UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI ANDERSON GONÇALVES BARBOSA DA SILVA

O JOGO DE COM O TEMPO: Uma análise do universo audiovisual

SÃO PAULO

2015

ANDERSON GONÇALVES BARBOSA DA SILVA

O JOGO DE LOST COM O TEMPO: Uma análise do universo audiovisual

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra.

SÃO PAULO 2015

FICHA CATALOGRÁFICA

ANDERSON GONÇALVES BARBOSA DA SILVA

O JOGO DE LOST COM O TEMPO: Uma análise do universo audiovisual

Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dr. Maria Bernadette Cunha de Lyra

Aprovado em ----/-----/-----

Profa. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra

Prof. Dr. Gelson Santana

Prof. Dr. Wilton Garcia Sobrinho

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, que permitiu que eu chegasse até aqui; a minha noiva Dayana que esteve comigo todo o tempo; ao meu pai Armendes, minha mãe Iraci, minha irmã Nathalia assim como minha nova família, Adelicia, Fabiana e Lucas, Clara, Dudu e Lalá que tudo suportaram e apoiaram profundamente todas as minhas decisões; a minha orientadora Profa. Dra. Bernadette Lyra que me mostrou as veredas do caminho; ao mentor Prof. Dr. Gelson Santana por sua paciência e ao Prof. Dr. Wilton Garcia Sobrinho pelos preciosos apontamentos; a querida Alessandra Marota que sempre me auxiliou em tudo o que precisei; ao Prof. Dr. Rogério Ferraraz e Prof. Dra. Laura Cánepa pela orientação; aos queridos Prof. Dr. Renato Pucci e Profa. Dra. Sheila Schvarzman pelo seu constante incentivo; aos fantásticos Prof. Dr. Vicente Gosciola e Profa. Dra. Maria Inês Carlos Magno por permitirem o meu ingresso ao programa; ao amigo Prof. Me. Renato Tavares pela oportunidade única de estar aqui; aos mestres Prof. Me. Daniel Gâmbaro, Profa. Me. Thaís Saraiva, Prof. Me. Ricardo Matsuzawa, Prof. Me. Cláudio Yutaka, Prof. Dr. Maurício Monteiro, Prof. Me. Daniel Siqueira e Profa. Me. Priscila Gubiotti, pelo incentivo ao ingresso, amizade e auxílios constantes; a minha terapeuta Márcia pela ajuda; aos gestores Prof. Me. Marcelo Moreira, Prof. Me. Jander Zaneratto e Clóvis Prestes pela compreensão e ajuda quanto as missões profissionais. aos amigos e colegas de profissão Nilson Takasi, Holyver Yoshida, Rosana Parede, Juliana Donatiello, Marcelo Ribeiro, Wilson Nunes, Thiago Yamazaki, Maria Eugênia Borges, Bruno Botas, Bruno Bragante, Marília Folgoni, Barbarah Martins, Flávio Pinto e Thalles Gimenez por dividirem os pesos da caminhada; aos amigos Michel Botto, Daniel Felix, Marcio Quiriano, Vera Santos, Natália Oliveira, Paloma Quintão, Paulo Andrade, Wagner Benedetti Jr., Vagner Amaral e Mariana Jechiu por permanecerem ao meu lado mesmo com a ausência; as amigas mestrandas Juliana Midori e Nayara Vasconcelos pelo apoio nas horas de desespero; aos mestrandos Valdeci Gama, Gabriella Moura, Rafael Navarro, Matheus Tagé, Flávio Ferreira e Joselaine Santos pelo companheirismo; aos colegas Prof. Dr. Valdecir Becker, Prof. Me. Renato Coelho, Prof. Me. Nivaldo Ferraz e Profa. Me. Danielle Pinni pelas conversas e conselhos; enfim, aos que tornaram com sua ajuda esse sonho possível e palpável.

RESUMO

A série audiovisual Lost (2004-2010, J. J. Abrams, , Carlton Cuse) optou por inovar perante a um cenário de incertezas. Os criadores desenvolveram uma obra transmidiática que permitiu a exploração do universo ficcional da série e multiplicaram as formas de interação entre público e obra. O objetivo de “O jogo de Lost com o tempo: Uma análise do universo audiovisual” é utilizar conceitos de jogos como ferramentas para visualizar a relação entre Lost e seu público. O espectador, convidado a tornar-se um jogador capaz de caçar, coletar e reordenar os fragmentos de história monta seu próprio quebra cabeças que contem respostas dos enigmas e mistérios propostos. O tempo é visto mais de perto, tanto como elemento estruturador da narrativa quanto matéria das peças do jogo, permite aos jogadores empregarem sua própria experiência para completar lacunas deixadas propositalmente na narrativa. Assim Lost deve ser jogado caso o espectador deseje ter experiência completa proposta pelos seus criadores.

Palavras-chave: Lost, análise de série audiovisual, som e imagem, estratégias narrativas, jogo, tempo.

ABSTRACT

Lost is an audiovisual series (2004-2010, JJ Abrams, Damon Lindelof, Carlton Cuse) that opted for innovate in front of a uncertainties scenario. The creators have developed a transmedia work that allowed the exploration of series’s fictional universe and multiplied the interaction between viewers and the show. The goal of "O jogo de Lost com o tempo: Uma análise do universo audiovisual" is to use the game concepts as tools for view the relationship between Lost and its audience. The spectator is invited to becoming a player able to hunt, collect and reorder the history fragments to mount your own particular puzzle game that containing answers about the enigmas and mysteries proposed. In a closer, the time can be seen as structuring element of the narrative and substance of the game pieces, allowing players to use their own experience to complete gaps left intentionally in the narrative. Lost must be played if the spectator wants to have complete proposal experience by its creators.

Key-words: Lost, audiovisual series analyses, sound and image, narrative strategies, game, time.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 - Elementos ficcionais propostos na reunião para elaboração da história, em 02 de fevereiro de 2004 ...... 26 Ilustração 2 - Cartazes de “Procura-se”, que divulgaram a série na convenção Comic Con em San Diego, CA em 2004 ...... 31 Ilustração 3 - Desenvolvimento de técnicas narrativas apresentadas na primeira reunião da equipe criativa de Lost em 02 de fevereiro de 2004 ...... 39 Ilustração 4 - Analogia das obras do universo ficcional distribuídas em uma esfera 43 Ilustração 5 - Analogia dos elementos estruturais e o universo ficcional ...... 45 Ilustração 6 - Série como centro da narrativa transmidiática, orbitada pelas suas extensões ...... 53 Ilustração 7 - Distribuição da narrativa por temporada da série e extensões ...... 59 Ilustração 8 - O homem de preto joga Senet com seu irmão ...... 84 Ilustração 9 - , o verdadeiro exibe as peças de gamão em 1x01 The , enquanto o Homem de Preto exibe as pedras que o simbolizam e ao seu irmão Jacob, em 6x04 ...... 85

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Extensões de LOST quanto ao seu status de canonicidade ficcional ..... 48 Quadro 2 - Divisão dos jogos, segundo Roger Caillois ...... 84

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Espectadores no Horário Nobre por Sessão, de 1952 até 2007 ...... 20

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

A.R.G. – Alternate Reality Game, ou jogo de realidade alternativa

D.H.A.R.M.A. – Referente a Department Of Heuristics And Research On Material Applications Initiative, Ou Departamento de Heurística e Pesquisa de Aplicações Materiais – Departamento da fundação ficcional Hanso que explora as características da ilha de Lost.

DVD – Digital Video Disc, ou disco de vídeo digital

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 13

2. A TRAJETORIA DAS SÉRIES TELEVISIVAS: A GÊNESE DE LOST ...... 16

2.1 Convergência de meios ...... 16

2.2 A queda de audiência das grandes redes ...... 20

2.3 O nascimento de Nowhere ...... 22

2.4 Quando Nowhere tornou-se em Lost ...... 25

2.5 A conquista da base de fãs ...... 28

2.6 Uma narrativa transmidiática ...... 33

2.7 A criação do universo ficcional ...... 36

2.8 A expansão do universo ficcional ...... 44

3. O UNIVERSO DE LOST ...... 47

3.1 As obras do universo ficcional de Lost ...... 47

3.2 Status de canonicidade das obras ...... 49

3.3 Obras da narrativa transmidiática ...... 52

3.3.1 Jogos de realidade alternativa ...... 54

3.3.2 Mobisodes – Missing Pieces ...... 57

3.3.3 Mock-documentaries “Os seis da Oceanic” e “Mistérios do Universo” ...... 57

3.4 Distribuição da narrativa transmidiatica ...... 58

3.4.1 Descrição da narrativa em períodos ...... 60

3.4.2 Período de 2000 a.c. à 1881 ...... 60

3.4.3 Período de 1881 à 1954 ...... 62

3.4.4 Período de 1954 à 1977 ...... 62

3.4.5 Período de 1977 à 2004 ...... 65

3.4.6 Período de 2004 à 2007 ...... 71

3.4.7 Período após 2007 ...... 78

4. O JOGO DO TEMPO ...... 82

4.1 O jogo na diegese ...... 82

4.2 Categorias dos jogos na diegese ...... 84

4.3 O jogo na narrativa de Lost ...... 90

4.4 A natureza do jogo de Lost ...... 94

4.5 A paidia e o ludus ...... 97

4.6 O tempo como recurso narrativo ...... 100

4.7 O jogo do tempo ...... 102

4.8 Estratégias para a construção do jogo ...... 103

4.8.1 Anacronias: Analepse ...... 106

4.8.2 Utilização das prolepses ...... 108

4.8.3 Acronia ...... 109

4.9 Jogar com Lost ...... 111

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 115

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 122

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1. INTRODUÇÃO

Lost estreava na televisão aberta dos Estados Unidos em 22 de setembro de 2004 sem a pretensão de ser o que viria a ser: um programa que transformaria as relações dos espectadores com as séries televisivas. A história da sobrevivência após a catástrofe foi o combustível principal de Lost, mas não o único. A série, conseguiu inovar na forma de representação audiovisual de uma narrativa complexa, multifacetada, multitemática e em sintonia com as formas de expressão que borbulhavam no início do século XXI.

A série televisiva foi composta de 118 capítulos com 43 minutos de arte cada. Somente o episódio piloto exigiu um orçamento equivalente ao de um longa- metragem com custo aproximado entre 12 e 14 milhões de dólares. A produção cuidadosa utilizou uma estrutura gigantesca com mais de 150 personagens que gravaram durante seis anos no Havaí. Esse respaldo permitiu o desenrolar de uma trama gigantesca, formada das histórias entrelaçadas desses personagens. Ao utilizar recursos narrativos avançados, a série instiga a investigação das minúcias de seu universo ficcional, o que incita a busca de pistas para o desfecho da história.

Há contemporaneidade entre os autores da série J. J. Abrams, Damon Lindelof e Henry Jenkins, já que o autor estuda de perto as questões em relação ao processo de convergência de meios no início dos anos 2000, mesma época em que os criadores de Lost escreviam a série. O “ar do tempo” indicava que obras que fossem distribuídas por várias mídias poderiam ser uma aposta vantajosa para quem quisesse investir nesse território pouco explorado, enquanto os medos dos agentes produtores eram muitos. Evasão de público (e receitas) para outras mídias, questão dos direitos autorais, detalhes de sinergia entre empresas do mesmo conglomerado etc. Mas ao utilizar um cenário inicialmente desfavorável, Lost superou as incertezas em relação aos caminhos que deveriam ser seguidos. A série conseguiu apresentar soluções criativas que não só reverteu os índices decadentes de audiência como angariou milhões de fãs pelo mundo.

Ao optar pela narrativa transmidiática, Lost diversificou suas instâncias criativas, como a produção de jogos de realidade alternativa, livros com histórias complementares, documentários ficcionais, jogos de videogame etc. Além das 14

próprias equipes criativas, espectadores juntavam esforços em fóruns e comunidades online para compartilhar os conhecimentos inerentes a série em busca da elucidação dos mistérios da narrativa ao seu desenrolar. A disseminação da informação em outras plataformas ampliou a abrangência da série e aprofundou as possibilidades de experiência do espectador.

Dada a relevância e opções da série, esta pesquisa busca dentre as diversas obras que formam o universo ficcional de Lost, como se desenvolve uma narrativa transmidiática que concatena fragmentos advindos das mais diversas fontes em um sentido. Na série audiovisual em específico, pretende-se supor a presença do jogo que se desenrola entre os criadores e os espectadores e, através de suas formas, como se estabelecem as regras e incentivos ao ato de jogar. A compreensão dos termos desse pacto permite a complacência do espectador/jogador em vários níveis de interação e justifica seus atos.

Completados dez anos da exibição do episódio piloto é perceptível o papel fundamental que os produtos audiovisuais televisivos exercem na constituição do imaginário cultural. As mudanças das formas de expressão utilizadas imprimem um registro audiovisual valioso, que cunham sua presença no cerne daquele tempo e daquele espaço. Com o distanciamento necessário do estudo, o audiovisual oferece vestígios dos costumes, comportamentos, preocupações e aspirações da sociedade em que está inserida. Graças a especificidade do meio e as decisões de produção, sejam narrativas ou estéticas, é possível traçar caminhos até as origens das escolhas de agora e buscar tendências que indiquem caminho para o futuro.

O objetivo geral da pesquisa é analisar as formas narrativas da série televisiva de Lost e utiliza o viés do jogo como ferramenta. O objetivo específico é a busca do tempo como matéria própria do jogo, deflagra sua participação tanto como estrutura da narrativa, elemento ficcional e contribuição do jogador quanto a sua experiência. Para conquistar esses objetivos, partiremos do contexto do começo do século XXI em relação a convergência dos meios e o seu papel quanto as suas especificidades. Através de dados de produção da série, traçar como da emergência da situação surgiu um projeto transmidiático do porte de Lost, além de como constitui-se tal narrativa e estabelecem-se seus elementos e seu universo particular.

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No segundo momento, explorar as mais diversas obras que são parte integrante do universo ficcional de Lost. Além de uma visão geral sobre cada uma, estabelecer como os fragmentos de história contribuem para a narrativa e como eles são distribuídos em um quadro abrangente que faz um paralelo entre tempo real e tempo narrativo. Em síntese, um relato detalhado da narrativa organizada cronologicamente apresenta os personagens principais e suas ações no decorrer das seis temporadas televisivas.

E na terceira parte, evidenciar o jogo e suas categorias como temática diegética e estruturação narrativa simultaneamente. Ao levar em consideração as formas audiovisuais, encontrar evidências da sua presença na construção da narrativa transmidiática, encontrar sua natureza e seus tipos em Lost. A partir deste preceito, refletir sobre como o jogo espalha os fragmentos de tempo por todo o universo ficcional, e utiliza os como peças do jogo. Por fim, evidenciar a morfologia temporal da narrativa intermedia a apresentação da historia e ao final do capítulo, evidenciar a possibilidade de se jogar com a série de formas diferentes conforme a vontade do jogador.

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2. A TRAJETORIA DAS SÉRIES TELEVISIVAS: A GÊNESE DE LOST

Lost é a televisão pensada fora da caixa.

Henry Jenkins (2010)

2.1 Convergência de meios

A televisão mudou. A grande caixa preta em posição central na sala de estar das famílias deu lugar a um aparelho híbrido, em forma de janela e em frente aos sofás. Já não há chiados e nem fantasmas característicos das ultrapassadas transmissões analógicas, mas sim alta definição de imagem e de som, traz conteúdo interativo gratuito através das grandes emissoras de TV aberta. A tecnologia oferece possibilidades ímpares ao somar aos simples receptores de outrora recursos impressionantes tomados de empréstimo dos computadores pessoais e telefones celulares.

A forma do aparelho de tevê não remete mais a de um cubo. Atualizou-se a um quadro, um retângulo de espessura ínfima e análogo a uma janela com imagem e sons que convidam a imersão em um outro mundo. Um mundo composto de fragmentos tão díspares quanto os milhões de computadores que formam a rede da internet, sustentado pela informação que utiliza a luz como transporte e que caminha em fibras ótica. Um outro universo de formas particulares acessível através do controle remoto em formato de textos, imagens, sons e vídeos.

Desde que a digitalização da transmissão da TV tornou-se realidade, a revolução tecnológica provocou fortes discussões em torno dos conceitos cristalizados de especificidade televisiva baseados no meio técnico. O que diferencia os meios e o que os categoriza “[...] estaria ontologicamente ligada à sua gênese tecnológica” (CAPANEMA, 2008), ou seja, as características de um meio seriam definidas através de suas particularidades técnicas.

A especificidade do cinema estaria baseada na imagem química, revelada a partir da exposição da película sensibilizada com partículas de prata à luz. Sua

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profundidade de campo1 reduzida traria a possibilidade de trabalhar artisticamente os planos de uma imagem aumenta a capacidade de representação, e sua imagem panorâmica permitiria a exploração das escalas de planos, movimentos de câmera e plano-sequência (BAZIN, 1958). Ainda em relação a imagem cinematográfica, a teoria em questão prevê que exista uma maior latitude2 particular da película, a relação entre sombras e luzes demonstram um constructo imagético mais graduado. A tela gigantesca com infinidade de detalhes somados a um som trabalhado, transmitido por vários autofalantes, produzido com riqueza de timbres e texturas seriam pensados para envolver tecnicamente o espectador sentado confortavelmente em uma poltrona de uma sala escura.

Em contraste com o cinema, a especificidade da televisão consistiria em possuir uma imagem “mosaicada” (MCLUHAN, 1974), “achatada” (BAZIN, 1958), baseada em captação e transmissão eletrônicas. Seria um “meio frio” (BAZIN, 1958), de ruim leitura e baixa resolução, além de ter um som deficiente. Outras características particulares incluiriam a “narrativa veloz, a exploração dos cortes, o privilégio de planos fechados e uma linguagem mais oral do que visual [...]” (CAPANEMA, 2008, p. 195). Outro ponto importante estaria na apreensão do conteúdo, que ao contrário do cinema, aconteceria em ambiente privado, sujeito a distúrbios, carente de atenção, justifica um característico “caráter redundante de repertório” (CAPANEMA, 2008, p. 195).

De forma semelhante, o rádio, a fotografia, e o teatro possuiriam suas especificidades baseadas em características técnicas. Essa abordagem, porém confere demasiada importância aos detalhes tecnológicos (WILLIAMS, 1975). O “determinismo tecnológico” seria insuficiente para explicar as modificações de um meio, principalmente na era da digitalização e convergência das mídias, pois a televisão, desde sua origem analógica estaria apta a incorporar outros meios em suas formas de expressão, como fotografias, transmissões de rádio, filmes feitos para o cinema, grafismos eletrônicos e textos. Assim, a partir dos primórdios das

1 Capacidade ótica maior ou menor de manter a nitidez de uma imagem em perspectiva de planos subjacentes. 2 Capacidade da câmera em reconhecer diferentes níveis de luz.

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primeiras transmissões, a TV vem se constituir híbrida, fato corrente desde antes da era da digitalização da informação.

O papel técnico da transformação de informações, imagens, textos e sons em bits seria o de proporcionar uma maior facilidade de intercâmbio entre diversos suportes independentemente de sua especificidade. Assim, as categorias anteriores de diferenciação tecnológica dos meios já não serviriam nesse contexto, já que a mesma matéria digital os permearia. Prova é o fato de que a televisão se vale de recursos ditos outrora do cinema, como imagem de alta definição e a utilização dos aparelhos de som de alta definição que equipam as salas domésticas preparadas para exibição de filmes, o que continua, contudo, a ser televisão. A profundidade de campo reduzida é expressão de programas televisivos assim como as imagens em vídeo destituídas dessa particularidade, que permeiam os filmes como fragmentos documentais. Os gêneros se misturam, os atores e diretores transitam por entre os meios, obras são adaptadas em um e outro. Esse intercâmbio facilita um processo de convergência dos meios e borra limites, o que possibilita a hibridização dos aparelhos outrora díspares e da idealização de produtos que ultrapassam a individualidade da mídia.

Henry Jenkins cunha o conceito de convergência dos meios: “fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação(...)” (2009, p. 27), tendência sem retorno de imbricação entre eles. O resultado é a transformação do meio, que se apodera de formas de expressão, tecnologia e produção dos outros que multiplicam as possibilidades. Jenkins é enfático ao afirmar que “convergência não ocorre por meio de aparelhos, [...] ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com os outros” (2009, p. 28), e destaca a importância das trocas de informação entre indivíduos, além de desmistificar a teoria de que a convergência aconteceria por meio técnico, através caixas únicas centralizadoras, capazes de deter as especificidades das mídias anteriores.

Um efeito particular da convergência através da chegada de novos meios parece livrar o anterior de demandas imputadas pela cultura de uma sociedade, e livra-o de uma utilização menos adequada ao destacar aspectos ontológicos de seu

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uso. Caso da fotografia que libertou a pintura de sua obrigação de retratação do real e possibilitou vários dos movimentos vanguardistas do rádio que usurpou a apresentação de notícias que ocorriam nos cinemas através dos vídeos de atualidades, o que o faz evoluir.

O conteúdo de um meio pode mudar (como ocorreu quando a televisão substituiu o rádio como meio de contar histórias, deixando o rádio livre para se tornar a principal vitrine do rock and roll), seu público pode mudar (como ocorre quando as histórias em quadrinhos saem de voga, nos anos 1950, para entrar num nicho, hoje) e seu status social pode subir ou cair (como ocorre quando o teatro de desloca de um formato popular para um formato de elite), mas uma vez que um meio se estabelece, ao satisfazer alguma demanda humana essencial, ele continua a funcionar dentro de um sistema maior de opções de comunicação. (JENKINS, 2009, p. 39)

Essa complementação, facilitada pelo intercâmbio de certas demandas oferece sobrevida ao meio, o que potencializa caraterísticas ontológicas e direciona- o gradativamente a um nicho. No caso da televisão, a possibilidade das produções “ao vivo” facilita a interação do público e, desde a implantação da televisão digital, permitem que essa interação seja feita pelo próprio aparelho. Vantagem para uma transmissão de eventos ao vivo, como shows e esportes e para formatos específicos como programas de auditório, reality-shows3 e game-shows,4 cuja participação do público amplia as possibilidades desses programas. Já a transmissão de filmes e séries previamente gravados, mesmo que concebidos para exibição televisiva ganham sobrevida quando transferidos para outros suportes como os já obsoletos vídeo cassetes, os DVDs e os repositórios on-line de mídia distribuídos por streaming.5

3 Formato de programa que engloba diversos gêneros em torno do cotidiano de um grupo sob a observação das câmeras 4 Formato de programa que retrata a disputa de um prêmio por jogadores. 5 Formato de distribuição de mídia via internet, através de pequenos pacotes de dados, o que possibilita assistir ininterruptamente um vídeo sem, no entanto, carregá-lo no computador.

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2.2 A queda de audiência das grandes redes

A evolução da televisão como meio serve a um publico heterogêneo que não mais assiste à programação como antes. O aumento da complexidade somado a interesses diferenciados e os horários cada vez mais distintos da vida moderna implicaram em uma queda acentuada de audiência das redes de televisão aberta norte americanas. Ao analisar o gráfico 1 observa-se que a audiência desses canais sofreu queda constante desde a década de 90 do século passado. Se em 1980, 90% dos televisores ligados estavam sintonizados em uma das chamadas “Big Three” – ABC, NBS e CBS - durante o horário nobre, o número caiu para 34% em 2003. O aumento da diferenciação social agravada pelos milhões de estrangeiros que imigraram para os Estados Unidos aumentou a diferenciação de interesses do público e provocou a queda nos números de audiência. (HINDMAN; WIEGAND, 2008)

Gráfico 1 - Espectadores no Horário Nobre por Sessão, de 1952 até 2007 Fonte: Nielsen Media Research (SEIDMAN, 2007)

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O estudo cruza dados da audiência das redes com indicadores de diferenciação social norte-americanas e chega a conclusão que esta hipótese seria mais pertinente do que a penetração de novas tecnologias nos lares dessa população como causa da queda. Assim, interesse das grandes redes em manter uma programação que teria por intuito agradar uma maior parcela dos espectadores em detrimento a programação de nicho estaria na contramão das preferências multiculturais e noções comportamentais desse público.

Devemos ter em mente a incompatibilidade de um meio de comunicação de massa tal como a televisão com as possibilidades de horário altamente segmentadas exigidas por um público igualmente segmentado. A grade de programação - que estrutura um dos mais bem-sucedidos paradigmas televisivos que distribui metodicamente os programas de acordo com o público alvo em um horário pré-determinado - é vilã ao imputar um evento pontual ao espectador. O aumento da oferta de canais a cabo responde simbioticamente a essa demanda e leva parte do público da TV aberta. Dessa forma, a programação chega ao espectador pagante através da insistência de inúmeras reapresentações diárias e semanais e repete-se dia após dia. Nesse caso, adaptabilidade da televisão a complexidade do público é prejudicada por suas características de transmissão de um para muitos, grade de programação rígida e programação generalista focada em um público-alvo igualmente genérico.

Cabe lembrar que o estudo em questão é pontual à situação de audiência das três maiores redes norte-americanas no horário nobre, exatamente das 20:00 as 22:30 e utiliza dados do instituto de pesquisa Nielsen para apontar sua queda. Esses dados não levam em consideração o público que tem acesso aos produtos feitos especialmente para a televisão fora das transmissões televisivas, através de outros meios como canais on demand6 oficiais, vendas desses produtos em DVD e compartilhamento desse material via internet. Logo, a queda de audiência da transmissão oficial televisiva não significa necessariamente a queda absoluta de público desses produtos especificamente. Mas o estudo é de grande valia quando

6 Catálogo de vídeos em um depositório na internet, acessados de acordo com a vontade do espectador

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pretende-se explorar o cenário específico que motivou os executivos da ABC a criarem a série Lost, e colocá-la exatamente nesse horário de exibição

2.3 O nascimento de Nowhere

Um produto particular que se beneficia com a convergência dos meios é a série televisiva. Por ser constituída de capítulos de duração igual, é perfeitamente integrada no paradigma televisivo da grade de programação em catálogos para exibição sob demanda ou em distribuição em forma de DVDs, e abarca tanto o espectador televisivo quanto os que utilizam a internet para assistir vídeos. O projeto das temporadas realiza correções de curso nas narrativas com o retorno de audiência avaliado a cada exibição, enquanto a distribuição diversificada permite um incremento de público na sobrevida do produto.

Jean-Pierre Esquenazi afirma que “[...]o único gênero7 ficcional capaz de manter a regularidade telespetatorial8 é a série (2011, p. 26)”, motivo pelo qual grandes redes de televisão teriam eleito esse formato como preferido para manter a audiência de sua programação. Essa leitura regular seria facilitada por certas características construtivas que permitiriam a integração da série a rotina das pessoas, em uma espécie de cerimonial realizado em dias e horários pré- estabelecidos. A grade de programação fixa e a sua comunicação via imprensa seria de vital importância para o estabelecimento dessa relação (ESQUENAZI, 2011).

A obra serializada, no entanto, não é particular da televisão e esse é um formato utilizado em muitas outras formas de expressão, como variações musicais de um mesmo tema, ou pinturas que representavam um conjunto se vistas como todo. Os folhetins literários semanais nos primeiros jornais populares e as radio novelas também compartilham dessa forma narrativa. A regularidade de uma

7 Esquenazi define gênero como algo que “está associado a um tipo de modelo narrativo utilizado no interior de um universo cultural característico (ESQUENAZI, 2011, p. 27) 8 Esquenazi toma de empréstimo dos canadenses o termo “telespetaleitura” como equivalente ao termo leitura para televisão, já que o termo “audiência” para ele seria muito superficial (2011, p. 8)

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fórmula, um maneirismo ou gênero em comum facilita o acompanhamento de obras serializadas. Caso perca-se uma parte, é possível retomar o rumo da narrativa sem grandes prejuízos.

Do ponto de vista de produção, as séries televisivas obedecem a uma lógica chamada por Esquenazi de “troca televisiva”. Essa seria uma interação entre grandes redes e seus patrocinadores, o público e os efetivos produtores. A única constante que se mantem é o interesse das redes em manter o telespectador que acompanha o programa, a fim de assegurarem que a regularidade da audiência persista para além de mudanças do contexto externo (ESQUENAZI, 2011). Essa é uma preocupação permanente das redes comerciais, pois a verba publicitária necessária para a sua sobrevivência depende dessa constante. Por esse motivo a cada temporada, as relações são avaliadas e as mudanças de curso narrativo, de produção ou direção são planejadas e executadas.

A escolha de produzir uma série foi utilizada pela rede de televisão ABC para tentar reverter o seu quadro de queda de audiência crônico quando ocupava o quarto lugar entre as grandes emissoras de televisão aberta norte-americanas em 2003. A ideia sobre uma nova série que contaria sobre de sobreviventes em uma ilha deserta nasceu do próprio presidente da rede, Lloyd Braun durante uma reunião da equipe criativa e executivos da rede (BARRETO, 2010). Após várias ideias recusadas, o presidente sugeriu um programa inspirado no filme Castaway (O Náufrago, 2000).

A transformação do formato de programas seriados na televisão, que abre margem para a exploração mais profunda das possibilidades do “gênero serial” (ESQUENAZI, 2011), permite extrapolar o limite de tempo de duração de um filme. As possibilidades do desenvolvimento mais complexo da narrativa é uma vantagem além de desenvolver de melhor forma o universo ficcional e a profundidade de personalidade dos personagens. O projeto foi aprovado pelo vice-presidente da companhia, Thom Sherman.

O roteirista Jeff Lieber foi contratado para escrever a sinopse e o roteiro do episódio piloto. A narrativa teria como foco a rotina de dez personagens, vítimas de um acidente aéreo em uma ilha deserta no meio do oceano Pacífico. O drama

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acompanharia o dia-a-dia de “dois meio irmãos, um médico, uma mulher grávida, um viciado, um militar, uma patricinha mimada, um fugitivo e um picareta” (BARRETO, 2010) em uma tentativa de reestabelecer uma sociedade primordial a partir do destroços da tragédia. A exploração da rotina dessa grande quantidade de personagens implicaria mais tempo para se construir e explorar os traços de personalidade de cada um. Assim, o combustível para manter o interesse do público no programa estaria no cotidiano da sobrevivência desses, retratados através de um ponto de vista hiperrealista.

Apesar do consenso sobre o tema da série e a visão adotada, a cena de um tubarão que devoraria um dos personagens foi retirada imediatamente, sob o risco de chocar e afastar os espectadores logo no começo da série. O clima de reality- show permearia a ficção e daria a obra ares do programa Survivor (2000), graças ao ambiente de ilha deserta e as tentativas desesperadas de sobrevivência. A constituição de novas e primordiais relações sociais visa a preservação do grupo e supera as diferenças, o que traça o paralelo da trama com o romance inglês The Lord Of Flies (O Senhor das Moscas, Willian Goldwin, 1954). Assim, Lieber organizou grande parte da estrutura do programa e incluiu o número e perfis básicos dos personagens e os conflitos que permeariam o avançar dos capítulos. Apesar de seguir o acordado pelos diretores da rede, seu não foi aceito depois de pronto.

Um dos motivos da recusa seria a margem de permissividade criativa ímpar que a ABC mantinha em seu histórico, fato que ia contra a proposta prosaica demais desse projeto. A série Twin Peaks (Twin Peaks, 1992-1993), exibida no começo dos anos 90 fora criada com liberdade pelo diretor de cinema David Lynch e chocou por apresentar um mundo não convencional, mas pertinente aos fãs do diretor. Desde o início a obra não foi pensada para atingir uma massa de espectadores, mas um nicho específico. O movimento que teria sido inaugurado com televisões a cabo como a HBO (ESQUENAZI, 2011) permitiria uma nova estratégia de criação de produtos para o público segmentado, mais ousadas e refinadas em termos ficcionais. As soluções do roteiro de Jeff não estavam de acordo com essas novas diretrizes e o roteiro foi descartado. Apesar possível incoerência em termos de estratégia pela ABC tratar-se de televisão aberta, Esquenazi afirma que “os novos projetos de séries são melhores e suscetíveis de atrair um público mais abastado”

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(2011, p. 52) desperta também o interesse dos patrocinadores. Essa tentativa de aumentar os lucros destoaria de uma outra maneira anterior, baseada em produzir programas a partir de fórmulas desgastadas voltadas para atingir a massa.

Um fato curioso é o nome inicial que o projeto recebeu: Nowhere, em tradução livre, lugar algum. A ideia original focaria a narrativa na expiação do sofrimento das pessoas, ignora as particularidades do local onde estavam. Lieber conseguiu seus créditos como criador da série por ter desenhado boa parte da estrutura inicial, já que o seu roteiro do episódio piloto guarda algumas semelhanças com piloto final que realmente foi produzido.

2.4 Quando “Nowhere” tornou-se Lost

J.J. Abrams, diretor da série Alias (Alias: Codinome Perigo, 2002-2006), foi contratado para continuar o projeto após a dispensa de Jeffrey Lieber. Abrams possui algumas peculiaridades reconhecidas, como a capacidade de “expandir os limites do universo narrativo...” de uma série já estabelecida, como fez em Felicity, onde “transformou a heroína universitária em espiã” (PORTER; LAVERY, 2007, p. 18). Graças a um manejo literário diferente de seu antecessor, adicionou profundidade a personalidade dos personagens já estabelecidos, mistura pessoas de várias nacionalidades aos sobreviventes e aumenta as chances de empatia com o público. Outra ferramenta recorrente utilizada pelo diretor são as conexões de seus trabalhos com elementos correntes da cultura pop (VAZ, 2003) o que cria referências que extrapolam os limites de seus mundos ficcionais, através de sinais internos reconhecido pelos espectadores.

Abrams utiliza como recurso fragmentar as narrativas em “situações breves e pessoais que tocam as pessoas” (KEVIN DILMORE, 2005, p. 21). A multiplicidade das situações do cotidiano confere força e realismo ao avanço narrativa além de fugir de uma hipotética dicotomia básica de caráter psicológico dos personagens. Os caminhos escolhidos por J.J. culminam em seus trabalhos não terem somente um gênero, mas uma mistura deles. Assim, o gênero serve ao propósito da narrativa, e não ao contrário. Diferentemente do que alguns críticos da série afirmaram ao

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questionar se a equipe de J.J. Abrams sabia os caminhos que sua narrativa tomaria ao inserir elementos aleatórios a fim apenas de manter os mistérios do programa, o roteirista Javier Grillo-Marxuach divulgou detalhes das primeiras reuniões criativas entre eles, momento em que grande parte da mitologia de Lost foi desenvolvida.

Ilustração 1 - Elementos ficcionais propostos na reunião para elaboração da história, em 02 de fevereiro de 2004 Fonte: The Grillo-Marxuach Design Bureau

É interessante observar a quantidade de elementos diferentes elencados para compor a nova atmosfera de mistério para a série: Um lugar de localização desconhecida, portal dimensional para outros mundos semelhante ao mito do triângulo das bermudas, habitada por uma organização desativada que haveria realizado experimentos científicos bizarros além da conclusão da primeira temporada cunhada como primeiro momento crucial na narrativa, ou seja, o encontro

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dos sobreviventes com a escotilha. Nesse cenário, o local em que os personagens se encontram torna-se tão importante quanto eles. O espaço ganha história, personalidade e trajetória, e eleva o status da agora fantástica ilha de Lost. Essa mudança foi de fundamental importância e expandiu os limites do universo narrativo da série para além da televisão.

O projeto começava a tomar proporções incompatíveis com a disponibilidade de Adams que, até então acumulava a direção de Alias, assim a direção da série foi designada ao roteirista Damon Lindelof, fã confesso de J.J. Escrever o episódio piloto era o próximo desafio encabeçado pela dupla e acompanhado de perto pelos roteiristas de Alias, Jesse Alexander e . A série foi aprovada pela ABC quatro dias depois, e o roteiro do episódio piloto ficou pronto após doze semanas. (PORTER; LAVERY, 2007). A sinergia entre os dois ao complementarem-se permitiu que as ideias iniciais de Abrams se materializassem em forma de filme com Lindelof. A visão complementar permitiu a realização do programa através de um cuidado particular com a fotografia e cuidadosa, adicionadas a uma montagem precisa.

Carlton Cuse juntou-se a equipe e ofereceu uma dinâmica para os personagens através do contraponto do pensamento lógico de Lindelof. Trouxe consigo um vasto repertório, utilizado como repositório de situações narrativas. As viagens no tempo formam soluções de extrema importância para o desenvolvimento do programa. A morte simulada de alguns personagens, a aparição de personagens falecidos previamente e até a eliminação de personagens principais foram reaproveitados de outras séries em que Cuse trabalhou. A parceria com Lindelof trouxe o equilíbrio entre a visão do mundo lógico e espiritual, assim como a oposição retratada através dos personagens Jack e Lock, um homem da ciência e um homem de fé (PORTER; LAVERY, 2007).

Preparar o espaço onírico que transformaria “Lugar Algum” em Lost exigiria um investimento gigantesco e o presidente da ABC Lloyd Braun estava disposto a pagar o preço. O orçamento do episódio “1x01 Pilot” foi o maior da história da televisão, em um valor de aproximadamente 12 milhões de dólares (PORTER; LAVERY, 2007). A construção desse espaço e a disposição dos elementos foram fundamentais conforme Abrams afirma: “independente do que quisermos fazer em

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Lost, temos de abastecer esse mundo com todos os elementos, pistas e indícios” (VAZ, 2003, p. 78)

A equipe criativa de Lost dispôs de pouco tempo entre a aprovação do roteiro final e a exibição do episódio piloto. O trabalho foi simultâneo, já que enquanto a escolha dos atores acontecia, os roteiristas redesenhavam os personagens de acordo com os tipos físicos e trejeitos deles. Jorge Garcia, que fez o teste para viver o galã Sawyer ganhou um personagem personalizado graças a seu carisma. , que tentara fazer teste de Kate também ganhou um personagem por falar coreano (BARRETO, 2010). Assim, o grande elenco se constituíu a partir de atores pouco conhecidos. "Não incluímos atores famosos porque eles tirariam a verossimilhança do mundo da ilha.", disse Carlton Cuze (BARRETO, 2010). A estratégia, além de distribuir a atenção do público entre os muitos personagens aumentou a identificação entre ator e papel personalizado.

As locações foram estabelecidas no Havaí e a equipe técnica encontrou dificuldades para construir o cenário na floresta tropical. Os roteiristas decidiram então inverter as cenas de praia com as de campo, a fim de facilitar a produção. O cenário contava com uma fuselagem de avião e dezenas de figurantes (BARRETO, 2010). O resultado foram dois episódios de quarenta e dois minutos de duração, que iniciam com a icônica cena em que o personagem Jack abre o olho, deitado ferido em meio a um bambuzal. Mas, apesar do piloto gravado, nada garantia que a série seria exibida, já que o ceticismo dos outros diretores da ABC era grande quanto a aceitação de uma série tão complexa.

2.5 A conquista da base de fãs

Uma série deve passar por alguns desafios antes de realmente ser aprovada e produzida. Testes de audiência mediante a apresentação do episódio piloto, apoio dos executivos das emissoras, estratégias de marketing e anúncios para adequar o horário de exibição aos fãs em potencial. O passo mais delicado para a aprovação da série é a conquista de uma base sólida e comprometida de fãs, conquistados

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através de um “envolvimento interativo” estabelecido pelos criadores e roteiristas da série (PORTER; LAVERY, 2007).

A forma escolhida para se estabelecer essa ligação, antes mesmo da estreia oficial no dia 22 de setembro de 2004, foi “instigando os espectadores a decifrar as pistas ocultas e os símbolos secretos que podem revelar a complicada mitologia da série” (PORTER; LAVERY, 2007, p. 152). A equipe criativa propunha como prêmio pela dedicação dos fãs, a descoberta dos segredos escondidos nas entrelinhas das ações de marketing do programa. Segundo o autor, essa postura criou uma “rede engajada de fãs ativos”, capazes de “investir esforços, dinheiro e esforços”, motivados por uma trama amada por ser “inovadora e capaz de criar jogos”.

Todavia, essas comunidades de discussão não são um movimento que surgiu com a digitalização da televisão e sua convergência com a internet. Obras que suscitam discussões acerca de seu universo ficcional tem origem anterior a própria criação da TV. O que ocorre é que as reuniões que ocorriam em espaços físicos públicos como refeitórios, bares e lares agora estão inseridas no espaço virtual, devido a sua facilidade de acesso e capacidade de registro. Assim, a informação partilhada em tempo real passa a ter um alcance global e não mais local.

Cada comunidade se mantém mais ou menos independente e intercambia as informações entre si. Essas comunidades fanáticas não são mensuráveis pelos métodos de levantamento de audiência de um programa televisivo, já que sua atuação transcende o meio e foge do escopo de suas medições. No caso de Lost, as informações sobre os testes dos atores vazaram na internet e começaram a provocar especulações. A seleção de Dominic Monaghan para o papel de Charlie Piece e uma posterior entrevista do ator onde declara que o episódio piloto da série fora o mais caro da história incitaram a curiosidade dos internautas sobre o programa (PORTER; LAVERY, 2007).

O vazamento de boatos de forma não-oficial tornou-se uma das estratégias mais bem-sucedidas para a divulgação da série. A informação sobre a aparição de um urso polar no primeiro episódio inaugurou a constante especulação dos fãs sobre o significado daquilo. Esses fãs organizaram-se em fóruns de discussão em sites a fim de compartilhar essas informações.

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Em maio de 2004, os fãs se convenceram que a série seria cancelada antes de ser exibida. Em resposta, organizaram um movimento a favor da série e publicaram um abaixo-assinado para a ABC e a Touchstone. A campanha começou em um dos primeiros sites de fãs, Lost-TV.com, e 69 fãs em potencial assinaram em favor do programa; na época em que o piloto era exibido em testes de audiência (PORTER; LAVERY, 2007, p. 153).

Em um momento de transformações profundas advindas da digitalização da televisão, nem uma série já com seu episódio piloto produzido e gravado que utiliza um dos maiores orçamentos da história, produzido através de uma ideia inicial do próprio presidente da empresa e pronto para ser exibido tem garantida a produção de sua temporada e inserção na grade de programação. Absolutamente tudo é feito mediante a aprovação do público em testes direcionados com o intuito de convencer os patrocinadores a investir capital nesse produto em formas de anúncios. Muitos pilotos são produzidos e nem chegam a ser exibidos por motivos que variam desde a não aceitação nesses testes de audiência, mudança de diretoria, falta de espaço na grade de programação ou não conformação com estudos de gênero feitos para aquele horário específico. A mobilização precoce dos fãs foi um fator decisivo para os executivos que contrataram oficialmente doze episódios e mais o piloto. para ser exibida ao término da temporada de Alias (PORTER; LAVERY, 2007).

Nesse período específico de incertezas em relação ao que iria ocorrer, com a audiência televisiva, de mudanças de paradigma quanto a especificidade da televisão e de seu papel na sociedade, da convergência dos meios em sua forma mais borbulhante, arriscar tanto capital em um produto de nicho realmente não era uma ideia unânime entre os executivos da ABC. Os superiores de Lloyd Braun, Michael Eisner, presidente e executivo-chefe da Disney proprietária da rede ABC, descreveu Lost como "um projeto louco que nunca vai funcionar''. Bob Iger, adjunto de Eisner cravou o conceito da série “Esta é uma perda de tempo” (CRAIG, 2005). Tal ceticismo custou o emprego de Braun por permitir a extravagância de viabilizar algo tão grande naquela situação.

A preocupação dos executivos em contraste com a crença da equipe de Braun foram desafios encontrados tanto para a equipe criativa da série quanto para

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a equipe de marketing da emissora. Uma ação publicitária orquestrada para a divulgação de Lost começou a tomar forma. A ABC distribuiu informações oficiais através do próprio canal de televisão, além de sites na internet a fim de suscitar discussões. Segundo Lavery, “ajudou no efeito de polinização cruzada que ocorreu entre diversas comunidades inter-relacionadas” (2007, p.154). A presença dos criadores da futura série à convenção Comic-Con em San Diego fora divulgada com pôsteres e utilizou do conhecido estereótipo de cartazes de procura-se eternizados pelos filmes de velho-oeste. Além dessa campanha, a equipe dispôs mil mensagens em garrafas com informações sobre a série e distribuiu-as em praias de grande movimento e estimulou “os banhistas a se perderem em Lost” (PORTER; LAVERY, 2007, p.154).

Ilustração 2 - Cartazes de “Procura-se”, divulgou a série na convenção Comic-Con em San Diego, CA em 2004 Fonte: "I Am LOST" Fliers (ANDALONE, 2010)

O fato do equilíbrio consolidado entre os agentes propostos por Esquenazi (2011) (produtores, executivos das redes, anunciantes e público) ser perturbado graças ao intermédio de canais de comunicação mais eficientes foi percebido pela equipe criativa. O fluxo imediato de informações propicia a leitura de reações do público em relação ao produto audiovisual e é medido a cada passo da produção.

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Os financiadores do projeto utilizaram esses números como metas e o papel do público alterou o equilíbrio estabelecido. A resposta foi imediata e essencial para a consolidação de Lost como série. A concretização do projeto em programa só foi possível nessa condição, quando o consumidor em potencial foi conquistado por essas estratégias e demonstraram a fidelidade antes mesmo dela entrar no ar. Assim, o público que apoiava a série criou outros caminhos de divulgação e colaborou ativamente para a sobrevivência do projeto.

Essas comunidades cresceram e conseguiram entrevistas exclusivas com os criadores e os futuros colaboradores da série, e vieram a se tornar meios de transmissão de informações. Antes de sua estreia, a série de televisão Lost já era rodeada por comunidades satélites, originárias de um outro meio: o mundo da internet. J.J. Abrams, em entrevista revelou sua estratégia em uma entrevista em 2005 “A Internet alterou de verdade o modo como assistimos TV. Instantaneamente, milhares de pessoas reagem e criam um consenso sobre o que gostam ou que não gostam. É impossível não pesquisar, e é uma estupidez não ouvir os fãs (VEITCH, 2005)”.

Ao ultrapassar a especificidade televisiva, o seu paradigma de meio de transmissão em massa de um-para-muitos, a série criou veredas de retroalimentação criativa, que se não alterariam o curso da narrativa principal, pelo menos instigavam a sua exploração. A equipe criativa jogou com a forma da narrativa para absorver além dos fãs através do produto principal televisivo, convocar os fãs que gostariam de expandir seus conhecimentos através de outras mídias.

Lost usou várias estratégias de marketing viral. A consequência da criação da propaganda para a divulgação culminou na possibilidade do transbordo de elementos ficcionais em espaços estranhos ao suporte televisivo. O objetivo de visualização e fixação de uma marca é almejado tanto para produtos físicos quanto programas televisivos ou filmes. Espalhar a marca em locais onde normalmente ela não estaria instiga, no mínimo a curiosidade, o que proporcionou resultados impactantes. Assim, colocar garrafas que boiavam na praia ou os pôsteres que simulavam o desaparecimento dos personagens fictícios feitos de forma a parecerem peças reais provocaram estranhamento e abriram a porta para a

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extrapolação do mundo ficcional, por imputar sua presença em suportes físicos do mundo real fora de um espaço delimitado para a ficção sem aviso prévio.

Assim, a equipe de marketing da rede ABC abriu a possibilidade de integrar futuros anunciantes a um projeto que abrangeria várias áreas do conglomerado de empresas subsidiadas pela Disney, estratégia sintonizada com características particulares do programa. Para essa dissertação, o ponto relevante são as características da narrativa que desenham um universo suficientemente complexo e coeso a ponto de poder ser explorado dessa forma, descrito e experimentado em várias mídias concomitantemente.

2.6. Uma narrativa transmidiática

Lost é uma marca distribuída em diferentes suportes, utilizada por várias empresas do conglomerado Disney/ABC, licenciada como “franquia de mídia”. Derek Johnson define uma franquia de mídia como

O meio pelo qual os produtores de mídia corporativa produzem sinergia e dessa estrutura surgem as estratégias narrativas da narrativa transmídia que estendem as experiências em vários sites da experiência cultural. Posicionados como parte de uma mesma história, os vários componentes da narrativa transmídia tornam-se a arte de construir mundos 9.

Assim, através de licenciamentos comerciais, outras podem explorar seus personagens, cenários, histórias para criar narrativas derivadas em formas de outros produtos. As adaptações que ocorrem como de romances para filmes, ou de histórias em quadrinhos para jogos de videogame integram essa categoria. Mediante a acertos econômicos, pode ocorrer de os autores originais não terem mais controle de sua obra a partir do momento em que ela é licenciada em forma de franquia. Equipes criativas diferentes assumem o controle daquela adaptação naquele suporte

9 Tradução minha

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específico, alteram projetos e definem traços mutantes ao projeto inicial. Muitas vezes, as comunidades de fãs estranham tais intervenções e renegam os produtos adaptados. Esses são motivos que levam a não necessariamente, uma franquia de mídia respeitar premissas estabelecidas pela equipe de criação original. Jenkins revela que

O atual sistema de licenciamento normalmente gera obras redundantes (não permitindo novos antecedentes dos personagens ou novo desenvolvimento de enredo), diluídas (solicitando ao novo meio de comunicação que duplique, sem originalidade, experiências mais bem realizadas pelo antigo), ou permeadas de contradições grosseiras (falhando em respeitar a consistência que o público espera da franquia). Essas falhas explicam por que as sequencias e as franquias têm má reputação. (JENKINS, 2009, p. 146)

Johnson e Jenkins falam sobre sinergia, palavra que reflete um posicionamento da indústria do entretenimento em integrar suas diversas empresas horizontalmente. “Um conglomerado de mídia tem um incentivo para espalhar a sua marca ou expandir suas franquias em tantas plataformas diferentes de mídia quanto possível. [...]” (JENKINS, 2007). Essa tendência nos leva a uma categoria das franquias de mídia, chamada de cross-media, ou através de mídias. Esse termo designa os produtos multimodais que estão presentes em várias mídias, como por exemplo os filmes Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) e Matrix (The Matrix, 1999) (JENKINS, 2009).

Segundo Gary Hayes, existem quatro níveis de cross-media: “Cross-media 1.0 – Empurrado”, que seria a simples colocação do mesmo produto em outro suporte, com pequenas modificações; “Cross-media 2.0 - Extras”, conteúdo complementar produzido pelos próprios produtores; “Cross-media 3.0 – Pontes”, o conteúdo de outra plataforma - opcional ou fundamental - complementa a narrativa principal e convida o espectador a continuar sua experiência e investigá-lo; “Cross- media 4.0 – Experiência”, uma conjunção dos três primeiros níveis em um ambiente de interação tal como um jogo

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É também aqui que o conteúdo é distribuído em várias plataformas, de forma não-linear e sem as mãos do produtor – cria-se um ambiente muito parecido com um jogo, dentro do qual os participantes ‘vivem’, seguindo o próprio caminho e personalizando a experiência. O cross-media 4.0 típico é um jogo de colaboração co- criativa com o público através de diversos dispositivos, que evolui e desenvolve uma vida própria. Embora tenda a sofrer fortes intervenções do autor, os gatilhos e convites cross-media são parte da experiência, no sentido da audiência criar suas próprias pontes. (HAYES, 2006)

Esses quatro níveis compõe as possibilidades de interação do espectador com a série Lost. Parte-se da mais básica, através do contato possibilitado por uma mídia diferente do que a própria televisão, - streaming e download10 de episódios pelos sites oficiais, os boxes de DVDs e Blu-rays - e fruição do programa através de computadores, tablets e smartphones, a série permite aprofundar essa relação e disponibiliza vídeos com conteúdos complementares a série como os making of, cenas excluídas, entrevistas com os diretores e atores etc. No terceiro nível, romances publicados em paralelo com a exibição televisiva, websites fictícios produzidos com o mesmo fim, repositórios enciclopédicos de informações sobre a série convidam o espectador a fazer ligações entre as diversas mídias. E no último nível, a experiência da participação nos A.R.G.s11 através de pistas espalhadas no mundo real. Lost oferece os quatro níveis de cross-media através de vários produtos dentro da mesma franquia de mídia.

Lost pode ser categorizado em uma outra subdivisão das narrativas cross- media, como afirma Glauco Madeira de Toledo. O termo transmedia storytelling designa algumas particularidades diferentes, que o difere de cross-media, como podemos observar a partir dos apontamentos de Jenkins:

Narrativa transmidiática representa um processo onde os elementos integrantes de uma ficção são dispersos de forma sistemática por múltiplos canais de distribuição com a finalidade de criar uma

10 Formas de assistir vídeos na internet, seja em tempo real – streaming – ou através do arquivo baixado no computador – download. 11 Alternate Reality Game, jogo de realidade alternativa

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experiência de entretenimento unificada e coordenada. Idealmente, cada meio faz sua contribuição distinta para o desvelamento da história” (JENKINS, 2007)

Logo, para um produto ser considerado transmedia storytelling, não deve ser somente apresentado em mídias diferentes, mas ter sua narrativa distribuída por essas mídias. Os produtos envolvidos devem estar coordenados com o objetivo de oferecer ao público uma “compreensão aditiva”12 do conteúdo através da inserção de novos elementos de informação que auxiliem a compreensão da narrativa.

2.7 A criação do universo ficcional

A criação de uma narrativa transmídia guarda modos distintos de construção da narrativa clássica tradicional, como ressalta Jenkins

Na maioria das vezes, as histórias transmidiáticas são baseadas não em personagens individuais ou tramas específicas, mas sim em complexos mundos ficcionais que podem sustentar múltiplos personagens interrelacionados e suas histórias. Este processo de construção de mundos incentiva um impulso enciclopédico tanto nos leitores quanto nos escritores. Somos atraídos a dominar o que há para se saber sobre um mundo que sempre se expande para além do nosso alcance. Este é um prazer muito diferente do que nós associamos com o desfecho encontrado em narrativas mais classicamente construídas, onde esperamos sair do cinema sabendo tudo o que é necessário para dar sentido a uma história em particular” (JENKINS, 2007).

A equipe criativa de Lost busca a criação de um universo ficcional ao invés de uma narrativa linear. As informações não estão disponíveis ao final da série televisiva. Muitos dos mistérios propostos dependem da coleta de pistas espalhadas em outros produtos para serem resolvidos. Quanto maior o empenho do espectador

12 Termo cunhado pelo game designer Neil Young, presente em “O game designer Neil Young cunhou o termo “compreensão aditiva” para se referir à forma como cada novo texto adiciona um novo elemento de informação que nos obriga a rever a nossa compreensão da ficção como um todo.” (JENKINS, 2007)

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em resolver essas questões, maior a profundidade que ele pode mergulhar. Esse tipo de narrativa costuma exigir mais do seu espectador já que ele precisa se dedicar mais para atingir as “camadas” mais profundas. A diminuição do mercado a ser atingido é um risco para esse tipo de narrativa, como alerta Neil Young (JENKINS, 2009, p. 175), por isso a criação da base sólida de fãs era uma das maneiras menos arriscadas de garantir o futuro de Lost. Na visão dos executivos da ABC, o espectador casual poderia se frustrar por não ter a sua disposição e por um só canal as informações necessárias para decifrar a narrativa.

Construir universos ficcionais é uma técnica que não foi originada pelo cinema ou pela televisão. É um movimento baseado em técnicas de criação de plataformas como o videogame. Quem cria um universo ficcional deixa de pensar em criar somente uma história ou um personagem, como diz Jenkins no relato de uma conversa com um experiente roteirista:

Quando comecei, era preciso elaborar uma história, porque, sem uma boa história, não havia um filme de verdade. Depois, quando as sequencias começaram a decolar, era preciso elaborar um personagem, porque um bom personagem poderia sustentar múltiplas histórias. Hoje, é preciso elaborar um universo, porque um universo pode sustentar múltiplos personagens e múltiplas histórias em múltiplas mídias (JENKINS, 2009, p. 159).

O contador de histórias passa a se tornar um “arquiteto”, que foca agora em desenvolver mundos que contenham as histórias distribuídas em mídias distintas. Esse “universo é maior do que o filme, maior, até do que a franquia – Já que as especulações dos fãs também expandem o universo em várias direções. “ (JENKINS, 2009, p. 158)

Um universo ficcional é formado fragmentos relativamente independentes e que contenham uma fração do universo contidas neles próprios. Como fractais, que em sua diminuta individualidade guardem o código genético do todo. As obras, são suficientemente flexíveis aos diferentes estilos dos suportes de representação sem no entanto, perder a essência do conjunto (JENKINS, 2009). Em termo macro, seria como se os criadores de um universo ficcional pudessem tecer uma trama de espaço e tempo particulares, formada de elementos ficcionais reconhecíveis entre as

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obras. No ambiente com espaço-tempo criado, desenrolam-se as múltiplas histórias dos personagens entrelaçadas e permeadas pelo universo e pelas mídias que as suportam. Os autores da série, Damon Lindelof e J.J. Abrams utilizaram técnicas narrativas que permitiram a equipe da ABC transformá-la um produto transmídia, já que o código genético do universo ficcional já estava inserido na narrativa televisiva. O desenvolvimento desse código foi uma preocupação da equipe criativa desde os primeiros rascunhos, e sua forma sugerida desde as primeiras reuniões.

Os elementos narrativos que estruturam o universo ficcional da série devem ser revelados o quanto antes, para a constituição desse espaço de forma consistente. Em Lost, muitos deles estão presentes desde o primeiro episódio. Abrams afirma que “Quando você escreve um piloto, você cria um espaço onírico... Você quer povoar aquela área com o máximo de objetos divertidos, assim, quando tiver de viver ali durante os próximos anos, não ficará entediado” (STAFFORD; BURNETT, 2004, p. 5). Essa é uma fala interessante do criador, que discorre exatamente sobre a elaboração de um espaço de sonhos. “Preencher o espaço com objetos divertidos”, em relação a construção do universo pode ser entendido como a constituição dos pontos de sustentação da trama, comuns a outros produtos subsequentes da série televisiva por meio desses elementos “divertidos”. A necessidade de não ficar entediado denota preocupação em trabalhar com elementos que permitam a criação de algo lúdico, através do não esgotamento das funções narrativas desses elementos em um tempo curto, o que provoca o tédio criativo. Devem ser elementos de sustentação fortes o suficiente para ancorar várias linhas narrativas, das mais variadas origens, promover o prazer do criador que, ao criar essas linhas que pode “brincar” com seus “brinquedos” por um tempo sem enfadar-se. E por final, J.J. fala na quantidade desses objetos, e que buscou ter esse espaço o mais preenchido possível com essas âncoras. Além de conseguir algo consistente, quanto mais o público tiver contato com esses elementos, mais facilmente ele pode identificá-lo em outras obras pertencentes ao universo, estabelece-se o fluxo narrativo entre elas. Esses elementos fornecem convenções reconhecíveis para os fãs, e distribuem-se entre as diversas formas que constituem o produto audiovisual.

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Ilustração 3 - Desenvolvimento de técnicas narrativas apresentadas na primeira reunião da equipe criativa de Lost em 02 de fevereiro de 2004 Fonte: The Grillo-Marxuach Design Bureau (GRILLO-MARXUACH, 2015)

Podemos perceber na ilustração 3 a preocupação em se estabelecer certos paradigmas a esse universo ficcional específico:

• “Incorporar tensão em cada elemento do show” – Estabelecer um clima de apreensão através de tensões entre os elementos ficcionais, sejam eles personagens, histórias, objetos, planos de câmera e edição, trilha sonora etc.

• “Achar motores para a historia dentro do mundo [ficcional]” – Encontrar motivação para o desenrolar da história dentro dele próprio. As unidades motrizes acabam por incentivar as ações dos personagens a um desfecho em comum ao avançar pela narrativa principal.

• “Nós podemos criar um modelo? “ – O estabelecimento de um padrão narrativo para os episódios da série sem, no entanto, ferir as potencialidades narrativas particularidades desses elementos.

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• “Nós podemos ter saltos narrativos na temporada intermediária? “- Esse questionamento gerou os saltos temporais vivenciados a partir da quarta temporada da série, justificados diegeticamente pela desalocação da ilha no tempo no momento em que a roda congelada é girada.

• “Não contar a história de forma serializada” – Resultou na maneira de contar a história que mistura os conceitos de série e seriado em um mesmo produto. As pequenas histórias seriam esgotadas em um só episódio, como em um seriado, ao mesmo tempo que uma grande história permaneceria pela temporada inteira. Ainda teríamos uma grande história principal que se desenrolaria concomitantemente por todo o universo ficcional.

• “Estabelecer um “clima” que podemos repetir toda semana” – Criar uma fórmula, um tom reconhecível e replicável para cada episódio da série. Como a utilização dos flashbacks ou da cena de abrir de olhos dos personagens ao início de alguns episódios.

• “Tenham calma, contem as histórias passo-a-passo” – Aqui, uma recomendação para o foco nos detalhes das histórias narradas. A importância de uma narrativa sincopada, exibida sem pressa para o espectador.

• “O programa acontece em tempo real: 30 dias na ilha equivalem a uma temporada” – Recomendação para que o relógio da narrativa seguisse, de forma análoga ao tempo real

• “Necessidade de diferenciar o que constitui cenas e o que constitui as histórias” – Manter claro o que elementos são importante para o desenrolar da história, e o que é necessário somente para a constituição de cenas sem consequências.

• “Não ter como objetivo algo que possa destruir a premissa do programa como um show de sobrevivência” – Aqui uma proibição clara a qualquer elemento que destrua a premissa básica do programa.

Estes paradigmas da série televisiva acabam por constituir as “leis” do universo ficcional de Lost, estatuto que visa reger a ordem particular das diversas formas de representação criadas dentro dele. Glauco Madeira de Toledo empresta

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conceitos da arte e da religião para definir a importância dessas leis para a coesão do universo ficcional: A “bíblia ficcional” e o “cânone ficcional”

O guia utilizado por produtores de ficção onde constam as normas que delimitam o que faz ou não parte do universo criado por eles, ou mesmo quais regras e leis da física se aplicam ali, recebe a denominação de “bíblia”. A escolha desse nome remete a um livro que seria considerado sagrado, que deveria ser seguido, ou que teria todas as respostas. Seria, enfim, o livro “das revelações” relativo ao universo ficcional. Essa aproximação entre o fã de ficção e as pessoas religiosas (apontadas acima por Baker) lembra que os fãs levam realmente suas discussões e deduções muito a sério, criando brigas por divergências de opinião e proporcionando debates realmente aprofundados a respeito não só da história em questão, mas também de narrativa, psicologia, física ou mesmo cartografia relativa ao universo. A bíblia ficcional é uma importante fonte de informações num caso como esse. (TOLEDO, 2012, p. 36)

O “livro da lei” estabelecido pelos criadores é a palavra final e arbitrária sobre a “realidade” que pertence aquele universo e é necessária quando a criação não é somente de uma pessoa. Equipes criativas distintas precisam da “bíblia” ficcional para se guiar quanto o desenvolvimento de obras que pertencerão ao universo ficcional. O “livro das revelações do universo ficcional” não deve ser exposto aos fãs sob pena de destruir as possíveis especulações referentes ao não conhecimento dessas regras. O cuidado com esse fator foi tanto que Damon Lindelof instrui a equipe criativa para “nunca mostrar para a audiência como o mágico faz seus truques”13, referência a nunca revelar o funcionamento das leis internas que regem o universo do programa.

Toledo conceitua o “cânone ficcional”, como conjunto de obras definidas pela autoridade dos criadores que compõe o universo ficcional sem ferir a “bíblia” (2012, p.33). As obras pertencentes ao universo, mas que imputam incoerência com as leis da “bíblia” podem ser desconsideradas como integrantes canônicas e categorizadas como “obras apócrifas”. Logo, para fazer parte do “cânone” o conteúdo deve

13 Conforme demonstrado na ilustração 1 na página 27

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necessariamente ser submetido e aprovado pelo crivo dos proprietários dos direitos de criação do universo, sejam eles uma equipe criativa ou um único autor.

Essa concentração do poder sob a decisão das leis, além de marco de legitimação e consistência do universo protege comercialmente a franquia. Somente uma equipe autorizada pelos donos do universo pode decidir sob a inclusão de obras no “cânone”, ou até mesmo alterações estruturais na “bíblia”. Assim a inclusão de obras criadas por fãs chamadas também de fanfiction no “cânone” oficial torna-se impraticável, por mais bem-feitas e fiéis às leis da “bíblia” que sejam. O “cânone” e a inclusão de obras e as leis são particulares e propriedade dos donos do universo ficcional.

Há casos de rebelião dos fãs acerca das decisões dos criadores. Alguns passam a aceitar que obras não-oficiais ou apócrifas integrem o universo da obra. Cria-se então um “cânone paralelo”, aceito somente pela comunidade que o apoia e composto inclusive de obras não-oficiais que tentam respeitar as leis da “bíblia” ficcional. Esse é um ponto delicado pincipalmente em relação ao universo de Lost, pois as soluções propostas pelos fãs para os enigmas da série acabaram por serem mais críveis e pertinentes para a narrativa do que os desfechos oficiais.

O conceito de “inteligência coletiva” de Pierre Levy, “Uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências” (2007, p. 28) foi capaz, não somente de decifrar os mistérios instaurados pela equipe criativa quanto criar soluções mais eficazes e coerentes com a “bíblia” ficcional da série, fato que decepcionou alguns fãs (BARBOSA, 2010b) e instaurou uma crise de representação em relação aos autores. O roteirista Javier Grillo-Marxuach, cansado das especulações sobre a série não ter sido planejada previamente com as soluções dos mistérios revelou as fotos das anotações da primeira reunião criativa, como prova de que eles sabiam o desfecho do programa desde o começo, e de que o capítulo final seria daquela maneira (2015).

Mas a inteligência coletiva não tem um controle. Se não há divulgação oficial da “bíblia” ficcional sob pena de debelar os mistérios da narrativa, esses fãs criam repositórios enciclopédicos com informações coletadas, para que sirvam de guia

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para as especulações chegarem o mais próximo possível dos segredos do mundo ficcional e a aglutinação dos dados tabulados geram listas, tabelas, perfis de personagens, topografia do lugar. Alguns podem ser publicados como “guias não oficiais”, tais como o livro de Lynnete Porter e David Lavery, “Desvendando os Mistérios de Lost”, ou criam-se enciclopédias em formato wiki14 tal como a Lostpedia. Esses guias não-oficiais, são como mapa para quem queira adentrar o universo ou mesmo aprofundar-se nele.

Chegamos então na classificação que nos servirá de guia para categorizar as obras de Lost. Dividiremos os produtos paralelos que compõe o universo ficcional em “canônicos”, “apócrifos” e “repositórios”. Essa categorização nos servirá de guia para estabelecer quais deles ajudam na instituição do universo ficcional da série e futuro estabelecimento do espaço do jogo. Na ilustração 4, uma analogia da distribuição das obras pertencentes ao universo ficcional em uma esfera. Essas estão representadas pelos pontos verdes. As obras pertencem ao universo, mas somente as canônicas podem estar contidas nele. As apócrifas não pertencem a esfera enquanto a natureza do repositório seria a própria fotografia

Ilustração 4 - Analogia das obras do universo ficcional distribuídas em uma esfera. Fonte: Dusty Sphere (RECTANGLEWORLD, 2012)

14 Coleção de documentos em hipertexto ou o software colaborativo usado para criá-lo (CHOATE, 2008, p. 1)

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2.8 A expansão do universo ficcional

Constituído o universo ficcional, instituídas as leis que o regerão e o seu funcionamento ratificado através da “bíblia” ficcional, os donos desse universo passam a construir elementos narrativos que permeiem as obras e instiguem a sua identificação e rastreamento. Esses elementos estruturais ancoram as narrativas e servem de pontes para a compreensão do universo ficcional.

Criar o universo permite que o espectador possa “escolher o seu próprio caminho”, através do contato opcional com as extensões narrativas. O termo “compreensão aditiva” de Neil Young designa “à forma como cada novo texto adiciona um novo elemento de informação que nos obriga a rever a nossa compreensão da ficção como um todo” (JENKINS, 2007) e torna a experiência de fruição da narrativa mais real e interativa.

Propositalmente, existem espaços vagos entre as extensões e as obras que formam o universo ficcional. Essas lacunas, também chamadas de gaps (JENKINS, 2007) são o espaço de ação dos fãs. Esses espaços tornam o universo expansível, já que não imputam de obras prontas e cristalizadas, mas

[...], a inserção planejada de lacunas inquietantes no universo diegético para motivar os fãs a deduzir, planejar, imaginar, buscar no mundo ficcional conhecido qualquer indício de como aqueles vãos poderiam ser preenchidos de forma coesa e congruente com o material produzido pelos realizadores (TOLEDO, 2012, p. 28)

É curioso pensar que tanto no universo em que vivemos quanto em sua representação ficcional, grande parte de sua constituição é espaço vago. O espaço é previamente pensado para acomodar diversas experiências dos inúmeros espectadores entre as obras estabelecidas e induz cada um a criar suas próprias pontes necessárias à compreensão do universo, de acordo com sua vontade e seu nível de interação. Dada a existência dos repositórios de informações, é facultado ao espectador aceitar as pontes já previamente estabelecidas ou questionar as soluções não-oficiais e criar outras teorias por outros caminhos. Longe de uma

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narrativa una, criam-se caminhos paralelos limitados apenas pela imaginação dos fãs, e expande-se o universo ficcional a um nível imprevisível pelos criadores.

Na ilustração 5, há outra analogia, dessa vez das extensões que estruturam o universo ficcional. Os pontos representam esses elementos. No centro em vermelho, a representação da série televisiva que os concatena. As linhas são as possíveis ligações que podem ocorrer com ou sem a interferência do produto principal ou seja, da série televisiva. E entre eles, a existência proposital de espaços vagos.

Ilustração 5 - Analogia dos elementos estruturais e o universo ficcional Fonte: Electrosphere (HAVEY, 2008)

Esses são preceitos importantes que demonstram possibilidades do universo ficcional. A partir dos paradigmas estabelecidos e utilizar os elementos formadores desse universo como balizadores, é possível traçar histórias paralelas, subsequentes ou concomitantes com a narrativa principal, sem trair a coerência de uma linha mestra. Dentro desse espaço expansível, desenvolver experiências

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múltiplas e particulares, apesar dos elementos estruturais estabelecidos de forma fixa. Dessa forma, borra-se os limites entre real e ficcional que distribuem artefatos diegéticos entre mídias diferentes e instigam o contato com a narrativa da série fora do espaço comumente destinado a ela, a caixa preta da televisão. Após um projeto coordenado de narrativa transmidiática, Lost acaba por integrar várias obras em um universo que pode ser experimentado, compreendido e vivenciado conforme a vontade do espectador.

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3. O UNIVERSO DE LOST

Tudo no universo caminha de forma indireta. Não existe linha reta.

Ralph Waldo Emerson (1870)

3.1 Obras do universo ficcional de Lost

Após instituir o seu universo ficcional, a narrativa transmidiática deve permear as obras que fazem parte desse universo que criam a chamada “compreensão aditiva”. As extensões narrativas podem oferecer conteúdo fundamental ou complementar a compreensão dos espectadores. A técnica de como distribuir essas informações entre as mídias e as diversas obras ainda suscitam dúvidas entre os criadores desse tipo de narrativa.

[...] Produtores transmidiáticos têm encontrado dificuldades para atingir o delicado equilíbrio entre a criação de histórias que façam sentido para os espectadores da primeira vez e da construção de elementos que melhoram a experiência de pessoas que recebem informações em múltiplas mídias. (JENKINS, 2007)

Assim, torna-se um desafio conseguir criar uma narrativa que consiga convencer tanto os espectadores do produto principal quanto dos fãs que acompanham o universo ficcional através de outros canais. Em Lost, o produto principal é a série televisiva. Outras obras têm seu conteúdo narrativamente derivado e orbitam-na apesar de suas especificidades. Se soluções aos mistérios da ilha forem ofertados somente aos que tem acesso as outras obras, os espectadores assíduos da série televisiva podem se sentir traídos. Em contrapartida, os fãs que buscarem se aprofundar no universo e não tiverem como recompensa conteúdos relevantes oriundos das extensões também podem se frustrar. Assim, o equilíbrio da distribuição de informações entre as diversas obras torna-se o ponto crítico de toda a arquitetura do universo ficcional transmidiático.

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O quadro 1 classifica as obras de acordo com sua canonicidade, obras estas que ajudam a construir a narrativa Lost. Apesar de todas as obras serem ligadas de alguma forma ao universo ficcional, somente as canônicas podem constituir uma narrativa crível em relação à “bíblia” ficcional15 e aceitas como oficiais pela base de fãs.

Quadro 1 - Extensões de LOST quanto ao seu status de canonicidade ficcional

EXTENSÃO STATUS DE CANONICIDADE

Website da empresa aérea Descanonizado

Diário do sobrevivente Apócrifos

Romances “LOST: risco de extinção”, Apócrifos “LOST: identidade secreta” e “LOST - Sinais de Vida”

Romance metaficcional “Bad Twin” Canônico

A.R.G. “” Canônico

Mobisodes “LOST: Missing Pieces” Canônico

A.R.G. “” Canônico

A.R.G. “Octagon Global Recruiting” Canônico

Videogame “LOST - Via Domus” Parcialmente canônico

Repositório “LOST University” Não pode ser chamado de canônico

Mock-documentary “Os Seis da Oceanic - Canônico Uma Conspiração de Mentiras”

Mock-documentary “Mistérios do Universo – A Canônico Iniciativa D.H.A.R.M.A.”

Repositório Lostpedia Não pode ser chamado de canônico.

Fonte: Glauco Madeira de Toledo (2012)

15 Glauco Madeira de Toledo define “bíblia ficcional” como: “O guia utilizado por produtores de ficção onde constam as normas que delimitam o que faz ou não parte do universo criado por eles, ou mesmo quais regras e leis da física se aplicam ali, recebe a denominação de “bíblia”. A escolha desse nome remete a um livro que seria considerado sagrado, que deveria ser seguido, ou que teria todas as respostas. Seria, enfim, o livro “das revelações” relativo ao universo ficcional.” (2012, p. 36)

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3.2 Status de canonicidade das obras

Segundo o quadro 1 (TOLEDO, 2012), algumas obras que são parte do universo de Lost não pertencem ao “cânone”. Os critérios para a exclusão vão desde a criação destas não estar vinculada aos canais oficiais ou conter informações que violam a “bíblia” ficcional.

Dentre essas obras, está inclusive o website da empresa fictícia Oceanic Airlines, excluído do “cânone” mesmo após fazer parte dele. O site, que era acessado pelo domínio www.oceanic-air.com16 continha informações ficcionais dispostas de forma semelhante a um site de qualquer empresa aérea real, mas com informações pertinentes a serie. O motivo para a descanonização foi a apresentação de duas mensagens de socorro escondidas no código fonte da página, por um suposto sobrevivente chamado Sally. A mensagem é: “Se alguém encontrar esta mensagem, por favor saiba que eu estou vivo e preso em uma ilha em algum lugar do Pacífico Sul. Por favor, envie ajuda em breve. As coisas estão ruins. E elas estão cada vez pior.... Eu sobrevivi a um terrível acidente aéreo e estou preso em uma ilha em algum lugar do nordeste da Austrália e do sudoeste do Havaí. No caso de eu nunca ser encontrado, por favor avise meu destino aos meus pais”17. Como não há referência alguma a tal personagem no universo ficcional, torna-se inverossímil um sobrevivente ter alterado o website da empresa. Como resultado, a obra foi descanonizada pelos produtores da série. (TOLEDO, 2012)

O diário do sobrevivente foi uma sessão no site de Lost, ficcionalmente escrito pela personagem Janelle Granger. Trazia comentários do cotidiano de um sobrevivente condizente com os eventos que aconteciam na ilha. A linha da escrita termina no fim da primeira temporada, quando a escotilha é aberta. Na segunda temporada, um outro sobrevivente parece assumir o diário. O personagem Chris Dobson teria encontrado o diário e continuado as anotações e um relato confuso tornou a história incompatível com a mitologia da série, sem objetividade ou adição

16 Domínio desativado pela ABC, agora disponível em . 17 Disponível ao acessar o código fonte do website

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na compreensão da narrativa. O conteúdo foi removido do site e os supostos personagens jamais citados na série. Os criadores revelaram em um podcast oficial que a autoria dessa obra foi designada a equipe de marketing da própria emissora, e que não participaram da criação. Logo, por não condizer com a narrativa e não ser reconhecida pelos donos do universo ficcional, a obra é classificada como apócrifa.

Os romances LOST: risco de extinção, LOST: identidade secreta e LOST - Sinais de Vida, diferentemente de Diários dos Sobreviventes são livros publicados entre 2006 e 2007 e contam histórias paralelas de personagens secundários. LOST: risco de extinção, Cathy Hapka, 2006, conta a vida de Faith Harrington. A ambientalista acaba por embarcar no fatídico voo 815 da empresa Oceanic após seu namorado Oscar assassinar seu orientador de PHD, Dr. Arreglo. O motivo do crime é a ajuda do doutor a uma empresa química chamada Q Corp. Na ilha, Faith interage com John Locke durante os dois primeiros dias após o acidente. LOST: identidade secreta, Cathy Hapka, 2006, é sobre o sobrevivente Dexter Cross, que antes de embarcar no avião que caiu na ilha fingia ser de uma família rica para os amigos da faculdade e para a sua namorada Daisy. Ela descobre a farsa e eles brigam. Ao cair na ilha, Dexter perde parte da memória, e a recupera somente ao ver sua própria imagem e a da namorada em meio a floresta tropical.

LOST - Sinais de Vida, Frank Thompson, 2007, descreve a vida de Jeff Hadley, um artista e professor famoso que pinta quadros e faz esculturas de mulheres nuas e utiliza-se disso para relacionar-se sexualmente com elas. Após uma vida de conquistas e abandonos ele sofre o acidente e cai na ilha de Lost. Vive então em uma caverna e tem surtos psicóticos com seu passado. Os três romances contam histórias paralelas que pouco tem haver com a narrativa principal, e os projetos outrora integrado com os produtores da série acabaram por desvirtuarem- se. Assim, segundo a classificação de Toledo são consideradas apócrifas.

O jogo “LOST - Via Domus”, jogo lançado em 2008 para videogames e computadores é outra obra que não está no “cânone”. Escrito e dirigido por Gadi Pollack, assume o ponto de vista do personagem Elliott, um fotojornalista apaixonado por sua colega Lisa. O jovem descobre segredos sobre Zoran Savo e Thomas Mittlewerk, nomes ligados a Fundação Hanso para tentar escapar do guarda costas Beady Eyes que pretende destruir as provas e matar Elliott. O jogador

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que comanda os movimentos do personagem passa a interagir com personagens principais da ilha, lidando com situações chave da narrativa principal. A “canonicidade ficcional” é afetada, pois no jogo Elliott lida com passagens enquanto na série as situações ocorrem com personagens diferentes. A jogabilidade é limitada a caminhar pela ilha e as interações com os personagens principais pré- estabelecidas. Toledo considera o jogo parcialmente canônico por não adicionar conteúdo a série além do mapa real da ilha a ser explorado pelo jogador.

Os repositórios LOST University e Lostpedia não podem ser considerados canônicos por não contar parte da história ou adicionar a narrativa. LOST University, lançado em 2009 na Comic-Con foi um site que simulava uma universidade, com cursos on-line ministrados por pessoas ligadas a equipe de Lost. Os cursos eram divididos por semestre e abordavam assuntos como “Física Introdutória sobre Viagem Temporal”, “Escrita Antiga na Parede” e “Inspiração e Expressão com ”. Ao matricular-se, o “aluno” deveria fazer um teste, cujo resultado desbloquearia as videoaulas de apoio para uso no disco blu-ray integrante do box da quinta temporada da série.

Já a Lostpedia é um exemplo de enciclopédia colaborativa. As informações advindas de conhecimento empírico de vários fãs, boletins oficiais, matérias jornalísticas, resumos de congressos e feiras são disponibilizadas gratuitamente na internet. A biografia dos personagens, sinopses de episódios, descrição de objetos de cenas permitem um mapeamento detalhado dos elementos da série. A enciclopédia segue o modelo colaborativo e é gerida sob o modelo wiki, baseada uma política para publicação de conteúdo e moderação. Qualquer pessoa pode escrever um artigo e aumentar a base de dados, o que, colateralmente pode gerar incongruências. O empirismo apaixonado, a falta de fontes e aplicação de teorias pessoais, levam a não uniformidade do texto. A distorção de alguns conteúdos e a autoria de fãs impedem que Lostpedia possa ser considerada canônica, apesar de ser um repositório valiosíssimo sobre o universo ficcional.

Essas obras participam do universo ficcional de Lost, mas não pertencem ao seu “cânone”, logo estão fora da esfera representada na ilustração 4. Para estabelecer a narrativa principal de Lost, serão descritas as obras que, além de

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pertencerem ao “cânone” propiciam o “conhecimento aditivo”, compondo a narrativa transmidiática.

3.3 Obras da narrativa transmidiática

Ainda segundo o quadro 1, as obras que compõe a narrativa transmidiática no universo ficcional de Lost são:

o A série televisiva; o O romance metaficcional “Bad Twin”; o O A.R.G. “Lost Experience”; o O A.R.G. “Find 815”; o O A.R.G. “Octagon Global Recruiting”; o Os mobisodes “LOST: Missing Pieces”; o O mock-documentary “Os Seis da Oceanic - Uma Conspiração de o Mentiras”; o O mock-documentary “Mistérios do Universo – A Iniciativa D.H.A.R.M.A.”.

Apesar do programa televisivo ser a obra principal, é pertinente ao sucesso da narrativa transmidiática que cada extensão, além de contribuir com a “compreensão aditiva” contenha uma experiência independente. Jenkins ressalta que “[...] O ideal é que cada episódio deve ser acessível em seus próprios termos, mesmo quando faz uma contribuição única para o sistema narrativo como um todo. “ (JENKINS, 2007). Assim, a cada obra é assegurada existência individual, mas mantida certa ligação ao corpo principal. Essa ligação não é direta, mas realizada através de elementos chave, distribuídos pelas obras. O fã é induzido a reconhecer esses sinais, e estabelecer o fluxo narrativo a partir da série televisiva, extensão mais importante do universo ficcional de Lost.

Na ilustração 6, a série é representada por uma grande esfera orbitada pelas extensões, lugares que os espectadores podem visitar para adquirir informações complementares à narrativa.

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Ilustração 6 - Série como centro da narrativa transmidiática, orbitada pelas suas extensões Fonte: Elaborada pelo autor

A série televisiva é composta de 118 episódios distribuídos em seis temporadas, e foi transmitida pela rede de televisão ABC entre os anos de 2004 e 2010. Durante as temporadas a trajetória e relações entre personagens são apresentadas assim como mistérios inerentes à ilha. Ruinas misteriosas, fragmentos de civilizações perdidas e personagens enigmáticos recheiam a trama. Os saltos no tempo, característicos de ficção científica contrabalanceados com referências religiosas, completam o caleidoscópio de referências que formam o corpus da série. Grande parte da estrutura narrativa está na série televisiva. Tanto o ritmo quanto o estilo da narrativa estão impressos nela.

O romance metaficcional Bad Twin, Laurence Shames, 2006, é um livro real que foi publicado como sido escrito pelo personagem Gary Troup, morto no episódio piloto e que também existe diegeticamente como manuscrito lido pelos personagens

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Sawyer e Hurley. Conta a história do detetive particular Paul Artisan, de carreira decadente que investiga o sumiço de um dos irmãos Widmore. Os gêmeos de personalidade “oposta” precisam estar juntos para que o pai divida a herança. Cliff Widmore tem revelações sobre a própria vida, natureza humana e filosofia apoiado por Artisan na trajetória da busca pelo irmão. O que possibilita a sua contribuição ao universo ficcional é a utilização de elementos registrados pela equipe de Lost como base da história. Esses elementos são a fictícia família Widmore, a Fundação Hanso, os malfadados números, o restaurante Mr. Cluck’s Chicken Shack e os personagens Penny Widmore e Cindy Chandler. O romance usa a lacuna deixada na série sobre a origem da família Widmore e de seu interesse na ilha, além da propriedade do navio negreiro Black Rock por Alvar Hanso. A história não adiciona fatos novos a narrativa principal de Lost, mas o romance é utilizado pelo A.R.G. Lost Experience como alvo do protesto de anúncios reais feitos pela empresa fictícia Hanso Foundation.

3.3.1 Jogos de realidade alternativa

Os A.R.G.s Lost Experience, Find 815 e Octagon Global Recruit foram jogos de realidade alternativa criados pela equipe de Lost entre 2006 e 2008. Dario Mesquita define A.R.G.:

Meio as possibilidades de formatos disponíveis para exploração da transmídia, há uma que detém todas as características da série [...], pois nela são encontradas as potencialidades da narrativa casadas numa roupagem de jogo lúdico, em que a realidade ficcional se transmuta com o cotidiano do espectador para torná-lo parte do universo fantasioso: o A.R.G., ou Alternate Reality Game (MESQUITA, 2010, p. 226).

Ao integrar o espectador ao universo ficcional, o A.R.G. potencializa a utilização das experiências particulares do público, e as direciona a um objetivo: Encontrar pistas que revelem o enredo da história contada. Ao participar dos atos, o espectador é convidado a interagir com os elementos ficcionais e escolhe os caminhos que melhor lhe satisfizer rumo a meta.

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O A.R.G. Lost Experience aconteceu no intervalo entre a segunda e a terceira temporada da série em 2006. Em resumo, o jogo constituiu-se de peças publicitárias que continham pistas e senhas encadeadas que se seguidas corretamente poderiam esclarecer mistérios da narrativa principal de Lost. O jogo começou com a exibição de um comercial informativo no intervalo do episódio 2x20 . O número de telefone mostrado ao final do anúncio levava a uma senha a ser colocada no website da Fundação Hanso e daria acesso a outras informações escondidas na página. No mesmo mês, “Bad Twin” foi lançado e a fictícia fundação comprou anúncios em vários jornais. Esses anúncios continham mensagens de repúdio a obra que denegriria a imagem da empresa. Então, várias peças publicitárias de empresas ligadas a série passaram a esconder códigos de acesso a sites, e liberavam vídeos, entrevistas e podcasts com conteúdo relevante. No decorrer do jogo, um ator caracterizado como executivo da empresa foi a um programa de entrevistas sem identificar-se como personagem, e repudiou o romance. Após um tempo, a hacker revelou-se como a ativista Rachel Blake, que lutava contra supostas atrocidades cometidas pela fundação. Apareceu em carne e osso na feira Comic- Con e acusou os criadores de conspiração durante um painel de discussões em torno da série. Cartazes foram colados na cidade de San Diego, CA e indicariam que o A.R.G. “não era um jogo”. Barras de chocolates foram distribuídas com códigos e, no último “ato”, a personagem Rachel encontra Alvar Hanso, suposto presidente da fundação, que revela a ela ser seu pai.

Find 815, o segundo A.R.G. de Lost gira em torno de Sam Thomas especializado em tecnologia da informação, em busca de sua namorada Sonya. O personagem começa a receber e-mails com dicas sobre o desaparecimento do avião após a empresa aérea Oceanic Airlines afirmar que as buscas por sobreviventes estariam encerradas e que os passageiros da aeronave estariam mortos. Ele, então, embarca em uma misteriosa expedição de busca com destino a Fossa Oceânica de Sunda, Indonésia. Após várias reviravoltas, Sam descobre que o real motivo da expedição é encontrar o “Black Rock”, navio negreiro desaparecido em 1881. Ao chegar ao local, Sam controla um robô, que encontra o avião no fundo do mar, com os passageiros mortos a bordo. O jogo não foi produzido pela ABC, mas terceirizado por uma empresa chamada Hoodlum. Assim, os criadores de Lost negaram

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participação na sua criação. A interação era bem menor do que em Lost Experience, e foi realizada por sites e vídeos. Sua contribuição ao universo ficcional veio ao extrapolar uma passagem da narrativa principal: um avião comercial foi comprado por Charles Widmore e colocado no fundo do oceano repleto de cadáveres retirados de um cemitério. Na série, podemos constatar que esse artifício foi utilizado para esconder a existência e a localização da ilha pela empresa dos Widmore.

O terceiro A.R.G. de Lost, chamado de Octagon Global Recruiting ocorreu entre a quarta e a quinta temporada. Começou com um comercial de televisão em nome de Octagon Global Recruiting que convidava o espectador a participar do processo seletivo para trabalhar na empresa. Na Comic-Con 2008 em San Diego, durante um painel de Lindelof e Cuse foi exibido uma gravação de uma suposta transmissão secreta do passado, em que o personagem Pierre Chang clama pela reconstrução da Iniciativa D.H.A.R.M.A., ao prever sua morte e de seus companheiros pela purgação. Na convenção, uma suposta funcionária da empresa de recrutamento cadastrava os fãs e liberava o acesso ao site do projeto. Assim o candidato era submetido supostos testes admissionais e avançava no processo. O jogo foi cancelado em 25 de novembro e a explicação oficial foi a de que a Iniciativa D.H.A.R.M.A., sem recursos financeiros havia sido vendida para a franquia Lost. A contribuição do jogo para o universo ficcional foram a revelação do nome verdadeiro do personagem Pierre Chang, a revelação morte dos membros da Iniciativa e que, através de alguma anomalia, Chang tinha contato com o futuro.

Esses três A.R.G. oferecem uma interface diferente de contato com a série e utilizam elementos diegeticos fora do espaço ficcional. O ato de seguir e decifrar as pistas, possibilita uma nova camada de compreensão e interação entre espectador e criadores. O A.R.G. integra também os anunciantes à narrativa através de associações das empresas não-ficcionais com fictícias, como no caso da Jeep que forneceria os veículos da Iniciativa D.H.A.R.M.A., ou da Verizon, fornecedora de telecomunicações. O ponto negativo é que a imersão dos fãs foi uma experiência sentida apenas nos locais em que o A.R.G. foi disponibilizado, fato que privou um público maior das sensações de conquista dos jogos. É possível observar também que o primeiro A.R.G. Lost Experience foi o melhor contextualizado e engendrado, e no decorrer da série, a estratégia perdeu força com os dois A.R.G.s subsequentes.

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3.3.2 Mobisodes – Missing Pieces

Os mobisodes Missing Pieces foram pequenos episódios com duração de um minuto e meio a três, em treze episódios desenvolvidos pela produção de Lost para a exibição em celulares. Patrocinados pela empresa de telefonia Verizon, foram distribuídos inicialmente para seus clientes, e disponibilizados após no site da ABC18. São extensões que complementam os episódios com cenas que parecem ter sido excluídas do episódio original. O pioneirismo da ação trouxe problemas com os sindicatos dos atores, que não sabiam como seria a distribuição dos lucros em uma plataforma como essa. Em relação ao conteúdo, os mobisodes não são essenciais para a compreensão da história, mas adiantam informações que somente seriam fornecidas na série tempos depois, como os poderes paranormais de Walt, a relação de Juliet com os sobreviventes e até uma cena anterior ao mostrado no episódio 1x01 “The Pilot Part.1”. Essas cenas não mudam o curso da narrativa mas aprofundam momentos não essenciais dos personagens principais.

3.3.3 Mock-documentaries “Os seis da Oceanic” e “Mistérios do Universo”

Os mock-documentaries ou mockumentaries “são um tipo de ficção que se apropria dos procedimentos estilísticos do documentário e/ou da reportagem jornalística. “ (CÁNEPA; FERRARAZ, 2013, p. 85), o que gera um produto ficcional com estética semelhante a algo jornalístico. A utilização desse modus operandi dá a obra “ares” de documento fatual, quando na verdade, não passa de uma criação fictícia. No universo ficcional de Lost, há dois exemplos de peças nesses moldes: Os seis da Oceanic: Uma Conspiração de Mentiras e Mistérios do Universo – A Iniciativa D.H.A.R.M.A.

Os seis da Oceanic: Uma Conspiração de Mentiras foi lançado como vídeo bônus nos boxes de DVDs e Blu-rays da quarta temporada. O documentário ficcional

18 Os Mobisodes eram acessados através do endereço eletrônico disponível em

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contesta a versão “oficial” da história que a companhia Oceanic Airlines sustenta do acidente aéreo. Para preservar seus amigos e a própria ilha Jack, Sun, Kate, Aaron, Hurley e Saiyd combinaram mentir sobre as condições da queda do avião para a imprensa. O vídeo contesta esses “fatos”, com especialistas e testemunhas, e deflagra uma possível “conspiração” engendrada por empresas poderosas aliadas ao governo. Contribui para o universo ficcional ao fornecer um outro ponto de vista sobre a aceitação passiva dessa versão absurda do acidente contada pelos sobreviventes, o que aumenta a coesão ficcional.

Mistérios do Universo – A Iniciativa D.H.A.R.M.A. utiliza recursos estéticos dos documentários exibidos nos anos 80 pela ABC sobre mistérios e mitos, e conta a história da Iniciativa D.H.A.R.M.A. como se fosse uma organização secreta e de fins escusos. A narrativa induz a dúvida da realidade de tal instituição através de depoimentos de pessoas sobre o desaparecimento de conhecidos, compra de armas e mantimentos ligados a instituição. Outra associação feita é a da D.H.A.R.M.A. com a região conhecida como “Área 51” nos Estados Unidos, famosa por ser cercada de teorias da conspiração. A contribuição do mock-documentary ao universo ficcional foi a de fornecer profundidade histórica a uma instituição fictícia e endossar sua aura de mistério e evidenciar uma visão privilegiada do fã de Lost, que acaba por ter mais conteúdo sobre a Iniciativa do que os supostos produtores do documentário.

Ambos os filmes pretendem valorar a ficção através da estética documental. São paródias explícitas para os fãs. Mas provocam ao dar contornos fatuais a acontecimentos diegeticos. O estranhamento está em sintonia com os intuitos dos A.R.G.s, e o permear entre ficcional e não-ficcional utilizado como característica que integra essas extensões perfeitamente no contexto do universo ficcional.

3.4 Distribuição da narrativa transmidiática

A narrativa de Lost é constituída por elementos distribuídos entre a série televisiva e as extensões canônicas. Para manter o universo coeso e respeitar a “bíblia” ficcional, somente extensões canônicas participam da narrativa e a oficializam como transmidiática. Dada a importância do conteúdo, ele pode ser

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recorrente em mais de uma mídia, aprofundado em uma outra ou estar completamente disposto na série se instituído como fundamental.

MOBISODES ROMANCE Missing Pieces Bad Twin (2006) (2007)

EXTENSÕES A.R.G. Lost A.R.G. Find 815 A.R.G. O.G.R. Experience (2006) (2007/2008) (2008)

MOCKUMENTARY MOCKUMENTARY Os Seis da Oceanic Mistérios do Universo (2008) (2009)

Série 1a Temporada 2a Temporada 3a Temporada 4a Temporada 5a Temporada 6a Temporada (2004/2005) (2005/2006) (2006/2007) (2007/2008) (2008/2009) (2009/2010) PERÍODO 2004-2007* Sobrevivência Exploração Os “Outros” Liderança Redenção Batalha final

MÉDICO PERIODO ESCOTILHA INICIATIVA INFÂNCIA DE BLACK ROCK D.H.A.R.M.A. 2000ac -1881* PASTOR D.H.A.R.M.A. JOHN LOCKE O FAROL

IRMÃ CASAL KWON PERÍODO PURGAÇÃO EXÉRCITO JACOB/M.I.B. 1881-1954* GRÁVIDA OUTROS

PERÍODO O GOLPISTA EXPEDIÇÃO O PEQUENO FUTURO 1954-1977* FRANCESA PARALELO

A FUGITIVA A QUEDA DE PERÍODO TEMPLO 1977-2004* LOCKE

TORTURADOR PERÍODO O MÚSICO DOBRA DO >2007* TEMPO

MÁ-SORTE CONSTANTE

Ilustração 7 - Distribuição da narrativa por temporada da série e extensões.

Os blocos representam histórias diferentes de que a série trata e as cores o período em que elas ocorrem na diegese. A narrativa é apresentada no tempo presente, com o espectador que observa as histórias em terceira pessoa, salvo exceções em que a câmera subjetiva é utilizada como recurso. Os períodos retratados são fragmentados em cenas, e distribuídos pelos capítulos e temporadas, e utilizam recursos de montagem, como flashbacks, flashforwards e flashsideways.

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3.4.1 Descrição da narrativa em períodos

Os períodos retratados em Lost imbricam-se em uma longa narrativa, iniciada diegeticamente em aproximadamente 2000 anos antes de Cristo, com fatos ficcionais que remetem seguramente a 2007 e outros sem qualquer marcação temporal. A seguir um panorama da narrativa organizada dos períodos em sequência.

3.4.2 Período de 2000 a.c. à 1881

Jacob/M.I.B, a história de Jacob e o homem de preto - Há 2000 anos, uma náufraga chamada Cláudia acordou em uma ilha tropical. Uma desconhecida ofereceu-lhe água e fez seu parto. Após o nascimento das crianças, ela foi assassinada pela parteira. Nasceram Jacob e um bebê sem nome.

Aos treze anos, os meninos encontraram um jogo e começaram a jogar. O menino sem nome, que veste sempre preto teve visões de sua verdadeira mãe envolta em luz. Começou a segui-la. Ela mostrou-lhe a aldeia dos outros, e afirmou que vieram do outro lado do mar assim como eles. O menino de preto, confuso, vai tirar satisfações com a mulher que os criou. A mulher fala que não há nenhum outro lugar, mas que na ilha existem habitantes que são corruptos, matam e destroem. A sua missão é proteger a luz que está em na caverna, a mesma luz que cada ser humano possui uma parte. Ela diz que os outros querem essa luz e se tentarem pegá-la, a luz dos seres humanos apaga e a escuridão domina o mundo. O menino de preto, alertado pelo espírito da mãe tenta alertar Jacob sobre as mentiras, mas Jacob fica bravo e bate nele. O menino de preto implora a Jacob para viver com os outros, mas Jacob prefere ficar onde está. A mulher fica irada e jura que o menino de preto jamais sairá dali.

Dezessete anos depois, Jacob fia tecidos enquanto o homem de preto trabalha num projeto para deixar a ilha. Em um dos encontros com Jacob, afirma que realmente "seu" povo é ganancioso e ambicioso. Jacob avisa à mãe que o irmão quer deixar a ilha. Ela vai ao seu encontro quando o homem de preto explica como

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sairá de lá. Como nunca localizou a caverna onde repousa a luz, decidiu cavar poços em locais onde o magnetismo era anormal a fim de atingi-la por baixo. Em seguida, desenvolveram uma roda de madeira que interferiria na luz, o que permitiu a saída de lá. Esse êxodo não é uma opção para a falsa mãe dos meninos. Ela bate com a cabeça do filho em uma pedra a fim de desacordá-lo e mata os outros habitantes da ilha, além de destruir o mecanismo. Após o acontecido, ela leva Jacob para a porta da caverna sagrada, e afirma que ele nunca deverá entrar lá. Faz o encantamento para que Jacob vire o guardião da ilha. Ao retornar à sua morada, a mulher vê a destruição e do jogo só resta uma pedra branca e uma negra. O homem de preto esfaqueia a mãe e com ela agonizante, pergunta porque ela não quer que ele deixe a ilha. Ela responde que é porque ama-o, agradece e morre em seguida. Jacob vê a cena e bate em seu irmão que reafirma que Jacob não pode matá-lo. Mas na verdade, não é isso que Jacob pretende. Ele joga o irmão na caverna, o que destrói sua alma e transforma-o no terrível monstro de fumaça. O corpo sem alma é disposto ao lado da falecida falsa mãe, e inicia-se o perpétuo jogo entre os dois, além do mandato de Jacob como protetor da ilha19.

Black Rock e o escravo navegante - (Ricardo, Ricardus) foi um pobre aldeão que vivia com sua esposa no século XIX. Quando ela adoeceu, ele cavalgou até a casa de um médico e implora por ajuda. Por não ter dinheiro, em um ato de desespero ele golpeia o médico e rouba a medicação necessária. Mas a salvação chegou tarde. Por matar o médico, Ricardo foi preso e condenado a morte. Nem o padre perdoa seus pecados. Ao invés disso, vende-o como escravo para um navio mercador. Com sádicos marinheiros e muitos outros como ele, o navio Black Rock entra em uma tempestade e é jogado contra uma estátua enorme por uma onda gigante. Ao acordar, Richard ainda acorrentado assiste ao monstro de fumaça matar os marinheiros ao seu redor. Em sua forma humana, o homem de preto convence o rapaz que ele morreu e está no inferno e para reencontrar seu amor, precisa matar o diabo que se esconde na base da estátua. Incumbido da missão, Richard vai de encontro a Jacob que prova que eles não estão no inferno. Ao perceber que o rapaz foi ludibriado pelo seu inimigo, o protetor da ilha propõe um

19 Episódio 6x15 “

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acordo: Richard viverá para sempre em troca de seus serviços de representante entre ele e seus candidatos. Ele aceita e torna-se imortal também, e passa a exercer a missão com fidelidade por muitos anos. 20

3.4.3 Período de 1881 a 1954

O exército dos "Outros" - Em 1954, liderados por Richard Alpert, o grupo dos “Outros” protegem a ilha de invasores a mando de Jacob. Eloíse Hawking e Charles Widmore pertencem ao grupo quando recebem os visitantes do futuro: John Locke, James Sawyer, Juliet Burke, Miles Straume, , . O grupo acredita que esses estranhos viajantes são do exército americano interessados na bomba de hidrogênio que possuem. Daniel é físico e se oferece para desativar a bomba, já que sua casca rachada provoca queimaduras de radiação. A ideia seria depositar chumbo na rachadura e concretar a bomba para torná-la inócua. John Locke visita Richard e lhe entrega uma bússola e afirma que foi o próprio Alpert que lhe deu o objeto no futuro. Diz que é o novo líder de seu grupo no futuro, e pede para Richard confirmar ao lhe visitar assim que nascer, dois anos depois21.

3.4.4 Período de 1954 a 1977

A infância de John Locke - Emily Locke é mãe de um menino prematuro depois de ser atropelada. Depois de dias de luta no hospital, o bebê John é dado à adoção e quem cuida dos trâmites é Richard. Após alguns anos, ele vai visitar o menino, e se surpreende em como John joga gamão tão bem. Vê um desenho de uma fumaça preta que atinge um homem no chão feito pelo garoto. Oferece alguns objetos a John e pergunta quais "já pertencem” a ele. Quando o menino pega o tubo de sementes, a bússola e a faca, Richard sai transtornado e diz que a criança não

20 Episódio 5x09 “” 21 Episódio 5x03 “

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está pronta ainda. Quando adolescente, Locke só quer ser igual aos outros garotos e diz a um professor que insiste que ele vá para uma escola de cientistas: "Não me diga o que não posso fazer"22.

A Iniciativa D.H.A.R.M.A. - No início dos anos 70, a fundação Hanso financiou o projeto de dois estudantes de doutorado, com o intuito de integrar estudos de cientistas do mundo. As áreas de conhecimento passavam por meteorologia, psicologia, parapsicologia, zoologia, eletromagnetismo e estudos sociais. O nome do projeto é iniciativa D.H.A.R.M.A., sigla para Departamento de Heurística e Pesquisas em Aplicações Materiais23. Através de uma instalação no subsolo de uma igreja em Londres construída sobre uma área com acúmulo de energia eletromagnética é possível localizar a ilha, já que esta conta com propriedades semelhantes.

A estação Farol24 - Nessa ilha é possível o estudo e possível alteração dos números da Equação de Valenzetti - 4 8 15 16 32 43 - que prevê a extinção da raça humana. Vários recrutas viajam frequentemente para a ilha e constroem uma estrutura gigantesca, com várias estações de estudo com propósitos específicos, inclui linhas de comunicação com torre de transmissão, serviço automatizado de entrega de suprimentos e uma comunidade organizada com escola para os filhos e uma pequena vila para as famílias dos trabalhadores. As viagens são feitas através de um submarino entre continente e ilha, e respeita sempre a janela de eventos aberta aleatoriamente e detectada pela estação Farol. A convivência com os habitantes originais da ilha não é pacífica, já que eles os consideram invasores. Mas uma trégua é firmada, o que impede que os grupos se machuquem.

O pequeno Ben Linus - Ben é filho de Roger Linus e Emily Linus que morreu ao dar à luz ao garoto, motivo pelo qual o pai culpou o menino a vida toda. Foi para a ilha quando o Roger decidiu trabalhar na D.H.A.R.M.A. Ben é dedicado, mas se distrai ao ter visões de sua mãe falecida pela janela da escola. Seguir essa visão é o

22 Episódio 4x11 “” 23 Episódio 2x03 ““ 24 Episódio 5x06 “316”

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que o leva a conhecer Richard Alpert. Depois da movimentação da ilha feita em 2004, Sawyer, Miles, Juliet, e Jim Kwon são realocados de seu tempo para 1974 e são recebidos como novos recrutas por Pierre Chang, infiltram-se entre os trabalhadores e levam uma vida normal até 1977. Após a queda do avião da Ajira Airlines em 2007, , e Hurley Reyes também chegam do futuro25. Sawyer, que já ocupa um lugar de chefia na iniciativa, integra seus amigos. Só que por não ter chegado junto deles, não consegue ser integrado. Ele é então preso e torturado, e o jovem Ben ajuda-o a fugir da prisão. Ciente de sua missão, Sayid dá um tiro em Ben e foge26. O menino está entre a vida e a morte, quando Kate doa sangue para salvá-lo. A médica Juliet Burke tenta curá-lo, mas não consegue. Eles decidem então levar o menino para Richard Alpert, que os alerta sobre o menino perder a inocência. Ele diz que se levarem-no, ele será "para sempre um de nós"27.

O templo - Há um templo secreto ilha, um lugar cercado por cinzas onde o monstro de fumaça não pode entrar. Richard leva Ben ao lugar e cura o menino graças as propriedades das águas especiais do templo. Charles Widmore desaprova que o menino esteja ali, mas Alpert afirma que Jacob assim o quis28. Na vila D.H.A.R.M.A., Daniel Faraday chega a 1977 em um submarino e um incidente acontece: Na construção da estação orquídea, um colaborador sofre um colapso cerebral ao perfurar o poço29. Desorientado, Faraday implora para que Charlotte Lewis, ainda uma criança, jamais volte à ilha. A Iniciativa D.H.A.R.M.A. descobre que os viajantes do futuro são infiltrados e perseguem-nos, mas Daniel segue seu plano: encontrar a bomba de hidrogênio desativada vinte e três anos antes e detoná-la para destruir o bolsão de energia acumulada. Assim, o acidente eletromagnético que aconteceria trinta anos depois e vitimaria o avião da Oceanic Airlines nunca aconteceria, fato que alteraria o passado dos viajantes. Para tentar descobrir a

25 Episódio 5x06 “316” 26 Episódio 5x10 “He's Our You” 27 Episódio 5x11 “Whatever Happened, Happened” 28 Episódio 5x12 “” 29 Episódio 5x01 “

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localização da bomba, eles vão até o acampamento dos outros e ameaçam Richard, mas Eloíse Hawking revida, e mata próprio filho que ainda não havia nascido30.

A dobra do tempo - Eloíse encontra o diário de Faraday e entende a gravidade da situação que foi criada. Decide então colaborar e indica o local da bomba. Miles descobre que Pierre Chang é seu pai. Perdoa-o ao descobrir que ele evacuou a ilha impedir que seu filho e mulher morressem pela liberação de energia. Muitos da D.H.A.R.M.A. além da jovem Charlotte e o bebê Miles fogem no submarino31. Eloíse, grávida de Daniel, é impedida por Richard de ajudar na detonação. Os viajantes do futuro retiram o núcleo da bomba e levam-no até o poço perfurado na futura Estação Orquídea. No caminho, Sayid é baleado por um funcionário da D.H.A.R.M.A. Jack joga a bomba no buraco, mas não há detonação. Ao invés disso, uma anomalia magnética começa a atrair os metais em volta e arrasta Juliet para o fundo do poço. A fim de detonar a bomba, a médica bate no núcleo com uma pedra e uma explosão acontece, libera a energia eletromagnética da ilha e dobra o futuro ao criar uma linha alternativa de tempo32.

3.4.5 Período de 1977 a 2004

A purgação - A vida continua na Iniciativa D.H.A.R.M.A., após o incidente da construção da estação Orquídea ser superado. Vídeos de instrução gravados por Pierre Chang são produzidos para instruir os novos recrutas. Após alguns anos, Ben leva seu pai para passear e mata-o com gás venenoso. Os “Outros” também liberam gás pela ilha através da estação Tempestade protegidos por máscaras e macacões especiais, e matam os funcionários remanescentes da iniciativa D.H.A.R.M.A., com exceção dos dois que trabalhavam isolados na estação Cisne. Essa estação tinha

30 Episódio 5x14 “” 31 Episódio 5x16 “ part 1” 32 Episódio 5x17 “The Incident part 2”

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por função liberar parte da energia eletromagnética acumulada no bolsão da ilha o que impede sua explosão33.

A expedição francesa - A torre de transmissão da D.H.A.R.M.A. transmite incessantemente uma gravação que contém os números da Equação de Valenzetti. Um grupo de cientistas franceses liderado por , uma jovem grávida, chegou a ilha em meio a uma tempestade que danificou seu barco34. Ao firmarem um acampamento provisório, encontram Jin Kwon e ajudam-no35. O monstro de fumaça sai de sua morada abaixo do templo e começa a matar um por um. Ao final, Robert infectado pela maldade do monstro tenta matar a própria esposa, mas Danielle reage e mata-o primeiro36. Ela vai até a torre de transmissão e altera a mensagem para um pedido de ajuda em francês, dois dias antes de dar a luz a pequena Alex37. Sua filha é sequestrada por Ben uma semana depois38, o que faz a francesa permanecer á sua procura por anos. Danielle fica paranoica e constrói inúmeras armadilhas para se proteger dos “Outros”. Ben leva a bebê ao acampamento, mas Charles Widmore afirma que a vontade de Jacob é que a matem. Ben diz que se fosse verdade, Widmore já o teria feito. Três anos depois, os “Outros” expulsam Charles da ilha. Ele jura que um dia, Ben deverá escolher entre a ilha e a menina39.

A constante - , escocês, abandonou a futura esposa no altar. Entrou no monastério e após um tempo descobriu que aquela não era sua vocação. Conheceu então Penny Widmore filha de Charles, que agora é um rico empresário40. Ao pedir permissão para casar com sua filha, Desmond é humilhado e acuado e desiste da moça. No futuro ele tem uma chance de retornar e alterar essa parte do

33 Episódio 3x20 “The Man Behind The Courtains” 34 Episódio 1x09 “” 35 Episódio 5x04 “” 36 Episódio 5x05 “” 37 Episódio 1x09 “Solitary” 38 Episódio 5x12 “Dead Is Dead” 39 Episódio 5x12 “Dead Is Dead” 40 Episódio 3x17 “Catch-22”

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seu passado e chega a comprar um anel de compromisso, mas é alertado por Eloise Hawking sobre sua missão e desiste de fazê-lo41. Decide então servir a guarda britânica quando, em um outro retorno temporal vai até a Universidade de Oxford conhecer Daniel Faraday para buscar ajuda em relação as viagens temporais que ocorrem na ilha. Confronta mais uma vez Charles que lhe fornece o novo endereço de Penny. Desmond vai encontrá-la e pede que ela lhe dê seu número de telefone para que, dali a oito anos ele ligue para ela42. Três anos depois, Desmond é desligado do exército, e Charles tenta suborná-lo para esquecer sua filha43.

A queda de Locke - Ao tentar integrar-se a uma comunidade rural, John Locke percebe que não consegue matar um outro ser humano44. Descobre que seu verdadeiro pai, Anthony Cooper é um golpista que forja a própria morte para não pagar uma dívida. Ao ajudar o pai com o golpe a fim de ganhar seu amor, ele perde a confiança de sua noiva Helen. O pai também o abandona45. Após alguns anos, ele vive deprimido e perde os benefícios fornecidos pelo governo por não querer fazer terapia. Descobre que Antony Cooper pretende dar outro golpe, propor casamento a uma senhora e roubar todo o seu dinheiro. Vai tirar satisfações com o pai e é empurrado, cai da janela do oitavo andar e fica paraplégico. Cooper foge para o México46.

A escotilha - Desmond chega aos Estados Unidos e decide entrar em um concurso de volta ao mundo de barco organizada por Charles para recuperar sua honra; Smith paga-lhe um café e doa-lhe o barco do falecido marido. Penélope encontra-o em um estádio e diz que Desmond foge. Ele conhece Jack Shephard no mesmo lugar e depois parte em viagem. Em meio a uma tempestade, Desmond acorda na ilha e Kevin o encontra. O funcionário da Iniciativa D.H.A.R.M.A. utiliza uma roupa contra radiação e leva Desmond para dentro da estação Cisne. Instrui

41 Episódio 3x08 “” 42 Episódio 4x05 “” 43 Episódio 2x23 “Live Together, Die Alone part 1” 44 Episódio 3x03 “” 45 Episódio 2x17 “” 46 Episódio 3x13 “The Man from Tallahassee”

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sobre digitar os números da Equação Valenzetti em um terminal e apertar o botão vermelho a cada 108 minutos. O mecanismo libera energia eletromagnética que vazou no incidente da estação Orquídea trinta anos antes. Desmond percebe que está sendo enganado por Kevin após três anos sem parar de apertar o botão. Na briga, ele bate a cabeça do companheiro em uma pedra e volta já com o contador do computador zerado. Os objetos metálicos são atraídos para a parede e após digitar os números o mecanismo teoricamente funciona, mas o descuido provoca a queda do avião da Oceanic na ilha47.

O médico pastor - Jack Shephard, filho de Christian Shephard, é um cirurgião especializado em operações de coluna. Subjugado por seu pai, ele tenta manter o controle, mas nem sempre consegue. Apesar disso é um excelente profissional, e salva inclusive a vida de sua futura esposa Sarah vítima de um acidente de carro48. Por falta de tempo, o casamento deles acaba, e Jack acha que Sarah tem um caso com seu pai49. O médico vira um alcóolatra e denuncia o pai por matar uma paciente grávida por operá-la bêbado50. Christian foi para a Austrália após descobrir que tinha uma filha lá, Claire Littleton. Jack foi encontrar com o pai e o encontrou morto em um beco. Decidiu levar o corpo de volta aos Estados Unidos, mas teve problemas ao embarcá-lo no avião da Oceanic51.

A irmã grávida - Claire Littleton viveu na Austrália até um acidente automotivo deixar sua mãe em coma. O pai Christian, ao saber da situação, sugeriu eutanásia, fato o que a ofendeu grandemente52. Sem rumo na vida engravidou de seu namorado que após algum tempo abandonou-a. Decidiu dar o filho a adoção, mas desistiu na última hora. Um vidente fornece a passagem de avião para que Claire

47 Episódio 2x24 “Live Together, Die Alone part 2” 48 Episódio 2x01 “Man Of Science, Man Of Faith” 49 Episódio 3x01 “A Tale Of Two Cities” 50 Episódio 1x11 “All The Best Cowboys Have Daddy Issues” 51 Episódio 1x05 “” 52 Episódio 3x12 “

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entregue seu filho para um casal em Los Angeles53. Ela pega o voo 815 da Oceanic, grávida de oito meses.

O casal Kwon - Jin Kwon, coreano, filho de um pescador pobre e uma prostituta54 casou-se com Sun Kwon, e foram parabenizados por Jacob durante a recepção dos convidados55. Para obter a permissão do pai da moça para o casamento, Jin foi obrigado a ser um capanga, o que desencadeou ações controladoras em relação a esposa, além de atribuir a falta de filhos a mulher apesar dele ser estéril56. Sun é acostumada a mentir para se livrar dos problemas desde criança57 e sufocada pelo marido pretende aprender inglês e fugir para os Estados Unidos. Seu professor de inglês torna-se amante e pretende fugir com ela. O pai de Sun surpreende os dois na cama e manda Jin matá-lo, mas ele não tem coragem. O amante se mata58. Sun considera abandonar Jin, mas percebe que ainda o ama quando embarcam no voo 815 da Oceanic Airlines59.

O golpista - James Sawyer é um americano do Tenessee que vive de golpes. Adora dar apelidos e seu jeito machista esconde suas virtudes. Sua infância foi dura, pois o pai de John Locke seduziu sua mãe e quando seu pai descobriu a matou e se suicidou em seguida. No enterro, Jacob deu-lhe as condolências. Mais velho, também passou a enganar mulheres para roubar dinheiro. Conheceu Cassidy e teve uma filha com ela, Clementine. Ele não admitiu a paternidade, mas abriu uma poupança onde depositou dinheiro para a criança. Na Austrália, encontrou Christian Shephard e beberam juntos antes de Christian morrer. Após uma briga de bar, foi deportado da Austrália no voo da Oceanic60.

53 Episódio 1x10 “” 54 Episódio 3x18 “D.O.C.” 55 Episódio 5x16 “The Incident part1” 56 Episódio 2x16 “” 57 Episódio 3x02 “The Glass Ballerina” 58 Episódio 3x02 “The Glass Ballerina” 59 Episódio 1x07 “In Translation” 60 Episódio 1x16 “

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A fugitiva - Kate Austen foi criada pela mãe e o padrasto até eles se separarem. A mãe voltou a viver com seu pai biológico, um alcóolatra que abusava da mulher e tentava abusar dela também. A situação a levou a incendiar a casa enquanto o pai dormia e sua mãe a denunciou para a polícia. Um agente federal começou a persegui-la, mas ela escapou todas as vezes61. Kate reencontra sua mãe que diz pra ela nunca mais voltar62. A mãe de Kate fica doente e a fugitiva tenta visitá-la, mas ela grita para denunciar a filha. Na tentativa de escapar, seu primeiro namorado, Tom é assassinado63. Ela tenta se reestabelecer em vários lugares sem sucesso. No seu último refúgio na Austrália é denunciada e capturada pelo agente federal, que prende e leva-a de volta para os Estados Unidos no voo da Oceanic.

O músico - Charlie Peace foi da famosa banda de rock Drive Shaft, mas seu vício em heroína atrapalhou a carreira e a relação com seu irmão, Liam. Em 1996 encontrou Desmond enquanto tocava violão na rua e salvou uma mulher de ser assaltada64. A banda acabou depois que Liam foi a uma clínica de reabilitação e tentou superar o vício. Charlie foi a Austrália para tentar convencer o irmão a voltar para a banda, mas com uma família constituída, ele não aceitou. Charlie comprou uma passagem no voo da Oceanic e se drogou no banheiro do avião65.

O torturador - O corajoso Sayid Jarrah, filho de um herói iraquiano, serviu o exército como torturador por muitos anos66. Reencontrou sua paixão de infância Nadia, e no momento em que deveria torturá-la ajudou-a a escapar67. Foi preso pela CIA e teve que se infiltrar em um grupo terrorista em troca de informações sobre Nadia. Pegou o voo da Oceanic para encontrar a amada na Califórnia depois de procurá-la por sete anos68.

61 Episódio 2x09 “” 62 Episódio 3x15 “” 63 Episódio 1x22 “” 64 Episódio 3x21 “” 65 Episódio 1x07 “The Month” 66 Episódio 2x14 “” 67 Episódio 1x09 “Solitary” 68 Episódio 1x20 “

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Má sorte - Hurley Reyes desenvolveu uma patologia alimentar depois do abandono do pai69. Após um acidente com duas mortes, Hurley começou a comer compulsivamente e entrou em um estado catatônico. Foi internado no Instituto de Saúde Mental Santa Rosa, onde Libby também está, mas eles não se encontram. Os médicos tentam convencer o rapaz de que o acidente não foi sua culpa. Hurley inventa um amigo imaginário que age em seus desejos suicidas inconscientes70. Quando sai do instituto mental, Hurley ganha na loteria ao jogar os números da equação de Valenzetti, mas o dinheiro lhe traz muito azar71. Depois que um meteoro cai no seu restaurante de fast-food durante uma entrevista ao vivo72. Hurley entende que os números são amaldiçoados. Na busca por respostas ele vai até a Austrália e na volta, pega o voo da Oceanic 815.

3.4.6 Período de 2004 a 2007

Sobrevivência (primeira temporada) – Em 2004, o voo 815 Oceanic Airlines que ia de Sydney, Austrália com destino a Los Angeles, EUA cai na praia da ilha. Jack tenta socorrer as outras vitimas apesar de também estar ferido. Hurley retira comida que restou no avião e distribui para os feridos. Sayid organiza a retirada e organização dos pertences da fuselagem. Kate ajuda Jack a suturar seu ferimento. Locke joga gamão com , filho de Michael Dawnson. O golpista Sawyer fica alheio a tudo e lê calmamente seu livro. O cenário e desolador. Há vítimas feridas espalhadas pela areia junto a pedaços da fuselagem do avião e se assustam quando o monstro de fumaça derruba arvores pelo caminho.

Quando Jack, Kate e Charlie decidem procurar o rádio do avião para pedir ajuda, encontram o piloto do Oceanic 815 ainda com vida. Além de o comunicador não funcionar, eles são obrigados a fugir do monstro de fumaça que mata o piloto ao

69 Episódio 3x10 “Trícia Tanaka Is Dead” 70 Episódio 2x18 “” 71 Episódio 1x18 “” 72 Episódio 3x10 “Trícia Tanaka Is Dead”

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jogá-lo sobre uma copa de arvore. Os sobreviventes começam a explorar a ilha e encontram vestígios das instalações da Iniciativa D.H.A.R.M.A. tais como uma torre de rádio e ursos polares. As relações começam a ficar complicadas, pois eles têm que defender um ao outro para sobreviverem e os segredos que eles escondem atrapalham a confiança mútua. Eles encontram Danielle que ainda procura a filha enquanto javalis famintos invadem o acampamento à noite.

Ethan, um dos "Outros" infiltra-se no acampamento com o intuito de raptar Claire para aplicar-lhe remédios antiabortivos. Quando a água acaba, os sobreviventes são obrigados a procurar outro lugar para viver. Enquanto Sawyer esconde remédios e Jim impede Sun de interagir com as outras pessoas. As privações começam a provocar alucinações em uns e afetar a saúde dos demais. Após o rapto, Claire é encontrada com amnésia e Charlie começa a cuidar dela. É quando se apaixonam. Ethan exige que devolvam sua refém e em um conflito, é morto pelos sobreviventes.

Jin e Michael decidem construir uma jangada para deixar a ilha, mas a embarcação é incendiada pelos "Outros" durante a noite, o que provoca sérias desconfianças entre eles. Shannon Rutherford se apaixona por Sayid, mas seu irmão Bonnie Carlyle é contra o relacionamento. Locke acha na floresta uma escotilha no chão durante o acidente que mata Boonie. Claire entra em trabalho de parto e Aaron nasce saudável. Danielle Rousseau alerta o grupo sobre os “Outros”, habitantes nativos da ilha, raptores de bebês. Jin, Sawyer, Michael e Walt constroem outra embarcação para sair da ilha. O grupo se separa já que alguns sobreviventes passam a ir morar nas cavernas que Jack encontrou ao seguir a visão de seu pai morto. A jangada dos sobreviventes é baleada pelos outros enquanto Locke explode a porta da escotilha.

Exploração (segunda temporada) - Walt é sequestrado pelos "Outros" enquanto Jin e Sawyer desaparecem. Os sobreviventes descem pela escotilha e chegam a estação Cisne, que está vazia. Passam a habitá-la e revezam para digitar o código e apertar o botão a cada 108 minutos conforme o vídeo de instrução encontrado. Os "Outros" obrigam Jin e Sawyer a levá-los para o acampamento e Michael foge pela floresta em busca do filho e encontra o outro grupo de sobreviventes, os quais estavam na cauda do avião, e decidem juntar-se ao grupo

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principal. Ana Lúcia, policial e líder destes, faz Saiyd refém, mas logo o iraquiano se liberta. Mr. Eko, um padre ex traficante de drogas, resgata Sawyer e leva-o de volta ao acampamento. Então descobre que Charlie continua viciado em heroína, o que abala Claire. Charlie sonha que o filho de Claire, Aaron está em perigo e prevê uma doença que aflige o menino. Jack, Locke e Sawyer vão atrás de Michael floresta a dentro. Hurley se apaixona por Libby, sobrevivente do outro grupo e Sun é ferida em uma tentativa de rapto. Danielle aparece novamente e leva Saiyd como prisioneiro para tentar descobrir se o iraquiano é um dos "Outros". Claire e Kate tentam descobrir a cura para Aaron. Jack e Locke mantém o "Outro" como prisioneiro em segredo do resto dos sobreviventes.

Sun revela a Jin que está grávida. Ana Lúcia interroga o preso, "Henry Gale", que afirma que chegou a ilha em um balão. Ela, Charlie e Saiyd vão a selva confirmar se a história de "Henry" é verdadeira. Locke deixa de apertar o botão para ver o que acontece e as portas de aço fecham as saídas da escotilha o que prende suas pernas. O refém Henry digita o código e salva Locke. Ao chegar da selva, os sobreviventes descobrem que a história do prisioneiro é falsa. Hurley revela sua compulsão por comida, e seu amigo imaginário incentiva-o a pular de um penhasco. Libby salva-o por pouco. O falso Henry admite que é um dos "Outros", então os sobreviventes decidem fazer uma troca: O falso Henry por Walt. Jack e Kate resgatam Michael da selva enquanto Lock questiona sua fé na ilha, pois acredita que voltou a andar por um propósito. Michael mata Ana Lúcia e Libby com tiros enquanto o falso Henry foge. Para buscar respostas, Locke e Mr. Eko vão a floresta e encontram um ponto de interrogação no chão; o pingo o lugar onde o monomotor nigeriano que carregava o irmão de Eko caiu. Embaixo do avião, outra escotilha. A estação Pérola, uma sala de controle que vigia a estação Cisne. Michael convence Jack a resgatar Walt. Mr. Eko desiste de construir a igreja. Jack e Saiyd planejam atacar os outros.

Desmond retorna a ilha depois de tentar escapar com seu o Elizabeth. Os “Outros" capturam Kate, Sawyer, Jack e Hurley auxiliados por Michael. “Henry Gale” é, na verdade, Ben Linus do bando dos “Outros”. Na escotilha Locke decide não apertar o botão mesmo com os alertas de Mr. Eko e Desmond. Uma gigantesca descarga eletromagnética toma conta da ilha, e Desmond aciona um sistema de

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emergência que destrói a estação Cisne. Dois pesquisadores detectam essa atividade na Antártida e avisam Penny Widmore, namorada de Desmond sobre a localização da ilha.

Os “Outros” (terceira temporada) - Os sobreviventes feitos prisioneiros tem tratamentos diferentes. Jack deve operar Ben para retirar-lhe um tumor da coluna; Sawyer e Kate quebram pedras; Hurley é libertado e volta para o acampamento. A "Outra" Juliet Burke sugere a Jack que mate Ben na mesa de operação, mas o médico salva o líder deles. A filha de Ben, ajuda Kate e Sawyer a fugir. Quando um grupo de resgate sai do acampamento para salvar Jack encontram outra estação D.H.A.R.M.A., “A Chama”, uma instalação de comunicação entre a ilha e o continente. Roubam mapas do lugar se autodestrói. De posse da localização exata da vila onde os “Outros” se escondem, seguem viagem até serem parados por uma cerca supersônica de proteção que impede o monstro de fumaça entrar no local. Locke é capturado por Ben e explode o submarino que levaria Jack e Juliet para fora da ilha. Os "Outros" abandonam esse lugar e deixam Juliet para trás. Ela é integrada ao grupo de sobreviventes apesar de operar como agente infiltrada. Claire está muito doente, condição invariável para grávidas na ilha e Juliet utiliza a estação médica "O Cajado" para aplicar medicamentos. No mesmo lugar, faz um ultrassom em Sun e descobrem que o filho é realmente de Jin apesar de sua suposta esterilidade.

Locke enxerga que sua missão é obedecer às instruções proferidas pela ilha. Para isso, deve liderar o grupo dos “Outros”. Ben quer uma prova que Locke pode fazê-lo. Matar seu próprio pai, que está amordaçado na ilha. John convence Sawyer a matá-lo ao revelar que se trata do mesmo homem que provocou a morte de seus pais. De posse do corpo, Locke vai ao grupo e descobre que Jacob é quem comanda-os: Para provar que diz a verdade, ele e Ben vão para uma cabana. Ao chegar, Ben fica enfurecido quando Jacob também fala com John e, no caminho de volta atira nele e o joga na vala coletiva dos mortos da Iniciativa D.H.A.R.M.A. Juliet monta uma armadilha para os "Outros" que desejam raptar as mulheres grávidas entre os sobreviventes e coloca dinamite nas suas barracas enquanto Desmond prevê a iminente morte de Charlie.

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Naomi, uma paraquedista aparece na floresta e diz que está em um navio mandado por Penny para resgatar Desmond. A comunicação entre ela e a embarcação é feita através de um telefone, mas está interrompida graças a interferência da estação “O Espelho” e a torre de transmissão. Para reestabelecer a comunicação os sobreviventes decidem desligá-las. O grupo dos "Outros" divide-se para impedir os sobreviventes. Na torre de transmissão, Naomi consegue contato com o barco, mas é assassinada por Locke que não quer sair da ilha. Ben é capturado enquanto Alex e Danielle se reencontram. Dos sobreviventes que pretendem desativar a estação, Charlie consegue falar com Penny que afirma que não mandou barco nenhum a ilha. Após uma explosão ele morre afogado não sem antes avisar Desmond sobre a situação.

Liderança e polaridade (quarta temporada) - O grupo racha. Locke não deseja contatar o barco nem partir e Jack sim. Kate rouba o rádio via satélite e o navio manda um helicóptero para a ilha com Miles Straume, Daniel Faraday, Charlotte Lewis e Frank Lapidus a bordo. Esse grupo demonstra conhecer todo o histórico dos sobreviventes e Sayid faz um acordo para irem ao barco. O helicóptero parte, mas o voo perde a orientação dos instrumentos em uma tempestade eletromagnética. Por causa disso, a consciência de Desmond volta ao passado e ele desmaia. O chefe de comunicações do navio tem um colapso pelo mesmo motivo. Desmond encontra Faraday no passado e o cientista informa que ele deve encontrar algo que está em seu passado, presente e futuro para se estabilizar, senão os saltos temporais causarão sua morte. Ao ligar para Penny, ele consegue se reestabelecer no tempo.

Daniel e Charlotte tornam o gás da estação Tempestade inerte, salva os sobreviventes de uma nova purgação. Bem, ainda prisioneiro, manipula Locke para libertá-lo e livre, monta uma emboscada para matar Danielle Rousseau. Ao ver a morte da mãe e do namorado, Alex grita que é filha de Ben e é capturada por mercenários que estavam no navio; eles vão de encontro a Linus que não cede: Eles matam-na. Claire vê o fantasma de Christian Shephard e segue-o até a cabana. Na verdade, o Homem de Preto é quem está na forma de Christian. Os mercenários decidem incendiar a ilha, mas antes que o façam são mortos pelo monstro de fumaça. Sayid encontra um bote e leva os sobreviventes para o navio cargueiro. Ben

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sabe que o navio foi mandado por Widmore, por isso infiltrou Michael que finge ser o faxineiro do navio com a missão de explodir o barco. Linus vai até a estação Orquídea, desce e gira a roda de madeira e desaloja a ilha do tempo. O piloto Frank Lapidus tenta salvá-los no helicóptero, mas a aeronave cai na água. Michael coloca uma bomba no navio que explode. Os sobreviventes são resgatados pelo barco de Penny que navegava ali perto.

Resgatados na Indonésia, os seis sobreviventes decidem mentir sobre o destino do voo da Oceanic para proteger os que ficaram. No funeral de Christian, Jack descobre que Claire é sua irmã. Sun dá à luz a sua filha, Jin Yeon. Após mover a ilha, Ben acorda no deserto e vai para a Tunísia. Sayid reencontra Nadia e se casa, mas ela morre. Desolado, começa a trabalhar como assassino de aluguel de Ben, e mata quem está em torno de Charles Widmore. Ben encontra o antigo inimigo e diz que matará sua filha assim como Charles fez com a sua, já que não pode matá-lo diretamente. Kate visita Cassidy e lhe entrega o dinheiro da poupança feita por Sawyer, e após isso é julgada por matar Wayne. Ela assina um acordo que se compromete a não deixar a Califórnia por dez anos. Hurley começa a ter visões de Charlie e, perturbado, volta para o manicômio. Jack vai visitá-lo e Hurley afirma que eles devem voltar a ilha. Jack e Kate ficam noivos, e vão morar juntos com Aaron, mas Jack começa a ficar paranoico e se vicia em drogas, o que termina a relação.

Redenção (quinta temporada) - Daniel explica que o passado não pode ser alterado, mas que os sobreviventes estão se movem no tempo por causa da "roda congelada" girada por Ben. Richard Alpert afirma que, para salvar a ilha da destruição, os que saíram devem retornar e que Locke deve morrer. Charlotte, exposta a mais tempo que os outros aos saltos no tempo começa a sangrar. Em um dos saltos, Daniel consegue então contato com Desmond que está na escotilha e pede para ele encontrar sua mãe na Universidade de Oxford quando sair da ilha. Os que ficaram lá não sabem em que tempo estão. Daniel quer ir à estação Orquídea em uma tentativa desesperada de parar os saltos no tempo, mas é tarde. Charlotte morre em seus braços. No lugar em que costumava ficar a estação há um poço. Locke desce por uma corda e em outro salto temporal, o poço desaparece com ele dentro. O fantasma de Christian aparece e instrui-o a girar a roda de madeira o que coloca a ilha de volta em seu eixo. É isso que John faz.

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Fora da ilha, Locke tenta convencer os outros a voltar, mas é assassinado por Ben. Jack descobre a morte de John obituário do jornal e tenta suicídio. Walt e Sayid vão visitar Hurley no manicômio e ele também está convencido que devem voltar a ilha. Jack tenta convencer Kate a voltar, mas ela não lhe dá ouvidos. Ele invade a funerária e encontra Ben, que afirma que eles vão voltar e levar o corpo de Locke também. Sun encontra Widmore e encomenda a morte de Linus, mas esse convence-os a voltarem. Kate deixa Aaron com a avó materna e parte. Com instruções de Eloíse Hawking guiada pela estação Farol, eles pegam o voo 316 da Ajira Airlines pilotado por Lapidus e pousam novamente na ilha.

O inimigo toma a forma de Locke e revela que Ben "o" matou. Enquanto Jack, Kate, Hurley e Sayid vão parar em 1974, Sun e Lapidus descobrem que os amigos estão no passado quando o fantasma de Christian Shephard lhes mostra uma foto antiga, de seus amigos com macacões da D.H.A.R.M.A. Após o susto de ver "Locke" vivo, Ben invoca o monstro de fumaça para lhe julgar sobre a morte de Alex. O inimigo afirma que Ben deve obediência a "Locke". Ambos encontram Richard, e pedem para ver Jacob. A intenção de "Locke" é matá-lo. O inimigo convence Ben a esfaquear Jacob e jogar seu corpo nas chamas.

A batalha final (sexta temporada) - Com a explosão da bomba, voltam para 2007. Jacob em espírito pede para os sobreviventes levarem Sayid ao templo para curá-lo. Jack descobre o seu propósito quando vê que foi observado e toma consciência da sua missão. O homem de preto monta um grupo de seguidores para sair da ilha no avião da Ajira e mata os que não querem lhe seguir. Charles Widmore está em um submarino, observa a situação e pretende usar Desmond para derrotar o monstro. Sawyer tenta enganar o homem de preto e o joga contra Charles para roubar o submarino e fugir com os amigos, mas ele percebe. Quando chegam a ilha, o avião está cheio de explosivos. "Locke" prontamente desarma as bombas e engana os sobreviventes que tentam fugir no submarino. A embarcação explode e mata Jin, Sun e Sayid.

A sabotagem revolta os sobreviventes. Jacob reaparece em espírito e passa seu poder a Jack. O inimigo quer matar Widmore por acreditar que os candidatos estão mortos, mas Ben atira em Charles por trás matando-o antes. Agora o homem de preto pretende matar Desmond, ultimo vestígio da proteção de Jacob na ilha. Na

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busca pelo escocês encontra Jack. Inicia-se a batalha final. Os três descem pela caverna até a fonte de luz e Desmond é o único que consegue desligar a fonte, graças as suas capacidades de resistência eletromagnética. Em seguida acontecem terremotos e a ilha começa a desmoronar. O resto dos sobreviventes foge para o avião. Jack pode agora atingir o homem de preto, que volta a ser mortal. Depois de uma luta intensa, Kate acerta um tiro no inimigo. Jack muito ferido, despede-se de Kate que vai para o avião. Hurley e Ben ajudam Jack a ir para a fonte. Ele passa os poderes para Hurley, salva Desmond e realiza a tarefa mortal de religar a luz da ilha. O avião consegue decolar e salva os sobreviventes enquanto Jack morre no mesmo lugar onde caiu quando do acidente do Oceanic 815.

3.4.7 Período após 2007

Futuro alternativo - O voo da Oceanic 815 pousou normalmente em Los Angeles enquanto a ilha, destruída jaz no fundo do oceano. Jack tem um filho e não é um bom pai. Ele tenta encontrar o corpo de Christian Shephard que foi extraviado enquanto Kate foge do agente ao roubar um taxi. Claire está no banco de trás e ela leva moça até o hospital. Locke perde seu emprego na fábrica de caixas de Hurley, mas consegue outro como professor substituto na mesma escola em que Ben Linus dá aulas. Ben Linus encontra uma oportunidade de conseguir o cargo de Diretor da escola em que leciona se chantagear o atual diretor, mas na iminência de prejudicar sua melhor aluna, Alex Rousseau, ele escolhe o bem da menina. Jin e Sun estão infelizes. O pai de Sun obrigou Jin a entregar uma maleta com dinheiro para um mercenário, pagamento esse que seria para o assassinato do próprio Jin. Com o extravio da maleta, os mercenários o fazem refém. Enquanto isso, Sayid manipula Nadia a casar com seu irmão. Depois de anos de reclusão ele se considera uma pessoa boa, mas uma dívida com um agiota que o irmão contraiu o faz matar os credores, os mesmos mercenários que aprisionam Jin. Sawyer é um bom policial é parceiro de Miles Straume. Relaciona-se com Charlotte, mas a magoa. No final, tem seu carro atingido pela fugitiva Kate e a prende.

Charles Widmore e Desmond se dão muito bem. Charles, casado com Eloíse Hawking, tem dois filhos, o músico Daniel Faraday e Penélope Wildmore. Charlie

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Peace é contratado para fazer um show beneficente na casa dos Widmore. Desmond, seu homem de confiança de confiança deve acompanhar o músico até a mansão, mas Charlie alucinado tenta matá-lo. Desmond começa a ter flashes de sua trajetória na ilha durante uma ressonância magnética, e vai procurar por Penny. Eloíse não permite o encontro pois acredita que Desmond não está pronto. Desmond encontra Daniel que descreve uma hipotética catástrofe impedida por uma bomba de hidrogênio, e que não sabe como conhece essa história, já que é músico e nunca estudou física. Incentiva Desmond a procurar Penny. Ao encontrá-la, ele desmaia e acorda na ilha, dentro do submarino. Hurley encontra Libby internada em um hospital psiquiátrico e ao beijá-la relembra os momentos que passaram juntos na ilha. Após a revelação, Desmond vai até a escola onde Ben dá aulas e atropela John Locke. John ferido é levado ao hospital que Jack trabalha. Sawyer interroga Kate. Claire quer doar seu filho para adoção, mas a advogada de Desmond, Illana intervém. Miles vai a casa de Nadia prender Saiyd, mas ele foge. Illana leva Claire para a leitura do testamento de Christian Shephard e revela a Jack que ela é sua irmã. Jack recebe uma ligação urgente, para que opere John Locke. Jack quer descobrir como John ficou paraplégico e chega ao seu pai Anthony Cooper, que está em estado vegetativo. O acidente que o deixou dessa forma foi a queda de um avião que John pilotava. Locke não quer encarar a situação de ter ferido o pai, mas Jack o incentiva a tentar operar a coluna para voltar a andar.

Jack acorda e percebe um sangramento enquanto Locke retorna à escola. Desmond encontra Ben, espanca-o até Ben lembrar da ilha. Alex intervém e leva o professor a sua casa para conhecer sua mãe, Danielle Rousseau. Desmond se entrega a policia e Sawyer o prende e coloca-o na mesma cela de Sayid e Kate. Os três presos serão transferidos, mas no caminho, Ana Lúcia liberta-os em troca de suborno pago por Hurley. Eles se dirigem a casa dos Widmore. Desmond leva Kate para a igreja de Eloíse e diz que é seu amigo, e que só quer partir. Hurley sequestra Charlie em um hotel e vai para lá também. Jin e Sun se lembram da ilha quando a médica Juliet faz um ultrassom. Boonie finge uma briga para reapresentar Sayid e Shannon, que se beijam ao lembrar da ilha. No concerto, Daniel se apresenta a Charlotte, e toca piano. Charlie vê Claire que começa a ter contrações e entra em trabalho de parto. Kate socorre a moça e eles se lembram de tudo quando Aaron

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nasce. Eloíse pergunta a Desmond se ele levará Daniel quando partir, e ele diz que deixará o rapaz ficar. No hospital, a cirurgia de Locke termina e, ao mexer os pés, John se lembra da ilha. Juliet e Sawyer se encontram no hospital e se recordam também. Jack chega ao concerto e encontra Kate e tem flashes do passado, mas resiste a entender. Locke chega a igreja, e Ben pede desculpas pelo que fez a ele. John o perdoa, e anda até a igreja. Kate leva Jack para ver o seu pai. Jack olha o caixão que está vazio e se assusta ao ver o pai em pé. Pergunta porque Christian está ali, se havia morrido, e Christian revela que eles estão mortos. Jack chora e pergunta onde estão, e é informado que é um lugar que eles se encontram para lembrar e poder esquecer. Christian diz que eles irão seguir em frente, para um lugar a se descobrir. Ao descer, eles se cumprimentam e uma luz toma o recinto, e absorve-os.

A narrativa de Lost é de viés edificante através das dificuldades extremas enfrentadas pelos diversos sobreviventes submetidos a essas condições. Enaltece a redenção perante revisitar as memórias dos momentos bons e ruins, superar o passado e seguir em frente. Renega a um nível inferior as rusgas e disputas perante ao objetivo de ser absorvido pela luz. Ao meu ver, para atingir tal objetivo utilizou de alguns princípios básicos.

Segundo a máxima de que “o passado não pode ser alterado” proferida pela personagem Eloíse Hawking a Desmond Hume, a história assume como lei o principio básico da casualidade. Assim como o princípio de ação e reação de Isaac Newton quanto ao movimento dos corpos, onde “toda ação gera uma reação igual ou contrária” Lost procura encadear seus eventos em uma lógica. Através do cruzamento das várias histórias paralelas, toda e qualquer ação passada dos personagens gera uma reação presente, igual ou contrária. Conforme o avanço da série, uma mudança de comportamento pode ser observada direciona-os a outro caminho. Enquanto ocorre um evento de pouca importância para um personagem, de forma sincronizada e muitas vezes no mesmo lugar acontece um fato que muda a vida de outro. O universo ficcional da ilha reflete a premissa de um cosmo finito e organizado em que os personagens atuam como engrenagens que trabalham juntas. Uma pequena ação displicente de um provoca um incrível estrago no outro, assim

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como um ato heroico e suicida pode ter por resultado somente passar uma mensagem.

Ainda há um caráter determinista na série que incomoda e engessa os destinos dos personagens, somente quebrado pelo livre arbítrio de cada um. Se o tempo de ilha é a tensão da manipulação desses personagens, a realidade paralela é o alívio através de escolhas diferentes realizadas na dimensão etérea. O destino final dos personagens não ignora a casualidade e perdoa suas dívidas com o passado. Muito pelo contrário, eles pagam com a vida pelos erros que os levaram para a ilha já que segundo o próprio personagem Jacob, são desgraçados e suas vidas estão quebradas para sempre. Os erros só podem ser redimidos com o sacrifício e em outro plano que não o físico. A oportunidade de mudança aparece através do despertar de Desmond, uma espécie de anjo do tempo que liberta essas almas perdidas em um ciclo ininterrupto de erros para a ascensão. Todavia alguns ainda não estão preparados. Daniel Faraday e Ana Lúcia são deixados para trás, e no caso do físico a culpa nem seria sua, já que vários dos erros foram cometidos pela sua mãe. Se Desmond Hume é o anjo do tempo, Eloise Hawking é seu o demônio por ter consciência do mecanismo. Esse fato não a livra do carma de seus erros e a condena a vivê-los ininterruptamente pela eternidade.

Lost utiliza rupturas para mudar a trajetória da historia, seja no campo das ações ou de espaço-tempo. O trauma desencadeia as mudanças de curso, como a explosão da bomba atômica que dobrou a linha do tempo e os acidentes aéreos trouxeram os sobreviventes à realidade da ilha. A ação pós-traumática confere realismo nas ações extremas dos personagens, justificáveis pelas situações extremas vividas por eles. Ao longo dos seis anos, Lost contrastou o realismo de sua estética ao misticismo e a ficção científica, sem demonstrar em que ponto exatamente a história terminaria. O penoso trajeto até a salvação não foi unânime, mas chegou em algum momento e por diversos caminhos.

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4. O JOGO DO TEMPO

A teoria diz muito, mas não nos trás mais para perto dos segredos do “Velho”. Eu, pelo menos estou convencido que “Ele” não joga dados

Albert Einstein (2015)

4.1 O jogo na diegese

O jogo é um elemento bastante presente diegeticamente em Lost. Suas formas estão para a diegese como elemento estruturador; cerceiam, definem o tom da história e assuntos recorrentes em vários episódios. A ambivalência torna-se presente como função de desenho da personalidade dos personagens até para compor as situações que os rodeiam além de levantar conflitos éticos e morais conforme o avanço da narrativa. Os momentos de relaxamento encontram também no jogo um reduto, das brincadeiras criadas pelos sobreviventes para escaparem da dura realidade da ilha aos divertidos jogos de palavras que o personagem Sawyer faz recorrentemente para apelidar os companheiros.

Inicialmente, a mitologia da série propõe que existam dois lados em uma batalha épica. Jacob, o imortal protetor onipotente contra o Homem de Preto/Monstro de Fumaça, que volta a sua aparência humana quando deseja. Por muitos anos eles só tem a companhia mútua e para passar o tempo criam jogos e apostas entre eles a partir de um antigo tabuleiro de Senet73, conforme ilustração 8. O único desejo do Homem de Preto é deixar a ilha, mas não pode fazer isso sem matar Jacob e o protetor do lugar viverá pela eternidade para que isso não aconteça. Jacob observa através d’O Farol a vida de pessoas que estão desgraçadas e procuram um motivo para viver. Como pode sair quando quiser, recruta possíveis substitutos para sua missão de proteger a ilha e infiltra-se em suas vidas além de

73 É um dos mais antigos jogos de tabuleiro conhecidos e remonta ao Antigo Egito, cerca de 4000 anos atrás.

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influenciar em suas decisões. O monstro acredita que os que chegarem na ilha terão maldade, por isso julga os corruptos e os mata.

Ilustração 8 - O homem de preto joga Senet com seu irmão Jacob. Fonte: Lost-Media.com (2010)

No momento oportuno, os escolhidos viajarão na exata rota da ilha, que é invisível no mundo real e só acessível em uma conjuração de espaço e tempo. Para que um personagem se torne um possível substituto, ele deve ser tocado por Jacob em algum momento de sua vida. Dessa forma, é impossível que seja morto pelo Homem de Preto. As pessoas chegam à ilha através da janela de eventos cruzada através de acidentes aéreos ou náuticos. A esperança de liberdade do Homem de Preto é eliminar Jacob e seus possíveis substitutos para poder sair. Como não pode matá-los diretamente, semeia a discórdia para que se eliminem. Jacob prefere observar o jogo à distância e torce para que suas prévias intervenções façam do livre arbítrio de cada um o resultado de sua substituição. Na história, pessoas chegam na ilha e seus destinos são selados com a morte, algumas imediatamente e outras muito tempo depois.

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O macabro jogo mítico justifica o fato de que duas forças de igual potência, que não possam atingir-se diretamente, e precisem de peças para que as jogadas aconteçam. A balança74 representa essa situação inicial de estabilidade. Logo, para que os lances ocorram e o jogo aconteça, Jacob e o Homem de Preto precisam que os sobreviventes dos desastres sejam suas peças, manipulados até encontrarem o próprio destino na ilha. Constitui-se, diegeticamente um jogo milenar de agonia, uma competição que selará o destino dos personagens.

4.2 Categorias dos jogos na diegese

Roger Caillois estabelece as categorias básicas de jogo, descritas no quadro abaixo:

Quadro 2 - Divisão dos jogos, segundo Roger Caillois

DIVISÃO DOS JOGOS

AGÔN ALEA MIMICRY ILINX (Competitividade) (Sorte) (Simulacro) (Vertigem)

PAIDIA Corridas Cara ou coroa Imitações infantis “Piruetas” infantis Lutas Cantigas Ilusionismo Carrossel Atletismo Trava-línguas Bonecas Balanço Algazarra Brinquedos Dança Agitação Máscaras Disfarces

Risadas regulamentadas - Não Pipa Boxe Bilhar Apostas Teatro Toureiros Paciência Esgrima Damas Roleta Artes de espetáculo Atrações de feiras Palavras Cruzadas Futebol Xadrez Loterias em geral em geral Esqui Alpinismo Acrobacias Competições esportivas em geral LUDUS

Fonte: Roger Caillois, (1990)

74 Episódio 6x04 “The Substitute”

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Segundo o quadro de Caillois, a batalha entre Jacob e o Homem de Preto está categorizada como agon, uma competição ou batalha regulamentada. Outra instância de batalha em consonância com essa categoria de jogo é a de John Locke, que percebe que pode mexer suas pernas outrora paralisadas no episódio piloto75 e que propõe uma partida de gamão ao personagem Walt. Ele apresenta duas pedras de mesmo tamanho e cor diferente, uma branca e uma preta. Pedras semelhantes são vistas na mão do Homem de Preto disfarçado de Locke76, representado uma série de simbolismos que definiriam o estilo da série desde o início.

Ilustração 9 - John Locke, o verdadeiro exibe as peças de gamão em 1x01 The Pilot, enquanto o Homem de Preto exibe as pedras que o simbolizam e ao seu irmão Jacob, em 6x04 “The Substitute” Fontes: The Growning Arts (2012) Desmond Is My Constant (2010)

O uso das cores preto e branco que simbolizam o jogo de agon é frequente nos enfrentamentos subsequentes na série. Jacob é o bebê que utiliza branco, enquanto o Homem de Preto veste preto, fato que perdura pela infância dos personagens e continua após adultos, o que sela o lado de cada um no jogo. Locke inicia a série como um homem de fé e utiliza roupas claras, enquanto Jack, o homem

75 Episódio 1x01 “The Pilot part 1” 76 Episódio 6x04 “The Substitute”

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da ciência veste roupas predominantemente escuras. Fato idêntico ocorre com o próprio Locke, que depois de morto e copiado pelo Homem de preto começa a utilizar trajes escuros condizentes com sua personalidade malévola. Ben Linus, que utiliza roupas claras veste-se tons escuros quando manipulado pelo Homem de Preto, assim como Saiyd. Constantemente as paletas claras e escuras são alternadas pelos personagens conforme o lado que suas ações seguem naquele momento. Esse movimento a dualidade intensifica-se com o decorrer da série e quase não se vê tons vibrantes nas roupas dos personagens durante sexta temporada.

Os movimentos do jogo diegético ocorrem episódio a episódio e destituem um lado como detentor de uma moral essencialmente boa ou ruim. Os interesses efêmeros e profundos da própria sobrevivência definem em qual lado o personagem em determinado momento. Enquanto crença e a fé movem alguns, a ciência e a lógica motivam outros. Personagens essencialmente bons mentem deliberadamente, como Sun ao trair seu marido77, enquanto outros essencialmente maus redimem-se como Michael que ao sacrificar-se pelos amigos78. Outro exemplo de dualidade é o de Ben Linus, que após ser manipulado e matar Jacob se arrepende, e ajuda a derrotar o Homem de Preto. Conflitos éticos perseguem os personagens todo o tempo, como a permanente fuga de Kate, os desentendimentos de Locke e Jack com seus respectivos pais, o desejo de vingança que move Sawyer e Saiyd e a luta contra a insanidade perpetuada por Hurley. Os personagens travam batalhas internas tremendas a fim de superar traumas. A oposição e o conflito dão o tom ao caminhar da história, como algo constante e de soluções pontuais e culminam na resolução desses conflitos somente após o último episódio79.

A categoria do jogo de agon não é a única presente em Lost. Alea, o jogo de sorte e azar é personificado pelo personagem Hurley. Eventos cunhados fundamentalmente nesse tipo de jogo fazem a vida do personagem variar da mais pura glória ao inferno em questão de instantes, o que ocorre ao acaso como em uma

77 Episódio 3x02 “The Glass Ballerina” 78 Episódio 4x08 “Meet Kevin Johnson” 79 Episódio 6x18 “ part 2”

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roleta nefasta. Hurley é agraciado pela sorte a ponto de ganhar na loteria e amaldiçoado da mesma forma por eventos aleatórios que ocorrem então, como o infarto de seu avô, o incêndio da casa que comprou para a mãe, do melhor amigo ter fugido com sua namorada e o suicídio de seu contador logo após um meteoro destruir o restaurante que acabara de comprar80. Esses extremos entre sorte e o azar são atribuídos aos números “amaldiçoados” que Hurley utilizou em no seu bilhete de loteria e foram obtidos através de uma transmissão de rádio pirata.

O elemento que simboliza o jogo de alea em Lost é a sequência numérica “4 8 15 16 23 42”. A sequência completa é o exato número da escotilha em que vive Desmond e o código do computador que precisa ser digitado a cada 108 minutos. Mais do que isso, a cada vez que numerais são vistos, digitados, solicitados, lembrados, são invariavelmente a sequência de dígitos ou ao menos parte dela. A obsessão por esses números faz com que cada evento randômico de Lost seja um caminho que leve fatidicamente um dos personagens para a ilha.

Há uma associação da contingência com o destino invariável na série. No A.R.G. “The Lost Experience” fica claro que esses números são parte de uma suposta equação que prediria a extinção da humanidade, a equação de Valenzetti. O propósito da Iniciativa D.H.A.R.M.A. seria o de revertê-la através de testes científicos, objetivo que falhou miseravelmente com a morte de seus integrantes. A inevitabilidade do evento futuro questiona a própria existência de sorte e azar, amarra os pequenos momentos a convergência de um único ponto. Essa visão nega o livre-arbítrio dos personagens e pressupõe a manipulação como um caminho pré- estabelecido rumo ao objetivo inexorável, fato que significa para Hurley a própria loucura.

Se Jacob tocou cada um de seus possíveis substitutos para fornecer-lhes proteção contra o Homem de Preto, essa poderia ser também a maldição da perda do livre-arbítrio, já que cada hipotética escolha converte invariavelmente ao destino fatídico. A manipulação da sorte dos personagens não seria direta, mas através da alteração de normas do próprio universo que os cercam, e utilizam como ferramenta

80 Episódio 3x10 “Tricia Tanaka is Dead”

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eventos tipicamente aleatórios que ocorrem em suas vidas. O plano maquiavélico de Jacob basear-se-ia em quebrar as regras do acaso do universo que rodeia cada um de seus escolhidos a fim de vencer a batalha contra seu irmão, o que destrói a presença do jogo de alea sua forma pura na trajetória dos escolhidos.

Se através do jogo de alea que Jacob manifesta sua estratégia, o Homem de Preto utiliza o mimicry para ludibriar os personagens ao ser destituído de um corpo humano após seu irmão jogá-lo na caverna de luz. A constituição de um monstro de fumaça negra, amorfa, com força e tamanho descomunais81 é uma entidade imortal enquanto não se apague a luz da ilha e pode tomar a forma de qualquer ser humano que desejar contanto que o cadáver esteja na ilha. O Homem de Preto utiliza a técnica da imitação para manipular primeiramente Jack ao tomar a forma de seu pai Christian Shephard82. Em seguida, mata Mr. Eko na forma de seu irmão Yemi, morto anos antes83. Faz o julgamento de Ben Linus quando este permite que os mercenários matem sua filha Alex84 e engana Claire ao imitar seu pai, pois a moça está paranoica85 por perder seu filho Aaron. Ao convencer Ben Linus a matar Locke e trazer o corpo de volta à ilha o Monstro inicia a batalha final, com a aparência de John Locke. Sua tática funciona muito bem até que Ilana descobre que o verdadeiro Locke está morto86 o que de nada adianta, já que Ben mata Jacob em seguida.

Ao invocar a forma de entes queridos, o Monstro desestabiliza emocionalmente os personagens e torna-os suscetíveis às suas manipulações. Como em um jogo de máscaras em que não se percebe a identidade real do manipulador, o Homem de Preto profana a forma conhecida daquele para quem se deve algo e obtém a obediência à custa da culpa pessoal. Ao afirmar que os sobreviventes são maus, o Monstro ataca os personagens pelo ponto mais fraco de seus relacionamentos mais conturbados, justamente onde uma ação de negligência

81 Episódio 6x15 “Across The Sea” 82 Episódio 1x05 “White Rabbit” 83 Episódio 3x05 “The Cost Of Living” 84 Episódio 5x12 “Dead is Dead” 85 Episódio 6x08 “” 86 Episódio 5x12 “Dead is Dead”

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ou subserviência gerou uma fissura impossível de ser sanada pela morte da outra parte.

O Homem de Preto age ao personificar um simulacro (BAUDRILLARD, 1991), a representação da pessoa morta, no sentido de uma forma sem substância ou imagem destituída de realidade. Nada mais resta de quem se foi como representado pelo nome do episódio 5x12 “Dead is Dead” onde o que “morreu morto está”, a não ser por fragmentos de lembranças que residem no próprio manipulado envelopado pela forma reconhecível do Homem de Preto.

As simulações ganham corpo pelos atores que mudam profundamente o seu papel, como o ator Terry O’Quinn que se transforma da quinta para a sexta temporadas quando o Monstro assume sua forma. Antes, demonstra em sua atuação uma atitude de esperança e determinação através de diálogos que abrem espaço ao livre-arbítrio. Após o ato, passa a ter atitudes de dominação em suas conversas, e objetiva sempre um sentido claro de devoção pelo medo. A atriz Tania Raymonde que faz a rebelde e constantemente amedrontada Alex ao interpretar o Monstro muda completamente, olha fixamente para seu pai Ben Linus enquanto espera um pedido de perdão para poupar-lhe a vida. Além da atuação distinta, a máscara é reconhecida pelos tons escuros das vestes dos simulacros, como ocorre com Sayid como relata o personagem Dogen em relação a possessão: “ - [...]“a escuridão” tomou o corpo de Sayid e quando ela chegar ao seu coração, tudo o que o Sayid é será perdido”87.

A quarta categoria de jogo ilinx é exceção em Lost, pois o clima de tensão na ilha é quase que permanente. Raros são os episódios em que os personagens permitem-se abrir mão de suas duras realidades a fim de brincar. O personagem James Sawyer possui um humor ácido e dificilmente chama um companheiro pelo nome ao inventar apelidos ligados com características físicas ou a profissão destes. O motivo é que Sawyer evita relacionamentos e escapa de conversas sérias ao desrespeita o interlocutor e utilizar o sarcasmo muitas vezes. Com o passar do tempo essa caraterística imprime ao personagem uma imagem de despreocupação

87 Episódio 3x06 “What Kate Does”

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e segurança a ponto de compartilhar com Hurley e Charlie a maioria dos momentos de descontração da série.

Hurley monta um campo de golfe para descontrair com os seus amigos88. Hurley, Charlie, Sawyer e Jin encontram uma perua Kombi azul celeste com os logotipos da Iniciativa D.H.A.R.M.A., o corpo do pai de Ben, Roger Linus, cervejas e mapas. Ao consertar o veículo e empurrá-lo morro a baixo, os personagens podem sentir a vertigem de uma montanha russa, uma desconexão momentânea com o risco de morte iminente da sobrevivência substituído pela sensação de deleite89. Ao saber da iminência de sua morte predita por Desmond, Charlie lista os cinco melhores momentos de sua vida que inclui momentos de infância com o irmão Liam e termina na noite em que conheceu seu grande amor, Claire90. Esse episódio tem caráter redentor e de lembrança revivida, já que recapitula vários momentos bons de Charlie pouco antes de seu sacrifício91. Essas poucas mudanças de clima não fornecem necessariamente um cenário consistente para o estabelecimento do ilinx como elemento diegético.

A categoria de jogos que impera sobre os outros e organiza diegeticamente a história de Lost é justamente o agon em suas várias instâncias. A ameaça constante do Monstro com seus truques, a influência da sorte por Jacob e os raros momentos de deleite dos personagens complementam a série como movimentos da grande batalha entre os irmãos. Como peças manipuladas, os personagens são induzidos e trocam de lado com frequência na busca de sobreviver e conquistar poder ou obter sua redenção ao final do jogo.

4.3 O jogo na narrativa de Lost

O jogo é elemento estruturador da história e da narrativa. O conjunto das obras de Lost pode ser encarado como jogo, e o espectador é convidado a jogar e

88 Episódio 1x09 “Solitary” 89 Episódio 3x10 “Tricia Tanaka Is Dead” 90 Episódio 3x21 “Greatest Hits” 91 Episódio 3x22 “Through the Looking Glass”.

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utilizar elementos do universo ficcional e das obras. Desde o início da série, autores frequentemente designam a narrativa transmidiática de Lost como jogo, ambiente em que a experiência proposta pelos seus criadores é obtida plenamente:

Tanto o consultor criativo Jeff Pinkner [...] quanto Lindelof reconhecem que a atual tendência narrativa de Lost é moldada, talvez pela primeira vez na televisão, no mundo ficcional dos videogames. Como nos videogames – em que os jogadores adquirem novas armas e habilidades dentro de uma geografia digital própria e aprendem mais a respeito do jogo a partir da experiência dos jogadores on-line – tanto os personagens de Lost quanto a audiência adquirem sucessivamente as “armas” necessárias ao jogo. (PORTER; LAVERY, 2007, p. 31).

Assim, os criadores de Lost esperam de seu espectador uma postura semelhante à de um jogador que experimenta o jogo e torna-se habilidoso através do aprendizado dos sinais e pistas deixados pelos mais variados lugares do universo ficcional. Esse comportamento segue o caráter investigativo típico dos personagens na diegese que aprendem e apreendem as particularidades dos ambientes em que estão inseridos. O jogar é possível graças as técnicas de construção de mundos inerentes tanto a Lost quanto aos jogos de videogames.

Há várias formas de se caracterizar o jogo. Enquanto para Roger Caillois “o termo jogo designa não somente a atividade específica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, símbolos ou instrumentos necessários a essa mesma atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo” (CAILLOIS, 1990), para Neva Leona Boyd é interessante distinguir o “ato de jogar (to play)” e “o conjunto de regras estipulados que formam o próprio jogo (game)” (BOYD, 1971). Seguiremos os conceitos de Boyd compartilhados por Bernadette Lyra92, que distingue quando a palavra são empregada na atividade do jogo (play) ou em suas regras (game).

Ainda segundo Johan Huizinga, há certas características inerentes a forma do jogo:

92 Bernadette Lyra compartilha da divisão de Boyd em seu artigo “Os jogos dos filmes”, onde define Game, jogo ordenado por regras em oposição a play, jogo livre.” (2005).

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Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (HUIZINGA, 2000, p. 16).

Ao considerar o jogo como ação, Huizinga utiliza o conceito de play e isola o ato de jogar da vida habitual como ato excepcional e de imersão. É interessante destacar o caráter de gratuidade da atividade, suas particularidades espaço- temporais e seu estatuto. Há ainda uma auto-identificação do jogador como tal, assim como a formação de grupos especializados que se reconhecem e se orgulham dessa condição. Lost acaba por preencher esses pré-requisitos através de fatores construtivos que competem também aos jogos como o fato de quem acompanhar a série não obtém lucros de qualquer espécie, possuir seu próprio espaço-tempo além de contar regras particulares estabelecidas pela “bíblia” ficcional e seu “cânone”. Somadas a isso, as comunidades de fãs engajadas promovem encontros através das convenções físicas e virtuais através dos fóruns e enciclopédias digitais altamente especializados. Então Lost é algum tipo de jogo experimentado opcionalmente pelos fãs que se dispuserem a entendê-lo dessa forma.

A ideia de que Lost pode ser jogado pode inicialmente contrastar com o formato de seu produto principal, a série televisiva. Henry Jenkins relata em seu blog que, em uma conversa com dois game designers, Jane McGonigal e Ian Bogost a possibilidade de Lost ser um game que institui níveis ou fases que ocorrem simultaneamente (JENKINS, 2006). O grande objetivo do jogo é resolver enigmas como o significado dos números, o que há na escotilha, o experimento social ou o a existência do purgatório através de um complexo quebra-cabeças, que exige peças a serem coletadas para auxiliar a resolução. Ao final, o jogador obtém como resultado um mapa reconstituído de acordo com a sua própria experiência.

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Na forma de série televisiva e em paralelo, desenrola-se uma história de fundo bem construída com diversos personagens e seus pontos de vista, que são utilizados como portas de entrada para que o espectador possa experimentar a ilha de acordo com eles. E na sua base, o cotidiano dos sobreviventes, com suas disputas e políticas cotidianas necessárias para o estabelecimento de uma mínima sociedade construída a partir dos destroços do acidente que os vitimou. Jenkins ainda avalia essa estratégia como sistema equilibrado, onde Lost coloca prazer e interesses um contra o outro. O prazer de uma descoberta em um nível seria concebido como contrapartida ao adiamento da resolução do enigma em outro. Aliar esses dois modelos de jogo, incentivaria o engajamento e a participação dos fãs com o desenrolar da série (2006).

A jogabilidade de Lost está atrelada ao nível que o espectador deseja entrar no seu universo ficcional. O potencial jogador surge do interesse do espectador casual, que se torna fã e imerge no universo ficcional a ponto de tornar-se um fã hardcore. E os níveis pré-estabelecidos de Lost atendem os mais diversos públicos, do espectador casual através da identificação com personagens ou com a sua rotina, do fã que deseja montar o quebra-cabeças e descobrir os enigmas até o fã hardcore, incessante a sua busca de detalhes que remontem o seu próprio mapa ficcional a perfeição.

Smith enaltece a forma como Lost trabalha seus níveis de interação a fim tornar seu universo acessível tanto aos espectadores casuais quanto aos fãs mais engajados:

Lost magistralmente emprega progressão gradual do mundo e empresta convenções estruturais de videogames para criar um ambiente que incentiva a exploração. Este ambiente impulsiona os fãs hardcore a buscar mais informações, procurar conexões e obter uma melhor compreensão do mundo ficcional (SMITH, 2009).

Esse é um vestígio de que o universo ficcional de Lost pode ser expansível ao possuir características de escalabilidade. A progressão desse mecanismo pode ser controlada diretamente pelos criadores através do uso do “cânone”, mas a sua exploração só aumenta de forma autônoma e participativa. Compartilha com o videogame as estruturas convencionais do jogo e sua arquitetura de níveis a serem explorados, e expansões criadas a posteriori, perfeitamente integradas ao contexto

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original. E tem em sua atividade alguns aspectos particulares inerentes a qualquer outro jogo.

4.4 A natureza do jogo de Lost

Roger Caillois define que a natureza da atividade do jogo (play) é livre, delimitada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictícia, passível de categorização de acordo com a divisão em que o jogo se adequar (1990). Esses parâmetros estão presentes em Lost da seguinte maneira:

Liberdade – Huizinga afirma que “antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada” (HUIZINGA, 2000, p. 11). O jogador deve ser voluntário e o gozo do jogo depende fortemente disso. Qualquer coação ou obrigação descaracteriza o jogo (play) como tal. Em Lost, quem acompanha a série é livre para fazê-lo e deixar de fazê-lo a qualquer momento, assim como o aprofundamento nos níveis do universo ficcional feito de livre e espontânea vontade, sem nenhum ônus de qualquer forma. Quando se explora as pistas ao buscar a revelação dos enigmas ou elucidação do quebra-cabeças, nada impede o jogador de parar sua busca imediatamente e voltar a acompanhar a narrativa apenas pela televisão ou deixar a série de forma definitiva. Há então, uma relação prazerosa estabelecida entre o jogador e o jogo (game), que inspira fidelidade sem nenhum contrato estabelecido formalmente.

Delimitação - É necessário que o jogar (play) ocorra em um "(...)espaço consagrado ao jogo (game) [...], a barreira absoluta que o deve separar do espaço restante, enquanto durar a partida ou a audiência[...]” (CAILLOIS, 1990, p. 13). Huizinga vai mais longe, e afirma que “o jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa” (HUIZINGA, 2000, p. 13). Há, portanto, limites muito bem definidos, tanto na constituição do espaço onde acontece o jogo (play) quanto no tempo em que ele ocorre. O “lugar sagrado”, também nomeado como “círculo mágico” por Huizinga é particular ao jogo e contem peculiaridades distintas do mundo cotidiano. Em Lost, esses espaços são os originais das obras que compõe o seu universo ficcional, como a televisão, os sites de internet, os livros, e os

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videogames. Cabe aos A.R.G.s exceção por possuírem espaços compartilhados com o mundo real sem fronteiras muito bem definidas, tais como anúncios em revistas, os outdoors e os intervalos comerciais da televisão. Mas há oura fronteira precisa e estabelecida que cerceia essas atividades: o tempo. Os “Jogos de Realidade Alternativa” que compõe o universo ficcional de Lost têm data precisa de início e término, com anúncios oficiais desses eventos, normalmente anunciados em convenções oficiais específicas93 entre fãs e criadores: “O jogo inicia-se e, em determinado momento, "acabou". Joga-se até que se chegue sucessão, associação, separação. “ (HUIZINGA, 2000, p. 13). O jogo (game) é, dessa forma, inserido no “círculo mágico”, cujas linhas delimitadoras são os próprios espaço-tempo privados onde há fatalmente uma duração e um lugar reservados a ação de jogar (play).

Ficção - Esse princípio permite morrer94 várias vezes ao decorrer de uma partida, sem que a integridade física ou mental do jogador seja de fato atingida. A ação do jogador deve ser “...acompanhada de uma consciência específica, e de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relação a vida normal. “ (CAILLOIS, 1990, p. 30). A certeza da ficção protege o jogador de colapsar ao ser exposto ao jogo (game), apesar de certos jogos brincarem justamente com a perda momentânea dessa certeza. Durante o tempo do jogo, a imersão quer borrar as fronteiras entre realidade e ficção ao enganar a percepção através de sinais sensíveis. No caso de Lost, enquanto a série televisiva não esconde seu caráter ficcional, as suas extensões fazem justamente o contrário, a fim de “[...] desorientar o jogador em relação a veracidade dos fatos narrativos e propositalmente multiplicar seu potencial de gerar desorientação em seus espectadores (TOLEDO, 2012, p. 14) A proteção da barreira ficcional é abalada enquanto dura o jogo (play), mas é retomada logo após o término deste. A plena confiança no reestabelecimento da ordem natural possibilita ao jogador atingir um estado de vertigem comparável, nesse instante, ao pânico de experimentar essas mesmas sensações no mundo real.

93 Os A.R.G.s de Lost foram anunciados nas convenções Comic Con em São Diego 94 Termo dado a consequência de uma falha em uma jogada que impede o jogador de continuar. O jogador deve possuir novas “vidas” para dar seguimento a sua jornada.

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Incerteza - Em qualquer jogo não é fornecida nenhuma garantia de que o jogador atingirá o seu objetivo. Independentemente se a meta do jogo for derrotar um inimigo ou acertar uma combinação em diversos números aleatórios, é próprio do jogo não garantir um resultado. Esse é o princípio que norteia o incentivo a participação através da teórica igualdade inicial de possibilidades aos jogadores, e os incentiva a doarem-se ao máximo em busca do objetivo. Dentro da comunidade organizada de fãs de Lost, os jogadores puderam organizar os repositórios com informações minuciosas sobre a série e adquiriam status dentro do grupo ao postular teorias e publicar conteúdo relevante ao universo ficcional. Essa competição em busca de elucidar os enigmas foi instigada desde o início pelos criadores da série, porém o último episódio95 acabou por não resolver todas as questões abertas pela série, fato que causou frustração em alguns fãs (VERSIGNASSI, 2010).

Improdutividade – Rege ao princípio que não é característica do jogar (play) produzir algo, “[...]porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;” (CAILLOIS, 1990, p. 29). Esse é a estrutura dos chamados “jogos de azar”, em que a perda da maioria se converte em ganho para a minoria, sem contanto haver riqueza gerada além da depositada no início da empreitada. Isso se deve ao jogo (play) ser “[...]uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. “ (HUIZINGA, 2000, p. 11). Assim, o gozo é instigado pelo jogo (play) ao jogador, mas arcado por ele. Esse investimento realizado por quem joga pode ser realizado por meio de tempo somente, ou de tempo e bens. Atentemo-nos ao fato de nos referirmos apenas ao ato de jogar (play), já que o jogo (game) estabelecido em Lost foi claramente constituído com o intuito de gerar lucros através de licenciamentos, publicidade, distribuição e direitos (VALOR ONLINE, 2006).

Regulamentação – Característica fundamentadora da estrutura do jogo (game), o conjunto de regras cria a ordem do espaço delimitado pelo “círculo mágico”, conforme destaca Huizinga:

95 Episódio 6x17 “The End part 1” e 6x18 “The End part 2”

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Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. (HUIZINGA, 2000, p. 14)

Há, portanto, um caráter inflexível e essencialmente formal das regras jogos (game) desse tipo. Elas são elaboradas através de estatutos e manuais, e os criadores do jogo são seus juízes em última instância. Lembremos da reunião inicial de Lost onde Damon Lindelof institui que os espectadores não conheçam os “truques” que rejam o universo ficcional96. Sobra aos jogadores não a “bíblia ficcional” com as regras oficiais a serem seguidas, mas uma reconstituição desta, através de uma série de normas inerentes aos elementos ficcionais já estabelecidos. Uma convenção firmada ao redor das âncoras fixadas pelos criadores, através dos símbolos, códigos e cerimoniais comuns as obras do universo ficcional.

Caillois, no entanto chama atenção para uma aparente contradição: os jogos são “ou regulamentados ou fictícios” (1990, p. 29). Como poderia o jogo desenvolvido por Lost contemplar essas duas características? Jenkins encontra dois jogos ao invés de um, em andamento simultaneamente: um jogo de enigmas e um quebra-cabeças (JENKINS, 2006). Assim, o quebra-cabeças assume a característica de ficção, montado de forma lúdica pelo jogador e pode perdurar por quanto tempo o jogador assim o desejar. E o jogo de enigmas, altamente regulamentado, com espaço e tempos rigidamente definidos, findo com a exibição do último episódio da série onde tudo o que poderia ser revelado fora de fato.

4.5 A paidia e o ludus

96 De acordo com a ilustração 1 na página 27

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Entre esses vetores opostos estariam dispostos os jogos (play) de acordo com suas características primárias. Bernadette Lyra alerta para uma bipolaridade existente entre a improvisação (paidia) e as regras (ludus) quando a possibilidade do jogo (play) está presente nos filmes:

As regras do ludus são organizadas de modo a ir, progressivamente, exercitando os jogadores no domínio do funcionamento do jogo, rumo a uma solução apaziguadora, à medida que vão dominando as dificuldades propostas. O mesmo ocorre com alguns filmes que primam pelos encaixamentos, articulações e pistas intrincadas ao longo da narrativa, exigindo do espectador uma postura atenta. Em outro tipo de filmes, o elemento visual ou sonoro é que desencadeia a experiência dos espectadores. Em geral, são filmes espetaculares, com muitos efeitos especiais, acúmulo e pirotecnia de imagens e de sons. Tais filmes criam nos espectadores uma espécie de desordem e agitação imediatas, voltadas para o ato de ver e ouvir, que remete a paidia. (LYRA, 2005, p. 2)

As regras do jogo (game) de enigmas de Lost solicitam ao seu jogador extrema atenção para que a sua resolução seja de fato alcançada. As pistas são deixadas em forma de código e a resolução destes depende diretamente da visitação de mais de uma das obras do universo ficcional. Na franquia, os elementos que cumprem esse papel são os números, logotipos da Iniciativa D.H.A.R.M.A., a empresa Oceanic Airlines, os nomes Hanso e Widmore, os tabuleiros dos diversos jogos, livros, sobrenomes de personagens, etc. Esse jogo (play), alinhado com o conceito de ludus recompensa os seus jogadores pelo entendimento a fidedignidade às suas regras.

Já no jogo (play) de quebra-cabeças, em que o objetivo final é restituir uma história de Lost a partir das peças distribuídas na narrativa transmidiática as regras não estão completamente claras e a paidia ganha parte do espaço. Existe vãos entre as peças que o jogador deve preencher para linkar97 os elementos fornecidos. Para Glauco Madeira de Toledo, deixar espaços não preenchidos entre os elementos narrativos seria uma estratégia proposital...

97 Fazer uma ligação, vincular, levar através de um link

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[...]vinculada à potencialidade expansiva do universo narrativo transmidiático, a inserção planejada de lacunas inquietantes no universo diegético para motivar os fãs a deduzir, planejar, imaginar, buscar no mundo ficcional conhecido qualquer indício de como aqueles vãos poderiam ser preenchidos de forma coesa e congruente com o material produzido pelos realizadores. (TOLEDO, 2012, p. 28)

Os jogadores compartilham suas descobertas no espaço destinado as comunidades especializadas a fim de testar suas hipóteses e se promover com os avanços. Se mesmo assim os resultados dessa busca não resultarem em ligações convincentes os fãs são capazes de ir além e produzir seu próprio material. Essas soluções quando exteriorizadas chegam a ser produzidas e divulgadas em forma de vídeos, filmes e livros e recebe o nome de fanfiction (STEFANELLI, 2015). Elas não pertencem ao “cânone” ficcional das obras da franquia, mas agregam ao universo ficcional outros pontos de vista, o que aumenta o repositório enciclopédico. Outra vertente dessa prática são as teorias que buscam em fontes alheias ao universo ficcional para dar sentido aos marcos estabelecidos através da interpretação (BARBOSA, 2010a). Essas teorias podem ser disponibilizadas em acervos digitais como a Lostpedia, ou livros ditos “guias não-oficiais, como Desvendando os Mistérios de Lost (Novo Século, 2007) e Tesouros Enterrados de Lost (Novo Século, 2008). Existem também outros livros, focados em visões multidisciplinares dessas teorias como “Lost e a Filosofia: A Ilha tem suas Razões” (Madras, 2008) e “Looking for Lost: Critical Essays on the Enigmatic Series” (McFarland, 2011), exemplos de repositórios não-oficiais que procuram oferecer atalhos de compreensão e caminhos estabelecidos que pretendem facilitar ou até elucidar as ligações faltantes. As hipóteses são compartilhadas nas comunidades de Lost, e as mais coerentes resistem a debates e fóruns, o que as torna até mais verossímeis que soluções apresentadas pelos criadores originais.

A inteligência coletiva (LEVY, 2007) representada por pelas comunidades de fãs é capaz de juntar as peças do quebra cabeças de maneira eficiente e em muito menos tempo do que o previsto98, o que faz o trabalho dos criadores algo

98 Dario Mesquita em seu artigo “Realidade Ambígua: Imersão em The Lost Experience” relata a o depoimento da produtora de A.R.G.s Elan Lee que conta como o jogo The Beast, planejado em três partes, onde um quebra-cabeças elaborado para ser resolvido em um dia, outro em uma semana e

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especialmente complicado. As experiências dos inúmeros jogadores somadas expandiriam as suas capacidades a ponto de superar facilmente os obstáculos impostos pelos criadores, o que reduz drasticamente o tempo do jogo (play). Os A.R.G.s de Lost são exemplos de jogos (game) jogados coletivamente. Para evitar que um jogo (play) dure menos do que deveria, os criadores atuam para limitar a atuação da inteligência coletiva em suas extensões ao liberar eventos conforme uma agenda e faz essa extensão ter alcance limitado.

O fundamento dos jogos (game) de Lost é comum, já que tanto as informações que resolvem os enigmas quanto as peças do quebra-cabeças são formadas por fragmentos perdidos de tempo. Para a elucidação dos enigmas, deve- se reconstituir uma linha temporal através das peças perdidas, que expliquem da melhor forma a história de Lost.

4.6 O tempo como recurso narrativo

Ao tratar do estudo de narrativas audiovisuais, o tempo é uma dimensão indissociável desta, cuja função de casualidade encadeie os eventos diegéticos em uma trajetória inteligível para o espectador99. As manobras que os criadores de Lost utilizam em sua obra imbricada necessitam da exploração de alguns significados do termo “tempo”, mesmo que sua conceitualização em gênese não seja algo consensual. A estranheza a definição é tanta que vários sinônimos que definem o tempo cobrem apenas em parte o seu significado. Vive-se o tempo, mede-se o tempo, sente-se o tempo, mas o distanciamento necessário para pensá-lo torna-se um exercício de abstração. Bernard Piettre traz a indagação como questão constante na história da humanidade, a partir da máxima de Santo Agostinho:

outro que ficaria provavelmente sem solução até que os produtores dessem as respostas foram solucionados em um dia de jogo. (2010, p. 233) 99 Explicação construída a partir da definição de Johson-Lewis que cita Cameron: “Narratives are a "temporal arrangement of causally linked events" (2011, p. 15)

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O tempo é, certamente, um dos mais antigos enigmas, senão de interrogação humana, ao menos da filosofia. Conhecemos a palavra de Santo Agostinho: “Por conseguinte, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei”. Nada, ao mesmo tempo, é mais familiar, mais próximo de nossa experiência cotidiana, do sentimento mesmo de nossa existência; e também nada de mais estranho e inatingível. (PIETTRE, 1997, p. 11)

Ao partir de uma abordagem multidisciplinar, Piettre resgata definições históricas até chegar a Bergson, com duas definições de tempo: “[...]o tempo abstrato, que não é senão um número – o tempo do relógio, o tempo medido em física... – e o tempo concreto que passa, chamado então “duração”, duração experimentada, vivida pela consciência” (1997, p. 46). Esses dois conceitos são distintos em natureza e aplicação. Dessa forma, o tempo matemático e numérico...

[...]não é apreendido em sua realidade temporal efetiva orientada a um futuro ainda desconhecido; é colocado dentro do espaço, diante de nós, passado e futuro sendo simultaneamente presentes à consciência. O tempo matematizado não é mais tempo. Não, o único tempo que existe, é aquele que eu experimento, muito concreta e realmente, com a consciência aguda de que o presente não é idêntico ao passado e o futuro não será igual ao presente. (PIETTRE, 1997, p. 47)

De acordo com Bergson o “tempo”, previsto e explicitado em geometria ou em um gráfico “é destituído de sua realidade temporal efetiva orientada a um futuro ainda desconhecido;” (BERGSON, 1908) o que implicaria que, nesse sentido, não pudesse ser considerado realmente “tempo”. Expliquemos: o “tempo mensurável” estaria reintegrado ao espaço e indissociável dele, pois de outra forma não seria possível apreendê-lo. A medida é absoluta, e unidades relativas entre si possibilitam a previsão de um futuro através da extrapolação dessas unidades. Se o futuro do “verdadeiro tempo” só acontece no momento em que se concretiza, não é viável qualquer previsão quanto sua realização. A “duração”, essa sim matéria do “verdadeiro futuro” em síntese não é mensurável.

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Ao extrapolar esses conceitos para a narrativa, o tempo empregado na construção e explicitado no momento em que os fatos narrativos estão no papel não pode ser outro senão o tempo abstrato, matemático, isento de “duração”. Se os fatos narrativos se encontram “presentes a consciência” e depositados em um espaço, seja esse uma obra física ou o universo ficcional, não haveria mais futuro no seu sentido verdadeiro, pois o futuro já realizar-se-ia naquele instante. Da mesma forma o passado manteria em sua condição de anterior ao presente somente na dimensão espacial de fatos encadeados preliminarmente. A sensação da memória somente é conquistada a partir da experiência, da “duração” desses fatos narrativos pelo espectador. O “tempo” narrativo da história é dissociado do “tempo” de fruição da obra, esse sim particular de cada um, cuja matéria é a “duração” e experiência própria.

4.7 O jogo do tempo

O “tempo” de Lost pode ser definido como dois “tempos” distintos, o “tempo narrativo” e o “tempo de duração” da experiência de fruição da obra, é possível dessincronizá-los e assumir uma estética narrativa condizente com essa condição. O “tempo narrativo” é substância do jogo graças a sua maleabilidade e descaracterização, já que ao aprofundar as consequências dessa premissa não haveria sentido em categorizar fatos narrativos como passado e futuro. O motivo é que eles, independentemente do instante em que ocorrem na linha temporal diegética não estariam em outro “tempo” senão no presente. Receberiam essas conotações apenas quando apresentadas e experimentadas pela consciência dos espectadores/jogadores que, a partir do contato e contingência, os classificaria como tais.

Os criadores da série trabalham o recurso do “tempo narrativo” com maestria, e o utilizam como meio técnico e estético para estruturar tanto a narrativa quanto o jogo de quebra-cabeças proposto através da fragmentação, moldagem do ponto de vista dos personagens alternados e desordenação dos fatos narrativos.

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4.8 Estratégias para a construção do jogo

A quebra do tempo, em pedaços menores, permite que se constitua uma narrativa semelhante a uma colcha de retalhos formada pelos fragmentos. De acordo com o caráter transmídia da série, os criadores espalham os elementos pelo universo ficcional, e cabe ao espectador/jogador a função de coletá-los pelas obras e remontá-los conforme sua própria experiência, como relata Jenkins:

Para viver uma experiência plena num universo ficcional, os consumidores devem assumir o papel de caçadores e coletores, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas observações com as de outros fãs, em grupos de discussão on-line, e colaborando para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento mais rica. (JENKINS, 2009, p. 49).

O jogo (play) de quebra-cabeças consiste justamente em remontar os elementos em uma ordem que satisfaça o desejo do jogador pela busca do sentido, e utiliza a própria experiência para completar as lacunas, ou gaps deixados propositalmente entre fragmentos. Gérard Genette evidencia a utilização dessas lacunas como recurso narrativo: “tais lacunas anteriores poder ser elipses puras e simples, ou sejam, falhas na continuidade temporal. “ (1995, p. 49).

Essas elipses são as falhas na linha do tempo utilizadas pelos criadores de Lost para inserir fragmentos posteriores omitidos em um primeiro momento. Se forem essenciais para a história, os fragmentos estarão representados dentro da própria série televisiva ou espalhados em qualquer obra canônica do universo ficcional se forem apenas complementares. A elipse caracteriza o real espaço de expansão do universo e a abertura onde a “duração” do contato do espectador com a obra faz diferença. Ao inserir sua própria expertise em lugar da elipse, o jogador é capaz de juntar as peças do quebra-cabeças, e automaticamente mais habilitado a resolver o jogo (game) de enigmas.

Um outro recurso de falha na linha temporal narrativa que Genette prevê é a utilização de paralipses no lugar de elipses, quando a “narrativa não salta, como na

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elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um dado. “ (GENETTE, 1995, p. 50). Esse recurso foi utilizado em pelo menos dois momentos cruciais para a narrativa. Um exemplo claro é quando Homem de Preto personificado em um John Locke adulto manipula Richard Alpert em 1954, com a intenção de desacreditar uma futura aliança entre eles100. Esse fato explica o porque de Richard visitar Locke recém nascido101, já que só se conheceriam sessenta anos depois. Outro exemplo é o episódio centrado em Desmond Hume102 que, através de analepses externas e internas elucida o acidente eletromagnético que levou a queda do Oceanic 815. A outra perspectiva é oferecida algum tempo depois da exibição da narrativa principal, e não completa nenhuma omissão. A função da paralipse é expandir a narrativa descreve um evento simultâneo ao ponto de vista principal. A utilização desse recurso revela outro pilar constituinte do jogo do tempo, que é narrar as histórias de Lost no presente como “tempo narrativo”. Essa característica evidencia a incerteza quanto a classificação temporal dos fragmentos de tempo e é sacramentada através de escolhas em relação ao ponto de vista e a focalização narrativa.

Lost utiliza a estratégia de centralizar cada episódio em um personagem ou situação, e desenha a narrativa através de seu próprio ponto de vista. Segundo Genette “o ponto de vista do narrador é o lugar onde estão evidenciadas a sua voz e seu humor”. (1995). Logo no primeiro episódio da série103 assumimos a perspectiva de Jack após o acidente, e acompanhamos o inicial desespero de um médico que tem obsessão por consertar as coisas em seu ímpeto de ajudar os outros sobreviventes. O episódio imputa ao espectador experimentar como esse personagem vivenciou tal evento traumático. Trata-se da caracterização de um narrador em primeira pessoa, mas com focalização externa em que a história é centrada no personagem, mas não contada através dele. E vários outros episódios seguem essa premissa, que molda o ponto de vista narrativo através de aspectos particulares e jornadas de cada um. Os episódios que não são centrados em

100 Episódio 5x03 “Jughead” 101 Episódio 4x11 “Cabin Fever” 102 Episódio 2x24 “Live Together, Die Alone part 2” 103 Episódio 1x01 “The Pilot part 1”

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personagens contam a história de uma situação específica como Exodus104, que narra sobre as tentativas de deixar a ilha através da balsa e da explosão da escotilha. Esses episódios assumem pontos de vista intermitentemente de vários personagens que lideram os grupos.

As escolhas narrativas oferecem ao espectador pontos de vista diferentes e complementares e preenchem o “tempo narrativo” com “duração narrativa”, em um embuste que visa restituir o hipotético “tempo completo” inexistente nesse caso. Se há a possibilidade de estar com os personagens nas suas experiências das situações cotidianas do universo ficcional, a intenção de induzir a experiência de fruição por esses caminhos é clara. Cada personagem guia estabelece uma janela moldada por suas características psicológicas, o que torna possível enxergar o mundo diegético de uma forma particular. Para construir essa possível sensação, Lost não emprega muitos planos de câmera subjetivos. É mais comum a visão conformada ser estabelecida através de ritmos de montagem distintos. Há exemplos claros de como os episódios centrados em Kate105, que utilizam um ritmo frenético de montagem entrecortada, o que mimetiza os constantes movimentos de fuga que são montados com ritmo ligeiramente contrastante aos episódios centrados em Sun106, onde a montagem é lenta bastante condizente com o curso de sua personalidade aparentemente calma.

E um terceiro pilar está na manipulação do “tempo narrativo” propriamente dito. Graças a existência desses dois tempos distintos, torna-se possível manipulá-lo a fim de complexificar a narrativa. Genette chama essa distorção entre “tempo narrativo” e “tempo de experiência” de anacronia:

[...] ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou

104 Episódios 1x23 “ part 1”, 1x24 “Exodus part 2” e 1x25 “Exodus part 3” 105 Episódio 2x09 “What Kate Did” 106 Episódios 3x02 “The Glass Ballerina” e 3x18 “D.O.C.”

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pode ser inferida deste ou aquele indício indirecto. (GENETTE, 1995, p. 33).

A anacronia (GENETTE, 1995), apesar de não ser um recurso narrativo recente tornou-se uma marca registrada de Lost, e seu impacto na narrativa desafia os espectadores/jogadores ansiosos em reconstituir uma linha do tempo única que reordena os fatos narrativos cronologicamente107. A possibilidade dessa meta é procurada na reconstituição ordenada da narrativa serial, descrita em minúcias no Capítulo 2. Para manipular o “tempo narrativo” e desorientar o espectador/jogador, Lost utiliza os recursos anacrônicos de analepse, prolepse e acronia108, vastamente nomeados bibliograficamente como flashbacks, flashforwards e flashsideways.

4.8.1 Anacronias: Analepse

Lost utiliza da técnica de encadear a narrativa através de fatos ficcionais desconexos temporalmente, mas unidos por uma intenção, ou um tema. Em vários episódios em que há tensão ou em momentos decisivos, os personagens focalizados no episódio retornam a situações pregressas onde sentimento semelhante mostrou-se presente. Sayid relembra dos momentos em que serviu o exército iraquiano enquanto tortura Ben Linus que se passa pelo suposto “Henry Gale”109. Charlie recorda momentos com o irmão Liam, quando este descobriu que era pai e mudou suas atitudes. Em paralelo na ilha, o roqueiro coloca o bebê Aaron em risco ao extrapolar suas boas intenções110. As experiências vivenciadas por Saiyd

107 Do original “The desire to see the series unfold chronologically has manifested in fanculture in a number of places. Lostpedia, the fan maintained Lost wiki, has a detailed page dedicated to archiving the series chronologically.” (JOHNSON-LEWIS, 2011, p. 18) 108 A escolha por termos oriundos da literatura estão de acordo com a visão do autor Ryan Howe, estudioso das implicações do tempo na narrativa de Lost, descritas no livro Looking for Lost: Criticai Essays on the Enigmatic Series (2011)

109 Episódio 2x14 “One Of Them”, 110 Episódio 2x12 “Fire+Water”,

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e Charlie são exemplos de como são experimentadas pelo público no tempo presente, em flashes, intercaladas com os eventos na ilha.

Gérard Genette descreve a analepse como “[...] toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se está” (1995, p. 38), ou seja, o acesso a qualquer fato narrativo anterior ao ponto presente. Em Lost, os criadores utilizam a analepse para estruturar os episódios das três primeiras temporadas em conjunto com a narrativa principal. Quando o alcance dessas evocações tem amplitude limitada e elas não atingem o ponto do tempo presente da narrativa principal, constituem-se as analepses externas cuja função está em esclarecer algum fato narrativo. Na série, a maior parte das analepses está nesse segmento, de retrospecção a fatos isolados provocados por gatilhos de estresse ou tensão ao personagem. O caráter da falta de reflexão prende-o na situação cíclica de reviver momentos traumáticos indefinidamente ao repetir erros passados que implicam em dor e sofrimento como consequência de ações presentes.

O uso da analepse111 trabalha em conjunto com o estabelecimento de vários personagens principais e de várias nacionalidades diferentes, fato que visa aumentar a identificação do espectador ao personagem. Ao assumir o mesmo ponto de vista do personagem, torna-se possível eliminar os pré-julgamentos e percebermos padrões de seu comportamento. O resultado da utilização desse método construtivo é isolar a intenção maléfica ou benéfica dos personagens, aprofundar suas características psicológicas e adicionar imprevisibilidade a suas ações, já que as situações do cotidiano da ilha podem despertar ações inesperadas decorrentes de enfrentamento ao fato presente.

Quando há colisão ou coincidência entre o limite posterior e o ponto do tempo presente durante uma analepse, há a caracterização de uma analepse interna e completiva que:

[...] compreende os segmentos retrospectivos que vêm preencher mais tarde uma lacuna anterior da narrativa, a qual se organiza, assim, por omissões provisórias e reparações mais ou menos

111 Também referenciada como flashback

108

tardias, segundo uma lógica narrativa parcialmente independente da passagem do tempo. (GENETTE, 1995, p. 49).

Em contrapartida das analepses externas, as analepses internas reencontram os fatos presentes a fim de completar os espaços deixados propositalmente na narrativa. As reconstituições de fatos estão na série Lost representadas por capítulos específicos112, que representam uma série de analepses internas cuja função esclarece a conturbada relação entre Ben Linus e Charles Widmore, ou através dos mobisodes “Lost: Missing Pieces”, que inserem cenas complementares ao entendimento de passagens da história.

Outra implicação da utilização dessa técnica é o constante entrelaçamento das analepses externas, onde pelo menos um personagem está presente na retrospectiva do outro sem, no entanto, que eles tenham conhecimento disso. Esses “desencontros”, ou encontros suspensos em eterno potencial geram a premissa de que as trajetórias entre os sobreviventes já estavam previamente amarradas. A estranha sensação de cruzamento anterior de destinos é contestada posteriormente pelo descobrimento da provisão de Jacob e sua manipulação do livre arbítrio alheio, o que contesta a existência prévia de destinos estabelecidos aos personagens.

No entanto, não é percebido em Lost nenhuma intenção de elucidação dos fatos narrativos. As analepses internas completivas são parciais, o que mantem espaço para intervenções e contradições.

4.8.2 Utilização das prolepses

A partir da quarta temporada uma nova técnica é utilizada na construção dos episódios sem aviso prévio. Genette conceitua prolepses como “[...] toda manobra narrativa consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior”

112 Episódio 5x12 “Dead is Dead”

109

(1995, p. 38), o que em Lost é denominado como flashforwards113. O adiantamento temporal das consequências das ações dos personagens não deve ter caráter premonitório ou de profecia, porém nostálgico. É exatamente o sentimento demonstrado por Jack no primeiro episódio da quarta temporada114, quando prefere para Kate, fora da ilha as emblemáticas palavras: “- Nós temos que voltar”. Não havia evidências de que a ilha era um lugar inserido na “realidade” ficcional, e nem que os sobreviventes sairiam de lá em algum momento, e o primeiro contato do espectador com um personagem alocado em um ambiente externo foi nesse momento. Há imediatamente o choque da surpresa, pois o fato dos sobreviventes estarem fora da ilha é ratificado nas demais prolepses decorrentes. E a necessidade do retorno complica mais ainda qualquer tentativa de reconstituição.

Essas prolepses são internas, pois antecipam ações que estão presentes no corpo da narrativa principal. Com o uso desse recurso é estabelecida uma narrativa secundária, que conta a história de como a integração dos sobreviventes e a colaboração em torno do plano de retornarem a ilha é executada, consequência de suas vidas no mundo exterior serem miseráveis com a constante lembrança dos amigos que deixaram para trás. Está implícita uma missão pessoal que não fora cumprida, e que a liberdade só seria conquistada após terminarem o que haviam começado. Integradas às analepses, as prolepses reforçam o sentimento de eterno retorno, até que alguma ação que quebre esse ciclo seja tomada para libertá-los. No decorrer da temporada, há alternância entre prolepses e analepses sem identificação prévia do que são. A desorientação provocada ao espectador/jogador precede uma análise consciente de casualidade desses atos.

4.8.3 Acronia

É a sexta temporada que apresenta a acronia como recurso narrativo. De volta ao voo do Oceanic 815, os passageiros seguem viagem normalmente e têm

113 Acontecimentos futuros são exibidos como se ocorressem no presente, fato que desorienta o espectador. 114 Episódio 4x01 “The Beginning of the End"

110

uma inquietante sensação de dejavu. Diferentemente do desfecho do episódio piloto115, dessa vez o voo pousa normalmente no aeroporto de Los Angeles com os passageiros estão a salvo116. Ao final do episódio, a câmera desce até o fundo do mar onde jaz a ilha, afundada. No decorrer da trama, os personagens alternam entre esse lugar onde o avião nunca caiu e a já conhecida trajetória trilhada na ilha de Lost, intermitentemente. Porém, as histórias e personalidades dos personagens estão ligeiramente diferentes. Enquanto no local etéreo os personagens tomam atitudes distintas do que estão acostumados, na ilha eles continuam a batalha final contra o Homem de Preto. Se na história da ilha continua a linha narrativa principal, paralelamente o espectador é surpreendido por uma explicação inquietante: Eles estão mortos e suas mentes póstumas criaram um lugar intangível para lembrarem das coisas que aprenderam juntos e continuar com suas caminhadas117. A igreja no final do episódio é o símbolo da liberdade já que os que despertaram são tomados por uma luz que invade o templo. Finalmente os sobreviventes encontraram a redenção.

Acronia é o segmento narrativo sem tempo, sem data, conforme afirma Genette: “Essa sucessão não mantém nenhuma relação com a ordem temporal dos acontecimentos que a compõe, ou, simplesmente, uma relação de coincidência parcial” (1995, p. 77). Diferentemente de um epílogo que estaria caracterizado como uma prolepse externa aos fatos narrativos do presente, a acronia é a representação da “duração” - no sentido da experiência - dos personagens, e não do tempo mensurável. É utilizado como recurso em Lost para representar um espaço imaterial, destituído do espaço em que se dão as ações cotidianas centradas na ilha, também chamado de realidade paralela. O que ocorre nesse outro lugar é definitivo e implica em uma outra ordem de acontecimentos quando comparado a prisão de comportamentos cíclicos que enclausura os sobreviventes em sua estadia na ilha. As ações centradas no perdão e no despertar os encaminham a outro nível de percepção e libertação em um tempo desconectado da narrativa principal.

115 Episódio 1x01 “The Pilot part 1” 116 Episódios 6x01 “LA X part 1” e 6x02 “LA X part 2” 117 Episódio 6x18 “The End part 2”

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A anacronia e distorção do “tempo narrativo” embaralham as peças do quebra-cabeças, e tornam a caçada por conexões entre os elementos mais complicada. Por outro lado, motiva o espectador a tornar-se jogador e penetrar as várias camadas do universo ficcional. Como no jogo a participação dos jogadores é facultativa, mas se o espectador decidir não se envolver com as questões particulares da narrativa e manter-se alheio é grande a chance de que assistir a série seja uma tarefa confusa e desestimulante.

4.9 Jogar com Lost

Uma vez que se decide jogar (play), Lost há varias formas de se fazê-lo. Existe a possibilidade de escolher um ou mais personagem como avatar e reestabelecer uma linha temporal que faça sentido pela perspectiva dele. A partir dessa escolha, estudar as referências inseridas em seu sobrenome, nos nomes dos capítulos e nas obras citadas nos diálogos dos episódios em questão, resgata fragmentos do mundo real para montar um perfil de personagem compatível. No caso de escolhermos, por exemplo o personagem John Locke, podemos linkar seu nome ao do filósofo inglês homônimo, e encontra-se relações de como o empirismo explicado pelo segundo é simbolizado pela constante busca por experiências do primeiro. O personagem Locke é um homem de fé, e seu ponto de vista é um prisma constante que guia os outros sobreviventes rumo as descobertas dos mistérios da ilha. Uma das mais famosas postulações do filósofo John Locke é sobre a mente humana, que “seria como um quadro em branco sem ideias inatas, uma tabula rasa118;” Esse é exatamente o nome do terceiro episódio da primeira temporada, onde Kate tem a oportunidade de escrever uma nova história após o acidente, já que o oficial de justiça que fazia seu traslado para o presídio morre na ilha.

118 Do original “Locke begins his first major works, Essays Concerning The Human Understanding, with several arguments against the Cartesian notion of innate ideas. He claims that the mind is a , a black tablet or “white paper, void of all characters, without any ideas; [...]” (BAIRD, 2010, p. 538)

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As conexões são numerosas a ponto de encontrarmos na narrativa de Lost características de hipertexto:

“Da bíblia a Stephen King, Lost revela sua hipertextualidade. Algumas referências podem ser facilmente descartadas como cômicas ou lunáticas, mas a sua abrangência obriga reflexão por parte do fã. (HOWE, 2011, p.59)”119

Graças a essa característica fortemente referencial, é possível também avançar no jogo (play) através pontos de referência conhecidos e espalhados pelo universo ficcional. Esses elementos contêm movimentos pré-estabelecidos e a visita desses lugares pelos personagens implica avanços na exposição da geografia da ilha ou informações sobre os enigmas. Nos marcos existem pistas que ajudam a resolver os enigmas da trama, entre eles estão as estações da Iniciativa D.H.A.R.M.A., a estátua da deusa Tawret, a vila dos “Outros”, a praia ou as cavernas. Nesse caso, os fragmentos de tempo narrativo estão distribuídos em forma de relatos históricos, objetos de cena (props), vídeos de instrução ou fotografias. Esses elementos estão distribuídos por todas as obras do “cânone”, e auxiliam no avanço do jogo (play). Outras funções dos pontos de referência são: as rupturas diegéticas, como as jornadas ao navio Black Rock em busca de dinamite, à “roda congelada” da estação D.H.A.R.M.A. “A Orquídea”, ou ao poço em que está enterrada a bomba “The Jughead”, que têm a clara intenção de romper uma barreira ou mudar o curso da trajetória corrente; Adoração ou epifanias, como o “Templo Sagrado”, a “Igreja de Eko” e “A Cabana”; Contato com o mundo exterior representado pelos meios de transporte, tais como o barco “Elizabeth”, o “Submarino”, o “Navio Cargueiro”, a “Torre de transmissão” ou a “Balsa”. A cada vez que um personagem visita tais locações, informações do tipo correspondente podem ser resgatadas.

O único personagem que não segue um padrão de percepção temporal é Desmond Hume. Enquanto as analepses servem de meras reflexões para os outros,

119 Do original “From the Bible to Stephen King, Lost revels in its hypertextuality. Some references might easily be dismissed as comical or whimsical, but their pervasiveness compels contemplation from the dedicated audience member.” (HOWE, 2011, p. 59)

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Hume estabelece-se fisicamente no período em questão e revive a experiência do momento. É como um coringa, um avatar de valor diferenciado. Por deter o livre- arbítrio de alterar o presente através de ação ativa nas viagens do tempo, é referenciado como “A Variável” por ser o único capaz de reverter o resultado da equação de Valenzetti e salvar os personagens do fim iminente. Mas é como “A Constante” que cumpre seu papel ao encontrar cada alma no espaço etéreo e ajudar no despertar destas ao caminho da salvação. Mesmo dotado de livre-arbítrio e capacidade de alterar os eventos, Desmond é alertado por Eloíse Hawking sobre a impossibilidade de mudar o passado, pois “ - O que aconteceu, aconteceu”. Essa é uma das regras estabelecidas no jogo do tempo de Lost: não é possível alterar o passado de nenhuma forma. Manter a ideia de casualidade simplifica o jogo e evita os paradoxos temporais temidos pelos criadores da série120.

E a última forma de jogar o jogo do tempo de Lost caracteriza-se por assumir o ponto de vista de uma das entidades mitológicas, ao reconstituir a linha de tempo em um nível macro. Como vários enfrentamentos representados na série, como a fé contra a ciência, a sorte contra o azar, o bem contra o mal, Jacob acredita na casualidade e no livre arbítrio enquanto o Homem de Preto é determinista, e ambos são capazes de destruir tudo ao seu redor para provar que estão certos e vencer o jogo que começaram a mais de dois mil anos.

Imbricam-se no jogo o “tempo narrativo” e o “tempo de duração”. Opcional ao espectador, a decisão de jogar o jogo (game) do tempo de Lost aumenta a experiência, amplifica as sensações e aprofunda o jogador no universo ficcional. É de se supor nesse caso que o último episódio da série não encerre o “tempo de experiência” do jogador com a obra, indica apenas a propensão de não haver mais elementos canônicos novos que redefinam o mundo ficcional. No entanto, a presença das elipses e paralipses possibilitam a fruição de Lost pelo tempo em que o jogador desejar, inclui aprofundar-se nas obras e repositórios online. Outra possibilidade é quebrar as regras do jogo (game) e criar suas próprias obras não-

120 Entrevista concedida por Carlton Cuse e Damon Lindelof a revista Enterteinment Weekly: “Paradoxos criam problemas. [...] “Esse show já é bastante confuso assim como está”. Para realmente ter personagens viajando através do tempo, tudo tem que ser manuseado muito habilmente.” (JENSEN, 2008)

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canônicas para resolver as lacunas e teorias próprias que respondam os enigmas deixados em aberto.

Uma vez estabelecida as regras do jogo (game,) é possível resgatá-las e jogar, indefinidamente. O “gozo” do jogo é obtido através do contato inicial com a obra ou o acesso as memórias recorrentes da primeira partida. Aventurar-se pelo universo ficcional e caçar pistas é algo recompensador não pela “sorte” de se encontrar com algo novo, mas por “enfrentar” a si próprio, desafiar-se a fazer melhor. E caso houver frustração por não encontrar explicação, é possível “imitar” os criadores e inventar a próprias regras já que “A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supra lógica da situação humana” (HUIZINGA, 2000, p. 7), situação vista constantemente em Lost.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tempo não é só de essência. Ele é a essência.

Pierre Chang, personagem de Lost no vídeo de instrução do A.R.G. Octagon Global Recruiting, 2008

Lost é um programa pensado para existir além da televisão. O projeto do show não se limita as especificidades do meio em que se apresenta graças ao momento de sua criação, já a transição entre tecnologias trouxe uma série de incertezas para o ambiente corrente. Se a tecnologia prometia inúmeras possibilidades ao adicionar recursos emprestados de outros aparelhos e através de conectividade via internet, os conteúdos televisivos poderiam estar aptos a utilizarem dessas faculdades.

Um projeto que não se beneficiasse do hibridismo e expansão dificilmente conseguiria adaptar-se ao cenário, pois o próprio público através de suas escolhas sinalizou que fosse dessa forma. Para agradar espectadores e conseguir audiência, os criadores precisaram atender a demandas muito mais fragmentadas, além de atuar em uma televisão dividida entre firmar sua estratégia de programação em nicho ou projetos generalistas.

Assim nasceu Nowhere, com a missão de reverter um quadro de decadente audiência através de um produto audiovisual seriado que pudesse ser distribuído de várias formas posteriormente. O motor do programa proposto pelo, então, presidente da empresa era baseado e um formato semelhante a um reality-show que utilizaria a temática de sobrevivência. O fato do primeiro roteiro ter sido descartado demonstra que desde o início eles esperavam por algo diferente. Nesse momento, não somente o roteiro, mas o projeto inteiro foi posto em cheque e se talvez não tivesse sido sugerido por alguém do escalão de Lloyd Braun, nunca sairia do papel.

Mas acabou que aconteceu o contrário. Uma nova equipe de criação foi estabelecida e diretores mais criativos foram chamados, com ideias que extrapolavam o obvio e elementos oriundos de diversas fontes conectados por um só lugar, a misteriosa ilha no Pacífico. Para uma audiência díspar, a escolha de

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fragmentar a narrativa foi acertada e resultado foi produto oriundo da mistura de vários gêneros diferentes, conforme o personagem e a situação em questão. O tom também foi alterado, pois o hiperrealismo fora substituído por uma mitologia com ares de ficção científica.

Depois de aprovado, o projeto ganhou um episódio piloto, o mais caro realizado até então. Em uma época de incertezas, a permissividade do presidente da ABC com Lost custou-lhe o emprego. No entanto, o grande orçamento possibilitou aos criadores constituírem um espaço bem construído e de caráter lúdico, com vários elementos que possibilitariam a sua expansão para outras mídias. Apesar do tempo de produção ser curto mesmo para padrões televisivos, as soluções encontradas pela equipe criativa acabaram por definir traços da série como por exemplo adaptar os personagens a atores relativamente desconhecidos, o que resultou em um refinamento de atuação marcante e determinante.

Enquanto estava ainda em gestação, Lost já havia conversado com seus possíveis fãs, contatos oriundos de estratégias de divulgação bem-sucedidas. O programa criou uma atmosfera de mistério e estabeleceu pistas publicitárias em locais incomuns, expôs notícias de bastidores e concedeu entrevistas cifradas. O mérito, nesse caso, foi o de estabelecer prematuramente uma base de fãs, sólida o suficiente para garantir a exibição de um produto de inicialmente de nicho. Mais do que isso e através da proliferação desses, a série conquistaria seu espaço também na internet e nas páginas de jornais e revistas, e caminhou por vários meios de forma paralela.

Após a estreia bem-sucedida e já estabelecida como série, amarrar a narrativa entre as mídias ao invés de manter as pontas soltas foi outro acerto. A estratégia começou tímida, mas abarcou várias empresas que trabalharam coordenadamente para produzir conteúdo de forma articulada. O foco da série em personagens distintos voltou-se para o espaço construído na ilha, o que consagrou definitivamente a narrativa para o estabelecimento de um universo ficcional. A partir dessa atitude, espalhar os elementos ficcionais entre as diversas mídias foi o próximo desafio.

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Conseguir tal feito, a partir da série consagrada, foi fruto de um planejamento prévio senão da narrativa transmídia em si, pelo menos da instituição de elementos ficcionais suficientemente abrangentes e consistentes para dar suporte a essa possibilidade. Disseminar as leis regimentais desse espaço entre inúmeras instâncias criativas exigiu a concepção de uma “bíblia” ficcional detalhada e a instituição de jurisdição sobre um “cânone”, em que os criadores originais arbitrariam sobre o pertencimento ou não da obra criada à narrativa transmidiática de Lost. Aceitar a autoria dos fãs, como parte constituinte da série, foi um problema dos produtores, que preferiram marginalizar essas criações e não se influenciar por elas.

Escolher criar um universo ficcional implica não definir um só caminho que o espectador deva seguir. A narrativa é aberta, e os espectadores devem poder definem por onde querem caminhar, e os caminhos não são definidos como veredas estreitas, pelo contrário. Deve-se haver espaço vago o suficiente para acomodar a experiência dos espectadores contanto que os objetivos do destino que se queira chegar estejam bastante claros. Força-se o espectador a investigar, propor soluções de enigmas, montar peças até descobrir uma forma de ligar pontos a fim de suprir lacunas.

Equilibrar a narrativa entre o produto serial televisivo e as obras satélites foi outro desafio. Prover conteúdo essencial em outro meio que não a televisão trairia a dedicação do espectador exclusivo enquanto fornecer somente conteúdo complementar aos fãs transmidiáticos os frustraria. Várias tentativas foram realizadas e através do “cânone”, os criadores filtraram as obras que deveriam ser levadas em consideração ao reconstituir a narrativa e as obras que não fariam parte dessa reconstituição. Produtos como websites das empresas fictícias, romances que utilizam elementos ficcionais, jogos de videogame, repositórios de informação online e em livros fazem parte do universo ficcional, mas não adicionam fatos narrativos confiáveis, portanto não pertencem ao “cânone”. A narrativa caminha pela série televisiva, pelo livro Bad Twin, pelos três jogos de realidade alternativa, pelos episódios feitos para celular e pelos dois mock-documentaries. Essas são obras oficiais que adicionam informação confiável as tentativas de reconstituição da narrativa pelos fãs.

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A distribuição da narrativa entre as temporadas da série televisiva e as obras do universo ficcional ocorreu de forma variada. Se por um lado, a maior parte da história foi contada na televisão, informações importantes só estavam nas extensões, como no caso da resolução do mistério dos números. Se o espectador televisivo foi respeitado e sua dedicação recompensada pela preferência de conteúdo, a experiência completa de Lost pode ser conquistada através da fruição de várias obras diferentes.

Uma estratégia construtiva do universo ficcional de Lost para torná-lo navegável tanto pelo acompanhamento da série quanto da experiência completa é estabelecer níveis diferentes de participação e cabe ao espectador decidir o quanto de contato quer com esse universo. Se espectador preferir apenas a fruição televisiva, haverá contato com esse nível de construção. Se houver interesse em se tornar um fã e adquirir conhecimentos suplementares, repositórios online estarão a disposição e guias ajudarão a se encontrar na teia de mistérios. Agora, se o fã for extremo em suas intenções e desejar interagir em minúcias, os detalhes estarão espalhados pelas obras ficcionais e a dedicação lhe renderão uma perspectiva avançada sobre a série.

Ao escolher a opção de ser um fã extremo, o espectador poderá se portar como um jogador apto a identificar sinais e elementos ficcionais entre as obras a fim de constituir seu próprio repertório de conhecimento inerente. Quanto mais contato com o universo ficcional, mais experiência se adquire. E esse conhecimento pode ser utilizado para confrontar outros jogadores em fóruns na internet, estabelecer enciclopédias e guias, além de criar novas e mais coerentes teorias para resolver o jogo.

Aliás, a narrativa flerta com o jogo desde a diegese, em que a mitologia principal é uma batalha épica de dois irmãos que enreda os demais personagens. As formas da série são organizadas e respeitam os lados da guerra e os personagens obrigados a tomar partido em algum momento de suas trajetórias. Outras categorias de jogos são contempladas pela diegese, como o jogo de sorte, o de imitação. O jogo de vertigem quase não é contemplado pela série.

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Ao distinguir o ato de jogar (play) do jogo em si (game), é possível encontrar a regulamentação do jogo e as possibilidades de interação do jogador com Lost. Vários aspectos que definem a natureza do jogo são inerentes ao universo ficcional da série, como: a liberdade que um jogador tem de jogar ou não jogar, a limitação do jogo a um espaço delimitado e um tempo definido, seu caráter ficcional e findo, as incertezas de êxito ao jogador quanto ao resultado do jogo, a improdutividade generalizada do ato de jogar e a rígida regulamentação do jogo em si. E se Lost é um jogo, o elemento que constitui a sua matéria é o tempo.

O universo ficcional é formado por fragmentos perdidos de tempo que devem ser reorganizados para que façam algum sentido. Esses pedaços de tempo flutuam em espaço vago, e os jogadores devem caminhar pelo universo para captá-los. Torna-se extremamente necessário identificar de qual tempo se fala: se depositados sobre uma folha de papel ou ao ocupar qualquer lugar do universo ficcional, os fragmentos temporais são constituídos de um “tempo espacializado”, indissociável do espaço e inapto a receber denominações tais como passado e futuro já que estão presentes a consciência desde o momento em que foram criados. Para adquirir status de um tempo real, eles devem ser experimentados pelo espectador, que lhes confiará “duração”, restituir ao tempo a sua própria essência.

O tempo narrativo pode ser manipulado de acordo com a vontade do criador. O tempo da experiência é de domínio do jogador. O jogo acontece pelo estabelecimento de convenções que permitam ao jogador experimentar o tempo narrativo de formas pré-estabelecidas a fim de conquistar o objetivo de reordená-lo conforme a cronologia de um sentido, o estabelecimento do espaço conhecido e a resolução dos enigmas propostos. A partir desse pressuposto, uma série de estratégias são utilizadas para estabelecer o jogo:

o Elipses e paralipses temporais que criam lacunas na narrativa passíveis de especulação; o Deslocamento do ponto de vista narrativo para o ponto de vista dos personagens a fim de possibilitar experiência subjetiva através de diferentes ritmos de montagem.

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o Utilização de anacronias, como analepses, prolepses e acronias a fim de confundir o espectador quanto a localização temporal dos fatos ficcionais, o os une somente por uma temática em comum.

O jogador de Lost deve criar conexões entre elementos ficcionais. Pode adquirir mais pistas conforme avança por suas investigações. Para facilitar a compreensão do jogo e evitar paradoxos temporais, os criadores estabeleceram a casualidade como regra e para testar essa hipótese criaram Desmond, o personagem coringa. Na diegese, ele é sempre impedido de mudar o passado, e alerta o jogador de que não há quebra de regras na reconstituição do tempo. Segundo essa lei, mesmo que um fato passado esteja teoricamente presente a percepção ele não deixa de ser passado, portanto não pode ser alterado. Nada impede o jogador de quebrar as regras, mas desafiar-se e manter-se no jogo trará um prazer inerente.

Esse estudo aponta para estratégias de construção narrativa que visam à expansibilidade, fragmentação e complexificação, que fogem das especificidades limitadoras dos meios que as exibem. O advento do estudo das formas de jogo é uma ferramenta para esclarecer as relações do público transmídia com os produtos audiovisuais, e pode ser de grande auxílio para se explorar narrativas complexas para que continuem compreensíveis para seu público.

Extensões dessa pesquisa permitiriam notar como anacronias entre o tempo narrativo e o tempo de experiência parecem ser uma tendência estética recorrente dos produtos audiovisuais do século XXI, possibilidade que denuncia a referência de tempo do ser humano se deslocar do tempo da natureza para um tempo abstrato. O espectador poderia estar cada vez mais preparado para lidar com um tempo sem lastro. Outra vertente seria considerar os estranhos efeitos decorrentes dessa manipulação, como estetização de linhas de tempo paralelas, eliminação gradual da casualidade e determinismo em narrativas e o tratamento corriqueiro dos paradoxos temporais, como algo contornável ou até inexistente.

Lost continua a ser Lost em diferentes níveis: desafia, desorienta e joga. A série foi a instituição de novidade nos caminhos televisivos e inseriu complexidade

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em um meio linear. Se a convergência acontece na cabeça do espectador, a divergência garante um nível diferente de diversão. Através desse processo de criação consolidou-se um estilo que marcou uma época e angariou milhões de fãs pelo mundo. Em um tempo de degradação de audiência, Lost selecionou exemplares ímpares de espectadores que aceitaram o convite para se perder em seus mistérios. Lost poderá ser jogado por muito tempo enquanto houver interesse dos jogadores.

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ANEXOS

Quadro 3 – Lista de episódios citados

Temporada Episódio Nome

1 1 The Pilot part 1

1 5 White Rabbit

1 7 In Translation

1 7 The Month

1 9 Solitary

1 10 Raised by Another

1 11 All The Best Cowboys Have Daddy Issues

1 16 Outlaws

1 18 Numbers

1 20 The Greater Good

1 22 Born To Run

1 23 Exodus part 1

1 24 Exodus part 2

1 25 Exodus part 3

2 1 Man Of Science, Man Of Faith

2 3 Orientation

2 9 What Kate Did

2 12 Fire+Water

2 14 One Of Them

2 16 The Whole Truth

2 17 Lockdown

2 18 Dave

2 23 Live Together, Die Alone part 1

2 24 Live Together, Die Alone part 2

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3 1 A Tale Of Two Cities

3 2 The Glass Ballerina

3 3 Further Instructions

3 5 The Cost Of Living

3 6 What Kate Does

3 8 Flashes Before Your Eyes

3 10 Tricia Tanaka is Dead

3 12 Par Avion

3 13 The Man from Tallahassee

3 15 Left Behind

3 17 Catch-22

3 18 D.O.C.

3 20 The Man Behind The Courtains

3 21 Greatest Hits

3 22 Through the Looking Glass.

4 1 The Beginning of the End

4 5 The Constant

4 8 Meet Kevin Johnson

4 11 Cabin Fever

5 1 Because You Left

5 3 Jughead

5 4 The Little Prince

5 5 This Place Is Death

5 6 316

5 9 Ab Aeterno

5 10 He's Our You

5 11 Whatever Happened, Happened

5 12 Dead is Dead

128

5 14 The Variable

5 16 The Incident part 1

5 17 The Incident part 2

6 1 LA X part 1

6 2 LA X part 2

6 4 The Substitute

6 8 Recon

6 15 Across The Sea

6 16 Across The Sea

6 17 The End part 1

6 18 The End part 2