XIII Reunião De Antropologia Do Mercosul 22 a 25 De Julho De 2019
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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS) GT 36 - Cristianismo: novos rumos Título do Trabalho: Das palavras, fazer imagens: práticas miméticas de textos religiosos em telenovelas Jorge Helius Scola Gomes PPGAS/UFRGS Se me permitires Traço nesta lousa O que em mim se faz E não repousa: Uma Ideia de Deus. Hilda Hilst, Exercício no. 1, 1967. Conta-se que Charlie Chaplin foi um dia a uma feira nos Estados Unidos, no qual a atração principal era uma competição sobre quem imitava melhor a clássica caminhada de Charlie Chaplin. O verdadeiro Charlie Chaplin pensou que tiraria de letra e resolveu entrar no páreo, mesmo sem seu famoso bigode e seus sapatos. Foi um fracasso assustador e ficou em vigésimo lugar (cartaz no filme No Home movie, de Chantal Akerman). Introdução Os livros espíritas „„Nosso Lar‟‟ e „„A Vida Continua...‟‟ serviram de inspiração para a concepção da telenovela A Viagem, de autoria de Ivani Ribeiro (1975 e 1994). Nela, apareciam ambientações de espaços e lugares como o Vale dos Suicidas e o Nosso Lar. A novidade do tema espírita na telenovela propiciou algumas controvérsias e bastante êxito. Ainda, efetuou uma tradução, por meio da mediação de imagens, sons e narrativas, que pode ser lida na chave da formação de coletivos e formas sensoriais (Meyer, 2009) no espaço público (Meyer; Moors, 2006). Meu objetivo aqui é enfatizar o processo de produção e veiculação em narrativas de telenovelas por duas emissoras de televisão aberta ancoradas em textos de dois tipos de obras religiosas: os livros espíritas e de partes da Bíblia. A comparação intenciona explicitar uma relação que tem a ver com a produtividade de pensar as formas de mediação religiosa com o tema dos sentidos, o que coloca a produção de ambiências como um elemento central para pensar diferentes possibilidades. Este tipo de situação pode nos ajudar a enfatizar um ponto que deverá ser desenvolvido ao longo de minha tese de doutorado em andamento: o deque a regulação do religioso (Giumbelli, 2014) pode se dar por meio de mídias, entendidas aqui de forma larga, como vêm defendendo diferentes autores sucintamente definíveis enquanto representantes da chamada virada midiática em antropologia, encontrando escopo téorico naquilo que Jacques Rancière vem chamando de partilha do sensível, ao enfatizar as relações entre estética e política (Rancière, 2005). Proponho articular estas noções provisoriamente enquanto formas de „„regulação midiática do religioso‟‟. Visto como um campo majoritariamente interdisciplinar, os estudos sobre „„religião e mídia‟‟ têm recebido maior incremento nas últimas duas décadas (Stolow, 2014; Machado, 2014). Esta abordagem específica tem por objetivo uma orientação particular nos estudos sobre religião que intenta compreender como a religião se reorganiza em contextos para além do alcance das autoridades religiosas “tradicionais”, tal como nos domínios da medicina alternativa, da ciência popular, do ativismo ecológico, do entretenimento e da cultura de consumo (Stolow, loc. cit., p. 147). A chave da mediação também está presente no movimento material turn, também profícua nos estudos de religião. A chamada „„virada material‟‟ alimentou o interesse nas coisas a na „„materialidade‟‟, mas apesar desta inflexão não parece haver exatamente uma demarcação estanque entre o que é „„materialidade‟‟ versus a „„matéria‟‟ propriamente dita (Meyer; Houtman, 2012: 4). A abordagem da virada material, contudo, visa exatamente desfazer o antagonismo entre coisas e religião – ao contrário, ela reconecta „„espírito‟‟ e „„matéria‟‟ (ibidem, p. 7). Deste movimento, salienta Engelke que uma das características seria o enfoque, mais agora do que no passado, nos usos sociais dos meios de comunicação dentro da vida religiosa – dos meios antigos como textos impressos e imagens pintadas até os meios mais novos e de mais novos tipos, os quais englobam radio e videodifusão, o cinema, fitas cassetes e a Internet (Engelke, 2010: 371). Mas já David Morgan havia anunciado como a ambiência era uma questão central para a produção relacionada à virada material (Morgan, 2014), ao reconhecer nesta uma oportunidade para compreender melhor as formas pelas quais a construção cultural da vida cotidiana acontece. Nesta perspectiva, o significado não está ou habita as coisas, mas seria ativado por elas. O significado seria então o produto de uma série de relações complexas que envolvem pessoas, coisas, ambiências, a História, as palavras e as ideias de uma sociedade ou grupo. Como a cultura visual também pertence ao domínio da cultura material, Morgan defende que se considere „„tudo o que as pessoas lançam mão‟‟ em seus processos de constituição de mundo (Morgan, 2008: 228). Em The Sacred Gaze, Morgan também salienta a importância dimensão da cultura visual para o estudo da religião, ao enfatizar que se deve situar uma imagem dentro de sua história de recepção, recusando-se a vê-la como uma entidade fixa, esteticamente permanente. Assim, podemos ver nestes casos a forma como se esquadrinha imagens como fenômenos sociais que também são definidos por uma história em curso do pensamento e da prática (Morgan, 2005: 21). Para os objetos que analisaremos aqui, estas asserções são úteis na medida em que nos fazem desreificar o religioso (diante de dicotomias fáceis como as do sagrado e do profano) para encontrá-lo com o que Meyer denomina de senso de imediatismo (immediacy/i-mediacy, Meyer, 2015) e dispondo de nossos sentidos (visão e audição). Sem reivindicar completamente uma filiação teórica, acredito que é possível perceber a riqueza conceitual deste deslocamento sugerido por Morgan uma vez que, como aponta Pinney (2006), pensar em termos de cultura visual nos permite não só nos desvencilharmos das noções correntes no campo de estudos das artes, mas questioná-los à luz dos dados mobilizados. Tal abordagem não opera, contudo, por meio de um entendimento de cultura irrefletido e reificado diante de bases conceituais viciadas. Ao contrário, trata-se de pensar formas minoritárias (ou contingentes) de engajamento com o mundo, sem o objetivo de culturalizar a diferença, mas contextualizá-la1. O texto se articula em três seções. Uma primeira discutindo a produção estética dos espaços religiosos espíritas de A Viagem, após situar suas importâncias no enredo na novela. A segunda, apresenta a novidade do recurso narrativo adotado em Apocalipse (Record, 2017) em trazer a própria bíblia complementando e dando sustentação à narrativa da novela. Por fim, o esboço de uma comparação reflete sobre as distintas modalidades de mídia e sua articulação com a questão dos sentidos. O Nosso Lar na/da telenovela O material que aqui analiso parte da sinopse escrita e apresentada pela autoria Ivani Ribeiro referente à versão da novela A Viagem, exibida pela então Rede Tupi de televisão, entre 1975 e 1976, no horário das 20h, o mais importante da grade de uma emissora de televisão dedicado à ficção. Quase 20 anos depois, foi ao ar, agora na Rede Globo e às 19h, um remake da novela, uma regravação do mesmo texto, atualizado para os dias atuais. O remake da novela não teve mudanças substanciais em relação ao texto dos anos 1970, mas apresentou mudanças de alguns nomes de personagens (a fim de evitar repetições de nomes presentes na telenovela anterior do horário). O horário das sete, que habitualmente receberia histórias mais leves, apresentava uma história dramática calcada numa leitura de obras de Allan Kardec e, especialmente, em dois livros editados após terem sido ditados pelo espírito de André Luiz ao médium Chico Xavier. São estes „„Nosso Lar‟‟ e „„A Vida Continua...‟‟. A versão que mobilizo aqui como dado foi disponibilizada por Solange Castro Neves, roteirista que trabalhou com Ivani Ribeiro na atualização de A Viagem, na versão de 1994. No caso específico da veiculação da novela pela Globo, é interessante perceber como a entrada do tema espírita se dá de forma gradual a ponto de ela ter se prestado a uma inserção rápida na linha de montagem do horário. O diretor do projeto, Wolf Maya, traz em depoimento ao portal Memória Globo que A Viagem entrou em produção no momento em que uma sinopse anterior foi cancelada pela emissora. Procurando um novo título para o horário, foi encontrada a história escrita por Ivani Ribeiro duas décadas antes e que é caracterizada como tendo um início perfeitamente executável. (Foi.. ) O projeto mais arriscado, mais difícil que eu fiz na televisão. Muito difícil e ao mesmo tempo muito bonito estar falando sobre a vida após a morte. Falar de Kardec. Eu sou kardecista, então foi uma missão cumprida. (...) A gente tinha essa novela que caiu (foi cancelada) na produção para substituir e lá na Globo eu esbarrei com os capítulos originais de A Viagem (a versão anterior). E eu peguei para ler e comecei a pensar „„Olha que engraçado... brasileiro é muito ligado nisso‟‟. E foi muito fácil começar a gravar porque as primeiras 1 A outra advertência de Piney aparece evocando a questão de Latour para a antropologia, se não estaríamos condenados a estudar territórios no lugar de redes, reificando uma noção de cultura que sobrecodifica e essencializa uma diferença constatada diante do outro (Pinney, 2006: 140-141). semanas da novela transcorrem com cenários comuns. Só lá mais para frente é que entram na novela os cenários do ceu e do inferno, que a gente teve que procurar muito (...) E todos nós sabemos como é excitante você falar sobre o mundo sobrenatural, sobre coisas que você não conhece... Se a gente conseguir tratar Kardec, o espiritualismo, sem essa exploração comercial, sem uma exposição gratuita disso.. E também sem ser doutrinador, eu não queria ser doutrinador, a novela ia ficar chata... Então, vamos juntar essas duas coisas (intenções), a gente tem uma história aí com o temperamento brasileiro...2. Céu e inferno. O diretor se refere com estes termos ao que é trazido na novela como, respectivamente, o Nosso Lar e o Vale dos Suicidas, espaços por onde os personagens desencarnados transitam a partir do momento de suas mortes – e que propiciam por sua vez encontros que dão andamento à narrativa da história.