 1966 de Mamadou Coulibaly. 103 podiam nem entender nem aceitar que estes mesmos entregassem a autoridades desconhecidas, que nunca haviam sequer pego em armas (BARYIN, 2013). Para eles, uma colonização partiu e outra chegou. Na região dos Kel Adrar havia no final dos anos

1950, esperanças de se alcançar alguma autonomia (Boilley, 1999). Sua compreensão e gestão do conflito foram desastrosas, enrijecendo a situação, que se tornou mais e mais polarizada, enquanto militarizou as regiões do norte, sobretudo, Kidal e Taudani

(MAZZOLENI, 2011a; BELLIL, BADI, 1993).

A rebelião foi também isolada em termos de ação do conjunto da população Kel

Tamacheque, que sofreu, porém, as consequências. A repressão foi marcada pelo extermínio de acampamentos inteiros, execuções sumárias e públicas, pessoas queimadas vivas, massacre de civis desarmados, morte de mulheres juntamente com seus filhos na prisão, dizimação de rebanhos; além de pilhagem de bens materiais, sequestros de mulheres e casamentos forçados (BOCOUM, 2015; BOILLEY, 1999, SAINT-GIRONS,

2008).

Modibo acreditava ser o modo de vida nômade um alvo a ser sacrificado em nome da ideia de desenvolvimento e modernidade que animou igualmente as lideranças africanas:

os nômades desta região haviam se habituado a viver fora de regulamentações; em outros termos, isto quer dizer que não pagavam impostos. Então, a República do Mali foi proclamada e nosso partido, a União Sudanesa - R.D.A., durante seu Congresso de setembro de 1960, optou pela edificação socialista de nossa economia. Nós consideramos prioridade acabar com o sistema de servidão, liquidar com o feudalismo nas regiões do Sul, onde as populações estão concentradas e submetidas a um controle de Conselho de Fração e de Tribo (KEÏTA, 1964, online ). O primeiro presidente do Mali apresentou-se como capaz de subjugar os Kel

Tamacheque, tarefa que, segundo ele, teriam fracassado os franceses:

Vocês sabem que, a todo momento, a região foi palco de operações militares das tropas francesas, devido às dificuldades que a França tinha encontrado para integrar esta população, apegada a suas montanhas no ciclo normal de vida do território. E, os últimos acontecimentos entre

104

os rebeldes e as tropas francesas datam de 1958. Isso quer dizer, então, que durante os 78 anos de domínio colonial, a área nunca foi completamente pacificada (KEÏTA, 1964, online ). Se o primeiro regime do Mali tivesse assumido uma atitude realmente de unidade, se houvesse instituído o diálogo, talvez tivesse edificado as bases para a construção de uma nação plural. Mas, esta não foi a opção, conforme enfatizou Bocoum:

essa repressão horrível tinha razões culturais frequentemente espirituais e testemunhou algumas barbáries, atrocidades e exações como a execução pública de Hamzata Ag Safikhoun, causada por sua poesia. Execução em Kidal de Sid Mohamed Ilias Nbakouwa Ag Oumeyata, personalidade espiritual renomada em todas as regiões, do Norte de Kidal, região de Rharous; a execução em Aguelhoc de Sidi Hayballa Ould Abidine, alta personalidade espiritual dos Kunta (BOCOUM, 2015, online ).

Modibo mandou construir uma prisão em Taudani para onde enviou seus opositores políticos, como Massa Makan Diabaté, Irahima Ly, além de Fily Dabo

Sissoko, Hamadoun Dicko, do Partido Progressista Sudanês (PSP), e onde ele mesmo seria encarcerado (até sua morte), por Moussa Traoré em 1968. Ambos foram acusados de instigar os motins pela libertação de Kassoum Toure, preso por se opor à criação do franco maliano e à política socialista de Modibo Keïta (DE JORIO, 2016; IMPERATO,

IMPERATO, 1996).

As independências dos países da África Ocidental Francesa foram negociadas em um longo processo e preparadas por uma parte das lideranças pan-africanistas. Para

“receber a independência” houve uma enorme movimentação no Mali, a partir das expressões das artes e do esporte com o intuito de criar símbolos nacionais importantes, sublinhou Toumani Kouyaté (Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015).

A herança cultural dos djeli 90 , herdeiros da ambiência constituída pela corte de

Mansa Soundjata Keïta ainda no século XIII, serviu de apoiou para Modibo Keïta a fim de traduzir a grandiosidade das culturas locais, mandinga e bambara (MAZZOLENI,

90 Trovadores, genealogistas mande-kaw. 105

2011a). Keïta inspirava-se na ideia de retorno à autenticidade adotada por Ahmed Sekou

Touré, na Guiné-Conacri, que tornaram-se famosos o Ensemble Instrumental do Mali e a

Orquestra Nacional, que possuía duas formações denominadas de A e B. No intuito de organizar e controlar politicamente a produção artística, o primeiro presidente do Mali instituiu as já mencionadas Semanas Nacionais da Juventude, em inúmeras aldeias do país, promovendo competições a fim de encontrar destaques na edificação do orgulho nacional. Neste sentido, a orquestra Ensemble Instrumental do Mali, dirigido por N’fa

Bourama Sacko, com cerca de trinta músicos, cantores e coristas, foi o motor inicial da política da autenticidade malinesa (MAZZOLENI, 2011a). Toumani Kouyaté precisou que simultaneamente a

todos esses grandes “ ensembles ” foram criados, também, os teatros nacionais. Tudo que é o teatro nacional nasceu nesse período das independências, para as receber. A partir deste momento, a gente acreditou que a arte, a cultura, os saberes africanos não seriam mais folclorizados. Portanto, deveriam ser mais estruturados, não seriam mais (apenas) na rua, mas, também, nas grandes salas. Então, construímos salas, notadamente, o Teatro Daniel Sorano, no Senegal, a Casa do Povo, no Burkina, o Grande Teatro da Assembleia em Bamako, o Teatro Nacional Alpha Yaya Diallo, na Guine e o Teatro Nacional Houphoët Boigny, na Costa do Marfim. Em todos os países africanos houve algo desse tipo. É [o tempo do] nascimento da Ópera na Argélia. Esses eventos foram oficializados na perspectiva pan-africana e internacional (Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015).

Em 1962, ocorreu a Bienal do Mali que se manteve até 1968 91 , tendo sido considerada uma das atividades nacionais mais exitosas naquela época. Kouyaté ressaltou que a “Bienal do Mali foi um grande evento, reagrupando artistas e artesões. Neste caso não era panafricano, era mesmo do Mali” (Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015).

Keïta, dissolvendo a Assembléia Nacional e suspendendo a Constituição em 1967, passou a governar por decretos, com apoio de um Comitê Nacional para a Defesa da

Revolução (CNDR). Lançou, assim, o que chamou de "revolução ativa. Seydou Badian

91 Ano do golpe de Estado contra Modibo Keïta.

106

Kouyaté (2010, online )92 foi taxativo quando afirmou ao jornalista da Rádio França

Internacional (RFI) que “o golpe de 1968 mutilou o Mali. O Mali hoje, apesar dos esforços, não é nosso. Todo mundo sabe disso, todo mundo diz isso. O golpe de Estado de 1968 foi uma virada daquele processo político, social, econômico do país”

(KOUYATÉ, 2010, online ).

Com Moussa Traoré, o Mali dava início, em 1968, a uma outra fase. Na cultura, lançou os Festivais das Regiões, devido à influência do vizinho Sankara (Burquina Faso), dando continuidade à política de autenticidade de Modibo, após um período de hesitação.

“Cada região organizava seu evento para receber as outras. A regionalização dos festivais no Mali se desenvolveu, influenciando a Costa do Marfim (Entrevista 13. Toumani

Kouyaté, 2015). As regiões dos Baoulé, Dioula, Senoufo, Anango e outras, começaram a organizar festivais.

Estas regiões marcaram suas especificidades culturais em suas experiências musicais e os festivais foram criando um campo de intersecção e de conhecimento mútuo.

“Sikasso era região conhecida e respeitada por sua arte teatral. Kayes e Kita eram mais voltadas para a música e Gao era, antes de tudo, a dança da elegância, como diziam”

(Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015).

A perspectiva de Moussa Traoré de controle e uso político das expressões culturais, terminou por manter e revitalizar iniciativas do presidente anterior. Inspirando- se nas Semanas da Juventude, criou a Bienal Artística, Cultural e Esportiva que teve sua primeira edição em 1970, em Bamako (MAZZOLENI, 2001b, p.109), para a exaltação patriótica. Sua política pretendeu mesclar a ideia de modernidade à tradição, conservação e abertura (DIALLO, 2016), colocando como central um projeto moralizador por meio de “educação cívica e moral ”, conduzido pelo Ministério da Juventude, Esporte, Artes e

92 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=FMAt7tCFYLM 107

Cultura (MJSAC), criado em 1976 e finalizado com a queda do regime militar instalado por Moussa Traoré. Este declarou, no encerramento da oitava Bienal, que “neste século atroz, onde a própria vida do homem é ameaçada pela agressão e alienação de todos os tipos, apenas na cultura reside sua iminente dignidade, só a cultura pode dar ao homem uma chance de salvação ” (TRAORÉ apud DIALLO, 2016, p. 140-141). Das edições da

Bienal Artística, Cultural e Esportiva emergiram nomes como Demba Diallo, Nahawa

Doumbia, Oumou Sangaré, Toumani Diabaté ou Khaira Arby (DIALLO, 2016).

A Segunda República, conduzida pelo general Moussa Traoré, findou após intensa manifestação social em 1991, notadamente de estudantes secundaristas e professores que havia paralisado o país. Nos anos 1980, Traoré havia suavizado suas estratégias de condução do país, mas o Estado já não podia manter o financiamento das atividades culturais e artistas, do mesmo modo como havia feito anteriormente. Assim, o interesse pelas grandes orquestras declinou e seus artistas migraram para Abidjan ou Paris.

Cresceram, porém, os percursos individualizados e o sucesso de cantores, como Salif

Keïta e Cheick Tidiane Seck, fora das fronteiras malinesas (MAZZOLENI, 2011a, p.125).

Entre 1992 e 2012, sob Alpha Oumar Konaré e Amadou Toumani Touré, a música do Mali integrou os cenários da world music , através de nomes como Ali Farka Touré,

Oumou Sangaré, Toumani Diabaté, Habib Koité, Bassekou Kouyaté, entre muitos outros.

As iniciativas privadas multiplicaram-se nesse período coberto por perspectiva econômica conduzida pelo Banco Mundial, com diminuição da participação do Estado no investimento social, nas políticas de descentralização e neoliberalismo do mundo global impactou a vida cultural malinês.

A Bienal Artística e Cultural assumiu, em 2003, sob Amadou Toumani Touré, o atual formato de Seminário Nacional das Artes e da Cultura, tornando-se “um exemplo

108 de realização de política contemporânea de cultura em um país do oeste africano, realizado em parceria com organizações internacionais ” (DJEBARI, 2013, p.301), partícipes da economia global de bens culturais. Neste processo inscreveu-se, também, o

Festival au Désert, sobretudo nas últimas edições. Em 2005, voltou a ser Bienal Artística e Cultural, deixando de ser realização exclusiva da capital Bamako, para se produzir em outras cidades do país até 2010, quando foi interrompida. No final de 2017, foi retomada no contexto da política cultural de fortalecimento dos acordos de paz.

No Mali e, sobretudo, em sua capital, existe atualmente grande número de eventos nacionais e internacionais, como o “Encontros da Fotografia Africana, iniciado em 1994 e já com onze edições, o Festival das Realidades (teatro) desde 1996, além de um número significativo de manifestações que se multiplicaram desde a independência, em 1960”

(BARROS, 2018).

A Bienal do Mali continua sendo usada como ferramenta de construção nacional e mesmo da diplomacia malinesa. Ibrahim Boubacar Keita e sua ministra da Cultura,

Ramatoullaye Diallo, entenderam o papel essencial da cultura para o retorno da paz e da unidade nacional. Para Diallo, a reatualização da bienal, além de ser uma exigência do

Acordo de Argel, “ressoa como um verdadeiro caldeirão de valores de coesão social. Esse encontro, no sentido literal do termo e em sentido figurado, é um esforço para aproximar as pessoas no contexto de desmontagem de barreiras interpessoais” (DIALLO apud DIA,

2017, online )93 .

A África pós-colonial viveu (e vive ainda) crises políticas diversas, desde os primeiros momentos das independências, que ocorreram em meados do século XX. São,

93 DIA, Ibrahim. Mali: la biennale artistique et culturelle de retour après une longue absence, Malinet , 03 Mar. 2018, online. Disponível em: http://www.malinet.net/flash-info/mali-la-biennale-artistique-et- culturelle-de-retour-apres-une-longue-absence/ Acesso em: 29 Out. 2018. 109 em parte, consequências das dinâmicas da colonização, mas, também, apontam para a responsabilidade das elites que estiveram à frente da descolonização e da gestão dos governos que se sucederem no poder desde então. As diferenças são importantes entre os vários processos específicos no continente, mas há, igualmente questões comuns. Gerard

Chaliand (1977), por exemplo, ressaltou que a pequena burguesia que passou a administrar os novos países, havia feito parte da administração colonial. Essa pequena burguesia tornou-se intermediária de uma economia dependente, uma vez que estava alienada da produção, permanecendo burocrática e vinculada ao comércio, sendo que sua força passou a ser baseada num único fator: a nacionalidade. Sem projeto de desenvolvimento, investimento na produção e na industrialização, os novos governos impuseram impostos enormes às suas populações.

Os governos do Mali independente não produziram um projeto de construção plural e não estenderam equitativamente as ações de construção e de investimentos a seus diferentes territórios, línguas e expressões artísticas e culturais, sobretudo do Norte. Cabe lembrar aqui que

a burguesia nacional, que toma o poder no fim do regime colonial, é uma burguesia subdesenvolvida. O seu poder económico é quase nulo e, em todo o caso, sem semelhança com o da burguesia metropolitana que pretende substituir. No seu narcisismo voluntarista, a burguesia nacional convenceu-se facilmente de que podia substituir com vantagem a burguesia metropolitana. Mas a independência que a coloca literalmente contra a parede vai desencadear nela reações catastróficas e vai obrigá-la a lançar angustiosas chamadas à antiga metrópole (FANON, 2010, p.176) Não se conheceu uma experiência nacional enquanto “fenômeno construído coletivamente e em mutação constante” (POLLACK, 1992 apud CABAÇO, 2011). Seus líderes traziam em si as marcas da formação (ou conformação) colonizadora e da adesão

(inveja?) do projeto de modernidade subalternizante e excludente. Era uma elite urbana, formada na “Escola de filhos de chefes” da África Ocidental Francesa, William Ponty,

110 localizada em Dakar, que assumiu a direção do país (SAVADOGO, 2014). Tal processo ilustra a reflexão de Fanon quando considerou que

o intelectual colonizado lançou-se com avidez à cultura ocidental. Parecido aos filhos adoptivos, que não abandonam as suas investigações do novo agregado familiar senão no momento em que se cristaliza na sua mentalidade um núcleo mínimo de segurança, o intelectual colonizado procurará tomar como sua, a cultura europeia (FANON, 2010, p.252.). Como vimos, para a população tamacheque a independência abriu um período caracterizado pelo que Fanon (2010, p.89) chamou de violência atmosférica 94 . Mas, a cultura tamacheque gestou respostas de resistência, defendendo seu modo de viver e sua territorialidade. As independências políticas que marcaram a história do século XX em

África, não compreenderam ainda, conforme sublinhou Fanon, que existe uma grande dinâmica entre culturas africanas, cuja força transformadora não põe em causa a ancestralidade e suas narrativas históricas e culturais.

Mbembe (2013, p.23) assinalou que “O afrontamento entre o estado pós-colonial e as sociedades pós-coloniais assumiu formas extremamente variadas, ambíguas e ainda mais complexas porque um dos termos é parte integrante do outro e vice-versa”. Dessa forma, acredito que a luta cultural pela emancipação tamacheque, na qual se inscrevem

Festivais e Encontros intercomunitários, deva ser compreendida no contexto de crises instaladas na África do Oeste e África do Norte, sendo, simultaneamente, uma longa crise de identidade, política e territorial (ASIWAJU, 2003; KIPRÉ, 2005).

Pensar as implicações dos festivais saarianos para (re)abrir acesso ao futuro

A reação à dominação, que pode se efetivar de diversas maneiras, segundo Frantz

Omar Fanon (1968), realçando o fato de que o ser dominado por uma deterioração interior

94 Ver igualmente a discussão de José Luis Cabaço, 2011. 111 termina por aceitar, passivamente, sua opressão e a desconstrução profunda de seu ser. O autor afastou-se de uma concepção essencialista de identidade que é percebida como noção aberta e fluida. Para Fanon, a alienação resulta em uma perda de si ou da capacidade de autodeterminação, tanto individual quanto do grupo social subordinado. A possibilidade de superação depende da transformação da sociedade, sendo preciso

“sacudir as raízes contaminadas do edifício” (FANON, 2008, p.28). Tal tem sido a luta do movimento cultural tamacheque do final de século XX, que conseguiu proclamar internamente a esperança de gerações que traduziram sua ira em revoltas contra a opressão dos Estados africanos (principalmente no Mali e no Níger), em explosões, mas, igualmente em luta cultural.

Achille Mbembe (2010) enfatizou que o Estado colonial usou o princípio da diferença e da não similaridade como uma configuração de governo em si mesmo, estabelecendo específicas formas conhecimentos com propósito de canonizar a diferença e eliminar a pluralidade e as ambivalências da tradição. Acredito que esta perspectiva se aproxima da forma pela qual dirigentes, como Modibo Keita, conceberam as sociedades africanas. Ao modo francês, ele também possuía uma visão evolucionista “em que a civilisation era o destino dos povos em fases históricas “atrasadas” (CABAÇO, 2008, p.91). O pan-africanismo emergiu como instigação à mudança de atitudes, mas acabou tropeçando nos mesmos dilemas ligados à coabitação de diferenças, sem aberturas para favorecer convivências rizomáticas e enriquecedoras. Cheick Tidiane Seck observou essa questão:

eu acho que devemos ser muito cuidadosos os que apoiamos o pan- africanismo, como eu faço. A noite da África no Estádio da França, por que falhou? Porque eles só levaram artistas da África Central e da África Ocidental, mas não havia nenhum artista da África do Sul, nenhum do norte da África e sem isso, não podemos falar de África (Entrevista 26. Cheick Tidiane Seck. 2017).

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Tal perspectiva pode apresentar-se e ser trabalhada em situações de trocas culturais, como as que se configuram nos festivais. Kouyaté contou que a partir década de 1990, o termo festival expandiu-se, modificando imagem dos festivais devido à diferenciação e especialização de temáticas, como festival de música, de dança, de teatro ou de contos. Enquanto família de djeli , Toumani, seus irmãos e primos organizaram, em

1995, o primeiro festival do conto, oficializado em 1997 e que, dois anos depois, ganhou repercussão internacional (Entrevista 13. Toumani Kouyaté, 2015).

O Saara e suas culturas, como outras africanas, ainda carregam estereotipias e

“persistência da visão do “outro” como objeto de investigação passivo, sem voz e atemporal, predeterminado, a priori , pelo discurso, ao invés de ser considerado um sujeito auto constituído” (EDBLOM, 2011, online )95 . As experiências curatoriais dos festivais saarianos, como o Festival Taragalte, estão em sintonia com estas dinâmicas sensíveis de alteridades em movimento. O fenômeno da festivalização das artes, música e dança particularmente, aumentaram nas últimas décadas e não ocorreram apenas em África, sendo consequência cultural da globalização, sob a perspectiva da chamada “globalização desde baixo” (APPADURAI, 1996).

Um de seus desafios maiores está na geração de horizontes possíveis, sem deixar de atentar para “o risco de escorregar para o que Sarat Maharaj chamou de

“espetacularização do discurso” (EDBLOM, 2011, online ). A dimensão ecológica sinaliza uma valorização de ambientes vulneráveis, como os desertos. “Hoje, assiste-se a muitas convulsões no mundo, mais e mais importantes, notadamente nos conflitos internacionais e ecológicos que fazem com que se passe de uma convulsão a outra, de exílios e de cantos dos exílios” (Entrevista 27. Alain Weber. 2017).

95 http://www.buala.org/pt/a-ler/terceira-metade-novos-horizontes-arte-africana-contemporanea-e- politica-pos-colonial. 113

Nesse sentido emergem indagações e prospecções, como as que Achille Mbembe

(2016, online ) considerou em sua conferência Afropolitanismo e Afrofuturismo, conferida durante um Colóquio no Collège de France, em 2016, argumentando que: “em trinta ou cinquenta anos, mais de um em cada três habitantes será africano ou de ascendência africana. O mundo de amanhã será africano”. Este estudo em torno a

Festivais no Saara tamacheque emana de uma indagação sobre a utopia de “reabrir o acesso aos depósitos do futuro” pela e para a sociedade tamacheque em sua diferença, singularidade, multiplicidade interna e entrelaçamentos cosmopolitas. Poderá essa sociedade, constituída desde comunidades no deserto do Saara, se ver inscrita e reconhecida no que Édouard Glissant (1993-1997) nomeia “Tout-Monde”?

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CAPÍTULO 2. Dos encontros intercomunitários aos festivais no Saara de Azawad: performances, utopias e desafios Eis o que é o Festival au Désert: é uma instituição cultural tamacheque que traz sua contribuição com alguns projetos de desenvolvimento para a zona como as perfurações de poços artesianos e de melhoraria das escolas.

Ahmed Ag Hamama

A música ichúmar da década de 1980, elemento central dos festivais em discussão, ganhou contornos de expressão plural pois ampliou, após 2000, suas performances. Na forma de festivais (ORY, 2013), novas estéticas endógenas (artes visuais, dança, jogos, corridas de camelos etc.) e exógenas (ritmos da musicalidade malinesa, africana e de outros continentes), associaram-se a dimensões econômicas, logística e trocas regionais.

As formas de manifestação cultural comunitárias extravertidas (BAYART, 2000;

FARIAS, 2004), que amadureceram no formato de festival, congregando festivaleiros tamacheque, de outras sociedades africanas e de outros continentes, tornaram-se, do mesmo modo, preocupações de vários encontros intercomunitários (Tamdacht de

Aderambukar, Tamoqqest de Anchawadj ou Festival Tamasonghoi de Bourem). Sobre esta intensificação de abertura cultural, de busca ativa de intercâmbio e diálogos com um mundo extertior cada vez mais distante, Issa Dicko, enfatizou este lugar de ponte e mediação entre váras culturas, que tem sido uma constante na história dos Kel

Tamacheque. Nesse sentido, sinalizou que eles,

conhecem bem a cultura songoï, a cultura fula, a cultura hauçá. Essa é uma riqueza dos Tuaregue, pois eles conhecem e aceitam tudo isso. Se os outros podem se tornar barreiras, o Tuaregue não pode ser barreira, ele tem que ser um elo. Graças aos Tuaregue se conseguiu criar laços comerciais entre a África do norte e a África subsaariana. Eles eram os intermediários. Os Tuaregue foram intermediários de culturas entre o norte e o sul desde os fenícios, gregos e romanos (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016.). Os festivais e encontros intercomunitários concernem a uma cultura histórica de mobilização, promovendo uma atitude política e de resguardo cultural tamacheque, a 115 fim de fortalecer a eficácia de zemmer , resistência cultural, internamente e no intercâmbio com as sociedades e governantes de países africanos, na tessitura de redes internacionais. O próprio conceito de tumast ou temust (nação tamacheque), dependendo da variante linguística, foi sendo construído ou reforçado pelos processos de mobilidade e de exílio colonial (devido às invasões e às repressões do início do século XX) e pós- colonial (vivido por uma parte da juventude tamacheque desde os anos 1960), conhecida como al-fillaga 96 .

A continuidade desse movimento, desdobrou-se, nos anos 1970-80, em busca de alternativas de resistência, cultural e armada, contra a marginalização submetida desde meados do sécuo XX. Culturas expressivas e culturas de resistência se efetivaram nestas mesmas décadas, compondo as duas dimensões da techúmara 97 . Ressalto aqui, que o fechamento e a fragmentação territorial - criados pelas fronteiras administrativas e nacionais -, foram fatores preponderantes das revoltas, pois inibiram a mobilidade e levaram ao colapso a economia e autonomia locais.

Dessa forma, há na techúmara um sentido de reabertura que reforçava a necesidade de extraversão. Issa Dicko associou, em sua análise, esta prática social de abertura ao próprio modo de vida, pois o pastorismo e o nomadismo exigem a prática constante da negociação e da mobilidade. Para ele, isto permitiu às suas cidades, em tempos de maior autonomia, tornarem-se centros de trocas sociais, lugares de produção de conhecimentos e entrepostos comercais reconhecidos e culturalmente plurais:

96 Ou el-fellaga , sua etimologia pode ser ligada à fellagha , do árabe, com sentido de bandido, ou a fellah , camponês/agricultor ou ainda a fallaq , pessoa armada. Segundo informado em pesquisa de campo (conversação com Assafi Ag Abdou-Razack), inicialmente era um modo pejorativo usado se referir a nacionalistas e militantes de movimentos anticoloniais que se armaram para expulsar os franceses da Argélia (foram importantes durante a Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, liderada pela Frente de Libertação Nacional) e, também, da Tunísia. 97 A história da Techúmara possui uma bibliografia ampla, ver dissertação de Ag Adnane, 2014, além dos estudos de autores como Bellil e Badi (1993), Belalimat (2003), Card (1982), Genthon (2012), Hawad (1990), Lecocq (2004).

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os Tuaregue não podem ser fechados, pois são nômades. Eles nomadizam e, ao mesmo tempo, fazem o comércio transsaariano. Se você analisar bem, constata que são os sedentários que não se movem. O tuaregue em Timbuctu, por exemplo, aprende algo de songhoi; em , aprende alguma coisa de hauçá. Mas os outros raramente vêm até os [acampamentos] tuaregue. Um songhoi, por exemplo, raramente vai a um acampamento tuaregue para aprender alguma coisa. Então, os Tuaregue são os mais abertos, porque são nômades e sabem que sua vida está ligada a seu meio, onde há outros povos que lá estão e com quem é preciso negociar (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016).

Em meados dos anos 1990, posterior aos tratados de paz (entre o governo do Mali e os Movimentos e Frentes Unificados de Azawad) decorrentes da grande revolta, esta dimensão de cultura de mobilização da Techúmara 98 , foi matriz de novas transformações.

Acredito que, incialmente, os festivais internacionais organizados no Saara tamacheque, surgidos nas regiões de Kidal e de Timbuctu principalmente, desdobraram-se dessa cultura política rizomática (GLISSANT, 1996) do deserto do saara, remetendo a configurações multidirecionadas de pertencimento e à problemática relacional com a alteridade. A noção de identidade que assumo na tese, empresta esse conceito da identidade-rizoma de Édouard Glissant, distanciada da concepção de identidade como raiz (metáfora de origem). Nas configurações rizomáticas das sociedades moventes e compósitas, como a Kel tamacheque, as raízes se compõem no encontro com outras raízes

(GLISSANT, 1996). Os festivais são expressões desses rizomas em sua constante atualização do campo relacional, tanto entre confederações ( tiwšaten ), como entre sociedades, sejam saarianas e saelianas ou mais distanciadas.

Estes festivais, por sua vez, renovaram os encontros intercomunitários nômades, ampliando e transformando suas dinâmicas, mas mantendo suas ancoragens em espacialidades regionais e locais. Neste contexto, festivais e encontros intercomunitários traduziram preocupações e reflexões da sociedade em formas dramatizadas do diáologo entre arte e história, cultura e política. Definir essas manifestações para compreender seus

98 Anteriormente voltada para mobilizazação interna e chamada da juventudo para a luta. 117 sentidos e descrever suas rotas e percursos constituiu parte importante do trabalho deste estudo. Em diversas ocasiões, as definições que emergiam nas entrevistas e conversações permitiram construir um repertório retórico e visual cujo conteúdo ora se complementa ora evidencia conflitos.

Sentidos, motivações, composições da noção de festival

A movência de festivais - com seus sentidos e suas bases sociais de interesses - pluraliza, sobretudo quando se trabalha na escuta de interlocutores e interlocutoras deste estudo. Tanto nas entrevistas, como em diversas situações compartilhadas, foi interessante perceber a composição diversificada de experiências, modos de compreensão a respeito de interesses envolvidos e suas raízes sociais e de gênero. As narrativas de pessoas com quem dialoguei diretamente, em pesquisas de campo, traduzem a pluralidade de perspectivas e expectativas geradas pelos festivais e a vontade de fortalecimento de encontros intercomunitários. Assim, ainda trabalhei, com grande ênfase na escuta de falares (que geraram repertórios, oral e escrito), reproduzindo trechos mais detalhados de forma a garantir, mesmo que parcialmente, uma amplitude além de suas visões, pois formam a principal fonte da pesquisa.

Para o professor Ag Hamama, a emergência de manifestações festivas entre jovens possui raízes que remontam aos anos de colonização e mesmo antes, quando recebia o nome de talhadrat na região de Timbuctu . Sua compreensão indica uma intersecção entre a experiência de sua própria juventude e a história de manifestações festivas e encontros intercomunitários à emergência dos festivais contemporâneos internacionalizados. Ag

Hamama narrou os eventos que ocorreram no acampamento do seu pai, elucidando que a talhadrat

era o lugar de encontro de jovens. Como o velho era muito aberto e gostava da presença de jovens, seu acampamento abrigou a talhadrat

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no início. Foi nos anos 1940, vocês sabem que a noção de data era difícil naquele momento, mas, de todo modo foi em 1940 ou um pouco mais tarde. Desta forma, talhadrat chegou e ficou. Houve anos em que ocorria e outros que não. Depois [de um intervalo], a gente voltava a organizar, dependendo se havia seca ou uma boa primavera com chuvas. Nos períodos em que tudo ia bem, a gente se reencontrava anualmente depois das chuvas, para festejar em torno à tendé , em torno ao emzad , em torno à flauta [ taghanibt ], em volta de hardin [ ou tehardant ].Todos esses instrumentos que hoje tendem a desaparecer eram bem centrais neste meio, animando a cultura tamacheque de uma maneira geral e, de forma específica, eventos como batizados, nascimentos e casamentos. Tudo isso se celebrava em nosso meio (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Essas composições de instrumentos, artistas e suas performances são campos de sonoridades e movimentos de narrativas complementares, conforme Wa Mukuna Kazadi

(1985), além de atos densos de sentidos no pensamento musical africano. As festividades comentadas por Ag Hamama, evocam a música-evento (WA MUKUNA, 1985), que entrelaça sonoridades como possibilidades de mobilização e criação comunitárias e exemplicificam movências em contextos de tradições orais.

Segundo Ag Hamama, o termo talhadrat , usado pela comunidade Kel Ansar, é de origem árabe [hadara , presença] cujo significado remete a reagrupamento e reencontro.

Os entrelaçamentos religiosos e linguísticos são muito intensos em sua comunidade, pois

“os Kel Intassar ficaram tão ligados ao árabe que metade de sua língua foi arabizada. Nós emprestamos do árabe as palavras que precisamos, como hoje fazemos com a língua francesa”. No contexto Kel Ansar, talhadrat , passou a indicar uma pequena festa juvenil.

Então, talhadrat é isso, é uma manifestação que marca a presença dos jovens em um lugar durante um período de suas vidas; é uma época de alegria. Nela se evoca o passado, se faz poesia, se canta as glórias das meninas e dos meninos que marcaram a comunidade por seus comportamentos, por suas belezas e seus atos na vida desta comunidade. Ao ponderar sobre a historicidade desse evento-música, Ag Hamama explicou que

talhadrat ocorria durante a colonização e no tempo das independências. [A palavra] temakannit surgiu de talhadrat, nasceu dela. Com a independência, ela foi levada a Ras-el-Ma [Lago Faguibine, Goundam, Azawad - Mali] e lá, a festa passou a ser chamada de temakannit, que significa beneficente. Porque beneficiente? É um encontro em que os parentes que estão longes, uns aos outros têm oportunidade de se rever, 119

discutir os problemas comuns, nela se conversa sobre casamentos de jovens que se separaram e que não quiseram se ver mais. É o lugar em que os Kel Tamacheque se organizam entre si para discutir seu presente e seu futuro. É isso de fato, temakannit (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). É importante ressaltar que os Kel Intassar (ou Kel Ansar, Kel Insar), comunidade de Ahmed Ag Hamama, reivindicam descendência dos Aws e Khazraj, conhecidos por terem acolhido e dado suporte ao profeta Mohamed em Medina, para que pudesse difundir a mensagem do Islã. Ansar significa, literalmente, apoiadores/as. Como vimos, estes encontros intercomunitários posteriormente, passaram a ser chamados de temakannit:

temakannit é o mesmo que talhadrat . Era organizada, também, em volta do acampamento de velho Hamama Ag Attaher - chefe tradicional da confederação Kel Intassar e, também, chefe administrativo 99 em nome de sua comunidade na zona de Ras-el-Ma. Havia, no início, um grupo que, geralmente, reunia os jovens de toda a região de Timbuctu de maneira espontânea, natural, não havia convite nem programa. Era uma semana em que todo mundo estava lá, todo mundo vinha para acampar naquele lugar. A gente levava as provisões e durante uma semana festejávamos dias e noites. Naquela semana todos os problemas se resolviam, os projetos entre famílias são (re)acordados, entre as comunidades e entre as tiwšaten , os projetos são selados. Isto, desde Ber até Ras-el-Ma, os dois polos da confederação Kel Intassar (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Esses festivais tiveram papel na marcação e legitimação territorial como sublinhou o professor Ag Hamama. Há, além disso, em sua explicação, uma dimensão social, de alianças familiares da tawšit -confederação/ grupo de linhagens sob uma autoridade comum, escolhida e reconhecida por todos. Também era espaço de debates sobre o futuro e acordos. No início da década de 1960, este evento começou a adquirir certa formalidade, com coordenação para ser organizada e ocorrer.

Em 1963, temakannit começou a ser mais formalizada, porque naquela época os jovens de Ras-el-Ma criaram uma comissão de organização. Nessa comissão - que não foi nomeada assim - os jovens mostraram seu engajamento e sua organização. Eles que organizavam esta festa, fazia anos. Temakannit foi pensada para ocorrer após a festa de tabaski 100 ,

99 Pai do entrevistado. 100 Termo da língua serer que é usado no oeste africano para Aïd el-Kebir, a grande festa ou Aïd al-Adha, festa do sacrifício que marca o fim do período de peregrinação. O termo tafaske é, também, usado no norte do continente pelos kel tamacheque e outras culturas imazirren/amazir.

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pois na ocasião de tabaski , os jovens tinham muita carne, eles traziam sua carne, traziam tudo que precisavam e se reencontravam lá durante uma semana. Temakannit continuou assim, ela conheceu anos vazios, anos de suspensão visto os acontecimentos e devido às secas. Porém, ela persistiu até a rebelião de 1991 101 (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Fadimata Walet Oumar, conhecida como “Disco”, do grupo Tartit 102 , destacou a temakannit como espaço de coesão e como eventos que constituíram a fundação do

Festival au Désert:

O festival começou, antes de tudo, com festas tradicionais como temakannit . Na nossa região [Timbuctu] se chama temakannit , acontecia todos anos. As pessoas se encontravam sobretudo durante a festa de tabaski. Depois ficavam mais para fazerem música, para se conhecerem e trocarem ideias, conhecimentos, informações, se relacionarem. Era como um fórum, as pessoas discutiam e dialogavam. Desses eventos surgiu a ideia do Festival au Désert. Penso que você falou de Manny, que é na realidade, o diretor geral do Festival au Désert e seu fundador 103 . A gente sonhou com este festival desde que éramos jovens (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016). Temakannit , enquanto evento da comunidade, foi influenciado pelas condições climáticas e ambientais, mas, também, pelas relações entre as pessoas e pela situação política.

Chegou a ser suspensa nos anos 1990, conforme Ag Hamama:

temakannit ficou suspensa durante o período da rebelião dos anos 1990. Quando nós voltamos dos campos de refugiados, pessoalmente – se falava muito dos Kel Tamacheque e do povo Tamacheque -, refleti, vi que precisava revitalizar os Kel Tamacheque em sua cultura. Para alguns, os Kel Tamacheque haviam desaparecido, não existiam mais, não tinham mais algo caro e mais nada próprio, nem a beleza de antigamente. Por isso, eu, professor Ahemd Ag Hamama, professor de meu Estado, na situação de refúgio/ enquadrado nos campos de refugiados, ao voltar para Tin Aïcha, na beira do mesmo Faguibine e na mesma zona de Ras-el-Ma, pensei na revitalização de temakannit . Com isso, de uma forma organizada, iniciei o projeto de retomada de temakannit , introduzindo elementos para pôr à disposição de um certo

101 Início da rebelião foi em 1990. 102 Tartit é um grupo de música tamacheque de Timbuctu, criado por um grupo de mulheres militantes da causa tamacheque liderado por Fadimata Walet Oumar, conhecida como Disco. Isto foi nos campos de refugiados na Mauritânia, durante a rebelião dos anos 90. O grupo, inicialmente composto por vinte pessoas, agora tem somente uma dezena. Tartit significa em tamacheque união. Em dezembro de 1995, o grupo participou do Festival Voix de Femmes em Liège, na Bélgica, começando uma carreira internacional que lhe permitiu difundir a cultura tamacheque no mundo todo, através de concertos, mas também, de palestras e debates, segundo sua líder Disco. 103 Um dos fundadores, pois a ideia veio em encontro entre o grupo Tinariwen e o grupo francês Lo’jo. Naquela época Issa Dicko e Manny Ansari eram produtores de Tinariwen. 121

tipo de turismo. Um turismo que deveria contribuir para o desenvolvimento daquela zona devastada. As escolas haviam sido quebradas, tudo estava destruído. Achei que precisava organizar temakannit como um evento cultural tamacheque, com um turismo bem conduzido, sem perversão. Este turismo devia trazer sua contribuição para o desenvolvimento da região (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Ag Hamama reivindicou seu protagonismo na reedição da temakannit após os conflitos entre os Kel Tamacheque e os governos do Mali (principalmente dos anos de

1990 e de 2006-2007), que provocou grandes perdas para a população de Timbuctu e tamacheque, em seu conjunto.

Desta forma, escrevi o projeto em Tin-Aïcha, com logo de uma associação cultural que tinha criado antes e vim aqui em Bamako com ele. Era o começo das associações tamacheque: havia Tamankayt, Aitma - a ONG de Manny Ansari em que eu, também fazia parte dos membros fundadores. Propus o projeto para duas estruturas que funcionavam aqui, criticaram a ideia. Contudo, comecei a envolver o Ministério da Cultura e iniciei contatos. Quando tudo começou a ter forma, disse para a equipe do Manny - sobretudo para Iyor (Mohamed Ahmed Ag Hamama) para ficar com os documentos, pois precisava visitar minha família. Após da minha volta para Bamako passaria os contatos que estabeleci com o Ministério da Cultura através dos conselheiros do Ministério. Quando voltei, efetivamente, interessaram-se pela minha proposta. Então, os camaradas da ONG Aitma, na pessoa de Manny et Iyor, retomaram a ideia e desenvolveram a proposta, pois eles já tinham entrado em contato com o Ministério da Cultura, dando encaminhamento ao que eu havia começado (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). A análise de Ag Hamama enfatizou a potencialidade de fortalecimento de seu modo de vida pelo trabalho constante da sociedade em criar momentos de identificação, carregados de sentidos e fluxos rítmico-símbolos, envolvendo trajetórias pessoais e performances grupais.

Já para Bombino, existia uma coincidência de sentido, pois

temakannit e takubelt são a mesma coisa. Cada região tem uma expressão para falar sobre uma mesma atividade cultural. De qualquer forma no Níger, estas palavras vieram do Mali, sua origem é de lá, dos Kel Tamacheque de Gao, de Timbuctu ou de Kidal. Nas festas que se fazia competições de camelos em volta de tendé, às vezes, filhos da mesma linhagem, mas pode ser entre duas ou várias linhagens, competiam como ocorre na cura do sal e de outras manifestações e encontros inter-tamacheque ou inter-étnicos (Entrevista 4 Moctar Ag Oumar Bambino).

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A temakanit favoreceu o diálogo interno, constituindo um lugar de autoreconhecimento e de construção de si como cultura e linguagem estética, como expressão política e artística.

O festival temakannit foi implementado. Defendi que a primeira edição fosse em Tin Aïcha e me esforcei para que estivesse sob minha condução. Ocorreu no verão de 2000 em Tin Aïcha. Convidamos membros do governo, autoridades regionais e locais e todos se reuniram em Tin Aïcha. Fizemos a primeira edição, foi simples. No ano seguinte, nós dissemos que o festival iria se tornar um verdadeiro festival móvel em toda a zona. Então, o levamos, em 2001, para Ras- el-Ma e para Gargando em 2002, com a participação do Ministério da Cultura e do Ministério de Artesanato e do Turismo, na pessoa de Zakiatou Walet Halatine que era nesta época ministra do Artesanato e de Turismo. Desta forma, fizemos as três edições: Tin Aicha, Ras-el- Ma e Gargando (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Fadimata Walet Oumar, igualmente originária de Timbuctu, amplia a origem da emergência dos festivais tamacheque e reconhece outras denominações e dinâmicas, atribuindo à Kidal sua emergência.

O Festival au Désert começou com temakannit em Kidal digo Takubelt: em Kidal, eles chamam de t akubelt, mas nós usamos, em Timbuctu, o nome temakannit . Quando se instalou em Timbuctu tornou-se uma grande ocasião para todos Kel Tamacheque de se reconhecerem entre si e reativarem atividades que realizavam antes da colonização para o mundo exterior vir ao Mali descobrir e conhecer Timbuctu e os Kel Tamacheque, sua cultura e seu meio ambiente. É isso que o Festival au Désert permitiu, abrindo portas depois de décadas de fechamento e de aprisionamento desta cultura (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016). Essa dimensão de encontro e intercâmbios em meio a grande pluralidade cultural interna, expressa um dos fatores que alicerçaram as variações e acomodações dos encontros intercomunitários em diferentes formas de festivais. Conforme destacou Ag

Hamama, desde a reorganização da temakannit, após a tanakra (timakrinen, pl.), revoltas da década de 1990, cresceu, também, a ênfase no diálogo externo e, neste âmbito, no potencial do turismo. Essa ligação que passou a ser frequente, impõe uma discussão sobre a dimensão ideológica e econômica, o desejo de extraversão (BAYART, 2000) e a passagem ou requalificação dos encontros intercomunitários para a sua construção como 123

“festival” (AMICO, 2014). Para tanto, estes espaços culturais densos em performances e ritualidades, ricos artística e simbolicamente passaram a ser percebidos como dispositivos culturais para o desenvolvimento de projetos sociais e/ou de conectividade internacional.

Mas, todavia, carregam o risco de homogeneização e descontextualização ao serem extraídos dos seus lugares de sentido para se oferecerem como atraentes aos olhos de turistas e de artistas estrangeiros e malineses.

Festivais em narrativas e performances pluralizadas

Os festivais internacionais, como o Festival au Désert, apoiam-se, como referido anteriormente, nas formas diferenciadas de culturas expressivas como Takubelt,

Temakannit, Tamadacht, Gani, Bianu (encontros intercomunitários). Estas últimas são práticas históricas de encontros após o período de mobilidade sazonal - da região de

Kidal, Gao e de Timbuuctou (Mali), Aïr (Níger), entre outras -, em que a resolução de conflitos, circulação de informações e debates sobre as grandes questões do momento, como renovação de alianças, realizam-se em assembleias e celebrações da vida social, expressando-se, também, em forma de manifestações artísticas (CLAUDOT-HAWAD,

1992). Neste sentido Ahmed Ag Hamama teceu importantes considerações.

Em meio tamacheque de maneira geral, esses eventos festivos são tradicionais e acontecem após as chuvas quando os rebanhos são levados a bons lugares de pastagens. Não há mais água no Saara, sendo preciso sempre buscar os pontos de água como poços, lagos e rios temporários e mesmo ir até o rio Níger. Há sempre o tambor, tradicionalmente organizado num lugar central onde os acampamentos se reencontram, sobretudo, os jovens que deixavam seus acampamentos para levar os rebanhos aos pastos. A cada noite após os trabalhos os jovens, homens e mulheres, se encontram em uma duna no centro do acampamento para se divertir. À noite, a presença é constante da tendé , da guitarra, além de canções, poemas e contos até muito tarde. Os participantes só se separam porque os trabalhos de cuidado dos rebanhos recomeçam de manhã. Nesses reagrupamentos nasceu a noção de festa anual, ocorrendo quando o Saara se torna verde e os animais têm bastante comida. À beira de lago de Faguibine, é de lá que surge a festa tradicional em nossa comunidade em Gundam. Essa festa que foi instituída desde o período colonial chama-se talhadrat . Este

124

termo era muito conhecido no meio nômade antigo. Talhadrat acontecia no lado norte de Faguibine (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). A takubelt (reunião, encontro) é momento de conexão, espaço de diversão e igualmente de resolução de litígios, de mediação de conflitos entre pessoas e grupos, como os ligados à gestão das terras de pastagens. Esse encontro representa uma forma de desenhar movimento na espacialidade da vida nômade, que se faz entre pontos de encontros, marcações simbólicas e alianças sociais e políticas, tornando indissociáveis espaço, cultura e sociedade.

A cada ano se reafirmava o pertencimento comum à mesma comunidade de destino, contendo a possibilidade de novas descobertas, reconfiguração dos espaços poéticos e dos reencontros amorosos, constituindo espaço de vitalidade e renovação social: de casamentos, cantos, danças, jogos e competições.

Devido ao difícil processo que opôs, sobretudo o Estado do Mali e do Níger à sociedade tamacheque desde os anos 1960, os encontros anuais da takubelt - talhadrat ou temakannit como explicou Ag Hamama em entrevista -, foram interrompidos, tendo sido restabelecidos apenas no final do século XX, ou seja, em janeiro de 1997, quando houve a Takubelt de Djoun-Han. Depois deste encontro, ocorreria em Takubelt de

Alquasbat, perto de Aguelhok (2000), Takoubelt de In-Amadjel, perto de Tin-Essako

(2001), Takoubelt de Tessalit (2002), Takubelt de Abeybara (2003) e, no ano seguinte, ocorreu a Takulbet de Essouk, conhecido como FETE (Festival Tuaregue de Essouk) 104 .

O Festival de Essouk foi concebido ao mesmo tempo como festa (música, dança, corridas de camelos, paradas, concursos de beleza de poesia e canções), feira (exposição e venda de diversos produtos artesanais) e como fórum, tendo como tema : descentralização, relações entre as autoridades comunais e as autoridades tradicionais, bem como as relações entre as autoridades comunais e as autoridades de tutela, o Islã na sociedade Tamacheque. O turismo tem sido concebido de modo a promover montaria e passeios em camelo e

104 Ver http://keltinariwen.org/FR/1-presentation-festival.html 125

visitas aos locais históricos da região: Essouk, sítios neolíticos Emajlalen, esculturas em pedra e Ikindiku Tamaradant (TAMAZGHA, 2003). Outras iniciativas deram impulso à redinamização social em meio, infelizmente, a conflitos e tensões que continuam até o presente sem solução. Este “renascimento” dos encontros anuais tamacheque - takulbet/ temakannit - formou as bases dos novos festivais musicais internacionais, a partir do início dos anos 2000.

A década de 2000, particularmente na segunda metade, foi um rico período no

Mali de florescimento dos festivais culturais, inspirados, em parte, no Festival au Désert

(que obteve grande repercussão em 2003). Em 2011, a lista de festivais divulgados nas mídias do país chegou a cerca de 40 festivais. Ressalto aqui, que além de Kidal,

Timbuctu, Menaka, Ségou, Gao criou o seu festival, fundado pela Associação África

Culturas, com sede na França, enquanto festival internacional de Gao, com foco na cultura Soghoi. Esse festival, como o Festival sur le Niger de Ségou, teve importante cobertura da mídia nacional e estrangeira, como TV5, Business Africa e Continental.

Desta forma, observou-se uma festivalização baseada em diferentes propostas, mas, com

ênfase na diversidade de etnicidades - com suas línguas, linguagens estéticas e performances, sendo valorizadas, junto ao esforço de celebração de algumas cidades, em forte investimento no turismo nacional.

Les Nuits Sahariennes de Essuk: conexões e movências de Tadamakat

Foi em Essuk (Tādmakkat) 105 , antigo entreposto das rotas trans-saarianas (JADLA,

2003; CUOQ, 1984), localizado a cerca de 45 Km de Kidal - que as primeiras festividades aliaram encontros intercomunitários locais ( takubelt ) à presença de viajantes estrangeiros,

105 Segundo Paulo Farias (2012, online ), é possível encontrar outras grafias, como Tademekka, Tādmakka, Tādimakka, e Tādmāk, e transcrições do árabe, além de Tadmǎkkǎt em língua Tǎmaashǎk (tamacheque) moderna. Ver ainda, o artigo “Tadmâkkât and the Image of Mecca: Epigraphic Records of the Work of the Imagination in 11th-Century West Africa” (FARIAS, 1999, p. 105-115).

126 marcando uma transformação na concepção e antecipando o que viriam a ser os festivais culturais do século XXI. Elina Djebbari contextualiza esse processo enquanto a

“festivalização 106 de música e dança que tem sido crescente nas últimas décadas, seja na

África seja em outras partes do mundo. Porém, essa ‘consequência cultural da globalização’ não envolve os mesmos mecanismos históricos, políticos e sociológicos”

(DJEBBARI, 2013, 291).

O encontro ou takubelt de Essuk, de 1997, conhecido como Festival Tadamakat ou

Les Nuits Sahariennes de Essuk, foi um dos primeiros organizados depois do final do conflito dos anos 1990, atraindo pessoas de diferentes lugares (Entrevista 12, Issa Dicko,

2016; Entrevista 19, Keltoum Walet Emastagh, 2018). Este evento cultural ancorado no horizonte saariano nasceu da vontade das autoridades locais, dos notáveis, intelectuais, artistas, artesões e vários outros homens e mulheres interessados na cultura da região de

Adrar dos Ifoghas. Ressalto o encorajamento do então patriarca de Kidal, Intalla Ag

Attaher, falecido em 2014.

O Festival Tadamakat, por sua vez, tem suas raízes históricas em manifestação chamada Takubelt, ou seja, encontro intercomunitário de nômades que, em 1997, abriu- se como parte de estratégia social de facilitação do intercâmbio com outros lugares do mundo. Assim, a Takubelt tornou-se conhecida devido à presença de pessoas de vários países ocidentais, incluindo músicos e jornalistas interessados em música não ocidentais, tal como Gael Baryin (2013), Andy Morgan (2012).

É oportuno aqui situar historicamente, Tādmakkat (atual Essuk), uma vez que o nome oficial deste festival contém referência ao significado simbólico e identitário da cidade para os Kel Tamacheque. Essuk é uma das mais antigas cidades saarianas, que

106 “Mise en festival”. 127 segundo Paulo Farias (2012, online )107 , correspondeu a um carrefour urbano situado no eixo entre o norte da África, a África sub-saariana e o al-Andalus, tendo sido referida por vários historiadores e viajantes medievais, contemporâneos do período de ouro de

Tādmakkat, entre eles al-Bakrī (1014-1094), al Qadi Iyaḍ ibn Musa (1083-1149), ibn

Idhāri al-Marrākushi (fins sec. XIII e início sec. XIV), Alhassan al wazzan, o Leão

Africano (1494-1554), entre outros. Muḥammad Abū’l-Qāsim Ḥawqal (1992)108 , Ibn

Ḥawqal, cujas viagens remontam ao período entre 943 e 969, abordou em seu livro mais renomado de 977, Ṣūrat al-’Arḍ (Descrição da terra) as linhagens de Tādmakkat naquele período:

e confederações () berberes 109 , a (أء) Enumerei várias linhagens ,os reúne. Porém, ao reler meu livro (ت) ascendência de Golias pareceu-me insuficiente o material desenvolvido no texto, visto sua importância. Desta forma, voltei a esta página e às seguintes para fazer uma descrição do que consegui sobre os nomes dos Sanhājat, suas ,seus clãs e suas fratrias: ankifo, banii 110 Markissan ,(أذ) linhagens banii Kardamit, banii Sighit, banii Salah, banii Massúfa, banii Warith, banii Totak, além de Sartat, Satata, Targa, Maddáça, banii Lamtúna, Mgrassa, Mumina, Faria, Lamta, Malwana, Inikart, (IBN ḤAWQAL, 1992, p. 101) 111 .

Após uma apresentação dos nômades Sanhāja 112 , Ibn Ḥawqal abordou em seu livro mais renomado em 977, Ṣūrat al-’Arḍ (Descrição da terra), as linhagens de Tadamakkat

(Essuk atual), descrevendo os reis de Tādmakkat,

alguns são das comunidades qabâ’il (singular qabílah ), originalmente pretos, ainda que suas peles tenham se tornado brancas, pois estavam

107 A referência foi acessada por meio de edição online , disponibilizada em 2012. Porém, sua primeira publicação foi em 2000, no contexto da Encyclopaedia of Islam, volume X, s. 78. Leiden: E. J. Brill. 108 A tradução foi feita do árabe e é de minha autoria. Utilizo, no estudo, o texto publicado no Cairo em 1992. Seu livro, Ṣūrat al-’Arḍ, teve duas edições anteriores por editores distintos: uma foi revisão e ampliação da obra Masālik ul-Mamālik de Istakhri (951), que era edição revisada de Ṣuwar al-aqālīm por Ahmed ibn Sahl al-Balkhi (859-934), escrita em 921. Vale ressaltar que, no ocidente, os escritos de Ibn Ḥawqal compuseram o segundo de oito volumes de textos de geógrafos árabes, organizados por Michael Jan de Goeje, publicados em Leiden pela editora Brill. Seu texto que faz uma descrição dos territórios muçulmanos, foi disponibilizado em 1873. 109 Forma estrangeira para fazer referência aos Imazighen. 110 Bannii , significa filho de. Esta designação evidencia a influência da língua árabe, pois as linhagens que não usam banii existem, provavelmente, por manterem a terminologia mais antiga. geógrafo e viajante que viveu ,( أ ا ) Muḥammad Abū’l-Qāsim Ibn Ḥawqal al-Naṣībī 111 no século X. 112 Sociedade Amazir que constitui uma das bases da sociedade Kel Tamacheque atual.

128

mais ao norte e mais longe de Kaw-kaw 113 ; suas mães são descendentes ,são: Hanadaza, Makiata (أذ) Suas linhagens .(ت/de Golias (Jalut Kel Mata, Inkariaghan, Karka, Ilalaghmawetan, Katawtawa, Sakara, Balagh lagha, Indeman, hatika, Inmizzeran, Imizwaghen, Issattafan, Ifakaran. Outros autores confirmam que são uma linhagem de Sanhāja (IBN ḤAWQAL , 1992, p. 101). E continuou com maiores precisões,

o atual rei dos reis de Tadamakkat é Sahar ibn Al Farah e, depois dele, Inawa ibn Sabnzak. Neles, os Banū Tānmāk, detêm o poder, a presidência, o saber, Fiqh (jurisprudência), a política, além da biografia, a arqueologia, de acontecimentos impactantes do seu tempo ( IBN ḤAWQAL , 1992, p. 102). Entende-se, então, que a história de Tādmakkat ou Essuk, teve uma importância significativa no campo do conhecimento, somado a suas atividades de trocas comerciais, antes mesmo da fundação de Timbuctu e de Chinguit 114 , outras duas cidades que tiveram relevância no mundo saariano e islâmico daquela época. Hïdara (2012), ao enfatizar a importância de Essuk, na história tamacheque, indicou haver em suas montanhas (Adrar) um sítio arqueológico com gravuras rupestres datadas de cerca de 6000 antes de nossa era. E que se tornou uma cidade caravaneira e próspera entre os séculos IX e XII, quando a migração amazir, lemta e houara, em primeiro lugar, seguidos de pastores ‘Hamitas’ e grupos vindos posteriormente de outros lugares do Saara (da atual Mauritânia e

Marrocos), compuseram sua população.

Ao analisar a fala de Ibn Ḥawqal percebe-se como os Kel Essuk encorajaram o conhecimento desde vários séculos. Daí se compreende o fato de terem recebido a alcunha de Assauki ( uassuk singular e, no plural, kel essuk ), possuindo o sentido de sábio associado aos diferentes campos do conhecimento religioso. De forma semelhante ao que hoje se usa no Egito para o título de azhari ou azharista, (aquele/a que se formou em Al

Azhar) para se referir a pessoas com grande conhecimento. O geógrafo Ibn Abul Mun’im al-Himyari (1984), descreveu Tādmakkat a partir de al-Bakrī:

113 Atual Gao. 114 Na Mauritânia atual. 129

Tādmakkat em Bilad as Sudan é, entre as terras do mundo, a mais parecida com Meca, que Allah a glorifique, o sentido de Tād entre eles [na sua língua] é forma. Isso significa está na forma de Meca . Ela impenetrável entre montanhas e escolhos, sendo melhor construída que a cidade de Gana e de Kakaw (1984, p.128) 115 . Vale dizer que Tādmakkat é expressão da língua tamacheque composta de dois termos: Tād (esta é) makkat (Meca). A associação entre as duas cidades se deve seja à presença islâmica, com seus notáveis e sábios, além da própria paisagem montanhosa que as aproximam esteticamente.

fabricada em ouro ( IBN ,(ا) ’Além de referir à moeda da cidade, chamada sala

ABUL MUN’IM AL- HIMYARI , 1984, p.129), o autor descreveu rapidamente o uso de tagelmust (turbantes) pelos homens e passagens de caravanas. Tādmakkat era um dos três sultanados Sanhāja (juntamente com Aïr, Damonssa), conhecido como terra dos homens

“mulathamin ”116 (véu), possuindo autonomia política apesar da aliança com os sultões de

Marraqueexe. Ao lado das ruínas de Tādmakkat se encontra, atualmente, Essuk (a cidade nova) que desde a descentralização no final da década 1990, se tornou município. Ibn

Qalqashand (1915), ressaltava em sua obra publicada em 1910, que esses sultanatos faziam uso de camelos, possuindo autonomia política inclusive na relação com o “dono do Mali” 117 (IBN QALQASHAND, 1915, p. 210).

Esse antigo centro caravaneiro foi referência para Festival de Essuk que visava além de homenagear, a reafirmação de sua importância histórica. O evento ocorreu nas proximidades das ruínas da cidade histórica, localizada na região de Adrar de Iforas, a leste de Timbuctu e nordeste de Gao. Trata-se de um sítio arqueológico com pinturas e

.(اوض ار ار ا س ) Kitāb al-Rawḍ al-miʿṭār fi k̲ h̲ abar al-aḳṭār 115 116 Kel Tamacheque foram conhecidos como mulathamin, durante séculos até a chegada da colonização, quando europeus os chamaram de Tuaregue. 117 Significando, aqui, o sultão do Império do Mali.

130 inscrições em tifinar muito antigas. Pela observação da figura a seguir, é possível reconhecer a localização da região de Kidal, segundo o mapa político do Mali.

Figura 3. Região de Kidal com localidades tamacheque.

Fonte: Wikipedia.org 118

O projeto do Festival Tadamakat, Les nuits sahariennes de Essouk, surgiu como um festival de artes e cultura tamacheque, voltado, principalmente, para um público nômade, mas recebeu, também, festivaleiros do Mali, de outras regiões de África, da

Europa, das Américas e da Ásia. Seu eixo temático concretizou-se pela valorização das performances ligadas à literatura local, à música, à dança, contando ainda com ateliês sobre a caligrafia tifinar (escrita tamacheque) e exposições de produção em couro e metal com as já conhecidas “joias tamacheque”. Nesse movimento de renovação e ressignificação da história cultural, Essuk voltou a receber visitantes de diversas origens

(VELTON, 2009, p.91), em 2004 e 2005, com atividades promovidas pela associação local Efes (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). Iyadou apontou a pluralidade da programação do Festival Tadamakat de Essuk, narrando que

a cerimônia de abertura era seguida por conferências e debates, além de poesia e dança com os camelos. As apresentações de grupos tradicionais ocorriam no final da tarde, antes de começar os concertos dos artistas

118 https://fr.wikipedia.org/wiki/R%C3%A9gion_de_Kidal#/media/File:Kidal_administrative_map-fr.svg. 131

famosos. As corridas de camelos e a presença dos grupos locais nômades eram oportunidade de expressão importante. (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016). Os membros do grupo Tinariwen, que são, majoritariamente, da região do Adrar, foram os principais mobilizadores do Festival Tadamakat Les Nuits Sahariennes de

Essuk. Um de seus membros de grande carisma, Abdallah, é natural de Essuk. Kidal é, assim a capital simbólica de Tinariwen. O Festival de Essuk contou, portanto, com o suporte da Associação Transaariana Taghreft Tinariwen 119 (construção dos desertos), composta por Tinariwen e Terakaft 120 . Iyadou Ag Lech assinalou que suas edições foram garantidas mesmo sem financiamento e esclareceu que “Essuk, sobretudo, é a nossa casa.

Então, nós de Tinariwen, organizamos tudo, colocamos nossos meios e nosso dinheiro sem apoio externo nenhum” (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016).

No artigo intitulado “Takoubelt ou l’espoir des Kel Temasheq!”, os responsáveis pela página na web, Tamazgha.fr, explicam que ocorreram cinco edições de encontros, na região de Kidal, que mantiveram o nome de takubelt : Takoubelt de Djoun-Han (1997),

Takoubelt d’Alquasbat (2000), Takoubelt d’In-Amadjel (2001 perto de Tin-Essako),

Takoubelt de Tessalit (2002) e Takoubelt d’Abeïbara (2003). O festival de Essuk teve sua primeira edição em 2004 e teve importância semelhante à de Tin Essako, Tessalit e a primeira edição de Essakane (2003), que se transformaria no Festival au Désert.

Segundo Mina Walet Oumar, do grupo Tinariwen, a takubelt é um termo usado para nomear situações em que muitas pessoas se encontram num lugar para festejar. Para ela, o uso do termo na expressão Takubelt de Essuk, intercambiável por Festival de Essuk,

119 Mais informação sobre a criação do grupo Taghrift Tinariwen, consultar a dissertação de Ag Adnane (2014): Ichúmar: da errância à música como resistência cultural Kel Tamacheque (1980-2010). Raízes históricas e produção contemporânea. 120 Taghreft Tinariwen: Presidente: Ibrahim Ag Alhabib (fundador de Tinariwen) ; Presidente de Honra: Nina Walet Intallou (conselheira do Haut Conseil des Collectivités Territoriales du Mali) ; Secretário: Issa Dicko (conferencista, co-fundador do Festival au Désert que nasceria alguns anos depois, a partir destas atividades culturais da cidade históricas tamacheque) ; Conselheiros internacionais: Andy Morgan, Bastien Gsell (Tinariwen UK) ; Philippe Brix (Tapsit) ; Fred Miguel e Jean-Jacques Bordier (promoção e imagens).

132 ganhou força com a organização do encontro de Tin-Essako, realizado por Tinariwen e

Lo’jo em 2001 (Entrevista 20. Mina Walet Oumar, 2018). Antigamente chamavam a mesma atividade, na região de Kidal, de iniminhiyan [singular, animinhiy ] ou timoqqessen [singular, tamoqqest ]. Issa Dicko, reforçou as palavras de Mina, quando considerou que:

os Kel Tamacheque já organizavam encontros intercomunitários que nós chamamos de takoubelt na região de Kidal, temakanit para os Kel Ansar, assehar no Ahaggar e tamadacht para os Iwillimiden de Menaka. Nós dizemos que, com a mundialização, seria importante abrir estes encontros intercomunitários para o resto do mundo. Foi assim que a ideia do Festival au Désert nasceu (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). O Festival Tadamakat les Nuits Sahariennes de Essuk, foi uma das atividades que convergiram para a criação do Festival au Désert, tendo sido planejado pelas comunidades locais como um fórum de comunicação e de trocas socioculturais. Issa

Dicko ressaltou a diferença entre eles, mesmo que ocorrendo com importante sinergia:

o Festival de Essuk, na realidade, começou quase ao mesmo tempo que o Festival au Désert. Isso porque Essuk era um festival apoiado por Achekh Ag Baye e Atayoub Ag Intala. Agora, a partir de 2005, a Associação Taghrift Tinariwen - da qual sou secretário geral, formada pelo grupo Tinariwen cuja presidenta foi Nina Walet Intalou -, retomou o festival por sua conta. Nós organizamos as edições de 2005 e de 2006. Infelizmente a partir de 2006, com o movimento de Ibrahim Ag Bahanga, o festival não foi mais realizado (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). Desta forma, houve concomitância de iniciativas que se voltavam para a realização de festival de artes e cultura tamacheque (literatura, música, dança, caligrafia tifinar, artesanato, técnicas e saberes tradicionais). As entrevistas mostram que o final dos anos

1990 e o início do século XXI, foram o período em que os festivais floresceram e se afirmaram em diferentes regiões tamacheque, no Mali. As definições e motivações talvez tenham sido diferentes, mas reforçaram a busca de abertura coletiva, com base na própria matriz cultural e artística. Foi esse o contexto da emergência de numerosos festivais saarianos, especialmente, do Festival au Désert que foi certamente o mais renomado internacionalmente, conhecendo mais de 12 edições. 133

Territorialidades, encontros e diálogos intercomunitários: plasticidade e experiências

A construção da territorialidade nômade como espacialidade móvel (RÉTAILLÉ,

2011), recebe investimento contínuo das comunidades, renovando e atualizando sentidos e lugares de memória. O reconhecimento das delimitações das regiões de nomadismo, ainda que flexível e em movimento, precisa reafirmar-se a cada geração. Essa é uma concepção de cultura que encontra suporte no trabalho de Raymond Williams (2015), para quem o aprendizado de cada pessoa, das “formas, dos propósitos e dos significados, de modo a possibilitar o trabalho, a observação e a comunicação”, enquanto modo de pensar a sociedade, é lento e exige, ainda, a “comprovação na experiência, a construção de novas observações, comparações e significados” (WILLIAMS, 2015, p.5).

Os encontros intercomunitários desempenharam, igualmente, papel relevante nas demarcações e inscrições territoriais das comunidades, além de colaborarem na gestão das terras de pastagens. As pinturas rupestres e gravuras, assim como as outras formas de marcações significativas dos sítios territoriais, que sinalizam as tumbas ( tizezka ou tifeska ) com suas estelas mortuárias ( idjadayan 121 ), os poços ( enwan , singular anu ), as dunas ( tidjefene , singular tedjeft ), vales úmidos, os leitos de rios temporários, integram o longo trabalho de construção da espacialidade ancestral das tiwšaten (tawšit . no singular) ou unidades sociopolíticas e territoriais tamacheque (AG KHAMMADINE, 2012;

FARIAS, 2010).

Tais marcações simbólicas são renovadas, pelas escritas performativas

(ANTONACCI, 2018) dos encontros intercomunitários e dos festivais e reafirmadas nas alianças sociais e políticas que tornam indissociáveis espaço e sociedade, corpo social e

121 No singular, e djade.

134 territorialidade. Desta forma, as comunidades ancestrais, territoriais e de destino, constroem repertórios compartilhados de memórias em arquivos vivos (DIAGNE, 2005) que validam seus sistemas de convenções e práticas socais.

No entendimento sobre os festivais, assumo perspectiva semelhante à aberta por Iba

Ndiaye (2000; 2002; 2003, 2007), em suas reflexões sobre a estética da plasticidade, quando enfatiza que existe uma mixidade transversal e forte personalidade de grupo - ou comunidade de experiência conforme Delange (1967) - nas expressões artísticas e culturais africanas. Essa defesa, aproxima-se, igualmente, da posição de Hassan Rachik

(2016) em sua ênfase na flexibilidade de identidades comunitárias que permitem composições e variações contextuais. A cada ano se reafirma o pertencimento coletivo à mesma comunidade de destino, a possibilidade de novas descobertas, reconfiguração dos espaços poéticos e dos reencontros amorosos.

Festival Ténéré de Tinaouker

Tin Aouker é a principal cidade rural, situada numa planície, no vale fóssil do município de Tilemsi com reservas de fosfato importante, sendo região transaariana a 70 km ao norte da cidade de Gao. Ali o Festival Ténéré, realizou-se por iniciativa do coronel

Hassane Ag Mehdi (conhecido como Dimi) e sua esposa Fadimata Walet Oumar, líder do grupo Tartit de Timbuctu, em colaboração de notáveis reconhecidos e de prestígio na sociedade tamacheque, como personalidades nacionais e locais importantes do município de Tilemsi. Compareceram personalidades públicas tamacheque, sobretudo, da comunidade Chamanammas, entre elas, o ministro Aghatam Ag Alhassane, o diplomata

Zeidane Ag Sidalamine, o professor Sikaye Ag Ekawel além de Moussa Ag Ingahi e

Ousmane Ag Dalla. 135

Em 2011, ocorreu a quarta edição desse evento cultural no meio nômade, em que durante três dias, realizaram-se festividades e encontros de artistas de muitas nacionalidades, tanto africanos como de outros continentes. Além da presença de músicos da região de Azawad, foi igualmente importante a participação de artistas de outras regiões do Mali e, também, da Mauritânia, do Níger, do Burkina Faso e da

Argélia. Durante este festival, ocorreram palestras e debates sobre temas específicos e considerados essenciais, como a segurança, a paz e o desenvolvimento daquela árida região.

O músico Moussa Ag Sidi, descreveu suas impressões e reflexões, dizendo que:

do festival de Tinaouker, gostei bastante, porque é a minha casa. Aconteceu na minha terra, gostei que tenha sido organizado em minha aldeia. Foi muito boa a maneira com que o coronel Hassane Ag Mehdi organizou o evento. Ele havia sido a pessoa que me encorajou de fazer a música. Dimi é uma pessoa que gosta da juventude e a anima muito. Gostei de tudo isso. Então, antes de dizer que gostei do festival, vou dizer que gostei da iniciativa em si. A sua esposa Disco, também, teve um papel importante na organização deste festival. Aliás, ela é presidenta e artista do Festival Ténéré (Entrevista 5 Moussa Sidi Ag Ikna, Gao 21 janeiro de 2017).

O Festival Ténéré 122 enfrentou o desafio da insegurança devido à ação do crime organizado, intensa na região. Contudo, foram capazes de organizar os eventos e alcançar seus objetivos. Na lista de concertos, estavam: o famoso grupo tamacheque Tinariwen, grupo Tribute to Ali Farka Touré (composto por conjunto de artistas malineses e liderado por seu próprio filho Vieux Farka Touré) e outros grupos tamacheque, como Tartit (união

- composto de mulheres tamacheque da região Timbuctu); grupo Amanar de Kidal; Kaira

Arby (cantora moura de Timbuctu); Koudéde (artista tamacheque de Aïr, Niger). Além dos artistas Kel Tamacheque, confirmaram sua presença os músicos malineses: Toumani

Diabaté, Barou Diallo, Afel Bocoum, entre outros. A participação de grupos europeus foi

122 Termo tamacheque que significa deserto.

136 pequena, contudo, a presença de Yurodny, da Irlanda, significou apoio e destaque importantes.

Outras atividades culturais aconteceram, sendo organizadas apresentações de música e dança tamacheque e Songhoi, como Igbayen, Tachidjalt, Tendé Tamnana,

Shallo, Ekhass Koummaissa e Super 11 de Sahloun, Doumma e Yahya, entre outros.

Além de acompanhar a performance dançante de camelos, apresentaramgrandes mestres da takamba (expressões tradicionais de Gao e Timbuctu, tanto tamacheque como

Songhoi).

Para Moussa Sidi Ag Ikna, Tinaouker é a cidade dos “camelos, espadas, burros, dunas, cabras e carneiros”, de forma que pode trabalhar simbolicamente o conjunto da cultura tamacheque. Sua especificidade repousa na história das linhagens dos ferreiros

Inhadan (ou Inadan ) em torno das quais, segundo Moussa Sidi, move-se a expressividade de saberes, juntamente com o savoir-faire da cultura tamacheque, musical e artisticamente, pois são

os ferreiros ( inhadan ) tamacheque que fabricam ( izazzawaten ) facas, tendas ( ihiktan ), esteiras tradicionais ( tighrawen ) e esteiras laterais corta-vento ( issibrane ). Tudo isso faz parte da nossa cultura. Em todos os espaços em que os Kel Tamacheque se encontram, você verá estes materiais. Na realidade, são os inhadan que produzem tudo que é a cultura. Não vou lhe dizer que não há uma mulher tamacheque, que não seja tenhat, que faça almofada de croché . É claro que ela conhece, mas ela não o fará como uma tenhat . Muitas coisas da nossa cultura, nós, outros Kel Tamacheque, não fabricamos. São os inhadan que nos fazem tudo isto. Os inhadan são a melhor categoria de Kel tamacheque quando se trata da cultura, compreende? São eles que fabricam os materiais de guerra, o artesanato, são eles que fabricam âkoman [enxadas]. Mesmo a tehardant [instrumento de corda] para fazer a música, nós a conhecemos pelos inhadan . Nunca íamos escutar tehardant se um enhad não tivesse fabricado sua tehardant e a tocado. Os Kel Tamacheque não têm [outra coisa] além disto que acabei de falar, como cultura (Entrevista 5. Moussa Sidi Ag Ikna, Gao 21 janeiro de 2017). O guitarrista Ag Ikna explicou, ainda, que existe uma diferença entre o antigo instrumento tamacheque, tehardant, tocado pelos inhadan e a música Ichúmar, pois esta

é expressão ligada aos novos instrumentos, como o violão e a guitarra elétrica. 137

Tehardant é diferente, ela tem somente três cordas e esta guitarra aqui [mostrando seu violão], tem seis cordas. A guitarra é um instrumento muito moderno que tem muitas coisas em si. É um material completo. Porém, há ritmos que são próximos, que se bate como akraran (Entrevista 5 Moussa Sidi Ag Ikna, Gao 21 janeiro de 2017). A música Ichúmar foi formada pela convergência de saberes musicais, tornada possível por ser expressão de uma modalidade contracultural revolucionária, no sentido de mobilização para o rompimento de hierarquias e de separações rígidas entre saberes e fazeres segundo estatuto social e gênero. Assim, as diferenças de perpectivas analisadas por Moussa Sidi, que não é um dos inhadan mas é músico, traz à tona um debate sobre a legitimidade dessa mudança social, trazida pelo movimento ichúmar . Esse tema foi abordado por Samaké, originário da região de Gao (Entrevista 2. Bubakar Mohamed

Samaké. Bamako, 2016), ele sim, um enhad (pl. inhadan ), que se formou em economia, mas que preferiu retomar o trabalho de criação e produção de objetos de couro, considerado mais interessante e rentável.

Para Samaké, os jovens Ichúmar são os “ agutan 123 dos tempos modernos” e tiram rentabilidade dessa mudança. Mas, as circunstâncias são, na realidade muito variáveis e, na biografia das pessoas, existem outros componentes que as afetam individualmente.

Esse é o caso de Moussa Sidi Ag Ikna, morador de Gao, que enfatizou que daria entrevista em Tamacheque. Ele, como os jovens ichúmar evocados por Samaké, conheceu a errância da migração, não tendo acesso à educação.

Nasci em 1972 e sou artista tamacheque. Nunca estudei, nunca fui para escola, sou analfabeto. A minha família migrou para Tamanrasset, na Argélia, durante o período de seca entre 1982 e 1983. Então, posso dizer que foi lá que cresci e aprendi, tudo [foi] por lá. Torna-se então necessário contextualizar a análise e atentar para a generalização.

Diferente de Samaké, que estudou e habita na capital faz muitos anos, Moussa sofreu as

123 Inhadan , são linhagens da sociedade tamacheque, geralmente ferreiros ou artesões. Agutan são louvadores, músicos, têm papel semelhante ao do djeli na sociedade mandinga.

138 consequências dos que permaneceram em Gao, acreditando que estavam relativamente protegidos. Para ele, tem sido difícil dar continuidade a seu trabalho, pois

desde que minhas coisas foram destruídas aqui em minha casa com os bombardeios, ainda não consegui comprar uma guitarra. Estou numa situação difícil, nem consigo organizar uma apresentação de uma forma rápida, porque não tenho a minha guitarra solista elétrica e tenho que pedir emprestada a um amigo (...) É realmente uma crise. Imagina se alguém não tem nem guitarra elétrica, nem pode pensar em ter os diambés , as baterias e os outros instrumentos para concertos (Entrevista 5. Moussa Sidi Ag Ikna, Gao 21 janeiro de 2017). A criação musical da techúmara “é complementar e não concorrência com a música tendé”, salientou Samaké, “certamente não há nenhum conflito entre a música da tendé e a dos Ichúmar”. Contudo, já não seria assim com a tehardant , onde se percebe um conflito “entre a guitarra tamacheque e a guitarra acústica dos Ichúmar (...). Então, há atualmente uma pequena rixa, pois, os Ichúmar derrubaram o astro”. Ele destacou a sensível questão da diferenciação social com acesso a saberes e atribuições genealogicamente definidas. No caso da música, Samaké considerou que

existe uma situação conflituosa devido aos interesses divergentes entre os antigos tocadores ( agutan ) da guitarra tradicional, que chamamos tehardant , e os jovens agutan modernos que se chamam ichúmar. (...) Isso significa que estes jovens não são de linhagens especializadas. Porém, eles tocam guitarra e recebem benefícios econômicos por suas manifestações e, assim, a gente diz que são agutan dos tempos modernos. Além disso, eles prejudicaram muito a vida dos antigos agutan originais que, autenticamente, detinham o monopólio deste mercado, do takamba , por exemplo (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. Bamako, 26 dezembro 2016). Mesmo se a maior homogeneização da sociedade tende a ser bem-vinda, pode vir a ser reivindicada quando ocorre conflito de interesse econômico ou de prestígio, evidenciando a complexidade desse tema. São dimensões que permanecem ambivalentes por não terem sido resolvidas, efetivamente, pelo conjunto da sociedade. Assi, elas oscilam, segundo o momento, o contexto e os interesses a defender.

139

Takubelt de Zalab-lab é, ancestralidade e afirmação territorial

Na localidade de Zalab-labé foram organizadas duas edições de encontros - timoqqessen - intercomunitários em que participaram, particularmente, as comunidades do município de Anchawadj e de Telamsi (região de Gao). Zalab-labé é minha própria morada. A acolhida como pesquisador foi uma experiência pessoal forte e emocionante.

Em Zalab-labé, fiz diversas entrevistas, individuais e grupais, entre novembro de 2016 e janeiro de 2017. Uma delas, ocorreu na casa dos meus pais onde estavam presentes mais de 20 pessoas, desde bem cedo. Destaco a participação de Salma Walet Azamzami,

Mohamadou Ag Azamzami, Oumourmani Walet Azamzami, Alhabib Ag Almouctafi,

Zicra Walet Almouctafi e Rhissa Ag Mohamed Ahmed.

Em nenhum outro momento deste estudo de campo, biografia e pesquisa estiveram tão intensamente entrelaçadas, gerando novas responsabilidades e expectativas. Alguns disseram que, num próximo estudo, deveria me dedicar à história de minha tawšit , mas que podiam compreender e aceitar que este, sendo meu primeiro trabalho de pesquisa, estivesse voltado para a tumast , o conjunto das tiwšaten Tamacheque.

Contaram-me que a Takublet de Zalab-labé se desdobrou de uma mobilização do grupo de intelectuais com formação superior da comunidade Icharamatane, localmente chamados de “ cadartan ” (adaptação do termo francês cadre , quadros 124 ). Foram liderados pelo oftalmologista Moussa Ag Almoudjtahid, que, após uma longa reflexão viu que era importante criar uma forma para que sua sociedade pudesse reafirmar sua territorialidade ancestral a fim de atualizar sua legitmidade política. Ele convocou uma reunião, em que foi decidida a fundação de uma associação local, que, posteriormente, recebeu o nome de

Associação de desenvolvimento de Zalab-labé (ADZ). Na sequência, vários encontros se

124 “Cadartan”, forma de se referir aos escolarizados a partir do termo francês ‘cadres’

140 sucederam, em Bamako, Gao e em Zalab-labé. Zilkifli Ag Assalat, um notável de Zalab- labé, ressaltou que uma das reuniões “ocorreu em Edjarew ”, nas aldeias à beira do Rio

Niger, assegurando nossa historicidade e laços comuns com os Songhoi.

Para a criação da associação, foram escolhidos os economistas Oumar Ag El

Mehdi e Rhissa Ag Mohamed Ahmed e o amenokal 125 da comunidade Icharamatane

Alhabib Ag Almoctafi, que, naquele período, fazia parte do conselho municipal da prefeitura de Anchawadj. Nestes encontros para a formação da associação, houve uma conscientização da necessidade de maior coesão e de instrumentos para reforçar seus propósitos e significados comuns (WILLIAMS, 2015). Nesse movimento de debates, surgiu a Takublet de Zalab-labé. Para isto, foram necessários muitos outros encontros em

Zalab-labé com toda a comunidade a fim de discutir as modalidades e as formas para viabilizar o evento. Foram criadas comissões e divididas as responsabilidades.

Neste contexto, Albacher Ag Goubay, um dos notáveis de Zalab-labé, nos ajudou com um depoimento oral em tamacheque, afirmando que “havia sido acordado que o evento deveria ser organizado com nossos próprios meios sem nenhum apoio externo com objetivo de discutir as questões da tawšit 126 . Era preciso para que “fizéssemos o que estivesse ao nosso alcance, tidaabat ” (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de

Zalab-labé-Gao). A participação da população local foi, portanto, decisiva na organização e na viabilização do festival de Zalab-labé.

Cada pessoa deu sua tirdjit (contribuição), com o que podia. Aqueles que tinham eharé (rebanho) contribuíram com animais, aqueles que tinham azrif (dinheiro), contribuíram com dinheiro, aqueles com tayitté (habilidades, inteligência), também contribuíram com suas ideias e, assim, fizemos o evento (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017).

125 Chefe da linhagem. 126 confederação de linhagem Icharamatane. 141

A questão social foi considerada neste evento, sendo que seus organizadores pensaram nas pessoas mais vulneráveis da tawšit e decidiram apoiá-las por meio do oferecimento de algumas cabras. Lembro que a economia local é baseada no pastorismo nômade e as cabras são os animais mais resistentes, que se pode cuidar nessa zona onde a chuva é rara. Por isso foram escolhidas as pessoas mais impactadas pelas secas:

o benefício, alfaida , que tiramos foi a distribuição que fizemos para as dez pessoas mais necessitadas da tawšit , pois conseguimos dar a cada uma, dez cabras, entre as mulheres viúvas e as pessoas mais pobres da comunidade, tilaqqiwen winider (...). Isto foi em 2008. Decidimos fazer a mesma coisa a cada ano (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017). As outras tiwašiten vizinhas, sobretudo dos municípios de Anchawadj e de

Telamsi, participaram. Segundo o amanokal Alhabib Ag Almoctafi, o evento registrou a participação do ex-prefeito de Anchawadj, Mohamed Ahmed Ag Alhassane 127 e do ex- prefeito de Telamsi, Almoumine Ag Kiyou, além do ex-governador de Gao, Baba Touré.

A população Songhoi dos municípios de Gao e de Soni Ali Ber, também, prestigiaram o evento. O projeto desenvolvimento não era desejo exclusivo dos organizadores do

Festival de Zalab-labé, mas do conjunto da população.

Juntamos rebanhos, cereais e organizamos tudo o que podíamos em termos de recursos. Pessoalmente, ofereci uma vaca. O rebanho ofertado pelas pessoas foi de dezenas de cabeças. Desse modo, fizemos um bom evento. Nosso objetivo era, também, divulgar nossos projetos e dialogar com pessoas de outros lugares. Era nosso desejo que eles chegassem até os países dos brancos, dos árabes e outros. Fizemos o que conseguimos e nosso festival foi bem organizado (Entrevista 7. Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017). Entre as atividades que foram organizadas nesta ocasião, destacaram a corrida de camelos em volta da tendé (tambor), támachaak , além de iswat , que é a música e a dança dos agutan (artesãos e mestre da palavra, além de genealogistas). O jovem Mohamed

Issouf Ag Mohamed confirmou, com entusiasmo, que “nossos agutan estavam presentes,

Mohamedine Ag Tabaryat veio e trouxe toda sua equipe”, enquanto Albacher Ag Goubay

127 Faleceu em 2014.

142 acrescentou dizendo que “todos os nossos agutan vieram para celebrar o evento, com suas tihardanen ”128 .

Omar Ag Almoustakim, pedagogo e professor, diretor e coordenador de escolas nômades durante vários anos, atualmente trabalhando no programa de Ensino das Línguas

Maternas da Direção Nacional de Alfabetização Funcional e Linguística Aplicada, destacou que “o festival foi realmente uma festa, foi um encontro grande” e foi valorizado pelo fato de que todos os presentes “usavam seus ilechan” (plural de alecho ). “Havia filas de camelos por todos os lados, tambores, flautas e todos os tipos de instrumentos musicais que vocês conhecem” (Entrevista 7. Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim,

2017).

Uma comissão ficou encarregada de exibir, em inúmeros lugares, os símbolos que significam e representam a comunidade Icharamatane, para os participantes. Estavam visíveis nas dunas e vales em que se encontram tizizka (tumbas), nas ruínas das antigas timisguidawen (mesquitas), de grande valor para a sociedade Kel Essuk (CUOQ, 184) 129 .

Parece ter sido intenso o investimento em lugares significativos de pertencimento como herança, testamento e legado de gerações desejosas de transmitir possibilidades de

(re)conhecimento. Ressalto ser esta uma comunidade de marabus da Qādiriyya, uma das ordens sufi mais fortes na região. Símbolos de identidade movem-se em territorialidade de nomadismo, idaggan n timizzoq win ibda , isto é, lugares das nossas habitações desde a antiguidade. Omar Ag Almoustakim considerou que as visitas a lugares históricos dos

Icharamatane confirmam suas raízes e história, ressaltando que

o festival foi uma ocasião para nós vivermos ou revivermos nosso passado. Fazendo o quê? Visitando, com os dirigentes da região, alguns

128 Tihardanen é plural da tehardant , é um instrumento tradicional de três cordas. Tradicionalmente somente essa família de in -hadan , agutan que toca a música e fabrica todas as necessidades de toda a sociedade Kel Tamacheque. 129 O autor acredita que esta confraria foi introduzida ao longo do século XVI na região do Aïr (no Níger atual). 143

sítios históricos. Ou seja, alguns lugares como uma antiga mesquita, no pé da montanha de Intiduten , na beira da estrada que vai em direção de Imnaghil. A mesquita está lá até hoje. Em seguida, continuamos na caminhada, passamos sobre a duna em que parte de nossos ancestrais foram enterrados. Lá existem suas estelas mortuárias (Entrevista 7 Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017). Essa dinâmica de visitas a tumbas e a antigas mesquitas foi marco singular deste encontro. Realmente trata-se de algo importane em várias culturas africanas e, sobretudo, de várias ṭuruq (singular, ṭarīqah ) muçulmanas no Saara, na Áfria do Oeste e no Magreb.

Pois sair em visitação periódica ( ziyārat ), faz parte de práticas religiosas seculares. Em

Fes, por exemplo, milhares de tijānīuna (singular tijānī ) encontram-se na zāwiyah de seu fundador, cheikh Ahmed Tijani (1735–1815). Albacher citou alguns lugares em que se encontram as tumbas antigas dos Icharamatane, que continuam a ensinar cotidianamente para que crianças cresçam conscientes destes lugares sagrados: “os nossos antepassados estão enterrados em Bahwatan, Éwalé, Inelfis, Tinalina, Intiduten, há muitas [tumbas]”.

Bahwatan é o atual cemitério dos Icharamatane que substituiu aquele de Inelfis onde minha avó paterna se encontra. Foi sua perda que me ensinou o significado da morte, possivelmente em 1986. Sua ausência era mencionada alusivamente com a frase: “foi para a Meca”. Depois disto, ficamos na mesma vila em Inelfis até 1994. Hoje, um grande número de tios, avôs e tias avós, estão enterrados naquele lugar.

A duna de Bahwatan , próxima ao vale de Anchawadj, ainda que seja usada atualmente como cemitério de Zalab-labé, tem o mesmo sentido há séculos. As estelas mortuárias são testemunhos históricos, nelas estão gravados os nomes “dos nossos ancestrais com as datas de nascimentos em algumas delas”, disse o professor Ag

Almoustakim. Alhabib, chefe político e espiritual desta comunidade, confirmava ao repetir na ocasião tidat ya , tidat ya , que significa “verdade”. Ele costuma mudar o tom de voz, ao pronunciar addinat nanagh widagh arunen , nossos ancestrais mais remotos.

144

Alhabib explicou que o nome de pedra em que se escrevia nossa história se chama edjade , estela.

Antigamente, quando uma pessoa morria, um ferreiro vinha com tassaghrist [pedra dura, instrumento, usado para inscrições]. Com isso, escrevia os nomes dos mortos. Fulano Ag fulano, até terminarem seus ancestrais 130 . Foi assim em nossa história [“awendagh as attarekh nanagh”], a história desta tawšit que se chama Icharamatane. Ela é uma tawšit antiga que tem uma história antiga. Não há nenhuma tawšit que tenha uma história como a nossa nessa região. Ela foi a primeira, segundo alguns historiadores, a trazer o Islã para esta região, akal (Entrevista 7 Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017). As tumbas Icharammatane são encontradas entre Burem, Gao, Tinaouker e

Djebock. Albacher acrescentou que, atualmente, com as novas regiões administrativas,

“Tinalina faz parte do município de Telamsi 131 , enquanto as outras estão aqui, no município de Anchawadj”. Como um membro desta mesma comunidade, eu havia escutado falar dessas tumbas muitas vezes, como de outras, as de Teknewen , Alata, En- haran, Tin-iwelan, próximo da localidade Songhoi, Forgho.

Durante o festival, segundo Zilkifli 132 , ocorreram ziyārat em cada uma das tumbas e um grupo percorreu todos estes lugares até Inelfis e Forgho. Nesses movimentos desenhavam uma cartografia de sentidos e inscrições na história com espacialidades que confundem corpos e narrativa histórica comum, desenham passado e traçam horizontes e futuro. Essa dimensão revivida em seus festivais desvelam o trabalho espiritual de construção de elos e redes conectivas entre os próprios Kel Tamacheque e entre estes e os Songhoi.

Os membros da Associação de Desenvolvimento de Zalab-labé são seus filhos e filhas, não importando onde estejam, seu estatuto ou sua idade. O objetivo principal é

130 Mandam Ag Mandam awendagh har dimdun imarawan nes. 131 É importante esclarecer que os dois municípios eram o mesmo arrondissement desde as independências até a descentralização de 1998. 132 Um dos participantes da entrevista de grupo realizada em Zalab-labé. 145 promover o desenvolvimento da localidade, criar iniciativas e buscar financiamentos para a educação, além de construir posto de saúde e poço artesiano. Os membros são responsáveis pelo trabalho comum de luta contra a pobreza. Faz parte do projeto a dimensão de solidariedade, inclusive manter a doação de dez cabras anualmente, esperando que no prazo de dez anos, cada um e cada uma possa alimentar-se corretamente e ter suas necessidades fundamentais atendidas. Há, porém, uma dificuldade maior que é a insegurança gerada pelo conflito armado. Este impediu que se fizesse, até o momento, a terceira edição da takubelt . “Desde então, começaram as crises que persistem até hoje e não conseguimos organizá-lo mais”, lamentou Albacher Ag Goubay (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017).

Reviver os laços sociais entre as populações Songhoi e Kel Tamacheque foi outro objetivo relatado nas entrevistas, entre Kel Edjarew e Kel Adjef (aqueles do rio e aqueles de dunas), depois de vários anos de conflito armado em que houve desconfianças de ambas as partes, perseverou Albacher Ag Goubay:

deveríamos reviver laços entre pessoas [ addinat ] que sempre coabitaram (...), por exemplo, de Forgho, Kokoram, Kossiakaray, Hamakouladji e Magnadaway. Pessoas de todos estes lugares se encontraram e foram visitadas pela comissão da ADZ, que trabalhou pela unificação e para retomar laços antigos e rememorar o passado (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017). Os encontros intercomunitários de celebração, tikubelen , e suas atividades culturais, tais como timachadjen (competições) realizadas a cada ano durante as festas religiosas, imadan , são memórias vivas desta comunidade. Um exemplo é o tikubelt de

Ernassedj, em que vários jovens fazem a iniciação masculina para alcançarem o estatuto de adulto, tandjatt . Após esse momento, passam a ter direito e dever de fazer uso cotidiano de eghewid ou taguilmust , o turbante tamacheque. Estes encontros festivos eram organizados durante akassa , ou seja, a estação de chuva, quando várias tiwšaten

(confederações) se encontravam em lugares como em Tinezidan, que possui terras

146 salgadas, ahara . Este é, portanto, o período de tassalaq , ou seja, de levar os animais a come, na chamada cura ou tratamento de sal. Neles surgiram as celebrações com a música de téndé em festas e ritmos entrelaçados à natureza.

Durante a Takubelt, as pessoas de Zalab-labé deram-se conta que a dramatização de algumas atividades históricas havia sido abandonada, devido à sedentarização e o impacto das cidades nos campos, segundo os/as interlocutores/as deste estudo. Isto ocorreu, também, com o jogo ekarchay ou tikist , pano que servia, nos séculos passados, como bola em jogos, ocorrendo entre os acampamentos. Ag Goubaye, ainda comentou esta tradição secular no mundo tamacheque com as seguintes palavras:

este tipo de karay , bola, que se joga atualmente. Mas, havia outro jogo de bola, que se jogava com pau. Eram essas atividades que aconteciam durante encontros timoqqessen das tiwašiten que pensamos em reativar (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017). Este jogo, realçaram Albacher e demais presentes, fazia-se, sobretudo, nos tempos akassa (período de chuva), pois a terra estaria verde. Isto significa que os nômades pastores estariam felizes e estes jogos e festas eram manifestações de alegria. Um bom período de akassa indica o início de um ano bom, em que as ovelhas e as vacas se reproduzem. Em tadjrist (tempo do frio) ocorre a colheita e quando as acácias florescem, a tapsit 133 . Isso favorece a abundância de leite, sobretudo, de cabras, mas também de camelas. Finalmente, quando os animais se alimentarem bem durante os meses de janeiro, fevereiro e março, conseguem resistir aos meses de eweelan (período mais quente do ano e mais seco) para chegarem ao amikassu, início de chuvas (junho e julho) e, novamente ao akassa (final de julho, mês de agosto e início de setembro).

Nas transformações pelas quais passou a sociedade durante a colonização e, mesmo, com os novos países pós-coloniais, tais atividades histórico-culturais foram

133 Flores de acácias conhecidas localmente por timaatteen e tihgreen . 147 sendo deixadas de lado e se sedentarizaram, idjachan timizzoghen tin igharman [entraram em morada de cidades], conforme relatou Albacher (Entrevista 6. Grupo de notáveis

Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017). Mas, ainda existem tiwšaten , que praticam estes jogos de memórias andarilhas, em trânsito na/pela natureza.

Zilkifli, lembrou do papel que o poeta Almarzock Ag Almoctafi 134 teve na história das corridas de camelos, timachaadjen, dos Icharamatane, na década de 1970. Ele o qualificou de o “ ganhador de competições de camelos”, visto que tinha um grande saber sobre camelos de corrida e treinava sempre seu camelo para esta finalidade. Os homens de sua geração, mesmo os de gerações de seus irmãos mais novos, tentavam frequentemente, uma oportunidade para vencê-lo. Zilkifli rememorou no grupo as experiências de Almarzock.

Foi numa vez que o comandante 135 veio à casa do velho 136 , nossas pessoas saíram para recebê-lo e, à tarde, voltando [para suas casas] fizeram a taamachaak 137 [competição de camelo, singular]. Assalat declarou que seu camelo era mais forte que o de Almarzock. Naquele dia, o camelo de Alamarzock estava machucado na perna dianteira, havia acontecido durante o casamento de Aliya 138 ermagh harat dagh tahit nes . Como o camelo de Almarzock estava machucado, o de Assalat ganhou daquela vez (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017). Contaram que Alamarzock Ag Almoctafi ficou inconformado, pois ele era uma pessoa que gostava de emoções nas competições, e decidiu, juntamente com seu sobrinho

Zilkifli, que iriam se preparar para retomarem seu lugar de campeões.

134 Almarzock é um notável e um grande marabu da comunidade Icharamatane, o irmão mais velho do atual chefe tradicional, filho de ex chefe Almoctafi e sobrinho de Issa Ag Haidrata que, também foi chefe depois que seu irmão Almoctafi ficou velho. Este último deixou a chefia para seu irmão mais novo, que por sua vez, antes de falecer, escolheu o atual chefe Alhabib, visto que este último tinha cursado seis anos da escola colonial, o que segundo seu tio, Issa Ag Haidarata, lhe daria condições para compreender as questões sociais e políticas em jogo na região. Almarzock é o irmão mais velho do pai da minha mãe e Alhabib é irmão mais novo de meu avô materno. 135 Um oficial militar, representante do governo. Havia vários comandantes e chefes que respondiam pelas divisões político-administrativas da região ( cercle , de arrondissement etc). 136 Amenokal Almoctafi Ag Haidarata. 137 Se fala também taamachadjat 138 Nome de um dos notáveis

148

Em uma das vindas de Mohamed Ag Almahdi 139 - conhecido por Ekaday -, de Kidal ou de Tessalit, onde trabalhava, avisamos que estávamos indo lá no acampamento deles. No momento em que saíamos, nós estávamos no rio 140 , precisamente em Timadjlalen. Éramos eu, Almarzock e Gazza, un Songoï. Almarzock me perguntou o que faríamos com os homens [referindo-se a Assalat e seus amigos]. Eu respondi que quando conseguisse o ekarachay [pano do jogo, símbolo da vitória], eu o seguraria durante dois quilômetros, isso eu tenho certeza. Fizemos o combinado. Eu estava no camelo de Ahamma 141 . Pela tardinha pegamos os camelos e fomos para à tendé e ficamos fazendo voltas e voltas em torno dela e, quando consegui o ekarchay, peguei e fui embora. Aí, os homens daquele amazzagh [acampamento] me perseguiram. Foram atrás de mim, mas, quando encontrei Almarzock eu lhe passei o erasway 142 . Ele o pegou e começou a cantar suas ennizaman (poesias) 143 . Como seu camelo estava acostumado a essas canções, bastava que Almarzock começasse a cantar para que seu intalaghlaq [nome daquele camelo] disparasse, ele sumia. Nós o chamávamos intalaghlaq . Alamarock pegou só uma parte pequena do ekarchay e deixou o restante ao vento. Assim, o camelo aumentou seu galope. De nossa parte, continuamos seguindo Alamarock até que só conseguíamos ver o erasawy no ar e os nossos adversários se deram conta de que tinham sido vencidos ( atwarnan ) e voltaram. Eu continuei e cheguei ao nosso acampamento. Almarzock e eu, éramos os campeões (Entrevista 6. Grupo de notáveis Icharamatane de Zalab-labé-Gao, 2017).

Para que Almarzock e Zilkifli ganhassem a corrida, iniciada num lugar chamado

Tinaghaman, próximo de Zalab-labé, dicidiram que a distância a ser percorrida deveria ter mais ou menos 45 Km. Naquela época, os Icharamatane ainda não haviam se sedentarizado e os acampamentos da comunidade estão situados próximos aos limites em que suas tumbas ancestrais se encontram. Em Tinaghamane, lugar onde se iniciou a competição entre dois acampamentos Ichramatane, havia tende porque a corrida aconteceu durante uma festividade e a tende é o elemento musical mais importante, pois

é usada pelas mulheres para tocar e cantar.

139 Mohamed Ag Almahdi trabalhou na alfândega. Foi conhecido, também, como “Mohamed V, o aduaneiro”. 140 Edjarew , região do rio, neste caso, uma região, não necessariamente na beira do rio. É uma forma de fazer limites entre edjef e edjarew região de rio. 141 Seu verdadeiro nome é Mohamad Ag Azamzami, inchas massinagh [que Allah lhe perdoe] , Ahamma seu nome diminitivo, faleceu em 2002. Ele era um dos notáveis da comunidade e o irmão mais velho de minha avó materna. Seu irmão mais velho, Mohamedou, é o segundo conselheiro da comunidade. 142 A mesma coisa que ekarchay, são sinônimos 143 Poemas cantados. 149

Sobre o pano, ekarachay, Zilkifli explicou que era “um cachecol, assuar 144 , que uma mulher nos deu para ver se os homens de seu acampamento conseguiriam ganhar”.

Estas competições geravam, também, prestígio entre as mulheres dos acampamentos, pois segundo Zilkifli, quando os homens vencedores chegam, as mulheres de seu acampamento os saúdam com o tighlila 145 e os acompanham em longo percurso até o acampamento. Era uma festa no acampamento inteiro. Albacher contou que eram as mulheres que entregavam o prêmio, alhak . Nas composições de Zalab-labe, as narrativas sobre festivais, remetem à educação da percepção modelada por trabalho artesanal de criação de histórias que emergem do conhecimento dos modos de vida e desenhos de tradições. São montagens que encontram eco nas reflexões sobre a arte de narrar de

Walter Benjamin (1986), apesar da diferença de contextos. Essa maneira de transmissão oral, de pessoa a pessoa, recentra os sentidos da experiência (erfahrung ) e da vivência

(erlebnis ) no cultivo do passado em ethos comunitário e no investimento intenso e permanente na memória com rastros compartilhados.

Perguntei sobre os poemas-canções issuhagh de Almarzock, porém, os presentes não se lembravam delas. Espero poder retomar ao tema em momento oportuno, pois envolvem composições orais e fontes orais do pensamento local relevantes. Almarzock escrevia poemas em tamacheque e, também, em árabe. Ele está idoso, mas, quando nos encontrarmos tentarei registrar algo de seu conhecimento ou mesmo de sua biblioteca poética, como Amadou Hampâté Bâ (1982).

144 Assuar significa o tecido que se usa para o véu da mulher, enquanto taguelmust é o que se usa para os homens. 145 As aclamações das mulheres se fazem com palmas, eqass , e com os yuyus ou tighlila .

150

Festival Tamoqqest de Anchawadj

Anchawadj, município localizado à leste de Gao, juntamente com Tilemsi, formavam o Arrondissemt de Djébock, até 1996. Ahmed Ag Mohamed Ahmed, amenokal das linhagens 146 Cherifane de Anchawadj, explicou que esse município, “reúne cerca de quarenta linhagens tamacheque. O município de Djebock, hoje Anchawadj e Tilemsi, é o mais antigo da administração colonial desde o tempo de grande chefe Mohamed Ahmed

Cherifane, o Grande” (Entrevista 17 Ahmed Ag Mohamed Ahmed Ag Alhassane).

Comunidades formadas por linhagens conhecidas como cherifane 147 de

Anchawadj, teriam migrado de Tafilalte (no atual Marrocos), atravessado o deserto em diversas caravanas, passando por Timbuctu, onde uma parte das famílias permaneceu.

Outras duas linhagens se reuniram entre Gao e Gangabera, uma estabeleceu-se na região da atual cidade de Gao e a outra dirigiu-se para o vale do rio Anchawadj.

O Festival Tamaqqest de Anchawadj 148 foi organizado pelas comunidades do município em Agdilinta, aldeia do prefeito de Anchawadj naquele período, que se localiza a 70 Km de Gao. O nome agdilinta significa, em tamacheque, aquele que se defendeu ou que recusou a se submeter. Visto o prestígio do grande amenokal Mohamed Ahmed Ag

Alhassane, mediador dos diálogos entre sua sociedade e o governo e que foi, também, prefeito do município, vários imenokalen (plural de amenokal ) decidiram organizar homenagem a ele em sua própria aldeia Agdilinta.

A primeira edição foi nos dias 30, 31 de dezembro de 2007, finalizando em 1 janeiro de 2008. A organização do Festival Anachawadj, informou em sua página oficial,

146 Na linguagem local, frações, hábito de linguagem colonial remanescente. 147 Forma tamacheque para o termo árabe, chorafa , plural, sendo o singular, cherif . É designativo dos que reivindicam ser descendentes de Ali Ibn Abu Talib (HAÏDARA, 2012). 148 Ver documentário: https://youtu.be/7hx4IpsJ2K8. 151 que recebeu patrocínio dos Ministérios, da Cultura e do Artesanato e Turismo, da

Associação Tilwat 149 , além de apoio da prefeitura de Anchawadj e, de forma expressiva, da população das aldeias, vilas, acapamentos que compõem o município.

Figura 4. Panorama do Festival Tamoqqest de Anchawadj, 2007-2008.

Fonte: Ytimg 150 .

Eventos idealizados como festival circulante, para beneficiar diferentes localidades, tiveram seus planos prejudicados pela crescente insegurança devido à ação do crime organizado 151 transfronteiriço e transnacional, ressaltou Boubakar Ag Mohamed

Samaké.

Pensamos em fazer no município de Anchawadj porque já havia tido uma edição, assim como no o município vizinho, Tilemsi, do arrondissement de Djebock 152 , antes do sistema municipal. Mas, a crise política começou impedindo de ser realizado em Tilemsi, então, organizamos a segunda edição em Agdilinta. A terceira edição foi prevista em Emnaghil, porém, jamais aconteceu, considerando que as questões de falta de segurança, de rebelião, de jihadismo se precipitaram e interrompemos o festival.

149 Formada pelos migrantes e Djébock, com sede em Bamako. 150 Fonte: https://i.ytimg.com/vi/7hx4IpsJ2K8/hqdefault.jpg 151 Ver: Boubacar Bâ (2016), Annette Lohmann (2011), Judith Scheele (2011, 2012). 152 Os dois municípios eram a mesma unidade administrativa que se chamava anteriormente arrondissement com a cidade de Djebock como distrito, após o sistema dos municípios Djebock ficou dentro de Anchawadj e continuou sendo o distrio do município. E distrito do municipio de Telamsi é Tinaouker. É isto que o nosso entrevistado quer explicar, mas em poucas palavras.

152

A pluralidade de festivaleiros foi sinalizada como importante por Ahmed Ag Mohamed

Ahmed, cuja meta era fortalecer a coabitação e o viver juntos.

Na ocasião deste festival, ocorreu uma reunião de mundos diversificados. Além de Kel Tamacheque, havia Mouro, Songhoi e Fula, participantes da Europa, da América. Todos foram a este festival que era, de todo modo, um grande encontro ( retrouvaille ). Esse foi, na realidade, o objetivo de sua organização, a fim de fortalecer laços culturais e, também, debater as questões da época ligadas à segurança, ao desenvolvimento, à cultura (Entrevista 17 Ahmed Ag Mohamed Ahmed Ag Alhassane). O recurso à produção artística em comunidades, que receberam um tratamento diferenciado, com cuidado expositivo a fim de agregar valor ao serem apresentados como expressões importantes da estética e criatividade locais, foi reivindicado por Samaké como forma de defesa da cultura ancestral, sempre em movimento. Desta forma, a grande realização do Festival Anchawadj, para ele, esteve nas trocas de performances com música, danças, jogos tradicionais, corridas de camelos, joias e objetos em couro para adornos de ihiktan (tendas) e animais domésticos, além da incontornável tradição poética.

Sobre o significado de Anchawadj, Samaké contou que há uma lenda que nos ensina,

parece que durante o tempo colonial, no tempo de fanatismo, ainda não tinha o Islã, os ocidentais pagãos cansaram seu único camelo. O camelo fazia todos os serviços para aqueles pagãos incultos, mesmo assim, ele era maltratado. Um belo dia, apesar dos abusos, cansaço, sofrimento e com as quatro patas acorrentadas, ele fugiu. Iniciou, então, seu percurso, saindo de Gao II, Gadaye, rastejou até Medina para buscar a salvação. Em Medina foi salvo, foi bem acolhido, foi reabilitado, encontrou a paz e jamais foi abusado novamente. Do seu trajeto nasceu um vale de água por onde passava a vida outrora, é ele que chamamos Anchawadj. Mas, agora o deserto engoliu quase tudo, porém, havia uma vida. Eu lancei, aqui, uma mensagem para salvar Anchawadj (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Anchawadj, já foi importante área de pastagem, mas o rio está secando, dificultando a pastorícia. Em anos de boas chuvas, renasce e alimenta, mais uma vez, o rio Niger, mas volta a secar no restante do ciclo sazonal. Além desta admirável narrativa do camelo que andou milhares de quilômetros, lutando e buscando sua liberdade, Samaké 153 continuou construindo e ensinando os significados vivos para suas comunidades, presentes no nome Anchawdj.

Anchawadj é aquele leito, aquele caminho de um curso de água que fazia o orgulho de todas as comunidades da região de Gao. Hoje, está sendo engolido pelo deserto e está prestes a desaparecer. Isso é Anchawadj, nossa região. Se quiser outra definição, Anchawad é um ued , lugar de água e de pastagens das comunidades que ali vivem (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Samaké, como intelectual de sua cultura e mestre da palavra, agu , tem apreço por termos com sua etimologia. Detém-se, também, na explicação da palavra tamacheque tamoqqest 153 , que colou recentemente ao termo exógeno, festival, remetendo à celebração conjunta das comunidades de Anchawadj, bem como suas motivações para a sociedade tamacheque:

Etimologicamente tamoqqest em tamacheque, significa encontro. Um encontro para debater todas as problemáticas dos Tuaregue hoje. Os problemas das caravanas, os problemas da transumância, os problemas das pastagens, dos casamentos, dos conflitos etc (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Uma preocupação que Samaké expôs, dizia respeito ao que considera ser um desvio observado em suas viagens acompanhando turistas a “eventos de perdição”, que retiram ou desvalorizam a “tradição”.

a ideia de criar o Festival de Anchawadj foi minha, tive durante a turnê que realizei com amigos franceses da região de Toulouse. Entre os lugares que visitamos, junto com o falecido prefeito Ahmed Mohamed Ag Alhassane, estava a vila de Agdilinta [região de Djebok, Mali]. Então, a ideia de organizar um festival me veio em mente como um antídoto, uma forma de recusa dos eventos de perdição que observava em outras regiões, para dizer ao tamacheque que é melhor ficar na tradição do que se afogar na modernidade. Acredito que a melhor forma é um pé na tradição e outro na modernidade (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Alhabib Ag Almouctafi, amenokal dos Icharamatane de Anchawadj (Zalab-labé), participou nas discussões da organização daquele festival como conselheiro, referindo que a participação da sua tawšit foi intensa, “nós fomos ao festival com ihiktan (tendas),

153 No site foi grafado tamokhest , contudo, o uso de q, torna-o mais próximo da pronúncia.

154 eharé (rebanho), muitas pessoas e concretizamos o festival” (Entrevista 7 Alhabib Ag

Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017).

Há uma dimensão voltada para o bem-estar social, que é alvo de questionamentos e debates em diversos encontros intercomunitários que foram retomados no formato de festivais. Neles, a interlocução política com governantes, responsáveis de instituições e

ONGs foi considerada, deste então, atividade estratégica. Omar Ag Almoustakim, originário de Zalab-labé, professor e diretor da escola de Emanghil e de Djébock, ressaltou que ao município, também, interessavaouvir as pessoas sobre os projetos e, para apresentar ONGs que estavam atuando na região. A educação tornou-se tema recorrente nos fóruns desse festival.

O festival de Anchawadj era maior do que o nosso em Zalab-labé. Teve camelos, teve tudo. Aconteceu, também, um encontro entre os grandes quadros de Anchawadj que discutiram sobre muitas coisas, sobretudo sobre o desenvolvimento da região em setores como escola, construção de salas de aula, a saúde, tudo, tudo, tudo. Pois, na realidade, o município é pobre e não tem quase nada. Há o nome de escolas, mas, ao ir até o lugar, você vai descobrir que não existem salas de aula (Entrevista 7 Alhabib Ag Almouctafi e Omar Ag Almoustakim, 2017). Era preciso organizar um grande encontro para permitir às pessoas reunidas analisarem a realidade que vivem. Boubakar Samaké, idealizador do festival, precisou que o festival

envolveu as quarenta tiwšiten que compõem os Kel Tamacheque de Anchawadj. Cada uma vinha com suas preocupações. Nas conferências, discutíamos as disputas, a escolarização de meninas, a descentralização. Pois atualmente, é isso que faz com que as pessoas virem as costas umas para as outras. As novas temáticas políticas fazem com que as pessoas se dividam ou se aproximem. Entretanto, nós no festival, dissemos que cada um podia ter suas diferentes opções políticas, de modo individual, mas, que na globalidade, era preciso reunir todo mundo. Cada um podia gerenciá-las segundo sua especificidade, segundo sua origem, segundo sua tawšit , segundo sua região, mas juntos, tínhamos um fio condutor para conseguir o desenvolvimento do conjunto de Anchawadj. (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Para Boubakar, o festival impactou bastante a zona economicamente, “eu me lembro bem durante os sete dias que passamos no decorrer do festival, os artesãos fizeram 155 negócios, os comerciantes, as mulheres de restaurantes a mesma coisa, as tendas foram pagas e os camelos foram premiados” (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016).

Chamou atenção neste encontro a participação financeira das tiwšaten que compõem o município de Anchawadj para sua organização. Os nômades Kel Tamacheque gostam de desafios, pois são acostumados a eles enquanto habitantes do Saara, onde os desafios são cotidianos. Cada uma das tiwšaten veio com sua logística e recursos para compartilhar com as outras. Este é o sentido pleno de um encontro comunitário, tamoqqest . Seu diretor geral, Boubakar Samaké declarou:

não fizemos um festival esperando um financiamento exterior. Fomos com os nossos meios e recursos, partimos com as nossas possiblidades (...). Era uma maneira de conscientizar as tiwšaten . Cada tawšit trouxe seus alimentos, suas tendas, seus camelos e a gente reuniu as coisas que tínhamos para fazer o evento para a grande inveja da região de Gao e do Mali, como um todo (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Deste modo, havia, também, o trabalho educativo, de retomada dos propósitos e de sentidos, uma ocasião de diálogos e conversas intensas sobre a conscientização das tiwšaten que ali vivem.

Porque a gente premiou os camelos? Foi para permitir o entedimento da importância dos camelos e dizer que, na próxima edição, cada um deveria vir com seu camelo animado pela esperança de ser premiado. Então, era uma maneira de impulsionar a cultura do camelo nas mentes das pessoas, de estimular a cultura do cavaleiro, da tenda e do jumento. Em uma palavra, era para valorizar as culturas tradicionais (Entrevista 2. Boubacar Mohamed Samaké. 2016). Na programação musical houve participação de artistas locais, regionais, nacionais e mesmo internacionais. Apresentaram-se na primeira edição,

o grupo Amanar, o tradicional grupo Takamba , havia uma violinista (imzad ) de Emnaghil, um flautista ( taghanibt ) da mesma vila e Moussa Sidi (de Tinaouker) que é um grande músico de Anchawadj. Partimos antes de tudo, com os nossos. O primeiro grupo tamacheque que tocou em Agdilinta, foi o de Moussa Sidi. Alassal de Anchawadj e o grupo de Ogazit estavam lá também (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Este último, Ogazit, segundo Samaké “é um grupo místico e foi muito admirado, porque os membros eram genuínos, autênticos”. Vale a pena explicar que essa é uma

156 performance ligada a processos de cura. O fundador do grupo, Ogazit, é um terapeuta que criou esta arte para o bem-estar de seus próprios filhos. Samaké a compreende como “uma dança que permite curar as pessoas que foram embruxadas, enfeitiçadas ou afetadas por um mau que não se consegue curar. Assim, com essa forma mística, eles conseguem curar estas pessoas”. Durante as atividades, (re)descobre-se uma dimensão da cultura e saberes locais, como os destes terapeutas que muitos nem sabiam de sua existência. Ogazit é um dos terapeutas que atua, intensamente, em Gao e região de Anchawadj. Sua música é feita para ajudar as pessoas com problemas de saúde.

Interessante observar a convergência de dois saberes que, muitas vezes, são considerados separadamente, sendo que sua prática integrada, nega certa ideia de necessária conflitualidade entre os saberes e conhecimentos endógenos e exógenos da

África, entre conhecimentos desenvolvidos pelas sociedades e aqueles saídos da formação acadêmica. Vimos, neste caso, que ser artista e terapeuta, responde à necessária de complementaridade. Os grupos de dança e música dos agutan /inhadan estavam fortemente presentes no Festival Tamoqqest de Anchawadj, em co-presença de formas expressivas contemplou um dos objetivos de organizadores. O diretor do festival nos disse que

a única música moderna foi a da guitarra elétrica – a guitarra dos Ichúmar. Senão, o restante era música e dança tradicionais. Alassal de Anchawadj apresentava somente dança tradicional da nossa região, Ogazit era semelhante e a flauta, também, fazia o mesmo (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Samaké assinalou que as músicas e danças da região de Anchawadj e Telamsi comportam estética, espiritualidade e memórias sonoras particulares. Ainda que divididas em regiões administrativas, essas tiwšaten são unidades políticas, sociais, culturais e espirituais inseparáveis.

Na dança tradicional, há o que chamamos tendé ou iswat dependendo das tiwšaten . A tendé é acompanhada por dança de jovens Kel Tamacheque de nossa região. São acrobacias, de grande tecnicidade, de 157

saber fazer, de saber se dar a ver etc. A gente conseguiu recrutar jovens que sabiam dançar bem e que deslumbraram com o espetáculo de sua dança acrobática. (...) Agora, sobre violino, emzad , é um instrumento místico também, pois, põe em contato o mundo visível e o mundo invisível, o mundo real e o mundo sobrenatural, o mundo natural e o mundo dos aljain . É isso que o emzad faz. A flauta, agahnib, é a mesma coisa, ela é, também, instrumento místico (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Alassal de Anchawadj emergiu um dos grupos locais que mais defendem sua ancoragem em suas práticas e saberes comuns. Foi fundado pelo próprio Boubakar

Mohamed Samaké, com a intensão de “dar uma lição à Anchawadj, desejava me dirigir à minha própria gente ( inadan win acharifen 154 ). Foi para eles que sinalizava quando formei o grupo Alassal de Anchawadj” (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016).

Samaké desejava apresentar o grupo ao píblico de Bamako.

Foram eles que levei, em primeiro lugar, ao Centro Cultural Francês para apresentar à diretora que estava lá naquela época; chamava-se Nicole Sirate. Ela havia dito que conhecia os Kel Tamacheque do Níger, do Mali, da Argélia. Então eu lhe assegurei que havia ainda outro tipo de dança Kel Tamacheque. ‘Existe outra sociedade, outra cultura que a senhora jamais viu e vou lhe mostrar’, disse. O desafio foi lançado desse modo. Juntos conseguimos recursos para trazer o grupo para Bamako, realizando apresentações no Centro Cultural Francês e na Pirâmide da Memória. Eu garanto para você Mahfouz, as pessoas ainda estavam sedentas quando o espetáculo acabou, ficaram sentadas e não queriam sair. Todo mundo alí presente ficou contente e emocionado. Isso foi em 2005, mas o grupo já tinha sido criado desde 2004. A performance do grupo Alassal de Anchawadj desenvolve-se a partir de cenário e técnicas dramáticas que exigem grande número de pessoas, sendo celebração grandiosa.

Alassal de Anchawadj é como Empire Bakuba 155 , um grupo de 30 a 40 pessoas, pois, o espetáculo que eles fazem precisa de muitas pessoas. As mulheres entram em cena primeiro, em seguida os homens. É um espetáculo que precisa ter gente suficiente para realizá-lo. As mulheres sentam-se em um semicírculo, uma toca o tendé , a cantora tem o amplificador [próximo], para o acompanhamento. Quando a banda se junta, faz uma sinfonia geral muito animada! Os homens ficam alinhados na frente e eles saltam, um a um para animar a tendé . Ao tocar uma canção, uma canção pode durar 20 minutos porque cada vez que os jovens querem animar, é non-stop . Porém, se os jovens dançarinos percebem que as mulheres perderam força, eles fazem uma demonstração para que ocorra uma interrupção, dar um tempinho para

154 Os ferreiros de tawšit cherifan. 155 Um grupo do Congo. Ver: http://www.radiookapi.net/2016/02/23/actualite/culture/papy-tex-je-suis- decide-de-remettre-empire-bakuba-sur-les-rails.

158

que as pessoas respirem um pouco e retomem (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Aqui há claramente forte mobilização de saberes do corpo e ritmos inseparáveis de construção dramática e estética em cenário muito cuidadoso, que procura a intensidade e a maestria nos sentidos mais profundos da criação cultural.

As mulheres usam vestimentas e fazem as tranças tradicionais, tudo é tradicão. Os homens, como as mulheres, apresentam-se com suas roupas tracionais. Todos estão uniformemente vestidos com o duplo tom, bubus brancos, bubus pretos, juntamente com os turbantes brancos e pretos. Esse é um uniforme dos Kel Aïr antigo, usado desde o tempo do Reinado do Aïr. É um uniforme tamacheque muito antigo que trazemos para a cena, assim visitamos história e tradição antigas (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). Os organizadores do Festival Tamoqqest de Anchawadj não esqueceram das adivinhas e provérbios que, por sua vez, fazem parte do que podemos chamar de jogo em ambiente cultural tamacheque. Samaké comentou sobre as adivinhas e jogos de sua região em que se inscrevem regimes de oralidades significativos.

As adivinhas existem, mas há também, tiffar (esconder-se). Tem ainda um outro jogo, que retomei, que se chama tabatolt . Tabatolt é um jogo em forma de lição de geografia, que permite aos jovens Kel Tamacheque conhecer seu meio ambiente. Por exemplo, aqui é Tabatolt , é o centro, alguém vai lhe dizer: aqui Tabatolt , você responde Emanghil, indicando a direção dela. Você diz aqui Tabatolt, ele responde: Waswas. Ele: Tabatolt , você: Samet, você diz Tabatolt, ele responde Inlefis etc. São coisas que permitem aprender geografia, a configuração de montanhas, as dunas que poderão orientá-los no futuro (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). As iniciações aos jogos tradicionais foram, igualmente, feitas no Festival

Tamoqqest de Anchawadj, como o isseghan , que Samaké exemplificou como dinâmicas lúdicas presentes em lógicas orais.

o jogo mais comum entre os Kel Tamacheque é isseghan , você o conhece. Agora como se joga? Vocês têm duas equipes, cada uma possui doze casas de cada lado, nelas se colocam os peões. Agora para deslocar o peão, é como seis no lido. Existe no jogo, o cavalo que a gente chama ebadjé 156 [ou tebadjawat ], o cavalo permite o deslocamento do peão. Para iniciar é preciso que se obtenha as varinhas na posição ebadjé , depois todos os outros números são válidos para continuar sua viagem até que termine a volta, capturando os peões do

156 Masculino e tebadjawt feminino. Ebadjé ou tebadjawt permite andar somente uma casa, porém é importante para começar a se deslocar, sem ele todos os outros jogos não valem. E preciso começar por ele. 159

adversário. Estes são tipos de jogos que foram feitos durante o Festival de Anchawadj (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016).

Tabatolt, jogo que Samaké praticava quando criança, mas que está sendo abandonado, remete a metodologias em regimes de transmissões orais que mesmo transformados, permanecem centrais. Mas, estas atividades podem retornar ou se renovar, como foi o caso do jogo relatado por Samaké, “reiniciei, pois entendi que tem toda uma pedagogia para ensinar e conhecer o meio ambiente”. A sua inovação no jogo de tabatolt foi como ele contou, “esse jogo já existia, mas as pessoas praticavam de uma maneira intuitiva. Eu tirei dele um método pedagógico que permite às pessoas ampliarem seus repertórios, seguindo o deserto, seguindo suas viagens e, seguindo suas itinerâncias”.

A oralidade representada pela poesia, tissiway, marcou presença no Festival

Tamoqqest de Anchawadj. Boubakar nos esclareceu seu significado social, pois ela é diversificada.

Quem faz poesias, geralmente, são as mulheres, mas, hoje são interpretadas, também, pelos homens. O único poeta que estava no festival era de Emanghil e ele foi quem fez algumas poesias durante o festival. Tem um outro poeta que é o irmão do Rhissa, o atual prefeito de Anchawadj que trabalha aqui na ORTM (Rádio e Televisão do Mali.). Ele, também, fez alguns poemas no âmbito do encontro de Anchawadj (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). O Festival permitiu, ainda, a expressão de contos em volta de fogo durante a noite.

Os nômades do Saara têm hábito de se juntarem em volta de fogo, depois que terminaram de tirar leite e jantar, para que os mais velhos contem histórias e contos antigos. Há toda uma série de histórias de Amaamallan ou Aniguran, sempre muito contadas e diversas regiões criaram versões e variações de suas narrativas. Numa delas, um homem, chamado

Emaressagh, foi informado que haveria um sobrinho de uma de suas irmãs, que seria mais inteligente que ele. Para impedir que ele crescesse, cada vez que suas irmãs tinham um filho, ele o matava. Mas quando Amamallan nasceu, uma mulher dos grupos dos ferreiros, trocou com seu próprio filho que nasceu na mesma noite que Amamallan. Desta forma

160

Emaressagh (o tio) matou um menino awanhad (filho de inadan ), acreditando que era seu sobrinho. Na sociedade tamacheque os inadan, como Samaké, são mestres da oralidade, especialistas para quem ritmos, palavras, gestualidade e espaço interagem na construção de experiências cotidianas compartilhadas e, igualmente, na ludicidade dos jogos. A ambiência é fundamental para criar convergência de atenção e interesses. Assim, explicou

Samaké que tanto durante o festival como na vida comunitária,

os contos aconteciam à noite quando todo mundo se reunia em volta do fogo. Tinha um narrador de Gao e, também, um jovem que iniciamos a partir da tehardant , a guitarra tradicional. Ele fazia um jogo [ tifar , esconder], acompanhado de sua tehardant . É assim que se faz: esconde- se um objeto. Há duas melodias que toca durante o jogo em que uma pessoa tem os olhos vendados. (...) É o que fizemos no Centro Cultural Francês, os europeus que estavam presentes ficaram impressionados, porque escondemos uma garrafa de água no público e o senhor que estava com olhos vendados no palco, andou no público até alcançar a garrafa pelo ritmo da guitarra. Quando você erra, a guitarra muda de ritmo, mas se está na boa direção, há uma melodia monótona que segue até que encontre o objeto (Entrevista 2. Bubakar Mohamed Samaké. 2016). As indentidades das tiwašiten são mosaicos trabalhados de diversos modos, tornando sempre importante, de acordo com Ahmed Ag Mohamed Ahmed, o debate sobre suas histórias. Nesse caso do festival, foi a formação do município de Djébock, hoje dividido em Anchawadj e Tilemsi.

Djébock é um município que existe desde o período colonial, mas recebia o nome de confederação Cherifane que possui sua história, assim como todas as outras confederações tamacheque. Na realidade Anchawadj é nome de uma zona. Seus habitantes são Cherifane. Quando digo Cherifane, falo de um conjunto de frações tamacheque. Há muitas frações, é um conjunto de tiwašiten . No meio tamacheque, cada confederação constitui um conjunto (Entrevista 17. Ahmed Ag Mohamed Ahmed Ag Alhassane).

Na visão de Samaké, os Icharamatane são Acharifen, ou seja, descendentes de Alhassane e Alhussayni, filhos de Fátima que foi uma das filhas do profeta Muhammad. Disse que o nome Icharamatane “reúne Charifen e Kel Essouk” (Entrevista 2. Bubakar Mohamed

Samaké. 2016). 161

A preocupação do conjunto dos organizadores do Festival Tamoqqest e

Anchawadj foi trabalhar no sentido de reatualizar seu compromisso ético e estético com sua cultura em relação a experiências compartilhadas durante o festival, reforçando a vontade de se manterem como comunidade de destino (MAFFESOLI, 2006). Afinal, a compreensão dos modos de vida exige uma percepção ética dos dramas cotidianos, e a compreensão de que existe “na idéia de estética uma “paixão de viver” (MAFFESOLI,

2006, p.274).

Manifestações culturais em experiências de alteridades entrelaçadas: diálogos transversais Tamacheque, Wadaabe e Songhoi

o Todo é a exigência do Diverso 157 Glissant, 1981

Os encontros saarianos possuem diferentes modos de partilhar experiências culturais, além de serem promotores de coesão interna, sempre fugaz e instável, para viverem a complexidade de sua pluralidade. O Festival ou Encontro intercomunitário de

Tamadacht e o Festival Tamasonghoi são experiências de manifestações que reafirmam aliança e pertencimento a um território em que coabitam experiências societárias distintas, mas entrelaçadas, constituindo sua vitalidade social.

A corrida de dromedários dos Tamacheque e as danças dos homens Wabaabe são muito famosas e importantes. As identidades são também, partilhadas, conformando poéticas das relações (GLISSANT, 1981), configuradas pelas sociedades humanas, em

“totalidade dos povos e das comunidades”, conforme Glissant (1981, p, 191). Por serem heterogêneas, sua direção é estabelecida em relações transversais, apontando para o

157 “le Tout est l'exigence du Divers” (GLISSANT, 1981, p.190).

162 diverso , que é teimoso, não havendo como ser fechado em formulações redutivas e imobilizantes.

Os encontros intercomunitários, portanto, modificam-se nas relações com o diverso , assumindo diferentes propósitos e formas organizativas e, sobretudo, abrindo-se a novos campos relacionais como ocorreu em suas transformações para o diálogo político com instituições do Estado ou para acomodar o turismo. Os encontros intercomunitários traduzem nas artes, desdobramentos criativos e fecundos do nomadismo nos horizontes do Saara. São espaços de trocas por excelência entre os Kel Tamacheques, entre eles e as culturas com as quais partilham histórias, territorialidades, destinos e desafios.

Encontro intercomunitário de Tamadacht

Diferentes confederações Kel Tamacheque - além de Wadaabe, Songhoi, Zarma e

Mouro, do Mali, do Níger e da Argélia -, reuniam-se em Adéramboukar para manifestações culturais, compartilhando musicalidade, visualidades, ritmos e danças, realizando as apreciadas corridas de camelos e desfile de jumentos, sem esquecer os jogos locais, como o caray, espécie de hockey sobre areia.

O encontro intercomunitário de Tamadacht, conhecido como Festival Tamadacht, foi uma iniciativa do então prefeito de Adarimboukar, Aroudeini Ag Hamatou, a fim de revitalizar as iniciativas culturais da região de Menaka. Esse festival, além da música tamacheque de Menaka, realizada pelos Imuchagh Iwillimiden Kel Atram, e de outras regiões tamacheque, valorizou o Diverso pela confluência de interações com os

Wadaabe, que marcam cada edição com suas performances de dança, música, mímicas e ritmos. Ousmane Amadou Maiga, agente cultural originário de Ansongo, residente em

Gao, participou como produtor do grupo de Moussa Sidi Ag Ikna, conhecido como Agna

(cultura), formado por seis membros de músicos tamacheque, de Tinaouker (Gao) e 163

Tagharust -Gourma-Rharous (Timbuctu) 158 . Maiga retratou os momentos da primeira edição de Tamadacht, narrando sensações, coreografias e encenações memoráveis que assumiam

uma coloração e vibração que não temos 159 , nem em Bourem, nem em Gao e nem mesmo no Festival de Essakane. Tamadacht teve sua particularidade, visto mesmo sua região que é uma região fronteiriça entre o Mali, Níger e Burkina Faso. Então, eles têm muitas cores. Os Wadaabe fizeram 160 pequenos círculos de transe. De onde a gente estava você os escutava e observava, sobretudo, os homens com seus olhos brancos. É uma decoração excepcional. É cultura e arte juntas, as dos Imuchagh da região e as outras culturas tamacheque. Então, realmente foi um festival extraordinário. Sem esquecer seus parentes songhoi que, também, participaram com sua cultura. Então, você tem três grandes categorias cultuais juntas: Wadaabe, Tamacheque e Songhoi (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga. Gao, 21 janeiro de 2017). Além de descrever a forma de coreografar o encontro das performances dos

Wadaabe e das artes Kel Tamacheque dos grandes turbantes, espadas e a preparação de camelos e cavalos, Ousmane precisou ainda que “culturalmente, posso lhe dizer que a própria composição da região de Menaka é excepcional. Em Meneka tem Kel

Tamacheque, Hauça, Wadaabe e Idaksahak” (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga.

2017).

Vários artistas da guitarra ichúmar foram convidados, como Abdoullahi Touré, um

Songhoi engajado que tocou, segundo Ousmane Maiga, tanto na primeira como na segunda edição de Tamadacht. O grupo local Azawad, de Meneka, também tocou nas duas edições deste festival intercomunitário, organizado pela família da cheferia dos

Iwillimiden Kel Atram, uma das linhagens mais conhecidas dos Imuchagh/Imazighen.

Elas lideraram desde século XVIII, a tawšit (confederação) Iwillimiden Kel Atram, que foi a maior entre as confederações até a guerra e a perseguição das forças coloniaias francesas.

158 Ibrahim Ag Aghaly, presidente da associação; Khadoutan; Malik Ag Sibdiga; Ibrahim Ag Mohamedine; Issouf; Kanna e Moussa Sidi Ag Ikna entre outros que Mossa não conseguiu nos dar os nomes. 159 Nós aqui, trata-se de Songhoi e Kel Tamacheque. 160 Wadaabé.

164

O líder do grupo musical Agna (termo que significa cultura), Moussa Sidi Ag Ikna, descreveu sua primeira experiência nesses vibrantes encontros culturais durante o Festival

Tamadacht. Foi logo após a criação de seu grupo, entre 2002 e 2003, composto por ele,

Moussa Sidi (de Gao) e Kanna (de Tagharust, Timbuctu) com a associação de vários jovens, originários, em sua maioria, de Gao.

Entre os membros da associação havia motoristas, mecânicos, eletricistas, criadores de animais e músicos. A maioria de seus membros eram jovens daqui de Gao. Por sorte ou por coincidência, na mesma semana que criamos a associação e conseguimos seu reconhecimento oficial, recebemos o convite do prefeito de Aderamboukar - naquela época, Sr. Aroudeyni Ag Hamatou que Allah lhe perdoe [significa que a pessoa é falecida] -, para participar ao Festival Tamadacht, na sua primeira edição. Foi ele pessoalmente que me convidou, ele estava aqui em Gao, ao me ver, disse: “lhe convido para o meu festival, organizo um festival que se chama Tamadacht. Gostaria que você e seu grupo participassem, todo seu grupo, homens e mulheres” (Entrevista 5. Moussa Sidi Ag Ikna, Gao 21 janeiro de 2017). A história de Moussa Sidi e seu violão foi contada no filme “They will have to kill us first. Malian music in exile”, de Johanna Schawartz (2015). Sua tragédia pessoal testemunha à deriva e sofrimento da população de Gao depois do dramático ano de 2012.

Encontrei Moussa no que sobrou de sua casa, após ser bombardeada, no contexto da operação francesa Serval. A ação era parte do processo de represália aos habitantes considerados apoiadores do Movimento pela Unicidade e Jihad na África do Oeste

(MUJAO) pois este foi, entre os grupos extremistas, aquele que permaneceu na cidade durante a operação militar. Sua esposa desapareceu e ele se refugiou em Burquina Faso, onde a produção do filme o encontrou. Após seis meses, soube que sua esposa ainda vivia, mas que permanecia na prisão de Bamako, sem poder dar qualquer notícia. Ele concedeu sua entrevista em meio aos escombros e entulhos, até então não retirados.

Festival Tamasonghoi

O Festival Tamasonghoï iniciou em 12, 13 e 14 de janeiro de 2010 com objetivo de permitir que as comunidades e culturas da mesma região, que são os Kel Tamacheque, 165

Mouros e Songhoï, tivessem um espaço de trocas. Este foi um festival de música e de convivialidade, segundo a publicação em sua página oficial 161 .

Figura 5. Logo do Festival Tamasonghoi.

Fonte: festivaltamasonghoi 162

A primeira edição do Festival Tamasonghoi, em 2009, registrou, segundo seus organizadores mais de 4000 festivaleiros e contou com cerca de 50 tendas e “ cases 163 ” – de songhoi, árabe e tamacheque - que compuseram o que chamaram de visita ética ( visite

éthique )164 que foram percorridas pelo então Ministro da Cultura, Mohamed El Moctar, e sua delegação, além do representante do Governador de Gao, Mme Haïdara Chatto Cissé, deputada eleita por Bourem e outros políticos locais (Festival Tamasonghoi Bourem, p.4) 165 . Entre um discurso e outro, foram realizados desfiles de tranças, paradas de cavalos, performances artísticas. No segundo dia, fizeram corrida de canoas ( pirogues ) em percurso de 3 Km sobre o Rio Níger.

O Festival Tamasonghoi foi criado por uma inciativa de jovens de Bourem, segundo

Mahamadou Alassane Maiga,

Tamasonghoi é uma iniciativa da Associação de Jovens de Bourem 166 , cujo presidente se chama Abdou Zoula Touré, em colaboração com um jovem franco-belga [e com Wani Tour]. Eles tiveram a iniciativa, mas não tinham recursos para o realizar. Por este motivo, saíram de Bourem, vieram aqui em Bamako para buscar um suporte financeiro para

161 Ver: http://festivaltamasonghoibourem.unblog.fr/page/6/. 162 www.facebook.com/festivaltamasonghoi/photos/a.123382314397838/889037221165673/?type=3. 163 Moradias de palhas usadas entre os Songhoi e Fula. 164 Ver: http://festivaltamasonghoibourem.unblog.fr/page/4/. 165 http://festivaltamasonghoibourem.unblog.fr/author/festivaltamasonghoibourem/page/4. 166 Association Action Jeunes Bourem (AAJB).

166

organizar o Tama-Songoï. (...) A gente tinha uma deputada, Mme Haidara Aissata Cissé, que aceitou apoiar e ajudar a realizar o Festival (Entrevista 22. Mahamdou Alassane, 2017). Um dos objetivos mais enfatizados, foi a retomada da história dos Songhoi, com o

Império dos Askias. Neste contexto, Mahamadou Maiga sublinhou que Bourem se tornou

o único cercle 167 , além de Gao, que registrou, efetivamente, a história dos valorosos Songhoi. A maoir parte da história Songhoi se encontra em Bourem, exceto as tumbas dos Askia que estão em Gao. Esta história, precisamos encontrar um meio de a apoiar, pois nós, contrariamente às pessoas do sul, que têm conservadores da língua, nós, infelizmente não temos conservadores de história. Mas, uma das mais bonitas histórias do Saara foi a do Império Songhoi que está morrendo porque não houve alguém para guardar sua história. Então, nós nos associamos a este festival para que o presidente fosse padrinho o fizesse emergir esta história (Entrevista 22. Mahamdou Alassane, 2017). Em 2010, apresentaram-se no Festival Tamasonghoi, grupos musicais diversificados, tais como Tamikrest; Kanna; Amanar de Kidal; Douma; Abdoul Azize

Abdourhamane Aka ‘Atia’, dois grandes mestres de Takamba (Azawad-Mali); Etran

Finatawa; Tarbiyat, (Azawagh e Aïr-Niger). A segunda edição destacou a presença de

Amanar de Kidal, Atia et Douma, One Pac, Zikhere, grupo franco-malinês, Mohamed

Seyid, da Mauritânia.

Entendo como importante a introdução de uma discussão sobre o Festival

Tamasonghoï neste estudo, pois além de ser um festival saariano, constitui uma atividade que reagrupa as três sociedades da região: Kel Tamacheque, Árabe e Songhoi. Isto permite ampliar a pesquisa que fundamenta empiricamente esta tese. A pesquisa documental foi complementada pelo encontro com Ousmane Maiga, produtor cultural, importante para informações e conhecimento de sua experiência em diversos festivais do norte do Mali. Ousmane foi o primeiro Songhoi com quem dialoguei a respeito de festivais da região. Ele abordou, ainda que de forma resumida, os festivais Tamadacht de

167 sub-região. 167

Adarenboukar, Tamasonghoi de Bourem, Ténéré de Tinaouker, de Coïma. Maiga detalhou suas formas de participações no Festival au Désert, em Essakane.

Ousmane Maiga apontou conexões entre os festivais, na possibilidade que a experiência de um, possa gerar conhecimentos para criar ou reformular um outro, sobretudo criando conexão de artistas, de produtores e de apoiadores. Contou que foi no

Festival Tamadacht que os organizadores do Tamasonghoi conheceram um jovem belga que, depois, colaborou, também, na concepção e promoção do evento de Bourem

(Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga. Gao, 21 janeiro de 2017).

Para Maiga, os árabes ou mouros da região, não tiveram uma representação efetiva, porém a participação do Ministro da Cultura da época, que era desta mesma comunidade, foi significativa, sendo que “as mulheres árabes participaram. Do lado cultural, houve uma representação árabe, mas não teve um grupo musical árabe”. Abdou Zoula Touré, diretor do festival, é da família Moudakan, parente do Chilo Touré, bonkoyno 168 de

Bourem. Destacou os temas, tratados nos debates, naqueles dias, sobre questões consideradas relevantespara a coesão social.

Naquela época a insegurança já era crescente, então estava na ordem do dia, mas, também, o desenvolvimento, pois a gente organiza os festivais para permitir um contexto de trocas entre as comunidades. Porque geralmente, você tem o chefe religioso, o chefe tradicional, o prefeito e os responsáveis administrativos. Quer dizer que você tem o país inteiro representado no festival (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga. Gao, 21 janeiro de 2017). Durante sua entrevista, Ousmane Maiga, mostrou-se otimista no que diz respeito à realização dos objetivos principais do Festival Tamaonghoi.

Acho que mesmo os festivais que não conseguiram nenhum sucesso, realizaram seu objetivo, pois organizar um festival já é uma realização. Isto porque a organização de um festival é muito difícil. Quando se encontram centenas de pessoas já é um sucesso, pois é um intercâmbio cultural, além de outras personalidades ou pessoas que saíram de seus países para chegarem em sua terra, já há uma troca. No limite, houve pessoas que colaboraram no plano musical e cultural, houve pessoas

168 Chefe político.

168

que vieram para expor seus produtos e artesanatos. Houve músicos estrangeiros que descobriram novas músicas e novas coisas no festival, mas nossos músicos, também, aprenderam algo no festival. De todo modo, houve intercâmbios artísticos, por exemplo, quanto ao artesanato conheço uma mulher que conseguiu ter apoio de pessoas da Escandinávia (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga. Gao, 21 janeiro de 2017). Finalmente, entende-se que os encontros intercomunitários, enquanto festivais culturais, pretenderam construir, no mundo tamacheque, espaços de entrelaçamentos de experiências e intercâmbios, possibilitando aos tamacheque se inscreverem numa espacialidade com conexões amplas a partir de sua própria cultura. Além disto, nestas ocasiões muitos jovens, de diferentes origens vivem os horizontes amplos do deserto e aprendem sobre sua diversidade ecológica e social. São importantes momentos em que a voz tamacheque se expressa e suas mensagens escapam ao controle do Estado, trincando o discurso hegemônico que fez desaparecer da história e da geografia a antiga civilização amazir, à qual pertencem os Kel Tamacheque.

Tanto os encontros intercomunitários, como os festivais saarianos mais famosos, tiveram que ser interrompidos em 2012, devido à emergência da guerra. Samaké considera que “o futuro da música tuaregue - como de toda música – está hipotecada – por essas correntes religiosas que não querem nada de música, nada de distração. Tudo que é música é, na alegação deles, proibida”. No horizonte das expressões culturais e dos esforços conjugados dos encontros intercomunitários e dos festivais, restam muitas interrogações. Contudo, “nenhuma religião no mundo interdita a música” (Entrevista 2.

Bubakar Mohamed Samaké. 2016), as pessoas se movem e não abandonam sua esperança. Assim, construiram alternativas que possam, pelo menos, servir de travessia em tempos tão difíceis.

169

170

CAPÍTULO 3 . Festival au Désert: performances em dunas, caminhos e percepções entre sonho e realização

Para narrar os percursos e desdobramentos que conheceu o Festival au Désert é preciso considerar diversos movimentos culturais com seus contornos políticos, pois acredito que os festivais são herdeiros de, pelo menos, dois processos complementares percorridos pela sociedade Kel Tamacheque. O primeiro diz respeito aos caminhos realizados pelo movimento ichúmar que havia aliado música, política, transformação cultural interna e crítica social. Saindo do movimento armado, em meados dos anos 1990, uma parte da juventude depositou as armas e voltou-se a luta por integração por meio das atividades culturais. A música permaneceu como foco principal de um entendimento que a percebe como geradora de alternativas de desenvolvimento local e regional.

O segundo processo decorre da presença de jovens estudantes Kel Tamacheque em

Bamako, na mesma década, construindo caminhos para criar espaços de escuta e viabilidades econômicas no sul do país. Foi o caso, entre outros, de Fadimata Disco, fundadora do grupo Tartit, além de Manny Ansari, o diretor do Festival au Désert. Eles eram membros da Associação Aïtma, de Timbuctu. Havia, também, Issa Dicko, co- fundador do Festival au Désert e da Associação Cultural Efes, de Kidal e promotor de diversas iniciativas culturais tamacheque. Enquanto diretor do Festival Essuk e

Associação Efes, acompanhou Tinariwen durante os primeiros anos da carreira do renomado grupo da música Ichúmar tamacheque, junto com o Many Ansari. Os músicos de Tinariwen, Abaraybone (Ibrahim Ag Alhabib), Abdallah Ag Alhousseini, Intayedene,

Khiwaj (Keddou Ag Ossad), Abin-Abin (Alhassan Ag Touhami), Foy-Foy ficaram intimamente vinculados à iniciativa e aos sentidos motivadores da criação do Festival au

Désert. 171

Tinariwen significou um dos desdobramentos mais precoces e reconhecidos da música Ichúmar, que foi conhecendo vários polos de criação, Além de Kidal e

Tamanrasset, foi se espraiando nos acampamentos tamacheque durante as duas últimas décadas do século XX, sinal de sua qualidade rizomática e constituição complexa e plural.

Em 1998, após 30 anos de exílio, membros do grupo Tinariwen realizaram as primeiras apresentações em Bamako (MONTAGUE, 2014, p.64). Foi na capital do Mali, em espaço da cooperação entre as cidades de Angers (França) e Bamako (desde 1974) que o grupo tamacheque conheceu a banda francesa Lo’jo 169 e o produtor Philippe Brix 170 .

Este encontro foi marco tanto da internacionalização da carreira de Tinariwen como da realização do Festival au Désert.

O grupo foi convidado para se apresentar no Festival Nuits Toucouleurs d'Angers, em 2001 171 , iniciando carreira na Europa (BRIX, 2009). Em entrevista, Manny Ansari explicou que a noção de grupo como banda com um nome, músicos definidos e repertório selecionado, adveio depois desse convite.

A gente se perguntou como chamaríamos nosso grupo. Havia um jovem entre nós, Foy-foy, que era um guitarrista e militar 172 que conhecia e era amigo daqueles franceses. Quando estes lhe perguntaram como se chamava o grupo deles, respondeu: grupo Azawad. Desta forma, a primeira vez que Tinariwen foi na França - muitas pessoas nem sabem disto -, viajou como grupo Azawad. Quando fomos, falei para eles: ‘escutem, desta vez o nome ‘grupo Azawad’ já foi para a programação, porém, honestamente, proponho que permaneçam longe da política. O nome Azawad vai nos levar a muitas hesitações e tensões como vocês mesmos sabem, cada vez que se pronuncia o nome de Azawad. Certamente isto depende da maneira como a gente quer levar as discussões’. Disse a eles ainda que ‘se vocês quiserem fazer música para todo mundo, procurem um nome menos político, um nome que represente somente a cultura e a música’. Então, quando voltamos de Angers discutimos sobre o nome e um deles sugeriu Kel Tinariwen.

169 O primeiro álbum de Tinariwen “Radio Tisdas” foi gravado com apoio de Justin Adams e do grupo Lo’Jo. 170 Foi produtor de Lo’Jo até 2004, de Tinariwen entre 2001 e2004, atual produtor de Terakaft. 171 Vários grupos malineses já íam participar no Festival Touscouleurs de Angers como parte de atividades do projeto Cidades Irmãs Angers-Bamako ( jumelage Angers et Bamako ). Naquele ano, os organizadores queriam, também, um grupo tamacheque, disse Manny Ansari (Entrevista 14, 2017). 172 Foy-Foy aceitou integrar o exército após os acordos de Paz de 1996 como parte do processo de integração nacional.

172

Repeti, Kel Tinariwen. Achei um bom nome, mas era longo. Disse para eles: “vamos diminui-lo? Para vender melhor, um nome precisa ter pronúncia fácil. Somente Tinariwen, para a promoção é excelente. Kel Tinariwen é um pouco longo e complicado”. Então, decidimos ficar só com Tinariwen. Foi assim que o nome nasceu (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017). Em Angers, Tinariwen “foi um choque de sedução pura”, conta Brix (2009), com a música “Amassakoul” 173 , viajante. Manny Ansari relata que o Festival au Désert, foi iniciativa decorrente por esta histórica amizade entre pessoas com horizontes, afinidades e diversos interesses comuns que se conjugaram.

Foi durante essa viagem para França que Tinariwen nasceu e foi nessa viagem que, pela primeira vez, tocaram num palco ocidental. Eles se apresentaram junto com o grupo francês chamado Lo’Jo 174 . Após o concerto, nós os encontramos em um jantar (....). Foi uma bela festa. Os músicos de Lo’Jo tinham alma de nômades e isso aproximou os dois grupos. Ele não era realmente um grupo francês já que havia marroquinos, argelinos e músicos de outras nacionalidades. Estavam abertos a todo mundo. Durante o jantar nos perguntaram: ‘vocês têm festivais na terra de vocês?’ Respondemos: ‘não, não temos festival como tal, de toda forma não no norte do Mali. Porém, temos grandes festas tradicionais nas quais muitos nômades se encontram com um número maior do que vocês têm aqui. Nessas festas tocamos nossas músicas. Eles perguntaram: ‘será que poderiam nos convidar numa dessas festas?’ Com certeza, dissemos, “vocês são bem-vindos, mas vocês não vão conseguir tocar, pois não temos palco, não temos som e nem iluminação” (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017).

A discussão seguiu animada pelo sentimento de encontro. Philipe Brix, que era o manager do Lo’Jo, interessou-se por saber quando seria a próxima festa, desta forma, quatro meses depois do encontro em Angers, “viajou com seus amigos do festival de Chalon-sur-Saône, para participar da temakannit de Tin-Aicha, realizada nas proximidades do lago de

173 É nome de um álbum, mas que tem uma das suas canções com este mesmo título. Vimos a importância de trazer a canção em tamacheque aqui no rodapé e sua tradução no texto. Aqui estão as letras da canção em tamacheque: Nak Amassakul N tenere Wer hi Ggrraw taKunt Sshmara i adutan-net Sshmara i Fad D Tafuk Zzayagh ad gglegh Ar-hi- thedu tafuk Dagh Tenere ta mallat Sagrawat eghaf takunt Nak, Idaghan a da dagh uhuegh Ssanagh da ta z' gruweghSsanagh dih-a Llan aman n adghagh S wineda imazwan Wind' ad g'egh amidi-in Hi taggan tinfusen-net Taggagh-as tin-in 174 https://en.wikipedia.org/wiki/Lo%27Jo; https://fr.wikipedia.org/wiki/Lo%27jo; https://en.wikipedia.org/wiki/Festival_au_D%C3%A9sert; https://fr.wikipedia.org/wiki/Festival_au_d%C3%A9sert. 173

Faguibine, perto de Goundam, na região de Timbuctu. Era em fevereiro de 2000” (Manny

Ansari, Entrevista 14, 2017). Esta festa, da comunidade Kel Ansar, havia sido interrompida devido ao conflito dos anos 1990 entre o governo do Mali e os movimentos tamacheque. Com a volta dos refugiados, em 1998, o projeto do festival temakannit tinha sido retomado, conforme indicou o professor Ahmed Ag Hamama:

Defendi que a primeira edição fosse em Tin Aïcha e me esforcei para que estivesse sob minha condução. Ela ocorreu no verão de 2000. Convidamos membros do governo, autoridades regionais e locais e todos se reuniram em Tin Aïcha. Fizemos a primeira edição, foi simples. No ano seguinte, nós dissemos que o festival iria se tornar um verdadeiro festival móvel em toda a zona. Então, o levamos, em 2001, para Ras-el-Ma e para Gargando em 2002, que contou com a participação do Ministério da Cultura e do Ministério do Artesanato e do Turismo, na pessoa de Zakiatou Walet Halatine que era, na época, Ministra do Artesanato e de Turismo. Desta forma fizemos as três edições: Tin Aicha, Ras-el-Ma e Gargando (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama 2016). Após a edição de Tin Aïcha, a disposição para criar um grande festival se tornou- tão forte para Brix como para Manny, que enfatizou ser “mesmo necessário que façamos este evento”. Philippe Brix (2005) publicou sobre sua primeira experiência em festas de nômades, no livro Le Festival au Désert. Journal de Tin-Essako .

Philipe Brix, de fato veio com outros amigos do festival que se chama Chalon-sur-Saône 175 , para assistir a este festival (Tin-Aicha). Phillipe viu em que condição ocorria a temakannit de Tin-Aicha. Ele escreveu sobre ela um pequeno livro (...) Brix 176 escreveu neste livro sobre sua primeira experiência em festas dos nômades. Eles voltaram para a Europa com toda determinação de organizar um festival com os nômades (Manny Ansari, 2017. Entrevista 14).

Lo’Jo obteve recursos para a viagem do grupo e de alguns jornalistas, além de verba para aluguel dos equipamentos de som. Manny assumiu a articulação política e as autorizações governamentais necessárias: “foi fácil, pois havia interesse do governo, pois estávamos no final do tempo da rebelião e o festival foi percebido como uma ocasião para que pudessem ir ao norte” (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017).

175 Cidade francesa. 176 BRIX, Philippe. Le Festival au Désert. Journal de Tin-Essako. Murs-Erigné : Triban-Union, 2005.

174

Tin-Essako: primeira edição (2001) no coração do Azawad

O Festival au Désert teve seu início em Tin-Essako 177 , cerca de 60 Km da cidade de Kidal, capital da região Adrar, em janeiro de 2001. Manny Ansari, juntamente com seus companheiros(as) tamacheque reunidos(as) nas Associações Aïtma e Efes, definiram o local,

quando tudo deu certo, decidimos fazê-lo em Tin-Essako na região de Kidal. Precisava contatar as autoridades locais de Kidal. Mohamed Ag Intalla, filho do patriarca de Adrar e atual patriarca, criou uma comissão de organização local e entrou em contato com todas autoridades da região. Seu pai, o governador Eghlas Ag Foni, facilitou bastante (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017).

Issa Dicko sinalizou, ainda, que o Festival au Désert foi um projeto “concebido e iniciado por Mohamed Ag Intala, o atualmente patriarca da região de Kidal, eu mesmo,

Issa Dicko, Manny Ansari e, também, o grupo Tinariwen 178 e um grupo musical francês, o Lo’jo 179 ” (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). Também participaram do trabalho de concepção do projeto, as associações tamacheque Efes, Aïtma e YO. Tais alianças aconteceram no processo de criação de mecanismos para que a sociedade malinesa do sul, pudesse conhecer melhor as sociedades do norte com intuito de reforçar laços de confiança e dar continuidade a dispositivos que possibilitasse o efetivo entendimento entre os Movimentos de Azawad e o governo do Mali, conforme havia sido previsto no

Pacto Nacional. “Isso significa dizer que a rebelião tamacheque havia terminado com a assinatura do Pacto Nacional em março de 1992, entre o governo do Mali e os

Movimentos e Frentes Unificados de Azawad” (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). Para

Dicko, o Festival au Désert, criado no mesmo período desses acordos, adquiria papel importante de aproximação cultural entre o norte e o sul do Mali. “Vivemos num só país,

177 Encontra-se, igualmente, com as grafias Tin Assako ou Tinassako. Assako significa ninho na língua tamacheque. Optei pela forma adotada pelos organizadores do Festival. 178 Importante ressaltar que a carreira até então, estava voltada para audiência tamacheque e que outras pessoas, como Issa Dicko e Keltoum Walet Emastagh, artista da região de Kidal, davam suporte ao grupo. 179 Banda de Angers. 175 mas, infelizmente, não nos conhecemos suficientemente e precisamos fazer algo para que o Sul possa ir ao Norte. Senão, os nortistas conhecem muito bem a cultura do sul, mas os malineses do sul conhecem pouco sobre os Kel Tamacheque” (Entrevista 12. Issa

Dicko, 2016).

A criação de atividade cultural em que se encontrassem todas as cinco confederações tamacheque foi, desde muito tempo, o sonho de estudantes universitários e secundaristas tamacheque dos grandes centros urbanos. Fadimata Walet Oumar, artista fundadora e líder do grupo tamacheque da região de Timbuctu, enfatizou este outro objetivo que motivou, igualmente, a criação de um festival no Saara.

As pessoas se encontravam sobretudo durante a festa de tabaski . Depois ficavam mais tempo para fazer música, para se conhecerem e trocarem [ideias, conhecimentos, informações e se relacionar]. Era como um fórum, as pessoas discutiam e dialogavam. Desses eventos surgiu a ideia de um festival a ser realiza no deserto. (...) A gente sonhou com este festival desde que éramos jovens. Um dia a gente criou - sob uma árvore em Moribabougou perto de Bamako, num lugar que não é muito longe daqui -, a Aïtma [associação] e concluímos ser preciso criar algo em Timbuctu algum dia, um grande evento (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016). Iyadou Ag Lech, membro do grupo Tinariwen, reforçou, como Fadimata, as preocupações internas, afirmando que a criação do Festival au Désert adveio do desejo de autoafirmação e da necessidade de promoverem modos de luta cultural:

isto foi algo que a gente guardou muito tempo no pensamento e no coração, pois sempre desejamos fazer algo melhor para nosso povo e tentar, também, desenvolver nosso deserto. Então, acho que nós provocamos e impulsionamos as pessoas a fim de terem ideias como essa de festivais. Até que chegou momento em que nós mesmos vimos que era nosso dever realizar, organizar o Festival au Désert. Decidimos entre 1999 e 2000. Inicialmente, a ideia era fazer um festival móvel, não um festival de Timbuctu. A ideia era um festival que pudesse acontecer em Timbuctu, depois em Gao, Kidal e em outras regiões (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2015).

Nas entrevistas realizadas, há referência constante à visão unificadora dos membros do grupo Tinariwen, citados como idealizadores do festival enquanto lugar de

176 encontro intercultural, de diálogo entre suas comunidades do deserto e destas com o mundo. Iyadou enfatizou que:

a ideia do festival surgiu entre nós do grupo Tinariwen e de Dicko. Issa Dicko é uma pessoa que pesquisa sobre tifinagh . A ideia veio dele, foi sua proposta. Depois, discutimos com o Manny Ansari. Foi a partir de então que nos tornamos uma equipe, trabalhamos juntos e fomos para França. Lo’jo nos ajudou muito. Essas pessoas foram o cérebro do Festival au Désert. Nós somos artistas e não quisemos gerenciar o festival. Isso não era nosso papel, pois somos músicos e sempre estamos viajando (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2015). Tin-Essako foi uma escolha política por ser cidade natal de Ibrahim Ag Bahanga, líder do movimento armado dos anos 1990 que havia discordado dos termos e da forma de condução dos acordos que levaram ao Pacto Nacional de 1999, assinado por Iyad Ag

Ghali. Estava em curso, no bojo mesmo das atividades de organização do Festival um dinamismo de reconciliação. Talvez o próprio festival tenha sido uma bússola, por tecer horizontes novos, abrir formas diversas de alianças e solidariedade e se manter como agulha de balança num jogo muito tenso entre festa e interesses políticos.

Na ocasião da primeira edição do Festival au Désert, houve uma conferência organizada pelo governo, paralelamente. Nela estiveram presentes “os eleitos locais, os chefes tradicionais de toda a região de Adrar dos Iforas, ministros e deputados da

Assembleia Nacional” (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017).

Entre os músicos que tocaram na primeira edição estavam, entre outros: Tinariwen,

Lo’Jo, Justin Adams, Tartit, Grupo de Tendé de Tessalit. O músico francês Dénis Péan, fundador da banda musical de Lo’Jo, foi escolhido pelos organizadores para encerrar o primeiro Festival au Désert. Diante de sua tenda declarou:

A música conta a aventura, narra nossa história. Durante milênios, sempre fez esse movimento: os músicos narram a História do mundo. 177

De seu mundo, daquele que conheceram. É a continuidade da história e da música (LO’JO apud BROQUET, 2012, online )180 O Festival havia adquirido o formato de grandes eventos com exigências logísticas complexas, de infraestrutura para acolher um enorme movimento de festivaleiros.

Em cada ano montavam-se milhares de tendas para abrigar a todos. Havia hotéis, restaurantes... virou um gigante do deserto , realmente um colosso do deserto, onde os intelectuais do mundo vinham. Ocorriam conferências em volta de temas de cultura, de história em paralelo ao festival. No interior do espaço do festival havia de tudo. Era de fato, um evento gigantesco, tudo estava lá. As pessoas que vinham para o Festival au Désert, participavam de grandes festivais da Europa ou Américas. Isso quer dizer que lá foram criadas todas as condições adequadas. As pessoas estavam sobre a areia, a bonita areia e tinham tudo que precisavam: água, alimentação, carros, segurança. Era um mundo que se encontrava durante os três dias de festival. Foi limitado a três dias, devido à organização, transporte e logística de tudo isto (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017) A música foi o elo do diálogo do Festival au Désert (BROQUET, 2012), em evento organizado ao modo ocidental, mas que tem suas raízes nas festividades tamacheque, como temakannit e takoubelt. Reuniu os próprios Kel tamacheque entre si; também permitiu seu encontro com outras pessoas de regiões diferentes do mundo (europeus, americanos, asiáticos etc.), que queriam ter contato mais direto com o modo de vida nômade e a atmosfera de liberdade que inspira o deserto. Essa mesma percepção foi referida por outros festivaleiros, como Aziz Sahmaoui :

Não é por nada quando você vê as pessoas que se afastam (ficam longe), muito, muito longe. Você está feliz de ver pessoas meditar e que se afastam e ficam sozinhas num lugar. Claro, podemos meditar no meio de pessoas e tudo isto, mas de toda maneira é especial o deserto. No seu espaço reside o segredo e toda uma história que é bastante presente e bastante forte. Ela está invisível, mas é mais forte que nós, é invisível, é mais viva que nós. Gosto de sentir isso, gosto desta aproximação respeitosa nos espaços entre seus/esses espíritos, gosto disto (Entrevista 15. M’Hamid El Ghizlane, 2017)

180 “La musique raconte l’aventure, elle raconte notre histoire. Depuis des millénaires, elle l’a toujours fait: les musiciens racontent l’Histoire du monde. De leur monde, de celui qu’ils ont côtoyés. C’est dans la continuité de l’histoire de la musique”. Disponível em: www.sebtheplayer.com/festival-au-desert.

178

Após Tin-Essako, os jornalistas publicaram suas matérias e imagens, gerando reações importantes e solicitação de informação sobre a próxima edição, enquanto os participantes pediam para “reviver a experiência”. Tudo fez ver que o projeto tinha possibilidades de continuar.

Tessalit: ambiência e musicalidade em terras dos Tinariwen (2002)

No segundo ano, 2002, o festival deslocou-se, em seu nomadismo estratégico, para

Tessalit. Forte em simbologia na história colonial, traçou uma linha e forçou rupturas e esforços contrários, religando o Saara que se tornou Mali e aquele Argelino. Dois desertos segundo a jornalista Hélène Lee, enviada especial do jornal francês Liberation:

Tessalit conheceu seu período de glória por sua força natural, sua água excelente, seu elegante palmeiral ao longo de um riacho pedregoso. Mas com a rebelião tuaregue e a insegurança na região, Tessalit se viu isolada do resto do mundo. Ao escolher colocar suas tendas aqui para sua segunda edição, o Festival au Désert quebrava o cerco (LEE, 2002). Em Tessalit, Lo'Jo e Chalon não estiveram presentes por falta de financiamento.

Estavam certamente Tinariwen, Afel Bocoum. O som havia sido conseguido com a TV malinesa. Diz Manny que foi difícil obter financiamento, tendo apoio de cooperações e do governo do Mali. As dificuldades ligadas à segurança e à tempestade de areia durante o festival, não conseguiram tirar o fôlego dos habitantes: “fiquei impressionado pela capacidade de organização das pessoas de Tessalit e de seu sentido de festa” (...) É importante reconhecer que pessoas de Kidal são grandes festeiros” (Entrevista 14. Manny

Ansari, 2017).

Cosmopolitismo e força histórica de Timbuctu na sedentarização do Festival au Désert

A terceira edição do Festival au Désert no ano de 2003 aconteceu em Essakane.

Desde então, o festival que havia nascido para ser nômade e dialogar com a diversidade de comunidades tamacheque em sua complexidade, tornou-se “sedentário”. Quais foram 179 as razões? Fadimata Disco teceu outras considerações sobre a fixação do Festival au

Désert em lugar de renome, pois “Timbuctu é um grande centro cultural, quando falar do

Mali no exterior ninguém conhece, é preciso dizer Timbuctu para que pessoas entendam onde se encontra o Mali” (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016).

Embora a cidade fosse fundada pelos Imazighen/ Kel Tamacheque, ela atraiu inúmeras pessoas de comunidades vizinhas, como mouros/ árabes, songhoi, arma e fulas, os quais reunidos fundaram as bases de uma Timbuctu plural que, durante séculos, foi uma das cidades mais importantes no continente africano e mesmo do mundo. Além disso, pessoas de diferentes origens de diversos continentes vieram viver na cidade situada nas proximidades do rio Níger, conforme descreveu Ibn Khadun: vieram de localidades que hoje denominamos Mauritânia, Marrocos, sul do Mali, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito.

Vale lembrar que as culturas locais, apesar de séculos de convivência e trocas mantiveram muitas das características que as identificam: cada uma delas conserva suas distintas práticas sociais, narrativas, literatura, expressões estéticas, guardando muitas similaridades e compondo grande pluralidade e formas de coabitação. Timbuctu foi e ainda é uma “pequena África”, visto sua pluralidade, diversidade cultural e linguística, sendo que podemos citar, como exemplo, quatro línguas que se falam, cotidianamente, em Timbuctu: tamacheque, songhoi, hassaniya (língua dos mouros) que é o árabe falado na Mauritânia, fulfulde ou pular (a língua fula) e o francês.

Timbuctu foi incorporada ao Império do Mali em 1330, na ocasião da viagem de

Mansa Musa para a peregrinação à Meca. Entretanto, ressaltamos que esta relação foi relativamente periférica e de importância simbólica, pois não houve conquista militar como em muitos territórios do Império do Mali. O então imperador foi acolhido como khalifa (chefe religioso) pelos sábios (ulemá) da cidade, conduzindo a oração muçulmana de sexta ( Salat al-Jumu’ah ). No mesmo lugar, financiou a construção da mesquita de

180

Djingarey Ber (a grande mesquita na língua songhoi)181 , cujos trabalhos duraram de 1325 a 1327. O principal interesse do imperador, como o de muitos conquistadores da época, era o controle das minas do sal da bacia de Taudani (das mais importantes de sua época), juntamente com as rotas comerciais. As cidades gêmeas, Dejenné e Timbuctu, foram centros do comércio de ouro, de cereais e do sal que conheceram, portanto, uma grande atenção militar.

É importante sinalizar que o período da fundação de Timbuctu (entre o final do século X e início do XI de nossa era) foi, também, o da primeira cruzada cristã contra o mundo islâmico no Oriente Médio “Bilad al-Cham” (Palestina, Síria, Líbano) e no Egito.

Processo que favoreceu a dispersão de sábios, ao longo dos séculos seguintes, para outros territórios do mundo islâmico, que passaram a considerar Timbuctu como destino, sobretudo após as viagens de Mansa Musa (Mali) e de Askia Mohamend (Songhoi) à

Meca, nos séculos XIV e XV, respectivamente.

A política de mecenato foi constante desde a volta da peregrinação de Mansa

Musa de Meca, quando vieram inúmeros sábios que se instalaram em Timbuctu. Mas

Timbuctu chamou atenção de vários impérios com forte presença islâmica e com interesse no controle das rotas comerciais transaarianas. Assim, além do Império do Mali, os

Songhoi sob o comando de Soni Ali Ber invadiram e colonizaram Timbuctu, expulsando dela seus fundadores.

Dois séculos após sua fundação, no período do Império Songhoi (1493-1591),

Timbuctu alcançou a plenitude da sua vida intelectual, sob o reino de Askia Mohamed sobretudo após da sua peregrinação à Meca (1496-1497). Muitos historiadores especialistas consideraram a viagem de Askia em sua importância com a de Mansa Musa.

181 Abou Ishaq es-Sahéli foi o arquiteto da Andaluzia que acompanhou Mansa Musa em sua volta da peregrinação à Meca, onde se conheceram. 181

Foram para lá intelectuais de diferentes regiões, criando grande fluxo de estudantes e professores em intercâmbios contínuos com universidades distantes, como as do Cairo e

Damasco.

A dinastia tamazirt almorávida havia abraçado uma interpretação rigorista do Islã africano e unificou sob o seu domínio grandes extensões no/do mundo muçulmano, criando um império entre os séculos XI e XII. Timbuctu foi habitada por muçulmanos, cristãos e judeus durante centenas de anos, sendo também um centro de coabitação e de diversidade racial e religiosa. Nesta cidade comercial, foi dada grande importância ao espaço dedicado aos mercados e aos lugares públicos. Segundo al Dali al-Mabruk, da

Universidade de Trípoli, relembra a contribuição tamacheque, frequentemente esquecida nos relatos históricos:

Os filhos e as filhas dos Tuaregues, ou Kel Tamacheque como eles gostam de se chamar, contribuíram bastante na construção das grandes civilizações africanas que tiveram um papel importante na humanidade. Exemplo disto, a mulher da tribo Kel Ghela que ofereceu uma soma grande de seu dinheiro particular para construir a universidade de Sankore em Timbuctu, para isto ela contratou o engenheiro líbio, Abadallah Alkomi, de Radamés (outra cidade importante também fundada pelos Kel Tamacheque), o nome desta universidade se tornou conhecido enquanto Al Azhar, Zeytuna, Kairouan, os minaretes de montanha de Nefuza (El-DALI, 2008. p. 151- 152). Entre as expressões da cultura de complementaridade que ali se desenvolveu, destaca-se a construção das próprias mesquitas-madraças, que assumiram papel de importância na produção intelectual na África saariana e do Oeste. Em Sankore ensinava- se matemática, medicina, astronomia, estudos da religião muçulmana, artes, ciências, literatura, arquitetura e outras tecnologias. Essa mesquita, construída com suporte de uma mulher tamacheque, segundo vários autores. Abderrahmane Es-As’di (1964, p.101) conta, em sua obra Tarikh Es-Sudan, que era:

uma mulher, uma grande dama/senhora, muito rica, com muito desejo de fazer boas obras, é isso que se conta dela; mas não sabemos a data exata da construção desta grande mesquita. Um grande número de ulamás foram convidados, sucessivamente, a assumir o lugar de Imam.

182

Entre os intelectuais destaca-se a figura de Ahmed Baba al Sanhādji, entre outros, pela extensão e importância de sua obra e pela intensa campanha contra a escravidão que levou no final de sua vida. Ahmed Baba Assanhādji (1556-1627) nasceu em Arawan, cidade localizada a noroeste de Timbuctu, para onde foi para estudar ainda muito jovem.

Estudou filosofia com o filósofo Mohamed Bakayoko, um dos mais famosos sábios da

Universidade de Sankore, originário do Mandê. Baba ensinou na universidade de Sankore durante muitos anos, tendo sido respeitado por sábios do mundo islâmico de seu tempo.

Sua reputação e erudição causou sua prisão e exílio com perseguição no processo da invasão marroquina em 1594. Foi levado para Marraqueche após se posicionar contra a campanha militar do sultão Ahmed al-Mansur al Dhahabi interessado nas minas de Sal de Taudani, sob controle do comércio e suas rotas no Império Songhoi. Ao chegar na capital sa’udita, Ahmad Baba impressionou os intelectuais do Marrocos que haviam lido alguns de seus livros. Estes negociaram sua liberação desde que aceitasse ensinar em

Marraqueche e escrever a história da dinastia sa’dita. Nesta condição viveu até 1607 e escreveu a metade de seus livros, estimados em mais de 50 manuscritos.

A população de Timbuctu tem sido plural ao longo de sua história. Além dos sábios Tamacheque, recebeu também, comerciantes e intelectuais songhoi, árabes, soninquê, fula, bambara (como Bakayoko, professor de Ahmed Baba, citado anteriormente) e tuculor, entre outros, até a invasão marroquina em 1591, conduzida por

Ahmed al-Mansur. Os intelectuais de Timbuctu foram, sob seu domínio, perseguidos e grande parte dos livros, destruídos. No final do século XVII, Songhoi e marroquinos ainda disputavam o controle do ouro e das rotas do sal-gema das minas de Taudani e de

Teghaza. Depois, vieram, no século XVIII, os domínios Fula e Tuculor e, em 1894 teve início o processo da ocupação colonial francesa. 183

A reputação de Timbuctu foi fortemente reforçada pelos relatos de viajantes como

Ibn Battuta (Tanger 1304 - Marraqueche 1377) que ali passou em 1352, além de Hassan ibn Muhammad al-Wazzan al-Zayyat (Leão, O Africano) em 1510 e, posteriormente no século XIX, os exploradores Laing em 1826, René Caillié, 1828 e Heinrich Barth em

1853 e Lenz em 1880. Contudo, em seu apogeu, Timbuctu chegou a contar com mais de

180 estabelecimentos de ensino nos séculos XIV-XVI, sobretudo, no reinado de Askia al-

Hajj Muhammad, (1493-1528) que se aproximou aos ulemás e investiu no ensino e na produção intectual, fazendo de Timbuctu um importante centro de comércio de livros.

Askia Daoud, que reinou entre 1548 e 1583, criou uma biblioteca pública, testemunhando a intensa dinâmica intelectual da cidade.

Há um provérbio dizendo que em Timbuctu “o ouro vem do sul, o sal vem do norte e dinheiro vem dos países dos brancos, mas as palavras do Deus, as coisas de sabedorias e os contos bonitos, nós acharemos só em Timbuctu”, assim Léopold Sédar

Senghor (1986, p.139) sintetizava grande singularidade das terras de Buctu, onde a palavra equivalia ao ouro. Desta forma, a fixação do Festival au Désert em Timbuctu apoiou-se em seu imenso capital histórico e espiritual para dar andamento ao ambicioso projeto de por as sociedades do Saara, a partir da cultura expressiva dos Kel Tamacheque, em sintonia com o circuito internacional de festivais.

Essakane: tempo da sedentarização (2003 a 2012)

Mesmo que tenham existido motivos e interesses diferentes, foi decisiva a intervenção direta da União Europeia, principal patrocinador na época, que exigiu a fixação, segundo Manny Ansari, alegando motivos pragmáticos e econômicos, em sua explicação:

Eles nos disseram: “queremos apoiar vocês, porém fiquem num lugar fixo”. Foi assim que a ideia de fixação veio, não podia mais ser

184

itinerante. Se fossem quatrocentas ou quinhentas pessoas era possível continuar, mas não para cinco a seis mil pessoas, além das infraestruturas. Fixamos em Essakane e a União Europeia nos construiu alojamentos, um belo palco, banheiros, instalações de água. Foi realmente assim que a ideia de permanecer em Essakane aconteceu e se instituiu (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017). Iyadou Ag Lech, membro do grupo Tinariwen, apesar de preferir a proposta de festival nômade, concordou com que havia dificuldades importantes para a continuidade de festivais itinerantes.

Para nós [do grupo Tinariwen] não era algo de nossa competência ou algo assim. Somente queríamos realizar algo interessante em solo azawadiano. Quando fizemos a terceira edição, construímos o cenário e toda a infraestrutura do Festival em Essakane. Então, quando conseguimos construir tudo, tornou-se difícil mudar e reconstruir tudo isso a cada ano em um lugar diferente. Finalmente, vimos que aquele festival poderia permanecer em Timbuctu porque não tínhamos como construir algo deste tipo e não poderíamos, também, abandonar o projeto. Começou a funcionar muito bem e convidávamos pessoas de vários países. Então trocar o lugar significaria cortar a relação com as pessoas que vieram para a primeira ou a segunda edição. Aí, fixamos (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2015). Na terceira edição, o Festival au Désert impulsionou novos horizontes em direção a internacionalização. Neste cenário, o equilíbrio foi cada vez mais difícil entre os interesses locais, os nacionais e as dinâmicas do público e estrelas estrangeiras, que passaram a marcar presença. Foi então “que começou a presença de grandes artistas internacionais como Robert Plant e (...) uns cinquenta jornalistas foram a Essakane por causa dele. Todo mundo ficou sabendo que podia ir para Timbuctu ver um festival, ver a música tuaregue, ver os nômades do Saara, fazer passeios com dromedários e voltar vivo”

(Entrevista 14. Manny Ansari, 2017). Nessa edição, contou, também, com grande participação de artistas, produtores culturais de várias regiões do mundo. Issa Dicko, produtor cultural da região, detalhou essa situação:

Em 2003 ocorreu a terceira edição da história do Festival. Ainda que tenha sido a terceira, foi a mais importante, pois foi nela que o festival conheceu a presença de grandes artistas como a banda Blackfire etc. E, realmente, foi quando se tornou um festival internacional com a presença de grandes nomes da música da Europa e de outros lugares do mundo (Entrevista 12. Issa Dicko 2016). 185

A questão financeira foi um dos desafios principais para a organização do Festival au Désert. As primeiras edições trouxeram, em contrapartida, expressiva presença da população tamacheque para viabilizar, inclusive economicamente, o evento. Iyadou Ag

Lech (Entrevista 11. São Paulo, 2016) ponderou que o processo organizativo foi viável porque a juventude estava bastante mobilizada e ajudava muito. De certo modo, entendia que realizava algo que também lhe pertencia. Para Ag Lech, havia uma determinação, na população, em tornar real o sonho de um festival em suas dunas. Por isso, contribuíram até mesmo com o financiamento. O transporte ficou a cargo dos jovens que trabalharam voluntariamente. O orçamento mais desafiador foi para hospedagem, acesso à água, viabilização da alimentação, além do material técnico. Essa dinâmica participativa no

Festival au Désert ocorreu em suas diferentes edições, envolvendo, principalmente, a juventude. André Jolly, a partir de sua situação de festivaleiro em Essakane, narrou que ele e amigos foram recebidos por jovens que acompanhavam cada festivaleiro até sua tenda. “Estava muito bem organizado. Havia uma grande tenda que era o lugar das comidas ou vamos dizer, dos restaurantes”, comentou. Nas manhãs, os jovens tamacheque passavam distribuindo nas tendas chá verde com hortelã. Estas situações correspondiam a estratégia de facilitação de conversação. André Jolly enfatizou que “os jovens falavam sobre as condições da vida nômade e sobre os entraves políticos que viviam os Kel Tamacheque” (Entrevista 9. André Jolly. 2015). Entendo que, nesses interstícios do cotidiano, tinha lugar a micropolítica exercida por meio das relações interpessoais, transformadas em espaços transnacionais, pois se mostravam, ainda que momentaneamente, permeadas por experiência comum de mútuo reconhecimento

(TODOROV, 2014). Esses momentos, pulverizados e múltiplos, viabilizavam a copresença do comum e do diverso, como do conhecimento partilhado da história vivida no dia-a-dia (MAFFESOLI, 2006).

186

Iyado Ag Lech, de Tinariwen, também apreciou a dimensão do encontro de relações solidárias, enfatizando, porém, o suporte e encorajamento ao projeto cultural do Festival au Désert em Essakane por parte de artistas internacionalmente renomados. Participaram, entre outros, “Robert Plant, o Black Fayer que é um grupo americano de índios e Lo’jo 182 .

Esses músicos se tornaram uma família para nós. Lo’jo, por exemplo, nos ajudou muito na França e Black Fayer, também. Então, eram amigos que nos visitavam em nossa terra”

(Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2015). Traziam consigo sua música, o seu mundo, para dialogar com os modos de vida do Saara, com a música, a cultura e as pessoas. Já

Fadimata Walet Oumar enfatizou como significativa, igualmente, a aproximação com

Saara de “músicos de mundo inteiro que vieram participar no Festival au Désert em

Essakane, vieram dos Estados Unidos descobrir o nosso deserto”.

Para dimensionar contextos vivenciados, vale trazer Paul Zumthor (2010, 2007), que põe em perspectiva os conceitos de movimento (convergentes, divergentes, caóticos), deslocação e nomadismo, enfoca a oralidade, a memória, a voz, a vocalidade, as ações transmissivas e se concentra nos efeitos da presença, do ambiente e do corpo em ação. É possível imaginar o impacto emocional e estético da presença no deserto com a convivência de artistas e músicos, considerados estrelas terrestres, nas dunas de tenere admirando sem alarde, juntamente com gente de diversos horizontes, as estrelas guias das navegações em circuitos saarianos que formam constelações como Amanar , Kúkahed e

Chet-Ahad 183 .

182 Membros do grupo Lo’jo: Denis Péan, Richard Bourreau, Nadia Nid El Mourid, Yamina Nid El Mourid, Kham Meslien e Franck Vaillant. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=TqaPTaB6ovE. 183 As estrelas possuem grande importância na vida nômade para guiar temporalidade e espacialidades. Por meio de suas posições é possível saber se aurora se aproxima ou se é o tempo da chuva ou da seca que se anuncia. A vida da população está ligada a essas estrelas durante o ano. Por exemplo, se sete estrelas desaparecem, “edjadal n chet ahad”, significa a presença do período mais quente no ano. Quando reaparecem a leste, indicam o início de chuvas, ou seja, amikassu . 187

Nesta perspectiva, é possível dizer que o festival, conecta memórias passdas com memórias de futuro, presença e imaginação, por meio de um entrelaçamento entre vida e arte, que se conjugam com o apelo ao desejo de aventura de pessoas de diferentes lugares do mundo, idades e formação. A ideia de viver o deserto e ter a chance de se aproximar da figura do nômade, constituíram elementos de atração para turistas. Foi parte do efeito mágico que se desejou criar em Essakane e em outros festivais no Saara, permitindo compor um cenário idealizado para facilitar as experiências e a constituição de territorialidades fluídas, com apelo à participação em modos de vida de outras culturas.

Ou seja, provoca-se, pela experiência de entrelaçamentos das identidades com disjunções e fluidez (APPADURAI, 1996), desdobramentos afetivos e identitários em vários planos.

Creio haver ainda, nuances do que Marta Amico (2013) chamou deserto encenado

(staged desert ). Porém, estes encontros ou festivais culturais do mundo saariano, além de terem significado oportunidades para músicos e artistas de diversas expressões, no sentido de iniciarem ou impulsionarem suas carreiras, foram, também, encontros que favoreceram laços afetivos e até casamentos. Encontros sesíveis que ocorreram entre os próprios Kel Tamacheque de diferentes tiwšaten e regiões ou, como ressaltou Amico em seu texto, entre pessoas de diferentes origens ou entre locais e estrangeiras. Houve um relato nesse sentido, confiado a mim pelas integrantes do grupo Tartit que aconteceu um encontro amoroso entre uma delas - pertencente à tawšit Kel Ansar de Gargando,

Timbuctu (Azawad, Mali) - e um jovem da tawšit de Tarbiyat, Tillabéry (Azawagh,

Niger), líder do grupo musical do mesmo nome, Tarbiyat 184 .

A paisagem constituiu outro componente vital para a criação de sensações a serem valorizadas na construição de significados, fortalecendo laços comunais e atraindo interesse das pessoas, fossem mais próximas ou mais distantes. Iyadou Ag Lech considera

184 Ver apresentação do grupo Tarbiyat: https://www.youtube.com/watch?v=_dkJcOMu-X8.

188 que a natureza integra o efeito sobre as pessoas e o deserto uma particularidade que impactou festivaleiros e festivaleiras em Essakane: “não há muito como ele. Está no meio da natureza o que o fez muito diferente de outros festivais. Mesmo os grandes festivais que acontecem, como o Glastonbury 185 e outros que quase acontecem em florestas.

Imagine amanhã se tiver um festival na beira do mar” (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech,

2016).

Paisagem é um conceito complexo, polissêmico e plural, objeto de estudo em vários campos de pesquisa. Milton Santos abordou a paisagem como algo em movimento, composto por trabalho humano e “objetos naturais” (SANTOS, 1982, p. 37) envolvendo a percepção humana móvel e maleável, sendo composta por dimensões pessoais, culturais, emocionais, estéticas e simbólicas com potencial educativo em dinâmicas de identidades.

Ahmed Ag Hamama expressou grande entusiasmo durante sua entrevista, juntando a ideia de paisagem propícia, de trânsito e transição entre nomadismo e sedentariedade, à instalação do Festival au Désert em território Kel Ansar.

Nós tínhamos um lugar fantástico que chamamos Essakane e que achamos que seria o lugar propício para um evento deste tipo. Naquele momento nós o escolhemos e fixamos o festival. Essakane é um lago que tem planícies dominadas pelas dunas de areia bem branca e colinas em torno. Toda uma paisagem preciosa para a realização de um festival cultural e artístico. Neste âmbito, seria de conveniência para turistas, artistas e a muitas coisas (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Contudo, Issa Dicko, lamentou a sedentarização do festival, pois restringiu os campos de trocas e a diversidade de experiências, apenas viabilizadas nas múltiplas paisagens, falares e culturas expressivas dos territórios em que vivem os Kel Tamacheque e outras sociedades saarianas. “Em nossa concepção o festival deveria ser abrigado cada ano em uma região tamacheque diferente. Normalmente depois da região de Timbuctu, o

185 Sobre Glastonbury, ver: http://www.eduardograca.com/2011/07/tinariwen-os-orixas-do-deserto/. 189

Festival au Désert deveria ir para a região de Gao e outras” (Entrevista 12. Issa Dicko,

2016). Fadimata Walet Oumar mencionou outra dimensão, desta vez conflitiva, que emergiu da realização e fixação do Festival au Désert, no imaginário local:

O lugar se chamava nos tempos antigos “achikrich n’Iblis”, ou seja, o campo do Iblis. É exatamente o lugar em que instalamos o Festival. Por isso a população acredita que Satan se instalou no Ued de Essakane após a realização do Festival. Porque para muitos na religião muçulmana, a música e a dança são trabalhos satânicos (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar). Essa imagem opondo música e Islã foi muito explorada após 2012 por grupos extremistas, que foram capazes de produzir uma grande instabilidade social, questionando pactos e práticas intercomunitárias, chegando a proibir as expressões musicais por um período

(2012-2013) e marcando até o presente a vida cotidiana nessa região. Suas raízes são complexas e fogem aos objetivos desse texto discutir.

Para Manny, a facilidade de acesso para os artistas estrangeiros e malineses do sul era ainda um fator positivo de Essakane, “além de permitir acesso à água por ser o leito de um lago antigo (...) é perto da cidade de Timbuctu e possui aeroporto. Antes, o aeroporto mais próximo era o de Gao e a gente fez 400 Km ou 500 Km até Kidal, Tessalit e Tin-Essako” (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017). A distância e dificuldades de acesso foram, contudo, postas em realce por um jornalista da Radio France Internationale, RFI, para ampliar a dimensão de aventura, outro componente daquela paisagem, e de encontros, de quem desejasse chegar ao festival de 2004:

Chegar a Essakane é mérito. Demora dois bons dias em 4x4 saindo de Bamako ou um grande dia de trilha, de Mopti. Jean-Luc, um agricultor normando, tirou uma quinzena de folga para ver seu ídolo, outro camponês, Ali Farka Toure, que cultiva suas terras em sua aldeia de Niafunké. El Hadj, um estudante de Timbuktu, foi com um grupo de amigos a Essakane para ouvir Manu Chao, que ele tinha ouvido na televisão (RENE-WORMS, Pierre/RFI, 2004).

Os festivaleiros estrangeiros com quem dialoguei, lembraram de sua experiência de viagem e dos desafios vividos. André Jolly, produtor cultural francês, que esteve no

190

Festival de Essakane em 2004, contou sobre a dificuldade da distribuição de água para o banho. Chamou sua atenção a logística trabalhosa do evento e os conflitos gerados.

eles nos pediram para tomar banhos rápidos, isto é: se molhar, colocar sabão e tirar sabão. E lá foi um conflito com os americanos, brancos ou pretos, pois eles ficavam 10 minutos no banheiro. Assim, com 10 ou 15 pessoas, já não tinha mais água. Teve um dia em que quase ninguém conseguiu tomar banho porque os americanos haviam consumido toda a água. Todos os dias de manhã, havia um caminhão que trazia de Timbuctu, revitalizando o festival de água, menos aquele dia (Entrevista 9. André Jolly. 2015).

Já Fadimata Walet Oumar destacou os laços ancestrais com o vale de Essakane, adensando, dessa forma, camadas de sentidos da paisagem do Festival au Désert, que abriu a diversas modalidades de música e dança, muitas delas, estranhas aos ambientes culturais locais.

Na verdade, Essakane é o berço de nossos ancestrais, todos os nossos avós vieram de Essakane. Estou falando de nós Kel Ansar, da minha família. Nós temos uma grande tumba de nossos ancestrais que está lá em Esskane ainda hoje. A terra onde nós organizamos o Festival au Désert era terra de meu bisavô e tataravô (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar). Aqui, é possível apontar para importância que residiu nos interstícios do festival, a proximidade com a experiência da ancestralidade, para certo número de festivaleiros, mesmo que invisibilizada para outros. Sua fala, traz à tona a complexidade da abertura desses territórios aos estrangeiros, que não os podem perceber do mesmo modo que seus habitantes originários.

Entre os inúmeros encontros que compõem a história de desdobramentos do

Festival au Désert para os próprios Kel Tamacheque, gostaria de destacar Tamikrest e os artistas do grupo Dirtmusic. Estes viabilizaram a primeira gravação dos jovens saarianos, da região Adagh, que se conheceram em 2008, quando Tamikrest tocava em frente a sua tenda no festival. Marcaram encontro um ano depois, em Bamako,

No estúdio Bogolan, Tamikrest grava com o apoio de Dirtmusic onze títulos, que aparecem de vez em quando os roqueiros nômades, que gravaram eles mesmos seu novo álbum em Bamako. A aventura não era mais original, uma vez que o Festival au Désert havia gerado encontros 191

férteis. No entanto, o resultado, enquanto poesia, sutileza e respeito mútuo, merece mais do que escuta atenta (CHABASSEUR, 2010, online ). O Festival au Désert de Essakane tornou-se referência pela amplitude alcançada e por ter sido realizado em Timbuctu, símbolo histórico da cultura, não apenas tamacheque e malinesa, mas do Renascimento Africano. Ano a ano mais e mais artistas, músicos de renome interessaram-se pelo evento.

Essakane viu o entusiasmo de turistas e de vários grupos musicais, que vieram. Os músicos do Mali se interessaram pelo Festival au Désert. As vedetes vieram ao Festival, abrindo-se para o Mali e para o mundo exterior. Na última edição do festival, que ocorreu em Essakane em 2007, havia músicos do mundo inteiro: sul-africanos, congoleses, marroquinos, brasileiros, quase que de cada parte do mundo. Virou um festival internacional de grande renome (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Durante os três dias do festival havia intenso intercâmbio cultural. Por tal motivo seu codiretor, Issa Dicko, defendeu a ideia de que o Festival au Désert se constituísse como uma atividade multidimensional e transcultural, indo muito além do Saara, levando, inclusive, malineses ao norte:

a participação, no Festival au Désert era, realmente, um caldeirão cultural. Havia artistas e festivaleiros tamacheque, festivaleiros vindos de todas as regiões do Mali, da África e de todas as partes do mundo e havia gente de quase todas as nacionalidades que se encontravam naquele festival. (...) Para nós foi um ato muito forte, especialmente para as populações do Norte do Mali, mesmo porque os malineses se encontravam, o que não era fácil. Com este festival alguns saíram de Segu, Bamako para irem até lá (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016). Na compreensão de Ag Hamama, o Estado do Mali reconheceu a contribuição dos

Kel Tamacheque no fortalecimento e ampliação do turismo no país, principalmente durante as várias edições do Festival au Désert.

A última edição foi apadrinhada pelo presidente da República. Ele foi lá e ficou durante vários dias no anfiteatro do festival mesmo. Ele fez um discurso na abertura em que fez declarações encorajadoras, realmente encorajadoras para o festival e felicitou o diretor do festival e sua obra e sua associação (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). O Festival au Désert que contava, desde a primeira edição, com certo interesse de apropriação por parte dos dirigentes políticos, alcançou participação de autoridades

192 políticas regional, nacional e internacional, conforme o professor Ahmed Ag Hamama, assumindo, um complexo caráter de oficialidade: “a Assembleia Nacional estava lá.

Digamos, o Mali se reencontrava nesse festival (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama,

2017).

O Festival au Désert de Essakane 186 foi um marco na história dos festivais no

Saara, nele podia-se ouvir as estrelas da música tamacheque contemporânea e de outras regiões da África. Desde então muitos outros seriam organizados em diversos países em que os Kel tamacheque estão: Sabiba Festival de Djanet, Algeria; e na Líbia, o Ghat

Festival e o Ghadamés Tuaregue Festival e Cure Sallée Festival no oasis de In-Gall,

Niger, entre outros. Ousmane Amadou Maiga, situou, igualmente, o Festival au Désert entre os grandes festivais do continente:

Sim, porque eu penso que, quando se fala dos grandes festivais na África, fala-se do Festival de Essauíra 187 [ou Gnawa, realizado em Essauíra, Marrocos] e do Festival de Essakane. Para nós da região é mais acessível e a sua entrada para os locais é grátis, o que fez também sua acessibilidade, então todos que podem ter meio para chegar podem participar. Por isso nós nos demos o luxo de ir e de ter experiência nele (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga, 2017). Mohamed Ag Ahmedou, produtor cultural, trouxe análise semelhante ao considerar que é “muito raro ver um festival onde se encontram grandes artistas como o

Festival au Désert, isto só acontece no Marrocos. Lá eles trouxeram os artistas mais amados do país”. Para esse produtor cultural, o Festival au Désert é híbrido, “é um festival de miscigenação cultural que poderia resolver muita coisa. Se tivesse continuado ia criar oportunidades para artistas de todo o mundo” (Entrevista 18. Mohamed Ag Ahmedou,

2017). Issa Dicko apontou o impacto econômico além das oportunidades criadas pelo

Festival au Désert com “oportunidades para as mulheres, para os jovens, todo mundo

186 Ver: www.bbc.co.uk/portuguese/especial/1748_malifestival/page4.shtml ou http://steppesinsync.com/2011/12/20/the-festival-in-the-desert-by-intagrist-el-ansari/. 187 Festival Gnawa et de musique du Monde d'Essaouira, no Marrocos. 193 conseguia algo para si nesse evento. Todo mundo aproveitava durante os três dias do festival, geralmente todos estavam satisfeitos” (Entrevista 12. Issa Dicko, 2017)

Importa lembrar que o Festival au Désert foi criado em pleno processo de construção de paz, no início dos anos 2000, entre o governo do Mali e as sociedades moura e tamacheque após anos de conflito aramado (MORGAN, 2013). Para os Kel

Tamacheque levar artistas e turistas a seus territórios consistia em estratégia política, uma maneira de ampliar seus interlocutores para difundir suas reivindicações. Entendiam que era preciso conversar, abrir diálogos, a fim de explicar suas problemáticas políticas, sociais, culturais e econômicas.

Ou seja, o Festival au Désert deveria ser um canal pelo qual se pudesse transmitir imagens positivadas e fortes dos Kel Tamcheque e da região Azawad. André Jolly contou que foi procurado por vários jovens tamacheque e mouros, desejosos de conversar sobre temas políticos, mostrando a necessidade que o papel do festival fosse também o de criar canais de conexões interpessoais dialógicos: “não falavam da parte musical, falavam mais destes problemas com seus estados. Entre aqueles com quem intercambiamos, havia alguns que eram favoráveis a mudar seu modo de vida, preservando a cultura e outros que não estavam de acordo com esta sedentarização ”188 (Entrevista 9. André Jolly. São Paulo,

26 de maio de 2015).

No Festival au Désert, a participação de artistas malineses renomados foi cuidadosamente definida como um dos objetivos do festival, pois o mundo tamacheque era desconhecido até então. Issa Dicko relatou a presença de “quase todos os grandes artistas malineses, tais como Salif Keita, Oumou Sangaré, Habib Koité, Amadou e

Mariam, Bassekou Kouyaté e mesmo Khaira Arby, nascida em Timbuctu” (Entrevista

188 O termo foi acentuado pelo colaborador, indicando com as mãos, ser um termo aser considerado entre aspas.

194

12. Issa Dicko, 2017). Durantes os três dias de atividades culturais e musicais, conviveram e interagiram com pessoas que talvez não tivessem chances de se encontrar em outra ocasião. Nesses encontros, reforçou Fadimata Walet Oumar, entenderam que há uma grande diferença entre a imagem criada pela mídia nacional e a realidade destas comunidades, ao verem as condições de vida dessas duas sociedades, refletiram sobre as motivações de suas reivindicações.

O festival se fixou, permitindo aos malineses conhecerem Timbuctu. Os malineses do Sul que nunca viram o Norte. Grandes artistas malineses visitaram Timbuctu, pela primeira vez, na vida deles graças ao Festival au Désert de Essakane. O que faltou para esses malineses foi fazer caminhadas com camelos. Não o faziam, não sei por quê? Faltava a eles pegar o camelo e passear entre as dunas, passar um dia ou dois para descobrir um pouco sobre o bonito deserto. Os turistas [ocidentais] faziam isso, pegavam camelos para andar no Saara, no mais bonito deserto e entravam em contato com a população tamacheque. Alguns até ficavam lá com eles depois do Festival por uma semana ou duas, faziam pesquisas, coisa que os malineses nunca fizeram. Mas, acredito que descobriram mesmo assim, bastante da nossa cultura, porque a viagem é uma descoberta e a vivência de três dias do Festival a cada ano permitiu aos malineses do Sul conhecerem os Kel Tamacheque (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016). A complexa situação política da região não favorecia a já difícil tarefa dos organizadores do Festival, devido ao conflito de interesses entre o projeto cultural de setores da sociedade que defendiam autonomia dentro do contexto nacional malinês e aqueles que entendiam que seria preciso independência para alcançar um bem-estar comum. O professor Ahmed Ag Hamama, Kel Ansar de Timbuctu, tornou-se contundente em sua análise de conjuntura desse contexto:

o festival é para mim, o lugar onde tudo isso deve ser pensado, porque é a forma que nós temos para conduzir esta reflexão. Pessoalmente estou convencido, para outros não sei, que a mudança tem que vir de nós mesmos. Os nômades tamacheque devem saber disto, é a hora. São eles que vão conduzir esta mudança em suas terras. O Estado não fará mais que apoiar, a Comunidade Internacional não fará mais que apoiar. Quando nossos países iam para as independências, foram os africanos que pediram a independência, organizaram esta independência, eles acederam a esta independência. Nós estamos falando da independência, porém, não criamos nenhuma condição para esta independência. A gente pode ser independente sendo malinês, a gente pode ser independente sendo parte da República do Mali (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). 195

A partir de 2009, a situação do país começou a deteriorar, visto os grupos criminosos terroristas da região e o governo do Mali não assumir a responsabilidade diante daqueles desafios. Desta forma, a decisão de realizar cada uma das edições de festivais desde então, se fez por meio de discussões entre os organizadores do Festival au

Désert e o governo, por vezes com a presença do próprio presidente, Amadou Toumani

Touré. Os desafios ampliavam-se devido à crescente notoriedade do festival e da manifestação de interesse de participação de personalidades públicas de países ocidentais, como foi o caso da princesa de Mônaco, Caroline Grimaldi. Manny Ansari relatou que foi convocado com urgência para comparecer a audiência no Palácio presidencial.

Durante a conversação entre ministros, confidenciou:

olhei bem o documento e entendi que Caroline de Mônaco 189 havia solicitado sua participação no Festival. Então, o governo estava em pânico porque a insegurança já tinha começado e não podiam dizer à princesa para não vir ao festival. Isso significaria mostrar ao mundo que não estávamos seguros. Porém, havia uma inquietação. Eles me perguntaram: “o que faremos? É necessário que você encontre uma solução, precisamos de sua ajuda, precisamos nos organizar para a segurança da princesa”. Respondi que ela podia vir sem preocupação: “nós organizaremos para ela uma situação especial, à parte”. Ela veio com o campeão do Rali Paris-Dakar, Jacky Ickx 190 , que era, aliás, seu motorista e com uma outra princesa do Burundi, a cantora Khadja Nin 191 (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017). A participação de uma princesa europeia exigia uma preparação de espaço e de segurança, além de alojamento específico, neste caso, foi construída uma tenda adequada.

Encomendei uma tenda especial em Tessalit, a fim de construir um palácio, pois recebia uma princesa. Construí para ela uma grande tenda e outras em volta. Ela estava com seus filhos. Não posso esquecer isto. A princesa durante os três dias do festival passeava entre as dunas sozinha tranquilamente. Ela saía da sua tenda, voltava sozinha, vinha

189 Sobre a participação de Caroline de Mônaco: Reportage Afrique: Mali: 9e édition Festival du désert à Essakane: “A côté de la musique, le festival est une occasion pour célébrer la culture locale, la culture des Touaregs notamment. Courses de chameaux, danses traditionnelles et expositions d’artisanat”. Du 8 au 10 janvier dernier s’est tenue à Essakane, près de Tombouctou, la 9e édition du « Festival au désert ». C’est un événement qui attire un public aussi bien du Mali que du monde entier: Europe, Amérique, Océanie. Au milieu des dunes de sable, un podium est dressé pour les de musique avec autour des tentes pour accueillir les festivaliers. Parmi lesquels il y avait cette année la Princesse Caroline de Monaco. http://www1.rfi.fr/actufr/articles/109/article_77472.asp, por Alpha Barry. [17/01/2009]. 190 Jacques Ickx, “Il commence à faire parler de lui sur le rallye Paris-Dakar à partir de 1981 et il l’a gagné en 1983“. 191 Para mais informações ver: http://musique.rfi.fr/artiste/musiques-monde/khadja-nin.

196

assistir aos concertos como todo mundo, andava em camelos. Isso quer dizer lembranças do deserto, ela encontrava as pessoas e ficava entre os nômades, sentava na areia da mesma forma que todos. Isso significa uma liberdade que o deserto oferece, essa coisa que se sente em frente à imensidão do Saara (...). Estávamos todos, igualmente, sob o vento de areia. Então, estávamos no mesmo nível naquelas dunas de Essakane: desde as princesas até o pequeno nômade, estávamos juntos sem separação e sem barreiras (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017). Todavia, devido aos sequestros que ocorreram no Mali em 2009, houve um período, de 2009 e 2012, que as embaixadas e os consulados passaram a desaconselhar, ou mesmo, tentar impedir que cidadãos de seus países participassem do Festival au

Désert. Mas, esses atos, terminaram por divulgar o festival, pois conforme seu diretor,

“muitas pessoas que vieram ao Festival me disseram: ‘quando vi o anúncio da ministra

Hillary Clinton sobre o famoso Festival, tive vontade e curiosidade de ver este festival e, também, de visitar Timbuctu”. Acrescentou, depois que “às vezes, essas advertências dos governos ou das embaixadas não servem”. Uma das pessoas que vieram naquele período foi Robert Plant,

a grande estrela de Led Zeppelin 192 declarou que viria ao Festival au Désert. Então, uma equipe de sua segurança veio antes de sua chegada e nos disseram: ‘escutem, há uma estrela mundial que está vindo, é preciso que vocês organizem uma sala especial para ele, para sua segurança, pois quando faz um concerto, as pessoas querem tocar nele ou falar com ele. Então, teremos um problema, vocês não têm barreiras, vocês não têm casas, vocês têm apenas tendas. Como fazer? Estamos preocupados!’ (Entrevista 14. Manny Ansari. 2017). Robert Plant circulou tranquilamente em Essakane. Naquelas dunas, era como qualquer outro festivaleiro europeu. Respirou serenamente seu anonimato momentâneo.

Depois passou a dizer que havia sido seu melhor festival, já que podia andar, fazer passeios, ir onde desejasse, assistir aos concertos e dançar com o restante do público.

O Festival au Désert, além de oferecer oportunidades para a população local, criou conexões e perspectivas de trabalho para os músicos (tanto africanos como

192 Banda de rock britânica formada em Londres, em setembro de 1968, pelo guitarrista Jimmy Page, o baixista e tecladista John Paul Jones, o baterista John Bonham e Robert Plant como vocalista. 197 ocidentais). Os artistas conseguiram contatos e mesmo produtores culturais, favorecendo o início de suas carreiras nacional ou internacional, como destacou Ag Ahmedou. Havia uma organização flexível e algumas “pessoas que tiveram chance de estar no mesmo palco em que Aly Farka e Tinariwen tocaram, somente tiveram a chance de trocar palavras com os produtores de Tinariwen ou de Aly Farka Touré, significando uma grande chance”. Ainda referiu que “um grupo de takamba conseguiu, através deste festival fazer uma turnê nos Estados Unidos, em Froklis e finalmente foram, também, fazer turnê na França” (Entrevista 18. Mohamed Ag Ahmedou 2017).

Mas Ahmed Ag Hamama destacou as atividades que geraram possibilidades econômicas diversificadas, beneficiando as comunidades,

a gente tinha centenas e centenas de tendas. O festival não podia funcionar sem elas. Elas foram alugadas nas comunidades locais. O festival precisava de carne, de açougueiros, de tudo para a cozinha. Para isto, comprava-se animais. Além disto, as populações estavam em contato com turistas e organizavam de méharés [passeios de camelos]. Nas proximidades do festival, havia caravanas de camelos, cavalos, burros, fazendo caminhadas nas montanhas, nas dunas e nas zonas turísticas mais acessíveis. Então, os animais foram alugados, os serviços de guias foram contratados, havia locação de veículos. Além de investimentos que ocorreram como poços, escolas, entre outros (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). O Festival au Désert movimentava intensamente a região, “trouxe muito aos jovens da região de Timbuctu, mas, também, aos jovens de outras regiões, de Bamako e mesmo para os de outros países como os burquinabês, togoleses e outros” ressaltou Ag

Ahmedou. As atividades eram em grande escala, gerando trabalho com durações variadas (venda de água, segurança nos concertos, venda de artesanatos etc.), mas nem todas foram programadas pela organização do Festival. Um exemplo foi a criação de danceterias após todos os shows (Entrevista 18. Mohamed Ag Ahmedou 2017).

Acontecia, portanto, eventos simultâneos, como serões noturnos em volta de fogo, conforme lembrou Ag Hamama:

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os festivaleiros podiam se encontraram em volta de grande fogueira para ouvir e contar histórias, os contos épicos eram narrados pelos especialistas ou declamar poemas acompanhados pela música tradicional, acompanhados pelo emzad . Se faziam histórias, se narrava histórias de tempos antigos, dos cavaleiros de antigamente, da ocupação dos territórios tamacheque, de sua organização, da cultura de modo amplo. Nós tínhamos em volta de nós turistas e grandes intelectuais (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Antecipando as múltiplas necessidades de organização do Festival, por exemplo, já se conhecia a demanda de número muito grande de tendas a fim de viabilizar a recepção de milhares de pessoas, vindas de vários continentes. Desse modo, a população passou a preparar tendas exclusivamente para essa finalidade, que se tornou uma modalidade de investimento. Havia famílias que compraram várias, ou mandaram fazer várias tendas, para alugar durante os três dias de festival do ano. Estas eram diferentes daquelas que usam cotidianamente. Havia um comitê, coordenado pelo capitão Ehamatta, dentro da

Comissão de Organização que cuidava de discutir e coletar as tendas nos acampamentos.

Mohamed Ag Ahmedou, que participou no Festival au Désert pela primeira vez nos anos 2004-2005, integrou essa comissão. Participar da equipe do Festial au Désert foi percebido como prazeroso por Ag Ahmedou, que apreciou a proximidade com músicos que conhecia apenas por meio de suas músicas. Relatou sua experiência como jovem que se viu envolvido de forma progressiva em evento cultural organizado por seus parentes na sua região. Então, como muitos jovens, colaborou na coleta das tendas para alojar os festivaleiros em várias vilas, aldeias e acampamentos. Fadimata Walet Oumar, a embaixadora do Festival au Désert, também ressaltou a criação de oportunidades para os artistas sul malineses que começaram suas carreiras nas dunas de Essakane,

Com certeza há muitos artistas do Sul que conseguiram seus managers no Festival au Désert. Isso posso dizer e posso afirmar. Lá nas dunas de Essakane, durante o Festival au Désert, muitos foram vistos, fizeram sucesso e conseguiram mostrar seus talentos. Porque um artista pode ser bom, mas se não for descoberto pelo público, não serve a nada. No Festival au Désert, muitos artistas ficaram conhecidos pelo público. Um exemplo é Khaira Arby. Eu a conhecia como grande artista fazia muito tempo, mas foi por meio de suas performances no Festival au Désert 199

que ela foi descoberta pelo público estrangeiro. Existem muitos outros. Contrariamente a nós Tartit, já tínhamos sucesso bem antes do Festival au Désert (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar). Entendendo ter adquirido grande experiência na produção de festivais em

Essakane, Ag Ahmedou declarou-se impactado pelas descobertas de talentos que desconhecia em sua própria comunidade. “Nós podemos enumerar cerca de quinze grupos, só entre os Tuaregues do Níger, que foram lançados no Festival au Désert de

Timbuctu. Cito aqui alguns: Tarbiyat; Abdallah Ag Oumbadougou; Bambino; Hassou; o falecido Koudede” (Entrevista 18. Mohamed Ag Ahmedou 2017). Mesmo para jovens de países vizinhos que aproveitaram e fizeram seus comércios, trocas e intercâmbios de vários tipos, o Festival au Désert promoveu a música e as diversas formas expressivas tamacheque.

Todos esses elementos e dinâmicas agenciaram o festival e somaram novas camadas de sentidos que foram se agregando. Todavia, a ação de criminosos se intensificou e a decisão dos organizadores de manter o Festival au Désert, entre 12 e 14 de janeiro de 2012, foi bastante arriscada. Neste contexto, explicou Issa Dicko que

pouco tempo antes da guerra de 2012, ocorreu a última edição. Porém, já não ocorria em Essakane, mas em Timbuctu, pois nós o trouxemos para Bar’raz, um local perto de Timbuctu. Os Songhoi chamam este lugar de Abaradju, mas é Abar’raz ou Abar’raza, que quer dizer em tamacheque tamazight , caravançarai 193 perto de Timbuctu. Então foi ali que os festivais ocorreram nas últimas edições (Entrevista 12. Issa Dicko, 2016).

Desde 2012, o Festival au Désert perdeu seu território, que se tornou palco de um longo e difícil conflito armado e político, participando de jogos conjunturais e geoestratégicos mundiais. Para Ousmane Maiga, produtor cultural originário de Ansongo, um entusiasta do festival, por sua paisagem e possibilidades de intercâmbio entre diversas expressões artísticas, entende que o Festival foi inigualável.

193 Estabelecimento de hospedagem de mercadores e viajantes.

200

Começo dizendo que lamentamos que não estamos tendo este festival pela insegurança que existe hoje. Mas, lhe digo que, para nós, era o melhor festival na África, sobretudo para nós, oeste africanos. Pois lá você não só encontrava os homens da música, mas, também, você encontrava os homens de outras artes, como cineastas. Então, você tinha uma grande troca, além do local em si que é maravilhoso, foi bem escolhido. Ele é único no mundo. Ele é realmente único no mundo (Entrevista 8. Ousmane Amadou Maiga, 2017). Bono, famoso roqueiro irlandês de U2, iniciou sua apresentação em 2012, levantando os braços e gritando para os mais de 3 mil expectadores, cerca de 350 estrangeiros: “Nous sommes tous ici des frères!" Em seguida, os membros de Tinariwen subiram ao palco, encarnando a própria história tamacheque de lutas por liberdade e dignidade, que conheceram tantos revezes. Essa edição pode ser considerada como resultado do ativismo em esforço militante de artistas, organizadores e festivaleiros contra o domínio do terror.

Uma reportagem de Jeune Afrique da época mencionou três histórias de festivaleiros. A primeira, mencionava um homem tamacheque residente no Marrocos que afirmou considerar sua presença uma forma de manifestação política; a segunda, uma jovem francesa relatando que contornou a segurança e as orientações para que cidadãos de seu país não fossem ao Mali. A terceira história era de um banqueiro britânico que afirmou ter ignorado propositalmente as recomendações, viajando em seu próprio avião (JEUNE AFRIQUE, 2012) 194 .

Paralelamente ao reconhecimento internacional da música dos diferentes grupos da música ichúmar, o Fesival au Désert emergiu e se consolidou entre os festivais internacionais. Participou de uma grande transformação do cenário cultural tamacheque, do alcance de sua arte, seja internamente, como nos entrelaçamentos regionais e debate político nacional, favorecendo o turismo e a economia na região. Finalmente, projetou

194 15 janeiro de 2012. Disponível em: http://www.jeuneafrique.com/152899/politique/mali-tombouctou- un-festival-avec-la-star-bono-fait-oublier-al-qaeda/. 201 internacionalmente a música tamacheque, mas não apenas, com ela divulgou o conjunto da produção musical malinesa.

Tanto os festivais, encontros intercomunitários, como os espaços urbanos interculturais de expressão tamacheque são constituídos de dimensões inseparáveis da sua história, artes e política. A continuidade do Festival au Désert, fora do território tamacheque criou por um lado, uma alternativa coerente com sua capacidade de mover- se, divulgando a plasticidade de formas de lutas culturais da história Kel Tamacheque.

Por outro, gerou um paradoxo, pois, sua própria população já não pode mais ser parte orgânica e criativa do evento. Quais são as implicações dessa recusa da morte de seu

Festival mais renomado e politicamente de maior alcance?

Percepções do Festival au Désert

O Festival au Désert foi importante para a autovalorização e renovação das relações intercomunitárias no interior da sociedade tamacheque, na percepção de várias pessoas, tais como Fadimata Walet Oumar, Tafa Walett Alhousseini ou Keltoum Wallet

Emastagh. Assim avaliaram que os encontros festivos haviam começado a perder espaço, devido aos problemas de fronteiras, à migração, exílios e às emergências da luta armada (1963, 1990, 2006 e 2012). O músico do grupo Tinariwen, Iyadou Ag Lech, ponderou sobre a importância da realização deste evento para os próprios Kel

Tamacheque, além da aproximação entre estes e as comunidades vizinhas e, mesmo, com outros mais distantes.

O Festival aproximou nosso povo e o aproximou de outras culturas como a bambara, songhoi e com o exterior, com o Niger. Você compreende quem você é, enquanto os outros terminam por saber também. É muito bom que os povos se encontrem, fiquem juntos e possam se conhecer (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2016). Para Fadimata Walet Oumar, artista fortemente engajada nas lutas emancipatórias dos Kel Tamacheque nos anos 1990, a abertura que promoveu a projeção tamacheque em

202 encontro consigo e com outras sociedades, tanto do Mali como do exterior, foi bastante saudada:

Em primeiro lugar, o Festival au Désert, um encontro de todas as civilizações do mundo, é um festival da cultura tamacheque e, a partir dela a gente vê a cultura do mundo. É um festival em que o mundo inteiro se encontrava. Um festival que nos permitiu, mesmo a nós Kel Tamacheque, nos encontrarmos entre nós e, também encontrar as outras comunidades do Norte. Permitiu a nós, nos vermos de tempos em tempos e revermos nossas origens, pois Essakane era realmente o lugar de nossos ancestrais. Então, permitiu para nós de nos vermos entre nós mesmos, de nos encontrarmos nós mesmos, viver nossa cultura e ficarmos juntos. É um festival que permitiu ao mundo como tinha dito, de se encontrar (Entrevista 10. Fadimata Walet Oumar, Tafa Walett Alhousseini - Grupo Tartit - e grupo, 2016). As discussões sobre a criação do Festival au Désert acentuam uma concomitância de iniciativas culturais que se seguiram ao acordo de paz, organizadas no início do século

XXI. Iyadou Ag Lech ressalta que houve um projeto realizado pelo grupo Tinariwen, juntamente com seu produtor na época, Issa Dicko e Manny Ansari, apoiados por Lo’Jo:

A ideia do festival veio de nós, grupo Tinariwen e Issa é um estudioso da escrita tifinar. A ideia veio dele, foi sua proposta e depois discutimos com o Manny Ansari. Foi a partir de lá que nos tornamos a mesma equipe, trabalhamos juntos e fomos para França e Lo’jo nos ajudou muito nisso. Essas pessoas eram o cérebro do Festival au Désert. Nós somos artistas e não quisemos gerenciar o festival, isso não é nosso papel. (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016). O guitarrista Bombino compreendeu o Festival au Désert como expansão de intercâmbios e convivências entre diferentes sociedades do Norte e, desta forma, diferenciando-se da experiência na Argélia, onde são os laços entre artistas que se destacam. No Mali e no Níger, o mais marcante são as interações entre os festivaleiros de diferentes etnicidades. A espontaneidade das trocas cotidianas ganhou uma ritualidade contemporânea, permitindo a coabitação, ainda que momentânea, de diferenças. Sem a política de polarização da diferença, não se explica o exercício rígido da diferenciação cultural e da alteridade. A sociedade tamacheque, como as demais experiências históricas saarianas, são conscientes da interdependência mútua e, simultaneamente, da competição 203 que se estabelece entre culturas. Assim, os Festivais promovem sistemas de passagem, de pontes e de situações outras que guetos identitários 195 (AMSELLE, 2001), como são percebidas do exterior. Nos festivais constroem-se laços entre pessoas e entre comunidades diferentes no Mali e no Níger, no entendimento de Bombino.

O Mali e o Níger não são parecidos com Argélia quando se trata de ortodoxismo religioso. Quando se fala do Mali ou do Níger, estes festivais não só unem as pessoas, são mais que isto. Você tem Kel Tamacheque, mas, também, Fula, Hauça e Zarma. Todos estes povos se juntam, eles participam na festa tamacheque, mesmo que a festa não seja de outras etnias, elas participam, entende ? Para mim isso é de uma grande importância. Porque as pessoas vêm nos ver, ver como é a nossa cultura. Isto cria uma conexão e confiança entre as pessoas. De todo modo, é o que eu vejo no Níger (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015). Fadimata Walet Oumar entende que o Festival au Désert, com mais de uma década de edições em Timbuctu, tornou-se uma referência entre os festivais contemporâneos na

África, sem perder sua ancoragem na cultura tamacheque:

o Festival au Désert é o primeiro grande festival no Mali, para mim não tem até hoje no Mali, um festival tão grande quanto o Festival au Désert, um festival que fez os mundos nômades e sedentários dialogar com outras culturas e civilizações. Acho que só o Festival au Désert conseguiu fazer isso. Participei de todos os festivais e encontros culturais que aconteceram neste país, mas o Festival au Désert permanece único até o presente 196 (Entrevista 10. Fadimata Walet Oumar, Tafa Walett Alhousseini - Grupo Tartit - e grupo). Enquanto espaço inusitado e inovador no contexto malinês, ofereceu uma oportunidade atraente para que as pessoas do Sul - que raramente se afastam de Bamako ou das maiores cidades como Ségou, Sikasso, Kayes - fossem às regiões do deserto

(Timbuctu, Kidal ou Gao), no Norte do Mali. Bombino destaca o papel dos Kel

Tamacheque por estarem em situação de receber, de serem anfitriões culturais:

Quando se fala de deserto é necessário falar, também, dos Kel Tamacheque, pois são a primeira etnia que se conhece a morar no Saara. Quanto a mim, tudo que diz respeito ao deserto e à música, me traz uma grande felicidade (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015).

195 “l’enfermement identitaire”, conforme Jean-Loup Amselle. 196 Nenhum outro festival conseguiu obter a qualidade e repercussão do Festival au Désert.

204

A face política envolvendo a marginalização tamacheque e das sociedades do

Norte foi analisada por Ag Lech, que é de Tassili, região de Kidal:

Considero ser o festival algo também muito politizado, muito estratégico, pois fomos abandonados e fomos esquecidos por todos e sobretudo pelas mídias. O Mali nunca se interessou em mostrar nossa cultura, nunca mostrou nossa música, nada da nossa cultura em seu canal de TV nacional ou na rádio. Isso é um problema muito grave. Então acho que nós ganhamos esta [batalha] política, pois pensamos em Festival como alternativa e o realizamos. Agora é o mundo exterior que vem nos ver. As pessoas não tinham nenhuma informação sobre o que estava acontecendo em nossa terra e não conheciam, igualmente, a vida bonita que nós temos. Acredito que foi estratégico, uma chance fazer um festival. Isso nos aproximou muito, também entre nós. O Festival aproximou nosso povo e o aproximou de outras culturas tais como bambara, songhoi, com o exterior e com o Níger (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016). Iyadou Ag Lech expressou uma recusa profunda do que são, para ele, ações divergentes ou estranhas ao desejo de uma autodeterminação tamacheque. Defendeu igualmente, o fortalecimento interno pela criação de conexões para a luta emancipatória.

O envolvimento de Tinariwen com o Festival au Désert, tornou-se mais e mais distanciado. Ag Lech realçou a dimensão de encontro como sendo de grande relevância:

acho que a primeira importância do festival é ser um lugar de encontro do meu povo, acho que é a vantagem única e não vejo outra. Em segundo lugar, valorizo o encontro com os músicos. Era isso que nós desejamos sempre. Economicamente, não acho que teve tanta vantagem. Pelo menos não vi. Posso dizer que não houve interesse econômico, seja por financiamento do Estado ou por doações de estrangeiros. Para mim, o Festival au Désert é lugar de reencontros (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech. São Paulo, 2016). O Festival au Désert, não pode, portanto, apagar a história de sua emergência como grande e contínuo evento cultural ligado às lutas Kel Tamacheque.

Você sabe que desde 1990, houve rebeliões que acabaram devido ao acordo de 1995. Mas, mesmo assim houve, também, rebeliões menores entre 2006-2007 com o MNJ [Movimento Nigerino pela Justiça], mas não ocorreram pela vontade da maioria dos Kel Tamacheque. Eu penso que não é mais um bom caminho, eu penso! De qualquer modo, através da música e dos festivais, as pessoas se encontraram e ficaram juntas e descobriram que podem viver juntas. Atualmente você sente que estão prontas a viverem juntas. Isto vejo no Níger, porém no caso do Mali, não sei pois não conheço bem o Mali. (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015). 205

Diversos artistas malineses manifestaram interesse em participar do festival saariano que ganhava, progressivamente, repercussão internacional. A famosa cantora

Fantani Touré foi convidada para a terceira edição do Festival au Désert, ou seja, a primeira em Essakane. A sua recepção, desde o aeroporto em Timbuctu até a instalação na tenda a ela destinada em Essakane, foi confiada a sua amiga, Fadimata Walet Oumar

(Disco) do grupo musical de mulheres tamacheque de Timbuctu, Tartit. Fantani começou a expressar suas impressões desde o aeroporto, passando pela cidade histórica de Timbuctu. Ao chegar em sua tenda, arregalou os olhou e não escondeu sua surpresa.

Fadimata Walet Oumar relatou assim o encontro:

Eu me lembro do momento em que Fantani Touré entrou em sua tenda: “são estas suas casas?” Respondi que sim e que tínhamos orgulho delas. Ela então insistiu: “Disco, vocês têm razão de fazer rebelião, porque a gente não pode viver numa coisa destas”. Eu disse a ela: “minha querida, nós somos muito orgulhosos de viver aqui nestas tendas, somos muito felizes de estar sob elas, isso não nos incomoda em nada. Incomoda a você, porque talvez você não esteja acostumada, por isso que a tenda lhe incomoda. Não é por causa delas que fazemos rebeliões, pois, mesmo se estivéssemos nos Estados Unidos, seriam essas tendas que teríamos nas mentes. Em todo lugar que vamos no mundo, a gente pensa nelas, pois foram onde nós crescemos, pensamos nas pessoas que as habitam”. (Entrevista 1. Fadimata Walet Oumar, 2016). Outra estrela e vedete da música malinesa contemporânea, Oumou Sangaré que já havia feito muitas turnês no exterior e conhecia grande número de países europeus, africanos e americanos, além de vários na Ásia, como Japão, China, India, Emirados

Unidos, não havia, até então, visitado Timbuctu. Ela foi em sua terceira edição. Diversas pessoas comentaram sua estreia nas dunas de Essakane, como Iyadou:

houve uma grande artista, Oumou Sangaré, que veio a Essakane usando sapatos de salto alto. Quando desceu do carro, seus sapatos afundaram na areia. Então, ela exclamou: mas, há dunas em Timbuctu?! Timbuctu está a somente 700 km de Bamako, mas ela, mesmo sendo uma artista que havia feito a volta do mundo, nunca tinha ido a Timbuctu. Agora, imagine os outros! (Entrevista 11. Iyadou Ag Lech, 2016). Todavia, dialoguei com vários tamacheque que criticaram o Festival au Désert de

Essakane, por entenderem que os organizadores acabaram relegando sua cultura a

206 segundo plano e que a dimensão do bem comum tamacheque havia perdido espaço.

Ahmed Ag Hamama comentou que

no início era especificamente tamacheque, era somente a cultura tamacheque. Eram festas tamacheque, músicas tamacheque, danças tamacheque, contos tamacheque, tudo que é cultural estava presente. Mas, com a internacionalização a gente ficou submergido pela participação exterior (...) Então, o festival gerou receita devido ao turismo para o Mali (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Mesmo assim, o Festival contribuiu, segundo ele, para outras dimensões da vida social, como a construção de poços, produção de hortaliças, além da organização de escolas, possibilitando frequentar escola a toda uma geração de crianças. O professor Ag

Hamama detalhou a explicação.

Eles ofereciam material para as escolas cada ano, eram ações pontuais, em Essakane mesmo, em Farach, em Tissikorey. Estes, para falar de lugares em que fizeram poços artesianos, mas há outros lugares que realizaram poços, como foi o caso de Tigoumatine e outros sítios e acampamentos pastorais. É isso o festival, sua gênese e sua história (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). A percepção da necessidade de mudança social profunda foi uma constante nas conversações com diferentes colaboradores e colaboradoras. Uma das mais enfáticas foi manifestada por Ag Hamama que falou da necessidade de reavaliação e de formular novos objetivos para que o Festival pudesse apontar caminhos para promover mudanças:

Os Kel Tamcheque têm, hoje, vontade de mudar e tudo que acabei de dizer não haverá mais, pois não haverá mais aquele tamacheque sozinho no deserto sem contato com ninguém. Hoje, estou convencido de que tudo vai mudar. Por que digo tanto que é preciso que a direção do Festival organize um fórum de avaliação para compreender a situação? O que foi adquirido, o que foi nefasto, o que foi positivo. Em seguida, rever as orientações que farão deste festival um promotor de mudança em seu meio e promovedor de contatos que este meio tanto precisa e que pode receber muitas coisas (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Uma das dificuldades mais importantes hoje, é criar condições para que as crianças tenham novos horizontes, que possam desenhar uma multiplicidade de futuros possíveis.

Assim, é que a educação, principalmente a educação das meninas, se tornou uma questão de grande preocupação para a consolidação da paz. 207

No campo de refugiados têm quatro mil crianças. Nas escolas que dirijo pessoalmente, 52% são meninas. Essas meninas ao voltarem, seu trabalho não será o da tenda, serão as meninas que vão continuar seus estudos e que vão assumir tarefas na comunidade. Tarefas na mudança, serão as meninas que irão dirigir os carros no Saara. Não serão mais meninas que esperam tudo do homem, não serão mais mulheres que, para subir nos camelos, precisavam que fossem levantadas ou apoiassem nas costas de homens para se instalarem nas liteiras ou selas de camelos. Não será mais assim (Entrevista 3. Ahmed Ag Hamama, 2017). Nesse sentido os organizadores deveriam estabelecer subprojetos a partir de sua rede de relações, estabelecer cooperações e buscar financiamento para “fazer uma perfuração em lugar indicado por eles, conseguir financiamentos. A direção do Festival deve orientar projetos para tal comunidade ou tal entidade administrativa, para um município, região ou para uma grande aldeia sedentarizada” (Entrevista 3. Ahmed Ag

Hamama, 2017).

Há outras críticas ao mais renomeado festival do Saara. Uma delas reclama que o

Festival au Désert, não valorizou devidamente os talentos locais existentes, mesmo em

Timbuctu. Ag Ahmedou ponderou que não seria adequado mostrar, durante uma edição do carnaval no Brasil, menos de 10% da realidade sociocultural brasileira; “então é a mesma coisa, o número de músicos que o Festival au Désert promoveu não representam nem mesmo 1% da realidade cultural que se encontra em Timbuctu”. Chamando a atenção para outras expressões artísticas que ali havia, considerou ausentes no Festival au Désert diversas manifestações de valor.

Andei por toda a região de Timbuctu, participando de festas, batizados, casamentos e outras atividades. Ocasiões em que descobri muitos talentos, mas que não foram valorizados. Deveríamos ter criado oportunidades para maior número de talentos, pois eram realmente extraordinários (Entrevista 18. Mohamed Ag Ahmedou, 2017). Ag Ahmedou mantém o projeto de mostrar esses músicos desconhecidos em palcos de festivais, comparando-os a outros artistas famosos, como Oumou Sangaré, do

Mali. Ele exemplificou suas considerações com a performance de Igbayane, em que pastores dançam e cantam para os camelos, para que comam mais as ervas: “há pessoas

208 que se você lhes escuta cantando no deserto, verá que são um verdadeiro conjunto instrumental”. Ainda anotou que há uma interpenetração a música de Timbuctu e da

Mauritânia, reconhecida por seus ritmos, ressaltando as qualidades artísticas de artistas como Baba Ould Hinana. Ahmedou levantou um debate sobre as expectativas dos temacheque, como ele, em ver uma ativa promoção do que chama de talentos que existem e que quando cantam “você tem certeza que são artistas” e que deveriam ter reconhecimento. Manny, também se referiu à existência de grupos talentosos que se organizavam em torno ao Festival au Désert, com cenários performativos organizados pela população.

Havia outros grupos que vinham por sua conta, eu mesmo através dessas festas espontâneas que não organizamos, era a partir delas que eu ia, olhava e escolhia grupos para a edição seguinte do festival. Um exemplo concreto: uma vez escutei um som de uma música e fui ver, eram os Bella, Kel Tamacheque negros, que faziam uma dança tradicional, dançavam com espadas 197 . Era uma dança tão bonita, eles estavam lidando com sabres de forma incrível, dançando. Perguntei de onde eles eram. Me disseram que eram de Douekéré, uma cidade da beira do rio Niger. Disse a eles que ia programá-los para o ano seguinte. Não sabia nada sobre eles, nem os conhecia. Mas, faziam uma dança fantástica, mulheres bem vestidas com roupas tradicionais, homens com espadas. Eu os descobri assim, porque eles estavam lá, ao lado do Festival, fazendo sua festa. Nós os programamos para a próxima edição e de fato vieram, tocaram e fizeram muito sucesso. Depois disso, foram convidados no Mali todo, pois sua dança era, realmente, extraordinária, a maneira com que moviam as espadas era incrível (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017).

Esse saber dançante é mais uma das nuances e das modulações expressivas presentes no festival. Mas a compreensão mais aprofundada dos festivais remete, ainda,

à discussão das redes orais de transmissão, pois emanam das complexas modalidades de sua poética e de suas lutas políticas cantadas e dramatizadas em suas performances, nos palcos de festivais, ou em cenários de encontros comunitários e, mesmo, cotidianamente.

197 A dança takuba , é parte da iniciação dos Imuchagh. 209

Em 2015, quando Moctar Ag Oumar Bombino, guitarrista tamacheque de Agadez, esteve em São Paulo, falou de forma abrangente sobre os festivais contemporâneos.

Confirmou que sua gênese no Mali e no Níger, tiveram laços diretos com a geração

Ichúmar, que a partir da experiência no exílio, nos territórios do norte tamacheque, geopoliticamente transformados em Argélia, que a juventude transformou a cultura musical tamacheque após os anos 1960. Separar, então, a compreensão dos festivais, incluindo o Festival au Désert, deste processo seria incorrer em erro metodológico. A intensa vida cultural dos jovens tamacheque em Tamanrasset, apesar da ortodoxia moral da Argélia 198 , teve papel relevante para a criação do grupo Tinariwen e para a prática dos encontros em torno da guitarra. Segundo Bombino,

há muitos festivais nas nossas regiões como o Festival de Arte que acontece em Tamanrasset. É um grande festival em que todos os artistas se encontram, como Tinariwen. Mas, traz, também, [artistas] de Bamako, entende? Tamanrasset em um dia de festival, nem parece que se está na Argélia. É um cosmopolitismo total, as pessoas são felizes, as pessoas saem bastante. Isto quer dizer que olhando aquilo, você tem vontade de participar e de escutar música. Isto é muito raro em Tamanrasset, e na Argélia, um país arabizado com muitas práticas muçulmanas ortodoxas. Mas, nós nos encontramos em nossa própria cultura tamacheque. (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015). Quando estabelece ligações entre país arabizado e rigidez nas relações sociais, ausência de cosmopolitismos e mesmo de alegria, Bombino acentuava a cultura insurgente dos ritmos do sul da Argélia, onde está Tamanrasset e dos tamecheque do

Ahaggar, juntamente com os exilados e migrantes do Mali e do Níger. Tal insurgência confronta o rigorismo e o controle social que emana das formas autoritárias de práticas políticas da Argélia. Importa ter presente que a história dos festivais saarianos e os

198 Consequência da política autoritária adotada desde a independência que instituiu o programa de arabização e tem se negado a reconhecer a existência das sociedades imazirren, incluindo os Kel Tamacheque, cujos territórios situam-se no sul, regiões que fazem fronteiras com Líbia, Mali e Níger.

210 conflitos na região possuem rotas paralelas, mas frequentemente interconectadas pela crescente desestabilização do Saara no século XXI.

Bombino, contudo, iluminou a vida de uma juventude tamacheque que encontrava em Tamanrasset uma referência cultural inestimável, lembrando que foi ali que surgiu a música ichúmar e a guitarra tamacheque. A cidade foi o celeiro de artistas cuja dinâmica cultural revalorizou o Imzad, tendo em Lalla Badi, uma grande expressão.

Os festivais culturais e encontros intercomunitários eram percebidos como facilitadores da coesão social e investidos para desenvolverem potencialidades econômicas. Desta forma, entre 2003 e 2012 realizaram-se mais e mais festivais e os encontros intercomunitários foram sendo ativados ou retomados em diversas regiões, frequentemente com algum apoio governamental. Moctar Ag Oumar Bombino, que vive nos Estados Unidos, entende que, afinal, o resultado é positivo: “o Festival au Désert realizou seu objetivo principal de criar laços entre as pessoas e entre povos. Era um dos eventos culturais mais importante da África, o maior do Mali e do norte do Mali em particular” (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015). Outros festivais existem em territórios tamacheque. No Níger,

há vários festivais como Festival de Cure Salé que é um festival de encontro entre os nômades. Há, também, o Festival de Taguida, o festival de Adrar no mês de agosto com muitos rituais cada ano. De fato, há muitos festivais, pois, cada comunidade organiza um festival. Há corrida de camelos e canções. Cada comunidade tem sua festa. Logo depois de agosto, no mês setembro, neste período, você tem o de Agadez, o festival de Iferouane, o de Arlit; tem ainda em Ingall, entre outros (Entrevista 4. Moctar Ag Oumar Bombino, 2015). Para o guitarrista Bombino, estes festivais são igualmente relevantes, enfatizando que existe uma constelação de eventos em verdadeiro circuito cultural saariano ativamente protagonizado pelos tamacheque de diferentes regiões/países.

No caso dos Kel Tamacheque no Mali, porém, parece que permaneceremos muito longe de um projeto de futuro emancipação, enquanto botas e drones sufocarem a história 211 das caravanas ( azalai ). Já não é o sal que se transporta entre dunas. Vivemos impotentes em meio a militares que ocupam nossas terras, e entre redes intercontinentais de crimes organizados, a emergência de forte ortodoxia moralizante e a fragilidade de um governo que deixou só os pastores em seus deslocamentos, insílios e exílios. Contudo, nenhum projeto de desenvolvimento poderá se realizar sem a emancipação de Azawad. A música ichúmar, assim como seu sonho, vagam num exílio imaginário e num vazio de possibilidades. Resta a esperança de que a história ainda possa ter outros desfechos para o drama tamacheque que continua entregue a si, mas cerceados e sem direitos a seus territórios e à governança de suas riquezas. O Saara é puro movimento, mas até quando será percebido apenas como lugar de passagem? Quando experiências valiosas e intensas que carregam criatividade e sensibilidade voltarão a ritmar nossas poesias?

Exílio do Festival au Désert: contradições da guerra e a Caravana pela Paz

Caros amigos do Festival au Désert, Até que a música possa retornar a suas raízes com liberdade e dignidade, o Festival au Désert tornou-se um festival em exílio.

Festival au Désert A hostilidade a todas as formas de manifestações festivas foi demonstrada por represálias de muitos tipos ao longo do ano de 2012. No caso do Festival au Désert, o recado foi dado, entre outras, pelo saque do espaço construído ao longo dos anos (desde

2003) para a instalação do Festival. Destruíram o portal, fizeram pilhagens de materiais, como geradores, estruturas de água, materiais elétricos etc. Finalmente, a organização do festival não teve alternativa em 2013, pois a guerra havia se instalado. Como maneira de mudar para não perder tudo, idealizaram "um festival no exílio". Em sua página, a organização publicou que

212

o Festival do Deserto deve sobreviver a tudo isso, mesmo em itinerância, até que possa voltar a Timbuctu em paz. É por isso que, no intuito de manter seus objetivos de desenvolvimento, de promoção da paz, de fortalecimento do tecido social e da diversidade cultural, o Festival au Désert será organizado na próxima edição, excepcionalmente, na forma de ‘Caravana de Artistas para Paz e a Unidade Nacional (Festival au Désert) 199 .

O ano de 2013 foi marcado por uma situação nacional de emergência e, nos territórios do norte do país, as condições de vida se deterioraram, milhares de pessoas se viram obrigadas a se refugiar em campos na Mauritânia, Burquina Faso, Níger, Argélia e outros deslocaram-se internamente. A intenção era que duas caravanas de músicos viajassem pelo Mali, fizessem apresentações diversas, concluindo com um concerto em um dos campos de refugiados, em Oursi, Burkina Faso. A proposta tinha como ideia central, o encontro entre artistas do sul e do norte do Mali, refugiados na Mauritânia. A caravana partiu de Kobenni, na fronteira do Mali e Mauritânia, em fevereiro, dirigindo- se ao Burkina Faso.

Nos anos posteriores, o Festival au Désert ocorreu no exílio e, assumiu em 2013, uma estrutura nômade. Uma série de iniciativas retomavam simbolicamente sua continuidade. Em forma de caravana realizaram-se dois grandes percursos. O primeiro, saindo de Bamako em direção à Mauritânia. O segundo, saindo de Tamanrasset para

Niamey (Níger) e depois, para o norte do Burkina Faso. Conheceu “escalas” também na

Europa, como em julho de 2013, quando se apresentou em Florença, no contexto da quarta edição do Festival de Música Prezence d’Africa (ANSARI, 2013). Na Itália, apenas Tinariewen e Tartit, entre os grupos musicais tamacheque, participaram.

Berlin recebeu uma escala da Caravana no ano de 2014, saindo do Festival

Taragalte (Marrocos). Note-se, porém, que apenas um grupo tamacheque participou destas apresentações, o grupo Amanar de Kidal. Em 2015, houve uma escala no

199 Ver: http://www.festival-au-desert.org/. 213

Marrocos (23 a 25 de janeiro) e a Caravana de 2015, saiu de Bamako para Ségou (entre

4 e 7 de fevereiro), seguiu para a cidade de Koutiala (dia 8), depois, para San (10 de fevereiro) e Mopti (dias 13 e 14), retornando a Bamako dia 15 de fevereiro, realizando um concerto com artistas estrangeiros no dia 21 de fevereiro. O Festival au Désert no exílio ganhou o prêmio Fremuse (ANSARI, 2013), patrocinado pela Fundação

Internacional para Cultura (Björn Afzelius International Culture Foundation).

As consequências, tanto do exílio do Festival au Désert, quanto dos eventos políticos e da guerra no Mali, deixaram muitos questionamentos sobre o que, realmente, do projeto inicial de 2001 ainda se mantinha em 2014. Ainda que que Manny Ansari declarasse e insistisse sobre a importância de dar continuidade às manifestações culturais como a Caravana pela Paz , percebia-se a ausência crescente dos Kel Tamacheque. Em

2014-15, apenas um grupo, abertamente identificado com a política de Bamako, permaneceu nas apresentações da caravana.

Após o último festival realizado em Timbuctu, devido à interdição da música pelo crime organizado durante a ocupação em 2012, pelos diversos desdobramentos da guerra e pela incapacidade de gestão e garantia da segurança da população pelo Estado, a região permanece em situação de guerra com grande militarização. O Festival au Désert transformou-se, inicialmente, em 2013, na Caravane d’Artistes pour la Paix et l’Unité

Nationale. Posteriormente, passou a assumir a forma de Caravana Cultural pela Paz, em parceria entre Mali e Maroc. Esta última iniciativa foi lançada no Marrocos em 16 de novembro de 2013, durante a 4a. edição do Festival Taragalte em M'Hamid El Ghizlane que teve como tema “A Caravana”.

Cheikh Tidjane Seck e Oum El Ghaït Benessahraoui, apelidada de Oum Taragalte, foram escolhidos como embaixadores da cultura de paz pelo Mali e Marrocos, respectivamente. Com suporte da fundação Doën da Holanda, o projeto Caravana

214

Cultural pela Paz, realizou-se pela conjunção de esforços de três festivais: Festival

Taragalte - festival under the stars in Marroco, Festival au Désert e o Festival sur le Niger, do Mali. Em sua página na web , afirmam os organizadores que “através da música e da arte, a Caravana oferecerá aos povos do Saara e da região do Sael uma plataforma de encontro, troca de ideias a fim de promover e preservar o patrimônio cultural 200 ” (Cultural

Caravan for Peace). Em 2013, a Caravana percorreu diversas localidades, como campos de refugiados tamacheque, principalmente no Burkina Faso, Djibo, Siniaré, Bobo

Dioulasso e em Ségou, no Mali.

Em 2014, vinte anos após a morte de Mohamed Aly Ag Attaher, a manifestação cultural do sul do Marrocos, recebeu o Festival au Désert por meio da então denominada

Caravane Culturelle pour la Paix et la Réconcilliation, com suporte do governo do Mali,

Fundação Doën, Cooperação Norueguesa, Embaixada dos Países Baixos, Operendorf da

Alemanha, DASC da Itália e BMS (Banque Malienne de Solidarité), Banco do Mali. A parceria com o Festival Taralgalte abriu uma dimensão regional africana, denominada por seus membros de “projecto Saelo-Transaariano criativo, apoiando o diálogo, o intercâmbio cultural e a coesão social nas regiões do Sael e do Saara”201 . Houve um deslizamento de foco que se percebe, do deserto (Saara) para o Sael malinês, com crescente distanciamento das artes tamacheque como fundamento do projeto da parte dos organizadores do Festival au Désert. No entanto, como será descrito e analisado no próximo capítulo, o elo mais proeminente em M’Hamid El Ghizlane tem sido, justamente, os músicos tamacheque e a história das caravanas transsarianas que ligava este oásis à

Timbuctu e Gao. Seus principais grupos musicais, Generation Taragalte e Les Jeunes

200 “Atravers la musique et l’art, la Caravane offrira aux peuples du Sahara et de la région du sahel une plateforme ” de rencontre, d’échanges d’idées afin de promouvoir et de préserver le patrimoine”. Disponível em: http://www.culturalcaravanforpeace.org/. 201 Projeto criativo saelo-trans-saariano, apoiando o diálogo, o intercâmbio cultural e a coesão social nas regiões do Sahel e do Saara. 215

Nomades, são fortemente inspirados por releituras da música de Tinaiwen que configuraram um patrimônio musical para a região.

Entre os objetivos da Caravana pela Paz, encontra-se a ideia de reconciliação entre a vontade de emancipação de sociedades do norte do Mali e o governo central, visando favorecer a vontade política para viabilizar o acordo que foi assinado em 2015, na capital argelina. Nestes anos, os organizadores têm buscado criar espaços na agenda cultural internacional.

Muitas pessoas gostaram da ideia, nos convidaram para ir à Europa, à América do Norte. Esperamos que possamos conseguir ir, também, à América Latina muito logo. Ao Brasil a gente irá, espero, faz parte de nossos planos, de toda forma. A Caravana conseguiu criar atividades para os artistas que não tinham mais nenhuma atividade, a gente conseguiu transmitir a mensagem, conseguimos juntar os artistas do norte com aqueles do sul do Mali para cantarem a paz juntos, enquanto o país em outros lugares, está despedaçado e a sociedade está dilacerada. A Caravana continuou ganhando, desta forma, força no caminho, a gente viu resultado e as pessoas viram resultados ao nos apoiarem (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017) O percurso da Caravana de 2015, pode ser visualizado, graficamente, a seguir.

Figura 6. Cartaz da Caravana da Paz com percurso no Mali e no Marrocos, 2015.

Fonte: culturalcaravanforpeace 202

202 http://www.culturalcaravanforpeace.org/media/?lang=en.

216

A imagem sobrepõe a representação gráfica de uma cartografia, que indica continuidade territorial entre Marrocos, Mauritânia, Mali e Burquina Faso, com linhas- fronteiras mais fortes e visíveis no contorno que define o Mali. Os seis pontos simbolizam os entrelaçamentos, as cidades-cenário de performances, da rede de relações criada pela

Caravana pela Paz. Notam-se semelhanças entre os logos dos Festivais Taragalte e do

Festival au Désert, ambos derivados do grafismo de figuras (cruz de Agadez) da arte em metal tamacheque.

Acredito que a parceria entre os três festivais - o Festival sur le Niger de Ségou,

Festival Taragalte de M’Hamid El Ghizlane e o Festival au Désert representado pela

Caravana pela Paz - construiu-se em narrativas de reconexão entre as regiões saarianas e saelianas. Há, em seus discursos, um apelo às caravanas que interligaram Timbuctu ou

Gao aos centros de trocas do Marrocos. Manny Ansari comentou algumas ideias motoras que se estabeleceram nesse período:

a gente entendeu que podia transmitir a mensagem para todas as partes. Houve parceiros que se aproximaram de nós para passar a mensagem, em relação ao meio ambiente, à gestão ambiental, sobre vários outros temas. Quando fomos aos refugiados, foi a mesma coisa, a gente ia com especialistas sobre a questão de refúgio. Enfim, percebemos que recriamos laços culturais entre Marrocos e Mali, conexões culturais e agora, queremos facilitar a cooperação entre cidades com a ideia de cidades irmãs, não só relações entre artistas. Desta vez, trouxemos representantes de algumas das nossas prefeituras que encontraram aqui, homólogos locais. Há um grande esforço de criar geminação entre Timbuctu e Zagora, Timbuctu e Er Rachidia, Ségou a mesma coisa. Isso levará a novas trocas com formação de outras atividades. Tais como nas geminações, Marrocos manda técnicos para essas cidades, a fim de levar sua experiência e isso deve acontecer nos dois sentidos. Então, esses são novos objetivos que não existiam e que estão sendo desenvolvidos na caravana. (...) Há muita coisa que está se desenvolvendo (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017). A Caravana de 2015, teve duas fases, como mostra a figura que se segue. A primeira na África e a segunda na Europa (Países Baixos, Itália e França). Manny Ansari nos definiu, em uma entrevista acordada em M’Hamid El Ghizlane, os sentidos desse evento itinerante. 217

A Caravana nasceu na dor, pois foi quando o festival se tornou interditado em Timbuctu que nasceu. Nós fomos obrigados a sair de Timbuctu. Era uma catástrofe, você pode imaginar. Nós precisávamos continuar, precisávamos resistir sobretudo, pois essa gente quis interditar a música. Havia uma situação difícil, o país estava à beira de colapso e precisávamos do mundo cultural, dos artistas mais ouvidos, que tiveram sempre um papel na reconciliação entre as comunidades nessa parte da África. Então, precisávamos fazer reviver esta cultura através dos homens da cultura, através os músicos. Precisávamos, sobretudo existir, resistir e dizer que o Festival foi interrompido em Timbuctu, porém, iria continuar de outras formas (Entrevista 14. Manny Ansari, 2017).

A Caravana da Paz esteve em festivais no Burkina-Faso, na Mauritânia, na

Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. A música tamacheque agora percorre os palcos mundiais como música de simbologia da paz e não mais de luta, como a música ichúmar.

Ela segue, porém, sem Tinariwen. Quem são os músicos que hoje compõem a caravana?

Como se dá a escolha dos artistas e em que medida é composta de músicos tamacheque reconhecidos internamente? São questões abertas a serem discutidas.

Figura 7. Divulgação do percurso da Caravana da Paz de 2015 na África e na Europa.

Fonte: culturalcaravanforpeace 203

Manny Ansari declarou que “nós queremos multiplicar esses tipos de atividades para despertar a consciência desses jovens que se unem às forças das trevas e que minam

203 http://www.culturalcaravanforpeace.org/activites/

218 a estabilidade de nosso país”. 204 Isso fica fortemente sugerido no clip oficial com base na canção “Les frères, il faut la paix”, de Sahel Sahara Band - Caravane Culturelle pour la Paix – Salam, realizado durante o Festival Taragalte, em 2016. Dele participaram os músicos: Samba Touré, Cheik Sissoko, Ahmed Ag Kaedi, Mariam Koné, Ben Zabo, Saïd

Jardouj, Issa Samake. 205 Há um conjunto de documentários sob o nome “La Caravane

Culturelle pour la Paix”, com edições entre 2013 e 2017, a exemplo de um documentário, com edição de 2015, de Illili Ag Elmehdi, no qual a mensagem é do “Mali unido” e múltiplo. Talvez não tenha sido apenas o Festival au Désert que deixou de responder aos desafios de um projeto de emancipação. Hoje responde, como muitos, ao anseio pelo retorno da paz.

A Caravana pela Paz deixa na sombra, nas dobras de seus discursos de unidade, uma dolorosa experiência histórica que cabe perguntar se essa forma de reconciliação permite elaborar uma paz de fundamento sólido. O que ocorre com milhares de famílias em seus deslocamentos forçados pelo conflito, pela ausência de escolas e de instituições do Estado, criando condições para uma vida cidadã? Localmente, aponta-se mais uma vez para soluções militarizadas e de força. Como e por quanto tempo viverão no exílio as crianças saarianas do Mali? Benedetti discute o drama complexo de situações de insílio, exílio, desexílio. O exílio produz experiências que, segundo Benedetti (1984), diferenciam-se enquanto exílio (experiência social no exterior), insílio

(exílio/marginalização no interior de um país) e desexílio (possível marginalização após o retorno). A Caravana pela Paz não tem ido além de atos conciliadores, distanciando- se mais e mais da vida das populações de Essakane, Tinassako, Tessalit e outros cenários

204 Manny Ansari, 2017. Ver: https://intelligences.info/article-518-une-caravane-culturelle-pour-la-paix- au-mali.html. Traduzido do original: “nous voulons multiplier ces genres d'activités pour éveiller un maximum les consciences de ces jeunes qui rejoignent le côté des forces obscurantistes et qui nuisent à la stabilité de notre pays”. 205 Fonte; https://youtu.be/PUYsbps0_0I. 219 do Festival au Désert. A quem serve esta caravana e que modalidade de paz está a semear?

Permanecemos (aqui me incluo como geração e membro de uma família que vive ilhada em seu insílio de décadas) na desqualificação, agora culpabilizados pelo próprio desejo de emancipação por uma guerra que não conhecemos o nome, nem a origem. Não dominamos a linguaguem dessa nova geopolítica encenada em nossos desertos.

Continuamos sem escolas, corpos dóceis e domesticados ou corpos rebeldes reduzidos a “grupos armados”, “extremistas” ou “separatistas”.

A marginalização permanece, mesmo que se tenha criado e ampliado uma elite econômica urbana que vive na capital do Mali. Seria ela uma forma de integração? Ou estaria em situação de insílio sem respirar uma cidadania plena assemelhada a das famílias bambara ou mandenca?

Expressão artística aberta a influências – sobretudo nesses contextos de nomadismo e exílio –, a produção musical dos festivais do deserto ainda desenha linhas de esperança. Como o Caribe de Stuart Hall (2013, p.33), mediações que significam os festivais, que devem “renascer da violência e através dela”. A renovação da musicalidade permanece alicerçada em formas poéticas bem sedimentadas e reconhecidas na sociedade tamacheque, move-se para dentro e para fora do deserto, traça rotas rizomáticas. Quais são as novas expressõs musicais e perfomáticas das artes tamacheque? Elas operam experiências sociais ainda mais pluriversais, e ao mesmo tempo, ligadas a seu contexto linguístico, histórico e geográfico, retecendo significados e apontando caminhos para a elaboração do insílio, do exílio e quem sabe, do desexílio.

Acredito que haja uma aproximação entre os conceitos de insílio, exílio e desexílio e a experiência de estruturação de poder apoiado em relações de subalternidade contra a

220 qual a sociedade tamacheque tem desenvolvido formas muito complexas e diversificadas de luta e resistência.

O exílio segue na linha de continuidade de uma marginalização interna, de uma situação caracterizada pelo insílio, isto é, situação de agonia interior de se ver estrangeiro em seu próprio território, reforçando a passividade e a acomodação como consequências da opressão. Exílio é, também, o mote político e simbólico com o qual o Festival au

Désert assentou seu novo programa. Isto após se ver impossibilitado de acontecer em

Timbuctu, devido aos conflitos, à ação do terror e aos descaminhos da governabilidade e gerenciamento do poder central.

O exílio é uma temática recorrente entre os tamacheque desde o período colonial.

No exílio estiveram/estão músicos de diferentes orientações políticas e o próprio festival, desde 2012. Sob a égide do insílio pode-se pensar vivências mais íntimas de parte da comunidade artística tamacheque que, devido à guerra, teve que se deslocar para a capital, como Rhissa Ag Hadani e Bady Ag Aghaly, Aba Ag Amberi ou que foram afetados diretamente pela violência da guerra como Moussa Sidi e Ahmed Ag Keydi, em Gao, entre outros. Quais são as alternativas que desenham pessoas e suas comunidades para dar continuidade histórica ao projeto inicial dos festivais nômades, levando possibilidades e novas configurações de vida e de trocas humanas, artísticas, culturais e econômicas? Essas questões permanecem inspirando as linhas de questionamentos mais importantes desta pesquisa, que tem ambição de rigor intelectual sem abrir mão da sensibilidade e da dimensão existencial.

221

222

CAPÍTULO 4. Festival Taragalte: musicalidade tamacheque além-fronteiras

As diferentes dimensões da cultura nômade formam bases de referências (mesmo para a população semi-sedentarizada ou sedentária) compartilhadas entre numerosas populações saarianas, tais como Wadaabe, Mouros, Kel Tamacheque (no Níger e Mali) e outros Imazighen como os Aït Atta e Drauas no Marrocos. Este é, também, um elo reivindicado pelas atuais sociedades do oásis de M’Hamid El Ghizlane (antes, Taragalte) no sudeste do Marrocos e das regiões de Azawad, no norte do Mali, principalmente, de

Taudani, Essuk, Timbuctu ou Tessalit. Existem muitos elementos históricos e culturais em comum no Saara, em seu meio ambiente e cultura, cujos fundamentos assentam-se majoritariamente no pastoralismo, na apropriação coletiva da terra - considerada bem comum de uma linhagem - com partilha de território negociada e sem fronteiras rígidas.

Ibrahim Sbaï, codiretor desse evento cultural, considera que

a gente vem de uma mesma cultura nômade, seja no Marrocos, na Argélia, no Mali ou ainda em outros lugares como Líbia, Chade. Todos temos o mesmo modo de vida, compartilhamos uma mesma tradição. Às vezes a língua se diferencia, a cultura tem sua diversidade, mas é o mesmo modo de vida” (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017). Na compreensão de Ibrahim Sbaï, “o nomadismo é uma universidade, nele tudo se utiliza e tudo o que se encontra é reutilizado, há um verdadeiro compartilhar” (Entrevista

16. Ibrahim Sbaï. 2017). O nomadismo no Saara constitui uma organização social complexa, frequentemente associada ao cultivo das terras mais úmidas (oásis e ueds, terras de cursos temporários de água, na situação saariana), ao comércio marcado pelo transporte transsaariano, atualmente realizado por caminhões ou camionetes 4X4 que, em grande parte, substituíram as caravanas de camelos.

Por este motivo, a sintonia entre a Caravana Cultural pela Paz, simbolizada pelo

Festival au Désert e o Festival Taragalte se fez muito rapidamente, articulando interesses e significados comuns. O Festival Taragalte desejou retomar e revalorizar os sentidos 223 das caravanas como traçados de percursos de ligações históricas, pois, “ao criar o

Festival Taragalte, refletimos bem a fim de fazer algo que tivesse impacto econômico sobre a região, com um evento desenvolvido em torno do turismo cultural”. A Caravana

Cultural pela Paz resultou do trabalho do Festival au Désert, apoiado pelo Festival sobre

Níger e pelo Festival Taragalte, devido às intersecções e interesses convergentes. Em formato de evento nômade, que se ancora em iniciativas assemelhadas, ocorreu pela primeira vez na edição do Festival Taragalte de 2012, com a presença de Tartit, Khaira

Arby e outros. Ibrahim Sbaï valorizou essas conexões saarianas diversas vezes durante sua entrevista e em pronunciamentos oficiais.

Hoje, há possibilidade de organizar uma caravana, mesmo que seja simbólica. É essa a mensagem que a Caravana desejou transmitir, a mensagem da paz, da tolerância e de promoção da cultura do Saara em seu conjunto, seu meio ambiente e cultural (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017). As festas existiam anteriormente, mas, a participação de pessoas de regiões distantes era mais rara, devido, entre outros motivos, à dificuldade de transporte, obstáculos criados pelo fechamento das fronteiras e à falta de acesso à tecnologia de comunicação para sua divulgação. Esse foi um dos desafios para realizar esse projeto de aproximação de culturas, saarianas ou não, favorecendo intercâmbios e trocas entre as populações do Saara e, mesmo, entre nômades de outras partes do mundo. Primeiramente, de acordo com Ibrahim Sbaï, “criamos o festival convidando grupos locais, mas, quando falamos da ideia da Caravana Cultural pela Paz, os artistas ficaram muito felizes e muito entusiasmados” (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017).

O nomadismo foi compreendido como um elo conceitual, associado a afetos que pulsam a partir das paisagens do deserto, forma de vida próxima à natureza, estimulando engajamentos para mobilizar debates. Na visão dos organizadores do Festival Taragalte, os modos de vida alicerçados no nomadismo, desconhecidos ou desvalorizados, mesmo

224 nos países em que fazem parte de suas práticas sociais históricas, implusionaram intercâmbios pioneiros. Muitos ainda pensam que os nômades do Saara vagueiam sem destino certo, andando sem saber para onde com suas bagagens, dimensão que conflita com a ideia de propriedade enquanto espaço fixo e privado. Porém, como a realidade é mais complexa, entremeando filamentos comuns, pois a organização da viveres nômades constitui-se em torno de paisagens e territórios ancestrais, com expressões sensíveis propícias ao meio ambiente, em que práticas de pastorícia, móvel e sazonal, formam circuitos e trajetos de pertencimentos marcados por geografias e histórias culturalmente fundamentais. Essa dinâmica pode ser observada nos Festivais como o de Zalab-labé

(Gao), discutido anteriormente, no qual surgiram fortes atenções e debates relacionados a marcadores culturais na dinâmica de seus tempos, espacialidade e interações.

As interfaces entre territorialidades e experiências humanas, constantemente negociadas e reafirmadas a cada geração, são fortes e entrelaçadas nas culturas saelo- saarianas, mesmo que não seja exclusiva a elas. Muma (2008) analisou a importância da qādiriyyat 206 , juntamente com a influência do rito dos Kunta na África de Oeste, com foco no lugar simbólico de Sidi Mukhtar Kunta, em Azawad (ressaltando que os Kunta se encontram em várias regiões do Saara). O autor considera que “para os saarianos, a comunidade se constitui por um casamento entre a terra e a pessoa”, desta forma o sentido de uma sociedade se faz na intersecção entre espaço geográfico e experiência social humana. Ou seja, constitui-se por dimensões humanas associadas ao mundo animal, vegetal, territorial e mineral.

Os nômades, na visão expressa por Ibrahim Sbaï, são conhecidos por sua capacidade de partilhar tudo que está ao seu alcance, afetando o próprio conceito de

206 Confraria dos cadiritas, fundada pelo teólogo sufi Abd al-Qādir Gīlānī (1077-1166). 225 propriedade que, diferente da visão individualista que fundamenta o acúmulo de riqueza, emerge como bem comum. Sintetizou sua visão ao dizer que “o nômade é um viajante, alguém que se desloca segundo a chuva de acordo com os períodos do ano”, mas vem sendo reduzido pelas condições climáticas e políticas que têm afetado sua região. Desde os anos 1980, “a falta de água, as fronteiras e todas as novas geopolíticas, o espaço dos nômades foi muito reduzido, além disso, a vida se tornou um perigo” (Entrevista 16.

Ibrahim Sbaï. 2017).

Essa visão é recorrente. Clémentine Bougrat considerou que, entre os objetivos do primeiro Festival de Tamanrasset, em 2004, estava a intenção de modificar a noção de um Saara perigoso para os estrangeiros dizendo: “todo deslocamento no Grande Saara

Sul argelino é desaconselhado” (pelas autoridades). Essa ideia do perigo do Saara é antiga, mas desde o início dos anos 2000 tomou outras dimensões, pois no início da colonização europeia na África (iniciada a partir de Argel no século XIX), o Grande Saara e a resistência tamacheque constituíram por muito tempo, obstáculos ao avanço das forças coloniais. Foram os colonizadores que construíram visões estereotipadas das populações do Saara e desse imenso território desconhecido por europeus.

Atualmente, há um grande debate, constante nos festivais da região de M’Hamid, sobre a realidade e a cultura do nomadismo por estar mais e mais fragilizada pelas secas que vem causando a morte de animais. No poema de Mahmoudan Hawad, observamos o lamento da perda de referências do mundo nômade, criada na transformação de seu ethos por uma modernidade que leva o nômade ao exílio.

Olhe As sombras dos nômades desertam os acampamentos... Eles partiram

226

Calçadas de brasa em busca de sonhos esgotados no caminho do exílio Um pilar do mundo desmorona sobre as cidades Cada dia o homem moderno arranca um pouco do teto do universo como a criança que escava a areia sob seu castelo E caem perdidas nas cinzas estéreis as sementes de uma outra verdade Hawad, 1987, p. 73 207

A relação do Marrocos com outras regiões saarianas tem grande profundidade histórica. Este é o caso da região Azawad, pois as caravanas ligavam, em suas idas e vindas, os grandes centros urbanos como Timbuctu e Gao, as minas de e de

Taoudeni e as cidades marroquinas como Marraquexe e Fés, passando por Taragalte

(M’Hamid El Ghizlane), Zagoura e Tafilalt. Manny Ansari enfatizou a importância dos laços antigos que a colonização não conseguiu eliminar completamente. As trajetórias de

Mohamed Aly Ag Attaher deixaram testemunhos e lugares vivos de memória em suas redes de entrelaçamentos. Ele foi líder tamacheque, originário de Timbuctu que percorreu o Marrocos, além da Líbia e Egito, navegando no Saara, em busca de apoio para sua

207 Poema traduzido por mim a partir da versão em francês. 227 vontade de escolarização das crianças nômades, tendo sido preso durante o regime do

Modibo Keïta. Após sua libertação voltou a viver no Marrocos até sua morte.

A Caravana Cultural pela Paz, liderada por seu sobrinho, Manny Ansari, talvez seja possibilite pensar que seus circuitos alcancem modos de continuidade simbólica, entremeando relações culturais, políticas, sociais e econômicas que se renovam na história. Mais uma vez foi pelas expressões culturais, que se reafirmaram os laços que as fronteiras têm dificultado insistentemente. A cultura e a música romperam barreiras contemporâneas e permitiram o reencontro de várias famílias, depois de décadas de silenciamento. Manny comentou sua emoção em estar no Marrocos e o significado que possui, por ser mais do que um país vizinho, “o Marrocos é um país bonito para visitantes, mas para nós, é carregado de história e de lembranças”. Nesse sentido, reaviva memórias e emoções.

Mohamed Aly Ag Attaher foi meu tio então, um grande tio, uma grande personalidade que conheci ainda criança, quando ele estava na prisão de Bamako. Cada final de semana meu pai me levava para vê-lo na prisão. Ele era um velho muito impressionante pelo seu estatuto, pelo seu discurso e depois desse período, eu vinha para visitá-lo aqui no Marrocos (Entrevista 14. Manny Ansari - parte 2, 2017). Os laços históricos, afetivos e familiares são, portanto, múltiplos e densos, “o fato dele estar enterrado aqui no Marrocos é algo significativo para nós. Cada vez que venho ao Marrocos, faço ziyara à sua tumba em Temara. Amanhã mesmo, depois deste festival, irei saudar sua filha Balkis e visitar a sua tumba. Então, como disse, vir ao Marrocos para nós não é somente uma visita, mas é uma peregrinação (Entrevista 14. Manny Ansari - parte 2, 2017). Manny Ansari emocionou-se ao falar de sua última visita ao tio.

A última vez, me lembro bem, vim para visitá-lo em Temara somente um ano antes de sua morte. Ele estava bem fraco. Quando quis sair fez suas benções como você conhece, colocou sua mão na minha cabeça e leu o Alcorão sobre mim. Quando terminou me disse a última frase, me lembro até hoje: ‘saúde as pessoas do Mali, diga para elas ficarem com suas terras e deixarem para nós as nossas dunas’ (Entrevista 14. Manny Ansari - parte 2, 2017).

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Mohamed Aly Ag Attaher tinha convicção de que o Saara deveria permanecer como um território próprio visto sua especificidade geográfica, histórica e sociocultural. Para isto viajou e visitou muitos países no continente, como o Egito de Gamal Abdel Nasser,

Marrocos de Hassane II e Gana de Kwame N’Krumah entre outros. Foi, também, à Árabia

Saudita do rei Fayssal, além de suas idas e vindas à Paris. Sobre a compreensão política de Ag Attaher, Manny declarou seu respeito apesar de terem posições muito diferentes sobre a independência de Azawad, defendida pelo tio: “não estou de acordo com ele no que diz respeito à separação pela qual ele lutou toda sua vida. Ele viveu e morreu com isso, posso testemunhar e reconhecer” (Entrevista 14. Manny Ansari, parte 2, 2017).

Tendo sido o primeiro líder tamacheque a lutar para que as crianças de sua comunidade tivessem acesso à escolarização, criou a primeira escola para as crianças nômades do

Alto-Senegal-Níger que mais tarde se tornou Sudão Francês, Federação do Mali e, finalmente, Mali (CAMEL, 1993; HALL, 2011; LECOCQ, 2015). O ex-presidente do

Mali, Alpha Konaré, fez homenagem a ele em 1994, logo após a informação de sua morte em Temara, Marrocos.

Compreende-se assim o interesse mútuo que alimentou a aproximação entre o

Festival au Désert e o Festival Taragalte. De acordo com os organizadores do Festival

Taragalte “não há distinção entre os povos nômades que vivem no Mali, na Argélia, no

Marrocos, na Mauritânia ou na Líbia. Toda essa gente compartilha o mesmo modo de vida e as mesmas terras. Nós temos muito em comum, o Saara e seu meio ambiente”

(Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017). A cultura e apego a uma noção historicamente profunda de territorialidade constituem hoje, elementos que podem tornar mais porosas as fronteiras estabelecidas na época colonial, reconhecidas posteriormente, nos acordos entre os países africanos. Sbaï argumentou que na perspectiva das sociedades nômades 229 saarianas, a fragmentação e o fechamento do território, são dramáticos. Para o pastor nômade,

é inadmissível que lhes digam que o Saara está fechado. Isso não pode ser porque para ele, se não encontra água ou pasto aqui, ele se desloca para um outro lugar. O que é muito bom na vida nômade é que, um nômade quando se desloca, deixe o lugar limpo. Mas, não é somente isso. O nômade é toda uma relação com a natureza. Ele se pensa como parte dela (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017). Esse bloqueio da mobilidade tem repercussões amplas em diversas dimensões da vida, das relações entre familiares, além de afetarem a compreensão da história e violar direitos. A força que remonta a um longo processo de cerceamento e sufocamento social e econômico, com desqualificação cultural, é poderosa. Hélène Claudot-Hawad (1990), trabalhando sobre a situação dos Kel Tamacheque, assinalou que no bojo da nova geografia recortada pelas administrações coloniais e nacionais, posteriormente, deu vasão a uma estratégia de mobilidade mais ágil e rápida. Esta, contudo, não permite o enfrentamento dos desastres ambientais em territórios com fragilidades naturais persistentes.

A fragmentação territorial impede que, em caso de seca, seja possível percorrer as distâncias necessárias, pois as regiões estão sob o comando de gorvernos diferentes e, às vezes, concorrentes ou com conflitos entre si. A figura a seguir permite perceber sua localização periférica, situada nas proximidades da fronteira com a Argélia.

230

Figura 8. Localização dos festivais Taragalte e des Nômades, M’Hamid el-Ghizlane, Marrocos.

Fonte: nomadsfestival 208 Este é caso da fronteira entre Marrocos e Argélia cujo conflito afeta drasticamente a vida em M’Hamid El Ghizlane, uma vez que se encontra situada a 30 Km de distância apenas, sendo fortemente militarizada. A cidade situa-se em antigo oásis nas proximidades do rio ( ued ) de Drâa. Taragalte foi rica por sua diversidade e seus entrelaçamentos culturais e econômicos de movimentos das seculares caravanas transaarianas. M’Hamid El Ghizlane, o oásis do festival Taragalte, constitui-se como terra cosmopolita, formada por coabitações de grande diversidade de experiências humanas.

Ibrahim Sbaï (Entrevista 16, 2017) relatou que século atrás,

havia em coabitação muitos povos que vieram de diferentes horizontes. Havia fenícios, romanos até os séculos XV ou XVI, havia uma grande comunidade judaica até o século XVI ou XVII com população de vinte a trinta mil habitantes. Havia os amazigh, havia os árabes, e mais tarde havia aqui comunidade de ‘ abid [escravizados na língua árabe]. Isso fez de M’Hamid - sem falar de seu meio ambiente, que é muito rico - um espaço que ofereceu para a humanidade muita coisa e, particularmente, para os nômades que tinham em M’Hamid um carrefour de diversidade cultural. Se a gente fala de M’Hamid, a gente fala de Timbuctu no Norte

208 Ver: https://nomadsfestival.wordpress.com/mhamid-el-ghizlane/. 231

do Mali, de Changuetti na Mauritânia, a gente fala de Tamanghassat, na Argélia. Essas cidades ou oásis, são de fato, centros culturais dos nômades. Eram pontos de caravaneiros na época transaariana. A região do Festival Taragalte (Zagora) possui, igualmente, sítios arqueológicos de grande valor, como testemunham inscrições históricas amazir por meio de um parque de gravuras rupestres e textos escritos em tifinar (LHOTE, 1984; CLAUDOT-HAWAD, 1996). Este elemento gráfico permanece questionando e indagando um melhor conhecimento da história do Saara que do Egito às ilhas Canárias ainda estão preservadas suas formas de incorporação e convergência de vozes moventes (ZUMTHOR, 2010) que se deslocam entre temporalidades e espacialidades de seus narradores.

Figura 9. Inscrições rupestres situadas em Timiderte, Zagora, no Marrocos.

Fonte: Jair Guilherme Filho, arquivo pessoal do pesquisador O nomadismo comporta em si uma tecnologia que auxiliou no conhecimento do

Saara e nas relações de trocas e de comércios transaarianos, pois conforme o professor

Paulo Fernando de Moraes Farias (2004, p.2),

o nomadismo é a única estratégia econômica que permite a exploração dos recursos. Na medida em que grandes confederações nômades passaram a existir, também guias e organizadores de caravanas para comerciantes, estabelecidos no norte, passaram a descer até o sul; mas este fenômeno ocorreu depois da vinda do islã e dos árabes ao norte da África. Isto é, começou de uma maneira sistemática a partir dos anos 800. Já na segunda metade do século VIII, ao redor de 780, havia sinais de tráfego transsaariano, devido, principalmente, a um estreitamento do deserto e a maiores precipitações pluviais, tanto no norte quanto no sul. Existia mais água no Saara, portanto era mais fácil atravessá-lo. Datam desse período essas grandes rotas e os intensos contatos entre o norte e o sul . O Festival Taragalte acontece, portanto, em um oásis que permanece expressão da movência africana, incorporando memórias e conhecimentos das rotas caravaneiras sensíveis ao deserto e à natureza. Ocorre, ao mesmo tempo, em cenário de dramas provocados pelas transformações da história política, que reservou esse oásis saariano,

232 uma situação de margem no sedimento da constituição do Marrocos. Do oásis de Siwa às

Ilhas Canárias, essa dimensão de força e fragilidade do Saara emociona e convida à reflexão.

Édouard Glissant (2005, p. 156) amplia essa percepção ao dizer que, “enquanto não tivermos aceitado a ideia, não apenas através do conceito - mas graças ao imaginário das humanidades - de que a totalidade-mundo é um rizoma no qual todos têm necessidade de todos, é evidente que haverá culturas que estarão ameaçadas”. A experiência no

Festival Taragalte e nos percursos de atividades culturais no Marrocos, abertamente amazir (como em Talioune, Tiznit ou Agadir), integrou-me na vivência de identidades- rizoma e me emocionei em M’Hamid como quem chega em casa depois de longa ausência.

Novas ancoragens dos festivais e da música no/do Saara

O destaque do Festival Taragalte de M’Hamid El-Ghizlane, no presente estudo deve-se a suas diferentes conexões com a música tamacheque contemporânea e, sobretudo, com o Festival au Désert. De sua compreensão emergem outras faces das culturas saarianas atuais, que respaldam argumentações que vou adensando sobre os entrelaçamentos que subsistem, de muitas maneiras, no Saara. Ainda que subsista sua fragmentação por fronteiras e geopolítica de interesses exógenos, além de mais de 60 anos de políticas nacionalistas, promotoras de clivagens.

O Festival Taragalte, sobre o qual realizei um estudo de campo em 2017, foi criado por iniciativa da Association Zaïla. Realiza-se anualmente desde 2009 - quando recebeu o nome de Taragalte Sahara Culture Festival - nas proximidades do oásis M’Hamid El-

Ghizlane 209 , nas dunas próximas da antiga vila Taragalt, coletividade territorial da

209 Outro evento anima a vida cultural da localidade desde 2003: Festival dos Nômades Ver: https://nomadsfestival.wordpress.com/. 233 província de Zagora, região do Vale do Draa, Tafilalet, no Marrocos (SAÂDANE, 2011).

Se M’Hamid El-Ghizlane foi um lugar de partida do comércio transaariano hoje é um apoio para o turismo no deserto. Seu nome é uma referência à planície ocupada por grande número de gazelas.

A Associação Zaïla tem objetivos mais amplos e contínuos. Além da organização do festival, volta-se para a proteção do deserto das regiões de Hamada e de Drâa (entre as cidades de Zagora M’Hamid El Ghizlane) 210 , lutando pela preservação ambiental e pela viabilização do modo de vida local. Zaïla conseguiu, através de seus projetos, agir na proteção e no apoio a produtos locais, com substituição de materiais alternativos aos plásticos, tais como as esteiras de folhas de palmeiras, sacolas criadas a partir de peles de cabras e de camelos, produtos de cerâmica, de madeira, práticas educacionais e de conscientização ecológica voltadas para crianças.

A construção em adobe e tecnologias ancestrais de manutenção dos palmeirais, como a construção e manutenção de poços foram, igualmente, alvo da atenção da

Associação Zaïla. Houve importante luta contra a circulação de veículos motorizados nos lugares essencialmente reservados à pastorícia nômade, protegendo, assim, as reservas de

água e os rebanhos 211 , somados a lugares sagrados, como o oásis de Oum Lâalag (duna de Lâabidliet), situado no Parque Nacional do Iriqui, criado em 1994.

O diretor atual, Ibrahim Sbaï destacou que no ano de 1999 “era a primeira vez que os bivouacs de M’Hamid El Ghizlane recebiam turistas” (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï,

2017), reforçando a compreensão de que o Festival Taragalte se constitui a partir de uma atividade cultural criada na década de 1930, o Mussem 212 Sidi Khalil (MORGAN, 2017;

210 Região de Ouarzazate, sul do Marrocos. 211 Na região transitam muitos carros 4x4 devido ao turismo. 212 O termo significa festival, organizado em homenagem a um santo em contexto amazigh.

234

SBAÏ e SBAÏ, 2016). Tal festividade local foi reconfigurada para favorecer, também, o turismo por iniciativa da Associação Zaïla, fundada por Labbas Sbaï 213 , que reside atualmente na Suíça. Como irmão mais velho dos atuais organizadores, diretor e codiretor, do Festival Taragalte, Labbas Sbaï desejava viabilizar o turismo em sua cidade natal, começando suas atividades com a organização de caravanas para turistas e a construção de acampamentos ( bivouacs ), nas dunas de M’Hamid El Ghizlane, em

Chegaga e redondezas.

Labbas Sbaï, médico e ativista cultural da região de M’Hamid El Ghizlane, que estudou na Suíça onde realizou sua carreira profissional, decidido a contribuir ao desenvolvimento da sua região, investiu, principalmente, no turismo ecológico. Desde o início de 2000, mobilizou uma série de denúncias de corrupção na província de

Ouarzazate, insurgindo-se contra as consequências, para a população, do tráfico de cocaína no sudeste marroquino. Tratava-se, sobretudo, do comércio de armas e de cigarro destinado ao continente europeu vindos da América Latina. Segundo Labbas, essas atividades se beneficiavam da cumplicidade de políticos, altos funcionários e oficiais do exército. Nesses embates terminou sendo preso duas vezes, em 2006 e em 2010. Como teve apoio de um grupo de militantes da região, de outras regiões do Marrocos e de países como Suíça, permitiu sua liberação (SBAÏ, 2010) 214 .

Os irmãos Sbaï são filhos de El Hadj Mohamed-Cheick Sbaï, membro conhecido da resistência anticolonial marroquina e companheiro de Mohamed V, na luta pela libertação do Marrocos. Importa sublinhar que após a independência, o rei marroquino fez visita especial, no dia 25 fevereiro de 1958, a M’Hamid El Ghizlane. Naquela ocasião declarou: “nossa vinda aqui significa que a partir de hoje não há mais norte e sul a não

213 http://mohamedcheikhsbai.com/le-combat-du-dr-labbas-sbai-pour-un-tourisme-responsable/. 214 Ian Hamel. Ver: http://mohamedcheikhsbai.com/le-combat-du-dr-labbas-sbai-pour-un-tourisme- responsable/. 235 ser como questão geográfica simplesmente, haverá o Marrocos unido”, segundo o jornal marroquino al ‘Al‘ahd 215 .

Com a iniciativa de Labbas Sbaï de organizar viagens ao Saara para levar turistas da Suíça e de outros países europeus, mobilizando desejos de vivência de emoções no deserto com acampamentos e passeios nas dunas, em 4X4, a região de M’Hamid El

Ghizlane passou a integrar o circuito do turismo internacional. Labbas desejou, ainda, enfatizar seu engajamento na promoção do turismo como parte da luta contra o tráfico

(LABBAS, 2010). Para Ibrahim Sbaï, havia a necessidade de “desenvolver o turismo cultural sustentável e durável em torno de eventos de promoção da cultura nômade. Então, organizamos de uma forma tradicional, conforme o mussem , convidando grupos locais, porque o evento era destinado, principalmente, à população local”.

A adesão da população local ocorreu, sobretudo por parte da juventude que percebeu a importância da criação do evento cultural para trocas e intercâmbios internos, para promover encontros com pessoas do Marrocos, de outras nacionalidades e até continentes. O projeto do Festival Taragalte, que logo conseguiu apoio de associações de países europeus, como os Países Baixos, foi proposto como forma de valorizar competências e habilidades locais. A presença dos irmãos Sbaï, no Festival Nyon, foi decisiva, pois o foco foi consagrado ao Saara, em sua edição de 2007.

Em 2007, nós tivemos a chance de conhecer na Suíça um festival internacional, diria mesmo que é um dos maiores festivais no mundo, se chama Paléo Festival Nyon e que tem os mesmos princípios que nós mesmos, mas numa escala maior, pois recebe mais de cinquenta mil pessoas. Mas, sua abordagem e a ideia de proteção do meio ambiente são muito importantes. Isso nos ajudou a organizar um festival em pleno deserto, mesmo sendo em um contexto mais frágil porque, antes de tudo, é preciso pensar no meio ambiente (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017).

215 http://www.sahara.gov.ma/blog/visite-historique-de-feu-sm-mohammed-v-a-mhamid-el-ghizlane- illustration-de-lattachement-indefectible-populations-provinces-sud-a-roi-a-patrie/.

236

A conexão com o Festival Paléo Nyon de Suíça, abriu portas e inspirou a criação do

Festival Taragalte. Foi ocasião para que os participantes de M’Hamid El Ghizlane encontrassem outros vários grupos de diversas regiões do Saara, como o caso de

“Tinariwen, o mais famoso grupo tuaregue, Tartit e de Malouma Mint Meidah da

Mauritânia, outro grupo que veio da Argélia, outro da Tunísia, do Egito” (Entrevista 16.

Ibrahim Sbaï. 2017). A presença de grupos oriundos de várias nacionalidades, mas com forte presença de originários do Saara e do nomadismo como elemento comum, foi importante para que Labbas Sbaï e seus dois irmãos mais novos, Halim Sbaï e Ibrahim

Sbaï, conseguissem elaborar a proposta e realizarem um sonho. Ibrahim ponderou que

“para um nômade, o sonho é apenas e simplesmente, que não existam fronteiras”.

A população de M’Hamide El Ghizlane, construiu-se na ancoragem de sua ancestralidade, na atualização de memória de antepassados na referência ao nomadismo, que continua a possuir grande força afetiva e de identificação para eles, como para muitos outros saarianos. As expressões culturais são, então, mobilizadoras de emoções, apelando a realizações presentes e futuras. Conforme Sbaï, “para nós isso é importante hoje, veicular realmente nossa mensagem através da cultura. É essa mensagem que queremos passar. Um nômade segue na direção da água, para onde há pasto e, então, não há fronteira. Sua cultura, também, não tem fronteiras” (Entrevista 16. Ibrahim Sbaï. 2017).

No contato e diálogo com as pessoas de M’Hamid, notei uma afinidade cultural e uma vontade de alimentar ligações com Kel Tamacheque ou mouros, particularmente de Gao,

Timbuctu, Kidal, Menaka e Taudeni.

As aproximações e semelhanças com o Marrocos do sul, a partir de Marraquexe, são visíveis nas expressões artísticas. Há temas presentes na música por exemplo, que tratam de questões semelhantes às trabalhadas pelos grupos tamacheque como Tinariwen, 237

Terakaft, Tamikrest, entre outros. O líder do grupo University of Gnawa, o músico e compositor Aziz Sahmaoui sinalizou tais conexões, do seguinte modo:

abordamos os pequenos temas de todos os dias, que são pequeninos, pequenos como nossas crianças, as crianças pequenas que não vão para escola 216 . Por quê elas não vão para escola? Você não vai encontrar na França nenhum garoto e nenhuma garota que não vai para escola! É importante que as crianças frequentem a escola. A inteligência é a inteligência, mas a educação e o saber não vêm assim... É necessário ter mestres, professores, universidades. Nós precisamos de estruturas que criem cérebros. Então, vários são os assuntos que tratamos. Falo, também, da menina pequena ( miskina , , por exemplo, que não tem tempo para ir à escola e trabalha como servente) e do pequeno garoto que trabalha na manutenção e carrega caixas desde os 12 ou 13 anos. Ele não brinca e ele não irá brincar (Entrevista 15. Aziz Sahmaoui. 2017). Em 2009, na primeira edição do Festival Teragalte, estiveram presentes os grupos:

Rgabi e Bounou, de M’hamid El Ghizlane, Guedra de Guelmim e Ahwach, de

Ouarzazate; Rokba, de Zagora, Hassani de Laâyoune e Herma de Tata Gnaoua, de

Essaouira (BILADI CULTURE, 2009). Nesta primeira edição, o título do evento era

Sahara Culture Festival , mas, em 2010, incluiu Taragalte, Sahara Culture Festival

Taragalte, apresentado em língua francesa e árabe. No segundo ano, houve uma observação interessante, pois, o cartaz refere à celebração dos 52 anos da visita do Rei

Mohamed V (em memória) em 1958 e ao convite de participação assinado pela

Associação Zaïla, que organizou o evento entre 25 e 27 de fevereiro. Tinariwen marcou presença 217 , juntamente com outros grupos musicais provenientes do Mali, Argélia,

Mauritânia e do Burkina Faso desde a primeira edição. Já havia, deste modo, interesse e conhecimento da música contemporânea tamacheque, bem antes das articulações comuns criadas três anos depois, a partir da Caravana Cultural para a Paz 218 .

216 Encourager l’scolarisation des enfants aussi une autre relation entre la musique des ishumar et de Aziz. Les musiciens tamasheq ont beaucoup chanté le manque des écoles dans leurs territoires et ils ont fait l’appel au monde d’aider l’scolarisation des enfants nomades. 217 Pode ser visionado em Tinariwen - Taragalte Festival - 'Chet Boghassa', vídeo de Ruben Van Leer e Laurens Hebly. Disponível em: https://youtu.be/43Pp_ypnOrQ. 218 Cf Capítulo 4.

238

Em sua apresentação na página-web da edição de 2011, os idealizadores do festival Taragalte definiram uma alteração de calendário, dizendo

o mundo está em tumulto, crise econômica, primavera árabe, terremotos, tsunami, catástrofes nucleares, inundações, próximas eleições no Marrocos, em todos esses eventos, Halim e Ibrahim Sbaï de Taragalte Concept e da Associação Zaila, decidiram continuar organizando o 3º Festival Taragalte com a data fixada para 11 de novembro de 2011. Eles decidiram mudar a estação de fevereiro para novembro, devido ao clima favorável neste período. Por motivos conjunturais, o festival passou a ser organizado no segundo semestre de cada ano, desde 2011. Foi, igualmente nesta edição, que incorporou à identidade visual do evento, um texto em tifinar (escrita amazir), mostrando um trabalho identitário em construção e revisão. Nas edições anteriores constavam unicamente textos em francês e

árabe, conforme é possível observar nas figuras a seguir, onde há movimentos de concepção entre 2009 e 2011.

Figura 10. Identidade visual das três primeiras edições do Festival Taragalte.

Fonte: Taragalte Festival. Disponível 219 Em 2011, o destaque chama o público diretamente para Taragalte Festival, em francês e tifinar ( ⵜⴰⵔⴰⴳⴰⵍⵜ , Taragalte). Nesse evento, a arte visual refere à 3ª Edição do

Festival Saharien de Culture et Musique, com o francês em destaque - Taragalte Festival

219 Ver: http://taragalte-festival.org. 239

-, insere o inglês (na base do cartaz). Nota-se, igualmente, que as línguas e escritas tamazirt (caracteres tifinar/ tifinaɣ ou ⵜⵉⴼⵉⵏⴰⵖ em neo-tifinar) e árabe tornam-se visualmente secundárias, mas com equivalências no peso atribuído. A partir dessa edição, a dimensão ecológica com preocupação ambiental passou a ser constantemente enfatizada. No cartaz, essa perspectiva fica ressaltada pela imagem da árvore, formada por fauna e flora, com pessoas e sob ela. Sob a árvore o logo com o texto: “Taragalte, a meeting place in the Sahara Festival”, é outra inovação importante para configurar sua proposta conceitual de lugar de encontros nas dunas do deserto.

Houve preocupação, naquele ano, com a proposta de Residência de artistas, que contou com a participação de Oum El Ghaït Ben Essahraoui (Oum Taragalte), cantora marroquina saariana e madrinha do festival; do grupo Tartit, composto majoritariamente por mulheres tamacheque de Timbuctu e por Noura Mint Seymali, cantora, compositora e multi-instrumentista (cora, percussão, guitarra) de Nouakchott, da Mauritânia. Sobre sua ligação com o lugar do festival, Oum Taragalte declarou: “De todo o Saara que visitei em Marrocos, é com este [M'Hamid] que tive uma bela história” (OUM TARAGALTE apud HARIT, Fouâd, 2012, online)220 .

Nessa edição, o festival homenageou Timbuctu, como forma de solidarizar-se com a população diante da guerra e destruição de parte de seus monumentos. Na figura a seguir, a homenagem conta com a presença do grupo tamacheque Tartit.

220 “De tous les Sahara que j’ai visités au Maroc, c’est avec celui-ci [M’Hamid] que j’ai eu une belle histoire”. Ver: https://www.afrik.com/festival-taragalte-2012-un-mirage-musical-en-plein-desert.

240

Figura 11. Imagem da homenagem à Timbuctu pelo Festival Taragalte de 2012.

Fonte: Jeune Afrique, 13 de novembro de 2012.

Seus laços são relatados, com ênfase no argumento da profundidade histórica nas relações intersaarianas. Benjamin Roger, escrevia em matéria de Jeune Afrique:

Timbuctu está em nosso coração, é um símbolo da nossa cultura nômade, diz Halim Sbaï, regente de orquestra de Taragalte. Nós apoiamos as pessoas com nosso próprio modo, convidando artistas desta região para vir e se apresentar aqui em nossa terra. Roger, 2012, online )221 No cartaz de 2012, percebe-se a construção do Saara como lugar de encontro e a valorização do deserto, seus animais, sua vegetação e seus minerais.

Figura 12. Identidade visual da edição do Festival Taragalte, em 2012.

Fonte: Festival Taragalte 222

221 “Tombouctou est dans notre cœur, c’est un symbole de notre culture nomade, explique Halim Sbaï, grand chef d’orchestre de Taragalte. On soutient les gens de là-bas à notre manière, en invitant des artistes de cette région à venir se produire chez nous”. 222 https://lnt.ma/festival-taragalte-sahara-et-culture/. 241

Na figura do cartaz da quarta edição, que mantém o texto em tifinar, o realce recai sobre a gazela ( al ghizlane ), que remete ao nome da cidade, sobre uma grande duna com luz de final da tarde. O elemento gráfico central da gazela, criada com fibra como no artesanato local, está combinando três línguas que se somam de forma fluída, sem traduções, pressupondo o plurilinguismo.

A Caravana, alusão à importância da localidade de M’Hamid nas grandes caravanas transaarianas, foi a temática escolhida para 2013. Taragalte Festival Caravane, fortalecia sua face saariana, conforme a imagem do cartaz que segue. No fundo, percebe- se a persistência do deserto como elemento chave, assumido como local de inscrições gráficas com simbologia amazir, sobre as quais se agregam, cultura saariana, músicas do mundo e M’Hamid El Ghizlane, como Sul do Marrocos.

Figura 13. Cartaz da edição do Festival Taragalte de 2013.

Fonte: Hitradio 223

223 Ver: http://www.hitradio.ma/media/uploads/agendas/b6d655cf79.jpg.

242

Em 2013, o festival recebeu o projeto Azalaï, laboratório nômade, sustentado pela

União Europeia como parte de uma rede de seus grandes festivais a fim de promover cooperações culturais entre Europa e África. Houve um debate intitulado "Marrocos: um carrefour cultural. Experiências e encontros e entrelaçamentos no Saara e mais além” 224 , com o objetivo de realizar uma análise de dois anos de atividades do projeto. Na ocasião, contaram com a presença de Said Tichiti, músico marroquino da Hungria e do italiano

Dimitri Grechi Espinoza. Outra iniciativa daquele ano, iniciou o desenho de uma proposta de “Saara liberado de suas fronteiras geopolíticas”225 , segundo a redação de Maglor, media des Maghrébins dans le monde, no artigo “Taragalte: uma miragem musical em pleno deserto” 226 , de 31 de janeiro de 2015 227 .

A DOEN Foundation, da Holanda, subsidiou o festival de M’Hamid El Ghizlane, juntamente com a Região de Zagora e o Conseil Provincial du Tourisme de Zagora.

Todavia, o mais significativo para este estudo advem que em 2013, Taragalte recebeu a

"Caravana Cultural pela Paz”, iniciativa que discuto no capítulo anterior, dando continuidade simbólica ao Festival au Désert e recriando pontes novas entre Marrocos e

Mali. Em 2014, em seu quinto ano, ocorreu a formação em rede permanente de colaboração, nomeada Caravana Cultural Network, reforçando a edição de 2015, da

Caravana Cultural pela Paz 228 .

Em 2015, a identidade visual retomou diversos elementos do cartaz de 2011. Uma

árvore - cujos galhos são compostos por animais, vegetação e objetos culturalmente significativos como a pequena chaleira -, ergue-se da areia sobre a qual vemos,

224 “Le Maroc: un carrefour culturel. Expériences de rencontres et de brassage au Sahara et au-delà". 225 “Sahara libéré de ses frontières géopolitiques”. 226 “Taragalte: un mirage musical en plein désert”. 227 Ver: http://www.maglor.fr/maglor/index.php?option=com_k2&view=item&id=5344:festival-taragalte- un-mirage-musical-en-plein-desert#sthash.UTgBjYGf.teHYuWAl.dpbs. 228 Ver item sobre o tema no capítulo 2. 243 igualmente, a referência à família, além de tenda, guitarra e animais. Foram destaques musicais da sexta edição: Oum, Malikanw, Mahmoud Guinea, Sandra Amarie, Ben Zabo,

Generation Taragalte, Aziz Sahmaoui, Mallal troupe, Abdallah Ag Lamida, Zeidi Ag

Baba, Chabab Assa, entre outros grupos e artistas.

Na versão de 2016, a temática do Festival Taragalte, que recebeu o subtítulo de

Hino do Saara (Hymn of The Sahara), foi Oásis, fonte de vida no coração do Saara

(L’Oasis, source de vie au cœur du Sahara).

Figura 14. Cartaz do Festival Taragalte de 2015.

Fonte: http://www.maglor.fr 229 Entre 27 e 29 de outubro de 2017, o oásis de M’Hamid El Ghizlane voltou a receber o Festival Taragalte, sendo uma experiência única, a possibilidade de dedicar-me ao entendimento dessas celebrações no deserto ao sul do Marrocos, conhecendo de perto estrelas da música saariana de regiões diferentes da minha, o espaço cultural tamacheque.

A edição de 2017 do festival, teve a mulher como eixo temático - Festival Taragalte

229 Ver: http://www.maglor.fr/maglor/index.php?option=com_k2&view=item&id=5344:festival-taragalte- un-mirage-musical-en-plein-desert#sthash.GdVfEkDx.dpbs.

244

"Afrik Elles". Recorro às minhas anotações de campo para construir a apresentação das atividades, relações, paisagem e ambiente, dos três dias de atividades.

Figura 15. Primeira chamada do Festival Taragalte de 2017.

Fonte: Ver http://www.taragalte.org e http://taragalte-festival.org Durante esse período foi possível, igualmente, dialogar com organizadores e artistas convidados a participar deste estudo, conforme referido na discussão sobre a metodologia. Participei como observador e pesquisador em 2017, adquirindo vivência e diálogo com os músicos, organizadores e participantes, além de moradores da cidade, que foram as metas centrais. Entrevistei número importante de festivaleiros entre artistas, produtores e participantes. Nos três dias, tempo oficial do Festival Taragalte, assisti a apresentações de vários tipos de música de M’Hamid El Ghizlane, desde a música dos grupos locais, as expressões intensas de corpos movendo-se inperceptivelmente e initerruptamente, percurssão e vozes inseparáveis de dunas, céu imenso, abrigando tendas que compunham, juntamente com sua repetição, aquela “totalidade-mundo” singular.

Tais performance-conhecimento, em que o enunciado incorpora-se, lembrando de

Raymond Williams (1978) e, ainda, de Paul Zumthor (2007, p.32) quando realça a ligação entre comunicação poética, performance e o conhecimento: a “performance, de qualquer jeito, modifica conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca”. Entre as performances diárias estavam as dos cameleiros 245 com seus animais treinados e adornados para passeios e para a corrida de 15 km. A arte de M’Hamid garantia uma atmosfera constante e envolvente devido aos movimentos, sons e o visual cuidadoso de homens e mulheres, dançando sobre as dunas à tarde e ao anoitecer.

As artes como modo de aproximação e de trabalho interpessoal, intercultural em relações voltadas para a paz e para a criação estética, foram destacadas pelo músico Aziz

Sahmaoui como fundamento daquilo que é mais significativo em experiências como aquela em M’Hamid, “Nós somos músicos. A gente ama as pessoas, ama a música, ama a diversidade, vivemos nesta diversidade e, para mim, a diversidade é o avenir. Essa diversidade é a paz, também. Essa mestiçagem é a paz” (Entrevista 15. Aziz Sahmaoui.

2017).

A oportunidade de estar num cenário de práticas expressivas (CIDRA, 2002), bem situado, que conecta pessoas, paisagens, histórias, facilita a dialogia translocal e a reconfiguração de narrativas singulares em construções partilhadas. São inúmeras as combinações relacionais e econômicas nessas mobilizações de horizontes multiplicadores de possibilidades com consequências culturais fundamentais (BARBER, 1987).

Sahmaoui, exemplificou essa dimensão dos festivais ao evocar a presença de Tinariwen.

Veja bem, você está em M’Hamid El Ghizlane, no Festival Taragalte, no Marrocos e estamos escutando a música de Tinariwen. Ela (a música de Tinariwen) invadiu o mundo. É esta cultura que aproxima, é esta arte que aproxima, é esta humanidade em nós, é este amor e este coração que bate, tudo isso que faz que a gente ame o outro, porque o outro é bonito. A música de Tinariwen é bonita, os Tinariwen são bonitos, o que eles defendem é bonito, sua causa é justa e eles conseguem ser ouvidos graças à sua arte, graças à sua música (Entrevista 15. Aziz Sahmaoui. 2017). O artista de Marraquexe aborda a questão entre arte e ativismo ao afirmar que há uma estética na música e na causa defendida por Tinariwen, que não se separam na emoção que provoca sua música. Okwui Enwezor (1997), artista e curador da Nigéria,

246 também assinalou o trabalho das artes que expressam diferenças e distinções com grande complexidade, envolvendo gênero, raça, religião, ideologia, classe, trabalho e commodities . Elas são capazes de não cindir linguagens, modos relacionais e existenciais, além de poderem expor outro componente da condição humana que não opera por violências, racismos e xenofobia. As relações entre Marrocos e regiões do Norte do Mali, conhecidas localmente como Azawad, são muito antigas. Noutros tempos, era a passagem das caravanas que circulavam nos seus caminhos e trilhas de várias rotas. Nessas viagens cheias de experiências e aventuras, famílias inteiras ficaram em cidades distantes de suas origens. Nesse mesmo movimento, há pessoas e grupos familiares do sul do Marrocos que afirmam suas origens azawadianas, conhecidas e construídas pelas palavras que escutavam de seus avós.

Durante o decorrer da pesquisa de campo, em outubro de 2017, visitamos em

Zagoura, Mohamed Banour, artista visual e apoiador do Festival Taragalte que desenvolveu pesquisas em direção de uma série de criações que mesclam as caligrafias tifinar ( tifinagh ) e árabe, além de elementos gráficos amazigh, diversos deles muito semelhantes ao estilo tamacheque. Esse entrelaçamento pode ser observado, inclusive, em sua própria assinatura artística.

Figura 16. Tabalhos de Bannour expostos em seu ateliê em Zagora.

Fonte: arquivo do artista 230 .

230 Ver: http://www.atelierbannour.com/images/pages/ph109.htm. 247

Banour abordou temas que remetem ao papel dos Kel Tamacheque, permitindo chegar, aos nossos dias, diversos conteúdos presentes em sua criação, explicitamente identificada com o complexo cultural amazir. Isso porque “eles preservaram e guardaram a civilização amazir na dimensão da língua, no plano da escrita tifinar e no modo de vida”

(Entrevista 24. Mohamed Bannour, 2017). Importante realçar que o termo amazir

(amazigh ) refere-se a um complexo cultural que possui variações em seus falares, diferenciações importantes de paisagens e ambientes em que vivem (como desertos, montanhas, oásis, etc). As identidades coletivas, percebidas em sua flexibilidade, permitem compreender os movimentos de composições e de variações contextuais

(RACHIK, 2016).

A afirmação de identidade comum - entendida como percepção de si mesmo, relações e modo de se definir como seres humanos -, constituiu-se relativamente recente entre os “Berberes do Norte (Imazighen 231 ) e os Berberes do Sul (Imajaghen, Imuhagh,

Imushagh 232 )”, conforme Salem Chaker e Hélène Claudot-Hawad em Encyclopédie

Berbère 233 . Durante o século XIX (caso da Cabília) e início do XX emergiram narrativas e formulações de autoimagem de tipo moderno, ligadas aos impactos da colonização.

Desta forma, na história das construções de identidades eu-nós (ELIAS, 1994) há diferenciações de processos na Cabília, Rif, Ahaggar, N’Ajjer, Aïr, Azawad, Azawagh etc (CHAKER; CLAUDOT-HAWAD, 2001).

231 Nas últimas décadas, o Movimento Amazigh adotou a forma Imazighen para substituir a denominação Berbere, considerada inadequada. 232 Os autores consideraram os Kel Tamasheq como sendo Imushagh. No meu entendimento, existe uma precisão a ser feita, já que Imushagh, como Iwillemenden, Kel Dennig e Kel Ataran, Kel Tinguereguef, é uma categoria (de guerreiros) que compõe o conjunto dos Kel Tamacheque. 233 Resultado do trabalho de cerca de 120 pesquisadores e pesquisadoras.

248

Figura 17. Localização das populações Imazighen.

Fonte: RFI 234

Cabe lembrar que muitos dos tamacheque do Mali e do Níger declaram ter ancestrais vindos de Hijaz (Meca e Medina), como Kel Ansari, Kel Essuk, Ifoghas e Kel

Ghazaf/Aghazaf, alguns passando por regiões do atual Marrocos, Fes, Sigilmassa,

(Tafilalt). Porque,

durante a colonização árabe motivada pela busca de ouro, sobretudo, no Mali até o rio Níger - ocorreu na época sa’dita 235 , durante o tempo do sultão Ahmed el Mansur Azzahabi. Então, ele foi lá com grande número de soldados e ficaram muito tempo. É lógico e, também, uma necessidade biológica, que o homem necessite de mulher. Assim, realizaram casamentos - pela recitação da fatiha -, mesmo tendo mulheres aqui. Fizeram isso para terem direito de se relacionar, pois o Islam dá direito aos homens de se casarem com até quatro mulheres. Por isso eles casaram e deixaram filhos lá e voltaram para buscar os outros filhos. Alguns morreram aqui (Entrevista 24. Mohamed Bannour, 2017).

234 http://www.rfi.fr/hebdo/20180112-berberes-nouvel-an-amazigh-yennayer-imazighen-algerie-patrimoine. 235 Saadianos, Saaditas ou Sa`didas, dinastia marroquina do século XVI, são originários do vale do Dra’a. Abou Abbas Ahmed al-Mansour, sultão que reinou entre 1578 e 1603. 249

Banour referia-se, especificamente nessa passagem, a uma comunidade das regiões de Gao e Timbuctu, chamada Arma ou ar Rumah, descendentes de saldados do sultão Al Mansur al Zahabi (HUNWICK,1999). Há, ainda, outras sociedades que reclamam uma ancestralidade marroquina, sobretudo da região de Sijlimassa, Tafilalt,

Rachidya ect. Nas narrativas orais a legendária rainha do Saara, Tin-Hinan 236 , havia se transferido de Tafilalt para a região de Ahaggar. Além disso, tem-se as linhagens que compõem os Kel Ansar, os Cherifan, entre outros que, também reivindicam ascendência de migrantes ou viajantes vindos de regiões do Marrocos atual. Uma das questões que

Mohamed Banour tratou nesta visita a seu ateliê, foi “a origem da construção de casbás

(kasbah ) que teriam vindo da África, sobretudo das regiões do atual Mali, sendo técnica trazida do Saara graças à Tin Hinan. Então, em todo o vale do rio Dra’a é possível encontrar construções parecidas com aquelas do norte do Mali” (Entrevista 24. Mohamed

Bannour, 2017). Todo esse complexo cenário do presente, mas com grande profundidade histórica, compõe as sociedades saarianas do oeste com seu repertório histórico cultural

(TAYLOR, 2013), cujo florescimento ressoa da tessitura cultural do conjunto de passagens, aberturas e mediações africanas.

Nesse sentido, Banour analisou o retorno recente da valorização da África na política estrangeira do Marrocos, considerando que “não deveria ser somente diplomacia entre Estados, normalmente, o que deveria ocorrer é a volta dos encontros entre os imazighen do Marrocos e imazighen do restante da África, deveria haver uma união entre os imazighen do Marrocos, com os do Mali, do Níger, do Chade, da Líbia e da Tunísia”

236 Em narrativas orais e canções tamacheque (ALBAKA e CASAJUS, 1992), é nome (que significa aquela de se desloca ou que vem de longe) dado a uma mulher que teria vivido entre os séculos 3 e 4, ancestral fundadora (LHOTE, 1984), cuja ossada foi encontrada num túmulo pré-islâmico nas Montanhas Ahaggar. Atualmente encontra-se no Museu do Bardo em Argel.

250

(Entrevista 24. Mohamed Bannour, 2017). Marrocos tem ganho terreno nesse campo, rivalizando com as políticas desenvolvidas por seu adversário histórico, a Argélia.

Mas, no século XX, foram muitas as formas de fragmentação e de apartações entre si, de regiões e sociedades imazighen (imazirrem). Mas, a exemplo do Festival Taragalte, enfraqueceram, sem eliminar o movimento que preexistiu e persistiu independentemente dos Estados pós-coloniais.

Outro exemplo que pude notar neste estudo no Marrocos, foi o encontro do

Movimento Mundial Amazigh, organizado em Taliouin pouco antes da nossa chegada ao

Marrocos. Nesse encontro, uma nova diretoria foi eleita para dar continuidade ao trabalho, tendo por presidente Kamira Nait Sid, da Argélia e, como vice-presidente, Moussa Ag

Assarid, da região de Azawad (Mali). Assim, entendo que permanecem aspirações por parte da própria população, na tessitura desses laços, indicando que não houve ruptura total, apesar de dificuldades e imposições das fronteiras geopolíticas. O Festival

Taragalte, mais que receber artistas e produtores azawadianos e membros da Caravana

Cultural para a Paz, compõe esse cenário de passagens construídas incessantemente, apesar dos obstáculos econômicos e dos riscos por se inserirem em movimentos de contracultura. Não podem assim, ser reduzidos a ideias de vitrine cultural e de rotulações voltadas à fabricação de “uma cultura nômade” de exportação.

De Tessalit a M’Hamid El Ghizlane: Tinariwen retecendo laços

Entre Tessalit e M’Hamid El Ghizlane foram criados trajetos de viajantes pré- coloniais tão intensos que até bem recentemente essas localidades pertenciam a um mesmo circuito cultural e comercial. Nessas rotas havia um movimento orgânico de pessoas e comunidades, interligando identidades comunitárias diversas. Nessas viagens cheias de aventuras e ricas em experiências, criaram-se famílias em cidades distantes de 251 suas origens. No Marrocos encontrei pessoas, durante a viagem entre Casablanca e

M’Hamid El Ghizlane, que são falantes de línguas tamazirt/ tamazight (com suas variantes) e que se declaram imazirren/ imazighen (berberes). Porém, possuem suas origens em diferentes regiões do continente africano, como de Camarões, da Nigéria, do

Mali e outros que afirmam vir do Saara tamacheque. Para estes, a reafirmação de seu pertencimento implica no uso do turbante ( taguelmust ), conforme se faz entre os Kel

Tamacheque, como explicou Ibrahim de Tilouat, guia da Casbá de Glaoui, situada nas proximidades de Ouarzazate.

Vale mencionar, também, as relações criadas por meio dos festivais culturais amazir no Marrocos. Foi nesses espaços que a música dos Ichúmar ficou conhecida no país, principalmente, entre os imazighen do Saara e do Atlas. São conexões e itinerários percorridos pela música tamacheque de Tessalit ou de Agadez, que chegam a Tanger,

Agadir, Zagoura, Fez, M’Hamid, Dakhila ou Rachidita. Mohamed Ag Ahmedou

(Entrevista18. 2017), sublinhou que o sentido do termo akabar (recipiente de leite) que deu origem ao nome Festival Akabar, no Sul do Marrocos, foi retirado diretamente da língua tamacheque. Esse elo não é destituído de significado, indicando, em sua compreensão, o dinamismo dos intercâmbios e da construção de passagens transnacionais, realizadas por meio de diferentes festivais no Marrocos.

Alguns deles, como o Festival ‘id Kharmana de Timtane, Festival Akabar, Festival dos Nômades, Festival de Merzuga, Festival de Ouarzazate, Festival de Sazack, estão mobilizando as sociedades nômades. Estes são “festivais que têm mais relações não somente com o mundo tamacheque, mas, também, com os Mouros. Isto quer dizer, com tudo que somos (Entrevista18. Mohamed Ag Ahmedou, 2017). Para Ahmedou, as comunidades que se denominaram “arabo-tuaregue ” pertencem a um mesmo núcleo cultural, acreditando que a maioria dos habitantes dos chamados “países árabes” no norte

252 da África advém, majoritariamente, de ascendência amazir (Entrevista18. Mohamed Ag

Ahmedou, 2017).

Como foi sublinhado, os festivais enquanto espaços de música em contextos artísticos de expressões entrelaçadas (poesia, tisiway , canções, issuhagh e música , iswat , com instrumentos, como imzad, tehardant, taghanibt, tende , além de dança, erakad, dalol ou awlinkan ), continuam a aproximar jovens de diferentes regiões tamacheque, por meio destas e novas modalidades, como a guitarra dos Ichúmar , criando espaços comuns de experiências. Congrega, ao mesmo tempo, numerosos refugiados, exilados e os deslocados internos dos últimos anos, enlaçados igualmente a forte musicalidade que pode criar e restabelecer novas pontes entre festivais culturais do Saara, a exemplo das conexões entre o Festival au Désert e o Festival Taragalte.

Tinariwen foi convidado ao festival Taragalte de M’Hamid El Ghizlane desde sua primeira edição em 2009. Permanece uma de suas estrelas mais esperadas pelos festivaleiros, sendo um dos grupos renomados do Saara. Quando o grupo da música tamacheque do Adrar (Tessalit, Assuk, Kiadal e Tamnarasset) subiu no palco do Festival

Taragalte, Abdallah abriu o concerto com as palavras: “esta noite, o grupo Taghrift

Tinariwen do Grande Saara, vindo mais precisamente do norte do Mali, deseja a vocês boas vindas, deseja a vocês uma noite [musical] agradável” 237 . Entendemos que

Tinariwen se identificou como pertencendo ao Saara, sendo, portanto, também de

M’Hamid El Ghizlane. Essa perspectiva pan-saariana tem sido afirmação recorrente defendida por Tinariwen ao longo de sua trajetória musical.

Após dar boas-vindas em hassaniya (variante do árabe) para o público marroquino, dirigiu-se ao público amazir em tamacheque, dizendo “A paz sobre todos os

237 و، ا رن ااء اى ل و ة و أن ء ﷲ أو؟ ام و د ا، رو ا ا ااظ ھن آس وادغ د، د ا وا اج دن، اد رو ھ دا. أو؟ أ ﷲ 253

Kel Tamacheque e Imazighen que estão aqui, Tinariwen agradece a vocês por sua presença, por seus turbantes ( tandjatt ) e o modo de sentarem. Vocês têm o reconhecimento de Tinariwen que estão aqui diante de vocês” 238 . Neste contexto, pode se referir ao próprio grupo ou ao sentido da palavra que os identifica, em desertos, pois assim se reconhecem. Em entrevista realizada no Marrocos para o audiovisual de Laurens Hebly

(2009) 239 , Abdallah Ag Alhousseini, compositor e guitarrista, confessou sua empatia com o Festival Taragalte, por ser

neste festival eu encontro o espírito no qual nasci e cresci. Então, confesso que não existem muitos festivais como este. É um festival que será no futuro próximo um dos mais importantes no mundo, pois conseguiu esta forma na primeira edição. Agora, imaginem a segunda, a terceira e quarta, como será? Em meu ponto de vista será um festival muito interessante, incha Allah . Tinariwen iniciou seu concerto com Chet Boghassa , canção que declara que as mulheres de Boghassa jamais irão escutar que eles organizaram um ataque e, depois, fugiram. Depois, foi a vez de Sawt n chet tamachaq (a voz das mulheres tamacheque) sob a voz de mulheres que buscam a liberdade. Estas canções estão no videoclipe de

Tinariwen, do álbum Amassakul n’Tenere (Viajante do Saara), homenagem ao próprio mundo nômade tamacheque, suas caravanas e sua busca de pastagens e terras salgadas para seu rebanho. Andar e viajar no deserto do Saara, passando por seus oásis faz parte do cotidiano, aliás, compõe os cenários do modo de vida saariano. Bravura, códigos de conduta, liberdade e apego aos desertos são seus temas mobilizadores mais intensos.

Interessante ver como Tinariwen modula suas canções para o público do Saara, presentes no Festival Taragalte. Oum Taragalte, a famosa cantora de Marraquexe, juntou-se a

Tinariwen no palco e improvisaram um concerto homenageando o Saara.

238 Ver: http://www.tv5monde.com/cms/chaine-francophone/Musique/p-14237- TINARIWEN.htm?artiste=505 . 239 Festival Taragalte de M'hamid Elghizlane, Disponível em: https://youtu.be/WHPNwYCOWNw.

254

Vários grupos de jovens músicos emergentes das regiões de M’Hamid El

Ghizlane, Zagoura, Ouarzate foram inspirados por Tinariwen. Entre eles, o grupo Jeunes

Nomades e Génération Taragalte foram apoiados por Tinariwen e até registraram seus primeiros álbuns com participação do famoso grupo de Tessalit. Outra importante consequência da aproximação entre o Festival Taragalte e Tinariwen foi a gravação de uma grande parte de Elwan, elefantes 240 , o último álbum de Tinariwen (ver figura da capa logo a seguir), nas dunas de M’Hamid El Ghizlane (a outra parte havia sido rodada no deserto da Califórnia em 2014, durante uma turnê 241 ).

Com Elwan, Tinariwen recebeu seu segundo Grammy Award Music (2018). Nele o grupo canta a nostalgia, o dano irreparável de um território e uma utopia de país que não foi alcançada e se perdeu. Abdallah Ag Alhousseini foi enfático ao declarar em uma entrevista para ARTE jornal 242 , que

nosso tenere [deserto], transformou-se em um campo em que os elefantes se combatem. Esmagam tudo o que está em torno deles. Nosso novo álbum nomeado elwan fala muito da atual situação do povo tamacheque, de seu sofrimento e de sua marginalização. A situação na nossa terra é muito delicada, pois nela estão as forças das Nações Unidas, o exército francês, os islamitas, os exércitos do Mali e da Argélia, mesmo a Alemanha está envolvida nisso, participam neste negócio. Então, todo este mundo que nós não sabemos porque, disputam entre si sobre nossa terra”. A chegada dos Tinariwen a M’Hamid El Ghizlane, um dos oásis do rio Drâa (cujo leito secou devido à construção de uma grande barragem em Ouarzazate), criou uma efervescência musical entre os jovens sahraoui e amazigh, cujas criações são identificadas com sua história e regiões. Esse movimento amplia uma diversidade cultural já existente na criação musical, num dos mais importantes carrefour de caravanas até a colonização.

240 Metáfora significando as milícias e os exércitos, que destroem o respeito, a solidariedade, os valores essenciais por onde passam (BELHOUARI, 2016 online ). 241 A primeira parte de oitavo álbum do grupo Tinariwen foi registrada no Studio Rancho de la Luna situado no parque nacional californiano de Joshua Tree, aproveitando alguns dias de sua turnê. 242 ARTE jornal. Entrevista e concerto Tinariwen, 2017. https://www.arte.tv/fr/videos/074777-000- A/melancolie-et-revolte-dans-le-dernier-album-de-tinariwen/. Duração: 2min04seg. 255

Para os jovens grupos musicais de M’Hamid El Ghizlane como Génération Taragalte,

Jeunes Nomades, Daraa tribes, Tarwa N-Tiniri entre outros, Tinariwen “são heróis em todo sentido da palavra. Tanto é assim que os jovens da zona estão retomando suas músicas de/em outras partes, se retoma Rolling Stones ou Led Zeppelin” (BELHOUARI,

2016) 243 .

Figura 18. Álbum vencedor do Grammy de 2018, gravações em M’Hamid El Ghizlane.

Fonte: pbs.twimg.com 244

Além da inspiração artística das canções, somam a estética pessoal e a performance de palco, pois muitos desses jovens apropriam-se das performances dos membros de Tinariwen: o modo de vestir, de dançar e mesmo pentear seu cabelo, como o de Ibrahim, ou o estilo de Abdallah de usar o turbante e sua forma de dançar. É uma verdadeira conexão que se faz nas trilhas de Tinariwen entre localidades distintas, como

Tessalit, Assauk, Kidal no Mali, M’Hamid El Ghizlane, Ouarazazate e Zagora no

243 BELHOUARI, Sabrina. Tinariwen, la voix du désert, sort son nouvel opus, 2016, o nline . Disponível em: https://leconomiste.com/article/1004531-tinariwen-la-voix-du-desert-sort-son-nouvel-opus. 244 Ver: https://pbs.twimg.com/media/DQOAvPYWsAMCCY8.jpg:large.

256

Marrocos ou Tamanrasset na Argélia, (caso de Imarhane e Kader Tarhanine). Vale lembrar que Tinariwen foi criado por jovens das regiões de Adrar (norte do Mali), de

Ahaggar, Azjer (sul e sudeste da Argélia) e Fezzan (sul da Líbia). Então, é uma forma de construir um pertencimento saariano que não se restringe aos fragmentos deixados pelas divisões das fronteiras impostas, conforme disse Abdalla, de Tinariwen, na abertura da primeira edição do Festival Taragalte, referida anteriormente.

Na viagem percorrida entre Casablanca e M’Hamid El Ghizlane, foi possível apreciar a paisagem e muitas cidades, vilas e aldeias marroquinas e perceber sinais da presença do grupo Tinariwen em restaurantes e hotéis. Sua música é tocada em muitos lugares. Os fãs do grupo Tinariwen, no grande sul do Marrocos, afirmaram ter escutado o álbum Elwan antes mesmo de seu lançamento para o público. Isso ocorreu durante o

Festival Taragalte e, mesmo antes, puderam acompanhar a gravação do próprio álbum nas dunas de M'Hamid El Ghizlane. Vários músicos e moradores participaram dos ensaios que duraram quase um mês, segundo vários deles, como Hassane, Aziz e Ali Laghfiri do

Bivouac les Etoiles. Os clipes deste álbum foram registrados nos bivouacs

(acampamentos) próprios do Festival Taragalte, em março de 2016.

Os termos Azawad, Timbuctu e Gao assumiram uma dimensão quase mística, muitos jovens de M’Hamid os escutaram nas narrativas de seus avós e bisavós. São nomes de lugares que conheceram ou de onde vieram. Tudo isso criou uma empatia entre

Tinariwen e a população de M’Hamid El Ghizlane. De certa forma, existe também no presente diversos componentes da experiência que os aproximam, como a perspectiva de resistência à marginalização nos seus respectivos países, o apego ao deserto, às marcas do nomadismo, às dunas e à paisagem, como ao modo de vida. A música cria campos de circulação de histórias em comum. 257

Cantadas em ritmos de blues , rock , entremeadas aos sentimentos e ritmos ancestrais, música e poesia levaram a voz de povos do deserto de um canto a outro do

Saara e, também, para além-fronteiras, alcançando de modo admirável pessoas de outros continentes.

Nesse espaço de expressão criativa, de processos de transmissão e pensamento em ação, percebe-se conhecimentos e aptidões comuns, de perspectivas e histórias culturais distanciadas, mas que se reconhecem pelos sons, gestos e movimentos corporais e, portanto, sociais. Ou seja, nas dimensões visíveis da música - “como experiência real do que poderia ser o ideal”, como afirmou Simon Frith (2003), realizam conexões imaginativas entre etnicidades e sons, conjugados na construção e partilha de sentidos.

Festivais e cenários de expressões amazir do Marrocos

O Marrocos talvez seja o país que mais tem mobilizado a cultura dos Festivais, enquanto forma de encenar o debate sobre as identidades, ou redes identitárias, que se reivindicam amazir ( amazigh ). Estas ainda se confrontam com dificuldades de se estabelecerem noutros espaços. Deste modo, associaram cultura e turismo com mais ou menos politização e trabalho sobre saberes locais e sobre o meio ambiente para erguer uma plataforma fundamental, pela qual dramatizam o frágil, mas adquirindo importante reconhecimento nos últimos anos. Entre seus festivais, cabe realçar: o Festival Twiza de

Tanger, o Festival de Fès de la Culture Amazighe, o Festival Internacional do Açafrão de

Talioune e o Festival Timizart d’Argent, como o Festival Imaachar, ambos de Tiznit 245 .

Contudo, a mobilização em torno de festivais, realizou-se em conexão com a busca de reconhecimento da língua.

245 Não se trata aqui de uma listagem exaustiva de festivais amazigh, mas de trabalhar com situações emblemáticas para contextualizar a discussão deste estudo. Além da pesquisa bibliográfica, foram destacadas, principalmente, situações observadas em estudo de campo.

258

Do mesmo modo foi a língua que se tornou um dos elementos articuladores das recentes relações entre as sociedades do mundo Amazigh 246 , principalmente da valorização da escrita tifinagh 247 , mantida como prática social entre os Kel Tamacheque.

Isto permitiu a muitas pessoas se declararem publicamente como imazighen (imazirren), após um longo e conturbado processo. A origem desta escrita segundo Marcel Cohen

(1958), é desconhecida, porém, entende que “as tentativas de a derivar dos hieróglifos egípcios, de alfabetos sul arábico, grego, ibérico e até fenício-púnico não forneceram provas decisivas”. Isto permite pensar que a escrita tifinagh é uma escrita local amazigh,

(logo, africana) que existia antes de todas as invasões e colonizações que as costas africanas conheceram desde os gregos. Dassine Oult Yemma, música e poetisa esclareceu a importância de tifinar, comparando seus sinais fundamentais semelhantes a bastões, cruzes e pontos aos elementos do cotidiano no deserto, como pode ser observado a seguir.

Figura 19. Quadro de letras tifinar/tifinagh.

Fonte: Cátedra Internacional de Cultura Amazigh 248 A poetisa do Ahaggar estabeleceu relações entre escrita e vida, entre seus sinais e sentidos existenciais comuns, entre emoções, paisagens e a construção de si no deserto:

Nossa escrita, a nós do Ahaggar, é uma escrita nômade porque ela é toda [feita] por bastões que são como as pernas de todos os animais dos

246 É importante lembrar que a língua tamazight (ou tamazirt) foi reconhecida como língua nacional em 2011, ao lado do árabe e do francês. 247 Ressaltando que a língua tamacheque é uma das variantes do conjunto de falares tamazirt (tamazight/ tamaɣirt). 248 Ver https://www.fundea.org/es/noticias/taller-escritura-tifinagh. 259

rebanhos, as pernas de homens, as pernas de mehara 249 , de zebus, de gazelas, de tudo o que percorre o deserto. Em seguida, as cruzes indicam a direção à direita ou à esquerda. Os pontos, você vê - que há muitos pontos -, eles representam as estrelas que nos guiam à noite, porque nós, os saarianos, nós só conhecemos a estrada, a estrada que é guiada alternadamente pelo sol, e em seguida, pelas estrelas. Nós partimos do nosso coração e rodamos em torno dele em círculos cada vez maiores para enlaçar outros corações em um círculo da vida, como o horizonte em torno de seu rebanho e de você mesmo. Essa vida que emana da poética da escrita tifinar, guia as estradas dos retornos entre

Azawad e M’Hamid, entre Azawad e outros territórios imazirren. Sua importância está também na memória e nas narrativas que se somam e se sobrepõem em seus sinais, em suas letras. Essa presença da escrita tifinar, lentamente incorporada nos materiais de comunicação visual do Festival Taragalte, pode ser que signifiquem a gradativa compreensão dos círculos da vida como horizonte imaginativo partilhado de que falou

Dassine. Essa mesma escrita que soube guardar sua aura, no sentido de Walter Benjamin

(1980), orientou uma parte significativa da luta político-cultural no Marrocos, na afirmação de sua composição plural. Nos dias atuais, existem ateliês de caligrafia, arte, além de uso oficial para sinalização de ruas e instituições públicas. Na figura que segue, do alto para baixo, vemos o artista Moulid Nid Ouissadan, diante de seu ateliê em

Taliouine, uma tela com letras da escrita amazir e o Camping Awwal situado na Cascata de Ouzoud, usando como símbolo a letra Z (yaZ).

Figura 20 . Presença da tifina r no Marrocos.

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador

249 Camelo.

260

Na ideia de preservação de seu patrimônio cultural - imaterial e material -, os imazirrem do Marrocos, organizaram vários festivais culturais, sobretudo de música. O festival Timizart de Tiznit, conhecido como Festival da Prata, é uma manifestação de valorização deste saber-fazer ancestral amazir. Ele visa trazer para cena, as manifestações ligadas às identidades e práticas imazirren, transmitidas e construídas como símbolos civilizatórios. Segundo o comunicado da Associação Timizart, um dos principais objetivos deste festival foi contribuir para o desenvolvimento econômico da região, por meio do turismo cultural, além da valorização de saberes, como a tecelagem e os bordados

(de tapetes e de roupas tradicionais). Devido à repercussão da primeira edição em 2010, a Associação Timizart, juntamente com outras organizações da sociedade civil de Tiznit, organizou a segunda edição em 2011, com apoio da prefeitura, da Câmera do Comércio e da Direção de Artesanato desta municipalidade. O tema motivador foi: “Jóias de prata: identidade, criatividade e desenvolvimento”. Por esta razão, ficou conhecido pelo nome de Festival da Prata (Festival d’Argent), e assim continuou até sua oitava edição, em 2017

(TERRIER, 2017). Os expositores são de diversas regiões marroquinas. Do programa constam ainda conferência e concertos.

Um outro evento renomado é o Festival de Fez da Cultura Amazir ( Festival de

Fès de la Culture Amazighe ), cuja motivação geral está na salvaguarda das culturas do norte da África, com ênfase nos elementos comuns das populações imazirrem

(imazighen ). Na sua 13ª edição, em 2017, teve como tema principal: amaziridade

(amazighité ), diversidade cultural no contexto de extremismos.

O Marrocos passou, nos últimos anos, a reconhecer sua pluralidade cultural e suas diversas etnicidades. Segundo Mohamed Ag Ahmedou, os imazirren, não estão mais camuflando sua cultura, aliás “eles organizam palestras e conferências de espaços do

Estado marroquino, além de hotéis” (Entrevista18. Mohamed Ag Ahmedou, 2017). Este 261 reconhecimento cultural aberto e oficial está muito frágil em outros países, como Argélia,

Mali e Níger. Ag Ahmedou considerou que essa dimensão de “liberdade de expressão” como fez o Marrocos, é “irrepreensível”. Os debates no Marrocos entre árabes, imazirrem e judeus se realizam de forma tensa, mas, mesmo assim foi possível criar espaços de debates abertos, principalmente, quando associado a eventos culturais como no âmbito das conferências do Festival de Tiznit e Taragalte. Talvez este seja um fato de motivação política que favoreceu a intensificação da organização de festivais em várias regiões do

Marrocos. Esses festivais multiplicaram-se desde a Constituição referendada em 2011 250 .

O Festival Twiza de Tanger, organizado por Ilyas El Omari, presidente da

Fondation du Festival Méditerranéen de la Culture Amazighe de Tanger, tem proposto debates com o objetivo de defender a pluralidade das culturas, tradições e línguas do

Marrocos. Nesses encontros, disse Ag Ahmedou, “havia imazirren, árabes, judeus, não apenas marroquinos, mas pessoas de outros países, como do Egito, da Tunísia e da Líbia

(...) que tratavam de temas como islã e amaziridade ” (Entrevista18. Mohamed Ag

Ahmedou, 2017).

Mas do que tratam quando fazem referência a movimento amazir? Creio ser fundamental, neste momento, retomar rapidamente essa questão, sem a qual a compreensão de grande parte dos festivais do sul do Marrocos, incluindo o Festival

Taragalte, fica prejudicada. A ideia de movimento Amazigh, rompeu o tabu e o silêncio, passando a ser tema de debates e conversações no início dos anos noventa. Isto ocorreu após a publicação do famoso Manifesto de Agadir, em 1991, que reivindicou o reconhecimento da língua e cultura Amazir como parte integrante da identidade marroquina. Segundo o jornalista e pesquisador do Centre Jacques Berque de Rabat, Azzi

250 Ver: http://www.emb-marrocos.pt/cache_bin/XPQdpKQXX1775kSkFEXmqx8ZKU.pdf.

262

Boujemâa, que assina Yuba Wis-sin, o manifesto foi resultado do trabalho das primeiras associações amazigh: Amrec, Tamaynout, Universidade de verão de Agadir. Segundo o pesquisador,

o regime de Rabat, de fato, modelou o conceito de identidade nacional na homologação cultural e na suposta uniformidade árabe-muçulmana de seu povo. A independência política (1956) alcançada, temendo que a heterogeneidade étnica e linguística pudesse dividir e desestabilizar os aparatos emergentes de poder, assegurou sua total marginalização no nível constitucional e no da memória histórica (Yuba Wis-sin, 2015). 251 O Movimento Amazigh tomou como símbolo a letra yaZ (Z), símbolo da liberdade, como emblema do movimento. Desde então, a presença da escrita tifinar nas artes visuais ficou cada vez mais forte. Há grande número de artistas que reelaboram as letras do alfabeto tifinar, tratadas como símbolos de grande significação social. Na figura a seguir Moulid Nid Ouissadan - ativista, poeta, artista visual e calígrafo – apresenta uma de suas interpretações visuais. Esse fato repercutiu num conjunto de eventos culturais e, de forma direta, na programação de festivais.

Figura 21. Letra yaZ, símbolo da liberdade, de Moulid Nid Ouissadan.

Fonte: molidaz 252

251 “I berberi e il Marocco al tempo delle rivoluzioni arabe”. DEApress libera e independente, 18 maio de 2015. Disponível em: http://deapress.com/internazionale/17999-che-cosa-e-il-movimento-amazingh.html. 252 http://molidaz.blogspot.com/2012/03/azasymbole-de-la-liberte-chez-les.html. 263

A programação de muitos festivais, portanto, revela-se bem mais complexa que encontros exclusivos de trocas e criações musicais. Incorporaram a ecologia e o debate de questões sociais e culturais, além das artes visuais como forma de mobilização política.

Moulid Nid Ouissadan é originário de Taliouine, da cidade amazir da província de

Taroudant (região de Souss-Massa) que anualmente sedia o Festival Internacional do

Açafrão, organizado desde 2007. O festival tem como objetivo principal a promoção da produção agrícola local, principalmente o açafrão 253 , cultivo com forte presença das mulheres, do plantio à colheita. Uma verdadeira festa de cores e flores que enriquecem a culinária marroquina e mundial. Estive em Taliouin com o objetivo de conhecer o ateliê de Moulid Nid Ouissadan e entrevistá-lo durante o festival, entre 3 e 5 de novembro de

2017.

Figura 22. Moulid Nid Ouissadan no espaço expositivo, Taouline, 2017.

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador

253 Há em Taliouin, uma cooperativa local onde se compra diretamente açafrão (chamado de ouro vermelho), como eles chamam mostrando a importância desta planta na região, econômica e socialmente. Os marroquinos usam açafrão para tratamento de várias doenças entre os quais, o câncer.

264

A criação de Moulid compõe um repertório da ideia de Símbolo da Liberdade

Amazigh, segundo ele mesmo. Contou que, no início, escrevia poesias em árabe, mas que desde 2003, decidiu criar em sua própria escrita tifinar, integrando sua arte à história cultural amazigh. Explicou que

escrevia com a tinta artesanal tradicional amazigh, com açafrão natural, cabelo de ovelha grelhado macerado em água. Talhava minhas canetas/ pincéis usando uma planta da beira do oued . Depois disto me movi em direção ao uso de tintas industriais que me permitem mais liberdade na execução. Faço regularmente a exposição da minha caligrafia na Casa da Açafrão e trabalho em meu estúdio, em Taliouin. Tiznit e outra cidade do circuito cultural amazir, incontornável por ter sido base da resistência amazir e cenário do Festival Imaachar, e centro de produção de prataria e de joias amazir. Nos centros comerciais da cidade, é possível encontrar objetos de várias regiões do amazir, inclusive tamacheque. Estive presente no evento Relações Culturais

Entre Países Africanos no Sul do Saara e o Marrocos, congresso que discutiu práticas culturais e religiões. Um videoclipe do grupo Tinariwen foi a cena de abertura do congresso, permitindo perceber o alcance desse trabalho musical na tessitura de dimensões comuns dos desafios contemporâneos, conhecidos tanto na sociedade tamacheque, como em diferentes núcleos do movimento amazir do Marrocos.

Além do Festival Timizart d’Argent (da Prata) 254 que, em 2018 realizou sua nona edição, existe, igualmente, na província de Tiznit, o Festival Tifawine de Tafraout, que já realizou 13 edições 255 . O tema central deste ano foi “Hino à arte em meio rural”. A rica programação incluiu um dia dedicado ao ensino de elementos da língua tamazight, com concurso de ditado, uma série de noites com concertos musicais e de dança, como a tradicional Ahwach, além de Gnaoau, Reggada, Ahidouss ou Dekka Marrakchia.

254 Ver: http://aujourdhui.ma/culture/festival-timizart-dargent-du-21-au-25-juillet-a-tiznit 255 Hymne à l’art en milieu rural. Disponível em: https://www.portailsudmaroc.com/actualite/11918/festival-tifawine-de-tafraout-hymne-lart-en-milieu- rural. 265

Exposições e lançamentos de livros, espaços para autografia de obras se somam à dramatização de uma cerimônia de casamento amazir (tbourida ), competições esportivas, desfile de vestimentas antigas e degustação de pratos locais, em volta de fogo.

O Festival Imaachar de Tiznit está ligado a expressões rituais antigas, segundo

Jame’a Benedir (2007), conhecido, também, como Carnaval Imaachar. Os habitantes acreditam que se trata de um rito de proteção contra o mal do ano que se inicia. Segundo

Benedir (2007), não foram encontrados indícios de que seja uma celebração derivada de festividades islâmicas, como El Fitr e Adha. Ainda que pratiquem um rito de escarificações na cabeça, ihjam , este não foi considerado, pelos estudiosos, como sendo vinculado à ashura , sangramento ritual, judaico ou muçulmano, nem, tão pouco, ao rito de autoflagelação da comunidade xiita.

Em Tiznit, a comunidade realiza muitos ritos durante essa manifestação que começa no primeiro dia de Muharam, envolvendo uma pessoa ou mesmo a família toda.

Nesse período costuma-se iniciar projetos e atividades ligadas à vida comum dos moradores, relacionadas sobretudo ao casamento, desde as primeiras fases para as alianças matrimoniais até sua homologação (adornos e joias, penteados, depilação e vestimentas); à construção ou reforma de moradias; ao trabalho da agricultura como a semeadura de árvores frutíferas, cereais e grãos (milho, milhete e trigo); ao valor de prestígio social e nutricional da manteiga de leite de animais. Os mascarados, que se apresentam na forma de grandes marionetes, realizam performances dançantes bastante concorridas. Além da adivinhação (forma de racionalidade frequente em culturas orais), nestes períodos festivos, constroem-se leituras do futuro ano, os jovens pulam as chamas das fogueiras (em rito chamado imaachar ), criando performances que são admiradas e, eventualmente, aplaudidas pelas jovens mulheres que assistem e fazem o zagharid , grito/ som de aprovação ou satisfação. São os jovens que organizam o rito e alguns se vestem

266 de noivos e noivas e dele participam em torno da fogueira. Nesse dia, ocorrem noivados e celebrações de compromissos matrimoniais. O evento é tido como uma das mais importantes heranças imazirrem que chegou até nossos dias com grande capacidade de mobilização da população.

Esta é uma atividade significativa para conhecer manifestações socioculturais de grande densidade da população amazir no Marrocos. Este festival de Tiznit possui semelhanças notórias com o Festival Bianu, realizado em Agadez, no Níger 256 .

Ressaltando aqui que, em minha vivência, a língua de Tiznit, tachelhit, pareceu-me próxima à minha própria língua materna, tamacheque. Acredito que novos estudos poderão aprofundar tais impressões. Aqui, o importante é sinalizar continuidades e aproximações culturais entre comunidades distanciadas geográfica, histórica e politicamente nas últimas décadas.

Agadir é outro centro político-cultural amazir do Marrocos. No início de 1960,

Agadir foi quase totalmente destruída por um grande terremoto que deixou mais de cinco mil vítimas. Uma nova cidade foi construída e o museu municipal, Patrimônio Amazigh, foi inaugurado como símbolo da nova cidade reconstruída nos anos 1970. As livrarias de

Agadir foram importantes fontes de pesquisa, pois há livros de referências sobre essa região amazir que pude encontrar nessa cidade.

O material expográfico do Patrimônio Amazigh, volta-se para criações em metal

(prata ou alpaca) e diferentes adornos femininos e masculinos além de objetos de ricas habitações da região de Souss-Massa. Esse Museu Municipal reúne joias artesanais e objetos reunidas por Bert Flint, professor de belas artes holandês, da Universidade de

Casablanca, que fixou moradia em Marraquexe, onde fundou o Museu Tiskiwin. A

256 Ver: https://visitiznit-morocco.skyrock.com/1246596898-visite-carnaval-imaachar-tiznit.html. 267 coleção permite leituras diversas da cultura material amazigh , pois no museu se encontram mais de duzentas peças antigas feitas à mão, tais como pulseiras de prata ou prata de níquel, fíbulas, brincos e colares da região de Souss-Massa. Há objetos de várias regiões amazigh , desde o Saara até as Ilhas Canárias. Os responsáveis organizam exposições temporárias, além do acervo permanente do Museu, oferecendo, ainda, uma possibilidade de visita guiada em que se destaca a história de objetos e sua utilização.

Observei semelhanças com produções tamacheque como a recorrência de sinais originados da escrita tifinar, mas, também importante diferenças nos materiais, formas e cores.

Foi a partir de Marraquexe, cidade histórica e capital durante a dinastia sa’adita, que Ahmed el Mansur al Zahabi enviou seu exército para invadir Timbuctu e terminou por destruir o império Songhoi. O minarete de sua mesquita é um dos mais altos do mundo, tendo sido construído durante período saadita. Marraquexe é, também, uma cidade amazir e foi lá que encontrei os primeiros imazirrem ( imazighen ) do Marrocos que conheci nesta viagem de estudos. A praça de Marraquexe é uma expressão da diversidade artística, gastronômica e arquitetônica, além de representar um dos contextos turísticos mais movimentados do Marrocos.

Na medina de Marraquexe se encontra um museu de artes tamacheque que foi para mim, uma surpresa. É a coleção Tiskiwin do próprio Bert Flint que contribuiu para a criação do Museu Municipal de Agadir. A coleção foi composta durante cinquenta anos em viagens por regiões diferentes do Saara, e guarda impressionante registro de cultura material, com saberes que narram uma certa perspectiva de compreensão dessas populações africanas. Em um dos ambientes, há tendas tamacheque, além de camas, vestimentas, entre outros objetos da criação artesanal em couro e metal.

268

Figura 23. Entrada do Museu Tiskiwin, em Marraquexe.

Fonte: wikipedia 257 Entre os cenários de expressões amazir no Marrocos, a referência de maior impacto institucional encontra-se em Rabat: trata-se do Instituto Real da Cultura Amazigh

(Institut Royal de la Culture Amazighe, IRCAM ou ⴰⵙⵉⵏⴰⴳ ⴰⴳⴻⵍⴷⴰⵏ ⵏ ⵜⵓⵙⵙⵏⴰ

ⵜⴰⵎⴰⵣⵉⵖⵜ , Asinag Ageldan n Tussna Tamaziɣt). É uma instituição acadêmica voltada para a promoção da cultura e da língua que foi criada em 17 de outubro de 2001, pelo decreto real n. 1-01-299. Seu primeiro reitor foi Mohamed Chafik, sucedido por Ahmed

Boukous em 2003. O IRCAM é consequência direta da militância de parte da sociedade, da nova constituição do Marrocos que, em 2001, concebeu pela primeira vez, a pluralidade do país (que até então reconhecia apenas o componente de ascendência árabe) e do apoio político e suporte do rei Mohammed VI, que assumiu o poder em 1999. O

IRCAM foi concebido como estrutura organizacional forte e dotada de recursos financeiros para conduzir seus departamentos e, sobretudo, criar condições para a inclusão da língua tamazight (tamazirt) na escola. Estive em duas ocasiões no IRCAM, em 2016 e em 2017, com a finalidade de aprimorar o levantamento bibliográfico e

257 Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Tiskiwin#/media/File:Affiche_tiskiwin_marrakech.JPG. 269 conhecer as atividades da instituição. Compreendi, então, a extensão e complexidade da história das sociedades da África do norte que formam uma rede de identidades culturais de raízes comuns com minha própria sociedade, situada no extremo sul.

Mohamed Banour, artista de Zagora, teceu considerações sobre a complexidade da formação do Marrocos, compreendido como plural e em movimento, pois seu país “é como uma árvore cujas raízes estão na África e seus ramos na Europa. Isso significa que

é um país que se concentra, em suas origens, em raízes africanas, mas permanece aberto a outros mundos (Entrevista 12. Mohamed Banour, 2017). Até vinte anos atrás essa era uma temática tabu, censurada e silenciada. As fraturas da colonização, que tiveram continuidade, ainda são marcas cotidianas devido a políticas pós-coloniais que, contudo, não apagaram todas as consciências e a convicção dos laços históricos reconhecidos. “Em se tratando de Mali, Mauritânia, Argélia, Chade, há uma grande familiaridade, há um mesmo sangue circulando entre esses países (Entrevista 12. Mohamed Banour, 2017).

Iniciativas como o Festival Taragalte ou Festival dos Nômades de M’Hamid El

Ghizlane têm, também esse objetivo de trabalhar com a sociedade para que retome às

“fontes humanas que existiam entre nós e nossos irmão dos países subsaarianos”

(Entrevista 12. Mohamed Banour, 2017). Para Bannour, não é possível permanecer na armadilha ideológica e política que forjou fraturas e cisões, criando descontinuidade nas dinâmicas de trocas e de mútuo fortalecimento.

Importa notar que festivais e encontros intercomunitários têm favorecido reencontros de familiares, afastados em um longo período de ausência. Em M’Hamid El

Ghizlane, no decorrer de seus dois festivais, Festival dos Povos Nômades e Festival

Taragalte, ocorreram entre festivaleiros e artistas vindos das regiões tamacheque (no

270

Mali, Níger ou na Argélia) encontro entre parentes. Este foi o caso de Najim, o manager de Lala Badi que descobriu a família de sua mãe no Marrocos,

No Festival de Peuples Nomades houve famílias oriundas dos Tuaregues do deserto, pessoas do Níger que reencontraram seus parentes no Marrocos através de encontro no deserto marroquino (...). Estes tinham perdido os traços, mas através de sua participação no Festival Nômades ou no Festival Taragalte encontraram, como foi o caso de Najim Bassodi, um dos produtores do grupo Imarhan, dono da agência de viagem de Tamanrasset. Ele encontrou seus parentes de lado maternal, então ele é um tuaregue de Hoggar. Houve ainda pessoas entre as que o Festivale au Désert trouxe que encontraram suas famílias em M’Hamid El Ghizlane. Isto quer dizer que antes, no período de caravanas históricas, as pessoas saíam de Kumassi [no atual] Gana, passavam para Timbuctu, Kidal, Hoggar para ir a Walata e para Chinguetti [ou Chinguitti] na Mauritânia, continuar até Fes, até Marraquexe, Meknès, até Andaluzia na Espanha. Foi realmente uma atividade que permitia retraçar muitas coisas (Entrevista 12. Mohamed Banour, 2017). Considerando a situação em que os Kel Tamacheque se encontram hoje no Mali, mas, também, em outros países vizinhos, entendo que o futuro ainda está muito incerto em termos de possibilidade de paz e de autodeterminação. Mohamed Ag Ahmedou guarda uma perspectiva otimista pois se “cada tempo tem sua maneira de metamorfose, as coisas avançam” (Entrevista18. Mohamed Ag Ahmedou, 2017). Nesse sentido, acredita que a escrita tifinar, reestabelecida por um decretado pelo rei do Marrocos em 2011, terá possibilidade de se propagar para fora dos limites nacionais, enfatizando a contribuição de intelectuais tamacheque no próprio processo marroquino. “Quem teria pensado que a tifinar seria oficializada? A gente nunca imaginou que poderia ocorrer no Marrocos, no

Egito, na Argélia. Mas, a tifinar é uma escrita, eu a vejo em tudo hoje” (Entrevista18.

Mohamed Ag Ahmedou, 2017). Textos em tifinar encontram-se em placas e indicações de ruas, prédios governamentais e privados, sendo usada por jornais oficiais. Alguns pensaram mesmo que a tifinar e, em seguida, a língua tamazirt, iam desaparecer, mas os movimentos sociais foram intensos durante muitos anos. 271

As movências (ZUMTHOR, 1993; 1997) de práticas expressivas são constantes na história tamacheque. No presente de guerra, contudo, o fechamento de fronteiras, o imobilismo de campos de refugiados e o empobrecimento interno geram necessidades de inventar outras rotas e outras caravanas. Para isso, a música como linguagem das poéticas que emerge da estética do diverso, remetendo ao “movimento desobstruente, que leva do nosso lugar ao pensamento do mundo” (GLISSANT, 1997, p. 246), pode gerar alternativas e propiciar travessias na multiplicidade e transformação.

272

CAPÍTULO 5. Movências em territórios urbanos: cenários interculturais ou confront(ação) simbólica e narrativa?

Os projetos culturais iniciados no final da década de 1990 e início dos anos 2000 sofreram novos e grandes obstáculos criados pelo crime organizado, o absolutismo religioso e indesejáveis consequências das equivocadas estratégias de lutas emancipatórias dos últimos anos. O que procuro ressaltar, no entanto, são outras modalidades de mobilizações sociais tamacheque, criando espaços alternativos para dar continuidade às propostas dos festivais e encontros intercomunitários, abrindo caminhos para diálogos translocais e transnacionais.

Sidilamin (1996, online ) realça que os tempos mudaram e que o mundo será brevemente “uma aldeia planetária”, sendo preciso não se transformar, nessa grande aldeia, na “fera a ser abatida”. A musicalidade tamacheque adquire conotações diferentes e, por vezes, conflitivas. Por meio dos festivais culturais tentou assumir um papel na constituição de coesão nacional e de abertura a possibilidades políticas, culturais e econômicas, além de realizar intercâmbios e projetos transnacionais.

Afinal, o século XXI está produzindo manifestações importantes que requerem uma revisão política e teórica, superação de oposições entre reconhecimento de identidades e democracia. Mesmo as formações sociais chamadas de “comunidade” não aceitam mais serem consideradas como expressão do arcaísmo, enquanto os itinerários da música da Techúmara após 1990 instauram em outras espacialidades experiências tamacheque que, mais uma vez, deve se reinterpretar para incluir suas diásporas e novos modos de nomadismos.

Tornou-se imperioso debater os diferentes interesses envolvidos e as possibilidades que emergiram nos deslocamentos forçados pelos conflitos armados, tanto 273 para campos de refugiados como internamente, constituindo movimentos migratórios com exílios e insílios. Neste capítulo, a abordagem volta-se a cenas culturais na cidade de Bamako, onde expressivo número de famílias tamacheque de várias regiões passaram a residir, sobretudo após a assinatura dos acordos de paz de Argel, em 2015.

Inúmeros são os artistas do norte do país, tamacheque, songhoi, mouros e fulas, sobretudo de novas gerações, que migraram para a capital do Mali ou que passaram a frequentar a cidade. Bamako viu surgir diversos espaços culturais novos com o crescimento da população tamacheque, congregando interesses e expressões criativas - como é o caso do Centro Cultural Tumast - ou de concertos musicais - a exemplo dos bares com música ao vivo, como Espaço Songhoi e Fali Fatou. Em cenário complexo ainda se amplia por festas e comemorações familiares e de grupos. Os casamentos são parte desses espaços de manifestações musicais e de danças tamacheque, pois a contratação de grupos e bandas de música de jovens para a animação vem se fazendo lado a lado com expressões mais tradicionais, como a takamba 258 .

A mobilidade contemporânea entrelaçada ao modo nômade de circularidade e as migrações e exílios que se repetem desde as independências, indicam a necessidade de mudanças sociais e políticas, sem, contudo, romper com sua ancoragem territorial e cultural. As novas tecnologias e movências (ZUMTHOR, 1997) na história dos espaços políticos e expressivos da palavra e ritmo, em suas linguagens diversas, precisam ser colocadas sob a perspectiva tamacheque, que é de história aberta. A música tamacheque permanece atualizada em diferentes meios e situações performáticas, sendo que os espaços culturais aqui em discussão, realizam-se em locus de presenças compartilhadas,

258 Estilo musical, ritmo e dança, praticada por Tamacheque e Songhoi. Entre os primeiros, é realizada pelos agu , estando ligada às celebrações do final das colheitas, além de elogios aos guerreiros e famílias de notáveis. Hoje, é uma das expressões de trânsito com o universo cultural songhoi.

274 em contínuas interações, próprias de universos moventes que são, também, imbricações de suas vidas nômades.

Tais espaços são, igualmente, formas de resistência cultural e de luta identitária que tem como raízes as revoltas contra a opressão do Estado pós-colonial em que os Kel

Tamacheque perderam o poder da palavra política. Portanto, construir um entendimento sobre os conceitos de cultura e de resistência cultural em África parece, igualmente, fundamental. Os cenários culturais tamacheque, articulados a formas de ação política em momentos históricos precisos, formam o cerne sobre o qual este estudo se debruçou.

Neste capítulo pontuo os cenários (ou cenas no sentido da metodologia de

Crapanzano, 2005), que constroem paisagens cotidianas, alicerçadas em Bamako nas migrações e mobilidades mais fugazes, em ethos em que a musicalidade se mantém nos

últimos anos 259 como expressão constantemente reatualizada. Tais paisagens assimilaram as viabilidades experimentadas em festivais ou takubelt/temakanit, manifestando-se como parte de conexões e narrativas de insurgências culturais, em meio urbano, apesar da turbulência política e social. Tais insurgências compõem territórios expressivos, ritmados pela experimentação criativa e rizomática (SILVA, 2016), que apontam para uma sintonia entre a eclosão dos festivais saarianos deste estudo - como o Festival au

Désert, o Festival Taragalte, além de Takubelt de Zalab-labé, Festival Tamoqqest ou

Festival Tamasonghoi -, e o campo da chamada arte ativista criada, entre 1990 e 2000, em diferentes países: Brasil, Argentina, França, Espanha, Estados Unidos e Canadá

(MESQUITA, 2011). As insurgências em criação cultural, alicerçadas na musicalidade, remetem, desse modo, a conectividades históricas - conforme chave pensada por Farias

(1999; 2000, 2004a) - de sociedades saelo-saarianas.

259 A exemplo de outros centros como Tamanrasset ou mesmo de campos de refugiados de M’Bera (Mauritânia), Mentao, Djibo (Burquina Faso). 275

Os entrelaçamentos constantes dos territórios expressivos, conjugam atividades sociais organizadoras de redes de relações socais, políticas e intersubjetivas, que erguem cenários como festivais e casamentos, passagens de criação enlaçando público e privado.

Durante a pesquisa de campo, foi possível observar que os casamentos se fazem como performances na paisagem de comunidades de origens e destinos, em que músicos de diferentes gerações e estilos se entrelaçam, embalando outras expectativas de vida, renovando prestígios e reconfigurando tessituras interiorizadas sem as dunas e os desertos. Estes habitam nos horizontes da imaginação e revivem pela poética de canções e movimentos de corpos.

Centro Cultural Tumast: cenário de entrelaçamentos comunitários e de diálogos

Partindo de lugares apreendidos como cenários que criam pontos de convergência em redes de relações culturais de mobilidades contemporâneas tamacheque, destaco o

Centro Cultural Tumast, situado em Torokorobougou, bairro da capital do Mali. A palavra tusmast 260 significa nação, tendo se tornado um modo contemporâneo de percepção de si, construindo a partir do confronto colonial, sendo reforçado pela experiência do exílio após as independências, para designar a construção de identidade comum tamacheque.

Impossível negar o impacto em ver o nome desse Centro exposto na capital malinesa em 2008, quando o conheci. Seu coordenador acentuou como um dos objetivos, a divulgação da cultura tamacheque entre todos os malineses vivendo em Bamako, pois,

“se não fizéssemos um centro como este, outros fariam em nosso lugar. Sendo assim, a

260 Ou temust , termo que significa o corpo social ao qual se ligam pessoas que possuem identidade cultural e política comum de acordo com Claudot-Hawad (1996a). Hélène Claudot-Hawad (2001, p.16-17) diferencia temust e tamurt . Este último acentua a dimensão da afinidade cultural, designando pessoas de mesma cultura e língua; também, é utilizado para designar a territorialidade Amazir.

276 nossa cultura se perderia pois, outra pessoa sem muito conhecimento a confundiria com outras culturas, como a Songhoi ou Fula” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016).

A criação de um centro tamacheque de atividades culturais em Bamako em 2006, foi, segundo seu idealizador Mohamed Ag Ossad 261 , motivada pelo desejo de reunir os artesãos de sua sociedade em um projeto comum. A dispersão na capital do Mali era prejudicial, em seu entendimento, pois “eles estavam sem orientação, não sabiam como abrir mercado para seus produtos” (Entrevista 26. Ag Ossad. 2016). Em 2006, organizou em parceria com Zakiatou Walet Halatine, ex-ministra da Artesanato e Turismo, uma semana de exposição de objetos de arte tamacheque. Ag Ossad afirmou que foi possível reunir, naquela ocasião, “artesãos do Mali, da Mauritânia e do Níger no mesmo espaço, compartilhando seus conhecimentos e saber-fazer”.

Depois disso, houve mobilização que envolveu cerca de 150 pessoas, tornando possível a formação do Centro Cultural Tumast, criado nos moldes de uma cooperativa com um conselho deliberativo composto de cinco membros, todos eles originários ou ex- estudantes da cidade de Djebock (região de Gao). Para Ag Ossad, o objetivo inicial de

Tumast era apoiar os artesãos para conseguirem abrir portas no Mali e em outros países africanos (sobretudo da África Ocidental), viabilizando “uma participação efetiva em diferentes festivais, feiras e exposições”.

O Centro Cultural Tumast, organizado como Cooperativa para a Promoção e

Salvaguarda do Patrimônio Cultural Material e Imaterial Touareg/Tumast

(COOPSPCMIT), foi criado “para permitir o conhecimento da cultura tamacheque e os modos de viver. Mas, somente da tumast 262 ” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016),

261 Formado como técnico superior em comércio internacional e gestão de negócios no Instituto Rouen, trabalhou durante três décadas no campo de agronegócio, como chefe de uma empresa que ainda existe, mas, segundo ele, de forma tímida. 262 Nação sociológica e cultural. 277 como narrou seu diretor, ressaltando que era preciso envolvimento intelectual e econômico para viabilizar a proposta de criação de um espaço cultural tamacheque em

Bamako. “Porém, as pessoas não nos acompanharam, nós somos dois, os outros membros cuidam de seus cargos e mandam suas cotizações sem, de fato, se envolverem inteiramente. Por isso que, às vezes, estamos na letargia no que fazemos”. Como ele, grupos de pessoas migraram para a capital do Mali em meados dos anos 1970, por diferentes razões, mas, frequentemente, motivados por estudo ou casamento - no caso de mulheres tamacheque que se uniram aos soldados ou outros funcionários do sul -, compondo o primeiro núcleo tamacheque em território mandê. Ag Ossad chegou em

Bamako em 1974, vindo da escola de Djebock (região de Gao), para dar continuidade aos estudos. “Naquela época”, disse “havia somente três grandes famílias tamacheque que, na realidade, eram de mulheres tamacheque de Kidal, casadas com militares. Naquele momento nem se conhecia tamacheque aqui” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016).

Ag Ossad residiu durante os estudos na casa de uma mulher tamacheque da comunidade chamanamas de Gao, existindo, ainda, algumas outras mulheres que se casaram com civis 263 , indo residir na capital do Mali. Essas mulheres formaram, nesse processo, o primeiro núcleo de redes de solidariedade que viabilizaram escolarização e apoio para outras demandas sociais.

A pequena escala do movimento migratório tamacheque para a capital, até meados de 1990, defasada em relação a outras identidades sociológicas, sinaliza dinâmicas de recusa e de exclusão que têm marcado a história malinesa. Depois, vieram os deslocamentos relacionados às rebeliões (1990-1996), a migrações relacionadas a algumas situações de trabalho criadas pelos pactos assinados entre lideranças dos movimentos tamacheque e os sucessivos governos do Mali, para integração tamacheque

263 Informação obtida em conversas com meus tios que estudaram em Bamako.

278 nas estruturas do Estado. Em sua percepção da história, Ag Ossag assinala “que os tamacheque chegaram a Bamako só depois da primeira rebelião. Bom, chamo de primeira rebelião, apesar de ter ocorrido outras. Mas que eram apenas revoltas” (Entrevista 26.

Mohamed Ag Ossad, 2016). Nesse processo, constituiu-se, juntamente com a permanência de ex-estudantes (alguns receberam bolsas do governo chinês ou da União

Soviética), o que se poderia chamar de primeira comunidade tamacheque na capital do

Mali.

Ao chegar a Bamako, em 2000, a cidade já contava com presença significativa de famílias que assumiam a responsabilidade, cada uma delas, de receber e dar suporte a pessoas de suas comunidades de origem. Tais demandas decorriam, principalmente, de situações de crise alimentar ou de intercorrências de saúde, além do já referido acolhimento de estudantes. Fui acolhido por tia materna que havia se transferido para

Bamako porque seu marido, formado em farmácia, decidiu manter residência após a faculdade, estabelecendo-se como profissional autônomo. Meu tio, como alguns jovens da escola de Djebock, minha região, chegaram em Bamako no início dos anos 1980. A casa desses tios constitui-se como um dos pontos de suporte social da rede de interdependência da tawšit Icharamatane de Zalabe-labe. Nela viveram cerca de uma dezena de crianças e jovens estudantes, onde tem se hospedado, ao longo dos anos, grande número de pessoas da nossa tawšit , mas também de várias outras tiwšaten tamacheque, sobretudo vizinhas, que vinham buscar tratamento na capital. Residi em Bamako dois anos. Deixei o Mali em 2003, após receber uma bolsa de estudos do Egito e fui estudar no Cairo.

O número de famílias tamacheque residindo em Bamako cresceu visivelmente nos

últimos cinco anos, mas especialmente, depois de instituído o processo de paz e reconciliação. Quem são esses migrantes? Trata-se de questão relevante, mas não há ainda 279 estudos que abordem esse movimento. O que se observou foi a transferência de empresas e de famílias mais ricas, de diferentes centros, como Timbuctu, Kidal e Gao. Desta forma, conforme Ag Ossad, nota-se que “atualmente, encontram-se bairros plenos de Kel

Tamacheque como em Sirakoro. No Golf, também, são numerosos” (Entrevista 26.

Mohamed Ag Ossad, 2016).

Foi com migrantes instalados de modo estável que Mohamed Ag Ossad planejou viabilizar o Centro Cultural Tumast. Entretanto, após a crise de 2012, as dificuldades de coesão em torno das atividades culturais, aumentaram. “Há um certo tempo, as grandes personalidades, os patriarcas tamacheque - como se diz aqui em Bamako -, não cuidam mais do tumast. Desde 2013, cuidam apenas deles mesmos. Eles não nos acompanharam mais” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Há uma parte da diáspora tamacheque em Bamako que, segundo nosso interlocutor, não apoia o projeto do Tumast por motivos diferentes, tais como desacordos com a forma de gestão de Tumast, rivalidades pessoais e, ainda, por desejo de afastamento das redes de relações tamacheque, afim de legitimar seu pertencimento no contexto de acolhimento, sua “malianidade”, segundo Ag Ossad, que nos conta:

Nós tentamos desenvolver, mas não somos apoiados por ninguém e é com meus pequenos meios que tento. Há mesmo alguns tamacheque que não querem a existência de um centro tuaregue em Bamako. Por que? Não sei. A pergunta está no ar. Para lhe dizer que, às vezes, quando eles fazem suas atividades, fazem na rua próxima a eles, pois dizem que Tumast não é um lugar apropriado, desta forma eles deixam Tumast para ir em outros lugares fazer suas manifestações. Eles abandonam sua pobre casa para ir a outro lugar. Isso eu não entendo, talvez Dicko possa dizer algo em relação a isso, se não eu realmente não, não entendi nada e ao olhar em toda Bamako, em nenhuma região há um centro cultural tuaregue, além de Tumast (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016).

Ag Ossad traduziu a proposta de construir lugares tamacheque, considerados pontos que permitem dar suporte à criação e fruição de suas culturas expressivas em

Bamako. Na página oficial de Tumast, do facebook , consta uma definição que o espaço

“serve como alavanca para a promoção, não só de artistas, mas também para artesãos,

280 sendo um lugar para receber todos aqueles que almejam aprofundar seus conhecimentos sobre o homem das dunas: sua vida, seu modo de ser, sua alegria, sua dor, suas frustrações” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). O Centro Cultural Tumast tem buscado, com ainda mais intensidade nos últimos anos, promover trânsitos e diálogos, partindo da cultura tamacheque, assumindo, muitas vezes, um lugar de mediação nos momentos mais duros dos conflitos entre malineses do sul e os Kel tamacheque.

Constava, já em seus objetivos iniciais, ser não apenas um espaço de expressão cultural e artística, mas, também, “de diálogo, troca, escuta, entrelaçamentos entre as comunidades do Mali (norte-sul), por um lado e, por outro, entre as comunidades do mundo todo. A ideia de Tumast sedimenta-se no viver junto e na convivialidade” (AG OSSAD, 2016 online ).

Vale ressaltar que alguns Kel Tamacheque, que vivem em Bamako, aderiram ao projeto de construir possibilidades para que pudessem ser concebidos como uma parte da

“Cultura Nacional”, entregando-se a uma trabalhosa tarefa de tecer conexões culturais e lugares de mútuo conhecimento, sobretudo, após retornos de parte dos refugiados que saíram da cidade devido à crise de 2012. Após um concerto no Tumast durante a rebelião, em 7 de janeiro de 2012, houve grande tensão e as atividades foram suspensas, mas “nós de Tumast esperamos porque além da rebelião ocorreu, pouco depois, o golpe de Estado.

Em abril aconteceu a fuga de todos os tuaregues que estavam em Bamako” (Entrevista

26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Suas atividades culturais foram reiniciadas em 22 septembre 2012, data comemorativa da independência do país. “Naquela noite fizemos o maior concerto da história de Tumast, um concerto que nunca havia acontecido no Centro

Cultural Tumast, com a presença de todos os tuaregues, árabes e dos songhais que estavam aqui em Bamako” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). 281

Sendo o único espaço tamacheque, os jornalistas recorreram ao Centro Cultural

Tumast como lugar simbólico, no bojo da cidade dos três crocodilos, território ancestral dos Keïta. Nele, encontram-se objetos da vida cotidiana e adornos corporais tamacheque, sendo possível, ainda, participar de debates e de concertos de música tamacheque ou de outras sociedades do Saara, como o caso de Amanar de Kidal e de Khaira Arby.

As artes em couro e metal foram alvo de atenção tanto comercial como expográfica em arquitetura que trabalhou uma ambientação aberta, composta de um quiosque redondo coberto de fibras naturais (sugerindo atmosfera das tendas nômades), assombreado por mangueiras que se compõem com uma casa de estilo de anos 1970. Sua varanda se transforma em palco nas noites musicais e o pátio, que a separa do quiosque, em pistas de danças. Para isto, tapetes enormes são espalhados, modificando de forma maleável o cenário de performances.

Ag Ossad, assim como Samaké, consideraram de grande relevância reivindicar a assinatura tamacheque para um conjunto de objetos, muito apreciados por turistas e outros estrangeiros, que circulam em Bamako em espaços e feiras artesanais. Essa missão pedagógica é reivindicada pelo diretor do Centro Cultural Tumast, que exemplificou sua preocupação ao discorrer sobre o uso de enafad , bolsa tradicional que os Kel Tamacheque criaram como um objeto estético de prestígio, para guardarem seus pertences pessoais.

Esta bolsa continua sendo produzida, prioritariamente em meio tamacheque, por seus especialistas, homens ( inhadan ) e mulheres (tinhaden ). Passou, contudo, a ser utilizada igualmente por Songhoi e Fula, que a adquirem de forma frequente. O mesmo processo de entrelaçamento cultural ocorre com o próprio taguelmust (turbante), que é frequentemente atribuído aos Songhoi - ou genericamente às pessoas do norte – uma vez que eles são mais numerosos, melhor integrados e instalados há mais tempo em Bamako.

282

Vale ressaltar que, atualmente, no Mali e no Níger, homens de várias identidades étnicas usam o taguelmust, como Zarma e Hauçá, além de Songhoi e Fula.

Os empréstimos culturais, além das formas complexas de reciprocidades e complementaridade, ainda que variando no tempo e segundo contextos, são constantes e intensos na história dessas sociedades. Isto se deve aos eixos históricos de comunicação, mobilidade e conectividade entre regiões do deserto, da savana e da floresta, entrelaçamentos exemplificados por Moraes Farias (2013). Em primeiro lugar há o termo

Askyia, título Songhay, que é reelaboração de uma palavra tămăšhaq . O segundo exemplo decorre do nome do Festival Gaani, celebrado pelos Kel Tamacheque da região do Aïr, sendo um empréstimo dos Songhoi. Decorrência do trabalho de comerciantes muçulmanos, falantes de Songhoi, que levaram o festival para outras regiões da África do Oeste, assumindo seja o sentido de evento comemorativo do nascimento do Profeta

Muhammad, seja de celebração de realeza ou chefia sem alusão ao Profeta.

O lamento de Ag Ossad remete ao sentimento de não reconhecimento, pois os

“Kel Tamacheque não se importam que outros os imitem, adotando parte de suas tradições, aliás para nós é um orgulho compartilhar cultura e modo de vida com sociedades irmãs e vizinhas” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Deste modo, atribui papel pedagógico entre os objetivos do Centro Cultural Tumast, considerando ser necessário criar e mesmo multiplicar centros e institutos de formação e de promoção de sua cultura. Irrita-se com o amálgama frequente que se expressa no termo “nortista” e no desconhecimento ou desinteresse pelo complexo universo histórico e cultural que existe no norte do país. Isto se expressa, na opinião de Mohamed Ag Ossad, na atitude dos

“malineses do sul que, ao falar sobre a bolsa tamacheque “ enfad ”, dizem que é um objeto do norte, sem especificar sua origem. Significa que não lhes interessa ser expressão 283 songhoi, tamacheque, moura ou fula. Trabalhar a pluralidade cultural é uma das tarefas do Centro Cultural Tumast, em Bamako:

a verdade é que enafad é algo da cultura tamacheque. Nossa cultura está aberta a todas as sociedades, porém as pessoas devem falar disto, sejam songhoi, bambara, europeus ou mesmo brasileiros. Portanto, um centro como Tumast, é importante não só para a promoção da cultura tamacheque, mas também, para sua preservação e para sua proteção (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Ter se constituído como espaço musical e dançante, talvez seja o que mais tem conferido importância a Tumast, em Bamako, pois tem permitido à música tamacheque ser tocada e escutada mesmo nos momentos de mais tensão. Possui legitimidade no contexto tamacheque e reconhecimento político e social para promover concertos, convidando autoridades, trazendo músicos que vivem nos campos de refugiados. Este foi o caso de Abba Ag Ambery, que se viu compelido a retirar-se do exército para não atuar num conflito que o obrigaria a realizar ações violentas contra sua própria gente. Na ebulição dos anos 2006, durante a rebelião liderada por Ibrahim Ag Bahanga, voltou à música, atividade e paixão de sua juventude. Criou o grupo Etran de Timbuctu (estrelas de Timbuctu) e passou a animar festas e fazer concertos.

Território cultural tamacheque em Bamako

Os meses que seguiram ao golpe de Estado e à declaração de independência de

Azawad em 2012 foram muito difíceis tanto no sul como no norte do país. Em Bamako os militares que controlaram administrativamente as instituições do Estado malinês, atacaram e prenderam diversas autoridades do país. Uma grande insegurança se instalou na capital. A vida cultural na cidade se tornou inexistente. No Norte, a música foi interditada pelos grupos absolutistas moralizadores.

A sede do Festival au Désert foi saqueada em 2012, por ocasião das represálias contra a população tamacheque - referidas no primeiro capítulo -, provocando o desaparecimento de toda a documentação e registros da memória organizada pelos

284 produtores. Manny Ansari e família foram igualmente obrigados a ausentar-se da cidade durante meses.

Mohamed Ag Ossad ressentiu-se do ataque ao espaço Centro Cultural Tumast, em

2012, durante as contestações organizadas em Bamako. Segundo ele, uma multidão de rebeldes o encontrou na porta do espaço, liderada por um jovem que havia sido seu afilhado e ex-aluno na escola básica. Ao reconhecê-lo, perguntou: “tio, o que faz aqui?”.

Ag Ossad, que disse já estar preparado para o pior, reagiu: “este espaço é meu, é um espaço que luta pela paz”. O jovem deu ordens ao grupo para recuarem, declarando a seus colegas “se alguém tocar neste espaço ou em seu proprietário, terão que me matar primeiro” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Foi este o relato de como o diretor de Tumast salvou-se e, com ele, o Centro Cultural Tumast.

Uma semana antes da minha viagem para pesquisa de campo, li o anúncio do concerto de Etran de Timbuctu no facebook do Tumast 264 :

o grupo artístico Etran de Timbuctu/ Gargando/ Goundam, acabou de chegar em Bamako e convida a todos e todas para um concerto de guitarra no sábado 19 de novembro de 2016 na esplanada do Centro Cultural Tumast à partir de 21h. 265 . Chamou atenção o nome “Etran de Timbuctu”, que significa Estrelas de Timbuctu, pois a maioria de grupos conhecidos são originalmente da região de Adrar (Kidal, Essouk,

Tessalit, Tinassako, Tinzawaten, Abeybra, Adjelhok entre outras), podendo-se dizer que, em cada um de seus acampamentos, existe pelo menos um grupo. O mesmo não ocorre em Timbuctu e Gao. Por esta razão, o diálogo com Abba Ag Ambéry e os outros artistas do grupo seria um início muito significativo, pois o grupo mais conhecido de Timbuctu é

Tartit, um grupo feminino.

264 Esta foi a atividade que simbolizou o início do trabalho de campo e do diálogo ainda em curso com diferentes pessoas que aceitaram colaborar com a realização desta pesquisa. 265 “Le groupe artistique Etrane de Timbouctou/ Gargando/Goundam/ vient d'arriver à Bamako et vous invite toutes et tous à une soirée guitare le samedi 19 novembre 2016 sur l'esplanade du Centre Culturel Tumast a partir de 21h”. CCTumast. 285

A qualidade de Abba é que ele consegue misturar os ritmos de Timbuctu e os de Kidal. Você verá que cada uma de suas canções tem seu ritmo, totalmente diferente umas das outras. Ao contrário de outros grupos cujas canções somente as palavras mudam, mas as notas permanecem as mesmas. Estes não são artistas, pois um artista profissional tem que saber mudar a melodia, não só as palavras (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). O líder do grupo Etran de Timbuctu, Abba Ag Ambeyri, é um dos músicos da nova geração que se encontrou nos campos de M’Berra na Mauritânia. Abba era da

Guarda Nacional, mas deixou sua carreira por objeção de consciência, como já mencionado: “no exército precisaria obedecer a ordens, quando há conflitos, seu nome aparece e você tem que ir. Aqui no Mali, os primeiros inimigos são Kel Tamacheque. O

Mali nunca fez guerra senão contra os Tuaregues”. Sua crise como integrante do exército foi em 2006, quando houve ordem para combater Ibrahim Ag Bahanga, líder da rebelião de 2006, a Aliança Democrática de 23 de maio pela Mudança 266 (ADC): “você tem que ver sua consciência e escolher entre ficar no seu trabalho, matando seus parentes ou retirar-se, ficando desempregado”.

Ag Ambeyri contou sobre a formação de seu grupo, ocorrida após deixar o exército e viajar como integrante ao grupo Tartit em turnê internacional com concertos no Marrocos, Espanha e Argélia. Entre 2006 e 2010 decidiu viver em Nouakchott, capital da Mauritânia, onde criou seu próprio grupo em 2010.

Por coincidência ou por chance, no mesmo ano em que criamos o nosso grupo, vi um anúncio de um concurso artístico que tinha como temática água e meio ambiente. Este concurso era destinado a quatro países, Mali, Mauritânia, Senegal e Guiné Conacri. Então me apresentei como músico do Mali e me disseram para trazer um grupo. Fomos desta forma participar da competição, com setenta e cinco artistas em três fases eliminatórias. Na primeira, foram qualificados 12 grupos, nós estávamos entre eles. Na segunda, foram escolhidos 5 primeiros e estávamos neles e, finalmente acabamos ganhando o terceiro lugar. Então, oportunizaram para nós a gravação de um álbum em Dakar. Fomos, fizemos uma turnê e gravamos um vídeo-clip.

266 Alliance Démocratique du 23 mai pour le Changement.

286

Abba confrontou-se com desafios, “nosso maior problema é não ter os meios para desenvolver o grupo”, ressaltando que decidiu se dedicar à música, começando ainda bem jovem, nos anos 1994.

Comecei a tocar, criando meus ritmos com garrafas plásticas com cordas de fios de freios de motos que conseguia com mecânicos, às vezes comprava deles. Fazia minhas regulagens e tocava. Comecei com duas cordas, cantando canções de Tinariwen da época, canções de Itayaden, de Abraybone, Kedou, de Hamad Aya e, também, de Mohamed Issa. Ao voltar de campos de refugiados da Mauritânia, em 1997 ou1998, um irmão mais velho 267 me viu tocando com a garrafa e comprou uma guitarra (Entrevista 36. Abba, Mohamedoune Ag Ambery, 2016). Apaixonado pelo ritmo e música, enfatizou “amo a minha música, não foi por interesse, era apenas pelo prazer de tocar entre amigos, parentes. Na verdade, sou de uma comunidade festiva, quando havia um batizado ou um casamento sempre havia música”

(Entrevista 36. Abba, Mohamedoune Ag Ambery, 2016). Chama atenção, além de talento musical de Abba Ag Ambéry, as letras das canções de sua performance, pois trouxe poesias de seu pai, Ambéry Ag Rhissa, conhecido poeta e educador tamacheque e um dos primeiros professores nas escolas nômades. As outras músicas eram, contudo, de

Tinariwen, criadas nos anos 1980, quando seus membros, transmitiam as mais vibrantes emoções de uma sonhada transformação social, interrogando-se sobre o sentido daquelas canções, como sawt el wahuch , Soixante Trois, interpretadas por Etran de Timbuctu, em plena Bamako de fins de 2016.

Como músico, Abba reconheceu a importância de Tumast enquanto espaço para viabilizar atividades e criar oportunidades de trabalho. O Centro Cultural Tumast tem recebido na capital do Mali, desde início de 2016, diferentes músicos e grupos tamacheque, constituindo intercâmbios transculturais com foco nas artes tamacheque e saarianas. Fadel Ould Abdel Fattah, que animou festas no período da rebelião de 1990,

267 Irmão classificatório. 287 deixou a música no processo oficial de integração de ex-combatentes, retomando após sua aposentadoria. As figuras a seguir permitem visualizar cenas de seu concerto, juntamente com Aratan n’Akal, na passagem de ano em 2016.

Figura 24 . Concertos de Fadl Fattah e Aratan n’Akal no Centro Cultural Tumast.

Fonte: acervo pessoal do pesquisador

288

Figura 25. Concerto de ano novo no Centro Cultural Tumast. Mulheres dançando, 2017

Fonte: acervo pessoal do pesquisador

O contexto histórico de emergência assim como o campo temático de criação de

Tinariwen e Etran de Timbuctu apresentam diferenças significativas. Os membros de

Tinariwen são filhos da primeira geração da revolta de 1963/4 que perderam parentes e pessoas próximas e amigas, passando a infância em campos de refugiados na Argélia e, parte da juventude na Líbia. Suas canções iniciais eram mensagens, expressando saudades e nostalgia de suas irmãs e sua terra ancestral, prometendo lutar para sua libertação.

O grupo Etran de Timbuctu emergiu no campo de refugiados de M’Berra, organizando seu primeiro concerto, em Bamako, após mais de 60 anos da descolonização.

Seu fundador é filho, neto e bisneto de combatentes pela libertação de Azawad ou por uma república do Grande Saara, como foi o caso da geração de Mohamed Ali Ag Attaher

Ansari. A maioria do grupo viveu, em vários momentos, nos campos em Mauritânia, desde sua infância nos anos 1990 e durante a atual crise, em que esses jovens do grupo

Etran de Timbuctu são atores não só observadores. 289

As apresentações de Tinariwen e de Etran revelam percursos diferenciados, pois os membros deste último habitaram em Bamako antes de sua criação. Tinariwen, porém,

é fruto do exílio e seus membros fundadores mais famosos, vieram a Bamako pela primeira vez no final da década de 1990, depois de acordos de paz que se seguiram a uma rebelião em que participaram ativamente. O produtor de Etran de Timbuctu cursava, em

2016, sociologia na Faculdade de Línguas, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Bamako.

Etran, apesar das dificuldades próprias de carreiras artísticas, muito competitivas, representa uma geração de filhos de migrantes, comerciantes ou funcionários públicos, que constituem uma classe média urbana tamacheque residente na capital. O pai de

Tawwal, produtor e guitarrista de Etran, trabalhou toda sua vida em Bamako, conseguindo educar os filhos e construir sua residência em bairro de prestígio,

Kalanbancoura. Já Abba é filho de educador, funcionário público do governo do Mali. O público que participou no concerto de Abba era, majoritariamente, Kel Ansar, visto que o grupo é composto por artistas desta comunidade 268 .

Toda essa geração de músicos tamacheque inspiram-se em Tinariwen e, também, em Terakaft, reinterpretando o repertório já conhecido destes grupos da música Ichúmar.

Em seus concertos em Bamako, Abba Ag Ambéry Ag Rhissa interpretou canções de

Tinariwen, como “ sawt el wahush ” (canção das feras) 269 , uma das primeiras criações de

Ibrahim Abaraybone. A canção inteira transmite uma mensagem de ameaças dirigidas aos governos do Mali e Níger e a seus exércitos (“esta é uma mensagem que enviamos para

Mali e Níger ao lado”), exemplo disto é “ ane mali hekam targham ” (diga ao Mali cuidado, estarás queimado). Causa um sentimento paradoxal escutar esses versos em Bamako,

268 Abba cresceu na família materna que é Kel Ansar. 269 Le Chant des fauves.

290 ainda que em temporalidades distanciadas de sua criação e proibição. Haveria maior flexibilidade no Mali ou permaneceria resultado de uma atitude de indiferença ou desconhecimento cultural e linguístico? Talvez ali fosse um espaço no qual se permitisse uma certa liberdade de expressão na conjuntura atual. De certo modo, porém, cantar em sua língua na capital do Mali, sobretudo canções políticas, remete a certa coragem e risco.

Levantei essas questões em discussão de grupos de jovens buscando uma interlocução e um deles reagiu à minha colocação, dizendo:

a primeira coisa que podemos pensar neste contexto é que a República do Mali é um país de liberdade de expressão. Caso contrário como se pode insultar o país num concerto em que muitos são pro-Estado entre os próprios Kel Tamacheque presentes. Os músicos sabiam disto. A outra explicação seria uma ignorância total destes músicos. De toda maneira, podiam estar na prisão (AG ISMAIL, 2016, anotações de campo). Ao comentar a dinâmica de trabalho dessas novas gerações da música tamacheque o diretor de Tumast comentou: “só Tinariwen, Terakaft e Tamikrest fazem resistência pelas suas músicas, os outros grupos estão em busca de algo para comer, ou seja, dinheiro”. Afirmando ter sido Tinariwen o primeiro grupo que tocou no Tumast, enfatizou acreditar que para ele, como para os músicos de Tinariwen, foi evento mais significativo que realizar um concerto no Grand Hotel de Bamako. Segundo Ag Ossad, o líder de

Tinariwen, Ibrahim Ag Alhabib 270 comentou que “uma pessoa não abandona sua casa velha por causa de uma vila que não é sua”. Para Ibrahim estar no Tumast significava estar em sua própria casa. Contudo, tocar no Hotel de l’Amité tem o mesmo sentido de se apresentar em qualquer outro espaço, “pois quando tocamos aqui no Tumast, tocamos para nós mesmos e no Grand Hotel tocamos para um público, como tocamos na França ou na América”.

270 Ibrahim e Mohamed são primos conforme explicou este último. Os dois são de Tessalit. 291

Entre estes grupos jovens que adquiriram reconhecimento com apoio no trabalho do Centro Cultural Tumast, está Aratan n’Akal, fundado em 2013 em Bamako. Sua particularidade é ser composto por jovens oriundos de regiões tamacheque distintas:

Tagharust, Kidal, Tessalit e um membro já residente em Bamako. Bady Ag Aghaly, membro fundador do grupo explicou: “o grupo foi criado aqui em Bamako, em 2013, nós

éramos quatro quando fundamos o grupo, pois antes disto estávamos em lugares diferentes: um estava na Argélia, outro em Timbuctu, eu em Tessalit e um quarto em

Burkina Faso” (Entrevista 34. Badi Ag Alghaly. 2017). Atualmente o grupo conta com cinco membros, depois da adesão de Lassi Dembélé (de uma comunidade BWA no sul do Mali).

O nome Aratan n’Akal significa filhos do país/ território/ terra, sendo formado por

Issa Ag Hadani, produtor e baixista, Hamouna Ould Tayib intérprete, Bady Ag Aghaly como guitarrista e pelo percussionista Lassi Dambelé. O líder de Aratan n’Akal apesar de não assumir uma posição independentista, considera importante defender uma ideia pan- saariana. Escreveu no meu caderno de campo “o Saara não tem fronteiras e isso significa a liberdade”, ressaltando seu desejo de que transcrevesse a frase em minha tese.

Acompanhei várias apresentações do grupo Aratan n’Akal, durante a pesquisa de campo em 2016: no próprio Centro Cultural Tumast, no Centro Cultural Francês em

Bamako, no Festival International de Cauris Mandé (FESCAURI) em Siby (na 10ª edição, entre 16 e 18 de dezembro de 2016), Festival da Cultura Dogon, entre outros, entrevistando três membros do grupo. A música para Aratan n’Akal, segundo seu guitarrista Bady Ag Aghaly, que rejeitou a guerra: “escolhemos a música como um meio de expressão, rejeitamos toda violência e nós fazemos nossa luta apenas com a guitarra”.

Iswadan Ag Radouane, o mais recente integrante teve diversas dificuldades devido à recusa familiar de que se dedicasse à arte e ter sofrido ameaças, tendo seus instrumentos

292 destruídos por membros de grupos radicais, antes de migrar para Bamako. No Norte do país, revela Bady Ag Aghaly, “tivemos dificuldades de tocar, pois estávamos ameaçados, não tínhamos liberdade para tocar” (Entrevista 34. Badi Ag Alghaly. 2017).

Nos últimos anos ocorreu uma convergência de interesses entre estes jovens tamacheque, que procuram abrir caminhos para seu trabalho artístico e a situação de crise nacional. De certo modo, parte de músicos tamacheque que se instalaram na capital, terminaram por se beneficiar de política cultural sensível a ações que viabilizem estratégias simbólicas de reconstrução e de coabitação de diferenças. Mohamed Ag Ossad fez crítica a jovens que, segundo ele, ainda não perceberam a importância de um centro cultural tamacheque, ficando imersos na música e concertos entendidos como entretenimento apenas: “atualmente, os jovens vêm, não para colocar Tumast de pé, mas apenas para se divertirem. Depois que eles saem daqui, esquecem a importância do que assistiram” (Entrevista 12. Mohamed Ag Ossad, 2016).

A música e outros tipos de artes eram e são ainda elementos importantes na construção de paz entre as sociedades do sul do Mali e as do Azawad / Norte do país.

Neste contexto, o Centro Cultural Tumast percebe a arte como aproximações e diálogos

(também, evidenciam clivagens internas) entre as populações do sul, que apoiam o governo central de Bamako, e as do norte, que apoiam o projeto separatista do Movimento

Nacional de Libertação de Azawad (MNLA). Para tanto, precisa de atividades artísticas e culturais como concertos e exposições de artesanatos e joias tamacheque, afim de recriar laços sociais e confiança destruídas pelo último conflito.

Visualidades e musicalidades: Keltoum Walet Emastagh

Existe um cenário cultural em torno da artista tamacheque Keltoum Walet

Emastagh, incluindo artes visuais e design de roupas e acessórios, com inspiração nas 293 artes tamacheque, além de criação poética e musical. As linguagens se complementam numa paisagem de pesquisa e reflexões constantes. Encontramo-nos em sua casa divido

à mediação de Issa Dicko. Seguiram-se diversos encontros e formas de trocas mantidas até o presente, pois pertencemos a um grupo de discussões e de reflexões sobre perspectivas atuais tamacheque. Define-se como “uma artista engajada e como intérprete do Sahara blues”, desde uma formação plural, entrelaçando um conjunto de linguagens.

“Foi a pintura que me levou para a escrita e a música, as três que se completam. Desenho, expresso meus sentimentos através do pincel e eu escrevo, mas foi necessário adicionar a música”. Disse a mim mesmo: “estou fazendo tudo isso, mas preciso usar a voz, foi a voz que me levou a cantar” (Entrevista 19. Keltoum Wallet Emastagh, 2018).

Em entrevista concedida em Paris, complementou essa ideia: “eu devo acompanhar com palavras, porque nem todos entendem um quadro, uma pintura, um desenho. O canto e a música aumentam o impacto de minha mensagem” (KELTOUM apud AG TITA, 2014), reenviando à compreensão de que o significado se edifica e transmite na combinação (BARBER, 1987). Considera que em Kidal todos são poetas e esse ambiente construiu seus alicerces artísticos e políticos, tendo necessidade de um conjunto de linguagens. Formada pelo Instituto Nacional Superior das Artes e de Ações

Culturais (I.N.S.A.A.C) 271 de Abidjan, na Costa do Marfim em 1997, Keltoum dedica-se

à pintura, com preferência na técnica óleo sobre tela. Nas criações que seguem, da coleção

271 http://www.insaac.edu.ci/accueil.php

294 pessoal da artista, observamos a preocupação com cenários cotidianos, em cores de dominância azulada.

Figura 26. Pinturas de Keltoum Wallet Emastagh.

Fonte: Imagens cedidas por Denise Dias Barros

Por meio da coletânea de poemas Les femmes Bleues (2014), publicada por

L’Harmattan, a artista amplia seu repertório de criação, disponibilizado para público pela expressão escrita. Em seus poemas, mobiliza uma elaboração dramática da existência, na conexão da pessoa com as narrativas de tempo, paisagem, em proposição significativa, sem cindir criação e transmissão (BARBER, 1987). Nesse poema à terra - pátria, mãe, receptáculo de lágrimas e do amor, acolhedora, mas que ameaça, contudo, ser fatal -,

Keltoum (apud AG TITA, 2014) repõe o chamado e a ligação entre a mulher e a defesa da verdade.

Terre, mère patrie, Terra, mãe pátria, Jadis, verdoyante, Antiga, verdejante Serais-tu meurtrie? Estaria ferida? Aride tu es, ton hostilité devient amère. Árida tu és, tua hostilidade torna-se amarga. N’empêche, je t’aime mère Ainda assim, amo-te mãe Terre, mère nourricière, Terra, mãe provedoa, Terre natale, serait-ce la fin fatale? Pátria, seria o fim fatal? 295

Difficile est d’y croire Difícil de acreditar Tu es mon répertoire Tu és meu repertório Réceptacle de ma première larme, Receptáculo de minha primeira lágrima L’amour que je te voue, sera ma seule arme. O amor que te devoto será minha única arma. … Aujourd’hui plus que jamais nous femmes ... Hoje, mais do que nunca, nós mulheres devons condamner toutes atteintes à la morale devemos condenar todos os ataques à moralidade universelle et toutes les dérives. Plus que jamais, universal e a todos os abusos. Mais do que nunca, nous devons être celles qui pensent la vérité, devemos ser aquelas que pensam a verdade, dizem disent la vérité, croient en la vérité et défendent a verdade, acreditam na verdade e defendem a la vérité verdade

Keltoum, artista reconhecida por suas composições musicais, em seu percurso produziu o primeiro álbum do grupo Tinariwen: o histórico vinil Ténéré (1993). Enquanto ativista, Keltoum foi importante apoiadora de Tinariwen, na fase inicial da carreira do grupo. Na fotografia da capa, o tagelmust (turbante) da visualidade que comporia futuramente a imagem pública de Tinariwen, ainda está ausente, porém o chamado ao deserto, tenere , é central.

Figura 27. Primeiro álbum de Tinariwen, Ténéré de 1993, produzido por Keltoum.

Fonte: https://youtu.be/3wV6A2Nix0g A artista percebe suas produções e explorações de linguagens como dispositivo de diálogo relevante em ambiente pluricultural e complexo. Natural de Kidal, nasceu em

1959, sendo liderança no suporte à rebelião dos anos 1990. Havia escutado suas músicas,

296 lembrava de “ à l’histoire” que cantou com Tinariwen, sem saber que eram suas composições.

Emocionei-me nessa ocasião de aproximação com pessoas que guardo um sentimento de familiaridade e admiração quase sagradas. São pessoas cujas poéticas formaram parte do que sou. Ouvíamos suas vozes, decorávamos seus versos, repetindo infinitas vezes as fitas cassetes. Cada vez que os ouço, o transporte é o mesmo: uma viagem a um país imaginário onde somos livres. Por maiores que sejam os equívocos de uma geração ou das gerações que nos antecedem, não se pode se despir da emoção diante daqueles que forjaram uma utopia, que nos impulsionam a amar, cruzar, ir além do Saara e seguir buscando. Muitas vezes, na formação como pesquisador, indaguei a mim mesmo, também filho do Saara, qual seria esse lugar? Como seguir sendo pesquisador sem abdicar do que me define e do que me emociona e me impulsiona?

Oh Yanna Yanna! (2017), o primeiro álbum solo de Keltoum, sua paisagem de sonoridades se compõe de camadas sucessivas assuf (sentimento de solidão, chamado à reflexão e ao isolamento, anseio por um lar-mundo-deserto-horizonte, dor incurável e companheira, e também, o espírito/sentido do estilo de guitarra ichúmar) do deserto, mantendo forte a pulsação do que chamam blues . Em 2018, foi convidada ao Primer

Festival de Músicas del Mundo de la Universidad de los Andes, na Colômbia, onde fez o concerto "Blues del Norte de Malí".

Além de estudar em Bamako e Abidjan, viveu na Suíça e na França, participando de eventos musicais, organizando e fazendo conferências, discutindo o papel das mulheres, da cultura e do espaço na sociedade tamacheque e africana. Em seu percurso, emergem a conjugação da criação em sua mixidade (MIXINGE, 2000) e plasticidade aliada a reflexões em experiências que podem ser poderosas, política e existencialmente, 297 para a configuração de novas possibilidades e probabilidades de vida. A dimensão saariana é explícita em sua criação e construção identitária, onde realça que os profetas encontraram suas inspirações no deserto.

Porque nós vivemos e somos o Saara e, também, toda filosofia do Saara. Então, é uma felicidade e um constante questionamento, por isso, muitas vezes, somos premiados pela beleza e dureza da vida. Sempre costumo dizer que entre nós, seus filhos, a relação entre o deserto e nós é uma relação de amantes. Onde quer que estejamos, onde quer que vamos, ele sempre nos atrai. Sempre voltamos. Porque nós vivemos momentos únicos, momentos que não podemos esquecer. Então, são como os momentos dos amantes (Entrevista 19. Keltoum Walet Emastagh, 2018). O tema da pluralidade de identificações que constituem a pessoa é caro a

Keltoum, que se assume como de cultura tamacheque, sendo filha de pai Soghoi e mãe

Tamacheque. Assim, Keltoum Walet Emastagh é, igualmente, Keltoum Maïga. Em seu

último álbum declara-se filha de duas mães ( annaten ): o deserto ( tenere ) que na língua tamacheque é uma palavra feminina e sua mãe: “minhas duas mães que me ensinaram a observar e ensinaram a me respeitar e, respeitando eu expresso meu sofrimento que procuro compreender de modo universal, pois o que nos acontece no mundo de hoje, concerne a todos” (Entrevista 19. Keltoum Wallet Emastagh, 2018).

Segundo Keltoum, os/as azawadianos/as fazem parte de um movimento embebido de sentidos e desejos revolucionários, cada um de sua maneira. Para ela, a responsabilidade maior das dificuldades enfrentadas tem sido das lideranças, pois “a revolução precisa de organização, de preparação, de cabeças pensantes e de confiança”.

Há centralismo e falta de partilha de responsabilidades, pois, por vezes “os outros não respondem ao amanokal (chefe), resultando em sobrecarga. Mas, há igualmente, os que não querem dividir sua timinukila (poder) com ninguém”, centralizando tudo em suas mãos. Ainda chamou atenção para a falta de valorização das lideranças mais

298 consequentes: “às vezes as pessoas preferem aqueles que destroem mais do que os que constroem”.

Sua preocupação concentra-se na política, motivo de seu engajamento como artista e militância, sendo presidente da ONG Chet-Agna (filhas da cultura) que reúne mulheres de Bamako, Kidal e de Gao, pois hoje a existência tamacheque está em jogo. Essa existência significa sua cultura, sua tradição, suas artes, pois não conseguir mais tocar sua música e fazer sua poesia é uma morte, ameaçando o desaparecimento de uma cultura milenar, remetendo a assassinatos de tamacheque por jihadistas , ou simplesmente por ladrões, sem que a sociedade assuma suas responsabilidades e atue na defesa social.

Hoje, no Mali, existe um problema de diálogo. Os malineses devem aprender a se sentar e conversar, realmente, um com o outro. Desde a independência, o conflito persiste. E então, os malineses realmente conhecem a história, sua história desde a independência? Eu não penso assim. Quantas rebeliões houve até hoje? E não perguntamos por que todas essas rebeliões? Estamos falando de racismo, pessoas do norte que não querem as do sul; o norte é que é racista. O racismo é algo que surge da ignorância dos humanos. Na verdade, a diferença é pensada como assustadora, mas é beleza. É graças à diferença que evoluímos, porque o que não temos, vemos no outro. A diferença nos permite ir em busca do melhor. Quando tomamos a diferença como algo ruim, negativo, torna-se destrutivo. (...) Infelizmente, ainda não exploramos essas diferenças. Devemos aprender nossa história, que conhecemos pouco ou nada. Por que não se perguntar por quê? E colocar de lado os rumores espalhados pelo vento por causa de pessoas que têm todo o interesse que o Norte e Sul nunca se entendam!” (KELTOUM apud AG TITA, 2014, online ). O clip de promoção da canção Watcha foi registrado em terra tamacheque na

Argélia, sugindo a continuidade de paisagens e os laços profundos entre A região de Adrar

(Mali) e Ahggar (Argélia). Seu trabalho impulsiona a presença tamacheque nos cenários culturais na cidade de Bamako, cujas práticas expressivas alcançam circuitos novos, a mídia e tangencia o debate político sobre o presente e o desafio renovado à coabitação da diferença, de apelo à multiplicidade de narrativas que compõem o Mali. Nelas, Sundjata recebe o chamado imperativo de acomodar-se à própria ideia do outro que compõe, mas que não abdica de si, nem se deixa reduzir ao mesmo. No desafio malinês encontra-se o 299 fim de um tempo que ainda era possível, nas disputas narrativas, encobrir o drama e se limitar a constatar a existência das nações sociológicas, impedidas de expressão, memória e continuidade histórica, como se fossem justaposições sem alma de um Estado abstrato, da nação jurídica (TSHIYEMBE, 2001, 2005), tomando parte de sua formação cultural e histórica como sendo geral. Essa violência simbólica, social, cultural, jurídica e econômica evidencia a necessidade de sua desconstrução.

Composições e pluralidade da diáspora tamacheque em Bamako

O conflito armado de 2012 e seus desdobramentos causou um imenso deslocamento de populações tamacheque, oriundas de várias regiões para a capital do

Mali, Bamako, adensando a migração interna com configurações existenciais que coincidem com a formulação da noção de insílio de Mario Benedetti (1984). Desde a assinatura de acordo de Argel, em 2015 272 , há comerciantes, empresários, políticos e até lideranças de movimentos de Azawad, que constituíram residências na capital. Muitos desses imigrantes habitam bairro de periferia de Bamako, chamado Sirakoro. Com ironia

- que revela o incômodo causado por essa migração -, o bairro foi apelidado

Surakabougou (“bairro de Suruka”), termo que designa as populações de línguas árabe e tamacheque, ou seja, os Mouros e os Kel Tamacheque.

Nas ruas desse bairro periférico de Bamako, observamos, igualmente, a presença das populações tamacheque e moura, que se instalaram fugindo dos efeitos da guerra. As vestimentas das mulheres tamacheque e moura ( issighnas , assagnis no singular em tamacheque ou mlahif em hassaniya,) é um marcador identitário da diferença. Do mesmo modo, ocorre com o turbante ( taguelmust ), acompanhado ou não pelo grande bubu dos

272 O acordo foi assinado em Argel no dia 15 de maio pelo governo do Mali e em 20 de junho de 2015, pela Coordenação de Movimentos de Azawad em Bamako (CMA), após uma longa discussão e pressão da parte da Comunidade Internacional.

300 homens ( tekatkat , singular; tikadkaden , plural, em tamacheque ou darra’a em hassinya), além de outros elementos culturais.

Durante as minhas idas e vindas a esse bairro nas visitas familiares, observei jovens e, às vezes, mesmos adultos (homens e mulheres), reunidos em torno do chá verde do deserto. Isso, nós praticamos em casa de primos, em meio a jogos como isseghan ou jogo de cartas. Em artigo do Jornal do Mali, republicado pelo blog Tamoudre, encontramos outras nomeações do bairro: “pequena Kidal” ou “Surakabougou”, para mencionar a presença dessa população. O jornalista assinalou, ainda, que “os Tuaregues no Sirakoro são certamente mais numerosos que em outros bairros de Bamako, não se pode passar três ruas sem encontrar um tamacheque” 273 .

Como meus primos, que saem de outros bairros para visitar familiares em

Sirakoro, existem muitos jovens que fazem o mesmo, sendo frequentes os concertos musicais no bairro. Em matéria publicada pelo portal online Malinet , um jovem se refere sentimento de estar em Kidal quando ocorrem as festas ou outras cerimônias, como casamentos e batizados (AG ISMAGUEL, 2018) 274 . São situações de reencontros e reconciliação pois, “teríamos preferido estar em casa. Mas, na verdade, entre nós, tudo foi destruído”. Assim, explicou um jovem kidalense que, em Sirakoro, persiste a nostalgia do retorno: “aqui não pode ser Kidal. Sua terra natal, não é como outro lugar. Sua terra é o lugar onde você nasceu. Você tem a nostalgia de alguns rios (ueds ), de alguns riachos.

Nós todos temos saudades da nossa terra natal” (apud AG ISMAGUEL, 2018) 275 .

Ketoum Walet Emastagh mencionou sua preocupação com o futuro dessa diáspora tamacheque que, com o tempo, pode até perder sua língua, nesse deslocamento traumático e seguido de desestruturações das regiões de origem e, mesmo das relações familiares no

273 Ver: http://www.tamoudre.org/developpement/migrations/sirakoro-petite-kidal-de-bamako/. 274 Ver: http://www.malinet.net/flash-info/sirakoro-la-petite-kidal-de-bamako/. 275 Ver: http://www.tamoudre.org/developpement/migrations/sirakoro-petite-kidal-de-bamako/. 301 conflito que afeta a todos. Sublinhou que há crianças que nascem hoje, em Bamako, que se iniciam na língua bambara muito cedo, pois o convívio pode ser intenso e dominante nos espaços públicos, escolas e mesmo em casa na interação com bambara.

No campo das artes considerada como expressão pública, a língua é um diferencial de grande significação e fator de inclusão ou exclusão. Costuma-se dizer não ser possível ter reconhecimento em Bamako a/o artista que não se expresse em bamanan. O ano de

2018 viu surgir no cenário cultural da capital o clip oficial Tarhanine de Kader Tarhanin

- considerado um talento emergente da nova geração de músicos do eixo cultural Kidal-

Tamanrasset -, que estabeleceu um marco, por diversas razões, nas interações musicais entre ritmos, gestualidades e universo linguístico. O título cria um paralelismo tartanin/djarabi em que tarhanin em tamacheque e diarabi em bamanan significam, respectivamente, meu amor e amor.

A trama narrativa, gestual e a ambientação, põem no centro dois homens de mundos diferentes que se mesclam e sobrepõem de variadas maneiras. Eles são: um mandenca, Sidiki Diabaté (filho de Toumani Diabaté), linguagem de djeli de Sundjata, e um tamacheque, nascido em Tamanrasset, herdeiro da música ichúmar que chegou a

Bamako em 2016. Kader Tarhanin foi recebido com festa pelos jovens tamacheque, pois havia adquirido grande reputação por sua interpretação de Akal illey Azawad, adas nzzagh azawad, que significa: nossa terra é Azawad, habitaremos nela, Azawad 276 .

O vídeo-clip de Kader Tarhanin, ricamente produzido por Essakane Produções, revela a sobreposição entre música e interesses políticos pelo elenco de instituições apoiadoras: Governo do Mali, Cooperação Suíça, Embaixadas da Noruega, dos Países

Baixos, dos Estados Unidos, Marrocos no Mali e Comissão DRR, Fundação DOEN,

276 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=PQgKVOIEMno

302

MINUSMA, Timbuktu Renaissance, Instruments For Africa, Seydoni Production,

ORTM, Malitel SA, PMU Mali, SAER Mali e BMS, Comissão Nacional de

Desarmamento, Desmobilização e Reinserção 277 .

Keltoum havia chamado minha atenção para a dimensão linguística, pois estava no concerto em que Kader havia cantado em bamanan, comentando que “saudamos acordos, a paz e nos tornamos malineses, mas não podemos perder nossa agna (cultura), não deveríamos cantar em bambara”. Para ela, é importante que se escute e se execute canções nas diferentes línguas do Mali, como fula, songhoi ou hassaniya, pois essas compõem o mesmo espaço e a mesma geografia e, deste modo, possuem muita coisa em comum. Contudo, cantar em bamanan neste momento corresponde, para Keltoum, em ato de submissão ao Estado do Mali que insiste em não nos reconhecer como identidade cultural legítima. Ela entende e aceita cantar em francês, por ser a língua oficial do país.

Ela mesma trabalha com músicos Songhoi de Mopti e de Timbuctu. A questão fundamental aqui são as implicações que derivam, numa sociedade plurilinguística, do fato de se ignorar deliberadamente ou desconsiderar “a pré-ciência de que as outras línguas existem e de que elas nos influenciam mesmo sem que o saibamos (GLISSANT,

2005, p.145).

A atitude reflexiva na relação com o diverso atravessa sem que se configure em conversão. Esse é um desafio cultural e é um desafio político a ser, igualmente, elaborado na ancoragem de experiências contextualizadas.

277 Commission Nationale de Désarmement, Démobilisation et Réinsertion (CNDDR), dirigida plo ex- ministro Zahabi Ould Sidy Mohamed, criada por decreto em 2015, em conformidade com o Acordo para a paz e a reconciliançao no Mali (artigos 18, 19 e 20). 303

Vida em comum: movências entre festivais e encontros intercomunitários em um casamento em Bamako

Os casamentos no mundo tamacheque são “grandes analogias e cerimônias” assemelhadas a práticas carnavalescas (BERNUS; BERNUS, 1981). As grandes cerimônias, como práticas festivas, continuam a existir mesmo nos centros urbanos.

Em 2017, participando de uma comemoração em duas festas simultâneas organizadas pelas famílias do marido e da esposa, percebia-se o enlace das experiências musicais, construindo cenários de sentidos internos para a continuidade das atividades culturais em territorialidades móveis. A noiva era filha e sobrinha de duas artistas do grupo Tartit, Zeyna Walet Oumar e Fadimata Walet Oumar (Disco), respectivamente, não partilhando, portanto, do palco com o restante do grupo.

Uma grande tenda foi construída para receber os convidados e servir de palco e pista de dança em que se viam pessoas de variadas idades dançando. Estavam presentes pessoas de várias tiwšaten de diversas regiões de Azawad: de Kidal, de Gao, de Menaka e de Timbuctu, mesmo que é a região do casal. Na poética da vestimenta identitária, de homens e mulheres, joias e adereços compunham com cores, gestualidade e o deslizamento de tecidos sobre corpos, prestígio e cadeias de sentidos de reconhecimento de si e do espaço comum. Foram convidados o grupo Tartit, Aratan n’Akal e Etran de

Timbuctu para tocarem durante os festejos. As músicas da guitarra e da tende/tehardant , além de takamba , conviveram na festividade. Assim, o famoso enhad e aggu do grupo

Tartit, Amannou, compartilhou o palco com Etran de Timbuctu e Aratan n’Akal.

O casamento, como ato de vida e como criação performática única, estabelecia um cenário de produção, com recortes e recomposição de linguagens que se acumulam em montagens, na arte de convívio entre cotidiano e ficção, alimentando imaginários.

Como nos festivais, produz enredos e negociações materializadas em gestos e diferentes

304 formas de musicalidades, que permitem travessias entre permanência e transformação.

Na mobilidade espaço-tempo da poética, impregna-se o sentimento de que é possível estar em Timbuctu, mesmo em Bamako.

Figura 28. Cenários de uma casamento-festival em Bamako.

Fonte: acervo pessoal do pesquisador

Cada música possui sua performance dançante, ainda que sua coreografia seja livre e espontânea, ocorrendo dentro de uma linguagem gestual mutualmente reconhecida como parte de um repertório comum. Foi Tartit que fez a abertura. Disco, Fadimata Walet

Oumar, além de dezenas de mulheres tamacheque, de famílias de grande prestígio, 305 encontravam-se no local reservado para dançar. Essas mulheres, ricamente vestidas com roupas padronizadas, que indicavam ser as madrinhas da noiva, usavam joias de ouro e de prata, atestando seu status social.

A cerimônia registrou a presença de Balkis Walet Mohamed Ali Ag Attaher, que todos chamavam de “A Princesa”, tia da noiva que viajou do Marrocos, onde reside, para prestigiar o casamento. Figura 29. Casamento-festival, Balkis Walet Mohamed Ali Ag Attaher.

Fonte: arquivo pessoal do pesquisador

A festividade começou às 9 horas da manhã, após o casamento oficial na prefeitura e seguiu até a noite. Naquele dia, andávamos no bairro como se fosse Gargando, cidade natal daquela família, ou em qualquer acampamento tamacheque. Viver e rever o movimento dessas expressões culturais na diáspora ressignifica a migração e a própria noção de espacialidade e pertencimento, que se tornam terras tamacheque num recorte de percepção que nos transporta e reestabelece sentidos do local no presente. Todos os homens usavam seus ilechan e grandes tikadkaden . Todos dançando e cantando. As brincadeiras das crianças e a presença dos inadan e agoutan amplificavam a ambiência festiva em meio a mulheres e homens que epalhavam dinheiro, recuperado alegremente pelos agoutan , em prática cultural que permanece viva em várias sociedades na(s)

306

África(s), seja ela do Mande ou do Saara, em sociedades diferentes como Kel

Tamacheque, Songhoi, Hauçá, entre outras.

A música de tendé tocada pelas mulheres do grupo Tartit, a música de tehardante de Amanou e a guitarra dos Ichúmar, de Etran de Timbuctu e de Aratan n’Akal, criaram um festival, em encontro intercomunitário inter-tamacheque. Sua singularidade estava em ter ocorrido numa cidade grande e não sobre dunas e, sobretudo, de ser realizada em território reconstituído e tornado próprio, como são as embaixadas modernas, em terras do sul do Mali, mais do que isto, na capital do Mali.

A festa foi dupla e se realizava paralelamente na casa das famílias da noiva e do noivo. Havia dezenas de carros que faziam idas e vindas entre a casa do noivo em

Yirimadio e Kalabankoro Adeken, onde a família da noiva residia. A cozinha tradicional tamacheque como alabadja , egaynas , entre outras iguarias muito apreciadas, acrescentavam valor à cerimônia.

Ensaios de tessituras culturais partilhadas: dualidades e recusa

Entre novembro de 2016 e fevereiro de 2017, estive atento a cenas 278 de conectividade, ainda que fluidas ou fugazes, entre o mundo tamacheque e outras identidades, como dogon, bwa, songhoi, mandenca e bambara.

Um concerto intitulado “Triângulo identitário: Dogon, Bwa, Tamacheque”, foi organizado pelo Centro Cultural Tumast, em dezembro de 2016, constituindo cenário que merece ser considerado na análise. Mamadou Togo, da Associação Ginna Dogon, elucidou sua proposição sobre a centralidade da cultura na tessitura da experiência humana:

a cultura é o que resta ao homem quando tudo perde, isso é real. Você pode não ter dinheiro, não ter outros bens, nem ter algo para comer, sua cultura permanece. Ela não vai a lugar nenhum, ela vai lhe

278 Conforme Crapanzano (2005). 307

acompanhar. Então, eu saúdo este concerto e peço a Deus que isto se repita frequentemente com músicos de diversos horizontes, para que nós todos possamos nos encontrar (Discurso 1. Mamadou Togo, 2016). Mamadou Togo fora convidado para assistir um concerto em que músicos de três etnias participaram no Centro Cultural Tumast, organizado com o intuito de celebrar a paz e o final da guerra, em 2017. Nas palavras de Togo, Tumast não é apenas um lugar para descobrir as culturas e tradições de povos de norte do Mali, pois além destes, outras expressões culturais transitam no Tumast: “temos os BWA que são nossos irmãos, temos, também, nós mesmos os Dogon, presentes aqui. Este entrelaçamento ao meu ver deve se fortalecer para que todos os malineses se sintam como se fossem uma mesma etnia”

(Discurso 1. Mamadou Togo, 2016).

Naquela noite, compareceram personalidades públicas tamacheque na maioria, além de dogon e songhoi, mobilizados tanto pelo debate como pelo concerto. As artes encontravam-se embaralhadas à vida política, construindo seu papel no esforço da reconciliação. O estranhamento musical era notório, pois a pista de dança apenas ganhava vida nas apresentações musicais tamacheque. Havia um clima tenso e a festa demorou para começar, tendo sido iniciada por apresentadores jovens que mediaram a cerimônia, fazendo circular a palavra entre as autoridades. Na ocasião ficou destacado o discurso de

Mamadou Togo, em que fez alusão a uma aliança entre Dogon e Tamacheque, declarando: “Então primos 279 , estejam seguros de que nós Dogon, dia e noite estamos com vocês, se algo acontecer a vocês, fiquem seguros de que algo aconteceu conosco também, nós vos apoiamos (Discurso 1. Mamadou Togo, 2016)

Mohamed Ag Ossad, intelectual tamacheque e mestre da cerimônia, definia sua compreensão de que “sem paz não há cultura, não há música e não há festivais ou bienais

279 Derivado de forma de tratamento entre aliados.

308 culturais”. Para isso, segundo o presidente de Guina-Dogon, importa alcançar “a paz que buscamos no Mali, que não conseguiremos sem este entrelaçamento cultural” (Discurso

1. Mamadou Togo, 2016).

O intelectual dogon abriu um parêntese em sua alocução, para discorrer sobre a tese de relações diferenciadas entre dogon e tamacheque que se espraiaria no ambiente político. Insistiu que haveria entre eles, uma aliança catártica como forma de fortalecer a coesão social, tibubacha 280 . Esta constitui prática social oeste-africana, de provocações ou zombarias ritualizadas que, frequentemente, participa de aliança estabelecida na pacificação de conflitos entre pessoas, linhagens ou etnicidades. Algumas vezes, é estabelecida entre grupos sociais com diferentes modos de vida. As palavras de Togo lembraram a análise realizada por Canut e Smith (2006), na qual se referem que tais práticas têm sido utilizadas para conferir profundidade histórica e justificar um sentimento nacional que preexistiu à formação do Estado-nação, herdeiro do período colonial.

No decorrer de seu discurso, Mamadou Togo provocou a audiência, majoritariamente tamacheque: “Dizem que os tuaregue são rebeldes, mas para que um homem ou uma pessoa se rebele contra um sistema ou alguma coisa, é preciso que tenha razões e estas razões existem ou existiram” (Discurso 1. Mamadou Togo, 2016). Os conflitos armados resultaram em “sociedade malinesa sem cabeça e sem rabo”, continuou

Amadou Togo, lamentando, também, os contrassensos que persistem nas relações.

A paz é muito cara porque as pessoas não têm confiança umas nas outras, é cara porque as pessoas não se dizem a verdade, é cara porque a sinceridade faz falta ou porque as pessoas, frequentemente, não se gostam, por quê? Porque não se conhecem. Quando você não conhece alguém, não conhece sua cultura, não conhece como ele evolui, você ficará desconfiado. (...) As pessoas não dizem o que pensam e não pensam o que elas dizem, a gente é falsa. Nós somos falsos no Mali. A equidade e a lisura nos falta. Enquanto não formos diretos, será

280 Ver também: Paulme, 1944; Sissako, 2002; Douyon, 2006. 309

muito difícil conseguirmos uma saída (Discurso 1. Mamadou Togo, 2016). Enfrentando a difícil dimensão relacional, existe uma recusa que afeta a percepção porque as emoções e o apego a posições enrijecidas conduziram ao distanciamento mútuo,

à luta por interesses e as pessoas têm permanecido longe da compreensão do que é fundamental para a coabitação e a convivência. Cada um em suas posições guarda sua verdade que não está pronta a mudanças. Mas as responsabilidades, também, não são iguais nem o poder equilibrado. A defesa incondicional do Estado (ou de governos) é, para alguns, indiscutível, fixando e endurecendo a percepção do país, não como construção histórica de nação, mas mantendo o conceito jacobino francês de um estado rígido e centralizado.

A percepção popular recupera apenas fragmentos dessa ideologia, por meio de afirmações infinitamente repetidas de tipo “um só povo, um objetivo, uma só fé” ou

“Mali, único e indivisível”. A centralização do estado não é a única possibilidade de se trabalhar o poder político nacional, esta foi uma decisão e pode ser questionada e negociada. Contudo, existem alternativas que não comprometem a unidade nacional.

Nesse sentido, importa retomar as palavras de Andy Morgan, autor de Music, Culture and

Conflict in Mali, que declarou em 2014:

por que não olhar para os länder da Alemanha, os parlamentos do País de Gales e Escócia, governo local na Catalunha ou mesmo ouso dizer, Quebec e o sistema federal no Canadá? O Mali precisa encontrar um novo mecanismo de governo tribal, regional e nacional, no qual os poderes apropriados de tomada de decisão, especialmente aqueles relacionados a impostos, segurança, educação e investimento, sejam transferidos para estruturas que funcionem como engrenagens independentes em uma máquina maior. Não é uma tarefa fácil, eu sei, mas existem muitos exemplos ao redor do mundo que podem servir como estímulos (MORGAN, 2014, online )281 . São poucos os intelectuais que se dedicaram, no Mali, a realizar reflexões aprofundada sobre possibilidades de um estado plural. Necessitamos discutir a

281 Ver: https://www.andymorganwrites.com/does-the-touareg-question-have-an-answer/.

310 reorganização da estrutura governamental, porém esses temas permanecem tabu no país e, muitas vezes, são os que vieram de outras realidades que se dedicaram a seu debate.

Nesse ambiente de grande desconfiança política há vazios e a reflexão permanece afetada por polarizações, de forma que existe uma dimensão de elaborações que se faz no

âmbito das manifestações culturais. Entre elas os festivais, em suas diversas modalidades, se convertem em dispositivo cultural complexo (FOUCAULT, 2001), pleno de contradições. Contudo, têm sido capazes de construir passagens e realizar experimentações e composições, fugazes ou duradouras, em fluxos de interações musicais, interculturais e interpessoais.

Kosso, nome artístico de Barka Dembélé, músico e filho a diva da música de

Timbuctu 282 Khaira Arby, apontou que era tempo dos malineses agirem “para que a paz volte e para que a reconciliação aconteça da melhor forma”. Kosso, filho de mãe moura e pai senufo, comentou as dificuldades de se viver juntos numa nação comum.

Sei que não é fácil esquecer, mas é preciso perdoar o passado e é preciso nos aproximar. Estamos condenados a reviver juntos no Mali, seja tuaregue, árabe, bambara, songhoi, fula, não importa a etnia. Somos obrigados a viver juntos, pois sendo tuaregue você tem um irmão bambara, sendo bambara você tem um irmão tuaregue, sendo árabe você tem um irmão fula. Esta é a cultura malinesa, pois há casamentos entre etnias. O casamento nos condenou a vivermos juntos, pois uma vez casados temos filhos, netos e mesmo que, hoje, cada um queira dar as costas para o outro, isto não é fácil: se um quer o Mali e outro quer Azawad. Azawad é o Mali e Azawad pode existir dentro do Mali. Barka Dembélé, fez apelo específico aos artistas em canções interpretadas por

Khaira Arby (Amalgame, de 2015), acrescentando: “meus irmãos, colegas, parentes, artistas, sejam árabes, tuaregues, bozo, bambara, songhoi, fulas, não importa qual é sua raça, é preciso cantar e lutar contra o amálgama. Se continuarmos no amálgama, nos arrependeremos”. Com Khayra, lembra que produziu um vídeo-clip que foi,

282 Falecida em 2018. Ver: http://musique.rfi.fr/musique-africaine/20180821-khaira-arby-chanteuse- grande-voix-mali-deces. 311 posteriormente, incluído no filme They will have to kill us first: malian music in exile, de

Aliou Touré, Oumar Touré e Johanna Schwartz (2016).

Esse trabalho de desconstrução de amálgamas é complexo, pois tende a manter polarizações, deslocando o problema para a definição do inimigo e do perigoso. Dizer que ‘nem todo homem é rebelde’ ou ‘nem todo tuaregue é rebelde’, evita a questão sobre as motivações e forças que geraram rebeliões. A desconstrução do estigma - já consolidado em décadas de derrisões, de incapacidade em trabalhar teoricamente o tema e de gerir política e economicamente as demandas concretas -, não pode ser trabalhada pela separação entre joio e trigo, que seria, mais uma vez, permanecer no jogo da exclusão. A difícil tarefa de saltar para fora dos muros da diferença irredutível, tem conhecido iniciativas, como as apontadas, ou seja, em festivais, encontros intercomunitários e em cenários culturais urbanos.

Em 2017, acompanhando o grupo Aratan N’Akal, participei como festivaleiro da décima edição do Fescauri - Festival International des Cauris du Mandé -, que é uma atividade cultural anual, realizada em Siby, localidade situada nas proximidades de

Bamako e dirigida por Mandjou Yattara. Seu objetivo: a promoção da cultura mandinga, tendo sido prestigiado por diversas personalidades malinesas, como Djoncounda Traoré, ex presidente da transição; a ministra da Cultura Ramatoulaye Diallo e a ministra do

Artesanato e Turismo, Nina Walet Intallou, além do diretor geral do Festival au Désert,

Manny Ansari. Em seu discurso de abertura indicava que o Festival Internacional de

Cauris de Mandé (Fescauri) significava “um ponto de partida da agenda cultural anual do país, juntamente com a Caravana pela Paz itinerante, com o Festival sobre o Níger e o

Festival do triângulo de Balafon”.

312

Na primeira noite, a atividade musical foi intensa e muitos artistas se apresentaram antes do grupo tamacheque. Já no palco, a música de Aratan n’Akal foi precedida pelo hino nacional do Mali, seguido de uma abertura também singular: “eles trocaram as armas pelas guitarras e trocaram a guerra pelo amor”, declarava o apresentador. Cantaram três canções, uma homenagem de Issa Ag Hadani na despedida da namorada ao deixar

Timbuctu, a segunda foi Amidini (meu amigo), composta nos anos 1980 por Intayadene

Ag Ablil em que apela a união dos Kel Tamacheque e a terceira foi Teley tarha, há amor, dedicado a um amor que está longe. Associar os jovens tamacheque à guerra e às armas numa atividade cultural, aponta para relações estereotipadas e enrijecidas, onde não há lugar para a negociação de que falava Keltoum. A recepção tornava mais ambígua a presença tamacheque, representada por um único grupo entre vários artistas e grupos malineses, revelando a dimensão das dificuldades a serem socialmente trabalhadas, talvez ainda, por longo período.

A experiência cotidiana tem porosidades em que se processam campos de ação comuns que são redesenhados nas identificações plurais, flutuantes ou sucessivas, de forma que cada pessoa/grupo reelabora, à sua maneira, os cenários de práticas expressivas de sua rede de relações e identificações. As combinações são inúmeras. Assim, têm ocorrido reformulações e reconfigurações da vida cultural de Bamako em tempo de crises, especialmente, no efervescente circuito musical. Espaço Songhoi e Le Fali Fâto são dois dos principais ambientes em Bamako, onde concertos, dança ou exposições animavam a programação constantemente, contando com participação regular ou esporádica, de músicos tamacheque. Em especial o Espaço Songhoi alimenta-se de grande permeabilidade musical, com ritmos do norte, mas não apenas, formando, no momento 313 do estudo de campo, um motor de convergência onde se encontravam e interagiam experiências culturais e identitárias abertas.

Figura 30. Ambiente noturno do espaço Songhoi em Bamako.

Fonte: acervo pessoal do pesquisador

Zouzou, jovem artista dogon, nascido em Gao e proprietário de espaço cultural localizado no bairro de Golf, caracterizado pela ambiência do blues , expandiu experiências interculturais. O produtor e guitarrista de Aratan nAkal, Issa Ag Hadani, trabalhava no local, criando, além disso uma abertura para performances semanais do grupo. Com eles, víamos um conjunto de jovens ocuparem a pista de danças com a gestualidade e os ritmos tamacheque. Quando está em Bamako, Cheick Tidiane Seck, conhecido músico do Afro jazz, um dos famosos frequentadores do espaço “gosto de me distrair 283 lá com o pequeno Zouzou que criou um clube chamado Songhoi Blues. Vou sem me importar qual o grupo que se apresenta, Khaira Arby ou outros. Eu toco um

283 Da expressão: d'aller m'éclater

314 pouco, e depois sigo para o Club África e toco lá também, ou vou até Soumaila Kanouté”

(Entrevista 26. Cheick Tidiane Seck. 2017).

Fali Fâto, que significa burro louco, é um bar com espaços abertos, que busca conjugar arte e cultura, realizando eventos, dança, cinema, concertos, exposições fotográficas e restaurante. Este foi um dos espaços conhecidos na trilha dos concertos de

Aratan n’Akal, em sua marcha pelo reconhecimento artístico em Bamako, que é uma grande cidade com recursos técnicos. Se o deserto é inspirador para a criação, as grandes cidades são melhores para a construção de público e para a vida profissional, com possibilidades de salas diversificadas e contatos, troca entre diferentes expressões e artistas de formações variadas, considerou Bady Ag Aghaly, apontando, também, que esses intercâmbios interculturais equivalem a viagens, transformando ou ampliando a visão sobre o mundo. “No presente não temos liberdade em nossa terra, não é possível tocar ou organizar festivais e concertos. Nós temos medo” (Entrevista 34. Bady Ag

Alghaly. 2017). Bamako significa hoje um apoio e uma saída para uma vida possível e o

Centro Cultural Tumanst, um lugar onde “somos benvindos e de encontro, sendo simbólico por ter tido a presença de nossos grandes artistas, Tinariwem Tamkrist e

Terakaft” (Entrevista 34. Bady Ag Alghaly. 2017).

O Festival Cultural Dogon Ogobagna, que ocorreu em Bamako, entre 23 e 29 de janeiro de 2017, organizado pela Associação Ginna Dogon, cujo presidente é Mamadou

Togo, foi destacado como cena com passagens ou porosidades identitárias. Em plena celebração da cultura dogon havia exposição, comercialização de objetos e concertos de guitarra tamacheque com Aratan n’Akal e Etran de Timbuctu. Amassagou Dougnon

(apud LA MESLÉE, 2017) 284 , curador do festival, enfatizou que o projeto cuidou de

284 Ver LA MESLÉE Valérie Marin. Bamako, le chant des résistants. Le point Afrique online, 16 Fev. 2017. Disponível em: http://afrique.lepoint.fr/culture/bamako-le-chant-des-resistants-16-02-2017- 2105246_2256.php Acesso em: 30 Out. 2018. 315

“convidar grupos de várias etnias do país com as quais os Dogon, povo agregador, possuem tradicionalmente um pacto de não-agressão”. Ramatoulaye Diallo, a Ministra de

Cultura, abriu o evento com o tema “A cultura a serviço da paz e da reconciliação nacional”. Durante uma semana, o público teve acesso a objetos culturais, conferências- debates, música, dança e exposições-vendas, que se somaram aos jogos tradicionais dogon.

Amassagou Dougnon, por sua vez, denunciou o crescimento de fundamentalismos mesmo na capital, onde “vive-se todos os dias com ameaça de intolerância, interdição de festejar o Natal ou o 31 de dezembro por pregadores extremistas, cujos discursos são difundidos publicamente”. Sugere, portanto, a existência de laços entre extremistas, o poder político e a estrutura de governo.

A estrela da terceira noite, Habib Koité, recebeu convidados especiais Etran de

Timbuctu. Sensível à dimensão dramática da situação, Habib abriu o concerto dando boa noite em várias línguas, com atenção ao dogon (dono so) e em tamacheque. Além disso, mobilizou, vez por outra, o público para que fossem dançar independentemente dos ritmos e da origem dos músicos no palco.

O desenvolvimento de atividades turísticas na região Dogon foi intenso durante várias décadas, envolvendo grande número de pessoas direta ou indiretamente. Como a crise malinesa agravou-se, a região já não tem podido receber visitantes, deixando a população refém do conflito que tem abalado drasticamente essa região saeliana. Neste contexto, os eventos culturais transferidos para Bamako procuram minimizar a situação, além de apontar questionamentos da abertura do processo de diálogo para a paz e retomada das atividades econômicas (BAGAYOKO, WANONO, 2017).

316

Há medo, insegurança e vida social e econômica destruídas ou drasticamente alteradas nas regiões centro-norte. Os festivais, os cenários culturais urbanos, os maquis

(restaurantes-danceterias ao ar livre) entre outros, buscam recriar possibilidades econômicas, fragmentos de vínculos e algum espaço de liberdade por caminhos de expressões culturais. Contudo, muitas são as interrogações. Quais as medidas tomadas para viabilizar a vida das populações do norte e do centro do país? Seguiremos acomodados à migração e à diáspora até mesmo das iniciativas culturais? Até quando permaneceremos reféns de acordos não implementados, de debates ausentes e de comandos autoritários que não conhecemos o rosto?

317

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CONCLUSÃO. Recorrer à esperança em horizontes confiscados

Os festivais e encontros intercomunitários evocam íntima relação entre cultura e poder, correspondendo à forma de ação política multiforme, complexa, plena de disputa e, igualmente, de tensões criativas (FARIAS, 2004). A proposta inicial do Festival au

Désert continha, na sua elaboração, uma dimensão disruptiva, buscando gerar narrativas alternativas que legitimassem a sociedade Kel Tamacheque como experiência histórica no Mali. Na percepção tamacheque, processos persistentes de invalidação social têm afetado e excluído a sociedade da partilha do bem-comum. Além disso, ressente-se de ser considerada como culturalmente estranha à formulação de “normalidade essencial”

(CABAÇO, 2009) malinesa, desenhada durante o colonialismo francês e reatualizada desde os primeiros anos do governo de Modibo Keïta. Este último projetou transformações profundas para a sociedade tamacheque, pois a entendeu como expressão de um modo de vida arcaico, considerando-a como empecilho para seus planos produtivos e, deste modo, destinada a ter seus corpos rebeldes vigiados, administrados e tornados dóceis (FOUCAULT, 2009). As cicatrizes deixadas no corpo da sociedade não têm cedido espaço ao esquecimento. Sem dimensionar esse ressentimento, dificilmente se compreende a densidade de sentidos que conseguiram obter as edições mais renomadas do Festival au Désert.

A relação entre norma e identidade foi discutida no estudo de José Luís Cabaço

(2009), quando analisou a construção de identidades em projetos identitários nacionais.

Como em outras políticas de identidades conduzidas por líderes pan-africanos que se tornaram dirigentes das novas nações, a árdua definição, implícita ou explícita, dessa normalidade foi essencial em suas perspectivas e modo de ver as sociedades. Para sua legitimação criaram “narrativas fundantes”, alicerçadas na classificação, hierarquização 319 em uma edificação que decidiu englobar ou excluir, estabelece “quem é” ou “quem não

é” (CABAÇO, 2009, p.19).

Nos substratos históricos do mal-estar social - formados tanto pela colonização como pelas ideologias de progresso pós-independências -, residem os agentes de revoltas e rebeliões contra o poder central. Daí emergiram, por sua vez, o nacionalismo tamacheque contemporâneo. Todavia, sem convencimento por meio de estratégias de paz não se pode vencer sem revezes a vontade e o imaginário de uma sociedade, pois emergem mobilizações, mais ou menos organizadas, de contrapoder que podem adquirir plasticidade de ações e resiliências duradouras. Lembro que o amor passional e irracional pela justiça assim como o amor passional e irracional pela liberdade, mencionados por

Hannah Arendt (2018, p.122) movimentam, igualmente, o imaginário e os horizontes de sociedades alicerçadas no nomadismo e no pastorismo sazonal.

Após mais de cinquenta anos da proclamação negociada da República do Mali, três fases relativas ao tipo de reivindicação tamacheque podem ser ressaltadas. Na primeira (1990-1996), houve luta por integração e na segunda (2000-2010) reivindicou- se reconhecimento e justiça. Vale lembrar que o projeto de emancipação já havia tomado forma jurídica no processo de descolonização, de forma que os territórios tamacheque chegaram a ser reunidos por meio da Lei n.57-27 de 10/01/1957, sob a denominação de

Organização Comum das Regiões Saarianas (OCRS) 285 . Esta reconfiguração territorial implicava em vantagens para a França que estava ciente de que as independências eram inevitáveis (TRAORÉ, s.d.). Além da relevância econômica, por serem regiões ricas em recursos minerais (como urânio e petróleo) 286 , as ambições francesas constituiam, no

285 No contexto da dissertação de mestrado, desenvolvi uma reflexão mais detalhada sobre a Organização Comum das Regiões Saarianas (AG ADNANE, 2014), retomei aqui considerações principais. 286 Na Argélia, o petróleo começava a jorrar em Edjeleh (fronteira coma Líbia), e logo após iniciou as produções dos maiores poços de petróleo do apís em Hassi Messaoud e o gás natural em Hassi R'Mel. Além disto, fosfato, minério de ferro e cobre foram descobertos em Mauritanie e a exploração de ferro

320

âmbito internacional dos anos 1950, um complexo jogo entre interesses politico- econômicos de “entrelaçamento colonial”, conforme expressão de Pierre Boilley (1995).

O Saara do sul da Argélia possuia estatuto, territórios tamacheque, teve experieência bem distinta das regiões do norte, pois, em 1905, já havia sido administrativamente excluído da França, enquanto que o norte já havia se tornado parte da metrópole desde 1848. Assim, os habitantes das regiões conheceram uma diferenciação histórica e política importante durante a colonização com consequências para as dinâmicas de poder que se constituiriam no futuro país. Lembro que em 1958, o assessor territorial de Gundam, Mohamed El-Mehdi, chefe do Kel Antessar reivindicou a independência da zona saariana durante a visita do Governador Geral das Colônias

Messmer, em 1958, projeto que havia sido defendido por seu irmão Mohamed Ali Ag

Attaher desde a década de 1940.

As fronteiras derivam mais de interesses dominantes que de questões de identidades coletivas históricas (KIPRÉ, 2005). Os interesses e horizontes eram complexos e diferentes entre as sociedades saarianas e as do sul nas regiões administrativas do Sudão Francês, ressaltando que a descolonização foi um processo de lutas, de compreensão histórica e poder muito desiguais. A discussão sobre as fronteiras pós-coloniais foi realizada de modo centralizado com acordos que deixaram marcas que seguem gerando conflitos.

A vontade de permanecer, politicamente e administrativamente, como unidade independente, o mais rapidamente possível do Sudão Francês, foi expressa de diversos modos (BOILLEY, 1995, 1999; SAINT-GIRONS, 2008; CLAUDOT-HAWAD, 1990,

começou em 1959 a partir do urânio foi descoberto em 1957, na região do Aïr no Nìger onde o estânio já era explorado (LECOCQ, 2010, online ). 321

1996, 2001). Entre eles, a carta dirigida ao presidente da França em 30 de maio de 1958, assinada por trezentos chefes tradicionais, notáveis e comerciantes tamacheque, berabiche, kunta, arma e songhai do Delta do Níger (Timbuctu, Gao e Gundam), conforme relatado por Boilley (1999). O projeto expresso na carta encontraria forte oposição do partido que conduzia o movimento de independência, sendo que a resposta resultou em vários anos de prisão para dois dos chefes que assinaram a carta, além de acusações reiteradas ao conjunto das sociedades saarianas de racismo e colaboração com os colonizadores europeus.

Naffet Keïta (2005) afirmou que a posição dos Kel Tamacheque precisa ser compreendida no interior da descolonização e dos conflitos presentes nos anos que se seguiram à independência do Mali e do Níger. Destaco que na Assembléia Nacional

Francesa havia deputados originários da África Ocidental, membros da Union soudanaise-Rassemblement démocratique africain (US-RDA). Além disso, havia a posição de lideranças tamacheque de diferentes tiwšaten - como Intalla Ag Attaher

(Ifoghas), Bissaada Ag Khakad (Idnan), Hamzata Ag Alkassoumm (Kel Telabit), Baye

Ag Atikbel (Kel Telguetrat), Kola Ag Saghid (Irayakan), Mohamed Elmehdi Ag Attaher

Al-Ansari, chefe dos Kel Insar de Gundam - que pertenciam ou apostavam nas possibilidades no interior da US-RDA (LECOCQ, 2010b).

Os Kel tamacheque experimentaram imensos obstáculos à sua emancipação da subordinação iniciada pela ocupação francesa. No imaginário social tamacheque, portanto, a saída do colonizador, deveria implicar em independência, mesmo que não imediata. As independências deixaram-lhes diante de três caminhos, afirmaram na carta citada anteriormente: a submissão, a luta armada ou o exílio.

322

A incapacidade de resolução definitiva do conflito territorial constitui, em meu entendimento, uma das bases da continuidade dos enfrentamentos sucessivos no Mali e

Níger. Contudo, o desenho geopolítico atual, mostra que já não cabe uma narrativa centrada apenas nas relações França-Mali, França-Kel Tamacheque ou Mali-Kel

Tamacheque. Atuam, também, no conflito político Tamacheque-Mali, questões e interesses regionais e do continente - incluindo acordos bilaterais, internacionais -, interesses de organizações regionais (CEDEAO) e continental (UA). A esta ordem de fatores, somam-se a ação do crime organizado e guerras entre potências que deslocam cenários constantemente 287 .

É notório que o ano de 2012 afetou, profundamente, a vida das pessoas e acirrou as disputas de narrativas na definição do que é ou deva ser o Mali enquanto experiência nacional. Quebrou-se o edifício unitário construído por meio de definição de nação centralizada, única e capaz de trabalhar harmoniosamente suas diferenças, mas ignorando as revoltas e rebeliões reiteradas desde o governo de Modibo Keïta. O dossiê ou a chamada “Questão Tamacheque”, tem perturbado a narrativa unitária dominante de

“malianidade”. No entanto, as aspirações tamacheque publicamente reiteradas, talvez sejam “as mesmas dos cidadãos não-tuaregue do Mali, da Argélia ou do Níger.

Nomeadamente: menos corrupção, melhores escolas e clínicas, melhor infraestrutura de transportes, taxas e impostos mais justos, mais oportunidades de emprego e, como no caso de outras minorias, maior reconhecimento cultural” (MORGAN, 2014, online ).

Ainda em nossos dias, em grande parte das regiões tamacheque, as pessoas não têm nem mesmo acesso à água. Os investimentos no bem comum, entre 1960 até hoje,

287 Refiro aos desdobramentos de ofensivas dos Estados Unidos pelo controle mundial após a reunificação da Alemanha (1989), o fim da União Soviética e, portanto, da Guerra Fria, em 1991. Além disso, é preciso não esquecer a presença crescente do United States Africa Command (U.S. AFRICOM), estabelecido sob George W. Bush, em 2007 e operacionalizado em 2008 (FOUMANE, 2017). 323 foram completamente insuficientes. Responderam apenas à instalação de poucas estruturas de funcionamento do próprio sistema. A luta cotidiana nos acampamentos e pequenas cidades é por encontrar água e conseguir o alimento do dia. É possível pensar que a proclamação da independência, apesar de ser desejo da maior parte de azawadianos, alimentado - geração após geração -, insurgiu-se sem análise de sua efetiva possibilidade.

Decorrência, pelo menos em parte, da falência política dos processos sociais de reconciliação e da precariedade de verdadeiros investimentos econômicos e sociais previstos nos acordos de paz de 1996.

Além de inviabilizar a continuidades de festivais e encontros intercomunitários tão presentes na primeira década do século XXI, a guerra gerou conflitos intensos no bojo dos movimentos organizados tamacheque desde 2012, impactando as relações, a criação e a performance musical e poética. A politização e fragmentação da população tamacheque entre pró-Estado e pró-rebelião foi imensa no decorrer dos últimos anos e diminuiu sua força sócio-política tanto em Bamako como em Azawad (Norte do Mali).

A “política é o cupim que come tudo em seu caminho”, exclamou Mohamed Ag

Ossad (Entrevista 26. 2016) ao lembrar que no início de conflito, entre 2012 até 2014, a sociedade, mesmo que com divergências, permanecia harmonizada na experiência migratória em Bamako. Exemplo disso, foi vivenciado no Centro Cultural Tumast, pois, houve momentos que a presença nos concertos ficava condicionada à origem do artista.

“Quando um músico de Kidal tocava, apenas gente de Kidal iam assistir ao concerto. Se fosse o artista de uma comunidade conhecida como apoiadora da CMA 288 , as pessoas que

288 Coordenação dos Movimentos de Azawad.

324 apoiam a vertente GATIA 289 , se ausentavam” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016), isto foi resultado da politização que dividiu a sociedade.

Durante o tempo da crise, o Centro Cultural Tumast fez esforços para se tornar um lugar de diálogos intercomunitários e interculturais. Neste sentido, vários responsáveis do governo, jornalistas e agentes culturais do Mali e, mesmo, estrangeiros se interessaram em descobrir suas atividades. O Ministério da Cultura por meio de seu secretário geral, manifestou interesse em realizar um concerto de Tinariwen em Bamako.

Isso ocorreu depois de produzirem oito álbuns, receber vários prêmios, entre eles, o

Grammy (2012, 2018), BBC Award e Praetorius Prize (MORGAN, 2013). Em meu entender, o interesse em Tinariwen, demostrado pelas autoridades malinesas na ocasião, foi circunstancial, vinculado ao cenário da aplicação dos acordos de paz. A crítica ao desinteresse em relação aos grupos musicais tamacheque tanto por parte do público como das instituições culturais do país, tem sido constante. Essa falta de reconhecimento oficial das expressões culturais tamacheque intensificou os conflitos, pois persiste grande iniquidade, conforme Ag Ossad, “quando se trata de Oumou Sangaré ou Salif Keïta, todos reconhecem, mas Tinariwen, não!” (Entrevista 26. Mohamed Ag Ossad, 2016). Desde o início da guerra de 2012, houve um concerto do grupo na capital do Mali apenas em 2017, durante uma escala para o início de turnê internacional, organizado para subsidiar recursos destinados aos refugiados e à finalização de um álbum do grupo Tartit.

Devido à ocupação pelos fundamentalistas das regiões de Timbuctu e Gao, além de Kidal, as atividades culturais passaram a ser perseguidas e a sofrer represálias. Muitos músicos migraram ou exilaram-se. Abdalla Ag Lamida, um dos membros de Tinariwen, chegou a ser sequestrado quando tentava evitar que destruíssem sua guitarra. Após o

289 Grupo de Autodefesa Tuaregue Imighad e Aliados. 325 episódio, os membros do grupo Tinariwen voltaram a viver em Tamanrasset, na Argélia.

Ag Ossad enfatizou, por sua vez, que costumava “insistir com os malineses do sul que somos deste país. Tinariwen fez sucesso no exterior, no mundo inteiro e isso aconteceu sem qualquer apoio ou reconhecimento”. Na Argélia, mesmo que com contradições devido à ideologia arabista, tem havido reconhecimento. Desse modo, assumem

Tinariwen como grupo musical de Tamanrasset, tendo representado a Argélia na abertura da copa na África do Sul, em 2010. A capital do Ahaggar 290 é, sem dúvida, um dos centros culturais tamacheque. Foi lá que a música Ichúmar se desenvolveu e onde muitos membros de Tinariwen fizeram suas primeiras composições.

Lalla Badi 291 - ícone da tende e da musicalidade feminina -, falou a Pauline

Maisterra “apresentei-me em mais de 75 países, mas é no deserto onde mais gosto de cantar, pois me lembra a infância” (...) “o Festival Taragalte é, realmente, original. Gosto daqui, pois não há protocolo, nem grandes hotéis”. Coerente com as práticas culturais tamacheque, Lalla, natural de In Guezzam, Argélia (próximo à fronteira com Níger), transmitiu seu repertório e conhecimentos, instrumental e poético, a suas sobrinhas, durante muitos anos. Foi somente aos oitenta anos que gravou seu primeiro álbum - devido ao apoio de Associação Salvar o Imzad 292 -, com suas canções mais apreciadas em novos arranjos. Nabil Bennacer, seu produtor e sobrinho, assinalou que foam introduzidos na produção do álbum, sons de guitarra, de djembé , de bateria, mas mantendo a sonoridade da música da Lalla (MAISTERRA, 2018) 293 . A dinâmica plurinacional da música tamacheque ampliou suas possibilidades de alcance com a

290 Uma das regiões tamacheque da Argélia. 291 Reside na capital do Ahaggar, Tamanraset, é considerada uma das principais referências artísticas no mundo saariano e tamacheque de forma particular. 292 Association Sauver l’Imzad. Ver https://www.imzadanzad.com/. 293 Ver: http://femmesdumaroc.com/portrait/lalla-badi-la-voix-tindi-du-desert-38430.

326 projeção de artistas como ela. Mesmo que permaneça sem ser reconhecida como legítima no Mali, essa musicalidade vem sendo produzida e apreciada em outros cenários.

O Saara tamacheque é vasto e diversificado. Apesar das dificuldades, há grande dinamismo e, ainda que os horizontes estejam difíceis no Mali, os festivais têm continuado sua marcha, como é o caso do Festival du Chameau (camelo) em Timiaouine, centro-sul da Argélia. Esta manifestação cultural - que conta com 24ª edições, sendo apoiada na figura emblemática do camelo - é “importante para o desenvolvimento econômico das regiões do Grande Sul Argelino e a promoção do turismo local”, segundo o ministro do Turismo e Artesanato 294 . Desde vários séculos, o camelo tem feito parte da vida cotidiana das populações saarianas, além de ter se transformado, nas últimas décadas, em centro de promoção do turismo, atraindo estrangeiros e pessoas de centros urbanos, como Argel ou Ghardaïa.

Além da Argélia, os festivais e a cultura poética movimentam-se com criatividade no Níger. Um dos eventos maiores é o Gani, celebrado no décimo segundo dia do mês seguinte ao mês lunar, aqqaten , correspondendo ao período entre a estação de chuva - quando as pastagens são abundantes e cada unidade política retorna a seus respectivos territórios - e no outono (CLAUDOT-HAWAD, 1992).

As artes do Gani eram praticadas pelos guerreiros tamacheque (Ikazkazen, Kel

Tekreza, os Kel Gharous, Kel Agalal) que dramatizavam tramas das relações políticas da sociedade. Segundo Claudot-Hawad (1992), seu enredo oferece uma oportunidade para se compreender a filosofia política e as formas de organização que se refazem na história.

Tornou-se, com o processo de islamização, associado à festa de nascimento do Profeta

Muhammad (a paz e a benção de Allah estejam sobre ele), deslocando-se temporalmente

294 http://www.tamoudre.org/touaregs/musique/le-festival-du-chameau-dans-sa-24e-edition-a-timiaouine/. 327 e afastando-se de seu caráter sazonal. Ela é, atualmente, celebrada em diferentes lugares e com diversas intensidades na região do Aïr, sendo percebida como impulsionadora do turismo no país.

O Bianu, outra manifestação que merece ulteriores estudos, constitui-se de músicas e danças, portanto, performances e narrativas, envolvendo a participação de toda a cidade de Agadez. Há uma organização em dois grupos de performances, o do leste e o do oeste, com envolvimento de grande número de participantes de idades diferentes que atravessam noites sob o poder dos tambores ( akanam ). Vestindo seus trajes mais prestigiosos, as duas divisões dançam e, depois, dirigem-se a Alarsès (5 km ao norte) de onde voltam no dia seguinte, dançando, cantando e agitando folhas de palmeiras pintadas com cores fortes

(ADAMOU e MOREL, 2005, p.91). De acordo com os antigos de Agadez, se a festa de

Bianu não for celebrada, a vida na terra pode ficar agitada.

Em In-Gall, região de Agadez, ocorre a cada ano a takubelt em torno da cura do sal (cure salée ), realizada desde muitos séculos, entre pastores e agricultores, sendo que sua última edição foi celebrada em 2018 295 . O Festival de Cure Salé 296 desenvolveu-se com sobreposição de camadas de história, sentidos e interesses que constroem e renovam negociações socais e culturais intercomunitárias. Ocorreu após as chuvas, quando é preciso oferecer sal aos rebanhos, que se encontra em abundância nas suas pastagens naturais. Bombino elucidou, em sua entrevista, que este festival é hoje um dos principais no Níger, “In-Gall possui ambiência acolhedora no mar do Aïr, sendo, também, formidável para os cameleiros. Neste festival, participam muitas outras etnias e há mesmo estrangeiros que vêm da Europa e outros lugares (Entrevista 4. Moctar Ag

Oumar Bombino, 2015).

295 https://www.youtube.com/watch?v=cBUzZU1E6m0. 296 https://www.ingall-niger.org/index.php/la-cure-salee.

328

Retomar aqui tais festivais tamacheque fora do Mali, confere melhor compreensão das movências regionais próprias a suas populações, que edificam plataformas culturais facilitadoras resiliência a pressão de fundamentalismos, sem se atrelar a fronteiras artificiais. As identificações culturais, mesmo flexíveis, são construções constantes que não permitem ser subsumidas a identidades nacionais unificadas e absolutas (HALL, 2004) sem o recurso à violência. Tal situação constitui uma das bases das eclosões de revoltas, pois sem a negociação efetiva e a composição das diferenças (de língua, etnicidade, gênero, práticas expressivas ou símbolos históricos), o fechamento na defesa regional ou local se acentua. Andy Morgan (2014, online ) ponderou que “o desejo de enfraquecer as diferenças culturais e promover uma espécie de hegemonia pan-mandinga no Mali, pan-hauçá no Níger ou pan-árabe na

Argélia e na Líbia é simultaneamente retrógrado e condenado”.

De modo paralelo, creio que não há mais como continuar sem processos de desconstrução dessas arquiteturas monolíticas de sociedade, sem reconhecimento das nações culturais, impondo traçados territoriais com extrema centralização e verticalização do poder. Mbembe (2010) indicou que a descolonização exige um processo partilhado, não havendo, de modo complementar, possibilidade para a descolonização da África sem auto-descolonização. Os festivais e encontros intercomunitários articulam ética, saberes e criatividades, abrindo possibilidades de reconciliação. Para isto será preciso constituir um novo pacto realizado pelas sociedades, em delicadas e cuidadosas conversações a fim de que seja viável a desimpregnação de lógicas e de conceitos desqualificadores e desumanizantes nas relações entre alteridades. 329

A música Ichúmar 297 dos anos 1980, bases do Festival au Désert e de outras modalidades de atividades culturais, permanece sendo a inspiração poética e musical tamacheque atual. Como indicou Iyadou Ag Lech (2012, online )298 , a música é um modo de fazer “a guerra contra a guerra”. Em diversas entrevistas, o guitarrista de Tinariwen expressou seu desejo de que os Kel Tamacheque encontrem sua liberdade porque “o amor pela liberdade é um sentimento comum às sociedades e que também eles, compreendem o que é útil ou benéfico para si” (AG LECH, 2012, online ). No contexto da constituição de espaços dialógicos e intercâmbios transculturais, Tartit, Tamikrest, Keltoum Walet

Emastagh, Etran de Timbuctu, Arantan N’Akal, Amanar de Kidal, entre outros grupos musicais tamacheque, têm feito apresentações na capital do Mali, desde o início de 2013.

Performance e criação confundem-se, frequentemente, na experiência do tempo e da espacialidade, pois as artes são cotidianamente habitadas. Esse pensamento deu o tom da conversação em M’Hamid El-Ghizlane com Lalla Badi que se dirigiu a mim como faz a mestra na educação do discípulo: “para nós, habitantes do Saara, nossa agna

(cultura/tradição) é tecida pela tendé , pois estamos ligados à tendé e tudo que nos conduz

à alegria, nos liga à tendé e ao emzad, acompanhados de imnas (camelos)” (Entrevista

29. Lalla Badi, 2017). Na visão de Lalla, a tendé , o emzad e a guitarra são modalidades fundamentais da música dos Kel Tamacheque, enfatizando que estão sempre em nossas vidas: “quando nasce seu filho, temos a tendé , quando seu filho casa, tendé ; nas competições de mulheres e homens, fazemos tendé ”. A estética ( tihussay ) e as práticas artísticas fazem parte dessa agna , ela pode se transformar, somar, mas, “não há outra que a possa substituir (...). É nossa ibda (tradição antiga), no dia que vocês abandonarem sua

297 Ou do movimento da Techúmara. 298 Audiovisual disponível em: https://youtu.be/aA2-vJS6tvc.

330 cultura, tendé , tenda ( ehaket ), guitarra, camelos ( imnas ), saibam que vocês se perderão”, completou Lalla.

As modalidades da criação tamacheque, ricas e inquietas, movimentam diversas formas de comunicação que antecipam, muitas vezes, as exigências de mudança. A poética talvez seja um dos motores do modo de vida, por isso permanece incontornável.

Um exemplo é a poesia, tissiway/ tishiwey , que contém inúmeros estilos, entre eles, existe uma modalidade declamada (com vocalização específica) - podendo ser acompanhada por percussão -, que se autonomizou dos códigos de conduta e de valores socialmente partilhados (CLAUDOT-HAWAD, 2009). São poesias que fogem aos ditados das normas e abordam temas difíceis e controversos, trabalhando o reencontro de sentidos para experiências de fragmentação e de um mundo que se perde. Sendo assim, essas tissiway

/tishiwey sonorizam críticas sociais em encontros poéticos e convocam, igualmente, a esperança a fim de manter a marcha da vida.

O Festival au Désert em sua gênese, constituiu-se com base em uma narrativa insurgente da história tamacheque. Foi conquistando espaços em alianças de longa distância até se transformar num outro festival com forte influência nacional e de financiadores como a União Europeia. Após 2012, transformou-se profundamente para configurar a Caravana Cultural pela Paz, um projeto que possui uma ambiguidade inerente (talvez incontornável), confundindo-se com as políticas do governo do Mali e com organizações internacionais. A musicalidade expressa-se em performances que podem derramar para fora dos palcos, escapar à fixidez e se misturar à vida, recusando a condenação de permanecer como “mortos vivos” da necropolítica ou necropoder

(MBEMBE, 2016), formas de subjugação de dispositivos do poder. Essa dimensão de cultura de descarte, de contingente extranumerário, explodiu de muitos modos. 331

Ainda que carregue parte de sua herança inicial de luta cultural, a Caravana pela

Paz se realiza a cada ano, em meio a questionamentos internos de apropriação simbólica de um horizonte distinto. Enquanto passa a Caravana pela Paz em diversos festivais, minguada cada vez mais de vozes e corpos tamacheque, existem pessoas nos campos de refugiados, denunciando a ausência da paz e divergências ainda muito profundas. O enquadramento nacional é uma moldura fina e porosa, que fica borrada, deixando escapar seu conteúdo. Os perigos, no entanto, se multiplicaram, a hora é de cautela.

De certo modo, quando os festivais (em suas diversas modalidades) são postos em ação, atuam um drama, reatualizam uma esperança e constroem, no presente, uma experiência de felicidade. Se a cultura é parte da narrativa humana, comum a todos nós, ela comporta trilhas por onde percorrem as esperanças (WILLIAMS, 2015). Mas a felicidade exige dignidade e tem seus códigos. No mundo Kel Tamacheque, a expressão da alegria é ritmada pela poesia da palavra e dos corpos que sabem romper fronteiras do cotidiano, girar e saltar, sem ir além dos limites de sua posição. Ela é, igualmente, um jogo de desafios. “Quando procuro me alegrar, sinto vergonha”, considerou Maya em um documentário, sobre sua situação de refugiada no campo de M’Bera, na Mauritânia

(ARTHUS-BERTRAND, 2015, online )299 . “Não consigo sentir alegria. Tenho muita vergonha desta situação; um mendigo feliz é uma atração. Uma alma que se contenta da mentira, é alma que já se perdeu”.

Nesses contextos, como pensar o lugar dos encontros? Que sentido tem a música então? Ela canta as expressões das almas. O que deu alma aos festivais está fragmentado e lançado para fora de si, como refugiados, exilados ou como deslocados. Assim, também,

299 Ver: Arthus-Bertrand, Yann. https://youtu.be/tcCNZQaqcl4.

332 estão os festivais, silenciados em sua maioria ou transformados em alguma outra manifestação em que já não é possível se reconhecer.

Se neste estudo foi possível acompanhar a criatividade e a festa tamacheque em

Bamako, mesmo em uma cidade que não é a sua, conheceu, também, situações que sugerem uma sobrevivência devido ao apelo simbólico. Os festivais tamacheque no Mali permanecem como fragmentos em exílios, insílios ou em inúmeras formas de acomodação de incertezas. Os encontros intercomunitários estão em estado de espera.

Tinariwen mostrou-se em seus dois últimos álbuns - lançados durante a guerra

(Emmar, 2014 e Elwan, 2017) -, como liderança discreta, íntegra e segura, continuando a habitar e a interpretar aqueles seus desertos. Diante da gravidade dos conflitos de

“elefantes”, fortes e perigosos, fazem soar, mais uma vez, as cordas de corpos e vozes da poética de uma denúncia-lamento. Com efeito, quando poemas configuram uma orientação ideal são musicalizados, integrando bem-comum e patrimônio partilhado. No

álbum Elwan, o tenere - metáfora de Azawad, utopia de um Saara sem os vícios das fronteiras -, é mostrado como lugar de tráficos e violências extremas -, tornando-se um campo de batalha em que os mais fortes abandonam os mais frágeis e em que a alegria desertou por traição, tudo que resta é a terra que geme.

De onde vem a esperança? Ela se desenha pela música que transporta horizontes como faz a canção de Ammanou em M’Bera, um grande campo de refugiados na

Mauritânia. Na cena de abertura do documentário Human, le filme, Ammanou anuncia com sua tehardant : “esta música é dedicada a Yalli 300 , esta é a tehardant dos Kel

Tamacheque de todos lugares e tempos: sua primeira música é esta, feita com tehardant” .

Finalmente, a música guarda uma garantia de integridade, pois, para o artista ela mantém

300 É prática corrente iniciar uma canção em nome de um personagem de prestígio. Neste caso ele dedica a uma mulher da comunidade Kel Ansar. 333 a dignidade: “ acharaf, a dignidade, está acima de tudo. Minha permanência aqui, mesmo ganhando tudo que existe nesta vida e na outra [paraíso], não faz sentido, não tem sabor, pois conheço o que provocou minha presença neste lugar. Porque, nós Kel Tamacheque, não temos hábito de ficar num lugar que não escolhemos, em que não podemos fazer nem dizer o que queremos. Por isto, não tem gosto a vida no campo [de refugiados].”

(AMMANOU apud ARTHUS-BERTRAND, 2015, online )301 . Ag Lech (2012, online ), também, teceu considerações sobre os perigos em que vive, concluindo que “se os

Tuaregue desaparecerem, até mesmo o Saara desaparecerá”, pois, os dramas são muitos e até mesmo seu ecossistema, climaticamente, “estão ameaçados”.

A vida insurgente é, contraditoriamente, uma canção de esperança. No momento de guerra como o atual, o imaginário poético procura evacuar a humilhação, além de realizar crítica social e reflexões. Esperança não apenas de sobrevivência, mas de exigência de sentido para que os Kel Tamacheque possam continuar sua marcha pelo

Saara, por desertos e por outros horizontes onde continuem musicais e criando encontros.

A paz íntegra, cantada em poemas, não será erguida com ausência de reconhecimento

(atwelmad) , aceitação ( atwaqbal ) de seu modo de vida, justiça ( iqqud ), inclusão ( tohar ) e igualdade social ( igah ), mas igualmente, não se fará sem uma densa autocrítica e auto remodelação. Keltoum Walet falou, ainda, de suas esperanças-desejos.

Tenho esperança que um dia todos os malineses se olhem de frente e digam: escapamos de algo muito grave. Tenho esperança de ver os políticos adquirirem consciência da realidade de nosso país. Tenho esperança de que um dia nossos compatriotas entendam que o interesse da nação precede os interesses individuais egoístas. Tenho esperança de que um dia saberemos que, antes de reclamar nossos direitos, precisamos cumprir os nossos deveres (KELTOUM apud AG TITA, 2014, online ) Tal perspectiva crítica da própria sociedade tamacheque aludida pela artista, foi vivamente cantada no último álbum de Tinariwen, Elwan (elefantes). O poema a seguir,

301 Ver: Arthus-Bertrand, Yann. https://youtu.be/tcCNZQaqcl4.

334

Ténéré tàqqàl, remete ao conflito e às disputas entre os próprios Kel Tamacheque, os quais abrem espaço para a destruição e o cancelamento da solidariedade, necessária para o bem comum e o enfrentamento de outros perigos externos.

Ténéré tàqqàl Tenere (Saara) tornou-se Eghàrghàr wa n-fissar um campo de espinhos Dàgh iknasàn elwan onde elefantes lutam entre si, Azzadàn dàgh-s alimmoz esmagando a grama macia sob suas patas.

Awwànàn ichinkad Adagh As gazelas encontraram refúgio Ibas tidwin igdad iskak alto nas montanhas Aherahàghnàt timizzagh As aves não voltam mais Tiwàr tekenzart idim n-àlyad para seus ninhos à noite Os campos fugiram todos.

Você pode ler a amargura A-wa àzzàman àssoheen nos rostos dos inocentes Dàgh idja amsistagh durante este difícil Azzaràn wi àssohàtnen tempo de contusões Idjmadàn inibdan em que toda solidariedade desertou.

Ammun dàgh-nàgh meddàn Os mais fortes impõem sua vontade Tàssiknàs tayitte n-nibrar E deixam para trás os mais fracos Tigla tisrawt fàlanàgh Muitos morreram Istàqqàt anmàghdar Por motivos equivocados E a alegria foi expulsa pelos traidores. Elwan é álbum devastador em sua crítica, nele o deserto se torna, cada vez mais, o terreno de batalha de poderosos ( ténéré dàgh iknasàn elwan ), não havendo alternativas diante de traidores que conduzem uma luta enganosa. Há, contudo, uma palavra de esperança enunciada pela voz das mulheres tamacheque (a ssàwt n- chàt-Tamashàq ). Elas se dirigem aos homens revolucionários, evocando a liberdade na esperança de que o amanhã se abra ( innàr did àffo tàffijàr ) e de escapar da servidão/opressão ( nizdjar

àlghabudiyya ).

O Saara, do Egito ao Marrocos, encontra-se, presentemente, sitiado e suas sociedades sequestradas por conjunturas de conflitos e guerras, além de estarem 335 submersas por paradoxos das políticas de controle migratório, extrapoladas da Europa e implantadas em países africanos. A pesquisa de campo, que não era de fácil realização, tornou-se extremamente difícil, ou quase inviável. Minha identidade tamacheque foi conclusiva para viabilizar as viagens à Gao e Zalabe-labé, realizadas em aviões militares da MINUSMA-ONU302 . Nos períodos de minha permanência, Gao sofreu dois grandes atentados.

Essas condições afetam todo o Saara, expandindo a densidade dramática e, ao mesmo tempo, as incrustações de esperança que se materializam em eventos como o

Festival Taragalte, o Festival dos Povos Nômades no Marrocos ou ainda, como a intensa atividade cultural das regiões do Aïr e Azawagh, no Níger e de Ahaggar e Tassili N’Ajjer, na Argélia. Agadez, Ifrouanne, Tamanrasset e Djanet são núcleos de grande dinâmica criativa que não se separam culturalmente de Kidal, Tessalit, Tin-Assako, Menaka além de Gao e Timbuctu (em suas ancoragens Kel Tamacheque).

Permanece, assim, no horizonte de pesquisa, um programa que dê continuidade ao campo de estudos saarianos, acessando suas proposições culturais a partir de sítios variados, atentando pelos modos de interconexão presentes e de passado recente vivido nas narrativas locais. As relações interpessoais e familiares entre M’Hamid El-Ghizlane, no Marrocos e as cidades de Gao, Timbuctu e Taudani são de grande interesse histórico e cultural. Além destas, é importante a realização de estudos sobre conexões saarianas atuais entre regiões no Marrocos e as sociedades Kunta e Arma (Ar Rumah) de Gao e

Timbuctu. Um dos projetos de futuro próximo, deve atribuir cuidadosa atenção aos arquivos das sociedades Kel Essuk (Tamkutat, Zalab-labé, Intahaqqa, Assuk).

302 Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização no Mali.

336

Retornar a M’Hamid para o Festival dos Povos Nômades que se realiza no coração da cidade, permitirá indagar sobre os laços com a territorialidade tamacheque, mas, também, a universos como Tindouf 303 , o oásis geograficamente mais próximo, situado na

Argélia, mas atravessado por uma barreira que, somada à forte vigilância militar, intenta romper todo porvir comum.

Durante a pesquisa em 2017, tive a oportunidade de dialogar com moradores que, ao saber de minha identidade tamacheque, falavam espontaneamente sobre familiares que migraram dessas regiões. Alguns regressaram e, devido às barreiras de viagem terrestre, perderam contato. Retecer esses fios afetivos e históricos, parece tarefa relevante para a história do Saara. Reitero, igualmente, meu interesse em estudos que se mantenham atentos às práticas expressivas concretizadas como modo de vida, como sociabilidade e conectividade, transpondo o mundo das fronteiras ou barreiras impostas, assim como do fechamento e da fixidez de perspectiva.

Finalmente, o canto tamacheque, por meio de concertos, festivais, encontros poéticos e intercomunitários inscreve-se, pouco a pouco, no imaginário da totalidade- mundo, pois nossas vidas saarianas “têm necessidade de todas as culturas” (GLISSANT,

2005, p. 156). Inseridos em uma “comunidade de cultura” que se assegura no esforço incessante de uma cultura comum (WILLIAMS, 2015, p.53), os festivais e encontros intercomunitários com os quais trabalhei neste percurso, talvez guardem essa fórmula de reconstrução de horizontes confiscados, como forma de contra poder, e de ampliação das possibilidades de entrelaçamentos de experiências criativas, sem as quais não há auto reconhecimento.

303 Localizado no extremo sudoeste da Argélia, a quase 1500Km de Argel. Reivindicada como parte do Grande Marrocos, foi palco de conflito armado (conhecida como Guerre des Sables ) com a Argélia em 1963. Haïlé Sélassié e Modibo Keïta, conduziram a conferência de Bamako em 29 e 30 de outubro, obtendo acordo de cessar-fogo (HEGGOY, 1970). 337

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