XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)

GT 36 - Cristianismo: novos rumos

Título do Trabalho: Das palavras, fazer imagens: práticas miméticas de textos religiosos em telenovelas

Jorge Helius Scola Gomes PPGAS/UFRGS

Se me permitires Traço nesta lousa O que em mim se faz E não repousa: Uma Ideia de Deus. Hilda Hilst, Exercício no. 1, 1967.

Conta-se que Charlie Chaplin foi um dia a uma feira nos Estados Unidos, no qual a atração principal era uma competição sobre quem imitava melhor a clássica caminhada de Charlie Chaplin. O verdadeiro Charlie Chaplin pensou que tiraria de letra e resolveu entrar no páreo, mesmo sem seu famoso bigode e seus sapatos. Foi um fracasso assustador e ficou em vigésimo lugar (cartaz no filme No Home movie, de Chantal Akerman).

Introdução

Os livros espíritas „„Nosso Lar‟‟ e „„A Vida Continua...‟‟ serviram de inspiração para a concepção da telenovela A Viagem, de autoria de Ivani Ribeiro (1975 e 1994). Nela, apareciam ambientações de espaços e lugares como o Vale dos Suicidas e o Nosso Lar. A novidade do tema espírita na telenovela propiciou algumas controvérsias e bastante êxito. Ainda, efetuou uma tradução, por meio da mediação de imagens, sons e narrativas, que pode ser lida na chave da formação de coletivos e formas sensoriais (Meyer, 2009) no espaço público (Meyer; Moors, 2006).

Meu objetivo aqui é enfatizar o processo de produção e veiculação em narrativas de telenovelas por duas emissoras de televisão aberta ancoradas em textos de dois tipos de obras religiosas: os livros espíritas e de partes da Bíblia. A comparação intenciona explicitar uma relação que tem a ver com a produtividade de pensar as formas de mediação religiosa com o tema dos sentidos, o que coloca a produção de ambiências como um elemento central para pensar diferentes possibilidades.

Este tipo de situação pode nos ajudar a enfatizar um ponto que deverá ser desenvolvido ao longo de minha tese de doutorado em andamento: o deque a regulação do religioso (Giumbelli, 2014) pode se dar por meio de mídias, entendidas aqui de forma larga, como vêm defendendo diferentes autores sucintamente definíveis enquanto representantes da chamada virada midiática em antropologia, encontrando escopo téorico naquilo que Jacques Rancière vem chamando de partilha do sensível, ao enfatizar as relações entre estética e política (Rancière, 2005). Proponho articular estas noções provisoriamente enquanto formas de „„regulação midiática do religioso‟‟.

Visto como um campo majoritariamente interdisciplinar, os estudos sobre „„religião e mídia‟‟ têm recebido maior incremento nas últimas duas décadas (Stolow, 2014; Machado, 2014). Esta abordagem específica tem por objetivo uma orientação particular nos estudos sobre religião que intenta compreender como a religião se reorganiza em contextos para além do alcance das autoridades religiosas “tradicionais”, tal como nos domínios da medicina alternativa, da ciência popular, do ativismo ecológico, do entretenimento e da cultura de consumo (Stolow, loc. cit., p. 147). A chave da mediação também está presente no movimento material turn, também profícua nos estudos de religião. A chamada „„virada material‟‟ alimentou o interesse nas coisas a na „„materialidade‟‟, mas apesar desta inflexão não parece haver exatamente uma demarcação estanque entre o que é „„materialidade‟‟ versus a „„matéria‟‟ propriamente dita (Meyer; Houtman, 2012: 4). A abordagem da virada material, contudo, visa exatamente desfazer o antagonismo entre coisas e religião – ao contrário, ela reconecta „„espírito‟‟ e „„matéria‟‟ (ibidem, p. 7).

Deste movimento, salienta Engelke que uma das características seria o enfoque, mais agora do que no passado, nos usos sociais dos meios de comunicação dentro da vida religiosa – dos meios antigos como textos impressos e imagens pintadas até os meios mais novos e de mais novos tipos, os quais englobam radio e videodifusão, o cinema, fitas cassetes e a Internet (Engelke, 2010: 371).

Mas já David Morgan havia anunciado como a ambiência era uma questão central para a produção relacionada à virada material (Morgan, 2014), ao reconhecer nesta uma oportunidade para compreender melhor as formas pelas quais a construção cultural da vida cotidiana acontece. Nesta perspectiva, o significado não está ou habita as coisas, mas seria ativado por elas. O significado seria então o produto de uma série de relações complexas que envolvem pessoas, coisas, ambiências, a História, as palavras e as ideias de uma sociedade ou grupo. Como a cultura visual também pertence ao domínio da cultura material, Morgan defende que se considere „„tudo o que as pessoas lançam mão‟‟ em seus processos de constituição de mundo (Morgan, 2008: 228).

Em The Sacred Gaze, Morgan também salienta a importância dimensão da cultura visual para o estudo da religião, ao enfatizar que se deve situar uma imagem dentro de sua história de recepção, recusando-se a vê-la como uma entidade fixa, esteticamente permanente. Assim, podemos ver nestes casos a forma como se esquadrinha imagens como fenômenos sociais que também são definidos por uma história em curso do pensamento e da prática (Morgan, 2005: 21). Para os objetos que analisaremos aqui, estas asserções são úteis na medida em que nos fazem desreificar o religioso (diante de dicotomias fáceis como as do sagrado e do profano) para encontrá-lo com o que Meyer denomina de senso de imediatismo (immediacy/i-mediacy, Meyer, 2015) e dispondo de nossos sentidos (visão e audição).

Sem reivindicar completamente uma filiação teórica, acredito que é possível perceber a riqueza conceitual deste deslocamento sugerido por Morgan uma vez que, como aponta Pinney (2006), pensar em termos de cultura visual nos permite não só nos desvencilharmos das noções correntes no campo de estudos das artes, mas questioná-los à luz dos dados mobilizados. Tal abordagem não opera, contudo, por meio de um entendimento de cultura irrefletido e reificado diante de bases conceituais viciadas. Ao contrário, trata-se de pensar formas minoritárias (ou contingentes) de engajamento com o mundo, sem o objetivo de culturalizar a diferença, mas contextualizá-la1.

O texto se articula em três seções. Uma primeira discutindo a produção estética dos espaços religiosos espíritas de A Viagem, após situar suas importâncias no enredo na novela. A segunda, apresenta a novidade do recurso narrativo adotado em Apocalipse (Record, 2017) em trazer a própria bíblia complementando e dando sustentação à narrativa da novela. Por fim, o esboço de uma comparação reflete sobre as distintas modalidades de mídia e sua articulação com a questão dos sentidos.

O Nosso Lar na/da telenovela

O material que aqui analiso parte da sinopse escrita e apresentada pela autoria Ivani Ribeiro referente à versão da novela A Viagem, exibida pela então Rede Tupi de televisão, entre 1975 e 1976, no horário das 20h, o mais importante da grade de uma emissora de televisão dedicado à ficção. Quase 20 anos depois, foi ao ar, agora na Rede Globo e às 19h, um remake da novela, uma regravação do mesmo texto, atualizado para os dias atuais. O remake da novela não teve mudanças substanciais em relação ao texto dos anos 1970, mas apresentou mudanças de alguns nomes de personagens (a fim de evitar repetições de nomes presentes na telenovela anterior do horário). O horário das sete, que habitualmente receberia histórias mais leves, apresentava uma história dramática calcada numa leitura de obras de Allan Kardec e, especialmente, em dois livros editados após terem sido ditados pelo espírito de André Luiz ao médium Chico Xavier. São estes „„Nosso Lar‟‟ e „„A Vida Continua...‟‟. A versão que mobilizo aqui como dado foi disponibilizada por Solange Castro Neves, roteirista que trabalhou com Ivani Ribeiro na atualização de A Viagem, na versão de 1994.

No caso específico da veiculação da novela pela Globo, é interessante perceber como a entrada do tema espírita se dá de forma gradual a ponto de ela ter se prestado a uma inserção rápida na linha de montagem do horário. O diretor do projeto, Wolf Maya, traz em depoimento ao portal Memória Globo que A Viagem entrou em produção no momento em que uma sinopse anterior foi cancelada pela emissora. Procurando um novo título para o horário, foi encontrada a história escrita por Ivani Ribeiro duas décadas antes e que é caracterizada como tendo um início perfeitamente executável.

(Foi.. ) O projeto mais arriscado, mais difícil que eu fiz na televisão. Muito difícil e ao mesmo tempo muito bonito estar falando sobre a vida após a morte. Falar de Kardec. Eu sou kardecista, então foi uma missão cumprida. (...) A gente tinha essa novela que caiu (foi cancelada) na produção para substituir e lá na Globo eu esbarrei com os capítulos originais de A Viagem (a versão anterior). E eu peguei para ler e comecei a pensar „„Olha que engraçado... brasileiro é muito ligado nisso‟‟. E foi muito fácil começar a gravar porque as primeiras

1 A outra advertência de Piney aparece evocando a questão de Latour para a antropologia, se não estaríamos condenados a estudar territórios no lugar de redes, reificando uma noção de cultura que sobrecodifica e essencializa uma diferença constatada diante do outro (Pinney, 2006: 140-141).

semanas da novela transcorrem com cenários comuns. Só lá mais para frente é que entram na novela os cenários do ceu e do inferno, que a gente teve que procurar muito (...)

E todos nós sabemos como é excitante você falar sobre o mundo sobrenatural, sobre coisas que você não conhece... Se a gente conseguir tratar Kardec, o espiritualismo, sem essa exploração comercial, sem uma exposição gratuita disso.. E também sem ser doutrinador, eu não queria ser doutrinador, a novela ia ficar chata... Então, vamos juntar essas duas coisas (intenções), a gente tem uma história aí com o temperamento brasileiro...2.

Céu e inferno. O diretor se refere com estes termos ao que é trazido na novela como, respectivamente, o Nosso Lar e o Vale dos Suicidas, espaços por onde os personagens desencarnados transitam a partir do momento de suas mortes – e que propiciam por sua vez encontros que dão andamento à narrativa da história. O morrer dos personagens não interrompe a torrente de acontecimentos que dá sentido à „„mensagem‟‟ da novela: qual seja, a de que a vida continua após a morte – e que a morte „„é apenas uma viagem‟‟. Abordarei estas noções novamente em breve para pensar como o binômio ceu e inferno é acionado como chave de leitura para os espaços trazidos nesta produção espírita do espaço e de como estas intersecções encontram ressonância na forma de concepção estética do ponto de vista da cenografia e da direção de arte da novela.

Antes, convém apontar a lógica dos acontecimentos que faz com que estes espaços sejam incorporados à vida dos personagens e à história que vem sendo apresentada e que dão sentido, também, à afirmação do diretor da novela de que a história começava de um jeito simples, sem se mostrar explicitamente espírita. Um jovem delinquente comete um roubo e posteriormente um homicídio. Sua irmã superprotetora, a protagonista da história, parte em sua defesa, de forma que a coloca diretamente contra o outro protagonista, advogado de defesa da vítima, de quem era amigo pessoal. Este homem e esta mulher, mais adiante, desenvolvem um interesse romântico. O suicídio do irmão delinquente da protagonista o leva ao Vale dos Suicidas, região do „„inferno‟‟ aludida na fala do diretor Wolf Maya. Enquanto sofre agruras no Vale dos Suicidas, rodeado de espíritos que gemem e sofrem em meio à escuridão eterna, este personagem, Alexandre, consegue vez por outra interferir nos acontecimentos na Terra, no Rio de Janeiro onde se passa a história, e possuir o corpo de diversos personagens, inclusive de modo a impedir o relacionamento da irmã, Diná, com o advogado Otávio. Numa regressão de vidas passadas, ocorrida no capítulo onde estes protagonistas morrem, o público fica sabendo que em outros tempos Diná e Otávio se encontravam e sofriam a oposição, em distintas configurações familiares, de Alexandre. Trata-se portanto de uma relação que antecede a experiência inicial do enredo e da qual o público fica sabendo junto aos personagens da novela.

Como dito, Diná e Otávio morrem, em diferentes circunstâncias. Ele primeiro, num acidente de carro onde a influência de Alexandre tem papel fundamental. Deprimida com a perda do seu par, Diná sofre crises onde, também, Alexandre aparece ao público a influenciando negativamente. Outras ações do antagonista

2 Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/a-viagem/fotos-e-videos.htm, consulta em janeiro de 2019. desencarnado na ação da novela ocorrem como quando este atrapalha a nova relação de Lisa, sua antiga namorada, e o casamento de seu irmão, Raul, que o entregou à polícia diante do assassinato que ele comete e detona o conjunto de relações dramáticas apresentadas ao público. Otávio morre e este fato traz novas consequências à trama, em vez de encerrá-la. O ator Antônio Fagundes, intérprete de Otávio, relata em depoimento ao site Memória Globo que se tratou do primeiro trabalho seu em televisão onde o público torcia „„para que a mocinha morresse‟‟, já que isto oportunizaria o reencontro do casal principal da novela.

Isto só é possível porque ficamos sabendo, primeiro por Otávio, de que a morte propicia, aos que respeitam „„as leis de deus‟‟, a chegada a um outro espaço: o Nosso Lar, „„paraíso‟‟, ou „„ceu‟‟, como é trazido em distintos momentos na leitura dos envolvidos na produção da novela. O Nosso Lar da novela corresponde a uma leitura do que os livros de Chico Xavier trazem a respeito deste local, visto que a autora teve à época consultoria não só de Chico mas também do estudioso do espiritismo Herculano Pires3. Pelo sucesso da primeira versão de A Viagem, Chico teria enviado mensagem à autora Ivani Ribeiro:

Pouco mais de um mês antes do término da novela, em 15/02/1976, Chico Xavier enviou de Uberaba (MG), onde morava, um telegrama para Ivani Ribeiro: “Deus abençoe sua nobre iluminada criação, a novela A Viagem, repleta de significação espiritual para nós todos seus patrícios, irmãos e admiradores. Jesus inspire seu elevado trabalho dando reconforto, esperança, paz, esclarecimentos que está distribuindo. Grande abraço, muito respeito, apreços afetuosos e felicitações.4”

Saliento a seguir os trechos da sinopse de A Viagem que encadeiam estes acontecimentos de forma mais direta e vão nos possibilitar pensar mais diretamente a forma como as palavras dos livros espíritas são comutados em ficção para, posteriormente, discutir a forma como tudo isto foi apresentado ao público na forma de imagens. O primeiro trecho, do que se segue abaixo, começa na morte da protagonista.

90 – DINÁ acorda num quarto de hospital igual a qualquer outro e indaga pelo marido. A enfermeira a atende, tranquila e atenciosa. Não, ela não pode ver seus familiares, por enquanto. DINÁ não se dá conta do que aconteceu, não sabe que está morta. Tudo o que a rodeia é normal, o quarto, a cama, a enfermeira. Ela se sente mais leve, mas não tem dores. Levanta-se, sai do quarto, atravessa o corredor, alcança o jardim do hospital. É um lugar amplo, com bancos, árvores, e flores. Alguns doentes passeiam por ali. Andando por ali, curiosa e intrigada, inesperadamente encontra-se com OTÁVIO. Ele então lhe diz que estão no “NOSSO LAR” – que é um estágio depois da morte… Muito emocionada, DINÁ se afasta correndo para o quarto. Julga-se vítima de alucinações.

(...)

94 – DANIEL e JOANA, os dois mentores espirituais, conversam sobre a situação de DINÁ, que ainda não se convenceu da realidade. Ela imagina que está vivendo dentro de um sonho, que tudo é uma perturbação mental, que foi internada num sanatório de loucos. Aos poucos ela vai sendo convencida e orientada.

3 Para escrever a trama original, Ivani baseou-se nos livros “E a Vida Continua” e “Nosso Lar”, ditados pelo espírito de André Luiz a Chico Xavier (1910-2002). Também teve a colaboração do professor Herculano Pires (1914-1979), considerado um dos maiores escritores e estudiosos da doutrina kardecista. A princípio, a autora pensou em adaptar um livro de Chico Xavier. Mas foi o próprio Chico que sugeriu a Ivani que ela desenvolvesse uma trama que abordasse o tema. Conforme o site Teledramaturgia (http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1994/), consulta em janeiro de 2019. 4 http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1975/, consulta em janeiro de 2019.

(...)

96 – DINÁ e OTÁVIO, depois de frequentarem o curso de orientação no “NOSSO LAR”, preparam-se para o trabalho que vão desenvolver mais tarde. No lugar onde eles se encontram há muita gente: algumas pessoas tranquilas, outras tristes e inconformadas. Há ali uma linda mulher, de porte altivo, MARIA CARLOTA, que viveu nos tempos do Império, foi senhora de escravos e odeia os negros. OTÁVIO e DINÁ vão aprendendo a enfrentar sua nova situação. E afinal chega o dia em que, acompanhados pelo conselheiro DANIEL, os dois são encaminhados para a região onde estão os companheiros sofredores. E é aí que DINÁ encontra ALEXANDRE, seu irmão.

97 – ALEXANDRE está atormentado. Ele abandonou a vida pelo suicídio e isso implica em punição. Está no estágio dos que ainda não se arrependeram. ALEXANDRE foge da irmã, desaparecendo dentro do grande vale.

(...)

99 – Na grande tela luminosa da Sala de Estudos, DINÁ vê como numa tela de televisão o que se passa com seus entes queridos. Preocupa-se com TEO, comove-se com a mãe. O mesmo se passa com OTÁVIO, quando toma conhecimento dos problemas de sua casa.

(...)

103 – DINÁ e OTÁVIO conseguem permissão para visitarem seus entes queridos.

104 – DINÁ entra naquela casa que foi sua, olha tudo à sua volta com muita saudade. Nota que seu retrato não está mais na sala. Revê a mãe, revê a sobrinha. (NOTA: a imagem de DINÁ, para o público, é nítida, igual à dos outros personagens. Nada de véus, de sombras de nebulosidade. Tudo normal. Ela apenas não é vista pelos personagens da história)5.

109 – DINÁ procura ALEXANDRE no “NOSSO LAR” e não o encontra. Onde está ele?

(...)

114 – É grande o trabalho de OTÁVIO e DINÁ. Precisam afastar ALEXANDRE; precisam unir TEO e LISA; precisam harmonizar a vida de RAUL com a sogra e com a mulher (que está à espera de um filho); precisam salvar JÚNIOR do vício e das más companhias. Mas como poderão convencer ALEXANDRE, que continua tão obstinado em sua vingança? Doutrinando-o.

117 – A história mostra como é destrutivo o ciúme exagerado. Mostra como é bonita a amizade profunda entre as duas irmãs. Critica o desrespeito dos jovens para com as pessoas idosas. Exalta a união da família, a luta de DINÁ para ajudar seus entes queridos. E principalmente tenta mostrar que a morte não é o fim… que existe um “depois”… 118 – Para alguns será uma história fantasiosa, para outros confortadora. É um chamamento do homem para mais perto de DEUS.

Percebe-se que a ação da novela não apenas apresenta esta „„geografia do pós-morte‟‟, como também traz no próprio enredo um conjunto bastante reconhecível de características do espiritismo brasileiro hegemônico, como o papel da „„doutrinação‟‟ dos espíritos „„inferiores‟‟ (e mesmo os superiores, na medida em que após a orientação e a instrução por seres ainda mais evoluídos estes segundos também podem participar do processo de evolução dos seres inferiores). Tudo isto faz parte dos planos de Deus e isto pretende ter um aspecto de conforto ao espectador. Ivani Ribeiro escreveu outras telenovelas que abordaram

5 Ênfases no original. a temática espiritual: ao lado de A Viagem, pode-se dizer que a mais importante é O Profeta, exibida pela Rede Tupi entre 1977 e 1978, que narrava a ascensão e a queda de um personagem que se corrompe ao utilizar seu dom paranormal de maneira gananciosa para depois se reerguer moralmente após sair do mundo dos ricos e da fama6. O Profeta teve inclusive participação de Chico Xavier na telenovela, como ele mesmo, a quem os pais do protagonista visitam em Uberaba, onde o médium atendia, e de quem levam uma mensagem a Daniel, seu filho paranormal.

Tal participação, contudo, não deve ser lida numa chave exclusivamente proselitista, tendo em vista a pretensão de „„novela ecumênica‟‟. Embora a autora Ivani Ribeiro fosse espírita, O Profeta, por tratar de fenômenos paranormais, propunha uma visão ecumênica – „„por sugestão do diretor Antonino Seabra -, fazendo referência a várias religiões e crenças. Conceitos de psiquiatria, candomblé, kardecismo e catolicismo foram levados ao ar para atender a todos os telespectadores e formar um amplo painel sobre a temática‟‟7. Segundo a mesma lógica, o católico Dom Evaristo Arms aparecia na novela, também levando uma mensagem ao protagonista, que ganha notoriedade ao se apresentar na televisão resolvendo problemas das pessoas por meio de suas visões em troca de ganho financeiro pessoal.

Trago este cotejo a fim de manter o foco em uma questão que considero analiticamente importante. Se hoje é possível assistir na maior emissora do país, especialmente no horário das dezoito horas, telenovelas que abordem o espiritismo sem grandes celeumas públicas, a autoria Ivani Ribeiro enfrentou dificuldades em se colocar no espaço público e produzir se endereçar ao público (Warner, 2002) de modo a colocar o espiritismo em suas telenovelas nos anos 1970. O site Teledramaturgia registra sobre a primeira versão de A Viagem, de 1975:

A Tupi teve dificuldades em encontrar uma igreja para realizar o casamento entre Téo e Lisa (Tony Ramos e Elaine Cristina). Na época, a Cúria Metropolitana baixou uma ordem negando qualquer colaboração com a novela, alegando que a história se voltava contra os princípios católicos.

Jorge Rizzini, no livro “J. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec”, relatou: “A reação do clero católico foi imediata, mas inútil. Conta nosso confrade jornalista Zair Cansado que em visita ao interior de Minas Gerais soubera que os padres „visitavam casa por casa advertindo os moradores que não assistissem à diabólica novela da TV Tupi.‟ Poderia haver publicidade melhor?”8

Na versão de 1994, A Viagem foi um vigoroso sucesso, tendo sido reapresentada na Globo e no canal a cabo Viva, além de conter um grande número de fãs em comunidades de redes sociais onde, inclusive, troca-se a compilação dos arranjos incidentais que pontuam a sonoplasta da novela em sua tarefa de coproduzir os espaços kardecistas do Vale dos Suicidas e do Nosso Lar. O êxito da produção também

6 http://teledramaturgia.com.br/o-profeta-1977/, consulta em janeiro de 2019. 7 Ibdem. 8 http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1975/, consulta em janeiro de 2019. pode ser aferido diante da asserções como a de que „„a exibição A Viagem aumentou em 50% a venda de livros sobre Espiritismo, segundo dados levantados na época por livrarias especializadas‟‟9.

Do ponto de vista da escolha do elenco, em ambas as versões procurou-se com cuidado o intérprete de Alexandre, antagonista que passa a perseguir espiritualmente os demais e influir em seus destinos. A respeito da novela de 1975, podemos ver como tal ocorreu segundo a biografia do intérprete da vez, o ator Ewerton de Castro. Reporta o site Teledramaturgia:

O ator teve que convencer Ivani Ribeiro a ganhar o papel. A princípio, Alexandre lhe foi negado porque ele tinha “cara de bonzinho”. Para Ewerton, havia sido reservado Júnior, o bom filho do advogado César Jordão (Altair Lima). Ao livro “Ewerton de Castro, minha vida na arte, memória e poética” (de Reni Cardoso), o ator revelou:

“Não tive dúvidas. Se o problema é a minha cara, vou ao encontro dela [de Ivani] com a cara de Alexandre. Fui até a sala de maquiagem, coloquei um bigode, botei o cabelo para trás, com gomalina no topete, à la Elvis Presley, blusão de couro, peguei a moto que seria do Alexandre – que eu ainda não sabia dirigir – e fui para a casa da Ivani.

– Quem é? – perguntou a moça que atendeu a porta.

– Diga que é o Alexandre.

Ivani abriu a porta, olhou e disse:

– Ewerton?

– Sim.

– Pode entrar, Alexandre!

E ganhei o papel!”10.

Para a versão de 1994, o diretor Wolf Maya, em depoimento ao Memória Globo, diz ter buscado um ator „„com rosto de anjo, numa recodificação, interpretando um demônio, ele fazia o cara do mau personificado pelo cara do bem, o que deu muito charme para a novela‟‟11. Interessante perceber que o personagem veste preto o tempo inteiro, até o momento em que aceita ser doutrinado pelos demais, ocasião em que aceita sua dívida com as pessoas a quem atingiu e, ao participar do Nosso Lar, passa a vestir uma roupa branca.

Pensando especialmente os aspectos estéticos que dão consistência ao enredo da novela, pode-se enfatizar a intenção da direção de „„fugir das imagens estereotipadas de ceu‟‟. A produção escolheu um campo de golfe em Nogueira, distrito de Petrópolis (RJ), para ambientar o Nosso Lar. Já o Vale dos Suicidas, para onde Alexandre vai depois de morto, era uma pedreira desativada em Niterói (RJ). Ao livro “Autores, Histórias da Teledramaturgia”, Miguel Falabella (do elenco da novela) brincou que os atores não

9 http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1994/, consulta em janeiro de 2019. 10 http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1975/, consulta em janeiro de 2019. 11 Loc. Cit. desejavam que seus personagens morressem, para não precisar gravar no Céu (que era longe), e que prefeririam que fossem para o Inferno (mais perto, em Niterói)12.

Imagem 1 – Alexandre no Vale dos Suicidas (Reprodução Globo)

Imagem 2 – Alexandre doutrinado, já no Nosso Lar (Reprodução Globo)

O diretor Maurício Farias, em depoimento ao Memória Globo, complementa sobre esta reflexividade em torno da escolha dos espaços do Nosso Lar e do Vale dos Suicidas:

Eu lembro de coisas incríveis. Eu lembro do jardim onde era o céu, todas as pessoas vestidas de branco, claro. E tinha também um inferno, que era onde estava o personagem do Guilherme (Fontes, o Alexandre). E eu lembro de sugerir ao Wolf, como eu adorava desenho, que a gente fizesse em cima do livro do Doré. As ilustrações do Doré para A Divina Comédia são sensacionais. Tem lá desenhos do inferno e tal, que são figuras muito impressionantes, em que as figuras estão todas enterradas. Então, de algumas aparecem só o topo da cabeça, às vezes só a cabeça, às vezes só uma mão. A gente fez essa loucura na novela. Eu lembro que era assim

12 Cf. http://teledramaturgia.com.br/a-viagem-1994/, consulta em janeiro de 2019. um grande rio de lama, com toda a figuração lá dentro. E claro uns bonecos porque não dava para enterrar as pessoas.

É digno de nota a menção à Divina Comédia e a produção do ilustrador francês Gustave Doré, uma vez que se trata de uma representação do inferno de inspiração católica, enquanto a novela falava de kardecismo. Como Lewgoy (2004) já havia apontado, se consolidaram diversas formas de associação entre catolicismo e espiritismo no Brasil, amparadas mesmo na produção de livros (que não deixam de ser mídias, em sentido amplo) pelo médium Chico Xavier.

Diante das imagens do Vale dos Suicidas, pode-se complementar estas descrições salientando que as cores escuras predominam neste espaço, que só se torna visível pela presença de fogo, apresentado em pequenas tochas, iluminando a lama e as pedras do vale em questão. A trilha sonora deste espaço é de gritos e instrumentos que trazem ao público a sensação de expectativa e de mistério. Também é possível reconhecer o som de fogo crepitando, do vento e de vozes que gritam sem dizer nenhuma palavra reconhecível13.

O som que chega ao espectador nas cenas do Nosso Lar, ao contrário, parece enfatizar a sensação de paz, com acordes lentos de instrumentos como teclado e harpa, combinando com a mensagem que as imagens veiculadas comunicam e com os presentes vestindo branco em meio a um espaço cheio de vegetação14. No Nosso Lar de A Viagem também estão presentes campos de flores, águas de rio e pequenos animais, que eventualmente vão para o colo de personagens.

Imagem 3 – O Nosso Lar de A Viagem (Memória Globo)

13 É difícil o trabalho de descrever sons. Pode-se encontrar a trilha instrumental da novela informalmente, decupada por grupos de fãs na internet. No youtube, pode-se ouvir no vídeo ‘‘A Viagem - Tema do Vale das Sombas’’ pelo link https://www.youtube.com/watch?v=aXjsOFw6ojQ&list=PLnUCSzxHsmE2mXzWNSs7JeQTfLGaRCRDl apenas os sons veiculados nas cenas onde este cenário aparece. 14 Encontrável também no Youtube, pelo nome ‘‘A Viagem – Tema do Nosso Lar’’, no link https://www.youtube.com/watch?v=ARW1C1N6qQ0&index=4&list=PLnUCSzxHsmE2mXzWNSs7JeQTfLGaRCRDl.

Parece haver o uso de um filtro de imagem nas cenas deste espaço, uma vez que a imagem se torna algo amarelada, embora tenha uma temperatura predominantemente fria, com presença predominante dos azuis (das águas) e dos verdes (dos campos) ao lado das cores claras que os desencarnados ali vestem.

Imagem 4 – O casal principal no Nosso Lar (Reprodução Globo)

Com os protagonistas morrendo pela metade da ação da novela, é possível ver que no Nosso Lar se age. Pode-se descansar ao chegar, mas também estudar e receber os que chegam àquele espaço, orientando- os a acalmarem-se e reconhecerem o local onde estão. A cena final da novela apresenta Diná e Otávio juntos, num local que parece ser uma caverna com um pequeno lago, onde ambos dão as mãos e se olham de frente, enquanto uma mensagem é lida por um narrador em off, a qual é transcrita abaixo:

Hoje, de algum lugar longe dessas terras, há um doce olhar só pra você. Um olhar especial de alguém especial, de distantes origens. Um olhar de um justo coração que pulsa só a vida. Que sorri porque ama plenamente, sem julgamentos, preconceitos nem prisões. Hoje, como ontem, longe desses Céus, há um encantador olhar só pra você. Nesse olhar vai para você a magia da luz, a simplicidade do perdão, a força para comungar com a vida, a esperança de dias mais radiantes de paz. Hoje, de algum lugar dentro de você, alguém que já o amou muito e ainda o ama, diz para você que valeu a pena ter estado nessas Terras, sob estes Céus, falando de união, paz, amor e perdão. Poder sentir a força que faz você sorrir e continuar o caminho que um dia aquele doce olhar iniciou pra você. Tudo isso, só pra você saber que a vida continua e a morte é uma viagem.15

Imagem 5 – Reunidos na cena final (Reprodução Globo)

O apocalipse e suas implicações estéticas

Defendi em outro momento (2018) que a produção de telenovelas e minisséries bíblicas poderia ser lida na chave da complementariedade de audiências. Na ocasião, estas asserções levavam em conta que a produção de novelas e séries de temáticas religiosas pela Rede Record, fora, anteriormente (entre 1997 e 1999), marcada por conflitos espirituais ou inter-religiosos, no qual o polo evangélico da ação concentrava as virtudes do bem, do correto e da redenção. Até aquele momento de reflexão, a retomada de temas religiosos, a partir de 2010, se concentrava majoritariamente nos temas do Antigo Testamento, um ciclo que começara com A História de Ester (2010), passando por Sansão e Dalila (2011), Rei Davi (2012), José do Egito (2013), (2015 e 2016), (2016) e O Rico e o Lázaro (2017). Em 2017 vai o ar Apocalipse, substituída em 2018 por Jesus e, atualmente, exibe a macrossérie Jezabel.

Tendo este movimento em vista, defendo que a ênfase na convergência com demais setores da sociedade religiosa parece ter encontrado um ponto de corte a partir da veiculação de Apocalipse, onde a própria trama operou deslocamentos em relação a essa matriz de relação ao colocar em cena, no apocalipse roteirizado da novela, um sacerdote de uma imensa igreja fictícia localizada em Roma aliado aos planos da chegada do Anticristo na Terra e sua vinda alinhavada pelo próprio Satanás que se materializa nos capítulos finais para operar a batalha final que termina com a vitória de Jesus sobre os representantes do mal.

15 Esta mensagem é de autoria de Paulo Kronemberger, falecido em 2011 e cujos textos participavam de um circuito não apenas espírita, mas também de ufologia . Com núcleos em Roma, Jerusalém e no Brasil, Apocalipse produziu uma geografia moral relacionada a uma narrativa sobre o fim do mundo e sua posterior recuperação, pela via religiosa da „„volta ao bem‟‟. Uma campanha de boicote à novela foi especialmente encampada por agentes católicos. Controversa, Apocalipse tem a menor das produções deste ciclo.

A ambientação contemporânea de Apocalipse é continuamente apontada em grupos de discussão no Facebook como um elemento indesejável, que destoa da vontade da audiência já conquistada. O anseio pelos „„épicos‟‟, „„de época‟‟, aponta, ainda, para a intersecção complexa entre o religioso, o mítico e o ficcional do ponto de vista da recepção destes públicos. Meu argumento aqui é de que a volta ao „„épico‟‟ pode se dar pela estratégia da emissora em produzir uma novela sobre a vida de Jesus Cristo. Embora o corte com as produções vetereotestamentárias seja novamente produzido, era esperado que uma produção como esta não sofreria boicotes católicos tão enfurecidos e se prestaria a um movimento de realargamento de audiências interessadas.

Veicula-se que o próximo cartaz da emissora seja uma novela a partir do Genêsis, por meio da qual podemos ter um retorno aos temas do Antigo Testamento desde o ponto de vista da criação e dos primeiros homens e mulheres que figuram nas histórias de Adão, Eva, Abraão, Caim e Noé. Folhetinizá-la parece desafiador, na medida em que se trata de histórias em certo sentido alegóricas, especialmente o primeiro casal criado por deus e sua queda do paraíso. Há de ser um exercício de criação interessante aos produtores e ao público e me pergunto que tipo de comunidade de pertencimento este ciclo persegue dadas as torções no tempo aludido e na distribuição de histórias bíblicas sem um seguimento linear da Biblia.

Por um lado, o repertório ofertado pela Bíblia parece emprestar um senso de todo e a alusão a uma história pode remeter a outra, sem necessariamente que o espectador precise ver na televisão o que pode já saber segundo outra formação. Podemos ver assim a passagem „„do Apocalipse para Jesus‟‟, onde o próprio Jesus aparece no capítulo final, sem falas e para derrotar numa sequência só o Anticristo e Satanás e levar as pessoas de bem para um local sagrado protegido e baseado num julgamento (após a leitura do livro da vida de cada um) acerca do merecimento de cada um dos personagens diante da vida que tiveram na terra.

Assim, pode não ser tão contraditório quanto parece vermos „„Depois do apocalipse, Jesus‟‟, na medida em que a história no ar pode ser lida em relação à trama apocalíptica já que serve de escopo para avaliações sobre o bem e o mal em que as pessoas diante do apocalipse responderam. Enquanto ser omnisciente e agente diante da crise que se instaura, Jesus tem a métrica que informa estes polos do bem e do mal, e as pessoas nem sempre a tem. Nesse sentido, passagens reflexivas entre uma trama e outra podem ofertar um senso de coerência e coetaneidade de modo a informar as práticas dos espectadores e espectadoras.

Mas há um elemento que torna este processo de mediação entre palavras e imagens particularmente interessante no caso de Apocalipse. Em dados momentos, durante o curso da ação da história, existe o recurso de subscritar a cena da novela com a passagem bíblica a qual ela faz alusão, inclusive com a localização do texto pela numeração dos versículos. Um dado a reter ainda é qual a bíblia utilizada, especificamente, para produzir estas passagens. Contudo, este recurso narrativo começou em Apocalipse e se manteve em Jesus e Jezabel, o que também ecoa um corte em relação às produções anteriores. Ambas as produções têm supervisão de texto de Cristiane Cardoso, creditada na abertura das novelas, que é filha de Edir Macedo e missionária, o que também é índice de que esta produção pode estar se encaminhando a mudanças de forma e de apresentação do conteúdo junto à sua audiência.

A seguir, trago imagens das sequências finais de Apocalipse de modo a apontar como esta sobreposição texto/imagem se configura na novela e de como podemos perceber a conformação estética dos espaços „„religiosos‟‟ que ela traz.

Imagem 6 – O mundo após a ascensão do Anticristo em Apocalipse (Reprodução Record)

Imagem 7 – O retorno de Jesus para destronar o Anticristo

Imagem 8 – O inferno a que são lançados os personagens castigados

Imagem 9 – Após a leitura do livro da vida, os personagens merecedores integram a Cidade Santa após Jesus acabar com o Anticristo

Imagem 10 – Texto final de Apocalipse divulgado nas redes sociais oficinais da novela.

Os heróis de Apocalipse são „„fieis‟‟, que não negam Jesus nem Deus diante do poder crescente do Anticristo, que em sua ascensão na Terra tenta dominar o mundo inteiro. Os representantes do mal na novela são, após a queda final do Anticristo derrotado por Jesus, ateados ao mar de fogo, o inferno. Este é bem mais gráfico do que as representações do inferno de A Viagem. O mar é de fogo, não de lama. E este é um endereço final dos maus, impassíveis de redenção, seja pelo arrependimento, seja pelo doutrinamento. Os personagens condenados ao inferno são eles mesmos tornados fogo e ganham uma aparência amorfa e chifres, enquanto a sonoplastia pontua a dor e os gritos, além do fogo crepitando.

A cena em que Jesus derrota o Anticristo é bastante simples. A sua própria descida à Terra é suficiente para o combate: o Ancristo cai desfalecido ante à sua presença e é logo jogado num mar de fogo que se abre no local em questão. Um corte seco, após a leitura do livro da vida de cada personagem, mostra os bons na „„Cidade Santa‟‟, um local de ambientação „„etérea‟‟ e onde o branco predomina e os indivíduos utilizam uma faixa dourada na cabeça.

Há muitas „„deixas‟‟ para pensarmos a conformação em cena de novela das passagens bíblicas diante de cada uma destas situações. Por questões de espaço, fico com as quatro passagens que trouxe em imagens acima.

O versículo 30 do Capítulo 24 de Mateus, que aparece na tela no momento em que Jesus aparece nos céus para descer à terra e derrotar o anticristo, traz que: Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão o Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória16.

Após o julgamento dos presentes e no momento em que os personagens bons adentram a cidade santa com Jesus, os versículos 14 a 17 do livro 7 do Apocalipse são aludidos na cena:

14 E eu disse-lhe: Senhor, tu sabes. E ele disse-me: Estes são os que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro.

15 Por isso estão diante do trono de Deus, e o servem de dia e de noite no seu templo; e aquele que está assentado sobre o trono os cobrirá com a sua sombra.

16 Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede; nem sol nem calma alguma cairá sobre eles.

17 Porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, e lhes servirá de guia para as fontes vivas das águas; e Deus limpará de seus olhos toda a lágrima17.

O versículo (17, capítulo 20) que surge na tela complementando a cena em que os personagens ruins são jogados ao inferno é o que segue: „„E o diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde estão a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre‟‟.

Anteriormente, no momento em que o Anticristo Ricardo espraiava seu reinado de horror na terra, era o momento de os versículos de 2 a 8 do livro 17 do Apocalipse serem aludidos, que trazem que:

E clamou fortemente com grande voz, dizendo: Caiu, caiu a grande Babilônia, e se tornou morada de demônios, e coito de todo espírito imundo, e coito de toda ave imunda e odiável.

Porque todas as nações beberam do vinho da ira da sua fornicação, e os reis da terra fornicaram com ela; e os mercadores da terra se enriqueceram com a abundância de suas delícias.

E ouvi outra voz do céu, que dizia: Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas.

Porque já os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das iniqüidades dela.

Tornai-lhe a dar como ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber, dai-lhe a ela em dobro.

Quanto ela se glorificou, e em delícias esteve, foi-lhe outro tanto de tormento e pranto; porque diz em seu coração: Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei o pranto.

Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga18.

16 https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/24, consulta em janeiro de 2019. 17 https://www.bibliaonline.com.br/acf/ap/7 . 18 https://www.bibliaonline.com.br/acf/ap/18. É possível perceber que há escolhas na relação imagens-passagens bíblicas, no sentido de que, na cena acima, vários versículos são condensados em uma cena de menos de 50 segundos, sem que a ação utilize narração em voice-over ou diálogos entre personagens. Esse é um ponto importante: a bíblia não é lida por um narrador na novela sobre as cenas, mas é uma complementação e um amparo para ação narrada (no que parece apontar para uma forma de discurso autorizado para a própria novela). O que não se dá, logicamente, sem muitas traduções.

Os escolhidos chegando ao que na novela é a Cidade Santa o fazem numa cena de menos de 2minutos no ar, sem diálogos, o que reforça a importância da sonoplastia: são os sons que devem transmitir o sentido de paz final atingido pelos personagens por meio de uma leve mas importante música instrumental. Ao passo que o inferno é mais „„vocal‟‟, com gritos e urros, além da presença do som do fogo e do vento. O branco das vestes, importante no Nosso Lar espírita, também é fundamental para a ambientação da Cidade Santa, embora este tenha um branco também no próprio local: um branco „„de nuvem‟‟, de excesso de luz branca, que não gera contraste com a roupa dos personagens ali, mas parece fundir-se com eles, uma vez que eles chegaram ao destino final, junto com Jesus. Os personagens não sorriem, contrastando com os beijos apaixonados possíveis no Nosso Lar, mas transparecem sobriedade, tranquilidade, conforto.. paz enfim, após uma guerra travada na terra bastante bélica antes da chegada de Jesus para a salvação de todos.

Comparando estilos

Tratei nos itens anteriores basicamente de imagens e de sons produzindo ambiências. Em The Embodied Eye, David Morgan (2012) sugere a perspectiva de pensar a visão como algo corporificado, inserido em relações e em interação com outros sentidos. Atento aos „„modos de olhar‟‟, Morgan sugere considerar as próprias condições de possibilidade do visível, tendo em vista também como as imagens se tornam autorizadas e de que o ato de ver está sempre colocado numa dada configuração. Acredito que este conjunto de asserções se coloquem de maneira pertinente diante dos dois casos analisados, uma vez que a autoridade não é de forma alguma tirada de jogo pela entrada na „„indústria cultural‟‟ de narrativas que tragam a religiosidade em suas narrativas.

Se sem dúvidas pudemos ver nos casos a „„exuberante pictorialização do religioso‟‟, como formula Meyer (2015b), não se deve perder de vista que esta pictorialização não prescinde de elementos sonoros. Muito embora o oculacentrismo predominante na modernidade (Schmidt, 2000), a audição pode ser tomada como índice de relação com a religião. Neste quadro de referência, a noção de modernidade pode ajudar a perceber o modo multissensorial para pensar formas de devoção em práticas cristãs como nas expressões „„corpos sonantes‟‟ e „„escutas atentas‟‟. Schmidt afirma estar inspirado na cultura visual para tratar do dinamismo participatório do caso da escuta. Trata-se, assim, de pensar as „„paisagens acústicas‟‟ (Feld, 2005; Ingold, 2005) enquanto ordenadores de sentidos. Feld (2005) chega a sugerir, diante de sua etnografia sonora, que o som e a escuta são formas de produção de conhecimento possíveis. Parece-me bastante possível convergir estas orientações com a noção de Birgit Meyer de formas sensacionais, tendo em vista que estas podem ser definidas enquanto processos de mediações sensoriais, amparadas no conhecimento sensorial do mundo (enquanto formações estéticas, numa acepção estética voltada aos sentidos, à la Aristóteles, que também orienta a noção de partilha do sensível rancieriana).

Retomando esta ponte entre sentidos e materialidades, podemos encontrar nas formações sensacionais um bom aporte para o tema da formação das comunidades, já que, como afirma Meyer (2009), o forte interesse no corpo, nos sentidos, na experiência e na estética nas ciências sociais e culturais assinala hoje uma crescente consciência de que o surgimento e a manutenção das formações sociais dependem de estilos que formam e vinculam os sujeitos não apenas através da imaginação cognitiva, mas também através da moldagem dos sentidos e dos corpos em construção. Se Meyer se ocupa oportunamente sobre „„how do we capture the wow‟‟, as telenovelas estão se colocando o desafio de „„como nos mimetizamos o wow‟‟, no que colocam ao analista novos desafios. Um deles é justamente o da mimese, descortinando o que Taussig já anunciara na esteira das reflexões a respeito da obra de Walter Benjamin (Taussig, 1993): a cópia é sempre algo produzido, algo novo. Taussig reconhece a necessidade de reunir os polos da ação do contato e da semelhança, no que coloca a mimese diretamente em relação ao problema da alteridade.

Ponderar a mimese é tornar-se mais cedo ou mais tarde capturado em teias pegajosas de cópia e contato, imagem e envolvimento corporal daquele que percebe na imagem, uma complexidade que facilmente ignoramos como não-misteriosa. , com nosso uso fácil de termos como identificação, representação, expressão e assim por diante, termos que simultaneamente dependem e apagam tudo o que é poderoso e obscuro na rede de associações conjurada pela noção de mimética (1993, tradução livre, p. 21).

Se o cinema e a fotografia eram no tempo de Benjamin os mais novos agentes envolvidos numa educação cotidiana da faculdade mimética, Taussig nos chama a pensar sobre a publicidade e suas possibilidades de produzir mimese, correspondência e aura por meio de compreensões corpóreas. Trata-se de uma orientação importante para reflexões interessadas para as pontes de contato entre magia e técnica e que possibilita fugir de clivagens reificadoras da modernidade.

Lembremos as prescrições de Crang (1999), que defende uma abordagem que desreifica as noções de „aura‟ e „autenticidade‟, provocando-as desde dentro, ou seja, colocando em questão o que as práticas de visão e representação efetivamente produzem, colocando em suspensão a noção de „„aura‟‟ enquanto autenticidade, a fim de percebermos as disputas a respeito desta e de como ela é elaborada distintamente em contextos específicos. Meyer também se volta a este tema, mas em outras bases, em suas elaborações sobre a „„estética da persuasão‟‟, segundo a qual existe um forte trabalho nas tradições religiosas de, por meio das mídias, sancionar „„presenças‟‟ religiosas (Meyer, 2018: 26). Conforme a autora elabora, isto se coloca especialmente em casos em que as tradições religiosas intentam propagarem-se e agregarem novos indivíduos às suas formações. Isto se dá não só em contatos de missão, mas também na produção de filmes, cartazes e imagens de modo a salientar como a autenticação das imagens religiosas coloca em jogo simultaneamente questões de produção de vínculos e de percepções da experiência (nos sentidos e nas materialidades) e também de poder, de relações sujeitas à negação das mediações (Meyer, 2015).

Sou particularmente afeito à noção de mimese e à forma com que Taussig a elabora para pensar os riscos e os processos sociais envolvendo a produção ficcional a partir de textos religiosos. Perceber estas práticas no âmbito da produção de telenovelas possibilita enxergar na mimese um exercício de criação, a qual envolve múltiplos agentes (escritores, diretores, elenco, público) durante um processo de produção e recepção de imagens que não se esgota na apercepção pelos agentes em uma dicotomia religioso/secular. Mas que, ao contrário, pode aproximar estes polos em meio à exibição, num dos maiores mercados de televisão do mundo que é o brasileiro, durante o „„horário nobre‟‟ das maiores emissoras de televisão, em rede pública, telefolhetins ancorados em textos de tradições religiosas, em dadas configurações e acomodações.

Referências

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