2 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

IMAGEM DA CAPA: Unicesumar – Centro Universitário Cesumar de Maringá

Alessandro Severino Valler Zenni Cleber Sanfelici Otero (Organizadores)

AUTORES: Afonso Carvalho de Oliva / Alessandro Severino Valler Zenni / Aline Gabriela Pescaroli Casado / Andressa de Paula Andrade / Andryelle Vanessa Camilo Pomin / Caio Henrique Lopes Ramiro / Camila Franco da Rocha / Célio César Fernandes / Claudia Patricia Perissato Kubota / Cláudio Manoel Rocha Pereira / Cleber Sanfelici Otero / Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão / Crislaine Maria Rigo de Oliveira / Diogo Valério Félix / Elen Carla Mazzo Trindade / Fernando Navarro Vince / Flávia Moreira Guimarães Pessoa / Francielle Lopes Rocha / Gisele Mendes de Carvalho / Gláucia Cristina Ferreira / Heitor Filipe Men Martins / Italo Moreira Reis / Ivan Aparecido Ruiz / Ivan Dias da Motta / Jaqueline da Silva Paulichi / Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli / Késia Rocha Narciso / Leda Maria Messias da Silva / Lucas Yuzo Abe Tanaka / Luís Henrique Pereira Silveira / Marília Rodrigues Mazzola / Matheus Ribeiro de Oliveira Wolowski / Natália Santin Mazaro / Paulo Ricardo Vijande Pedrozo / Pedro Henrique Sanches Aguera / Pedro Paulo Ferreira da Cunha / Priscylla Gomes de Lima / Rafaela Dias Damião / Ricardo da Silveira e Silva / Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira / Roseli Borin / Tatiana Manna Bellasalma e Silva / Thais Janaína Wenczenovicz / Zulmar Fachin

OS LIMITES DA TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Maringá – PR – 2015 4 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Copyright 2015 by Alessandro Severino Valler Zenni; Cleber Sanfelici Otero EDITORA: Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL: Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. Lorella Congiunti – PUU - Roma Dra. Daniela Menengoti Ribeiro - UNICESUMAR REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof.ª Malu Romancini CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Bruno Macedo da Silva Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Os limites da tutela dos direitos da personalidade L734 na contemporaneidade. / organizadores Alessandro Severino Valler Zenni, Cleber Sanfelici Otero; autores, Afonso Carvalho de Oliva ... [et al]. – 1 . ed. e-book – Maringá, PR: Vivens, 2015. 416 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

ISBN: 978-85-8401-056-1

1. Direito. 2. Direitos da personalidade. I. Título.

CDD 22. ed. 346.012

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610 Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...... 08

I = A CONCEPÇÃO MODERNA DE DEMOCRACIA E O RESPEITO AOS DIREITOS DOS GRUPOS SOCIAIS MINORITÁRIOS Zulmar Fachin Fernando Navarro Vince...... 11

II = A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM CONFLITO COM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO QUE TANGE ÀS MINORIAS SEXUAIS Francielle Lopes Rocha Natália Santin Mazaro...... 25

III = A EXPANSÃO DA TUTELA PENAL DOS DIREITOS AUTORAIS Luiz Henrique Pereira Silveira...... 47

IV = A IMAGEM DO ATLETA E O DIREITO DE ARENA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO Cleber Sanfelici Otero Elen Carla Mazzo Trindade...... 73

V = A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O PODER PUNITIVO DO ESTADO: UMA FORMA DE PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO PENAL? Gisele Mendes de Carvalho Aline Gabriela Pescaroli Casado...... 95

VI = A PRÁTICA ABUSIVA DAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES PELA VENDA CASADA NA CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE INTERNET VINCULADO AO DE TELEFONIA FIXA Andryelle Vanessa Camilo Pomin Crislaine Maria Rigo de Oliveira...... 109

VII = A PRIVACIDADE, A PUBLICIDADE E A PROPORCIONALIDADE EM FACE DA DEFESA DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE Heitor Filipe Men Martins Ivan Aparecido Ruiz…………………………………………………………………..125

6 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

VIII = APÁTRIDAS NA CONTEMPORANEIDADE E O EFEITO BORBOLETA Késia Rocha Narciso Roseli Borin...... 139

IX = AS NOVAS TECNOLOGIAS E AS AFRONTAS AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE: SERÁ O FIM DA PRIVACIDADE E DA DIGNIDADE HUMANA? Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão Ricardo da Silveira e Silva Tatiana Manna Bellasalma e Silva...... 163

X = CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE – O CASO DO ABORTO X DIREITO À LIBERDADE Camila Franco da Rocha Claudia Patricia Perissato Kubota Jaqueline da Silva Paulichi...... 185

XI = DIREITOS AUTORAIS: IMPACTOS DA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO E DOS HÁBITOS DE COMPARTILHAMENTO NA CIRCULAÇÃO DE BENS INTELECTUAIS Priscylla Gomes de Lima Marília Rodrigues Mazzola Cláudio Manoel Rocha Pereira...... 201

XII = DO ABANDONO AFETIVO AO IDOSO COMO VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Lucas Yuzo Abe Tanaka Pedro Henrique Sanches Aguera...... 219

XIII = EDUCAÇÃO INCLUSIVA E SUA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Célio César Fernandes Gláucia Cristina Ferreira...... 233

XIV = IDENTIDADE E E(I)MIGRANTES SOB A PERSPECTIVA DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE NO BRASIL Thais Janaína Wenczenovicz Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira...... 249

Apresentação 7

XV = O ASSÉDIO MORAL POR EXCESSO DE TRABALHO E SEU IMPACTO SÓCIO-JURÍDICO Matheus Ribeiro de Oliveira Wolowski Leda Maria Messias da Silva...... 267

XVI = O DIREITO AO USO DO PATRONÍMICO CONJUGAL APÓS O DIVÓRCIO COMO COROLÁRIO DO DIREITO DA PERSONALIDADE Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli Rafaela Dias Damião...... 287

XVII = O HOMEM DA MÁSCARA JURÍDICA (PERSONA) E O ESPECTRO DO CAMPO: SUJEITO DE DIREITO E PERSONALIDADE NO LIMIAR DA EXCEÇÃO Caio Henrique Lopes Ramiro Diogo Valério Félix……………………………………………………………………311

XVIII = O PODER LEGISLATIVO COMO REALIZADOR E LIMITADOR DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA: O PROJETO DE LEI DA CÂMARA N. 30/2015, EM TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDERAL, E A TERCEIRIZAÇÃO GENERALIZADA Paulo Ricardo Vijande Pedrozo...... 341

XIX = O REALISMO JURÍDICO EM PROL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A VIA EXCLUSIVA DA SOCIEDADE JUSTA, FRATERNA E SOLIDÁRIA Alessandro Severino Valler Zenni Ivan Dias da Motta...... 365

XX = OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA INFORMAÇÃO FRENTE AO CADASTRO POSITIVO DE CRÉDITO: UMA BREVE ANÁLISE DO RESP 1.419.697 – RS Afonso Carvalho de Oliva Flávia Moreira Guimarães Pessoa...... 388

XXI = QUESTÕES RELEVANTES EM TORNO DA BIOÉTICA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS ACERCA DO “DIREITO DE MORRER” Andressa Paula de Andrade Ítalo Moreira Reis Pedro Paulo da Cunha Ferreira...... 397

APRESENTAÇÃO

Com imensa satisfação, temos a honra de apresentar ao público a obra OS LIMITES DA TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE, fruto da reunião dos melhores artigos aprovados para apresentação em Grupo de Trabalho (GT2) no II Congresso Internacional de Direitos da Personalidade, realizado na cidade de Maringá entre os dias 7 e 9 de outubro de 2015. Tal qual no ano de 2014, mais uma vez, a nova edição do Congresso possibilitou a troca de conhecimentos científicos entre pessoas de diversas instituições de ensino superior do Brasil, principalmente integrantes de Programas de Mestrado e Doutorado na área do Direito, especialmente em decorrência dos artigos apresentados nos Grupos de Trabalho. A ementa para a apresentação no GT2 punha em relevo a "linha de estudos teóricos concernentes aos novos desafios da tutela do indivíduo e da pessoa pertencente a minorias e grupos vulneráveis e as novas configurações familiares, bem como análises dos reflexos destes nas organizações sociais, nas entidades públicas e privadas e nas relações de trabalho, no biodireito e nas novas tecnologias que impactam sobre a concepção acerca da personalidade". Como decorrência, os artigos apresentados refletem essa temática. Sob a norma que assegura a dignidade humana, tem-se a orientação do sistema jurídico como um todo, o que pode ser visto em O realismo jurídico em prol da dignidade da pessoa humana: a via exclusiva da sociedade justa, fraterna e solidária, de Alessandro Severino Valler Zenni e Ivan Dias da Motta. Somos brindados com a abordagem acerca dA concepção moderna de democracia e o respeito aos direitos dos grupos sociais minoritários, dos autores Fernando Navarro Vince e Zulmar Fachin. Na mesma linha, os debates em torno dA dignidade da pessoa humana em conflito com a liberdade de expressão no que tange às minorias sexuais, das autoras Francielle Lopes Rocha e Natália Santin Mazaro, texto que nos leva a refletir acerca da liberdade em face do preconceito ainda reinante na sociedade. Também com proximidade quanto à proteção de minorias no âmbito da família, Do abandono afetivo ao idoso como violação à dignidade da pessoa humana, de Pedro Henrique Sanches Aguera e de Lucas Yuzo Abe Tanaka. Um pouco além, mas ainda envolvendo minorias, tem-se a questão das pessoas excluídas do ambiente social por falta do vínculo da nacionalidade ou da efetivação dos direitos de cidadania, apresentada em Apátridas na contemporaneidade e o efeito borboleta, de Késia Rocha Narciso e Roseli Borin, bem como em Identidade e e(i)migrantes sob a perspectiva da legislação migratória e direitos da personalidade no Brasil, de Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira e de Thais Janaína Wenczenovicz. Por sua vez, relacionada ao direito à identidade, o artigo Direito ao uso do patronímico Apresentação 9 conjugal após o divórcio como corolário do direito da personalidade, de Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli e Rafaela Dias Damião. A seguir, tem-se a relevante análise dA constitucionalidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, de Camila Cristina de Oliveira Dumas e Alberdran Alves Costa Júnior, tema que rende grandes discussões na atualidade em face da defesa do direito à morte digna, conforme se vê em Questões relevantes em torno da bioética: considerações críticas acerca do “direito de morrer”, de Andressa de Paula Andrade, Italo Moreira Reis e Pedro Paulo Ferreira da Cunha. A acuidade com que se analisam os direitos autorais pode ser vista em Expansão da tutela penal dos direitos autorais, de Luís Henrique Pereira Silveira, bem como em Direitos autorais: impactos da sociedade de informação e dos hábitos de compartilhamento na circulação de bens intelectuais, de Cláudio Manoel Rocha Pereira, Priscylla Gomes de Lima, Marília Rodrigues Mazzola. Também colaboramos com a apresentação de artigo de nossa lavra, A imagem do atleta e o direito de arena no sistema jurídico brasileiro, escrito por Cleber Sanfelici Otero e Elen Carla Mazzo Trindade. A justiça restaurativa e o poder punitivo o estado: uma forma de privatização do Direito Penal?, de Aline Gabriela Pescaroli Casado e de Gisele Mendes de Carvalho, relaciona de forma relevante os direitos da personalidade com o Direito Penal. A relação entre os direitos da personalidade com o Direito do Consumidor resta analisada em A prática abusiva das empresas de telecomunicações pela venda casada na contratação do serviço de internet vinculado ao de telefonia fixa, de Andryelle Vanessa Camilo Pomin e Crislaine Maria Rigo de Oliveira, bem como em Os princípios da prevenção e da informação frente ao cadastro positivo de crédito: uma breve análise do REsp 1.419.697 RS, de Afonso Carvalho de Oliva e Flávia Moreira Guimarães Pessoa. Acerca da relação entre direitos da personalidade na seara trabalhista, encontra-se Assédio moral por excesso de trabalho e seu impacto sócio- jurídico, de Leda Maria Messias da Silva e Matheus Ribeiro de Oliveira Wolowski, assim como Poder Legislativo como realizador e limitador da flexibilização trabalhista: o projeto de lei da Câmara n. 30/2015, em tramitação no Senado Federal, e a terceirização generalizada, de Paulo Ricardo Vijande Pedrozo. A questão social também aparece em Educação inclusiva e sua fundamentação teórica, de Célio César Fernandes e de Gláucia Cristina Ferreira, bem como em Homem da máscara jurídica (persona) e o espectro do campo: sujeito de direito e personalidade no limiar da exceção, de Caio Henrique Lopes Ramiro e de Diogo Valério Félix. A colisão entre bens jurídicos fundamentais resta abordada em A privacidade, a publicidade e a proporcionalidade em face da defesa dos direitos de personalidade, de Heitor Filipe Men Martins e Ivan Aparecido Ruiz, em As novas tecnologias e as afrontas aos direitos da personalidade: será o 10 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade fim da privacidade e da dignidade humana?, de Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão, Tatiana Manna Bellasalma e Silva e Ricardo da Silveira e Silva, também em Conflito de direitos fundamentais e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade – o caso do aborto x direito à liberdade, de Camila Franco da Rocha, Claudia Patricia Perissato Kubota e Jaqueline da Silva Paulichi. Nós não poderíamos terminar sem agradecer a participação de todas essas pessoas, pois muito se dedicaram para escrever e apresentar presencialmente os trabalhos, de forma a tornar possível, com os seus respectivos saberes, a concretização deste livro que reúne relevantes discussões jurídicas em torno dos direitos da personalidade, bem como da presença e relação deles em e com outras matérias.

Maringá, dezembro de 2015.

Prof. Dr. Cleber Sanfelici Otero

Prof. Dr. Alessandro Severino Valler Zenni

= I =

A CONCEPÇÃO MODERNA DE DEMOCRACIA E O RESPEITO AOS DIREITOS DOS GRUPOS SOCIAIS MINORITÁRIOS

Zulmar Fachin* Fernando Navarro Vince**

1.1 INTRODUÇÃO

O conceito de democracia mudou, expandiu. Hoje não significa somente governo da maioria, engloba dentro dele a preocupação com os interesses dos grupos sociais minoritários, que mesmo não integrando a parcela maior da sociedade, conservam seus direitos fundamentais intactos. A restrição aos preceitos constitucionais da minoria, somente pode ocorrer de forma legítima, se o aplicador do direito interpretar os fatos envolvidos, sopesar e escolher a opção mais razoável, justificando sua decisão com argumentos de fato e de direito que demonstrem e convençam sobre a racionalidade da sentença. O respeito às minorias está disposto na Constituição Federal como fundamento e objetivo do nosso Estado Democrático de Direito, e é por meio dele que se concretizam os direitos fundamentais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Ocorre que, de nada adianta prever e não efetivar. Este é o grande desafio. Dar concretude aos direitos dos grupos minoritários por meio, primordialmente, de atuação jurisdicional proativa, mas isenta de subjetividade e discricionariedade. A ponderação é o caminho. Apesar do impasse sobre os benefícios e prejuízos advindos da sua utilização, verifica-se que, o uso deste mecanismo traz mais vantagens à justiça da decisão. Os que criticam, alegam confusão entre juízos axiológicos e deontológicos, insegurança e decisionismo judicial. Já os que defendem, reconhecem as falhas e perigos do método, contudo, sustentam que ainda não existe alternativa melhor para resolver o impasse. Assim, busca-se com o presente estudo, enfrentar a questão dos direitos das minorias e a sua proteção dentro dos princípios democráticos, bem como analisar de que maneira o fenômeno da colisão de direitos fundamentais, estabelecido com o embate envolvendo os interesses

* Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. (UEL). Professor de Direito Constitucional na Universidade Estadual de Londrina, no Curso de Mestrado do UNICESUMAR e na Escola da Magistratura do Paraná (Londrina e Maringá). Endereço eletrônico: [email protected] ** Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR e Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina. Professor do Curso de Direito da Faculdade Cristo Rei de Cornélio Procópio - PR. Endereço eletrônico: [email protected] 12 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade majoritários e os valores minoritários, deve ser equacionado. Também será alvo de investigação, temas correlatos como: liberdade e igualdade como ideais da democracia moderna; a fundamentalidade dos direitos da minoria; a natureza principiológica, a relatividade e ausência de hierarquia axiológica dos direitos fundamentais; subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; discricionariedade da autoridade; argumentação jurídica e a importância da fundamentação jurídica das decisões. A metodologia utilizada foi a de análise bibliográfica realizada por meio de levantamento doutrinário, com o escopo de estabelecer uma discussão célere e objetiva sobre os direitos dos grupos sociais minoritários dentro de um espaço democrático. Sem a intenção de trazer uma resposta definitiva, o trabalho ora proposto, poderá contribuir com a evolução do debate através da apresentação do panorama atual, a indicação das dificuldades enfrentadas e a sugestão da forma mais adequada de resolução da questão envolvendo a colisão de direitos fundamentais: maioria versus minoria. No âmbito deste artigo, antes de adentrar efetivamente ao núcleo da questão principal, serão escritas inicialmente algumas linhas sobre o papel da democracia contemporânea, com o intuito de ofertar ao leitor uma visão panorâmica sobre o tema, mais precisamente identificar a evolução conceitual da referida forma de governo. Em seguida, na segunda parte do ensaio, será examinado o direito fundamental de ser minoria e a importância da participação dos hipossuficientes no processo democrático. Num terceiro momento, abordar-se-á a colisão de direitos fundamentais perpetrada entre a tensão envolvendo interesses majoritários e valores minoritários, com o objetivo de demonstrar que a limitação ao preceito constitucional não poderá ser automática e realizada de plano, pois, dependerá da análise do caso em concreto. Na quarta parte, será apresentada a ponderação como o melhor meio para solucionar o problema da disputa de direitos humanos essenciais (direitos da maioria x direitos da minoria). E, por derradeiro, na última etapa do ensaio, será analisada a importância da argumentação jurídica para legitimar a escolha do aplicador do direito.

1.2 DEMOCRACIA: GOVERNO DA MAIORIA, DIREITOS DA MINORIA

Segundo lição de Bonavides (2004, p.480), a democracia traduz forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões do governo, de tal sorte que o cidadão seja sempre o titular e o objeto de todo poder legítimo. As primeiras noções de democracia foram traçadas na Grécia Antiga e designava basicamente, forma de governo em que os cidadãos detinham a titularidade do poder político. Vale dizer, a administração da coisa pública era de responsabilidade do povo e estava sob o seu controle. Dentre os aspectos mais relevantes da referida forma de governo, tinham destaque os requisitos necessários para pertencer ao espaço da pólis: A concepção moderna de democracia... // 13 liberdade e a igualdade. O homem somente poderia exercer sua função política em liberdade e só podia ser livre entre seus pares. (VILANI, 2010, p. 37). Conforme nos ensina Kymlycka (1995, p. 108), o mais básico compromisso da Democracia Liberal é a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos. Isso se reflete na carta de direitos constitucionais, que garante direitos civis e políticos básicos a todos os indivíduos, independentemente dos grupos aos quais fazem parte. Concebidos na antiguidade, esses ideais, resistiram à evolução da sociedade e ainda hoje são considerados os princípios cardeais da democracia moderna. A esses valores acrescentou-se outros que completam o aspecto moderno do referido sistema político, são eles: o governo representativo, Estado de Direito e direitos fundamentais. Assim, denota-se que, apesar da manutenção das ideias principais, a história e os carecimentos da sociedade alteraram o escopo original da democracia e fizeram com que ela não se limitasse ao conceito outrora difundido de governo da maioria, ou governo do povo, para o povo e pelo povo (FACHIN, 2013, p. 202). Agora, o referido sistema político abrange o espaço em que se comportam as diversas visões existentes em uma comunidade política, ainda que uma delas prevaleça. Um espaço que permite a diversidade e tem como pressuposto a igualdade de condições para participar da construção desse lugar político múltiplo (MOREIRA MARTINS; MITUZANI, 2011, p. 319). O governo da maioria, não pode, em hipótese alguma, se transformar em um caminho para opressão. Dentre os direitos do grupo político vencedor, não está o de sufocar os vencidos, vez que, a derrota na eleição não significa a supressão dos direitos fundamentais. Estes permanecem incólumes e nenhum poder legitimamente estabelecido poderá ceifá-los, sob pena de se inverter os valores democráticos. Não se concebe antagonismo palpável entre os direitos da maioria e os direitos da minoria, pois, na verdade eles se completam, na medida em que correspondem as bases de sustentação de um governo que se quer democrático. O respeito aos direitos dos mais frágeis, bem como a possibilidade de participação no debate político, além de sustentar a democracia, a oxigena, e permite que outras luzes irriguem e fomentem o nascimento de um pensamento pluralista e de acordo com o caráter multidisciplinar da sociedade atual. Logo, a minoria tem o direito e a obrigação de participar da discussão que leva a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, sendo o respeito às diferenças envolvidas, aspectos relevantes que precisam ser preservados ao lado das escolhas majoritárias. Por essa linha de raciocínio, Kelsen (2000, p.70) dispõe que, a minoria deve ter instrumentos capazes de influir na vontade majoritário, porque para existir democracia há de ter contraposição de ideias. Se assim não fosse, desnaturar-se-ia a configuração da maioria. Em arremate, o autor austríaco propõe que respeitar os direitos dos hipossuficientes é oportunizar 14 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade ampla discussão política, pois a pluralidade de opiniões deve formar democraticamente a vontade do Estado. A propósito, oportunas são as palavras de Ferrajoli:

Uma Constituição não serve para representar a vontade comum de um povo, mas para garantir os direitos de todos; inclusive diante da vontade popular. Sua função não é expressar a existência de um demos, ou seja, de uma homogeneidade cultural, identidade coletiva ou coesão social, mas, ao contrário, a de garantir através ordinárias, e as opções de governo, não reside no consenso da maioria, mas em um valor muito mais importante e prévio: a igualdade de todos nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais, ou seja, em direitos vitais conferidos a todos, como limites e vínculos, precisamente, face às leis e aos atos de governo expressados nas contingentes maiorias (2005, p. 28).

Ainda sobre o assunto, esclarece Fachin (2013, p.202) que, o princípio democrático comporta estudos sob vários prismas, porém, não pode deixar, em momento algum, de ser compreendido e encarado como um dos mais importantes princípios informadores do Estado e da Sociedade. Diante do exposto, observa-se que o conceito original de democracia, compreendido como governo do povo ou governo da maioria, é insuficiente para definir o seu real sentido e importância. O verdadeiro princípio democrático deve, além de respeitar a liberdade e igualdade, assegurar a defesa dos direitos individuais da minoria, inclusive possibilitando que os vencidos na disputa partidária se manifestem, participem, opinem e tenham a chance de interferir no processo político de escolhas.

1.3 O DIREITO FUNDAMENTAL DE SER MINORIA

Conforme se viu no capítulo anterior, a nova visão democrática exige respeito aos interesses dos mais fracos. Não é só governo da maioria, pressupõe respeito aos direitos fundamentais e às regras do jogo político, que devem permitir ao grupo social minoritário de hoje que se torne a maioria de amanhã. O direito de não pertencer a maioria, ter os seus interesses respeitados e participar ativamente do processo democrático, é considerado fundamental e decorre dos conceitos de Estado, nacionalidade e soberania. Neste norte, pode-se conceber minoria como grupos sociais dos quais é retirada, em virtude de discriminação, a possibilidade para tomar decisões que alterem os rumos da sociedade, tendo dificuldades em ocupar espaços de poder, embora possam representar a maioria populacional (NÓBREGA; JOCA, 2009, p. 681). Não se trata de sentido quantitativo, pois, existe a chance do grupo ser maior em número, mas mesmo assim permanecer hipossuficiente. A Ministra Carmen Lúcia (1996, p. 285) elucida com maestria essa questão:

Não se toma minoria no sentido quantitativo, senão no de qualificação jurídica de grupos contemplados ou aceitos com um cabedal menor de direitos, efetivamente assegurados, que outros, que detém o poder (...) a A concepção moderna de democracia... // 15

minoria, na prática de direitos, nem sempre significa o menor número de pessoas. Antes, nesse caso, uma minoria pode bem compreender um contingente que supera em número (mas não na prática, no respeito etc) o que é tido por maioria.

Outro argumento que ampara a proteção dos direitos minoritários é a necessidade de efetivação dos valores democráticos previstos na Lei Maior, notadamente o direito fundamental da igualdade. Uma sociedade plural, apenas pode ser igual se forem respeitadas as diferenças. E, como igualar os desiguais? Tratando-os desigualmente na medida de suas desigualdades (ARISTÓTELES, 2006, p. 131). O sentido formal da igualação (igualdade perante a lei) abre espaço para a igualação material (igualdade na lei), que aclama a distribuição de oportunidades conforme as reais necessidades. Com efeito, observa-se que o princípio da igualdade, no seu aspecto material, determina um tratamento jurídico de distinção onde houver razão suficiente para diferenciar. Não se trata de princípio neutro, mas de conteúdo definido pela história e pela ideologia, e, pelas peculiaridades fáticas, cabendo ao Direito o desenvolvimento de técnicas para a destruição das discriminações (ROTHENBURG, 2009, p. 77). Como informado alhures, a garantia dos direitos das minorias faz parte dos ideais democráticos e está prevista em nossa Carta Política, mormente quando institui o Estado Democrático de Direito, que promete assegurar dentre outros direitos, a cidadania, liberdade, igualdade, e dignidade do homem. O direito de pertencer ao grupo menor e ser diferente é assegurado e gera inconstitucionalidade de toda ação discriminatória, independente do motivo que se apresente e da forma como se opera (raça, sexo, religião, origem, cor). O ordenamento jurídico, com lastro na dignidade da pessoa humana, epicentro axiológico conformador, confere e garante ao cidadão a oportunidade de ser diferente e não ser preterido por esse motivo. Observa-se, assim, que a não discriminação e o respeito à minoria faz parte da base axiológica da Constituição e se apresenta sobretudo como fundamento e objetivo do Estado brasileiro (Arts.1º, II e III; 3º, IV, 5º caput; 215; 216). Sendo a proteção do grupo menor, função essencial dos chamados direitos fundamentais e liberdades fundamentais, devendo, por isso, ser garantida pelas modernas constituições. A qualidade de direito fundamental, confere aos direitos da minoria, o poder de serem compreendidos, interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentatórios ao jeito das grandes declarações de direitos (CANOTILHO, 1999, p. 448). Nesse molde, observa-se que, as referidas normas constitucionais apresentam um lado jurídico-individual, enquanto garantem aos seus titulares um direito subjetivo público, e um lado institucional objetivo, enquanto garantias constitucionais de âmbitos de vida de liberdade juridicamente ordenados e conformados. Destarte, estes direitos subjetivos adquirem vinculação e correspondência em toda ordem jurídica, constituindo a lente para a releitura de todos os demais ramos do direito e o objeto de concretização pelos seus mais diversos intérpretes. 16 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Outra característica que advém da fundamentalidade e estigmatiza os direitos da minoria, é e a sua natureza jurídica de princípios, ou seja, para o direito, eles são considerados princípios. Por conta disto, apresentam estrutura aberta, na qual são necessárias a delimitação e a operacionalidade de seus conteúdos normativos na ordem jurídica, não sendo rara, contudo, a superposição de valores. Aqui reside outro problema. Considerando que se está diante de um típico caso colisão de direitos fundamentais, o que fazer para solucionar este impasse? É que se verá adiante.

1.4 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: MAIORIA VERSUS MINORIA

De acordo com o que foi mencionado acima, tanto os direitos da maioria quanto da minoria são considerados direitos fundamentais e por possuir um forte conteúdo axiológico, destacam-se na escala normativa. Por conseguinte, na maioria das vezes detém natureza jurídica de princípios, assim eleitos como bases, pilares, vigas-mestra, do ordenamento jurídico, sem que a essa opção sejam inseridos elementos que permitam melhor compreendê-los. Concretizar os direitos e as garantias fundamentais exige, então, uma atividade metodológica de interpretação e, posteriormente, de conciliação, de concordância ou de coordenação, enfim, uma atividade de otimização constitucional. Durante o positivismo, os princípios não tinham tamanha relevância, sequer eram considerados normas, mas valores éticos a serem seguidos pela sociedade. A aplicação era subsidiária, sendo utilizados como instrumento para dirimir um conflito no caso de ausência de lei. Esse quadro mudou e atualmente, conforme posição de Bonavides (2009), não será possível compreender o atual estágio de desenvolvimento do direito constitucional, sem se compreender os princípios. Eles superaram a crença puramente axiológica para adquirir força normativa imediata. Outra função moderna dos direitos do homem é servir como fonte de atualização das constituições. Por outras palavras, vislumbra-se que o seu caráter indeterminado possibilita a oxigenação das constituições através de interpretações atuais e de acordo com seu tempo. Ademais, oportuno realçar neste instante, a relatividade dos referidos comandos constitucionais, vez que, os mesmos não se revestem de caráter absoluto, não são ilimitados e encontram suas medidas nos demais direitos igualmente consagrados na Carta Magna. Ou seja, dependendo das circunstancias concretas e dos bens jurídicos em colisão, podem ter que ceder. Todos são, por sua própria natureza relativos (CAMBI, 2011, p. 453). Neste sentido, oportunos são os ensinamentos de Novais (2003, p. 234), para quem os direitos fundamentais são dotados de imanente reserva legal de ponderação e podem ser relativizados, abrandados, suavizados A concepção moderna de democracia... // 17 quando em confronto com outro direito fundamental que no caso concreto, na situação específica de momento, tenha maior relevância. Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal reflete inúmeras ideologias diferentes e por diversas vezes, os preceitos constitucionais acabam chocando-se entre si, independente da solução a ser adotada nesses conflitos sempre, existirá a restrição, por vezes total ou parcial, de um ou dois valores. Não se admite aniquilação nem extermínio de direito, mas sim uma limitação que, na hipótese vertente posterga a eficácia do preceito constitucional derrotado. Portanto, não existem princípios superiores e não existe ordem de precedência. Todos são passíveis de restrições recíprocas a depender da análise da demanda, quando caberá ao intérprete avaliar e decidir qual deles deve prevalecer. Esse caráter de relatividade permite que haja a ponderação entre eles e, em hipóteses de colisão, decida-se pela aplicação do direito da maioria ou da minoria, de acordo, com o principio mais justo e adequado na hipótese vertente.

1.5 PONDERAÇÃO COMO MÉTODO PARA EQUACIONAR CONFLITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Existem situações em que as técnicas de interpretação tradicionais são insuficientes para solucionar conflitos envolvendo direitos fundamentais, pois, frente à uma ausência de hierarquia, não há como resolver abstratamente antinomia de valores. No trabalho de sopesamento, importante que se registre, não se está diante de valores aritméticos, motivo pelo qual, a equação do problema não se resolve por métodos matemáticos. Sobre o tema, Ana Paula Barcellos (2006, p. 23) leciona que a ponderação pode ser traduzida como uma técnica de decisão jurídica, própria para casos difíceis, que envolve colisão de valores ou opções políticas, as quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado. A solução deve vir à luz do caso concreto, através do balanceamento, que se operacionaliza pelo princípio da proporcionalidade, que tem por essência e destinação a preservação, na maior medida possível dos direitos fundamentais (GUERRA FILHO, 2006, p. 103). A doutrina socorre-se, então, do método de ponderação de bens ou interesses, onde o operador do direito examinará a hipótese apresentada e identificando os princípios em atrito, escolherá qual terá mais peso e deverá obter vantagem no caso. Aqui encontra-se o nó górdio da ponderação: invariavelmente uma norma constitucional será descumprida. O julgador deverá decidir, naquele caso, qual norma vale menos e a restrição somente poderá ser admitida se for proporcional. A propósito da necessidade de interpretação e ponderação, Tércio Sampaio afirma que:

Ora, a ideia subjacente a esse procedimento interpretativo de legitimação, isto é, a ideia de que constituições instauram uma pretensão de se verem 18 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

atendidas, expectativas de realização e concreção, só seria bem atendidas juridicamente, na medida em que se introduzisse, na hermenêutica constitucional, uma consideração transformadora, de ordem axiológica, da própria realidade. Ou seja, pressupondo-se que uma Constituição apresenta, no seu corpo normativo, uma sistema de valores, a aplicação das suas normas, por via interpretativa, torna-se uma realização de valores e não apenas uma consideração valorativa, capaz de orientar a determinação do sentido dos dispositivos. Com isso o procedimento hermenêutico de captação dos sentidos do conteúdo nas normas torna-se exigência de realização valorativa conforme procedimentos próprios da análise e da ponderação de valores (SAMPAIO, 2007, p. 06).

Dessa forma, o principio da proporcionalidade, conhecido por limite dos limites, atua como ferramenta indispensável para aferir a legitimidade e a adequação das normas com os ditames da justiça e da razão. Todavia, o exercício do referido método interpretativo não pode ser realizado de forma aleatória, com base em critérios subjetivos. O referido postulado possui dimensões que condicionam a sua aplicação, e eliminam o perigo da subjetividade. Essas dimensões são concretizadas através da observação dos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Por adequação entende-se que devem ser utilizadas medidas apropriadas para alcançar a finalidade prevista no mandamento. O meio escolhido foi o pertinente para atingir o resultado almejado? Se não, desrespeitou-se o principio da proporcionalidade, então a medida não poderá obter guarida do poder judiciário. Já em relação à necessidade, exige-se que a decisão escolhida seja a que produz menor prejuízo para o cidadão e para a coletividade. Não podendo ser excessiva, nem tampouco insuficiente. Nem de mais nem de menos. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, que corresponde a ponderação. Técnica que determina avaliação, sopesamento, vez que cobra uma análise das vantagens e desvantagens que a medida trará. Prós e contras. O benefício alcançado com a adoção da medida sacrificou direitos fundamentais mais importantes do que os que a medida buscou preservar? Verifica-se, assim, que a nova interpretação constitucional escora-se num modelo de princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à interação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentadas, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa para o caso concreto.

1.6 A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO FORMA DE RACIONALIZAR A ESCOLHA DO APLICADOR DO DIREITO

Nos termos acima, a colisão entre os direitos da maioria e os direitos da minoria, por se tratar de choque de princípios, deve ter sua resposta obtida através da ponderação de interesses. É preciso harmonizar pretensões A concepção moderna de democracia... // 19 revestidas de um diferente grau de centralidade relativamente aos valores essenciais do ser humano (MACHADO, 1996, p. 290). Será necessário atender o âmbito de graduação dos preceitos constitucionais em tensão, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na relação e à natureza do caso, para apreciar os aspectos relevantes da situação concreta em que se tem que tomar a decisão. A vitória de um interesse não poderá acarretar no sacrifício integral e permanente do outro, devendo ser respeitada, acima de tudo, a essência valorativa do princípio subjugado. Com efeito, nota-se que a utilização da técnica da ponderação dos princípios pode acarretar o risco de se servir a subjetivismos exacerbado, caso seus limites não sejam observados. O balanceamento não traduz uma forma de decisionismo judicial, vez que sua incidência fundamenta-se no princípio da proporcionalidade, que, se aplicado corretamente, observando as dimensões da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, demonstra certa objetividade. Certa objetividade, porque a objetividade total é utópica e intangível, pois, ainda que se pretenda muito, inexiste fórmula exata que consiga impingir ao balanceamento caráter exato ou absoluto. É imprescindível dizer que existe um espaço de atuação volitiva ofertado ao julgador, vez que toda a interpretação funda-se necessariamente numa posição prévia, razão pela qual, esta tarefa nunca é uma apreensão isenta de pressuposições de um dado preliminar. Contudo, a opção, para ser legítima, deve conter fundamentação, informação dos motivos de fato e de direito que levaram o intérprete a preterir um valor. Os argumentos favoráveis e contrários devem aparecer e embasar o trabalho hermenêutico. Porém, esse espaço de atuação não implica, necessariamente em decisionismo judicial, subjetivismo ou arbitrariedade, vez que não há, reafirma-se propositalmente, processo de interpretação e otimização constitucional, sem atuação discricionária (ALEXY, 2008, p. 584). A opção do julgador somente é permitida se necessária a compatibilização da decisão judicial à ordem constitucional e em casos de extrema fluidez textual, abertura estrutural ou antagonismo entre direitos e garantias fundamentais (SARMENTO, 2004). As razões justificantes devem obediência e estar em consonância com a pauta de valores estabelecidas na Constituição e não atender a anseios íntimos do magistrado. Para evitar confusão axiológica, o processo de aplicação do direito deve seguir uma organização de raciocínio e uma construção argumentativa metodologicamente ordenada. Aqui se encontra a objetividade legitimadora da decisão. Além do mais, a exposição dos argumentos jurídicos também oportunizará o controle de racionalidade esperado. A situação extraordinária, caracterizada pela complexidade dos valores em colisão, não admite decisão mecânica advinda do processo normal de subsunção. Não há o que fazer, senão deixar ao arbítrio da autoridade a escolha pela opção mais adequada, necessária e proporcional, 20 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade de acordo e nos moldes dos valores plasmados na Lei Fundamental. Todavia, a opção deve ser transparente e fundamentada para minimizar os riscos à segurança jurídica. E mais, considerando que a indeterminação do direito não pode ser eliminada, deve-se enfrentar a abertura hermenêutica da jurisdição com base na análise precisa da fundamentação das decisões judiciais, que devem ser adequadas ao paradigma constitucional vigente. Nesse sentido, observada a impossibilidade fática de se antever todas as situações que poderão ocorrer e a necessidade da ponderação, destaca-se relevância da fundamentação racional das decisões judiciais, em face de um sistema jurídico que deve ser reconhecido enquanto um ordenamento estruturalmente aberto, indeterminado e principiológico, sem que se reforce o decisionismo ou se comprometa o ideal de segurança jurídica e a supremacia da constituição (COURA, 2009, p. 49). Destarte, verifica-se que existem duas formas de balanceamento, um decisionista e outro racional. Nos dois a resposta advém de escolha do intérprete, que decidirá qual interesse deverá prevalecer. A diferença, que conferirá legalidade e racionalidade à opção, é a argumentação jurídica apresentada. Dela se poderá extrair, de maneira objetiva, além da consonância com a Constituição, a eliminação de qualquer resquício ou sinal de arbitrariedade. A aplicação do direito deve decorrer do processo racional, oportunamente justificado e amparado, contrário a subjetivismos e decisionismos, que não podem vingar num Estado que se deseja Democrático de Direito. A legitimidade da ponderação depende da argumentação! Mas não qualquer argumentação, deve-se obediência a utilização de critérios racionalmente critérios legítimos para a correta valoração na atividade jurisdicional. O respeito à fundamentação racional deve ser compatível com ao nível de abertura da norma. Quanto maior for a valoração subjetiva do intérprete, maior deve ser o cuidado. De forma mais direta: quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias (CAPPELLETTI, 1993, p. 153) . A fundamentação permite analisar a justiça da decisão e a ampara politicamente. Além disso, permite o controle social da atividade do juiz, afastando-se assim, a insegurança e a incoerência jurídica que podem se fazer presentes no caminho do sopesamento. Reafirma-se aqui que a neutralidade total do é utópica, mas deve-se, face ao compulsória obediência aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, diminuir o risco de arbitrariedades e perseguir um julgamento adequado, que a interprete racionalmente o ordenamento jurídico e traga soluções que correspondam aos anseios sociais. Portanto, de tudo que foi exposto, pode-se afirmar que não existe, em termos gerais e abstratos, uma solução pronta para resolver a questão da colisão de direitos fundamentais envolvendo os anseios da maioria e minoria. Diante disso, a técnica da ponderação, apesar dos perigos que contém, é A concepção moderna de democracia... // 21 necessária para concretizar os ideais democráticos e garantir a proteção dos direitos dos grupos sociais minoritários, principalmente através da concretização dos direitos fundamentais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana.

1.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo tinha por finalidade abordar os direitos dos grupos sociais minoritários estabelecidos dentro do processo democrático e discutir as questões decorrentes da implementação dos ideais de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Foi abordada inicialmente a democracia, sua origem, conceito, escopo inicial e evolução do seu conteúdo e abrangência, que nos dias atuais ultrapassa as fronteiras de sistema político fundado na vontade da maioria e alcança uma multiplicidade de fatores, dentre eles se destacando: o governo representativo, Estado de Direito e direitos fundamentais. Restou evidenciado que, diante do atual quadro de desenvolvimento do constitucionalismo, não se admite mais a prevalência da vontade da maioria com subsequente aniquilação dos direitos da maioria. A Constituição Federal garante os direitos civis e políticos básicos à todos cidadãos, independente do grupo que fazem parte, e, para se cumprir a promessa de efetivação dos princípios democráticos nela expressos, necessária se faz a participação ampla da sociedade, que se perfaz com apoio e respeito às diferenças. Demonstrou-se também, no decorrer do artigo, que os direitos das minorias são considerados direitos fundamentais, e neste passo, integram a base axiológica do ordenamento jurídico, devendo ser compreendidos e interpretados como normas jurídicas vinculativas e não como perfumarias ou trechos ostentatórios. De limitador do pode estatal, os referidos preceitos essenciais passam a ser considerados agentes conformadores, irradiando seus valores e vinculando todos os campos do direito. Desta premissa se extrai que o respeito aos bens e interesses dos grupos sociais mais fracos se tornaram obrigatórios, pois, constitui fundamento e objetivo do moderno Estado Democrático de Direito. Vislumbrou-se também no desenvolvimento do artigo, que eventual colisão envolvendo os direitos da maioria e os direitos da minoria, deveria se equacionada com a utilização da ponderação, técnica de decisão jurídica oportuna para resolver confronto de valores ou opções políticas. Como é impossível prever todas as situações de choque de bens, não existiria solução pronta e solução viria à luz do caso concreto, onde o aplicador do direito, identificando os princípios em atrito, sem extinção total do direito subjugado, escolheria aquele que teria maior peso para o deslinde equânime da causa. Por derradeiro, foi descrita a forma como a ponderação de interesses deveria ser implementada para se evitar a subjetividade, a discricionariedade e o decisionimso judicial. Constatou-se que o sopesamento, por se tratar de 22 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade trabalho de interpretação deverá ser realizado com cuidado, atentando-se para aspectos técnicos, evitando-se assim manifestações pessoais e convicções íntimas do julgador. A arbitrariedade seria afastada pela fundamentação, onde as razões que levaram ao convencimento se tornariam conhecidas e oportunizariam o controle de legalidade e justiça da escolha por parte dos cidadãos.

1.8 REFERÊNCIAS

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= II =

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM CONFLITO COM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO QUE TANGE ÀS MINORIAS SEXUAIS

Francielle Lopes Rocha* Natália Santin Mazaro**

2.1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 - promulgada com o intuito de redemocratizar a nação, bem como de restaurar e de tutelar os direitos fundamentais das pessoas - consagrou, em seu bojo, objetivos e princípios norteadores para a consolidação de uma sociedade livre, justa, inclusiva e democrática, trazendo no inc. III do art. 1º, o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo fundamento da República. Além de ser considerado fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como um valor unificador dos direitos fundamentais. Preceito este, que garante à pessoa o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e emocional. O Estado Democrático de Direito também contempla o princípio da liberdade como fundamental, sendo que tal princípio confere ampla proteção às suas variadas vertentes, dentre elas, a liberdade de expressão, direito fundamental disposto no inc. IV do art. 5º da Constituição Federal, que garante ao sujeito a livre manifestação do pensamento e a possibilidade de exposição das mais variadas opiniões e posições ideológicas. Considera-se a liberdade de expressão uma conquista fundamental e de ímpar relevância na manutenção da democracia, pois além de proporcionar o diálogo entre pensamentos contrários, admite, também, que o sujeito se manifeste contrariamente ao próprio Estado, garantia que corrobora com a ampliação do exercício da democracia. Em que pese a extrema relevância do exercício da liberdade de expressão, observa-se que esse direito fundamental pode ser utilizado como pretexto para que o sujeito se utilize de expressões e manifestações de pensamentos odiosos e discriminatórios, que, consequentemente, ensejam na diminuição, no insulto e na desqualificação de determinadas pessoas e grupos em virtude de características pessoais.

* Discente do programa de Mestrado em ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do UniCesumar – Centro Universitário de Maringá. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Advogada em Maringá- PR. Endereço eletrônico: [email protected] ** Discente do programa de Mestrado em ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do UniCesumar – Centro Universitário de Maringá. Professora do Uni-Cesumar – Centro Universitário de Maringá. Endereço eletrônico: [email protected] 26 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Quando a liberdade de expressão é utilizada para justificar manifestações discriminatórias e segregacionistas, deve ser mitigada, pois não se trata, na realidade, da livre manifestação do pensamento, mas sim, da proliferação do discurso do ódio. Destaca-se que quando o discurso do ódio é proferido contra as minorias sexuais - estimulando-se, ainda que veladamente, a prática de ações discriminatórias e preconceituosas – viola-se não somente a dignidade do indivíduo vítima da ofensa, mas a dignidade deste grupo social como um todo, pois justamente as características que o compõem são utilizadas para justificar a desqualificação dos sujeitos que o integram. Hodiernamente, observa-se a expansão de grupos contrários ao reconhecimento dos direitos civis e da dignidade dos sujeitos homoafetivos e transgêneros. Acrescente-se que segmentos conservadores se utilizam de argumentações fundadas em discursos religiosos fanáticos para atribuir às minorias sexuais o caráter de degenerados e, assim, proferem o discurso do ódio para subjugar, inferiorizar e desqualificar a referida comunidade. Faz-se, portanto, necessário balizar os limites da liberdade de expressão, em especial, quando o referido direito fundamental é utilizado com a pretensão de legitimar um discurso do ódio e de desqualificar as minorias sexuais, incitando, consequentemente, a violência contra as pessoas transexuais, as travestis, os gays, os bissexuais e as mulheres lesbianas. A partir dessa reflexão, por meio do método teórico, pretende-se analisar a possibilidade de mitigação e de relativização da liberdade de expressão quando o exercício deste direito fundamental colide com o princípio da dignidade da pessoa humana, problematizando-se, em específico, a utilização do princípio da proporcionalidade como instrumento de solução do conflito gerado pela colisão entre tais direitos fundamentais.

2.2 DAS MINORIAS SEXUAIS

As minorias sociais e os grupos vulneráveis, ao longo do tempo, foram submetidos à marginalização e à dominação e, por isso, tornaram-se socialmente excluídos e vítimas da desigualdade estrutural produzida pelo tecido social. Cumulada com as lutas contra o poder e a opressão, a insatisfação dos grupos dominados importou no reconhecimento de direitos essenciais às pessoas, e com isso, os movimentos reivindicatórios lograram significativos avanços sociais. Ainda que os conceitos de minorias e grupos vulneráveis apresentem aspectos convergentes, pois ambos são considerados grupos socialmente oprimidos (SÉGUIN, 2002, p. 36), tais conceitos não se confundem. Marcelo dos Santos Bastos, ao discorrer acerca da distinção entre as minorias e os grupos vulneráveis, afirma: Minorias são um contingente numericamente inferior, como grupos de indivíduos, destacados por uma característica que os distingue dos outros habitantes do país, estando em menor quantidade em relação à população A dignidade da pessoa humana... // 27

deste, já os grupos vulneráveis são grupos carentes de poder e que muitas vezes não percebem a discriminação que sofrem em sociedade. Minorias e grupos vulneráveis não são expressões sinônimas, mas pela circunstância de seus integrantes encontrarem-se nas mesmas situações fáticas de discriminação, intolerância e fragilidade, por parte de uma parcela da sociedade, torna-se irrelevante a diferenciação conceitual e relevante sim, a tutela jurisdicional que se pode oferecer a esses excluídos (BASTOS, 2015).

Deste modo, observa-se que as minorias De os grupos vulneráveis são categorizados como grupos conceitualmente distintos e detentores de características próprias (VECCHIATTI, 2012, p. 32). Os grupos vulneráveis são aqueles que, para Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, além de sofrerem discriminação social, não detêm o “[...] poder jurídico necessário para alterar esta situação por conta própria” (VECCHIATTI, 2012, p. 32). Deste modo, os grupos vulneráveis possuem conceito abrangente, considerando-se como pertencentes de tal grupo, mas não se limitado a estes, até mesmo as minorias sociais (VECCHIATTI, 2012, p. 32). Tais grupos necessitam de proteção jurídica especial somente no aspecto que os tornam vulneráveis em relação ao restante da população, independentemente se configura-se ou não enquanto um grupo minoritário (VECCHIATTI, 2012, p. 29). Deste modo, ainda que os grupos vulneráveis possuam a sua cidadania reconhecida, eles não detêm a força necessária para que seus direitos sejam efetivados. As minorias sociais podem ser conceituadas sob três enfoques: a perspectiva sociológica, a antropológica e a jurídica. Segundo a acepção sociológica do referido termo, as minorias sociais são consideradas como subgrupo de pessoas que, segundo Jamile Coelho Moreno, representa menos da metade da população total de uma sociedade, sendo ocupante de uma posição privilegiada, neutra ou marginal, já que tal conceito é meramente quantitativo (MORENO, 2015). O aspecto antropológico do termo minoria refere-se, todavia, ao conteúdo qualitativo, ou seja, aos subgrupos marginalizados, socialmente inferiorizados no contexto nacional, ainda que constituam, quantitativamente, uma maioria (MORENO, 2015). O conceito jurídico, bem como a definição ora adotada, baseia-se, assim, não somente nas distinções numéricas, mas também no aspecto antropológico do termo, (BAYLÃO, 2015) em que as relações de violência econômica, simbólica e material1 se estabelecem historicamente entre dois grupos, importando na opressão de um deles.

1 Segundo a definição de Raul Di Sergi Baylão: 1) violência econômica é aquela que visa à imposição de uma transferência injustificada de valores econômicos, seja através da exploração direta da força de trabalho, seja por meio da depreciação impositiva de bens destinados ao mercado, ou por outro mecanismo qualquer de transferência de renda; 2) violência simbólica: consiste na imposição de valores culturais e ideológicos, o que pode acontecer tanto na forma 28 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Segundo Raul Di Sergi Baylão:

Mais especificamente, uma minoria é um grupo que, dentro de uma determinada estrutura social, se distingue de um outro grupo por diferenças de língua, costumes, organização social, etnia, sexo, religião, etc. (seja um ou uma combinação destes fatores). Esta distinção original é a causa, por motivos que variam em cada caso, de sua posição subordinada dentro de uma estrutura de poder que produz sempre o mesmo efeito: a sua exclusão, total ou parcial, da participação na vida social, a sua exploração econômica pelo grupo opressor e o fato de serem objeto de preconceito e discriminação. Ao termo mais geral – minoria – se acrescenta um adjetivo correspondente a essa distinção original e temos então minorias étnicas, religiosas, de gênero, raciais, etc (BAYLÃO, 2015).

Observa-se, portanto, que os sujeitos que, em determinada estrutura social, são discriminados e excluídos, ainda que parcialmente, do corpo social, em função de sua orientação sexual e afetiva ou de sua identidade de gênero, são considerados não só vulneráveis, mas também compõem o grupo das minorias sexuais. Muito embora não exista, na literatura, o conceito consolidado acerca da conceituação das minorias sexuais, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, afirma que o termo se refere ao grupo de pessoas que são discriminadas em decorrência de sua orientação sexual, identidade de gênero, ou ainda, em decorrência de sua intersexualidade. Segundo o autor supracitado:

Até hoje, as minorias sexuais sempre foram formadas por homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais, ou seja, aqueles cuja orientação sexual não seja a heterossexual (homossexuais e bissexuais) e aqueles cuja identidade de gênero não coincida com o gênero socialmente atribuído ao seu sexo biológico (transexuais, travestis e intersexuais). Isso porque estes são os grupos de pessoas que são discriminadas unicamente por conta de sua sexualidade ou identidade de gênero, em virtude do heterossexismo social (VECCHIATTI, 2012, p. 37).

Considera-se, a orientação sexual, como sendo um traço essencial da identidade do sujeito, compondo, assim como outras qualidades, a essência do indivíduo. Destaca-se que a orientação sexual não se refere somente à atração sexual, mas também, à atração afetiva e emocional que o sujeito vivencia. Deste modo, a pessoa pode ser heterossexual, quando a atração ocorre entre pares de sexos opostos; homossexual, quando a atração ocorre entre pares de sexos iguais; bissexuais, quando o interesse revela-se por ambos os sexos; assexuado, quando indivíduos não sentem atração sexual por gênero algum; e pansexuais, que são pessoas cuja identificação com o de uma sutil dominação cultural e ideológica, quanto tomar a forma mais agressiva do preconceito, e 3) violência material: é a violência em sentido estrito, que se baseia na imposição da vontade pela ameaça ou pelo próprio uso da força física. A dignidade da pessoa humana... // 29 outro independe do gênero, orientação sexual, papel de gênero e identidade sexual. Compreende-se, portanto, que, naquilo a que se refere à orientação sexual e afetiva, consideram-se minorias sexuais as pessoas homossexuais, bissexuais, assexuadas e pansexuais. Ocorre, as minorias sexuais, também são compostas por grupos de pessoas que, independentemente da orientação sexual, não se enquadram na ordem cisgênero, onde existe a conexão entre sexo biológico, gênero e identidade de gênero. Ressalte-se que, embora o corpo seja aparentemente indissociável da genitália que o caracteriza, tal assertiva não corresponde à pluralidade das relações humanas, portanto, os conceitos de sexo biológico, gênero e identidade de gênero são necessários para que se compreenda essa pluralidade. O sexo, segundo Elimar Szaniawiski, pode ser definido como um conjunto de características que distingue machos e fêmeas, constituindo-se, assim, como um dos caracteres primários de identificação da pessoa (SZANIAWISKI, 1998). Deste modo, carregado de significações sociais, o sexo biológico do sujeito é percebido como um fator categórico na determinação das práticas sociais, sexuais e afetivas do ser humano. De tal modo, Pierre Bourdieu, assevera que a definição dos órgãos sexuais não pode ser considerada como sendo um simples registro de propriedades naturais, ao contrário, deve ser vista como o “[...] produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças” (BOURDIEU, 2008, p. 23). O sexo, segundo Tania Navarro Swain, é uma parte do corpo humano cuja importância se define pela sua própria historicidade, (SWAN, 2011, p. 394) “[...] sendo o responsável pela divisão e pela classificação do ser humano em grupos ou indivíduos, segundo sua genitália. A representação do sexo substitui, então, sua própria realidade biológica” (SWAN, 2011, p. 394). Destaca-se que a percepção do sexo biológico é instituída por uma série de determinações sociais que atribuem a feminilidade à mulher e a masculinidade ao homem, de modo que as minorias sexuais, ou seja, aqueles que questionam a rigidez da heternorma, são remetidos à margem do construto social (LOURO, 2012, p. 25). Consequentemente, muito embora aparentemente indissociáveis, a realidade biológica inscrita em aspectos anatômicos e a representação social de sexo não detêm o mesmo significado. Por isso, a percepção do gênero enquanto categoria problematizadora da rigidez dos corpos surge com o escopo de afastar a ideia de que a identidade do ser humano seria definida pelo sexo. O gênero é definido, por Joan Scott, como sendo a forma primeira de significar as relações de poder, bem como “[...] o elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”. 30 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Deste modo, ao sexo biológico atribui-se características estritamente anatômicas, enquanto o gênero compreende a construção social que confere significação aos corpos, ainda que, diferentemente do que estabelecem os padrões hetero-cisnormativos, um não está necessariamente vinculado ao outro. Por outra sorte, compreende-se por identidade de gênero o modo pelo qual o sujeito percebe a si mesmo, ou seja, a sensação subjetiva que o indivíduo possui acerca de seu próprio gênero, independentemente se é condizente ou não com o seu sexo biológico. Identidade de gênero, segundo os Princípios de Yogyakarta, é:

A profundidade sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluído o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificações da aparência ou função corporal por meio médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.

A identidade de gênero é considerada, por Tereza Rodrigues Vieira, como sendo a “[...] vivência interna (do gênero) de acordo com o que cada um sente profundamente”. (VIEIRA, 2012, p. 39) Pode-se afirmar que identidade de gênero é a consciência de pertencer ao gênero masculino ou feminino, ou seja, caracteriza-se pelo senso que a própria pessoa faz de si como homem ou como mulher (SILVA JUNIOR, 2011, p. 98). As minorias sexuais denominadas de transgêneros, diferentemente dos cisgêneros, apresentam uma descontinuidade entre o sexo biológico, o gênero e a identidade de gênero vivenciada pelo sujeito. Desta feita, os transgêneros ultrapassam as fronteiras culturalmente estabelecidas para os sexos, pois são homens e mulheres que, para Enézio de Deus Silva Júnior, “mesclam, nas suas formas plurais de feminilidade e de masculinidade, traços, sentimentos, comportamentos e vivências que vão além das questões de gênero como, corriqueiramente são tratadas” (SILVA JUNIOR, 2011, p. 98). As pessoas travestis são marcadas pela ambiguidade, assim, são caracterizadas pela dualidade dos gêneros (CORDEIRO, 2012, p. 286). Os transexuais, ao contrário, podem não transitar entre os gêneros, mas possuem a sua identidade de gênero distinta do gênero que foi atribuído ao seu sexo devido à genitália que apresentou ao nascer. Ressalte-se, ainda, que a transexualidade não pode ser confundida com a homossexualidade. Segundo Maria Jaqueline Hojda Pinto e Maria Alves Bruns:

O transexual difere do homossexual, pois este tem apenas sua orientação sexual voltada para a pessoa do mesmo sexo que o seu, não negando o seu sexo biológico, enquanto que aquele (...) tem a identidade sexual percebida como do sexo oposto (BRUNS, 2003, p. 19).

A dignidade da pessoa humana... // 31

Apesar de morfologicamente pertencer a um gênero que lhe fora socialmente atribuído em razão de seu sexo biológico, a identidade de gênero da pessoa transexual não corresponde a tal atribuição, sendo este pertencente, na realidade e em sua subjetividade, ao gênero oposto. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) a transexualidade é considerada como um tipo de transtorno de identidade de gênero, consoante consta do Cadastro Internacional de Doenças - CID 10, em sua seção F64.0, sendo considerada uma das variações da sexualidade humana, segundo a qual o indivíduo possui um “[...] sentimento profundo de pertencer ao sexo oposto e a vontade extremada de reversão sexual” (SZANIAWSKI, 1999, p. 53). Alguns transexuais consideram a cirurgia de redesignação sexual como a adequação a uma condição existente, já que a sua identidade encontra-se desconexa à sua morfologia. Assim, os transexuais binários intentam a cirurgia de redesignação sexual. No Brasil, a portaria 2.803 de 10 de novembro de 2013 do Ministério da Saúde e a resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.955/2010, estabelecem critérios para a realização do processo transexualizador, limitando o acesso daqueles que buscam a redesignação sexual como meio de adequação do corpo à mente. Berenice Bento e Larissa Pelúcio afirmam que a manutenção da patologização da sexualidade corrobora com a afirmação compulsória dos padrões de feminilidade e masculinidade e, portanto, a pessoa que não apresenta sua identidade de gênero em conformidade com o seu sexo genital, deve ser submetida a um tratamento como forma de adequação social (BENTO E PELÚCIO, 2015). As autoras supracitadas dissertam:

A patologização da sexualidade continua operando com grande força, não mais como “perversões sexuais” ou “homossexualismo”, mas como “transtornos de gênero”. Se o gênero só consegue sua inteligibilidade quando referido à diferença sexual e à complementaridade dos sexos, quando se produz no menino a masculinidade e na menina a feminilidade, a heterossexualidade está inserida aí como condição para dar vida e sentido aos gêneros (BENTO E PELÚCIO, 2015).

Deste modo, a transexualidade demonstra que os sujeitos não são prisioneiros de sua estrutura corpórea e que o

[...] sistema não consegue a unidade desejada. Há corpos que escapam ao processo de produção dos gêneros inelegíveis, e ao fazê-lo se põem em risco porque desobedecem as normas de gênero; ao mesmo tempo revelam as possibilidades de transformação dessas mesmas normas (BENTO, 2008, p. 215).

A patologização das vivências transexuais corrobora com a disseminação da intolerância e do preconceito contra essas pessoas. 32 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Deste modo, aquelas pessoas que se subvertem aos padrões hetero- cisnormativos e manifestam sua orientação sexual e afetiva ou sua identidade de gênero de modo diverso daquelas socialmente estabelecidas são marginalizadas e socialmente excluídas, enquadrando-se, assim, tanto nos conceitos de grupos vulneráveis quanto de minorias sexuais e, portanto, necessitam de proteção especial do Estado para a efetivação de seus direitos fundamentais.

2.3 DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Considera-se a liberdade como sendo um dos direitos fundamentais mais importantes tutelados não apenas constitucionalmente, mas também, em âmbito internacional. Segundo Martins Neto, as liberdades constitucionais objetivam proteger os homens e as instituições da tirania da maioria, possibilitando-lhes direitos de agir que de outro modo poderiam ser negados ou restringidos por lei para além do que possa ser admitido pela Constituição respectiva (MARTINS NETO, 2008, p. 27). Considerado como um direito fundamental e como um desdobramento do direito à liberdade, “[...] definindo-a como direito fundamental, clausula pétrea e, como tal, insuscetível de alteração por meio da edição de emenda constitucional” (MEYER- -PFLUG, 2009, p. 32) - a liberdade de expressão é consagrada pelo ordenamento jurídico brasileiro e encontra-se disciplinada nos incisos IV e IX do art. 5º da Constituição Federal de 1988. A liberdade de expressão se refere ao direito conferido a todo indivíduo de exteriorizar livremente suas convicções. Acerca do tema, Marco Antônio de Mello assevera que tal direito fundamental possui ímpar relevância, pois se desdobra em variadas facetas, como o direito de opinião, de imprensa, o direito à informação e à proibição da censura, sendo que a “[...] liberdade de expressão decorre da liberdade de pensamento, sendo a garantia da livre manifestação deste por meio de palavras, escritos, imagens ou qualquer outra forma de exteriorização” (MELLO, 2009, p. 246). Segundo Hijas:

(...) a liberdade de expressão é um direito fundamental presente na maioria dos ordenamentos jurídicos em virtude de cinco finalidades principais, quais sejam, (a) assegurar uma autossatisfaç ão individual, (b) permitir o avanç o o conhecimento e possibilitar a descoberta da verdade, (c) representar uma forma de garantir a democracia, (d) determinar a manutenç ão da balanç a entre a estabilidade e a mudanç a da sociedade, e (e) representar um incentivo ao desenvolvimento da tolerâ ncia (HIJAS, 2013).

Observa-se que a liberdade de expressão significa um marco na história da conquista dos direitos individuais, pois confere ao sujeito o direito ao exercício da livre manifestação do pensamento e a exposição das mais variadas opiniões e posições ideológicas, sendo, inclusive, um instrumento A dignidade da pessoa humana... // 33 de controle da atividade governamental e do exercício do poder (MELLO, 2009, p. 240). Apesar da extrema relevância da referida liberdade para a manutenção do Estado Democrático de Direito, deve-se ponderar acerca de sua aplicação irrestrita, ainda que tutelada pelo ordenamento constitucional. Segundo Samanta Ribeiro Meyer-Pflug, tal princípio sofre algumas restrições, pois “[...] há de se respeitar outros valores albergados pela ordem constitucional vigente, alguns deles constam no próprio Texto Constitucional com repercussão na legislação infraconstitucional” (MEYER-PFLUG , 2009, p. 83). Acerca das limitações à liberdade de expressão, Gilmar Mendes assevera:

Não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana. Dai ́ ter o texto constitucional brasileiro de 1988 erigido, de forma clara e inequívoca, o racismo como crime inafianç á vel e imprescindível (art. 5o, XLII), alé m de ter determinado que a lei estabelecesse outras formas de repressão à s manifestaç ões discriminató rias (art. 5o, XLI). É certo, portanto, que a liberdade de expressão não se afigura absoluta no texto constitucional brasileiro. Ela encontra limites també m no que diz respeito à s manifestaç ões de conteú do discriminató rio ou de conteú do racista. Trata-se de uma elementar exigê ncia do pró prio sistema democrá tico, que pressupõe a igualdade e a tolerâ ncia entre os diversos grupos.

Observa-se, portanto, que apesar da relevância do referido direito – compreendido como fundamental na manutenção de um Estado pluralista, visto ensejar a possibilidade de diálogo entre as mais diversas opiniões e posicionamentos ideológicos – não pode ser concebido como um direito absoluto. Assim, quando da colisão entre o exercício da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais, deve-se ponderar qual se fará sobressalente, sob pena de se incorrer em injustiça. Destaca-se, ainda, que o fundamento que legitima a liberdade de expressão como direito fundamental é justamente o princípio da dignidade da pessoa humana

2.4 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Os princípios, para Paulo de Barros Carvalho, são “[...] linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo- lhes caráter de unidade relativa e servindo de fatos de agregação num dado feixe de normas” (CARVALHO, 2009, p. 1141). Dentre os princípios que regem o sistema jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988 apresenta um rol de princípios explícitos que 34 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade vigora hodiernamente. Dentre eles, inscreve-se no inciso III do art. 1º da atual Constituição Federal, o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo o fundamento da República Federativa do Brasil. Dignidade deriva do latim dignitas, que significa virtude, honra e consideração, figura a qualidade moral que o sujeito possui e é a base de seu próprio respeito (SILVA, 2003. p. 458). Acerca da evolução do referido conceito, Paulo Hamilton Siqueira Júnior ao citar Walber de Moura Agra postula que:

Na antiguidade, o conceito de dignidade da pessoa humana estava ligado ao mérito, que poderia ser aferido pelo dinheiro, título de nobreza, capacidade intelectual, etc. Os gregos acreditavam que o que diferenciava os homens dos animais era a capacidade de empreender um pensamento lógico, utilizando uma linguagem própria, que era designada pela palavra locus, que representava a linguagem, a razão, advindo assim, a necessidade de respeito aos homens por essa capacidade e distinção. Com o advento da ideologia cristã, em que o homem passa a ser concebido à imagem e semelhança de Deus, a dignidade passou a ser mérito de todos os seres humanos (SIQUEIRA JUNIOR, 2009. p. 252).

O antropocentrismo renascentista justificou a supremacia do ser humano, dentre as demais espécies, devido à sua inerente racionalidade, assim, considerou-o senhor de si próprio (GOMES, 2009. p. 24). Andréia Sofia Esteves Gomes, afirma que no pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, houve um processo de racionalização e laicização da dignidade da pessoa humana sem que, no entanto, fosse desconsiderada a perspectiva da igualdade entre os homens em dignidade e liberdade (GOMES, 2009. p. 25). Ao citar o pensamento de Kant, onde este afirma que o homem existe como um fim em si mesmo e não simplesmente como meio arbitrário de sua vontade, a autora supracitada afirma que “[...] o conceito de dignidade parte da autonomia ética do ser humano (...), entendendo a autonomia da vontade como a faculdade que o homem tem de se determinar a si e justificando a dignidade do homem nessa postulada autonomia” (GOMES, 2009. p. 25). Em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o valor fundamental da dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecido expressamente (SARLET, 2001, p. 99). No Brasil, somente com a Constituição Federal de 1988, positivou-se o principio fundamental da dignidade da pessoa humana, (SARLET, 2001, p. 99) onde se considerou que todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e direitos. Destarte, a dignidade da pessoa humana, apesar de inexistir definição específica, (SILVA, 2009, p. 235) implica, para Marco Antônio Marques da Silva, em “liberdade, igualdade e justiça” (SILVA, 2009, p. 224). Para o referido autor, a dignidade “[...] compreende o valor interno de cada indivíduo, superior a qualquer outro, impondo seu respeito, tanto entre A dignidade da pessoa humana... // 35 as pessoas como pelo Estado, impedindo interferências indevidas na vida privada” (SILVA, 2009. p. 235). Paulo Hamilton Siqueira Júnior afirma que a dignidade é uma qualidade, sendo que a “proposição “dignidade da pessoa humana” representa o valor, a qualidade intrínseca do homem enquanto ser” (SIQUEIRA JUNIOR, 2009, p. 258). Segundo o referido autor, a dignidade da pessoa humana constitui-se no:

[...] atributo moral do indivíduo, que o qualifica enquanto ser. A consequência imediata desse pressuposto é que o homem é dotado de valor próprio, não podendo ser transformado em objeto. O valor absoluto “dignidade da pessoa humana” informa todo o sistema jurídico. O homem enquanto ser é sagrado, sendo o valor fonte de todos os direitos. A pessoa possui um valor em si que constitui sua dignidade (SIQUEIRA JUNIOR, 2009, p. 273).

De tal forma, como todos os sujeitos dispõem de atributos subjetivos que corroboram na formação de sua identidade e individualidade, respeitar a dignidade humana significa respeitar a autodeterminação consciente responsável pela própria vida (MORAES, 2011. p. 48). Acerca do tema, Ingo Wolfgang Sarlet assevera que:

[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciável da natureza humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente (SARLET, 2001. p. 104).

O Autor supracitado esclarece que:

[...] no que tange à clarificação do sentido da dignidade da pessoa humana, importa considerar que apenas a dignidade de determinada (ou de determinadas) pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pessoa humana em abstrato. Vinculada a esta ideia, já transparecia no pensamento kantiano, encontra-se a concepção de que a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, não sendo lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da humanidade) (SARLET, 2001. p. 104).

Assim, a dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a proteção de sua integridade física, psíquica e moral pelo fato de possuir este, justamente a condição humana, podendo, no entanto, ser-lhe extirpada quando da prática de atos que violem sua condição de sujeito. 36 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Dessa forma, muito embora se apresente como inerente ao ser humano, a dignidade, quando considerada enquanto atributo da pessoa individualmente considerada, deve ser resguardada. A garantia do tratamento isonômico entre todos os seres humanos e a vedação ao tratamento discriminatório e arbitrário, para Ingo Wolfgang Sarlet, são consideradas pressupostos para o respeito à dignidade da pessoa humana (SARLET, 2006. p. 122). Deste modo, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser invocado para opor limites à liberdade de expressão, garantindo-se, desta forma, que a livre manifestação do pensamento corrobore com a emancipação da pessoa humana.

2.5 DO DISCURSO DO ÓDIO E DA COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Quando a liberdade de expressão é utilizada para manifestar pensamentos discriminatórios e intolerantes que desqualificam, inferiorizam e desumanizam uma pessoa ou determinado grupo em decorrência de características específicas, como as minorias sexuais, trata-se, na realidade de discurso do ódio, manifestação do pensamento que extirpa o princípio da dignidade da pessoa humana, destacando-se que a dignidade violada é deste grupo como um todo. Para Gilmar Mendes, o discurso do ódio é um tema:

[...] um tanto paradigmá tico, pois nos leva a questionar a respeito dos pró prios limites da liberdade de expressão, nos obriga a refletir sobre a necessidade de se diferenciar a tolerâ ncia do dissenso e a examinar a impossibilidade de se tolerar a intolerâ ncia, em vista de seu potencial disseminador do ó dio em sociedades democrá ticas (MENDES, s/d, web).

Para Rosane Leal da Silva, Andressa Nichel, Anna Clara Lehmann Martins e Carlise Kolbe Borchard, o discurso do ódio:

[...] compõe-se de dois elementos bá sicos: discriminaç ão e externalidade. É uma manifestaç ão segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior (atingido) e, como manifestaç ão que é , passa a existir quando é dada a conhecer por outrem que não o pró prio autor. A fim de formar um conceito satisfató rio, devem ser aprofundados esses dois aspectos, começ ando pela externalidade. A existê ncia do discurso de ó dio, assim toda expressão discursiva, exige a transposiç ão de ideias do plano mental (abstrato) para o plano fá tico (concreto). Discurso não externado é pensamento, emoç ão, o ó dio sem o discurso; e não causa dano algum a quem porventura possa ser seu alvo, já que a ideia permanece na mente de seu autor. Destaca-se que a expressão do pensamento por meio da fala não se limita ao mero significado das palavras, mas explicita a existência de relações de poder que criam e definem a realidade social (MELLO, 2015). A dignidade da pessoa humana... // 37

Desse modo, as práticas discursivas, enquanto linguagem em ação, são capazes de estabelecer a realidade e o significado social dos sentidos, acarretando, de fato, em consequências nefastas ao foro íntimo daquele que foi vítima do discurso do ódio (LEITE, 2011). Considera-se que as manifestações discursivas que ultrapassam a liberdade de expressão e que atentam contra a dignidade das minorias sexuais disseminam a intolerância e incitam a violência contra esse grupo. Dessa forma, torna-se clara a colisão entre o direito fundamental da liberdade de expressão e o princípio da dignidade da pessoa humana. O discurso, que suscita a desqualificação dos sujeitos pertencentes às minorias sexuais, explicita, também, a existência de relações de poder que ao longo da história atribuíram a posição de centralidade a determinados sujeitos a partir da exclusão daqueles que transpuseram a categorização binária proposta pela biologização das identidades sociais. Considera-se discurso do ódio, portanto, a prática discursiva que tem como escopo discriminar uma pessoa ou um determinado grupo de pessoas em razão de atributos que compõem sua identidade. Tal discurso suscita, na visão de Samanta Ribeiro Meyer-Pflug, o conflito entre direitos fundamentais “[...] que constituem a própria estrutura das sociedades democráticas, pois testa a abrangência e a extensão da proteção conferida à liberdade de expressão, à dignidade da pessoa humana, aos direitos das minorias” (MORAES, 2011, p. 23). O discurso do ódio é uma manifestação “[...] segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior (atingido)”, (SILVA, 2011) constituído por dois elementos, quais sejam: a discriminação e a exterioridade. Deste modo, explicitam-se, não somente a aversão ao grupo estigmatizado, mas também a constância de relações de poder hierarquicamente constituídas. Diferentemente da liberdade de expressão, o discurso do ódio objetiva, na verdade, impor condutas anti-igualitárias e cercear a diversidade, disseminando a intolerância e o ódio, violando-se, assim, a dignidade humana, podendo gerar um conflito entre esta e a liberdade de expressão. Portanto, deve-se apurar até onde se opera a liberdade de expressão e a partir de que momento se inicia uma prática discursiva odiosa, discriminatória. Caso se verifique que a conduta se encontra dentro dos limites da liberdade, deve-se confrontá-la com a dignidade para que, tecnicamente e mediante os ideários de justiça do Estado Democrático de Direito, seja possível se concluir qual das duas deve prevalecer.

38 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

2.6 DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Tendo em vista que as normas de direitos fundamentais, em sua estrutura, constituem princípios, devem ser compreendidas como mandamentos de otimização (ALEXY, 2014, p. 90). Acerca do tema, Robert Alexy afirma:

[...] os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (ALEXY, 2014, p. 90).

J.J. Gomes Canotilho complementa, afirmando que a reserva do possível, fática ou jurídica, deve ser observada na otimização do direito ou do bem jurídico (CANOTILHO, 2002, p. 1241). Justamente devido à natureza principiológica dos direitos fundamentais é que, em face de colisão entre esses direitos, deve-se observar qual deles possui maior peso no caso concreto (ALEXY, 2014, p. 90), já que sequer tal categoria de direitos tem caráter absoluto. Acerca da possibilidade da restrição aos direitos fundamentais, Daniel Sarmento disserta:

Já se tornou lugar-comum a afirmação de que, apesar da relevância ímpar do papel que desempenham nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos. A necessidade de proteção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar restrições aos direitos fundamentais. [...] a doutrina e a jurisprudência dominantes, no Brasil e no Direito Comparado, admitem também a realização de restrições a direitos fundamentais operados no caso concreto, através de ponderações de interesses feitas diretamente pelo Poder Judiciário (SARMENTO, 2006, p. 295).

Na presente análise, a problematização ocorre quando o direito fundamental à liberdade de expressão é utilizado com o intuito de discriminar determinado grupo de pessoas em função de atributos específicos. O discurso do ódio, sob o argumento da liberdade de expressão, acaba sendo habitualmente proferido com o escopo de neutralizar as demandas de grupos minoritários e vulneráveis. Assim, ocorre explícita colisão do referido direito fundamental extraído da liberdade com a dignidade da pessoa humana. Acerca das limitações da liberdade de expressão decorrentes de conflitos com outros direitos fundamentais, Valéria Silva Galdino Cardin e Tatiane Giovanini de Freitas Mochi ressaltam que:

A dignidade da pessoa humana... // 39

[...] a liberdade de expressão possui um efeito irradiante sobre a ordem jurídica, porque vincula não só o Estado como também os particulares. Trata- se da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Em caso de colisão entre tais direitos, o princípio da proporcionalidade é um importante aliado, porque permite racionalizar soluções a partir de critérios pré-estabelecidos. Assim, deve ser analisado se a medida ou o meio que restringe um direito é adequado e necessário para a consecução do fim pretendido, que é a satisfação de outro direito. Além disso, impende realizar uma ponderação em sentido estrito, a fim de que haja o menor sacrifício possível dos bens jurídicos tutelados em conflito (CARDIN; MOCCHI, 2012).

A partir do momento em que se buscar legitimar o discurso do ódio com base na liberdade de expressão, estabelece-se um conflito entre direitos fundamentais, isso é, interesses constitucionalmente garantidos (MEYER- PFLUG, 2009, p. 255). Dessa forma, é necessário utilizar-se do princípio da proporcionalidade para que haja a solução da colisão no caso concreto. Acerca da relatividade dos direitos fundamentais, Alexandre de Moraes preceitua que:

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados (...). Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades (grifos do autor) (MORAES, 2011, p. 27).

Assim, por meio do princípio da proporcionalidade, há de se estabelecer uma ponderação entre os valores tutelados pelos direitos fundamentais em conflito. Para se analisar essa técnica interpretativa, deve- se traçar seu panorama histórico. O conceito do princípio da proporcionalidade começou a ser construído a partir das ideias iluministas e liberais, que tiveram importante papel na consolidação dos direitos do homem e/ou fundamentais, em contraposição àquelas vigentes até então no Estado absolutista (SARMENTO, 2004, p. 21). De qualquer modo, ressalte-se que, no ano de 350 anos a.C., Aristóteles já falava na importância do justo meio (FACHIN, 2001, p. 55). No século XVIII, então, emergiu a discussão sobre a proporcionalidade no sentido de se limitar o poder estatal. Nas palavras de Raquel Denize Stumm: “[...] medida com valor suprapositivo ao Estado de Direito que visa garantir a esfera de liberdade individual das ingerências administrativas” (STUMM, 1995, p. 78). Relacionava-se com as áreas administrativa e penal, tanto é que Montesquieu e Beccaria trataram da proporcionalidade das penas em relação aos delitos (STUMM, 1995, p. 78). 40 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Em continuidade ao interesse em se acabar coma arbitrariedade estatal, o século XIX fica marcado pela necessidade de sua positivação (STUMM, 1995, p. 78). Entretanto, somente em meados do século seguinte, na Alemanha, abalada pelo cenário trágico deixado pela Segunda Guerra Mundial, a proporcionalidade adquiriu foro constitucional e passou a ser reconhecida como princípio, o que ganhou repercussão internacional e, paulatinamente, passou a permear os diversos ordenamentos jurídicos. No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, despertou-se o interesse de doutrinadores sobre o princípio da proporcionalidade, passando o tema a ser estudado na década de 1990. (FACHIN, 2013, p. 140). A Constituição Cidadã consagrou o modelo de Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) (SARMENTO, 2004, p. 33), em consonância com seu momento histórico pós-ditatorial e a tendência mundial, e definiu o extenso rol de garantias e direitos fundamentais (SARMENTO, 2004, p. 108), bem como uma série de princípios de axiologia derivada dos ideais revolucionários da igualdade, liberdade e fraternidade (SARMENTO, 2004, p. 24), mas não tratou da proporcionalidade de forma expressa em seu texto. Após longas discussões a respeito de a proporcionalidade ter sido admitida ou não pelo ordenamento jurídico brasileiro vigente, chegou-se à conclusão que, de fato, trata-se de princípio implícito ao sistema constitucional. Isso porque, conforme o entendimento, deriva do Princípio do Estado de Direito, da cláusula do devido processo legal, da disposição do parágrafo 2º. do artigo 5º. da Constituição Federal de 1988 ou do conteúdo dos direitos fundamentais, sendo este último o argumento defendido no presente estudo. Nesse diapasão, diante do confronto de dois princípios constitucionais que envolvam direitos fundamentais, sem que seja possível proteger a ambos, deve prevalecer o direito fundamental de maior relevância no caso concreto, de modo que um seja mitigado e o outro preservado, justamente porque nenhum deles é absoluto, como se disse. Por essa razão, trata-se de instrumento de interpretação da constituição (FACHIN, 2013, p. 140). Destaque-se que se está diante de uma relação de precedência ou prevalência, em vez de subsunção, porque, ao contrário das regras (às quais se aplica o critério do tudo ou nada), os princípios são razões apenas prima facie (ALEXY, 2015, p. 106). Ressalte-se que as antinomias existentes entre regras jurídicas se resolvem pela inserção de uma cláusula de exceção ou no âmbito da validade (ALEXY, 2015, p. 106), pela aplicação dos critérios clássicos (hierárquico, cronológico e de especialidade), o que corresponde, segundo Daniel Sarmento, a um “raciocínio calcado na lógica formal, alheio às preocupações morais substantivas” (SARMENTO, 2004, p. 94). Ao contrário, os conflitos entre princípios se resolvem pela dimensão de peso e estão mais próximos à ideia de direito. Raquel Stumm trata da proporcionalidade em sentido amplo como sinônimo do princípio da proibição de excesso (STUMM, 1995, p. 78), que se A dignidade da pessoa humana... // 41 vale do método da ponderação de resultados (STUMM, 1995, p. 77) para se avaliar, no caso concreto, a colisão entre direitos ou entre direitos e valores (veiculados por princípios e normas), desde que se refiram a bens constitucionalmente protegidos. (STUMM, 1995, p. 76) Marco Aurélio Mello aponta o princípio da proporcionalidade como um mecanismo eficaz para realizar a ponderação exigida no caso concreto (MELLO, 2009, p. 246). Para o autor:

O conteúdo central do princípio da proporcionalidade é formado por subprincípios que abarcam parcialmente certa amplitude semântica da proporcionalidade. São eles a idéia de conformidade ou de adequação dos meios, a exigibilidade ou necessidade desses meios e a proporcionalidade em sentido estrito (MELLO, 2009, p. 246).

Em outras palavras, para que se aplique o princípio da proporcionalidade, há de se observar, se a solução encontrada é razoável para o fim desejado, se constitui o meio mais eficaz para resolver o conflito e se, de fato, é indispensável. Assim, a proporcionalidade pode ser dividida em três elementos, que consistem nas máximas parciais da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, justamente porque Alexy fundamenta a referida máxima a partir dos direitos fundamentais, lecionando que a adequação e a necessidade correspondem ao elemento fático da proporcionalidade, enquanto que a proporcionalidade em sentido estrito constitui seu elemento jurídico (ALEXY, 20015, p. 120). De modo mais detalhado, observa-se que a adequação representa uma relação empírica entre meio e fim (ÁVILA, 2005, p. 118), relacionados à restrição e à promoção do que se deseja. Nessa perspectiva, para que um ato seja considerado proporcional, o meio utilizado deve ser idôneo, apto a atingir ou promover o fim almejado. A necessidade, por sua vez, também chamada de exigibilidade ou de princípio da menor ingerência possível, implica em, após se admitir a existência de diversos meios hábeis para o atendimento de um determinado fim, optar-se pelo menos gravoso dentre eles (ÁVILA, 2005, p. 118). Buscando-se, por meio dela, atingir as liberdades individuais ao mínimo. Quanto à proporcionalidade em sentido estrito, analisa-se a relação entre o custo da medida adotada e os benefícios trazidos por ela. A referida máxima parcial concerne no sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental a ser promovido. Nessa perspectiva, a proporcionalidade, como instrumento de interpretação da constituição, pode ser concebida no Brasil como princípio constitucional implícito ou máxima aplicável ao caso concreto que busca eliminar o conflito de princípios constitucionais veiculadores de direitos fundamentais, mediante cedência recíproca no sopesamento entre eles, já que se deve estabelecer os limites e a atuação de cada um diante das realidades fáticas que se apresentarem. 42 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Deriva do conteúdo dos direitos fundamentais e, por isso, corresponde a importante meio de proteção do cidadão frente ao Estado. Entretanto, a fundamentação a partir dos direitos fundamentais não se encerra aí. Atualmente, percebe-se também como sendo uma garantia do cidadão de que seu próximo respeite sua esfera pessoal, de modo que nenhum particular possa comprometer os direitos fundamentais do outro, o que constitui a dimensão horizontal dos direitos fundamentais. Como as práticas sociais são estabelecidas por sua própria historicidade, a prevalência de um direito fundamental em relação ao outro também o é. Desta forma, não se pode defender previamente a superioridade de um em detrimento do outro, mas deve-se analisar o conflito caso a caso para, tecnicamente, ser possível afirmar qual dos valores em questão deverá predominar: a liberdade de expressão ou a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, mesmo esta fundamentando aquela de certa forma e o discurso do ódio parecendo ser um abuso da liberdade mencionada, a prevalência somente pode se apurar mediante o estudo do caso concreto.

2.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ser humano é considerado um constructo do corpo social no qual se insere, assim, valores e condutas lhe são subjetivamente imputadas por meio de determinações históricas e sociais. Observa-se, então, que ao sujeito são atribuídos padrões de conduta que o categoriza de acordo com o seu sexo biológico, desse modo, as relações são determinadas de acordo com o modelo heteronormativo estabelecido pelas práticas históricas e culturais. Durante muito tempo, as minorias sexuais foram reduzidas à invisibilidade por meio do discurso dominante gerador de regras sociais e normas de conduta utilizadas para determinar o comportamento humano. As minorias sexuais contrariam o significado social atribuído aos seus corpos pois negam o modelo binário e subvertem a heteronorma. Assim, são considerados, incitadores do declínio da família e da moralidade pelo exercício de práticas sexuais, afetivas e identitárias distintas da heterossexual. Desta feita, os movimentos conservadores se utilizam do princípio constitucional que garante a liberdade de expressão para desqualificar os sujeitos que não se enquadram ao padrão heteronormativo. Muito embora a liberdade de expressão seja considerada como um direito fundamental, não pode ser considerada como sendo um direito absoluto. Observa-se que quando a liberdade à manifestação do pensamento colide com outros direitos fundamentais ou bens constitucionalmente tutelados, deve prevalecer aquele que, no caso concreto, represente de maneira mais eficaz a efetivação da proteção do sujeito de forma mais ampla. A dignidade da pessoa humana... // 43

Para tanto, como forma de solução do conflito entre direitos fundamentais e princípios constitucionais, encontra-se a aplicação do princípio da proporcionalidade, em que, a partir da análise das especificidades do caso, pode ser estabelecido qual direito fundamental melhor representa a proteção do sujeito de forma integral, qual bem jurídico merece amparo prioritário. Atualmente, observa-se, que a liberdade de expressão pode ser utilizada para manifestar pensamentos discriminatórios com o intuito de diminuir, insultar e desqualificar determinadas pessoas e grupos em virtude de características pessoais, legitimando, assim, o discurso do ódio. No entanto, as práticas discursivas não revelam somente a manifestação ideológica ou do pensamento, mas são capazes de produzir realidades baseadas nas relações de poder que legitimam a dominação de determinado grupo em relação a outro. Deste modo, explicitam-se, por meio do discurso do ódio, a prevalência não somente da aversão ao grupo estigmatizado, mas também a constância de relações de poder hierarquicamente constituídas. Diferentemente da liberdade de expressão, o discurso do ódio objetiva, na realidade, impor condutas anti-igualitárias e cercear a diversidade, disseminando a intolerância e o ódio, violando-se, assim, a dignidade humana, podendo gerar um conflito entre esta dignidade e a liberdade de expressão. Portanto, deve-se apurar até onde se opera a liberdade de expressão e a partir de que momento se inicia uma prática discursiva odiosa e discriminatória, capaz não apenas de demonstrar o pensamento odioso, mas de gerar efeitos concretos nos grupos estigmatizados. Caso se verifique que a conduta se encontra dentro dos limites da liberdade, deve-se confrontá-la com a dignidade para que, tecnicamente e mediante os ideários de justiça do Estado Democrático de Direito, seja possível se concluir qual das duas deve prevalecer. O discurso do ódio, quando proferido contra as minorias sexuais - estimulando-se, ainda que veladamente, a prática de ações discriminatórias e preconceituosas - viola a dignidade deste grupo social como um todo. Mais do que simples liberdade de expressão, o discurso do ódio objetiva, exclusivamente, impor condutas anti-igualitárias e cercear a diversidade, disseminando a intolerância e o ódio, violando-se, assim, a dignidade humana e, consequentemente, gerando um conflito entre esta e a liberdade de expressão.

2.8 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001. 44 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. BASTOS, Marcelo dos Santos. Da inclusão das minorias e dos grupos vulneráveis: uma vertente eficaz e necessária para a continuidade da ordem jurídica constitucional. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2015. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002. CARDIN, Valéria Silva Galdino; MOCHI, Tatiana de Freitas Giovanini. Dos limites da liberdade de expressão nos meios de comunicação em massa diante dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. In: CONPEDI. (Org.). Encontro Nacional do CONPEDI (21. : 2012: Uberlândia, MG). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. FACHIN, ZULMAR. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. LEITE, Miriam S. Significação da violência e heteronormatividade no contexto da prática curricular. In: Revista e-Curriculum. vol. 7, núm. 1, abril, 2011, pp. 1-18, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2015. MELLO, Marco Aurélio. Liberdade de expressão, dignidade humana e estado democrático de direito. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antônio Marques da (Coords.) Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: QuartierLatin, 2009. MELLO, Ricardo Pimentel et al. Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa em psicologia social. In: Psicol. Soc. Porto Alegre , v. 19, n. 3, Dec. 2007 . Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2015. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesses públicos. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.) Direitos A dignidade da pessoa humana... // 45

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46 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= III =

A EXPANSÃO DA TUTELA PENAL DOS DIREITOS AUTORAIS

Luiz Henrique Pereira Silveira*

3.1 INTRODUÇÃO

Vive-se em uma sociedade de grande complexidade. Sociedade do espetáculo, do risco, da informação, são todos enfoques dados a uma pequena área da complexidade pela qual passamos, oriunda da quantidade de interações que ocorrem entre pessoas por todo o mundo, todos os dias. Perante os incalculáveis resultados que podem surgir, a legislação passa a ser insuficiente. Admitem-se novos elementos normativos sem abandonar os já existentes. Regula-se tudo. O comércio, a indústria, o ambiente, a economia, o crime. Sensação de violência, de impunidade, destruição ou apropriação de bens coletivos, tudo isso gera demanda pela criminalização daquilo – ou maior punição contra aquilo – que pode ser prejudicial a determinado ou indeterminado grupo de pessoas. De seu turno, a facilidade de comunicação e distribuição de conteúdo artístico, protegido por direitos autorais, faz com que os detentores destes direitos pressionem as autoridades de todos os poderes para que haja maior rigor na criação de novas leis e no cumprimento delas, para poder usufruir de seu monopólio e manter o domínio do mercado do entretenimento em mãos. Não se pretende, por parte da indústria do conteúdo, a abertura da discussão sobre o acesso à cultura e à informação. Diante de ambos esses contextos, é inevitável o surgimento e a expansão da criminalização da violação de direitos autorais. A questão, todavia, é até que ponto é oportuno criminalizar essa conduta, especialmente em uma sociedade em que o compartilhamento da informação é naturalmente usual, espontâneo e culturalmente produtivo. Para tanto, cindir-se-á o estudo em três partes. Na primeira, analisa- se o Direito Penal moderno: as características principais de sua expansão, as razões que lhe motivam e os juízos acadêmicos a seu respeito. A segunda parte trata do Direito Autoral, desvelando-se sua função de controle mercadológico desenvolvida ao lado de sua noção de Direito de Personalidade, através de breve relato histórico, e a atual crise surgida com o compartilhamento de arquivos na internet. Por último há a imbricação dos dois assuntos, oportunidade em que se examina a conveniência da tutela penal do Direito Autoral, sob o ponto de

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas. Aluno da Pós-graduação lato sensu em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá. Advogado. 48 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade vista expansionista por que passam os dois ramos do Direito, com especial referência às comunidades de compartilhamento.

3.2 O DIREITO PENAL MODERNO

As características do Direito Penal moderno foram, nos últimos vinte anos, um dos temas de maior discussão no âmbito da Política Criminal na Europa e mais recentemente no Brasil, ainda que, para alguns, não tenham sido analisadas da forma que mereçam (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 32-34). Verifica-se que diversos fatores sociais, econômicos e políticos levaram a alterações não só na legislação e na jurisprudência penais, mas também na doutrina. Para bem entender o conteúdo do “novo” Direito Penal, deve-se, antes de qualquer coisa, analisar o contexto histórico-social em que ele está inserido.

3.2.1 Causas da modernização do direito penal

A expansão ou modernização do Direito Penal é observada efetivamente no contexto da “sociedade de risco”, formulada por Ulrich Beck (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 48; SILVA SANCHEZ, 2001, p. 26; BECHARA, 2008). Assim, diante do desenvolvimento técnico-científico e o consequente progresso industrial e econômico iniciado no século XVIII, as atividades de produção acabam por gerar uma gama de riscos inevitáveis, e esses riscos oriundos das ações humanas tornam-se um fenômeno sócio estrutural (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 27). A população, consciente do dano que estes riscos são capazes de gerar, passa a exigir uma reação por parte do Estado, o qual usa o Direito Penal como um de seus instrumentos de proteção (HENRIQUES; ROSA, 2013). A sociedade da industrialização previa e aceitava a produção do risco, que eventualmente levaria a mortes e acidentes com trabalhadores, mas eram imprescindíveis para o desenvolvimento. Em contrapartida, o pós industrialismo alterna a tendência para a diminuição da permissividade do risco. A metáfora “navegar é preciso” vem sendo abdicada, uma vez que a maior parte das pessoas não mais navega. Em vez de o interesse maior residir no progresso, encontra-se na segurança (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 42-45). Para SILVA SANCHEZ (2001, p. 42), a não aceitação dos riscos se relaciona com a “[...] configuração de uma sociedade de ‘sujeitos passivos’”, a qual, oriunda do Estado de bem-estar, vê a diminuição da importância social das classes altas (empreendedoras, dinâmicas, ativas) em detrimento das camadas médias e baixas, compostas por pensionistas, desempregados, enfim, “[...] beneficiários, em definitivo, da transferência de riqueza, mais que criadores dos excedentes objetos de transferência”. A expansão da tutela penal... // 49

Os mencionados riscos têm como propriedade a grande dimensão e a indeterminação do número de pessoas potencialmente ameaçadas (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 49). A consciência da população sobre os riscos originados por ações humanas, somados aos desastres naturais – que, embora menos corriqueiros, não deixaram de existir – criam uma sensação de insegurança objetiva, isto é, o reconhecimento de riscos que realmente existem, e, ainda que de difícil ocorrência, são impossíveis de evitar. Diante disso, busca-se sempre a responsabilidade de alguém pelos danos causados (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 28-31). De outro lado, a complexidade da atual sociedade causa, primeiramente, uma facilidade de interação entre indivíduos, tanto devido à inovação da tecnologia da comunicação quanto à necessidade do trabalho de outros para a realização das necessidades e vontades pessoais, bem como para a proteção de bens jurídicos contra novos e velhos riscos (seguradoras, empresas de segurança privada, etc.) (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 30); todavia, em segundo lugar, ocorre um distanciamento interpessoal, uma ausência de solidariedade recíproca, que pode levar o sujeito a ver com facilidade no outro seu potencial inimigo (BITTENCOURT, R. N., 2009, p. 65-67). Ressalte-se que, para SILVA SANCHEZ (2001, p. 52), diante da necessidade de preservação da segurança exigida do Estado pelo “sujeito de bem estar”, é uma característica intrínseca deste a identificação com a vítima do delito – justamente em razão da insegurança, do medo de ser a próxima vítima – e, até por isso, de maior alheamento em relação à figura típica do delinquente. Destarte, em conjunto com a insegurança objetiva existe a sensação de insegurança subjetiva. Esta se refere à sensação social de insegurança, nutrida pelo excesso de informação que, diante da complexidade e dinamicidade da sociedade atual, não cria certezas, mas sim dúvidas e ambiguidade, que ao final se transmudam em ansiedade e insegurança (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 32). Nesse contexto, os meios de comunicação desempenham papel fundamental, especialmente sua tendência investigativa, de já reconhecida atuação político-punitivista, posto que o discurso midiático acaba por legitimar a expansão penal (BATISTA, 2003). Tão importante quanto o poder político da imprensa ao fomentar o espírito punitivista, no entanto, é a enxurrada de informações – notícias de crime e desastres, em especial – que transmitem uma imagem da realidade sem distância, isso é, “[...] na qual o perto e o longe tem uma presença quase idêntica na representação do receptor da mensagem” (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 38). A comunicação faz com que não precisemos mais viver a violência para poder senti-la (HASSEMER, 1994), o que dá lugar a percepções inexatas da violência e sensação de impotência (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 38). Soma-se a isso, a própria dramatização da mídia de “credo criminológico” (BATISTA, 2003), violência que vende porque tem demanda. 50 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Deve-se ressalvar, outrossim, que a interpretação mais coerente do fenômeno do punitivismo midiático não vê os meios de comunicação como criadores do medo da criminalidade, mas como meios que alimentam esse medo. Não se deve olvidar, ademais, que as instituições próprias do sistema penal – polícia, Ministério Público, magistrados, advogados, etc. – muitas vezes transmitem imagens irreais da criminalidade, que auxiliam no incremento da sensação de insegurança, e no consequente clamor por mais punição por parte da população (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 38-41)1. Em todo caso, diante da incerteza da localização e da quantidade real da violência que existe, a sensação subjetiva de insegurança supera em demasia o risco objetivo, e tem impacto significativo nas demandas político- criminais da população. À parte da sensação de insegurança, têm-se como particularidade recente e marcante a pressão exercida por setores específicos, geralmente minorias ou defensores de direitos ou bens jurídicos alheios aos tradicionais, para a criminalização de condutas praticadas previamente – ou mesmo novas condutas – que não eram do interesse do Direito Penal (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 66). Vislumbra-se no Direito Penal Econômico e Ambiental os maiores expoentes dessa tendência (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 50-51), mas também são relevantes a proteção da mulher – especialmente no âmbito doméstico – , dos homossexuais e dos afrodescendentes, tanto contra a discriminação quanto contra a violência por ela motivada (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 67). De qualquer forma setores da esquerda, especialmente, notaram a seletividade do cárcere e passaram a exigir a criminalização e severa punição das condutas das classes dominantes, afastando-se da concepção socialista de que o sistema penal é legitimador e instrumento de controle do capitalismo (KARAM, 1996)2. Por fim, importante destacar a criminalidade da globalização, pois, diante da diminuição das fronteiras e da dinamicidade econômica, formou-se uma nova forma de praticar crimes, geralmente ligados à economia global por organizações bem estruturadas, seja em torno do comércio de mercadorias lícitas de forma ilícita (tecnologia, bens imateriais), de mercadorias ilícitas per si (drogas, armas, órgãos humanos), ou mesmo o tráfico de pessoas (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 56-68). Pode-se destacar, resumidamente, as três principais qualidades da criminalidade da globalização: a organização, a transnacionalidade e o poder econômico tanto das organizações criminosas como de seus alvos (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 85-87).

1 Mencionável o caso dos “menores 007”: o atual Delegado-Geral de Polícia do Estado de São Paulo, Youssef Abou Chahin, em seu discurso de posse, buscando legitimar maior punição para menores infratores, disse que estes têm “licença para matar” (DELEGADO-GERAL, 2015). 2 De inegável efeito para o fortalecimento da esquerda punitiva foi o julgamento da Ação Penal 470, na qual pela primeira vez se demonstrou – e dramatizou – a condenação por condutas de corrupção no alto setor político do país. A expansão da tutela penal... // 51

3.2.2 Características do direito penal moderno

Em razão de todo o aludido, o Direito Penal passou a responder aos novos contextos sociais atualizando parte de seus elementos e criando instrumentos para reprimir a nova criminalidade sem deixar de manter seu núcleo tradicional (HASSEMER, 1994). Destarte, diferencia-se o Direito Penal “liberal” do “moderno”. Aquele se refere ao Direito Penal desenvolvido na Ilustração, cujo ideário político remonta ao declínio do Antigo Regime e à ascensão da burguesia como classe dominante (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 38), da superação do jusnaturalismo pelo contrato social (HASSEMER, 1992). Desse contexto são oriundos os princípios e fundamentos do Direito Penal até hoje utilizados. Definem-se como atributos do Direito Penal liberal, portanto, a garantia dos cidadãos frente à intervenção coercitiva do Estado, bem como a proteção de bens jurídicos estritamente ligados à liberdade e à propriedade individual (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 149). São delitos peculiares os crimes contra a vida, a liberdade e o patrimônio. De outro lado, entende-se por moderno o Direito Penal pós-industrial, o qual tem como novidade a expansão quantitativa e qualitativa da Parte Especial da legislação penal, é dizer, o surgimento de novos tipos penais para a proteção de bens jurídicos antes não tutelados (expansão quantitativa) e o recrudescimento das penas relativas aos delitos pré-existentes (expansão qualitativa) (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 20-24). Parte considerável da redação de novos tipos penais ocorre em razão da desmaterialização do conceito de bem jurídico, isso é, a concepção da existência de bens a partir de qualquer substrato social imaterial valorável, individual ou coletivo – destacando-se, nesse aspecto, o Direito Penal Econômico (que tem como bem jurídico a ordem econômica) e o Direito Penal Ambiental (bem jurídico ambiente equilibrado) (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 93-95). Observa-se, também, a administrativização do Direito Penal, definida como o uso de critérios do Direito Administrativo pelo Direito Penal como resposta anterior ao fato lesivo (por exemplo, crimes de perigo abstrato3 e os delitos de acumulação4) além do uso do Direito Penal como reforço às disposições administrativas (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 121-136).

3 Crimes de perigo abstrato podem ser definidos como aqueles que se consumam com a criação de um “resultado material que consiste na simples criação do perigo real para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano efetivo” tampouco exigir prova da ocorrência do resultado perigoso da conduta. A consumação ocorre com a mera prática da conduta descrita no tipo penal (BITENCOURT, C. R., 2012, p. 314). 4 Por delitos de acumulação, entende-se, em síntese, a criminalização de condutas que por si são incapazes de lesar o bem jurídico, porém, se praticadas por diverso número de pessoas (em acumulação), podem gerar dano efetivo. Como exemplo, têm-se os crimes de poluição (uma garrafa de óleo em um rio não causa prejuízo, mas cem mil garrafas podem levar a danos incalculáveis) e crimes contra o fisco (a evasão do pagamento de cem reais pode ser irrelevante, mas a evasão de cem reais por dez mil pessoas gera prejuízo ao erário de um milhão de reais) (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 131-136). 52 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

A partir dos novos elementos desvela-se que há uma “expansão razoável” do Direito Penal, bem como se dão importantes manifestações de sua expansão “não razoável”, justamente em resposta aos anseios razoáveis ou não da população (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 26), e, também, em razão dos novos interesses das classes dominantes, que muitas vezes se opõem à vontade popular, ou se entremeiam nela. Buscar-se-á, a seguir, destacar os aspectos claramente negativos dessa expansão.

3.2.2.1 Direito penal do inimigo

Verifica-se como uma das formas de expansão irrazoável o Direito Penal do inimigo (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 47, 85-89; SILVA SANCHEZ, 2001, p. 163-167). Também conhecido por Direito Penal de emergência (BECHARA, 2008; FERRAJOLI, 2002, p. 649-682), tem como elementos acentuados a temporalidade, a excepcionalidade, o enfoque no modo de vida do delinquente em vez de no fato criminoso e, notadamente, a redução de garantias materiais e processuais do imputado (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 163-165). Para JAKOBS (1997), o Direito Penal do inimigo, além de ser temporário e excepcional, deve se contrapor clara e expressamente ao Direito Penal do cidadão. Este tem como abordagem as esferas de liberdade do indivíduo, enquanto aquele busca maior proteção dos bens jurídicos. Ocorre uma diferenciação dos sujeitos – uma despersonalização, em verdade –, tendo em conta seus modos de vida. São inimigos do bem jurídico aqueles que “[...] abandonaram o Direito de um modo permanente e, com isso, o status de cidadão” (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 86), em virtude do profissionalismo e da habitualidade na delinquência, o que se verifica objetivamente através da reincidência, de sua vinculação com uma organização criminosa ou terrorista estruturada, enfim, por ser “[...] alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta este déficit através de sua conduta” (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 164). Justamente por tratar os indivíduos como inimigos, fica evidente que a norma deixa de ser “de Direito” e passa a ser “de não-Direito”, uma legislação de guerra contra fenômenos extremamente graves, que – para seus defensores5 – seria legítima somente em casos de “[...] absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia” (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 166). Entretanto, como ressalta Silva Sanchez (2001, p. 167), é do interesse dos Estados manter a comodidade lógica da perene emergência, o que leva à ilação de que o Direito Penal do inimigo se estabilizará e continuará a crescer. Como elementos do Direito Penal do inimigo observados na legislação atual têm-se a busca pela punição de atos preparatórios que por si só são incapazes de causar dano ao bem jurídico (JAKOBS, 1997); o

5 Sobre a ilegitimidade política e acadêmica da proposta do Direito Penal do inimigo de Jakobs, cf. SANTOS, J. C.. O direito penal do inimigo: ou o discurso do direito penal desigual. A expansão da tutela penal... // 53 processo penal inquisitivo em detrimento do processo penal acusatório e a consequente supressão de direitos e garantias conquistados desde o Iluminismo (SANTOS, J. C., 2012), a punição do autor pelo meio de vida em vez de pelo fato, especialmente em virtude da ligação dele com o crime organizado, o tráfico de drogas e o terrorismo (FERRAJOLI, 2002, p. 659); e, obviamente, a estigmatização ainda mais acentuada da típica clientela do sistema penal: traficantes e usuários de drogas das classes baixas, grupos étnicos e sociais ligados à criminalidade por opção político-midiática (por exemplo, a conexão árabes-terrorismo), e quaisquer outros que o discurso venha a considerar inimigo.

3.2.2.2 Direito penal simbólico

Por fim, o Direito Penal moderno tem como característica, ademais das qualidades mencionadas, o efeito meramente simbólico de parte considerável de sua legislação. Nesse sentido, considera-se que as leis em geral possuem efeitos latentes e manifestos. Quando ocorre a sobreposição das funções latentes da lei penal sobre as manifestas, tem-se o Direito Penal simbólico, do qual se pode esperar que realizem objetivos diversos daqueles descritos na norma. Segundo HASSEMER (1995), o direito penal simbólico pode se manifestar como leis de declaração de valores, leis com caráter de apelação moral, leis de crise (ou como resposta substitutiva do legislador) e leis de compromisso. Destarte, o autor enumera – sem presunção de completude – três funções ocultas do direito penal simbólico: satisfação de necessidade de atuar do legislador, apaziguamento da população e para demonstrar um Estado forte. Em qualquer caso, a função de proteção do bem jurídico, de defesa do ordenamento jurídico e os fins preventivos da pena são aparentes, enganosos, e muitas vezes manipulados para a consecução dos objetivos latentes pretendidos. Finalmente, a lei se torna meramente simbólica porque desde sua formulação até sua execução não possui capacidade de aplicação real, tornando-se ineficaz na realização de suas funções manifestas (HASSEMER, 1995). Retorna-se ao círculo vicioso: a ineficácia da norma gera sensação de impunidade e insegurança, as quais são combatidas com a confecção de nova norma, muitas vezes mais repressiva que a anterior, com os mesmos efeitos simbólicos, e igualmente sem sucesso prático. O medo persiste na população, que clama por ainda maior punição e o Direito Penal continua a criminalizar novas condutas e aumentar as penas dos delitos já tipificados.6

6 Para demonstração da ilegitimidade de todo o Direito Penal desde o princípio da legalidade, por ser completamente simbólico, cf.: TAVARES, Juarez. Os objetivos simbólicos da proibição: o que se desvenda a partir da presunção de evidência. 54 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

3.2.3 A doutrina frente ao direito penal moderno

Em face da inegável realidade do Direito Penal moderno, o discurso acadêmico enfrenta duas opções: racionalizar o novo para evitar injustiças; ou separar o novo e demonstrar sua inconstitucionalidade (ZAFFARONI, 1998). Assim é que parte considerável da doutrina critica a expansão do Direito Penal. Para muitos, deve-se se manter o Direito Penal em seu núcleo liberal e tratar apenas de bens jurídicos individuais como forma de manter as garantias materiais e processuais, uma vez que a expansão penal dissolve estas; para outros, contudo, a expansão razoável é bem vinda e demonstra a relação do Direito Penal com a sociedade que o cerca.

3.2.3.1 Crítica à modernização do direito penal

Nesse sentido, GRACIA MARTÍN (2005, p. 91) denomina o movimento contrário à expansão como “crítica ao Direito Penal moderno”, e ressalta as propostas de um novo sistema jurídico de Hassemer e Silva Sanchez para solucionar a questão da expansão. A crítica se baseia na negação da legitimidade das novas características do Direito Penal em razão da diminuição das garantias. Desse modo, a criminalização de ofensas contra os novos bens jurídicos alheios ao núcleo tradicional do Direito Penal liberal, bem como a sua administrativização, são uma afronta ao princípio da intervenção mínima, que tem efeitos negativos diante do consequente enfraquecimento dos efeitos preventivos da lei penal (LUISI, 2003, p. 42-45). Outrossim, refuta-se inclusive a possibilidade de se aceitar plenamente a proteção penal de bens jurídicos universais – geralmente formulados pelo legislador de forma vaga e ampla (HASSEMER, 1992). O que se protegeria com os novos bens jurídicos, seriam, na verdade, “‘funções’, isto é, instituições, modelos ou objetivos da organização política, social ou econômica, ou contextos, ambientes ou condições prévias à fruição dos bens jurídicos individuais” (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 94-95). Os novos bens jurídicos seriam, por isso, objetos fictícios de tutela, utilizados somente para o incremento da legislação penal (GRACIA MARTÍN, 2005. p. 95). Por outro lado, a utilização massiva de tipos penais de perigo abstrato feriria o princípio da lesividade, pois não ocorre real dano ao bem jurídico protegido, e, ao contrário, incrimina-se alguém pela prática de uma conduta que não produz resultado real (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 96). Ademais, a ausência de um resultado material dificultaria sobremaneira a possibilidade de defesa do imputado (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 127). A partir desses pressupostos, HASSEMER (2010), propõe o desenvolvimento de um Direito de Intervenção, localizado entre o Direito Penal e o Direito Administrativo sancionador, com ênfase na prevenção de lesão a bens jurídicos, sem, contudo, diminuir as garantias do imputado, pois as sanções seriam aplicadas com menor intensidade que as do Direito Penal A expansão da tutela penal... // 55 tradicional, proporcionalizando-se, assim, garantias e penas – leia-se: não se aplicariam penas restritivas de liberdade (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 108). Seriam exemplos de âmbitos de ocupação do Direito de Intervenção: uso e tráfico de drogas, corrupção, venda de produtos perigosos, e criminalidade infanto-juvenil (HASSEMER, 2010). Ao lado do Direito de Intervenção restaria o Direito Penal nuclear, isso é, tradicional, com fundamentos nos ideais iluministas – cuja função seria a garantia contra a força coercitiva do Estado –, e que responderia somente como resposta a lesões graves e efetivas a bens jurídicos individuais sem ressalvas a alguns poucos supra individuais (HASSEMER, 2010). De outra banda, Silva Sanchez afirma ser impossível voltar ao Direito Penal liberal e devolver os novos injustos ao Direito Administrativo, ainda que considere esta uma postura “louvável” (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 150). Para o penalista espanhol, o populismo punitivo demanda que o Direito Penal continue a tratar das novas condutas, justamente para manter o caráter simbólico-comunicativo da norma penal resultante da força do mecanismo público persecutório, além da maior neutralidade política do Judiciário, se comparado com o Direito Administrativo; porém, as garantias gerais do imputado deverão se manter proporcionais à pena aplicada. O problema, em sua opinião, não é a expansão do Direito Penal, mas a expansão da pena privativa de liberdade (SILVA SANCHEZ, 2001, p.150- 155). Destarte, o Direito Penal seria dividido em razão da “[...] diferença existente entre as estruturas típicas, regras de imputação, princípios processuais e sanções substancialmente diversas” em segmentos, que o autor chamou de “velocidades” (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 157). O Direito Penal de primeira velocidade equivaleria ao Direito Penal nuclear ou liberal, e responderia com pena de prisão aos crimes tradicionais (contra a vida, a liberdade, o patrimônio), com a observação integral dos princípios e garantias de política-criminal e das regras de imputação (SILVA SANCHEZ, 2001, p.157-160). De seu turno, o Direito Penal de segunda velocidade lidaria com as novas criminalidades, com sanções menos intensas (penas pecuniárias, restritiva de direitos, perda de direitos, etc.), e, por isso, com a mitigação das regras de imputação e dos princípios e garantias, de forma muito similar ao Direito de Intervenção, porém mantendo os atributos formais do Direito Penal (SILVA SANCHEZ, 2001, p. 160-162).

3.2.3.2 Resistência à crítica contra a modernização do direito penal

A posição de crítica à modernização do Direito Penal não é unânime. Autores como Gimbernat, Kuhlen, Hefendehl, Tiedemann e Schünemann analisaram elementos do novo Direito Penal em confronto com os princípios liberais e concluíram que não há ofensa aos princípios penais nas novas modalidades de criminalização (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 111-112). Para GRACIA MARTÍN (2005, p. 126-131), a crítica contra a modernização do Direito Penal é um discurso – no sentido foucaultiano – de 56 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade manutenção do domínio social da classe burguesa, predominante desde a Ilustração. Sua verdadeira função seria a de manutenção da criminalização e inoculação das classes baixas e a exclusão do Direito Penal – ou ao menos da prisão, segundo a proposta de Silva Sanchez – da criminalidade das classes altas, a qual hoje se tenta combater através das novas formas de imputação no Direito Penal econômico e no Direito Penal ambiental. O movimento de crítica à modernização ignora – de boa-fé ou não – a verdade material ao vislumbrar somente um “céu de conceitos jurídicos” (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 126), uma vez que as garantias iluministas têm dupla função na proteção das classes altas: as garantias em sentido formal, de proteção contra a força coercitiva do Estado; e em sentido material, função “estratégica de encobrir os efeitos materiais causados a partir dos dispositivos da face oculta do discurso” (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 126), é dizer, usar o sistema penal para controlar as classes baixas e evitar a criminalização formal (redação de leis ou criminalização primária) e material (efetivação das leis, através da persecução penal ou criminalização secundária) dos detentores do discurso. Destarte, para o autor, a doutrina tem como dever ético apresentar resistência à crítica reacionária, baseada na construção do discurso do Direito Penal moderno e de seus elementos, que deverão considerar a criminalidade de todas as classes de forma igualitária, para servir como uma revolução jurídico-conceitual, uma vez que romperia completamente com os ditames do Estado liberal para se tornar o Direito Penal do Estado social e democrático de direito (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 113-114 e 132). A guisa de conclusão, assentou-se até aqui a expansão do Direito Penal como um todo, verificando-se sua existência, desde suas causas político-sociais, analisando seus elementos e características, bem como a forma que a doutrina enfrenta ou abraça essa modernização.7 Doravante, tratar-se-á do Direito Autoral.

7 Além do debate dogmático e de política criminal acerca dos novos elementos e instrumentos da expansão do Direito Penal, não se pode deixar de mencionar o discurso abolicionista, com fortes influência da criminologia crítica, de superação do Direito Penal como um todo. Essa corrente ideológica busca suprimir do Estado o monopólio legalizado da violência e a universalização da aplicação de penas em razão de condutas previamente tipificadas por modelos gerais, ao mesmo tempo em que concede às partes relacionadas ao fato – autor, vítima, pessoas ligadas à vítima, etc. – o diálogo para o desenvolvimento de uma solução que seja melhor para todos os envolvidos. Acredita-se que uma solução especificamente alcançada pelas partes para cada situação tenha como efeito a redução do autoritarismo emanante do Estado, com o consequente incremento da liberdade de todos os indivíduos (PASSETI, 2012, p. 27-33). Contudo, não se trata de uma substituição do sistema penal encarcerador por um sistema conciliador, no qual são estabelecidos parâmetros legais gerais controlados por uma autoridade superior (juiz, promotor, delegado, etc.). Ao contrário, busca-se a internalização cultural de costumes libertários que visa a encontrar para cada situação-problema uma solução intimamente relacionada às pessoas ligadas ao fato criminoso, de forma consensual e horizontal, sem a necessidade de aplicação de quaisquer penas estipuladas em âmbito geral e, por isso mesmo, inócuas (PASSETI, 2012, p. 27-33). É dizer, a indenização ou reparação – quando possível – do dano causado pela conduta de alguém será efetivamente justa somente quando observados e valorados, de forma conjunta por parte dos envolvidos, todos os elementos que levaram àquele ato, e não por alguém alheio à situação, como o juiz ou o legislador. Todavia, não se descarta a A expansão da tutela penal... // 57

3.3 DIREITO AUTORAL

O Direito Autoral é uma criação legislativa que dá valor pessoal e econômico sobre ideias, criações humanas imateriais – mas que podem ser fixadas sobre algum substrato – de cunho estético, isso é, artístico, literário ou científico, e obriga terceiros que utilizem essa ideia perante aquele que a desenvolveu. Na definição de Carlos Alberto Bittar (2013, p. 27), é “o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências”. O Direito Autoral, como espécie do gênero direitos intelectuais, é didaticamente dividido em sua conotação patrimonial, que compartilha características com os direitos reais; e seu aspecto moral, correspondente ao vínculo do autor com a obra, de forte apelo pessoal, tratando-se, pois, de direito da personalidade. Conforme esclarece BITTAR (2013, p. 69):

Os direitos morais são os vínculos perenes que unem o criador à sua obra, para a realização da defesa de sua personalidade. E isso, porque, toda obra é criação única do espírito e da cultura. Como os aspectos abrangidos se relacionam à própria natureza humana, e desde que a obra é emanação da personalidade do autor – que nela cunha, pois, seus próprios dotes intelectuais –, esses direitos constituem a sagração, no ordenamento jurídico, da proteção dos mais íntimos componentes da estrutura psíquica do seu criador.

Porém, é necessário compreender brevemente a história do surgimento e desenvolvimento do Direito Autoral,8 a qual é dividida em duas “tradições”: do copyright, com fundamento na common law, surgida na Inglaterra e desenvolvida nas colônias britânicas e nos países da Commonwealth; e do droit d’auteur, de raiz na civil law, originada na Europa possibilidade de representantes da sociedade/Estado auxiliarem no percurso à procura da melhor solução para a situação (PASSETI, 2012, p. 27-33). Tem-se assim, como objetivo e fundamento desse movimento, a aproximação dos indivíduos, a criação de verdadeira empatia por alguém que teve o seu caminho de vida abalroado com outro – o que, como visto, é contrário ao que vem acontecendo na pós-modernidade individualista. Por esse motivo – dentre alguns outros que aqui não cabe a discussão –, o ideário abolicionista é visto como uma utopia por número relevante de juristas e criminólogos. Sem embargo, o abolicionismo penal tem sólidas bases empíricas na criminologia crítica e não deixa de apresentar respostas coerentes a condutas criminais ou criminalizáveis e à expansão penal, pelo que deve ser considerado. O aprofundamento na rica diversidade dos discursos abolicionistas não cabe neste singelo espaço, sendo descrito somente um resumo de uma das formas em que é vislumbrado. Para maiores detalhes, cf. ÁVILA; GUILHERME, Abolicionismos penais. Porto Alegre: Lumen Juris, 2015. 8 A análise histórica do Direito Autoral, ainda que de forma sucinta, faz-se necessária em virtude da incoerente – como se verá a seguir – racionalidade da legitimação desse ramo do Direito. É imprescindível observar que, desde seu início, a função principal da norma autoral não é, efetivamente, a proteção do artista criador, mas sim – ainda que de forma latente – a manutenção de privilégios a uma determinada classe ou grupo econômico que controla o mercado da arte e do entretenimento e o fluxo de informação. Nesse sentido, cf. WACHOWICZ, 2011, p. 231. Igualmente, BRANCO JUNIOR, 2007, p. 15. 58 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade continental e espalhada pelas colônias da América Latina e Ásia (GOLDSTEIN, 2001, p. 3). Ao final da Idade Média, conforme o comércio capitalista voltava a existir na Europa, tornou-se habitual a concessão de privilégios outorgados pelo governante, mediante ato pessoal e discricionário, para a exploração econômica de determinada atividade, inclusive a cópia e publicação de livros, cujo comércio foi exponencialmente facilitado pelo invento da imprensa tipográfica de Gutenberg (LISBOA, 2012, p. 301). Para manter o monopólio de produção intelectual e evitar a disseminação de ideias contrárias aos seus interesses, os governantes passaram a conceder privilégios para editores e vendedores de livros por eles escolhidos, sem garantir aos autores qualquer direito vinculado à autoria. O autor detinha apenas a propriedade do manuscrito, e somente até a concessão de licença para publicação ao editor (COELHO, 2012, p. 230). O sistema de privilégios sobre obras intelectuais foi adotado em toda a Europa durante a Idade Moderna. Porém, as tradições de copyright e do droit d’auter surgiram em virtude da intensidade do poder político desenvolvido na Inglaterra e na França (MIZUKAMI, 2007, p. 238-239). Na primeira se formou, em torno de 1557, além do sistema de privilégios, uma classe corporativa de editores e comerciantes de livros, chamados de stationers, que asseguravam à Coroa o cumprimento da censura em troca do monopólio sobre o comércio de livros. A eles eram conferidos poderes de censura por meio do stationer’s copyright, que tornava desnecessária a concessão de privilégios específicos sobre a publicação de livros, uma vez que a classe já possuía o monopólio naquele mercado (MIZUKAMI, 2007, p. 252-253). Todavia, em 1695, o Licensing Act, que adotava expressamente o sistema de renovações periódicas, expirou e não foi renovado (MIZUKAMI, 2007, p. 258), deixando os livreiros sem amparo legal, tornando o comércio de livros instável. Por isso, os beneficiários dos privilégios passaram a pressionar o Governo e o Legislativo buscando novo regulamento de mercado (GOLDSTEIN, 2001, p. 5). Para equilibrar os interesses econômicos dos stationers, em contradição com livreiros concorrentes e aqueles que defendiam a circulação das ideias, foi publicado o Statute of Anne em 1710, que limitou a exclusividade da publicação de livros a vinte e um anos (LESSIG, 2004, p. 86). Passados os primeiros vinte e um anos da publicação da Lei, nos anos de 1731 e 1734, os livreiros se dirigiram ao Parlamento pedindo maior tempo de exclusividade, para tentar evitar o surgimento de concorrentes, sobretudo estrangeiros, porém, sem sucesso. Diante disso, recorreram ao Judiciário, afirmando que, considerando a cultura de Commom Law, o Statute of Anne em nada alterara a condição perpétua das licenças que possuíam (LESSIG, 2004, p. 89-90). Parte dos juristas concordava com a tese alegada e, por sessenta anos o assunto foi debatido nas cortes inglesas – vindo esse período a ser chamado pela doutrina de Battle of the Booksellers (MIZUKAMI, 2007, p. 259) – em geral, com resultados favoráveis aos stationers. Entretanto, em 1774, a A expansão da tutela penal... // 59

House of Lords realizou o julgamento definitivo sobre a interpretação do Statute of Anne, rejeitando a ideia de privilégio perpétuo e criando o conceito de domínio público no Direito Autoral (LESSIG, 2004, p. 92-93). Ressalte-se que o Statute of Anne não tinha como foco de proteção o autor, não obstante este tenha, até certo ponto, beneficiando-se indiretamente em razão da forma de mercado decorrente da Lei.9 Buscava- se, sim, regular o mercado editorial. Somente em 1842 foi publicado o Literary Copyright Act que reconhecia direitos ao escritor e ao ator, também por tempo limitado. Enfim, em 1911, o mencionado Ato foi editado para incluir como detentores de copyrights compositores, arquitetos, fotógrafos e outros (COELHO, 2012, p. 232-233). Os Estados Unidos da América adotaram a tradição de copyright, com sistema semelhante ao da Inglaterra, estabelecido expressamente na Constituição Federal, nos dizeres: “Congress has the power to promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries” (LESSIG, 2004, p. 130). Com esta premissa, a primeira legislação autoral dos EUA foi o Act of 1790, que foi redigido nos moldes do Statute of Anne (GOLDSTEIN, 2001, p. 6). Por sua vez, diferente da Inglaterra, na França não existiam entidades normatizadas para regular o comércio de livros ou o caráter corporativo desse comércio; somente o sistema de privilégios, com livreiros beneficiados diretamente pelo governante e que exerciam a função de censura (MIZUKAMI, 2007, p. 267). Diante do prejuízo suportado em virtude do monopólio oriundo dos privilégios, escritores e dramaturgos passaram a formar grupos de pressão política, o que culminou na criação, em 1777, do que viria a ser a Societé des Auters et Compositeurs Dramatiques (SACD), que continua em operação até hoje (MIZUKAMI, 2007, p. 267). Com a Revolução Francesa, os novos governantes eliminaram os privilégios vinculados ao Governo anterior (SANTOS, M. S. 2008, p. 44) e publicaram duas leis que seriam tomadas como marco na tradição do droit d’auteur: uma em 1791, que concedia aos dramaturgos o direito exclusivo de reprodução de suas obras; e uma em 1793, que garantiu amplos direitos contra a reprodução não autorizada das obras das demais categorias de autores (MIZUKAMI, 2007, p. 267). Poucas alterações foram realizadas nessas leis, até a publicação da Lei sobre a Propriedade Artística e Literária

9 Em razão da abertura de mercado, o escritor ou dramaturgo poderia vender sua obra ao editor que lhe oferecesse o melhor preço, ou poderia se tornar um editor/livreiro, se tivesse capital inicial (LESSIG, 2004, p. 86). Contudo, ressalta MIZUKAMI (2007, p. 260-261) que “a prática que se estabeleceu após o Statute of Anne foi a de se exigir dos autores a transferência do copyright como pré-requisito à publicação, o que na maioria dos casos continua a acontecer até hoje, dependendo do contrato de edição (a reserva de direitos morais, em países da tradição do droit d’auteur, pouco atenua os prejuízos que o autor pode sofrer com a cessão integral dos direitos patrimoniais)”. Assim, o autor continua sem receber os royalties a que teria direito, lucrando somente com a transmissão da obra, como ocorria antes mesmo do Statute of Anne. 60 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade de 1957 (MIZUKAMI, 2007, p. 268), sendo grande parte do conteúdo autoral regulado pela prática forense durante esse tempo (GOLDSTEIN, 2001, p. 9). Na tradição do droit d’auteur se reconheceu verdadeiro caráter naturalista, de modo que o direito de autor – notadamente o moral – nasce no momento da criação da obra (COELHO, 2012, p. 234-236), restando o registro irrelevante para o surgimento do direito, embora garanta facilidades administrativas e sirva como prova judicial. E é por seu caráter naturalista que ocorre a prevalência dos direitos morais (GOLDSTEIN, 2001, p. 9). Em contrapartida, como se depreende de seu nome, o copyright surgiu para regular a reprodução de cópias (SANTOS, M. S., 2008, p. 45). Era característico deste sistema o viés primordialmente instrumentalista (GOLDSTEIN, 2001, p. 7) – focado no mercado das obras – o que restou em difícil recebimento da ideia de direitos morais de autor nos países que o adotam (COELHO, 2012, p. 238). Assim é que a exigência de registro para a proteção da obra foi obrigatório nos Estados Unidos até a segunda metade do século XX (GOLDSTEIN, 2001, p. 23). É certo que, com a globalização e políticas internacionais procurando internacionalizar o mercado cultural, esses sistemas têm-se convergido a um ponto de equilíbrio e as diferenças entre eles vem diminuindo. Após o enraizamento das mencionadas tradições de direitos autorais nacionais na Inglaterra, na França e nos demais países ocidentais que possuíam produção intelectual – além de suas colônias – o respeito a obras estrangeiras, bem como a defesa de criações intelectuais de seus cidadãos em outras nações tornaram-se objeto de debate (MIZUKAMI, 2007, p. 272). Passou-se a produzir diversos acordos internacionais bilaterais, frequentemente muito diferentes uns dos outros. Para solucionar a questão, em 1852, a França publicou uma lei universal de direitos autorais, que conferia proteção a obras estrangeiras (MIZUKAMI, 2007, p. 272). A partir de então, um movimento social buscando a universalização dos direitos autorais em toda a Europa ganhou força, até se tornar, em 1878, a Association Littéraire et Artistique Internationale, presidida pelo famoso escritor Victor Hugo (MIZUKAMI, 2007, p. 272). Trabalhos da Association somados a rodadas de negociações internacionais resultaram no primeiro tratado internacional multilateral referente aos direitos autorais: a Convenção de Berna, em 1886 (MIZUKAMI, 2007, p. 272-273). A Convenção de Berna está até hoje em vigor, e sofreu diversas revisões e complementações de outros tratados internacionais no decurso do século XX para atualizar o regramento autoral com as novas tecnologias e unificar pontos ainda divergentes entre os signatários, sempre visando a maior proteção dos beneficiários dos direitos (MIZUKAMI, 2007, p. 273). Houve, a partir de então, uma convergência internacional em direção à expansão do conteúdo, da forma e do tempo de validade dos direitos autorais. Como novo conteúdo pode-se mencionar apresentações e gravações musicais, as artes plásticas, as transmissões de rádio e televisão, o cinema, a arquitetura, a fotografia, o software, a publicidade e até os eventos A expansão da tutela penal... // 61 esportivos10. Além de se aceitar a proteção legislativa de todas essas áreas, também se admite a capacidade de criação estética por pessoas jurídicas, e o consequente nascimento do direito autoral de suas obras. A expansão da forma se dá através do surgimento de novos instrumentos de tutela judiciais ou extrajudiciais, tais quais a criminalização de condutas violadoras; ritos processuais especiais – em ambas esferas cível e criminal –; a criação de entidades, públicas ou privadas, de proteção de direitos autorais e arrecadação de valores a estes referentes; publicidade massiva buscando a “educação” da população contra a pirataria; tecnologia de proteção de obras no ambiente virtual, como softwares que impeçam sua distribuição ou funcionamento. Finalmente, o tempo de vigência dos direitos passou dos vinte e um anos do Statute of Anne para, no mínimo, cinquenta anos após a morte do autor, conforme definido pela Convenção de Berna (GOLDSTEIN, 2001, p. 230). Contudo, muitos países ultrapassam o termo definido pelo tratado, como o Brasil, no qual as obras caem em domínio público somente setenta anos após a morte do autor. Nos Estados Unidos da América, embora a legislação preveja o termo de cinquenta anos, durante a segunda metade do século XX as obras protegidas já criadas tiveram seu termo renovado diversas vezes, evitando que inúmeras obras se tornassem de domínio público (LESSIG, 2004, p. 134-135). Importante marco na expansão recente dos direitos autorais é o acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), de 1994, criado anexo à Organização Mundial de Comércio. Verifica-se, logo, o caráter econômico, de mercado que a comunidade internacional dá ao Direito Autoral. Este documento serviu para facilitar a circulação de mercadoria do entretenimento entre os países membros, com nova uniformização dos direitos autorais nacionais (SANTOS, M. S., 2008, p. 74). Como já mencionado, a tecnologia foi crucial para o surgimento dos Direitos Autorais. Sem a imprensa tipográfica, a cópia de livros seria muito mais difícil e, por isso, possivelmente irrelevante para o legislador. No mesmo sentido, é inegável que novas tecnologias fizeram surgir novos elementos dos Direitos Autorais, por exemplo, a câmara fotográfica. Hoje claramente passamos por um momento de crise dos Direitos Autorais, nascida com a internet, elemento central da sociedade da informação.

3.3.1 A sociedade da informação

A era digital, ou era da informação, tem início com a popularização dos computadores pessoais e da internet, que facilitaram a comunicação global (SANTOS, M. S. 2008, p. 102-110). Na sociedade dessa era, “a informação tem peso privilegiado no jogo dos interesses sociais” (BITTAR, 2013, p. 40), em razão da tendência que o conhecimento e a informação – e,

10 A Lei de Direitos Autorais de 1973, Lei 5.988/73, revogada pela Lei 9.610/98, previa a contraprestação aos atletas pelas reproduções de espetáculos esportivos (direito de arena), até a edição da Lei 9.615/98, que insere essa proteção na regulamentação do desporto. 62 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade como consequência, os direitos intelectuais – têm de se tornarem os principais bens de consumo e de produção do século XXI (KRETSCHMANN, 2011, p. 86). Ressalta CASTELLS (2005, p. 17) que não se trata, realmente, de uma sociedade da informação, porque a informação sempre existiu e se mantém tão importante quanto em outras épocas, embora a forma de difusão tenha sido alterada pela informática. Para o sociólogo, vivenciamos hoje a sociedade em rede. Assim como a informação, as redes também sempre existiram, porém, no âmbito privado. Anteriormente, o domínio organizacional de produção era majoritariamente vertical, hierárquico, focado em uma autoridade central. Com a internet, as redes passam a ser flexíveis e adaptáveis em virtude da autonomia descentralizada de cada rede, especificada para o desenvolvimento do trabalho a que lhe for atribuído (CASTELLS, 2005, p. 17). Nesse sentido, a globalização é um elemento da sociedade em rede, pois a comunicação ultrapassa as fronteiras nacionais, é baseada em redes globais (CASTELLS, 2005, p. 18). Isso é bem observável pelo conceito de cidade global, cunhado por Castells, a qual não é uma única metrópole que oferece todos os serviços do mundo, mas sim um espaço virtual em que cidades de todo o planeta, de tamanhos variados, usam parte de seu território para governança da economia global e para troca de informações por todo o mundo (CASTELLS, 2000). Como exemplos de descentralização da criação de bens e serviços, têm-se empresas gigantes como Google e Facebook, cujos setores internos são modelados em redes com menor presença de hierarquia e verticalização (CASTELLS, 2000). De forma similar, a comunicação de massa passa por intensa descentralização, sendo hoje “autocomandada”, isso é, iniciada, desenvolvida e difundida por pessoas ou grupos autônomos, sem a mediação do sistema de mídia tradicional (CASTELLS, 2005, p. 24). Igualmente ocorre a proliferação de software livre e de open source. Ainda que diferentes em conceito, ambos são criados a partir da soma de esforços de indivíduos em uma rede totalmente descentralizada (STALLMAN). Nada obstante, importante mencionar a advertência que ASCENÇÃO faz sobre os termos “globalização” e “sociedade da informação”. Estes não seriam termos técnicos, mas slogans legitimadores de uma política internacional de expansão da dominação econômica. Ainda assim, a globalização e a comunicação de massa são uma realidade, o que enseja a discussão sobre como essa política de globalização e de acesso à comunicação deve se desenvolver.

3.3.1.1 Compartilhamento de conteúdo na internet

As crescentes transformações que a internet traz à sociedade e a dificuldade em se controlar o fluxo dos dados – muitas vezes ilícitos – que A expansão da tutela penal... // 63 são transmitidos na rede tornam-na um desafio para o Direito (SANTOS, M. S., 2008, p. 111-113). Para o Direito Autoral, especificamente, uma das razões de sua maximização na internet é a criação de uma cópia sempre que há o uso de obra no meio digital. É dizer, quando se lê um texto ou se ouve uma música em um site qualquer, os códigos em linguagem binária são salvos no computador, ainda que temporariamente. Assim, os usos que antes não eram regulados passam a ser: ler um livro ou ouvir música em casa eram condutas irrelevantes para o Direito Autoral. Entretanto, quando essas condutas são realizadas através da criação de uma cópia da obra no computador, vêm automaticamente a ser do interesse do detentor dos direitos (LESSIG, 2004, p. 139-144). Por isso hoje o uso livre ou – como expresso na LDA – as limitações dos direitos autorais tornaram-se tão utilizáveis. Em verdade, o que antes era irrelevante para a lei deve hoje passar pelo filtro das limitações, que são bastante restritas. Soma-se a isso a facilidade de trânsito da comunicação da sociedade da informação e se tem uma verdadeira violação em massa de direitos autorais. Dessa forma, a principal celeuma – e que mais preocupa a indústria do entretenimento – reside no compartilhamento de arquivos. A origem desse fenômeno pode ser atribuída ao Napster. Este serviu para a propagação de arquivos no formato mp3 – então recentemente criado – por todo o mundo, vindo a ser “o mais popular sistema de transmissão de arquivos de áudio via Internet” (ROCHA FILHO, 2002, p. 170). A Recording Industries Association of America (RIAA), diante de alegados prejuízos sofridos em razão dos downloads que eram efetuados no sistema, moveu ação contra o Napster, que foi obrigado a se adaptar às exigências da indústria (MIZUKAMI, 2007, p. 85). Ocorre que o Napster não era mero programa que realizava a troca de arquivos. Dentro do sistema havia “uma plataforma para produção discursiva sobre a música compartilhada, formando-se uma comunidade em torno do uso do sistema”, na qual se desenvolveu uma cultura de compartilhamento com identidade própria (MIZUKAMI, 2007, p. 85). Por isso, quando da extinção do Napster, os usuários dessa comunidade passaram a procurar outros sistemas de compartilhamento de arquivos e se dispersaram por vários sistemas, com arquiteturas próprias, como FastTrack, OpenNap, Soulseek, ed2k (eDonkey e eMule), BitTorrent, dentre outros. Essas comunidades cresceram, desenvolveram-se e se consolidaram, criando normas sociais próprias, muitas vezes em resposta a tentativas de fechamento dos sistemas pela indústria (MIZUKAMI, 2007, p. 85).

A evolução dos sistemas de compartilhamento de arquivos, tanto em seus aspectos técnicos quanto em seus aspectos sociais, pode ser vinculada a momentos de ação e reação. Boa parte dos avanços tecnológicos e social- normativos referente aos sistemas de compartilhamento teve como contrapartida uma reação por parte da indústria do conteúdo, em diversas frentes de ataque, via direito, arquitetura, propaganda e mercado. As reações 64 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

da indústria do conteúdo, a seu turno, em grande medida motivaram contrarreações por parte da comunidade do compartilhamento de arquivos, em sentido oposto. Como explica Vaidhyanathan estabeleceu-se uma “corrida armamentista” pró e contra o compartilhamento, com reflexos negativos, inclusive, sobre o regime do fluxo de informação fora do espaço da Internet (MIZUKAMI, 2007, p. 99).

Vivencia-se a guerra dos direitos autorais. Grupos se formaram e vêm se expandindo em contrarreação aos ataques da indústria do conteúdo, inclusive criando partidos políticos.11 Na mesma luta, ativistas de todo o mundo se engajam contra condutas abusivas por parte dos detentores dos direitos autorais e de tentativas de aprovação de legislações maximalistas,12 pois estas tendem a resvalar em assuntos que, inicialmente, não se relacionariam com direitos autorais, como liberdade de expressão e de acesso à informação. Para estes, as novas formas de cópia e distribuição de obras intelectuais são uma evolução sem retorno, e o comércio do entretenimento deve se adaptar a estas novas formas em vez de penalizar indivíduos que busquem trocar informações e acessar cultura (ADOLFO; SOUZA, 2011, p. 107-109). A cada reação da indústria para recuperar seu controle, mais as comunidades de compartilhamento se unem e crescem, buscando resistir e substituir o poder estabelecido. É certo, pois, que as obras intelectuais compartilhadas recebem a proteção da legislação autoral, tendo em vista que estão fixadas nos discos rígidos dos servidores e dos usuários da internet. Ainda que digitalizadas, seus bits, como em qualquer linguagem, podem ser traduzidos ao formato original da obra – seja sonora, audiovisual ou literária. Portanto, a posse, a reprodução, a publicação, enfim, qualquer uso de obra intelectual na internet sem a remuneração e a prévia autorização do autor pode configurar violação dos direitos autorais que ensejaria responsabilidade civil e penal. Contudo, o compartilhamento de arquivos faz parte da realidade da sociedade da informação, constituindo competência de novas políticas que venham a ser implementadas para a resolução conflitos em face dos direitos de autor, observando-se os interesses de todos os envolvidos, a liberdade de expressão e o acesso à cultura.

3.4 A TUTELA PENAL DOS DIREITOS AUTORAIS

Não obstante os defensores dos direitos autorais busquem a legitimação do seu monopólio através do argumento que aqueles que produzem obras estéticas devem receber uma contraprestação, sob pena de estagnação da cultura, constata-se outra realidade: é praxis os autores transferirem seus direitos para entidades que tratam do comércio específico

11 Vide: Partido Pirata: . 12 Sobre os projetos de lei estadunidenses que foram abandonados por pressão de manifestações cívicas, inclusive online, que teve como adeptos pessoas de todo o mundo e organizações importantes, cf. CONDON, 2012. A expansão da tutela penal... // 65 daquelas obras (gravadoras, editoras e afins), por determinado preço pré- estabelecido. Os valores do monopólio que deveriam sustentar os criadores são, então, somados aos lucros de publicação, que já seriam recebidos pela empresa. Essa situação é mais alarmante quando se observa a concentração de mercado globalizado que vem se formando nas últimas décadas nas mãos de poucas corporações.13 São essas empresas, pois, que têm poder para definir hoje o que são os direitos autorais e quais condutas os violam, através de propaganda e pressão política. Pela propaganda, buscam incutir na mente do consumidor que o uso ilegal de suas obras é o mesmo que “roubar”, buscando a equiparação da violação a direitos autorais com crimes contra a propriedade no corpo moral da sociedade, verdadeira tentativa de etiquetamento. No plano político, usam de parlamentares que os representam e de lobbys para que os objetos e o tempo de proteção sejam ampliados, para que novas condutas sejam consideradas violadoras desses direitos e as sanções a elas sejam exasperadas. Hoje, qualquer uso de obra sem autorização do titular dos direitos é uma violação, cabendo resposta jurídica nos âmbitos civil, administrativo e criminal, ressalvado os poucos casos de uso livre permitido. Na esfera criminal, a proteção dos direitos autorais era mínima na maioria dos países, ressurgindo e expandindo – quantitativa e qualitativamente (MIZUKAMI, 2007, p. 115) – por volta dos anos 1980, para tentar coibir a pirataria da época, nascida da facilidade de se produzir cópias de CDs e fitas magnéticas (GOLDSTEIN, 2001, p. 327). Em 1997 – antes mesmo do fenômeno do compartilhamento de arquivos online –, nos Estados Unidos, ampliou-se a criminalização da distribuição de conteúdo àqueles que o fizessem sem intuito de lucro – direto ou indireto –, atribuindo penas de prisão e multa. Em 2005, tornou-se crime a gravação de filmes em cinemas para a posterior distribuição (MIZUKAMI, 2007, p. 115-116). Somam-se à nova legislação penal e à propaganda massiva as ações policiais, sempre teatrais, com mobilização de grande número de agentes, uso de cães farejadores e extensa cobertura jornalística, como pôde ser visto contra o Megaupload (GAYLE, 2012) e duas vezes contra o Piratebay (MENNECKE, 2006; ANDY, 2015). Evidente o caráter simbólico dessas operações, com claro escopo de demonstrar força estatal/policial e, com isso, aterrorizar a comunidade do compartilhamento, estratégia há muito desvelada (MIZUKAMI, 2007, p. 154). No Brasil, especificamente, o crime de violação de Direitos Autorais é aplicado majoritariamente sobre a venda ilícita de mídias físicas por comerciantes ilegais ambulantes, cuja tipificação ocorre no artigo 184, §2º do Código Penal. Contudo, é conhecimento comum a imensa cifra oculta referente a este crime, considerando que a venda de CDs e DVDs piratas ocorre frequentemente em locais cedidos e protegidos pelo poder público.

13 Segundo expectativas apontadas por LESSIG (2004, p. 162), por volta de 2023 apenas três companhias controlarão cerca de 85% da mídia. 66 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Não obstante, desde 2003, o crime de violação de direitos autorais no Brasil comporta qualquer conduta violadora, mesmo sem intuito de lucro, em seu caput: “Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhes são conexos”. É norma penal em branco, que considera crime qualquer violação prevista na legislação autoral. Veja-se com isso, que qualquer pessoa que uma vez assistiu a um filme adquirido de forma ilegal – não importando, realmente, quem o adquiriu – praticou uso ilícito, nos termos da legislação autoral e, portanto, praticou o crime de violação de direitos autorais sem intuito de lucro. Não obstante se verifica que a indústria do conteúdo usa de todos os métodos possíveis para manter seus modelos tradicionais de negócio, inclusive a atuação do Direito Penal, o compartilhamento de arquivos só aumenta a cada ano, demonstrando-se a ineficácia das práticas adotadas (MIZUKAMI, 2007, p. 164-165). Mais, os condenados responsáveis por sites e programas em que ocorrem(iam) o compartilhamento de conteúdo são, ao invés de inocuizados, tratados como heróis da causa pela comunidade do compartilhamento (MANHIRE, 2013; MANSNICKE, 2012).

3.4.1 A que velocidade estamos?

Verificadas ambas a expansão penal e a maximização da legislação autoral, cabe a discussão sobre em que contexto estes se relacionam. Inicialmente, já se pode falar em uma expansão da tutela penal dos Direitos Autorais, uma vez que, além do aumento das penas, novas condutas são hoje criminalizadas. Mais, dentre as novas criminalidades existem condutas que não causam claramente lesão ao bem jurídico, e, ainda assim, ensejam a pena de prisão.14 Também evidente é a característica simbólica da norma penal- autoral, cujos efeitos manifestos são a proteção do justo pagamento ao autor e o fomento à cultura. De seu turno, os efeitos latentes são o enriquecimento da indústria através da manutenção de seu modelo de mercado monopolista e segregacionista. Ademais, notório o caráter de reforço à legislação cível dos tipos penais-autorais e o uso da mídia – da qual a indústria detém o controle – na tentativa de doutrinar e aterrorizar os consumidores. Por sua vez, ainda que se admita a equiparação dos direitos autorais com bens móveis para sua classificação como bem jurídico-penal patrimonial, deve-se observar que, em verdade, o Direito Autoral é um monopólio legal, que pode ser alterado – até mesmo abolido – conforme o interesse do Legislativo. É dizer, suas valoração e definição são muito mais voláteis que as da propriedade per si, posto que necessariamente dependem da lei. Outrossim, a própria natureza jurídica do Direito Autoral pode ser confusa, a

14 Nesse ponto, ressalte-se que há pesquisas que demonstram que a publicidade causada pelo compartilhamento, ao menos no mercado fonográfico, é favorável a pequenos artistas e gravadoras e pode não ter resultado real no mercado de massa – positivo ou negativo (MIZUKAMI, 2007, p. 105-109). A expansão da tutela penal... // 67 depender de qual tradição histórico-jurídica (copyright ou droit d’auteur) seja aplicada. É certo, de qualquer forma, que a expansão da tutela penal do Direito Autoral corresponde às novas formas de violação deste bem jurídico, advindas da inovação tecnológica. Diante de todas estas características, utilizando-se os conceitos de Silva Sanchez, fica claro que as novas criminalidades do Direito Autoral se relacionam com o Direito Penal de segunda velocidade, é dizer, afastado do núcleo tradicional do Direito Penal, e, por isso, deveria ter tratamento diferenciado. Assim, para Hassemer, seria inserido no Direito de Intervenção. De seu turno, Silva Sanchez o manteria no Direito Penal, mas não aplicaria penas privativas de liberdade se diminuídas as garantias materiais e formais. Já segundo as concepções de Gracia Martín, somente se deveriam aceitar estas novas criminalidades se consideradas igualmente as condutas de todas as classes sociais, sem o domínio de uma classe sobre outra. Contudo, como exaustivamente demonstrado, o Direito Autoral foi modelado, desde o início, para controle de mercado e assim permanece, não cabendo sua criminalização na forma atual. Ademais, a esmagadora maioria dos compartilhadores de conteúdo protegido disponibilizam as obras de forma gratuita (MIZUKAMI, 2007, p. 86-92). Não se deve olvidar, finalmente, que a indústria do entretenimento fomenta o etiquetamento dos compartilhadores de arquivos como criminosos, cuja função é a criação da imagem de “inimigos”, especialmente quando vinculada, propositalmente, ao furto, ao terrorismo, a organizações criminosas (MIZUKAMI, 2007, p. 154), à pornografia infantil (FALKVINGE, 2011). Enfim, nota-se que o lobby da indústria não se preocupa em usar de todos os meios que o sistema penal oferece para manter seu domínio no mercado, inclusive a máxima restrição dos direitos daqueles que a ele se opuserem – e de seus próprios consumidores –, levando a uma expansão completamente irrazoável da tutela penal dos direitos autorais.

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A função do Direito Autoral é incentivar a criação cultural, sem bloquear a circulação da cultura. Vivemos em uma sociedade em que uma quantidade incalculável de informação é transmitida instantaneamente de qualquer lugar do planeta através da internet. Número significativo desta informação é protegido pelo Direito Autoral e reproduzido ilegalmente. Não obstante, há dúvidas sobre o efetivo prejuízo sofrido pelos detentores desses direitos. Se é possível admitir que o Direito Autoral, até certo ponto, fomenta a criação cultural, não se pode dizer o mesmo da criminalização das violações. Esta é mero reforço simbólico dos instrumentos de direito privado e administrativo, e, dada a intensidade de suas penas, pode ter mais efeitos negativos que positivos para a sociedade e para o Direito. Nesse sentido, tenta-se criar uma estigmatização similar ao do usuário de drogas para tratar 68 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade criminalmente a pirataria com o mesmo rigor que se trata o tráfico de entorpecentes. Uma tentativa de inserir a violação do Direito Autoral no Direito Penal do inimigo. Todavia, enquanto não houver nova racionalidade sobre o Direito Autoral, de modo que o privilegiado por este seja efetivamente o criador, isso é, que o que será valorizado pelo trabalho artístico é a mente criativa, não a indústria que alimenta e mantém a cultura com conteúdo de qualidade duvidosa, com claro e exclusivo interesse econômico, a criminalização das condutas violadoras do Direito Autoral, especialmente vinculadas à distribuição, o download ou o uso de material protegido através da internet, é inoportuna. Ademais, notória a ineficácia da criminalização destes direitos, diante da cada vez mais crescente e influente comunidade de compartilhamento de arquivos que claramente não teme a prisão pelas suas condutas. Ao contrário, ícones do compartilhamento que foram condenados são considerados mártires da luta contra o abuso do monopólio autoral. Propõe-se, portanto, a completa abolição do crime de violação de Direito Autoral pelo compartilhamento de arquivos na internet, pois, diante de todo o exposto, patente a ofensa aos princípios penais da intervenção mínima, da necessidade e da fragmentariedade, bem como a incongruência da maximização do Direito Autoral com a atual sociedade da informação e os ditames constitucionais de acesso à cultura, além da gritante ineficácia e inviabilidade da lei penal para se relacionar com o assunto tratado.

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= IV =

A IMAGEM DO ATLETA E O DIREITO DE ARENA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

Cleber Sanfelici Otero1 Elen Carla Mazzo Trindade2

4.1 INTRODUÇÃO

Uma pessoa tem aparência física distinta das demais, em especial no tocante ao rosto, de maneira que a reprodução de sua imagem, seja por fotografia, pintura, escultura, caricatura, filme ou pelos modernos hologramas, permite o seu pleno reconhecimento. A imagem passou a ser utilizada com maior frequência em razão do crescimento dos meios de comunicação de massa, como jornais e televisão, e também pelo interesse financeiro e negocial que a envolve. A imagem, como direito personalíssimo e fundamental, é inerente a todo e qualquer indivíduo, reclamando sua proteção pelo Poder Judiciário a todo aquele que sinta lesado ou ameaçado de lesão em seus direitos. Ao se referir a direito de imagem no meio esportivo, logo fazemos ligação com o direito de arena, contudo, apesar de relacionados, são institutos jurídicos distintos, mesmo com ambos situados no campo dos direitos da personalidade e protegendo o bem jurídico à imagem. São temas de enorme relevância no cenário desportivo, mas são alvos de grandes divergências, daí haver a necessidade de fazer algumas considerações sobre o direito de personalidade para traçar uma ligação entre as semelhanças e diferenças existentes entre os institutos. O titular do direito à imagem possui direito à reparação ou interrupção da exposição quando verifica que sua imagem esteja sendo disponibilizada sem autorização ou, ainda, embora tenha ocorrido a permissão, haja ultrapassado o que havia sido pactuado. O trabalho terá o objetivo de analisar o direito de imagem e o direito de arena, bem como a respectiva natureza jurídica, com o objetivo de identificar generalidades, diferenças e aplicabilidade jurídica.

1 Doutor e Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela ITE de Bauru/SP; Graduado em Direito pela USP; Docente do Curso de Graduação em Direito, de Especialização em Direito Civil e do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da UNICESUMAR de Maringá/PR; Docente do Curso de Especialização em Direito Previdenciário da UEL; Juiz Federal. 2 Mestranda no Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da UNICESUMAR de Maringá/PR; Graduada em Direito e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelas Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” (ITE - Presidente Prudente/SP); Advogada. Endereço eletrônico: . 74 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

O esporte, desde a antiguidade, tem sido mostrado como forma de lazer, saúde e integração social. Foi evoluindo aos poucos, juntamente com as transformações da sociedade, tornando-se uma modalidade organizada, incorporado à cultura brasileira, com ocupação de grande espaço na mídia, além de movimento de valores econômicos significativos, motivos pelos quais foram realizadas mudanças na legislação desportiva brasileira e também para as relações trabalhistas entre atletas profissionais e clubes. Além disso, o esporte se tornou um importantíssimo veículo para exposição de marcas, sendo nesse cenário que surge o direito à imagem dentro do segmento desportivo, destacando-se a figura da imagem dos atletas como objeto de exploração econômica. Uma das questões mais discutidas no direito desportivo refere-se ao recebimento de valores a título de direito de imagem e de direito de arena. Embora digam respeito a todos os atletas profissionais, essa matéria, em sua maioria, envolve conflitos entre clubes e jogadores de futebol, principalmente por causa da grande visibilidade e popularidade do esporte e pela atração advinda dos patrocinadores e investidores. O direito de arena, como espécie de direito à imagem, tem como objetivo proteger a imagem coletiva dos jogadores enquanto perdurar o espetáculo desportivo. Na relação entre clubes e atletas, são aplicadas as normas gerais da legislação trabalhista e civilista, e também a Lei nº 9.615/98, popularmente conhecida como Lei Pelé, lei especial para a matéria. Portanto, o caráter comercial do esporte enseja a análise do instituto do direito à imagem no referente ao direito de imagem do atleta e do direito de arena, destacando as especificidades da licença de uso da referida imagem. Para tanto, realiza-se uma pesquisa, com a adoção do método de pesquisa bibliográfica, bem como dos métodos de abordagem dedutivo e de procedimento comparativo, para demonstrar que o direito de arena difere do direito de imagem em termos legais e em suas consequências.

4.2 DIREITO À IMAGEM

O termo imagem exprime a representação da aparência externa da pessoa por meio da imagem física, assim como a projeção valorativa do modo pelo qual as outras pessoas a vêem por meio da imagem social (FESTAS, 2009, p. 50). No meio jurídico brasileiro, conforme posteriormente se distinguirá, a imagem física também é chamada de imagem-retrato, ao passo que a imagem social é conhecida como imagem-atributo. Ao tratar da representação exterior e da identificação da pessoa no meio social, Carlos Alberto Bittar assim define o direito à imagem, mais especificamente no referente à imagem física:

Consiste no direito que a pessoa tem sobre a sua forma plástica e respectivos componentes distintos (rosto, olhos, perfil, busto) que a individualizam no seio da coletividade. Incide, pois, sobre a conformação física da pessoa, compreendendo esse direito um conjunto de caracteres que a identifica no meio social. Por outras palavras, é o vínculo que une a pessoa à sua A imagem do atleta... // 75

expressão externa, tomada no conjunto, ou em partes significativas (como a boca, os olhos, as pernas, enquanto individualizadoras da pessoa) (BITTAR, 2008, p. 94).

A reprodução da imagem de atores famosos, desportistas de nomeada, apresentadores de êxito e homens públicos pode ensejar lucro, seja de modo direito por meio da venda ou indiretamente pela publicidade ou aumento de tiragens, dinheiro que deveria reverter para o próprio retratado a fim de impedir o enriquecimento alheio e por ser a pessoa a sua dona originária (MENEZES CORDEIRO, 2011, p 247). A maior autonomia deste direito em tempos mais recentes, com a possibilidade de sua divulgação da imagem com o devido consentimento da pessoa retratada, permitiu, todavia, uma exploração econômica, em especial das imagens de celebridades e de pessoas públicas de maior notoriedade. A discussão sobre o direito à imagem tomou grande espaço também no âmbito dos esportes, devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação, em especial pela possibilidade de reprodução da imagem dos atletas em uma amplitude mundial, com manifestação semelhante ao que acontece com determinadas marcas.

4.2.1 Direito à imagem como direito da personalidade

A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito fundado, dentre outros princípios, na dignidade da pessoa humana, na cidadania e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, com o objetivo de gerar uma sociedade livre, justa e solidária, assegurar o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades, assegurar o bem comum e também de impedir toda forma de discriminação. Por tal razão, também na nossa, assim como igualmente se observa em outras ordens jurídicas, a pessoa humana, em virtude de estar em uma comunidade de pessoas livres e iguais, é bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento e o seu fim (CAPELO DE SOUSA, 2011, p. 619). A dignidade da pessoa humana confere fundamento para os direitos do homem e para todo o ordenamento jurídico em face de uma base normativo-axiológica. De forma lógica, como decorrência da própria condição humana, todo ser humano tem o direito de ser respeitado em sua dignidade, em sua individualidade e em sua autonomia para que lhe seja assegurado o direito a um desenvolvimento pessoal. Não por outra razão, a afirmação de Nipperdey no sentido de que a base de todo ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana (Würde des Menschen), “[...] um valor essencial em si (Eigenwert, Eigenständigkeit, Wesenheit), que é o início (Anfang) e o ponto central (Mittelpunkt) de toda a ordem jurídica” (NIPPERDEY, apud MARQUES; MIRAGEM, 2012, p. 120). Logo, trata-se do vetor máximo do sistema de valores da Constituição Federal de 1988 e também da organização do direito privado brasileiro (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p. 120), fundamentação esta que não só justifica os direitos 76 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade essenciais da pessoa humana já assegurados constitucional e infraconstitucionalmente, como também permite o reconhecimento de novos direitos fundamentais e da personalidade. A Constituição Federal brasileira de 1988 reconhece a existência de direitos específicos da personalidade e estabelece mecanismos para a respectiva tutela, proteção constitucional essa que se encontra consagrada, no referente ao direito à imagem, mais especificamente no art. 5º, inciso X, da Constituição brasileira de 1988, inclusive com a garantia assecuratória de indenização na eventualidade de danos aos respectivos titulares:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

A tutela é estabelecida dentre os direitos e garantias fundamentais, proteção essa que não é limitada, mas abrangente da salvaguarda da imagem das pessoas, o que se dá também em relação aos meios de comunicação de massa, como no caso da televisão, dos jornais, das revistas, do rádio, etc. Em um plano infraconstitucional, mas sob a fundamentação da Constituição de 1988, o novo Código Civil de 2002 trata dos direitos da personalidade, no Capítulo II, arts. 11 a 21, no Livro sobre as Pessoas, com as características prevalentes da indisponibilidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade, do caráter absoluto da oponibilidade erga omnes, da imprescritibilidade, extrapatrimonialidade, inexpropriabilidade e da vitaliciedade. Consoante Anderson Schreiber, o antigo Código Civil de 1916 estava carregado de tintas patrimoniais e a inserção dos direitos da personalidade na parte geral do novo Código Civil de 2002 representou notória evolução: “A inauguração de um capítulo dedicado à proteção da pessoa, em seus aspectos essenciais, deve ser interpretada como afirmação do compromisso de todo o direito civil com a tutela e a promoção da personalidade humana” (SCHREIBER, 2011, p. 12). O direito à imagem é um dos integrantes do rol dos direitos da personalidade, como já dito, de caráter personalíssimo, em virtude da preocupação com a proteção da pessoa em face da publicação e divulgação da sua imagem, em situações que desrespeitem a sua vontade, nos casos não expressamente autorizados em lei. Souza afirma que “[...] a imagem é atributo essencial da personalidade, e é um bem jurídico merecedor de proteção” (SOUZA, 2003, p. 86), mas é preciso lembrar que, como a personalidade não é um objeto existente fora da pessoa, e sim parte essencial dela, a liberdade é bem da A imagem do atleta... // 77 vida, ao passo que o nome, a figura humana, a filmagem, a gravação e os dados relativos à personalidade são objetos para os quais o Direito dá sentido, de maneira que a imagem materializada de uma pessoa é um bem da personalidade fortemente objetivado (BEUTHIEN e SCHMÖLZ, apud MENEZES CORDEIRO, 2011, p. 246). O direito à imagem está amparado em nível constitucional, conforme dispõe o art. 5º, incisos V, X e XXVIII, "a", da Constituição Federal de 1988 e possui como característica particular a possibilidade de concessão a terceiros, de maneira limitada, por meio de uma compensação pecuniária. Segundo Carlos Alberto Bittar, o direito à imagem:

Reveste-se de todas as características comuns aos direitos da personalidade. Destaca-se, no entanto, dos demais, pelo aspecto da disponibilidade, que, com respeito a esse direito, assume dimensões de relevo, em função da prática consagrada de uso de imagem humana em publicidade, para efeito de divulgação de entidades, de produtos ou de serviços postos à disposição do público consumidor. Daí, tem sido comum o ingresso de pessoas notórias - em especial, artistas ou desportistas - no meio publicitário, povoando-se todos os veículos de comunicação com anúncios, em que aparecem a elogiar as condições da entidade ou do produto visado e a recomendar a sua utilização (BITTAR, 2008, p. 94-95).

Com efeito, foi exatamente essa disponibilidade do direito à imagem que trouxe um caráter econômico a ela, com a possibilidade de negociação pelo titular da imagem, ou seja, de poder ser negociado o seu produto diretamente entre o jogador ou a empresa que o detém com a entidade desportiva, por meio de valores e regras livremente estipulados entre as partes. Assim, por ser possível conferir autonomia a esse direito e ser cada vez mais comum os atletas venderem a sua imagem a patrocinadores em associação às respectivas marcas, cabe ressaltar as implicações legais deste tipo de contrato, especialmente porque a imagem implica a identificação de uma determinada pessoa, mesmo após a negociação.

4.2.2 Direito à imagem do atleta

O avanço tecnológico que aconteceu no mundo trouxe a facilidade de transmissão de imagens pelos meios de comunicação, principalmente no caso da televisão e, mais recentemente, pela rede mundial de computadores (internet), que vieram a possibilitar a transmissão das atividades esportivas em tempo real. A imagem se tornou fácil alvo para a violação de sua integridade em decorrência de atos ilícitos, que podem gerar, conforme o caso, a responsabilidade extracontratual ou a responsabilidade contratual, conforme bem esclarece Carlos Alberto Bittar:

Constituem, assim, atos ilícitos, não só o uso não consentido, como também o uso que extrapole os limites contratuais (em finalidade diversa, ou não 78 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

expressamente ajustada), em qualquer situação em que seja colhida, ou fixada a pessoa, para posterior divulgação, com ou sem finalidade econômica (BITTAR, 2008, p. 96).

Nesse âmbito, importante se faz a distinção entre a imagem-retrato (imagem física) e a imagem-atributo (imagem social). Na imagem-retrato, tem-se a imagem fisionômica do indivíduo, seja através da sua voz, gestos, atitudes, vedada a sua divulgação sem permissão, cabendo, para tanto, se ocorrer isso, a devida indenização. O consentimento da pessoa é essencial para se compreender o limite para o uso de sua imagem, já que “[...] assiste ao indivíduo, portanto, o direito à proteção jurídica da sua imagem (retrato), consistente no direito de não ter explorada sua fisionomia ou aspectos da sua fisionomia que o identifiquem no meio social sem a sua permissão” (VIEIRA, 2013, p. 109). A imagem-atributo, “conceituada como a projeção do indivíduo ou pessoa no seio social” (VIEIRA, 2013, p. 110), seria o conjunto de características pelas quais o indivíduo é reconhecido, no sentido do conceito social de que desfruta e não se confunde com a exteriorização da expressão física. Afinal, “A imagem atributo vai muito além da reprodução da forma, atingindo o conceito com que a pessoa é lembrada, suas qualidades ou defeitos, a maneira como ela é individualizada em relação às demais, sua boa ou má-fama” (VIEIRA, 2013, p. 112-113). Essas duas dimensões da imagem são referidas e diferenciadas por Sérgio Iglesias Nunes de Souza:

Hoje, sob o aspecto jurídico, o termo ganha profundidade e extensão, na medida em que se compreende como sendo a imagem da pessoa física ou jurídica não só o seu semblante, no aspecto físico (imagem retrato), mas também a imagem que as outras pessoas têm daquele ser (imagem atributo), vale dizer, aquela imagem que alguém faz de outrem quanto aos seus valores éticos-morais. Há, ainda, a imagem das partes do corpo, como a própria imagem sonora e de radiofusão, e os gestos, que são expressões dinâmicas da personalidade (SOUZA, 2003, p. 84).

Além da expressa disposição constitucional sobre a imagem, a Constituição Federal de 1988 também trouxe situações que se aproximam a esse direito, como é o caso do direito de arena, direito à voz e o direito de autor, respectivamente, previstos no art. 5º, incisos XXVII e XXVIII, alínea "a":

Art. 5º. [...] XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.

A imagem do atleta... // 79

No Código Civil, o direito em tela está previsto no art. 20, que estabelece o direito da pessoa de não ter sua imagem divulgada sem sua autorização, exceto nos casos enunciados no próprio dispositivo:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais (BRASIL, 2002, web).

Para Roxana Cardoso Brasileiro Borges, o direito à imagem de uma pessoa implica o impedimento por parte de terceiros no referente à captação, à reprodução e à publicação:

O direito à imagem, numa concepção negativa dos direitos de personalidade, visa a impedir que terceiros, sem a autorização da pessoa, registrem sua imagem ou a reproduzam, qualquer que seja o meio: fotos, filmes etc. A proibição da reprodução não autorizada da imagem alcança a proibição de sua publicação ou exposição pública (BORGES, 2005, p. 156).

Quanto ao âmbito desportivo, a proteção à imagem tem previsão no art. 5º, inciso XXVIII, alínea "a", da Constituição Federal de 1988, mas a sua disciplina ocorreu efetivamente no ano de 1993, com a promulgação da Lei nº 8.672/93 (Lei Zico). Posteriormente, revogando a “Lei Zico”, surgiu a Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé), mantendo, em grande parte, as inovações trazidas pela “Lei Zico”, com outras contribuições para o desporto nacional, ao assegurar um mínimo de vinte por cento do preço total da autorização aos atletas profissionais participantes de espetáculo ou evento.

4.2.3 A voz e outros atributos da pessoa como direito à imagem

A transmissão realizada pelas emissoras de rádio, com a utilização isolada da voz da pessoa torna a pessoa identificável, melhor dizendo, possibilita que a pessoa seja visualizada mentalmente por associação da sua voz. Conforme Menezes Cordeiro (2011, p. 248), de forma análoga, porque a voz permite reportar a uma dada pessoa e pode ser gravada e reproduzida, as mesmas características apontadas em relação ao direito à imagem podem ser aplicadas para “autonomizar”, em bases semelhantes, o direito sobre a palavra. No Direito brasileiro, a proteção a esse direito também ocorre nos termos do art. 5º, inciso XXVIII, "a", da Constituição Federal de 1988, juntamente com o direito à imagem, pois a voz é passível de exprimir a representação da pessoa. Não é por acaso, por conseguinte, que “A voz, como modo de manifestação e expressão da pessoa, recebe a mesma proteção atribuída ao 80 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade direito à imagem, com dispositivo próprio no Novo Código Civil e na Constituição Federal” (BELTRÃO, 2005, p. 127). Para Maria Helena Diniz, a voz, assim como a imagem, também é um direito da personalidade:

A voz, modo de comunicação verbal e sonora, constitui expressão de emoções e de pensamentos no relacionamento humano, que identifica a pessoa no meio social e é protegida constitucionalmente (CF, art. 5º, XXVIII, a, 2ª parte), sendo, portanto, um dos direitos da personalidade (DINIZ, 2014, p. 148).

Em termos gerais, a proteção à voz também é conferida pelo direito à imagem: “Como outros elementos identificadores, a voz seria, em determinadas situações, suficiente para a perfeita identificação do indivíduo, fazendo direta remissão ao seu portador e, desta maneira, estaria a compor o direito geral de imagem” (VIEIRA, 2013, p. 106). No caso, estamos nos referindo à imagem-retrato, pois a voz faz parte do indivíduo e é uma forma de identificação da pessoa no meio social, pois há uma ligação entre o indivíduo e sua voz. Melhor, ainda, se a pessoa cuja voz se veicula tem uma boa reputação no meio social, caso em que a imagem-atributo pode se apresentar como reforço à exposição da imagem física. Como não só o rosto, mas também a voz permitem a identificação de alguém, até mesmo uma parte do corpo de uma pessoa pode notabilizá-la, daí Luiz Henrique Vieira afirmar que também é pertinente protegê-la:

Quando se perquire, portanto, a respeito da imagem-retrato, não se pode pensar ou imaginar apenas o indivíduo como um todo. Ela pode espelhar apenas uma parte ou "componente" deste mesmo indivíduo. Aliás, não são raros os artistas que se notabilizam em razão de determinados componentes de sua anatomia (pernas, busto, quadril), que os individualizam e identificam no seio da sociedade, [...]. Assiste ao indivíduo, portanto, o direito à proteção jurídica da sua imagem (retrato), consistente no direito de não ter explorada sua fisionomia ou aspectos da sua fisionomia que o identifiquem no meio social sem a sua permissão (VIEIRA, 2013, p. 109).

Considerada em seus aspectos abrangentes, a utilização da imagem, exceto no referente às ressalvas legais, somente é permitida com a autorização do respectivo titular, o que demanda, por vezes, a realização de um negócio jurídico com a pertinente disciplina da mesma: “O contrato adequado para a sua utilização é a concessão ou licença, uma vez que dispõe sobre o uso, vale dizer, o ato de disposição, porém sem renunciar a ele” (SOUZA, 2003, p. 92).

A imagem do atleta... // 81

4.3 DIREITO DE IMAGEM E O CONTRATO DE LICENÇA DE USO DE IMAGEM

O contrato de licença de uso de imagem é um contrato de direito de imagem ideal para dispor da imagem do atleta, porquanto permite que ele exercite o direito de sua exploração patrimonial. Nesse sentido, ensina Carlos Alberto Bittar:

O contrato adequado é o de licença, ou de concessão de uso, em que se devem explicitar, necessariamente, todos os elementos integrantes do ajuste de vontades, a fim de evitar-se eventuais dúvidas: direito objetivado, fim, prazo, condições, inclusive a remuneração: possibilidade de renovação e outras (BITTAR, 2008, p. 95).

Neste tipo de contrato, não é a imagem o objeto do contrato, mas sim sua licença de uso, pois autoriza o uso pelo seu titular, podendo ocorrer, pelo seu caráter disponível, a utilização para fins econômicos. O que se pode dizer é que, com a licença, ocorre a concessão do exercício do direito de exploração, enquanto o direito permanece com o seu titular. Sérgio Iglesias Nunes de Souza esclarece que a jurisprudência pátria confirma a ocorrência de violação do direito, hipótese que faz ensejar a possibilidade de indenização, se não houve a prévia concordância da pessoa e a licença na captação de sua imagem, reprodução e publicação, bem como se houve lucro:

De outro turno, o Supremo Tribunal Federal tem confirmado a maior parte das decisões dos tribunais que reconhecem a existência de um direito à própria imagem, principalmente quando houver emprego de imagem alheia, sem o expresso consentimento da pessoa retratada, para compor anúncios comerciais ou qualquer forma de promoção publicitária, ou, ainda, se alguma espécie de lucro pela utilização indevida da imagem for obtida (SOUZA, 2003, p. 85).

Muitas vezes, a celebração do contrato de licença de uso de imagem pelo jogador profissional, diretamente com o time que o contrata, confunde- se com o contrato de trabalho, contudo o entendimento que se tem é de que há diversidade entre os institutos jurídicos. Referida disciplina está prevista na Lei nº 9.615/98, cujo art. 87-A assim dispõe: “O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo”. Deve-se entender que o atleta profissional possui todos os direitos da personalidade, sendo, em alguns casos, adaptados à sua atividade profissional, isso porque, em decorrência da sua profissão possuir, como característica essencial, a exibição perante o público da sua imagem, diz respeito tanto à imagem profissional, presente durante o exercício da 82 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade atividade profissional, ou seja, nos treinamentos, jogos, entrevistas, como também da imagem pessoal, presente em todos os outros momentos da vida civil. Os contratos de direito de arena e de imagem são, portanto, distintos, pois o direito de imagem faz referência a fins comerciais, ao passo que o direito de arena decorre da transmissão da imagem em evento desportivo. O contrato de licença ao uso da imagem do atleta deve abordar as situações não tratadas na jornada de trabalho do jogador de futebol, que possui como atividades laborais os treinos, a concentração e competições. Por conseguinte, deve estar ligado a todas as outras possibilidades que não estejam vinculados à prática esportiva. Nesse caso, a imagem do atleta serviria para o clube vender materiais esportivos, fotografias, roupas e outros acessórios, bem como permitir a divulgação da marca do clube em comerciais, aparições em eventos, revistas e outros. Fundamentalmente, o contrato é uma espécie de negócio jurídico, e deverá observar os requisitos de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos. Como dispõe o art. 104 do Código Civil, para o negócio jurídico ser válido, é preciso agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei, sob pena de nulidade. A licença ao uso da imagem, como um verdadeiro contrato, encontra fundamento no art. 20 do Código Civil, mas também, de maneira geral, no capítulo destinado aos contratos, em especial no art. 421 e seguintes, pois possui suas regras previstas no âmbito do Direito Civil, além da proteção conferida no art. 5º, incisos V, X e XXVIII, "a", da Constituição Federal de 1988, assim como no art. 90, incisos I, II, III, IV, e §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais). Revela-se que a licença ao uso da imagem é um verdadeiro negócio jurídico, uma vez que decorre de um acordo de vontades resultante de um mútuo consenso entre o atleta e o clube, compreendendo as situações não previstas na jornada de trabalho do atleta. Logo, é um contrato que possui direitos e deveres próprios, previstos no âmbito do Direito Civil, e possui uma conexão com o contrato de trabalho do atleta. De tal forma, se o atleta comete alguma infração ou insubordinação em torno de sua relação de emprego, o ato não afetará em si o contrato de licença ao uso da imagem. Apesar de a licença ao uso da imagem ser um contrato atípico, há regras próprias e delineadas no âmbito civilista, cabendo às partes, por meio de um acordo de vontades, celebrá-lo da maneira que bem lhes interessar, desde que em consonância com o ordenamento jurídico e sem contrariar a ordem pública. A validade ocorre se houver cláusula que demonstre o uso determinado e temporário da imagem, pois o direito ao uso da imagem alheia será sempre limitado quanto ao tempo e à finalidade do uso, apesar de ser possível o ajuste de exclusividade. Assim, “[...] se o uso ultrapassar a finalidade, o tempo, o veículo, o modo permitido pelo titular da imagem, tal A imagem do atleta... // 83 conduta passará a constituir um ilícito, motivando a responsabilidade do infrator das cláusulas contratuais” (BORGES, 2005, p. 159-160). Segundo os motivos expostos por Carlos Alberto Bittar, é nula a cláusula ou até mesmo o contrato que dispuser de forma a limitar a liberdade da pessoa e a sua personalidade:

Os contratos devem especificar a finalidade, as condições do uso, o tempo, o prazo e demais circunstancias que compõem o conteúdo do negócio, interpretando-se restritivamente, ou seja, permanecendo no patrimônio do licenciante, outros usos não enunciados por expresso. Não podem esses contratos – quando da exclusividade – importar em cerceamento da liberdade da pessoa ou sacrifício longo de sua personalidade, sendo considerada nula, como cláusula potestativa, a avença que assim dispuser (ex.: um contrato em que o titular se despojasse definitivamente de um direito dessa ordem) (BITTAR, 2008, p. 50).

Por se tratar de um contrato cujo objeto da prestação é um direito da personalidade, Roxana Cardoso Brasileiro Borges esclarece que a extensão da manifestação de vontade é bem mais limitada se comparada à alienação de direitos patrimoniais:

Além disso, o valor que se atribui a essa declaração de vontade é diferente do que se atribui às manifestações de vontade que importem transmissão de direitos patrimoniais. Por se tratar de um direito de personalidade, a autorização, seja remunerada ou gratuita, para o uso da própria imagem, além, de ser limitada no tempo e em relação aos objetivos do uso, merecerá, sempre, interpretação restritiva (BORGES, 2005, p. 159).

O contrato de licença de uso de imagem tem como característica peculiar geralmente a cláusula de exclusividade, por meio da qual se priva o atleta de celebrar outro contrato relativo à sua imagem, muito embora ele possa celebrar contratos nesse sentido com outros ramos econômicos, distintos, portanto. A sua duração é equivalente ao do contrato de trabalho, pois sua incompatibilidade poderia prejudicar e incompatibilizar a transferência do atleta para outro clube.

4.4 DIREITO DE ARENA

O direito de arena não se confunde com o direito de imagem, sendo institutos jurídicos diferentes, mas próximos, porquanto ambos são espécies do direito à imagem. Por ser o direito de arena também passível de disposição por valor, ambos os institutos são, muitas vezes, confundidos. Referindo-se ao significado do termo arena, Domingos Sávio Zainaghi (1998, p. 145) explica que é uma palavra latina, que significa areia, termo usado nos meios esportivos na antiguidade, simbolizando o local onde os gladiadores se enfrentavam, tanto com animais ferozes como entre si, sendo o piso coberto de areia. 84 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

O direito de arena está previsto no art. 5º, XXVIII, "a", da Constituição Federal de 1988, mas é o art. 42 da Lei Pelé que disciplina melhor a matéria, ou seja, trata-se de uma cláusula contratual oriunda da própria lei: Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.

Com efeito, “[...] a imagem se refere à reprodução física, no todo ou em parte, do atleta, isoladamente, individualmente, “personalisticamente”, enquanto o direito de arena diz respeito a sua participação na obra coletiva, no espetáculo desportivo” (CHINELATO, 2008, p. 340). Logo, o direito de arena tem como titular uma entidade de prática desportiva, que pode negociar, proibir ou autorizar, a título oneroso ou gratuito, a transmissão da imagem do espetáculo ou evento desportivo em que participe. Vale lembrar, como decorrência de o Brasil ser signatário da Convenção de Roma, que a empresa transmissora do espetáculo será também titular de um direito autoral, não de um direito de autor, mas de um direito conexo ao de autor, que é de exclusividade, assim previsto na Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais):

Art. 89. As normas relativas aos direitos de autor aplicam-se, no que couber, aos direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão. [...]. Art. 95. Cabe às empresas de radiodifusão o direito exclusivo de autorizar ou proibir a retransmissão, fixação e reprodução de suas emissões, bem como a comunicação ao público, pela televisão, em locais de frequência coletiva, sem prejuízo dos direitos dos titulares de bens intelectuais incluídos na programação (BRASIL, 1998, web).

Acerca dessa transmissão, o direito de arena tem como objetivo proteger a imagem coletiva dos jogadores enquanto perdurar o espetáculo esportivo, impedindo que terceiros, sem autorização, divulguem a imagem dos atletas, participantes de competições ou jogos, seja através das transmissões televisivas ou radiofônicas. Silmara Juny Chinelato apresenta argumentos relevantes para justificar, como decorrência, o recebimento do direito de arena pelo atleta, ainda que haja gratuidade na entrada do espetáculo:

Conforme interpreto a Constituição Federal, o direito de arena será devido também em espetáculos com entrada gratuita, porque ela não afasta o lucro indireto. Esse é aspecto muito relevante em favor dos atletas, que se aproxima das diretrizes do direito do consumidor e do direito autoral, ambos estatutos protetivos à parte mais fraca - o consumidor e o autor - como o é o Estatuto desportivo (CHINELATO, 2008, p. 339).

A imagem do atleta... // 85

Segundo Fábio Menezes de Sá Filho (2010, p. 109), “O direito de arena é, basicamente, uma retribuição recebida pelo atleta profissional, pela exposição comercial da sua voz e imagem, durante o desempenho da principal atividade desportiva, isto é, a de disputar uma partida de futebol”. Em outras palavras, o direito de arena decorre da participação do atleta nos valores obtidos pela entidade esportiva com a venda da transmissão ou retransmissão dos jogos em que ele atua, de maneira que, do montante negociado, o atleta tem direito a um percentual, que deverá ser proporcionalmente rateado entre todos os jogadores designados para atuar no evento. Ainda, segundo ensinamentos de Fábio Menezes de Sá Filho:

Ao se afirmar que percentual do preço total da autorização será repassada aos atletas profissionais, de forma igualitária, não se está diante de uma indenização individual a cada jogador por sua participação na partida de futebol, e sim de uma parcela remuneratória, isto é, de natureza retributiva, por terem contribuído com o espetáculo, visando à proteção da sua voz e imagem (SÁ FILHO, 2010, p. 111).

A título de comparação, quando se menciona a utilização da imagem do atleta profissional, há referência à utilização extracampo da sua imagem, por exemplo, na reprodução de fotografias para compor álbum de figurinhas. É uma negociação livre entre o atleta e o clube, um contrato particular, de natureza cível. A titularidade aqui compete ao atleta e a imagem explorada é individualizada. Pode-se colocar, de maneira simples, que o direito de imagem diz respeito à permissão ou não de exposição pública ou sua comercialização, independentemente da participação em jogos. Já o direito de arena, tem lugar quando da participação do atleta em jogos que o clube, valendo-se de sua prerrogativa, angariou valores com a venda da transmissão da partida, inclusive como atleta reserva. O esporte pode ter um caráter profissional e não profissional, que, segundo Alice Monteiro de Barros, quanto aos jogadores de futebol amadores, não há vínculo empregatício, pois não praticam o esporte com caráter profissional, mas apenas por diversão (BARROS, 2008, p. 103). É o que dispõe a Lei Pelé no seu art. 42, § 1º, ao estabelecer o pagamento do direito de arena apenas aos atletas profissionais, excluindo os atletas amadores:

Art. 42. [...] § 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.

86 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Os atletas são figuras públicas e, ao cederem o uso da sua imagem, devem estar resguardados em razão de tal condição, já que sua vida privada é exposta publicamente. Conforme leciona Alice Monteiro de Barros (2008, p. 123), na trilha do disposto na Lei Zico, “O direito de arena não se aplica a evento desportivo para fins jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de 3% do total do tempo previsto para o espetáculo”. Fábio Menezes de Sá Filho (2010, p. 109) apresenta a proximidade do direito de arena com o direito de autor: “Destaca-se que o direito de arena é reconhecido pela doutrina como um direito conexo dos direitos autorais, uma vez que foi a antiga Lei de Direitos Autorais, Lei nº 5.988/1973, em seus arts. 100 e 101, que estabeleceu pela primeira vez as bases de tal instituto”. A propósito, a referida lei assim dispunha:

Art. 100. À entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos de espetáculo desportivo público, com entrada paga. Parágrafo único. Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo. Art. 101. O disposto no artigo anterior não se aplica à fixação de partes do espetáculo, cuja duração, no conjunto, não exceda a três minutos para fins exclusivamente informativos, na imprensa, cinema ou televisão.

Carlos Alberto Bittar (2003, p. 161) assim comentava a respeito: “Inovação da Lei Autoral nº 5.988/73, [...], é o direito de arena, previsto dentre os direitos conexos aos de autor, como incidente sobre gravações, transmissões e retransmissões de espetáculos desportivos (em televisão, cinema e outros veículos, arts. 100 e 101)”. Com a Lei Zico, mais precisamente no art. 24, caput e §§ 1º e 2º, o direito de arena foi tutelado, sendo que os artigos da Lei de Direitos Autorais perderam sua importância (SÁ FILHO, 2010, p. 110). Eis a norma presente o dispositivo legal:

Art. 24. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de autorizar a fixação, transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo desportivo de que participem. § 1º Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo. § 2º O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes do espetáculo desportivo para fins exclusivamente jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três minutos.

Mais tarde, a nova Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) não mais tutelou o instituto do direito de arena, e a Lei Zico foi, então, readaptada numa nova lei, a Lei nº 9.615/98, conhecida como Lei Pelé. Esse divórcio foi assim narrado por Carlos Alberto Bittar:

A imagem do atleta... // 87

O direito de arena, como direito conexo ao do autor, foi suprimido da legislação autoral, que revogou a Lei nº 5.988/73, em face da não-exibição de capítulo específico, no Título V, que trata dos direitos conexos, a este respeito. Entendeu o legislador ser impróprio o tratamento da questão no bojo da legislação autoral, por isso sua regulamentação, atualmente, é dada pela legislação desportiva. (BITTAR, 2003, p. 161)

Consoante Silmara Chinelato, “O direito de arena está hoje onde deveria: na Lei 9.615, de 24.03.1998, que instituiu normas gerais sobre desporto, mais conhecida como Lei Pelé, que revogou a Lei 8.672/93” (CHINELATO, 2008. p. 338). Assim, podemos concluir que o direito de arena está previsto na legislação, devendo ser cumprido pelo empregador, no caso, os clubes esportivos, quando ocorre a celebração do contrato. De acordo com Fábio Menezes de Sá Filho, o valor pago a título de direito de arena não tem caráter de reparação de danos, mas de retribuição pela contribuição para o espetáculo se realizar:

Ao se afirmar que percentual do preço total da autorização será repassada aos atletas profissionais, de forma igualitária, não se está diante de uma indenização individual a cada jogador por sua participação na partida de futebol, e sim de uma parcela remuneratória, isto é, de natureza retributiva, por terem contribuído com o espetáculo, visando à proteção da sua voz e imagem [...]. Além da natureza retributiva, tem também natureza coletiva, cuja titularidade de negociação pertence ao clube, em nome próprio e de seus atletas profissionais. (SÁ FILHO, 2010, p. 111-112)

Segundo Alice Monteiro de Barros (2008, p. 99), temos caracterizadas duas situações referentes aos atletas:

No tocante ao atleta, a legislação brasileira distingue situações, pois o desporto poderá ser praticado de forma profissional e não-profissional (art. 3º, parágrafo único da Lei n. 9.615, de 1998 - lei especial, de natureza trabalhista, intitulada Lei Pelé). O primeiro caracteriza-se pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho firmado entre o atleta e a entidade desportista. Estará o ajuste, portanto, sob a égide do Direito do Trabalho, porém integrará o rol dos contratos especiais. Já o desporto não-profissional será identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio (art. 3º, parágrafo único, II, da Lei n. 9.615, de 1998, com a nova redação dada em 2000).

Tanto a doutrina como a jurisprudência encontravam dificuldade em definir a natureza jurídica do direito de arena, se de natureza civil ou trabalhista, um tema bastante controverso. Como nenhuma legislação previa expressamente a natureza, cabia aos Tribunais um pronunciamento nesse sentido e, apesar da controvérsia, entendeu-se ser trabalhista. 88 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Para parte da doutrina, com menção a Domingos Sávio Zainaghi (2002, p. 30), "o valor pago como direito de arena tem natureza jurídica remuneratória, uma vez sua similitude com as gorjetas, já que é pago por terceiros." Segundo essa corrente doutrinária, deveria haver a aplicação, por analogia, do teor da Súmula 354 do Tribunal Superior do Trabalho (TST):

As gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou oferecidas espontaneamente pelos clientes, integram a remuneração do empregado, não servindo de base de cálculo para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado.

Não obstante, a Lei nº 12.395/11 alterou o art. 42 da Lei Pelé, estabelecendo que a matéria tem natureza civil, excluindo, assim, os reflexos nos cálculos, como do aviso prévio, do adicional noturno, das horas extras e do repouso semanal remunerado, da gratificação natalina e do FGTS.

Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem. § 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil. [...].

Era facilmente perceptível a divergência doutrinária e nos Tribunais acerca da natureza jurídica do referido instituto, mas o estabelecimento legal da natureza civil do direito de arena implicou o fato de que não se tem remuneração direta de natureza trabalhista, própria da relação empregatícia, como bem conclui Carlos Roberto Pereira das Neves:

[...] a meu sentir, tal direito não decorre de contraprestação por serviços prestados à entidade de prática desportiva ou do contrato de trabalho, como querem alguns, muito menos por equiparação às gorjetas (por não incidir o conteúdo subjetivo da vontade), como querem outros. Deriva, isto sim, da obrigatoriedade do pagamento de valores aleatórios e não habituais oriundos da mera participação coletiva do atleta em espetáculo desportivo, se fixado, transmitido ou retransmitido. Ademais, se tal verba tivesse natureza jurídica trabalhista, a hipótese da seleção brasileira de futebol ou o vínculo existente entre a CBF e o convocado consistiria em relação de trabalho ou, se assim não o fosse, teria de ser incluída no rol dos encargos previstos no contrato de trabalho entre o atleta e o clube, o que não ocorre. Afastadas as possibilidades acima aventadas, forçoso deduzir estar o direito de arena revestido de natureza eminentemente civil, a inviabilizar sua A imagem do atleta... // 89

repercussão sobre o FGTS, férias e 13º salário, ou outras verbas aqui não mencionadas, haja vista a impossibilidade de atribuir-se ao mesmo instituto natureza jurídica diversa, dependendo da circunstância. [...] Impende, então, concluir, que o Direito de Arena encontra a sua exata expressão no § 1º, art. 42, da Lei 9.615/98, correspondendo à participação dos atletas sobre as cotas de comercialização de eventos desportivos pelas entidades de prática desportiva, através da fixação, transmissão ou retransmissão de imagens, em percentual previamente acordado, que pode ser inferior, igual ou superior aos 20% (vinte por cento) mencionados na legislação, caracterizando-se por sua natureza eminentemente civil. (NEVES, 2008)

É pertinente o reconhecimento da natureza civilista do direito de arena, porquanto é decorrente da titularidade da entidade desportiva de negociar a transmissão do evento desportivo, e, apenas em virtude disso, gera o direito do atleta de receber um pagamento pela exposição da sua imagem para o público. Não por acaso, nos termos do art. 42, § 1º, da Lei nº 9.615/98, conforme redação da Lei nº 12.395/2011, é algo realizado via sindicato da categoria dos atletas profissionais, pois a entidade desportiva repassa parte do valor para o sindicato, que distribui a importância de forma proporcional aos jogadores participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.

4.5 CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO E DE DIREITO DE IMAGEM

A profissão de atleta profissional, por apresentar peculiaridades, é regida por legislação específica, porém não afasta a aplicação dos preceitos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Logo, os direitos trabalhistas do atleta profissional são regidos pela CLT, mas também pela Lei nº 9.615/98, que traz algumas peculiaridades na comparação com os direitos trabalhistas do trabalhador comum, como é o caso, por exemplo, do direito de arena. À luz do art. 442 da CLT, o contrato de trabalho é conceituado como o acordo tácito ou expresso, correspondente a uma relação de emprego, que enseja um vínculo de natureza jurídica caracterizado pela pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade, por meio do qual se tem um complexo de direitos e deveres entre ambas as partes contratantes. Para Alice Monteiro de Barros (2008, p. 98): “[...] o desporto profissional é trabalho, logo, a relação do desportista com a instituição é a de emprego, gerada por um contrato de trabalho especial”. Por tal razão, segundo Domingos Sávio Zainaghi (2002, p. 11-15), o contrato de trabalho desportivo é um contrato formal, ou seja, contrato escrito, com algumas particularidades: prazo determinado e constatação da remuneração e de cláusula penal, meio de se evitar o aliciamento de jogadores durante uma competição. 90 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

A Lei Pelé não trata apenas dos jogadores de futebol, estendendo-se seu campo de aplicação aos atletas de modo geral, contudo os arts. 27, 27- A, 28, 29, 30,39, 43, 45 e o § 1º do art. 41 são aplicados aos atletas e entidades de prática futebolística (art. 94 da Lei nº 9.615/98), facultando-se às demais modalidades desportivas adotar os preceitos constantes dos dispositivos referidos (BARROS, 2008, p. 108-109). Referido acordo é um contrato de trabalho e, dessa forma, deve haver, antes de mais nada, a observância das leis trabalhistas, ao mesmo tempo em que devem ser aplicadas as normas especiais regentes das relações trabalhistas relacionadas às atividades desportivas: "Vale lembrar, mais uma vez, que o atleta profissional de futebol é empregado, portanto, sujeito às normas do Direito do Trabalho, bem assim o clube que o remunera é o seu empregador, conforme disposto nos arts. 1º e 2º, da Lei n. 6.354/1976” (SÁ FILHO, 2010. p. 112). O vínculo do atleta profissional com a entidade desportiva contratante pode ser dissolvido com o término da vigência do contrato de trabalho desportivo, com o pagamento da cláusula penal para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral do contrato, bem como com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial de responsabilidade da entidade desportiva empregadora, bem como do atraso no pagamento do contrato de direito de imagem, tudo nos termos do art. 31 da Lei Pelé. O contrato de cessão de direito de imagem (contrato de direito de imagem), assim como direito de arena, têm natureza civil, e não natureza trabalhista, de maneira que o valor devido ao atleta não representa salário, daí sobre ele não incidir os demais encargos trabalhistas, como contribuição previdenciária, FGTS, um terço de férias e décimo terceiro salário. Apesar disso, costuma-se assinar o contrato de cessão ou licença de uso da imagem no mesmo momento em que se assina o contrato de trabalho do atleta, porquanto ambos estão relacionados, na medida em que a boa imagem de jogador poder pode render lucros extraordinários à entidade esportiva contratante quando associada a um produto ou serviço da mesma. A Lei nº 9.615/98 vincula, consequentemente, o contrato de trabalho especial do atleta desportivo com o contrato de licença de imagem, relações jurídicas diversas, mas relacionadas em razão de ambos os vínculos terem, geralmente, a mesma razão para as respectivas extinções.

4.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à imagem está inserido entre os direitos da personalidade, como decorrência do respeito à dignidade da pessoa humana. Como característica peculiar, numa comparação com os direitos da personalidade, o exercício do direito à imagem pode ser comercializado, como é o caso de envolver a imagem dos atletas e artistas. O esporte tem uma área de atuação nacional, englobando todas as camadas da sociedade e acabou alcançando um plano de relevante atividade econômica, com a sua universalização e a sua imensa divulgação através A imagem do atleta... // 91 dos meios de comunicação. Com isso, os atletas profissionais passaram a ter as suas imagens conhecidas em um âmbito cada vez maior, muitas vezes associadas a produtos e marcas comerciais. O direito de imagem não se confunde com o direito de arena, apesar de ambos serem desdobramentos do direito à imagem. O direito à arena está previsto no art. 42 da Lei Pelé, pelo qual o atleta faz jus ao rateio dos valores pagos pela veiculação da sua imagem, associada ao espetáculo desportivo. Além desse objetivo, tem como escopo proteger a imagem coletiva dos jogadores enquanto perdurar o espetáculo desportivo, sendo primeiramente instituído pela Lei de Direitos Autorais, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, e depois regulamentado pelas Leis nº 8.672/93 e nº 9.615/98, respectivamente conhecidas popularmente como Lei Zico e Lei Pelé, que definiram seu conceito e outras implicações a respeito. A sua natureza jurídica sempre gerou polêmica, sendo que a inovação trazida pela Lei nº 12.395/11 estabeleceu que o direito de arena possui natureza civil, pois não se trata de contraprestação laboral, muito embora a jurisprudência reconhecesse, até então, a sua natureza salarial, na forma do enunciado da Súmula 354 do TST. Outro ponto de importante destaque refere-se ao fato de que o direito de arena não está relacionado à veiculação da imagem individual do atleta, pois a exposição individual do atleta está protegida pelo direito de imagem, consagrado no art. 5º, incisos V, X e XXVIII, da Constituição Federal de 1988, bem como no art. 20 do novo Código Civil brasileiro. A principal diferença entre o direito de arena e o direito de imagem decorre do fato de que, enquanto o direito de imagem é pago pelo clube em razão da comercialização da imagem do atleta para a divulgação da sua marca, como, por exemplo, pela imagem do atleta em álbum de figurinhas, caneca, camisetas, e até mesmo maior arrecadação nos jogos, o direito de arena é pago pela divulgação da imagem do atleta como parte integrante do espetáculo desportivo, sendo o empregador um mero intermediário nesse aspecto. Acerca do direito de imagem, por sua vez, o contrato de licença de uso de imagem deve ser pactuado individualmente pelo atleta profissional, ou por pessoa jurídica que detenha direitos sobre sua imagem, juntamente com a entidade esportiva, daí os motivos que levam à extinção do contrato de trabalho também acarretarem a extinção do contrato de uso de imagem.

4.7 REFERÊNCIAS

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BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 5.988 de 14 de dezembro de 1973. Regula os direitos autorais e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 8.672, de 6 de julho de 1993. Institui normas gerais sobre desportos e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 12.395, de 16 de março de 2011. Altera as Leis nº 9.615, de 24 de março de 1998, que institui normas gerais sobre desporto, e 10.891, de 9 de julho de 2004, que institui a Bolsa-Atleta; cria os Programas Atleta Pódio e Cidade Esportiva; revoga a Lei nº 6.354, de 2 de setembro de 1976; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmulas. DJ, Brasília, DF, 19 a 21 nov. 2003. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2015. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. CHINELATO, Silmara Juny. Futebol, arte e direito de arena. In: PIMENTA, Eduardo. Direitos autorais: estudos em homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 335- 340. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. 30. ed. v.3. São Paulo: Saraiva, 2014. A imagem do atleta... // 93

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94 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= V =

A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O PODER PUNITIVO DO ESTADO: UMA FORMA DE PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO PENAL?

Gisele Mendes de Carvalho* Aline Gabriela Pescaroli Casado**

5.1 INTRODUÇÃO

O cenário brasileiro acerca do sistema prisional não precisa de muitos especialistas para identificar um verdadeiro caos e uma carnificina a olhos vistos com os direitos humanos de quem se encontra recolhido. O Estado parece ainda pretender legitimar seu poder punitivo, absolutamente retributivo, com maior severidade e austeridade possível, como se tal fosse a fórmula mágica para solucionar problemas que exigem muitos mais de políticas públicas do que de cadeias e segregações. O Poder punitivo do Estado, primeiramente encontra limites na própria Constituição Federal, exatamente para proporcionar respeito às garantias individuais e preservação de direitos fundamentais do indivíduo. As teorias da pena que tentam indicar um caminho a ser seguido pelo Poder Público acerca das melhores condições em mitigar o problema criminológico parecem não ser suficientes a efetivar a finalidade do Estado em relação a prevenção das condutas criminosas que, abalam a harmonia social e deflagra muitas vezes cenários de vinganças privadas e verdadeiras chacinas sociais.

5.2 O PODER PUNITIVO DO ESTADO

Existem inúmeros estudiosos que apontam as políticas públicas como instrumento ou mecanismo suficiente a minimizar os problemas sociais e, especialmente os problemas relativos a estas condutas criminosas. Ocorre que, embora existam caminhos definidos acerca de como o Estado pode perpetrar estas políticas, pouco ou quase nada tem sido efetivado no plano real, capaz de modificar o cotidiano das pessoas. Geralmente, políticas públicas sugerem um tempo que a sociedade atualmente não possui, a espera de um milagre social e, principalmente criminológico.

* Pós-Doutorado (2009) em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza, Espanha, Doutorado (2007), Mestrado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2003), Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2000). ** Mestranda em Ciências Jurídicas pela Unicesumar, Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá (2011), Graduação em Direito pela Universidade do Oeste Paulista (2003). 96 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Pensar alternativas para o problema carcerário, a superlotação de presídios, a redução da criminalidade e a compatibilização com um sistema penal justo são sempre um desafio a qualquer povo ou nação. Algumas respostas menos agressivas e com maior resultados práticos da diminuição do caos se apresentam, dentre elas, a justiça restaurativa, um mecanismo que não possui todas as respostas ou soluções, mas tem sido atualmente apontada como uma alternativa menos punitiva e mais “responsabilizadora”. A justiça restaurativa tem se colocado, no atual cenário que vivemos, a vista do sistema prisional, como uma forma de solução de conflitos e, na seara dos eventos criminológicos, demonstra maior maturidade da ideia de autoresponsabilização do indivíduo infrator, bem como revela a reparação do dano como força motriz da proposta restaurativa, minimizando os aspectos da sensação de impunidade do infrator. Infelizmente a justiça restaurativa, encontra resistências significativas à sua aplicação, no Brasil, por exemplo, em virtude de diversos fatores contribuírem significativamente com tal situação tais como, a natureza adversarial do processo penal mas, sobretudo, em virtude de uma necessária reprimenda dirigida ao infrator que, geralmente é restritiva da liberdade do indivíduo, como forma de demonstrar que o crime tem um custo alto para o próprio infrator. Howard Zehr demonstra que a adversidade do processo por si só, impede uma aproximação da vítima com o ofensor, no sentido de entender qual era a situação, assim como o ofensor tem dificuldade em identificar sua posição na vida da vítima, afastando a possibilidade de atuação ou aplicação da justiça restaurativa ao caso: “Nunca estive com a moça do caso narrado acima. A natureza adversarial do processo judicial desestimulou esse encontro pelas circunstâncias do meu envolvimento no caso, e por minha própria dúvida quanto ao modo de agir” (ZEHR, 2008, p. 19). O entrave judicial atualmente tem sido o grande desestímulo a novas experiências na seara do processo penal, como se o castigo, a reprimenda que restringe a liberdade do indivíduo pudesse ser a única alternativa possível e viável ao Estado.

5.3 BINÔMIO DIREITO FUNDAMENTAL E DEVER ESTATAL

A liberdade, em razão de nosso antecedente histórico de brutalidades desmedidas com a liberdade do indivíduo, foi consagrada pelo Poder Constituinte como direito fundamental do indivíduo. A ditadura no Brasil impulsionou o Constituinte de 1988 a proteger de forma especial e essencial a liberdade, em seus mais variados espectros. Assegurou no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal a liberdade do indivíduo, apenas admitindo sua privação após obedecido o devido processo legal. Desta forma desejou, o Poder Constituinte assegurar que, a regra no processo penal deva ser a liberdade, admitindo-se encarceramento A justiça restaurativa... // 97 provisório ou durante o processo penal, apenas como exceção ou quando extremamente necessário. Aqui estamos diante de uma dupla função estatal em relação ao próprio indivíduo infrator, uma a de protegê-lo da própria arbitrariedade do Estado, entendida a partir do Poder de punir o indivíduo por suas violações a bens jurídicos penalmente protegidos. E, ao mesmo tempo, a de proteção da própria coletividade ou sociedade, diante de fatos que esta repudia e deseja punição, embora muitas vezes, a qualquer custo. Acerca da esfera pública que nos interessa definir para discutirmos a questão da dicotomia em punir e proteger o indivíduo, Sales:

Há uma construção social que regula política e culturalmente os indivíduos, mesmo quando parece estar em crise e no centro das polêmicas filosóficas, qual seja: a esfera pública. Desde os gregos, ela reúne os cidadãos, instaura disposições e é também berço de mudanças e revoluções. Na sociedade moderna, dela fazem parte todos os indivíduos e suas expressões coletivas, mesmo sem o saberem e se darem conta. A esfera pública e, pois, por excelência, o lugar do encontro com o outro. E é sobre essa esfera e força centrípeta, geradora da sociabilidade, que nos interessa falar (...) (SALES, 2007, p. 97).

Em Vigiar e punir, esta situação do Estado encontra seu verdadeiro intento em conciliar o Poder de Punir confrontado com o direito de liberdade do indivíduo e, como ressaltou Foucault: “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar” (FOUCAULT, 1987, p. 75). Obviamente que, entre o direito da sociedade em ser protegida pelo Estado e a liberdade do indivíduo prevalecer há que se resguardar o interesse coletivo, neste ponto a doutrina é esmagadoramente majoritária e o ponto pouco se modifica. Ocorre que, relativizar a liberdade que, é um bem tão caro ao indivíduo deve ser repensada com mais cautela, sob o fundamento de que se deve preservar interesses maiores ou mais relevantes e invocar a prevalência do interesse público, por exemplo. Nossa sociedade tem caminhado por este trilho há décadas e o que se tem visto é o encarceramento em massa e sem controle algum relativamente à razoabilidade que se deve exigir do Poder Judiciário principalmente, como ator social fundamental na garantia da liberdade do indivíduo. A este respeito a ideia de Foucault deixa transparecer a sociedade que estamos nos tornando:

Entramos num tipo de sociedade em que o poder da lei está em vias não de regredir, mas de integrar-se a um poder muito mais geral: em suma, o da norma. Observe as dificuldades que a instituição penal experimenta, hoje, quanto à aceitação do ato para o qual ela foi feita: proferir uma sentença. É como se punir um crime não tivesse mais sentido, assimila-se cada vez mais o criminoso a um doente e a condenação a uma prescrição terapêutica. Isso caracteriza uma sociedade em vias de deixar de ser uma sociedade jurídica 98 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

articulada essencialmente com a lei. Tornando-nos uma sociedade articulada, por essencial, com a norma (FOUCAULT, 1987, p. 395).

É claro que estamos diante de dois direitos fundamentais, de um lado a segurança pública e social, de outro a liberdade do indivíduo e, nos inquieta identificar na doutrina nacional e internacional posicionamentos que, indicam a prevalência do interesse público não importando qual o bem jurídico que se menospreza sob o fundamento de ser mais justo cotejar o interesse que a sociedade exige. O desafio que se revela aos olhos de toda a sociedade é buscar mecanismos e argumentos que afastem esta ideia de prevalência de um interesse sobre o outro somente porque se vislumbra proteger uma gama ainda maior de pessoas, do que apenas um indivíduo. O foco da doutrina precisa ser redirecionado. Isto porque, não podemos admitir que a liberdade seja menosprezada, porque uma vez tolhida, o indivíduo nunca mais poderá viver o que deixou de ser vivido ou esquecer o que eventualmente tenha sofrido encarcerado. O processo penal não pode ser utilizado como instrumento de vingança social, sob pena de retrocedermos aos tempos narrados na obra de Foucault1. A previsão constitucional de proteção da liberdade do indivíduo nos legitima olhar a liberdade e, cotejar a prevalência desta sobre qualquer outro bem, mesmo que este outro bem ou interesse tenha mais titulares como a sociedade. Desta forma, pretendemos destacar que a liberdade deve ser prevalente, porque muito mais importante que outros interesses, mesmo que tenha inúmeros titulares. A figura do castigo, da punição pela violação de uma norma, com a supressão do seu bem mais caro – a liberdade, identifica uma postura primitiva do indivíduo acerca daquilo que ele pretende afastar do seu convívio mas, sem se preocupar em resolver definitivamente o problema (CARNIO, 2008, p. 45).

1 Damiens .Vigiar e Punir. [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. A justiça restaurativa... // 99

5.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E O ENTRAVE HUMANO NO PROCESSO PENAL

A questão da liberdade alcança muitos espectros dentro da sua necessidade em ser preservada, assim como a violência deve ser cerceada em medida muito superior à liberdade. A criação de novos tipos penais inunda o ordenamento jurídico visto pelo legislativo e pela sociedade como única maneira de resguardar bens jurídicos, na tentativa de reprimir “mais” a escalada da violência, o que acaba via de consequência, aumentando os números do sistema carcerário, ou ainda repercutem nas sentenças ou decisões tomadas no curso do processo penal que, como forma de tentar conter a criminalidade, resolvem relativizar a liberdade do indivíduo para manter uma aparente situação de controle do Estado. A questão do cárcere está diretamente ligada com a liberdade do indivíduo, o que significa dizer ainda que, a segregação que viola o princípio da presunção de inocência ofende a dignidade do ser humano e, via reflexa exige do Estado a necessidade de implementação de mecanismos que fomentem a solução dos conflitos penais de forma mais eficiente e menos danosa ao indivíduo envolvido na situação de ocorrência de crime. Se assim não ocorrer, o cárcere passa a ser o depósito de seres que a sociedade não quer se preocupar em mudar o paradigma e, escondendo- os em local pouco visível fica fácil manter o problema distante e, aparentemente resolvido, com a evidência de “taxas mínimas da criminalidade”, mascarando a realidade social. Entretanto o cárcere há muito não é o local que efetivamente resolve os problemas sociais, principalmente no âmbito das ciências penais mas, continua a ser o palco de súplica indigna do supliciado. Mas a tônica social tem sido em sentido contrário a esta nossa constatação, conforme destaca BATISTA:

Se na Argentina aparece um pai “vítima” na cena política, com possibilidade de ser candidato a Presidente, no Brasil serão os pais e mães das vítimas (brancas, é claro) que darão o tom do debate criminológico e da mudança das leis penais no sentido de maior “rigor”. Essa emocionalidade é estratégica para o processo de expansão de poder punitivo no mundo contemporâneo (BATISTA, 2009, p. 37).

Na criminologia, muitos discursos têm sido no sentido de que deve haver um evidente recrudescimento das penas, vem à tona o discurso do punitivismo, da expansão do Direito Penal, conforme destaca Saavedra:

Pelo contrário, na Criminologia, tem-se identificado o ressurgimento de uma “cultura do punitivismo” e, no âmbito da dogmática penal, fala-se em “Expansão do Direito Penal”. Infelizmente, parece que, cada vez mais, o Direito Penal tem sido compreendido acriticamente como instrumento 100 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

imprescindível de concretização de políticas públicas e proteção de bens jurídicos (SAAVEDRA, 2011, p. 102-103). Os critérios de ressocialização do indivíduo perderam o sentido, frente à barbárie que assistimos nos últimos anos, com evidente degradação do sistema prisional brasileiro. Cresceu também a descrença na justiça, no indivíduo e na sua “recuperação”. Quando Foucault descreve as cenas de barbárie que eram inerentes às penas, descritas em sentenças, cada etapa do suplício ao qual o sujeito seria submetido, na verdade pouco se afasta do que atualmente temos visto nos telejornais, ou em entrevistas com indivíduos que estão submetidos ao cárcere (FOUCAULT, 1987, p. 395). A diferença entretanto é que o suplício descrito por Foucault era imposto pelo Estado e compunha a própria jurisdição estatal, hoje o suplício se reveste da ausência do Estado e da falta de garantias que o encarcerado possui, logo após atravessar os portões ou as grades de ferro dos estabelecimentos prisionais. A pena antecipada a que se submete o indivíduo que, durante o processo penal já é alijado de sua liberdade tem sido mais recorrente e perceptível, não apenas pela superlotação de presídios mas, por constatação e números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, inclusive encomendou uma pesquisa especial para mapear o encarceramento no Brasil. Segundo esta pesquisa2 os presos provisórios no Brasil, impulsionaram o país ao 4º lugar num ranking mundial dos países com maior população carcerária ou prisional. Os dados são alarmantes mas a pesquisa revela ainda que o número necessário de vagas deveria ser dobrado para atender a demanda prisional no país, sem considerar o número de mandados de prisão em aberto sem cumprimento. Tal cenário revela que, a ineficiência do Estado em alocar seus presos provisórios ou definitivos é insuficiente mas, sobretudo não se tem adotado uma política adequada acerca da superpopulação carcerária, que poderia na prática refletir o respeito à manter a regra do processo penal – a liberdade e, somente admitir a exceção em casos mais graves. Não podemos deixar de considerar ainda que além da liberdade do indivíduo o Estado deve manter e proteger a dignidade do encarcerado. Devemos destacar ainda o que a violação ao princípio da dignidade humana representa quando as violações são perpetradas pelo Estado. Neste ponto cabe destacar que, uma constatação imediata da violação da dignidade da pessoa humana pode ser demonstrada pela ausência de preocupação com a questão de tentar minimizar a criminalidade ou a ocorrência de crimes. Não apenas pela repressão ao crime, pela via repressiva ou dos mecanismos ineficientes da polícia, enfim mas, por um viés mais criminológico da questão buscando em modelos de outros países práticas

2 Pesquisa disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. A justiça restaurativa... // 101 que tenham alcançado resultados satisfatórios, adequando o modelo importado à nossa realidade social. Embora não tenha trazido exatamente o conteúdo ou o benefício frente à dignidade da pessoa humana, analisando os termos de Ingo W. Sarlet, podemos entender a amplitude do conceito de dignidade da pessoa humana:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2009, p. 60).

As considerações de Sarlet são fundamentais para esclarecer o alcance que a dignidade da pessoa humana deve representar para a humanidade. Cabe destacarmos que, a concepção normativa da dignidade humana tem patamares constitucionais e deve ser entendido como direito fundamental. O problema carcerário e da violência não escaparam aos olhos das Nações Unidas que, há muito tem indicado a utilização das práticas restaurativas pelos países, tentando disseminar uma cultura de paz. Tanto assim que a Resolução 2002/12 propunha diretamente a adoção das práticas restaurativas, dos processos restaurativos, etc. Tal postura acena para o mundo a necessidade de promover uma justiça de paz, com a menor degradação humana possível. Até aqui destacamos que, o indivíduo encarcerado enfrenta várias adversidades dentro do cárcere, ocorre que, devemos ainda salientar que, tais adversidades são verdadeiramente hipóteses em que o Estado viola a dignidade da pessoa humana mas outras podem ser as omissões do Estado e que também deflagra violações à dignidade da pessoa humana. A necessidade de identificarmos a justiça restaurativa em substituição ao processo penal tradicional, podemos dizer de uma maneira bastante geral, conflitos distinta da imposta pelo modelo de justiça penal tradicional. Possui princípios diferentes dos sustentados pelo modelo tradicional (baseado no processo penal e na imposição de penas) e propõe, dentre outras coisas, a participação da vítima e do ofensor (investigado/réu/apenado) na resolução do conflito, a reparação do dano decorrente do delito (simbólica e/ou materialmente) e a responsabilização do ofensor de maneira não estigmatizante e excludente (POLLAMOLLA, 2015). As vias que se constroem alternativamente ao processo penal brasileiro, não estão acenando para a impunidade do indivíduo que tenha praticado um delito, mas para uma forma menos cruel de responsabilização. 102 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Sem dúvidas, o anseio social acerca de maior efetividade de suas necessidades, tem impulsionado de forma mais ávida o interesse pela justiça restaurativa, que na verdade demonstram que um novo modelo penal ou de repressão ao crime precisa evidenciar mais efetividade na prática. E não apenas a efetividade prática mas, o sistema penal tem demandado mais estudos aprofundados sobre o tema, o estudo do direito penal à luz de seu papel na sociedade é tema tão instigante e problemático que são inúmeros os trabalhos acadêmicos que tem por objetivo analisar a função que o sistema punitivo desempenha na coletividade, seja para justificar sua utilização, seja para criticá-la (WERMUTH, 2011, p. 15). O que tem justificado o clamor social pelo recrudescimento da intervenção punitiva é o medo que tem sido despertado uma sensação de abandono por parte do Estado, demandando ainda medidas populistas do Estado, muitas vezes, meramente simbólicos, como é o caso do que se tem denominado de Direito Penal do Inimigo, voltado à persecução à macrocriminalidade (WERMUTH, 2011, p. 22). As conclusões de Braga (BRAGA, 2006, p. 131) acerca das bases teórico-sociais organicistas, a fim de legitimar o seu saber-poder bem como as suas práticas punitivas, refutando perspectivas que trouxessem à tona o conflito ou a pluralidade de valores existentes na vida social. O enfoque penal tem sido direcionado à justiça restaurativa por se propugnar uma nova alternativa de solução de conflitos penais para inserir novos valores sociais, como a paz que precisa ser construída pelos indivíduos envolvidos no conflito penal. Empoderamento da vítima nas práticas restaurativas não significam que se possa dominar o processo penal, mas ao revés que se possibilite uma participação efetiva da vítima no atuação restaurativa. A justiça restaurativa para Zehr (ZEHR, 2002, p. 22) tem base em três pilares fundamentais: os prejuízos e as necessidades que o crime produz, as obrigações que ele gera e que a justiça restaurativa deve comprometimento e participação nesse processo de danos. Mas poderíamos indagar se a justiça restaurativa poderia diminuir o poder punitivo do Estado e se, diminuindo pudesse ensejar algum processo de impunidade que enfraquecesse o próprio Estado. Certamente a justiça restaurativa não tem o poder de diminuir o poder punitivo do Estado, porque sua atuação não inclui determinar sanções ao indivíduo que tenha praticado um delito, ao revés pretende fornecer meios para que o infrator possa identificar sua parcela de determinação em um resultado danoso, principalmente para a vítima, aproximando sua responsabilidade de modo suficiente a diminuir os danos. Acerca dos fundamentos da justiça restaurativa Larruscahim, preleciona que a justiça restaurativa teria como base estruturante: a identificação dos prejudicados no conflito, suas necessidades e a possibilidade de essas necessidades serem atendidas (LARRUSCAHIM, 2006, p. 182). A justiça restaurativa... // 103

Ainda continua referida autora que seria conveniente enfatizar que o processo penal formalizado e institucionalizado representa uma das mais importantes conquistas históricas da modernidade, já que fica a cargo do Estado e não das partes o poder de decisão sobre o conflito penal, asseguradas todas as garantias processuais, tais como ampla defesa, princípio do juiz natural, contraditório, presunção de inocência, etc. Na verdade, a necessidade nos encontros restaurativos está muito mais no fato de que vítima e ofensor possam efetivamente assumir posições no encontro que os façam entender um a realidade do outro, para que possam decidir de forma justa uma solução envolvendo o principal fator que importa para a Justiça restaurativa: a satisfação das partes e, não necessariamente um acordo. De um encontro restaurativo podem as partes saírem satisfeitas mas sem nenhum acordo. Parece ilógico mas, para a justiça restaurativa tem mais significado do que uma sentença no processo penal tradicional sem representar satisfação para nenhum dos envolvidos, menos ainda a sociedade que perde e muito neste aspecto.

5.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe destacar que o poder punitivo do Estado teve significado e pertinência para proporcionar à sociedade, uma sensação de que os problemas, principalmente nos conflitos penais, pudessem resguardar certos direitos sem representar impunidade. A necessidade de um novo paradigma penal tem impulsionado não apenas estudos acadêmicos neste aspecto mas, sobretudo tem despertado os debates sobre novos modelos de solução de conflitos, a partir de uma real responsabilização do indivíduo que esteja desempenhando o papel de infrator mas, deseja realmente reparar o dano sofrido pela vítima que, não precisa estar apenas pautado no aspecto material do ressarcimento. Os danos que eventualmente estejam ao redor dos conflitos penais são muitos mais psicológicos do que materiais e, neste aspecto merecem ser alvo do Estado no sentido de minimizar as marcas que permanecem para além do fato delituoso. Em razão das discussões que levantamos durante a elaboração do presente trabalho, pudemos perceber que, recrudescimento de penas, endurecimento do tratamento destinado aos indivíduos que praticam crimes não são as alternativas mais exitosas atualmente. Toda forma de endurecimento que apenas dirige o sujeito ao cárcere não resolve o problema social de encarceramento em massa e desmedido que atualmente superlotam os presídios brasileiros. Identificar práticas que contribuam com a diminuição ou deflação carcerária podem ser a solução mais viável e responsável neste momento. Neste ponto a justiça restaurativa aparece como uma alternativa que pode contribuir com tal situação, principalmente porque se mostra como 104 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade alternativa não apenas ao cárcere mas sobretudo em relação às possibilidades de promover a paz social. Os mecanismos e práticas restaurativas tem sido objeto de estudo e proposta de implementação no Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça que, tem observado por pesquisas dirigidas, os problemas carcerários brasileiros, e pretende tornar mais eficientes ações que tenham no bojo a prática restaurativa Até porque tem sido elaborado no Brasil desde o ano de 2000, medidas mais efetivas de implementação das práticas restaurativas, principalmente evidenciadas como possíveis nos casos da justiça penal. Em outros países a justiça restaurativa tem surtido efeitos muito positivos tanto que, alguns destes países adotam integralmente a justiça restaurativa. A justiça restaurativa pode trazer resultados mais positivos quanto à reparação de danos causados à vítima, bem como propiciar uma forma alternativa de responsabilização do infrator com impactos mais positivos, refletidos na dignidade de cada um dos atores do processo restaurativo. Ao assumir papel ativo no processo restaurativo, a vítima percebe a maior eficiência da justiça, com a efetiva reparação de seus danos, sem a necessidade de encarcerar o indivíduo o que ao final é o que representa maior interesse da própria vítima. Para a vítima, interessa mesmo a reparação de seus danos, restabelecer ao status anterior à ofensa do infrator todos os bens que foram eventualmente atingidos. O Conselho Nacional de Justiça tem elaborado pesquisas no sentido de efetivamente implementar a justiça restaurativa no Brasil, com propósitos seguros e com mecanismos bem definido. Acredita-se que o caminho esteja sendo percorrido pelo Poder Judiciário que, aos poucos, lentamente vai assimilando que, a justiça restaurativa pode ser o caminho para uma maior efetividade judicial. Tais ponderações podem ser extraídas, principalmente com base nos projetos pilotos3 em andamento no Brasil. Os casos de utilização ou implementação da Justiça Restaurativa começam em pequenas doses. Primeiramente os crimes de menor potencial ofensivo e vão avançando até alcançar e imprimir socialmente uma mentalidade de prevenção de crimes e solução pacífica de conflitos criminais. Ainda não se tem dados acerca da diminuição da reincidência com as práticas restaurativas no Brasil mas, em outros países a reincidência em

3 Os projetos pilotos são projetos de justiça restaurativa em andamento no Brasil, com ênfase na solução de conflitos criminais, como é o caso do Projeto de São Caetano do Sul em São Paulo. O projeto tem atuado na ressocialização de jovens infratores. O projeto começou em 2005, atuando em escolas e foi sendo expandido até alcançar em 2006 os crimes de menor potencial ofensivo, principalmente os casos envolvendo violência doméstica, alcoolismo e uso de drogas. Em 2011 o projeto avançou na utilização da justiça restaurativa em relação a crimes mais graves. Estes dados constam do site do Conselho Nacional de Justiça. Fonte: . Acesso em: 26 nov. 2014. A justiça restaurativa... // 105 casos da justiça restaurativa são muito superiores do que nos casos da justiça judicial tradicional. Infelizmente, os casos de justiça restaurativa estão sendo aplicados informalmente, sem qualquer respaldo seguro acerca das práticas restaurativas e, também isto pode ser um grande problema a posteriori a ser enfrentado, por isso a necessidade de se pensar uma legislação clara e segura acerca do tema. Mas a justiça restaurativa deve ser sim um aliado muito eficiente na diminuição da criminalidade e na solução de conflitos, de toda ordem, com muito menos impunidade ou sensação de impunidade. A justiça restaurativa pode ser sim um aliado muito eficiente na diminuição da criminalidade e na solução de conflitos, de toda ordem, com muito menos impunidade ou sensação de impunidade, porque o empoderamento social tem se revelado, quando bem estruturado, uma alternativa mais eficiente à figura do Estado, geralmente paternalista e garantista, principalmente em se tratando de direito penal e processual penal. O grande desafio é convergir com a humanização do direito penal, evitando que o processo penal signifique a via mais simples de vingança social e provavelmente a ressocialização atualmente preconizada seja uma realidade a partir da justiça restaurativa. Partindo de uma perspectiva teórica acerca da liberdade do indivíduo, podemos destacar que, este é um direito fundamental constitucionalmente concebido sob este enfoque e que, tem sido subjugado no ordenamento jurídico mas, sobretudo nas decisões judiciais criminais. Isto porque, na garantia da liberdade do indivíduo contrapondo-se com o interesse público ou social de determinada conduta criminosa, tem prevalecido o interesse público em detrimento do interesse do indivíduo em manter-se em liberdade. A regra do processo penal tem sido invertida, mesmo em contraposição ao que determina a própria Constituição Federal ao determinar que, a restrição da liberdade ocorra apenas quando houver trânsito em julgado da sentença condenatória, o que legitimaria o Estado na restrição da liberdade do indivíduo. Entretanto, tem sido comum a decisão judicial que determina a relativização do direito de liberdade, ainda no curso do processo penal, o que também viola ainda que indiretamente a dignidade da pessoa humana. O julgamento que pressupõe uma inversão ao princípio da presunção de inocência revela uma fragilidade do processo penal capaz de causar uma irrecuperável perda ao indivíduo que esteja na condição de indiciado que, se vê subjugado ao poder do Estado, em situação pouco propícia à defesa de seu bem maior – a liberdade. Aliás as decisões judiciais consistentes em antecipar a privação da liberdade, sob fundamentos vários, tais como a decretação de prisão preventiva, ensejam violação grave ao direito de liberdade do indivíduo e viola flagrantemente a dignidade da pessoa humana. 106 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Reflexamente a sociedade, embora não perceba diretamente, são prejudicadas com juízos de valor embrionários, no processo penal. A retribuição penal por si só não garante aos indivíduos o resgate de seus “prejuízos” representados pela prisão de alguém, e a dignidade das pessoas envolvidas no conflito perde sua essência aos poucos, a ponto de disseminarmos a cultura do ódio e do desprezo pela direito dos demais.

5.6 REFERÊNCIAS

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crise do Proceso Penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Notadez: Sapucaia do Sul, 2006. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais – Teoria Geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pag. 269 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: Justiça Restaurativa (Brasília – DF Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2009. SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 88. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2009. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2008.

108 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= VI =

A PRÁTICA ABUSIVA DAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES PELA VENDA CASADA NA CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE INTERNET VINCULADO AO DE TELEFONIA FIXA

Andryelle Vanessa Camilo Pomin* Crislaine Maria Rigo de Oliveira**

6.1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem, como tema, a abusividade na prática de venda casada, quando o consumidor procura uma empresa de telefonia para contratar o serviço de internet, mas se vê compelido a adquirir também o serviço de telefonia fixa. Para tanto, analisar-se-á o seguinte em quatro capítulos aspectos relativos a esta discussão. Em um primeiro momento, são analisados o momento e o contexto histórico em que se iniciou a proteção do consumidor no direito brasileiro e qual a sistemática adotada para a proteção daquele. Posteriormente, serão explorados o conceito de concorrência desleal e a intenção do Estado em coibir tais práticas desleais. No capítulo que tratará propriamente sobre o tema, objeto deste trabalho, será abordada a prática abusiva das empresas de telefonia que vinculam a contratação do serviço de internet ao de telefonia fixa. E, por fim, serão apresentadas as formas de defesa do consumidor contra tal abusividade.

6.2 DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO DIREITO BRASILEIRO

No século XVIII, com a Revolução Industrial, iniciou-se uma nova forma de produção que modificou as relações políticas, sociais e econômicas. Houve grande avanço tecnológico e científico, fazendo com que eclodissem cada vez mais conflitos entre fornecedores e consumidores. A vulnerabilidade do consumidor foi aumentando diante da falta de direitos que o protegessem. Tornou-se necessário que ocorresse intervenção estatal no mercado para que fossem efetivados direitos para essa classe de pessoas.

* Professora do curso de graduação em Direito do Unicesumar e da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Mestre em Ciências Jurídicas e pesquisadora do CNPQ. Advogada militante. Endereço eletrônico: . ** Graduanda em Direito. Endereço Eletrônico: . 110 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Os primeiros movimentos para a defesa do consumidor começaram em meados de 1945 no Canadá e na Europa.1 No mesmo período surgiu a Internacional Organization of Consumer Union (IOCU), órgão componente da Organização das Nações Unidas (ONU) (GAMA, 2006, p. 5). Nesse contexto,

A primeira justificativa para o surgimento da tutela do consumidor, segundo estendemos, está assentada no reconhecimento de sua vulnerabilidade nas relações de consumo. (...) É facilmente reconhecível que o consumidor é a parte mais fraca na relação de consumo. A começar pela própria definição de que consumidores são ‘os que não dispõem de controle sobre bens de produção e, por conseguinte, devem se submeter ao poder dos titulares destes’ (ALMEIDA, 2009, p. 24).

No Brasil, foi durante o regime militar que ocorreu o “milagre econômico”, marcando o processo de industrialização, e que surgiu a necessidade de proteção e garantia das relações de consumo. Tanto que, em 1970, surgiu a Associação de Defesa do Consumidor em Porto Alegre, e, em 1980, foram criadas entidades públicas e privadas no Brasil para a defesa do consumidor, como o Procon de São Paulo e a Comissão de Defesa do Consumidor, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (GAMA, 2006, p. 7). Posteriormente, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. XXXII, preceituou que o Estado promoveria, na forma da lei, a defesa do consumidor e determinou, por meio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que o Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação daquela, elaboraria o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Assim, foi formada uma comissão para a apresentação do Anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor e, em 1990, ele foi sancionado com vetos parciais e publicado em 12 de setembro de 1990. A lei n. 8.078 pretendia que a proteção do consumidor fosse integral, sistemática e dinâmica, com fulcro na sua vulnerabilidade. O direito do consumidor se iniciou com características repressivas, tanto no âmbito penal, quanto no administrativo. Mas, com o amadurecimento científico, notou-se que esse direito teria de ser também preventivo, culminando na proteção supraindividual, vez que se busca a intervenção estatal em nome da coletividade consumidora e não apenas do consumidor individual (BENJAMIN, 2009).

1 Numa fase inicial, o movimento consumerista esteve ligado às lutas pelas conquistas sociais quando se firmavam os competitivos mercados do fim do século retrasado e do inicio deste século. Numa fase posterior, passou o movimento consumerista a perseguir os fornecedores desonestos. Numa fase mais adiante, o movimento consumerista passou a procurar valorizar os bons aspectos da qualidade e na fase presente o movimento consumerista volta-se para alguns aspectos mais importantes: 1º) a boa informação sobre produtos e serviços. 2º) a boa conduta dos fornecedores nas estipulações comerciais. 3º) a boa presença dos fornecedores frente às expectativas de valorização da vida comunitária [...]. A prática abusiva das empresas... // 111

Após 25 anos da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, é possível notar uma modificação da cultura do consumo, à medida que boa parte dos consumidores passou a ter consciência, conhecimento dos seus direitos. Cumpre salientar que as empresas também contribuíram com essa modificação, vez que, na prática, passaram a respeitar esses direitos, mesmo que de forma coercitiva, por meio de multas e pagamento de indenizações.

6.3 DA COIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DA CONCORRÊNCIA DESLEAL

Em 1930, iniciou-se a industrialização no Brasil, acompanhada de um grande crescimento no mercado, o que fomentou a concorrência. Nesse período, as Constituições de 19342 e 19373 trataram sobre matéria econômica, visando que era preciso incentivar a economia. Rapidamente, as empresas começaram a se unir para dominar o mercado e aumentar os seus lucros, assim, em 1938, surgiu o decreto-lei n. 869 para disciplinar os crimes contra a economia popular. Já, em 1945, surgiu o decreto-lei n. 7.666, que dispôs sobre os atos contrários à ordem moral e econômica, e, para coibi-los, foi criada a Comissão Administrativa de Defesa Econômica.4 Na Constituição Federal de 1946, foi estabelecido, no art. 148, que “a lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”. A lei n. 4.137/1962 regulou a repressão ao abuso do poder econômico e, principalmente, criou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Assim, a ordem econômica foi sendo fundamentada na livre iniciativa, inspirada por princípios da propriedade privada e da livre concorrência. A livre iniciativa decorre de um estado liberal, que possibilita o desenvolvimento econômico, para se construir uma sociedade livre, justa e solidária. O Estado Democrático de Direito, por sua vez, alude a um estado de direito e de justiça social, que se vincula diretamente à livre iniciativa (art. 1º, inc. IV, Constituição Federal de 1988). Assim, analisa-se a livre concorrência como um desdobramento da livre iniciativa. Frisa-se que a livre concorrência tem como escopo a eficiência econômica, em proteção do consumidor, e o Estado, para promover a defesa

2 Art. 115 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica. 3 Art. 141 - A lei fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia popular são equiparados aos crimes contra o Estado, devendo a lei cominar- lhes penas graves e prescrever-lhes processos e julgamentos adequados à sua pronta e segura punição. 4 Ressalte-se que esse decreto-lei foi revogado em novembro do mesmo ano em que entrou em vigência. 112 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade do consumidor, declarou inconstitucional a concorrência desleal, conforme art. 170, da Constituição Federal. O art. 173, §4º também reprimiu o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. A defesa da concorrência reeduca o mercado, mas, afinal, o que é a livre concorrência e quando ela se torna desleal? Para José Marcelo Martins Proença, a livre concorrência se caracteriza em três liberdades: “[...] livre ação dos agentes econômicos, livre acesso ao mercado, livre escolha dos consumidores e utilizadores” (PROENÇA, 2001, p. 5). Isto é, baseia-se na livre iniciativa, porquanto a competitividade traz benefícios aos consumidores, pois estabelece competições de preço, como melhores condições para compras, gerando bem-estar à sociedade. A concorrência desleal, por sua vez, pode ser conceituada como “[...] todo ato de concorrente que, valendo-se de força econômica de outrem, procura atrair indevidamente sua clientela” (BITTAR, 1989, p. 37). Quer dizer, o concorrente usa de artifícios desonestos, fraudulentos, para obter mais clientela, ultrapassando o limite de sua esfera jurídica por atos desleais, contrários a preceitos de moral e de direito. Alberto Luís da Silva afirma:

[...] para a caracterização da concorrência desleal, concorrem alguns pressupostos que devem ser observados, quais sejam: a desnecessidade de dolo ou fraude, bastando apenas a culpa do agente; desnecessidade de verificação de dano em concreto, bastando a simples possibilidade ou o perigo de sua superveniência; necessidade de existência de colisão de interesses, isto é, atividade potencial, e, finalmente, a caracterização do ato praticado como contrario a preceitos de moral e de direito (SILVA, 2013, p. 66).

Há que se consignar ainda que existem dois tipos de concorrência, a concorrência-fim e a concorrência-meio. Na primeira, a prática da concorrência é proibida por causar dano potencial na economia, e, na segunda, reprimem-se as práticas que causam dano efetivo à economia. O Brasil adota o sistema da concorrência-meio, de acordo com os arts. 170 e 173, da Constituição Federal. Nesse sentido,

[...] há conduta anticompetitiva quando existe o poder de mercado impondo suas condições e preços ao cliente, pois se há muitas empresas no mercado, o consumidor tem sempre outras opções não se consolidando o aludido poder. Casos típicos de condutas anticompetitivas são o monopólio ou a formação de cartel; (...) o que se pretende, tanto no caso do cartel como no do truste, é imperar impondo seus preços, sem deixar alternativas ao consumidor, desta forma, estará exercendo o abuso do poder de mercado (SILVA, 2013, p. 66).

A prática abusiva das empresas... // 113

As fornecedoras de serviços de internet, de telefonia fixa e de tv a cabo, ora empresas de telecomunicações, muitas vezes condicionam os consumidores à compra do serviço de internet ao de telefonia fixa, vez que o valor, para contratar apenas o serviço de internet, é mais custoso do que a compra desses serviços em conjunto. Essas empresas incorrem na chamada concorrência desleal, já que praticam a venda casada para alcançar seu objetivo que é o lucro, não se importando se estão cometendo abuso de poder econômico, se estão prejudicando outras empresas, ou mesmo lesando os consumidores. Nessa acepção, o Guia Prático de Defesa da Concorrência do Brasil determina:

O que é venda casada? O ofertante de determinado bem ou serviço impõe, para a sua venda, que o comprador adquira um outro bem ou serviço. O efeito anticoncorrencial mais visível seria a tentativa de alavancar poder de mercado de um mercado para dominar outro, eliminando concorrentes (CADE, 2007). Grifo nosso

Por conseguinte, a venda casada viola a livre concorrência e o direito do consumidor que não tem escolha em adquirir o serviço de telefonia fixa, em uma empresa, e o serviço de internet, em outra. Salienta-se que os fornecedores podem se utilizar de todos os meios a sua disposição para o livre desenvolvimento de seus comércios, o que estes não podem é ferir os princípios que fortificam a livre concorrência e causar prejuízo aos direitos de outros empresários ou mesmo dos consumidores, vez que a livre concorrência é importante para o desenvolvimento saudável da atividade econômica.

6.4 DA PRÁTICA ABUSIVA DAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES PELA VENDA CASADA NA CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE INTERNET VINCULADO AO DE TELEFONIA FIXA

Um dos pontos em que se detém o Código de Defesa do Consumidor é na proteção às práticas comerciais existentes no mercado atual, especialmente porque as relações de consumo, nas últimas décadas, foram intensificadas, surgindo, desde então, inúmeros conflitos entre consumidores e fornecedores. Assim,

As empresas buscam garantir interesses próprios, em geral movidas pela busca da maximização de seu lucro, e/ou de posições que permitam maior concentração de mercado e eliminação de concorrentes ou potenciais entrantes. Este sistema anárquico, visto que se baseia em objetivos individuais, pode se chocar com interesses maiores da Sociedade na busca do bem estar coletivo. É função do Estado coibir abusos e procurar regular a Concorrência nos Mercados tendo como norte que os ganhos de eficiência auferidos no processo produtivo devem ter, nitidamente, impactos na 114 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

melhoria das condições de vida dessa Sociedade e não, exclusivamente, reverter-se em ganhos das empresas (SICSU, 2015).

Diante da vulnerabilidade do consumidor frente à desinformação, especialmente técnica, o fornecedor, para se beneficiar e alcançar maior lucratividade, torna mais frequentes as práticas abusivas. Torna-se indispensável a definição dessas que podem ser conceituadas como um gênero, dentre as quais, a publicidade enganosa, as cláusulas abusivas e a cobrança abusiva são espécies, já “[...] que ultrapassam a regularidade do exercício de comércio e das relações entre fornecedor e consumidor” (ALMEIDA, 2009, p. 125). Nesse aspecto,

Outro ponto em que se detém o Código é o relativo a práticas que, na ânsia de realização de negócios, acabam ferindo, especialmente sob o ângulo patrimonial, a esfera jurídica do consumidor, lesando-lhe também componentes de sua personalidade (ALMEIDA, 2009, p. 125).

O art. 39, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece um rol exemplificativo do que são consideradas práticas abusivas, portanto, práticas vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços. No inc. I do mesmo dispositivo, é vedado ao fornecedor “[...] condicionar o fornecimento de produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”. O ato de condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro se denomina “venda casada”, que ocorre quando o consumidor se interessa por algum bem ou serviço e é impelido, por indução, sujeição ou subordinação ao fornecedor, a adquirir outro bem para que alcance o primeiro ou outro não desejado (GUIMARÃES NETO, 2012). Mesmo sendo proibida no ordenamento jurídico pátrio, essa prática abusiva ainda persiste cotidianamente. Como bem define a Secretaria de Acompanhamento Econômico,

Venda casada: prática comercial que consiste em vender determinado produto ou serviço somente se o comprador estiver disposto a adquirir outro produto ou serviço da mesma empresa. Em geral, o primeiro produto é algo sem similar no mercado, enquanto o segundo é um produto com numerosos concorrentes, de igual ou melhor qualidade. Dessa forma, a empresa consegue estender o monopólio (existente em relação ao primeiro produto) a um produto com vários similares. A mesma prática pode ser adotada na venda de produtos com grande procura, condicionada à venda de outros de demanda inferior (GUIMARÃES NETO, 2012).

Na venda casada, ao condicionar o fornecimento de determinado serviço ao de outro bem ou serviço próprio, a empresa procura garantir a colocação de certos produtos no mercado em razão da aceitação de outro, induzindo o consumo de outro bem não desejado para obter o fornecimento daquele visado. A prática abusiva das empresas... // 115

Essa prática é comum entre as empresas concorrentes, que abusam da boa-fé dos consumidores, e, mesmo que estes não venham a sofrer danos patrimoniais, essas vendas são consideradas ilícitas. O consumidor não pode ser obrigado adquirir determinado produto ou serviço por que não tem interesse, vez que seu direito de livre escolha deve ser preservado. Dessa forma, observa-se que

Essas práticas, ao turbar a livre possibilidade de escolha do consumidor, avançam, sem correspondência com uma necessidade real, em sua privacidade e em seu patrimônio, acrescendo-lhe ônus injustificado, que em uma negociação normal não estariam presentes (BITTAR, 2003, p. 55).

Outrossim, há que se classificar a venda casada em stricto sensu e lato sensu:

A venda casada stricto sensu é aquela em que o consumidor fica impedido de consumir, a não ser que consuma também outro produto ou serviço. Na venda casada lato sensu, por sua vez, o consumidor pode adquirir o produto ou serviço sem ser obrigado a adquirir outro. Todavia, se desejar consumir outro produto ou serviço, fica obrigado a adquirir ambos do mesmo fornecedor, ou de fornecedor indicado pelo fornecedor original (GUIMARÃES NETO, 2012).

É importante mencionar que a lei n. 8.158/1991, que tratava sobre defesa da concorrência, revogada em 1994, constituía, como infração à ordem econômica,

Qualquer acordo, deliberação conjunta de empresas, ato, conduta ou prática tendo por objeto ou produzindo o efeito de dominar mercado de bens ou serviços, prejudicar a livre concorrência ou aumentar arbitrariamente os lucros, ainda que os fins visados não sejam alcançados, tais como subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem (art. 3º, inc. VIII).

A lei n. 8.137/1990, já citada, e também quanto a esse aspecto revogada, previa pena de detenção de dois a cinco anos ou multa a quem subordinasse “[...] a venda de um bem ou a utilização de serviço à aquisição de outro bem, ou ao uso de determinado serviço” (art. 5º, inc. II). Atualmente, as empresas de telecomunicações ofertam serviço de internet banda larga fixa, telefone fixo, tv a cabo, etc. Geralmente esses serviços são vendidos por meio de “combos” ou de “pacotes promocionais”. Quando uma pessoa deseja contratar somente o serviço de internet – banda larga fixa, essas empresas acabam impelindo o consumidor à compra do serviço de telefonia fixa, pois o valor dos dois serviços é mais barato do que o valor da internet isoladamente considerada. 116 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Por exemplo, tem-se uma empresa que oferece “Internet Banda Larga de 15 mega” ao valor de R$ 99,90 (noventa e nove reais e noventa centavos), mas o preço da mesma “Internet Banda Larga de 15 mega”, com telefone fixo, é R$ 79,90 (setenta e nove reais e noventa centavos), ou seja, há um acréscimo de aproximadamente 25% se se contratar apenas o serviço de internet. Em outra pesquisa, a porcentagem fica exorbitantemente maior. A “Internet Banda Larga de 15 mega”, no combo com telefone fixo e tv a cabo, custa R$ 39,90 (trinta reais e noventa e nove centavos) e, fora do combo, ou seja, apenas a internet, R$ 89,90 (oitenta e nove reais e noventa centavos), o que cria um acréscimo de aproximadamente 120%, se contratado apenas o serviço da internet. No prisma do direito do consumidor, isso é um absurdo. Como é possível um serviço custar em média 25 a 120% a mais do que dois serviços? A explicação encontrada é de que o fornecedor aumenta o preço do produto unitário (internet) para compelir o consumidor a contratar os dois serviços (internet mais telefone fixo) em conjunto. Essa prática, nitidamente, encaixa-se dentro do conceito de venda- casada. Quer dizer, os consumidores são compelidos, influenciados, condicionados a contratar o serviço de internet com o da telefonia fixa, porque isso se torna mais acessível. A resolução n. 632/2014, da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), no parágrafo único do art. 54, estabelece que o preço relativo à oferta de um dos serviços de forma avulsa não pode exceder aquele relativo à oferta conjunta de serviços de telecomunicações de menor preço em condições semelhantes de fruição. Consequentemente, nota-se o claro descumprimento dessa norma, vez que o serviço de internet, a R$ 89,90, excede em muito àquele relativo à oferta conjunta de internet e telefonia fixa, de R$ 39,90, como no exemplo apresentado acima. As empresas alegam que essa diferença de preço encontra respaldo no fato de que elas “podem” ofertar descontos para quem deseja contratar mais de um serviço. Ocorre que, conforme demonstrado, o valor do produto unitário é absurdamente maior do que o “desconto” oferecido, ou seja, as empresas estão condicionando o consumidor a contratar dois serviços e não apenas oferecendo descontos. Destarte, além das vedações expostas, o art. 11, inc. XVIII, da resolução n. 426/2005, que regula os serviços de telefonia fixa da ANATEL, preceitua como direito do usuário de telefonia fixa: “[...] não ser obrigado ou induzido a consumir serviços ou a adquirir bens ou equipamentos que não sejam de seu interesse, bem como a não ser compelido a se submeter à condição para recebimento do serviço, nos termos deste Regulamento”. É importante destacar que essa mesma resolução dispõe sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de prestação de serviços de internet e telefonia fixa (art. 78). A prática abusiva das empresas... // 117

No site da ANATEL, dentro do item “perguntas frequentes”, questiona-se se quem deseja contratar acesso à internet – banda larga fixa precisa obrigatoriamente contratar também um serviço de telefonia fixa. A resposta é clara:

Não. É proibido condicionar a oferta do SCM à aquisição de outro serviço ou facilidade, oferecido pela prestadora ou por suas coligadas. Também é proibido condicionar vantagens ao assinante à compra de outras aplicações ou de serviços adicionais ao SCM, ainda que prestados por terceiros. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) também estabelece vedação à prestadora condicionar o seu fornecimento ao fornecimento de outro produto ou serviço. O assinante tem direito a não ser obrigado ou induzido a adquirir bens ou equipamentos que não sejam de seu interesse, bem como a não ser compelido a se submeter a qualquer condição, salvo diante de questão de ordem técnica, para recebimento do serviço.

Assim, pode-se contratar, por exemplo, a banda larga fixa via tecnologia ADSL independentemente da existência de um telefone fixo associado. O interessado só deve contratar os dois serviços, banda larga ADSL e telefone fixo, se for do seu interesse. Grifo nosso

E prossegue:

As empresas que exigirem dos interessados a prévia aquisição de qualquer outro serviço ou facilidade para a posterior contratação de banda larga fixa contrariam o Código de Defesa do Consumidor e o Regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia, sujeitando-se às sanções previstas (ANATEL, 2015).

Esse item possui fundamentação legal na resolução n. 632/2014 da ANATEL, arts. 50 e 43, parágrafo único, in verbis:

Art. 43. As Prestadoras podem promover Oferta Conjunta de Serviços de Telecomunicações, em conformidade com a regulamentação vigente, respeitadas as condições específicas de cada serviço de telecomunicações integrante da oferta. Parágrafo único. É vedado à Prestadora condicionar a oferta do serviço ao consumo casado de qualquer outro bem ou serviço, prestado por seu intermédio ou de parceiros, coligadas, controladas ou controladora, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.

Art. 50. Antes da contratação, devem ser claramente informadas ao Consumidor todas as condições relativas ao serviço, especialmente, quando for o caso: I - valores de preços e tarifas aplicáveis, com e sem promoção; II - período promocional; III - data e regras de reajuste; IV - valores de aquisição, instalação e manutenção dos serviços e equipamentos; 118 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

V - restrições à utilização do serviço; VI - limites de franquia e condições aplicáveis após a sua utilização; VII - velocidades mínima e média de conexão; VIII - a viabilidade de imediata instalação, ativação e utilização do serviço; IX - incidência de prazo de permanência, período e valor da multa em caso de rescisão antes do término do prazo. Parágrafo único. As informações constantes deste artigo, sem prejuízo de outras que se afigurem relevantes à compreensão do Consumidor quanto às condições da oferta contratada, devem ser consolidadas em sumário, de forma clara, com destaque às cláusulas restritivas e limitadores de direitos, a ser entregue antes da contratação.

Em síntese, o fornecedor aumenta o preço do serviço unitário para compelir o consumidor a contratar os dois serviços em conjunto, vez que este, diante dos valores ofertados, não encontra outra opção senão em escolher os dois serviços da mesma empresa, porque estes ficam absurdamente mais em conta. O que deve ficar claro ao consumidor é que é possível contratar internet - banda larga fixa independentemente da existência de um telefone fixo associado. O consumidor só deve contratar os dois serviços se tiver interesse. E, nesse sentido, decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Paraná:

EMENTA: CÍVEL. RECURSO INOMINADO. AÇÃO E REPARAÇÃO DE DANOS. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO DE INTERNET BANDA LARGA 5MB. DISPONIBILIDADE DE APENAS UMA PORTA COM VELOCIDADE MÁXIMA DE 2MB. RÉ QUE OFERTA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EM VELOCIDADE SUPERIOR A EFETIVAMENTE CUMPRIDA. PUBLICIDADE QUE NÃO CONDIZ COM O PRATICADO. OFERTA NÃO CUMPRIDA. ALEGAÇÃO DE ATRASO QUANDO DA INSTALAÇÃO DA INTERNET BANDA LARGA. CONDICIONAMENTO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERNET À AQUISIÇÃO DO SERVIÇO DE TELEFONIA FIXA. VENDA CASADA. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. INEFICIÊNCIA DO SERVIÇO DE CALL CENTER. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL (R$4.000,00 – QUATRO MIL REAIS) QUE ATENDE AS FINALIDADES COMPENSATÓRIA, PEDAGÓGICA E PUNITIVA. SENTENÇA MANTIDA. Recurso conhecido e desprovido. PRIMEIRA TURMA RECURSAL. Recurso Inominado nº 0002047-45.2014.8.16.0030. Origem: 3.º Juizado Especial Cível de Foz do Iguaçu– PR. Relatora: Juíza Letícia Guimarães. Data do Julgamento: 24/03/2015. Grifo nosso

Esse julgado reconheceu, como venda casada, o condicionamento da prestação de serviços de internet à aquisição do serviço de telefonia fixa. Dessa sorte, analogicamente, a título de exemplo, observa-se também o seguinte Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconhece a prática da venda casada, por parte das empresas de telecomunicações, como apta a causar sensação de repulsa A prática abusiva das empresas... // 119 coletiva, sendo ato intolerável, vez que a mesma, ao oferecer linha telefônica com tarifas mais atrativas, condiciona a aquisição do referido produto à compra de aparelho telefônico:

DIREITO DO CONSUMIDOR. VENDA CASADA E DANO MORAL COLETIVO IN RE IPSA. Configura dano moral coletivo in repisa a realização de venda casada por operadora de telefonia consistente na prática comercial de oferecer ao consumidor produto com significativa vantagem - linha telefônica com tarifas mais interessantes do que as outras ofertadas pelo mercado - e, em contrapartida, condicionar a aquisição do referido produto à compra de aparelho telefônico. Inicialmente, cumpre ressaltar que o direito metaindividual tutelado na espécie enquadra-se na categoria de direitos difusos, isto é, tem natureza indivisível e possui titulares indeterminados, que são ligados por circunstâncias de fato, o que permite asseverar ser esse extensível a toda a coletividade. A par disso, por afrontar o direito à livre escolha do consumidor, a prática de venda casada é condenada pelo CDC, que, em seu art. 39, I, prescreve ser "vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, entre outras práticas abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos", devendo o Estado engendrar todos os esforços no sentido de reprimi-la. Desse modo, a prática de venda casada por parte de operadora de telefonia é prática comercial apta a causar sensação de repulsa coletiva a ato intolerável, tanto intolerável que encontra proibição expressa em lei. Nesse passo, o dano analisado decorre da própria circunstância do ato lesivo (dano moral in reipsa), prescindindo de prova objetiva do prejuízo sofrido. Portanto, afastar da espécie o dano moral coletivo é fazer tábula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do consumidor. REsp 1.397.870-MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 2/12/2014, DJe 10/12/20145. Grifo nosso

Logo, o fornecedor não pode condicionar a prestação de um serviço ao fornecimento de outro, pois, se o fizer, estará praticando um ato ilícito, caracterizado como abusivo pelas regras consumeristas.

6.5 DAS POSSIBILIDADES DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A venda casada é uma prática abusiva considerada ilegal, e quem a pratica comete ato ilícito, cuja definição encontra-se no Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

5 Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça n. 0.053, de 11 de fevereiro de 2015. Esse periódico, elaborado pela Secretaria de Jurisprudência do STJ, destaca teses jurisprudenciais, firmadas pelos órgãos julgadores do tribunal nos acórdãos incluídos na Base de Jurisprudência do STJ no período acima indicado, não consistindo em repositório oficial de jurisprudência. 120 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Grifo nosso

O ato ilícito decorre de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, ao violar direito e causar dano. Além disso, “[...] aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” nos termos do art. 927, do Código Civil. Impõe também o art. 6º, inc. VI, do Código de Defesa do Consumidor, que são direitos básicos do consumidor a “[...] efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”. Ademais, estabelece a Lei 9.472/1997 (Lei Geral das Telecomunicações):

Art. 3º O usuário de serviços de telecomunicações tem direito: IV - à informação adequada sobre as condições de prestação de serviços, suas tarifas e preços. [...] IX - à reparação dos danos causados pela violação de seus direitos.

Assim, aquele que cometer ato ilícito, seja por ação, omissão, negligência, imprudência ou por não prestar informação adequada, deverá reparar os danos (patrimoniais, morais, individuais, coletivos, difusos) causados, vez que, ao fornecedor, é imposto o dever de atuar conforme determina o ordenamento jurídico brasileiro, não se permitindo a violação da sistemática jurídica. Ainda, há de se frisar que, quando as empresas reiteram as denominadas práticas abusivas, poderão caracterizar abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito. Esses são motivos ensejadores da desconsideração da personalidade jurídica, conforme art. 28 do Código de Defesa do Consumidor; e, se isso ocorrer, o patrimônio pessoal dos sócios da empresa poderá ser atingido, a fim de se garantir a reparação de danos causados. Isso posto, o consumidor que se deparar com o condicionamento de algum produto ou serviço ao de outro, deverá denunciar os fornecedores responsáveis aos órgãos de defesa do consumidor, como o Procon, Ministério Público, Delegacia do Consumidor, que adotarão as medidas pertinentes de punição. Se, por via administrativa, o problema não for resolvido, o consumidor poderá também se socorrer do Poder Judiciário. Importante mencionar que, para facilitar a defesa do consumidor, a lei n. 9.099/1995 previu que este, nas causas de até 20 salários mínimos, pode promover ações judiciais perante o Juizado Especial, pelo procedimento sumaríssimo, sem a necessidade de estar assistido por advogado. Nos Juizados Especiais, dependendo do caso em específico, poderão ser propostas Ação de Obrigação de Fazer, Ação de Obrigação de Fazer Cumulada com Reparação de Danos, Ação de Reparação de Danos, entre outras. A prática abusiva das empresas... // 121

Diante do exposto, verifica-se que não faltam disposições no ordenamento jurídico brasileiro para coibir a venda casada. O que ocorre é que, na maioria dos casos, os consumidores não denunciam as empresas, ou acabam se omitindo, aceitando os “pacotes promocionais”, o que fomenta a violação de seus direitos individuais, bem como de toda a coletividade, visto que a abusividade se perpetra.

6.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado neste trabalho possibilitou contribuição à ciência jurídica, especialmente no que tange aos esclarecimentos das práticas abusivas dos fornecedores de produtos e serviços, também servindo como fonte de informação aos consumidores que, muitas vezes, desconhecem-na. A Constituição Federal de 1988 determinou que o Estado promovesse a defesa do consumidor e, por meio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispôs que o Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro. Assim, surgiu o a lei n. 8.078/1990 para estabelecer o equilíbrio entre os consumidores e fornecedores, para que aqueles pudessem ter a facilitação dos seus direitos perante estes. Os fornecedores podem se utilizar dos meios a sua disposição para o desenvolvimento de suas empresas. O que aqueles não podem é ferir princípios que fortificam a livre concorrência. Por esta, entende-se como a competição que existe entre empresários do mesmo ramo, sendo ela imprescindível para o desenvolvimento saudável da atividade econômica. O concorrente, quando deseja obter um número maior de clientes, deve fazer isso dentro dos ditames da legislação, sem causar prejuízo aos direitos dos demais empresários ou dos consumidores, tudo em respeito aos princípios da lealdade e da boa-fé objetiva. A venda casada, realizada pelos fornecedores de produtos ou de serviços, intensifica a vulnerabilidade do consumidor, o desequilíbrio das relações jurídicas e a regularidade das negociações, já que o fornecedor se nega a ofertar algo que o consumidor almeja se este não concordar em adquirir outro produto ou serviço. O fornecedor aumenta o preço do serviço unitário, para compelir o consumidor a contratar os dois serviços conjuntamente, sob alegação de que a diferença no preço é legal, pois aquele “pode” oferecer descontos para quem deseja contratar um pacote, ao invés de somente um serviço. Ocorre que, dessa forma, o fornecedor acaba impelindo o consumidor à compra dos dois serviços vez que este, diante dos valores ofertados, não encontra outra opção, a não ser em escolhê-los. Observa-se que o problema real é que o consumidor desconhece que pode contratar o fornecimento de internet banda larga fixa, desvinculada da contração do serviço de telefone fixo, pois, pelo “senso comum”, pensa que não há possibilidade de instalar a internet sem contratar o telefone fixo da mesma empresa. Assim, quando o consumidor realiza uma pesquisa para 122 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade contratar internet e encontra o preço absurdamente maior, caso escolha apenas um serviço, ele acaba contratando os dois serviços. O que deve ficar claro ao consumidor é que é possível contratar internet - banda larga fixa, independentemente da existência de um telefone fixo associado. O consumidor só deve contratar os dois serviços se tiver interesse em ambos. Isso posto, o consumidor que se deparar com esse tipo de prática abusiva deve realizar uma denúncia aos órgãos competentes ou ingressar com ação judicial, para que essas empresas sejam autuadas administrativamente ou condenadas à obrigação de fazer ou reparar danos eventualmente causados.

6.7 REFERÊNCIAS

ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações. Perguntas frequentes: acesso a internet - banda larga fixa. Questão 07. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. O direito do consumidor. BDJur, Brasília, 27 jul. 2009. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: código de defesa do consumidor. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. BITTAR, Carlos Alberto. Teoria e prática da concorrência desleal. São Paulo: Saraiva, 1989. CADE, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Guia Prático do CADE: a defesa da concorrência no Brasil. 3. ed. São Paulo: CIEE, 2007. GAMA, Hélio Zagheto. Curso de direito do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2006. GUIMARÃES NETO, Henrique Borges. A prática ilegal da venda casada. Conteúdo Jurídico, Brasília: 19 jan. 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. MARSHALL, Carla Izolda Fiuza Costa. Panorama geral da concorrência no Brasil. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, v. 2/3, n. 2/3, p. 65-82, 2001-2002. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2015. A prática abusiva das empresas... // 123

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124 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= VII =

A PRIVACIDADE, A PUBLICIDADE E A PROPORCIONALIDADE EM FACE DA DEFESA DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Heitor Filipe Men Martins* Ivan Aparecido Ruiz**

7.1 INTRODUÇÃO

O conflito aparente entre o princípio da publicidade e o direito de privacidade, quando analisados sob a tutela dos direitos de personalidade, tem sido objeto de longas controvérsias, tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais. Existe, concretamente, uma realidade que os juristas não podem negar, qual seja a da aplicabilidade prática do direito de privacidade, enquanto manifestação da própria dignidade da pessoa humana, em contraposição ao princípio da publicidade, o qual preconiza que determinados atos e acontecimentos, por possuírem relevância social, devem ser apresentados de forma pública. Assim, a fim de sanear esta suposta dicotomia, deve ser aplicada a proporcionalidade, já que não restam dúvidas de que tanto a privacidade quanto a publicidade devem ser sopesadas em face dos acontecimentos, sempre se buscando efetivar e garantir a tutela da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, o sistema normativo é composto por regras e princípios que permitem ao aplicador do direito e à sociedade em geral compreender a ciência do direito. Contudo, uma vez reconhecido que não existe hierarquia entre os direitos fundamentais, em sendo constatada uma colisão de ideais, deve haver uma ponderação. Toda a discussão atinente aos princípios é de fundamental importância para o mundo jurídico porque envolve o emprego do direito material no caso concreto tomando por base a interpretação teleológica da própria norma. Assim, o estudo apurado do assunto permite uma maior análise social e auxilia no surgimento de decisões e ideologias mais justas como forma de garantir a efetividade dos direitos fundamentais.

* Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, UEM (2014). Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá, UniCesumar, estudante de especialização em Direito Civil e Empresarial pelo Damásio Educacional, advogado com escritório profissional na cidade de Maringá, PR. ** Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL, Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR, Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá – UEM/PR e, também, do Programa de Mestrado Ciência Jurídicas do Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR. Advogado no Paraná. 126 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

A noção da imensidão do tema aliada à incontroversa necessidade de buscar uma justificativa para os atuais movimentos em prol da efetivação dos direitos da personalidade, consubstanciados no direito de privacidade em oposição ao princípio da publicidade, é fundamental para qualquer jurista que esteja envolvido com o direito, já que é cediço que as suas consequências vinculam toda sociedade.

7.2 OS PRINCÍPIOS: SOBRE SUA INCIDÊNCIA PRÁTICA

O estudo e a análise dos assuntos relacionados aos princípios jurídicos possuem grande relevância para o direito eis que auxiliam na compreensão do sistema e no próprio entendimento normativo que rege a vida em sociedade. Enquanto tema de grande repercussão no século XX, os princípios estão intimamente relacionados ao próprio Estado Democrático de Direito e guardam relação com a postura do positivismo jurídico moderno, de modo que é imprescindível o seu estudo e sua caracterização doutrinária e prática. Robert Alexy (2013, p. 90), em sua obra, constrói o entendimento de que tanto as regras como os princípios integram o sistema normativo, de modo que as duas seriam normas aplicáveis ao ambiente social e às relações tecidas. Contudo, para o referido autor, “[...] o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”. Assim, a diferenciação entre regras e princípios dá-se no plano qualitativo, eis que as regras correspondem às normas que são ou não são satisfeitas, enquanto que os princípios podem ser satisfeitos nos mais variados graus. Isto porque, as regras jurídicas são aplicadas mediante a subsunção da norma prevista ao caso apresentado, de modo que ou a sua previsão está totalmente de acordo com o caso, ou não está, enquanto que ao se analisar um caso com base nos princípios, o que ocorre é uma ponderação e incidência conjunta, ou seja, princípios conflitantes entre si podem ser mitigados ou ampliados dependendo da situação apresentada. Nas palavras de Humberto Ávila (2005, p. 22), os princípios correspondem a normas imediatamente finalísticas, as quais estabelecem um fim a ser atingido, ou seja, constitui-se como uma orientação prática, devendo fixar determinado conteúdo pretendido. Para Ronald Dworkin (2010, p. 81), a distinção entre princípios e regras é de caráter lógico, eis que os princípios não seguem automaticamente uma condição prevista, enquanto que as regras estão relacionadas à ideia do all-or-nothing, ou seja, do “tudo ou nada”. Robert Alexy (2013, p. 86), inclusive ressalta que a distinção lógica entre os princípios e as normas fica evidenciada nos casos que envolvem os conflitos e a forma de solucioná-los, eis que, no caso de conflitos de regras a solução está relacionada a declaração de invalidade de uma regra ou A privacidade... // 127 exceção a sua aplicação, enquanto que no caso de conflitos de princípios há a prevalência de um deles, sem que com isso o outro seja considerado inválido. Como bem asseverou Larenz (1991, p. 575), os princípios, por serem “abertos” e “móveis”, podem ocasionar colisões entre si, já que sua amplitude não é previamente fixada, ou seja, os princípios de direitos fundamentais se chocam porque não são absolutos, conforme entendimento inclusive de Bobbio (1997, p. 42). Assim, uma vez reconhecido que os princípios possuem uma função diretiva e normativa para a determinação de uma conduta, para que um princípio seja aplicado, é necessário que a sua caracterização seja a menor possível, sem que com isso torne-se vago, ou seja, a caracterização do princípio deve ser abstrata e ao mesmo tempo indicar as condutas necessárias para a sua realização, eis que antes de se criar um princípio é preciso analisar os critérios que o definam como tal (ÁVILA, 2005, p. 30). Ora, se é incontroverso que a nossa Constituição Federal é composta por um sistema aberto de princípios e normas, e sendo certo também que em determinados casos concretos ocorre a colisão entre dois ou mais princípios – sem que com isso a Constituição perca a sua credibilidade – é fato que se deve analisar os fatos e permitir o surgimento de uma solução. Tais conflitos ocorrem principalmente porque o corpo constitucional, por concentrar diversos princípios, gera tensão entre as normas previstas, pois é uma resposta natural ao se tentar abranger diversas situações sem ser taxativo. Entretanto, tais contradições devem ser harmonicamente conciliadas, conforme exposto por Barroso (1996, p. 196) em sua obra. Desta mesma perspectiva decorre o conflito aparente entre os princípios da privacidade e da publicidade, de modo que se deve socorrer da proporcionalidade para sanear eventuais problemas advindos de sua inserção. Ao se constatar o conflito aparente entre estas espécies normativas no caso concreto, mister se observar que, conforme bem exposto por Canotilho (1999, p. 203), a principal ideia das normas não é o seu texto e nem o conjunto de textos, mas o sentido sob o qual foram erigidos e de sua consequente interpretação sistemática. Logo, para se fazer uma completa análise do possível conflito existente entre o interesse público na publicidade de determinado caso médico e o princípio da privacidade do paciente – enquanto manifestação de sua personalidade –, faz necessário verificar o sentido de sua criação e a sua importância para o mundo jurídico.

7.3 PRINCÍPIO DA PRIVACIDADE

7.3.1 Aspectos históricos

Primeiramente há de se observar que o direito à privacidade, enquanto princípio essencial para a garantia da proteção individual e dos 128 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade interesses pessoais, sempre fez parte da história humana, eis que desde os primórdios procurava-se proteger aquilo que era pessoal. Contudo, em que pese a sua incidência histórica, é certo que antigamente a perspectiva do que era violação à privacidade não possuía o mesmo enfoque que o atual, já que até a Idade Média não havia sequer uma clara distinção entre o particular e o público, eis que grande parte das ações e relações tinha caráter eminentemente coletivista (SCHEMKEL, 2005). É no Direito Romano que surgem as primeiras medidas de defesa à privacidade, embora não se usasse tal terminologia à época. Ressalte-se, por sua vez, que tal proteção não era feita de forma ampla em prol dos direitos da personalidade, mas estavam restritas a alguns casos isolados, de modo que a intimidade e a privacidade possuíam forças isoladas. Como exemplo deste isolamento doutrinário, a honra, enquanto uma das manifestações do direito à privacidade, estava relacionada ao sentido da própria dignidade, à boa opinião pública e às vantagens auferidas por esta boa opinião (GUERRA, 2007, p. 21). Posteriormente, o advento da burguesia aliado ao crescimento urbano propiciou a ampliação da visão da privacidade a fim de garantir os privilégios das classes mais altas e atribuir maiores direitos pessoais aos seus integrantes (AIETA, 1999. p. 78). Logo, como resultado deste crescimento e desta revolta burguesa, a Revolução Francesa emergiu em prol dos interesses dos revolucionários, e, como consequência, os direitos personalíssimos, entre eles o direito à vida, à integridade física, à honra e à privacidade, começaram a ser constitucionalizados, eis que, para os manifestantes, tais direitos seriam inatos e vitalícios aos seres humanos – embora o nascimento de tais direitos esteja muito mais relacionado ao anseio de uma classe social do que propriamente como uma exigência natural do homem. Anos mais tarde, a classe trabalhadora sentindo-se afetada pela falta de direitos em prol de seus interesses, iniciou uma revolução que, influenciada pela difusão da industrialização e da formação da cultura capitalista, reivindicava a ideia de privacidade em favor da classe excluída. Posteriormente, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a instauração da chamada Guerra Fria, a intimidade das pessoas passou a sofrer constantes ameaças, eis que as tecnologias militares passaram a ser utilizadas para colher informações pessoais e averiguar a fidelidade das pessoas ao país/cultura que estava inserida. Já em um período mais recente da história, constata-se que a tecnologia e informatização tem ganhado destaque, de modo que com a propagação (e facilidade no acesso) aos celulares, computadores, entre outros, a dinâmica das informações afetaram as formas de violação à privacidade das pessoas. Ora, desta forma resta evidenciado que o direito à privacidade sofreu diversas alterações em razão dos avanços tecnológicos, que modificaram a “naturalidade” de alguns acontecimentos, tais como o simples fato de falar A privacidade... // 129 com um vizinho, posto que, com os meios tecnológicos atuais, a dinâmica e os acontecimentos tomam proporções bem maiores que antigamente.

7.3.2 Delimitação do direito à privacidade

O direito de privacidade, enquanto princípio fundamental embasado na dignidade da pessoa humana, possui por objetivo precípuo impedir que ocorram intromissões indevidas na vida particular das pessoas. Neste interim, dada a incidência da dignidade da pessoa humana, é necessário tecer alguns comentários quanto a sua caracterização. A dignidade da pessoa humana é objeto de previsão legal com base no art.1º, III, da Constituição Federal, sendo um dos principais fundamentos do Estado Democrático de Direito, de modo a ser constituído como um valor- guia de toda a ordem jurídica (SARLET, 2001, p. 72). Deste modo, enquanto pilar do surgimento de novos princípios fundamentais, assegura às pessoas as garantias existenciais mínimas para uma vida saudável, podendo ser defendido contra qualquer ato ou omissão que desacate ou degrade o ser humano. Em outras palavras, para que haja dignidade é necessário que haja respeito à vida, à integridade física e moral do ser humano, e que existam as condições mínimas de existência, embasadas na liberdade, autonomia, igualdade e direitos fundamentais. Inclusive, neste mesmo sentido José Afonso da Silva manifesta-se no sentido de que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai todos os direitos fundamentais, eis que “[...] o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem” (SILA, 2014, p. 31). Assim, enquanto manifestação inerente da própria dignidade da pessoa humana, a privacidade representa o direito íntimo do indivíduo, ou melhor, trata-se de uma capacidade que é atribuída à pessoa a fim de que não haja influência ou intromissão alheia em assuntos inerentes a sua vida privada, pois o compartilhamento público de assuntos pessoais é algo que depende apenas da vontade da própria pessoa, conforme bem exposto por Elimar Szaniawski (2005, p. 288) em sua obra. Em verdade, o direito à privacidade procura retratar todos os costumes pessoais que cabem somente ao próprio indivíduo divulgar ou não, ou seja, é algo que está sobre o seu exclusivo controle. Dada a importância do tema, a própria Constituição Federal, conforme exposto anteriormente, por meio de seu art. 5º, X, em que garantiu o direito à indenização no caso de ofensa à intimidade, honra, imagem e vida privada, além de prever também em outros dispositivos, como o inciso XI (inviolabilidade da casa), sigilo dos dados e correspondências (inciso XII), assim como também ocorreu com o Código Civil por meio de seus artigos 20 e 21. 130 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Outrossim, se privacidade corresponde ao conjunto de informações que o próprio indivíduo deseja manter sobre seu exclusivo controle, e se, à luz do próprio corpo constitucional, o modo de ser e de viver é algo que pertence à pessoa, a mera exposição pública de uma pessoa não pode ser motivo para a mitigação dos direitos pessoais (BERTI, 1993, p. 61). Entre os valores que compõe a própria privacidade (e por via de consequência a personalidade) estão o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Apesar de dificultosa a conceituação, é certo que todas estas manifestações do direito de privacidade devem ser analisadas de forma pormenorizada, eis que, por exemplo, a diferença entre o direito à intimidade e à vida privada possui caráter estritamente subjetivo. O direito à intimidade corresponde a uma das manifestações do direito da privacidade, sendo aquele que possui uma abrangência mais restrita, de modo a estar relacionada à vida secreta de cada pessoa. Trata-se de preservar aquilo que é íntimo, algo que diz respeito apenas a própria pessoa, estando relacionado, aos aspectos familiares, confidências, recordações. Por sua vez o direito à vida privada estaria entre a intimidade e a vida pública, sendo mais abrangente que a primeira, mas menos do que a segunda. Elimar Szaniawski (2005, p. 289) observou que, como a Constituição Federal incluiu em seu texto a proteção à intimidade e à vida privada, a diferença doutrinária merece relevância. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 90) afirmou que vida privada “[...] é a que se desenvolve fora das vistas do público [...]”, enquanto que a intimidade “[...] é a vida em ambiente de convívio” Já o direito à honra engloba o bom nome, a reputação, de modo que visa impedir qualquer tipo de lesão à dignidade social de uma determinada pessoa. Na visão de Adriano De Cupis honra “[...] significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome, a boa fama, como, enfim, o sentimento, a consciência, da própria dignidade pessoal”. (DE CUPIS, 2008, p. 121). Mais uma vez se observa que a dignidade da pessoa humana possui papel central nas discussões tecidas independentemente do rumo a ser seguido. Quanto à honra, duas são suas vertentes, uma objetiva – a qual está relacionada à defesa do bom nome e de sua fama social – e outra subjetiva – relacionada ao sentimento pessoal. Por fim o direito à imagem está relacionado ao direito que a pessoa tem sobre a sua própria forma e componentes distintos que individualizam o ser da coletividade, ou seja, trata dos traços característicos da personalidade. Neste diapasão, grande parte dos doutrinadores reconhecem a incidência de 2 formas de imagem: a imagem-retrato – que corresponde à representação gráfica da pessoa, ou seja, suas características físicas, independente do papel social – e a imagem-atributo – que correspondem aos atributos pessoais dos seres. Sendo ainda possível se encontrar a imagem A privacidade... // 131 privada, que está ligada à esfera íntima da pessoa, e a imagem pública, que está ligada a sua atividade social. Zulmar Fachin (1999) afirma que, apesar de passar por muitas modificações ao longo do tempo, o direito à imagem está integrada ao campo dos direitos da personalidade, possuindo por características a essencialidade, originalidade, exclusividade, indisponibilidade, extrapatrimonialidade, intransmissibilidade e imprescritibilidade. Os direitos supramencionados possuem um duplo caráter, conforme exposto por Edmilsom Pereira de Farias (2000, p. 130), quais sejam: constituir direito fundamental e apresentar-se como direitos da personalidade. Por assim o ser, o direito à honra, intimidade, vida privada e imagem são tidos por direitos subjetivos de personalidade (DE CUPIS, 2008, p. 17), sendo algo inerente a própria pessoa (enquanto condicionante de ser humano). Dada esta característica, ao se observar o conflito entre os princípios, deve-se sopesar a dignidade da pessoa humana e sua consequente incidência sobre a personalidade da pessoa.

7.4 DO CONFLITO ENTRE PRIVACIDADE E PUBLICIDADE

O princípio da publicidade assevera que determinados atos, por possuírem interesse coletivo ou por versarem sobre temas de importância social, devem ser apresentados de forma pública, com vistas a permitir que a população tenha ciência de seu conteúdo e de sua abordagem. Embora não seja pacífico na doutrina e nem na jurisprudência, para que determinado acontecimento seja tido por “de interesse público”, algumas são as hipóteses a serem consideradas, entre elas: a notoriedade (pessoas célebres que despertam interesse social, seja em razão de sua fortuna, ou mérito, ou fama, ou conhecimento, entre outros), acontecimentos de interesse público ou realizados em público (como por exemplo tumultos populares, cerimônias solenes, desastres em geral, desfiles públicos, entre outros), interesse científico, didático ou cultural (para auxiliar no conhecimento social e disseminar novas descobertas – em que pese seja necessário também manter a privacidade do paciente, por exemplo, sendo obrigatório ocultar o rosto, ou ao menos os olhos) ou interesse de ordem pública (para atender aos interesses da administração da justiça e da segurança pública) (FARIAS, 200, p. 153-155). Contudo, existem concretamente diversas possibilidades em que a publicidade, aliada ao mau uso da liberdade de expressão, acaba divulgando determinadas informações de índole pessoal que afeta a privacidade da pessoa. É evidente que toda e qualquer manifestação de pensamento que agrida a liberdade alheia ou interfira na privacidade da pessoa sem que com isso haja uma motivação social verdadeira, deve ser tolhida. Trata-se de um caso evidente de colisão de direitos fundamentais que ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular conflita com o exercício de um direito fundamental por parte de outro titular. 132 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Ora, se é reconhecida a possibilidade de confrontos entre direito, reconhece-se, por via de consequência, que os direitos fundamentais não são absolutos, ou seja, o princípio da publicidade por sofrer limitação do mesmo jeito que a privacidade pode ser interferida, desde que devidamente motivada e preserve o mínimo de dignidade da pessoa humana. Embora exista a necessidade da preservação da privacidade para o pleno desenvolvimento da personalidade (GUERRA, 2004, p. 31), imperioso se observar que em determinados casos alguns acontecimentos podem e devem ser divulgados como forma de propiciar uma adequação social. É o que ocorre nos casos em que determinada pessoa, por exercer um cargo público e possuir uma imagem pública, está rodeada de interesses que aproveitam à coletividade. Contudo, há de se ressaltar que, embora haja o interesse coletivo, a sua imagem privada não pode ser violada, sendo, deste modo, absolutamente vedada a publicação de aspectos e imagens desnecessárias ao interesse público. Como exemplo temos a Lei de Acesso à Informação – Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011 –, a qual apresenta um conflito entre o princípio da privacidade e o princípio da publicidade, eis que, apesar de por um lado haver o direito personalíssimo da pessoa de não ter seu salário divulgado de forma pública (e direito à autopreservação), por outro, existe o interesse coletivo de saber para onde está sendo destinado o dinheiro público, que neste caso é remetido para o pagamento dos funcionários. Neste caso, prevaleceu o interesse coletivo, eis que ao se ponderar e sopesar ambos os argumentos, constatou-se que o interesse público possuía mais força e maior relevância do que o individual. Há de se observar, contudo, que esta publicação dos salários não fere a dignidade da pessoa humana. O Superior Tribunal de Justiça, ao se manifestar sobre este choque de princípios, tem se valido da técnica da ponderação, de modo que, embora não haja uma formula pronta para as colisões, cada caso deve ser analisado de forma pormenorizada, de modo que em determinadas circunstâncias deve prevalecer o direito a informação, enquanto que em outras deve prevalecer a privacidade. A título de exemplo, em 2009 do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 984.803, afirmou que a divulgação de um acontecimento por parte da mídia independe da certeza do acontecimento, desde que hajam provas suficientes quanto a sua incidência ou documentos confiáveis quanto ao que se alega, eis que:

O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará. Pode-se dizer que o jornalista tem um dever de investigar os fatos que deseja publicar (BRASIL, 2009, web).

Além disso, conforme se observa, a questão da ampliação/mitigação de um ou outro princípio decorre também da pessoa que está inserida no A privacidade... // 133 contexto dos acontecimentos, posto que se a pessoa é uma figura pública, sua privacidade é mais relativizada, enquanto que se a pessoa não possui este mesmo status público, possui maior força. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 1.082.878, exarou o entendimento de que a fotografia de uma pessoa famosa em lugar público, cometendo adultério, não pode ser divulgada pela mídia, de modo que julgou procedente o pedido formulado pelo então ator de televisão condenando a revista ao pagamento de indenização por danos morais. Isso porque, o STJ entendeu que a divulgação de tal imagem não possuía nenhuma finalidade social senão a de ferir a honra pessoal do ator. Deste modo, embora se trate de uma figura pública, houve violação à sua dignidade (BRASIL, 2008, web). O grau de proteção e tutela da privacidade das pessoas varia, conforme já exposto, em decorrência do interesse público, o que significa dizer se o conteúdo da imagem vinculada é necessária à administração da justiça ou manutenção da ordem pública, tal qual preconiza o art. 20 do Código Civil Brasileiro. Dentre os interesses públicos mais relevantes está o interesse científico, o qual afirma a publicação da imagem de uma pessoa pode ser justificada para alcançar fins científicos, didáticos ou culturais. Discute-se, hodiernamente, até que ponto o interesse social deve prevalecer sobre a privacidade do próprio paciente, por exemplo, ainda que possua uma finalidade pública em prol de incentivar mais estudos. Assim, é possível se encontrar na jurisprudência exemplos concretos acerca da divulgação de dados e imagens de pacientes (com tarja nos olhos), os quais afirmam que ainda que haja finalidade científica, é necessário defender-se os direitos da pessoa e evitar que a sua privacidade seja atingida. É o caso do julgamento da Apelação Cível 994.08.152995-9 do Tribunal de Justiça de São Paulo (BRASIL, 2014, web), o qual afirmou que a divulgação de imagem de paciente sem sua autorização constitui afronta ao princípio da privacidade, ainda que seja para fins meramente científicos. De acordo com o respectivo acórdão, as imagens, apesar terem suprimido os traços pessoais da paciente, ainda acarretaram constrangimentos, pois dada a peculiaridade do caso e a forma da imagem, era possível identificar a pessoa. Há de se ressaltar que, conforme exemplos expostos supra, a jurisprudência e o próprio bom-senso estipulam que a aplicação dos princípios e a solução dos conflitos causados deve ser realizada mediante a ponderação, ou seja, através da aplicação do princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade pode ser compreendido como um princípio implícito que surge diante de duas previsões constitucionais que envolvem o confronto de direitos fundamentais, sem que seja possível proteger a ambas. De modo que um direito deve ser mitigado e o outro preservado. 134 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Deste modo, ao se analisar o caso concreto, deve-se verificar todas as variáveis que incidem sobre o objeto a ser analisado, devendo se socorrer da ponderação como forma de evitar a emissão de decisões desarrazoadas e contrárias à própria finalidade social.

7.5 DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE COMO LIMITES À PUBLICIDADE

Os direitos de personalidade devem ser vistos como o limite à liberdade de expressão (no sentido de expressão de ideias, pensamentos e opiniões) e de informação (no sentido de expor e receber informações sobre fatos), conforme entendimento exarado por Edsilsom Pereira de Farias (2000, p. 158), eis que os direitos de personalidade representam o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Em que pese tais liberdades sejam garantidas constitucionalmente, no sentido de que não haja nenhuma censura prévia, a privacidade é considerada essencial à garantia e à consecução da dignidade da pessoa humana e condição para a concretização do desenvolvimento da personalidade (BARRETO, 2005, p. 172). Neste diapasão, há de se verificar que “[...] a intimidade e a privacidade são frutos da dignidade da pessoa humana, como corolário da personalidade, tal qual a honra” (RODRÍGUEZ, 2005, p. 394), de modo que por serem manifestações da dignidade da pessoa humana vão além da proteção do direito individual, constituindo-se, verdadeiramente, como de interesse público. Isso porque, como o princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no próprio corpo constitucional, através do art. 1º, III, o qual afirma que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a norma passa a ser de interesse social, pois incumbe a todos a defesa de sua configuração e incidência, no fito de que haja segurança e paz social. Assim, a divulgação de dados pessoais deve respeitar a dignidade da pessoa humana que se encontra regulamentada através dos direitos da personalidade, isto porque, embora exista um alto grau de abstração e imprecisão para conceituar a primeira, é certo que o que deve prevalecer são os requisitos mínimos para uma vida digna e justa. Todas as formas de liberdade devem possuir limites lógicos consubstanciados na própria ideia de liberdade, pois ser livre é a possibilidade de fazer tudo sem que com isso haja desrespeito a terceiros. Assim, resumidamente, existem limites a liberdade de expressão devido à necessidade de harmonia entre os direitos fundamentais (e em especial a defesa da dignidade humana) e à necessidade de coerência com o próprio conceito exposto. Ora, tal assunto há tempos assola a doutrina, a ponto que desde 1980, antes da própria propagação exacerbada dos meios de comunicação, já se buscava analisar e encontrar o equilíbrio necessário para diferenciar o interesse público do domínio particular. Neste sentido René Ariel Dotti (1980, A privacidade... // 135 p. 134) afirma que a fronteira entre o interesse público e a privacidade é muito tênue e de difícil certeza. Por assim o ser, em que pese existam interesses públicos e sociais, a divulgação de informações e dados deve guardar relação com a dignidade da pessoa humana, e a mitigação da privacidade da pessoal em prol do público não pode afetar intensamente a personalidade das pessoas.

7.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito de privacidade, enquanto norma de direito fundamental que possui por base a dignidade da pessoa humana, corresponde a uma das vertentes do próprio direito de personalidade que é uma das bases de todo o sistema normativo existente. Neste diapasão emerge a necessidade de se analisar e solucionar um possível conflito que pode existir entre este direito fundamental e o princípio da publicidade, eis que, conforme exposto ao longo do presente artigo, inexiste propriamente uma hierarquia entre as elas, devendo-se analisar o caso concreto e se realizar uma ponderação quantos aos elementos que compõe o fato para que se possa dar uma resposta social digna que atenda aos anseios da sociedade. Uma vez reconhecida esta necessidade de tutela, o direito constitucional, aliado ao direito civil e aos demais ramos das ciências jurídicas, deve manter aderência à realidade que se encontra inserido, sob a ótica da adaptação das normas jurídicas às situações concretas, a fim de facilitar que tais ideologias sejam traduzidas na prestação jurisdicional, ou até mesmo que sejam evitadas demandas judiciais. No presente estudo, objetivou-se contextualizar o assunto e destacar a importância das duas normas no sistema jurídico, além de demonstrar que os princípios possuem função ímpar na defesa dos direitos de personalidade. É incontroverso que todas as ações exercidas no campo social devem possuir o escopo de alcançar a harmonia e paz social (o que está intimamente relacionado à própria personalidade), de modo que está claramente relacionada à própria dignidade da pessoa humana, enquanto núcleo essencial de todas as relações. Assim, é plenamente coerente a discussão da presente temática no âmbito acadêmico como forma de propiciar que haja maior propagação dos institutos, além de auxiliar para que tanto o princípio da publicidade quanto a garantia de privacidade sejam utilizadas em prol da sociedade. Ora, se a própria lei prevê ambos os casos, é necessário que a aplicação prática de tais direitos fundamentais seja feita de forma cautelosa e prudente. Conclui-se, portanto, que os princípios jurídicos possuem função ímpar na aplicação do direito material, além de que a utilização da proporcionalidade na solução dos possíveis conflitos poderá auxiliar nas causas que acarretam a inquietação social e geram o desconforto na sociedade. 136 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Se por um lado é necessário se efetivar os direitos de privacidade, enquanto representação da própria personalidade, por outro se deve observar a incidência do princípio da publicidade, eis que quando determinado assunto possui relevância social, a sua publicação é essencial para o bem-estar coletivo.

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138 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= VIII =

APÁTRIDAS NA CONTEMPORANEIDADE E O EFEITO BORBOLETA

Késia Rocha Narciso* Roseli Borin**

8.1 INTRODUÇÃO

A apatridia é um problema secular e de grande relevância no que tange aos direitos humanos e a liberdade de escolha por se tratar da inexistência do estado de nacionalidade. Os apátridas padecem pelo desconhecimento da existência desta condição humana, é de suma importância analisar o estado das pessoas nestas qualidades para que os direitos humanos não alcancem apenas nacionais, cidadãos, mas também aqueles que, por algum motivo, tem seus direitos fundamentais reduzidos. A evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao longo da história será estudada, sob o prisma da distinção de eventuais matérias análogas, sendo ainda que ao apresentar conceituações gerais e específicas, buscar-se-á analisar seus princípios, analisar sua atuação não apenas diante da apatridia, mas também no cenário mundial de globalização em meio à miscigenação e ao multiculturalismo, estudando a humanidade em constante mutação e os Direitos Humanos ante a soberania dos Estados sob uma ótica aprofundada dos Direitos da Personalidade. No presente trabalho se analisará o ser humano apátrida sob a perspectiva dos Direitos Humanos, considerando a fundamentalidade do direito de nacionalidade e a sua grave violação, buscar-se-á a definição da apatridia contrapondo-a com as figuras análogas, bem como abordar-se-á, ainda que horizontalmente, os princípios que norteiam os direitos humanos internacional sob a perspectiva do instituto em tela e o sistema de concessão de nacionalidade diante da apatridia. Diante do reconhecimento da Apatridia, buscar-se-á analisar a posicionamento do Brasil em relação à questão, no combate a apatridia, no desenvolvimento do Direito Internacional e no que diz respeito a sua participação nos tratados de Direitos Humanos, é de fundamental importância para se compreender seu posicionamento ao julgar casos de apátridas, bem como a situação dos apátridas no âmbito internacional e a adesão aos instrumentos normativos internacionais, verificando-se a possibilidade de

* Pós-graduanda em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura – PR, Bacharela em Direito e Autora. ** Doutoranda em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos – ITE; Mestre em Ciências Jurídicas - UNICESUMAR; Especialista em Direito do Estado com ênfase em Direito Constitucional – UEL; Especialista em Direito Civil – Sucessões, Família e Processo Civil - UNICESUMAR, Professora de Graduação e Pós- Graduação; Orientadora e Advogada. 140 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade amparo aos apátridas e a concessão de nacionalidade por intermédio do Brasil por meio de instrumentos normativos de Direito Internacional. Considerando os princípios que regem a ordem internacional e a preocupação com a definição e outros aspectos relacionados aos apátridas, far-se-á necessária uma análise de pontos que sejam relevantes ao combate à apatridia, bem como a garantia dos Direitos da Personalidade às pessoas apátridas, por sua vez, examinar-se-á as possíveis soluções e a viabilidade dessas para redução dos casos de apatridia apontadas pelo Direito Internacional, bem como a restrição do constrangimento para receber uma nacionalidade, e aquisição pelo apátrida do sentimento de inclusão para participar de um conjunto de pessoas formando uma sociedade mais justa, igualitária, solidária e livre. Buscar-se-á trazer à tona a realidade enfrentada pelos apátridas que, ainda na contemporaneidade, está adormecida nos braços do esquecimento, situação capaz de reduzir a condição de pessoa humana desses indivíduos, assim, é fundamental alçar a sua liberdade em reconhecimento não apenas como pessoa humana, mas como nacional apto a exercer efetivamente seus Direitos da Personalidade. Quanto à proposta metodológica, trabalhar-se-á com a pesquisa bibliográfica sob o método de abordagem dedutivo - partindo de teorias e leis mais gerais para ocorrências de fenômenos particulares - com o objetivo de estabelecer um diálogo reflexivo entre a teoria e o objeto da investigação escolhida. Utilizar-se-á, se necessário, a pesquisa documental, para investigar fatos relevantes à temática estudada. Posteriormente, pretende-se analisar e entender dedutivamente pela adequação ou inadequação da posição adotada.

8.2 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Precipuamente convém conceituar o direito internacional latu sensu como “[...] o conjunto de princípios e normas, positivos e costumeiros representativos dos direitos e deveres aplicáveis no âmbito da sociedade internacional” (NEVES, 2011, p. 15). O direito internacional se divide em Privado e Público, sendo que aquele se apresenta “[...] quando tratar da aplicação, a particulares sujeitos a um determinado Estado, de leis civis, comerciais ou penais emanadas de outro Estado” (NEVES, 2011, p. 15) e este último que de fato interessa ao desenvolvimento do presente trabalho, se mostra “[...] quando se referir aos direito e deveres dos próprios Estados em suas relações” (NEVES, 2011, p. 15), ou seja, estuda as relações internacionais sob a perspectiva de um “[...] conjunto de princípios, regras e normas que regulam as relações dos Estados entre si ou com outros entes dotados de autodeterminação” (SILVA, 2003, p. 53). Valério de Oliveira Mazzuoli explica que o Direito Internacional Público pode ser definido como “[...] a disciplina jurídica da sociedade internacional” (2011, p. 62) e frisa que numa definição mais abrangente (e Apátridas na contemporaneidade... // 141 mais técnica), pode ser conceituado como “o conjunto de princípios e regras jurídicas [...] que disciplinam e regem a atuação e a conduta da sociedade internacional” (2011, p. 63) que é formada pelos Estados, pelas organizações internacionais intergovernamentais e pelos indivíduos, e complementa que tem como objetivo “alcançar as metas comuns da humanidade e, em última análise, a paz, a segurança e a estabilidade das relações internacionais” (2011, p. 63). O direito internacional público não é tão remoto, porém, não essencialmente atual, seu surgimento é resultado da necessidade de adequação aos fatores sociais, políticos, econômicos e religiosos da Idade Média, surgindo como ciência autônoma e sistematizada, apenas entre o fim e o início dos séculos XVI e XVII (MAZZUOLI, 2011, p. 53).

8.2.1 Breve análise histórica

Compõem o Direito Internacional: o Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado, o primeiro, vinculado ao tema em análise, é o ramo do Direito que estuda as relações internacionais, como também, um conjunto de princípios e normas que regram as relações exteriores dos atores da sociedade internacional (GUTIER, 2012). Segundo Francisco Rezek o fundamento do Direito Internacional Público seria um “Sistema jurídico autônomo, onde se ordenam as relações entre os Estados soberanos, o direito internacional público – ou direito das gentes, no sentido de direito das nações ou dos povos – repousa sobre o consentimento” (2011, p. 27) e complementa que “As comunidades nacionais e, acaso, ao sabor da história, conjuntos ou frações de tais comunidades propendem, naturalmente, à autodeterminação, à regência de seu próprio destino”, ou seja, “Organizam-se, tão cedo quanto podem, sob a forma de Estados independentes, e ingressam numa comunidade internacional carente de estrutura centralizada” (2011, p. 27). O autor adverte ainda, que diante de tais circunstâncias, “(...) é compreensível que os Estados não se subordinem senão ao direito que livremente reconheceram ou construíram” (REZEK, 2011, p. 27). Divergente na doutrina quanto ao período exato, por volta do século XVII, o Direito Internacional Público, ganhou cunho científico, cuja importância se elevou através de um holandês denominado Hugo Grotius (MAZZUOLI, 2011, p. 52), inspirado este na Guerra dos Trinta Anos1, interessou-se pela expansão da disciplina no âmbito mundial. O princípio jurídico básico “pacta sunt servanda2” já era aplicado há longa data, nos contratos civis e em tratados, de modo que só seria declarada a guerra por motivo de causa justa, com inclusão de um grande passo para o avanço da interdependência “das gentes” extremamente novo para o período (ACCIOLY; CASELLA; SILVA, 2011, p. 46).

1 Principal guerra do século XVII, conflito político-religioso na Europa, que inaugurou um novo modelo de relações internacionais através dos Tratados de Westfália. 2 Princípio segundo qual o que foi pactuado entre as partes deve ser cumprido. 142 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Os Tratados de Westfália3, e o final da Guerra dos Trinta Anos, deram ascendência à soberania nacional, o Estado ganhou força política originando a nova era do Direito Internacional público, permitindo a independência dos Estados e principiando uma nova ordem estatal igualitária (MAZZUOLI, 2011, p. 54). Conforme ensinamento de Paulo Borba Casella, Hildebrando Accioly e G.E. do Nascimento e Silva, o desenvolvimento do Direito Internacional sobreveio de forma sequenciada, sem interrupção entre seus estágios, cada período decorria-se do anterior para seu prosseguimento, como também a extensão seus princípios, modificando-se com a necessidade exigida pelo avanço temporal e a alteração das necessidades (2011, p. 48). Assim ao longo dos anos, o Direito Internacional Público contemporâneo passou por momentos evolutivos distintos: a universalização4, a regionalização5, a institucionalização6, a funcionalização7, a objetivação8, a codificação9, a jurisdicionalização10 e a humanização11, tendo maior relevância para o aludido tema, a humanização o qual será oportunamente tratado; acrescem Paulo Borba Casella, Hildebrando Accioly e Nascimento e Silvaque qualquer sistema em análise revela ao estudioso aquilo que intenta encontrar, visto que a “compreensão do papel e alcance do direito internacional somente se consolidará na medida em que se tenha conscientização da absoluta impossibilidade e inadequação operacional dos sistemas nacionais” (2011, p. 123). Posto isso, o Direito Internacional é o ramo do direito que evoluciona as necessárias readequações nas relações internacionais, os membros da sociedade internacional moldam-se, pois, “[...] os preceitos do Direito Internacional obrigam tanto interna como internacionalmente, devendo os Estados de boa-fé, respeitar (e exigir que se respeite) aquilo que contrataram”

3 Tratados de paz que consolidaram a separação da igreja e do Estado, possibilitando o fim da Guerra dos Trinta Anos. 4O direito internacional público, por meio dessa tendência evolutiva, deixou de ser um direito euro-americano e passou a ser relevante mundialmente, ou seja, universalmente. 5Almejando a solidariedade e a cooperação qualificada o direito internacional público, se regionalizou através da criação de espaços por razões políticas, estratégicas, culturais e econômicas. 6Cada vez mais presente nos organismos internacionais, o direito internacional publico se afasta do direito das relações bilaterais ou multilaterais entre Estado. É o momento em que se criam instituições para resolver problemas que os Estados não conseguem resolver sozinhos. 7O direito internacional público passa a ser introduzido nas mais diversas matérias de direito interno e relações internacionais, deixando de restringir-se apenas as relações externas entre Estados. 8As normas deixam cada vez mais de serem dependentes da vontade dos Estados sob a perspectiva do direito internacional público. 9A sistematização codificada, escrita e inscrita nos mais variados tipos de tratados passa a marcar esse momento evolutivo do direito internacional público. 10O progredir das fases anteriores do direito internacional publico culmina no momento de criação das instancias judiciais internacionais. 11Esse tópico será tratado no desenvolver do presente trabalho, por ser ponto de maior relevância entre os demais momentos evolutivos do direito internacional público no que tange ao tema proposto. Apátridas na contemporaneidade... // 143

(MAZZUOLI, 2011, p. 55), diante das relações no plano internacional em prol da pessoa humana e da continuidade da paz. O Direito Internacional Público precisou de muito tempo para se consolidar como ciência, neste processo passou por diversas modificações possibilitando a inclusão de princípios e normas de Direito Internacional, que regem as relações exteriores buscando a proteção à pessoa humana e praticando a manutenção da paz (MELLO, 2000, p. 68-69). Principal ator no campo das relações internacionais, os Direitos Humanos são responsáveis pela possibilidade de garantia do mínimo existencial, e também, agir diante de uma inevitável intervenção internacional, compreendem ainda uma série de considerações intrínsecas à pessoa humana, sem distinção de raça, nacionalidade, etnia, sexo, idioma, religião ou outra categoria, não há minimização de direitos e garantias fundamentais ao ser humano, em especial o seu direito à vida, posto que, são direitos inerentes à existência. O “[...] Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece as obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948), são direitos assegurados a todos, inerentes à pessoa humana, diante da liberdade de seus direitos iguais e inalienáveis e, por conseguinte, devem ser protegidos pelo Estado como também pela comunidade internacional.

8.2.2 Princípios norteadores

O art. 4º12 da Constituição Federal elenca os princípios que regem as relações internacionais no Brasil, sendo estes princípios de fundamental importância para manutenção da ordem e da paz no âmbito Internacional, sendo, ainda, de grande relevância considerar que cada Estado soberano rege-se independentemente, fazendo-se necessário no cenário do Direito Internacional a consonância dos princípios reconhecidos pelas nações civilizadas; posteriormente diante do tema proposto e dos princípios gerais do Direito, juntamente com princípios fundamentais que regem o Estado brasileiro, poder-se-á compreender e complementar a pesquisa relacionada à apatridia diante dos casos específicos. Esclarece Francisco Rezek que a validade dos princípios “[...] não difere, em essência, daquele sobre o qual assentam os tratados e o costume [...] fluem de modo tão natural e inexorável do espírito humano que não há

12CF/Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos;VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. 144 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade como situá-los, ao lado do costume e do tratado” (2011, p. 164), são ainda, fontes reais do Direito Internacional, enquanto costume e os tratados são fontes formais, em harmonia com a doutrina e jurisprudência internacional essas fontes caracterizam-se como suporte para determinação de normatização na esfera desta ciência. O art. 53 da Convenção de Viena de 1969, referente ao Direito dos Tratados impõe nulidade em casos de conflitos com norma imperativa de DI geral, pois “[...] uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior do Direito Internacional geral da mesma natureza” (CONVENÇÃO DE VIENA, 1969). É de suma importância citar o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo este inerente ao ser enquanto pessoa humana, como também o cerne do Direito Internacional dos Direitos Humanos, uma vez que a sua constituição se consolidou em decorrência das atrocidades vivenciadas no período da Segunda Guerra mundial, almejando assegurar o mínimo existencial. No ordenamento brasileiro o princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem previsão legal na Constituição Federal em seu art. 1º, inc. III, elencado no rol de princípios fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet expõe a dificuldade de definição do que seria o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, de forma que possui valores principiológicos e normativos (2006, p. 39), exibe ainda que “cada ser humano é, em virtude de sua dignidade, merecedor de igual respeito e consideração no que diz com sua condição de pessoa” (2006, p. 139), uma vez que, não pode ser menosprezada; muito menos em virtude de interesse de terceiro, assim, este princípio pressupõe uma garantia absoluta e indisponível da pessoa humana. Elenca Alberto Silva Santos que “Os sistemas internacionais de proteção dos Direitos Humanos têm representado papel importante para promover a aplicação dos documentos internacionais [...] no intuito de garantir a observância ao princípio da dignidade da pessoa humana” (2012, p. 1), assim, não só este, mas vários princípios compõem a denominada internacionalização.

8.2.3 Nacionalidade e seus critérios de adoção

O direito a nacionalidade está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo conteúdo dispõe, na forma do seu art. 15, que “1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade”. A nacionalidade é a “vinculação jurídica que prende um indivíduo a um Estado. Isso se deve ao local de nascimento, à ascendência paterna ou da vontade do interessado” (GUIMARÃES, 2009, p. 169), ou como bem leciona Pontes de Miranda, “[...] é o laço jurídico-politico de direito interno, Apátridas na contemporaneidade... // 145 que faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado” (PONTES DE MIRANDA, 1972, p. 352), portanto, é de vital importância para que um indivíduo seja considerado nacional de determinado Estado, a aquisição de sua nacionalidade. A necessidade de cada Estado indicar seus próprios nacionais tem como fundamento básico razões de ordem prática, pois se trata de “[...] subordinação permanente de uma pessoa a determinado Estado, do qual resultam relações jurídicas complexas e recíprocas de direito e obrigações entre o individuo e o Estado” (GUIMARÃES, 2002, p. 1). No que concerne à natureza jurídica da nacionalidade, na doutrina nacional e estrangeira, há o entrosamento sob a perspectiva de três correntes: a corrente clássica - pela qual os súditos pertenceriam ao Estado, de forma que este último poderia se valer daqueles completamente, tanto moral como fisicamente; a corrente privatista - em que o Estado celebra contrato bilateral com sua população para que se tornem nacionais e mantenham obrigações recíprocas; e a corrente publicista, cujo entendimento contrário a anterior, defende que o trata-se do “resultado da organização do poder político” (NIBOYET, 2013, p. 606). Outro fator a pontuar são os critérios de nacionalidade adotados por cada Estado soberano para atribuição da nacionalidade, pois não raro ocorrem casos em que um indivíduo se torna apátrida, não portando nenhuma nacionalidade e, consequentemente, não sendo nacional de nenhum país, pois além de ser um vínculo jurídico-político entre Estado e indivíduo, a nacionalidade em seu conceito abrange outras esferas como raciais, linguísticas, culturais, tradicionais, costumeiras, religiosas e consciência nacional (NOVELINO, 2010, p. 479). O artigo 12 da Constituição Federal enumera os critérios de nacionalidade adotados pelo Brasil, de forma a garantir aos seus cidadãos o direito fundamental à nacionalidade13. Importa frisar que são duas as espécies de nacionalidade: a primária e a secundária. A nacionalidade primária, também denominada originária ou atribuída se divide em: critério Jus soli, referente ao disposto no art. 12, I, “a” da Constituição da República; critério Jus sanguinis juntamente com o critério funcional, conforme ilustra o art. 12, I, “b”; critério Jus sanguinis e o registro, diante do que elucida o art. 12, I, “c”, ou ainda o critério Jus sanguinis somado

13CF/88 - Art. 12. São brasileiros:I - natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem em qualquer tempo pela nacionalidade brasileira; II - naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de trinta anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. (...) § 4º Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que: I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional; II - adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária. 146 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade a opção confirmativa e residência no Brasil, fundamentado no art. 12, I, “c”, disposto na Constituição Federal, tal nacionalidade é provisória até os 18 anos, já que possui caráter personalíssimo e só será confirmada após a maioridade (NOVELINO, 2010, p. 484). Pode-se afirmar, portanto que a nacionalidade primária, também pode se denominada originária ou atribuída, pois se estabelece em virtude do nascimento, “por meio de critérios sanguíneos (nacionalidade dos pais), territoriais (local do nascimento), ou mistos” (NOVELINO, 2010, p. 479), em outras palavras, “de acordo com o critério ius sanguinis, será nacional de um determinado país o filho de outro nacional, independentemente do local de nascimento. [...] O critério do ius solis, nacional é aquele que nasce no território do Estado, independentemente da nacionalidade dos pais” (DANTAS, 2013. p. 407). Por fim tem-se a espécie de nacionalidade secundária, também denominada, derivada, adquirida ou de eleição, que se subdivide em naturalização tácita ou expressa. A primeira (tácita) diz respeito a grande naturalização, também chamada de naturalização coletiva, que “[...] costuma ser adotada quando o número de nacionais é menor que o desejado [...] os estrangeiros residentes no País que não declararem, dentro de determinado período o ânimo de permanecer com a nacionalidade de origem, adquirirão a nacionalidade do país que residem” (NOVELINO, 2010, p. 482). Já a nacionalidade secundária por naturalização expressa pode ser ordinária, tendo as opções de decorrência de lei ou de países de língua portuguesa obedecendo aos critérios: residência no país no período de um ano sem interrupção juntamente com idoneidade moral; ou ainda extraordinária “são exigidos, além do requerimento do interessado, quinze anos de residência ininterrupta e ausência de condenação penal (CR/88, Art. 12, II, b)” (NOVELINO, 2010, p. 482-483). Destarte, observa-se que o Brasil adotou o critério ius solis ao apreciar o nascido em território nacional e como critério de nacionalidade originária adotou também a nacionalidade dos pais, o indivíduo filho de nacional nascido no estrangeiro poderá obter o registro, caso não proceda desta maneira, após a maioridade, quando o mesmo vier residir no país poderá a qualquer tempo optar pela nacionalidade brasileira.

8.3 DIREITOS DA PERSONALIDADE E APATRIDIA

O tema está intimamente ligado aos Direitos da Personalidade, visto que, tais direitos ganharam força neste século e sua correspondência não se restringe apenas aos direitos inerentes ao nascimento com vida que são intrínsecos a pessoa humana, mas também ganhou corpo e voz ao reconhecer a ordem moral e social do indivíduo. A palavra personalidade do latim personalitate define-se como:

personalidade per.so.na.li.da.de sf (baixo-lat personalitate)1 Qualidade de pessoal. 2 Caráter essencial e Apátridas na contemporaneidade... // 147

exclusivo de uma pessoa. 3 Aquilo que a distingue de outra. 4 Personagem. 5 Sociol Estrutura de hábitos adquiridos na vida social. 6 Psicol Organização integrada e dinâmica dos atributos físicos, mentais e morais do indivíduo; compreende tanto os impulsos naturais como os adquiridos e, portanto, hábitos, interesses, complexos, sentimentos e aspirações. 7 Dir Aptidão reconhecida pela ordem jurídica a alguém para exercer direitos e contrair obrigações. P. civil: estado de todo ser racional, suscetível de direitos e obrigações na ordem civil, desde o momento em que nasce. P. extrovertida: aquela na qual a atenção e interesses se dirigem, preferentemente, aos fenômenos externos e socialmente perceptíveis. P. introvertida: aquela na qual a atenção e interesses se dirigem ao próprio eu, ou à vida psíquica. P. jurídica: a que implica a qualidade de pessoa fictícia ou moral, por oposição à pessoa física propriamente dita. P. natural: a que abrange todo indivíduo da espécie humana. P. simbólica: caráter representativo; estereótipo pessoal, que se converteu no símbolo de um governo, movimento, tribo, associação, tipo de pensamento, música ou arte. P.-tipo: exemplo simplificado de personalidade, escolhido para caracterizar um grupo de personalidades semelhantes que se encontram com alguma freqüência na sociedade (MICHAELIS, 2015).

Visualizar que na contemporaneidade ainda se existem limites para exercício dos Direitos da Personalidade é uma incongruência, tais direitos eram reconhecidos como fundamentais, e apenas por volta do século XIX conquistou tal definição e na idade contemporânea, no sentido de contemplar amplamente a pessoa humana, se tornou indissociável a mesma em seus ares físicos, psíquicos e intelectuais. Dotada de garantia constitucional, ao se tratar de Dignidade Humana no enfoque social “[…] a personalidade é um atributo jurídico. Todo homem, atualmente, tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações. Sua personalidade é institucionalizada num complexo de regras declaratórias” como também as “[...] condições de sua atividade jurídica e, nos limites a que se deve circunscrever. O conhecimento dessas normas interessa a todo o Direito Privado, porque se dirige à pessoa humana considerada na sua aptidão para agir juridicamente” (GOMES, 2001, p. 6). Portanto, falar de personalidade, garantias e direitos no escopo temporal renderiam milhares de apontamentos para elucidação e apreciação de tal tema, diante da importância refletida em sua fórmula inerente ao ser humano dotado de direitos e obrigações, desenvolve um sujeito de direito e molda sua personalidade, tais garantias devem ser preservadas, para que os objetivos nacionais e internacionais, em conjunto superem os limites a esses direitos e deveres que ainda afetam algumas minorias no mundo moderno.

8.3.1 Considerações conceituais e históricas

O termo apátrida define a pessoa sem pátria, ou seja, aquele que não possui nacionalidade. O apátrida sofre do fenômeno denominado apatridia que pode ser classificado em apatridia de jure e apatridia de facto. Na primeira 148 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade modalidade, essas pessoas “não são considerados nacionais sob as leis de nenhum país. Entretanto, também há casos em que um indivíduo possui formalmente uma nacionalidade, mas esta resulta ineficaz” (ACNUR, O que é..., 2015), característica da segunda modalidade, a apatridia de facto. Ensina Celso de Mello que a “denominação de apátrida para as pessoas sem nacionalidade foi criada por Charles Claro, advogado no Tribunal de Apelação de Paris, em 1918” (2002, p. 962), importa observar que a “[...] apatridia, que foi reconhecida pela primeira vez como um problema mundial na primeira metade do século XX, [...] está normalmente associada a períodos de mudanças profundas nas relações internacionais” (ACHIRON, 2015). Dispõe o art. XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos que: “1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948), e sua violação seria um ataque à Dignidade da Pessoa Humana. O problema da apatridia é preocupante e chamou a atenção das Nações Unidas que em maio de 2010 promoveu a primeira, de várias reuniões, voltadas especificamente para a apatridia, com a presença de especialistas, organizada pelo escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em Prato, na Itália, ocasião em que as observou-se pontos relevantes sobre as considerações gerais diante da definição de apátridas segundo a Convenção de 1954 e o Direito Internacional (O CONCEITO..., 2015). Observa-se a preocupação do Direito Internacional quanto à definição de apátrida, para distinção entre figuras análogas, e ainda para a proteção desses indivíduos no âmbito da sociedade internacional, de forma que o Estado deve ser analisado antes de falar da relação deste com os apátridas em questão. Não só quanto à definição, a forma de proteção dos direitos humanos ante os apátridas evidencia que o Estado onde tal indivíduo se encontra deve ser analisado com cautela, de forma que a proteção aos direitos fundamentais ao ser humano seja garantida, observada a origem da condição de apátrida de cada pessoa diante de cada caso específico.

8.3.2 Apatridia: prevenção internacional e perspectivas do Brasil

Em todas as partes do mundo existem casos de apatridia que requerem atenção, sendo fato que a raiz de muitas destas situações tem origem nas políticas discricionárias. O nascimento de novos países, também, é um dos fatores indicados pelo ACNUR, pois “A sucessão de países e o redesenho de fronteiras podem fazer com que grupos específicos tenham sua cidadania negada” (ACNUR, 2015), ou seja, “O desmantelamento de países, a formação de novos Estados, a transferência de territórios e a redefinição de fronteiras representam as grandes causas da apatridia nas duas últimas décadas” (ACNUR, 2015). Apátridas na contemporaneidade... // 149

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados traz informações, sobre a problemática quanto à discriminação da mulher, que além de contribuição para o problema, passa essa condição de “sem pátria” para os filhos, acarretando o aumento do número de crianças apátridas, como também se tem a discriminação étnica (CADERNOS de debates, 2011, p.62). O Centro de Informações das Nações Unidas Rio de Janeiro - UNIC14, desenvolvendo uma atividade de divulgação das atividades da Organização das Nações Unidas pelo mundo, adverte que são muitas as maneiras de se tronar apátrida e que estes nascem todos os dias. Afirma, ainda que milhões de apátridas “devem sua condição à criação, conquista, divisão, descolonização ou libertação do país de onde eles próprios ou os seus antepassados são oriundos” (UNIC, 2015). A apatridia é, portanto, um tema de alta relevância, pois afeta pessoas no mundo inteiro, motivo pelo qual requer a constante busca pela sua prevenção. Ocorre, no entanto, que cada Estado, na sua condição de soberano, é livre e independente para o exercício e poder de decisão jurídico- política diante das questões relacionadas ao Direito Internacional e as normas, em âmbito externo, para serem adotadas internamente, dependem da vontade expressa de cada país. O Direito Internacional tem-se questionando sobre o direito a ter uma nacionalidade com fundamento em princípios relevantes que regem a ordem internacional, inclusive através de convenções acerca da apatridia de modo que possa ser adotada pelos países em busca da melhoria da condição de pessoa humana dos apátridas. Foram observados não somente os Direitos Humanos nos pontos supracitados pelo ACNUR, mas a importância da adesão às convenções relacionadas à apatridia para a manutenção da ordem e segurança entre os Estados, uma vez que ao contribuir com os atores internacionais os países terão facilidade para lidar com seus apátridas, em busca da redução dos casos de apatridia, despontando respeito não só aos seus nacionais, mas à pessoa humana em si. Hodiernamente, a preocupação com os Direitos Humanos, e com a Dignidade da Pessoa Humana, tem abarcado um vasto campo na ordem internacional, de forma que, quando se fala em apatridia, por mais que o Direito Internacional tenha evolucionado na busca pela prevenção e solução do problema, este afeta pessoas humanas, sendo uma realidade que muitos

14“Em 13 de fevereiro de 1946, a Assembléia Geral da ONU decidiu que fossem estabelecidos escritórios para que os povos de todo o mundo conhecessem, o mais detalhadamente possível, as atividades das Nações Unidas. Para isso, foram criados os Centros de Informação das Nações Unidas (United Nations Information Centres, ou, na sigla em inglês, UNICs) que estão presentes hoje em mais de 60 países, nos cinco continentes. Elo ativo entre os meios de comunicação, as instituições educacionais, as organizações não-governamentais e a ONU, os UNICs oferecem não só informações atualizadas sobre questões políticas, econômicas, sociais e humanitárias como também promovem seminários e foros de discussões com o objetivo de sensibilizar a opinião pública a uma maior participação”. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2014. 150 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade não sabem ou não veem pelos mais diversos motivos, mas que precisa da cooperação da comunidade internacional para atinar sua prevenção. Celso Mello frisa que a apatridia é um dos aspectos do Direito Internacional “[...] que se procura eliminar, uma vez que esta situação viola um dos direitos do homem, que é o de todo indivíduo ter uma nacionalidade. Ela, entretanto, não é um “ilícito” internacional; ao contrário, é admitida e reconhecida pelo DI” (MELLO, 2002, p. 961), uma vez que o Direito Internacional proíbe os Estados de elaborarem leis que gerem apatridia. Em 1932 o Brasil ratificou e promulgou o Protocolo Especial de Haia de 1930 por meio do Decreto n. 21.798, relativo à apatridia. Conforme dispunha o mencionado Protocolo “[...] se um indivíduo, depois de ter entrado em um país estrangeiro, perder a nacionalidade sem adquirir outra, o Estado cuja nacionalidade possuía em ultimo lugar é obrigado a recebê-lo, a pedido do país onde se encontra” (GUIMARÃES, 2002, p.15). Em 2002, conforme prediz o Decreto 4.246 de 22 de maio de 2002 dispôs que, “o estatuto pessoal de todo apátrida será regido pela lei do país de seu domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência” (DIÁRIO Oficial, 2015) tem o apátrida inclusive a “obrigação de acatar as leis e regulamentos, bem como as medidas adotadas para a manutenção da ordem pública” (DIÁRIO Oficial, 2015). Destarte, o apátrida não tem apenas direitos, mas também deveres. Constituição Federal de 1988, em seu art. 12, adotou, inicialmente, os critérios de nacionalidade, ius solis, ou seja, nascimento em solo brasileiro, independentemente da nacionalidade dos pais, todavia, ficou uma lacuna na lei quanto aos filhos de brasileiros nascidos no estrangeiro acarretando o problema dos chamados “brasileirinhos apátridas”. Somente em 2007, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 54/2007 que instituiu a alínea “c” ao mencionado artigo adotando alguns critérios ius sanguinis, no mesmo ano o Brasil aprovou o texto da Convenção para Redução dos Casos de Apatridia por meio do Decreto Legislativo nº 274/07, e recentemente no dia 18 de agosto de 2015 a promulgou através do Decreto 8.501. O judiciário brasileiro também progrediu na solução de conflitos envolvendo casos de apatridia ao prolatar uma decisão inédita no caso em que o TRF confirmou decisão da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, ao reconhecer um africano15 como apátrio, determinando que a união o assegurasse identidade brasileira e o direito a exercer atividade remunerada16.

15“Considero que a negativa do pedido implicará, na prática, a redução do autor à condição de coisa, eliminando a possibilidade de desenvolvimento de sua personalidade, o que se atrita – e muito – com o princípio da dignidade da pessoa humana15”. Em matéria publicada no site Tribuna do Norte, o africano disse ficar feliz com a decisão e que iria providenciar os documentos, “Andrimana Buyoya Habizimana, que hoje mora em Natal, veio parar no Brasil fugido do Burundi, na África, país que passa dificuldades financeiras e disputas étnicas”. 16CONSTITUCIONAL E HUMANITÁRIO INTERNACIONAL. APATRIDÍA IMPRÓPRIA. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROVADORA DA NACIONALIDADE ORIGINÁRIA. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. EVIDENTE UTILIDADE DA DEMANDA MERCÊ DA Apátridas na contemporaneidade... // 151

Insta ressaltar, todavia, que a ONU, mesmo tendo vários países membros, nem todos fazem parte das convenções relacionadas à apatridia, sendo considerável a progressão do Brasil no âmbito do Direito Internacional na procura da efetivação da redução dos casos de apatridia, em busca da garantia dos direitos inerentes a pessoa humana e, consequentemente, seu destaque na ordem internacional, não só pelos seus nacionais, mas em prol de outros apátridas como no supracitado exemplo do africano.

8.4 APÁTRIDAS E O CAOS NA CONTEMPORANEIDADE

Desde os primórdios nos estudos do Estado de natureza, como assenta Thomas Hobbes, as teorias iniciais tentavam mostrar que o homem nasce acertado para uma sociedade; segundo ele, o motivo que leva os homens a viver conjuntamente deve ser observado de forma estrita, já que o indivíduo busca da sociedade algum benefício por mais livre que esta seja. Diz ainda que “[...] a origem de todas as sociedades grandes e duradouras, não é de boa vontade mútua que os homens têm entre si, mas sim o medo mútuo que nutriam uns pelos outros. [...] A desigualdade que observamos em nossos dias, encontra na lei civil sua origem” (2004, p. 32-33). Hobbes salienta que no Estado de natureza todos teriam comum direito sobre todas as coisas, sendo isso perigoso. Desta forma, tem-se o Direito Individual que “[...] é o direito subjetivo garantido a todo indivíduo pelas constituições políticas. São eles: o direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade” (GUIMARÃES, 209, p. 101). A liberdade pode se dividir em várias vertentes, mas o sentido adotado, neste trabalho, é a liberdade de escolha diante dos direitos e garantias fundamentais, direitos humanos inerentes a toda pessoa humana.

NEGATIVA DA CONDIÇÃO DE NACIONAL PELO ESTADO DO BURUNDI. RECONHECIMENTO DO STATUS DE APÁTRIDA. APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO DE NOVA YORK de 1954. 1. Trata-se de demanda cujo cerne é o reconhecido, pelo governo brasileiro, o estado de apátrida com a obtenção dos consequentes efeitos jurídicos dessa condição nos termos do Decreto nº 4.246/2002, que internalizou no ordenamento brasileiro a Convenção de Nova York de 1954 (Estatuto do Apátrida). 2. Se dizente nacional do Estado do Burundi, o autor de lá fugiu em razão de genocídio étnico, graves crises econômica e política, além do falecimento de seus familiares. Chegou ao Brasil pelo Porto de Santos vindo como clandestino em navio cargueiro proveniente da África do Sul. No mesmo ano, embarcou no voo com destino a Lisboa, mas foi devolvido ao Brasil, em razão de ter se utilizado de falsa documentação. Em seguida, foi condenado pela justiça brasileira, já tendo cumprido a pena integralmente por esse crime. 3. Em razão de diligências promovidas pela Polícia Federal, as autoridades diplomáticas do Burundi prestaram informação na qual não lhe reconheceram a alegada nacionalidade; não foi, igualmente, concedido o status de refugiado no Brasil e ainda não foi aceita sua deportação pela África do Sul. 4. Não há que se falar em falta de interesse processual do autor, porquanto restou comprovada a negativa do reconhecimento da nacionalidade burundiana, sendo meridiano concluir a evidente vantagem que lhe resultará a eventual decisão que lhe reconheça a condição de apátrida nos termos do tratado de regência. 5. Mercê do limbo jurídico que vive o autor, faz- se mister o reconhecimento da qualidade de apátrida pelo Estado Brasileiro, já que se encontram presentes os requisitos previstos na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, promulgado pelo Decreto 4.246/2002, e em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, III, da Constituição Federal. 6. Apelação da União e remessa oficial improvidas. TRF-5 - APELREEX - Apelação / Reexame Necessário -: REEX 200984000065700. 152 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Destarte, ao se analisar a condição do apátrida perante os atores internacionais, no mundo em si, deve-se ressaltar em primeiro lugar o direito à vida que é ilustre, já “[...] a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem” (ARENDT, 2007, p. 332); e não há comparação de tamanha relevância quanto aos demais direitos inerentes à pessoa humana, pois cada um tem sua peculiaridade e nem por isso devem ser diminuídos. As garantias fundamentais e deveres que devem obedecer fazem parte do conjunto da vida civil, e a consequente situação de apátrida revolve ao indivíduo, já que sozinho apenas terá a perpetuidade da apatridia passado através de sua geração. Conforme se examinou muitas são as causas que dão origem a apatridia, porém, faz-se necessária cautela ao analisar o Estado onde se está este apátrida. Aqueles que já fazem parte de convenções que dizem respeito à apátridas terão maior facilidade em dirimir as lacunas que tornam este problema tão lamentável, e ainda poderão proporcionar àqueles que, por algum motivo, não têm nacionalidade a oportunidade e a liberdade de se tornar nacional e cidadão de tal país, não só isso, mas a cognição de se sentir em liberdade junto à participação jurídico-política neste Estado. Toda existência ou vida humana é preciosa, de forma que uma não tem menor valor que a outra, e diante desta humanidade salienta Hanna Arendt que a “[...] condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência” (ARENDT, 2007, p. 17). Desta forma, ao falar-se em existência e liberdade ante aos apátridas, dispõe Artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948), e ainda o Art. 5º, XLI da CF/88 que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (CONSTITUIÇÃO, 1988). Sob a perspectiva filosófica de Sartre, Paulo Perdigão ressalta “Ser livre é fazer escolhas concretas – e até mesmo a abstenção e a inatividade são modalidades de escolha” (PERDIGÃO, 1995, p. 86-87), ou seja, as escolhas compreendem a liberdade; a liberdade não faz milagres, mas possibilita a busca pelo preenchimento dessa plenitude de ser, de existir. Leonardo Boff, em sua obra “Libertar a águia em nós”, faz interessantes considerações acerca da liberdade e ressalta que a “Libertação significa a ação que liberta a liberdade cativa [...]. Sempre estamos sob a ameaça de cair do paraíso em que nos encontramos. Esta situação de decadência faz nascer um permanente anseio de resgate e de libertação” (BOFF, 1997, p. 23-24 e 130). Neste sentido, tais dizeres, associado à linha de raciocínio de Paulo Perdigão, supracitado, e as considerações de Arendt sobre a condição humana, a liberdade se inicia na consciência e junto a esta condição inerente a sua existência, a manifestação de vontade determinam nossos atos, o que não seria possível para aqueles que se enquadram na definição de apátrida, Apátridas na contemporaneidade... // 153 já que, ainda que estejam no território de determinado Estado, não podem exprimir sua vontade, principalmente, nos atos da vida civil, já que, para aquele país, o indivíduo não tem liberdade para exercício de seus direitos e garantias mínimos e fundamentais pela falta de vínculo jurídico-político com esta nação. Ao considerar que a existência precede a essência, pois o “[...] homem é o único legislador de sua vida, e a única lei de sua existência diz apenas: “Escolhe-te a ti mesmo” (...) o homem deve escolher o seu Ser, lançando-se continuamente a seus possíveis e constituindo pouco a pouco a sua essência, através dessas escolhas, contanto, para agir, somente com a voz de sua consciência” (BOFF, 1997, p. 90). Ante muitos casos que ocorrem, tais apátridas ao ouvirem coisas no sentido de que não fazem parte do lugar onde nasceram e cresceram, dentre tantas outras frases no mundo dos apátrios, este é o sentimento que todo apátrida pretende ter: liberdade de consciência perante sua existência e condição humana. O mundo está em constante mudança, consequentemente, as modificações tendem a apresentar prós e contras, de forma que é possível avistar que nem sempre tudo está tão inerte quanto parece, porém, definir situações caóticas não pressupõe necessariamente uma desordem; a busca pelo equilíbrio nem sempre é alcançada, o que remete assim, ao desejo de ser alcançável. Essa globalização não se restringe apenas aos aspectos tecnológicos, mas também a globalização dos direitos fundamentais que caminham com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e a efetivação de seus objetos de estudo, visualizando-se que a globalização de direitos e a globalização tecnológica baseiam-se sob análise da sociedade internacional. Quando se refere ao termo “caos”, logo se pressupõe uma desordem, o que na verdade, nem sempre se define como tal; o vocábulo “caos” não tem apenas conotação quanto a sua etimologia, existe também a denominada teoria do caos que inicialmente dispõe sobre o fato de uma ação inicial provocar variação de proporções imprevisíveis. A teoria do caos originou-se a partir de um meteorologista americano chamado Edward Norton Lorenz, no início da década de 1960. Ao analisar um programa de computador que simulava as massas de ar, descobriu que ao diminuir algumas casas decimais nos números que alimentavam os balancetes, a alteração resultante foi extremamente significativa (REVISTA Mundo Novo, 2015). Ao comparar o dia a dia concluiu que acontecimentos que se presumem simples têm um desempenho tão caótico quanto às vivências cotidianas, de forma que falar do caos é necessário para que se possa entender o desenvolvimento humano e cultural.

154 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

8.4.1 Caos: o cenário internacional contemporâneo

A vida cotidiana permeia-se de situações caóticas que através de escolhas determinam a ocorrência ou não dessas desordens, dentre elas a opção entre a guerra e a paz; por vezes, sabe-se que a vontade é a força que move os Estados a pactuarem ou não normas que contextualizam a adequação de uma ordem internacional em evolução. Atualmente, o Direito Internacional dos Direitos Humanos contribui para controle e conquista da paz internacional frente à modernização da humanidade, o discurso de Immanuel Kant de forma interessante enfatiza que “[...] entre todos os poderes (meios) subordinados ao poder do Estado, o poder do dinheiro é decerto o mais fiel, os Estados veem-se forçados (não certamente por motivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra” (2008, p. 31), acrescenta ainda que “[...] a natureza garante a paz perpétua através do mecanismo das inclinações humanas;[...] não é suficiente para vaticinar (teoricamente) o futuro, mas que chega, no entanto, no propósito prático” (2008, p. 31) cuja finalidade é atingir o objetivo para alcançar a paz. Analisando-se o caminhar silencioso e desprovido de valores da globalização política neoliberal, Paulo Bonavides aponta que existe ainda uma “[...] outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais” (2011, p. 571), continua dizendo que esta interessa unicamente aos menos favorecidos, já que “Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional” (2011, p.571), expõe, todavia que os direitos de terceira dimensão que compreendem “[...] ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia” (BONAVIDES, p. 572). Os meios de comunicação social influenciam significativamente, conforme se observa com os atuais conflitos, em especial ao se discutir sobre a internet, pois a velocidade de propagação de informações é incontrolável e alcança os mais variados lugares do mundo, de maneira que, é fator contributivo para o incentivo de jovens e adultos, e ainda crianças, que não estão imunes ao acesso midiático e conflituoso. Portanto, considerando as descobertas sobre a teoria do caos, a globalização como parte da evolução da humanidade é um fator caótico, não apenas pela ordem ou desordem que traz, mas também, pelas consequências que produz ao aproximar tais conflitos, apresentar a quebra de valores, maculando o ideário de paz. Todavia, a paz jamais deve ser desmerecida, a sua manutenção é fator primordial para a condução do futuro da humanidade e garantia dos Direitos da Personalidade.

Apátridas na contemporaneidade... // 155

8.4.2 Apátridas e evolução da personalidade humana sob análise do efeito borboleta

O Direito Internacional dos Direitos Humanos é composto por uma vasta normatização em defesa da pessoa humana, dos Direitos da Personalidade e da promoção da paz, em análise ao desenvolvimento e crescimento da comunidade internacional, a evolução da humanidade é evidente tornando-se preciso adequação das normas aos contextos internacionais. Hannah Arendt ressalta que “A era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem” (2007, p. 332), enquanto “[...] o passado, é visto como uma força, e não, como em praticamente todas as nossas metáforas, como um fardo com que o homem tem de arcar e de cujo peso morto os vivos podem ou mesmo devem se desfazer em sua marcha para o futuro” (1979, p. 37) de maneira que este passado “[...] ao invés de puxar para trás, empurra para a frente, e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado” (1979, p. 37). Glenn Packiam por seu turno defende que, “Começos são tão significativos quanto seus finais. [...] Finais bem-sucedidos normalmente são determinados pelos momentos mais comuns do percurso. Todavia, somos obcecados pelos começos” (2010, p. 11), cada vez que iniciamos um novo projeto “Queremos ser extraordinários, para ser lembrados muito tempo depois de partirmos, para ser parte de algo maior do que nós mesmos, para deixar um legado; e ainda assim não queremos ir trabalhar na segunda-feira de manhã” (2010, p. 11). O autor enfatiza o segredo frente à reflexão quanto este percurso dizendo que “Não é um segredo porque poucas pessoas sabem disso; mas é um segredo porque poucas pessoas vivem como se soubessem” (2010, p. 11-12). A vida humana não é medida em grau valorativo, salienta Hannah Arendt que a “[...] condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência” (2007, p. 17). A teoria do caos conforme já tratado neste trabalho, item 4, tem como enfoque central o “Efeito Borboleta” instituído do Edward Lorenz, que observou que o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar uma desordem do outro lado do mundo, utilizando-se dessa teoria, faz-se, aqui, uma analogia ao estudo do alcance efetivo frente as limitações sofridas pelos Direitos da Personalidade perante o tema em e sua existência remota, para que o reconhecimento de tais direitos contribuem não só para manutenção da paz numa ordem internacional. Para tanto, demanda que pequenas ações provoquem mudanças benéficas incalculáveis, ainda que em meio ao caos, a humanidade em constante mutação (inclusive de valores), a globalização, entre outros fatores 156 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade contemporâneos, é primordial que os organismos contribuam para que os direitos intrínsecos a pessoa humana prevaleçam.

8.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notou-se nesta pesquisa que o Direito Internacional precisou de muito tempo para se consolidar como ciência e nele temos os Direitos Humanos como principal ator no campo das relações internacionais. Por ele, é possível garantir o mínimo existencial, inclusive se houver necessidade de intervenção internacional. O processo de consolidação como ciência e seu reconhecimento como “Direito das gentes”, passou por diversas modificações possibilitando a inclusão de princípios e normas de Direito Internacional, que regem as relações exteriores buscando a proteção à pessoa humana e praticando a manutenção da paz. Além dos princípios gerais de direito, tem-se os princípios de Direito Internacional. Ocorre que, em relação à Apatridia, cada Estado soberano possui a liberdade diante de suas leis, e a partir de sua vontade, pactuam tratados internacionais em prol dos direitos humanos. Os critérios de nacionalidade de cada país determina quem será o nacional daquele país, portanto, é de suma importância para estabelecer com um indivíduo vínculo jurídico-político, a aquisição de nacionalidade, que pode ser estabelecida pelos chamados critérios jus solis e jus sanguinis. O Direito Internacional, especialmente o ACNUR, tem contribuído significativamente para mostrar aos Estados a importância de aderir a convenções relacionadas à Apatridia, justamente para a prevenção e combate a este problema que ainda é realidade em diversos lugares no globo. O Brasil tem se destacado diante das campanhas de combate à Apatridia, progredindo não só com o Direito Internacional, mas também com o cuidado com seus nacionais que estão passíveis de reconhecimento e aos apátridas que reconhece. A proteção aos Direitos Humanos em relação aos apátridas fez com que surgissem convenções para sua prevenção e redução, de forma que os Estados que fazem parte dela, não têm permissão para criarem leis que gerem Apatridia. Ocorre que tal proteção não foi aderida por muitos outros países, o que torna o problema ainda uma realidade, reduzindo-os a seres “invisíveis”, e provocando o mais ínfimo sentimento de indiferença perante aos demais indivíduos que possuem nacionalidade. Todavia, a soberania e a vontade determinam os Estados, sua independência no cenário internacional, restando àqueles que enxergam a gravidade do problema diante da pessoa humana, como o ACNUR, e países que aderiram as convenções para prevenção e redução dos casos de Apatridia, a preocupação com a possibilidade do exercício dos direitos, garantias e liberdades fundamentais inerentes ao ser humano diante do apátrio. Apátridas na contemporaneidade... // 157

E, desta forma, psicologicamente por mais insignificante que seja para alguns ter uma nacionalidade, para uma criança, para um adulto, para um ser humano que não possui pátria e não pode exercer direitos da personalidade comuns como outros indivíduos dentro de um mesmo espaço terrestre, é como uma prisão de asas da liberdade de sua essência, tornando diminuída sua condição humana e, consequentemente, afetando o bem jurídico mais importante: o direito à vida com dignidade. Essa evolução no cenário de globalização desencadeou um desequilíbrio caótico de valores mediante as inovações tecnológicas e sua expansão, ao analisar a paz neste contexto dando primazia aos direitos da personalidade em virtude da dignidade da pessoa humana, observa-se que o anseio de preservação da paz no âmbito internacional pressupõe continuidade do trabalho daqueles que defendem este ideário como direito supremo da humanidade e dos direitos intrínsecos aos seres humanos. Assim, com a intenção principal de reflexão sobre aspectos realísticos do caminhar da humanidade, que, adormecida nos braços do egocentrismo, da virtualidade, da tecnologia, reduz valores e a própria condição humana, violando os direitos fundamentais, e, consequentemente, os princípios resguardados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, este estudo ressalva a importância do caminho para o alcance da manutenção da efetivação dos Direitos da Personalidade na contemporaneidade. Nada obstante, o mencionado efeito borboleta, não é parâmetro para se desacreditar na silenciosa inércia dos valores humanos que determinam a os direitos de todos os homens, mas sim, um estímulo que demonstra a possibilidade de resguardo e manutenção da paz internacional como supremo direito da humanidade sob a perspectiva do desejo imaculável de proteção atual e futura da personalidade humana.

8.6 REFERÊNCIAS

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162 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= IX =

AS NOVAS TECNOLOGIAS E AS AFRONTAS AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE: SERÁ O FIM DA PRIVACIDADE E DA DIGNIDADE HUMANA?

Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão* Ricardo da Silveira e Silva** Tatiana Manna Bellasalma e Silva***

9.1 INTRODUÇÃO

O surgimento das novas tecnologias em especial a internet e sua crescente democratização, aumenta, em alcance e em número de usuários, em ritmo exponencial, conectando as pessoas por intermédio de computadores, tablets e telefones celulares, contribuindo para a construção de novos paradigmas de comunicação, imprimindo maior dinamicidade às interações pessoais, com a criação de redes sociais e novas formas de comunicação pessoal, tornando extremamente fácil e rápida o diálogo e a disseminação de informações. Entretanto, paralelo a este quadro de otimismo as novas tecnologias proporcionam uma relativização do direito a intimidade e à privacidade no âmbito virtual. A facilidade com que se está conectado com o mundo, mantendo contatos familiares, sociais e profissionais espalhados pelo mundo todo, gera a necessidade cada vez maior da tecnologia como mediadora do relacionamento entre as pessoas, arrastando o convívio social para o mundo virtual e criando, com isso, uma infinidade de dados que transitam pela internet sem qualquer tipo de controle. Atualmente a exposição da vida íntima e privada da pessoa humana é realizada com apenas uma busca pelos sites disponíveis na internet a revelia do indivíduo. Se antes a exposição dependia de ato próprio e positivo da pessoa humana para acontecer, com a postagem de imagem ou fato pessoal na internet, hoje uma simples pesquisa na internet basta para que ela se depare com um sem número de propagandas acerca do objeto

* Doutora em Direito das relações sociais pela UFPR – mestre em Direito pela UEM, professora no programa de Mestrado da UNICESUMAR, especialização e graduação; membro do IBDFAM, membro do Instituto dos Advogados do Paraná; advogada no Estado do Paraná. ** Mestrando em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR – Maringá. Professor e Professor/advogado do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Metropolitana de Maringá – FAMMA. Advogado em Maringá/PR. *** Mestranda em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR – Maringá. Especialista em Direito Processual Civil pela UNIVEM – Faculdade Eurípedes Soares da Rocha. Professora e Professora/advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Metropolitana de Maringá – FAMMA. Advogada em Maringá/PR.

164 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade pesquisado, em diversos outros sites, denunciando a existência de captação de conteúdo virtual para a formação de bancos de dados sem qualquer tipo de autorização, o que viola aspectos inerentes à personalidade humana e o mais elementar direito à intimidade e privacidade. Há uma grande variedade de redes sociais com milhões de pessoas, com aplicativos de entretenimento dos mais diversificados estilos e gostos, com agendas para eventos e aniversários e interação muito prática e simples entre os usuários, sendo que toda essa facilidade atrai cada vez mais pessoas que se integram a essas redes sem o devido cuidado sobre as informações que estão transmitindo. Usuários postam fotos, contam de suas vidas, informam lugares que frequentam, onde trabalham, a faculdade ou colégio que estudam, quando e para onde viajam, tudo é facilmente descoberto com um clique. A pessoa encontra-se vulnerável aos riscos ao qual se submete ao divulgar suas informações pessoais, seus gostos, vontades e pensamentos é imensurável, sem esquecer de que mensagens, fotos, e todas as informações que são postadas podem se perpetuar em algumas redes sociais, já que os sites podem salvar tais dados em seu sistema, sob a justificava de que o usuário pode querer reabrir a conta, tendo sobre elas total direito de uso, ou ainda, sob o pretexto de que tal coleta de informações servirá para aperfeiçoar a experiência do internauta no uso da rede virtual. Diante de tais afirmações, é possível dizer que o resultado destes fatos é que o respeito à privacidade como direito personalíssimo apresenta-se como uma exigência cada vez mais urgente. Assim, os direitos personalíssimos sofrem com o avanço das novas tecnologias? Uma vez que o direito à privacidade, bem como dignidade humana encontram-se fragilizados diante da exposição pública pelo avanço tecnológico e da necessidade de autopromoção no mundo virtual? No presente estudo foi empregado o método teórico compilativo, em especial a análise bibliográfica, cujo escopo é estudo das novas tecnologias como instrumento facilitador as afrontas cometidas contra a dignidade da pessoa humana.

9.2 NAVEGAR É PRECISO: INTERNET COMO PARAÍSO VIRTUAL

A internet é um paraíso digital (LANIER, 2012, p. 18). A humanidade, pela primeira vez, não tem apenas um, mas muitos mundos para viver (CASTRONOVA, 2005, p. 44). A internet proporcionou uma experiência de liberdade até então desconhecida pelo ser humano, que tinha nos limites físicos um grande obstáculo para comunicação, informação e interação social. Se antes era necessário ir ao encontro de alguém para ter a sua companhia, agora bastar estar conectado a uma mesma plataforma para efetuar contato online com quem quer que seja e onde quer que esteja. O mundo virtual é um mundo brilhante, reluzente e chamativo. Nele é possível até mesmo uma existência diferente daquela real, pois as possibilidades e formas de acesso são inúmeras, sendo viável o trânsito As novas tecnologias... // 165 apenas por lugares prazerosos. Ao ingressar nesse espectro, experimenta- se possibilidades que vão além daquelas do mundo físico. A rede virtual apresenta espaços atrativos e interessantes, que funcionam como verdadeiros cenários para o desenvolvimento de ideias e relacionamentos. São espaços que possuem os mais diversos recursos interativos, facilitando a navegação pelas informações arquivadas, além da oportunidade do anonimato, que dá uma sensação de liberdade inexistente no mundo físico. No espaço virtual é possível buscar somente aquilo que lhe convém, transitando pelos mundos escolhidos previamente, de forma a fazer real o seu mundo ideal (LEVY, 2011, p. 40). Tal fato, aliado a privatização dos espaços públicos, torna o mundo virtual extremamente atraente, onde as possibilidades criativas encontram menos amarras, inclusive as sociais. A internet propicia a comunicação desinibida, uma vez que favorece o anonimato e desta forma se consolida como ferramenta de fortalecimento de expressão e comunicação. O anonimato induz a liberação, sem constrangimentos de emoções aprisionadas, em especial concede ao indivíduo a possibilidade de expor sua vida sem revelar sua real identidade. Assim, o anonimato que protege os usuários da internet serve a construção de uma sociedade pluralista, fundada na democracia (VIEIRA, 2007, p. 198). A maneira de utilizar e desfrutar da internet pode variar de sociedade, as preferências dos usuários por determinados serviços não variam de acordo com o custo, mas sim sofrem influencias culturais e sociais de cada sociedade (LAGARES, p. 70), ou seja, a facilidade de acesso e o baixo custo concede extraordinária acessibilidade a rede, sendo que a sua utilização curva-se aos interesses individuais e culturais de cada indivíduo. É inegável que a rede também consiste em um campo fértil para que ocorram afrontas a dignidade da pessoa, uma vez que o anonimato dificulta a apuração de ilícitos praticados no mundo virtual como a violação a intimidade, privacidade, honra, imagem do indivíduo, bem como facilita a comunicação entre terroristas e membros de organizações criminosas que se escondem sob o manto do sigilo ofertado pela internet (VIEIRA, 2007, p. 199). É inegável o avanço ocorrido com o advento da internet, apresentando-se como uma maravilha a disposição de todos, e capaz de transpor as barreiras físicas do espaço e a limitação temporal. Ocorre que, o paraíso repleto de facilidades e possibilidades pode ser utilizado de tal forma a ferir a pessoa humana atentando contra sua dignidade, atingindo inclusive a sua segurança real e sua sanidade mental.

9.3 A ESPETACULARIZAÇÃO DA VIDA PRIVADA

Enfim, quanto o vale uma curtida em uma rede social? Por que a vida privada e íntima da pessoa tornou-se um espetáculo encenado para milhares? A sociedade atual vivencia novas formas de pensar, viver, sentir (SIBILIA, 2008, p. 11), enfim, os novos modos de ser e as novas tecnologias da informação auxiliam as pessoas a se aproximarem dos assuntos de seu interesse. E é justamente nesse universo on-line que tem-se notado o 166 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade surgimento de novas formas de exposição pública, com o comprometimento cada vez maior da intimidade e privacidade pessoal, na busca incessante de popularidade, fama e glória. É o desejo de se tornar celebridade levado à condição de fetiche pessoal (LUDLOW, 2010, p. 275), utilizando-se de uma rede que confere um grande poder de divulgação, ao mesmo tempo que isenta o usuário da responsabilidade pelo material que divulga (ARANGY, 2011, p. 38). A pessoa humana possui verdadeiro fascínio pela fama, mesmo que momentânea. Os atuais programas televisivos onde os protagonistas são pessoas comuns, como no caso dos reality shows, possuem um forte apelo popular e atraem a atenção de um volumoso segmento da sociedade, que também almeja estar ocupando aquele espaço, com o qual sairão coroados com a popularidade instantânea. O acesso a tais programas é extremamente dificultoso, sobrando poucas vagas para uma imensidão de pessoas, que vislumbram nas plataformas virtuais a oportunidade de se tornarem celebridades como aquelas que se constituem o objeto de sua idolatria. A questão é que para aumentar a audiência é comum recorrer a publicações em que se utilizam da exposição da própria intimidade e privacidade como chamariz para desconhecidos. Esse fenômeno já foi identificado e é retratado, com absoluta lucidez, pela autora Paula Sibilia, (2008, p. 31) que aponta a existência de “[...] verdadeiro festival de “vidas privadas”, que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro”. Hodiernamente observa-se à criação de blogs de notícias e de fotos, além de verdadeiros diários virtuais, onde são expostos regularmente os mais diversos episódios pessoais, em verdadeira narrativa da vida pessoal, com detalhes por vezes constrangedores e picantes da própria realidade, mesmo que seja devidamente aumentada para parecer mais interessante aos olhos alheios, estimulando e aguçando a curiosidade de outrem, afim de atrair maior atenção e popularidade. Isso é parte do processo de convencer os demais de que não se é uma pessoa comum. De que existe algo de especial a tornar diferente aquele que narra a sua vida real no ambiente virtual, fazendo da virtualidade a sua realidade (CASTELLS, 1999, p. 458), com o alargamento dos limites do que se pode dizer e mostrar, exacerbando a esfera da intimidade sob a luz da visibilidade virtual. Segundo Paula Sibilia (2008, p. 111) a fama é medida pelas curtidas recebidas, que servem como termômetro para expressar a popularidade angariada com a publicação de fotos ou dados biográficos, sem nenhuma preocupação acerca da própria privacidade e onde o objetivo é tão somente conquistar a visibilidade, e ensina:

Nesta cultura das aparências, do espetáculo e da visibilidade, já não parece haver motivos para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos abissais perdidos dentro de si mesmo. Em lugar disso, tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto.

As novas tecnologias... // 167

Nas redes sociais, o mais comum é verificar pessoas que postam até irracionalmente, as direções físicas ou coordenadas dos lugares em que se encontram ou para onde estão se dirigindo, compartilhando fotos suas, de seus familiares e amigos, revelando informações sobre as suas atividades, externando lugares onde os parentes mais próximos costumam frequentar, compartilhando vídeos ou fotos em situações intimas, de modo que todos possam conhecer os aspectos mais íntimos de sua privacidade (LEANDRY- VEJA, 2014, p. 25). Na sociedade informacional os próprios titulares dos dados pessoais conscientemente os disponibilizam para a abertura das contas que lhes permitirão o acesso aos serviços de Internet e, a partir daí, passam a expor inúmeras informações. A vulnerabilidade ocorre de maneira imediata, pois basta acessar um site de rede social (como o Facebook) para que os dados pessoais do internauta tais como escolaridade, estado civil, localidade onde reside e muitos outros dados sejam facilmente visualizados e compartilhados por seus contatos e até mesmo por terceiros, sequer conhecidos do internauta. Outra situação recorrente ocorre quando algum contato da rede social faz uma postagem e nela publica imagens, comentários e informações sobre algum amigo, também integrante da mesma rede, que vê alguns de seus dados divulgados sem sua autorização. A questão que versa sobre a afronta ao direito à privacidade deve-se ao fato de que as redes sociais online não alertam os usuários sobre os riscos que eles podem estar expostos ao participar da rede, divulgando informações pessoais. Tais redes permitem ao usuário um “limitado” controle sobre a privacidade de suas informações. Em geral, esse controle restringe-se à quem pode ter acesso e ao que ter acesso no perfil do usuário. Os controles mais comuns relacionam-se à informações do perfil do usuário, informações disponíveis pelos aplicativos instalados e informações sobre as atualizações do usuário. Algumas redes sociais permitem ainda que o usuário controle quem pode encontrá-lo através de buscas e quais informações do perfil podem ser vistas. A rede social mais utilizada no momento, facebook, permite um controle mais detalhado das configurações de privacidade, entretanto, muitos entendem que sua interface é muito complexa para os usuários comuns. As ferramentas oferecidas por estes sites para proporcionar privacidade aos dados do usuário não são suficientes para assegurar tal direito. Entretanto, podem criar um sentimento de confiança no usuário que, por essa razão, passará a acreditar que links vindos de pessoas na sua rede não oferecem perigo e se sentirá mais confortável para expor detalhes sobre sua vida na rede, criando a cultura da virtualidade real (CASTELLS, 1999, p. 462). Há que se considerar ainda que a rede social online é, basicamente, um intermediário. É um mediador entre emitente e destinatário de uma determinada mensagem. Sua existência se justifica, por um lado, pelas vantagens que podem trazer aos seus usuários em termos de proporcionar- lhes uma interação social com características e dinâmica próprias e, por 168 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade outro, pelas vantagens que o acúmulo de informações pessoais sobre os usuários podem trazer ao proprietário desta rede. A indução ao fornecimento dos próprios dados pessoais é constante no relacionamento da rede social online com seus usuários, e o modo com que este convite ao compartilhamento é realizado pode ser relevante para que se verifique se há, efetivamente, vontade livre e informada quanto aos efeitos deste compartilhamento no momento em que os dados pessoais são fornecidos. O compartilhamento de informações pessoais é da própria natureza da atividade social e também é parte estrutural das redes sociais online. Nas interações sociais tradicionais, dispomos de mecanismos culturais, desenvolvidos com o tempo e profundamente arraigados em nossa cultura que nos proporcionam uma ideia razoável das expectativas que podemos nutrir sobre o que será feito com a informação que revelamos a alguém ou difundimos de forma mais ampla (DONEDA, 2015, p. 6). A mera existência deste intermediário como entidade autônoma na comunicação pode ser oposta à grande parte dos usuários das redes sociais, cuja motivação para a interação não costuma provir da rede em si, porém das pessoas – seus conhecidos e relacionamentos, que também são usuários da rede. Mas o ponto é que, em última análise, este intermediário - e não as partes da comunicação em si - tem o poder de determinar o tratamento a ser dado às informações pessoais que as partes compartilham. As expectativas sobre como serão tratadas as informações pessoais dependem diretamente deste intermediário, do gestor da rede social. Suas ações podem determinar, por exemplo, o compartilhamento destas informações com terceiros; a exposição destas informações em perfis públicos ou semirrestritos; a sua utilização para a categorização do usuário dentro de um determinado perfil de comportamento e tantas outras modalidades de tratamento possíveis - que não raro extrapolam as possibilidades de tratamento de informações pessoais compartilhadas nas interações sociais tradicionais. Outra delicada situação enfrentada nas redes sociais refere-se à saída de um usuário de uma determinada rede. É necessário, como garantia do controle de cada usuário sobre os próprios dados pessoais e da sua exposição em uma rede social, que exista a possibilidade do completo cancelamento de todas as informações pessoais pertinentes a este usuário dos arquivos da rede. Este cancelamento, mais do que uma elaboração pontual de um “direito ao esquecimento”, refere-se diretamente a um ato de liberdade e do exercício dos poderes atinentes ao consentimento sobre a exposição dos próprios dados (LUDLOW, 2010, p. 137). Ao obter os dados pessoais de seus usuários mediante expresso consentimento, não ocorre propriamente a transferência dos direitos de disposição sobre tais dados do usuário para a rede social, pois estes, por serem dados pessoais, continuam sendo uma expressão direta da pessoa do usuário e continuam a manter com ele uma relação direta e inafastável. Dessa forma, é dever da rede social reconhecer este caráter dos dados pessoais e fornecer aos seus usuários instrumentos que efetivamente As novas tecnologias... // 169 realizem o cancelamento completo dos dados pessoais que lhes foram fornecidos por seus usuários. Assim, não há dúvidas que as redes sociais, embora tenham passado a fazer parte da vida diária das pessoas, apresentando inúmeros benefícios, trouxeram uma nova vulnerabilidade a esses usuários que consiste na escassa possibilidade destes conhecerem os efeitos do compartilhamento de suas informações fornecidas ao site de relacionamento e aos supostos “amigos” (LUDLOW, 2010, p. 293). Além disso, por se tratar de tecnologia recentemente incorporada na vida das pessoas, muitas vezes o titular não percebe o grau de risco a que se expõe diante de determinados usos que faz das tecnologias da informação, especialmente quando divulga dados pessoais sensíveis. Revela-se, portanto, a necessidade de também acolher e considerar juridicamente os dados pessoais como uma nova categoria de direito fundamental, categoria esta que emerge com o intuito de ampliar a proteção dos usuários, tendo como escopo a proteção da dignidade de pessoa humana. O indivíduo da atualidade tem desperdiçado um direito construído historicamente, ao flexibilizar sua intimidade e privacidade em troca do aplauso virtual. Ao optar por tal caminho o indivíduo acaba por se desconstruir, coisificando sua própria existência.

9.4 DIGNIDADE REAL E DIGNIDADE VIRTUAL

Para Elymar Szaniawski (2005, P. 140), dignidade da pessoa humana “[...] é um atributo da pessoa humana, que sob o enfoque jurídico é o núcleo essencial dos direitos humanos, tratando-se do fundamento primeiro e da finalidade última do exercício do Estado, bem como dos particulares”. A dignidade da pessoa humana é uma conquista galgada ao longo dos tempos, que busca, em última análise, a proteção do indivíduo contra os mais diversos ataques independentemente da origem. Em razão de inúmeras crises e guerras vividas ao longo dos tempos, surgiu a necessidade de proteger a pessoa de todas as afrontas e barbáries cometidas. Esse anseio surgiu no seio da sociedade, que não mais suportava as mais diversas crueldades cometidas contra o indivíduo. Em especial, o massacre cometido contra os judeus na Segunda Guerra Mundial foi um fato determinante para que fossem garantidos os direitos mais íntimos da pessoa humana, pelo simples fato de ser pessoa, uma vez que a dignidade nasce consigo. Segundo Clayton Reis e Wanderson Lago Vaz

O fato de o princípio da dignidade da pessoa representar uma conquista do homem torna-se ainda mais preciosa e mais merecedora de proteção do que se tivesse sido outorgada por uma razão divina ou natural. Exatamente por derivar de um momento histórico, de conjunturas jurídicas, políticas, filosóficas, culturais, econômicas e sociais localizadas e reais, é que o princípio da dignidade da pessoa humana ganha enorme valor para nossa análise (VAZ; REIS, 2007, p. 190). 170 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Conforme entendimento de Edilson Pereira de Farias (2000, p. 60), “a característica fundamental do princípio jurídico da dignidade da pessoa humana que o sobreleva em importância e significado é que ele assegura um minimum de respeito ao homem só pelo fato de ser homem, uma vez que todos os homens são dotados de natureza de igual dignidade [...]”. Para Luiz Antônio Rizzatto Nunes (2002, p. 49), “[...] a dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência.” Porém, como nenhum indivíduo vive isoladamente, ou seja, a pessoa humana é um ser social, há que se respeitar não somente seus atributos físicos, mas também devem ser tuteladas suas liberdades, para que ele possa se construir e desenvolver, acrescendo dignidade a sua existência. Ao reconhecer a necessidade de garantir não só a existência da pessoa humana, mas atentar para o fato de que trata-se de um indivíduo multifacetado e dotado de várias potencialidades que podem e devem ser desenvolvidas, a dignidade deixa de ter o caráter de proteção a vida e integridade física e passa a proteger a existência da pessoa humana sob todas as nuances, propiciando sua própria construção (NUNES, 2006, p. 49). Tarefa esta inesgotável e que deve ser perseguida até o fim da vida. Segundo Gilberto Haddad Jabur (2000, p. 253) toda pessoa possui dados e informações sobre si que não pretende publicitar, independentemente de motivação, “[...] uma vez que, alijar-se do mundo pode significar o cultivo e o aperfeiçoamento das virtudes”. Nota-se que esse pensamento moderno contraria entendimento tido na antiguidade, onde a vida transcorria em espaços públicos e onde não havia preocupação com a intimidade e a privacidade (FARIAS, 2000, p. 253). Todavia, atualmente, essa tarefa se toda cada vez mais difícil de ser atingida em razão do surgimento das novas tecnologias, que vão dissolvendo a capacidade de isolamento do indivíduo. Para Gilberto Haddad Jabur (2000, p. 253), garantir o direito à privacidade e à intimidade da pessoa humana é de grande importância, uma vez que, é na intimidade que o indivíduo se constrói. “[...] A soledade é ingrediente para o desenvolvimento sadio da personalidade, de seus valores físicos e psíquicos [...]”. Assim, o direito ao respeito a vida privada funda-se no direito que cada indivíduo tem de assegurar a paz, a tranquilidade de uma parte de sua vida que não se encontra exposta a apreciação dos demais (ELIMAR, 2005, P. 291). A questão é que delimitar o que faz parte da vida privada de uma pessoa é uma tarefa que sofre influência direta da sociedade em que ele está inserido, eis que a ideia de privacidade pode variar de uma sociedade para outra. Assim, não há uma definição estática, pronta e imutável, posto que sofre e sofrerá mutações ao longo dos tempos. O que é inegável é a necessidade de proteção ao isolamento da pessoa humana, por se tratar de uma forma de respeitar a dignidade inerente a cada indivíduo. Comumente utiliza-se a expressão vida privada como sinônimo de privacidade e intimidade, todavia, para o direito tais esferas não se equivalem, uma vez que a privacidade seria o gênero do qual pertencem o direito à As novas tecnologias... // 171 intimidade e o direito ao segredo. Imperioso se faz distinguir as duas definições que, no uso cotidiano, muitas vezes são apresentadas como sinônimas, o que acarretaria no fato de terem um conteúdo praticamente equivalente, mas que na realidade possuem definições e extensões diversas. Salienta-se ainda que tanto intimidade quanto privacidade encontram-se intimamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, cuja definição, segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 60) é:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

A missão de encontrar uma conceituação unívoca e abrangente em razão da enorme gama de aspectos que envolvem o próprio conceito é de extrema complexidade (TOMASZEWSKI, 2006. p. 135). De acordo com José Adércio Leite Sampaio (1998, p. 254), para se entender a diferença entre direito à vida privada e direito à intimidade necessário se faz revisitar a chamada “teoria das esferas” que “[...] se funda no fato de que a sociabilidade da pessoa deve servir de limitação à sua liberdade individual, devendo a intensidade da tutela jurídica da personalidade ser inversamente proporcional à sociabilidade do seu comportamento em questão”. A teoria das esferas apresenta camadas ou esferas da personalidade da pessoa humana que carecem de proteção em maior ou menor grau de acordo com que caminha do centro para a periferia. Assim, a camada mais interna, chamada de intimidade ou segredo refere-se ao âmbito mais íntimo do indivíduo, ou seja, não há interação do seu ser ou de seu comportamento com as demais pessoas. Não afeta, portanto, a vida da sociedade, eis que engloba situações restritas à própria pessoa, de reserva absoluta, inerente ao conhecimento e consciências individuais. Já a esfera da vida privada é constituída por grupos sociais delimitados cujo indivíduo participe, mas, que seus atos e práticas somente interessem aos grupos não a todos os membros da sociedade. Por fim, há a esfera social ou pública que traduzem a expressão social da pessoa humana, cuja exposição é feita de forma voluntária (SAMPAIO, 1998, p. 255-257), na qual se desenvolve a personalidade da pessoa. Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2011, p. 79), entende que há graus diferentes de exclusividade entre intimidade e vida privada, conforme se depreende do seguinte trecho:

A intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros (na família 172 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

no trabalho, no lazer em comum). Já a vida privada envolve a proteção de formas exclusivas de convivência. Trata-se de situações em que a comunicação é inevitável (em termos de alguém com alguém que, entre si, trocam mensagens), das quais, em princípio, são excluídos terceiros.

O autor defende que a intimidade não experimenta qualquer forma de repercussão social, enquanto a vida privada envolve situações de opção pessoal que em alguns momentos podem requerer a comunicação a terceiros (como a escolha do regime de bens do casamento ou a outorga marital na aquisição de um imóvel) (FERRAZ JUNIOR, 2011, p. 79). Conceito que pode ser completado com a opinião do jurista René Ariel Dotti (1990, p. 69), no sentido de que “a intimidade envolve conceito mais restrito do que a vida privada. É mais intensa, daí sua natureza essencialmente espiritual”. Ferreira Filho (1999, p. 127) observa ainda que a intimidade é a vida em ambiente de convívio, no interior de um grupo fechado e reduzido, normalmente, ao grupo familiar. Apesar de estar-se diante de conceitos voláteis e dinâmicos o fato é que tanto a esfera privada quanto a intimidade da pessoa humana devem ser tutelados de toda a sorte de afrontas. As novas tecnologias propiciam o avanço a tais esferas com extrema facilidade, o que serve de estímulo aos infratores para saciarem suas curiosidades fúteis e mórbidas. Proteger a privacidade e a intimidade da pessoa humana é em última análise reconhecer sua dignidade nata, propiciando seu desenvolvimento sem interferências externas desnecessárias e improdutivas. O indivíduo é mais do que um ser de carne e osso, a dignidade não se refere exclusivamente a sua vida e integridade física, mas também a toda a sua existência, a todas as suas potencialidades.

9.5 O SURGIMENTO DE NOVOS PARADIGMAS E A PRIVACIDADE HUMANA: A COMUNICAÇÃO ATRAVÉS DA TECNOLOGIA

O mais importante da tecnologia é como ela muda as pessoas (LANIER, 2012, p. 18). E as tecnologias atuais tornaram obsoletos os meios naturais de comunicação, ou seja, para se comunicar atualmente é necessário todo um aparato tecnológico. O ser humano se encontra num estágio de dependência do uso de redes virtuais e aparelhos de comunicação que a forma como nascemos já não é suficiente para uma existência social plena. Ninguém se imagina sem seus aparelhos celulares, tablets, computadores portáteis, que tornaram-se mais do que meros acessórios. Viraram instrumentos que são, em última análise, parte deste novo homem, que transcende seu corpo físico, renascendo como um ser virtual. A evolução tecnológica criou ferramentas que, ao mesmo tempo em que facilitou o acesso à informação, também oportunizou o ingresso a fatos privados do ser humano. Segundo Alexandre Freire (2006, p. 24), atualmente está-se em construção um admirável mundo novo, em que o preço que se paga pela segurança é a própria liberdade. Essas ferramentas e os indivíduos podem vir a se tornar um só (CASTELLS, 1999, p. 69), representados apenas As novas tecnologias... // 173 por uma imagem. Um avatar. E as interações entre as pessoas estão se tornando cada vez mais uma interação entre imagens na tela (CLELAND, 2008, p. 297), ou avatares. Ao contrário do que se imagina, o avanço à privacidade do indivíduo não ocorre primeiramente por câmeras instaladas nas ruas, lojas, shoppings, aeroportos, dentre tantos espaços públicos, uma vez que a pessoa tem sua privacidade invadida dentro do útero materno, que, por meio de um aparelho de ultrassom, possibilita invadir o asilo mais seguro e recolhido do indivíduo (FREIRE, 2006, p. 24), o ventre materno, antes mesmo de estar completo e preparado para enfrentar a vida extra uterina. Há, portanto, o nascimento de problemas inéditos e desafios extremamente complexos quando a informação assume a forma de dado pessoal e sai totalmente do controle do seu titular. É a chamada virtualização da informação, que criou um novo tipo de saber-poder, que já está mudando paradigmas, sacudindo ideias e valores (SIBILIA, 2002, p. 13) e levando à desterritorialização da informação, por intermédio dos meios digitais cada vez mais sofisticados, que culminam na transformação da individualidade do sujeito em relação à coletividade (LEVY, 2011, p. 21). O fato é que, de acordo com Alexandre Freire (2006, p. 24), “[...] entre o nascimento e a morte, período que teoricamente ter-se-ia o controle do que se deseja expor ou ocultar, tornou-se cada vez mais difícil manter os direitos de privacidade.” Ainda segundo o autor, o progresso e a tecnologia cada vez mais barata e acessível a todos em qualquer canto do planeta, possibilita a crescente armazenagem e manipulação de dados por meio da internet. Assim, prevê, por fim, que não se está distante de um futuro em que a palavra privacidade perderá fôlego e importância, posto que tudo passará a ser público (FREIRE, 2006, p. 26). Os relacionamentos, cada vez mais, são mediados eletronicamente, submetendo informações pessoais a um número desconhecido de servidores de internet, tanto postagens em fóruns digitais ou redes sociais1, quanto pesquisas efetuadas em páginas de buscas são recolhidas pelo fornecedor (MORI, 2010, p. 68) e passam a fazer parte de bancos de dados que são utilizados para direcionar propaganda ou qualquer outro tipo de conteúdo que será enviado para o internauta sem qualquer solicitação. Apesar da facilidade de acesso a conteúdos particulares, há de se resguardar a proteção aos fatos concernentes à vida privada, que encontra o seguinte significado na lição de Silvio Romero Beltrão (2005, p. 129):

A definição do conteúdo e a dimensão do direito à vida privada tem início a partir do estudo dos fenômenos sociopsíquicos, em que os valores vigentes em cada época e lugar exercem influência sobre o indivíduo, que em razão desses valores tem a necessidade de resguardar do conhecimento de outras pessoas os aspectos mais particulares de sua vida.

1 Pode-se definir redes sociais como grupos ou espaços virtuais, que permitem partilhar dados e informações, sendo estas de caráter geral ou específico, das mais diversas formas (textos, arquivos, imagens fotos, vídeos, etc.). 174 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

A utilização de redes de comunicação é um processo que não se pode deter, uma vez que as funções e os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em torno de redes, (CASTELLS, 1999, p. 565) dando origem à cibercultura:

[...] conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o ciberespaço, este o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores (LÉVY, 1999, p. 17).

A dignidade da pessoa humana é o fundamento primeiro e último do Direito, e o pressuposto axiológico que confere unidade ao ordenamento jurídico. Por ser um valor intrínseco, incondicional, universal, válido para toda e qualquer ação moral, a dignidade humana é imperativo categórico que assegura ao homem seu tratamento como um fim em si mesmo, e não como um meio a ser usado de forma arbitrária pela vontade dos outros. Observa-se que a necessidade em proteger juridicamente o cidadão resulta do fato de que os dados pessoais adquiriram nos últimos anos forte componente econômico devido à possibilidade de sua comercialização, o que atrai empresas e fornecedores que atuam no ambiente virtual a utilizarem as mais variadas estratégias para obter dados dos internautas. Com efeito, os dados pessoais de um consumidor traduzem aspectos de sua personalidade e revelam comportamentos e preferências, tornando-o um alvo fácil de mensagens publicitárias em um mundo que ainda carece de transparência (LUDLOW, 2010, p. 234). Quando se trata da Internet o tema ganha ainda mais interesse tendo em vista a possibilidade de criação de perfis psicológicos que revelam os hábitos de consumo, os gostos e preferências do indivíduo e, uma vez formado o perfil, posteriormente esse consumidor passa a ser alvo de publicidades indesejadas, e-mails que oferecem serviços, produtos e uma série de outras “promoções” que parecem elaboradas e direcionadas especialmente a ele, tudo articulado com base nos dados antes recolhidos. Percebe-se, pois, que as novas tecnologias informacionais, especialmente a Internet, convertem a informação em uma riqueza fundamental da sociedade, o que acentua a necessidade de sua proteção não só nas fronteiras territoriais de um país (COUTO, 2012, p. 186). Por meio dessa nova perspectiva busca-se conferir maior poder e controle do titular sobre seus dados, na tentativa de conciliar o uso da Internet com níveis compatíveis de proteção a direitos fundamentais, como a intimidade e a privacidade. Trata-se, em outras palavras, de compreender que embora o ciberespaço historicamente tenha sido identificado como um ambiente propício para o exercício das liberdades, essa liberdade não é absoluta e toda a vez que o particular (pessoa física ou empresa) ou o próprio Estado expuserem dados pessoais de outros devem ser responsabilizados por eventuais danos causados ao titular. A pessoa teria, nesse sentido, com base no direito à intimidade, um poder de controlar a obtenção e o uso de suas informações pessoais por terceiros. Essa constatação encontra apoio As novas tecnologias... // 175 em grande parte da doutrina que, segundo José Adércio Leite Sampaio (1998, p. 374-375), existem dois modos de violação da intimidade, quais sejam: o conhecimento e a difusão de fatos privados. Capelo Souza (1995, p. 370) vai mais adiante, estabelecendo diversas condutas como infração à esfera privada:

Tais modos de violação da esfera privada podem abranger vários níveis de intersecção com os bens tutelados, desde o simples espiar de assuntos privados ou o mero documentar, v. g. por gravação, fotografia ou por meio informático, de circunstâncias do ser particular e da vida privada de outrem (...).

Ou ainda, “[...] violação de propriedade, violações da confiança, violações do direito do autor e também dos casos de difamação” (Linberger, 2007, p. 55), muito comuns no ambiente online, dada a possibilidade do anonimato. Na ótica de Milton Fernandes (1977, P. 80), as ingerências passíveis de refletirem ofensa ao direito à intimidade e privacidade podem ser relacionadas:

a) interferência na vida privada pessoal, familiar e doméstica; b) interferências na integridade física ou mental, na liberdade moral e intelectual; c) violação da honra e reputação; d) falsa perspectiva; e) comunicação de fatos irrelevantes e embaraçosos da intimidade; f) uso do nome, identidade ou retrato; g) espionagem ou espreita; h) intervenção de correspondência; i) má-utilização de informações escritas ou orais; e j) transmissão de dados conhecidos em função do segredo profissional.

Em relação à internet, uma faceta dos direitos de intimidade e privacidade está contida nos dados digitais que trafegam pela rede, que fazem parte da esfera privada de cada um. E que tipo de dados ou informações, quando divulgados podem levar às lesões? São, portanto, quaisquer informações de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativas a uma pessoa física identificada ou identificável (DRUMMOND, 2003, p. 125). Mesmo na impossibilidade de se estabelecer um conceito único acerca de qual tipo de dado virtual enquadra-se dentro da esfera privada, é necessária a intervenção do legislador, na criação de normas que possam resguardar os direitos de personalidade.

O papel do Direito e a consecução da Justiça entre os homens, fator fundamental do convívio social e a realização do individual e comum, pouco importando que as relações ocorram por meio de uma ferramenta tecnológica que pareça separada da realidade. O que interessa é que as consequências são sentidas no mundo real – e precisam de uma resposta eficiente (LEONARDI, 2002, p. 42).

É razoável que haja a exploração dos dados do usuário como forma de manutenção dos serviços gratuitos. Custear um servidor, armazenar e- 176 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade mails, fornecer uma série de produtos é dispendioso ao proprietário do website. Ao mesmo tempo, o serviço interessa ao internauta. Ora, o que seria da Internet se não houvesse possibilidade de usar um serviço gratuito de pesquisas de websites? Seria necessário pagar por um site que faça isso. Portanto, existe negócio jurídico, cuja remuneração não é por pagamento em espécie, mas por exploração econômica dos dados do internauta. E esta exploração, à luz do que é balizado pela doutrina, pode vir a ser razoável e aceitável, por ser restrição voluntária ao direito da personalidade, desde que o website cumpra com a boa-fé, restringindo-se a tão-somente repassar os dados que sejam elementares para a publicidade, sendo que qualquer abuso pode ser punido, por tutela decorrente de violação do direito da personalidade e o critério para balizar o limite do repasse dos dados pode ser tanto os termos de uso (que em geral preveem os limites da exploração) quanto o razoável, em sede de cláusula geral, ensejando ação de responsabilidade civil (EVANGELISTA, 2013, p. 1227). De outro lado, se não considerar a relação como sendo negocial, de igual modo, o direito da personalidade é cláusula geral de tutela da pessoa humana, sendo que a violação da privacidade, que é atributo do direito da personalidade, pode ser tutelada em sede de tutela reparatória de lesão ao direito da personalidade.

9.6 BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A LEGISLAÇÃO ATINENTE AO MUNDO VIRTUAL

A legislação que regula direitos e deveres na internet ainda não é considerada suficiente para salvaguardar com clareza todos os direitos daquele que navega no mundo virtual, notadamente aqueles relativos à personalidade. Essa dificuldade vem do fato de que entre os usuários da internet há uma mescla heterogênea de perfis e interesses dificilmente classificáveis e este desconhecimento levou as pessoas a assistirem a popularização da internet sem poder explicar efetivamente os valores propulsores da mesma (LAGARES, 2013, p. 52/53). Ao passo que existe a possibilidade de ser apenas um anônimo na internet, a mesma rede promove a interligação virtual entre milhões de pessoas mundo afora. A informação que antes necessitava ser impressa e transportada sob a forma de livros, revistas e jornais está em via de se transformar totalmente na transferência instantânea e barata de dados eletrônicos movendo-se à velocidade da luz (NEGROPONTE, 1995, p. 10). Tais fatores resultam na noção concreta do quão difícil é legislar acerca de interesses tão diversos e em um campo que transformou a própria maneira humana de se comunicar e transmitir informações. Preservar a individualidade do internauta ao mesmo tempo em que se assegura o direito à liberdade de expressão acarreta em um acúmulo de possibilidades e interesses heterogêneos tão diversos que os recentes estudos não conseguem revelar com clareza ao ponto de se conceber uma legislação As novas tecnologias... // 177 ampla e completa para assegurar todos os direitos no mundo virtual (LAGARES, 2013, p. 53). Tem-se demonstrado particularmente delicada a operação para delimitar a esfera da privacidade, mas é evidente que o direito à privacidade constitui um limite natural ao direito à informação (PAESANI, 208, p. 33). Limitar a própria intimidade e privacidade é direito pessoal de cada um, mas a internet já comprovou ser um local impossível de ser dominado por completo. A informação disponibilizada na rede virtual pode tornar-se incontrolável e fugir totalmente da área que inicialmente foi prevista como alvo para uma publicação, ainda mais considerando-se a característica supranacional da internet e a velocidade com que as informações são disseminadas. Uma informação postada na internet pode ser lida simultaneamente em qualquer ponto do mundo e alguns segundos depois pode ser comentada e compartilhada por vários usuários, multiplicando-a em escala geométrica (DOMINGUES, 2010, p. 55). A forma encontrada para criar mecanismos jurídicos que pudessem servir de proteção para os usuários da internet foi estabelecer a proteção dos dados pessoais. Com isto transforma-se todo tipo de informação (postagens, documentos, fotos, vídeos, arquivos de som) em dados, que são o conjunto de códigos matemáticos que formam as informações. A proteção dos dados pessoais é de suma importância para a defesa dos direitos individuais (TORTAJADA, 2013, p. 73). Tanto a Lei Carolina Dieckman2 quanto o Marco Civil3 são considerados avanços na tentativa de organizar juridicamente o espaço virtual, apesar de a primeira ter sido promulgada com a desnecessária urgência que a discussão da matéria requer e a segunda não ter tratado de

2 A Lei 12.737/2012, sancionada em 3 de dezembro de 2012, promoveu alterações no Código Penal Brasileiro, tipificando os chamados delitos ou crimes cibernéticos. Acrescentou ao Código Penal os artigos 154-A a 154B, situados dentro dos crimes contra a liberdade individual, prevendo pena de três meses a um ano de detenção para aquele que “Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. A lei resultou de uma situação experimentada pela atriz que batizou o normativo, onde teve copiadas de seu computador pessoal 36 (trinta e seis) fotos em situação íntima, que acabaram divulgadas na Internet, após tentativa frustrada de receber dinheiro pela não publicação por parte daquele que cometeu o delito. 3 A Lei nº 12.965, sancionada em 23 de abril de 2014 é a lei que regula o uso da Internet no Brasil, prevendo os princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado. A lei trata de temas como neutralidade da rede, privacidade, retenção de dados, a função social que a rede precisará cumprir, especialmente garantir a liberdade de expressão e a transmissão de conhecimento, além de impor obrigações de responsabilidade civil aos usuários e provedores de internet. 178 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade temas relevantes, como o cyberbulling4 e a ação de ação de hackers5 e crackers6. A criação de ambas as leis demonstra a preocupação do ordenamento jurídico brasileiro em proteger os direitos pessoais, notadamente aqueles relativos à intimidade e privacidade, no âmbito das relações virtuais, onde o espaço cibernético destrói severamente a relação entre a legislação e a localização física do usuário da rede, que pode sofrer ofensa em seu direito partindo de qualquer lugar do mundo, eis que ingressa- se em um lugar em que não há mais limites, não há mais tempo e nem horários (SILVA NETO, 2001. p. 33). A estória hoje é contada em bytes (PEREIRA; GHEZZI; VESNIC- ALUJEVIC, 2014, p. 17) e os mais variados bancos de dados encontram-se disponíveis na internet, ao alcance quase que ilimitado de uma grande parte da humanidade. Se antes a informação repousava no papel em vez de reverberarem nas telas de computadores, na forma de dados virtuais a privacidade ainda podia se sustentar. Após a internet se tornar o maior arquivo de dados jamais concebido pela humanidade, o direito à privacidade se dissolve (SILVA NETO, 2001, p. 33). A criação de uma constituição da internet, como foi chamado o Marco Civil constitui-se em importante passo para a proteção ao direito à intimidade e privacidade dos internautas e constitui-se em singela barreira contra a violação de direitos no âmbito virtual e instrumento de proteção de dados e informações pessoais, considerando-se o fato de que o acesso ilimitado ao conteúdo indexado virtualmente não poupa absolutamente ninguém (VIEIRA, 2002, p. 70). A lei 12.965 (BRASIL, 2014) colocou no artigo terceiro, como um dos princípios que disciplinam o uso da internet, a proteção da privacidade e no artigo sétimo o direito à inviolabilidade tanto da vida privada quanto da intimidade. No entanto, em razão da extrema competição entre as empresas que produzem conteúdo virtual, a cada dia são lançados novos aplicativos e criadas ferramentas e ambientes virtuais para seduzir um público que não cessa de crescer. E, encantados pelas novas oportunidades de interconexão,

4 O cyberbulling pode ser entendido como uma forma de violência praticada através das tecnologias de comunicação e informação e que consiste em uma agressão, normalmente de ordem moral e cunho psicológico, com a publicação de informações que visam denegrir a imagem e afetar a autoestima da vítima. Pode ser feita por uma pessoa ou um grupo que se une para praticar as agressões. O abuso é constante e impossível de se controlar, pois a própria natureza da internet, com conexões ilimitadas, sem fronteiras definidas e possibilidade de postagens anônimas, torna inviável a defesa desse tipo de agressão, onde há casos extremos de suicídio por parte dos ofendidos. 5 Indivíduos que se dedicam, com intensidade e conhecimentos em informática incomuns, a invadir e modificar os aspectos mais internos de dispositivos, programas e redes de computadores, tendo acesso a dados privados de suas vítimas. Os ataques são feitos pela internet e o criminoso obtém acesso quase irrestrito ao computador da vítima. 6 Também possuem profundos conhecimentos em informática, que utilizam para fins imorais, ilegais ou prejudiciais, normalmente motivados por curiosidade, necessidade profissional, vaidade, espírito competitivo, patriotismo, ativismo ou simplesmente para cometer crimes cibernéticos. As novas tecnologias... // 179 os internautas revelam-se assíduos utilizadores de sites de redes sociais, nos quais disponibilizam e divulgam voluntariamente suas informações pessoais, sem se preocupar com quem irá acessá-las ou para qual finalidade serão utilizadas. O Marco Civil brasileiro erigiu, dentre outros, os princípios da garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais ao mesmo passo em que elegeu, como fundamento do uso da internet, os direitos humanos e o desenvolvimento da personalidade. Entretanto, o avanço da comunicação digital se dá em escala geométrica, alcançando um número cada vez maior de pessoas em um espaço de tempo cada vez mais curto, com o surgimento de novas plataformas e canais de comunicação, com o qual o usuário se vê cada vez mais exposto (MARTÍNEZ, 2016, p. 161). É louvável a criação de normas específicas para a proteção dos direitos dos internautas, principalmente aqueles relativos à honra, intimidade e privacidade, que, em última análise, encontram-se vinculados à própria defesa do princípio da dignidade humana, mas também é necessário aperfeiçoar as ferramentas existentes para se conter a erosão em tais direitos fundamentais.

9.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A internet apresenta-se como a inovação tecnológica que assumiu, de maior importância e repercussão na sociedade, muito em virtude da agilidade e rapidez no trânsito de dados e na comunicação interpessoal, o que tem atraído cada vez mais usuários. O aumento no número de usuários é diretamente proporcional ao aumento na complexidade das relações tidas no campo cibernético, sendo possível encontrar tanto conexões afetivas e sociais quanto comerciais, que se desenrolam exclusivamente no campo virtual. As novas formas de informação e comunicação geram uma quantidade imensa de dados virtuais, que carregam referências pessoais daqueles que transitam no mundo virtual e que pertencem aos proprietários dos espaços utilizados pelos internautas, sendo utilizados para fins comerciais à revelia dos usuários. Além do trânsito de informações desprovido do mínimo de transparência, constata-se a possibilidade da utilização das ferramentas virtuais na busca de autopromoção pessoal, centrada na fama, no prestígio e popularidade suficiente para alçar a pessoa comum ao nível de celebridade. A rede, indubitavelmente, apresenta-se como um novo instrumento de comunicação social, eficaz, de fácil acesso e de baixo custo. Todos esses atrativos aliados a questões de ordem moral, cultural e psicológicas, servem de incentivo às pessoas para que desnudem suas vidas, narrando os seus passos e expondo suas intimidades, num conto do cotidiano, fútil e fugaz. O indivíduo se distancia da existência real, de contatos pessoais e íntimos, para viver uma existência virtual, abrindo sua vida e descortinando 180 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade seus dados, na intenção de atingir aprovação e reconhecimento, sacrificando sua intimidade e privacidade. A vida passou a ser encenada para um número inestimável de telespectadores, como uma novela a ser seguida e compartilhada. As informações disponíveis na rede tornam-se perenes, pois a internet não esquece. Assim não se concede ao usuário a benesse do recolhimento, uma vez que basta apenas um clique para que os dados e fatos relativos a sua existência sejam acessados de forma instantânea. A elaboração de leis específicas acerca da utilização do espaço virtual é sinal de avanço do legislador nesse campo. Estabelecer os princípios legais que irão servir de norte para a legislação, como fez o Marco Civil, já estabelece o entendimento das bases sobre o qual irá se assentar a resolução dos conflitos oriundos do mundo virtual. O Direito preocupou-se em disciplinar o uso das novas tecnologias, em especial a internet, protegendo o indivíduo dos ataques que possa sofrer de outros indivíduos reais ou virtuais, todavia, como proteger as pessoas de si mesmas quando expõem sua intimidade e privacidade na busca de fama e aceitação através da espetacularização da sua própria vida? O Direito ao longo da história foi invocado para tutelar a pessoa humana dos ataques e afrontas cometidos pelo Estado ou pelo próprio homem, e agora, vê-se desafiado a proteger o indivíduo de si mesmo, quando este se despe de sua dignidade voluntariamente, coisificando sua existência, abrindo mão de seus direitos mais íntimos e pessoais.

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184 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= X =

CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE – O CASO DO ABORTO X DIREITO À LIBERDADE

Camila Franco da Rocha* Claudia Patricia Perissato Kubota** Jaqueline da Silva Paulichi***

10.1 INTRODUÇÃO

Não é de hoje que a questão da legalização do aborto é inspiração para diversas discussões, tanto no âmbito social como jurídico. É extremamente relevante toda e qualquer discussão sobre o tema em apreço, devendo considerar o direito à vida e o direito à liberdade, para que se possa chegar a um senso comum. Quando se discute sobre o aborto, seja de qual modalidade for, adentra-se na esfera não apenas jurídico-legislativo, mas também social, religiosa, moral e ética. Inviável haver qualquer discussão, sem que se ponderem tais fatores, como norteadores de qualquer fundamentação, seja qual o posicionamento adotado. A tendência mundial, tanto em países desenvolvidos bem como os em fraco desenvolvimento, é a legalização do aborto, fazendo prevalecer o direito à liberdade sobre o direito à vida, o que é de se preocupar, tendo em vista que a legalização total do aborto implica em muitas consequências, que exigiram também o pronunciamento da sociedade e do poder legislativo. A questão é, será que a sociedade está verdadeiramente pronta para gozar de tal direito? Será que realmente o direito à vida é o maior de todos os direitos? E se for como fica o direito à liberdade? Como um juiz pode julgar um caso de aborto sem impor ao seu julgamento seus ideais éticos, morais e religiosos? Como não levar em consideração tais aspectos no momento do julgamento? Como a sociedade se comportaria diante de tal situação? Como dissemos toda discussão além de sadia é extremamente relevante para que se possa encontrar a melhor solução diante do caso concreto.

* Bacharel em Direito. Especialista pela PUC-PR, Campus de Curitiba. E-mail: [email protected] ** Bacharel em Direito. Funcionária pública da Prefeitura de Maringá. Especialista em gestão pública. E-mail: [email protected] *** Mestranda no Programa de Mestrado em Direitos da Personalidade do Centro Universitário Cesumar (UNICESUMAR); Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP); Advogada em Maringá-PR. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Especialista em Direito Tributário. Bolsista pela Unicesumar no programa de Mestrado. E- mail:[email protected] 186 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

O presente trabalho pretende abordar o aborto sobre a perspectiva dos direitos fundamentais e os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, imprimindo nossas considerações sobre o tema em questão. Importante salientar que, além da discussão sobre o assunto, apontando essa ou aquela tendência, baseada em aspectos formados a partir da realidade de cada individuo, é importante que para a formação de um posicionamento, haja a formação de um pensamento crítico a respeito do tema, o que pretende-se atingir com o presente trabalho.

10.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os Direitos Fundamentais podem ser entendidos como os direitos inerentes ao homem. No entanto, a grande evolução que sofreu tais direitos ao longo da história, dificultou a sua conceitualização, podendo ser entendido também como Direitos dos Homens, Direito Naturais, Direitos Individuais, Direitos Públicos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e Direitos Fundamentais do Homem (SILVA, 2004, p.175). Sendo assim, podemos conceituar Direitos Fundamentais como o conjunto de prerrogativas e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da liberdade, igualdade e dignidade entre os seres humanos. São núcleos invioláveis de uma sociedade política, sem os quais essa tende a perecer. Logo, podemos concluir que os Direitos Fundamentais evoluíram muito durante todo o processo de evolução da própria sociedade, adquirindo por muitas vezes nova eficácia, transformações em seu conteúdo, e consequentemente sua efetivação. Dado ser os Direitos Fundamentais uma categoria jurídica, estes por sua vez possuem características próprias, que unificam todos esses direitos. Portanto, podemos classificar estes direitos da seguinte forma (ARAUJO, 2008, p.118). A historicidade possui grande divergência na vasta doutrina com relação ao momento histórico em houve preocupação com direitos dos homens por parte do Estado e também da sociedade. Mas é incontestável que com a Magna Carta de 1215 trouxe a discussão dos direitos, tanto que deu embasamento para Bill of Rights e também para as declarações Norte Americana (ARAUJO, 2008, p.119) No entanto, é incontestável que com a Revolução Francesa é que os Direitos Fundamentais ganharam maior evidência, com a Declaração do Homem e do Cidadão de 1789, onde fez surgir os Direitos Humanos. Como vemos os Direitos Fundamentais, nasceram de dados momentos históricos em que também houve uma evolução da própria sociedade. A autogeneratividade dos Direitos Fundamentais, pode-se considerar que os Direitos Fundamentais são os pilares de qualquer constituição. Em toda constituição de uma lado encontramos os Direitos Fundamentais e de outro lado estes só existem para incorporam tais direitos aos elementos Conflitos de direitos fundamentais... // 187 constitutivos do Estado, a saber, sua população, seu governo e também sua finalidade. Portanto, dos Direitos Fundamentais são autogenerativos, pois sua institucionalização “[...] em uma ordem jurídica determinada não desqualifica o momento anterior de sua “jusnaturalização”, ou os aspectos relacionados à sua natureza [...] como dignidade da pessoa humama, igualdade, liberdade, fraternidade” (ARAUJO, 2008, p.120) A limitabilidade dos Direitos Fundamentais, de acordo com o doutrinador Luiz Alberto David de Araújo, podemos entender que tais direitos não são absolutos, mais sim limitáveis. Logo, o comando de sua aplicabilidade não pode resultar na aplicação da norma jurídica em toda sua extensão e alcance (ARAUJO, 2008, p.121). A irrenunciabilidade significa que os Direitos Fundamentais são irrenunciáveis, pois são inerentes ao ser humano. Essa condição, por si só, torna o ser humano dignitário de direitos fundamentais (ARAUJO, 2008, p.125). Há ainda a Concorrência de Direitos Fundamentais, eis que, além de irrenunciáveis os Direitos Fundamentais são também acumuláveis pelo homem. Tal afirmação faz sentindo de ser porque pode-se “[...] encontrar proteção simultânea em duas ou mais normas constitucionais que abriguem direitos fundamentais” (ARAUJO, 2008, p.125). Além das características intrínsecas, os Direitos fundamentais também possuem como bem ensina a boa doutrina, características extrínsecas, a saber:

I – rigidez constitucional, visto que suas normas, clausuladas na Constituição Federal, submetem-se a um processo mais gravoso de modificações, além de inocularem no sistema um dever de compatibilidade vertical de todas as normas constitucionais; II – direitos e garantias individuais clausulados em normas pétreas conforme o disposto no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, o que torna essa espécie de Direitos Fundamentais impermeável mesmo a eventuais reformas da Constituição; III – indicação de aplicabilidade imediata de seus preceitos, consoante o disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal (ARAUJO, 2008, p.126).

Diante ao apresentando, podemos constatar que os Direitos Fundamentais, são direitos basilares de qualquer constituição, inclusive a pátria, e ao serem recepcionadas na norma máxima, estão sujeitas a poucas modificações, pois são clausulas pétreas, uma vez que asseguram direitos inerentes ao homem.

10.3 DIREITO À VIDA: O CASO DO ABORTO

O Código Criminal do Império do ano de 1830, não tipificava o aborto praticado pela própria gestante como crime. Já o Código Penal do ano de 1890, fez a distinção de aborto caso houvesse ou não a expulsão do feto, e possuía forma qualificada se ocorresse à morte da gestante. Por sua vez o 188 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Código Penal de 1940, que alias está em vigor nos dias de hoje, tipifica três figuras do aborto, a saber: o provocado (art. 124 CP), aborto sofrido (art. 125 CP) e o aborto consentido (art. 126 CP) (BITENCOURT, 2008, p.133). Em tais artigos do Código Penal pátrio, assim como em nossa Constituição Federal de 1980, o que se busca é a proteção em sua integralidade do ser humano, desde o momento de sua concepção e formação até o momento de sua morte, ressaltando que o artigo 5º de lei máxima, assegura que o direito à vida é inviolável a todos são seus titulares. Torna-se evidente, portanto, que o conceito de vida em sua perfeição, não pode ser vista apenas pela vida humana independente, como também a vida intra-uterina (GONÇALVES, 2005, p.34). Medicamente falando, podemos entender o aborto como sendo a interrupção prematura do feto em desenvolvimento, antes de se tornar o seu nascimento viável, e pode ser entendido sob diversos prismas: ameaça de aborto, aborto acidental, aborto espontâneo, aborto habitual, aborto induzido, aborto completo, aborto criminoso, aborto induzido e por fim aborto frustrado (GONÇALVES, 2005, p. 34). Quando se fala em aborto o bem jurídico tutelado é a vida do ser humano em formação, mas não se trata de crime contra a pessoa e sim a proteção do feto, que possui expectativa de vida e que, portanto, encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico BITENCOURT, 2008, p.134). A grande problemática do tema em apreço, é que existe grande discussão doutrinaria a cerca do momento em que se dá o inicio da vida. Biologicamente falando, o termo inicial da gestação é a fecundação, em contrapartida sob o olhar jurídico a gestação tem inicio com a implementação do óvulo fecundado no endométrio, pela nidação, ou seja, a fixação do óvulo no útero (GONÇALVES, 2005, p. 36). Um tema bastante polêmico que envolve a questão do aborto, é o aborto de bebês com anencefalia, questão que será devidamente abordada no tópico 5 deste trabalho, ao realizarmos as considerações sobre a ADPF 54. A questão da legalização do aborto é bastante polêmica, e pode abrir discussão para outros tantos pronunciamentos judiciais, tais como a interrupção da gravidez apenas por um ato de seletividade, ou até mesmo práticas mais descabidas do que esta, assim como ensina a doutrinadora Maria Helena Diniz, bem citada pela professora Juliana Rui Fernandes dos Reis Gonçalves, em sua tese de mestrado, que observa que se a deficiência física fosse motivo para eliminação de fetos, leia-se vida, o que deveríamos fazer com as pessoas que adquirem tal enfermidade ao longo da sua existência? Seguindo a lógica, matá-los? E o que dizer do aborto eugênico, que poderia compreendido como eutanásia? E se vislumbrarmos o futuro, se a legalização do aborto eugênico fosse uma realidade em nosso país, seria perfeitamente cabível a eutanásia para pessoas com deficiência mental, para velhos improdutivos e doentes, e tantas outras possibilidades alegadas pela “caridade” de filhos, pais e responsáveis desses seres humanos? É Conflitos de direitos fundamentais... // 189 necessário proteger a vida, em sua integralidade, seja ela intra ou extra- uterina (GONÇALVES, 2005, p. 39). Logo, a questão abordada no filme O Desafio da Lei, sobre a dúvida entre a liberdade de escolha e o direito à vida, é bastante interessante sob o ponto de vista jurídico. O apontamento sobre a liberdade da mulher para decidir quando terá ou não uma gravidez ou que o direito à vida é um sim um direito inviolável, e, portanto, goza de tal preceito, é uma discussão que não deve ser vista apenas do ponto de vista religioso, social mais sim jurídico, observando as consequências jurídicas de tais situações. Após as devidas considerações sobre o aborto, conclui-se que, nenhum direito é maior do que o direito à vida, que não há razão de ser de tantos outros direitos tidos como fundamentais, se não estiver resguardado o direito a vida, antes de qualquer coisa, pois é para o ser humano, para a sua qualidade de vida é que temos os outros direitos fundamentais.

10.4 DIREITO À LIBERDADE: UMA OPORTUNIDADE DE ESCOLHA DA MULHER?

A Constituição Federal brasileira garante, em seu artigo 5º o direito á vida, o princípio da igualdade, legalidade, proibição de tortura, liberdade manifestação de pensamento, liberdade de consciência, crença e culto, liberdade de atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação e indenização em caso de dano, inviolabilidade domiciliar, sigilo de correspondências e comunicações, liberdade profissão. Liberdade de informação, liberdade de locomoção e etc. Dentre esse direitos elencados no art. 5º da Constituição Federal Brasileira será abordado especialmente o direito à liberdade. Como está disposto no artigo 5º, existe o direito à liberdade de locomoção, de culto, de consciência, de atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação e a liberdade de profissão. Não há no direito brasileiro um princípio que diz sobre liberdade dos atos dos indivíduos, ninguém pode fazer o que constitui crime pela lei penal e as leis esparsas, mas do mesmo jeito existem pessoas que o fazem. Conforme o disposto no art. 124 ao 128 do código penal, o aborto não é permitido no Brasil salvo nos casos expressos no art. 128, sendo assim, não existe a liberdade de escolha, no direito brasileiro, de uma mulher em fazer o aborto ou não. No direito penal brasileiro, o legislador autoriza o aborto nas hipóteses do art. 128, incisos I e II, sendo o aborto necessário e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro. O aborto necessário ou terapêutico é aquele consistente na intervenção cirúrgica realizada com o propósito de salvar a vida da gestante, baseando-se no estado de necessidade. Neste não precisa do consentimento da gestante. O aborto sentimental ou humanitário é aquele praticado no caso de gravidez resultante de estupro, precedido de consentimento da gestante, ou quando esta for incapaz, de seu representante legal, conforme art. 128 inciso II. Esta é uma norma incriminadora excepcional, logo não é possível a sua aplicação por analogia para abranger 190 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade casos em que a gravidez seja decorrente de outro delito sexual, mesmo que em benefício do réu (PRADO, 2005). A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo muito comum a sua realização entre os povos hebreus e gregos. Em Roma, a lei das XII tábuas e as leis da República não disciplinavam nada sobre o aborto, pois o feto era considerado parte do corpo da gestante e não como um ser autônomo. Dessa forma, a mulher abortava nada mais fazia que dispor do próprio corpo. Com o cristianismo o aborto passou a ser efetivamente reprovado no meio social, tendo os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio reformado o direito e assimilado o aborto criminoso ao homicídio (CAPEZ, 2007, p. 128). O aborto é um ato agressivo que terá repercussões contínuas na vida da mulher. (PEREIRA, 2009) João Baptista Herkenhoff, escritor e professor livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo, explica que o aborto pode ser visto sob duas óticas; a primeira como lícito, onde a mulher tem o direito de dispor sobre o seu próprio corpo, onde a mulher tem direito ao próprio corpo mas esse direito não lhe dá a faculdade de dispor da vida do feto. A segunda onde o aborto não seria lícito porque o feto não é apenas uma expectativa de vida, o feto é uma vida humana em desenvolvimento. O direito da mulher ao próprio corpo não lhe permitiria eliminar a vida de um filho que está para nascer. O aborto em sua ótica individualista, aparece como um direito de liberdade onde a mulher tem o direito de dispor de seu corpo, de si mesma. Se ela quiser ter um filho ou não, e ninguém mais poderá fazer isso por ela, nem impor que faça algo que não queira. Mas, no caso em questão, estaria a mulher decidindo acerca de uma outra vida, que não é sua, mas que advém dela. A Constituição Federal garante o direito à vida, cabendo ao Estado assegurar esse direito em sua dupla acepção, onde a primeira é o direito de continuar vivo e a segunda é a de se ter a vida digna quanto à subsistência. Ninguém pode ser privado arbitrariamente de sua vida, esse direito que é o primeiro da pessoa humana, tem sua concepção atual conflitos com a pena de morte, as práticas abortivas e a eutanásia (MORAES, 2007, p. 134). Quando se está na presença de uma questão que embate com os direitos de alguém, como no caso do aborto, não bastam recomendações, mas é necessário recorrer a prescrições e mesmo a proibições. O direito diz respeito à relação que se manifesta em dinâmicas de tipo social. Compete- lhe, de fato, tratar com seriedade as relações de tipo social, defendendo sempre os sujeitos mais fracos e inocentes contra os abusos ou prepotências dos mais fortes. Sendo assim, o feto, dentro do útero da gestante, não tem como se defender, não tem como se manifestar acerca da decisão da gestante em fazer o aborto, por esse motivo que o direito tem o dever de tutelar o aborto, proibindo que o mesmo seja feito como mero ato decisório de um indivíduo que escolheu não ter uma criança neste momento. Ninguém tem o direito de decidir sobre a vida e a morte de outrem, nem mesmo a mãe, pois esta ao conceber a vida está apenas emprestando o seu corpo para que outro nasça. É assim o ciclo natural da vida. O direito Conflitos de direitos fundamentais... // 191 de liberdade do indivíduo está atrelado ao direito de locomoção, de pensamento, de crença e culto, de associação e etc., mas não ao direito de escolher sobre a vida de um ser que não pode ainda se defender. A autonomia da vontade é faculdade do indivíduo, sendo um ser racional, o mesmo tem liberdade escolher de acordo com sua preferência, entre fazer uma coisa e outra. Significa basicamente o reconhecimento de um direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. A autonomia da vontade prisma por defender as escolhes de cada ser humano, fazendo escolhas quês digam respeito à sua vida e ao desenvolvimento humano. Por outra lado, há a consciência do indivíduo em sua noção de auto-responsabilidade, onde cada um é responsável pelos seus atos. A autonomia da vontade se refere, para esta que subscreve, apenas aos atos de decisão sobre o próprio indivíduo, sendo considerado o feto, um outro ser, inerente daquele que o carrega. Portanto, o princípio da autonomia da vontade não se aplica à liberdade da mulher em escolher ou não ter o filho.

10.5 RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE APLICADAS AO CASO DO ABORTO.

10.5.1 Razoabilidade

Existem três definições de razoabilidade que se destacam, onde a razoabilidade é utilizada como diretriz, são elas:

a) exigência da relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral; b) exigência de uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir; c) exigência de uma relação de equivalência entre duas grandezas (AVILA, 2005, p. 101).

Desta forma, um ato só será razoável quando houverem fatos que o embasem; quando os fatos guardem relação lógica com a medida tomada; quando mesmo existente alguma relação lógica, houver adequada proporção entre uns e outros; quando se assentou em argumentos ou em premissas, explicitas ou implícitas que possibilitem do ponto de vista lógico, a conclusão deles extraída (ZANCANER, 2001, p. 04). O princípio da razoabilidade teve início com a ideia de razoabilidade dos doutrinadores norte-americanos, tendo como procedência o princípio do devido processo legal. Para Hélio Cardoso o princípio da razoabilidade “[...] encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o 192 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade "aquilo que não pode ser"”. Por outro lado, Tathiana Amorim aponta os problemas dos processos criminais que infringem os

[...] direitos fundamentais do particular e em discrepância com o princípio da razoabilidade trazem à baila o problema do laxismo penal, onde são latentes a desproporcionalidade existente entre o fato cometido, as provas carreadas no processo e a decisão proferida pelo magistrado (AMORIN, 2009).

A Constituição Brasileira de 1988 não prevê expressamente o princípio da razoabilidade. Entretanto, isso não significa que este princípio esteja afastado do sistema constitucional pátrio, uma vez que pode-se utilizar alguns dispositivos tacitamente. A Constituição da República, através da Emenda Constitucional 45, consagrou o princípio da razoabilidade como um corolário dos julgamentos do Poder Judiciário, seguindo a tradição do Pacto de San José da Costa Rica. A Carta Magna em seu artigo 5°, inciso LXXVIII dispôs a seguinte redação: “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. O princípio da razoabilidade compreende, portanto, não só a análise da coerência dos atos jurídicos, a verificação da observância de todos os princípios e normas componentes do sistema jurídico do qual fazem parte quando os atos foram editados (SOUZA, SAMPAIO, 2003). Encontra-se positivado o princípio da razoabilidade no capítulo de direitos e garantias individuais, no artigo 5o., inciso LIV, como princípio do devido processo legal (SOUZA, SAMPAIO, 2003). A Suprema Corte americana começou a utilizar o princípio da razoabilidade no âmbito processual, evidenciado que a cláusula do devido processo legal ampliou os seus efeitos na esfera processual penal, onde antes atuava inicialmente, para o campo do processo civil, e depois para todo o complexo de relações entre o Estado e os homens que vivem em sociedade.

10.5.2 Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade é um princípio constitucional implícito, pois deriva da Constituição Federal de 1988, no entanto, não esta expresso nela. Estudando terminologicamente, a palavra proporcionalidade esta traz uma conotação de proporção, adequação, prudentencia, medida justa e apropriada à necessidade exigida pelo caso presente. Diante disto, o princípio da proporcionalidade é aquele que orienta o homem na busca da medida jurídica mais justa para o caso concreto, tendo como finalidade utilizar o bom senso na interpretação dos princípios e normas jurídicos, e evitando sacrifício do Estado e da sociedade (ARAUJO, 2008, p. 89). Conflitos de direitos fundamentais... // 193

Ademais:

Para a cominação e imposição de pena, agragam-se além dos requisitos de idoneidade e necessidade, a proporcionalidade. Pela adequação ou idoneidade, a sanção penal deve ser um instrumento capaz, apto ou adequado à consecução da finalidade pretendida pelo legislador (adequação no meio e fim). O requisito da necessidade significa que o meio escolhido é insdispensável, necessário, para atingir o fim proposto, na falta de outro menos gravoso e de igual eficácia. O princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, exige um liame axiológico e, portanto, graduável, entre o fato praticado e a cominação legal/conseqüência jurídica, ficando evidente a proibição de qualquer excesso. Desso modo, no tocante à proporcionalidade entre os delitos e as penas, deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade do fato ilícito praticado, do injusto penal (desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta. A pena deve estar proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente (PRADO, 2005, p. 30-31).

Resta, por fim, que o princípio da proporcionalidade traduz uma exigência de compatibilidade entre o fim almejado pela norma e os meios por ela enunciados para sua execução.

10.5.3 Adequação

Segundo Antônio Baltazar o princípio da adequação tem intima relação com “[...] a atividade do poder público deve ser apropriada para a consecução dos objetivos pretendidos pela Constituição Federal” (BALTAZAR, 2013). Desta forma, necessária se faz a adequação pelos membros do Poder Público ao julgar, mediante a consideração das circunstâncias existentes no momento da escolha e de acordo com o modo como contribui para a promoção do fim (AVILA, 2005, p. 129). O Supremo Tribunal Federal tem entendimento jurisprudencial de que, por um lado, a exigência de evidência na declaração de invalidade de uma medida por ser ela inadequada e, por outro, a circunstância de o exame de adequação - como, de resto, de qualquer postulado - sempre envolve a violação de algum princípio constitucional. Enfim, o princípio da proporcionalidade deve “[...] estabelecer uma relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios que são levados a cabos” (SILVA, 2013).

10.5.4 Necessidade

Para, Alan Silva “[...] por necessidade, segundo elemento da proporcionalidade, entende-se que a medida não pode exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja. Lecionam, 194 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade ainda, alguns autores dizendo que o ato deve ser realizado pelo meio menos gravoso” (SILVA, 2013). A constatação da existência de meios que sejam alternativos quando encontra-se um conflito entre princípios e normas do ordenamento jurídico vigente, e que tenham capacidade de causar da mesma maneira o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados. Desta forma, o exame da necessidade envolve o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim e o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados (AVILA, 2005, p.130). A necessidade diz respeito, portanto, ao fato de ser a medida restritiva de direitos indispensável à preservação do próprio direito por ela restringido ou a outro em igual ou superior importância, isto é, na procura do meio menos nocivo capaz de produzir o fim propugnado pela norma em questão (SOUZA, 2013). A proporcionalidade em sentido estrito faz referência a um sistema de valoração, uma vez que ao se garantir um direito inúmeras vezes é preciso restringir outro. Observa-se que o direito juridicamente protegido por determinada norma apresenta conteúdo valorativamente superior ao restringido. O juízo de proporcionalidade admite que o resultado obtido com a intervenção na esfera de direitos do particular deve ser proporcional a coação exercida sobre esta (SOUZA, 2013). Ainda, na visão de Willis Santiago Guerra Filho “[...] pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens” (GUERRA FILHO, 1999, p. 69-71).

10.5.5 Considerações sobre o filme “o desafio da lei”

A problemática do filme tem início com a transferência para os Estados a responsabilidade de legislar sobre o direito ao aborto feito pela Suprema Corte dos Estados Unidos, e o Estado do Alabama declara ilegal sua prática. Face a essa decisão, a justiça estadual condena Virginia Mapes por assassinato em 1º grau, por ter decidido interromper sua gravidez. Seu advogado, então, recorre à Suprema Corte do país na esperança de conseguir pôr abaixo a decisão tomada na instância inferior e poder, assim, livrar sua cliente da condenação. O advogado Joseph Kirkland é nomeado Juiz da Suprema Corte americana, em substituição a um colega veterano que esta doente, exatamente quando o caso chega ao Tribunal. O tema central do filme é a dúvida entre a liberdade de escolha e o direito à vida. O que deve prevalecer: a liberdade de uma mulher para decidir quando terá ou não uma criança já concebida? Ou será que deve prevalecer o direito à vida de um feto, que mesmo dentro da barriga da mãe já possui capacidade de sentir e de aprender, que já é uma vida, um ser, concebido Conflitos de direitos fundamentais... // 195 por Deus e que, se não fosse abortado, poderia ser adotado e ser a alegria de outras pessoas que fossem biologicamente impedidas de ter filhos? Outro ponto interessante levantado no filme, diz respeito à adoção. Diga-se de passagem, que a filha de Kirkland é adotada, e a mãe biológica inclusive resolve interceder junto a Joseph Kirkland para pedir que ele pense na filha e não legalize o aborto, pois se este fosse legal, ela o teria praticado. Kirkland durante sua decisão levanta outro ponto importante em relação as pessoas do grupo Pró-Vida e do grupo Pró-Escolha, pois estas esqueceram de pensar nas crianças que cada dia mais chegam aos orfanatos e lá ficam muitas vezes por mais de quinze anos, e quando de lá saem, não possuem outro endereço senão a rua. Portanto, que se ofereçam cada vez mais condições que facilitem o processo de adoção, bem como que se pense bem antes de cometer erros que poderiam ser evitados, mas que acaba tendo, como solução, a morte de um ser humano.

10.6 ESTUDO DO CASO BRASILEIRO ADPF 54

A ADPF nº 54 questionou perante o STF a constitucionalidade da tipicidade e, também a ocorrência do crime de aborto, na antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). O STF descriminalizou o aborto de anencéfalo, dando o direito de escolha a gestante sobre a continuidade ou não da gestação. Os ministros que entenderam pela descriminalização desta prática fundamentaram no direito à vida do feto anencéfalo que não terá chance de sobreviver e, caso sobreviver, será por pouco tempo, não podendo prevalecer a qualquer custo em detrimento dos direitos fundamentais da gestante: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, integridade física, psicológica e moral. Sobre o caso que ensejou a ADPF nº 54, foi publicado na Revista Época, da editora Globo, que a jovem Gabriela Oliveira Cordeiro, 18 anos, residente em Teresópolis (RJ), obteve do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) a permissão para fazer algo que poria fim a um longo e penoso sofrimento: abortar sua filha anencéfala. Logo após, um sacerdote Católico impetrou um habeas corpus em favor do nascituro. Em 26 de novembro, a Ministra Laurita Vaz cassava a decisão do TJRJ e proibia a prática do aborto. Em 17 de fevereiro de 2004, a Quinta Turma do STJ confirmava a decisão da Ministra de impedir o aborto. As feministas, que em 26 de fevereiro de 2004 ingressaram perante o Supremo Tribunal Federal (STF) com um Habeas Corpus (HC 84025) em favor da gestante. Mas, em 4 de março de 2004, os Ministros receberam a notícia de que a criança, que fora batizada com o nome de Maria Vida, já havia nascido em 28 de fevereiro de 2004, e que havia sobrevivido sete minutos após o nascimento (BRUM, 2013). Averiguado clinicamente, a anencefalia é uma malformação que faz parte dos defeitos de fechamento do tubo neural (DFTN). Quando o defeito se dá na extensão do tubo neural, acontece a espinha bífida. Quando o 196 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade defeito ocorre na extremidade distal do tubo neural, tem-se a anencefalia, levando a ausência completa ou parcial do cérebro e do crânio. O defeito, na maioria das vezes, é recoberto por uma membrana espessa de estroma angiomatoso, mas nunca por osso ou pele normal. A anencefalia é uma malformação incompatível com a vida. Apenas 25% dos anencéfalos apresentam sinais vitais na 1ª semana após o parto. A incidência é de cerca de 2 a cada 1.000 nascidos vivos. O seu diagnóstico pode ser estabelecido mediante ultra-sonografia entre a 12ª e a 15ª semana de gestação e pelo exame da alfa-fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico, que está aumentada em 100% dos casos em torno da 11ª a 16ª semana de gestação. A gravidez do feto anencéfalo resulta em inúmeros problemas maternos durante a gestação (FREITAS, 2013). A Arguição de descumprimento de preceito fundamental questionou o STF sobre possíveis lacunas existentes no controle de constitucionalidade das leis. Com o argumento de que ao se proibir o aborto de bebês anencéfalos, está-se violando a dignidade humana das gestantes, Luís Roberto Barroso, que impetrou o ADPF nº 54 pediu que o STF interpretasse os dispositivos do código penal relativos ao aborto, de tal modo que considerasse atípica a expulsão de anencéfalos do útero materno (CRUZ, 2013). O Supremo Tribunal Federal, em questão de ordem e por maioria dos votos, reconheceu o cabimento de arguição de descumprimento de preceito fundamental para analisar lei anterior à Constituição Federal. Foram apontados pelos Ministros que foram violados os preceitos dos artigos 1º IV, dignidade da pessoa humana, 5º, II, princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, 6º caput e 196, direito à saúde, todos estes da Constituição Federal. Também foram analisados os arts. 124, 126 caputs, e 128 I e II, do código penal, requerendo a interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do Código Penal, explicitando que os mesmos não se aplicam ao caso de fetos anencéfalos. Entre os votos divergentes, o da Ministra Ellen Gracie chama a atenção em especial para a circunstância de que para julgar procedente essa ADPF o STF teria de usurpar a competência dos outros poderes. Aduziu a Ministra que: “O objeto da ação corresponde inegavelmente à tentativa de obter do STF manifestação jurisdicional que acrescente ao ordenamento penal uma nova hipótese de excludente de ilicitude da prática de abortamento. Ou seja, pede-se ao Tribunal que atue como legislador positivo” (MORAES, 2007, p. 76). Foram vencidos os Ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Ellen Gracie que não conheciam da ação por considerar que o pedido de interpretação conforme dos artigos implicaria ofensa ao princípio da reserva legal, criando mais uma hipótese de excludente de punibilidade. Mas, por maioria de votos, pelo Pleno do STF foi conferida liminar no sentido de sobrestar “todos os processos e decisões não transitadas em julgado e reconheceu o direito constitucional da gestante de se submeter à operação terapêutica de parto Conflitos de direitos fundamentais... // 197 de fetos anencéfalos a partir de laudo médico que atestasse a deformidade” (MORAES, 2007, p. 78). Luiz Flávio Gomes explica em artigo publicado na revista síntese de direito penal e processual penal que o aborto por anencefalia, autorizado pelo ministro Marco Aurélio do STF, não existe razão séria e razoável que justifique a não-autorização do atoo quando se sabe que o feto com anencefalia não dura mais que dez minutos depois de nascido. A convenção americana dos Direitos Humanos é o ponto de partida do debate, onde diz que ninguém poderá ser privado da vida arbitrariamente. No entanto, quando existe um motivo sério e forte que justifique eliminar essa via, que é o caso dos anencéfalos, não há como o Direito não amparar essa situação. Os que sustentam o respeito à vida do feto devem atentar que a vida ou a qualidade de vida do feto está envolvida com o feto mal formado. No direito penal brasileiro o legislador autoriza o aborto no caso de estupro, chamado de aborto sentimental ou humanitário, sendo assim, nada justifica que a mesma regra não possa ser usada no caso de fetos anencefálicos. O autor ainda explica que atualmente as pessoas ainda não conseguiram distinguir o que é dogma e o que é direito, e ainda sublinha Luís Roberto Barroso dizendo que “[...] as leis não podem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja” (GOMES, 2004, p. 35). Os países em desenvolvimento, como o Brasil, Peru, Paraguai, Venezuela, Argentina, Chile e Equador ainda entram em problemáticas quanto ao discutir sobre o aborto de fetos anencefálicos. Em contrapartida, os países desenvolvidos já autorizam tal prática. No tocante ao feto anencéfalo, poderá a gestante esperar até o último mês de gestação, caso queira, para que este feto nasça, mas em contrapartida, a mesma será “condenada” a abrigar dentro de si um tormento que a aniquila, brutaliza, desumaniza e destrói emocional e psicologicamente, visto que, ao contrário de outras gestantes que se preparam para dar a luz à vida, esta não terá o prazer de ver o seu filho crescer e amadurecer (BITTENCOURT, 2008). O movimento Pró-vida de Anápolis defende que o aborto de feto anencéfalo não poderia ser tolerado no Brasil pelo fato de o nascituro ter uma vida, uma alma. Estes defendem que a gestante não pode interromper a sua gravidez pelo fato de que essa não é a sua escolha, e sim uma escolha divina. Sobre esse tema, há o caso da jovem Marcela de Jesus Ferreira1, que,

1 Após a alta hospitalar, Marcela foi com sua mãe Cacilda Galante Ferreira morar em uma casa na cidade. A necessidade de estar perto de um lugar com assistência médica impediu-as de irem para o sítio da família, onde vive o pai de Marcela, agricultor, Sr. Dionísio Justino Ferreira, com as duas filhas do casal: Débora (19 anos) e Dirlene (16 anos). Em 20 de novembro de 2007, Marcela comemorou seu primeiro aniversário. Em 26 de março de 2008, o Diácono Fábio Costa, que a havia batizado na Santa Casa, logo após o nascimento, completou os ritos do Batismo. Foram padrinhos o prefeito e a primeira dama de Patrocínio Paulista. A saúde de Marcela parecia muito boa até as 7 horas do dia 1º de agosto de 2008, quando ela vomitou após tomar o leite dado por sua mãe pela sonda nosogástrica. Ao perceber que sua filha ficou arroxeada e com dificuldade de respirar, Sra. Cacilda levou-a imediatamente à Santa Casa de Misericórdia de Patrocínio Paulista, onde foi feita uma radiografia que constatou pneumonia aspirativa total do 198 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade conforme explicita o movimento Pró-vida, era anencéfala e viveu durante 1 ano, 8 meses e 12 dias, superando as expectativas dos médicos. Por outro lado, defendem alguns médicos, que Marcela na verdade não era anencéfala, por isso que a mesma conseguiu sobreviver por tanto tempo. Conforme explica a pediatra Márcia Beani Barcellos, a menina "não tem anencefalia clássica", mas " outro tipo de anencefalia" (IWASSO, 2007). Conforme explica a médica:

Ela é um bebê sem encéfalo, essa região do cérebro dela está preenchida por líquido, mas não é um exemplo da anencefalia descrita na literatura médica porque ela, de alguma maneira, ainda interage com a mãe, interage com o ambiente, seu tronco cerebral realiza funções. Um caso clássico da má-formação não teria sobrevivido por tanto tempo ou estaria vegetando, o que não é o caso dela desde que nasceu (IWASSO, 2007).

Com essa explicação, houve muitas divergências entre os pró-aborto e os pró-vida, uma vez que nem os médicos da atualidade sabem ao certo dizer que tipo de anencefalia é esta no caso de Marcela, pois após este relato de sua pediatra, muitos outros médicos vieram à tona confrontando a tese de que Marcela não era anencéfala. Até hoje não se sabe ao certo se Marcela era anencéfala ou não, muitas são as teses a respeito, mas o que se pode perceber é que ainda não há um consenso sobre o tema de aborto de fetos anencéfalos. Por um lado, aqueles que são contra o aborto defendem que os médicos não estão aptos a diagnosticar se o feto é anencéfalo ou não ainda no ventre da gestante, e que muitos destes fetos poderiam viver durante um tempo, trazendo alegria aos seus familiares. De outro lado estão os abortistas, que defendem os direitos da gestante, que se a mesma decidir fazer um aborto de seu filho anencéfalo a mesma tem esse direito, em razão do princípio da dignidade humana. Essa gestante não teria que carregar esse filho que não teria condições de sobreviver fora do útero, sendo assim o aborto de feto anencéfalo totalmente aceitável. A ADPF nº 54 dirimiu alguns conflitos, porém não conseguiu pacificar o entendimento deste caso, eis que descriminalizou o aborto de anencéfalos, mas ainda há muita discussão acerca do tema. Há que ser estudado caso a caso, pois existem as gestantes que aceitam carregar este feto durante os nove meses, para dar o maio tempo possível de vida ao seu filho, e tem

lado direito. Dra. Regina Helena crê que a pneumonia tenha sido causada por aquele vômito ou por um vômito do dia anterior. Às 12h30min, Marcela sofreu uma parada cardiorrespiratória, mas recuperou-se através de massagens e de um micro-ressuscitador. A médica pediu então uma vaga na Santa Casa de Misericórdia de Franca, ao mesmo tempo em que perguntou para a mãe: “Cacilda, você está preparada?”. A resposta foi firme: “Eu sempre estive preparada. Ela é minha enquanto Deus quiser. Ela foi um anjo que Deus me deu”. Às 14h15min foi comunicada a existência de uma vaga em Franca. Marcela e Sra. Cacilda foram à Santa Casa daquela cidade, acompanhados da médica pediatra Dra. Márcia Beani. Internada na UTI daquele hospital, Marcela iria falecer às 22 horas. Disponível em: . Acesso em: 21 .jun. 2013. Conflitos de direitos fundamentais... // 199 aquelas que não aceitam isso e encaram esse fato como angustiante, sendo cruel esperar nove meses para ver o seu filho morrer. A decisão final desta ADPF resultou na descriminalização do aborto de anencéfalo, dando o direito a mulher de escolha, se esta quer ou não continuar com a gravidez. O placar final foi de 8 a 2, e o caso demorou 8 anos para ser julgado.

10.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do trabalho ora realizado pode-se concluir que o legislador e os membros do poder judiciário ao estudarem o caso do aborto se deparam com grande divergência doutrinária e social, uma vez que este assunto atinge princípios e valores morais previstos na Constituição Federal. A aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no caso do aborto tem como objetivo principal estudar os princípios, valores e normas, apontando seus pontos positivos e negativos e, por fim, chegando a um consenso sobre o aborto ser crime ou não. O aborto não é um ato de escolha da mulher, pois a liberdade do ser humano não está incluída em se decidir sobre a vida de outra pessoa. E sim sobre meros atos de disposição de seu corpo, desde que não atinja um outro. A questão do aborto deve ser analisada caso a caso, pois existem muitas divergências quanto à prática desse ato quanto aos fetos que irão nascer com problemas, por exemplo as divergências advindas da ADPF nº 54. De um lado estão aqueles que são contra o aborto defendendo a vida a qualquer custo, mesmo que isso irá causar um sofrimento angustiante à gestante. De outro lado estão os pró aborto, onde se prisma pela dignidade humana da pessoa, onde a mulher tem todo o direito de decidir se quer levar adiante uma gravidez que seu filho irá morrer logo após o parto ou não. O aborto de feto anencéfalo deve ser estudado caso a caso, conforme a vontade da gestante, desde que isso não se torne motivo para outras gestantes cometerem aborto de feto que tenham algum outro problema de formação. Portanto, a conclusão que fica é que sim, o direito à vida é maior que o direito à liberdade, mas que em situações como a anencefalia é necessário um estudo do caso em concreto para tomar qualquer posicionamento, e que para tanto o legislador pátrio, o poder judiciário, a sociedade e os operadores do direito, devem formar seu posicionamento não só pelos aspectos morais, éticos e religiosos, mas também critico e científico.

10.8 REFERÊNCIAS

ANDRADE, Manoela. Direitos Fundamentais: conceito e evolução. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013. 200 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

ARAUJO, Luiz Alberto David e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008 BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal, dos crimes contra a pessoa. 8. ed. Saraiva: São Paulo: 2008. BRUM, Eliane. A Guerra dos Embriões. Revista Época. Ed. 304. 13. mar. 2004. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. CAPEZ. Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. A Fraude da ADPF 54. Provida Anápolis. 11. jun. 2005. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. FREITAS, Ana Clélia. Enfoque médico-jurídico, baseado em resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pareceres do STF, de maneira a oferecer uma alternativa jurídica para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Direito Net. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013. GOMES, Luiz Flávio. Nem todo aborto é criminoso. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Nº 28, out./nov. 2004.p.35 GONÇALVES, Juliana Rui Fernandes dos Reis. O direito à vida e o direito de um viver melhor - Um conflito de Direitos Fundamentais. 2005. 370f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá. HERKENHOFF, João Baptista. Aborto: o legal e o existencial. In: Jus Navigandi. Teresina, ano 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. IWASSO, Simone; LEITE, Fabiane. Médica conclui que bebê nascido há um ano no interior não é anencéfalo. In: O Estado de S. Paulo. 15 nov. 2007. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. MORAES. Alexandre de. Direito Humanos fundamentais: teoria geral. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007. PEREIRA, Nuno Serras. Aborto: questão de consciência. Aldeia. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013. PRADO, Luiz Regis. Elementos de /Direito Penal: parte Especial. v.2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. TAVARES, André Ramos. Jornal Carta Forense. ADPF 54 19 de março de 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013.

= XI =

DIREITOS AUTORAIS: IMPACTOS DA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO E DOS HÁBITOS DE COMPARTILHAMENTO NA CIRCULAÇÃO DE BENS INTELECTUAIS

Priscylla Gomes de Lima* Marília Rodrigues Mazzola** Cláudio Manoel Rocha Pereira***

11.1 INTRODUÇÃO

A necessidade do homem de acumular informação é própria de sua natureza. Com a constante evolução da ciência e o desenvolvimento de novas tecnologias, surgem a cada dia inúmeras novas formas das pessoas se relacionarem e compartilharem informações e conteúdos, sendo cada vez mais comum o uso de recursos tecnológicos nas tarefas cotidianas, reflexo da sociedade da informação contemporânea. O desenvolvimento da internet mudou radicalmente os hábitos da sociedade, de modo que os usuários atualmente se comunicam e compartilham informações sem qualquer tipo de controle centralizado. Esse compartilhamento traz consequências não só para seus usuários, mas também para os criadores e detentores de obras intelectuais, disseminadas livremente por essas novas tecnologias. Neste contexto, o direito de proteção à propriedade intelectual do autor, um direito de primeira geração já enraizado na sociedade, que busca principalmente a proteção dos valores econômicos que sua obra pode gerar, deve se adaptar à nova realidade, mesmo que muitos autores ainda enxerguem a necessidade de exploração máxima do conteúdo de suas obras, restringindo ao extremo sua disponibilidade e acesso, justamente para garantir seu ganho econômico. Neste sentido, os dispositivos da legislação atual, mais especificamente a classificação da autoria, a obrigatoriedade de prévia

* Graduada em Administração de Empresas (2007) e em Direito (2012) pela Universidade Estadual de Londrina - UEL. Especialista em Direito do Estado - concentração Direito Constitucional (2012), pela Universidade Estadual de Londrina - UEL, e Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, com capacitação para o Ensino no Magistério Superior, pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus - FDDJ. Atua como advogada autônoma, com escritório próprio. ** Mestrado em andamento em Direito Civil. Universidade de São Paulo, USP, Brasil. Especialização em Direito Constitucional. (Carga Horária: 360h). Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Graduação em Direito. Universidade Estadual de Londrina, UEL, Brasil. *** Advogado, bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Araraquara (UNIARA), pós graduando em Direito do Agronegócio pelo Centro Uniiversitário de Araraquara (UNIARA) e pós graduando em Agronegócios (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP/ESALQ). 202 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade autorização de uso e a caracterização das formas de utilização das obras protegidas apresentam-se ineficazes no âmbito das redes de informação, gerando colisão entre direitos fundamentais: de um lado a garantia ao direito de propriedade, prevista nos incisos XXIX, XXVII e XXVIII do Art. 5º, XXII; e do outro, o direito à liberdade de expressão intelectual, artística e de comunicação, independentemente de censura ou licença, também consignado no Art. 5º, IX da Constituição Federal, além dos direitos à cultura, livre acesso à informação e ao desenvolvimento tecnológico. Neste âmbito, a proteção constitucional ao direito fundamental à informação compreende tanto os atos de comunicar, de informar, quanto os atos de receber livremente informações e conhecimento, direito também insculpido no Art. 5º, XIV. Assim, pode-se afirmar que não existe apenas o direito à liberdade de informação, mas também o direito de receber informação, o direito de ser informado. Já a diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. Ou seja, os elementos geradores desta colisão de direitos fundamentais são as próprias características das redes de informação referidas no presente estudo, além das novas regras sociais estabelecidas pelos usuários com relação à utilização de material protegido no processo criativo. Por esta razão, as seguintes questões devem ser colocadas ao operador do direito, para reflexão: Até quando o autor ou detentor de determinada obra intelectual conseguirá restringir o acesso das pessoas a ela? Até quando a lei protegerá os direitos do autor, direito individual, em prejuízo dos direitos coletivos, como por exemplo o direito de acesso à informação e ao conhecimento? Diante do quadro apresentado, em que a sociedade de informação mostra-se cada vez mais dinâmica e veloz, verifica-se que o direito de autor encontra-se em crise e que somente a sua adaptação à realidade digital permitirá a sua sobrevivência.

11.2 DIREITO DO AUTOR

Os direitos autorais dizem respeito às criações do intelecto humano. Criações, nos dizeres de Almeida (2012, p. 225), “[...] de caráter intelectual, artístico ou literário que dão origem a uma obra intelectual, visando proteger os seus autores de eventual uso incorreto ou irresponsável, além de garantir ao autor a possibilidade de explorá-las economicamente de maneira que achar mais conveniente”. Surgem necessariamente de uma obra de autoria definida, de conteúdo original e criativo. São direitos inseridos no ordenamento jurídico Direitos autorais... // 203 pátrio, em um rol não taxativo, dentro da espécie dos direitos da personalidade, e fazem parte do conjunto de valores do próprio indivíduo. Seu surgimento remonta aos tempos da Revolução Francesa, após a invenção da imprensa escrita:

O direito de autor surgiu como um privilégio inicialmente concedido aos editores para garantir um monopólio na comercialização de obras literárias. O aparecimento da imprensa foi fundamental para a construção do conceito de direito às criações literárias e artísticas. Com a Revolução Francesa, o privilégio anteriormente concedido ao editor passa a ser de titularidade do criador da obra. Em outras palavras, o autor é erigido à condição de cidadão e, em virtude disso, tem os seus direitos reconhecidos por lei. Tais direitos têm como pressuposto a necessidade de identificação do autor em sua obra intelectual, que passa a ser considerada uma extensão de sua personalidade (CARBONI, 2006, p. 1).

Classificados como direitos da personalidade na Convenção de Berna de 1886, relativa à proteção das obras literárias e artísticas, os direitos autorais conferem ao seu titular o direito ao uso exclusivo da obra em decorrência do ato criativo, e por isso são passíveis de produzir efeitos patrimoniais e valoração econômica, sendo ainda disponíveis e transmissíveis, transformando-se em patrimônio de quem os detêm. Nos ditâmes do Código Civil brasileiro, são direitos absolutos, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e vitalícios (GONÇALVES, 2013, p. 187), sendo que algumas dessas características podem sofrer limitações voluntárias. Segundo Carlos Alberto Bittar (1992, p. 153) e Antônio Chaves (1987, p. 17) apud Carboni (2001, p. 4-5), os direitos autorais podem ser conceituados como:

[...] o conjunto de prerrogativas que a lei reconhece a todo criador intelectual sobre suas produções literárias, artísticas ou científicas, de alguma originalidade: de ordem extrapecuniária, em princípio, sem limitação de tempo; e de ordem patrimonial, ao autor, durante toda a sua vida, com o acréscimo, para os sucessores indicados na lei, do prazo por ela fixado” , ou ainda “o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências.

No ordenamento jurídico brasileiro, o direito autoral é regulamentado principalmente pela Constituição Federal, pelo Código Civil, pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 e pelo Decreto nº 8.469/15, que regulamenta a Lei nº 9610/98 e a Lei nº 12.853/13, para dispor sobre a gestão coletiva de direitos autorais. No que diz respeito à Carta Magna, esta dispõe em seu Art. 5º, já no caput, acerca do direito de propriedade: “Art. 5º, Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, 204 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [..] (BRASIL, 1988, p. 3)”. E discorre acerca do direito de propriedade em muitos outros incisos ainda, a saber:

[...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; [...] (BRASIL, 1988, p. 3).

A Lei nº 9.610/98 regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes são conexos. Em seu Art. 3º, dispõe que os direitos autorais reputam-se como bens móveis, para os efeitos legais; no Art. 4º, disciplina que interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais; e ainda conceitua diversos institutos e figuras referentes ao tema (BRASIL, 1998, p.1). Para que a obra autoral possa ser protegida, esta deve possuir uma série de requisitos, dentre eles a inserção em um suporte, que, até o surgimento do mundo digital, era um suporte físico (BITTAR, 1981, p. 31-44, apud CARBONI, 2001, p. 169). Ocorre que atualmente as obras possuem novo suporte, uma vez que são difundidas através de novos meios, além do físico, meios estes que atingem um número muito maior de pessoas e em muito menor tempo, o que pode conferir notoriedade e visibilidade quase que instantâneas ao autor. Estes novos suportes são os meios digitais, nestes compreendidos as redes sociais de compartilhamento de informações, com milhões de usuários em todo o mundo e com a característica de acesso ilimitado às informações disponibilizadas por seus usuários. Entretanto, mesmo com as mudanças na forma de difusão das obras intelectuais, através de novos suportes, a legislação ainda se mantem no que diz respeito às limitações de cessão de direitos morais pelo autor (Art. 24 da Lei nº 9.610/98), e aos direitos patrimoniais (Art. 28 da Lei nº 9.610/98). Por esta razão, conceitos como a conservação da obra inédita; assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-lo ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; modificação da obra, antes ou Direitos autorais... // 205 depois de utilizá-la; e retirada de circulação de obra ou suspensão de qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem; são conceitos que podem entrar em conflito com a atual forma de comunicação e compartilhamento de obras intelectuais na sociedade de informação.

11.3 A SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

A sociedade sempre passou por transformações e evoluções, e as ações, hábitos e tendências desenvolvidos por seus membros são um reflexo do momento em que esta se encontra. Como exemplo, pode-se citar a evolução ocorrida desde a sociedade primitiva, onde os grupos sociais nômades sobreviviam da coleta e da caça, para um momento posterior, com a fixação em local determinado e o início das criações de animais e da estabilização com a agricultura, e após, passando à mecanização do processo de produção trazida com a Revolução Industrial, como momentos cruciais das mudanças de impacto vividas pela sociedade. Oliveira (2011, p. 1), relaciona mais detalhadamente os momentos de evolução social, da seguinte forma:

[...] na linha do tempo, verificamos a evolução de determinados elementos de dominação dos grupos no poder. No homem préhistórico: a descoberta e a posse do fogo; na sociedade grecoromana: a política e a arte da guerra; na idade média: a religião; nas grandes guerras: o poder bélico; no imperialismo: o controle das colônias; no capitalismo: os meios de produção; no mundo atual e globalizado: a informação. A informação, portanto, funciona como parâmetro das relações de poder do mundo contemporâneo, onde a globalização teve papel basilar para a construção da Sociedade da Informação.

Com a exploração do capitalismo chegando ao limite, a busca por conhecimento passou a ser uma necessidade para a melhoria das condições de trabalho e mobilidade social, de modo que a informação e o conhecimento passam a ser instrumentos primordiais:

Neste momento social, a principal fonte de riqueza deixou de ser material e passou para o campo intangível, sendo a informação a ser considerada como o bem mais valioso, ou seja, o sujeito que detiver maior contato com a informação, seja pelo desenvolvimento de novas tecnologias para o seu alcance e armazenamento lógico, seja pelo desenvolvimento acadêmico para o seu manuseio, se tornará por consequência uma pessoa bem sucedida (ALMEIDA, 2012, p. 222-223).

Hodiernamente, vive-se a Era da Informação, também chamada Sociedade de Informação. Rover & Winter (2002, p. 75), ressaltam que Os avanços das telecomunicações e da informática nos últimos anos revolucionaram a sociedade contemporânea, criaram novos padrões sociais, 206 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

moldaram novos comportamentos, redirecionaram a economia e deram um impulso definitivo à globalização. Essas transformações foram tão grandes e profundas que passamos a denominar a atual época como a Era da Informação ou, mesmo, do conhecimento.

Durante o período da Guerra Fria, os Estados Unidos já sabiam da importância deste bem tão precioso, e iniciaram o desenvolvimento de uma ferramenta eficaz na distribuição e repasse de infromações, que culminou no advento da internet. Segundo nos ensinam Juliana Evangelista de Almeida e Daniel Evangelista Vasconcelos Almeida (2013, p.192-193), e muito bem explanado por Cássio Augusto Barros Brant:

A internet foi criada, na década de sessenta, em razão da guerra fria. Os Estados Unidos, com receio de um possível ataque soviético desenvolveu a internet, através do Ministério da Defesa. Inicialmente, a internet tinha o cunho de um serviço militar e foi, aos poucos, entrando nos meios acadêmicos como instrumento de pesquisa de universidade. Com a privatização da telecomunicação americana, tornou-se viável a utilização nos outros setores da sociedade pela possibilidade de utilizá-la por fio telefônico (BRANT, 2010, p. 12).

No Brasil, a internet surgiu no final da década de 80, também restrita aos meios acadêmicos. Sua difusão para a população como um todo só ocorreu em 1995, quando o Governo Federal determinou sua liberação para o público em geral (BRANT, 2010, p. 12). Com o surgimento desta nova sociedade, a sociedade de informação, na qual o conhecimento é a principal força produtiva, têm-se mudanças não só na forma comportamental das pessoas, mas também “[...] nas categorias econômicas do trabalho, valor e capital” (CARBONI, 2010, p. 118), que influenciaram e influenciarão fortemente os direitos de propriedade do autor, especialmente considerados na forma como são hoje regulamentados pela legislação pátria. A facilidade de propagação de dados sem limites geográficos possibilitada pela internet aproximou as pessoas, e o compartilhamento de informações pela rede mundial de computadores criou uma nova sociedade, uma sociedade virtual, sem limites geográficos e de nacionalidade, inserida e consolidada nas relações cotidianas, especialmente no que tange aos aplicativos, redes sociais e de relacionamento, as ferramentas de busca e redes de compartilhamento de dados e informações que a internet hoje disponibiliza aos usuários. Como preleciona Capellari (2000, p. 40), pode-se afirmar que a Internet trouxe uma real democratização ao proporcionar a todos os indivíduos o acesso a bens culturais, tais como a música e as artes visuais, e também à informação e conhecimento, tais como economia, política, ciência, o que gerou uma verdadeira socialização massiva do conhecimento. E arremata, afirmando que

Direitos autorais... // 207

A informação passa a ser o motor das transformações [...] A combinação de satélites, televisão, telefone, cabo de fibra ótica e microcomputador enfeixou o mundo em um sistema unificado de conhecimento, que provoca a superação das estruturas administrativas hierarquizadas e verticalizadas em direção à horizontalização das relações de poder, que tem na figura da rede, propriamente, a expressão da nova realidade (CAPELLARI, 2000, p. 39).

Sobre o tema, Bobbio ressalta a importância do direito de acesso à informação e ao conhecimento, e afirma que esse direito pertenceria à 4ª geração de direitos fundamentais, e serviria inclusive

[...] como inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade não só de Estados, mas de indivíduos livres e iguais [...] (e) representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra” (BOBBIO, 2004, p. 47).

Nesta seara, também Bonavides (2006, p. 571-572) defende a existência destes direitos, e destaca os aspectos introduzidos pela globalização política, referentes à democracia, à informação e ao pluralismo:

A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência de valores. (...) Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica- se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que interessa aos povos da periferia. Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. (...) A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. É direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. [...] os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.

Diante do quanto exposto, a produção artística é de fundamental importância na constituição do patrimônio cultural de uma nação, e por isso, não só deve ser incentivada a sua produção, mas também facilitado seu acesso, de modo a proporcionar o desenvolvimento cultural da sociedade, tudo em conformidade com os ditames constitucionais (Art. 215 da CF/88). Mas na sociedade atual, face a legislação em vigor, o que se observa é o evidente conflito entre os direitos individuais de propriedade e autoria, e o direito coletivo à informar-se e informar, ao conhecimento, e à cultura.

208 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

11.4 IMPACTOS ENTRE OS DIREITOS AUTORAIS E A SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO: O SURGIMENTO DE NOVAS PRÁTICAS DE DISPONIBILIZAÇÃO DE INFORMAÇÃO COMO RESPOSTA ÀS LIMITAÇÕES DO DIREITO AUTORAL POSITIVADO

É inegável que o avanço tecnológico e o desenvolvimento da sociedade de informação se expandiram em uma velocidade incompatível com as mudanças do ordenamento jurídico, impossibilitado de responder a esse novo universo, que abala inúmeras estruturas do direito privado. Enquanto a superação de uma tecnologia por outra ocorre num curto período de tempo, a elaboração de leis demanda muito tempo para ser concretizada. A título de exemplo, a cada ano, caem os custos de aquisição de computadores pessoais, tablets e celulares smartphones, a velocidade de conexão à internet é cada vez mais ampliada, apresentam-se tecnologias mais sofisticadas e eficientes de compartilhamento de conteúdo que, antigamente, encontravam-se em suporte físico e por isso eram mais facilmente protegidos pela legislação pertinente ao tema. Nos dizeres de Guilherme Carboni (2001, p. 164):

[...] os fenômenos de desmaterialização do suporte físico, diluição da autoria e perda de importância do intermediário entre autor e leitor. Em todos esses fenômenos, veremos que o problema central da proteção autoral nas redes de informação diz respeito ao fato de que as criações intelectuais digitalizadas e inseridas no ciberespaço são mais facilmente reproduzidas e modificadas pelos usuários do que as obras analógicas que têm como base um suporte físico.

Do outro lado da moeda, com o Estado democrático de direito e o crescimento de entidades de direito, a aprovação de uma norma legislativa que equilibre o conflito existente entre os direitos individuais do autor e o direito coletivo de acesso à informação e conhecimento de toda a sociedade é imprescindível. Neste diapasão, se a obtenção, disseminação e circulação de dados é cada vez mais simplificada e acessível e o poder legislativo não é rápido o suficiente para elaboração de normas de regulamentação na internet, cria-se a percepção de que o direito do autor nem mesmo existe, sendo que temos inúmeras situações cotidianas que violam alguns direitos autorais hoje conhecidos, como ensina Brant (2010, p. 14):

No mundo cibernético, onde obter dados pela internet é muito fácil, a violação dos direitos autorais ocorre constantemente. Pode-se citar, por exemplo, a retirada de uma fotografia de um site, ou até mesmo aquela utilizada em outros meios de comunicação que passa a circular, posteriormente, na rede mundial de computadores, ou uma música de formato MP3 adquirida por programas de compartilhamento de arquivos, ou até mesmo, um texto extraído de um portal da internet e copiado por um estudante que o agrega a Direitos autorais... // 209

seu trabalho de escola. Ainda pode-se mencionar a violação de dados gráficos e demais instrumentos de programação que podem ser copiados.

A tendência atual é o compartilhamento de informações e dados, dada a existência de inúmeros programas (compartilhadores de arquivos via P2P – peer to peer e também sistemas de torrent) que cadastram vários usuários, e os arquivos contidos dentro de uma máquina são disponibilizados para outros usuários que também utilizam o programa. Isso sem contar os sistemas de clouding, que são nuvens de armazenamento de dados, que também podem ser compartilhados entre usuários. É importante salientar que a Lei 9.610/98 entende que a fixação de uma obra qualquer em um computador, ou ainda, a “entrada” de material protegido por direitos autorais nas redes de informação e a sua consequente comunicação ao público caracterizam, respectivamente, reprodução e transmissão (CARBONI, 2001, p. 177), e por isso dependem de prévia e expressa autorização do titular dos direitos autorais sobre a respectiva obra, segundo ditames do Art. 29, inciso I da referida Lei, sendo que a divulgação sem a expressão autorização imputa conduta criminal, discriminada no art. 184 do Código Penal brasileiro. Assim, tem-se que a doutrina dos direitos autorais encontra-se em xeque na nova sociedade de informação, mesmo porque o compartilhamento entre usuários não vai deixar de existir simplesmente porque viola direitos autorais. Grande parte dos usuários nem mesmo tem conhecimento de que estão praticando uma conduta ilegal, e quando tem, ainda assim optam por continuar a fazê-lo, motivados pela impunidade reinante no mundo virtual, fruto da ausência de controle legal sobre a distribuição indiscriminada de informações e pela ausência de um sistema plenamente eficaz de combate de cópias e comprovação da conduta ilegal. Se a obra está protegida pelo famoso “All Rights Reserved” (todos direitos reservados), qualquer utilização do trabalho por terceiros está restrita à autorização expressa do titular dos direitos. O que se deve buscar e propor é uma mudança de proteção para o “Some Rights Reserved” (alguns direitos reservados), justamente para combater a ilegalidade. Como a informação, o conhecimento é um bem imaterial, a relação/o conceito de mais-valia perde seu conteúdo, visto que quando há distribuição de informações, não há uma baixa de mercadoria, mas sim uma troca, como explanam Carboni e Coelho (2013, p. 363):

A venda de mercadorias materiais (como roupas, veículos, eletrodomésticos) pressupõe a sua alienação definitiva e a redução do estoque de quem as vendeu. Portanto, na transação com mercadorias materiais, há sempre uma troca, um perde-ganha. Marcos Dantas explica que o mesmo não acontece com a mercadoria-informação. De fato, “quem comunica algo a alguém não perde a condição de comunicar este mesmo algo, novamente, a outro alguém”, pois, com a comunicação, não há “baixa do estoque de informação”, uma vez que a pessoa que comunicou não se desfez do seu “produto informacional”. 210 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Como o conhecimento contido na produção de determinado bem é desvinculado e independente do suporte físico que o comporta, sendo possível reproduzi-lo e trocá-lo sem o sentimento de perda na transação, desequilibra-se a teoria marxista e neoclássica de valor, abrindo espaço para a utilização do conhecimento separadamente do capital e do trabalho. Portanto, o conhecimento só tem valor se for trocado, isto é, quando se difunde, não funcionando segundo as leis que fundamentam a valoração das mercadorias.

E se a internet mudou os hábitos da sociedade, quiçá de modo irreversível, a indústria também deve se adaptar para distribuir e disponibilizar conteúdos e minimizar os impactos do compartilhamento ilegal, até mesmo porque “[...] ao mesmo tempo em que a informação precisa ser protegida por meio de direitos de propriedade intelectual para que seja transformada em mercadoria passível de comercialização, a informação também tem que ser livre para a geração de novas informações” (CARBONI, COELHO, 2013, p. 363). Dado todo esse contexto, o poder de decisão acerca da distribuição de suas obras deveria ser dos próprios autores, decidindo estes sobre o nível de controle que desejam ter sob suas obras, mesmo que a legislação brasileira expressa a inalienabilidade e irrenunciabilidade, por exemplo de direitos morais do autor (Art. 27 da Lei 9.610/98). Neste sentido, inúmeras ações no próprio mercado vêm se mostrando como alternativas para o problema ligado à restritividade dos direitos autorais. Num primeiro momento, a tecnologia foi utilizada somente para restringir o acesso dos usuários e assim coibir a distribuição ilegal de conteúdo:

Para coibir a distribuição não autorizada de obras intelectuais na Internet, foi criado um sistema de proteção de direitos autorais, denominado Digital Rights Management (DRM), que se baseia em mecanismos tecnológicos para controlar e restringir a reprodução, execução e distribuição de obras na forma digital, desabilitando a utilização e comercialização ilegal dessas obras. O sistema DRM habilita os proprietários (ou licenciadores) de conteúdo digital a distribuir e controlar esse conteúdo, de maneira a prevenir a distribuição e, consequentemente (sic), o uso não autorizado dessas obras (CARBONI, 2005, p. 445).

Mas, a tecnologia DRM não era plenamente eficaz para a proteção dos direitos autorais, por isso muitos autores e criadores vêm optando por outras alternativas para divulgarem seu trabalho e ao mesmo tempo respeitarem a legislação concernente aos direitos autorais. Surgiram assim softwares livres, disponibilização de conteúdo gratuito por parte dos autores (músicos), disponibilização gratuita de obras musicais que já caíram no domínio público. Todas essas mudanças vêm ocorrendo porque há a percepção de que a sociedade de informação é uma realidade, e não haverá retorno ao status quo ante. Direitos autorais... // 211

Destarte, um dos maiores objetivos do autor contemporâneo, além do proveito econômico advindo de sua obra, é o desejo de ver o seu trabalho publicado, seu nome conhecido e citado por outros autores, tornando o seu trabalho reconhecido, respeitado. A partir do seu reconhecimento como escritor, cientista, pesquisador e outros, ganhar maior projeção e percorrendo o mundo, é que poderia negociar a sua obra e por sua popularização receber remuneração em palestras, cursos, direitos autorais de edição de livros e outros tantos meios que o mercado proporciona. Ao disponibilizar sua obra gratuitamente, tornando-a de livre domínio dos usuários, a disseminação de conteúdo legal proporciona uma reação em cadeia, na qual a amplitude do conteúdo poderá proporcionar outras tantas significativas formas de remuneração, como por exemplo as apresentações ao vivo, a sincronização e o licenciamento de música para obras audiovisuais e games. Frise-se que a adoção deste tipo de técnica também amplia a aplicação da função social do instituto da propriedade intelectual, como nos ensina o mestre Guilherme Carboni:

A teoria da função social do direito do autor busca um melhor equilíbrio entre a proteção autoral e a possibilidade de redução de obstáculos às normas formas de criação e circulação de bens intelectuais, visando a manifestações sociais mais abertas à criatividade e, consequentemente, com maior amplitude democrática, além da garantia de livre acesso às obras protegidas em determinadas circunstâncias (CARBONI, 2009, p. 1).

Ou seja, é possível estimular a disseminação de informações e desenvolvimento da cultura e do conhecimento sem deixar de observar os direitos do autor à obra protegida, tornando o acesso a esse material válido e legítimo. Além das formas acima exemplificadas, a própria sociedade de informação oferece ferramentas para proteger o direito do autor ao mesmo tempo que estimula o compartilhamento de conteúdo de forma legal. Neste contexto, por exemplo, têm-se o surgimento de licenças de disponibilização e cessão de conteúdo, com diferentes modalidades de visualização, utilização, reprodução e divulgação, tais como as licenças creative commons. Seus defensores as justificam como sendo um instrumento de democratização, no âmbito cultural, visando a criar licenças para o uso de obras pelo público através da internet, oferecendo aos autores o direito de eleger quais os usos que pretendem autorizar de suas obras. Segundo Correa (2009, p. 107), “A intenção deste sistema é dar a liberdade para que o autor possa fazer o que bem entender com sua obra, cedendo direitos caso deseje; deste modo, desvincula-se a obrigação da autorização expressa para o uso de cada obra e esta pode ganhar maior projeção percorrendo o mundo”. 212 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Frise-se que importantes ferramentas de pesquisa, como por exemplo o Wikipedia, já utillizam esse tipo de licença, justamente para facilitar a disseminação de conteúdo por parte dos usuários, sem que quaisquer direitos autorais sejam violados. Segundo o website do Creative Commons, um de seus principais difusores e defensores:

Os direitos autorais foram criados muito antes do surgimento da Internet, e podem dificultar a execução de forma legal de ações que tomamos como certas na rede: copiar, colar, editar fonte e publicar na rede. A configuração padrão do direito de autor requer que todas essas ações necessitem de permissão expressa, concedida antecipadamente, se você é um artista, professor, cientista, bibliotecário ou apenas um usuário regular. Para alcançar a visão do acesso universal, alguém precisa fornecer uma infraestrutura livre, pública e padronizada, que cria um equilíbrio entre a realidade da Internet e a realidade das leis de direitos autorais (CREATIVE COMMONS).

O Projeto, criado em 2001, foi idealizado por especialistas norte- americanos, os Profs. Lawrence Lessig e James Boyle, tem por objetivo principal proporcionar um meio de globalizar as obras criadas (CORREA, 2009, p. 107). Buscando um equilíbrio entre os tradicionais ideais dos direitos do autor e seus direitos conexos e a realidade fática, sugere-se que os criadores de obras e conteúdo possuam liberdade para escolher a forma como gostariam de explorar seus direitos, dinamizando-os como bem entender. Desta forma, os conteúdos “[...] podem ser copiados, distribuídos, editados, remixados e utilizados para criar outros trabalhos, sempre dentro dos limites da legislação de direito de autor e de direitos conexos”. Mais ainda, aqueles que compartilham o conteúdo devem atribuir a seu autor “os devidos créditos, manter intactos os avisos de direito de autor em todas as cópias do trabalho e fornecer um link para a licença a partir das cópias do trabalho. Os licenciados não podem usar medidas de caráter tecnológico para restringir o acesso de outros ao trabalho” (CREATIVE COMMONS). Ora, esta mudança de paradigma condiz justamente com a ponderação entre os direitos fundamentais elencados na introdução deste estudo, de modo que a relativização de uma das prerrogativas do direito do autor somente contribui para o fomento de outros direitos, tais como acesso à informação, cultura e tecnologia, que também são fundamentais para o ser humano, especialmente se considerados na dinâmica da atual sociedade. No website do movimento Creative Commons, são oferecidas 6 formas de licença de disponibilização de conteúdo:

Atribuição CC BY Esta licença permite que outros distribuam, remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho, mesmo para fins comerciais, desde que lhe atribuam o devido crédito pela criação original. É a licença mais flexível de todas as Direitos autorais... // 213

licenças disponíveis. É recomendada para maximizar a disseminação e uso dos materiais licenciados. Atribuição-Compartilha Igual CC BY-SA Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho, mesmo para fins comerciais, desde que lhe atribuam o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos. Esta licença costuma ser comparada com as licenças de software livre e de código aberto "copyleft". Todos os trabalhos novos baseados no seu terão a mesma licença, portanto quaisquer trabalhos derivados também permitirão o uso comercial. Esta é a licença usada pela Wikipédia e é recomendada para materiais que seriam beneficiados com a incorporação de conteúdos da Wikipédia e de outros projetos com licenciamento semelhante. Atribuição-Sem Derivações CC BY-ND Esta licença permite a redistribuição, comercial e não comercial, desde que o trabalho seja distribuído inalterado e no seu todo, com crédito atribuído a você. Atribuição-Não Comercial CC BY-NC Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, e embora os novos trabalhos tenham de lhe atribuir o devido crédito e não possam ser usados para fins comerciais, os usuários não têm de licenciar esses trabalhos derivados sob os mesmos termos. Atribuição-Não Comercial-Compartilha Igual CC BY-NC-SA Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam a você o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos. Atribuição-Sem Derivações-Sem Derivados CC BY-NC-ND Esta é a mais restritiva das nossas seis licenças principais, só permitindo que outros façam download dos seus trabalhos e os compartilhem desde que atribuam crédito a você, mas sem que possam alterá-los de nenhuma forma ou utilizá-los para fins comerciais (CREATIVE COMMONS).

Ainda no âmbito de disseminação legal de conteúdo, retomando as possibilidades de aferimento de proveito econômico pelos autores da obra, pode-se citar a existência de inúmeros websites, tais como o Jamendo, Magnatune, BeatPick e YouLicense, que se propõem a atuar como canal de licenciamento para peças publicitárias, filmes e novelas, por exemplo. Importante demonstrar que por mais que o autor disponibilize conteúdo livremente na internet, ainda deve o usuário que dele se apropriar utilizá-lo com parcimônia, dentro dos limites que a Lei de Direitos Autorais em vigor permite. Por isso:

Se não houver proveito econômico e a disponibilização tenha fins exclusivos de disseminação do conhecimento, seja para fins de pesquisa acadêmica, 214 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

culturais ou históricos, fazenda a menção da autoria da obra, não há que se falar em infração ao direito do autor. (ALMEIDA, 2012, p. 230). [...] O agente publicador tem o dever de demonstrar que não possui a intenção de infringir direito de terceiro quando da disponibilização de material protegido na Internet quando a finalidade for por essência de cunho social, restando indubitável a sua boa-fé na disponibilização de tal material, manifestada no próprio ambiente virtual, seja por um disclaimer, aviso legal ou termos de uso do próprio site (ALMEIDA, 2012, p. 229).

Desta forma, o que se propõe e se espera é que a sociedade como um todo possa ter seu direito de acesso ao conhecimento, direito de informar e ser informado resguardado, com o intuito de proporcionar a disseminação de conhecimento e informações para permitir a sua evolução, o seu enriquecimento, o seu desenvolvimento, em um equilíbrio com o direito autoral, em face do dinamismo que a sociedade de informação coloca.

11.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na era da informática e da sociedade de informação, é preciso repensar o direito, especialmente os direitos autorais, uma vez que estes são frágeis perto das rápidas mudanças que transformam diariamente o mundo virtual. Está cada vez mais cristalino que não se pode enxergar as redes de informação como se fossem apenas uma tecnologia a mais, a qual a legislação existente deva se ajustar. A grande novidade é que esta nova forma de leitura do mundo e da instituição de modelos menos lineares de comunicação, que permitem a interação com o usuário, devem fazer com que os direitos da personalidade, no tocante aos direitos autorais, devam se adaptar à sociedade de informação e à destruição do modelo individualista do autor, especialmente em prol de uma evolução coletiva. Se a internet facilitou e ampliou exponencialmente o acesso à informação e à cultura, deve agora o direito se esforçar para acompanhar as necessidades da sociedade da informação e regulamentá-las, garantindo o acesso de toda a sociedade à informação e ao conhecimento, de modo a propiciar e fomentar o seu desenvolvimento como um todo. Por isso, é necessário equalizar o direito do autor e os direitos à informação e a cultura, especialmente dentro do contexto de inclusão digital e acesso tecnológico. A adaptação a esta nova realidade já partiu do próprio mercado de consumo, com a inclusão de novas práticas de uso da internet e das informações ali contidas, como se verifica nos exemplos apresentados neste trabalho. Os operadores do direito não podem ficam à margem, e devem caminhar paralelamente a essas respostas, adotando postura de vanguarda e oferecendo subsídios legais para o compartilhamento de dados pelos usuários, adequando o ordenamento jurídico aos tipos de licenças hoje Direitos autorais... // 215 oferecidos na sociedade de informação, a exemplo das licenças Creative Commons. Conceitos iluministas de propriedade intelectual arraigados na sociedade, tais como o direito moral, devem ser colocados em discussão, criando-se uma nova ética de defesa dos direitos autorais nas redes de compartilhamento, em prol do desenvolvimento coletivo da sociedade de informação, em um sistema mais dinâmico que acompanhe a revolução tecnológica. Até mesmo porque os direitos do autor não englobam somente o direito de exploração econômica da obra, mas ainda outros direitos, como ficou devidamente explicitado neste artigo, de modo que não se esgotará a esfera de direitos da personalidade do autor e nem este deixará de aferir proveito econômico de sua criação.

11.6 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Diego Perez Martin de. A função social do direito de autor na sociedade da informação. In: PINHEIRO, Patrícia Peck Garrido (Org.). Direito digital aplicado. 1. ed., [s.l.: s.n.], 2012. ALMEIDA, Juliana Evangelista de; ALMEIDA, Daniel Evangelista Vasconcelos. Os direitos da personalidade e o testamento digital. In: Revista de Direito Privado. São Paulo, Ano 14, nº 53, p.179/200, jan- mar. 2013. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. BRANT, Cássio Augusto Barros. Os direitos da personalidade na era da informática. In: Revista de Direito Privado. São Paulo, Ano 11, nº 42, p. 9-29, abr.-jun. 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2015. ______. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em . Acesso em: 18 set. 2015. ______. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 18 set. 2015. CAPELLARI, Eduardo. Tecnologias de informação e possibilidades do século XXI: por uma nova relação do estado com a cidadania. In: ROVER, Aires José (Org.). In: Direito, sociedade e informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. 216 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

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sociedade da informação. Trad. Omar Kaminski. Curitiba: Juruá Editora, 2002.

218 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= XII =

DO ABANDONO AFETIVO AO IDOSO COMO VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Lucas Yuzo Abe Tanaka* Pedro Henrique Sanches Aguera**

12.1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 tem como fundamento o princípio da dignidade humana, pelo que consagrou que o Estado e a família auxiliem os idosos para o seu pleno desenvolvimento da personalidade humana, e, garantindo assim o direito à vida. Não bastasse a proteção constitucional, os idosos tem a seu favor, como garantia de seus direito o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003), na qual estabeleceu que idoso seria aquela pessoa com 60 anos ou mais. Tanto a Constituição Federal como as leis infraconstitucionais consagram a vulnerabilidade dos idosos, razão pela qual necessitam uma especial proteção tanto do Estado como da sociedade, e ainda, como dever da família o amparo aos idosos. No entanto, apesar desse reconhecimento constitucional, os idosos são vítimas de abandono principalmente de seus familiares, e, não apenas de prestação e alimentos, mas no aspecto afetivo. O que se debate é o afeto da família, o que ocasiona uma verdadeira lesão à seu direito da personalidade, e, principalmente lesão a sua dignidade, o que vai contra aos mandamentos constitucionais. Os idosos, além dos alimentos, da prestação de assistência material necessitam principalmente do afeto, do amor, para que se sintam vivos em sua plena dignidade, tendo em vista que o afeto, a falta de afeto às pessoas da terceira idade pode gerar grandes consequências à vida dos idosos, lesando assim, diversos bens jurídicos tutelados pelo nosso ordenamento jurídico, e, em especial a dignidade da pessoa humana. Neste trabalho cientifico, foi utilizado o método teórico que consiste na pesquisa de obras e artigos de periódicos especializados que tratam do assunto.

* Mestrando em Ciência Jurídica pelo Centro Universitário de Maringá – Unicesumar. Pós- Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá – Unicesumar. Endereço eletrônico: [email protected] ** Mestrando em Ciência Jurídica pelo Centro Universitário de Maringá – Unicesumar; Bolsista pelo Programa CAPES. Pós- Graduado em Processo Civil pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá – Unicesumar. Endereço eletrônico: [email protected] 220 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

12.2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade humana é um princípio construído ao longo do tempo, tendo inclusive, um conceito indeterminado, sendo que não há uma definição clara do que seria dignidade da pessoa humana. Tal dificuldade encontra-se principalmente por ser um conceito vago e impreciso, e além do mais pelo fato de não tratar-se de apenas aspectos do ser humano, como por exemplo, a integridade física e psíquica, mas sim de uma qualidade inerente a qualquer pessoa humana. Partindo da filosofia Grega e posteriormente a Roma, aproximadamente no ano de 155 a.C. surge os primeiros defensores dos direitos da dignidade da humana. Por meio dos ensinamentos da filosofia estoica, mostrando o núcleo de ideias centrais sobre a unidade moral do ser humano, considerando filho de Zeus o possuidor de direitos iguais em toda parte do mundo (COMPARATO, 1999, p. 11-30). Ainda, quanto ao pensamento estóico:

A dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal que cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à ideia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade (SARLET, 2009, p. 32).

A dignidade da pessoa humana no pensamento filosófico e na antiguidade clássica era verificado em regra, a partir da posição social em que o individuo se encontrava, e ainda, pelo posição hierárquica em que se encontrava perante sua comunidade, sob a qual dizia-se que havia uma quantificação de dignidade, pelo que admitia-se, assim, a existência de pessoas mais dignas e menos dignas (SARLET, 2009, p. 32). Desde a religião cristã percebe-se uma concepção da dignidade da pessoa humana, sob o qual o ser humano foi criado como a imagem e a semelhança de Deus, e, assim o cristianismo trouxe um valor próprio do ser, ou seja, um valor intrínseco a si mesmo, pelo que não se pode transforma-lo em um mero objeto ou até mesmo um instrumento (SARLET, 2009, p. 32). O cristianismo por meio dos ensinamentos de São Tomas de Aquino (1890, p. 67), explicando a semelhança do ser humano a de Deus, de modo a dota-lo de autonomia, de tal forma tornando o ser humano livre por sua própria natureza e essência. Entendeu-se que o ser humano sempre deve ser entendido como um fim e nunca como um meio para se obter um resultado, em outras palavras diferenciado coisas de pessoas (KANT, 1980, p. 135-140). Conforme imperativo categórico de Kant (1980, p. 135): “Age de forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como de qualquer outro, sempre também como m fim e nunca unicamente um meio”, tratando-se, assim, de que o próprio homem tem um valor intrínseco em si. Do abandono afetivo... // 221

Nesse mesmo sentido Ingo Wolfgang salienta que “[...] a dignidade, como qualidade intrínseca do ser humano é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano” (SARLET, 2009, p. 47), ou seja, não pode a dignidade ser retirada do próprio ser humano por tratar-se de um direito inerente do individuo. “A ideia do valor intrínseco da dignidade da pessoa humana deita raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão” (SARLET, 2009, p. 31), e que sendo apesar de sua projeção histórica, foi apenas na segunda década do século XX que começou a aparecer nos documentos jurídicos, sendo que o seu primeiro apontamento foi na Constituição do México em 1917 e com a Constituição alemã da República de Weimar em 1919. Há de destacar que é reconhecido que a ascensão da dignidade humana se deu através do direito constitucional alemão e “[...] de acordo com o Tribunal, a dignidade humana se situa no ápice do sistema constitucional, representando um valor supremo, um bem absoluto à luz do qual outros dispositivos devem ser interpretados” (BARROSO, 2012, p. 21). Consolidando o Principio da Dignidade da Pessoa Humana no ordenamento jurídico Brasileiro como valor supraconstitucional. A Constituição Federal de 1988, no art. 1ª inciso III, consagrou o principio da dignidade da pessoa humana, concomitantemente estabelecendo no art. 230 defesa da dignidade ao individuo idoso, ao obrigar o estado, a sociedade e a família na inclusão da pessoa anciã na comunidade, buscando seu bem-estar (BRASIL, 1988). A dignidade da pessoa humana é o princípio supremo da constituição federal servindo como base para todo o ordenamento jurídico. Para tanto é o principio constitucional mais relevante, é ele que traça a diretriz para a harmonização dos princípios (NUNES, 2002, p. 55). Trata-se, portanto, de um princípio, não se restringindo apenas a uma simples declaração ou até mesmo um postulado filosófico e, assim, não podemos afirmar que a dignidade possui apenas força declaratória ou se refere a uma norma abstrata lançado no ordenamento jurídico brasileiro. O princípio da dignidade humana é o que fundamenta o ordenamento jurídico, pelo que coordena as normas existentes no país, bem como os seus princípios, e, ainda, por ser um princípio norteador, este possui dupla natureza, vez que indica como as demais normas devem ser feitas e aplicadas, de forma que nenhuma dela pode ferir a dignidade da pessoa humana, por justamente ser a norma suprema da Constituição Federal (FERMENTÃO; JÚNIOR, 2012, p. 317). Assim, a dignidade da pessoa humana não é apenas um direito, mas mais do quem um direito, posto que é a base em que se fundamenta os direitos da personalidade, pelo que os demais direitos devem estar em conformidade com a dignidade humana que é reconhecida como um valor supremo no ordenamento jurídico.

222 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

12.3 ANÁLISE DAS NORMAS EXISTENTES EM DEFESA DA DIGNIDADE DO IDOSO

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, mesmo que de forma tímida, já dispunha sobre a proteção aos idosos, em especial ao direito ao envelhecimento, na qual em seu artigo XXV, item 1, estabelece que:

Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

No entanto, apenas no ano de 1982, em âmbito mundial que houve certa preocupação com o idoso, na qual a Organização das Nações Unidas, na cidade de Viena, promoveu uma assembleia com o objetivo precípuo de debater o envelhecimento e a necessidade de constituir metas voltadas à inclusão dos idosos na sociedade, e também buscar a promoção de sua tutela (COSSI, 2015, p. 581). Faz-se necessário, ainda, um breve histórico das normas Constitucionais acerca do direito dos idosos, sendo que as Constituições de 1824 e 1891 nada dispuseram sobre as pessoas idosas, ambas foram omissas acerca do tema. Já a Constituição de 1934 foi a primeira a tratar sobre o direito dos idosos, no entanto tratou apenas sobre direito previdenciário, dentro do capítulo sobre a ordem econômica e social. Seguindo a mesma linha da Constituição de 1934, as Constituições de 1937, 1946 e 1967, também trataram apenas sobre à proteção da velhice pela previdência (BARLETTA, 2010, p. 79). Somente com a Constituição Federal de 1988 que os idosos tiveram uma proteção mais ampla, e, inclusive considerada como um direito fundamental, sendo que, nos termos do artigo 230, consagrou o dever da família, Estado e sociedade de auxiliar as pessoas idosas para proteger sua dignidade e bem-estar, garantindo-lhes, portanto, o direito à vida. Segundo Roberto Senise Lisboa (2010, p. 298):

O princípio da solidariedade familiar previsto no texto constitucional (art. 1°, III c/c os arts. 3°, I, 226, caput, 227, 229 e 230 da CF) viabiliza a adoção de postura mais flexível e consentânea com o direito de família da pós- modernidade. Reconhece-se que tanto o nascituro como a criança, o adolescente e o adulto possuem direitos decorrentes das relações havidas da constituição de entidades familiares. Além disso, contempla-se em favor do adulto que tem pelo menos sessenta anos de idade um regime legal protetivo dos seus interesses, assim como se procedeu com a previsão de normas tutelares dos interesses das crianças e adolescentes.

Posteriormente à Constituição Federal, implantou-se uma política nacional de proteção ao idoso através da Lei 8.842/1994, na qual se assegurou alguns direitos sociais ao idoso, permitindo-lhe a promover sua Do abandono afetivo... // 223 autonomia, integração e participação na sociedade (GAMA, 2008, p. 276). Esta lei adotou os seguintes princípios para a proteção da terceira idade: a) a garantia dos direitos inerentes à cidadania e da sua participação na comunidade; b) a defesa do direito à vida do idoso, do seu bem-estar e da prevalência do princípio da dignidade do idoso; e a proibição da discriminação do idoso. No ano de 2003 instituiu-se o Estatuto do Idoso, através da Lei 10.741/2003 na qual reconheceu-se os direitos fundamentais inerentes à pessoa idosa, consagrando inúmeras prerrogativas e direitos às pessoas de mais de 60 anos. Verifica-se que o Estatuto do Idoso adotou o critério etário para a identificação do idoso, ou seja, é a pessoa com idade igual ou maior de 60 anos, conforme dispõe o seu artigo 1°. Tal estatuto trata-se de um microssistema, consagrando normas para a efetivação das normas de proteção ao idoso, cabendo não apenas a família, mas ao Estado e a sociedade a concretização destes direitos. Com a Lei 10.741/2003 reconheceu-se os direitos fundamentais à pessoa idosa garantindo todos os ensejos e facilidades para proteção e preservação da sua integridade física e psíquica, garantindo assim, a proteção da dignidade humana, fundamento supremo estacando pela Constituição Federal de 1988, dando-lhe, assim, oportunidade de participar incessantemente na sociedade, posto que “o idoso sofre a constante ameaça de subtração de sua autonomia devido às naturais contingências da velhice, o que implicaria a mutação de sua condição jurídica de pessoa capaz para incapaz” (GAMA, 2008, p. 276). O artigo 8° do estatuto estabelece como direito personalíssimo o envelhecimento, sendo, portanto, um direito social, pelo que é essencial que o idoso tenha uma velhice digna, com qualidade de vida, ou seja, é imprescindível que o idoso tenha assegurado e respeitado o seu direito à vida, a saúde física e psíquica, à intimidade e privacidade, as relações com a comunidade, como qualquer outra pessoa e que segundo Gama (GAMA, 2008, p. 280) “[...] nessa dimensão situa-se o cuidado como valor jurídico que, relativamente ao idoso, deve assegurar, em toda sua dimensão, o livre exercício do direito ao envelhecimento”. O Estatuto do Idoso ainda assegura o direito a alimentos aos idosos nos seus artigos 11 a 14, lembrando que, a própria Constituição Federal em seu artigo 229, estabelece que os filhos maiores devem ajudar e amparar seus pais seja na velhice, carência ou enfermidade (BRASIL, 1988). Verifica-se que houve um avanço enorme quanto a proteção dos idosos, não cabendo apenas à família a sua proteção, mas também a sociedade e ao Estado, bem como depreende-se que é titular de todos os direitos personalíssimo, como qualquer outra pessoa, conferindo-lhe proteção própria através do Estatuto do Idoso.

224 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

12.4 DO AFETO

Nas relações familiares o afeto é muito mais do que um valor jurídico, trata-se assim, de um princípio fundamental nas relações familiares, posto que se assim não fosse, as relações conjugais e parentais, não haveria alma, amor, existiria sim apenas a preocupação com a materialização e patrimonialização do direito de família (PEREIRA, 2015, p. 13). De modo que, o afeto esta intimamente ligado as relações familiares. O afeto é imprescindível nas relações familiares, ou seja, na intenção de satisfazer as necessidades psíquicas e morais do núcleo familiar. A afetividade pode ser considerada como um dos principais fundamentos das relações familiares, decorrente da valorização da dignidade humana (TARTUCE, 2015, p. 23). Caracteriza-se como um direito personalíssimo, pois se relaciona aos sentimentos, de amor, benevolência, proteção, bondade, carinho, sendo o fio condutor nas relações familiares. O afeto está implícito na Constituição Federal de 1988, quando trata principalmente da igualdade entre os filhos seja qual for a sua origem (art. 227, parágrafo 6º), no caso da adoção como uma escolha de afeto e inserida no plano da igualdade de direitos (art. 227 parágrafos 5º e 6º), da possibilidade de uma pluralidade de formas de família (art. 226), e ainda, o princípio do afeto encontra-se implicitamente na disposição que se refere ao amparo ao idoso (art. 230), tendo também o seu desdobramento nos princípios do melhor interesse da criança e adolescente e da paternidade responsável (art. 227, parágrafo 7º), verificando-se assim, a manifestação do afeto em todas as relações familiares (PEREIRA, 2015, p. 13). A assistência imaterial deve pautar-se no afeto, ou seja, na intenção de satisfazer as necessidades psíquicas e morais do núcleo familiar. A afetividade pode ser considerada como um dos principais fundamentos das relações familiares, decorrente da valorização da dignidade humana (TARTUCE, 2015, p. 23). Caracteriza-se como um direito personalíssimo, pois se relaciona aos sentimentos, de amor, benevolência, proteção, bondade, carinho, sendo o fio condutor nas relações familiares. É uma relação entre indivíduos que se relacionam entre si, sendo, portanto um direito humano de qualquer pessoa. Trata-se de uma liberdade de afeto, que se encontra implicitamente na Constituição. No afeto envolve e desenvolve uma função social, pelo que a liberdade de afeto apenas pode ser restringida quando as relações afetivas não atingirem sua função social que assumem na sociedade, posto que, apesar de na sua origem ser um direito do próprio individuo, pode tornar em seu exercício um poder-dever social (BARROS, 2006, p. 881-890). Ademais, o afeto é um principio jurídico fundamental e norteador nas relações sociais, em especial para as relações familiares, pelo que sem este valor jurídico, sem este princípio o Direito de Família sem basearia apenas na ordem material e patrimonializado (PEREIRA, 2015, p. 13). Como bem assevera Fávaro (2005, p. 2014):

Do abandono afetivo... // 225

O principio da afetividade está inerente na Constituição Federal, através da interpretação sistemática do principio da isonomia dos filhos, da previsão de outras formas de constituição de famílias, além da forma legal pelo casamento, e pela instituição do divorcio direito. A afetividade está nas entrelinhas do direito e do sistema jurídico.

O afeto esta concentrado nas relações entre as pessoas seja no casamento, na união estável, na filiação, na adoção, e não é diferente nas relações junto aos idosos, sendo que estes merecem uma atenção especial, tendo em vista que a falta de afeto ameaça a integridade psíquica, trazendo principalmente, falhas no desenvolvimento da personalidade (GROENINGA, 2006, p. 145). O afeto é quem fundamenta o direito de família nas suas relações, tendo por primeira preocupação as relações socioafetivas, em detrimento do caráter patrimonial e biológico da família, pelo que, nas relações familiares, decorrem dos princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, em conjunto com o princípio da convivência familiar (LOBO, 2008, p. 27-48). Nesse sentido doutrinador Rodrigo Pereira (2015, p. 14) apresenta o afeto sobre a ótica do Direito, salientando sua importância para as relações familiares, em especial a responsabilidade de cuidado:

O afeto, para o Direito, não é apenas um sentimento e uma manifestação subjetiva. Ele se exterioriza e é alcançável pelo mundo jurídico nas condutas objetivas de cuidado, solidariedade, responsabilidade, exercício dos deveres de educar, assistir, etc, demonstradas nos relacionamentos e convivência familiar.

A afetividade, assim, encontra-se dentro da família, é através dele que os membros do grupo familiar é que se sustentam e passam por obstáculos, garantido assim, a plena dignidade humana, e assim, sendo responsável pela plena realização pessoal dos membros familiares (SEBASTIÃO, 2002, p. 235). Como bem assevera Rolf Madaleno:

O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana. A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e parentesco, variando tão somente na sua intensidade e nas especificidades do caso concreto. Necessariamente os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames afetivos, podendo até ser firmada a prevalência desses sobre aqueles. O afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um a outro [...].

A realização do afeto, destarte, é função básica da família, para que se possa desenvolver a personalidade de cada um de seus integrantes, e, em especial dos idosos, sendo que a família hodiernamente é o instrumento para a efetivação da dignidade humana, deixando como segundo plano o 226 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade valor econômico, e colocando em primazia o afeto, sendo que é o elemento definidor da família (FERMENTÃO; BERTOLINI, 2013, p. 264-291). A afetividade é algo próprio do ser humano e manifesta-se através dos relacionamentos com as pessoas, trata-se de um sentimento de carinho, ternura, compaixão. É através do afeto que as relações familiares tiram sua base, dando assim, sentido a sua base e existência humana (FERMENTÃO; LOPES, 2012, p. 210-224). O afeto é indispensável à dignidade da pessoa humana, sendo que em sua falta, caracteriza-se uma afronta a personalidade dos idosos, posto que a afetividade representa um fator imprescindível ao ser dotado de dignidade, e de tão necessário é o afeto na vida dos idosos, que a própria Constituição Federal coloca a família em conjunto com o Estado e a sociedade, para prestar-lhes amparo.

12.5 DO ABANDONO AFETIVO AO IDOSO COMO VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Consoante determina a Constituição Federal todos tem o direito de ter preservado a sua dignidade humana, tendo em vista que é o princípio fundamental constitucional e que fundamenta todo ordenamento jurídico, pelo que (RODRIGUES, 2010, p. 775) “[...] para satisfazer os ideários estatuídos na Constituição republicana vigente, é mister que se garanta todo o ser humano, inclusive ao idoso o direito à vida; mas, o direito a uma vida digna”. O abandono afetivo ao idoso tem natureza moral, extrapatrimonial, na qual recai um dano na sua própria pessoa, na sua dignidade humana, ou seja, um valor inerente a pessoa idosa, um valor intrínseco da pessoa humana O afeto é um direito individual fundamental e implícito estancado pela Constituição Federal de 1988, pelo que o abandono afetivo ao idoso configura-se com uma literal violação à sua dignidade humana, tendo em vista que acaba-se confiscando a dignidade e a própria condição humana, uma vez que sem o afeto o ser humano deixa de ser humano, posto que através do mundo afetivo e ontológico é que atinge a condição humana (WELTER, 2009, p. 59). Com fundamento na característica da historicidade dos direitos fundamentais, vê-se que o principio da dignidade da pessoa humana tutelada ao logo da humanidade aos menos aparados, cumprindo na atualidade papel de proteção aos idosos. Estes carecedores de sua magnifica proteção, resguardo sua essência de ser humano. Por sua vez, o processo de envelhecimento é um fenômeno existente na essência humana, calçando alterações biológicas e psicológicas no individuo. Existindo nesta etapa da vida o início da enfermidade no corpo. Porém, vê-se no aspecto psicológico o principal dano, causado por abono dos parentes, o apontamento de ser um peso na sociedade, entre outros. Primeiramente, o idoso não pode ser visto pela sociedade como uma barreira, peso ou obstáculo á necessidade de sua atuação dentro no sistema. Do abandono afetivo... // 227

Sua contribuição foi importante e continua sendo importante para a humanidade. Desta forma, inicialmente, a procura da dignidade do idoso, começa pela sua implantação no eixo da sociedade. Além disso, como ferramenta na busca de sua dignidade, o idoso deve contar com os relacionamentos. Mantendo amizades, faculdade de sair, se divertir de passear, participar de grupos de terceira idade. O indivíduo, em sua essência, necessita se relacionar com outros seres humanos, como descreve o autor Neri AL Capitanini MES (2004, p. 71- 91), senão vejamos:

Desvela-se dos discursos que é por meio dos relacionamentos que o ser humano estabelece e reconhece a presença do outro, presença essa imprescindível na construção de sua existência, uma vez que é por meio do afeto e do carinho que se sustenta uma amizade e se amplia uma relação. O desenvolvimento pessoal está alicerçado no curso das relações sociais, sem as quais não é possível ao ser humano se construir como ser existencial. Essas redes de suporte social contribuem para que o indivíduo acredite que é cuidado, amado e valorizado, sentindo-se pertencente ao grupo, no qual pode dar e receber apoio emocional e, portanto, significativas no processo de envelhecer.

Importante mencionar a influencia da família neste procedimento. Não apenas no aspecto financeiro, mas principalmente, proporcionando o afeto, carinho e amor, sob pena flagrante violação à dignidade humana dos idosos. O que se procura, atualmente, em termos de realização familiar não está preso ao conteúdo vazio da simples proteção material, acha-se atrelado ao elemento que tem denominação de “afetividade”, ou seja, é amor, carinho, amizade, dedicação compreendidos nas relações de comunhão, incessantemente surgidas no contexto da nova verificação da família (DINIZ, 2004, p. 141). O afeto é componente fundamental da harmonia e equilíbrio da personalidade, de modo que exerce papel fundamental na vontade do individuo, nas correlações que indivíduo faz no processo de conhecimento e, em suas ações. Giselle Câmara Groeniniga (2004, p. 260) apresenta o afeto como relação com vontades, anseios, aspirações:

Os afetos são o equilíbrio da energia psíquica, dos impulsos, dos desejos que afetam o organismo e se ligam a representações, a pessoas, objetos, significados. Transformam-se em sentimentos e dão um sentido às relações e, ainda, influenciam nossa forma de interpretar o mundo [...] Os afetos podem estar em maior ou menor sintonia com o pensamento e com a realidade externa ou dele dissociados. Por todas essas razões, cabe integrar ao conhecimento o conhecimento afetivo sobre o conhecimento.

A dignidade da pessoa humana, enquanto dogma, passa por um novo entendimento, ao invés de criar uma proteção em torno do individuo 228 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade afastando da comunidade, com base da efetividade, se cria o limite inescusável para a coexistência tranquila, e desenvolvimento pleno do projeto existencial dentro da sociedade. O legislador por meio de lei ordinária se mostra atuante na garantia da dignidade da pessoa humana, por meio de Lei n. 8.842-1994 (Politica Nacional do Idoso) e Lei n. 10.741-2003 (Estatuto do Idoso). Nessa esteira, o elo afetivo é o traço mais relevante na constituição federal de 1988, pois reconhece e tutela as entidades familiares hodiernamente, a partir do respeito à dignidade humana e da condecoração do valor jurídico do afeto (SILVA JUNIOR, 2005, p. 130). Apontando a proteção as entidades familiares, por meio de cláusula geral, surgindo o Afeto como força motriz do idoso. Em sua origem o amor não é acatado como sendo um termo técnico jurídico, todavia, ao decorrer dos anos começou a ter a tutela e o reconhecimento jurídico merecido, sendo que as relações familiares são por ele sustentadas (LEITE, 2005, p. 208). Desta forma, o afeto passou de um sentimento unicamente relevante que aqueles que o sentia, para ter importância externa e entrando no campo jurídico. O principal elo entre o idoso e o respeito de sua dignidade não esta somente na assistência material, e sim no amparo imaterial, repousando no afeto o dever de garantir o seu respeito, em outras palavras, a dedicação da sociedade e familiares em apoiar o idoso, por meio do apreço, benevolência, fraternidade, surgindo, desta forma, a sustentação de sua dignidade.

12.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise acima descrita, constata-se que o afeto é um forte aliado para auxiliar na concretização da harmonia e equilíbrio da personalidade dos idosos na sociedade brasileira. Advirta-se, que para utilizar tais organismos pautar-se nos princípios norteadores da solidariedade familiar, no principio da proteção da terceira idade, do afeto e em especial no principio da dignidade da pessoa humana, que considerado cláusula geral dos direitos da personalidade. Somente por meio do respeito aos princípios supramencionados é possível a concretização e a realização a vida digna aos idosos, tendo em vista que são estes os paramentos para que o Estado, sociedade e a família de assistência a personalidade dos idosos. Assim, a prestação de assistência material em sua essência não desencadeia a completa asserção da vida digna para os idosos, podendo montar apenas a necessidade fisiológica, não fundamentando e resguardando a humanização deste desde individuo, ou seja, necessário a dedicação do afeto, amor e apego nesta relação. Destarte, a existência de normas em defesa da dignidade do idoso. Como na Constituição Federal a implantação de políticas nacional de proteção ao idoso, por força da Lei 8.842/1994, a qual abriga direitos sociais básicos dos idosos, consentindo sua conexão e participação na sociedade. Do abandono afetivo... // 229

E ainda, posteriormente, com o advindo do Estatuto do Idoso, através da Lei 70.741/2003 o qual perfilhou-se os direitos fundamentais presente ao idoso, preservando a sua integridade física e psíquica. Por fim, observou-se que, infelizmente, para uma melhor análise e concretização desta dignidade é imprescindível a atuação estatal, através de políticas publicas para inserção do idoso na sociedade, determinar a inclusão deste no mercado de trabalho e faculdades, na medida em que dissemina a importância da efetividade e da dignidade da pessoa humana como contrapesos do da obrigação material para os idosos.

12.7 REFERÊNCIAS

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232 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= XIII =

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E SUA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Célio César Fernandes* Gláucia Cristina Ferreira*

13.1 INTRODUÇÃO

Diante da evidente crise global que se vivencia, os velhos paradigmas da modernidade estão sendo contestados. Novos conceitos e métodos em matéria de conhecimento exigem uma reinterpretação. Assim, a inclusão faz parte dessa contestação, implicando-se na mudança do paradigma educacional atual para que se adapte ao novo modelo de educação escolar que está surgindo, agregando todos os educandos, independente da diversidade que apresentem, em condições de igualdade juntamente com os considerados normais.

13.2 CONCEITO DE INCLUSÃO

A abrangência da inclusão fundamenta-se na percepção de diferenças, algo da ordem da singularidade dos seres humanos (PAULON, 2007). O termo inclusão expressa diversos significados, tais como: compreender, abranger, estar incluído, fazer parte, pertencer juntamente com os outros, ato ou efeito de incluir (FREITAS, 2005). Estando em evidência no nosso dia a dia, seja em relação aos deficientes físicos, mentais, auditivos, visuais ou entre outras seleções como digital, social, alimentar, etc., torna-se, de certa forma, uma proposta que muito se discute e que, de alguma maneira, está lançando resultados satisfatórios no entrosamento entre as pessoas (ARTEEDUCAR, 2008). Nos dicionários, encontram-se várias definições para inclusão. É conceituada por Aurélio como “[...] ato ou efeito de incluir, o ato de incluir pessoas portadoras de necessidades especiais na plena participação de todo o processo educacional, laboral, de lazer, etc., bem como em atividades comunitárias e domésticas” (FERREIRA, 1999); para Michaelis (1998), “ato ou efeito de incluir” nas palavras de Koogan Houaiss (2001), “[...] ação ou efeito de incluir, estado de uma coisa incluída” O movimento mundial pela inclusão social começou a ser difundido inicialmente na segunda metade dos anos 80 nos países desenvolvidos, aprimorando-se a partir da década de 90. Nos países em crescimento, vai se

* Mestrando do Programa de Mestrado Ciência Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR. E-mail: [email protected] * Mestranda do Programa de Mestrado Ciência Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR. E-mail: [email protected] 234 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade desenvolver fortemente nos primeiros 10 anos do século XXI, influenciando comumente os outros países (SASSAKI, 1999). Com a Disabled Peoples Internacional busca-se a inclusão das pessoas portadoras de deficiência na sociedade, uma coordenação não governamental e sem fins lucrativos, confirmando-se a Declaração de Princípios em 1981, mediante a exposição da equiparação de oportunidades (SASSAKI, 1999), dispondo que:

[...] o processo mediante o qual os sistemas gerais da sociedade, tais como o meio físico, a habitação e o transporte, os serviços sociais e de saúde, as oportunidades de educação (grifos inexistentes no original), trabalho, vida cultural e social, incluídas as instalações esportivas e de recreação, são feitos acessíveis para todos. Isto inclui a remoção das barreiras que impedem a plena participação das pessoas deficientes em todas as áreas, permitindo- lhes assim alcançar uma qualidade de vida igual à de outras pessoas (DRIEDGER, 1999).

Portanto, pode-se verificar que o processo de inclusão é pleiteado por pessoas pessoas com deficiência, com dificuldades de ter seu ingresso na sociedade, reivindicando por melhores condições nas ações sociais para o exercício de sua cidadania, com direitos de igualdade como outras pessoas na concepção de direitos humanos, incluindo a educação como um dos fatores integrantes da busca do direito de se ter uma vida com qualidade.

13.3 INCLUSÃO NA EDUCAÇÃO

Ao tratarmos desse assunto, nada mais correto entender-se o significado da palavra educação. Consiste no processo mediante o qual, o ser humano estabelece sua personalidade humano-social pela assimilação do saber produzido historicamente. Saber que envolve conhecimentos, valores, crenças, arte, filosofia, visões do mundo, enfim, abrange tudo aquilo o que o homem cria para produzir-se historicamente (PARO, 2003). Aborda-se, primeiramente, a importância da educação formal, fundamento de grande importância para o desenvolvimento das crianças e imprescindível para a sua formação até atingir a fase adulta. Tem-se como um passaporte para a vida fazendo com que os que dela se beneficiam possam escolher o que pretendem fazer, possam participar da construção do futuro coletivo do país e continuar a aprender (UNESCO, 2001), uma vez que o acesso à escola representa a possibilidade de expectativas de uma vida melhor, não abrindo brechas para a ignorância e marginalidade (KONZEN, 2001). É essencial na luta contra as desigualdades, atenuando as enormes disparidades que afligem muitos grupos humanos como pobres da cidade, minorias étnicas marginalizadas e milhões de crianças não escolarizadas que trabalham (UNESCO,2001). Desenvolvendo sua capacidade de socialização e auto-estima, a educação não abrange tão somente a luta pela sobrevivência, mas também a obtenção da qualidade de vida com plenitude Educação inclusiva... // 235 e felicidade (KONZEN, 2001). Dessa forma, Carlos Roberto Jamil Cury (2006) relata escola como:

A instituição escolar, enquanto um lugar específico de transmissão de conhecimentos e de valores desempenha funções significativas para a vida social. Ela faz parte da denominada socialização secundária como uma esfera pela qual, junto com outras, a pessoa vai sendo influenciada (e influindo) por meios de grupos etários, da inserção profissional dos meios de comunicação, dos espaços de lazer, da participação em atividade de caráter sócio-cultural, entre outros.

Como pode se observar, a educação é agente transmissor de conhecimentos para a formação do cidadão, moldando-o e preparando-o para desempenhar sua função social com fins de alcançar a socialização para a convivência em grupo. Dessa forma, é na escola que o educando, a princípio, passa boa parte de sua vida, local em que ele aprimorará suas potencialidades, desenvolvendo suas capacidades na construção da liberdade, da justiça social, como via que conduza a um desenvolvimento mais autêntico de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões e as opressões (UNESCO, 2001). A educação escolar assume um papel importantíssimo ao desenvolvimento do cidadão para o exercício da cidadania. É um bem essencial à vida e passa por todas as formas de relação do ser humano com o seu cotidiano, um passo importante para garantir uma atuação democrática como meio de assegurar sua inserção na sociedade (KOZEN, 2001). Para se alcançar esse resultado, é preciso deixar de considerar as diferentes formas de ensino aprendizagem como independentes umas das outras, valorizando-se a complementaridade dos espaços e tempos de educação moderna (UNESCO, 2001). No entanto, a tradicional escola básica não tem caminhado nessa direção. Restringiu-se a passar informações contidas nos programas das disciplinas tradicionais (PARO, 2003), repassando um ensino homogeinizado sem observar as diferenças existentes no alunado. Já como uma ação política, cultural, social e pedagógica, no que se refere à inclusão na educação, desencadeia-se a defesa do direito de todos os alunos, mesmo na diversidade, pertencerem a uma mesma escola e de estarem juntos aprendendo e participando sem nenhum tipo de discriminação (BRASIL, 2008), tendo seu nascedouro nos Estados Unidos pela Lei Pública 94.142 de 1975 a partir da reivindicação de pais com filhos portadores de deficiência, com objetivo de buscar uma educação de qualidade, em equiparação aos alunos tidos como normais (NOGUEIRA, 2006). A inclusão na educação tem sua história influenciada por dois marcos importantes. O primeiro se deu em março de 1990, quando foi realizada em Jomtien, na Tailândia, Conferência Mundial de Educação para Todos, tendo como meta erradicar o analfabetismo e tornar em evidência o compromisso do poder público, perante a comunidade, em oportunizar a educação básica 236 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade de qualidade para crianças, jovens e adultos (SILVA, 2005). Apontado como segundo marco: a Conferência Mundial realizada na Espanha, em Salamanca, onde foi elaborada uma declaração denominada Declaração de Salamanca em junho do ano de 1994 (SILVA, 2005). Em se tratando da Declaração de Salamanca, ressalta-se que a partir dela foram adotadas linhas de ação em educação especial, preconizando a importância de educação Inclusiva, exercendo influência praticamente em todo o mundo tanto na elaboração de políticas públicas quanto nos exercícios educacionais. É considerada como um dos principais documentos mundiais que tem por objetivo a inclusão escolar com qualidade e acesso das crianças com necessidades educativas especiais (NOGUEIRA, 2006). Portanto, é considerada inovadora, pois constitui um avanço significativo na medida em que não propõe uma escola que na prática existe, mas indica que todos os governadores devem atribuir a mais alta prioridade política e financeira ao aprimoramento de seus sistemas educacionais no sentido de se tornarem aptos a incluírem todas as crianças, independente de suas diferenças ou dificuldades individuais (OREAL/UNESCO, 1994). A educação inclusiva se caracteriza como uma política de justiça social que alcança alunos com necessidades educacionais especiais, tomando-se aqui o conceito mais amplo, disposta na Declaração de Salamanca que:

O princípio fundamental desta linha de ação é de que as escolas devem acolher todas as crianças, independente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Devem acolher crianças com deficiência e crianças bem dotadas, crianças que vivem nas ruas e que trabalham, crianças de populações distantes ou nômades, crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidas ou marginalizados (OREAL/UNESCO, 1994).

Logo, as escolas inclusivas têm por obrigação reconhecer a diversidade e as necessidades dos seus alunos, acomodando-os aos diferentes ritmos de aprendizagem através de um currículo adaptado, proporcionando a esses alunos apoio extra que possam precisar, assegurando-lhes uma educação eficaz e de qualidade, independente de sua raça, cor ou nível social. O objetivo é agregá-los, trazê-los para a escola e erradicar a exclusão escolar. A Declaração de Salamanca é um documento que deixa claro que a escola não é apenas para receber alunos portadores de necessidades especiais, mas de uma escola para todos, com direito de estudar preferencialmente em salas regulares de ensino na rede pública com acesso a uma educação de qualidade, escolas inclusivas para contribuir com o desenvolvimento de sociedades acolhedoras, democráticas e justas (CARVALHO, 2006). Inobstante, defendendo o compromisso que a escola deve assumir de educar cada estudante, contempla a pedagogia da diversidade, já que Educação inclusiva... // 237 todos os alunos deverão estar dentro da escola regular, independente de sua origem social, ética ou linguística (LACERDA, 2006). É certo que tais legislações foram criadas devido a grande preocupação de todos os países com a evasão escolar a exemplo, tem-se o Brasil. Oito milhões e meio de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos não estão em nenhum banco escolar; mais de seis milhões até os 17 anos de idade não se encontram assentados nos bancos escolares. Dentre uns dos fatores destaca-se a fortíssima discriminação em relação aos negros. Constata-se que menos de 1% deles têm acesso ao ensino superior (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2003). Tem-se, portanto, que a palavra inclusão, de modo geral, é um processo que visa incluir, agregar, trazer aquele que está fora, seja em relação à era digital, alimentar ou social, sem qualquer restrição. O tema em questão, educação inclusiva, é um dentre os meios de inclusão, buscando minimizar as diferenças existentes no contexto escolar, já que a meta é incluir, independente das diversidades que apresentem os indivíduos, por uma questão de democracia e igualdade de oportunidades.

13.4 INTEGRAÇÃO VERSUS INCLUSÃO

Ocorre, porém, que tais termos possuem significados diferentes no contexto social. Alguns, em consonância com a moderna terminologia da inclusão social, utilizavam-nas com sentidos iguais, mas o termo integração, significa inserção da pessoas com deficiência preparada para conviver na sociedade por seus próprios méritos. Já a inclusão, significa modificação da sociedade como pré-requisito para a pessoa com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento, e exercer a cidadania independente da anormalidade que apresente (MANTOAN, 2004). Assim, a mera integração versa em simplesmente permitir que as pessoas com deficiência compartilhem do convívio social sem a adoção de uma postura facilitadora, ativa, mas meramente não discriminatória passiva (HONESKO, 2007), ou seja, ela ajusta-se por merecimentos exclusivamente seus. Como exemplo, a ONU usou o termo plena integração quando, na verdade, referiu-se a inclusão. Os documentos 47/88 (de 16-12-92) (United Nations, 1993a) e 49/153 (de 7-2-95) têm o mesmo título: “Em Direção à Plena Integração (grifos no original) de Pessoas com Deficiência na Sociedade: Um Contínuo Programa Mundial de Ação”, dispondo a seguinte afirmação:

[A Assembléia Geral] Reiterando a responsabilidade dos Governos para remover ou facilitar a remoção de barreiras e obstáculos à plena integração (grifos no original) e participação de pessoas com deficiência na sociedade e para apoiar seus esforços no desenvolvimento de políticas nacionais para atingir objetivos específicos (...)”. (United Nations, 1995c) (SASSAKI, 1999).

Com o exposto, tem-se que os termos integração e inclusão foram 238 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade aduzidos com significados idênticos. No entanto, sabe-se que possuem interpretações distintas, mas tendo como proposta os mesmos objetivos, ou seja, a inserção das pessoas deficientes na sociedade. O movimento inclusivista, como já explicitado anteriormente, teve início por volta do final dos anos 80 e início da década de 90, frente aos Programas Mundiais de Ação Relativo às Pessoas com Deficiência, Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), mas não se fazia diferença entre as duas palavras por estar se vivenciando uma fase de transição de integração para inclusão (SASSAKI, 1999). Portanto, é compreensível que, na prática, ambos os processos sociais coexistam por mais algum tempo até que, gradativamente, a integração esmaeça e a inclusão prevaleça, mas tanto a integração quanto a inclusão constituem formas de inserção social das pessoas com deficiência (SASSAKI, 1999). Em termos de educação, a prática da integração foi definida mais claramente nas décadas de 1960 e 70. Baseada no modelo médico, tinha como premissa básica o diagnóstico e, sem ele, entendia-se não poder fazer muito enquanto não se conhecesse o aluno (SILVA, 2005), segundo o qual era preciso modificá-lo, habilitá-lo a fim de torná-lo apto a satisfazer os padrões aceitos no meio escolar (FERREIRA, 2006). Nessa época, a pessoa com deficiência é declarada como um doente, cuja proposta visa modificar, habilitar, reabilitar ou educá-lo, ingressando no processo educativo somente aqueles que tenham condições de ser atendidos pela escola. Integrar é inserir o aluno; é ele quem deve adaptar-se à escola; ao contrário da inclusão, que prevê uma reforma radical nas escolas em termos de currículo, avaliação e pedagogia, modificando-se para receber uma nova clientela, desde o início da vida escolar sem um prévio diagnóstico médico (MANTOAN, 2004). Agnes Fletcher (1996) explica o modelo médico da deficiência nos seguintes termos:

[...] tradicionalmente, a deficiência tem sido vista como um problema do indivíduo e, por isso, o próprio indivíduo teria que se adaptar à sociedade ou ele teria que ser mudado por profissionais através da reabilitação.

Conclui-se, portanto, que a pessoa com deficiência é que tinha que adaptar-se ao modelo proposto pela sociedade por seus próprios méritos ou necessitava passar pela avaliação de um médico prevendo ser possível sua reabilitação para, assim, ser inserido como membro do convívio social. Ao oposto, a inclusão prediz claramente que todos devem ser incluídos e a sociedade deve preparar-se para recebê-los e do mesmo modo as escolas, independente de suas peculiaridades. A inclusão se inicia na década de 80 e consolida-se nos anos 90. Segue-se um modelo social, com o fim de modificar a sociedade para torná- la capaz de acolher todas as pessoas que apresentem alguma deficiência como partes atuantes dessa nova sociedade em construção (SERRAT, 2005). Educação inclusiva... // 239

No processo social, a integração e a inclusão são de suma importância, já que a meta da educação é construir uma sociedade inclusiva, pois é sabido que nem todas as pessoas com deficiência necessitam de que a sociedade seja modificada, mas outras pessoas com necessidades especiais não poderão participar plena e igualmente da sociedade se esta não se tornar inclusiva. A mudança de integração para a inclusão é muito mais do que uma dança de moda, é uma semântica do politicamente correto (MITTLER, 2003). Enfim, com a mudança de integração para inclusão, muitas alterações vão ocorrer no meio educacional, já que esta visa incluir a todos sem distinção, independente das anomalias e diversidades que o cidadão possa apresentar, aquela predispõe que o aluno insere-se no meio escolar por seus próprios méritos, seguido de uma avaliação médica prevendo a sua reabilitação.

13.5 EXCLUSÃO SOCIAL E INCLUSÃO

A exclusão social começa desde cedo, antecede ao nascimento do bebê. Tem origem na pobreza, na moradia inadequada, na doença crônica e no longo período de desemprego, negando-se às crianças os recursos e as oportunidades disponíveis. Algumas enfrentam obstáculos adicionais por causa da sua raça, da sua religião, de sua deficiência, de seu gênero (homem ou mulher) (MITTLER, 2003). Dessa forma, assevera Paulo Afonso Zarth (1998) que:

[...] exclusão social é reservada para definir situações nas quais há um processo ativo de discriminação, estigmatização e expulsão de um conjunto de âmbitos sociais não determinados por decisões individuais.

Portanto, a exclusão visa pela discriminação, agente ativo que traz conseqüências significativas para o meio social, tirando o direito de oportunidade do cidadão se aprimorar, desenvolver-se na sociedade em busca de uma melhor qualidade de vida. Muitas vezes não há condições de reverter este quadro por si só, pois, é um fato que exige a participação de toda a sociedade para a conquista de resultados satisfatórios e significativos. A exclusão social provém de políticas sociais mal distribuídas, destacando-se o rápido e desordenado processo de urbanização, a inadaptação e uniformização do sistema escolar, desigualdades de renda e de acesso aos serviços sociais (WANDERLEY, 2002). As crianças que pertencem a famílias que vivem na pobreza tendem a se beneficiar menos da escolarização do que aquelas que são oriundas de famílias com melhores recursos. Acontecem desigualdades em relação à saúde naquelas criadas em lares desestruturados na qual, ao serem levadas para ficarem sob os cuidados de instituições, ficam expostas a doenças, abandonando muito cedo a escolarização (MITTLER, 2003). O conceito de exclusão sempre levará ao entendimento de expulsão, 240 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade de marginalização, de eliminação. A expressão exclusão social, todavia, não significa um ato fato, mas um processo de marginalização ou eliminação de pessoas ou grupos sociais dos benefícios conferidos por um sistema político- econômico (PAULA, 2002). Vê-se que o sistema político traz efeitos primordiais à vida do cidadão, surtindo efeitos de inclusão ou exclusão no seio social. Assim, através de políticas distributivas, é possível uma sociedade com participações heterogêneas, oportunizando-se por uma melhor qualidade de vida aos cidadãos (PAULA, 2002). Por outro lado, tem-se a inclusão social conceituada por Romeu Kazumi Sassaki (1997) como:

[...] o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, em processo bilateral na quais as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade busca, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos.

Como posto acima, em decorrência desses fatores, cabe também à sociedade a busca de métodos que possibilitem uma adequada inclusão social dos que aparentam alguma deficiência, exatamente com o propósito de não deixá-las à margem de tudo e com oportunidades iguais para todos. A inclusão é percebida como um processo de ampliação da circulação social que produz uma aproximação dos seus diversos cidadãos, convocando-os à construção cotidiana de uma sociedade que ofereça oportunidades variadas a todos os seus cidadãos e possibilidades criativas a todas as suas diferenças (PAULON, 2007), responsabilidade de toda a sociedade com participação plena. A idéia de uma educação inclusiva fundamenta-se numa filosofia que reconhece e valoriza a diversidade como característica inerente à constituição de qualquer sociedade (LAPLANE, 2006), no sentido de incluir o cidadão, trazendo-o para o convívio social, não constituindo um obstáculo para o alcance de uma vida normal (HONESKO, 2007), pautado em direitos iguais entre os cidadãos. Sendo a exclusão escolar considerada como o primeiro passo para a exclusão social, o combate à exclusão escolar obriga a escola a confrontar- se com a gênese homogeneizadora e segregadora e a ter em conta que o ensino aprendizagem é um processo de socialização (NOGUEIRA, 2006). A inclusão escolar é então a alternativa no sentido de que a escola assente na diversidade curricular e opondo-se à tônica dominante de ênfase colocado nas dificuldades ou incapacidades de cada criança (ALMEIDA, 2006), acolhendo-a e interando-a sem discriminação, formando seu caráter para o pleno gozo de sua cidadania, oportunizando-a aos direitos a ela inerentes como forma de inserção social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais digna, solidária respeitando cada ser em sua diferença. Educação inclusiva... // 241

13.6 CONCEITO DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Nos últimos anos, a sociedade vem passando por inúmeras modificações. O mundo parece estar mudado, os valores alterados, as pessoas diferentes. O século XXI traz uma nova consciência e a globalização. Vive-se um outro momento, faz-se necessário revisar conceitos de natureza, de sociedade, de significado pedagógico da instituição escolar, de indivíduo, de noções de igualdade e de diferença (FERREIRA, 2006). A educação inclusiva é uma questão básica de direitos humanos já extensivamente referendada em várias conferências mundiais, como a Convenção dos Direitos da Criança de New York, de 1989; Conferência Mundial de Educação para Todos de Jomtiem, de 1990; a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais de Salamanca de 1994 e o Foro Consultivo Internacional para a Educação para Todos de Dakar, de 2000 (FONSECA, 2003). Rosana Glat e Maria Auxiliadora Duque (2003) conceituam educação inclusiva como:

[...] todos os alunos, mesmo os portadores de condições que afetam diretamente a aprendizagem – deficiências sensoriais (surdez e cegueira), mental ou cognitiva, e os transtornos severos de comportamento (autismo e psicoses) – devem ter a possibilidade de se incluir no ensino regular, preferencialmente sem defasagem idade-série.

Nesse sentido, a educação inclusiva leva a considerar o movimento integrativo como raiz do movimento inclusivo. O espaço de abrangência e incidência é ampliado, considerando que todos os alunos que experimentam algum tipo de obstáculo na sua carreira acadêmica possam interagir-se e desenvolver-se consideravelmente em todos os graus de ensino. Contemplando-se, assim, na concepção de Cláudia Werneck (1997), que entende, “[...] o processo de inclusão dos portadores de necessidades especiais ou de distúrbio de aprendizagem na rede comum de ensino em todos os seus graus. Da pré-escola ao nível de pós-graduação”, tendo por meta a inclusão de todos os educandos. Tradicionalmente, o conceito de educação inclusiva surge associado aos alunos com deficiência física e ao campo da educação especial, reduzindo o seu âmbito às ações e práticas existentes nas escolas de ensino regular, apresentando como o culminar de uma evolução histórica na educação para a transformação de uma escola que se orienta para a inclusão de todos (SANTOS, 2006). Vislumbra-se que a escola de inclusão é a que assegura o direito de ingresso à igualdade de condições para o sucesso de todos os alunos no âmbito escolar, entendida como um espaço de consenso, de tolerância para com os diferentes como um elemento primordial de inserção social no cotidiano escolar (SKLIAR, 2001). Uma nova concepção de educação e sociedade se faz por vontade 242 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade pública e é essencial que o sistema educacional assuma vontade para operar as transformações nos modos de relação dentro da escola. É também necessário que os profissionais envolvidos tomem para si a tarefa de pensar sobre essas questões de forma reflexiva e coletiva e que todos os agentes institucionais percebam-se como gestores e técnicos da educação inclusiva (PAULON, 2007). A aquisição do conceito de educação inclusiva e não escola inclusiva justifica-se com o preceito de se tratar de uma percepção que obedece a todo o sistema de ensino, reconhecendo pessoas e grupos concretos, fundamentado na diferenciação curricular e num currículo em formação (ALMEIDA, 2006). Um rompimento com a escola tradicional se aborda acerca da conscientização que possuem os atores do contexto escola, sobre este cariz essencial que tal concepção produz e do impulso que a adoção deste projeto abrangerá nos valores sociais. Dessa forma, Barton Booth (2006) assevera que: A educação inclusiva trata da resposta à diversidade; trata de saber escutar vozes pouco familiares, de criar atitudes de abertura, trata-se de dar poder a todos os membros, trata de celebrar a diferença de formas dignificantes. Nesta perspectiva, o objetivo é não deixar ninguém fora da escola. Com essa nova concepção, o valor atribuído a cada um é igual. Considera-se o aluno, o pai e o educador ou professor como protagonistas do desenvolvimento da ação educativa inclusiva na qual versa por uma aprendizagem coletiva. Todos assumem o compromisso para que a educação inclusiva tenha o seu alcance primordial, ou seja, ninguém deve ficar fora da escola. Verifica-se desse modo que, com o acesso à educação, os cidadãos ampliam capacidades reflexivas, se reconhecem como parte de uma sociedade (BOMENY, 2001), constituindo um paradigma educacional firmado na percepção de direitos humanos, que ajusta igualdade e diferença como valores inseparáveis (BRASIL, 2008). O processo de inclusão vem dar continuidade à história da educação especial no Brasil. A partir de agora se adquire a responsabilidade de colocar em prática e fazer valer os direitos de todos os alunos que apresentem alguma anormalidade, pela própria conscientização intelectual e científica dos professores, contemplada nas palavras de Rosita Edler Carvalho (1997):

[...] a operacionalidade da inclusão de qualquer tipo de aluno no espaço escolar deve resultar de relações dialógicas envolvendo família, escola e comunidade, de modo que cada escola ressignifique as diferenças individuais, bem como reexamine sua prática pedagógica.

Como se observa, todos aqueles que fazem parte do cotidiano escolar do aluno, sua família, os professores e a comunidade podem, unidos, contribuir para o desenvolvimento do aluno na educação inclusiva sendo, portanto, responsabilidade de todos. As práticas pedagógicas devem ser Educação inclusiva... // 243 reformuladas para o eficaz atendimento dessa nova clientela. Assevera Suely Pereira da Silva (1997) que:

[...] apostar na Educação Inclusiva é acreditar que seremos capazes de contribuir para uma transformação social, que trate efetivamente a todos dentro dos princípios da igualdade (grifos inexistentes no original), da solidariedade e da convivência respeitosa entre os indivíduos. Acreditar no processo de inclusão é viabilizar a possibilidade de se buscar alternativas de permanência do aluno na escola, respeitando seu ritmo de aprendizagem e elevando sua auto-estima. É banir em definitivo o hábito de excluir, que tanto tem empobrecido a sociedade brasileira. É reconhecer que somos diferentes, mas que devemos ter as mesmas oportunidades de acesso a uma vida melhor. É permitir que cada indivíduo possa entender como se dão as relações de poder na sociedade e possam exercer seu papel de cidadão, enquanto contribuintes, na construção de uma nação solidária.

Visa-se, assim, pela transformação da sociedade em que todos têm condições, na medida do possível, de contribuir para que a educação inclusiva aconteça, através de gestos solidários, respeitando cada qual com sua diferença, permitindo de modo geral a participação desse cidadão como ser integrativo e com oportunidades com vistas ao princípio da igualdade, assumindo-se compromisso para a edificação de uma sociedade para todos. O padrão da inclusão atenta a todos os professores a possuírem um olhar para cada aluno para poderem proporcionar direitos iguais. Não prevê a utilização de práticas de ensino específicas para esta ou aquela deficiência ou ainda dificuldade de aprender (MANTOAN, 2004); não há discriminação, como nos lembra Susan Stainback e William Stainback (1999):

[...] se realmente desejamos uma sociedade justa e igualitária, em que todas as pessoas tenham valor igual e direitos iguais, precisamos reavaliar a maneira como operamos em nossas escolas, para proporcionar aos alunos com deficiência as oportunidades e as habilidades para participar da nova sociedade que está surgindo.

Para que se alcance uma sociedade com a participação de todos, é preciso dar ênfase ao tratamento igualitário como forma de justiça social, proporcionando aos alunos a participação na construção dessa nova sociedade que está surgindo e à escola como ponto primordial para que essa transformação comece a ser concretizada. A inclusividade é a garantia de uma educação de qualidade para todos os alunos sendo igualmente uma questão de justiça social (BRITO, 2006). Em outras palavras, numa escola inclusiva a diversidade é valorizada em relutância à homogeneidade, oferecendo aos alunos maiores oportunidades de aprendizagem. Nessa perspectiva, a educação inclusiva prevê que a escola é um espaço de ação e transformação. Uma compreensão que aproxima a idéia de políticas de educação e políticas sociais que garantam a melhoria da qualidade de vida da população (PAULON, 2007). 244 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Assim, conclui-se que a escola, como um sistema dinâmico, contribui diretamente para a plena formação do cidadão com a adoção de uma educação inclusiva junto às políticas educacionais e sociais. Com isso, o cidadão exercitará suas potencialidades de cidadania, trazendo maiores benefícios para sua inclusão no meio social, alcançando uma melhor qualidade de vida e preparando-o para exercer sua função dentro do Estado Democrático, prevenindo sua exclusão.

13.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conformidade com os estudos relacionados, a educação é um direito fundamental constitucionalmente garantido de forma de qualquer pessoa está legitimada a exigir, administrativamente ou Judicialmente, do Estado a efetivação deste direito fundamental social e de aplicabilidade imediata. Os direitos sociais são direitos fundamentais de segunda geração, exigindo prestações positivas de estado para garantir sua efetivação. Dentre tais direitos, encontramos o direito à educação, a qual, segundo a nova constituição, visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Os objetivos da educação citados estão relacionados aos fundamentos do Estado brasileiro, preceituados nos incisos do art. 1º da Carta Magna: dignidade da pessoa humana, cidadania e valor social do trabalho, o que demonstra que a educação é um instrumento de eficácia dos mencionados fundamentos. E somente com a sua efetividade é que podemos construir o Estado democrático de direito desenhado na Constituição de 1998. A educação é um direito social previsto na Constituição e demais legislações, sendo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) um importante elemento na busca pela garantia plena deste direito. Por outro lado, novos estudos se fazem necessário, acompanhando o novo Plano Nacional de Educação para o período 2011-2020, que se apresenta no momento como um importante elemento político para defesa da educação, explicitando de onde sairão os recursos para atingir as metas propostas além da importância da verificação da qualidade do fornecimento da Educação Básica à população brasileira. A posição omissa do Poder Judiciário está ultrapassada na perspectiva do Estado Democrático de Direito, busca-se uma solução que não fira o princípio da Separação dos Poderes. Resta enfatizar que para uma atuação judicial compatível, com o paradigma do Estado democrático de Direito há que se buscar magistrados mais conscientes de seu papel na efetivação da democracia. Prestar assistência aos mais necessitados é atentar para as condições precárias desses indivíduos, tentando ajuda-los da forma mais lícita e transparente possível, auxiliando-os a caminhar em direção à conquista de seus direitos, da supressão de suas necessidades. Educação inclusiva... // 245

Destaco e enfatizo que a educação tem o papel de construir e ampliar a experiência das pessoas, formentando o desenvolvimento humano e a inclusão de todos os indivíduos neste caminho, desvela o ideário da democracia. Previram-se, formas de inclusão educacional de uma categoria minoritária através de alterações legislativas. Entretanto, a previsão legislativa de isenção de tais pessoas no ensino regular, apesar de um grande avanço no ideal de uma sociedade inclusiva, encontra obstáculos que a legislação, pura e simples, não consegue resolver. Por outro lado, os próprios educandos devem ser instruídos a lidar com diferenças respeitando a diversidade, tarefa esta de difícil efetivação na atualidade. Conclui-se que para o Estado assegurar a Educação inclusiva, ele deve reconhecer o processo de exclusão a que os alunos com deficiência estão submetidos, para, então, promover as mudanças necessárias na escola e na sociedade permitindo assim, uma educação democrática, a observância da inserção do portador de necessidades especiais preferencialmente na rede regular de ensino, assim como o foco na rede regular de ensino e o cumprimento, na íntegra, no Direito Social a Educação, conforme artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

13.8 REFERÊNCIAS

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ZARTH, Paulo Afonso. Caminhos da exclusão social. Ijuí: UNIJUÍ, 1998.

= XIV =

IDENTIDADE E E(I)MIGRANTES SOB A PERSPECTIVA DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE NO BRASIL

Thais Janaína Wenczenovicz* Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira**

14.1 INTRODUÇÃO

A migração49 de pessoas apresenta-se como uma característica persistente na economia nacional e internacional. Entretanto, pode-se dizer que são nítidas as diferenças existentes entre a livre circulação de bens, serviços e mercadorias e a mobilidade internacional das pessoas. Tanto para países da União Europeia e da América do Norte, quanto para o Brasil, torna- se difícil a criação e a implementação de políticas migratórias que atendam ao crescente fluxo de migrantes. Percebida muitas vezes como uma ameaça à soberania e a identidade50 nacional a deslocamento de massas humanas sempre foi uma das preocupações estatais. Em função das macro-políticas de desenvolvimento, nos últimos anos, aumentou o número de pessoas que deixam seus países em busca de novos lugares para viver em busca de liberdade, trabalho e segurança. Acena-se também para a prerrogativa do crescente número de conflitos armados que circundam a maioria dos continentes.51

* Docente Adjunta na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Professora Colaboradora do Programa de Pesquisa e Extensão e Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC. ** Advogado, Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação das Faculdades Anglicanas de Erechim-RS e Tapejara-RS. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília – UCB, Mestre em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. 49 Para esse estudo utilizar-se-á como conceito de migração o deslocamento de indivíduos dentro de um espaço geográfico, de forma temporária ou permanente. Destaca-se ainda que esses fluxos migratórios podem ser desencadeados por vários motivos: econômicos, culturais, religiosos, políticos e climáticos como os desastres ambientais (estiagem, terremotos, enchentes, dentre outros). 50 O texto utiliza-se do termo ‘Identidade’ não a partir de conceitos biológicos, mas históricos, e nunca unificados. Cada um deles aponta para direções diferentes, o que significa dizer que o deslocamento é constante. Para Hall “[...]se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’” (HALL, 2003, p.13). 51 A título de exemplo pode-se citar a Guerra da Síria. O conflito na Síria completou 4 anos com balanço humanitário dramático: o número de mortos passa de 215 mil, sendo que 7 milhões abandonaram suas casas. A Guerra civil teve início após repressão às manifestações de março de 2011 que marcaram a história do mundo contemporâneo. Segundo a (ACNUR), no país, mais 250 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade E é em decorrência desse intenso crescimento do movimento internacional de pessoas, resultante das modificações sócio-políticas, e também do nefasto efeito dos conflitos armados em curso no globo terrestre que surgem muitos outros conflitos que refletem na interação entre aqueles que escolhem, ou são forçados a, emigrar de seus países na busca de segurança pessoal, alimentar, ou mesmo na esperança de melhores condições de trabalho e os nativos dos países destino da imigração. A este respeito, afirma Oliveira:

Nesse sentido, a temática migratória passa a ser objeto de debate e disputa ideológica e política entre os segmentos sociais envolvidos com a questão dos movimentos internacionais de população, tendo como consenso aparente a necessidade de uma nova legislação. No curso da discussão aparecem: o setor que propõe algumas mudanças, mas mantém o essencial do caráter restritivo, expresso na manutenção da seletividade migratória e na regulação de entrada e permanência dos estrangeiros, dado que enfocam as migrações de forma instrumental, procurando tirar proveito dos benefícios econômicos que essas possam proporcionar; surgem segmentos sociais, de inspiração humanista, que defendem novas lei e políticas migratórias pautadas na promoção e garantia dos direitos dos imigrantes; além das nuances do embate velado pelo protagonismo na condução da política migratória (OLIVEIRA, 2015, p. 252).

É nesta interação que os aspectos culturais, sociais e econômicos assumem especial relevância e, por muitas vezes, culminam em episódios prenhes de xenofobia e preconceito, seguidos por manifestações de abuso psicológico e violência física direcionados aos imigrantes. Na tentativa de regular a entrada e saída de pessoas, e também organizar o sistema e possibilidades de legalização do status de imigrantes, os países elaboram sistemas legislativos migratórios, cada vez mais necessários diante da miríade de imigrantes em circulação no mundo atualmente. Estes sistemas legislativos nem sempre são produzidos sob uma orientação para a garantia dos direitos humanos dos imigrantes, bem como, não levam em conta os tratados e convenções internacionais a respeito do tema da imigração. É nesse processo legislativo que os Estados incorrem em violações ou omissões, acarretando sofrimento aos migrantes e suas famílias. Não obstante, são as organizações econômicas52 (sejam pessoas físicas ou jurídicas), que na tentativa de superar estes limites políticos impostos pelos Estados, que criam modelos flexíveis e adaptáveis à melhor circulação de bens e de indivíduos, com o objetivo de ampliar a intensidade de em torno de 60% da população vive na pobreza. Os combates destruíram as infraestruturas e, com isto, provocaram uma grande escassez de energia elétrica, água e alimentos, especialmente nas zonas cercadas pelo exército. 52 A migração econômica é a que exerce maior influência na população. É entendida como o deslocamento de contingentes humanos para áreas onde o sistema produtivo concentra uma maior ou uma melhor oportunidade de trabalho.

das trocas, em especial nas regiões de fronteira. Esta postura conduz as pessoas a adotarem um estilo de vida de relações múltiplas e horizontais. Como se depreende das palavras de Pereira (2015, p. 23), a atuação dos organismos econômicos consagra o modo de ser e de viver da comunidade fronteiriça, com maior concisão e sucesso que a atuação dos organismos políticos e estatais. É nesse entremeado de legislação, incessante fluxo de pessoas e mercadorias, luta pela sobrevivência e diferenças culturais e sociais que ocorrem a maior parte das violações aos direitos dos imigrantes e de suas famílias. Ao decidirem por emigrar, ainda em seus países de origem, muitos indivíduos enfrentam a ação das agências internacionais de tráfico de pessoas, para quem pagam altas somas em espécie, com o fito de realizar uma travessia e acabam sendo lançados ao mar com destinos muitas vezes opostos do caminho que pretendem seguir. Já na chegada aos países de destino, os imigrantes enfrentam o desafio de integração com a nova comunidade, além do processo de adaptação a nova cultura, novos costumes, idioma diferenciado, e, não raras vezes enfrentam a hostilidade dos nacionais e até mesmo de instituições ou órgãos governamentais que não dão suporte a este movimento migratório, entendido como um ataque às questões políticas e sociais da nação. Também se verificam evidências de racismo, xenofobia e outras formas de discriminação face à inserção dos imigrantes na sociedade. Estas posturas conduzem à postura de desconfiança e imposição de responsabilidade pelos males da sociedade, apresentado os imigrantes como principais responsáveis pela crise ou pelos problemas do contexto local como falta de emprego, recessão ou estagnação da economia. Assim, os imigrantes, muitas vezes, acabam criminalizados em situações de abuso de poder e violência. É nesse contexto de conflitos que se justifica o presente trabalho, que pretende encetar breve análise sobre os direitos da personalidade no sistema jurídico brasileiro, para, em seguida, verificar a legislação migratória brasileira em vigor, com breve olhar para os documentos legais internacionais a respeito dos migrantes, bem como as principais propostas de alteração legislativa no tocante aos imigrantes e suas famílias. Ao final, será verificada a existência e eficácia de mecanismos de proteção aos direitos da personalidade dos imigrantes em busca de trabalho no Brasil.

14.2 PANORAMA DA IMIGRAÇÃO NO BRASIL: IDENTIDADES E CONTEXTOS

O fluxo das migrações no Brasil foi caracterizado por diferentes etapas. O primeiro fluxo migratório aconteceu com o processo de ocupação e povoamento onde imigrantes portugueses instalaram-se no país com o fito 252 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade de exploração de matérias-primas e metais preciosos e delimitação da posse do território. Após este período inicial, e com o objetivo de melhor explorar as terras, ocorreu à vinda de espanhóis, franceses e holandeses. Nas primeiras décadas do século XIX, imigrantes de outros países, principalmente europeus, vieram para o Brasil em busca de terra e trabalho. Compravam terras, cultivar em pequenas e médias propriedades, e impulsionaram as atividades de manufatura e comércio variado - aqueles que tinham profissões (artesãos, sapateiros, alfaiates, etc.) na terra de origem abriam pequenos negócios no Brasil. Seyferth (2013, p. 4), indica que a categoria imigrante aparece no campo político no momento de consolidação do Estado brasileiro, na década de 1840, por um lado associada ao povoamento do território e, por outro, ao trabalho livre, tendo em vista as diferentes necessidades do Império e de algumas de suas províncias. Antes desse período a palavra pouco aparece na legislação e nos escritos sobre a colonização estrangeira. O evento histórico aceito como marco inicial da imigração tem sido a fundação da colônia de Nova Friburgo (RJ) em 1819. A abertura dos portos, em 1808, porém, permitiu a entrada de estrangeiros e sua fixação em algumas cidades portuárias, engajadas em atividades comerciais. No tocante ao período da "grande imigração", ocorrido entre 1880 e 1920, os censos de 1900 e 1920 mostram que cerca de 80% da população estrangeira no Brasil se concentrava nos estados da região Sudeste, zona mais desenvolvida e com maior concentração de riquezas do Brasil. Nessa região estavam as melhores ofertas de trabalho e oportunidades de moradia. Os estados de São Paulo e a então capital, o Rio de Janeiro, eram os maiores receptores de imigrantes, sendo que os estrangeiros chegaram a compor 24,14% da população do Rio de Janeiro e 20,89% de São Paulo no ano de 1900. Os outros dois estados do Sudeste, Minas Gerais e Espírito Santo, também contavam com significativa presença estrangeira. Os outros 20% dos estrangeiros residentes se concentravam sobretudo nos estados do Sul, especialmente no Rio Grande do Sul. No resto do Brasil, a presença de estrangeiros era bastante reduzida, correspondendo a menos de 1% da população local. Uma das exceções foi o estado do Pará, no extremo Norte, que recebeu significativo número de comerciantes portugueses nos primeiros anos do século XX (IBGE: Estatísticas do Século XX, 2010). Na década de 1960, o Brasil deixou de receber grandes levas de imigrantes. Os portugueses, que eram os únicos que ainda imigravam em massa para o Brasil, passaram a deslocar-se preferencialmente para outros países da Europa. Na década de 1970, houve algum fluxo de imigrantes entrando no Brasil, vindo principalmente da Coreia do Sul, China, Bolívia, Peru, Paraguai e de países africanos. Esses imigrantes, porém, já não tinham o impacto demográfico que tiveram as outras imigrações mais antigas no Brasil Na década de 1980, o fluxo migratório do país inverteu-se devido a uma

grave crise econômica enfrentada pelo Brasil, também chamada de “década perdida” (CAVALCANTI, 2015, p. 12). Acresce-se a década de 1970, um fator relevante – a permissão por parte do Paraguai ao acesso de brasileiros a lotes de terras perto da fronteira do Brasil. O baixo custo da terra paraguaia permitiu a grande migração - hoje chamados de brasiguaios. Entretanto, nessa ordem houve irregularidade, corrupção administrativa e muitos perderam suas terras e voltaram para o Brasil. Impulsionados pelo baixo preço das terras ocorreu grande emigração especialmente de agricultores e pecuaristas sul-riograndenses também para as terras uruguaias. Já através da facilidade na aquisição de terras na Bolívia, fazendeiros de soja foram para aquele país, principalmente para Santa Cruz de la Sierra. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 27). Na década de l980, o Brasil se converteu em um país de emigração. Fatores como desemprego, a inflação alta, a perda sistemática do valor real do salário, a queda da atividade econômica caracterizando a crise econômica dos anos 80, fizeram com que brasileiros deixassem o país. Muitos emigrantes foram descendentes de japoneses que foram para o Japão com o objetivo de fazer poupança e depois retornar para o Brasil e abrir negócio próprio. O país mais procurado entre os anos 80 e 90 foram os Estados Unidos e se estabeleceram principalmente em Nova York, em Boston e Miami na Flórida. Assim manifesta-se Oliveira, a este respeito:

Depois de passar por um período de forte atração migratória, entre os meados do século XIX e os anos 1930, o Brasil ficou quase cinco décadas sem que as migrações internacionais tivessem grande relevância na dinâmica demográfica nacional. É com a chegada dos anos 1980 que o tema volta a ter importância à medida que o Governo Militar edita a Lei 6.815 e passam a ser percebidos movimentos populacionais de saída ao exterior. Isto fez com que, no final dos anos 1990-início da década de 2000, a questão migratória voltasse a ganhar importância na agenda política do país (OLIVEIRA, 2015, p. 252).

A imigração contemporânea no Brasil está caracterizada por um grande número imigrantes e refugiados provenientes de países centro- americanos como Haiti, africanos como o Senegal e Gana, e países vizinhos da América Latina e participantes do MERCOSUL, e, ainda, de países orientais que vivenciam conflitos armados, como Líbano e Síria (CAVALCANTI, 2015). Segundo Seyferth,

[...]o Brasil é o destino de imigrantes principalmente latino-americanos, africanos e asiáticos, muitos dos quais em situação irregular perante a lei de estrangeiros. Não importa sua origem, o (i)migrante continua sendo 254 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade considerado um outro problemático, num mundo globalizado onde os transnacionalismos e os localismos estimulam identidades territorializadas nem sempre aceitáveis no campo político, e os deslocamentos mais expressivos continuam sendo provocados por motivações de natureza econômica que, de certa forma, trazem de volta o velho estigma da “3ª classe”.

Em virtude da ausência de políticas migratórias claras e de legislação atualizada no tocante ao tema53, e, também pelo desconhecimento acerca de seus direitos no país, muitos imigrantes acabam por enfrentar problemas de legalização e inserção social e no mercado de trabalho. Por este motivo, faz- se necessária uma urgente atualização das políticas migratórias brasileiras, bem como da legislação referente ao tema, para que deem lugar à instrumentos normativos que sejam orientados pela garantia e promoção dos direitos humanos dos imigrantes. Neste sentido, Cavalcanti pontua:

As políticas de imigração deveriam ir na via de tratar as migrações na sua complexidade, multidimensionalidade e incluí-la de forma transversal nas diversas políticas públicas. A junção entre políticas que possam acomodar os imigrantes no mercado de trabalho formal, com a perspectiva dos direitos humanos, contribuirá de forma decisiva a consolidar a imigração como um ativo para o desenvolvimento do país, não somente do ponto de vista econômico, mas também cultural, social e político (CAVALCANTI, 2015, p. 22).

Atualmente, a maior parte dos imigrantes ocupam espaço nas regiões sul e sudeste do Brasil. Comparativamente, em 2000 e em 2010, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 71,3% e de 63% dos imigrantes, respectivamente, estavam situados nos estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. O principal motivo desta concentração é a maior demanda por mão de obra nas indústrias, frigoríficos e construção civil (OLIVEIRA, 2015, p. 24). Ainda segundo os dados coletados nos Censos Demográficos de 2000 (IBGE, 2001) e de 2010 (IBGE, 2011), em números absolutos, existiam, respectivamente, 683.836 e 592.591 imigrantes no Brasil. Percebe-se que, não obstante o expressivo número de imigrantes vindos ao Brasil entre 2000 e 2010, isso não foi suficiente para superar as reduções nos números totais de imigração resultantes dos óbitos e da re-emigração. Segundo dados da RAIS54, em 2011 (MTE, 2011) existiam 79.578 mil imigrantes inseridos regularmente no mercado de trabalho brasileiro. Deste

53 A legislação brasileira a respeito da imigração data do início da década de 1980, conforme se verifica mais adiante no presente trabalho. 54 A RAIS – Relação Anual de Informações Sociais, é o principal instrumento de coleta de dados do setor trabalhista, e foi instituída pelo Decreto nº76.900, de 23 de dezembro de 1975. É gerenciada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e contém as informações a respeito do

total, 55.202 do sexo masculino e 24.376 do sexo feminino. Em 2013 (MTE, 2013), aquele número aumentou para 120.056 mil trabalhadores imigrantes no mercado de trabalho brasileiro, sendo 86.946 do sexo masculino e 33.110 do sexo feminino. É nesse universo complexo que os imigrantes que se destinam ao Brasil acabam por se inserir, enfrentando adversidades pela falta de legislação atualizada e orientada pelos direitos humanos, e, por vezes, tornando-se alvo de empregadores inescrupulosos, que objetivam, única e exclusivamente, o lucro máximo sem qualquer preocupação com a garantia dos direitos humanos dos imigrantes laborais. Também se verificam incursões nos direitos da personalidade dos imigrantes, frente à ausência de mecanismos específicos de garantia e proteção destes direitos.

14.3 RELAÇÕES TRABALHISTAS, DIREITOS DA PERSONALIDADE E IMIGRAÇÃO NO BRASIL.

Vários são os fatores que ocasionam violações aos direitos dos imigrantes em busca de trabalho no Brasil. A legislação migratória desatualizada e orientada pela segurança nacional, o desconhecimento dos imigrantes a respeito da legislação laboral brasileira, acrescida da atitude predatória de alguns empregadores – incide diretamente nesse processo de desrespeito aos direitos. O deslocamento de milhares de homens e mulheres potencializou um debate intenso sobre o deslocamento de trabalhadores imigrantes nos movimentos contemporâneos populacionais e enfatiza o mercado de trabalho como um mecanismo primário fomentando as ‘pátrias laborais’. Sendo o fenômeno migratório marcado não só por elementos econômicos, a qualidade das relações de trabalho e da inserção do imigrante no contexto organizacional brasileiro, ocorre também, influenciada pela boa integração destas pessoas no contexto sócio-cultural onde se encontram. Assim, a análise do processo de inserção do imigrante no mercado de trabalho é fator chave para o direcionamento das políticas públicas que tratam da mobilidade social ascendente do país e o mercado de trabalho pode determinar o quanto e como a mobilidade dos fluxos migratórios pode acontecer (CAVALCANTI, 2015). No Brasil a força de trabalho imigrante caracteriza-se basicamente pelos trabalhadores classificados como migrantes laborais que normalmente ocupam setores da economia de baixa especialização e baixos salários. Antes de migrar o trabalhador ocupa em seu país de origem na sua maioria tem uma formação profissional superior e técnica exigida para o desempenho mercado de trabalho formal, sendo declarada pelas empresas em caráter anual e com base nos dados do ano-calendário anterior à declaração. 256 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade das suas atividades profissionais, possuem um “status social profissional”, porém ao ingressar no mercado de trabalho acabam em posições de atividades inferiores pois não são reconhecidas as formações nos países de destino explicitando as diferenças sociais, técnicas e econômicas (CAVALCANTI, 2015). Outros ainda, mesmo em condições de trabalho formal e regular, acabam expostos às atividades insalubres, ao trabalho forçado, e são vítimas, dentro e fora do ambiente de trabalho, preconceito, racismo e xenofobia. A dificuldade na utilização do idioma português, aliada ao desconhecimento da legislação laboral, contribuem em grande medida, para a impunidade das violações perpetradas contra os imigrantes e seus direitos e garantias fundamentais. No Brasil, as relações laborais estão protegidas e reguladas pelo direito público, através da Constituição Federal de 1988 e da Consolidação das Leis Trabalhistas, bem como, na esfera da negociação coletiva sindical através das convenções e acordos coletivos e do próprio contrato de trabalho individual. A Constituição Federal de 1988 desempenha papel primordial na garantia dos direitos dos trabalhadores uma vez que consagrou em seu artigo 7º, e incisos, o rol de direitos trabalhistas específicos, estabelecendo o patamar mínimo de garantias fundamentais aos trabaladores. Este rol garante, dentre outros direitos, o direito: ao meio ambiente de trabalho seguro e sadio; salário mínimo nacional; descanso anual remunerado de trinta dias, com remuneração acrescida de um terço do salário; remuneração extrardinária pelo trabalho noturno; jornada máxima diária de dez horas, com remuneração acrescida de, pelo menos, cinquenta por cento, para as horas que excederem a oitava diária e a quadragésima quarta semanal; descanso semanal remunerado a cada seis dias trabalhados; gratificação natalina e proteção contra a despedida arbitrária, dentre outros. Tais direitos fundamentais são conhecidos como os direitos laborais específicos do trabalhador e são estendidos a todas as pessoas em situação vínculo empregatício no país, independentemente de seu status migratório ou sua condição de nacional. Vejamos o que diz Pereira a este respeito:

Na constituição brasileira vigente, os direitos dos trabalhadores estão inseridos no Título II da Carta Magna, que trata “dos direitos e garantias fundamentais”, ou seja, os direitos trabalhistas, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, estão no mesmo patamar de outros direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade etc (PEREIRA, 2015, p. 51).

Assim, no Brasil, os direitos trabalhistas não podem ser negados a nenhum trabalhador sob pena de incorrer-se em uma violação dos direitos humanos fundamentais positivados na constituição. Igual sorte têm os demais direitos fundamentais, tais como: da personalidade, à informação, à presunção de inocência, à ampla defesa e ao

contraditório. Por estarem positivados no âmbito constitucional, tais direitos não podem deixar de ser garantidos a nenhuma pessoa no território nacional brasileiro. Mesmo no âmbito da relação de trabalho, quando o empregador exerce um poder diretivo, resultante do contrato laboral, tais direitos ainda devem ser protegidos, tendo em vista que o trabalhador não deixa de ser pessoa – cidadão – ao adentrar as portas do estabelecimento do seu empregador, e, portanto, deve ter protegidos e garantidos seus direitos de cidadão. Há um efeito de considerar o empregado “trabalhador-cidadão”, que deve ver protegidas as garantias e liberdades fundamentais. A este respeito, assim se manifesta Almeida:

Ora, essa consagração dos direitos da cidadania como direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão despertou a ideia de que sua efetivação, no que tange aos trabalhadores, não deve ser perseguida apenas no contexto da sociedade política, mas também no âmbito das relações de trabalho (ALMEIDA, 2012, p. 10).

Embora não estejam direta e expressamente positivados como direitos laborais, tais direitos devem ser entendidos como aplicáveis diretamente às relações de trabalho, por força do disposto na Constituição Federal brasileira, artigo 5º, inciso X. Novamente, oportunas as palavras de Almeida:

O direito brasileiro, embora não tenha ainda regulamentado pela legislação trabalhista os direitos da personalidade no âmbito das relações de trabalho, como direitos laborais inespecíficos dos trabalhadores, sua efetividade, no entanto, como direitos fundamentais, é garantida pela aplicação do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, em especial no que concerne a proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (ALMEIDA, 2012, p. 11).

Desta forma, os direitos da personalidade, embora ainda não positivados no âmbito da legislação trabalhista brasileira, devem ser garantidos a todos os trabalhadores, sem qualquer distinção, mesmo durante a vigência do contrato de trabalho como resultado da incidência da força irradiadora da Constituição Federal. Outros países já positivaram tais direitos da personalidade no seio da legislação social e trabalhista, como, por exemplo, Portugal. A título exemplificativo, o direito português consagrou na Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 26, os direitos da personalidade. Também estão protegidos tais direitos no corpo normativo do Código de Trabalho Português de 2009, que traz, minuciosa lista de direitos que compreende os direitos à: liberdade de expressão e de opiniões, integridade física e moral, reserva da intimidade da vida privada, proteção em relação aos 258 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade meios de vigilância à distância no local de trabalho, confidencialidae de mensagens e de acesso à informação. Ainda como exemplo comparativo, ressalte-se o direito à informação garantido pelo Direito Português, consagrado no artigo 54, 5, alínea a, da Constituição da República Portuguesa. Nesta hipótese, o direito à informação é garantido nas negociações coletivas para a defesa dos interesses e intervenção democrática na vida da empresa. Da mesma forma, o direito à informação, da mesma Constituição portuguesa, no artigo 55, 6, é garantido aos representantes sindicais em exercício. E, por fim, em sede de direitos individuais, o Código do Trabalho Português de 2009 prevê o direito à informação no artigo 353, quando ocorrer dispensa sob a alegação de justa causa, e, no caso de despedida coletiva, no artigo 361, I do mesmo Código. No Brasil, o direito à informação ainda não está positivado dentre os direitos trabalhistas, contudo, várias convenções coletivas de trabalho já estabelecem o direito à informação do trabalhador, no caso de despedida sob alegação de justa causa, quando o operário terá direito à receber carta indicando o motivo e a fundamentação legal da penalidade aplicada. No tocante à legislação trabalhista brasileira, ainda há muito o que fazer, embora se possa aplicar, direta e imediatamente, os direitos fundamentais às relações de trabalho, muitas são as violações e desrespeito às normas de proteção e garantia da dignidade do trabalhador imigrante.

14.4 LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE NO BRASIL

A Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980 (BRASIL, 1980), conhecida como o “Estatuto do Estrangeiro” nasce no contexto sócio-político da ditadura militar e, por conseguinte, reflete uma forte orientação pela segurança nacional, o que se evidencia no tratamento do estrangeiro como potencial ameaça ao país, e, como resultado disso, segue-se uma negação dos seus direitos de organização e representação. Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 embora tenha recebido a alcunha de “Constituição-cidadã” – pois, além de consagrar as bases da democracia brasileira, também estabelece um vasto rol de direitos sociais – não contempla muitos direitos específicos do imigrante. Dentre as propostas de alteração da Constituição Federal, especificamente no tocante aos direitos dos imigrantes, a tendência preponderante é de garantir aos imigrantes o usufruto dos direitos políticos no âmbito municipal. A Constituição de 1988 poderá sofrer alterações que melhor garantirão aos imigrantes os direitos políticos, através da Proposta de Emenda à Constituição nº 2555, de 2012, atualmente tramitando no Senado

55 A Proposta de Emenda à Constituição nº 25, de 2012, encontra-se atualmente aguardando a designação de Relator, na Câmara de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.

Federal, que tem por objetivo a alteração dos artigos 5º, 12 e 14, para conceder aos estrangeiros os direitos inerentes aos brasileiros e estender- lhes, também, os direitos políticos de votar e ser votado nas eleições de âmbito municipal. Igualmente, na Câmara dos Deputados, tramitam Propostas de Emendas à Constituição para aumentar a garantia dos direitos dos estrangeiros em território nacional, dentre as quais se pode destacar a de nº 34756, de 2013, que visa alterar a redação do § 2º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988 para permitir que estrangeiros residentes no Brasil há mais de quatro anos e em situação regularizada, alistem-se como eleitores regulares. Dessa forma, é seguro afirmar a existência de tendência para a abertura dos direitos políticos do imigrante no Brasil, o que evidencia abertura política para a inserção destas pessoas no âmbito das decisões políticas em âmbito municipal. O Centro de Direitos Humanos e Cidadania dos Imigrantes emitiu, em 29 de maio de 2014, opinião (CDHCI, 2014) sobre o I COMIGRAR57 na qual postula que um novo projeto de lei venha para garantir a descentralização dos serviços públicos oferecidos aos migrantes e também de suas famílias, proporcionando melhor assistência social, capacitação profissional, o acesso a programas sociais, especial cuidado dedicado às famílias migrantes que tenham crianças e adolescentes – uma vez que, hoje, ocorre apenas o registro e controle de documentação – e a criação de órgãos e políticas migratórias a nível Municipal e Estadual, que deveria culminar com a criação de uma Secretaria Nacional de Migração para atuar de modo autônomo. Como resultado da mobilização nacional em torno da modernização da legislação migratória nacional, atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 2516, apresentado pelo Senador Aloysio Nunes Ferreira, em 04 de agosto de 2015, cujo objetivo é substituir o “Estatuto do Estrangeiro”, a Lei 6.815, de 1980. O projeto tem 65 artigos e sete títulos e estabelece critérios relacionados à concessão de vistos, repatriação, deportação, expulsão e

56 A Proposta de Emenda à Constituição nº 347, de 2013, foi apensada à Proposta de Emenda à Constituição nº 119, de 2011, que se encontra tramitando junto à Câmara dos Deputados, e aguarda parecer do Relator da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. 57 A COMIGRAR refere-se a Primeira Conferência de Migrações e Refúgio, que ocorreu em São Paulo, SP, entre 30 de maio e 01 de junho de 2014. Esta conferência foi promovida pelo Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério das Relações Exteriores, com o apoio das agências das Nações Unidas: United Nations Office on Drugs and Crime (UNDOC), International Organization for Migration (IOM), United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR), e United Nations Development Programme (UNDP). A conferência tratou de promover o diálogo social para o acesso a serviços e direitos pelos migrantes; a sua inserção econômica, social e produtiva; a cidadania e o reconhecimento da diversidade; meios de prevenção e proteção nos casos de violação de direitos; e a participação social. 260 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade naturalização. Conforme a proposta, o “Estatuto do Estrangeiro” deve ser substituído por uma mudança na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança. O citado Projeto de Lei 251658, de 2015, é o resultado da transformação do Projeto de Lei do Senado nº 288, de 2013. Quando de sua apresentação, em agosto de 2015, foi apensado a ele, o Projeto de Lei nº 5.565 de 2009, que também tinha o objetivo de reformar a legislação migratória brasileira. Assim, o Projeto de Lei do Senado nº 288, de 2013, foi transformado no Projeto de Lei 2516 de 2015, e o Projeto de Lei 5.655, de 2009, foi incorporado ao mesmo, ato que unifica a iniciativa legislativa de reforma do “Estatuto do Estrangeiro”, a Lei 6.815, de 1980. A proposta de reforma mais antiga, o Projeto de Lei 5.565/ 2009, demonstrava tímidos avanços, vez que ainda continha dispositivos tais como: a preferência pela imigração de mão de obra especializada, inibição da participação política dos estrangeiros, restrições ao acesso à naturalização para quem responde a processo criminal, ampliação para dez anos o prazo mínimo de residência para quem deseja naturalizar-se brasileiro, e restrições à concessão de vistos aos apátridas. Por sua vez, o Projeto de Lei do Senado 288/2013, demonstra claros sinais de avanços na garantia dos direitos dos imigrantes, conforme seus dispositivos que garantem: orientação do estatuto jurídico sobre a migração na direção das garantias e dos direitos, combate ao tráfico de pessoas, criação da figura do visto de trânsito, extensão para dez anos do prazo de visto para negócios e turismo, redução do prazo de residência para pedido de naturalização ordinária para quatro anos, e tipificação penal detalhada para quem comete o crime de tráfico internacional de pessoas. Outros aspectos que merecem especial atenção no Projeto de Lei do Senado nº 288/2013, e que foram incorporados ao novo Projeto de Lei 2516, de 2015, tais como: a proteção dos direitos e garantias fundamentais dos imigrantes, a não criminalização da imigração, o repúdio à discriminação e à xenofobia, a promoção da acolhida humanitária, a garantia do direito à reunião familiar, o direito à inserção laboral, social e produtiva através do acesso livre e igualitário aos serviços e programas sociais, à promoção do conhecimento acadêmico e proibição da prática de expulsão ou deportação coletivas. Contudo, como resultado de legislação orientada para a segurança nacional, em detrimento da garantia e proteção dos direitos humanos, que ainda está em vigor, as condições enfrentadas pelos migrantes no Brasil estão aquém do ideal. Por vezes, a situação torna-se precária como decorrência do desrespeito e agressões à dignidade perpetradas pelos empregadores dos migrantes, na busca pelo lucro máximo, negando-lhes as condições mínimas necessárias ao trabalho digno.

58 O Projeto de Lei 2516, de 04 de agosto de 2015, foi apresentado pelo Senador Aloysio Nunes Ferreira, e atualmente tramita na Câmara dos Deputados e aguarda a apreciação da Comissão Especial criada para este fim.

Nas palavras de Sprandel, verifica-se esta precariedade de condições:

Numa avaliação breve do processo que estamos vivendo, pode-se afirmar que a realização do I COMIGRAR foi importante, mas não esgota as possibilidades de formulação e de implementação de políticas. Enquanto não se der mudança na legislação, seja por meio do Projeto de Lei nº 5.655, de 2009, do Projeto de Lei do Senado nº 288, de 2013, ou do encaminhamento de um novo projeto de lei pelo Poder Executivo, que cria uma Autoridade Nacional Migratória, o Conselho Nacional de Imigração continua sendo fundamental para o aggiornamento da legislação migratória e para respostas rápidas a crises, como se deu no caso dos imigrantes do Haiti (SPRANDEL, 2015, p. 54).

Portanto, a necessidade de modernização da legislação referente ao processo migratório no Brasil demonstra-se urgente, para a garantia dos direitos fundamentais dos imigrantes e, como medida de atendimento, inclusive, das normas internacionais estabelecidas nos tratados e convenções ratificados pelo país. Não obstante, a reforma da legislação migratória nacional não pode trazer dispositivos que mitiguem os direitos já garantidos atualmente. Isso em função do Princípio da Proibição do Retrocesso Social, conforme assevera Pereira:

[...] os direitos humanos fundamentais necessitam ser preservados no que já foi conquistado. Daí surge o chamado Princípio da Proibição do Retrocesso Social, preservando da vontade dos legisladores os direitos humanos fundamentais, para que estes não sejam desconstituídos, proibindo o legislador de retroceder para reduzir o direito, principalmente o direito humano fundamental social (PEREIRA, 2015, p. 117).

A legislação internacional a respeito do tema migração e trabalho ainda carece de maior inserção no sistema jurídico brasileiro. Dos tratados e convenções internacionais existentes, apenas alguns foram ratificados pelo Brasil, a exemplo da Convenção OIT nº 97, que determina aos Estados a implementação de medidas de garantia de direitos dos trabalhadores migrantes, como por exemplo: a constituição de um serviço de auxílio, eliminação de toda propaganda enganosa, concessão de tratamento médico adequado e impedir o tratamento diferenciado e inferior ao dado aos demais trabalhadores nacionais, no tocante à liberdade sindical, remuneração e acesso à seguridade social. A Convenção OIT nº 97 foi ratificada pelo Brasil em 18 de junho de 1965, promulgada pelo Decreto nº 58.819 de 14 de julho de 1966, que entrou em vigor na data 18 de junho de 1966. No caso brasileiro, os Tratados e Convenções Internacionais que tratam de direitos humanos, quando ratificados, ingressam no ordenamento jurídico com o status de norma supralegal e tornam-se poderosos 262 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade instrumentos de proteção de direitos humanos e direitos humanos fundamentais59. Contudo, a Convenção Internacional para a Proteção de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias, adotada pela Resolução 45/158 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1990, entrou em vigor em 1º de julho de 2003, e, até o presente momento, não foi ratificada pelo Brasil e tramita na Câmara dos Deputados sob o número MSC 696/2010 e sua última movimentação ocorreu em 11 de junho de 2015, quando foi criada uma Comissão Especial para a sua tramitação. Ressalte-se a extrema importância da ratificação da referida Convenção Internacional, bem como da eficaz implementação de seus mecanismos, vez que ampliaria em grande monta os direitos e garantias aos trabalhadores migrantes, pois é baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Culturais e Econômicos, e cujo objetivo primordial é a proteção a dignidade dos trabalhadores imigrantes, legalizados ou não. A Declaração Final da XVIII Cúpula Social do Mercosul (CDHIC, 2015), ocorrida em Brasília, nos dias 14 a 16 de julho de 2015, exorta aos Estados membros do MERCOSUL a ratificar a Convenção Internacional de Proteção de Todos os Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias, que entrou em vigor em 2003, como medida de promoção da cidadania e de um MERCOSUL livre de xenofobia, em uma perspectiva de gênero. A Cúpula também insta aos Estados membros à formulação de uma política migratória e de um marco jurídico de defesa dos direitos dos migrantes no âmbito do MERCOSUL e Estados associados em uma lógica de abandono da orientação pela segurança nacional e na direção da garantia da dignidade humana. Por fim, no tocante às políticas públicas de imigração e à legislação migratória no Brasil, vale ressaltar a existência do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP) e do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II PNETP). Tais planos são resultado dos dispositivos da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criada pelo Decreto n. 5.948 de 2006, e que busca:

[...] uma articulação nacional, internacional, regional e local no enfrentamento ao tráfico de pessoas (no âmbito do poder executivo federal, principalmente do Ministério da Justiça), visa a traçar princípios, tais como: o respeito à dignidade da pessoa humana e garantia dos direitos humanos, não discriminação e proteção e assistência integral às vítimas (independentemente de nacionalidade), dentre outros (PEREIRA, 2015, p. 125).

59 Os Direitos Humanos Fundamentais são aqueles entendidos como inerentes à pessoa humana e que estejam positivados no ordenamento jurídico constitucional de um Estado.

Estes planos nacionais são elaborados e articulados sob as seguintes diretrizes resultantes da referida política nacional: estímulo à cooperação nacional e internacional, bem como articulação e estruturação de uma rede de enfrentamento que deve envolver os órgãos públicos e sociedade civil, utilizando-se dos meios de comunicação sobre o tema do tráfico de pessoas, com os diversos fins. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, consubstanciada nos dois Planos Nacionais de Enfrentamento de Pessoas é de ser considerada avanço na legislação e políticas migratórias brasileiras, mas, ainda há muito por fazer na direção da garantia dos direitos fundamentais dos migrantes no Brasil. Muitas violações ainda são perpetradas como resultado da legislação desatualizada e carência de políticas públicas articuladas e organizadas com o objetivo da proteção aos imigrantes em busca de trabalho.

14.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os motivos que levam as pessoas a emigrar são diversas e profundas. Liberdade, trabalho e dignidade rondam a maioria dos casos. Também somam-se a primeiras intenções a fuga de conflitos armados, a perseguição política, a carência de segurança alimentar, as catástrofes climáticas ou mesmo na busca por um diferente estilo de vida. Os constantes movimentos migratórios internacionais podem causar uma série de conflitos entre os imigrantes e os nacionais, em função dos embates entres a cultura, costumes e normas de comportamento de ambas as partes. Nestes conflitos, os imigrantes podem ser alvos de ataques e violência física e psicológica, resultante da xenofobia e do preconceito existentes no país que os acolhe. As políticas públicas e legislação migratórias existem para regular, organizar a migração e orientar as práticas e protocolos referentes à regularização do movimento de entrada e saída de pessoas. No caso brasileiro, a legislação migratória em vigor data de 1980, época em que vigorava no país um governo de orientação militar e antidemocrática, e tem marcante tendência à proteção e segurança nacional, em detrimento da garantia e proteção dos direitos dos imigrantes em busca de trabalho. Dentre as iniciativas de reforma da legislação brasileira, há iniciativas que promovem a inclusão do imigrante nos direitos civis e políticos, propondo, inclusive a inserção do imigrante na vida política municipal ao permitir que o mesmo adquira capacidade política para votar e ser votado nas eleições municipais. No mesmo sentido vão as propostas de Emenda à Constituição, que intencionam a inserção do estrangeiro na vida política municipal. Os projetos de lei referentes à reforma do chamado “Estatuto do Estrangeiro”, evidenciam aclamados avanços na legislação, promovendo as 264 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade garantias e direitos dos estrangeiros, ampliando-lhes o grau de satisfação dos direitos e liberdades fundamentais, ao menos na esfera legislativa. Na direção da proteção e garantia de direitos, os projetos de reforma da legislação migratória foram integrados em um projeto de vanguarda, que, se aprovado na íntegra, transformará a realidade legislativa brasileira de precária em garantidora de direitos e promotora da dignidade de todos os imigrantes. Como lembra Seyla Benhabib (2012), os movimentos migratórios são pontos de justiça imperfeita ao envolverem na sua dinâmica o direito individual à liberdade de movimento, o direito universal à hospitalidade e o direito das coletividades ao autogoverno, e, ainda, as obrigações associativas morais específicas. Ainda há longo caminho a percorrer, mas é possível vislumbrar mudanças que trarão alento aos que padecem a exclusão e preconceito, e a criação de mecanismos de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos imigrantes no Brasil.

14.6 REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, J. L. A Dinâmica das Fronteiras: os Brasiguaios na Fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Ed. Annablume, 2010. ALMEIDA, Renato Rua de. Os direitos laborais inespecíficos dos trabalhadores. In: ALMEIDA, Renato Rua de. (Coord.). SOBRAL, Jeana da Silva; SUPIONI JUNIOR, Claudimir. (Orgs.) Direitos laborais inespecíficos: os direitos gerais de cidadania na relação de trabalho. São Paulo: LTr, 2012. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, Refúgio no Brasil: uma análise estatística (janeiro de 2010 a outubro de 2014), Brasília: ACNUR, 2014. BENHABIB, Seyla. A moralidade da migração. In: O Estado de S. Paulo. São Paulo, p. A18, 5 ago. 2012. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Senado Federal, 2011. ______. IBGE. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de janeiro. In: IBGE, 2000. Apêndice: Estatísticas de 500 anos de povoamento. ______. IBGE: Estatísticas do Século XX. Brasília, 2010. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL, 2012. Proposta de Emenda à Constituição nº 25. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. BRASIL, 1980. Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

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= XV =

O ASSÉDIO MORAL POR EXCESSO DE TRABALHO E SEU IMPACTO SÓCIO-JURÍDICO

Matheus Ribeiro de Oliveira Wolowski* Leda Maria Messias da Silva**

15.1 INTRODUÇÃO

O atual contexto que vivenciamos, corrobora para que o trabalhador dedique sua vida para o alcance de metas e jamais se desligue do trabalho, uma vez que a globalização e as novas tecnologias, gradativamente vinculam o trabalhador ao seu trabalho intermitentemente. Tais acontecimentos, por um lado aparentam ser importantes para o desenvolvimento econômico, porém existe a desconsideração de valores, princípios e leis, o que torna de suma importância o debate de questões que envolvem a sociedade, como a priorização do desenvolvimento econômico quando se tem o conflito com direitos humanos e dignidade da pessoa humana. Por estes motivos, é importante salutar aspectos do assédio moral e suas formas de tirocínio, pois seus impactos são de grande relevância no âmbito social e jurídico. O assédio moral, infelizmente sempre fez parte da realidade laboral, tanto no âmbito nacional quanto na esfera internacional. Contudo, somente em meados da década de 1980 houve um aprofundamento do estudo sobre esta temática, haja vista o crescimento escalonado deste ilícito nas mais diversas formas. Destarte, versaremos sobre os valores legais que garantem a proteção aos direitos da personalidade ao trabalhador, levando em consideração a importância de se prezar por um ambiente de trabalho saudável, inibindo qualquer prática de assédio moral. Ademais, de acordo com pesquisas jurisprudenciais verificamos a incidência um novo dano ao trabalhador, o assédio moral por excesso de trabalho. Esta forma de assédio tem aumentado e já encontramos um reconhecimento na jurisprudência brasileira no tocante à sua caracterização.

* Mestrando em Ciências Jurídicas, pelo Centro Universitário Cesumar; Graduado em Direito e Teologia pelo Centro Universitário Cesumar. Advogado. Endereço Eletrônico: [email protected] ** Pós-doutora em Direito do Trabalho, pela Universidade de Lisboa-Portugal (2012); Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004); Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e Graduada em Direito pela Fundação Universidade Estadual de Maringá (1986). Atualmente é professora da graduação e pós- graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM), do mestrado e graduação do Centro Universitário de Maringá-CESUMAR. Endereço eletrônico: [email protected] 268 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Com a utilização do método indutivo, a partir do estudo de casos particulares da jurisprudência brasileira, busca-se extrair conclusões globais sobre esta temática, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da proteção ao trabalhador aos casos de excesso de trabalho. A proposta visa demonstrar que há a caracterização de um dano existencial quando o trabalhador excede habitualmente as jornadas de trabalho, visto que sua própria existência é comprometida com o cerceamento do convívio com a família, amigos e, inclusive, impossibilitando o trabalhador de se aprimorar durante o período de interjornada, mediante a realização de cursos de qualificação, dado o excesso de horas extraordinárias habituais. Nesta vereda, observa-se que o empregador, muitas vezes se utiliza do poder diretivo, para persuadir e extrapolar rotineiramente as jornadas de trabalho de seus empregados, arquitetando, de maneira implícita, uma escravidão, visto que o direito de existir e viver são suprimidos do empregado. Por depender do emprego para sobrevivência, vários empregados se submetem a esta forma de assédio moral e além de sofrer danos existenciais, sofrem com doenças oriundas deste fenômeno e que consequentemente geram danos materiais com medicamentos e tratamentos de saúde. Esta forma de assédio moral suscitada pode parecer nova apenas no estudo, mas infelizmente, é antiga no cotidiano de nosso país e no contexto internacional, por este motivo, busca-se demonstrar a relevância social do tema de modo que o legislador, a jurisprudência e a administração pública de um modo geral coíbam e punam os responsáveis pela prática do assédio moral por excesso de trabalho, a fim de garantir o respeito aos princípios constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana aos trabalhadores vítimas de assédio moral por excesso de trabalho, visto que há impactos na vida do trabalhador, em seu convívio social e no âmbito jurídico.

15.2 O VALOR E FUNÇÃO SOCIAL DO TRABALHO

O direito do trabalho surge para regular as relações trabalhistas, garantindo uma proteção mais ampla à parte hipossuficiente da relação, com o intuito de garantir sua dignidade, haja vista à sua subordinação e dependência econômica. Certamente tal hipossuficiência é inerente do empregado que é subordinado ao empregador e por tal motivo, os princípios gerais do direito do trabalho são aqueles que tutelam esta parte da relação. O empregador além de possuir o poder diretivo sobre o trabalhador assume o risco sobre este negócio, risco este que não alcança o trabalhador, pois este participa da relação com o visando a garantia de sua subsistência, bem como satisfazer suas necessidades alimentícias e sociais ao contrário do outro que empreende com o intuito de aumentar seus lucros, utilizando-se da mão-de-obra de seu trabalhador. Portanto, é notório o liame que distingue essas duas classes, fazendo-se necessária uma construção e interpretação de normas que igualem ambos os polos, a fim de garantir a aplicação da justiça e dirimir qualquer desigualdade. O assédio moral... // 269

Diante disso, os contratos de trabalho devem cumprir a função social que o trabalho possui, conforme estabelece o artigo 6º da Constituição Federal1. Para Amauri Mascaro (2011, p. 69), a função social pertinente ao direito trabalho consiste “[...] no meio de realização de valores sociais e não de valores econômicos, em especial de preservação de um valor absoluto e universal, a dignidade do ser humano que trabalha,” corroborando, portanto neste ideal de que o trabalhador não oferece sua força de trabalho simplesmente para angariar recursos financeiros, mas há algo muito mais relevante que justifica o seu trabalho: a garantia de subsidiar seu sustento e consequentemente promover sua dignidade e de sua família. Sendo assim, deve-se garantir ao trabalhador um ambiente saudável e oportuno para que este desenvolva suas atividades profissionais, assegurando deste modo, a dignidade do proletário durante as práticas profissionais, sempre considerando que o trabalho tem a finalidade de cumprir, sobretudo, função social e nunca econômica. Neste entendimento, cabe trazer à lume o entendimento de Taís Nader Marta e Cibeli Kumagai:

O trabalho, como valor social, foi e deve ser preservado como meio de se alcançar a liberdade, dignidade e de sociabilizar o indivíduo perante a sociedade que integra. Logo, ao se remover do trabalhador o valor social do trabalho, retira-se também a possibilidade de se autoafirmar por meio do acesso à educação, à saúde, ao lazer e retiramos automaticamente sua liberdade e sua dignidade. (MARTA; KUMAGAI (2011, p.13)

Portanto, o intuito de lucro não pode ser alcançado por intermédio do desgaste da saúde e o sacrifício existencial desse trabalhador. A escravidão já foi tolerada, desonrou a sociedade e não se pode de qual forma seja, em pleno século XXI, admitirem-se tolerâncias com tais práticas que devem ser severamente punidas e coibidas pelo Estado.

15.3 DA TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DO TRABALHADOR

A Emenda Constitucional número 45/2004 ampliou a competência da Justiça do trabalho, permitindo além de outras atribuições, o julgamento de ações de indenização por dano moral conforme artigo 114, inciso VI da Constituição Federal2. Como o direito deve acompanhar as transformações da sociedade, faz-se pertinente tal Emenda, visto que nos dias atuais, em virtude do

1 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 2 Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; 270 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade aumento na lesão aos direitos da personalidade do trabalhador, muitas vezes alguns empregadores colocam em risco a vida dos seus trabalhadores, ofendem a honra e praticam outras lesões, utilizando-se não somente de um abuso no poder diretivo, mas também de uma institucionalização de métodos constrangedores que visam objetivamente o aumento da lucratividade, desconsiderando os direitos do trabalhador e a função social do trabalho. É neste sentido, portanto, que afirma Alice Monteiro de Barros (2011, p. 731),

O ser humano é único, e as pressões que sofreu no decorrer da vida transformam sua personalidade e sua conduta. Dificilmente consegue voltar a ser o que era antes. Daí a necessidade de reconhecer o valor da integridade, que o homem coloca como sujeito de direitos e obrigações, e a importância de se estabelecerem os meios para prevenir, reparar e punir eventual violação desses direitos.

Ante a esta explicação, verifica-se a importância do tema suscitado, pois são direitos diariamente desrespeitados que causam enormes consequências para a vítima, descaracterizando a personalidade inicial do indivíduo e desencadeando doenças psicológicas graves, como a Síndrome de Burnout. No entanto, é de se observar que nas relações laborais a proteção aos direitos que garantam a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho deve estar acima de qualquer pretensão lucrativa. Não que o lucro não deva ser objetivado, até porque se trata de uma das finalidades dos empreendimentos, mas deve-se respeitar algo que está acima, tutelado por princípios e pela Constituição Federal, em outras palavras, acima do lucro e de qualquer outro valor, deve-se resguardar a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, seja trabalhador ou empregador. Deste modo, é dever da autoridade patronal zelar pelos direitos do trabalhador, inclusive no tocante aos direitos da personalidade, garantido ao obreiro, condições dignas de trabalho de modo que este exerça seu labor cumprindo a função social do contrato, garantindo sua subsistência, e sua dignidade em um meio ambiente de trabalho equilibrado. Há um limite, todavia, no que tange ao poder diretivo do empregador, pois este poder jamais deve prevalecer sobre a dignidade do trabalhador. O empregador deverá sempre buscar, e garantir, uma relação digna e respeitosa para com o trabalhador, visto que o direito à dignidade sobrepuja qualquer direito laboral ou meta mercantil. É esse o entendimento, também, de Elimar Szaniawski (2005, p.137), que advoga a tese de que o princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro, vejamos:

Nossa Constituição, embora não possua inserido em seu texto um dispositivo específico destinado a tutelar a personalidade humana, reconhece e tutela o direito geral de personalidade através do princípio da dignidade da pessoa, que consiste em uma cláusula geral de concreção da proteção e do O assédio moral... // 271

desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Esta afirmação decorre do fato de que o princípio da dignidade, sendo um princípio fundamental diretor, segundo o qual deve ser lido e interpretado todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Logo, o trabalho é algo que deve ser entendido de acordo com sua função estabelecida no artigo 6º da Constituição Federal3 e acima de tudo, deve-se primar pelo princípio norteador da Constituição Federal que é a Dignidade Humana, não importando em qual esfera do direito o caso concreto surja, pois sempre deve prevalecer a dignidade. Nos primórdios, o trabalho sempre foi visto como um castigo e não como função social. Na Grécia antiga, o trabalho sempre foi destinado aos escravos e o ócio era exclusivo às pessoas do saber, pois se entendia que era impossível desenvolver conhecimento sem a desocupação, restando o trabalho, portanto àqueles que eram “incapazes” de produzir conhecimento e não eram dignos do ócio, para tanto desenvolver ciência. Assim, verificamos que o desvio à função social do trabalho é um fator prejudicial ao trabalhador que muitas vezes tem seus direitos fundamentais desrespeitados, por não se reconhecer o valor primordial do trabalho. Diante disso, por ser detentor de direitos da personalidade, o trabalhador deve se submeter às ordens emanadas de seu empregador, porém sempre observando a função social do trabalho e a dignidade do trabalhador. Tal acatamento à função social e aos direitos da personalidade do trabalhador está atrelado à teoria do risco do empreendimento, pois não é vedado usufruir e lucrar com a mão-de-obra do trabalhador, entretanto tal utilização deve respeitar os limites legais, visto que o trabalhador é detentor de personalidade e deve ter seus direitos tutelados.

15.3.1 Do ambiente de trabalho

É importante compreendermos o conceito de meio ambiente de trabalho, pois tal elemento influencia diretamente na saúde física e psíquica do trabalhador. À grosso modo, o meio ambiente de trabalho é o local em que o trabalhador desenvolve suas atividades profissionais. Todavia em um conceito mais técnico, Amauri Mascaro Nascimento define o meio ambiente de trabalho como:

(...) o complexo de máquina-trabalho: as edificações do estabelecimento, equipamentos de proteção individual, iluminação, conforto térmico, instalações elétricas, condições de salubridade ou insalubridade, de periculosidade ou não, meio de prevenção à fadiga, outras medidas de

3 “Art.6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 272 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

proteção ao trabalhador, jornadas de trabalho e horas extras, intervalos, descansos, férias, movimentação, armazenagem e manuseio de materiais que formam o conjunto de condições de trabalho etc (NASCIMENTO, 1999, p. 584).

Cabe ainda salientar o entendimento da professora Leda Maria Messias da Silva (2008, p. 3105) que o meio ambiente de trabalho está enxertado dentro do meio ambiente geral, não abrangendo só o local de trabalho onde há a prestação de serviços, mas todos os fatores externos e internos que influenciam reciprocamente o trabalho, pois tal influência é fundamental para o equilíbrio ou desequilíbrio do meio ambiente do trabalho. Corroborando neste pensamento, o direito ao meio ambiente de trabalho saudável é aduzido, como direito fundamental nos artigos 7º, inciso XXII4, artigo 200, inciso VIII5 e artigo 2256, todos da Constituição Federal garantido assim, um ambiente livre de riscos à segurança do trabalhador, e assumindo característica de norma pública. Além do direito ao meio ambiente de trabalho livre de riscos ao trabalhador, o valor social do direito do trabalho, corrobora para uma garantia de proteção ao trabalhador. Ademais, os fundamentos da República Federativa do Brasil consagram a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, substanciando o dever de todos em zelar pela qualidade do ambiente laboral do trabalhador. O stress pelo excessivo trabalho, resulta em uma doença denominada Síndrome de Burnout que trataremos mais adiante, todavia resta tornar notória a importância de se garantir um ambiente de trabalho saudável, pois um ambiente estressante é característico de um ambiente desequilibrado, o que causa lesões à saúde do trabalhador e em alguns casos as consequências são irreversíveis.

15.3.1.2 Das doenças de trabalho causadas pelo excesso de trabalho

Nas palavras de Limongi França, podemos conceituar o stress como:

Uma relação particular entre uma pessoa, seu ambiente e as circunstâncias as quais está submetida, que é avaliada pela pessoa como uma ameaça ou algo que exige dela mais que suas próprias habilidades ou recursos e que põe em perigo seu bem-estar ou sobrevivência (FRANÇA, 2005, p. 36).

Deste modo, quando tratamos de falar em meio ambiente de trabalho saudável, torna-se essencial que este ambiente não possibilite circunstâncias

4 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; 5 Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. 6 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. O assédio moral... // 273 estressantes que coloquem em perigo as habilidades ou o bem-estar dos indivíduos que interagem neste ambiente. Deveras, sabe-se que há diversas classificações de stress, todavia nos importa essencialmente abordar o stress profissional, sobretudo o Burnout, cujo conceito foi desenvolvido na década de 1970 por Cristina Malach e Hebert J. Freudenberger (FRANÇA, 2005, p. 52).

O Burnout seria a resposta emocional a situação de stress crônico em função de relações intensas – em situações de trabalho – com outras pessoas ou de profissionais que apresentem grandes expectativas em relação a seus desenvolvimentos profissionais e dedicação à profissão; no entanto, em função de diferentes obstáculos, não alcançam o retorno esperado. (FRANÇA, 2005, p. 52).

Não obstante tal conceituação se faz pertinente compreende que o termo burnout significa um desgaste emocional que danifica tanto o psicológico quanto o aspecto físico. Podemos analisar a tradução da sigla burn (queima) e out (exterior) para verificar de forma sucinta a definição desta doença. Logo, as pressões intensas exercidas pelas relações profissionais causam um aumento no nível de stress, resultando em sintomas como fadiga, dores musculares, irritabilidade, alterações de humor e de memória, falta de apetite, baixa imunidade, depressão e até mesmo suicídio. Segundo relatos da psicóloga Ana Maria Teresa Benevides-Pereira (2009, p. 1), “Há casos de pessoas que saíram de férias, descansaram e estavam bem, mas ao voltar ao trabalho, apresentaram os sintomas novamente”. Diante de tais circunstâncias, criou-se a escala de Walton com base em oito critérios que o autor sugere para se melhorar a qualidade de vida no trabalho e respectivamente em seu ambiente (FRANÇA, 2005, p. 171 e 172), cujas possibilidades se destacam as condições de trabalhos mediante a estipulação de horários padronizados de maneira razoável. Portanto, verifica-se à luz da psicologia, que também é fundamental para a saúde do trabalhador, a razoabilidade dos horários, das jornadas de trabalho, bem como a importância de se possibilitar tempo para o lazer, para as relações familiares, atividades de interesses religiosos e específicos que garantem o direito de existência ao trabalhador a fim de proporcionar sempre uma qualidade de vida e zelo por sua saúde. Por fim, a relevância social do trabalho é outro fator importante, que corrobora para a responsabilidade do empregador quanto aos danos sociais e existenciais decorrentes do assédio moral por excesso de trabalho. Prontamente verifica-se que são notórias as consequências danosas ao empregado caso o empregador não tome as medidas necessárias e adequadas para cumprir a função social do trabalho. Destarte, a prática do assédio moral por excesso de trabalho gera danos ao empregado e à sociedade, sendo passível de reparação pelo agente coator.

274 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

15.4 O CONCEITO DOUTRINÁRIO E JURISPUDENCIAL DE ASSÉDIO MORAL E SUA INCIDÊNCIA DAS RELAÇÕES LABORAIS BRASILEIRAS

Marie-France Hirigoyen (2011, p. 17) define assédio moral como:

Qualquer conduta abusiva (gestos, palavras, comportamentos, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.

Embora na doutrina, exista uma longa discussão sobre o conceito de assédio moral, a definição da autora supramencionada, é talvez, a conceituação que melhor sintetize o assédio moral. São várias as formas que a doutrina classifica como práticas de assédio moral, não havendo ainda um consenso, por se tratar de um tema complexo e que possibilita inúmeras possibilidades de concretização. As formas mais comuns de práticas do assédio moral é o isolamento da vítima, impedindo-a de se expressar no grupo; fragilizar, ridicularizar, inferiorizar ou menosprezar a vítima diante dos colegas; não repassar nenhum trabalho à vítima, provocando sensação de inutilidade; dar prazos muito curtos para uma atividade complexa ou repassá-la quando o prazo está acabando; exigir tarefas incompatíveis com as habilidades e formação do trabalhador; fazer ameaças ou intimidações; mudar turnos e horários de trabalho sem avisar com antecedência e até mesmo o excesso de trabalho como será demonstrado adiante. A jurisprudência brasileira, já entende que o assédio moral é materializado quanto há uma conduta abusiva do agente, perseguindo a vítima e atingindo a sua dignidade, conforme se vê no seguinte julgado:

ASSÉDIO MORAL. PRESENÇA DE ELEMENTOS QUE COMPROVEM A CONDUTA NEGATIVA DO EMPREGADOR, CAPAZ DE ATINGIR A AUTOESTIMA DO EMPREGADO. CONFIGURAÇÃO. O assédio moral caracteriza-se como a conduta que expõe o trabalhador a situações humilhantes, incômodas e constrangedoras. Seu reconhecimento baseia-se no direito à dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, e nos direitos fundamentais do cidadão à saúde, à honra e a um ambiente de trabalho saudável. Configura-se o assédio (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região, Recurso Ordinário: 36187 SP 036187/2012, Relator: Luís Carlos Cândido Martins Sotero Da Silva, 2012).

É importante salientar que a razoabilidade precisa ser respeitada pelo empregador quanto à aplicação do seu poder diretivo, observando os limites que resguardam a dignidade do trabalhador e a responsabilidade de coibir qualquer ação de colegas de mesmo grau de hierarquia, superior ou mesmo inferior, embora mais raro, que ofendam a dignidade da pessoa humana. Logo, o poder fiscalizatório do empregador também deve respeitar os limites que asseguram a dignidade do trabalhador, sob pena do empregador O assédio moral... // 275 reparar e indenizar a vítima pelos danos causados, conforme entendimento jurisprudencial abaixo sintetizado:

ASSÉDIO MORAL. DESRESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CABÍVEL INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Quando a cobrança é realizada pelo empregador sem observância dos limites da razoabilidade e da normalidade do exercício de seu poder potestativo, com exposição do funcionário a situação vexatória e humilhante, em claro desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, está configurado ato ilícito patronal, que enseja indenização por danos morais (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região, Recurso Ordinário: 3565120125150092 SP 090400/2013-PATR, Relator: Luiz Roberto Nunes, 2013).

Observando o entendimento da jurisprudência, verifica-se que os elementos para caracterização do assédio moral e consequente indenização por danos morais, constituem-se na prova efetiva do evento danoso, nexo causal, prática do ato ilícito e necessidade de reparação, pois a responsabilidade do empregador é objetiva, independendo de culpa, conforme se observa na seguinte decisão:

DOENÇA OCUPACIONAL. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. A doença ocupacional adquirida pelo empregado no exercício de suas funções em razão da degradação do meio ambiente de trabalho tem natureza de violação de direito metaindividual, gerando, por consequência, a responsabilidade objetiva do empregador pela reparação dos danos materiais e morais, pois o empregado tem direito ao meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, em conformidade com a interpretação sistemática (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região, Recurso Ordinário: 40848 SP 040848/2008, Relator: João Batista Da Silva, 2008) Grifo nosso

Em virtude desses elementos, resta tornar clara a importância de comprovar os elementos de caracterização do assédio moral e da possível reparação, cabendo tal ônus da prova à vítima do assédio moral, conforme entendimento jurisprudencial. Ademais, cabe trazer à lume o entendimento de Leda Maria Messias da Silva e Matheus Ribeiro de Oliveira Wolowski, que corrobora neste mesmo sentido, vejamos:

Basta que haja a prova de ocorrência do fato, atribuir excesso de tarefas ao assediado, que o leve a prejudicar seu convívio familiar ou social. Isso porque, o empregador é o detentor do poder diretivo e, consequentemente, responsável por garantir um meio ambiente de trabalho sadio aos trabalhadores (SILVA; WOLOWSKI, 2015, p. 153).

Portanto é notório o aumento deste ilícito nas relações laborais hodiernas, cabendo reparação ao trabalhador que teve seus direitos da personalidade desrespeitados comprovadamente, haja vista que a 276 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade responsabilidade do empregador é objetiva quanto aos danos materiais e morais resultantes de um meio ambiente de trabalho desequilibrado.

15.4.1 Assédio moral por excesso de trabalho as consequências na vida do trabalhador vitimado

Gradativamente, a prática de assédio moral por excesso de trabalho, tem se tornado cada vez mais frequente, principalmente, face às novas tecnologias, que possibilitam a prática desta lesão de forma sutil, mascarando a ofensa aos direitos garantidos constitucionalmente ao trabalhador. Retomando a função social do contrato de trabalho e a dignidade da pessoa humana, cumpre destacar que o trabalhador possui o direito de ter uma vida digna. Para isso, é necessário que se tenha um trabalho que garanta a sua subsistência. Assim, o trabalho é o meio pelo qual, o trabalhador encontra para poder garantir sua sobrevivência e gozar do seu direito primordial: viver dignamente. Com efeito, o trabalhador que vive em função do trabalho, extrapolando rotineiramente sua jornada de diária para cumprir metas e produzir mais, não consegue atingir o fim do trabalho. Em outras palavras, não consegue viver e desfrutar do seu direito ao lazer, ao descanso, à convivência familiar que são direitos essenciais para se ter uma vida digna, tanto são tutelados constitucionalmente. Ademais, destaca-se que o assédio moral por excesso de trabalho, não permite que o trabalhador se relacione socialmente ou exerça seus estudos, aprimorando seus conhecimentos e qualificando-se para obter uma mão-de-obra ainda mais especializada e assim conseguir um pró-labore de maior valor. Cientes de tais circunstâncias, muitos empregadores se aproveitam de tal fragilidade que se encontra o trabalhador, incluindo, sobretudo a necessidade financeira que é cogente ante a satisfação de suas necessidades de subsistência, para absorver ao máximo sua força de trabalho e aumentar os lucros empresariais. Desta feita, diversos trabalhadores, rotineiramente, extrapolam o limite legal da jornada diária de trabalho, estabelecida no artigo 7º, inciso XIII da Constituição Federal7. Não que seja ilegal este fato, pois a própria legislação permite ultrapassar o limite de duas horas, todavia o problema é quando este fato se torna rotina na vida do trabalhador, desrespeitando em alguns casos, o direito de interjornada, garantidos ao trabalhador pelo artigo 66 da CLT8 e pela súmula 110 do TST9.

7 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. 8 Art. 66 - Entre 2 (duas) jornadas de trabalho haverá um período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso. 9 Súmula nº 110, TST: JORNADA DE TRABALHO. INTERVALO (mantida) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. No regime de revezamento, as horas trabalhadas em seguida ao repouso O assédio moral... // 277

Neste raciocínio, cumpre mencionar que alguns empregadores sobrecarregam seus trabalhadores, com o intuito de estimulá-los a pedir demissão e evitar o pagamento dos haveres trabalhistas quando se dá a dispensa imotivada. Portanto, quando ocorre o assédio moral por excesso de trabalho, é notória a caracterização de um dano existencial, no qual a vítima sofre com ausência do convívio social entre seus amigos, com os seus familiares, não participando do acompanhamento e crescimento de seus filhos, e outras situações que o trabalhador se abstém de viver por conta do excesso de trabalho habitual. É um dano imenso ao empregado, visto que se trata da supressão do convívio familiar e social que nunca mais voltará. Ademais, este fato pode ocasionar um dano social, tendo em vista que muitos filhos crescem sem a presença dos pais, e são prejudicados na formação educacional e emocional, já que sofrem com a ausência dos pais durante seu crescimento e formação. O que resulta, em muitas vezes, adultos delinquentes, depressivos, rebeldes e maus cidadãos dada a ausência de uma autoridade familiar no desenvolvimento para conduzir e orientar tais menores.

15.5 O IMPACTO JURÍDICO E SOCIAL DO ASSÉDIO MORAL POR EXCESSO DE TRABALHO

Tendo como premissa que o dano moral é aquele que decorre de um ato lesivo à honra ou dignidade do indivíduo, resta cristalino que, no caso de assédio moral o dano moral é notório, visto que se atinge a integridade psíquica do trabalhador e em virtude do dano gerado pela ação agressora, o causador deverá indenizar. No caso do assédio moral por excesso de trabalho, a gravidade é tanta, que atinge até integridade física do trabalhador, colocando a sua vida em risco. Observemos o fato ocorrido na empresa Foxconn que em 2009 e 2010 teve 19 funcionários que se suicidaram em virtude do stress causado pelas más condições de trabalho. Posteriormente em 2012, nesta mesma holding, 300 funcionários ameaçaram se jogar de um prédio da companhia, caso não houvesse melhorias nas condições de trabalho, dentre elas estava o equilíbrio no meio ambiente de trabalho (ZMOGINSKI, 2012, p.1). Nota-se que neste caso, por se tratar de uma coletividade, caberia um dano social, haja vista a precarização das relações de trabalho de uma coletividade. Destarte, no excesso de trabalho há a caracterização de outro dano, o dano que cerceia a convivência social, familiar e que impede o trabalhador de exercer outras atividades, como uma faculdade, por exemplo. Este dano é conceituado pela jurisprudência como: dano existencial.

semanal de 24 horas, com prejuízo do intervalo mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre jornadas, devem ser remuneradas como extraordinárias, inclusive com o respectivo adicional. 278 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Faz-se necessário distinguir o conceito de dano existencial e dano social, visto que são institutos distintos segundo a ótica da jurisprudência pátria. O posicionamento majoritário da jurisprudência entende que a parte legítima para pleitear dano social é, exclusivamente, o Ministério Público, não cabendo aos sindicatos, tampouco ao trabalhador, visto que este dano atinge os membros da coletividade e o representante da coletividade é necessariamente o Ministério Público, conforme bem explica o seguinte julgado:

DANO SOCIAL. INDENIZAÇAO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O dano social repercute em toda a sociedade, ocasionando prejuízos de ordem patrimonial ou imaterial aos membros da coletividade, e somente o Ministério Público, como seu representante, possui legitimidade para pleitear a indenização por dano social, nos termos dos arts. 129, III, da CF e 1º, IV, da Lei n. 7.347/85 (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 14ª Região, Recurso Ordinário: 877 RO 0000877, Relator: Desembargadora Maria Cesarineide De Souza Lima, 2011).

Assim, o Ministério Público do Trabalho poderá fiscalizar as empresas e caso constatado o assédio moral por excesso de trabalho, em virtude das jornadas de trabalho habitualmente excedidas, poderá requerer à Justiça que o empregador indenize a coletividade vitimada por este abuso, haja vista que a precarização do ambiente de trabalho gera um dano à sociedade. Sendo assim, toda precarização do ambiente de trabalho que viole os direitos da dignidade da pessoa humana são passíveis de reparação pelos danos causados. Portanto, quando há um dano coletivo, haverá um dano social ou dano moral coletivo, como conceitua uma parte minoritária da jurisprudência. Além do excesso de trabalho, o dano social tem se configurado no chamado “Dumping Social”, no qual o empregador desloca a mão de obra para um local mais barato, com o intuito de diminuir os custos e aumentar os seus lucros. Tal fato, assim como o excesso de trabalho, viola o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que o ser humano é submetido a condições precárias, inclusive análogas à de escravo, pois vive em função das necessidades da empresa, ferindo a função social do contrato de trabalho. O termo “dumping” corresponde ao desfazimento de algo e em seguida depositá-lo em algum local determinado, como se este algo fosse lixo. Nesta senda, tal termo é utilizado para definir o ato do empregador que “despeja” o trabalhador de um local para o outro, com salários mais baixos a fim de garantir produtos com preços ínfimos no mercado internacional. Notoriamente, tal ato desrespeita frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto o Ministério Público do Trabalho, com o intuito de proteger a coletividade poderá pleitear uma indenização por dano social, visto que a conduta do empregador, praticante deste instituto, fere um princípio O assédio moral... // 279 humanitário quando abrange não apenas um indivíduo, mas toda uma coletividade. Logo, no caso supramencionado da empresa Foxconn caberia perfeitamente um dano social, em virtude do desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana de toda uma coletividade de trabalhadores. Nesta vereda, o dano social visa reparar um dano decorrente da precarização do ambiente de trabalho a uma coletividade de trabalhadores, devendo o valor da indenização ser destinado ao FAT ou outra organização sem fins lucrativos. Já o dano existencial é uma espécie de dano imaterial e se materializa quando o trabalhador sofre limitação em sua vida social em virtude do excesso de trabalho, já que não há tempo para o descanso e o lazer, haja vista que a vítima consome sua vida e tempo somente para o trabalho. É um dano que o trabalhador sofre quanto a sua própria existência, pois o trabalho que deveria ser o meio de garantir sua subsistência acaba demandando todo o tempo de vida do trabalhador, não restando a este o direito de gozar da sua vida social, afetiva, ao seu direito de lazer e descanso. A negativa do direito ao lazer e ao descanso caracteriza o dano existencial, conforme entendimento recente dos tribunais observe-se:

DANO EXISTENCIAL. NEGATIVA DE DIREITO AO LAZER E DESCASO. INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MORAIS DEVIDA. O direito ao lazer e ao descanso é direito humano fundamental, assegurado constitucionalmente - art. 6º - e está diretamente relacionado com a relação de trabalho. A prorrogação excessiva da jornada de trabalho justifica a indenização compensatória pelo dano causado. Trata-se de desrespeito contínuo aos limites de jornada previstos no ordenamento jurídico, sendo, pois, ato ilícito. É o chamado dano existencial, uma espécie de dano imaterial em que o trabalhador sofre limitações em sua vida fora do ambiente de trabalho (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região, Recurso Ordinário: 1924201111303002 0001924-09.2011.5.03.0113, Relator: Convocado Paulo Eduardo Queiroz Goncalves, 2013).

Corroborando neste sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região já entende que há o dano existencial quando o trabalhador excede o limite legal de horas extras, rotineiramente, cabendo indenização por esta ausência de vida social, visto que tal ausência atinge a dignidade da pessoa humana. Vejamos:

DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. O dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que traduzem decisão jurídico-objetiva de valor de nossa Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana 280 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, do qual constitui projeção o direito ao desenvolvimento profissional, situação que exige condições dignas de trabalho e observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores [...] (BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho, 4ª Região, Recurso Ordinário: 11379320105040013 RS 0001137-93.2010.5.04.0013, Relator: José Felipe Ledur, 2012).

Importante ressaltar que havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes ao limite legal relativo à atividade de horas extras, restará configurado dano existencial dada a impossibilidade do trabalhador, gozar do convívio social ou prosseguir com algum projeto de vida em virtude da excessiva demanda de trabalho gerada pelo empregador, ferindo seus direitos fundamentais, conforme é o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região:

DANOS MORAIS/EXISTENCIAIS. CONFIGURAÇÃO. JORNADAS DE TRABALHO EXTENUANTES. INOCORRÊNCIA. “O dano existencial está diretamente ligado à impossibilidade de o trabalhador usufruir o convício social e familiar ou de algum projeto de vida específico, em razão do ato ilícito do empregador. Como bem entendido pela decisão recorrida, a existência de horas extras, por si só, não constitui autorização para deferimento de dano existencial, quando não foi apontado nenhum fato concreto na inicial que o possa indicar”. Assim, não configurado o alegado dano existencial, não há falar na indenização compensatória correspondente. Ressalvado entendimento do Relator (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 10ª Região, Relator: Desembargador José Leone Cordeiro Leite, 2014).

Efetuar horas extras dentro de um limite de razoabilidade, por si só não vai caracterizar o assédio moral por excesso de trabalho, com aquilo que foge do normal. É notório, portanto, que há um dano ao trabalhador vítima do excesso de trabalho contínuo, pois além de ofender sua dignidade, suprime seu direito existencial de usufruir da convivência familiar, social ou então de desenvolver uma atividade estudantil ou outro determinado projeto de vida específico. Nesta vertente, verifica-se a diferença entre o dano moral comum e o dano existencial, pois o dano moral comum atinge a honra da vítima, todavia o dano existencial inibe a vida existencial do trabalhador, o convívio deste com sua família, amigos e impede a realização de atividades qualificadoras como cursos técnicos, faculdades e etc. Torna-se necessário entender esta diferença entre o dano moral comum e o dano existencial em decorrência do excesso de trabalho. Verifica- se que no assédio moral por excesso de trabalho a vítima sofre com o dano moral por ter sua honra e até, em casos extremos, a sua saúde, afetada ao se submeter a jornadas excessivas, continuamente, podendo desenvolver doenças, como a síndrome de Burnout e sendo excluída do convívio com aqueles que são à base de sua existência, como a família e amigos. Nos dias atuais, com o avanço de tecnologia, torna-se comum as exigências exacerbadas sobre o trabalhador, eis que o os novos recursos O assédio moral... // 281 tecnológicos, como Whatsapp, Skype e etc. estão ao alcance do empregador, bastando dar um “click”, com mensagens exigindo relatórios, pareceres, enfim, distribuindo ordens que não raras vezes, são executadas após o expediente, no lar do trabalhador. Como dito, o dano existencial atinge o bem jurídico da própria existência do trabalhador, que é cerceada pela demanda excessiva de trabalho que o empregador impõe à vítima. Portanto com fundamento no valor social do trabalho e pelo assédio moral ofender dois bens jurídicos (a honra e o direito à vida), o trabalhador vítima de assédio moral por excesso de trabalho deve ser indenizado por dano moral decorrente do dano existencial e a sua incidência deve ser severamente combatida.

15.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O assédio moral por excesso de trabalho ainda é pouco estudado, mesmo sendo algo extremamente comum de acontecer nos dias atuais e até mesmo em dias remotos. É certo que as novas tecnologias facilitam e multiplicam o assédio moral por excesso de trabalho e talvez por combater a exacerbada exploração de mão-de-obra que desconsidera o trabalhador como ser humano, pode gerar resistência aos empreendedores e detentores dos meios de produção. Todavia, é necessário salutar que não é ilegal a jornada extra de trabalho porque a própria legislação a permite, desde que respeitados os critérios legais. O problema ocorre quando a jornada extra ultrapassa o legalmente admitido e se torna uma rotina na vida do trabalhador, cerceando o direito deste em desfrutar do bem jurídico principal: a vida digna. O trabalho possui um papel social e não existencial (no sentido de existir para trabalhar) ou de enriquecimento. O Direito ao lazer e ao convívio social/familiar não é mero capricho, mas constitui um direito essencial a todas as pessoas, sendo que a ausência destes direitos acarreta em doenças como a depressão e a síndrome de burnout e que em casos mais graves, podem ensejar no suicídio. Portanto, o trabalhador que tem sua existência suprimida pelo assédio moral por excesso de trabalho deve ser indenizado por danos morais, decorrentes do dano existencial, ainda que não tenha como se mensurar o valor pecuniário da perda de um convívio familiar, de um descanso que não aconteceu e que pode gerar uma doença incurável. Deve haver a reparação pelo entendimento dos artigos 186 e 927 do Código Civil, sem contar a indenização decorrente de doença ocupacional desenvolvida, a qual é considerada acidente de trabalho. Nesta visão, além do dano existencial e social, já vislumbrados no presente trabalho, há também a incidência dos danos materiais emergentes caso o trabalhador desenvolva uma doença ocupacional ou tenha gastos de qualquer ordem, com a sua saúde em decorrência do assédio moral por excesso de trabalho. Estes consistem na aquisição de remédios, assistência médica e psicológica. Se o trabalhador for remunerado por produção ou 282 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade espécie congênere, haverá também uma cumulação do dano existencial com o dano material de lucros cessantes, uma vez que deixará de ganhar a percentagem habitualmente percebida em virtude de vendas ou produção. Contudo, observando a proteção constitucional dos direitos da personalidade que garantem ao cidadão o direito de viver dignamente, resta claro que há violação de tais direitos quando incidem nas relações de trabalho o assédio moral e o assédio moral por excesso de trabalho. O assédio moral se configura com condutas abusivas que causam danos aos direitos da personalidade do trabalhador, praticadas pelo empregador de forma reiterada. No assédio moral, os atos praticados são humilhantes, constrangedores e vexatórios, sendo sempre praticados de forma repetitiva. Já o assédio moral por excesso de trabalho se caracteriza com o excesso habitual da jornada de trabalho do empregado, que em virtude de sua hipossuficiência na relação laboral, se submete as jornadas excessivas, reiteradamente, resultando em danos existenciais, pois o empregado se ausenta do convívio familiar e social. O assédio moral por excesso de trabalho também pode gerar danos à saúde, muitas vezes desencadeia doenças como a síndrome de burnout e em alguns casos, falece por estresse excessivo ou suicídio decorrente do estado de saúde mental danificado por esta forma de assédio moral. Deste modo, a melhor forma é prevenir a incidência de assédio moral em todas as formas possíveis de sua prática, garantindo um ambiente de trabalho saudável, cuja produção ou lucratividade não ultrapasse os valores do trabalho, tampouco os direitos da personalidade do empregado que se encontra sempre, na condição menos favorável na relação com o empregador. Portanto, aplicando-se o princípio da proteção e a dignidade da pessoa humana, certamente o trabalhador terá um ambiente saudável para desenvolver suas atividades profissionais com eficiência e dentro de uma normalidade que torne seu trabalho um prazer e não um desgaste. Ademais, o trabalho cumprirá sua função social de garantir a subsistência do trabalhador, de modo que este consiga gozar do direito à convivência, ao lazer, descanso e tudo quanto um ser humano normal necessita para manter sua saúde física e psíquica. O legislador e a administração pública não podem esperar que o Brasil assemelhe-se a países, onde há uma escravidão implícita, cujos trabalhadores chegam ao ponto de suicidar-se em virtude do excesso de trabalho, já que vivem em função de produzir e alcançar metas. O assédio moral por excesso de trabalho é um ato que fere diversos princípios, sobretudo o da dignidade da pessoa humana e deve ser combatido com veemência, garantindo assim o zelo pelos direitos fundamentais preconizados na Constituição Federal de 1988.

O assédio moral... // 283

15.7 REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2011. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região. Recurso Ordinário: 1924201111303002 0001924-09.2011.5.03.0113, Relator: Convocado Paulo Eduardo Queiroz Goncalves, Primeira Turma, Data de Publicação: 11/12/2013 10/12/2013. DEJT. Página 44. Boletim: Não. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 4ª Região. Recurso Ordinário: 11379320105040013 RS 0001137-93.2010.5.04.0013, Relator: José Felipe Ledur, Data de Julgamento: 16/05/2012, 13ª Vara do Trabalho de Porto Alegre. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 10ª Região. Relator: Desembargador José Leone Cordeiro Leite, Data de Julgamento: 29/01/2014, 3ª Turma Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 14ª Região. Recurso Ordinário: 877 RO 0000877, Relator: Desembargadora Maria Cesarineide De Souza Lima, Data de Julgamento: 06/07/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: 07/07/2011. Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região. Recurso Ordinário: 36187 SP 036187/2012, Relator: Luís Carlos Cândido Martins Sotero Da Silva, Data de Publicação: 25/05/2012. Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2015. 284 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região. Recurso Ordinário: 40848 SP 040848/2008, Relator: João Batista Da Silva. Data de Publicação: 11/07/2008. Disponível em: . Acesso em: 03 mai. 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região. Recurso Ordinário: 3565120125150092 SP 090400/2013-PATR, Relator: Luiz Roberto Nunes, Data de Publicação: 18/10/2013. Disponível em: . Acesso em: 02 mai. 2015. COSTA, Armando Casimiro; MARTINS, Melchíades Rodrigues Martins; CLARO, Sonia Regina. Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: LTr, 2014. CULPIS, Adriano de Cupis. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961. FERRARI, Irany; MARTINS, Melchíades Rodrigues. Dano Moral-Múltiplos Aspectos nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. FRANÇA, A. C. L. Stress e trabalho: uma abordagem psicossomática. São Paulo: Atlas, 2005. HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. MARTA, Taís Nader; KUMAGAI, Cibele. A aberração do trabalho escravo num Estado Democrático de direito cujo fundamento basilar é o princípio da dignidade da pessoa humana. In: Revista Jurídica Cesumar - Mestrado, v. 11, n. 1, p. 11-31, jan./jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2015. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. A defesa processual do meio ambiente do trabalho. In: Revista LTr. São Paulo: LTr, vol. 63, n. 05, p. 584, Mai-1999 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. PEREIRA, Ana Maria Teresa Benevides. Burnout: alto índice de estresse. Disponível em: . Acesso em: 04 mai. 2015. SILVA, Leda Maria Messias da. O cumprimento da função social do contrato no tocante ao meio ambiente de trabalho. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2015. SILVA, Leda Maria Messias da; WOLOWSKI, Matheus Ribeiro de Oliveira. O assédio moral por excesso de trabalho e a responsabilidade objetiva do empregador. In: 55º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho LTr. 2015, São Paulo. Jornal do 55º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho LTr. São Paulo: LTr, 2015. p. 152- 154. Disponível em: . Acesso em: 29 jun. 2015. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. O assédio moral... // 285

ZMOGINSKI, Felipe. Ameaça de suicídio reabre crise na Foxconn. In: Revista Veja. São Paulo, 12 de Janeiro de 2012. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2015.

286 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= XVI =

O DIREITO AO USO DO PATRONÍMICO CONJUGAL APÓS O DIVÓRCIO COMO COROLÁRIO DO DIREITO DA PERSONALIDADE

Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli* Rafaela Dias Damião**

16.1 INTRODUÇÃO

Quem é você? A designação da pessoa humana inicia-se pela indicação de um dos mais importantes aspectos de sua personalidade: o nome. Aliás, o humano é ser essencialmente nomenclador, inclinado naturalmente a substantivas tudo aquilo que se lhe apresente. Dá nome a tudo. Às vezes, até mais de um. Por isso, é desafiador, ou mesmo frustrante, tentar encontrar algo ao qual não se tenha ainda dado um nome; e se encontrar, como se poderia designar tal raridade sem antes lhe atribuir um nome? E uma pessoa inominada então? Seria, no mínimo, um ser incompleto em seu plano existencial. Nenhum outro signo personaliza tão bem o indivíduo quanto o nome. Os números da cédula de identidade ou do CPF não personificam uma pessoa; ao contrário, eles até a despersonalizam, transmutando-a num mero código frio e sem alma, ou, de modo mais técnico, sem personalidade. Essas constatações permitem compreender a dimensão da importância que o nome assume para a pessoa humana em seu plano existencial. Inserindo-se nesse contexto, o presente trabalho debruça-se sobre um aspecto do nome marcado por recentes controvérsias: o nome conjugal, popularmente denominado “nome de casado”. O nome conjugal é quase sempre analisado de maneira superficial, principalmente porque sua disciplina recebe forte influência da tradição religiosa e familiar. Não obstante, o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010 – a Emenda do Divórcio – impulsionou diversas discussões do Direito de Família, dentre elas a sorte do nome conjugal após o divórcio. A razão disso reside no fato de se haver instalado grandes controvérsias a respeito da subsistência da culpa como um fato jurídico relevante na dissolução do casamento. Discute-se também a real natureza do nome conjugal e sua relação com a personalidade do cônjuge que o adquiriu.

* Possui graduação em Direito pela Universidade de Marília (2002), Especialização em Direito Penal e Processo Penal e MESTRADO EM DIREITO pela UNIVEM - Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha de Marília (2006). Atualmente é professora da UNIR - Universidade Federal de Rondonia. ** Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Rondônia - Campus Cacoal. 288 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Na esteira dessas discussões, o presente trabalho tem por objetivo geral verificar, mediante uma análise animada pelo método crítico e dialético, a subsistência da regra pela qual um dos cônjuges pode exigir a perda do direito de usos do nome conjugal pelo outro.

16.2 O DIREITO DE FAMÍLIA CONSTITUCIONAL

Apesar do Direito Civil, ramo jurídico do qual ascende o Direito de Família, ser um dos mais antigos e basilares conjuntos normativos, é ainda assim o mais contemporizado. O termo cives, que, em vernáculo, significa cidadão, nos conduz, pela via etimológica, a perceber o Direito Civil como o ramo jurídico destinado à regulamentação das relações humanas travadas pelos cidadãos. É o direito da vida do homem (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 58), ou o que “estuda e regulamenta as pessoas e os bens, bem como as relações pessoais e patrimoniais entre particulares” (OLIVEIRA, 2004, p. 105). Arremata Diniz (2010, p 46) que “[...] toda a vida social está impregnada do Direito Civil”. O dinamismo da vida social, bem como o desprendimento do preceito de estrita legalidade inerente a outros ramos (tributário, penal e administrativo, por exemplo), impõe ao Direito Civil, um constante processo de rejuvenescimento. É, por isso, essencialmente um direito poroso, aberto, sensível aos avanços que a tecnologia e a capacidade intelectual do homem os impõem (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 58). Nesse diapasão, é necessário que se identifique o estágio evolutivo atual do Direito Civil e, dentro dele, do Direito de Família. Trata-se de procedimento imprescindível para a fixação da base teórico filosófica sobre qual se desenvolve o presente estudo, qual seja, o Direito Civil Constitucional. O processo de descentralização ou de descodificação do direito privado ganhou relevância no século XX, sobretudo nos anos 30, após a 1ª Grande Guerra Mundial. À época, vários fatores, com destaque para a intensificação da intervenção do Estado na economia e na autonomia privada e a teia viva das relações sociais, fragilizaram a condição do Código como fonte quase única do Direito Civil. Sobre a temática:

A sociedade do século XX, sobretudo após a 1.ª Grande Guerra, marcaria o o caso das codificações, por meio da maciça intervenção do Estado na economia, e, sobretudo, com o processo, daí decorrente, de restrição à autonomia privada, pelo chamado dirigismo contratual. A teia viva das relações sociais, as incertezas da economia, a imprevisão generalizada dos negócios e a publicização do direito começariam a amolecer o gesso das normas codificadas, vulnerando, passo a passo, importantes regras que pretendiam ser imutáveis e eternas (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 64).

As urgentes contingências de modernização, tanto pontuais quanto O direito ao uso do patronímico... // 289 gerais, do Direito Civil impuseram uma alternativa: uma reforma generalizada, razoavelmente rápida e dinâmica da codificação ou, inversamente, a descodificação. Por um imperativo prático, voltado à eficiência da atividade legislativa, o Direito Civil trilhou o caminho da descentralização, operada mediante intensa edição de leis extravagantes voltados a disciplina de matérias específicas ou à regulação de microssistemas jurídicos. Tepedino (2004, p. 20) pontua que o Direito Civil Constitucional se assenta sobre três pilares, três princípios dos quais não se pode distanciar o intérprete. São eles: a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade. Essa tríade (dignidade/solidariedade/igualdade) deve dar o tom a toda e qualquer interpretação da legislação civil. Barroso acrescenta que, nessa releitura do Direito Civil, os princípios constitucionais passam a condicionar a interpretação dos institutos privados e a dignidade da pessoa humana toma uma dimensão transcendental, pondo a Constituição no centro de todo o ordenamento jurídico:

No quarto final do século, o Código Civil perde definitivamente o seu papel central no âmbito do próprio setor privado, cedendo passo para a crescente influência da Constituição. No caso brasileiro específico, a Carta de 1988 contém normas acerca da família, da criança e adolescente, da proteção do consumidor, da função social da propriedade. Além disso, os princípios constitucionais passam a condicionar a própria leitura e interpretação dos institutos de direito privado. A dignidade da pessoa humana assume sua dimensão transcendental e normativa. A Constituição já não é apenas o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade (BARROSO, 2013, p. 50).

É essa necessidade de repensar os institutos do Direito Civil à luz da tábua axiomática da Constituição da República de 1988 que faz surgir cenário propício à pretendida análise crítico-dialética de institutos cuja hermenêutica era até então restrita à decomposição dos elementos do texto legal, como é o caso do nome conjugal.

16.2.1 A tutela constitucional da família

A tutela constitucional da família, pelo menos numa primeira faceta, se assemelha aos direitos fundamentais de primeira geração, isso porque conduzem a uma proteção da família em face da ingerência do Estado. Significa dizer que ao Estado, como regra, é defeso intervir no espectro de liberdade das decisões familiares. Trata-se do princípio da não-intervenção ou da liberdade, que, segundo Muniz Filho (2010, p. 30), confere à entidade familiar a potestade de deliberar quanto ao momento e a forma de sua constituição e dissolução, assim como quanto à prole, o que não exclui o dever do Estado de promover os meios para o exercício de tais direitos, que incluem a facilitação do casamento e do divórcio, assim como a educação e fornecimento de métodos contraceptivos necessários ao planejamento familiar. 290 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Cumpre observar que o princípio da não intervenção foi expressamente reconhecido pela codificação civil de 2002, ao prever, em seu artigo 1.513, que “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” (BRASIL, 2002).

16.3 O NOME DA PESSOA NATURAL NA PERSPECTIVA CIVIL CONSTITUCIONAL

Nas notas de introdução do presente estudo, já se teve a oportunidade de alertar para a incomensurável importância da nomeação de coisas e pessoas para o convívio social. De fato, o convívio em grupo faz surgir a necessidade da designação por nomes. A nomeação de coisas e seres é elemento imprescindível à comunicação, despontando daí a sua primitiva necessidade. Para tal constatação, basta observar que um indivíduo isolado ou alheio a qualquer interação com outro ser humano não precisaria fazer uso de nomes; lhe bastaria saber o que são as coisas e quem são os seres que o cercam. O nome conjugal reverbera intensamente sobre o convívio social da pessoa casada, daí a necessidade de se dedicar ao seu estudo, iniciando pela noção de seu conceito e atributos do instituto que lhe é logicamente precedente: o nome civil da pessoa natural. Tradicionalmente os mais diversos estudos do Direito Civil conceituam o nome da pessoa natural como o sinal exterior pelo qual é ela designada no meio familiar e social, sendo a manifestação mais expressiva da personalidade. O direito ao nome é o direito à identificação pessoal por meio de um signo chamado nome, sendo um direito que nasce com a pessoa. O direito a um nome é o direito sobre certo e determinado nome, direito este que se adquire com o registro civil ou pelo uso social prolongado e notório. O direito de pôr um nome é o direito de nomear alguém, como o direito dos pais escolherem o nome que vão atribuir ao filho. O direito de tomar um nome é direito do indivíduo por um nome em si próprio, como, por exemplo, no caso do filho que exige o reconhecimento de sua paternidade do pai que não o registrou. Segundo preleção de Diniz (2012, p. 226), o nome é o primeiro fator da individualização da pessoa natural, que se completa com outros dois fatores: estado e domicílio. Um tanto mais além, Venosa (2004, p. 2010) observa que o nome da pessoa continua a ter influência jurídica e social mesmo após a morte. De fato, permanece na lembrança de seus familiares e da sociedade, principalmente se, em vida, o indivíduo dedicou-se a atividades de vulto, sendo o nome da pessoa falecida digno de certa proteção da lei. O direito ao nome possui natureza dúplice porquanto contemple uma conotação de direito individual e, ao mesmo tempo, também possua aspecto de direito público. O direito ao uso do patronímico... // 291

Essa dualidade conduziu a discussões de grande vulto quanto à verdadeira natureza jurídica do nome. As correntes formadas em torno dessa discussão ora privilegiam a face pública do nome, ora dão preferência ao aspecto privado e, às vezes, mesclam ambos os elementos. Imperioso pontuar que a definição da real natureza jurídica do direito da pessoa natural à identidade transcende à mera discussão acadêmica. De fato, além de ser um imperativo para o aprimoramento científico do Direito, a determinação da natureza jurídica repercutirá sobremaneira sobre os efeitos que o direito ao nome deve produzir nas relações interpessoais. O nome como direito da personalidade representa atributo indissociável da pessoa humana, um mínimo indispensável para o desenvolvimento do ser. Evidentemente, o fato de ser visto como um direito da personalidade não afasta do nome a obrigatoriedade em relação as relações de caráter público. O mérito da teoria do direito da personalidade é justamente dar prevalência ao aspecto preponderante do nome. A natureza de direito da personalidade influi notoriamente sobre os atributos próprios do direito ao nome, exposto no item anterior, e também em relação ao regime jurídico dispensado pelo direito brasileiro ao nome da pessoa natural, à qual o presente trabalho se dedica nas linhas seguintes.

16.4 NOME CONJUGAL SOB A INFLUÊNCIA DE NOVOS PARADIGMAS

Os conhecimentos obtidos a partir das análises antecedentes conduzem à percepção da necessidade da releitura mesmo dos institutos jurídicos mais tradicionais do ordenamento civil. Emprega-se aqui o termo “reler” como reavaliar, ver sobre um novo ângulo ou sob influência de paradigmas rejuvenescidos, o que não significa, necessariamente, pretender qualquer alteração. O verdadeiro avanço científico jurídico não se obtém por um pseudoestudo predestinado a modificar algo, em um processo animado por um inventivismo sem propósito outro que não a narcisista finalidade de se poder dizer ter inovado em algo. Assim, as linhas seguintes se destinam não a tentar encontrar uma proposta de mudança plausível e fruto de um discurso de premissas previamente concatenadas para proporcionar um avanço aparente. Muito diversamente disso, pretende-se identificar a real finalidade, funcionalidade e localização do nome conjugal dentro do universo jurídico atual. Só então será possível verificar se a clássica compreensão desse instituto deve ser realinhada. Apesar das discussões críticas e dialéticas constituírem o objeto principal do estudo proposto, é necessário, antes delas, analisar o regime jurídico do nome conjugal num panorama histórico e puramente dogmático.

292 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

16.4.1 Disciplina jurídico-dogmática do nome conjugal

A redação original do artigo 240 do Código Civil de 1916 previa a obrigatoriedade da mulher, ao casar-se, acrescer ao seu nome o sobrenome do marido: “Art. 240. A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família” (BRASIL, 1916). Explica Dias (2012, p. 1) que tal disposição é marca da sociedade patriarcal da época. Segundo a autora, a sinalização de uma nova família deveria dar-se por meio do sobrenome do varão, impondo-se à mulher a mudança de um dos atributos da personalidade em prol da melhor designação do núcleo familiar. Posteriormente, o Estatuo Jurídico da Mulher Casada (Lei n. 4.121/1962) alterou a redação do supramencionado artigo 240 do Código Civil de 1916, porém, não promoveu alteração substancial em relação ao nome de casada, que permaneceu sendo obrigatório. Em ambas as redações, o artigo 240 do Código Civil de 1916 impunha a adoção do patronímico do cônjuge varão como efeito automático do casamento, isto é, independente de qualquer manifestação da aderente O Código Civil de 1916 previa ainda que a condenação da mulher pelo desquite impunha a decretação da perda do direito ao nome de casada: “Art. 324. A mulher condenada na ação de desquite perde o direito a usar o nome do marido” (BRASIL, 1916). O quadro veio a sofrer alteração substancial com o advento da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/1977). Referido diploma deu uma terceira redação ao artigo 240 do Código Civil da época, incluindo um parágrafo único para tornar facultativa a adoção pela mulher do patronímico do marido:

Art. 240 - A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta. Parágrafo único - A mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do marido (BRASIL, 1977).

A Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/1977) ainda revogou o supracitado artigo 324 do Código Civil de 1916 – que previa a perda do direito ao sobrenome do marido se a mulher fosse condenada ao divórcio. Passaram a regular a questão os artigos 17 e 18 da própria Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/1977):

Art. 17 - Vencida na ação de separação judicial (art. 5º " caput "), voltará a mulher a usar o nome de solteira. §1º - Aplica-se, ainda, o disposto neste artigo, quando é da mulher a iniciativa da separação judicial com fundamento nos §§ 1º e 2º do art. 5º. §2º - Nos demais casos, caberá à mulher a opção pela conservação do nome de casada. Art. 18 - Vencedora na ação de separação judicial (art. 5º " caput "), poderá a mulher renunciar, a qualquer momento, o direito de usar o nome do marido O direito ao uso do patronímico... // 293

(BRASIL, 1977).

A nova disciplina em nada trouxe alento à posição da mulher. Ao contrário, agravou-lhe as condições. De fato, agora perderia o direito ao sobrenome de casa não só quando condenada pela separação, mas também quando a pedisse com fundamento da separação de fato há mais de dois anos ou com base em doença mental do consorte. A disciplina inaugurada pelo Código Civil de 2002 é bastante inovadora em relação ao nome conjugal. O tema é tratado, basicamente, em três artigos. O primeiro é o artigo 1.565, §1º, que dispõe ser opcional, por qualquer dos nubentes, a adesão do sobrenome do outro:

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. §1º Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro (BRASIL, 2002).

A regra reflete o princípio da isonomia entre os cônjuges consagrada pela Constituição Federal de 1988. A partir da ideia de que ambos os nubentes podem aderir ao sobrenome do outro – muito embora a tradição recomenda que apenas a mulher o faça –, afigura-se tecnicamente incorreta a expressão “nome de casada”, sendo preferível “patronímico conjugal”. Dias (2012, p. 1) aponta que essa norma “[...] rompe a forma de estruturação da sociedade brasileira, sempre identificada pelo nome do varão”. A segunda disposição do Código Civil a respeito encontra-se no artigo 1.571:

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: §2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial (BRASIL, 2002).

Tal disposição deixa ao arbítrio do cônjuge que aderiu ao sobrenome do consorte a opção por mantê-lo ou não, salvo se o contrário dispuser a sentença. Tal norma é complementada por uma terceira disposição, o artigo 1.578:

Art. 1.578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I – evidente prejuízo para a sua identificação; II – manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III – dano grave reconhecido na decisão judicial. § 1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a 294 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro. § 2º Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado (BRASIL, 2002).

Até este ponto, a análise desenvolvida é puramente legislativa e dogmática, completamente acrítica, voltada unicamente a verificar a disciplina que o direito positivo dispensa ao nome conjugal. Para verticalização do estudo, necessário avaliar o sentido do nome conjugal sob a ótica dos paradigmas atuais que norteiam a intelecção do Direito Civil Constitucional e do Direito de Família.

16.4.2 Reflexões sobre o nome conjugal após o divórcio

Como visto, o casamento é hipótese de relativização do princípio basilar da imutabilidade do nome. De fato, o nome da pessoa natural pode ser alterado tanto quando se convola núpcias ou quando se dissolve o vínculo conjugal. Não bastasse isso, há, por ocasião do casamento, várias possibilidades de combinações de sobrenome, mormente depois que o Código Civil de 2002 consagrou também ao homem o direito de aderir aos apelidos de família de sua consorte. Pode a mulher abdicar de seus sobrenomes e substituí-los pelo do marido; ou pode apenas acrescer o apelido de família do consorte aos seus; ou pode ainda combinar os apelidos próprios com os do marido. Claro, tudo isso aplica-se também ao marido, levando até mesmo à possibilidade de inversão dos nomes: o marido abdica de seus sobrenomes e os substitui pelos da mulher, enquanto esta faz a operação inversa (Maria Evangelista e Pedro Alcântara passam a chamar-se Maria Alcântara e Pedro Evangelista, por exemplo). Não parece tenha tido o legislador atenção para com o papel do nome civil da pessoa natural para a preservação da segurança jurídica, afinal, essa possibilidade tão flexível de mutação do nome fragiliza o princípio da segurança. Dias (2012) aponta que, na época da edição do Código Civil de 1916, não havia motivo para se preocupar, pois, com o casamento, a mulher perdia a plena capacidade de exercício dos direitos civis, de modo que a modificação de seu nome não colocava em risco a segurança jurídica: No entanto, a mesma autora alerta que, ao dar seguimento à tradição, o legislador ignorou que a mulher assumiu importante papel na sociedade e na economia, de modo que possibilidade da alteração de seu nome – e mais recentemente da alteração também do nome do marido – trouxe séria insegurança para as relações jurídicas. E a fragilização da segurança jurídica não é a única crítica dirigida ao nome conjugal. Há quem afirme que misturar os nomes retira a identidade do nubente. A pessoa que se casa não ganha uma nova personalidade, mas apenas assume um novo estado civil, daí porque não se justificaria a alteração do nome, que é marca maior da personalidade. O direito ao uso do patronímico... // 295

Pereira destaca que a modificação dos nomes pode representar risco ao próprio casamento, pois, numa visão psicanalítica, a manutenção das individualidades é a primeira regra para o sucesso da relação:

Misturar os nomes pode significar mesclar e confundir identidades. O nome é um dos principais identificadores do sujeito e constitui, por isso mesmo, um dos direitos essenciais da personalidade. Misturá-los significa não preservar a singularidade. Neste sentido, é na esteira do pensamento psicanalítico, a preservação das individualidades é a primeira regra para a possibilidade do amor conjugal, estando o disposto no art. 1.565, § 1.º na contramão da história e dos interesses do casamento” (PEREIRA apud TARTUCE, 2014, p. 220).

Soma-se a isso a origem do nome conjugal, que não é das mais glorificadoras, mas pelo contrário, remete a um tempo remoto em que, numa sociedade extremamente patriarcal, a mulher era propriedade do marido, devendo, por isso, receber a sua marca. Tendo em vista a finalidade histórica atribuída ao nome conjugal, Dias (2015, p. 119) assevera que a melhor alternativa para igualar homens e mulheres não é permitir também ao marido que acolha o sobrenome da esposa – como consagra o Código Civil de 2002 –, mas sim traçar extinguir o casamento enquanto hipótese que autoriza a alteração do nome dos cônjuges:

A solução jurídica mais harmoniosa com a plena igualdade não parece ser a possibilidade de oferecer ao marido a opção de adotar o sobrenome da mulher, mas, ao revés, a de estabelecer a regra da inalterabilidade do sobrenome de cada cônjuge após o casamento.

De tudo, conclui-se que o permissivo legal para alteração do nome em virtude do casamento conflita com o princípio da segurança jurídica e ainda é criticável pelas outras razões acima citadas. No entanto, ao sopesar os valores sociais conflitantes, o legislador preferiu dar primazia à tradição familiar brasileira, mantendo o instituto do nome conjugal. Trata-se de decisão legítima não só do ponto de vista formal – pois ao Poder Legislativo incumbe a função de edital normas gerais e abstratas – mas também material, pois a experiência conduz facilmente à percepção de que a grande maioria da população prefere ainda manter a tradição do nome conjugal. Essa opção é muito mais social, familiar e religiosa que propriamente jurídica, daí porque a opção do legislador deve ser respeitada pelo intérprete. Como bem pontua Dias (2012, p. 1), “Pelo jeito, o casamento tem mais significado. Para reverenciar a concretização do sonho do amor eterno tudo vale: Amém”. À vista disso, não interessa ao presente estudo a discussão das bases morais da sociedade, mas sim conferir à disciplina jurídica do nome conjugal a interpretação mais retilínea à Constituição da República. 296 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Assim, tomando como plenamente legítima a opção social e legislativa em permitir a sobrevivência do instituto do nome de conjugal, cumpre ao presente trabalho analisar os seus efeitos jurídicos quando da dissolução do casamento. Tem-se que, dentro do estudo proposto, essa análise deva se iniciar pela discussão a respeito do elemento “culpa” na dissolução do casamento. Isso porque, segunda a literalidade do Código Civil, a sorte do nome conjugal quando do divórcio depende essencialmente da determinação do culpado pelo fim do relacionamento. O artigo 1.578 do Código Civil dispõe que “[...] o cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro”. Por essa redação, a discussão da culpa na ação de divórcio é elemento imprescindível para que a sentença decrete a perda do nome conjugal por um dos cônjuges. Ocorre que a Emenda Constitucional n. 66/2010, comumente denominada “Emenda do Divórcio”, alterou substancialmente os meios jurídicos de dissolução do casamento e, dentre as discussões que enseja, está a permanência da culpa como um fato jurídico relevante para o Direito de Família. Não há dúvidas de que, após a Emenda Constitucional n. 66/2010, a decretação do divórcio prescinde da demonstração da culpa de qualquer dos cônjuges, afinal, se o traço fundamental do casamento é a comunhão de vidas, basta que um dos consortes não mais queira essa comunhão para que o enlace conjugal possa ser desfeito. É o fim do afeto que fulmina o matrimônio, pouco importando eventual descumprimento das obrigações conjugais. No entanto, a doutrina encontra-se divida a respeito da persistência da culpa em relação a três aspectos acessórios cuja solução depende, segundo a literalidade do Código Civil, da determinação de um culpado pela separação. São eles: o nome de conjugal (Código Civil, artigo 1.578), os alimentos (Código Civil, artigo 1.704) e a reparação de danos (Código Civil, artigo 186). Uma primeira corrente entende que a Emenda Constitucional n. 66/2010 pôs fim à culpa como requisito do divórcio, de modo que esta não mais pode exerce qualquer influência sobre o direito de família. Tartuce (2015, p. 690) aponta que essa doutrina é amplamente difundida entre os juristas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), dentre eles, Paulo Lôbo, Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, José Fernando Simão, Antônio Carlos Mathias Coltro, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. A propósito, nesse sentido dispõe o Enunciado 1 do IBDFAM que “A Emenda Constitucional 66/2010, ao extinguir o instituto da separação judicial, afastou a perquirição da culpa na dissolução do casamento e na quantificação dos alimentos” (IBDFAM, 2013). Lôbo destaca que a discussão da culpa no divórcio é sobremaneira O direito ao uso do patronímico... // 297 prejudicial para o relacionamento dos cônjuges após o divórcio e, justamente por isso, quando se tem filhos, a guerra na busca da imputação da culpa a um dos cônjuges é por completo contrária ao melhor interesse da criança:

O divórcio, em que se convertia a separação judicial litigiosa, contaminava- se dos azedumes e ressentimentos decorrentes da imputação de culpa ao outro cônjuge, o que comprometia inevitavelmente o relacionamento pós- conjugal, em detrimento sobretudo da formação dos filhos comuns. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, como absoluta prioridade’ (art. 227 da Constituição), dificilmente consegue ser observado, quando a arena da disputa é alimentada pelas acusações recíprocas, que o regime de imputação de culpa propicia (LÔBO apud TARTUCE, 2014, p. 213).

Admitir a discussão de culpa geraria conflito e, embora pudesse sanar eventual injustiça em relação a algum dos cônjuges, certamente avivaria com monstruosidade discussões, ofensas, humilhações e até mesmo agressões físicas que conduziriam a um trauma insuperável em ambos os cônjuges e principalmente nos filhos. Se o fim último do direito é a promoção da paz social, certamente este não está alinhado à discussão de culpa no divórcio. Além disso, frequente se critica que a discussão da culpa implica numa injustificada demora processual para dissolução do vínculo, mantendo ainda juridicamente presos um ao outro antigos companheiros que não mais desejam a comunhão de vidas. O fim da discussão da culpa no divórcio promove condições para a rápida dissolução do matrimônio, de modo que “[...] os antigos cônjuges poderão, agora, divorciados, buscar, em nova união ou casamento, a felicidade que buscaram outrora na relação que se dissolve” (SIMÃO apud TARTUCE, 2014, p. 213). Outro argumento acusa que, tendo em vista que os dispositivos legais que admitem a discussão de culpa aludem à separação judicial e considerando que este instituto teria sido revogado pela Emenda Constitucional n. 66/2010, não mais haveria terreno fértil à busca de um culpado. Dias (2015, p. 84) critica que o legislador prefere ignorar que nas relações de família o bem jurídico tutelado é dignidade da pessoa humana e acaba por importar institutos, como a culpa, que correspondem às relações patrimoniais regidas por outros ramos do Direito Civil. Alinhado a tal raciocínio, Arruda Neto (2005, p. 283) aponta que o Direito de Família vive um processo de despenalização, que “[...] é medida que se impõe principalmente quando se tem em conta que o seu valor social essencial é o de promover a dignidade dos componentes do núcleo familiar”. A seu turno, Tartuce (2014, p. 213) assevera que, ao não mais permitir a judicialização das histórias pungentes dos desencontros sentimentais, o Direito deixa para a história da família brasileira essa experiência decepcionante de alimentação dos conflitos. De outro norte, há uma segunda corrente que afirma que persiste a 298 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade possibilidade da discussão da culpa quando da dissolução do vínculo matrimonial a fim de que se possa conferir aplicabilidade às sanções cominadas pela lei civil ao cônjuge desidioso para com as obrigações do casamento e, portanto, culpado pela separação. Silva (2011, p. 2) exemplifica que, a eliminação da possibilidade de discussão conduziria a absurdos: “O cônjuge traído teria de pagar pensão alimentícia plena ao infiel; o cônjuge que tivesse sofrido maus tratos físicos ou morais também teria de prestar alimentos plenos ao agressor”. Alerta ainda que, em hipóteses desse viés, o ordenamento permitiria enorme contrassenso: de um lado o cônjuge traído ou mau tratado teria direito a indenização civil, mas por outro seria obrigado a pagar alimentos àquele que o traiu ou agrediu:

Mesmo que conservada a possibilidade de aplicação do princípio da reparação de danos pela violação de dever conjugal, diante da existência de dano moral ou material, se mantida a pensão alimentícia plena ao culpado, isto significaria “tirar com uma mão” (condenação do culpado no pagamento de indenização) e “dar com a outra” (atribuição ao culpado do direito à pensão alimentícia), o que seria patente absurdo (SILVA, 2011, p. 2).

Andrighi (apud SILVA, 2011, p. 2) arremata: “[...] para além do afeto, devem ser preservados deveres e responsabilidades, sem os quais a vida conjugal quedar-se-á vazia de significado, sem viço e sem amparo aos direitos inerentes a essa vivência”. No que toca à crítica de que a discussão da culpa atrasa a dissolução do vínculo conjugal, os defensores dessa corrente contra-argumentam que, para a dissolução, há à disposição das partes o instituto da antecipação da tutela (artigo 273 do Código de Processo Civil). Assim, possível que, em sede de antecipação da tutela se dissolva o vínculo e, dando continuidade ao processo, discuta-se a culpa com relação àqueles aspectos colaterais nos quais ela exerce influência (nome conjugal, alimentos e indenização). Os defensores da persistência da culpa encontram ainda mais facilidade em rebater o argumento pelo qual a discussão de culpa teria acabado junto com o instituto da separação judicial. Primeiro porque ainda há parcela significativa da doutrina que defende a sobrevivência da separação judicial, tanto é o Conselho da Justiça Federal editou o enunciado n. 514: “A Emenda Constitucional n. 66/2010 não extinguiu o instituto da separação judicial e extrajudicial”. Além disso, mesmo os que acolhem a ideia do fim da separação judicial afirmam que “[...] a separação judicial litigiosa, regulada nos arts. 1.572 e 1.573 do Código Civil, deverá ser transformada em divórcio litigioso” (DONINNI apud TATURCE, 2014, p. 216). Adepto dessa segunda corrente, Taturce (2014, p. 215) defende a existência de um sistema dual de dissolução de casamento. De um lado existe a hipótese de decretação do divórcio sem que se exija dos cônjuges a demonstração do culpado. No entanto, numa segunda modalidade é possível que um cônjuge provoque a discussão da culpa pelo término da separação a fim de que tal fato influencie em relação aos efeitos assessórios do divórcio O direito ao uso do patronímico... // 299 dependentes de demonstração de culpa. Há ainda autores como Simão, Rosenvald e Farias (apud TARTUCE 2014, p. 215) que, apesar de não admitirem a discussão de culpa no divórcio, admitem a mesma discussão em sede de ação autônoma de alimentos e de responsabilidade civil. Toda essa celeuma a respeito da possibilidade de se discutir culpa após a Emenda Constitucional n. 66/2010 é sobremaneira importante para a disciplina jurídica do nome conjugal após o divórcio. De fato, acaso venha a prevalecer a primeira corrente, no sentido de que não mais subsiste qualquer possibilidade de se discutir culpa na dissolução do matrimônio, resta evidente que as disposições que admitem a decretação da perda do direito ao nome conjugal acabam por ser destituídas de qualquer aplicabilidade. Não obstante, a melhor solução para o nome conjugal no divórcio parece apontar para a observação de sua natureza jurídica, com exclusão de qualquer influência da culpa no trato da matéria. Para verticalizar o estudo do nome conjugal é preciso primeiro conhecer sua posição na taxinomia do Direito, sua natureza jurídica. Como visto anteriormente, hoje concebe-se o nome da pessoa natural como um indiscutível direito da personalidade. Seria essa também a natureza do nome conjugal? A resposta dessa indagação é fundamental para que se possa alcançar a melhor compreensão a respeito da possibilidade de um dos cônjuges exigir do outro a perda do sobrenome conjugal. Quando da análise a respeito da natureza jurídica do nome conjugal, houve a oportunidade de perceber que o nome da pessoa natural é um direito de sua personalidade porque lhe compõe a identidade interna e externamente. Internamente porque o nome faz parte da autocompreensão do indivíduo, as noções que a pessoa tem de si mesma estão ligadas ao seu nome. Externamente porque, no meio social, o nome é signo empregado para a designação de uma pessoa, sendo que as glórias e fracassos de um indivíduo se guardam em seu nome. O conhecimento empírico não deixa dúvida de que o nome conjugal desempenha essa mesma função. O uso e o tempo consolidam o nome conjugal na personalidade de quem o aderiu, principalmente quando o cônjuge renúncia aos próprios apelidos de família para adotar os do consorte. Caso se retire o nome conjugal de uma pessoa que, por anos a fio, por meio dele se identificou e foi identificada, estar-se-á suprimindo uma parcela da própria pessoa, daquilo que ela é para si própria e para a sociedade, e sua personalidade. Essa influência do nome conjugal se intensifica em relação àquelas pessoas cujo sobrenome seja largamente difundido em razão do exercício de atividade artística ou profissional. É o caso, por exemplo, de atores, humoristas, advogados, arquitetos, atletas. Em relação a tais pessoas, é muito mais sensível ou perceptível a alteração de seus apelidos familiares, razão pela qual a supressão de eventual nome conjugal pelo qual sejam designadas certamente decomporá parte de sua personalidade. 300 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Claro, não se está a firmar que em relação ao cidadão comum, que não exerça uma atividade de tanto vulto, a retirada do nome conjugal não possa influir negativamente em sua personalidade. Ocorre apenas que, em relação a famosos, esse fenômeno é muito mais perceptível. Portanto, não restam dúvidas de que o nome conjugal possui natureza jurídica de direito da personalidade. O apelido de família de um cônjuge, se aderido pelo outro, passará a compor a personalidade deste, devendo, por isso, gozar de todas as prerrogativas jurídicas dirigidas ao nome civil da pessoa natural, notadamente a intangibilidade e autodeterminação. Assim sendo, não é a isenção de culpa que conferirá ao cônjuge o direito de, querendo, manter o nome conjugal, mas sim a adesão desse nome à sua própria personalidade. Num Estado de Direito – e não meramente legal – que vive a era do neoconstitucionalismo, o direito à manutenção do nome conjugal aure suas forças diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana, independentemente de qualquer dispositivo infraconstitucional que alerte nesse sentido. Aliás, em última análise, é possível afirmar que a legislação infraconstitucional não pode suprimir esse direito sem malferir a força normativa da Constituição.

16.4.3 Panorama doutrinário e jurisprudencial

Na doutrina, o tema nome conjugal é quase sempre analisado de forma bastante superficial. Acredita-se que isso ocorra porque a disciplina do nome sempre esteve marcada pela busca da imutabilidade com vistas à segurança jurídica e o nome conjugal especificamente envolve mais tradições religiosas e morais do que propriamente aspectos jurídicos. A Emenda Constitucional n. 66/2010 (Emenda do Divórcio) reavivou a discussão em torno do nome conjugal, principalmente em razão do surgimento de uma corrente doutrinária que defende o fim da culpa no Direito de Família. Não obstante, parcela da doutrina mantém firme interpretação puramente literal das regras do Código Civil que permitem a um dos cônjuges, alegando culpado outro, exigir que este perca o direito ao uso do nome conjugal. Pertinente a transcrição de trechos das obras desses autores, sempre em edições posteriores à Emenda do Divórcio:

O cônjuge que mudou o nome com o casamento é livre para retornar ao anterior ou manter o de casado. Se, porém, tiver sido o culpado pelo divórcio, poderá perder o direito de usar o sobrenome do cônjuge inocente, a pedido deste, a menos que a alteração lhe traga prejuízos ou importe manifesta distinção com o sobrenome dos filhos (COELHO, 2012. p. 153).

Posição peculiar é a de Gagliano e Pamplona Filho. Os autores O direito ao uso do patronímico... // 301 consideram extintos o instituto da separação judicial e o fim da discussão da culpa e, a partir disso, afirmam que o retorno ao nome de solteiro deve ser o efeito natural do divórcio, apenas se admitindo a manutenção do nome conjugal em hipóteses justificadas, como aquelas tratadas no 1.578 do Código Civil. Em suas palavras:

Ora, com o fim da própria separação judicial, e o banimento da culpa, em definitivo, dos processos de divórcio, entendemos que, em regra, retoma-se o nome de solteiro. A par de não se tratar de posição pacífica, uma pesquisa de campo, na realidade social e forense, demonstrará, certamente, que o retorno ao nome de solteiro é a diretriz mais adotada. O(a) divorciando(a) anseia por isso. Mas nada impede que se mantenha o nome de casado, em havendo justificativa razoável, na perspectiva da preservação do patrimônio moral e da teoria dos direitos da personalidade. Assim, concorrendo situações como as que eram previstas no art. 1.578 do Código Civil, como o prejuízo de identificação ou a distinção em face dos nomes dos filhos, poderá, logicamente, ser mantido o nome de casado. A partir da Emenda, portanto, o uso do nome, em nosso sentir, no divórcio, deverá observar as seguintes regras: a) se o divórcio é consensual (judicial ou administrativo), o acordo firmado deverá regular o respectivo direito; b) se o divórcio é litigioso, a regra é no sentido da perda do nome de casado, mantendo-se, todavia, o patronímico, se alguma das hipóteses do art. 1.578 se configurar. Em quaisquer dos casos, a culpa não deverá ser critério preponderante na regulação judicial deste direito, podendo qualquer dos cônjuges, mediante procedimento judicial, a todo tempo, retomar o seu nome de solteiro (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 152).

Outros doutrinadores, baseados na ideia de que a Emenda Constitucional n. 66/2010 pôs fim à separação judicial e à discussão de culpa, afirmam que, desde então, a manutenção do nome conjugal passa a ser uma faculdade exclusiva daquele que o carrega, não podendo ser tangido em sua escolha. Prestigia-se assim a natureza jurídico do nome conjugal, que é a de direito da personalidade. A esse respeito, é elucidativa a lição de Farias e Rosenvald:

Com relação à dissolução da relação matrimonial pelo divórcio, vale frisar que a regra geral é a manutenção do nome adquirido pelo casamento, somente podendo ser retirado com o consentimento do titular (daquele que modificou o nome quando da celebração do matrimônio). Ou seja, adquirido o sobrenome pelo casamento (ou pela união estável ou pela união homoafetiva), haverá imediata incorporação à personalidade do titular, somente podendo lhe ser retirado como a sua anuência. Ocorre, com isso, uma absoluta e completa desvinculação da culpa pela dissolução do matrimônio com a manutenção do nome de casado. Esta solução foi prestigiada pela disciplina da dissolução do casamento imposta pela Emenda Constitucional 66/10, que, facilitando a obtenção do divórcio, afastou a possibilidade de discussão de culpa pela ruptura da conjugalidade, inaugurando um nomo sistema jurídico sobre o assunto[...]. Assim, nos divórcios consensuais ou litigiosos, o cônjuge que mudou o nome optará se 302 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

permanece, ou não, utilizando o sobrenome de casado, não mais sendo possível retirá-lo contra a sua vontade. A solução merece aplausos porque o nome é direito de personalidade e, como tal, incorpora-se à personalidade de quem o modificou pelo casamento. Assim, passa a ser nome próprio, e não mais do outro consorte (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 297).

No mesmo sentido posiciona-se Tartuce:

Ora, com a aprovação da EC 66/2010, este autor entende que não há mais qualquer influência da culpa para a manutenção do nome de casado após o divórcio. Primeiro porque o art. 1.578 do CC deve ser tido como totalmente revogado, por incompatibilidade com o Texto Maior, uma vez que faz menção à separação judicial, retirada do sistema. Segundo, pois a norma é de exceção, não admitindo aplicação por analogia ao divórcio. Terceiro, porque o nome incorporado pelo cônjuge constitui um direito da personalidade e fundamental, que envolve a dignidade humana, havendo relação com a vida privada da pessoa natural (art. 5º, X, da CF/1998). Sendo assim, não se pode fazer interpretação jurídica a prejudicar direito fundamental (TARTUCE, 2015, p. 1108).

Corrobora do mesmo raciocínio, Dias (2015, p. 121) aduz que condicionar a manutenção do nome conjugal à concordância do “verdadeiro dono” do nome contraria a dignidade e transforma a modificação do patronímico conjugal num instrumento de vingança pelo fim do amor, desvirtuando-o de sua verdadeira natureza jurídica de direito da personalidade:

Condicionar o uso do nome – que é um dos atributos da identidade – à concordância do " dono" do nome infringe o sagrado princípio constitucional de respeito à dignidade. Não pode um dos elementos identificadores da pessoa ficar condicionado ao favor de alguém, à condescendência de outrem, descabendo perquirir sobre a vida particular do ex-cônjuge para, como uma apenação, limitar o uso do nome. O cônjuge não tem mais a possibilidade de subtrair o nome de quem deixou de o amar, atitude claramente vingativa. Tratava-se de verdadeira condenação do "culpado" pelo fim do amor. A partir do casamento, o nome de um não é mais do outro, é seu também. O nome adotado com o casamento passa a ser o nome de família e o seu nome próprio, integrando seu direito à personalidade. Com o casamento, o cônjuge não empresta simplesmente o seu nome ao outro que o acresce, de modo a se poder exigir que aquele que teve o nome modificado pelo enlace conjugal o altere novamente por ocasião do divórcio. Se assim fosse, se estaria retrocedendo ao tempo em que a mulher era assujeitada, tida como propriedade masculina, ficando à mercê dos mandos e desmandos do marido.

A doutrina parece inclinar-se mesmo no sentido de que o cônjuge que aderiu a um nome de casado não pode ser compelido a alterá-lo. Mostra disso pode ser encontrada na obra de Gonçalves. Na edição do ano de 2012 de seu Curso de Direito Brasileiro, o autor não apenas afirmava ser possível decretar a perda do nome conjugal como O direito ao uso do patronímico... // 303 também, indo muito além, asseverava que, mesmo o ex-consorte que optou por manter o nome conjugal, ainda que inocente na separação, poderia perder o direito ao patronímico matrimonial se praticasse condutas graves o bastante para motivar essa medida:

Verifica-se, assim, que o culpado só pode continuar a usar o sobrenome que adotou quando do casamento se com isso concordar o outro cônjuge. Contudo, mesmo havendo essa oposição, será possível mantê-lo nas hipóteses excepcionadas pelo mencionado art. 1.578. [...] O cônjuge considerado inocente na separação em que se discute a culpa poderá optar por conservar o sobrenome do outro. Neste caso, terá a possibilidade de renunciar ao seu uso a qualquer tempo. O uso do nome do outro cônjuge, nos casos especificados, não é, entretanto, absoluto. Se a mulher, por exemplo, após a separação, mesmo vitoriosa na ação de separação, passa a ter conduta imoral ou desonrosa, agindo de modo a enxovalhar o nome do ex-marido, este poderá ajuizar ação ordinária para cassar esse direito, pela superveniente alteração das circunstâncias. No entanto, somente motivos muito graves e devidamente comprovados poderão acarretar a perda do direito ao uso do sobrenome do outro, se o cônjuge não renunciou a eles, na separação. Se o fez, não poderá voltar a usá-lo posteriormente (GONÇALVES, 2012, p. 335).

Não obstante, o doutrinador reavaliou a questão e já na edição do ano de 2014 da mesma obra passou a afirmar, peremptoriamente, que o nome conjugal é intangível porque a culpa não mais pode exercer qualquer influência nas relações familiares e porque o patronímico matrimonial é direito que integra a personalidade de seu titular:

Com a aprovação da Emenda Constitucional n. 66/2010, não poderá haver nenhuma repercussão de eventual culpa na manutenção ou perda do direito de usar o sobrenome de casado após o divórcio. O referido art. 1.578 deve ser tido como revogado, por incompatibilidade com a nova ordem constitucional estabelecida pela “PEC do Divórcio”. Seja como for, o nome incorpora-se à personalidade da pessoa, sendo por isso incluído no rol dos direitos da personalidade disciplinados no Código Civil (arts. 16 a 19) e na Carta Magna (art. 5º, X, quando se refere à “vida privada”) e amparado pelo princípio constitucional da dignidade humana (CF, art. 1º, III). Desse modo, a utilização do sobrenome de casado, após o divórcio, pelo cônjuge, culpado ou não pelo rompimento do casamento, constitui uma faculdade deste, pois está incorporado à sua personalidade (GONÇALVES, 2014, p. 290).

No plano jurisprudencial, poucos acórdãos até o presente momento têm-se dedicado precisamente à questão do nome conjugal. Não obstante, os julgamentos que se debruçaram sobre essa problemática após a edição da Emenda Constitucional n. 66/2010 sinalizam para a adoção da tese de intangibilidade do nome conjugal. Recentemente o Tribunal de Justiça do Rio Grande de Sul foi 304 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade chamado a se pronunciar sobre a questão e sua resposta foi categórica: a Emenda Constitucional n. 66/2010 extinguiu qualquer possibilidade de discussão da culpa no divórcio e, com isso, pôs fim à possibilidade de se decretar a perda do direito ao uso do nome de casada. Deu-se ainda destaque para a importância da imutabilidade do nome para a segurança jurídica:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DIVÓRCIO. MANUTENÇÃO DO USO DO NOME DE CASADA. POSSIBILIDADE. 1. Já se encontra sedimentado o entendimento jurisprudencial de que não mais se verifica a culpa pela dissolução do matrimônio para fins de apuração dos direitos daí decorrentes. 2. Logo, como atributo da sua personalidade, pode a virago permanecer fazendo uso de seu nome de casada, já que assim optou. Princípios da imutabilidade do nome e da segurança jurídica. APELO DESPROVIDO (TJ- RS - AC: 70057748014 RS , Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 27/02/2014, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 07/03/2014) (RIO GRANDE DO SUL, 2014).

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios chegou à mesma conclusão, porém, sem fazer alusão a possibilidade ou não de se discutir culpa. Para a Corte, o que fundamenta a intangibilidade do nome conjugal é puramente a compreensão do patronímico matrimonial como um direito da personalidade:

DIVÓRCIO LITIGIOSO - NOME - DIREITO PERSONALÍSSIMO - CITAÇÃO POR EDITAL - REVELIA - CURADORIA ESPECIAL RETORNO AO USO DO NOME DE SOLTEIRO - NECESSIDADE DE EXPRESSA MANIFESTAÇÃO PESSOAL - SENTENÇA REFORMADA 1) - A mudança do nome realizada pelo casamento incorpora-se à personalidade de seu titular, sendo-lhe, por tal razão, facultada a escolha em permanecer com o nome de casado, mesmo após a dissolução do casamento, nos termos do §2º do artigo 1.571 do Código Civil. 2) - Por se tratar de direito personalíssimo, apenas ao cônjuge que teve seu nome alterado cabe manifestar-se pessoal e expressamente acerca da manutenção ou retorno ao uso do nome de solteiro. 3) - Inadequada a determinação de retorno ao uso do nome de solteiro a cônjuge, citado por edital, que não exerceu pessoal e expressamente a opção prevista no artigo 1.571, §2º, do Código Civil, sob pena de lhe retirada prerrogativa de escolha quanto a elemento integrante de sua personalidade. 4) - Recurso conhecido e provido (TJDFT - Acórdão n.708478, 20130310073539APC, Relator: LUCIANO MOREIRA VASCONCELLOS, Revisor: GISLENE PINHEIRO, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 28/08/2013, Publicado no DJE: 06/09/2013. Pág.: 277).

Não se pode, porém, ignorar que há também julgados em sentido contrário. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, apesar de reconhecer o nome conjugal como um direito da personalidade, O direito ao uso do patronímico... // 305 mantém a possibilidade de se decretar a sua perda, ainda que em caráter excepcional, quando o cônjuge houver sido declarado culpado:

CONVERSÃO DE SEPARAÇÃO EM DIVÓRCIO. MANUTENÇÃO DO NOME DE CASADA. DIREITO DA PERSONALIDADE. FACULDADE. AUSÊNCIA DE AQUIESCÊNCIA DA RÉ. - Pleito de reforma parcial da sentença proferida em sede de conversão de separação judicial em divórcio, a fim de que seja determinado que a apelada volte a utilizar o nome de solteira. - O patronímico adquirido por ocasião da celebração de casamento civil integra os direitos da personalidade, passando a identificar o cônjuge que o adotou. - Na dissolução do casamento, a exclusão do nome de casada só é possível excepcionalmente, nos termos do art. 1.578 do Código Civil, nos casos de rompimento da sociedade por culpa de uma das partes, não sendo este o caso dos autos. A conservação ou não do nome de casado, ante o teor dos §§ 1º e 2º, do art. 1.578, bem como do § 2º do art. 1.571, todos do Código Civil, consiste numa faculdade do cônjuge quando da dissolução do casamento. - Diante da ausência de aquiescência da ré com o pedido de retorno de seu nome ao de solteira, forçoso reconhecer a inviabilidade do pleito autoral. Precedentes jurisprudenciais. DESPROVIMENTO DO RECURSO (TJ-RJ - APL: 00209656920118190208 RJ 0020965-69.2011.8.19.0208, Relator: DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 30/04/2013, NONA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 28/05/2013 17:41). Grifo nosso

Já no que toca ao direito do cônjuge à retomada do nome de solteiro, parece não existir divergência na jurisprudência. A esse respeito, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já manifestou que essa prerrogativa não pode ser indeferida pelo Judiciário, mormente quando inexistir indícios de que a alteração possa trazer prejuízos a terceiros:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ACORDO. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DO NOME DE CASADA PARA RETOMAR O USO DO NOME DE SOLTEIRA. Nos termos dos artigos 1571, § 2º, e 1578, § 1º, do CCB, não há razão para indeferir o pedido de alteração do nome da divorcianda, que pretende retomar o nome de solteira, pois se trata de direito de personalidade. Ademais, sendo as razões da autora relevantes e não advindo da retificação nenhum prejuízo a terceiros, não há motivo para a manutenção da sentença (TJ-RS - AC: 70052854387 RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 26/09/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/10/2013). Grifo nosso

A seu turno, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais afirmou que a renúncia do direito de conservação do nome conjugal é irretratável. No entanto, o Tribunal não descartou por completo essa possibilidade, tanto é que apenas alude à impossibilidade de retração da renúncia “sem um justo motivo”: 306 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. RESTABELECIMENTO DO NOME DE CASADA. OPÇÃO DE VOLTAR A USAR O NOME DE SOLTEIRA QUANDO DA SEPARAÇÃO. ARREPENDIMENTO. AUSÊNCIA DE OCORRÊNCIA DE HIPÓTESE LEGAL AUTORIZATIVA DA SUPRESSÃO PRETENDIDA. A legislação não autoriza a reinclusão posterior do patronímico do marido, que foi suprimido em razão de separação judicial, por mera conveniência da ex-esposa que na época optou por voltar a utilizar o nome de solteira. Indefere-se o pedido de retificação de registro civil se a hipótese não se enquadra entre aquelas previstas em lei de modo a autorizarem a mudança do nome (TJ-MG - AC: 10056130059480001 MG , Relator: Wander Marotta, Data de Julgamento: 06/05/2014, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 09/05/2014) (MINAS GERAIS, 2014). Grifo nosso

Na contramão do entendimento acima, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná deu procedência à retração da renúncia ao nome de casada. Entretanto, cumpre destacar que na hipótese se verificou justo motivo para o ato:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. EX- ESPOSA QUE PRETENDE A REINCORPORAÇÃO DO PATRONÍMICO DO EX- MARIDO AO NOME APÓS A EXCLUSÃO DO MESMO NO DIVÓRCIO. POSSIBILIDADE. NOME DE CASADA QUE JÁ INCORPOROU À PERSONALIDADE DA AUTORA. REQUERENTE QUE USA O PATRONÍMICO DE CASADA POR APROXIMADAMENTE 34 ANOS. DEMONSTRAÇÃO RAZOÁVEL DE AFETAÇÃO À RECONHECIMENTO SOCIAL, À PERSONALIDADE OU INDIVIDUALIDADE. VÍNCULO QUE JUSTIFICA A ALTERAÇÃO PARA O NOME DE CASADA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO (TJ-PR 9156241 PR 915624-1 (Acórdão), Relator: Augusto Lopes Cortes, Data de Julgamento: 29/08/2012, 11ª Câmara Cível) Grifo nosso

De tudo, observa-se assim que a doutrina como a jurisprudência ainda são oscilantes em relação ao tema, muito embora haja indicativos de que tendam a caminhar para o definitivo reconhecimento da intangibilidade do nome conjugal como um corolário de sua natureza de direito da personalidade. É chegada, pois, a hora de se decidir o Direito de Família que se almeja numa sociedade plural e num sistema jurídico que tem na pessoa humana o seu valor máximo.

O direito ao uso do patronímico... // 307

16.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No último século, a relação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional foi substancialmente modificada. Passou-se da indiferença de um em relação ao outro para a intensa influência do Direito Constitucional sobre o Civil, originando o que se convencionou chamar de Direito Civil Constitucional. Atualmente, a Constituição da República representa uma nova tábua axiomática para as relações civis, informando com princípios e normas as relações privadas e determinando, por conseguinte, as vigas de sustentação do sistema de Direito Civil. O nome da pessoa natural, logicamente, não poderia furtar-se a esse processo. Assim é que, dentro dessa nova perspectiva do Direito Civil Constitucional, o nome da pessoa natural ganhou novos contornos no Código Civil de 2002. O conceito tradicional não se alterou: o nome permanece compreendido como o signo que designa a pessoa no meio familiar e social. Em contrapartida, o Código Civil de 2002 solidificou grande avanço ao reconhecer definitivamente ao nome a natureza jurídica de direito da personalidade, afirmando-o como atributo indissociável da pessoa humana, um mínimo indispensável para o desenvolvimento do ser. A problemática do nome conjugal foi quase sempre analisada de modo superficial, principalmente porque nele está contida grande carga de valores familiares e religiosos. Porém, a Emenda Constitucional n. 66/2010 – a Emenda do Divórcio – fez surgir acalorada discussão em torno da subsistência da regra pela qual um dos cônjuges pode exigir que o outro perca o direito de usar sobrenome de conjugal. Dentre os vários argumentos apontados pelas correntes antagônicas que se formaram na doutrina, os principais se relacionam à possibilidade de discussão da culpa e à subsistência do instituto da separação judicial. No que toca à culpa, parcela significativa de renomados doutrinadores, especialmente aqueles que compõe o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM afirmam que a Emenda Constitucional n. 66/2010, ao afastar a exigência de quaisquer requisitos que dificultem a concessão do divórcio, extinguiu a culpa como fato jurídico relevante nas relações do Direito de Família. No sentido oposto, um segundo grupo de doutrinadores ressaltam que a extinção da culpa poderia conduzir a absurdos. Destacam que a atribuição de um responsável pelo fim do relacionamento produz três consequências: possibilidade de perda do nome conjugal; perda do direito a alimentos, salvo os estritamente necessários e dever de reparar danos. Nessa trilha, afirmam que, se abolida a culpa, o cônjuge publicamente traído ou maltratado fisicamente pelo consorte poderia ainda assim ser obrigado a prestar alimentos integrais ao traidor ou agressor. Quanto à separação judicial, uma primeira corrente afirma que, tendo a Emenda Constitucional n. 66/2010 suprimido do texto da Lei Maior a figura 308 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade da separação judicial, todas as disposições a respeito desse instituto restaram revogadas. De outro norte, uma segunda corrente desenvolve a tese de que a Emenda do Divórcio unicamente retirou a figura da separação judicial do texto constitucional, deixando a matéria a cargo do legislador ordinário, de modo que está mantida a separação judicial no ordenamento civil. Com relação ao nome conjugal, a questão em torno da possibilidade de se tratar de culpa é relevante na medida em que, caso se conclua que não, resta inaplicável o dispositivo que permite a um dos cônjuges exigir a perda do nome conjugal pelo outro. Por outro ângulo, a discussão quanto à sobrevivência da separação judicial é relevante porque o dispositivo que permite a um cônjuge pleitear referida medida (Código Civil, artigo 1.578) encontra-se inserido nas disposições relativas à separação. É preciso observar, porém, que essas duas discussões estão voltadas unicamente para a legislação. Ignoram seu verdadeiro objeto: o nome conjugal. Diante disso, formula-se uma proposta: buscar a solução para o empasse em torno do nome conjugal na própria natureza jurídica desse instituto. O nome civil da pessoa natural é, inegavelmente, direito da personalidade. Não há motivo para que o nome conjugal tenha natureza diversa. De fato, o popular nome de casado adere à personalidade daquele que o adota, passa a ser uma marca de sua individualização, às vezes até de maior repercussão social que os sobrenomes originais. É possível, portanto, afirmar que o conhecido nome de casada não é nome do marido emprestado à mulher, é nome dela desde que a ele aderiu. Nesse diapasão, o motivo que impede que um cônjuge tente retirar do outro o nome conjugal não é o fim do instituto da separação judicial ou a extinção da possibilidade de discussão da culpa pelo fim do casamento, nem mesmo está relacionado à Emenda Constitucional n. 66/2010. O verdadeiro óbice é muito mais puro e simples: a dignidade da pessoa humana. Claramente a supressão compulsória de um dos mais essenciais atributos da personalidade é causa de abrupta violência à dignidade da pessoa humana atingida. Ao permitir essa medida ofensiva, aproxima-se a disciplina jurídica do nome no Brasil à antiga teoria francesa que concebia o nome como uma propriedade, que poderia ser cedida no casamento e exigida de volta no divórcio. Afasta-se da concepção do nome como direito da personalidade, desprezando-se por completo sua natureza jurídica. Insta ainda observar que autorizadas vozes na doutrina pregam o fim do nome conjugal. Primeiro porque a possibilidade de alteração no nome pelo casamento é perniciosa à segurança jurídica na medida em que pode transformar-se em um ardil para aqueles que pretendem ocultar-se a suas obrigações. Segundo pela sua origem histórica marcantemente machista, que não é corrigida pela possibilidade do homem também aderir ao sobrenome da mulher, já que a verdadeira isonomia só seria alcançada se no casamento ambos os consortes mantivessem sua verdadeira identidade, sem uma marca para indicar a quem pertença. Terceiro porque o nome é marca da O direito ao uso do patronímico... // 309 personalidade e o casamento apenas altera o estado civil dos nubentes, não se justificando, portanto, a alteração do nome. Sem embargo, só resta ao jurista buscar a melhor compreensão do nome conjugal e dispensar-lhe a disciplina jurídica mais compatível com dignidade da pessoa humana, pois o ato de “dar o próprio sobrenome ao parceiro” tende a manter-se por mais algumas eras como um símbolo de perene compromisso, um gesto romântico de afeto, um símbolo do amor e da busca da felicidade que move o coração humano e que empresta sentido à vida.

16.6 REFERÊNCIAS

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 9. ed. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2012. _____. Direito civil brasileiro: direito de família – de acordo com a Lei n. 12.874/2013. 11.ed. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Enunciados do IBDFAM são aprovados. Notícias. Data de publicação: 26 de novembro de 2013. Disponível em: Acesso em: 11 mai. 2015. LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. 7. ed. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2012. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: Jus Navigandi. Teresina, ano 6,n. 53, jan. 2002. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. MUNIZ FILHO, Mario Monteiro. Manual de direito de família. 2. ed. Recife: Bagaço, 2010. NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Método, 2014. NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Remédios constitucionais. 4. ed. São Paulo: RT, 2010. OLIVEIRA, José Maria Leoli Lopes de. Introdução ao direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. PEREIRA, Rafael D'Ávila Barros. Nome civil: características e possibilidades de alteração. In: Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 13, n. 1811, 16 jun. 2008. Disponível em: . Acesso em: 7 mai. 2015. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2002. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. VII. Campinas: Bookseller, 2000. SILVA, Regina Beatriz Tavares da. A Emenda do Divórcio e a Culpa. 2011. Disponível em: . Acesso em: 30 mai. 2015. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5. ed. São Paulo: Método, 2015. _____. Direito civil: direito de família. 9. ed. v. 4. São Paulo: Método, 2014. TEMPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: 2004.

= XVII =

O HOMEM DA MÁSCARA JURÍDICA (PERSONA) E O ESPECTRO DO CAMPO: SUJEITO DE DIREITO E PERSONALIDADE NO LIMIAR DA EXCEÇÃO

Caio Henrique Lopes Ramiro* Diogo Valério Félix**

17.1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é oferecer um questionamento acerca do limiar entre o sujeito de direitos e a vida nua, a qual observa-se a expropriação da personalidade jurídica (persona) do sujeito, tendo em vista a possibilidade da atuação de caráter decisionista do Estado moderno, sobretudo, na relação Estado-direito-indivíduo, configurando, dessa forma, a biopolítica moderna. Para cumprir com a respectiva finalidade, antes mesmo de trazer a cabo a discussão acerca das relações político-jurídicas que revelam a persona dentro de uma relação de poder envolvendo o Estado, tentou-se uma incursão sobre a teoria clássica dos direitos da personalidade, que configuram o indivíduo como portador de direitos inerentes à própria pessoa, necessários, segundo o eixo teórico, à consecução da qualidade de pessoa, individualizando-o no meio em que vive. A teoria dos direitos da personalidade, assim como dos direitos humanos, foram frutos do reconhecimento da realização histórica das relações do homem, de condições e valores ditos como inerentes à sua natureza humana no que se refere a sua existência e desenvolvimento. A barbárie ocasionada, máxime pela Segunda Guerra Mundial, imprimiu uma nova concepção acerca dos valores concernentes à natureza

* Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Marília - Centro Universitário Eurípides de Marília -UNIVEM. Especialização em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Londrina - UEL/PR. Mestrado em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM. Atualmente é professor no curso de Direito da Faculdade Cidade Verde (FCV) em Maringá-PR. Integrante da Rede Internacional de Estudos Schmittianos (RIES), composta por especialistas de diversos países. Tem experiência na área de Direito, com pesquisa na área de teoria do direito, filosofia do direito e filosofia política, ocupando-se de temas como: Filosofia do direito, filosofia política, forma jurídica, teorias do estado, estado de exceção, autoritarismo e democracia. ** Possui graduação em DIREITO pelo Centro Universitário de Maringá (2008). Mestrado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2012), tendo como linha de pesquisa os direitos da personalidade e seu alcance na contemporaneidade. Defendeu a dissertação Crítica a Teoria Clássica dos Direitos da Personalidade. Atualmente é professor da UNICESUMAR - Centro Universitário de Maringá e da Faculdade Cidade Verde. Coordenador do Curso de Pós Graduação em Planejamentos e Projetos Ambientais da Faculdade Cidade Verde. Tem experiência na área de Direito Civil e Constitucional. 312 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade humana, com repercussões jurídicas sintomáticas. O reconhecimento da dignidade humana como um valor inerente a sua caracterização, transformou de modo salutar toda ciência cujo objeto seja o homem. A dignidade da pessoa humana e seus desdobramentos nas dimensões de direitos humanos fundamentais, permitem, no plano teórico, que haja exercício de tutelas no sentido de visar à humanização do ser, ou seja, não só o reconhecimento do homem como um ser pertencente à espécie humana, mas sim de dotá-lo da qualidade de pessoa, aproximando-se, ainda, do conceito de cidadania. Contudo, a identificação da personalidade jurídica, mostra-se possível, apenas e tão somente, a partir da identificação da relação sujeito- Estado-nação, dentro de um contexto espacial, ocasião que não se mostra mais possível identificar o caráter de essencialidade dos direitos da personalidade, nem mesmo, configurá-los como direitos, tendo em vista a possibilidade da suspensão dos mesmos, ou, além disso, na medida em que se observa a existência de espaços em que a forma jurídica é recusada, como no caso dos refugiados, expropriando-se, assim, a personalidade jurídica, e, via de consequência, ocorre o surgimento, no plano político, da vida nua, a partir da exceção. Necessário, na mesma medida, chamar a atenção acerca da problemática envolvendo a forma jurídica, onde o conteúdo axiomático do direito é capturado pela via contratual, circunstância esta que revela o caráter decisionista dos instrumentos de captura da substância normativa, em especial no que concerte a dimensão, e sua extensão, da personalidade jurídica a partir das decisões do Estado (soberano). Inobstante o reconhecimento (decisão) das circunstâncias ditas como necessárias à condição de pessoa, há, no mesmo sentido, em razão das relações políticas e de fundamentação do Estado, a possibilidade da identificação de espaços onde as respectivas condições, ou “direitos”, não são observados, dado o caráter da soberania e da dualidade da forma jurídica, implicando, assim na anormalidade, concebida no estado de exceção, revelando o paradigma das relações jurídicas modernas. Por fim, observou-se como referencial para a discussão o projeto homo sacer, proposto por Giorgio Agambem, a fim de explicitar o estado de exceção, e, consequentemente, da possibilidade de expropriação da personalidade jurídica mediante a decisão do soberano, apresentando, da mesma forma, o umbral entre os direitos da personalidade e a vida nua.

17.2 CONCEITO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NOS TERMOS DE SUA TEORIA CLÁSSICA

Considerando a conceituação dos direitos tidos como da personalidade, cumpre estabelecer a delimitação de tais direitos com as demais normas previstas no ordenamento jurídico, a fim de ter a exata compreensão de sua natureza, características e amplitude. O homem da máscara jurídica... // 313

A respectiva definição leva em conta a finalidade da especificação e diferenciação entre os direitos da personalidade e a dignidade humana, comumente tratados como sinônimos nos circuitos acadêmicos, bem como, ainda, a possibilidade de expropriação e/ou suspensão destes direitos, resultando, desta forma, o aparecimento do que na teoria jurídico-política contemporânea se chama de via nua. No que se refere à especificação dos direitos da personalidade, afirma-se que são os direitos inerentes à própria pessoa, necessários a obtenção de sua personalidade, regulando seus aspectos físicos, mentais e morais, tornando-o, desta forma, um indivíduo único no meio em que vive. Neste sentido, Carlos Alberto Bittar afirma que (BITTAR, 1989, p. 1):

Por direitos da personalidade consideram-se aqueles reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, os quais são previstos no ordenamento jurídico para a defesa de valores que são inatos ao próprio homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.

Logo, compreendem-se os direitos da personalidade como aqueles ligados intimamente com o seu titular, ao ponto de confundir-se com a própria pessoa, pois, estes direitos individualizam o sujeito no meio social, dotando- o de personalidade, tornando-o capaz de aquisição de direitos e obrigações. No entanto, há que se afirmar que a personalidade não se identifica com os direitos e com as obrigações jurídicas, mas como a pré-condição a eles, ou seja, seu fundamento e pressuposto (CUPIS, 1961, p. 15). Assim, tem-se, que os direitos da personalidade são pressupostos fundamentais à aquisição da personalidade jurídica do indivíduo, uma vez que, somente a partir da individualização do homem, tornando-o um ser único devido as suas atribuições físicas, psicológicas e normativas, por assim dizer, no que se refere à questão dos direitos inerentes a si mesmo, é que ele poderá adquirir direitos e obrigações no seu âmbito social. Neste mesmo prisma, Adriano de Cupis afirma que “não se pode ser sujeito de direitos e obrigações se não está revestido da qualidade de pessoa” (CUPIS, 1961, p. 17). Argumenta-se que existem certos direitos sem os quais a personalidade humana restaria inexistente, privada de todo seu valor, sendo direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam todo interesse para o indivíduo, concluindo, via de consequência, que se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal. São esses os chamados direitos essenciais, com os quais se identificam precisamente os direitos da personalidade (DE CUPIS, 1961, p. 17). A função dos direitos da personalidade está consignada em sua própria estrutura, a qual consiste na satisfação das necessidades das pessoas, estando ligadas por um nexo muito estreito, orgânico por assim dizer, identificando-se com os mais elevados, entre todos, os bens susceptíveis de senhorio jurídico. Logo, os bens da vida, da integridade física, 314 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade da liberdade, apresentam-se como bens máximos, sem os quais os demais perdem todo o valor (BELTRÃO, 2005, p. 36). Nesta esteira, poder-se-ia dizer, que sem a garantia e tutela dos direitos da personalidade, como aqueles anteriormente mencionados, tidos como bens máximos, não haveria qualquer necessidade de proteção das demais normas do ordenamento jurídico, tendo em vista que estes direitos visam à organização do homem no meio social, enquanto os direitos da personalidade têm a finalidade de proteger e garantir as características das quais são essências a formação do homem enquanto homem, pois se as normas têm como finalidade o homem enquanto sujeito de direitos e obrigações, é necessário que se garanta a existência dele enquanto pessoa. Logo, identificam-se os direitos da personalidade como sendo direitos subjetivos, mas não podendo ser exauridos nessa categoria, uma vez que o entendimento de subjetividade está atrelada à presença de um valor, o que não é verificado nos direitos da personalidade (BELTRÃO, 2005, p. 37). Por tais razões, Silvio Romero Beltrão destaca que (BELTRÃO, 2005, p. 38):

No direito da personalidade, ao contrário do que acontece com o direito de propriedade, o bem que o sujeito pretende defender ou adquirir, se encontra dentro do ser e não fora dele, sendo inerente a própria pessoa, a sua individualidade física, a sua experiência de vida moral e social, que impõe a conclusão de que estes direitos tutelam tudo que lhe é peculiar, caracterizando-o como direito subjetivo.

Quanto à subjetividade dos direitos da personalidade anteriormente firmada, cumpre esclarecer que está ligada a ideia de que estes direitos preexistem ao Estado, afastando o entendimento de que são reconhecidos por ele, perfilhando a essencialidade destes direitos, uma vez que, entende- se, pelo simples fato do homem possuir personalidade, determinados direitos são considerados inatos, traçando, então, seu caráter subjetivo (DE CUPIS, 1961, p. 19). Assim, os direitos da personalidade são aqueles inerentes ao próprio homem, “inatos por sua natureza”, considerando sua essencialidade à formação e manutenção do homem enquanto ser humano. Porém vale dizer, que alguns direitos não têm por parâmetro o simples pressuposto da personalidade, não sendo, em tese essencial, mas que, uma vez revelados, adquirem seu caráter de essencialidade (DE CUPIS, 1961, p. 21). Desta forma não há como a natureza subjetiva dos direitos da personalidade, principalmente no que se refere ao valor político, devido ao fato dos Estados que se proclamavam autoritários, terem conferido nova dignidade a esses direitos, dando-lhes uma disciplina expressa, embora parcial e colocado no preâmbulo do corpus do próprio direito privado, desmentindo às teorias negativistas do direito subjetivo, que, como afirmado por Adriano de Cupis, “continuam a ser, mais do que nunca, o eixo de todo o sistema jurídico” (DE CUPIS, 1961, p. 22). O homem da máscara jurídica... // 315

Partindo desta concepção, salvo exceção de alguns poucos autores, a doutrina majoritária (dogmática) entende que os direitos da personalidade são direitos subjetivos, ao passo que esse entendimento deriva de que todos aqueles direitos que tem por finalidade dar conteúdo à personalidade jurídica do homem, são denominados de direitos da personalidade (SZANIAWISKI, 2005, p. 77). No entanto, esta concepção foi ao longo dos tempos sendo adota pelos estudiosos do respectivo tema, ao passo que as grandes discussões no que diz respeito ao tratamento da natureza jurídica dos direitos da personalidade foram essenciais à formação dos conceitos destes direitos, bem como ao eixo teórico aos quais aqueles estudiosos se filiaram a fim de formarem a construção das teorias existentes. Dentre os autores que adotam a concepção positivista, tomam posicionamento no sentido de que esses direitos constituem, em sua maior parte, em direitos inatos, mas que não podem ser reduzidos, puro e simplesmente a este entendimento, uma vez que alguns destes direitos não têm por base o pressuposto de personalidade, como anteriormente mencionado, mas que uma vez revelados, adquirem caráter de essencialidade (BITTAR, 1989, p. 6). A ordem positiva considera que devam ser incluídos como direitos da personalidade apenas os reconhecidos pelo Estado, que lhes dá força jurídica, não aceitando a ideia de existência de direitos meramente inatos, posicionando no sentido de que todos os direitos subjetivos derivam do ordenamento positivo, dando a sua delimitação no direito positivo em cada caso (BITTAR, 1989, p. 6). Por conseguinte, o indivíduo passa a ser possuidor de direitos e é pensado dentro da abstração universal do sujeito de direito, considerado um fim em si mesmo, adquirindo personalidade reconhecida pelo ordenamento jurídico, e condição formal da igualdade (RADBRUCH, 2004, p. 191). Com relação a questão da personalidade jurídica e do sujeito de direito, destaca kantianamente Gustav Radbruch (2004, p. 192) que:

[...] Ser pessoa significa ser um fim em si. O homem não é pessoa enquanto ser vivente composto de corpo e alma, mas porque, segundo o ponto de vista da ordem jurídica, representa um fim em si [...]. Certamente, na determinação conceptual filosófico-jurídica do sujeito de direito, este é visto como um “ser”, considerado pelo direito como um fim em si.

Além disso, no que diz respeito à questão do sujeito de direito e do reconhecimento da personalidade jurídica, importa retomar algumas considerações de Kelsen a respeito desse tema, pois, para o jurista austríaco, não é o indivíduo necessariamente que é considerado sujeito de direito, mas, sim, sua conduta. Diante disso, a personalidade jurídica advém do ordenamento jurídico, o que significa dizer que a personalidade jurídica é atribuída e reconhecida pelo ordenamento, e o conjunto de direitos e deveres que integram e constituem essa personalidade, está ligado à conduta do 316 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade indivíduo, considerada esta última como a unidade complexa dos referidos direitos e deveres. Portanto, “[...] a chamada pessoa física não é, portanto, um indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo”, assim, “[...] também se diz que o homem tem personalidade, que a ordem jurídica empresta ao homem personalidade” (KELSEN, 1991, p. 185-187). De acordo com Kelsen (1991, p. 187-187):

“Ser pessoa” ou “ter personalidade jurídica” é o mesmo que ter deveres jurídicos e direitos subjetivos [...]. A pessoa física ou jurídica que “tem” – como sua portadora – deveres jurídicos e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão somente a personificação desta unidade. [...] Somente através da conduta humana pode um direito ser exercido e um dever ser cumprido ou violado. Por isso, não pode a referência ao homem (a conexão com o homem) ser o momento através do qual a pessoa física ou natural se distingue da pessoa jurídica ou artificial. Por isso, também não pode a chamada pessoa física ser definida – em contraposição à pessoa jurídica – como um indivíduo de certo modo qualificado – qualificado, a saber, através do fato de possuir direitos e deveres. Uma tal definição deve ser rejeitada tanto quanto a definição do direito subjetivo como interesse juridicamente protegido. Assim como o direito subjetivo não é um interesse – protegido pelo Direito -, mas a proteção jurídica de um interesse, assim também a pessoa física não é o indivíduo que tem direitos e deveres mas uma unidade de deveres e direitos que têm por conteúdo a conduta de um indivíduo. [...] Dizer que o homem é sujeito jurídico, isto é, sujeito de direitos e deveres, não significa – como foi expressamente acentuado acima – senão que a conduta humana é conteúdo de deveres jurídicos e direitos subjetivos, e, portanto, o mesmo que dizer que um homem é uma pessoa ou tem personalidade.

Apesar das diferenças existentes nas posições de Kelsen e Radbruch, importa considerar que, em ambos os casos a ideia de sujeito de direito e/ou pessoa jurídica é o elo de ligação entre a vida natural e o poder político, conexão que é feita pelo médium da forma direito, ou se preferirmos, pela imagem do contrato, o que será objeto de análise a seguir. Não obstante, ambas as perspectivas teóricas, a normativista de Kelsen, para quem a pessoa jurídica é o complexo de direitos e deveres unificado por sua conduta, bem como a de Radbruch, que considera o sujeito de direito apenas uma abstração do indivíduo como detentor de uma personalidade jurídica, que é caracterizada como um fim em si, já receberam duras críticas do ponto de vista que leva em consideração a instrumentalização dos sujeitos históricos pelas estratégias econômicas; de modo que podemos dizer que tal crítica pode ser estendida à forma jurídica colonizada pela racionalidade instrumental do poder e do mercado. O objeto desses direitos não é, portanto, exterior ao sujeito, diferentemente dos demais bens tutelados (BELTRÃO, 2005, p. 35), mas sim inerentes à própria pessoa, por determinados atributos ou qualidades físicas O homem da máscara jurídica... // 317 ou morais do homem, individualizados pelo ordenamento jurídico e que apresentam caráter dogmático (BITTAR, 1989, p. 05). Estes direitos são tão ínsitos na pessoa, em razão de sua própria estruturação, diga-se física, mental e moral, que chegam a confundir-se com a própria pessoa sendo supostamente intransmissíveis e irrenunciáveis, se antepondo como limites das relações do Estado com o indivíduo, entre os particulares, e, inclusive, à própria ação do titular, o qual não pode dispô-los por ato de vontade (BITTAR, 1989, p. 05). Porém, sob certos aspectos e circunstâncias, pode abdicá-los, a título de exemplo, da licença para uso de imagem, dentre outras hipóteses. No entanto, referido consentimento não corrompe o direito, uma vez que o próprio direito permanece incólume, tendo implicações no que se refere ao exercício do mesmo direito (BITTAR, 1989, p. 05), ou, ainda, tê-los suspensos pelo próprio Estado. Os autores que contestam os direitos da personalidade, em sua maioria, utilizam-se do argumento de que os direitos da personalidade têm os mesmos elementos que os direitos patrimoniais, apresentando-se como bens mercadológicos, ao passo que a necessidade de relação jurídica externa com o bem evidencia características próprias do direito da propriedade, o que não se verifica aos direitos da personalidade (BELTRÃO, 2005, p. 37). A dogmática jurídica imprime entendimento de que a separação e distinção das qualidades e necessidades essenciais do homem não podem ser obstáculos à aceitação e reconhecimento destes direitos pelo Estado, a fim de impedir que o próprio Estado, assim como terceiros interfiram na esfera da personalidade humana, garantindo à pessoa o exercício de todas as suas qualidades essenciais (BELTRÃO, 2005, p. 37). O fato de os direitos da personalidade serem interiores ao indivíduo, segundo a corrente teórica dominante, não significa afirmar que há sua permanência e conservação no homem, uma vez que devido às relações homem-mundo, diga-se relações do indivíduo com Estado e com os demais particulares, podem interferir diretamente nestes valores, gerando a necessidade da criação da defesa destes direitos (BELTRÃO, 2005, p. 37). Desta forma, ainda que os direitos da personalidade sejam por sua “essência”, interiores ao individuo, pugna-se, de modo a garantir e efetivar a sua aplicação, pela sua proteção jurídica, ocasionada quando do reconhecimento dos direitos da personalidade, como objeto de direito, verificável somente diante da tutela do indivíduo perante uma estrutura estatal. Observa-se, neste sentido, para que os direitos da personalidade possam ser aferidos, a necessidade de uma relação indivíduo-Estado-nação, sem intermediários, como, de maneira lapidar, argumenta Ricardo Fonseca (2011, 273-291):

O sujeito tem direitos enquanto pertencente a um determinado Estado- Nação, que o protege a partir das garantias e direitos estabelecidos em seus documentos jurídicos (derivados de sua soberania). O que faz com que surja 318 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

inevitavelmente a indagação sobre como fica a tutela dos direitos daqueles (que se tornam cada vez mais numerosos ao longo do século XX), que não estão sob a proteção de nenhum Estado-Nação.

Ora, ainda que os direitos da personalidade sejam entendidos como aquela dimensão de direitos que se relacionam, intimamente, com a pessoa de seu titular, resta evidenciado que uma essencialidade de tais direitos resta inteiramente comprometida na medida em que o sujeito somente terá direitos enquanto pertencente a um Estado, que exercerá uma certa tutela sobre o mesmo. Dentro desta perspectiva, se por um lado observa-se os direitos da personalidade somente a partir da identificação da relação sujeito-Estado- nação, ou seja, da tutela do Estado acerca de tais direitos, de outro, a medida em que o sujeito se mostra desprovido da tutela do Estado-Nação, não é mais possível identificar o caráter de essencialidade dos direitos da personalidade, nem mesmo, configurá-los como direitos, incorrendo, desta forma, a possibilidade de reconhecimento de suspensão de tais direitos, ou, mesmo, a existência de espaços em que a forma jurídica é recusada, dessa maneira, deixa de existir o sujeito de direito e surge no palco político a via nua.

17.3 A FORMA JURÍDICA DA POLÍTICA MODERNA E O MOMENTO JURÍDICO DA PESSOA: O CONCEITO DE PERSONA COMO CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE SUJEITO DE DIREITO E EXPOSIÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE SOBERANIA E VIDA

Inicialmente, convém destacar que, ao nos colocarmos como tarefa uma reflexão sobre o poder e o jurídico, parece necessário levar em consideração o conceito de soberania e, apresenta-se oportuno tecer um breve comentário no sentido de apresentar as linhas de força do pensamento da tradição do contratualismo, sem que com isso nos comprometamos a oferecer uma exposição dessa tradição em sua totalidade. No entanto, a partir da proposta teórica de Agamben, se torna possível (re)pensar o conceito de soberania e como ele é construído como a forma jurídica da política moderna. Nesse momento, destaca-se que a noção ou a ideia de forma jurídica ou forma direito é compreendida nesse trabalho a partir da observação de importantes referenciais de Agamben, a saber: partindo, em primeiro lugar, do pensamento de Michel Foucault (2002; 2010), que irá compreender a forma jurídica como o duplo das relações sociais e, nesse sentido, pode-se mesmo refletir sobre a existência de um diálogo crítico do pensador francês com a tradição do marxismo, que, também, em alguma medida, exerce influência sobre as reflexões de Agamben e, ao considerarmos tal perspectiva, a forma jurídica ou forma direito é representada pela forma contrato, e essa última é utilizada como hipótese de justificação de existência do Estado por Hobbes e por alguns autores que representam o pensamento das Luzes, além disso, pela reflexão liberal, o que apresenta a possibilidade de um entendimento desse conceito como consistindo no reflexo da relação social dos proprietários de mercadorias, ou seja, das relações mercantis, O homem da máscara jurídica... // 319 dessa maneira, também como o reflexo da forma mercantil, compreendendo, portanto, as categorias do sujeito de direito, da vontade livre e da força de trabalho, por exemplo (PACHUKANIS, 1989; NAVES, 1996). Sob essas coordenadas, não parece de maneira alguma arbitrário eleger o pensamento de Thomas Hobbes como o primeiro foco de análise, pois conforme sugestão de Foucault, em sua aula de 4 de fevereiro de 1976 no College de France, ao se debruçar sobre a questão da guerra e da soberania como elementos de exame das relações de poder, afirmava o pensador francês que é justamente o nome de Hobbes que entra em jogo nessa perspectiva, significa dizer que é o filósofo de Malmesburry “[...] que aparece como, à primeira vista, quem pôs a relação de guerra no fundo e no princípio das relações de poder” (FOUCAULT, 2010, p. 75b) Thomas Hobbes é considerado um filósofo materialista, e viveu em um conturbado período, uma vez que na quadra da história de sua existência é que se apresentam as lutas pela reforma e eclodem as guerras religiosas (século XVII). Hobbes pode ser, segundo Pierangelo Schiera (1997, p. 5) encarado como um defensor da ideia do poder, que se coloca a questão de pensar a ligação entre poder soberano e direito, como maneira de se pensar um sistema jurídico reconhecido universalmente. Desse modo, “[...] motivados pelas guerras civis, os escritos políticos de Hobbes visavam a favorecer a causa real” (SABINE, 1964, p. 440). Nesse ponto, o destaque fica para a referência ao pensamento de Hobbes como articulador da afinidade entre soberania e direito, mas, talvez, seja interessante lembrar que o direito aqui surge na perspectiva da tradição do direito natural moderno. O que se pretende dizer é que se deve considerar que esse período marca a aurora da modernidade, e o direito natural aqui está vinculado ao conceito de Razão humana, o que demonstra a pretensão de se pensar uma soberania política a partir de sua agnação com o direito no intuito de tornar esses elementos independentes do poder eclesiástico, pois, de acordo com Sabine (1964, p.443) “uma filosofia como a de Hobbes, todavia, tornava o direito ou a justiça” em sentido cósmico ou transcendente algo “[...] absolutamente ininteligível. Para ele, natureza e natureza humana não mais eram do que sistemas de causa e efeito”. Podemos avaliar, então, Hobbes como um precursor da tradição contratualista. De acordo com Renato Janine Ribeiro (2006, p. 53), o pensador inglês é “[...] um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato”. Portanto, considerando que o pensamento de Hobbes se apresenta como uma reflexão política que se insere tipicamente no contexto do que se pode chamar de modernidade, quando ocorre a busca pelos fundamentos do direito, devemos considerar que a busca pela natureza das coisas é, no fundo, uma investigação no que tange à natureza do indivíduo (GOYARD-FABRE 2002, p. 40). São conhecidos os temas centrais que gravitam em torno da filosofia de Hobbes, como, por exemplo, a hipótese teórica do estado de natureza; o estado social; da moralidade e do papel do soberano (JAPIASSU; 320 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

MARCONDES. 2006, p. 134). De início, devemos considerar a hipótese do estado de natureza, onde os homens segundo Hobbes, podiam todas as coisas, e, inclusive, utilizar-se de qualquer meio para consegui-las, pois há nessa condição uma igualdade natural como axioma, e é nesse espaço que o Hobbes irá tematizar a violência, primeiro elemento a ser observado. Ao refletir sobre a condição natural dos homens, afirma Hobbes (1974, p. 78) que:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando considerado tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício que o outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.

É possível notar aqui que Hobbes pensa o estado de natureza a partir do indivíduo e enfatiza que as diferenças entre os homens, no que diz respeito ao corpo e ao espírito, quando tomadas em conjunto, não serão percebidas de maneira considerável, uma vez que a eventual desigualdade do mais fraco, por exemplo, poderá ser compensada pela astúcia. Dessa maneira, o homem natural de Hobbes, ao contrário de Rousseau, não é um selvagem, mas, sim, o mesmo homem que vive em sociedade. Além disso, Hobbes (1974, p.79) inscreve três elementos que incitarão a ação orientada pelos apetites, a saber: “primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro a glória”. Cada um dos elementos leva os homens a se atacarem mutuamente por motivos diferentes, como, por exemplo, o lucro e a dominação, a segurança e a reputação (HOBBES, 1974, p. 79). Significa dizer que os homens não são maus porque a natureza os fez maus, mas, sim, de que os homens são maus porque a natureza os fez iguais, desse modo, a maldade é deduzida da igualdade e, portanto, a inimizade e o fundamento da guerra de todos contra todos também pode ser deduzida da condição igualitária e, quando a sua própria conservação pessoal está em jogo, a inimizade se radicaliza, aparecendo, desse modo, o instinto de preservação. Diz Sabine (1964, p. 446) que:

Em suma, o princípio psicológico subjacente a toda conduta era o instinto de conservação, que significava exatamente a continuação da existência biológica do indivíduo. A virtude conduzia a esse fim, ao passo que o mal tinha efeito exatamente oposto. [...] A vida não dava uma pausa para respiração e um momento de repouso durante os quais o objetivo podia ser atingido de uma vez por todas, mas era realmente uma busca incessante de meios para preservar a existência. [...] O desejo de segurança, a necessidade realmente fundamental da natureza O homem da máscara jurídica... // 321

humana, era para todos os fins práticos inseparável do desejo de poder e dos meios atuais para obter vantagens futuras [...]

Segundo Hobbes da igualdade quanto à capacidade de ação deriva uma igualdade no que diz respeito à esperança de atingirmos nossos fins, especialmente no sentido de possibilidade de desenvolvimento de uma vida longa e pacífica (1974, p. 78-79). Uma das pretensões de Hobbes ao descrever o estado de natureza é enfatizar o drama da situação em que estão inseridos os indivíduos, pois vivem entre a esperança (atingir seus fins) e o medo (ser subjugado ou morto), o que autoriza o pensador inglês a sublinhar a necessidade de existência de um poder comum absoluto que possa impor e manter o respeito e a ordem entre os indivíduos, que vivem em um estado natural de igualdade e violência. A ótica realista de Hobbes pretende demonstrar que não há nada no estado de natureza que prepare a passagem de nossa vida no commonwealth, contudo, “[...] a ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva que engendrará um artefato” (CHÂTELET, 1997, p. 51). Dessa forma, os indivíduos no estado de natureza vivem em um contexto no qual as relações entre eles são deixadas a sua livre iniciativa, e a igualdade e liberdade naturais tornariam a situação natural um verdadeiro estado de guerra de todos contra todos, onde o homem se torna o lobo do próprio homem (homo homini lúpus). A partir de tal diagnóstico, Hobbes ressalta a necessidade de existência do poder comum e nas palavras do pensador inglês:

O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmo sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza. Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros [...]. A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes 322 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões à sua decisão [...]

A longa transcrição se justifica por apresentar os elementos, talvez mais importantes, do contrato social hobbesiano. Os homens buscando sair de sua mísera condição natural belicosa, pactuam, em associação, a transferência de poder ao soberano, no qual reconhecem a autoridade e a quem passam a submeter-se. De tal modo, expõe-se de maneira sumária como surgiu a necessidade de se criar um Estado, a partir da ideia de um contrato, no qual levou a necessidade de limitação da liberdade dos indivíduos, para que o poder comum fosse gerado a partir de um artefato como o contrato e que irá garantir segurança aos homens. Há importantes diferenças no que diz respeito às abordagens dos vários autores que podem servir de representantes do contratualismo, como Locke, Rousseau e Kant, por exemplo, e a exposição de tais reflexões não seria possível no contexto desse trabalho, contudo, para as pretensões dessa investigação, podemos destacar que o elemento do pacto originário é o que se mantém de fundamental para essa corrente de pensamento, juntamente com uma investigação que se pauta pela perquirição da natureza dos indivíduos, modificando-se a forma de sua justificação, em especial com a elaboração de uma linha de argumentação que se propõe a pensar contra Hobbes, significar dizer, há uma reflexão acerca dos limites do poder estatal soberano. Em apertada síntese, pode-se destacar que as revoluções liberais (americana e francesa)1 geralmente são indicadas como o marco referencial de apresentação de limites ao poder soberano. Já em Hobbes parece possível identificar a colocação da vida no centro do palco do poder político, na medida em que o indivíduo no estado de natureza trata-se do mesmo indivíduo que habita sociedade, é o sujeito da modernidade e é movido especialmente pelo medo de ser subjugado ou morto. Em virtude dessa paixão, busca uma saída da condição natural, então, a hipótese da vida como elemento importante para a política parece razoável quando observamos os argumentos apresentados por Hobbes no que diz respeito à autopreservação.

1 Nesse ponto, no que tange a observarmos o problema da violência, seria interessante lembrar dos argumentos da teoria política do conservadorismo, em especial de Maistre e de Bonald, com o processo de satanização dos procedimentos revolucionários, em que seus escritos têm fortes tintas para a marca de violência dos métodos revolucionários, apesar de interessante, não há espaço para tal empreitada nesse texto. O homem da máscara jurídica... // 323

Ao levar em consideração esses elementos Hobbes, no capítulo XVI do Leviatã, irá apresentar uma reflexão sobre o conceito de pessoa e de representação. Dirá, então, Hobbes (1974, p. 100):

Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com verdade ou por ficção. Quando elas são consideradas como suas próprias ele se chama uma pessoa natural. Quando são consideradas como representando as palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictícia ou artificial. A palavra “pessoa” é de origem latina. Em lugar dela os gregos tinham próposon, que significa rosto, tal como um latim persona significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada no palco. E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara ou viseira. [...] De modo que uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversação corrente. E personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro diz-se que é portador de sua pessoa, ou que age em seu nome.

Após apresentar os argumentos que justificam a necessidade do contrato e do estado civil, Hobbes passa a meditar sobre as questões da pessoa natural, artificial e da representação, o que parece uma tentativa de justificação não só da necessidade da existência de um poder comum entendido como soberano que irá representar a multidão de homens (HOBBES, 1974, p. 102), ou, como nos diz Schmitt (1990, p. 18), é exatamente por meio do contrato que cada um celebra com os demais que surge “[...] uma pessoa ou corporação representativa, que converte a multidão contratante em uma pessoa única, significa dizer, em um Estado”; mas, também, uma reflexão a respeito da proteção efetiva ao indivíduo, garantida pela existência ou presença do Estado, dessa maneira, há um elemento de proteção que pode ser identificado com a forma jurídica estendido aos indivíduos reconhecidos agora como pessoas. Tal argumentação terá implicações diretas nas noções de sujeito de direito e personalidade jurídica, fazendo com que possamos melhor compreender o sentido do conceito vida nua utilizado por Agamben. Ao que parece não se pode confundir zoé (ζοέ), ou seja, vida natural - pois essa última não está inscrita no circuito da vida ética e política, permanecendo na esfera privada do οίκος -, com vida nua. Agamben acompanha as reflexões de Foucault acerca desses conceitos, da questão da vida e sua relação com a política, assim, a vida que se coloca na esfera de relações da ética e da política se compreende como um viver qualificado por essa última (βιος Пολιτικoς – bios politikhos), significa dizer que se a política é pensada em termos da forma jurídica na modernidade, o conceito jurídico de cidadania terá sua importância, uma vez que será a personalidade jurídica do indivíduo atribuída pelo ordenamento jurídico, tratando-se do reconhecimento de um 324 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade concernido pela esfera do direito, em suma, do reconhecimento do pertencimento do indivíduo a um determinado Estado nação. Por fim, importa considerar que a ideia de Bios, que da a existência de uma vida qualificada por seu pertencimento a esfera da política pode significar a sua inscrição na esfera dos cálculos de poder e de administração dos seres viventes por parte do poder soberano (Estado), representando a possibilidade de aparecimento da vida nua após a retirada de direitos dos indivíduos por meio da decisão soberana, o que nos autoriza a pensar que seja a retirada da persona, portanto, da suspensão da forma jurídica, com eclosão de espaços em que a vida é colocada fora de relação com o ordenamento jurídico estatal e ao mesmo tempo é capturada pelo poder soberano, oportunidade em que emergem lugares em que é exposta a toda sorte de violências.

17.4 A ESTRUTURA ESPECTRAL DO CAMPO: SUJEITO DE DIREITO E PERSONALIDADE JURÍDICA NO LIMIAR DA EXCEÇÃO

No início de seu famoso livro – Se é isto um homem? -, Primo Levi (2013, p.9) destaca que:

Quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, no fim da cadeia, encontra-se o Lager. Ele é o produto de uma concepção do mundo levada às extremas conseqüências com rigorosa coerência: enquanto a concepção subsistir, as conseqüências ameaçam- nos. A história dos campos de extermínio deveria ser interpretada por todos como um sinal sinistro de perigo.

Giorgio Agamben procederá a uma leitura bastante atenta da literatura de testemunho, em especial de Primo Levi, a fim de refletir - com uma gama de referenciais bastante importantes, tais como Foucault, Benjamin, Marx, Carl Schmitt e Hannah Arendt, por exemplo -, acerca da relação entre poder soberano e vida, aproximação esta que parece se articular por meio da ideia de direitos humanos que é a genuína preocupação de Agamben. Para nós importa reconhecer que, quando da positivação desses últimos e de seu conceito fundamental de dignidade, por via de consequência sustentam-se a noção de direitos da personalidade. Logo, a análise seguirá os passos de Agamben no que diz respeito aos direitos humanos, mas, compreenda-se a possibilidade de sua conexão com a ideia de direitos da personalidade. Conforme mencionamos, parece que o entendimento de Agamben caminha no sentido de sugerir que o reconhecimento do sujeito de direito da modernidade, como a vida que se qualifica pela forma jurídica em vista do pertencimento ao contexto político-jurídico de um determinado Estado nação, o que poderia ser representado pelo conceito de cidadania, parece não apenas garantir uma esfera de proteção aos indivíduos e de suas liberdades, mas, também, estes direitos podem levar os cidadãos a terem suas vidas colocadas no epícentro da política e, por consequencia, passam a ser O homem da máscara jurídica... // 325 inscritas nos cálculos estratégicos de poder do Estado pela via de sua institucionalização ou mesmo de sua negação, a partir de sua positivação/suspensão no ordenamento jurídico pela forma da lei em conexão com a decisão soberana. Antes mesmo de ingressar na abordagem de Agamben, parece conveniente algumas considerações a respeito da figura do sujeito de direito, bem como acerca da questão dos direitos humanos que deságuam na concepção clássica de direitos da personalidade apresentada no primeiro movimento desse trabalho. A meditação sobre a temática dos direitos humanos talvez possa ser encontrada em seus primórdios desde a antiguidade clássica no texto de Sófocles, Antígona; a peça do dramaturgo grego pertence a um gênero literário bastante importante, e em sua trilogia ilustra uma série de características atribuídas ao drama desde a Antiguidade; logo, esse escrito do teatro trata de assuntos políticos sobre o governo e o destino da cidade de Tebas e, além disso, é capaz de provocar ponderações acerca do jurídico, pois do confronto claramente existente entre lei natural e lei/comando positivo que é protagonizado pela heroína Antígona e seu tio Creonte, já de algum tempo estabeleceu um debate com a participação de juristas e filósofos acerca da ideia dos direitos humanos, muito especialmente em torno da questão da fundamentação última desses direitos. De acordo com Oswaldo Giacoia Junior (2008, p. 267):

Esse tema recebe uma inflexão decisiva na aurora da modernidade política, no século XVII, depois do esfacelamento do poder espiritual concentrado no papado romano, por força dos movimentos de reforma protestante, assim com o surgimento dos modernos estados nacionais, surgidos em decorrência do desmoronamento da autoridade ainda centralizada na unidade política do sacro império romano-germânico. Começa a se firmar, então, com Grotius e Hobbes, a teoria jusnaturalista dos direitos do homem, cuja sede e fundamentação seria a natureza racional e afetiva – a humanitas do homo humanus

Não é forçoso reconhecer que e a lei natural evocada por Antígona em defesa do sepultamento de seu irmão, abandonado para que insepulto permanecesse por decisão de Creonte, pode tomar a forma temporal ou histórica dos direitos naturais racionais defendidos por autores da tradição do contratualismo, chegando o debate e investigação até nossos dias. Oswaldo Giacoia Junior (2008, p. 268) destaca que:

Daí porque, sobretudo desde o século XVII, pode-se constatar a transição, perfeitamente justificável em termos de racionalidade, entre direitos naturais e direitos humanos – de modo que os deveres impostos pelas leis não escritas de Antígona acabaram por assumir a forma histórica dos direitos humanos, ou dos direitos políticos fundamentais

Ao se verificar que, desde o século XVII há uma transição possível no que tange à racionalidade entre direitos naturais e direitos humanos, que 326 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade os direitos naturais tenham historicamente tomado a forma dos direitos humanos, dos direitos políticos fundamentais que o constitucionalismo convencionou chamar de direitos de primeira dimensão, torna-se possível afirmar que grande parte da filosofia política contemporânea e do constitucionalismo vem se detendo a uma análise dos fundamentos dos direitos humanos, em especial com à forma de sua fundamentação e sua relação com a democracia. Ainda, é importante notar que esses direitos, reconhecidos como direitos do homem e/ou humanos, historicamente vem cumprindo um papel de salvaguarda das liberdades, da pessoa humana e mais tarde do sujeito de direito no que diz respeito ao relacionamento com o poder soberano. A ideia de pessoa é particularmente importante nesse contexto para que possamos pensar a categoria do sujeito de direito como aquela figura que se encontra protegida pela forma jurídica. É com o aparecimento do Estado de Direito de imagem liberal, e a subida ao poder da burguesia, que se entrelaçam a ideia de necessidade de limitação do poder estatal, na ordem dos interesses privados e do mercado, de acordo com a pretensão expansionista do modo de produção capitalista. Então, o indivíduo passa de súdito a cidadão, que significará ser possuidor de direitos, implicando ser pensado dentro da abstração universal do sujeito de direito, que também é considerado um fim em si mesmo, adquirindo personalidade reconhecida pelo ordenamento jurídico, bem como a condição formal da igualdade (RADBRUCH, 2004, p. 191) Note-se, por exemplo, que os chamados direitos de primeira geração ou dimensão podem ser caracterizados como as liberdades públicas subjetivas de conteúdo negativo dos primórdios do Estado de Direito, com nítida característica de limitação do poder estatal. Oswaldo Giacoia Junior (2008, p. 268) argumenta que:

São esses direitos, constitucionalmente assegurados como liberdades públicas, que, desde sua positivação, demarcaram as trincheiras de resistência do cidadão contra os excessos de arbítrio do poder soberano. Neles se encontram as razões da verdadeira justiça contra a violência, mesmo que revestida de legalidade.

Esses direitos, intimamente vinculados a pretensão democrática dos Estados nacionais do ocidente, ao tomar a forma histórica, são positivados nos ordenamentos jurídicos dos Estados de Direito e vinculam-se “inicialmente nas constituições brotadas dos movimentos revolucionários inspirados no ideário filosófico da Luzes, no final do século XVIII” (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 269). Dirá Bulygin (1987, p. 79), que o Bill of Rights da declaração da Virgínia de 1776 e a declaração de direitos francesa de 1789, representam, no século XVIII, as primeiras formulações dos direitos humanos, cuja fundamentação se dá na ideia de direito natural. São estas declarações e os desdobramentos da positivação destes direitos que serão objeto de análise de Agamben Não obstante, o elenco desses direitos se modifica, “[...] e continua a se modificar, com a mudança O homem da máscara jurídica... // 327 das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc” (BOBBIO, 2004, p.38). Levando em consideração a reflexão de Bobbio a este respeito, quando o jusfilósofo turinês retoma a perspectiva kantiana em filosofia da história, sua abordagem acerca dos direitos humanos fará um diagnóstico do presente, da situação de tais direitos, com um olhar para o futuro, inserindo- se, aqui, sua tentativa de “[...] reconstituição do desenvolvimento histórico dos direitos do homem, na qual se entrecruzam as linhas de sucessão cronológica – que considera tais direitos do ponto de vista objetivo” (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 270). Assim, a passagem da situação política do homem de súdito a cidadão, com o deslocamento da soberania da figura do príncipe como legibus solutus para a autolegislação da soberania popular, verifica-se não só o surgimento da concepção de sujeito de direito, mas, também, o aparecimento de um verdadeiro, parafraseando Arendt, “direito a ter direitos”, que se vincula a ideia de cidadania. Nesse horizonte de perspectiva é que o constitucionalismo moderno começa então a reconhecer as gerações ou dimensões de direitos, de modo que, em apertada síntese, os primeiros estão ligados aos direitos de liberdade com tendência a limitar o poder soberano, significa dizer, limitação do poder do Estado caracterizando-se como direitos civis, marcados por uma propriedade negativa de defesa do indivíduo em relação ao poder soberano, e políticos, destacada aqui a ideia dos direitos em uma perspectiva positiva, que será representada pela possibilidade de participação e reivindicação política (autonomia); posteriormente, em virtude da revolução industrial e das reivindicações ligadas às correntes teóricas do socialismo, há o reconhecimento de direitos sociais (econômicos e culturais), expressando exigências sociais novas como a do bem-estar, por exemplo. Estes direitos são pertencentes à segunda geração ou dimensão; por fim, os direitos coletivos ou de titularidade difusa, ou seja, que se desvinculam do indivíduo enquanto sujeito de direito passando a proteção de grupos ou coletividades humanas. Nesse momento, torna-se interessante retomar a abordagem de Hannah Arendt, em sua reflexão sobre o totalitarismo, que vincula o destino dos direitos do homem ao futuro do Estado nação, que entra em crise no século XX, muito talvez pelos eventos ocorridos em solo europeu, o que colocou diante das democracias e Estados de direito liberais do ocidente a figura do “homem de direitos”, ou seja, a figura das minorias, dos apátridas, dos refugiados, de sujeitos desnacionalizados, significa dizer que o reconhecimento de direitos fica condicionado em relação ao ser detentor de uma cidadania. Esse personagem esse que se apresenta novamente aos olhos do mundo contemporâneo. Dirá Hannah Arendt (1979, p. 348) que:

Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da civilização européia, a explosão de 1914 e as suas 328 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

graves conseqüências de instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político – o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas às quais, subitamente, já não se aplicavam as regras do mundo que as rodeava. Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso das suas fronteiras, antes protectoras, parece uma infeliz excepção a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto às vítimas como aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal.

Deste modo, após o término da Segunda Guerra Mundial surge então a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), na tentativa de consolidar o reconhecimento e, talvez mais do que isso, a defesa e o respeito por parte dos Estados desses direitos, o que para Bobbio caracteriza uma terceira fase da era dos direitos. A afirmação de tais direitos deverá se dar de forma universal, quer-se com isso dizer que os destinatários dos direitos não são mais os cidadãos de um Estado, mas, sim, os homens (BOBBIO, 2004, p. 49-50). No que diz respeito à fundamentação dos direitos humanos no pós-guerra, Bulygin (1987, p. 81) afirma que esses últimos podem ser caracterizados como “regras ou princípios de um sistema moral. Portanto os direitos humanos são, ao menos em seu sentido originário, direitos morais”. Mas, afinal, por que tais considerações acerca dos direitos humanos? Em primeiro lugar, para que possamos observar que por mais que exista uma meditação a respeito dos direitos do homem ou dos direitos humanos universais, um documento jurídico só foi elaborado com pretensão de efetivação após o término dos conflitos bélicos em solo europeu. Todavia, no ano de 1994, “o homem de direitos” ou o sujeito de direitos universal é afrontado, bem como a efetividade da declaração universal é colocada a prova, agora em um país africano. Os conflitos ocorridos em Ruanda já poderiam nos provocar a refletir sobre o alcance da ideia de sujeito de direitos e, também, sobre a preocupação de Bobbio a respeito da efetivação e da proteção de tais direitos universalmente reconhecidos. A pretensão a partir de agora é a de construir uma reflexão acerca da ideia de sujeito de direitos e de personalidade jurídica, levando em consideração a noção de estado de exceção. Apresenta-se interessante considerar aqui que são muitas e diversas as opiniões a respeito do estatuto teórico da exceção, em especial no âmbito da teoria do estado e do direito público, uma vez que há uma enorme discordância se a exceção é uma questão de fato ou se pode ser caracterizada como um problema jurídico; uma das questões que se mostra importante no estudo da exceção “[...] é a que procura saber se o estado de exceção representa uma estrutura jurídica, política ou factual” (MATOS, 2012, p. 285). Em vários contextos possíveis de análise no mundo contemporâneo pode causar estranheza a possibilidade de reconhecimento que o estado de exceção não tenha sido formalmente decretado, o que não implica conjecturar pela impossibilidade de reconhecimento da situação de exceção, O homem da máscara jurídica... // 329 pois, para admitirmos tal possibilidade, basta que recuperemos a ideia schmittiana da situação limite – como o limite entre dois extremos -, e da necessidade da decisão a respeito da exceção. Nesse sentido, o espaço de exceção é aqui considerado, seguindo a reflexão de Agamben (2007), como aquele espaço em que fato e direito se tornam indiscerníveis. A partir da caracterização do estado de exceção, torna-se possível o reconhecimento da relação de exclusão includente, ou da relação de abandono (bando), sem necessidade de uma formalização (decreto) de sua existência. Nas palavras de Agamben (2007, p. 36):

Chamemos bando (do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do soberano) a esta potência (no sentido próprio de dýnamis aristotélica, que é sempre também dýnamis mè energeîn, potência de não passar ao ato) da lei manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem. Dele não é literalmente possível dizer que esteja fora ou dentro do ordenamento (por isto, em sua origem, in bando, a bandono significam em italiano tanto “a mercê de” quanto “a seu talante, livremente”, como na expressão correre a bandono, e bandito quer dizer tanto “excluído, posto de lado” quanto aberto a todos, livre, como em mensa bandita e a redina bandita). É nesse sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma “não existe um fora da lei”. A relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável do nómos, a sua originária “força de lei”, é que ele mantém a vida em seu bando abandonando-a.

Agamben propõe um (re)pensar da fundação do estado civil e coloca a ideia de exceção e de bando soberano na origem, a fim de tentar demonstrar que a relação de exceção possui uma forma. Nesse sentido, é o bando uma imagem da relação entre poder soberano e vida no limiar da exceção, de tal modo, “[...] o bando é a pura forma do referir-se a alguma coisa em geral, isto é, a simples colocação de uma relação com o irrelato” (AGAMBEN, 2007, p. 36). O filósofo italiano, apresenta um argumento crítico a ideia do contrato social por entender que a decorrência de tal mitologema é um pensar a política por meio da forma jurídica do contrato. Para Agamben (2007), como para Foucault, a vida natural não era objeto da política na antiguidade, contudo, a partir do século XVII, quando se pensa a questão política por meio do indivíduo, pela autopreservação e pela ideia de contrato (Hobbes), há que se reconhecer, em verdade, um deslocamento da vida para o centro da arena política. A vida humana passa agora a ser alcançada pela política, tendo em vista a noção de uma vida que agora é qualificada pela ideia político-jurídica de cidadania, considerando que agora o poder político não se encontra localizado e centralizado na figura do soberano absoluto, mas, sim, é exercido pela ideia de soberania popular, encontrando-se regulado pela forma jurídica, 330 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade dessa maneira, a forma direito atua como o dispositivo de captura da vida humana, que ingressa nos cálculos de poder do Estado. A noção de dispositivo Agamben retira do pensamento de Foucault, no entanto, podemos observar que o filósofo italiano entende por dispositivo “[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40) Agamben – acompanhando a reflexão de Arendt -, destaca que a figura do refugiado permanece paradoxal para pensar a relação entre vida, sujeito de direito e poder soberano, pois ele “[...] deveria encarnar por excelência o homem dos direitos, [mas CHLR; DVF] assinala em vez disso a crise radical deste conceito” (AGAMBEN, 2007, p. 133). Para Agamben o diagnóstico de Hannah Arendt de que o destino dos direitos humanos, suas imagens positivadas e sua relação com o conceito de cidadania permanece um fecundo referencial para a reflexão que pretende se debruçar sobre a forte noção de inalienabilidade e sacralidade de tais direitos. Esses fundamentos são derivados, como visto, da investigação acerca da natureza humana, uma vez que a realidade dessa compreensão do sistema de direitos acompanhará a fortuna da cidadania, o que impacta o caminho do sujeito de direitos, desse modo, o reconhecimento do sujeito de direitos e de sua personalidade jurídica do qual decorrem seus direitos que serão atribuídos por essa personalidade normativa dependem de seu pertencimento a esfera pública política de um Estado-nação. Será, portanto, o fato do nascimento o pressuposto do sujeito portador de direitos que demonstra o deslocamento da soberania para a figura do indivíduo e, portanto, “a vida nua natural que, inaugurando a biopolítica da modernidade, é assim posta à base do ordenamento, dissipando-se imediatamente na figura do cidadão, no qual os direitos são conservados” (AGAMBEN, 2007, p. 134). Diz, então, Agamben (2007, p. 133), acompanhando, ao que parece, as reflexões do jovem Marx na Zur Judenfrage:

No sistema do Estado-nação, os ditos direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela e de qualquer realidade no mesmo instante em que não seja possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado. Isto está implícito, se refletimos bem, na ambigüidade do próprio título da declaração de 1789: Déclaration des dorits de l’homme et Du citoyen, onde não está claro se os dois termos denominam duas realidades autônomas ou formam em vez disso um sistema unitário, no qual o primeiro já está desde o início contido e oculto no segundo; e, neste caso, que tipo de relações existe entre eles.

Ao analisar o texto da declaração de 1789, Agamben argumenta que o princípio de natividade como surgimento do sujeito de direito evidencia sua hipótese de inscrição da vida nua na ordem político-jurídica do Estado, o que estaria a caracterizar uma atuação biopolítica do poder soberano. Parece oportuno mencionar a aproximação da leitura de Agamben do diagnóstico O homem da máscara jurídica... // 331 feito por Foucault acerca da biopolítica. Para o pensador francês a ação política no século XIX sofre uma viragem conduzindo ao surgimento de uma grande tecnologia de poder político chamada de biopoder, que irá caracterizar o cenário da política contemporânea e que será considerada como biopolítica, passando a ter por campo de incidência a vida humana, tanto no que diz respeito à esfera individual - no que tange aos corpos dos indivíduos -; quanto no registro geral da vida das populações, consideradas nas tecnologias calculativas – aspecto econômico -, e regimes administrativos que se tornam parte integrante dos utilitários interesses de registro da riqueza das nações. Nessa perspectiva, para Oswaldo Giacoia Junior (2004, p. 11):

Desse modo, a moderna sociedade capitalista deixa progressivamente de se regrar por uma ordenação estritamente legal, para se transformar numa sociedade de vigilância e regulamentação, em que a norma ultrapassa em importância conferida à estrita legalidade jurídica clássica. Surge assim, a partir do século XIX, um tipo de configuração de poder – complementação entre disciplina e regulamento -, cuja tarefa se especificará, cada vez mais, em termos de ajustamento à norma, pelo agenciamento de ‘mecanismos contínuos, reguladores e corretivos’.

A declaração de direitos de 1789 atribui a soberania à nação na medida em que reconhece o sujeito de direito a partir do princípio de natividade e de pertencimento ao corpo político2 do Estado nação, e a ideia de soberania aqui vai se ligar a questão da autonomia e da autolegislação, ao conceito de soberania popular, dessa forma, “a nação, que etimologicamente deriva de nascere, fecha assim o círculo aberto pelo nascimento do homem” (AGAMBEN, 2007, p. 135). Conforme Agamben (2007, p. 135):

As declarações de direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien regime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em “cidadão”, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas conseqüências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania.

É importante considerar que esta crítica não quer de maneira alguma negar o caráter de garantia das liberdades e de possibilidade de resistência

2 A noção de corpo político por si mesma já se apresenta interessante para investigar a construção do argumento de legitimidade do poder soberano, caso tenhamos em vista um aspecto intrigante que nos conduziria a um diálogo com a teologia política medieval e os juristas de então, que se encontravam em um debate bastante acalorado acerca de quem deveria ser o detentor da soberania. Dessa maneira, conforme nos mostra Kantorowicz em Os dois corpos do rei, a noção de corpo político nasce desse debate e evidencia a tendência de uma política que irá ter por aspiração a ideia de corpo, contudo, o aprofundamento de tal perspectiva não é possível nessa investigação. 332 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade ao arbítrio dos direitos humanos ou fundamentais – como pretende certa leitura equivocada do pensamento de Agamben -, mas, contudo, almeja tornar mais visível o elemento biopolítico existente nas declarações, significa dizer que, pretende desvelar o caráter dual da forma jurídica na medida em que as declarações não representam apenas conquistas dos cidadãos no que diz respeito à limitação do poder estatal como quer o constitucionalismo liberal, mas, também, podem constituir a inscrição da vida nua nos cálculos e estratégias de poder do Estado. Como Agamben não coloca o estado de natureza na origem de justificação do poder político, mas, sim, a ideia de estado de exceção, não há que se falar em um contrato artificial que garante o ingresso dos viventes em um estado civil (Estado de Direito), mas a forma do bando. A vida no Estado se faz por meio da decisão soberana que estabelece a normalidade (poder- violência constituinte), destarte, é possível ao filósofo italiano reconhecer tanto o direito (forma jurídica) quanto à política como mecanismos e dispositivos de controle da vida humana. Desse modo, Agamben irá vincular seu argumento a respeito do princípio de natividade aos critérios que desde o direito romano até a atualidade do direito internacional público servem para determinar a cidadania, a saber: a inscrição da vida no ordenamento estatal (AGAMBEN, 2007, p. 136), quais sejam: o ius soli (nascimento em determinado território) e o ius sanguinis (a cidadania determinada pela nacionalidade dos genitores), a fim de explicar, que após a revolução francesa, estes critérios que nada significavam no antigo regime, passam a determinar a cidadania do sujeito e seus direitos (AGAMBEN, 2007, p. 136). Para encaminhar um desfecho da presente reflexão levando em consideração os argumentos a respeito do sujeito de direitos, dos direitos humanos e da exceção, destacamos que na última parte do primeiro volume do projeto Homo Sacer, logo de saída, Agamben ressalta que devemos reformular nosso questionamento a respeito dos campos de concentração, a partir da ideia de estado de exceção. Para o pensador italiano não devemos mais questionar como foi possível os acontecimentos que nos levarão aos campos de concentração e extermínio. O questionamento correto a fazer, se quisermos compreender o que realmente aconteceu e quais os seus procedimentos, deve ser o que é um campo e qual a sua estrutura jurídico- política (AGAMBEN, 2007, p. 173). De acordo com Agamben ao buscarmos os fundamentos estruturais do campo deixaremos de observá-lo apenas como um fato histórico do passado e passaremos a compreendê-lo, “[...] de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos” (AGAMBEN, 2007, p. 173), poderemos reconhecer a permanência, talvez, de dogmas não enunciados que continuam como premissas maiores para um potencial silogismo que nos levará ao reconhecimento de espaços de exceção e de decisão soberana sobre a vida e a morte. Talvez seja importante nos perguntarmos com Agamben o que significa a obsessão do mundo contemporâneo por segurança e quais seus impactos para a democracia. O homem da máscara jurídica... // 333

Para o autor italiano, tal obsessão modifica o regime democrático e evidencia a aceitação de um controle biopolítico exercido pelo poder soberano, com o aparecimento de leis mais severas do que algumas legislações fascistas, levando a preocupação “[...] sobre os perigos de um controle absoluto e sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e genéticos de seus cidadãos” (AGAMBEN, 2014, p. 2). A fim de justificar sua hipótese, Agamben parte da discussão existente entre os historiadores a respeito da primeira aparição dos campos, destacando que é nesse espaço onde se realizou a maior condição de inumanidade. A primeira aparição se dá com os campos de concentração espanhóis em Cuba, no ano de 1896, criados “[...] para reprimir a insurreição da população da colônia” (AGAMBEN, 2007, p. 173). Podemos observar, já neste caso, a característica de regulamentação jurídica da política ou, se quisermos, a vertente de atuação política apenas, com a garantia de opressão dos insurgentes em uma zona de indistinção entre jurídico e político. Além disso, no percurso histórico, o pensador italiano elenca os concetration camps ingleses, criados no início do século XX, e, que de acordo com Agamben (2007, p.173), “o que importa é que, em ambos os casos, trata- se da extensão, a uma inteira população civil, de um estado de exceção ligado a uma guerra colonial”. Na impressão de Agamben, os campos de concentração surgem do estado de exceção ou da lei marcial e não da legislação ordinária ou de uma mutação do direito carcerário (AGAMBEN, 2007, p. 173). Dentro da perspectiva histórica, o filósofo italiano analisa os Lager nazistas, que podem ser citados como exemplo no sentido de demonstrar o surgimento do campo por meio do estado de exceção; há um fundamento jurídico-político para o aparecimento do campo e este não se dá no direito comum. No caso da Alemanha nazi a justificação jurídica em seus primórdios está inscrita na Schutzhaft (custódia provisória), cuja origem se encontra “na lei prussiana de 4 de junho de 1851 sobre o Estado de Sítio” (AGAMBEN, 2007, p. 173-174). Doravante, Agamben aproxima o alicerce jurídico dos campos, o schutzhaft, ao artigo 48 da Constituição de Weimar, texto normativo conhecido por autorizar o Presidente do Reich a suspender provisoriamente os direitos fundamentais em virtude da garantia da ordem e da segurança públicas3. Analisando, ainda, o modelo nazista, Agamben afirma que, quando estes últimos (nazistas) chegaram ao poder em 1933 “emanaram o Verordnung zum schutz von volk und Staat, que suspendia, por tempo indeterminado, os artigos da constituição” (AGAMBEN, 2007, p. 175), que se

3 Dispõe o artigo 48 da Constituição de Weimar: Artikel 48 - Der Reichspräsident kann, wenn im Deutschen Reiche die öffentliche Sicherheit und Ordnung erheblich gestört oder gefährdet wird, die zur Wiederherstellung der öffentlichen Sicherheit und Ordnung nötigen Maßnahmen treffen, erforderlichenfalls mit Hilfe der bewaffneten Macht einschreiten. Zu diesem Zwecke darf er vorübergehend die in den Artikeln 114, 115, 117, 118, 123, 124 und 153 festgesetzten Grundrechte ganz oder zum Teil außer Kraft setzen.

334 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade referiam aos direitos fundamentais, o que caracteriza o regime nacional socialista como um estado de exceção que durou doze anos. Logo, apesar de os nazistas manterem em seu governo a prática política governamental existente na Alemanha em momentos anteriores, um elemento novo foi inserido no estado de exceção nazi que é o seu caráter permanente; desta feita, “o estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação provisória de perigo factício e tende a confundir-se com a própria norma” (AGAMBEN, 2007, p. 175). A respeito da relação entre estado de exceção e campo, Agamben (2007, p. 175) afirma que:

Este nexo constitutivo entre estado de exceção e campo de concentração dificilmente poderia ser superestimado, em uma correta compreensão da natureza do campo. A “proteção” da liberdade que esta em questão na schutzhaft é, ironicamente, proteção contra a suspensão da lei que caracteriza a emergência. A novidade é que, agora, este instituto é desligado do estado de exceção no qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra.

A situação temporal de suspensão do ordenamento passa agora a se tornar uma regra ou a se justificar de maneira permanente, encontrando argumentos jurídicos e políticos para que o estado de exceção possa se apresentar permanentemente ou mesmo se transformar em uma prática de governo (AGAMBEN, 2007, p. 175-176). Parece que o diagnóstico de Agamben acerca do estado de exceção como paradigma de governo vem confirmar a sempre atual “previsão” de Walter Benjamin, inscrita na oitava tese sobre o conceito de história, de que o estado de exceção tornou-se a regra4. Agamben irá chamar a atenção para a necessidade de uma avaliação acerca da estrutura paradoxal do campo enquanto imagem real do espaço de exceção, pois “ele é um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é por causa disso, simplesmente um espaço externo” (AGAMBEN, 2007, p. 177). No campo, destaca Agamben (2007, p. 177) que:

Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o

4 Cite-se a oitava tese de Benjamin (2005, p. 83): “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos “ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no inicio de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história de onde provém aquele espanto é insustentável” O homem da máscara jurídica... // 335

próprio estado de exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente.

Na estrutura do campo há uma indistinção entre a questão de fato e a questão jurídica, significa dizer que no campo ocorre uma indistinção entre o jurídico e o político. Assim, “[...] o campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis” (AGAMBEN, 2007, p. 177). Retomando o pensamento de Hannah Arendt, Agamben passa a destacar que, a partir da caracterização do campo como o lugar de indistinção entre o político e o jurídico, torna-se possível visualizar, no contexto do campo, a atuação do princípio totalitário de que “tudo é possível” (AGAMBEN, 2007, p. 177). Assim, sob essas coordenadas devemos ter em consideração a característica espectral do estado de exceção e, por conseqüência, da estrutura do campo. Ressalta Agamben que a estrutura do campo é espectral na medida em que se constitui como uma localização deslocante, é como um lócus que se mantém em permanente deslocamento, pois um irrelato, podendo, inclusive, assumir diversas formas, dada sua natureza de premissa maior de um modelo de atuação política da soberania. A questão que está em jogo agora é que o campo pode aparecer de inúmeras maneiras e passa ele próprio a produzir os corpos biopolíticos como vida nua. Para Agamben toda vez que nos depararmos com uma estrutura em que político e jurídico, vida nua e norma, se indeterminem, estamos diante de um campo e, por consequência, há a materialização de um estado de exceção. Com isso, Agamben ilustra seu argumento ao se referir ao estádio de Bari “onde a policia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses”, bem como as “[...] zones d’attente nos aeroportos internacionais franceses, nas quais são retidos os estrangeiros que pedem o estatuto de refugiados” (AGAMBEN, 2007, p. 181). Considerando o diagnóstico da estrutura espectral do campo, um lugar aparentemente anódino como um hotel pode ser reconhecido como um campo e um espaço de exceção em que a vida foi abandonada pela forma jurídica (suspensão/exclusão) e se encontra exposta ao poder soberano e a violência. O exemplo citado por Agamben (2013) é o do Hotel Arcades em Roissy, espaço aparentemente inofensivo que circunscreve um espaço no qual o ordenamento jurídico está de fato suspenso, espaço no qual deixa de existir a figura do sujeito de direitos e seus reconhecidos direitos fundamentais (inclusive os de personalidade) e do cidadão e passa a preponderar a imagem do potencial terrorista, ou em termos schmittianos, da potência do reconhecimento do inimigo. Assim, essa prática política impacta, para Agamben, o conceito de cidadania, que no mundo grego antigo era compreendido como a oposição entre o privado e o público, em especial no 336 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade que diz respeito a vida qualificada pela participação política, ou seja, as esferas do οίκος (da casa como sede da vida natural) e da Пολις (como lugar do político), “a cidadania moderna parece evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou, para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo físico e o corpo político” (AGAMBEN, 2014, p. 3). Por fim, o que parece fundamental é atentarmos para a provocação de Agamben a respeito da necessidade de refletirmos acerca da estrutura jurídico-política do campo, dado a possibilidade dessa estrutura de se deslocar espectralmente, assumindo novas formas que materializam um espaço no qual o ordenamento normal está suspenso, expondo a todos a possibilidade da retirada da persona do sujeito de direitos e, assim, expondo a vida nua, capturada (inclusão) pelos dispositivos da forma jurídica e da exceção, à violência e, até mesmo, à morte; com isso, a vida nua encontra- se em uma zona de indistinção entre o jurídico e o político, entre a lei e a vida, bem no âmbito de atuação da soberania como forma de um controle total da vida.

17.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As pretensões do presente trabalho se lançaram no caminho de constituir uma reflexão acerca da ideia de direitos ou o que significa ser possuidor de direitos universalmente reconhecidos e, em específico, uma imagem desses últimos que se ligam a esfera de proteção da personalidade. Para tanto, foi necessário revisitar a teoria clássica e a construção de conceitos que estruturam referida proposta teórica, como o entendimento do reconhecimento do ser humano como um fim em si, compreensão que está sedimentada em uma concepção fortemente kantiana de humanidade. Desse modo, verificou-se a influência em tal perspectiva de pensadores de diferentes matizes como Radbruch e Kelsen, todavia, identifica-se a aspiração de se construir uma concepção de direitos da personalidade que se ligam os fundamentos dos direitos humanos, o que possibilitaria alcançar um status de garantia das liberdades e dos indivíduos. Diante do que restou dito, foi preciso se aproximar dos conceitos de cidadania e sujeito de direitos para uma melhor apreensão da ideia de personalidade jurídica, tendo em vista que tais noções não se prendem uma restrita esfera de normatividade. Em um segundo momento do trabalho a análise recaiu sobre o momento jurídico de constituição da pessoa na modernidade, assim, o conceito de persona é importante para evidenciar a relação político-jurídica que se estabelece entre soberania e vida na aurora da modernidade política, afinidade que se constrói via a forma jurídica da política moderna representada pela ideia de forma jurídica, entendida essa como o duplo das relações sociais e de produção que materializam a forma do direito na figura do contrato. Por derradeiro, a fim de se pensar criticamente acerca dos direitos humanos universais e dos direitos de personalidade em específico, O homem da máscara jurídica... // 337 aproximou-se a reflexão de Giorgio Agamben que não tem por objetivo apenas analisar os discursos de justificação ou de aplicação dos direitos, ou ainda uma possível tensão interna entre direitos humanos e soberania popular, mas a sua preocupação se encontra centrada na relação do poder soberano com a vida, aproximação esta que parece se articular por meio da ideia de direitos humanos, uma vez que, segundo seu entendimento estes direitos funcionam como dispositivos que levam os cidadãos a terem suas vidas colocadas no centro do palco político e, por consequencia, os viventes passam a ser inscritos nos cálculos estratégicos de poder do Estado. Torna-se possível com Agamben imaginar um estado de exceção na origem das relações políticas e de fundamentação do estado, cogitação que nos autoriza a buscar uma melhor concepção acerca do caráter dual da forma jurídica, de tal modo, o estado de normalidade (estado de direito) seria garantido por um intima afinidade com o estado de exceção, e tal diagnóstico permitiria considerar uma figura paradigmática e paradoxal na modernidade, que é a figura do campo. Desse modo, a partir da ideia de estado de exceção apresenta-se necessário pensar a respeito da possibilidade da retirada de direitos mediante decisão do poder soberano, significa dizer da exclusão da personalidade jurídica de indivíduos que não se inserem nos cálculos e no modus operandi da soberania, fazendo eclodir a vida nua que se mostra em espaços de exceção que tomam uma natureza espectral, implica dizer enquanto lugares de emergência da decisão soberana. Assim, ao invés de ainda buscarmos uma fundamentação última para tais direitos no sentido do reconhecimento de sua característica de limitação do poder soberano, mostra-se mais necessário pensar como é possível o surgimento de uma vida matável e insacrificável como a do homo sacer de Agamben, ou seja, um instituto retirado do direito romano para significar uma vida contra a qual não se comete homicídio e que também não serve ao sacrifício; talvez sejam exatamente as vidas das figuras que colocam em cheque o sujeito de direitos moderno, a saber: a vida nua daqueles que vivem nos campos de refugiados palestinos, asiáticos e africanos e que voltam à tona com os recentes acontecimentos em solo europeu; bem como aquela que emerge dos sombrios porões de prisões que servem de depósitos de corpos humanos no sistema carcerário dos Estados ou em estabelecimentos prisionais com mais características do espectro do campo como Guantánamo e Abu-Ghraib; o que aviva na memória a ideia de que um poder político que se exerce sobre os corpos dos indivíduos sempre se fez presente, inclusive no que diz respeito às origens do moderno estado democrático de direito, evidenciando uma verdadeira politização da vida que acarreta implicações para a reflexão e a ação no que tange aos direitos da personalidade, mas, também, em outras esferas do saber, como, por exemplo, a bioética, ao nos perguntarmos que vidas são essas expostas a práticas experimentais e, além disso, onde se localiza a soberania, pois em nossos dias há alguns saberes que auxiliam a esfera estatal a decidir sobre que vida merece viver.

338 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

17.6 REFERÊNCIAS

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= XVIII =

O PODER LEGISLATIVO COMO REALIZADOR E LIMITADOR DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA: O PROJETO DE LEI DA CÂMARA N. 30/2015, EM TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDERAL, E A TERCEIRIZAÇÃO GENERALIZADA

Paulo Ricardo Vijande Pedrozo*

18.1 INTRODUÇÃO

O presente artigo foi elaborado para participação do II Congresso Internacional dos Direitos da Personalidade, do Centro Universitário Unicesumar, em Maringá/PR, Brasil. O artigo foi desenvolvido a partir de outro, apresentado para participação em Congresso do Conpedi, em co- autoria com o Professor Doutor Alessandro Severino Valler Zenni. O presente artigo é inédito porque foca a realização e a limitação da terceirização trabalhista pelo Poder Legislativo, enquanto aquele outro focava a realização e a limitação da terceirização trabalhista pelas instituições trabalhistas em geral, e em especial pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, sem se dedicar especificamente ao Poder Legislativo. Os métodos de pesquisa utilizados foram o indutivo e o dedutivo. O indutivo, porque a pesquisa partiu da constatação de um fato social, o protagonismo de instituições trabalhistas brasileiras em geral, e em especial do Poder Legislativo da União, na realização da flexibilização trabalhista. O método dedutivo foi utilizado porque a criação da legislação trabalhista, consiste na aplicação de normas e princípios constitucionais e jurídicos. Foi realizada pesquisa normativa, doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema. Para a elaboração do presente artigo utilizar-se-á como base trabalhos apresentados como tarefas finais e em seminários de disciplinas do Programa de Mestrado em Direito do Unicesumar em Maringá/PR. Será utilizado como base, também, capítulo de livro, elaborado em conjunto com o Professor Doutor Alessandro Severino Valler Zenni, para participação no livro comemorativo dos 10 anos do Programa de Mestrado

* Mestrando no Programa de Mestrado em Direitos da Personalidade do Centro Universitário Cesumar (UNICESUMAR), Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS, 1990), Especialista em Direito (UFSC, 1993), Auditor-Fiscal do Trabalho (desde 2007), Chefe Substituto da Fiscalização (desde 2012) e Gerente Regional do Trabalho e Emprego (desde 2013), do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), em Maringá/PR. Professor de Direito do Trabalho. Endereço de e-mail: [email protected] 342 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade em Direito do Unicesumar, intitulado “A Dignidade da Pessoa do Trabalhador e a Precarização do Trabalho Pela Via da Terceirização”. Tais trabalhos têm, cada qual, características de originalidade, já que realizados com a utilização de estudos pertinentes a cada uma das disciplinas e objetivos mencionados. Em comum, todos têm relação com a preparação da dissertação que consistirá no trabalho final a ser apresentado no Programa de Mestrado em Direito do Unicesumar. Conforme procurar-se-á demonstrar no presente artigo, o Poder Legislativo da União, tem importância e atribuições específicas na realização da flexibilização trabalhista que tem sido admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Registra-se, por fim, que o presente trabalho pretende consistir em estudo teórico concernente a desafio renovado da tutela da pessoa humana trabalhadora, pertencente a grupo vulnerável (o que consiste em próprio fundamento da existência do direito do trabalho). O trabalho contém também análise de reflexos de tal tutela em entidades públicas e privadas (já que pretende avaliar a justiça ou não do Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015 e, portanto, da sua constitucionalidade ou não), pelos efeitos que tal Projeto de Lei pretende instaurar nas relações de trabalho. Isso será feito pelo contraste entre disposições projetadas concepção da personalidade humana e de sua dignidade protegidas pela Constituição Federal.

18.2 JUSTIFICAÇÃO E CRÍTICA DO DIREITO OPERADAS PELA FILOSOFIA DO DIREITO

Logo no início do seu Do Processo Legislativo, FERREIRA FILHO (2002, p. 2-3) demonstra a importância que tem a Filosofia para o Direito, já que este tem seu ponto de partida naquela. Afirma o insigne autor:

O Direito Constitucional tem, como toda ciência prática, seu ponto de partida na Filosofia, ou numa filosofia. É de uma cosmovisão que derivam os princípios de que se desdobram as suas normas. É em função de suas concepções de vida e do mundo que os homens vão apreciar e interpretar essas regras. Seus princípios fundamentais, e a interpretação desses princípios, vão depender de uma determinação filosófica, consciente ou não, dos valores inspiradores do Direito em geral e das instituições políticas em particular. A indagação axiológica, portanto, é preliminar de todo estudo de Direito Constitucional. Só ela pode determinar o rumo de uma institucionalização ou corrigir o rumo seguido pelas instituições existentes. Ora, essa identificação não é fácil. Se há na Geografia um norte verdadeiro e um norte magnético, o mesmo se dá no Direito, onde o norte verdadeiro, os seus valores fundamentais sub specie aeterminatis, é muita vez confundido com o norte magnético das paixões momentâneas. 3. O Direito Constitucional, para ter os pés na terra, não pode prescindir da Ciência Política. A descrição segura da realidade política, que só pode ser O poder legislativo... // 343

obtida pelos métodos de que usa essa ciência, é imprescindível para qualquer trabalho de interpretação das regras existentes ou de sugestão de regras futuras.

Discorrendo sobre o Direito como objeto de cultura, SILVA (2007, p. 16-17) também mostra como é necessária a valoração operada pelo jurídico:

O Direito é algo que o homem faz atuando segundo valorações, vale dizer que o Direito é um objeto de cultura, visto como se integra dos três elementos fundamentais de todo objeto cultural – matéria (fato, conduta), valor e forma (norma). Direito é objeto de cultura. Tem consistência real, é um ser real, e sua realidade vive e se desenvolve nos valores: sua essência é ser um sentido. Os valores (justiça, segurança, ordem, etc.) dão ao Direito sua essência, do mesmo modo que o valor do belo dá essência à estátua, à escultura, à música e aos demais objetos culturais artísticos. Os objetos culturais são complexos. Possuem matéria, sentido e forma. No dizer de Miguel Reale, são tridimensionais. Um sentido (valor) que adere à matéria e revela-se pela forma. A matéria é o suporte ou substrato do sentido; este é um valor; a forma é o modo pelo qual o valor se integra no substrato. É pela forma que compreendemos os objetos culturais. É ela que nos põe em contato imediato com o sentido dos bens de cultura. O Direito pertence, pois, ao reino da cultura, compenetra-se de vida humana; é parte do mundo histórico construído pelo espírito no entrelaçar das ações sociais. A ação social é sempre valorada, pois o homem age segundo motivos, ou fins, racionalmente escolhidos, em vista de certos valores. Ele conduz-se, tem conduta boa ou má, justa ou injusta, religiosa ou não religiosa. Se a conduta tem, como fim, o valor do justo, o sentido do bem comum, diz- se que ela é uma conduta jurídica. A conduta humana é, pois, o substrato do valor jurídico; o sentido do Direito é esse valor.

Vemos, assim, que tanto a existência de regulamentação jurídica do fenômeno da terceirização trabalhista, como a sua manutenção, reforma e mesmo a aplicação, hão de ser informados pelo valor do justo, que importa na distribuição de valores entre sujeitos de direitos que são pessoas humanas, em direção ao bem comum. Para isso, é necessário que sejam consagradas condutas que sejam consideradas boas e que sejam coibidas condutas que sejam consideradas más.

18.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Inicialmente há de se destacar que a dignidade da pessoa humana corresponde a valor de natureza ética, de cunho essencialmente filosófico, ligado diretamente com o sentido da vida. Se o ser humano é essencialmente corpo e inteligência, já definido como tal pela metafísica grega (ARISTÓTELES, 1982, p. 295, 1102a), a formulação do conceito de pessoa parte em Tomás de Aquino a do ser do 344 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade humano em relação de conformidade com seu dever ser (AQUINO, 2001, p. 748). O devir corresponde aos valores que o ser do humano naturalmente há de cumprir para dar sentido à vida, o desenvolvimento de suas potencialidades, desde as paixões corporais às faculdades da alma, em uma linha de verticalidade que o faz transcender no ser, um ser a fazer, cuja ordem e fim se há de observar, inclusive no ambiente laboral (ZENNI, 2008, p. 67). Não é por outra razão que, alinhavando os valores político-jurídicos fundamentais da República, a Constituição exige a compatibilização entre valor social do trabalho e a livre iniciativa, sugerindo, no plano dos direitos econômicos o respeito à dignidade do trabalhador, à plenitude do emprego e o respeito ao meio ambiente, incluindo o do trabalho. Assim, o exame de qualquer norma no plano juslaboralista há de ser contrastada com os valores mencionados, à luz do princípio formal da interpretação conforme à Constituição (ZENNI, 2008, p. 78). O valor social do trabalho indica que a garantia de alimentos a satisfazer as mínimas condições de existência se colhe do labor, tornando os contratos de emprego os mais sociais entre os pactos firmados, sugerindo-se uma vontade social de suas cláusulas que se sobrepõem às vontades individuais e transcendem mesmo as intenções das partes. Sabe-se que as maiores tensões históricas tiveram origem na escassez das ofertas de labuta, gerando-se um caos social que, em certo momento da experiência humana eclodiu na própria gênese do direito laboral, inaugurando-se, mesmo, um novel modelo de Estado e de Direito, interventivo e reconhecedor de hipossuficiências grupais que demandam prestações positivas.1 Contemporaneamente a Constituição galga o trabalho a direito social, e a relação de emprego conta com garantias mínimas no bojo da Carta, tratando-se de direitos fundamentais reconhecidos pela Suprema Corte como cláusulas pétreas insuscetíveis, mesmo, de reforma constitucional (BELTRAMELLI NETO, 2008, p. 70 e seguintes). Outrossim, ainda delineando os valores incorporados à Constituição, não se pode relegar a limitação taxativa à livre iniciativa, prescrita no art. 170, VI, no sentido de que o meio ambiente impõe respeito daquele que se propõe ao lucro, considerando-se como subitem, o meio ambiente do trabalho, à luz do que dispõe sistemicamente a compreensão dos dispostos nos artigos 225 e 200, VIII, da Constituição Federal. Portanto, qualquer relação trabalhista que descurar de tais bens jurídicos protegidos constitucionalmente, padecerá de inconstitucionalidade material.

1 Sabe-se que até o advento da Revolução Industrial, o labor como objeto de contrato tinha suas cláusulas fixadas pelos sujeitos contratantes, ao sabor das suas vontades, vislumbrando-se a adesão do operário a crivo burguês, até que a escorchante situação de labuta redundou em vera revolução trabalhista, dando-se ensejo ao Manifesto Comunista e, também, à Encíclica Rerum Novarum, no que, de comum, deliberaram sobre a dignidade do empregado como exigência do Direito, semeando as bases do protecionismo e do próprio Direito do Trabalho. O poder legislativo... // 345

18.4 O PRINCÍPIO DO PLENO EMPREGO COMO LIMITE À LIVRE INICIATIVA

A forma de contrato de trabalho que goza de proteção jurídica, por excelência, diz com o pacto empregatício, à medida que a subordinação lhe dá tônica, submetendo o empregado não só a estruturação diretiva do empregador, senão às suas ordens diretas, supondo-se, por conta disso, uma espécie de presunção de coação no agir do trabalhador que, por si só, está a justificar um regime de tutela estatal. E também porque o empregado mantém dependência estrutural e econômica com o empregador, ainda que lhe seja reconhecido o direito de resistência, às ordens anticontratuais e/ou indignas, está ínsita, pelo próprio elemento subordinativo, uma certa restrição à autonomia do sujeito empregado no ambiente de trabalho. No mais, o sujeito empregado, classificado pelo art. 3º, da CLT, pela pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação, mesmo dependente das diretrizes pessoais e ou estruturais do empregador, há de ser reputado pessoa em sua concepção, havendo de dignificar-se, também, na esfera do trabalho. Exatamente porque o empregador dispõe da capacidade organizacional e irradia suas diretrizes aos empregados contratados, sempre no anseio do lucro, o respeito à pessoa do empregado para evitar a sua alienação e “mecanização” na sistemática do regime do capital. Sobre essa preocupação já anunciava Leão XIII, o compromisso social assumido pela humanidade em pleno regime de livre iniciativa invocando a função social do contrato (ZENNI & SILVA, 2015)2. Em nosso sentir, a plenitude da empregabilidade recomendada pela Constituição como limite à livre iniciativa implica em que ao empresário esteja está vedada a precarização no campo das relações contratuais envolvendo o capital e o trabalho. Isso é assim, mesmo que seja ao empresário é legítimo o lucro por força principiológica fundamental (LOCKE, 2001, p. 98)3, em nome da função social da propriedade, que se traduz como compromisso ético igualmente cardeal, por força do Texto Magno (art. 5º, XXIII).

2 A doutrina social da Igreja, irradiadora das raízes do direito do trabalho, sempre objetou a pura ideia de socialização plena da propriedade privada, mas advertia ser indispensável, no âmbito da livre iniciativa, que, por questão ética, e à vista de o todo preexistir às partes, que os contratos de trabalho reconhecessem o trabalhador como um sujeito e não como objeto, buscando emancipá-lo como pessoa, ao mesmo tempo em que excogitou de sua participação nos lucros, como técnica de justiça na plano da mais valia. Já se defendeu que uma das formas de construção da mais valia social está na implantação dos planos de participação em lucros ou resultados como distribuição ética dos bens e forma justa de partilha no capital e trabalho. 3 Deve-se a Locke a empreitada primeira de afirmar a livre iniciativa como direito e garantia pública posta como reconhecimento e, ao mesmo tempo, limite imposto contra o Estado nos advento do liberalismo. De acordo com o filósofo o trabalho livre conduz à aquisição da propriedade privada e, por consequência, à sua utilização e aproveitamento, dando gênese ao lucro como direito instituído. 346 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

E mesmo que a CLT tenha reduzido a perspectiva do contrato de emprego ao “plano meramente patrimonial”, nos dizeres de MALLET (2007, p. 8), ressalta o juslaboralista mostrar-se injustificada a proposta do estatuto trabalhista, com maior razão por ser o empregado uma pessoa com direito à dignidade humana, ou seja, a leitura do vínculo de emprego passa pela repersonalização no âmbito da Constituição Federal e à luz do princípio basilar da dignidade da pessoa. ZENNI (2008, p. 60), por sua vez, demonstra a existência de doutrina de que a dignidade da pessoa humana ressignificou os princípios de direito do trabalho, dando-lhes dimensão personalíssima que, até o advento da Constituição em 1988, eram diretivas, sobretudo, de cunho patrimonial. Inegável que a Consolidação já trazia preocupação com a preservação da dignidade do trabalhador, conquanto fosse esse o valor a lançar luzes na edificação do direito do trabalho em seu nascedouro. Para que se veja isso basta a leitura da Encíclica Rerum Novarum. No escopo de proteger o empregado como pessoa, a CLT, alhures já tratava de priorizar um ambiente de trabalho hígido, saudável e protegido de todos os agentes de risco, impondo ao empregador cuidados com a preservação da saúde, segurança e medicina no trabalho, chegando à previsão das medidas máximas de interdição da atividade econômica quando o espaço da labuta gera risco à vida e ou integridade física aos empregados. Enfim, desde 1943, uma preocupação cardinal se enfeixa na CLT, superando a visão patrimonialista dos vínculos contratuais até então vigorantes, vertendo normas de proteção aos direitos de personalidade do trabalho, inclusive com a intervenção direta do Estado, via Ministério do Trabalho e Emprego, cujas linhas evidenciam, a um só tempo, a novel postura do Estado Democrático reconhecida a partir do direito do trabalho, de intervenção na esfera privada, dotando o grupo social de empregados de bens jurídicos, em razão de sua hipossuficiência4. Com efeito, se a Constituição se propõe a blindar o sujeito empregado de toda “coisificação”, dotando-lhe de uma condição pessoal, exigindo que haja compromisso com preservação do meio ambiente, inclusive o do trabalho, em leitura sistêmica dos artigos 225 e 198, VIII, da Constituição Federal, além de cercear o escopo do lucro (inciso VI, do art. 170), a geração dos adicionais no inciso XXIII, do art. 7º, haveria de ser entendida como uma espécie de desestímulo a captação da vantagem econômica na exploração do risco à saúde e vida dos empregados (ZENNI; OLIVEIRA, 2009, p. 88).5

4 O Capítulo da CLT “Da Segurança e da Medicina no Trabalho” tem hoje a denominação científica de “Segurança e Saúde do Trabalho”, já que contém regras referentes à saúde do trabalhador que não são estritamente de medicina do trabalho, como, por exemplo, as referentes à ergonomia do trabalho, previstas na Norma Regulamentadora (NR) 17, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A Medida Provisória nº 696, de 2 de outubro de 2015, fundiu o MTE com o Ministério da Previdência Social (MPS), resultando no Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS). 5 Há quem faça a defesa das normas inconstitucionais entronizadas na Constituição (BACHOF, 2008, p. 48-70), de que seria exemplo essa do inciso XXIII, do art. 7º, ao criar os adicionais às O poder legislativo... // 347

Todavia, com fixação de adicionais em níveis parcos, e o reconhecimento da natureza salarial da verba e reflexos remuneratórios, torna-se, ao contrário, um atrativo ao empregado o exercício da labuta em ambiente de risco, sem embargo de que o próprio empregador, fazendo uma planilha de custo e risco, no engajamento das regras de direito, prefere manter a precariedade do ambiente de trabalho mediante quitação dos adicionais respectivos a engendrar investimentos custosos para evitar a periclitação da vida ou da saúde dos trabalhadores, subvertendo a noção de pessoa, reduzindo-a ao critério utilitarista presente na cultura pós-moderna (ZENNI; ANDREATA FILHO, 2010). De todo modo o meio ambiente do trabalho tem sido aplacado pela doutrina juslaboralista como tema de vanguarda e das mais relevantes preocupações, sobretudo por inteirar-se da vida e integridade físico-psíquica dos trabalhadores. Leda Maria Messias da SILVA (2014), em passagem também citada no livro que publicou em conjunto com Marice Taques Pereira (SILVA; PEREIRA, 2013, p. 25), assim o delimita que

[...] o meio ambiente do trabalho está contido no meio ambiente geral, o qual, na esfera trabalhista, e, especialmente, do contrato de trabalho deve-se compreender como meio ambiente do trabalho não só o local onde o trabalhador presta o seu serviço, mas também como parte do meio ambiente do trabalho, todos os fatores internos ou externos que possam interagir com o trabalho e influenciar de alguma forma esse meio ambiente, contribuindo para o seu equilíbrio ou desequilíbrio.

A decência no meio ambiente laboral exorta o empregador à prevenção dos riscos da atividade e fomenta a prática fiscalizatória dos órgãos estatais, mormente o Ministério do Trabalho e Emprego, sem embargo da atividade de custódia do Ministério Público do Trabalho. Raimundo Simão Melo (2013, p. 66) comenta sobre a prevenção dos riscos no meio ambiente de trabalho como parte do “princípio constitucional da dignidade humana e os valores sociais do trabalho”, aludindo que “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado”. A seguir (2013, p. 68), implementa:

[...] há degradação das condições de trabalho no Brasil e em países chamados emergentes, submetidos francamente às regras internacionais, com aumento dos acidentes e doenças do trabalho. Diante disso, o valor ou princípio da dignidade da pessoa humana deve ter sentido de normatividade e cogência e não de meras cláusulas “retóricas” ou de estilo ou de manifestações de bons propósitos, daí por que é preciso dar tratamento adequado aos instrumentos de efetivação dos direitos que poderão

atividades de risco, quando a preocupação central do direito constitucional do trabalho é de preservar a dignidade da pessoa humana. 348 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

realmente garantir a dignidade do trabalhador e o valor verdadeiramente social do trabalho, como estabelece nossa Carta Maior.

De toda sorte um constructo de sustentabilidade no meio ambiente do trabalho ancora o ideário da mais valia social, como alinhavar de interesses. E no direito do trabalho a vala para evitar a implantação arbitrária do socialismo em que os bens são, pura e simplesmente repartidos, sem levar em consideração o mérito na distribuição do justo e o prestígio à autonomia (ZENNI; OLIVEIRA, 2009, p. 72). A tal respeito, a lição de Segadas Vianna (SÜSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA; TEIXEIRA, 2003, p. 39), referindo-se ao final do século XIX, e o surgimento do direito do trabalho pelas orientações da Encíclica Rerum Novarum:

[...] o Papa Leão XIII publica a Encíclica “Rerum Novarum” e proclama a necessidade da união entre as classes do capital e do trabalho, que têm imperiosa necessidade uma da outra; não pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital. A concorrência traz consigo a ordem e beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo, não podem resultar senão confusão e lutas selvagens. A palavra do Sumo Sacerdote ecoou e impressionou o mundo cristão, incentivando o interesse dos governantes pelas classes trabalhadoras, dando força para sua intervenção, cada vez mais marcante, nos direitos individuais em benefício dos interesses coletivos.

No tempo presente, o pontificado de FRANCISCO (2014) trouxe a exortação apostólica Evangelii Gaudium, lendo-se o que segue:

189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.

O início de tal passagem é lembrada por PINTO (2014, p. 67), relacionando-a ao “[...] legislador, o magistrado, o doutrinador que fizeram da propriedade privada um dogma absoluto a serviço do proprietário e agora lêem o Papa”. Posto isso não paira dúvida de que a livre iniciativa há de consorciar a expectativa do lucro à realização da pessoa humana no âmago da exploração da atividade econômica, máxime pela função social da propriedade privada, imperativo erigido na Constituição no art. 170, III, da Constituição Federal.

O poder legislativo... // 349

18.5 PESSOA E PERSONALIDADE HUMANA

A preocupação central do artigo constitucional antes mencionado está na construção da personalidade no mundo do trabalho diante do capitalismo selvagem que tem assolado a humanidade presentemente. Também se fez assentar que a origem do termo pessoa é de cunho religioso, pautada na doutrina da Igreja, especialmente no Concílio de Nicéia, vindo a ser tema de grande elucubração na Suma Teológica do doutor angélico (AQUINO, 2001). Em poucas ocasiões na história da humanidade o princípio da dignidade da pessoa fez ecoar seu conteúdo essencial, ressalvando que, inicialmente, coube ao próprio tomismo nutrir o direito com igualdade entre pessoas, a partir da exigência de dignidade entre todos os seres irmanados no Criador. E num segundo instante, já em plena modernidade de segunda fase, coube ao Papa LEÃO XIII (2015) recorrer ao princípio da dignidade humana para tutelar a classe operária, tão massacrada pela obsessão burguesa ao lucro, como se lê da Encíclica Rerum Novarum:

Quem tiver na sua frente o modelo divino, compreenderá mais facilmente o que Nós vamos dizer: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude é o património comum dos mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece inclinar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados (20): convida com amor a virem a Ele, a fim de consolar a todos os que sofrem e que choram (21); abraça com caridade mais terna os pequenos e os oprimidos. Estas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma altiva do rico e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e inspirar-lhes resignação. Com elas se acharia diminuído um abismo causado pelo orgulho, e se obteria sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e as vontades se unissem na mesma amizade.

Nesse instante, aliás, recorrendo-se ao principio da isonomia material e à exigência de tratamento díspar à medida das desigualdades reais que circunscreviam a realidade econômica e técnica nas relações de trabalho, surge o Direito do trabalho como remédio aos males do liberalismo de da postura pálida do Estado na preservação da dignidade operária. GONÇALVES (2008, p. 64) formula um conceito de pessoa: “[...] é aquele ente que, em virtude da especial intensidade do seu acto de ser, autopossui a sua própria realidade ontológica, em abertura relacional constitutiva e dimensão relacional unitiva”. Outrossim, personalidade é “[...] o conjunto das qualidades e relações que determinam a pessoa em si mesma e em função da participação na ordem do ser, de forma única e singular” (GONÇALVES, 2008, p. 68). 350 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Tais conceitos descrevem a realidade relacional da pessoa humana e da personalidade que ela detém. Isso significa dizer que tal realidade se concretiza na vida em sociedade, nas relações que os seres humanos mantêm uns com os outros, cada um com a sua participação individual, e construindo, todos, uma realidade social unitária. Vistos tais conceitos de pessoa e de personalidade, forçosamente há de ser postular garantias fundamentais sem as quais a periclitação do ser detrai a condição humana do sujeito. No entorno da pessoa gravitam os direitos fundamentais, inclusive os de natureza social, como de matriz trabalhista. Não é demais destacar que os direitos humanos, outrora postularam- se bens de natureza ético-cristã, sucessivamente a Revolução Francesa os torna conquistas políticas, imprimindo-lhes efeitos vinculantes pela via da positivação jurídica até serem concebidos como direitos fundamentais a requestarem máxima efetividade. Registre-se, por oportuno, que a plenitude do emprego, como opróbrio à selvageria do capitalismo, alçado a bem jurídico na Constituição, como já se aludiu, esparge imediatamente eficácia, tanto no âmbito positivo, no sentido de concebê-lo direito subjetivo a ser advogado judicialmente, como, ainda, no sentido negativo, empecendo uma interpretação a contrario ao baluarte consagrado ao mesmo tempo em que reprova energicamente legislação infra-constitucional da precarização do pacto empregatício em direitos, a par de conter o retrocesso social (BARCELOS, 2008).

18.6 O SENTIDO DA VIDA E O PAPEL DO DIREITO

A linha de verticalidade e transcendência que persegue o ser humano na sua vereda à dignidade exorta aos valores, inicialmente os que dão sentido a corporeidade, rematados por paixões, alhures, pelos clássicos, onde o prazer é o afeto e o estético na relação sujeito e sentido; mas não se esgota no útil que espoca da matéria, tampouco, conforma-se com o sentido de uma existencialidade mínima, cuja característica está em avaliar o vital, expandindo-se no que há de permanente e imperecível, o ético e o verdadeiro, patamar a conferir a felicidade (ARISTÓTELES, 1982, p. 288-289, 1100a). Menos metafísico é FREUD (2010, p. 63-64), narrando os aspectos superficiais, e, portanto, puramente psíquicos da cognição humana ao esclarecer sobre uma phisys que o leva a agir, designando-a de princípio do prazer. Na visão da psicanálise esse prazer não se preenche, é sempre uma lacuna a exortar o desejo, como se o desejo de desejar fosse tateando às cegas, pela via da ação, a vida humana. De toda maneira, este prazer está associado à vida humana, como passa a considerar detidamente:

Aquilo que em seu sentido mais estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece O poder legislativo... // 351

apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade. O sofrimento ameaça de três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que provém desta última fonte talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro; tendemos a considerá-lo como um ingrediente de certo modo supérfluo, embora não seja menos fatalmente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.

Enfrentada a teoria freudiana da psicanálise, afeiçoa-se ao desejo a ação para atingir-se o prazer, a despeito de interceptar o exame do agir no plano psicológico, relegando a esfera do ético e do metafísico por seguir as ensinanças nietzschianas de que no recôndito do ser habita um Dionísio que impede a situação derradeira de desespero. Mais otimistas são as contribuições de JUNG (1980, capítulo IV):

A energia psicológica tem o capricho de querer satisfazer suas próprias exigências. Por maior que seja a quantidade de energia existente, não podemos aproveitá-la enquanto não conseguirmos estabelecer um fluxo. O problema do fluxo é uma questão eminentemente prática que se coloca na maioria das análises. Por exemplo, no caso propício de haver um encaminhamento da energia disponível, a chamada libido, para um objeto razoável, a nossa tendência é acreditar que a transformação foi operada por um esforço consciente da vontade. Mas nos enganamos redondamente. Nem com o maior esforço do mundo conseguiríamos isso, se já não houvesse simultaneamente um fluxo natural no mesmo sentido. A importância do fluxo é constatada quando, apesar dos mais desesperados esforços e de o objeto escolhido e a forma desejada serem os mais convincentes e sensatos possíveis, não se consegue operar a transformação, produzindo apenas uma nova repressão.

JUNG (1980, capítulo IV) vai esclarecer, ainda, o seu conceito de libido como energia psíquica, ou “o mesmo que intensidade energética de conteúdos psíquicos.” A busca da felicidade é tema que tem ocupado os filósofos desde há muito. Para AGOSTINHO (2014, capítulo III, parágrafo 21, in fine), a felicidade consiste em ter Deus favorável a si, e Deus favorece a quem O procura, o que faz com que a procura em si já seja um encontro do indivíduo com Deus, já que a própria procura atrai o favor divino: “[...] quem já encontrou Deus e tem-n’O favorável, é feliz; quem procura Deus, tem-n’O favorável mas ainda não é feliz; pelo contrário, quem se afasta de Deus, por vícios e pecados, não só não é feliz como não vive com o favor de Deus”. 352 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Por outro lado, em concretização mundana da dignidade, a pessoa humana ter pelo menos a possibilidade de buscar a felicidade na relação de emprego na qual se insere é algo sem o que não se cogita que possa ter seu fluxo psicológico de encaminhamento energético com destino a um objeto (ou seja, motivação) efetivamente concretizado. MASLOW (s/d, p. 28) verbera que é preferível expressar e encorajar a natureza humana a suprimi-la e destaca sintomaticamente que uma natureza humana que guie e ancore o sujeito é reflexo de crescimento “sadio, fecundo e feliz”. Se, pelo contrário, esse “[...] núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido, ela adoece, por vezes de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente, algumas vezes mais tarde”6. Portanto, o exercício do labor há se ser caucionado por medidas ético-jurídicas que permitam esse desabrochar da natureza humana, desaguando em deveres limitantes ao Estado no sentido de reconhecer a legitimidade de qualquer trabalho lícito, o que já se pontua no art. 5º, XIII, da Constituição Federal, mas também de fixar-se limites e garantias horizontais, tarefa cabente ao direito do trabalho, bastando a leitura do caput do art. 7º, da Constituição Federal, para se escrutar os deveres do tomador em relação ao empregado, retratando, ademais, que estes abordes mínimos não esgotam a proteção às relações de trabalho quando deveres mais favoráveis forem estendidos aos empregados, sejam do plano individual ou do coletivo (princípio da autonomia coletiva de que cogita o art. 7º, XXVI, da Constituição Federal). E, ainda, uma imposição de natureza afirmativa dos grupos intermediários, como sindicatos, associações, e o Estado, como grupo melhor aparatado a interceder em prol da classe trabalhadora. O sentido de vida, e sua eminente dignidade, portanto exorta um aporte à integridade físico-psíquica do trabalhador, sem bastar à metafísica humana que, como projeto a-fazer, implica em espaço ético dentro do qual as potencialidades da alma transcendam, e isso há de ser viabilizado no ambiente de trabalho.

18.7 O GARANTISMO TRABALHISTA E O SEU ABRANDAMENTO PELO FENÔMENO DA FLEXIBILIZAÇÃO

Alhures já aduzia NASCIMENTO (1997, p. 121-122) ao garantismo trabalhista que enxerta a Constituição Federal, fixando impediência à tentativa de ajuste contratual flexível, porquanto uma vontade social imanta as relações empregatícias, como se nota de seu escólio:

[...] que supõe uma concepção de direito do trabalho inflexível e indisponível quanto a determinados direitos, que, por serem de ordem pública social e fundamentais para o trabalhador, são assegurados, pela legislação, como mínimos e inderrogáveis, garantia essa da qual não são cercados os demais direitos acima desse patamar imodificável.

6 O autor enumera ali pressupostos básicos de seu ponto de vista acerca do que considera consistir uma “psicologia da saúde”. O poder legislativo... // 353

Não descura o mesmo autor (2011, p. 117-118) de certa tendência atual no sentido de que o protecionismo implacável pudesse ceder em algumas hipóteses, dadas as necessidades sócio-econômicas próprias de uma sociedade dinâmica, considerando:

É importante para o País o funcionamento das empresas para produzir bens e prestar serviços à sociedade e para abrir vagas para os trabalhadores. O direito do trabalho é complexo. Tem como principal função a tutela do trabalhador mas não pode ignorar as necessidades substanciais das empresas. Esse atendimento é necessário. As empresas precisam crescer e impulsionar a economia para dar maior número possível de vagas de trabalho.

Esse dirigismo trabalhista cedeu parcialmente, aos olhos do saudoso mestre (2011, p. 119), diante de três paradigmas: “[...] as crises econômicas, a redução de custos como meio de enfrentamento da competição empresarial e o avanço tecnológico que permite maior produção com menor número de empregados.” Resta escrutar se a terceirização, enquanto técnica de flexibilização trabalhista, pode ser admitida pelo sistema jurídico pátrio, mormente nas condições em que está elaborado pelo Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015, já aprovado pela Câmara dos Deputados.

18.8 A TERCEIRIZAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

A rigor, o direito brasileiro admite a terceirização, desde que não suscite a ideia de precarização das relações empregatícias, porquanto nesse modelo estaria a ofender as barreiras postas à livre iniciativa. A terceirização é, com efeito, uma forma de flexibilização do direito do trabalho, porque perverte a ordem de relação presente no art. 2º, da CLT, acometendo a terceiro os requisitos do patrão, tais como a contratação, remuneração, poder diretivo e os riscos da atividade, a despeito de o empregado render a energia laborativa ao tomador. Nesse sentido é uma flexibilização horizontal, dando-se no processo de contratação da mão-de- obra obreira. O fenômeno passa a ser vislumbrado no direito brasileiro na década de oitenta, agudizando-se nos anos noventa, entrementes a terceirização nasce pela implantação do modelo toyotista de produção, em que a esteira e o cadenciamento linear são substituídos pela descentralização produtiva e a simultaneidade dos processos, designados de just-in-time, pelo que partes do setor de produção são deslocados, migrando à rede produtiva. Teoricamente a terceirização é procedimento flexibilizatório implicitamente admitido no texto constitucional, porquanto a livre iniciativa pressupõe que o empregador articule o processo estrutural para captação do lucro, dirigindo o negócio como lhe aprouver, desde que observados os limites consubstanciados no art. 170, da Constituição Federal. 354 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Maurício Godinho Delgado aponta a legalidade da terceirização e seu surgimento no direito brasileiro a partir do Decreto-Lei 200/67 e Lei 5.645/70, a propósito do recrutamento de labuta pela Administração Pública, no âmbito das atividades executivas ou operacionais relacionadas à esfera pública (DELGADO, 2014, p. 453, 455 e seguintes)7. A precariedade do direito positivo fez eclodir o entendimento sumulado no Enunciado 256, do TST, limitando as terceirizações àquelas provenientes de expressa disposição legal, embora não expansiva às terceirizações no setor público. Após o surgimento da terceirização prevista pela legislação na esfera de serviços de apoio em vigilância bancária e nas limpezas e zeladorias, o TST encorpou em Súmula o expediente da terceirização no tegumento do Enunciado n. 331, admitindo, em síntese, que somente nas atividades meio o procedimento da flexibilização horizontal é legítimo, e, ainda assim, atrai a responsabilidade subsidiária do tomador do trabalho, excepcionando-se a Administração Pública na licitação, cuja responsabilidade recairá ao Ente Público se for comprovada a negligência na averiguação do repasse de valores nos pagamentos dos licitados a seus empregados. A terceirização nas atividades fim conduz ao reconhecimento direto da relação empregatícia com o tomador do trabalho. Entrementes, já na vigência da Súmula 331, do TST, a essência da terceirização denuncia técnica de precarização das relações de emprego, conquanto advenha de um sistema de otimização engendrado pelo capitalismo onde o empregador angaria aumento produtivo e redução de custos pela via da contratação de mão de obra. Obviamente que a fragmentação sindical conduz à redução de salários e benefícios coletivamente conquistados (FRANCO; DRUCK, 2007, p. 65). Noutra senda, são diversos os expedientes de fraude no âmbito das terceirizações, exemplificando-se com as cooperativas de trabalho, hodiernamente regidas pela Lei 12.690, de 19 de julho de 2012.

18.9 AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES DA TERCEIRIZAÇÃO NO PROJETO DE LEI N. 4.330/04 (AGORA PROJETO DE LEI DA CÂMARA N. 30/2015)

De plano os doutrinadores maculam o projeto por vislumbrarem nele grosseira inconstitucionalidade (AMORIM, 2015). Se alhures a terceirização ultra legis redundava em macroscópica fraude à luz da interpretação do TST, ressalvando-se o expediente a partir do contrato temporário de trabalho (Lei 6.019/74), nos serviços de vigilância (Lei n. 7.102/1983), e asseio, conservação e limpeza, conforme exortado na Súmula 256, do TST, a partir de uma realidade sócio-econômica implantada pelo modelo toyotista de produção, sucederam-se práticas flexibilizatórias

7 O autor deixa claro que tais hipóteses evidentes de terceirização, mais modernas em relação à edição da CLT, somam-se àquelas mais discretas já previstas no texto original consolidado, da empreitada e da subempreitada, incluída a pequena empreitada. O poder legislativo... // 355 que desaguaram na admissibilidade da terceirização em qualquer atividade meio (Súmula 331, do TST). A possibilidade de terceirização dar-se-ia em todas as atividades fins, bastando leitura atenta dos arts. 2º e 3º, do projeto em discussão. Releve-se o tegumento dos artigos 15 e 17 § 5º ao preverem a responsabilidade solidária entre contratante e contratada pelo inadimplemento de obrigações previstas nos incisos I a VI do art. 16 e por contribuições previdenciárias. Ainda assim, no escólio de AMORIM (2015) há “[...] afronta diretamente à Constituição da República, por violar o necessário equilíbrio entre os princípios constitucionais conflitantes, privilegiando os interesses expansivos do capital em detrimento do sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais dos trabalhadores”, valorizando sobremodo a livre iniciativa, alargando a “[...] liberdade de contratação de serviços para além do permissivo constitucional, já que submete a sacrifício desproporcional os princípios do valor social do trabalho e da função social da propriedade”. Ocorre que a terceirização nas atividades fins representa, indubitavelmente, um retrocesso à proteção aos direitos personalíssimos, ignorando o principal elemento da dignidade da pessoa enquanto valor supremo, porque derroga a inexorável presença da igualdade no mundo do trabalho e derriça o direito coletivo do trabalho. Essas objurgações não passaram despercebidas por Barros (2011, p. 358):

Tanto a Justiça do Trabalho como o Ministério Público não tem medido esforços no combate à terceirização de serviços ligados à atividade-fim da empresa fora dos limites traçados pelo Enunciado nº 331 do TST. Entre os malefícios da terceirização em atividade-fim das empresas encontram-se a violação ao princípio da isonomia, a impossibilidade de acesso ao quadro de carreira da empresa usuária dos serviços terceirizados, além do esfacelamento da categoria profissional.

A terceirização indiscriminada desembocará na inevitável migração dos empregados permanentes e ancorados nos quadros funcionais dos tomadores às labutas por terceirização, enfraquecendo sensivelmente a garantia de direitos, mormente pela cisão das categorias profissionais e a palidez das negociações coletivas. O próprio sentido de categoria se esvaziaria, cambiando os empregados em prestadores de serviços e os desqualificando como profissionais categorizados, como, por exemplo, bancários, professores, comerciários. Nem se releguem os aspectos previdenciários subjacentes à terceirização, que também serão precarizados, não só em virtude de as rendas serem aviltadas e, consequentemente, interferirem nas receitas previdenciárias, como, ainda, causará um curto-circuito no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e no Sistema Único de Saúde (SUS), dadas as perdas de receitas parafiscais e o número inigualável de acidentes de 356 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade trabalho e doenças profissionais vislumbrados nas relações terceirizadas, cujas estatísticas já são alarmantes. Tratar o empregado como dado, estatística, ou número no cálculo do engajamento sócio-econômico é, naturalmente, relativizar valor absoluto da dignidade da pessoa humana, com o que o direito não pode convolar.

18.10 A NECESSIDADE DE UMA ÉTICA ALTRUÍSTA NA ELABORAÇÃO E NA APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E DO DIREITO DO TRABALHO

Segundo SARMENTO (2010, p. 332-333), tanto o Direito quanto a Política “[...] são praticados por homens que bem andarão ao adotar uma ética altruísta, cada indivíduo voltado não somente para si próprio, mas para todos e cada um dos demais integrantes da comunidade, valorizando-nos todos uns aos outros como pessoas humanas que somos.” O trabalho como direito social exige a realização do bem comum, como imperativo ético de relações intersubjetivas de distribuições justas dos valores, confere ao empregado a manutenção própria e familiar, fomentando um clima de estabilidade com pulverização ao seio comunitário, sem prejuízo de que qualquer espaço comum de realização ética é, também, uma oportunidade para transcendência horizontal, seja no plano da verdade, da justiça ou da beleza, eis o sentido permanente que requesta a dignidade da pessoa. Se as relações trabalhistas passam pelo procedimento de precarização, com garantias menos expressivas, diluição de classes e representatividade, e tudo em nome da pujança da livre iniciativa, a contrapartida da responsabilidade social da propriedade, o denodo à valorização social do trabalho e, enfim, a dignidade do empregado, não passarão de postulados constitucionais sem eco, menos ainda ampla efetividade, frustrando os objetivos da teoria dos direitos fundamentais. Assim, mesmo com o abrandamento do garantismo trabalhista, mencionado por Amauri Mascaro Nascimento conforme acima se referiu, aspectos fundamentais da proteção da dignidade da pessoa humana hão de ser preservados pelo direito do trabalho, como os mencionados por último. Conforme se demonstrou, tais aspectos fundamentais da proteção da dignidade da pessoa humana não são preservados pelo Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015, anteriormente chamado de Projeto de Lei n. 4.330/2004, aprovado na Câmara dos Deputados e em trâmite no Senado Federal quando da elaboração do presente artigo. Por outro lado, a proteção da dignidade da pessoa humana do trabalhador há de ser consagrada pela atuação das instituições trabalhistas do país, cada qual com características e atribuições próprias, como adiante será visto. Passemos a ver, agora, a atuação do Poder Legislativo da União no que toca ao tema em questão.

O poder legislativo... // 357

18.11 A ATUAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO FEDERAL NA REGULAMENTAÇÃO DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA QUE SE CONSIDERA ACEITÁVEL QUE EXISTA NO PAÍS

A competência para o trato de temas pertinentes ao trabalho é, no Brasil, da União Federal (Constituição, art. 22, I). A elaboração da legislação é realizada segundo os ditames do processo legislativo federal, que distribui competências entre o Presidente da República (artigos 76 e 84) e o Congresso Nacional (art. 48), suas duas Casas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), membros (Deputados e Senadores) e Comissões, na forma dos respectivos regimentos internos. Assim sendo, o Poder Legislativo federal também é competente para a regulamentação da flexibilização trabalhista que se considera justo que exista no país, à luz dos valores constitucionais do trabalho, da livre iniciativa, da proteção do pleno emprego e da dignidade da pessoa humana, antes já vistos.

18.11.1 Aspectos históricos da competência legislativa para regulamentação do trabalho humano subordinado

O surgimento de tal competência legislativa está ligada ao próprio surgimento do Direito do Trabalho. NASCIMENTO (1997, p. 9-10), em parte intitulada “A indignidade das condições de trabalho subordinado”, descreve as condições de trabalho no início da Revolução Industrial:

A imposição de condições de trabalho pelo empregador, a exigência de excessivas jornadas de trabalho, a exploração das mulheres e menores, que constituíam mão-de-obra mais barata, os acidentes ocorridos com os trabalhadores no desempenho das suas atividades e a insegurança quanto ao futuro e aos momentos nos quais fisicamente não tivessem condições de trabalhar foram as constantes da nova era no meio proletário, às quais podem-se acrescentar também os baixos salários.

No contexto histórico e social mencionado, em 1839, a Câmara dos Comuns da Grã-Bretanha publicou volume contendo relatórios dos quatro Factory Inspectors então existentes, “para os efeitos das disposições educacionais” do Factory Act (GRÃ-BRETANHA, 1839). Sobre a crítica do liberalismo e o advento do Estado Social discorre BONAVIDES (2014, p. 61):

[...] como a igualdade a que se arrima o liberalismo é apenas formal, e encobre, na realidade, sob o seu manto de abstração, um mundo de desigualdades de fato – econômicas, sociais , políticas e pessoais – termina “a apregoada liberdade, como Bismarck já o notara, numa real liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de contas, tão-somente a liberdade de morrer de fome”. 358 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Mais adiante, complementa o autor (idem, p. 62):

O liberalismo de nossos dias, enquanto liberalismo realmente democrático, já não poderá ser, como vimos, o tradicional liberalismo da Revolução Francesa, mas este acrescido de todos os elementos de reforma e humanismo com que se enriquecem as conquistas doutrinárias da liberdade. Recompô-lo em nossos dias, temperá-lo com os ingredientes da socialização moderada, é fazê-lo não apenas jurídico, na forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um liberalismo que contenha a identidade do Direito com a Justiça.

É também crucial para a compreensão da evolução do Direito do Trabalho no Século XX a análise das condições de vida na Europa no pós- Primeira Guerra Mundial, que vieram a se constituir em um dos maiores causadores da Segunda Guerra Mundial. Muitos historiadores chegam a considerar ambas como uma só guerra, com um hiato de paz entre um e outro momento. O péssimo resultado do Tratado de Versalhes foi o de pavimentar o caminho para a Segunda Guerra Mundial. Isso aconteceu em decorrência da imposição, pelos vencedores, de pesadas reparações de guerra à Alemanha, considerada responsável pela deflagração da Primeira Guerra Mundial e dos prejuízos dela decorrentes (NICOLSON, 2014, a partir do 3º parágrafo do capítulo 8 do Livro I). Com efeito, a depauperação da sociedade alemã causada pela aplicação de suas disposições é causa direta da Segunda Guerra Mundial, já que levou ao surgimento e à ascensão do nazismo. Por outro lado, um bom resultado do Tratado foi a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em razão do reconhecimento internacional da importância da organização do trabalho para a manutenção da paz entre as nações. A tal respeito, Rodgers, Lee, Swepston e Van Daele (2009, p. 2-3) afirmam que dois detonadores provocaram a criação da OIT: a guerra e a revolução, já que uma característica do século XX em relação aos séculos anteriores foi o de que a atividade humana parecia se estruturar intensamente em torno da guerra e do trabalho, em parte porque tanto um quanto outro começaram a adquirir dimensão mundial. Conforme evidenciam tais autores, foi em decorrência das marcas obscuras deixadas pela Primeira Guerra Mundial que os líderes políticos internacionais se abriram a uma mudança fundamental tanto na política como na economia e na sociedade em geral, inclusive com a criação de instituições de caráter internacional, como a OIT, que pudessem unir a todos os países em um esforço comum8.

8 Na p. ix há a importante menção de Juan Somavia, advogado e diplomata chileno que então ocupava o cargo de Diretor-Geral da organização, ao fato de que a OIT recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 1969. O livro deu início a um projeto denominado “Centenário”, para comemorar o 100 anos da organização, que serão completados em 2019. O poder legislativo... // 359

Foi objetivo da criação da OIT, constante do preâmbulo da sua Constituição, o de “[...] estabelecer a paz universal, que não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social”. Base fática da criação da OIT, constante do mesmo preâmbulo, é a de que: “[...] existem condições de trabalho que implicam para um grande número de pessoas em injustiça, miséria e privações” e “[...] a não adoção por uma nação qualquer de um regime de trabalho realmente humanitário é um obstáculo aos esforços dos demais, desejosos de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios países”.9 No Brasil, já tratava da regulamentação do trabalho o Decreto nº 1.313, de 17 de Janeiro de 1891, que estabelecia, conforme a ortografia da época, “providencias para regularizar o trabalho dos menores empregados nas fabricas da Capital Federal.” Por meio do mencionado decreto, o Chefe do Governo Provisório instituía, já pelo art. 1º, a “[...] fiscalização permanente de todos os estabelecimentos fabris em que trabalharem menores, a qual ficará a cargo de um inspector geral, immediatamente subordinado ao Ministro do Interior”. A tal inspetor era garantido, desde a época, o “[...] direito de livre entrada em todos os estabelecimentos fabris, officinas, laboratorios e depositos de manufacturas da Capital Federal”, no que vinha a ser o precursor do livre acesso que hoje os agentes de inspeção do trabalho têm, por força do art. 630, § 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho. Entretanto, tal legislação precursora foi implantada por um governo revolucionário, ainda sem constituição formalmente promulgada (o que viria a acontecer daí a dias, em 24 de fevereiro de 1891), e tendo em vista a proteção dos menores, não do trabalho subordinado. Como esclarece FRANCO (1960, p. 165, apud SÜSSEKIND, 2003, p. 30), a respeito da Constituição de 1891:

A constituição brasileira, esteada na doutrina vigente nos Estados Unidos, achava que “a legislação trabalhista infringia o princípio da liberdade contratual e que, além disso, ainda que fosse permitida, seria da competência dos Estados”.

Entretanto, lembra ainda SÜSSEKIND (2003, p. 30) acerca dos primórdios da competência legislativa trabalhista brasileira:

A mensagem do Presidente ARTUR BERNARDES propondo emenda constitucional não cogitou da “questão social, apesar da vigência do Tratado de Versalhes, assinado por plenipotenciários do Governo brasileiro. Mas a famosa conferência de RUI BARBOSA no Teatro Lírico, em 1920, defendendo a competência do Congresso Nacional para legislar sobre a proteção ao trabalho, irradiou, desde então, ampla adesão à sua proposição.

9 A Constituição da OIT, a Declaração de Filadélfia, a Declaração da OIT Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e o Regulamento da Conferência Internacional do Trabalho são, considerados como os documentos fundamentais da organização. 360 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Eis por que a reforma de 1926 atribuiu competência ao Congresso para “legislar sobre o trabalho” (art. 34, n. 28).

Lembra o autor, contudo, que a reforma constitucional não impulsionou a legislação social-trabalhista até o advento da Revolução de 1930. Já a partir desta, “todas as Constituições dispuseram sobre os direitos sociais do trabalhador” (p. 33).

18.11.2 Natureza da atividade legislativa: representação popular e barreira à intervenção direta do corpo eleitoral

Lembrando os autores Augusto Barbera e Montesquieu, José Afonso da Silva (2007, p. 58) esclarece a razão de ser, nas democracias, do Poder Legislativo. Discorre ele:

A idéia de representação é que responde pela origem e desenvolvimento do Poder Legislativo. Mas, como disse Barbera, tal idéia-força (da representação) mostrou logo uma ambigüidade que se manterá intacta ao longo do tempo: de um lado é “porta aberta” para os setores sociais até então marginalizados na sociedade política; de outro, é “barreira” a um poder de decisão e de intervenção direta do corpo eleitoral. O mesmo Montesquieu exprime eficazmente tal ambigüidade: “Pois que em um Estado livre todo homem que se reconhece uma alma livre deve ser governado si mesmo, seria necessário que o povo, em corpo, possuísse o poder legislativo; mas assim como isso é impossível nos grandes Estados e é sujeito a muita desordem nos pequenos, ocorre que o povo faça por meio dos seus representantes tudo aquilo que não pode fazer por si próprio”.10

Assim, para José Afonso da Silva, a natureza do Poder Legislativo é em primeiro lugar a da representação do povo, ao mesmo tempo incluindo em seu seio setores que antes da sua existência enquanto Poder estavam à margem da sociedade estatal. Por outro lado, o Poder Legislativo tem também a natureza de barreira à atuação direta do povo. Se existe o Poder Legislativo representativo do povo, veda-se a ele a ação direta na sociedade política. Como lembrou Montesquieu, isso decorre da impossibilidade, em grandes Estados, e mesmo da desordem em que implicaria nos pequenos Estados, de o povo criar a lei sem que seja por meio de seus representantes. Daí, segundo José Afonso da Silva, o Poder Legislativo tem dupla natureza: a de representação do povo e a de barreira à atuação legislativa direta do povo. No âmbito do presente artigo importa notar que o Projeto de Lei sob análise importa em flagrante tentativa de diminuição da efetivação que os

10 A edição do seu clássico sobre o processo constitucional de formação das leis aqui utilizada é anterior à vigência da ortografia oficial atual. As obras referidas por José Afonso da Silva são as seguintes: Augusto Barbera, Una riforma per la Repubblica, Roma, Editori Reuniti, 1991, p. 74 e Montesquieu, Espírito das Leis, Liv. XI, Cap. VI, apud Augusto Barbera, ob. cit., p. 75. O poder legislativo... // 361 atos estatais, inclusive os legislativos, devem dar à dignidade da pessoa humana trabalhadora. Apesar disso, como visto, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados. É sabido que a característica diferencial da Câmara dos Deputados frente ao Senado Federal é representar proporcionalmente o eleitorado (art. 45 da Constituição Federal), tendo os Deputados mandatos de 4 anos. Por sua vez, a característica do Senado Federal é a de congregar representantes das unidades da federação, eleitos pelo princípio majoritário (art. 46 da Constituição Federal), com mandatos de 8 anos (art. 46, § 1º). O Senado Federal tem, assim, uma função de equalizador, diz-se em tal contexto conservador, de decisões que considere terem sido precipitadamente tomadas pela maioria da Câmara dos Deputados. Isso está se verificando na tramitação Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015. Aprovado pelos representantes do povo segundo critério de proporcionalidade, tem-se a esperança de que os representantes da unidades federativas o reprovem, ante sua flagrante inconstitucionalidade. Com isso se demonstra o protagonismo do Poder Legislativo federal na realização e na limitação da flexibilização trabalhista.

18.12 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Demonstrou-se, no presente artigo, que tem sido identificada uma necessidade de flexibilização das garantias dadas pelo Direito do Trabalho, de que é espécie a terceirização trabalhista. Tal flexibilização é considerada constitucional pela necessidade de proteção da atividade das empresas em época de crise econômica, redução de custos como meio de competição empresarial e avanços tecnológicos. Por outro lado, o princípio do pleno emprego consiste em limitação à livre iniciativa empresarial. A limitação que vem sendo dada à terceirização pela jurisprudência trabalhista serve para dar consecução ao princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de emprego, criando condições para que as pessoas físicas nelas envolvidas busquem a felicidade. Foi demonstrado ainda que tal busca da felicidade consiste em motivação para o trabalho. Viu-se, também, que o Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015, aprovado na Câmara dos Deputados e em trâmite no Senado Federal, afronta a dignidade da pessoa humana que é fundamento do Estado brasileiro. Demonstrou-se, por fim, a existência de protagonismo do Poder Legislativo federal, tanto na realização da flexibilização trabalhista em geral e da terceirização em especial, quanto de sua limitação, de maneira a se manter adequada aos ditames constitucionais de proteção da dignidade da pessoa humana trabalhadora. Isso porque, no exercício de sua competência constitucional para legislar sobre Direito do Trabalho, o Poder Legislativo federal deve fazê-lo 362 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade com observância da Constituição Federal, tanto quanto à forma do procedimento legislativo quanto ao conteúdo das leis editadas. Por outro lado, como demonstrado, a Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana trabalhadora. Tratou-se, por fim, das características diferenciais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a primeira de representar proporcionalmente o eleitorado (art. 45 da Constituição Federal), tendo os representantes mandatos de 4 anos, e o segundo de congregar representantes das unidades da federação, eleitos pelo princípio majoritário (art. 46 da Constituição Federal), com mandatos de 8 anos. Com isso, o Projeto de Lei da Câmara n. 30/2015, aprovado pelos representantes do povo segundo critério de proporcionalidade, tem como ser reprovado pelos representantes da unidades federativas, ante sua flagrante inconstitucionalidade.

18.13 REFERÊNCIAS

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= XIX =

O REALISMO JURÍDICO EM PROL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A VIA EXCLUSIVA DA SOCIEDADE JUSTA, FRATERNA E SOLIDÁRIA

Alessandro Severino Valler Zenni* Ivan Dias da Motta**

19.1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar o conceito da dignidade da pessoa humana como núcleo duro a partir do qual não será possível, por nominalismos e relativismos culturalistas, preencher-se o tegumento do valor ao sabor das ideologias valorativas que são recorrentes em tempos de pós- modernidade, onde o sistêmico, o econômico e o político sequestram o direito para manter uma aparência de ordem e segurança no contexto de ambiente. Temas intrincados como a vida (e pesquisas com células tronco, aborto, eutanásia) saúde pública (liberação e regulamentação de maconha), educação, (qualificação profissional), todos direitos constitucionais espargidos a partir do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, têm sido colocados em dialética nos pareceres jurídicos e até em decisões judiciais. Autoridades jurídicas espremem o conceito de dignidade humana já para precaver o sistema de grandes perturbações, já para dar-lhe um sentido político na “vontade popular”, ou ainda, para fomentar o desenvolvimento econômico, quando, a rigor, compreendida a pessoa, na sua raiz ontológica, seria impugnável e proposição obcecada movimentos populares, políticos ou de juristas à cedência às suas exigências.

* Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1991), mestrado em Direito Negocial com área específica em Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Estadual de Londrina (1997) e doutorado em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Pós-Doutor na Universidade de Lisboa. Atualmente é professor concursado titular em Direito e Processo do Trabalho na Universidade Estadual de Maringá, Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel Univel, professor titular - Faculdades Maringá, professor da União de Faculdades Metropolitana de Maringá, professor t- 40 do Centro Universitário de Maringá. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito e Processo do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: transdisciplinariedade, contemporaneidade, trabalho, prova e dignidade. ** Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1996), mestrado em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998) e doutorado em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000), Pós-doutorado em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Maringá, integrando a linha de pesquisa "A Tutela Constitucional e Privada dos Direitos da Personalidade nas Relações Privadas". Possui atuação profissional na área da advocacia e consultoria em Direito Educacional. 366 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

O problema, portanto, é mui claro: estabelecida a ontologia da pessoa, seria possível admitir-se o relativismo cultural pós-moderno vincado nas exigências sócio-político-econômicas? Dignidade da pessoa humana, sempre presente no polo das relações jurídicas a exortar do direito um instrumental de solidariedade pode admitir proeminente compromisso com a eficiência? Seria meritória a causa colocada à tradução positiva ou à concreção judicial que trabalhasse o raciocínio pontuando interesses da maioria versus minoria, como a hipótese levantada pelo direito penal do inimigo? Para responder estas questões é que se desenvolve o presente artigo, tramando-se um conceito de dignidade humana à luz da filosofia perene, máxime de cunho cristão-tomista. Como a dignidade da pessoa humana fundamenta a teoria dos direitos fundamentais, será objeto de investigação o seu conteúdo jurídico, de acordo com vozes ressonantes da doutrina jusfilosófica e constitucionalista. Inolvidável que o método para cognição da metafísica do ser humano não pode ser outro senão o retórico-dialético, levando-se em consideração que o trabalho busca relacionar pessoas na construção da sociedade justa, fraterna e solidária, tal qual o objetivo do Estado Democrático brasileiro, e, por consequência, todo ato jurídico importa em um raciocínio prático, uma decisão, e nessa perspectiva, sempre prenhe de dialeticidade, típica ferramenta do realismo jurídico. Assim, os critérios sugeridos pelos constitucionalistas alemães, levada adiante pelos neoconstitucionalistas do escol de Luis Roberto Barroso, vão aproximar, de forma analógica, a retórica aristotélico-tomista a propósito do método realista, onde a realidade é tão importante quanto a normatividade, e o direito posto será um topoi ancorado ao discurso para conduzir o juiz- prudente à decisão mais justa na situação em exame. Ao final, serão emitidas considerações a propósito do tema.

19.2 SER HUMANO METAFÍSICO

O conceito de pessoa e sua eminente dignidade é uma construção genuinamente cristã, desenvolvida em Agostinho, no Trinitate, que procurava transcender a definição humana já catalogada nos socráticos, como ente dotado de corpo e alma, buscando superar uma dificuldade extrema de localizar a hipostasia da Divindade tanto no Filho, quanto no Espírito (Agostinho, VII, 6.11). Não é demais salientar que a distinção capital entre os gregos e os cristãos está na concepção do sentido da vida humana, enquanto os primeiros, e aqui se declina a ética aristotélica, ao ensinar que a felicidade (eudaimonia) é a contemplação da verdade (ARISTÓTELES, 2001), enquanto o cristianismo tomista dirá que a beatitude é o encontro com o sentido da vida, ou seja, no Bem, há felicidade (TOMAS DE AQUINO, 1998).

O realismo jurídico... // 367

Desde já é fundamental traçar uma marca metafísica no existir do ser humano, ser que deve ser, e essa é uma lei genuína implantada na natureza do ser do humano, alguém que busca uma finalidade, e quiçá o grande equívoco cometido pelos empiristas sociologistas, os psicologistas e os culturalistas relativistas seja o de relegar que para além das ações fenomenológicas há no humano uma metafísica que lhe ordena a um fim, põe-no como ser que deve ser, ou seja, busca o Bem, a Verdade e a Beleza Supremos, à luz do cristianismo, e no contexto sócio-jurídico aspiram ao ético, ao justo e solidário, e não foi por outro motivo que a Constituição encravou no art. 3º, como princípio material fundante (BARROSO, 2013, p. 83), a construção da sociedade justa, fraterna e solidária como finalidade do Estado-Direito brasileiro. Com efeito, seguindo as orientações tomistas, o Imago Dei que compõe a humanidade que reside no ser está banhada de racionalidade e vontade (liberdade), e essa energia pode ser vertida para o cumprimento do sentido da vida, como, ainda, pode significar a nulificação do ser, sua estagnação, a paralisia no campo dos impulsos e paixões (TOMAS DE AQUINO, 1998). Compreender essa riqueza ontológica que em potência está insculpida em qualquer ser humano desde a sua concepção é de capital importância para rechaçar todo laivo de relativismo que possa exsurgir a partir de teorias psicologistas ou culturalistas dos valores. Vale aduzir que se o humano tenciona livremente uma finalidade, um valor, e que há valores hierarquicamente superiores organizados, e entre os valores supremos, enquanto a vida é convívio, justiça e ética (BEM), verdade e beleza são os que imantam o ser humano na sua peregrinação pela vida dando-lhe uma sensação de permanência, de imortalidade1, aplicar a liberdade para transcender horizontalmente2, eis a tarefa que põe o ser em conformidade com o dever ser3. Essa relação metafísica é estruturada, ordenada, há uma lei natural presente no ser humano que o põe nessa vereda (ERVADA, 2003, p. 86) e

1 O professor Olavo de Carvalho tem insistido em suas obras e cursos para que o ser humano insira a imortalidade como metodologia a ser aplicada na experiência, à medida que a imortalidade da alma não pode ser uma constatação científica pós morte, senão que o que há de permanente e não fugaz há de preencher as ações humanas cotidianamente, e o amor, a justiça, a paz, a beleza não se esvaecem ainda que o seu autor tenha encerrado sua etapa na existência. Fonte: CARVALHO, Olavo de. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2015. 2 Expressão alcunhada por Battista Mondin. MONDIM, Battista. O Homem. Quem é Ele? Elementos de Antropologia Filosófica. Tradução de R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, 12 ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 41. 3 Na moderna teoria dos valores, procura se localizar o valor no próprio ser, porquanto se o valor não é, é nada. Assim, Jacy de Souza Mendonça apresente o valor como uma posição do ser, uma relação do ser com as suas potencialidades mais caras, ser em relação com o dever ser. MENDONÇA, Jacy de Souza. O Curso de Filosofia de Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1999, p. 247. 368 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade ao direito compete traduzir essa legislação natural. Aqui Tomas de Aquino implica a lex naturalis e a lex positiva, assinalando que a vontade humana não consegue derrogar a lei da natureza, nem tampouco a transformar ou alterar, porque proposta pela inteligência do Criador, transcende ao querer e à racionalidade humanas4. Também foi de Tomas de Aquino a colocação de extraordinária importância para história da humanidade acrescendo o social ao seio da humanidade, porque até a Idade Média, conhecia-se o comunitário da civitas e da polis, e dentro da cidade o público (espaço da cidadania, integrado somente pelo cidadão do sexo masculino, com plenitude de capacidade jurídico-política, onde se emancipava em liberdade) e o privado (o lar, local da tirania, em que o pater familiae mantinha domínio absoluto e relações necessárias com todos os demais, seja de natureza sexual com a mulher, objetal, por necessidade de transmitir a herança com o filho, ou necessidade de receber o trabalho do escravo) (CRETELLA Jr., 1999, p. 208). No Aquinate acresce-se o social, que permeará tanto o público quanto o privado, nutrido por causa amoris, e decorrente da irmanação que habita todos os filhos de Deus, já na acepção de pessoas, e os põe em condição de igualdade, sem preterição ou predileção (TOMAS DE AQUINO, 1998). Há uma solidariedade natural no humano, que o distingue da solidariedade necessária dos irracionais, e o eleva em dimensão existencial e dignidade, pois trata-se de atributo metafísico, descende do Pai e Criador, e habita nos filhos, de quem emanam relações de paternidade e irmanação. E pessoa será, ainda, um feixe de relações até com o Infinito. Em escorço, sendo o humano metafísico, há um nomenum, um fundamento na ação e na conduta que deve ser captado pelo ser cognoscente, e não somente um fenômeno, e aqui se encerra a grande crise da pós-modernidade, porque tanto na perspectiva idealista, tendo como corifeu Kant, quanto na observação empirista trazendo como expoente dialético Comte, o nomenum, o valor, está distante da análise e da investigação.

19.3 A COGNIÇÃO DO SER DO HUMANO

19.3.1 O relativismo valorativo da modernidade

Registre-se que em Kant, afirma-se que o que é digno de conhecimento é o fenômeno, a manifestação externa e aparente (os acidentais), submetidos às categorias espaciais e temporais, e só nesse sentido a ciência, o experimental, pode ser comprovado. Portanto, uma

4 As leis relacionadas são trazidas por Alessandro S. V. Zenni, desde a lex aeterna, passando pela lex naturalis até culminar na lei positiva ou legislação humana, sempre tramadas dedutivamente, pelos fenômenos da derivação e determinação, chegando mesmo à decisão judicial. Há se destacar que uma norma só haverá de ser cumprida se for justa, ou seja, obedecer aos critérios da natureza humana e, por consequência, à legislação divina. Fonte: ZENNI, Alessandro Severino Valler. A Crise do Direito Liberal na Pós-Modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 122 O realismo jurídico... // 369 renúncia indefectível ao essencial, ao telus, ao valor, se faz presente no seu raciocínio. Para tentar eliminar possíveis críticas ao seu racionalismo e até à sua conduta teísta, Kant vai assinalar que a existência de Deus, a liberdade (ética) e a imortalidade da alma são temas dogmatizados, imperativos categóricos, um dever ser que não se explica, se aceita cegamente (ZENNI, 2008, p. 91). Ou seja, a raiz criticista e relativista tem seu nascimento em Kant, e o valor da ética, assumido pelos juristas neokantianos, não passará de um dogma, um ato de fé, explicável racionalmente por um imperativo categórico. Outros neokantistas como Kant, valendo-se do neutral da crítica à razão pura, dirá que o direito é uma exigência lógica de formas, este é o fenômeno jurídico, normas que dão corpo às normas por querer da autoridade (KELSEN, 1979, p. 17). Em Comte não foi diferente. O pai do sociologismo nega caráter científico a tudo que não seja digno de experimentação, trabalhando com as certezas científicas e, por consequência, renuncia à verdade. As certezas vão sendo superadas metodologicamente. Mas a metafísica está completamente à margem de seu projeto. Para os sociólogos do direito, mantendo-se a pureza comtiana, o fato social, independente do telus da humanidade converter-se-ia, pura e simplesmente, em direito (DE CICCO, 2013, p. 213)5. De se ver que tanto em Kant quanto em Comte o valor é colocado à distância da cognição e impossível de ser constatado, ao menos no campo da racionalidade, não sendo demais considerar que a pós-modernidade, seguindo as trilhas modernas, vale-se do racionalismo enquanto método cognitivo e expurga qualquer possibilidade intuitivo-intelectualista de compreender o mundo. Ora, se nos dois protagonistas do relativismo a inteligência humana não acessa à natureza das coisas, e focar seu centro na aparência, ou seja, a incognoscibilidade do supra sensível, ou da coisa em si, o tema da dignidade da pessoa humana passa a ser plausível de nominalismos e relativismos como os que são marcados, inclusive nos julgamentos do STF. Essa renúncia à ontologia da natureza humana, projetada ao direito, vai permitir que o antigo instrumento de realização da justiça a proteger pessoas, seja confundido como a vontade do poder, como foi a situação delineada pela proposta marxista na República Socialista Soviética, do fascismo italiano e da tragédia nazista. É curioso que hodiernamente se venha a submeter a vida à situações de relativização tais como sua inexistência em fetos anencéfalos, ou nas células troco de embriões, permitindo que seres sejam coisificados, tal qual ocorreu àqueles que não amalgamavam a super raça ariana. Também é de se espantar que os inimigos do Estado sejam tratados como seres desprotegidos em liberdades e garantias, e preteridos de bens fundamentais porque não se adequam ao programa coletivo da instituição.

5 Aliás, o professor da USP assinala que as tentativas de Leon Duguit de explicar a sociedade por um sentimento de justiça se traduz em sociologismo impuro porque imanta o valor no fato, algo que o próprio Comte, inicialmente, refutava. 370 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

19.3.2 O intelectualismo aristotélico-tomista

Seguindo a esteira aristotélico-tomista, os acidentais, que são submetidos às categorias espaço-temporais, são as primeiras manifestações dos objetos dignos de conhecimento, e a partir de então, as ideias vão sendo formuladas de forma universal e necessária, correspondendo-lhe ao essencial. Para além da aparência, um simples registro do objeto cognoscível, sua forma objetiva que se capta sensorialmente, no visionar de Comte, como, ainda, o fenômeno sendo constituído subjetivamente pelas categorias espacial e temporal dentro da mente, na formulação Kantiana, algo que representa formalismo e nada mais que isso, o ser humano é pessoa quando suas ações vão se consolidando em visionar fins bons, como já se constatou, e o direito, formado de leis da natureza humana, traduzido em regras postas, procura articular essa metafísica da pessoa. Portanto, há um essencial no direito, algo que remonta os prístinos da história, com a tragédia grega de Antígone, onde Creonte, ao vedar o funeral de qualquer adversário político, mediante um decreto imperial, portanto um direito criado ao sabor da vontade da autoridade, foi contrastado por Antígone, que em ato de rebeldia, descumpriu o direito posto, salientando que a regra não era justa, essencialmente justa, porque para além da vontade da autoridade há uma legislação dos deuses cravada no coração dos homens, e o enterro de seu irmão haveria de se dar em conformidade com essa norma (SÓFOCLES, 1997, p. 61). Reconhecer que há essência no percurso humano é a um só tempo admitir que o direito natural banha a natureza das coisas, inclusive a humanidade que há no homem, e nenhuma norma posta, jurisprudência, doutrina ou fonte formal de direito poderia revogar essa natureza, cria-la ou modifica-la, porque o direito não é o interesse do mais forte como queria Trasímaco (PLATÃO, web), nem a vontade popular como pretende Habermas na teoria do agir comunicativo (HABERMAS, 1997, p. 134). Qualquer atitude dúbia em relação aos valores no campo jurídico, supostamente porque a capacidade humana é limitada e falível, e por consequência, só se atem ao periférico e acidental, desagua, ou na vontade do poder, ou no registro aparente do que possa ser o direito e, tragicamente, redundam em negação de direito. Se, de fato, o humano é contingente e limitado, dotado de potências cognitivas, dirige-se à verdade, ao bem e ao belo em dinamicidade, convertendo em ato o que herdou em semente, do Criador, sempre alimentado pela racionalidade e livre arbítrio, há sempre uma vontade constante e perpétua de dar o devido a quem o tenha, segundo mérito, na velha máxima romana sobre o conceito de justiça (ULPIANO Apud ROBERTO, 2003). Aliás, nas Institutas de Justiniano, consta que o direito é ars inveniendi, prenhe de coisas humanas e divinas, numa síntese primorosa de O realismo jurídico... // 371 que há algo de imutável e universal, compondo os primeiros princípios, o engendro metafísico do ser humano e de todas as coisas, enquanto há algo de dinâmico e cultural, que representa os princípios segundos, o próprio direito positivo, tradução da natureza das coisas. E como arte que é, tece-se dialeticamente, com amplitude de contraditório e ampla defesa, com circunspecção, atendendo de forma ampliada as minudências do caso concreto, as repercussões da decisão, e o que há de mais importante, subsumindo-se à sindérese, ou seja, qualquer que seja a decisão a ser tomada, há de estar conforme os princípios da racionalidade prática que imantam a natureza humana: não lesar outrem, viver honestamente e dar o devido a quem o tenha conforme o mérito. É na natureza humana que se opera um núcleo duro a partir do que não se permite a relativização, o murchar ou dilatar ao sabor da vontade. Tércio Sampaio Ferraz Junior, ao escrever sobre os direitos humanos e sua positivação, já destacava o risco da hermenêutica de cunho ideológico- valorativo, que procura emprestar valor ao valor, como se o valor não fosse objetivo e estivesse arraigado ao ser que vale (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 353). Ora, se há uma vontade constante e perpétua de dar o devido a quem o tenha por mérito, e a realidade do fenômeno jurídico é inesgotável porque o humano é contingente para pinça-la, isso não significa abdicar do valor e de sua essência, preterir o ser do humano e do justo porque inexaurível, porque essa forma de pensar produziu as agruras do nazismo no século passado. O compromisso com a justiça é o compromisso com a pessoa. A lógica é muito frugal. Se há uma natural solidariedade dos seres humanos6, as relações intersubjetivas presentes no existir da humanidade são sempre ascensões ao bem comunitário, e a escala aos valores mais nobilitantes confere a quem perpassa estes degraus o jaez de pessoa. Se no bem comum, alterativo por decorrência, os humanos se personalizam, são tratados com igualdade (formal e material), justiça e dignidade se implicam e interpolam (ZENNI, 2014, p. 196). Nesse sentido fundamento e finalidade se encontram no mesmo ser, dando perfeita harmonia e convergência os arts. 1º, III e o 3º, da CF.

6 Mesmo com toda a bombástica articulação midiático-econômica buscando individuar ( no sentido egóico e não no sentido de singular) e atomizar a humanidade, numa artificial perspectiva contratualista hobbesiana, que embota a liberdade e participação, tornando todos reféns do Estado hipertrofiado, a quem se transfere a competência de definição dos bens comuns, ao sabor dos governantes, a luta do direito é para com a realidade e o finalismo da natureza humana. Fonte: ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Resgate da Pessoa na Tragédia Histórica da Humanidade – Um Retorno ao Direito Natural Clássico.In: XX Encontro Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte. 2011, p. 1.031. 372 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

19.4 O CONCEITO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O SEU CONTEÚDO JURÍDICO

19.4.1 Conceito de dignidade da pessoa humana

Se a dignidade da pessoa humana é conceito fundado no cristianismo, na concepção de pessoa como corpo e alma, relação de irmanação que pode interagir até com o Infinito, ser que deve ser, uma relação de existir e valor, coroada pela liberdade e racionalidade, foi com o holocausto que o tema ganhou grandes proporções no campo do direito. Bem de ver que a Igreja, na Carta Rerum Novarum, elaborada por Leão XIII, já destacava que o trabalhador não pode ser sublevado e espoliado, mirado como fonte de energia de trabalho e corporeidade, porquanto no regime burguês, em nome da liberdade, os contratos adesivos se fixavam ao sabor do lassez faire, e o laborista era tratado como objetal e mercadoria em verdadeiro retrocesso histórico. Nesse momento a Igreja se levanta e investe contra o burguês, exigindo que o trabalhador fosse tratado como pessoa em sua eminente dignidade (PAPA LEÃO XIII, web). Mas a queda do nazismo fez surgir o Tribunal de Nuremberg, e a partir da decisão fundada em justiça e menos em positivismo jurídico, mormente na perspectiva do direito penal, a exigir legalidade e vedação ao tribunal de exceção, o direito passa a ser nutrido por eticidade e considerar a pessoa como centro e fim, e não como meio de atingimento de objetivos estatais ou grupais. As formas jurídicas ou os fatos sociais puros, típicos do criticismo e relativismo, cede lugar à pessoa e à justiça. Não se pode mais credenciar teorias subjetivistas, como se a justiça e a ética se construíssem à vontade e ao sabor dos sujeitos. Novamente é de se ressaltar: a forma como os valores são experimentados historicamente não pode coloca-los na vala da subjetivação. Se Deus criou todas as coisas e notou que todas eram boas, O BEM é fundamento, trata-se de algo metafísico, e a natureza humana, parte da Criação, e quiçá a de perfeição mais burilada, ontologicamente é comprometida com o bem, objetivo. É uma questão de racionalizar, querer e alcançar. Seres humanos são dinâmicos e relativos, Perfeito somente o é o Criador, e nos seus atos os homens cometem equívocos, podem se desviar do bem a fazer e do mal a evitar.7 Enfim, ser humano é bom (justo e ético), solidário, livre e racional. Estes atributos ontológicos hão se ser dinamizados na experiência, convertidos em dever ser, essa conformidade entre ser e devir é que garante dignidade à pessoa humana. Esse conceito elementar não pode passar despercebido pelo jurista, como não o se pode deixar à margem a ensinança de que a alma e o corpo

7 Eis o pináculo da lei natural desenvolvida pelo tomismo. TOMAS DE AQUINO. Questão I, 6, a.1. TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. Parte I. Madrid. Biblioteca de Autores Cristianos, 1998. O realismo jurídico... // 373 que se consorciam à pessoa haverão de ganhar proteção já na concepção, e dos grupos intermediários ao mais aparatado ( O Estado) implica a missão de subsídio, alavancando, por questão de justiça, aqueles que se encontram em posições de fragilidade real, como é o caso do embrião/feto, dos deficientes mentais e físicos, dos vulneráveis reconhecidos em razão de déficits elementares.8 Com efeito, entre os seres criador, à espécie humana coube captar racionalmente os fins naturais e desviar-se do que representa a sua depravação, aquilo que os escolásticos designavam de vícios (TOMAS DE AQUINO, 1998). Enquanto os demais seres sentem-se inclinados à realização de seu bem, o humano vislumbra o bem como possibilidade livre e consciente, à semelhança e imagem do Criador. Se o bem encarna o ser do humano tratando-se de uma imantação ontológica, a vontade como possibilidade é uma marca individual, mas não o traçado para o atingimento dos fins da espécie, razão pela qual se encampa a defesa de uma heteronomia herdada da Criação, e somente a vontade em decidir seguir o caminho natural da emancipação é que concerne a cada sujeito. Dignificar-se é estágio de desenvolvimento, construção dinâmica que não se exaure, experiência histórica enquanto realização, mas projeto universal e princípio de ação. E o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana deve ser investigado pelo jurista na própria natureza da coisa humana. Ou seja, o direito positivo, enquanto técnica, é poiese, evolução que se associa à arte clássica, um arsenal a cuja escolha o bem é sempre referido e reportado, não se dissocia da ética (ARISTOTELES, 2001, p. 117). Enfim, esse é o conceito de dignidade humana:

O Criador é causa motora das causas naturais e voluntárias, entrementes não se substitui ao ser que age, figura como essência e princípio motor, competindo aos homens o impulso livre para seu aperfeiçoamento (TOMAS DE AQUINO, s.n., quest. XXXIII, art. I). A esse esforço livre de dinamização do ser do homem na busca de seu acabamento denomina-se de dignidade da pessoa humana (ZENNI, 2006, p. 103).

No ser humano há imanente e transcendente, no traçado de livre arbítrio, urgindo se reconhecer que essa liberdade há de ser conferida e garantida em duplo sentido, sem embargos no agir, e, positivamente, subsídio àqueles que moral e corporalmente encontram-se dilacerados e empanados involuntariamente. Até para um culturalista assumido no calibre de Miguel Reale, a dignidade da pessoa humana é o centro da constelação normativa, atraindo como ímã, os demais valores (REALE, 1996, p. 139).

8 Essa é a tônica do princípio da subsidiariedade, de matriz católica. ZENNI, Alessandro Severino Valler. A Crise do Direito Liberal na Pós Modernidade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2.008, p. 98. 374 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Se o seu teor é de carga ética abstrativa, não há dúvida que elevada à fundamento do Estado brasileiro, há que espargir seu conteúdo às normas criadas e a serem interpretadas. Portanto é geratriz, princípio9, fonte e critério de interpretação e aplicação do direito. Do princípio da dignidade da pessoa humana ecoa eficácia imediata, tanto negativa, no sentido de que o legislador infra-constitucional está vedado de elaborar regra que conflite com o princípio10; também há uma carga de eficácia hermenêutica, de maneira que a norma submetida ao processo hermenêutico seja harmonizada em interpretação conforme com a dignidade da pessoa humana; a par disso, uma eficácia não retrocessiva, máxime em relação aos direitos sociais e, de resto, a eficácia positiva, permitindo ao cidadão requestá-la ao Estado Juiz simetricamente, como direito subjetivo que é (BARROSO, 2013, p. 128).

19.4.2 Conteúdo jurídico da dignidade humana

Diversos juristas buscaram escrutar o sentido da dignidade da pessoa humana, valendo declinar à teoria desenvolvida por Karl Larenz para quem a dignidade enfoca o respeito ao existir da pessoa, sua vida integridade física e corporal e a saúde (LARENZ, 1993, p. 21). Ernesto Benda teve preocupação central com a autonomia do sujeito, e tendo vivido as agruras do regime totalitário, opinou pela concepção de dignidade como barreira à coisificação do ser humano ante o Estado, bradando que o humano é o fim do Estado e não meio para seus objetivos. Joaquim Arce Flórez Valdés (1990, p. 149) traz considerações aprofundadas sobre o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana. Alude, preambularmente, à igualdade entre todos pelo tão só fato de serem pessoas; também ocupa-se da autonomia, propugnando pelo desenvolvimento do personalismo, seja nas relações com o Estado, seja nas relações privadas, e, sobretudo como anteparo aos avanços biotecnológicos e, finaliza, com a exigência de dação do mínimo existencial. Temos que o conteúdo jurídico de dignidade abarca a igualdade (formal e material), óbice a toda sorte de degradação e reificação humana,

9 Em Habermas elencam-se distinções entre princípios e valores. O filósofo de Frankfurt passa a discernir as categorias pela carga de materialidade, asseverando que os princípios contêm forte conteúdo político enquanto os valores contêm conteúdo estimativo, entre bem e mal; ainda estabelece que os princípios, porque geralmente normatizados, obrigam os destinatários, enquanto que os valores são diretrizes, ou seja, princípios, assemelhados às normas, na teoria de Habermas, estariam comunicando um esquema binário (permitido ou proibido) abrangendo as condutas, enquanto os valores mostram um grau de preferibilidade social ou cultural e, finalmente, os valores poderiam até se contradizer em face à primazia subjetiva de cultura, ao passo que princípios não tolerariam conflitos, eis que pertencentes ao sistema. Fonte: HABERMAS, Jungen, Direito e Democracia. Vol I, p. 317. 10 Causa espécie que o legislador pátrio, sob suposto influxo de Harvard e dos EUA, tenha admitido a relativização da presunção de inocência e a imputação de culpa presumida ao sujeito condenado por crime violento, exigindo-lhe o fornecimento de material genético e ser depositado em banco de dados do Estado, para que, na recorrência do crime, seja ele o primeiro suspeito a partir de averiguação de dados genéticos. O realismo jurídico... // 375 mola propulsora da autonomia e liberdade, apanágio dos direitos de personalidade e principio de suplência na existencialidade mínima. Impõe-se tecer considerações mais abrangentes. Ao reporta-ser à igualdade, a dignidade da pessoa humana conclama do legislador o respeito à isonomia na elaboração da lei e do julgador e ou administrador a sua observação na aplicação da legislação, mas não se pode olvidar que grupos, classes, categorias ou pessoas são preteridos de condições normais, por inúmeras razões, e merecem, à consideração clássica, tratamento dispare em função da desigualdade que carregam. Relativamente à exigência de proteção à pessoa contra qualquer forma de reificação, há se exigir do Estado atuação no sentido de tratar o ser humano, e qualquer humano, inclusive o que está de passagem pelo território nacional, e não só o cidadão, como fim do grupo e da instituição, e não como meio para que seus fins sejam concretizados. Aliás, o Estado, enquanto regente do bem comum, só existe em função das pessoas que o encadeiam. O resguardo à condição de pessoa humana se espera, ainda, de qualquer grupo ou instituição privada, pois a eficácia horizontal dos direitos fundamentais põe a pessoa à salvo contra os privados. Inolvidável que qualquer grupo naturalmente formado visa fins comuns, e a ligação entre a pessoa e a instituição social/pública, faz-se nesse visionar, tanto que Johannes Massner convoca a atuação do sujeito e dos grupos intermediários para a consecução do bem comum, com a distribuição em proporção a cada qual no resultado final dos bens alcançados pelo cooperativismo social (MASSNER, 1960, p. 355). Quanto à autonomia, além do reconhecimento das fragilidades na manifestação da vontade, pelo fluxo dos contratos adesivos e a massificação do capitalismo selvagem e da imprensa dirigista, um limite de todo considerável às condições onerosamente excessivas se impõe. Mas há um outro critério que merece exame. O ilícito enquanto objeto do ajusto impede que a manifestação de vontade se consolide em nome da própria pessoa do manifestante. Os padrões da moralidade e dos bons costumes, já vistos alhures, como uma heteronomia a compor a natureza da coisa humana, é obstáculo à ação humana, por danificar sua própria dignidade. O que dizer daquele que declina da vida porque a sente pesarosa, dolorida, e resolve optar pela morte na recorrência à eutanásia? Nada mais equivocado! Ao contrário da assistência e dos recursos (eliminar a dor com medicamentos e tratamentos terapêuticos e impedir a desidratação) para uma morte natural com docilidade. A ilicitude do objeto põe como decrepita a manifestação da vontade do sujeito por conspirar contra a própria dignidade humana. O valor da dignidade é irrenunciável, imprescritível, inalienável e oponível erga omnes, tratando-se, ademais, o princípio da dignidade da pessoa humana como cláusula de reserva dos direitos personalíssimos. Assim é que em nome da dignidade da pessoa humana se reafirma o compromisso com a vida, a integridade física e moral, imagem e honra, ir e vir, nome, privacidade, e os direitos personalíssimos em geral. 376 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Por fim, se a propriedade privada pode ser fonte de existencialidade ao seu proprietário, e o direito objurga a expropriação ao bel talente do Erário, seja na exação dos impostos (art. 155, IV, da CF), seja a desapropriação infundada (art. 5º., XXIV, CF), os desprivilegiados pelas condições materiais de vida, reconhecidamente débeis haverão de ser garantidos em mínima existencialidade, com programas de desenvolvimento humano, que não se comprazem aos assistencialismos infligidos pelo Estado brasileiro presentemente.

19.5 DUAS QUESTÕES JURÍDICAS PROBLEMÁTICAS DE NOMINALISMO E (IN)DIGNIDADE

Malgrado o STF ter colocado pá de cal acerca da ADPF n. 54, admitindo a interrupção da gravidez do feto anencefálico, em instante algum se pode inferir que nas quatrocentas e trinta e três laudas o Sodalício tenha asseverado que o feto anencefálico é privado da vida, tampouco se considera acerca de sua dimensão espiritual consolidada já no instante da concepção. Aliás, prenuncia o Ministro Fux a exortar a presença de Deus com forte carga cultural e religiosa no voto, como quem faz venia, para, ao final, “poupar a gestante de sofrimentos” em nome de sua autonomia, reduzindo o feto a um objeto. Não resta dúvidas de que a relativização do conceito de vida emprestado pelo STF ao valor vida, e a consideração sobre a autonomia da mulher em detrimento do frágil e inóspito feto anencéfalo foi um golpe ao conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana. Seria demasiado minudenciar os fundamentos da decisão e seu antagonismo, mas o Tribunal passou a propor a legitimação às formas menos escandalosas de permear o ingresso do aborto no direito brasileiro, a partir do aborto do anencefálico, reduzindo-lhe a definição de vida, em vera axiologia ideológica, já que por laudos médicos que instruem o processo, atestou-se, nos próprios autos, que ao contrário do que se consolidou na petição inicial, a manutenção da gravidez, ao invés da “interrupção da gestação”, nominalismo para travestir o aborto, não trazia prejuízo à saúde da gestante, senão ao aspecto emocional, agudizado pelo trauma do abortamento, pasmem, recomendando acompanhamento psicológico à mãe abortante por tempo considerável. Notadamente atual é a discussão acerca da redução da maioridade penal de 18 para os 16 anos de idade. São diversos projetos, entre os quais destaca-se o do Senador Magno Malta que prevê esta redução aos treze anos. O discurso incorporado àqueles que defendem a redução é de que os menores vêm cometendo crimes reiteradamente, pondo em risco a sociedade dos “bons”, sem, no entanto, colher as sanções penais pela ilicitude praticada. Nada mais tendencioso, porquanto, a rigor a ilicitude penal fixada aos 18 anos compõe cláusula pétrea da Constituição, tratando-se de O realismo jurídico... // 377 direito e garantia fundamental toda construída na cognição deficiente do plano psíquico de alguém cuja idade não tenha atingido a maioridade penal. E não é só, o ECA prevê medidas socioeducativas que são até mais austeras, em certas circunstâncias, que as sanções penais. O que se pretende, rigorosamente, com a redução da maioridade, para acachapar os infratores a partir dos 16 anos, ou quiçá de 13 anos em diante, é uma higienização a partir do cárcere, importando-se pouco ou nada com a vida de um adolescente que, em formação moral e psíquica, menos precisa é de uma “escola de crime” como se apresenta em gradual perspicácia a população carcerária com quem o menor dividirá galera. Relega-se a necessidade de Estado e sociedade, como propõe o ECA, em posição de suplência, alavancar o menor infrator, porquanto, ao reduzir sua idade penal, será tratado com o mesmo descaso com que são tratados os milhares de habitantes de cárcere no Brasil. Como consequência, o nominalismo murcha o sentido de dignidade do psicológica e moralmente em formação, para quadrá-lo como capaz e notadamente (de)formado, dando tratamento igual em absurda situação de desigualdade, ferindo-se a igualdade material que compõe conteúdo jurídico de dignidade humana.

19.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise nominalista no âmbito jurídico não é outra senão a crise da filosofia do ser. O realismo que protagonizou a filosofia clássica e vigeu até 1.600, pressupondo a realidade para admitir a sua interpretação na tarefa cognoscível designada de intelectualista ou realista, pautada em analogia e no método tópico-retórico, foi substituído pelo exame cartesiano/kantista, fundado na forma e na razão. Na modernidade já não há prevalência da ontologia sobre a gnosiologia, e a comprovação científica pautada no experimentável e no sensível dita a forma como a filosofia passa a encarar as questões fundamentais do ser, idealizando os valores ou abdicando de todo o suprassensível, para fiar suas teorias na concatenação das premissas e na relativização da verdade, e, como consequência, supor que as ideias são os constructos do real, no máximo, pôr-se em situação de antítese ao idealismo, reivindicando o culturalismo historicista, igualmente relativista, inspirado no kantismo ou no sociologismo comtiano. Com isso os conceitos passam a permitir construções idealizadas, subjetivações definidoras, quando, em realidade conceito significa a fecundação da mente pela realidade, uma simbiose de realismo e intelectualidade que transcendem o sensível para culminar nas leis, causas e fins últimos dos objetos. Assim é que a dignidade da pessoa humana deve ser pesquisada pelo arguto olhar do jurista. Não só porque a realidade humana é metafísica, amalgamando physis e telus, na trilha de uma perfeição que, se não pode ser esgotada, é sempre o norte a ser seguido, adjungindo valores de 378 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade permanência à relação de conformidade com a existência, máxime o bem, o belo e o verdadeiro, mas, ainda, pelo trágico eclipsar histórico registrado nos movimentos totalitários, onde o direito, sequestrado pelo poder, e vazio de substancia, na visão nominalista, fez do justo o legal e da pessoa somente àqueles que elitizavam a raça ariana, colocando em derrocada e como res todos os demais. À medida que o direito abre flancos à filosofia, deixando-se imantar pela ética, as normas postas não são o retrato da justiça, sendo indispensável que o jurista aprofunde a sua pesquisa no tegumento dos comandos e, mais do que isso, faça interagir o caso concreto com os valores incorporados pelo ordenamento, a fim de que, em dialética, extraia-se a melhor fórmula de justiça, uma vontade constante e perpétua de dar o devido a quem o tem segundo o mérito. Com efeito, os avanços produtivos, o apelo ao desenvolvimento econômico, a tecnologia e a cibernética, novamente, fazem o direito retroceder, passando a ser uma técnica a serviço da segurança e da ordem, mormente a socioeconômica, e a pessoa, princípio e fim de todo Estado e Direito, passa a ser exame de segunda categoria, a ponto de se admitir eugenia sob nomenclatura de “interrupção de gestação”, entre tantos outros exemplos que poderiam ser trabalhados no bojo do artigo em testilha. Urge que o jurista retome o compromisso com a filosofia realista, convicto de que o real não é apenas o sensível da sociologia, da psicologia ou da história, mas está plasmado no metafísico e suprassensível, e com olhar atento, sobretudo à pessoa, construa um direito poiético de natureza artística, sempre elegendo os meios a partir do bem e da ética, para a exortação do justo que desde os albores da humanidade o fez jus. O ser humano é o único ser criado que, para ser, deve ultrapassar- se, na ditosa expressão de Lavelle (LAVELLE, 1951, p. 78), para quem o valor está plasmado no ser humano como relação de conformidade, o que lhe atribui dignidade enquanto pessoa.

19.7 REFERÊNCIAS

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DE CICCO, Claudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 7. ed. 2013. ERVADA, Javier. Crítica Introdutória ao Direito Natural. Porto: Rerjurídica, 2003. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Liberdade de Fumar: privacidade. estado. direitos humanos e outros temas. São Paulo: Manole, 2007. FLORES-VALDÉS, Joaquín Arce. Los Princípios Generales Del Derecho y su Formulación Constitucional. Madrid: Civitas, 1990. HABERMAS, Jungen. Direito e Democracia: entre facticiade e validade. v. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997. ______. Direito e Democracia: entre facticiade e validade. v. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1997. PAPA LEÃO XIII. Encíclica Rerum Novarum. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2014. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. LAVELLE, Louis. Traité des valeurs: tomo I, PUF, 1951. MENDONÇA, Jacy de Souza. O Curso de Filosofia de Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1999. MASSNER, Johannes. La Cuestion Social. Madrid: Rialp, 1960. MONDIM, Battista. O Homem. Quem é Ele? Elementos de Antropologia Filosófica. Trad. R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, 12. ed. São Paulo: Paulus, 2005. PLATÃO. A República. Livro I. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2014. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. SÓFOCLES. Antígona. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Brasília: Editora da UnB, 1997. TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. Parte I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1998. ______. Suma Teológica. Parte II (Primeira Parte). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1998. ZENNI, Alessandro Severino Valler. A Crise do Direito Liberal na Pós- Modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2008. ______. O Resgate da Pessoa na Tragédia Histórica da Humanidade: um retorno ao direito natural clássico. In: XX Encontro Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte. 2.011, p. 1.031. ______. Direito e Pessoa: Questão de Justiça. In: ROSA, Letícia Carla Baptista; ARMELIN, Priscila Kutne (Orgs.) Direito e Políticas Públicas: Estudos Interdisciplinares Maringá: Gráfica Caniatti, 2014.

380 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

= XX =

OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA INFORMAÇÃO FRENTE AO CADASTRO POSITIVO DE CRÉDITO: UMA BREVE ANÁLISE DO RESP 1.419.697 – RS

Afonso Carvalho de Oliva* Flávia Moreira Guimarães Pessoa**

20.1 INTRODUÇÃO

Para tratar do tema sob o enfoque proposto, inicialmente, serão feitas considerações doutrinárias sobre cadastro positivo, apresentando a diferença entre as definições de banco de dados e de cadastro de dados. Ainda, a fim de bem situar a relevância do assunto, haverá a exposição de breve contexto histórico relativo à origem da Lei nº 12.414/2011, conhecida como Lei do Cadastro Positivo de Crédito, no intuito de demonstrar sua real finalidade, contrária às diretrizes da defesa do consumidor. Na sequência, será apresentado o princípio da prevenção, próprio do Direito Ambiental, e, através de conceitos elaborados por doutrinadores especialistas, será abordada sua aplicabilidade em sede consumerista, como fundamentação para a máxima cautela em relação aos verdadeiros efeitos decorrentes da lei referida, quanto ao uso de seus dados pessoais por meio de instituições financeiras responsáveis por operar os chamados “cadastros positivos de crédito”. No que toca ao princípio da informação, será abordada a necessidade de sua maior observância em se tratando da disponibilização, pelo consumidor, de seus dados pessoais, pretensamente para obtenção de futura vantagem creditícia, quando, ao contrário do que se propaga na mídia, esses dados servirão para a elaboração de perfis de consumo, a serem comercializados por instituições ligadas à concessão de crédito, visto seu alto interesse na formação do universo do seu público-alvo. No penúltimo tópico, será analisado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, exarado nos autos do REsp.1.419.697-RS, acerca da compatibilidade do sistema “credit scoring” com o ordenamento jurídico brasileiro e da existência de dano moral in re ipsa decorrente do cadastro não solicitado, e, por fim, serão registradas breves conclusões extraídas de todo o estudo.

* Mestrando em Direitos Humanos | Unit-SE, Especialista em Direito do Consumidor, Professor Universitário | Faculdade Pio Décimo | Faculdade de Negócios de Sergipe (FANESE), Advogado e Presidente da Comissão de Direito Eletrônico da OAB/SE. [email protected] ** Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia | Professora do mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe e em Direitos Humanos da UNIT | Juíza do Trabalho do TRT/20ª Região. 382 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

20.2 ANOTAÇÕES SOBRE O CADASTRO POSITIVO DE CRÉDITO

A retórica midiática acerca da “Lei do Cadastro Positivo” – Lei nº 12.414/2011 (LCP) – busca apresentá-lo como uma forma de garantir uma posição de superioridade do consumidor perante as instituições financeiras, ao criar um banco de dados que seriam utilizados para garantir uma diminuição nas taxas juros dos “bons pagadores” quando da celebração de contratos de financiamento bancários. Esta questão foi explorada na exposição de motivos que fundamentou a criação da Medida Provisória nº 518/2010 (BARRETO; MANTEGA, 2010), posteriormente convertida na lei ora analisada. Em seu tópico de número dois, é apresentado o fundamento de que a criação dos cadastros positivos poderia efetivamente resultar em redução no risco da concessão de crédito aos consumidores brasileiros, representando um ganho não apenas para os comerciantes como para os próprios consumidores. Ainda em sua exposição de motivos, em seu tópico de número três, acrescenta-se que a criação do cadastro seria de utilidade ainda maior aos consumidores de baixa renda, uma vez que estes são, em regra, vistos como “investimento de alto risco”, razão pela qual, em geral, sofrem com as mais altas taxas de juros. Assim, aos que possuam um bom histórico de crédito seriam concedidas menores taxas de juros. Ponto decisivo para o presente debate reside na diferenciação que se apresenta ao compararmos a nomenclatura midiática, “Lei do Cadastro Positivo de Crédito”, com o seu objeto, disposto em seu artigo 1º, “disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento”. Enquanto sua nomenclatura midiática trata de “cadastro”, o verdadeiro objeto da norma versa sobre “banco de dados”. Muito embora ambos os termos guardem similitude entre si, não podemos confundi-los por sinônimos; a natureza deles pode-se ter como semelhante, porém, a forma de “abastecimento” e sua finalidade são por demasiado diversas, o que macula gravemente a retórica que se busca dar à norma em análise. E esta importante diferenciação transcende à proteção jurídica do objeto da lei: o uso dos dados pessoais nas relações de consumo. Dado, segundo Victor Drummond (2003), é uma informação em sua dimensão mais reduzida, isolada, destacada. Estará excluída de todo e qualquer contexto interpretativo que lhe possa atribuir algum valor. Quando há contextualização (primária), pode-se conferir a um dado pessoal característica de relevante. Não destoa desse sentido Danilo Doneda (2011), que afirma que “dado” seria uma informação em estado potencial (pré- formação), e “informação” alude a algo além da representação contida no dado (cognição). O tipo de tratamento que se dará aos dados pode ser primordial para o funcionamento de um banco de dados, bem como atentatório para a inviolabilidade da vida privada dos consumidores. O direito à intimidade evoluiu de um aspecto negativo a um positivo (DONEDA, 2006; LIMBERGER, 2000). Surgiu como o direito a não ser incomodado, até se configurar como um direito a exigir prestações concretas. Os princípios da prevenção... // 383

In casu, o direito à intimidade e a informática apresentam, pois, dois âmbitos: um negativo e um positivo. O primeiro caracteriza-se com relação a resguardo geral de dados. O segundo, pelo direito de acesso e pela possibilidade de ver controlado o seu destino. A função da intimidade, portanto, no âmbito informático não é apenas a proteção da vida privada (que não seja violada) por meio da má utilização de seus dados. Pretende-se evitar, igualmente, que o consumidor seja transformado somente em números de um banco de dados. Um abrangente conceito de banco de dados é elaborado por Ana Paula Gambogi Carvalho (2003), que os considera, em sentido amplo, como toda compilação de informações, obras e outros materiais organizados de forma sistemática e ordenados segundo determinados critérios e finalidades específicas, feitas por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, sob a forma de fichas, de registros ou de cadastros, por processo manual, mecânico ou eletrônico, para uso próprio ou fornecimento a terceiros, de forma a facilitar o seu acesso e manuseio. A importância dos bancos de dados na atualidade ganha relevo com a exigência de informações das quais tanto o Estado como o mercado necessitam. No contexto brasileiro, a massificação das relações acentuou a dificuldade de os sujeitos participantes de um negócio jurídico se identificarem e, por consequência, de avaliarem o grau de confiabilidade e a capacidade creditícia da parte interessada. Entretanto, os bancos de dados vêm sendo utilizados para fins diversos, que vão desde o arquivamento de informações simples, como o nome e o endereço do usuário, para facilitar a sua identificação nas relações com fornecedores de bens e serviços, até a combinação de dados mais complexos para se traçar um perfil detalhado do usuário, de seus hábitos, gostos e preferências. A utilização de dados pessoais pode servir a variados propósitos, como publicitários, políticos e até persecutórios, podendo, pois, gravar de ilicitude o seu uso desvirtuado. Na sociedade do consumo, que tem como um de seus pilares a publicidade lucrativa, os dados dos consumidores podem ser dotados de um valor econômico (LIMBERGER, 2000). Podem servir de diretriz na hora de serem formuladas campanhas de marketing e estratégias de venda direcionadas, capazes, por conseguinte, de alcançar resultados mais efetivos. A necessidade de proteger o consumidor origina-se no valor econômico e em uma suposta comercialização dos dados referentes à sua personalidade. Tais informações podem revelar aspectos de comportamento, preferências e até contornos psicológicos, detectando hábitos de consumo que guardam relevância para o mercado (LIMBERGER, 2000; VIEIRA, 2002). O Código Defesa do Consumidor (CDC), Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, é atualmente o principal texto legal no Brasil a regular expressamente os bancos de dados, ainda que de forma restrita às relações de consumo. BESSA (2003), traçando um contexto histórico, relata que os bancos de dados de proteção ao crédito surgiram com o objetivo de oferecer informações àqueles que pretendiam conceder empréstimo em dinheiro a alguém, parcelar o preço ou simplesmente adiar o pagamento para data 384 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade futura. As informações se referem aos aspectos teoricamente úteis para permitir uma melhor avaliação dos riscos de se conceder crédito à referida pessoa. O crédito possui quatro características básicas: confiança, prazo, interesse ou juro e risco. Por estes motivos, o fornecedor constitui-se no legítimo interessado em obter algumas informações do próprio consumidor e de terceiros, com a finalidade específica de avaliar os riscos do negócio. A concessão de crédito ampara-se na crença de que o beneficiado irá, no futuro, cumprir as obrigações assumidas. Baseia-se especialmente no conhecimento de informações referentes à conduta do candidato ao crédito. Quanto mais conhecimentos se têm da pessoa, maior o crédito que se dá a ela. Ressalta BESSA (2003), em breve histórico acerca da concessão de crédito, demonstra que a era demorada, trabalhosa e complexa, onde o aspirante ao crédito se via obrigado a preencher um longo cadastro de informações, informando lá todas as seus locais usuais de consumo além de outras lojas onde comprava a crédito. A loja responsável pela concessão do crédito, por sua vez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada de informante, que percorriam, diária e pessoalmente, os locais indicados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. Buscando uma solução para agilizar o procedimento acima descrito, tornando-a mais eficaz e barata, em julho de 1955, 27 comerciantes reuniram- se em Porto Alegre, na sede da associação de classe, para fundar o “Serviço de Proteção ao Crédito”. Não havia objetivo lucrativo: a intenção era somente resguardar os interesses dos associados, possibilitando-lhes, com o conhecimento das informações, analisar melhor os riscos da concessão de crédito a determinada pessoa. Voltando a atenção ao CDC, é certo que o texto não faz distinção expressa quanto à sua incidência em relação a bancos de dados públicos ou privados. Os dados podem ser classificados em: a) públicos, relevantes para toda a sociedade, atendendo a sua divulgação ao direito de informar e de ser informado: acidentes, crimes, eleições, gastos públicos; b) pessoais de interesse público: nome, domicílio, estado civil, filiação; e c) sensíveis: determinados tipos de informação que, caso conhecidas e processadas, prestam-se a uma potencial utilização discriminatória ou particularmente lesiva (pensamentos, opiniões políticas, situação econômica, raça, religião, vida conjugal e sexual). O CDC considera arquiváveis, independente da vontade do seu titular, somente os dados não sensíveis, pois relacionam-se diretamente com o funcionamento da sociedade de consumo. São dados relevantes para a caracterização da idoneidade financeira do consumidor. Nada obstante, a referência do art. 43, quando afirma que entidades de caráter público não têm a ver com a classe ou a natureza jurídica da administradora do banco de dados. Entende-se que o caráter público significa que os bancos de dados de consumo atuam em uma seara permeada pelo interesse público, não havendo que se falar em exclusão ou atenuação dos Os princípios da prevenção... // 385 deveres impostos às entidades arquivistas. Seu funcionamento e administração apresentam interesse para a sociedade. O armazenamento dos dados sobre os consumidores não interessa apenas ao proprietário do arquivo, como também às pessoas nele inscritas. Sobre o armazenamento dos dados, “arquivo de consumo” é o gênero do qual fazem parte os bancos de dados e os cadastros de consumidores. Os arquivos de consumo auxiliam na dinâmica das relações consumeristas, de modo que informações que não cumprem este propósito, que não acresçam qualquer benefício ao fim, não devem ser objeto de arquivamento sem expressa autorização. De todos os modos, os dados devem ser expostos de forma objetiva e transparente, isentos de avaliações subjetivas ou passionais, que invadam a privacidade do indivíduo. A característica comum entre os bancos de dados e os cadastros de consumidores é que coletam e armazenam informações de terceiros para uso em operações de consumo. Todavia, os bancos de dados têm aleatoriedade da coleta; organização permanente; transmissibilidade extrínseca e inexistência de autorização do conhecimento do consumidor. Nos cadastros de consumo, por sua vez, a permanência das informações é acessória, já que o registro não é um fim em si mesmo, estando a manutenção dos dados vinculada ao interesse comercial atual ou futuro. Com relação à diferenciação dos arquivos de consumo, Leonardo Roscoe Bessa (2011, pp. 77-78) aduz que:

[...] a distinção [...] se faz a partir da fonte e do destino da informação. Os bancos de dados, em regra, coletam informações do mercado para oferecê- las ao próprio mercado (fornecedores). No cadastro, a informação é obtida diretamente do consumidor para o uso de um fornecedor específico, a exemplo do que ocorre em diversos estabelecimentos comerciais quando se solicitam dados pessoais (nome, endereços postal e eletrônico, telefone, data de aniversário, entre outros), independentemente de a compra ser à vista ou mediante crediário. No Cadastro, objetiva-se estreitar o vínculo com alguns consumidores, intensificando a comunicação sobre ofertas, promoções e outras vantagens, de modo a fidelizá-los a uma marca ou estabelecimento. [...] Nos bancos de dados, [...] os dados são coletados para posterior disseminação entre inúmeros fornecedores com visas a alguma necessidade do mercado.

De logo, percebe-se que as finalidades são bastante diversas: enquanto o simples “cadastro” busca, tão-somente, estreitar o vínculo existente entre o consumidor e um fornecedor específico, que recebeu estes dados diretamente de seu consumidor cadastrado, o banco de dados é criado por meio do repasse de informações oriundas de um terceiro ente na relação, que coleta os dados, em regra, com a anuência do consumidor, repassando- os para o mercado de consumo, de modo que outras empresas possam deles se utilizar para direcionar vendas ou analisar e melhor prever o comportamento de seus consumidores. 386 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

Percebe-se, também, que a nomenclatura “Cadastro Positivo” foi acompanhada de uma enorme campanha midiática, sempre induzindo o consumidor a entender que, ao fornecer seus dados para as empresas mantenedoras dos bancos de dados, estes refletiriam uma melhor situação de concessão de crédito, sempre com termos que sugerem a ideia de valorização do consumidor. Dessa forma, fica clara a indução do consumidor, ao apresentar uma campanha midiática diversa da fundamentação legal prevista pela lei nº 12.414/2011. Essa indução semântica abre caminho para a discussão jurídica sobre o necessário respeito à proteção constitucional do consumidor.

20.3 PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO

Para a análise que se pretende realizar neste breve artigo, opta-se por utilizar o Princípio da Prevenção, oriundo do Direito Ambiental, para a defesa do consumidor/cidadão brasileiro, em especial no tocante ao uso de seus dados pessoais por meio de instituições financeiras responsáveis por operar os chamados “Cadastros Positivos de Crédito”. Trata-se de princípio que busca um meio de se estudar a proteção do meio-ambiente em um contexto pré-violatório, agindo de forma contrária ao comumente estabelecido modelo pós-violatório/reparatório. Nesse sentido, pode-se entender como cabíveis exigências que busquem analisar os pontos capazes de causar danos ao meio-ambiente, ou seja, que “antecipam o dano ou, onde ele já ocorreu, tentam assegurar que ele não se espalhe” (SADELEER, 2009, p. 44). Percebe-se, então, que, no atual contexto pós-moderno, busca-se não apenas reparar os danos, mas sim evitá-los ao máximo, cercando as atividades do maior número possível de informações sobre o tema e seus possíveis riscos. Nesse sentido é o posicionamento de Fernandes (2008, p. 1620):

Este princípio visa minimizar ou compensar os impactos ambientais causados pela intervenç ão humana no ambiente. É atravé s dele que se justifica a necessidade e a importâ ncia de se obter informaç ões e a realizaç ão de pesquisas sobre os possíveis impactos, aplicando-se o princípio da prevenç ão em situaç ões nas quais os impactos já são conhecidos ou se podem detectar. Nesse caso, os elementos impactantes são identificados atravé s de estudos especializados, no qual se observa diversos fatores que estão atrelados ao ambiente.

Cabe defender-se, nesse momento, a aplicação do referido princípio para a proteção do consumidor brasileiro, em especial, como será demonstrado posteriormente, na proteção dos seus dados pessoais quando da criação dos bancos de dados previstos na lei do Cadastro Positivo de Crédito – Lei nº. 12.414/2011. Importa destacar que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/1990), em seu artigo 7º, permite que, na defesa do consumidor – direito Os princípios da prevenção... // 387 fundamental do cidadão brasileiro, conforme o artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal – sejam utilizadas outras normas e princípios que venham a ampliar os direitos previstos na legislação consumerista. É o que se observa da leitura do artigo (BRASIL, 1990):

Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.

Diante da previsão acima apresentada, é de se entender pelo cabimento da aplicação do Princípio da Prevenção na defesa do consumidor brasileiro, uma vez que representa uma maior possibilidade de exame prévio dos riscos envolvidos em determinada atividade de consumo. Sobre a garantia de maiores proteções quando da aplicação do Princípio da Prevenção, Fernandes (2008, p. 1620):

O Poder Pú blico e a Sociedade devem exigir a realizaç ão das pesquisas para a obtenç ão das informaç ões necessá rias para a outorga do funcionamento de qualquer atividade que vá intervir no ambiente. É um dever jurid́ ico do empreendedor submeter ao Poder Pú blico e à Sociedade a intenç ão de intervir no ambiente com a implantaç ão de alguma atividade ou empreendimento impactante, sob pena de ser responsabilizado.

Fica, assim, claro que a aplicação do Princípio da Prevenção para o consumidor brasileiro permitirá uma ampliação de sua proteção, ao permitir ao Poder Público a exigência da demonstração dos reais usos, bem como dos resultados causados pelos produtos expostos no mercado de consumo. O reconhecimento deste princípio e suas interpretações pela doutrina especializada do Direito Ambiental são capazes de efetivar a prevenção já prevista pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, VI, ao contrário da interpretação que vem sendo extraída do dispositivo pela doutrina consumerista: apenas visando ao efeito reparatório/pós-violatório, em lugar de efetivamente agir antes da concretização do dano. O Princípio da Prevenção, aplicado na defesa do consumidor, permite que o cidadão brasileiro tenha a certeza de que o produto ou o serviço a ele oferecido tenha sido alvo das mais diversas pesquisas, no intuito de garantir seu correto funcionamento para os fins que foram efetivamente pensados, protegendo-o, dessa forma, contra eventuais desvios de finalidade daquele produto ou serviço e garantindo ao consumidor eventual responsabilização do fornecedor, caso reste comprovado o desvio.

20.4 PRINCÍPIO DA INFORMAÇÃO

388 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

O Princípio da Informação possui duas fontes normativas: o inciso XIV do artigo 5º e o inciso III do artigo 6º, ambos da CF/88, a serem interpretados conjuntamente:

Constituição Federal: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional[...].

Código de Defesa do Consumidor: Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem[...].

Referido princípio visa garantir ao consumidor o total acesso às informações relevantes acerca dos produtos ou serviços que venha a utilizar em seu dia-a-dia, garantindo-lhe o conhecimento acerca dos riscos e resultados então envolvidos. Na mesma toada é a lição de Guimarães (2001):

Nas relações de consumo, tipicamente de massa, onde o conhecimento sobre os produtos e serviços por parte dos consumidores é escasso, onde impera a complexidade técnica e a ausência de tempo para qualquer verificação mais detalhada, a informação é algo fundamental. Ela cria no destinatário uma confiança; crê o consumidor que aquilo que lhe está sendo dito é verdadeiro, é correto, é seguro.

O Princípio da Informação deve ser pensado como um meio de garantir a participação popular na tomada de decisões quanto ao modo e ao objeto de consumo. Ao possibilitar o máximo conhecimento possível sobre todas as questões envolvidas, é facultado ao consumidor questionar, fundamentadamente, sobre os reais objetivos dos fornecedores com a apresentação de determinados produtos ou serviços no mercado de consumo. Segue o posicionamento de Tartuce e Neves (2014, p. 52):

[...] há uma ampla proteção em matéria de informação, inclusive em consonância com o previsto no art. 5°, XIV, da CF/1988, pelos riscos decorrentes da exposição das pessoas a um grande número de dados informativos, próximo ao infinito. Vale citar as palavras de Ricardo Luis Lorenzetti, que discorre muito bem sobre a informação nos seguintes termos: "Assinalou-se que o direito à informação é um pressuposto da participação democrática livre, porque a democracia pode se frustrar diante da ausência de participação, e, para participar, deve-se estar informado. A concepção do Direito Privado como controle difuso do poder justifica esta afirmação. Com esta finalidade de estabelecer uma norma de delimitação do poder e de Os princípios da prevenção... // 389

participação, tem-se advertido duas fases sobre a informação, o direito à informação importa no direito de informar a de ser informado.

Aprofundando-se sobre a aplicação dos princípios da prevenção e da informação à Lei nº. 12.414/2011 – Lei do Cadastro Positivo de Crédito, percebe-se que a informação, quando exigida neste diploma legal, reveste- se da obrigatoriedade para as empresas responsáveis por tais cadastros de informarem ao consumidor não só a fonte de consulta destes bancos de dados, como também a forma de uso e, mais importante, a utilização que será dada a estes dados captados, se os mesmos serão repassados à outras empresas e quais serão estas. Resta clara, para o fornecedor do serviço de captação de dados positivos de crédito, a obrigatoriedade de municiar o consumidor de todas as informações relativas ao serviço prestado. Retomando a lição de Tartuce e Neves (2014), vemos a obrigação de informar o consumidor. Todavia, conforme demonstrado inicialmente, desde a criação da referida, lei não se verifica o respeito nem ao procedimento legislativo correto – uma vez que a mesma surge de uma Medida Provisória cujos próprios fundamentos e requisitos são questionados (CUNHA E CRUZ; OLIVA, 2014a) – muito menos, aos preceitos fundamentais da defesa do consumidor brasileiro e ao próprio Estado de Direito, que sofre patente subversão (CUNHA E CRUZ; OLIVA, 2014b). Percebe-se que, desde a sua criação, com sua apresentação como “Cadastro Positivo de Crédito”, o consumidor já é induzido a erro, como demonstrado anteriormente, uma vez que devemos notar o abismo conceitual existente entre o “cadastro” e o “banco de dados”. O consumidor é levado por uma falsa sensação de poder, imaginando que poderia direcionar o registro apenas das informações que reputasse interessantes. Em realidade, percebe-se que, uma vez aceita a participação nos serviços regulados pela Lei do Cadastro Positivo, o consumidor deixa de ter qualquer possibilidade de influência sobre a forma como tais informações serão coletadas, estando os fornecedores limitados apenas pelo texto legal. Ocorre que, como buscaremos demonstrar no próximo tópico, tais limites são cinzentos e, mesmo com um posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema, a conclusão não restou devidamente esclarecida para os consumidores brasileiros, deixando ainda mais inseguro o ato de consumir, bem como o de fazer parte dos “bancos de dados positivos”.

20.5 A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS E O JULGAMENTO DO RESP.1.419.697 - RS

O Acórdão proferido quando do julgamento do REsp 1.419.697 – RS foi ementado da seguinte forma:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C DO CPC). TEMA 710/STJ. DIREITO DO CONSUMIDOR. ARQUIVOS 390 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

DE CRÉDITO. SISTEMA “CREDIT SCORING”. COMPATIBILIDADE COM O DIREITO BRASILEIRO. LIMITES. DANO MORAL.

Trata-se de Recurso Especial processado por meio do rito previsto no artigo 543-C do Código de Processo Civil, também chamado de “Rito dos Recursos Repetitivos”, oriundo de controvérsia estabelecida no Estado do Rio Grande do Sul, acerca da existência de cadastro não solicitado, sobre diversos consumidores, no sistema de análise de risco de crédito conhecido como “Credit Scoring”. O objetivo do recurso era analisar a legalidade do referido sistema e a existência de dano moral in re ipsa decorrente do cadastro não solicitado. O acórdão controverso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi apresentado com a seguinte ementa:

AGRAVO EM APELAÇÃO CÍVEL. APELAÇÕES CÍVEIS. Responsabilidade civil. Ação cominatória de obrigação de fazer cumulada com indenizatória por dano moral. SCPC SCORE CRÉDITO. ILEGALIDADE DO SERVIÇO. DIREITO À INFORMAÇÃO. VIOLAÇÃO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. MAJORAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REDUÇÃO DO PERCENTUAL FIXADO NA SENTENÇA. É abusiva a prática comercial de utilizar dados negativos dos consumidores, para lhe alcançar uma pontuação, de forma a verificar a probabilidade de inadimplemento. Sem dúvidas, este sistema não é um mero serviço ou ferramenta de apoio e proteção aos fornecedores, como quer fazer crer a demandada, mas uma forma de burlar direitos fundamentais, afrontando toda a sistemática protetiva do consumidor, que inegavelmente se sobrepõe à proteção do crédito. Reconhecer a ilicitude deste serviço não significa uma forma de proteção aos mal pagadores. Estes já contam com seu nome inscrito nos órgãos de proteção ao crédito, cujos dados podem ser utilizados livremente pelas empresas. O que não é possível é a utilização de registros pessoais dos consumidores, para formar um novo sistema de probabilidade de inadimplemento, sem informar claramente aos interessados e a toda sociedade quais são exatamente as variáveis utilizadas e as razões pelas quais uma pessoa é classificada como com “alta probabilidade de inadimplência” e outra com “baixa probabilidade de inadimplência”. A falta de transparência e de clareza desta “ferramenta” é incompatível com os mais comezinhos direitos do consumidor. Na forma com que é utilizado o sistema, certamente gera os danos morais alegados na inicial, pois o consumidor que necessita do crédito, negado em face de sua pontuação, fica sem saber as razões pelas quais é considerado propenso ao inadimplemento, restando frustrada legítima expectativa de ter acesso aos seus dados e a explicações sobre a negativa do crédito. AGRAVO DESPROVIDO. (fl. 202)

Como resultado do julgamento do Recurso Especial, tendo em vista sua natureza repetitiva, com o intuito de orientar as futuras decisões acerca do tema em análise, foram editadas as seguintes teses:

1) O sistema “credit scoring” é um método desenvolvido para avaliação do risco de concessão de crédito, a partir de modelos estatísticos, considerando Os princípios da prevenção... // 391

diversas variáveis, com atribuição de uma pontuação ao consumidor avaliado (nota do risco de crédito). 2) Essa prática comercial é lícita, estando autorizada pelo art. 5o, IV, e pelo art. 7o, I, da Lei n. 12.414/2011 (lei do cadastro positivo). 3) Na avaliação do risco de crédito, devem ser respeitados os limites estabelecidos pelo sistema de proteção do consumidor no sentido da tutela da privacidade e da máxima transparência nas relações negociais, conforme previsão do CDC e da Lei n. 12.414/2011. 4) Apesar de desnecessário o consentimento do consumidor consultado, devem ser a ele fornecidos esclarecimentos, caso solicitados, acerca das fontes dos dados considerados (histórico de crédito), bem como as informações pessoais valoradas. 5) O desrespeito aos limites legais na utilização do sistema “credit scoring”, configurando abuso no exercício desse direito (art. 187 do CC), pode ensejar a responsabilidade objetiva e solidária do fornecedor do serviço, do responsável pelo banco de dados, da fonte e do consulente (art. 16 da Lei n. 12.414/2011) pela ocorrência de danos morais nas hipóteses de utilização de informações excessivas ou sensíveis (art. 3o, § 3o, I e II, da Lei n. 12.414/2011), bem como nos casos de comprovada recusa indevida de crédito pelo uso de dados incorretos ou desatualizados. Grifo nosso

Para esta breve análise, destacam-se os comentários sobre as teses de número 3 e 4. Conforme se percebe, o STJ destacou, em sua decisão, que, quando da análise de crédito, deve ser respeitada a tutela da privacidade e da transparência nas relações consumeristas. Também foi reconhecida a possibilidade de o consultado solicitar ao fornecedor maiores esclarecimentos acerca das fontes dos dados obtidos. Observando-se quantitativamente o Inteiro Teor do acórdão em questão, percebe-se que a palavra “informação” foi utilizada 23 vezes. Todavia apenas 7 vezes, entre as páginas 32 e 34 do documento, o vocábulo foi apresentado no sentido de um direito do consumidor brasileiro. Apesar disso, sempre aparece significando um “dever” e não um “princípio”, a ser respeitado pelos fornecedores que atuem no Brasil. Ainda, em momento algum, referida Corte enfrentou as questões envolvidas com a autorização para o cadastramento e com a análise dos “perfis” dos consumidores brasileiros contra a vontade destes, muito menos adentrou na discussão acerca das fontes efetivamente consultadas para a realização da análise de crédito. Em realidade, a Corte Superior de Justiça em nada avançou acerca da proteção do consumidor brasileiro, garantia fundamental de nossa sociedade (CF/88, 5º, XXXII); apenas caracterizou como legal a atividade desenvolvida por empresas multinacionais, demonstrando, mais uma vez, a subversão do Estado de Direito defendida por Vieira (2007). É de se destacar que, quando do julgamento no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ficou clara a preocupação daquele órgão colegiado com a utilização indevida dos dados dos consumidores brasileiros 392 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade como decisivos para a possibilidade de estes efetuarem ou não o adimplemento das compras realizadas ou créditos concedidos. Ademais, fica patente a necessidade de se considerar o Princípio da Prevenção quando do julgamento do Recurso Especial em análise, o que foi completamente negligenciado pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, visto que, em tal oportunidade, seria possível demonstrar a preocupação com a utilização destes dados pessoais para fins diversos dos parcialmente expostos, isto é, na defesa da empresas envolvidas na contenda. É necessário garantir ao consumidor o pleno conhecimento acerca da real utilização dos seus dados, além da forma como serão estes valorados para a concessão ou não do crédito solicitado. Ademais, a garantia do conhecimento dos dados utilizados pelos fornecedores na análise do crédito permitiria ao consumidor uma efetiva noção sobre eventuais desvios da finalidade dos dados armazenados nestes bancos de dados. Imperioso garantir ao consumidor um maior controle dos dados captados e armazenados a seu respeito, permitindo-lhe escolher quais dados poderiam efetivamente ser utilizados pelos fornecedores para a análise de seu perfil de crédito. No mesmo sentido, Navarro (2012, p. 429):

O direito fundamental à autodeterminação informativa, sob a sua vertente de direito geral à proteção de dados pessoais captados pelo Estado, surge oportunamente como um direito de defesa e de prevenção, individual ou coletivo, contra os desvios de finalidade nos atos de captação, tratamento e comunicação de dados pessoais pelas instituições públicas.

Destaca-se, ainda, a incoerência existente entre as teses de número 3 e 4: enquanto uma define que devem ser respeitados os limites da privacidade e da transparência previstos na lei nº 12.414/2011 e no Código de Defesa do Consumidor, a outra afirma ser desnecessário o consentimento do consumidor consultado, e, por conseguinte, entende como desnecessária a autorização do consumidor para a criação de perfil no sistema de análise de crédito – o que fere o preceito básico de transparência nos contratos consumeristas, além da própria privacidade, pois os consumidores desconhecem a existência dos dados consultados. A breve análise do acórdão também demonstra a forma como insistem os tribunais em analisar a proteção do consumidor brasileiro, fragmentada em diplomas diversos, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor e da Lei do Cadastro Positivo de Crédito, e não analisando-a como o microssistema que é – um conjunto de normas interligadas e coordenadas com a proteção constitucional prevista no artigo 5º, XXXII da Carta de 1988. É de se destacar, por fim, que a suposta garantia evidenciada pela edição da tese de número 4 apenas demonstra, mais uma vez, a já demonstrada subversão do Estado de Direito com relação aos consumidores brasileiros (CUNHA E CRUZ; OLIVA, 2014b), ao impor ao consumidor a necessidade de buscar as informações acerca do uso dos seus dados Os princípios da prevenção... // 393 pessoais captados e armazenados sem sua autorização/conhecimento, em total descompasso com o Princípio da Informação, além de sequer reconhecer a obrigatoriedade de consulta ao consumidor cadastrado, ferindo, também, a própria transparência citada no acórdão em análise. Resta, com isso, demonstrada, agora no âmbito do Poder Judiciário, a subversão do Estado de Direito, manifestada agora na total inversão dos preceitos fundamentais para a defesa do consumidor, no que tange às responsabilidades antes impostas aos fornecedores, as quais passam a recair sobre a parte mais fraca daquela relação econômica, o consumidor brasileiro.

20.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma pontuada, enfim, conclui-se que: a. São divergentes a finalidade legalmente apresentada para a formação dos cadastros positivos, de garantir uma diminuição nas taxas juros dos “bons pagadores” quando da celebração de contratos de financiamento bancários, e o real objetivo da Lei do Cadastro Positivo de Crédito, qual seja, municiar a instituições financeiras de dados pessoais suficientes para a elaboração de perfis de consumo, para análise do interesse em ofertar seus serviços a determinados indivíduos; b. É aplicável o princípio da prevenção também em relação à Lei nº 12.414/2011, como meio de se proteger o consumidor num contexto pré-violatório, considerando-se que, no atual contexto pós-moderno, busca- se não apenas reparar os danos, mas sim evitá-los ao máximo, o que implica na maior cautela possível quando se trata do fornecimento de dados pessoais, cuja real utilização não é completamente conhecida; c. Atribui-se especial relevância ao princípio da informação no tocante à formação desse cadastro positivo, pois a situação atual é de pouca divulgação da lei, sendo que essa mesma pouca divulgação vem propagando a falsa impressão de que o principal efeito da lei em comento é possibilitar a concessão de crédito a juros mais baixos – o que, de fato, não ocorreu até o presente -, enquanto, na verdade, os dados pessoais destinam-se ao maior empoderamento das instituições creditícias, que poderão ofercer serviços mais adequados e, com isso, irresistíveis às aspirações do consumidor; e d. O STJ deixou passar a oportunidade de melhor enfrentar a questão das diferenças entre cadastro e banco de dados e suas decorrências jurídicas, ao julgar o REsp.1.419.697-RS, havendo limitado o entendimento a algumas teses, das quais se destaca o dever de respeito à tutela da privacidade e da transparência nas relações consumeristas, além do reconhecimento da possibilidade de o consultado solicitar ao fornecedor maiores esclarecimentos acerca das fontes dos dados obtidos.

20.7 REFERÊNCIAS

394 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade

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= XXI =

QUESTÕES RELEVANTES EM TORNO DA BIOÉTICA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS ACERCA DO “DIREITO DE MORRER”

Andressa Paula de Andrade* Ítalo Moreira Reis** Pedro Paulo da Cunha Ferreira***

21.1 INTRODUÇÃO

Embora a bioética possa ser enfocada através de diferentes ponto de vista, pode-se enxergá-la também como o resultado da relação entre o direito – como instrumento de regulamentação da conduta humana – e as ciências médicas em sentido amplo. Desse modo, a bioética nasce com um conteúdo bastante interdisciplinar, possibilitando que se mantenha atenta a certas preocupações, tais como a fixação dos limites de intervenção da ciência no destino do ser humano. Aliás, as formas de aproximação do direito aos problemas bioéticos tem sido bastante frequentes ao longo do séc. XX, mormente após a necessidade de enfrentar as situações sociais inéditas, não raro relacionadas aos sistemas de controle e produção de bens e serviços e das “relações econômicas, das descobertas ou avanços científicos, ou das modificações nas relações interindividuais, entre os quais as ciências biomédicas constituem um dos exemplos mais representativos” (ROMEO CASABONA, 2005, p. 18). É certo, que dentre as atenções desse setor do conhecimento, existe espaço para o tratamento dos efeitos que a atuação do homem tenha para os animais e a natureza em geral, mas mostra-se mais disposto ao enfoque

* Aluna do programa de Pós-graduação lato sensu em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada. Membro do Núcleo de Estudos Penais (NEP/UEM) e do Núcleo de Estudos em Direito e Ambiente (NEAMBI/UEM). Associada ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). E- mail: [email protected] ** Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel e mestrando em Direito do Trabalho, Modernidade e Democracia pelo Programa de Pós-graduação strictu sensu da mesma instituição. Advogado. Professor de Direito e Processo do Trabalho na PUC/MG. E-mail: [email protected] *** Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Ciências Penais pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor de Direito Penal da PUC/MG. E- mail: [email protected] 398 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade dos impactos sociais decorrentes da criação e utilização de tecnologias científicas, altamente avanças e complexas. Com relação a um dos referidos temas, ou seja, a clonagem de seres vivos, o direito brasileiro deu um significativo passo há pouco menos de 20 anos atrás. Esse avanço se deu com a edição da lei nº. 8.975/95, que regulamentava o uso de células embrionárias e células tronco, ainda que de forma inicial e pouco aprimorada. Nesta legislação viu-se pela primeira vez a proibição de realização da clonagem, dentre outros procedimentos de mesma ordem. Dez anos depois, entra em vigor a lei nº. 11.105/2005, que revoga àquela legislação e disciplina essa questão – dentre outras tantas – de modo mais profundo, porém com algumas falhas e omissões, visto que deixou de tratar juridicamente de alguns pontos relevantes do manejo de técnicas de engenharia genética. E diante da ausência de regramento por parte do direito, diferentes questões acabam ficando a cargo da bioética, ou seja, de um tratamento oferecido por resoluções editadas pelos orgãos de classe médica como aquelas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), cujo valor normativo não substitui em hipótese nenhuma a regulamentação dada pelo direito, seja o direito civil ou Direito Penal. Cumpre informar que as resoluções do CFM tem caráter administrativo, isto é, são instrumentos por meio dos quais os médicos se autoregulamentam. São portanto, normas diferentes daquelas que - a exemplo da Lei de Biossegurança (lei nº. 11.105/2005) – são votadas e aprovadas pelo Congresso Federal e, por isso possui validade nacional e não um valor restrito à determinada categoria profissional. A Lei de Biossegurança (lei n. 11.105/2005), não contemplou – como mencionado antes -, sérias problemáticas relacionadas à reprodução artificial de seres humanos e outros assuntos também vinculados a ética como é o caso da eutanásia. Por eutanásia se entende o conjunto de procedimentos que apressam a morte de um paciente acometido por uma doença grave e incurável ou em sendo-a tratável, os meios paliativos necessários acarretam imenso sofrimento ao enfermo. Trata-se, pois do adiantamento da morte do sujeito, com a finalidade de aliviar seu sofrimento físico e mental diante da falta de expectativas otimistas de cura para a sua moléstia. Esse processo pode ser visto no ato do médico que, após colher do paciente doente sua autorização e consentimento, suspende algum medicamento ou tratamento que lhe mantém vivo ou administra alguma substância que acelere a falência de seu organismo. O direito precisa dar passos importantes, neste sentido ainda, mesmo que muitos setores da comunidade desejem deslocar essa discussão do universo jurídico para o âmbito religioso (RIVACOBA Y RIVACOBA, 1989, p. 293-294), o que na maioria dos casos impediria qualquer debate ou dificultaria um consenso sobre a questão.

Questões relevantes... // 399

21.2 AINDA SOBRE AS QUESTÕES DO BIODIREITO

Voltando à Lei de Biossegurança (SÁ; NAVES 2009, p. 155-168), naquilo que se encarregou de disciplinar o fez de fato com algumas impropriedades. Uma delas é o uso de uma linguagem deficitária, tendo em vista que traz um número elevado de conceitos embaralhados, típicos das ciências médicas, empregados no texto da lei de forma muito equivocada. Não se pode esquecer, porém que esses erros causam frequentes confusões no momento de interpretação e aplicação da norma. Um evento, que ilustra bem isso foi o julgamento que se deu pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião da ADI nº. 3.510 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), processo por meio do qual se reconheceu, a partir do falho texto da lei de Biossegurança, a constitucionalidade (legalidade e autorização) para o uso de células tronco com o fim de estudos. Foi preciso, portanto, que aquele Tribunal corrigisse a compreensão acerca da autorização de pesquisas com esse tipo de material, já que o texto legal não o havia feito de forma clara e conclusiva. Na época da decisão, acalourados debates envolveram o cenário jurídico nacional. De um lado, haviam correntes de opinião contrárias à legalização deste tipo de experiência científica, apesar da existência de grupos de pressão política, que se interessavam na permissão destes experiementos, como por exemplo, pessoas que esperavam um certo progresso no tratamento de suas enfermidades degenarativas (NYS, 2002, p. 67 e ss.), diante do desenvolvimento futuro de técnicas curativas com células tronco. Mesmo em face dessas tensões, o resultado foi a declaração por parte do STF da constitucionalidade dessas investigações e pesquisas, desde que com algumas limitações, inexistentes, diga-se de passagem em países com legislações mais modernas como a inglesa, a norteamericana e a espanhola. Seja como for, o Brasil hoje, de certa forma, contém uma legislação que se preocupa à sua maneira com as questões principais da bioética. É preciso enxergar com bons olhos a postura dos Ministros do STF, porque não seria legítimo ao direito obstaculizar completamente o necessário e útil desenvolvimento da ciência. Uma decisão contrária à constitucionalidade do assunto em pauta naquele momento seria um perigoso e impróprio retrocesso para a humanidade. Em face de problemáticas semelhantes a essa, surge a necessidade de definir quando o direito precisa e pode atuar interventivamente para fiscalizar o aperfeiçoamento dos instrumentos científicos. Até que ponto o direito pode restringir os avanços da ciência? Além do mais, o aprimoramento técnico-científico evolui muito mais rápido, se comparado a velocidade das regulamentações jurídicas. Este fator levaria, suficientemente - às vezes -, a uma defasagem da disciplina legal com relação a determinado fato, ou então, a rapidez da ciência já tornaria – em 400 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade outros casos - inconveniente qualquer tipo de regramento por parte do direito. Assim, vê-se que o direito sempre caminha atrás da ciência. Nota-se, a propósito algumas exceções a essa regra. Ao observar particularmente o caso da clonagem isso fica mais visível. Como é sabido, não se conseguiu, até hoje, clonar um ser humano, sendo, todavia muito provável que no futuro essa perspectiva se concretize. A despeito disso, já há algum tempo muitas centenas de laboratórios e milhares de cientístas disputam tomar para si o pioneirismo com relação a essa – que será indiscutivelmente uma – gigantesca novidade biotecnológica. E sobre isso, o nosso direito, assim como o direito da maioria dos países, proíbe a clonagem. Então se pode dizer, que o direito antecipou a barreira de proteção, antecipou para uma conduta que sequer é possível, ainda. Como bem salienta Higuera Guimerá (HIGUERA GUIMERÁ, 1995, p. 296), existe uma forte e compreensível razão de natureza político-criminal para se ter vislumbrado àquele feito como um delito, vez que o exercício da prática que lhe define como comportamento humano que afeta um bem jurídico de caráter personalíssimo (MALUF, 2002, p. 44), a saber, a irrepetibilidade do patrimônio genético (humano) 1 (HAMMERSCHMIDT, 2012, p. 70). Tal preocupação proibitiva decorreu tão logo obteve-se sucesso, anos atrás, com relação a clonagem da famosa ovelha Dolly, justamente em razão dos receios que o mesmo pudesse se repetir com seres humanos, bem como sob qual sentido se desejaria fazer isso. O direito como um mecanismo ético, que o é também, objetiva exatamente administrar um controle eficáz destes (importantes) experimentos com relação à dignidade da pessoa humana. Logo, essa, a saber, a dignidade da pessoa constitui por si só uma suficiente barreira ao incremento da ciência, além de servir de variável que possibilita o desenvolvimento sustentável de toda e qualquer criação humana. Não há como pensar no progresso e expansão científica senão com finalidades benéficas para os seres vivos em geral e em particular para o homem. É perceptível esse objetivo em algumas espécies de clonagens humana como as terapêuticas, que permitirião em um amanhã o transplante de orgãos e/ou tecidos a pessoas que deles necessitarem. No entanto, qual seria o real fim de uma clonagem meramente reprodutiva?2 (SOUZA, 2004, p. 367-368) Não se avista outra finalidade que não o simples capricho e vaidade na produção em série de seres humanos com uma identidade genética já existente. Ademais, é preciso considerar também algumas outras finalidades com as quais se tomam as técnicas genéticas. É preciso, pois se atentar para as intervenções genéticas utilizadas como instrumento eugênico. A propósito, sobre essa questão, embora as manipulações genéticas recaiam sobre indivíduos concretos, acaba portanto,

1 Ou ainda encarado como uma aspecto do direito à intimidade genética ou autodeterminação informativa, cujas violações podem se dar desde outras perspectivas. Sobre vide, (HAMMERSCHMIDT, 2012, p. 70). 2 Sobre as experimentações não-terapêuticas, vide (SOUZA, 2004, p. 367-368). Questões relevantes... // 401 por transcendê-los, afetando também a própria espécie humana em sua integridade, identidade, inalterabilidade e diversidade (ROMEO CASABONA, 1999, p. 224). Não é sem pouca razão o temor que despertam práticas assim orientadas, posto a aplicação de certas tecnologias médicas – a pretexto de uma suposta melhora nos traços genéticos humano -, servirem ao ressurgimento de ideologias racistas, e próprias do início do séc. XX. O trabalho do legislador e do jurista se torna intensamente delicado em todo esse campo, porque precisa estar, por outro lado, sempre alerta em criar uma disciplina jurídica que não impeça o melhoramento dos estudos e pesquisas científicas. Mas, ao mesmo tempo é essencial que imponha à ciência o limite instransponível do respeito à dignidade da pessoa humana. O direito poderia servir à fortalecer com sua força normativa alguns limites éticos, que outros orgãos regulamentadores (como o CFM) já o faz. Veja, por exemplo, a questão das “barrigas de aluguel”. No Brasil há uma resolução médica que autoriza excepcionalmente essa prática, desde que com precisas demarcações, como ser a barriga solidária a de uma parente da futura criança, por exemplo, sua avó ou tia. Outra objeção à esse procedimento é a sua finalidade econômica, ou seja, de maneira nenhuma se permite que a mulher que cederá o ventre para a gestação receba qualquer vantagem econômica por este ato. O direito, hoje por hoje, se omitiu com relação a tratar por ele mesmo essa questão, bem como outras a ela relacionadas como a situação da herança (direitos sucessórios) da criança que nascerá e, também a problemática da filiação e da paternidade dela. Seria extremamente importante que o direito se ocupasse mais sobre estes detalhes, que a própria comunidade médica já se predispôs a estabelecer, deixando claro, assim na lei (civil) os parâmetros que se deveriam adotar no tocante àquele assunto e aos seus desdobramentos. Deste modo, há temáticas que por sua menor complexidade podem ser tratadas exclusivamente pelas resoluções médicas de caráter administrativo, outras tantas ao contrário, precisam estar amparadas pelo direito e por sua incidência erga omnes. Um excelente exemplo disso é o da já, anteriormente citada eutanásia, que da forma como encontra-se atualmente, - sem qualquer regulamentação por parte do direito – pode a sua prática, com consideráveis chances cair na clandestinidade em muitos hospitais e clínicas pelo país. Pois bem, o que seria mais perigoso? Regulamentar detalhadamente essa questão ou deixá-la da maneira como está? (DÍEZ RIPOLLÉS, 1995, p. 135 e ss.). Realmente, parece, sugestivamente mais maléfico ao homem continuar com a omissão legal que se tem hoje. É evidente que as polêmicas em torno desse assunto são de grandes dimensões, e argumentá-lo apenas 402 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade sobre o ponto de vista jurídico3 (PESSINI, 1999, p. 97), seria um debate vazio, dado a impossibilidade de se ignorar as tensões morais, religiosas e culturais que estão em volta dele. No entanto, pensar em abrir (algumas) possibilidades de legalização da eutanásia (DÍAZ-ARANDA, 2003, p. 302) é algo, também, muito difícil, posto que isso precisa ser feito em uma circunstância que não fragilize o direito à vida humana e a sua proteção. Dizendo com outras palavras, quando se pensa em direito à eutanásia, imagina-se o “direito à morte”4 (SALDAÑA SERRANO, 2014, p. 193 e ss.) digna que o paciente tem, diante de um quadro clínico instável ou vegetativo. Em igual modo, é preciso, considerar as pessoas que não querem morrer clandestinamente nos estalecimentos de saúde. Isto é, deve-se pensar na participação efetiva – quando possível – do enfermo em todo esse processo. Em outros casos é improvável essa participação, como em situações nas quais o sujeito encontra-se desacordado e em coma profundo, sem condições de oferecer seu consentimento acerca do procedimento. Nessas hipóteses, seria obviamente justo e correto que se consultasse os parentes do paciente, a fim de que estes tomassem a decisão final. Entretanto, não se pode contar com certeza que isso ocorra sempre, precisando ser imaginado os casos em que o(s) médico(s) ajam sozinhos sem qualquer interferência dos entes queridos do indivíduo ou mesmo de sua própria opinião. Ora, regulamentar a eutanásia seria um movimento elementar para a proteção tanto de quem quer realizar a eutanásia, quanto daquele que não deseja ser submetido a esse procedimento sem que sobre ele possa opinar.

21.3 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS ACERCA DO PARTICULAR PROBLEMA DA EUTANÁSIA

Na atualidade não existe qualquer regramento jurídico sobre a eutanásia no Brasil. O médico ou a pessoa que realizar a eutanásia, hoje, responde pelo crime de homicídio, podendo em alguns casos ter a sua pena atenuada. O fato de o paciente ter solicitado a prática do procedimento em nada altera a responsabilidade penal do médico. Isto é, pouco importa para o direito nacional a vontade do paciente que deseja submeter-se a eutanásia.

3 Mesmo porque, a morte não se encerra em um fenômeno simplesmente técnico-científico, trata- se, sim de um evento cultural, moral e religioso, cujas diferenciações desdes pontos de vista “oferecem uma compreensão, e apontam para comportamentos mais apropriados” acerca dessa problemática.Cf. (PESSINI, 1999, p. 97). 4 No entanto, algumas orientações jurisprudenciais não reconhecem esse como um direito, posto acreditar-se que alguns interesses como a integridade física e a vida estão invariavelmente acima da autonomia da vontade privada. É pois, o caso de paradigmática decisão proferida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, cuja posição é a de não reconhecer um direito de morrer fundamentado na qualidada de vida. O mesmo tribunal questiona – em emblemático julgamento -, a interpretação do direito à vida em seu aspecto positivo, a saber, como uma faculdade passível de disposição pelo seu titular. Sobre a íntegra dessa decisão e seus comentários, vide (SALDAÑA SERRANO, 2014, p. 193 e ss). . Questões relevantes... // 403

Do ponto de vista da classe médica, começa a haver aquela autoregulamentação de que se falou antes. Em abril de 2010, foi promulgado o Código de Ética Médica e que trata indiretamente do direito a eutanásia. Não se autorizou com isso, ao médico a realização da eutanásia e nem poderia, claro, ser diferente, porque se não seria uma autorização contrária às leis atuais que proíbe – acima de tudo - essa atuação. Mas ali, se abriu uma pequena porta para o direito aos cuidados paliativos, mencionando que o médico tem o dever de aliviar o sofrimento do paciente, contando para tanto com o seu consentimento5 (SILVESTRONI, 1999, p. 567) ou o de seus familiares. Isso faz referência, ainda, a obrigatoriedade de o médico sempre ouvir a opinião do paciente, exceto quando haja perigo de morte, ocasião em que o enfermo não tem direito de escolha e receberá, portanto os cuidados terapêuticos ou curativos. Em países europeus, por exemplo, ao paciente é concedido o direito de recusar (CARVALHO, 2009, p. 223 e ss.) qualquer tratamento médico, seja ele vital ou não. O que fica perceptível no Brasil é o receio ou medo que a classe médica tem de tratar mais abertamente sobre o assunto da eutanásia. É óbvio que a eutanásia ocorre em diversos hospitais do Brasil, mas por ser um tabu (FARREL, 1991, p. 67-70) prefere-se não tocar no tema, e por conseguinte não o regulamentar. Uma vez criada uma legislação que regulamente a eutanásia no nosso país, automaticamente deveria ser formado, em paralelo, uma comissão de caráter interdisciplinar, composta por médicos, juristas, terapeutas, psicólogos, membros da comunidade e outros profissionais, que juntos pudessem discutir profundamente cada caso que se apresentasse, para aí sim, poder-se autorizar ou não a realização do procedimento. A comissão assim integrada contribuiria, também com o controle do limite e respeito à dignidade humana que se tocou anteriormente mais acima. É preciso, definitivamente refletir um pouco mais sobre essa e tantas outras questões que envolvam as biociências e os avanços tecnológicos. No entanto, algumas problemáticas dentre essas tantas que foram aqui levantadas merece maior atenção. É evidente que cada uma das questões apresentadas constituem por si só, objetos de estudo de grande densidade valorativa, merecendo, pois um tratamento em apartado. Porém, abordar as discussões bioéticas desde a perspectiva das lacunas jurídicas em torno do tratamento da eutanásia impende uma atenção maior. Suscitar um consenso acerca da legalização do “direito de morrer” em determinadas hipóteses é um processo que pode, perfeitamente, interessar ao direito brasileiro, e igualmente a diferentes outras realidades comparadas que estejam em análoga situação. Um ponto de partida que faculta um desenvolvimento de respostas plausíveis à questão em análise é justamente se questionar, a princípio até que ponto as soluções apresentadas pelo direito hoje são satisfatórias para o

5 Inclusive é esse o fundamento sob o qual trabalham muitos no tocante à desoneração de responsabilidade penal do médico que executa a eutanásia. Cf. (SILVESTRONI, 1999, p. 567). 404 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade enfrentamento dos aspectos próprios da eutanásia. Sobre isso, nota-se que mesmo em Estados de maior avanço econômico e técnico que o nosso, a matéria ainda encontra-se carente de melhor detalhamento legal, a exemplo, pois da Espanhã, que tal qual o Brasil experimenta um clamor social por uma solução mais justa conferida às pessoas que demandam um direito de morrer dignamente. Quando se aventa esse tipo de expediente para aliviar o sofrimento de um enfermo, a ele não se pode confundir com uma outra prática aparentemente semelhante, a saber, o suicídio6 (JAKOBS, 1997, p. 426). Neste, o próprio sujeito toma a resolução acerca do fim da sua vida, e ele mesmo executa os atos que lhe conduzem a um autoextermínio. O comportamento que merece relevo aqui é distinto, isto é, refere-se ao conjunto de ações (lato sensu) que constituem, o comumente chamado homicídio eutanásico, cuja ideia central se baseia na imposição de termo final à vida humana, porém executada por um terceiro (v. g aplicação da injeção letal). Desde que se reconheceu um certo valor utilitário (MANTOVANI, 2006, p. 121-123) à eutanásia, sempre houveram movimentos dirigidos à descriminalização do comportamento desse terceiro que ao fim e ao cabo atua em participação ao suicídio do sujeito. Inclusive, atualmente na Espanha, essas incursões tem ganhado maior destaque, atingindo as instâncias formais de regulamentação que discutem uma proposta de lege ferenda visando a descriminalização desse que ainda hoje é considerado um delito em seu Código Penal. No Brasil a situação não é diversa, ainda que sobre esse mesmo contexto haja alguma diferenciação sobre o assunto, atribuído pelo tratamento conferido pelo direito interno de cada um dos dois países. Como posto antes, é possível argumentar sobre esse conteúdo desde diferentes pontos de vista, e um deles é o filosófico. Pois bem, há bases filosóficas firmes que sustentam a necessidade de um tratamento jurídico diverso do que tem sido concedido à questão da eutanásia (LAMARCA PÉREZ, 2009, p. 22), seja pelo legislador espanhol, o brasileiro e os de outros Estados em se encontrem no mesmo estágio de entendimento com relação a essa matéria. Um relevante aspecto nesse sentido, relaciona- se aos questionamentos em torno do excessivo e inapropriado paternalismo estatal (FERREIRA; VIEIRA, 2012, p. 209-237) que tem orientado os diferentes programas de política legislativa. Trata-se, assim sendo de questionar a ideologia do Estado em perseguir a proteção de alguns interesses do homem – a exemplo de sua integridade física ou vida -, mesmo contra a sua própria vontade. É evidente que essa postura não pretende franquear a abertura para a legalização da eutanásia em todas as suas circunstâncias, vez que admitir sua prática em qualquer hipótese redundaria em efeitos extremamentes perniciosos para qualquer sociedade. Não é isso que se propõe. Ao contrário,

6 Vide diferenças interessantes e precisas traçadas sobre homicídio por petição e o suicídio, formuladas por (JAKOBS, 1997, p. 426). Questões relevantes... // 405 a proposta de discussão em torno da legalização da eutanásia se dá desde uma perspectiva bastante restrita, sobretudo quando o que se pretende realmente com esse tipo regulamentação é certificar de segurança a todas as pessoas possivelmente envolvidas nesse processo. A autorização para o exercício do homicídio piedoso em contextos eutanásicos já restringe, por si só a legalização do procedimento. No entanto, mesmo em sendo sua execução naquelas situações, se admitiria em casos estritos, ou seja, apenas em circunstâncias nas quais por exemplo, a própria sociedade pudesse se assegurar acerca de todos os desdobramentos daquela atuação. Ilustrando o panorama jurídico com base nas comparações anteriormente já traçadas, é perceptível o quão a colocação dessas discussões são producentes no tocante ao amadurecimento legislativo dessa problemática. Na Espanha, a pena para aquele que realiza a eutanásia é de dois a cinco anos de reclusão. Já no Brasil, essa sanção pode chegar até vinte anos de reclusão, ou seja, conferimos a uma idêntica conjectura tratamentos díspar, notadamente porque aquele país vivenciou discussões anteriores sobre esse assunto. Como mencionado antes, a filosofia e suas reflexões oferecem condições fecundas à colocação de bases para a mudança desse estado das coisas. Distintos autores, como é o caso de Joel Feinberg (FEINBERG, 1986, p. 4) e Gerald Dworkin elaboraram modelos teóricos-descritivos de cunho antipaternalista (MARTINELLI, 2010, p. 116). Esses pensadores de lingua inglesa são reconhecidos por suas posturas frotalmente opostas ao modelo de Estado paternalista7 (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 186), bem como das manifestações jurídicas e políticas que legitimam esse sistema. E acepção de liberdade alinhavada por eles contraria a atitude do Estado (e de seu direito) em tutelar a vida e a liberdade dos indivíduos mesmo quando eles querem dispor desses direitos que são de sua titularidade. Todavia, muito embora as noções trazidas Feinberg e Dworkin sejam incontestavelmente importantes, considera-se que apregoar sem algumas relativizações o conteúdo de suas propostas, principalmente em contexto ao particular caso da eutanásia acarretaria resultados catastróficos. São, por assim dizer, ideias que uma vez encaradas sem seus devidos recortes fundam uma excessiva liberdade, perigosa in totum àqueles mesmos interesses humanos já referidos. Desse modo, essa liberdade seria positivamente valorada no tocante à eutanásia apenas quando, o Estado de forma objetiva cercasse de garantias aquele processo de decisão pessoal a respeito do final da própria vida, compondo e instalando nos hospitais, comissões técnicas e interdisciplinares aptas ao acompanhamento do paciente em estado terminal e de sua família, a fim de que se assegurasse que aquela decisão é de fato

7 Contrário a um modelo de Estado que excessivamente insiste em uma tutela dos direitos fundamentais, sobretudo sobrelevando-a sobre a dignidade da pessoa se mostra (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 186). 406 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade definitiva e irreversível e está justificada, pois naquela situação (extrema). Encara-se, também como uma situação provavelmente adequada a liberação do procedimento eutanásico em casos como aqueles nos quais o sujeito (vítima) encontre-se acometido com uma doença grave e terminal ou padeça de uma enfermidade que, a despeito de não provocar a morte imediatamente é por si mesmo incurável. Essa última suposição integra as hipóteses dos pacientes em estado vegetativo persistente que uma vez em coma, podem assim permanecer por um longo tempo, aproximadamente 10 ou 20 anos seguidos. Não são, portanto tecnicamente pacientes em estado terminal, mas compõem situações sob as quais pode pensar no desligamento dos aparelhos que lhes mantém a sobrevida. Todavia, a ciência ainda hoje é cética no tocante a falta de expectativas de cura de pacientes nesse tipo de quadro clínico. Por outro lado, a mesma ciência identifica em casos muitíssimos isolados, uma porcentagem diminuta de pacientes que naquele estado alcançam uma satisfatória recuperação. De fato, essa realidade resulta naqueles acontecimentos que a própria comunidade médica atribuem ao excepcional, ao acaso ou para alguns, ao sobrenatural (ao divino). Independente da causa da reversão dos raros casos de coma profundo, esta fração insignificante de cura não poderia obstaculizar uma regulamentação mais adequada da eutanásia. A propósito, ao se pensar nessa abertura é preciso encarar o fenômeno desde seus múltiplos aspectos e, admitir o emprego da eutanásia justificada, também para além do desligamento dos aparelhos vitais à manutenção da vida débil do paciente, mas ainda cogitar-se da possibilidade de provocar a sua morte de forma ativa. E nesse sentido, paradigmático foi o caso norteamericano de uma paciente – Terri Schiavo (ARCE ACUÑA, 1997, p. 211) -, que após um ataque cardíaco aos 27 anos, sofreu seríssimas lesões cerebrais em decorrência daquele trauma, resultando-lhe em um quadro de vegetatividade permanente. Schiavo se tornou um dos mais representativos ícones da questão da eutanásia no início do séc. XXI (MENEZES, 2001, p. 76). A paciente não estava conectada a nenhum aparelho que lhe mantivesse viva, tendo, assim instaurado uma grande polêmica (familiar), a respeito de se permitir ou não a eutanásia acerca em seu caso. À época, os juízes dos Estados Unidos, então permitiram que se suprimissem todos8 (ALONSO ÁLAMO, 2008, p. 41) os cuidados que eram dados à paciente, entretanto não aceitaram a possibilidade de aplicação da injeção letal (eutanásia ativa) na mesma para que provocasse sua morte de forma indolor, mais breve e inclusive mais digna (BERISTAIN, 2001, p. 62). O fato é que a paciente ficou em média 14 dias sem alimentação e sem hidratação,vindo pois tempos mais tarde a óbito. Disso tudo, se observa que nesse tipo de caso, há uma espécie de hipocrisia por parte do Estado em não permitir a eutanásia (ativa), que poderia atenuar e paliar o sofrimento do paciente de forma mais rápida, mas se permite a morte lenta e agônica,

8 Tratando-se, pois da chamada eutanásia por omissão, Cf. (ALONSO ÁLAMO, 2008, p. 41) . Questões relevantes... // 407 contrária, pois a própria dignidade daquele paciente. Se apercebe em face disso, que há um tabu enorme em torno da eutanásia ativa, mais do que com relação a eutanásia praticada de forma passiva. Diante da realidade local, não existe no Brasil um exemplo que seja tão paradigmático quanto esse para citar. No entanto, isso não implica que a prática da eutanásia não aconteça aqui. Ocorre o exercício da eutanásia no Brasil de forma velada, como na maioria dos países que ainda insistem em não regulamentá-la. Evitar falar de eutanáisia, bem como legislar sobre ela é mais perigoso aos pacientes que morrem clandestinamente nos hospitais do que ter uma legislação garantista que permite ao paciente, por exemplo, saber os limites de até onde o médico pode agir com relação ao termo final de sua vida, além também de determinar as hipóteses nas quais o paciente pode dispor livremente de sua própria vida. Resumindo, não legislar sobre o assunto não representa, qualquer sinal de segurança jurídica, mas sim assinala um perigo e uma grande possibilidade de que a eutanásia seja praticada de forma oculta e desconhecida pelo país. Uma vez inexistindo um regramento que defina a (i)legalidade dessa prática, como saber se o paciente, por exemplo, ofereceu seu consentimento para o exercício da eutanásia por parte do médico, ou então se a família do mesmo prestou a anuência para tanto, naqueles casos em que o enfermo não pôde se manifestar? Como não há legislação específica, como saber se o paciente deu consentimento9 (ZAMORA JIMÉNEZ, 2008, 95-99) ou se seus familiares ofereceram esse consentimento? Algo sobre isso é certo: não havendo legislação que discipline a matéria, aumentam-se as chances de que a realização da eutanásia se dê sem nenhuma garantia ao paciente e a seus familiares. A prática da eutanásia como aqui exposto, se difere, pois do chamado suicídio que embora distinto, pode ser trabalhado desde essa perspectiva, a saber, em consideração ao chamado suicídio em contextos eutanásicos. Em realidade, com relação ao suicídio, o que ocorre é o fato de a decisão final acerca do fim da própria vida se dar pela própria pessoa. Todavia, alguns sujeitos assim deliberando, contam ou precisam contar com a ajuda de um terceiro para que se dê execução à sua tomada de postura. Ou seja, conta- se com a ajuda de alguém que o auxilia na execução de pôr fim à própria vida. Sobre essa espécie de participação no suicídio (em flagrante contexto eutanásico), bastante paradigmático é o exemplo de um caso havido na Espanhã. Ramón Sampedro, um marinheiro e escritor espanhol, após anos na condição de tetraplegia, passou a lutar junto a justiça de seu país pelo direito de morrer dignamente (SANZ BARQUÍN, 2008, p. 216-219). No

9 Podendo operar com notórios efeitos de causa excludente do delito quando prevista em certos ordenamentos jurídicos, como o caso do Código Penal mexicano que contempla em seu art. 15. No cao do direito nacional, o consentimento do “ofendido” tem sido reconhecido como autêntica causa supralegal de exclusão da ilicitude. Cf. (ZAMORA JIMÉNEZ, 2004, p. 160-162). 408 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade entanto, em razão de sua impossibilidade de, por si só, executar o autoextermínio, o paciente passou a solicitar que seus familiares e amigos o auxiliasse, sem que fossem, portanto, responsabilizados por qualquer delito (cooperação em suicídio). Sampedro contou ao final com a ajuda de uma amiga que lhe facilitou acesso a uma solução letal de cianeto de potássio, tendo-lhe aproximado para que a ingerisse, provocando-lhe, então a morte. Os instantes finais da vida de Sampedro, consistiu em uma manifestação sua diante das câmeras – em um vídeo caseiro -, por meio do qual o paciente protestou contrariaemente ao Estado e ao direito espanhol paternalistas. O comportamento dessa terceira pessoal não se enquadra, desse modo, na prática de um homicídio propriamente dito, mas senão de uma autêntica participação no suicídio daquele sujeito. De forma geral, no tocante à classe médica é possível perceber que a mesma carrega um certo receio com relação aos limites de sua atuação no que se refere a tarefa de aliviar o sofrimento do paciente. No entanto, em que pese isso, não se mostram no todo refratários a essa prática ou à sua possibilidade de regulamentação (LEPARGNEUR, 1999, p. 45). Já com relação a outros setores sociais, a exemplo especificamente da Igreja Católica, se nota uma maior resistência às discussões (ARROYO URIETA, 1987, p. 426) em torno do assunto e da eventual legalização da eutanásia, como bem alerta Arroyo Urieta. A propósito, sua maior dificuldade está com relação à admissão da eutanásia praticada de forma ativa, posto mostra-se razoavelmente favorável (MINAHIM, 2005, 190-191) à sua execução de forma passiva, isto é quando não se provoca deliberadamente a morte do paciente, mas lhe facilita em face da interrupção de todos tipo de tratamento médico, farmacológico e outros que sustentam a vida do doente. Em matéria de avanços legislativos, o Congresso Nacional discute uma proposta de reforma de Código Penal, que atualmente se encontra estagnada. Nesse projeto, a eutanásia ativa e passiva passam a ser regulamentadas pelo legislador brasileiro. Porém, essa disciplina ainda sofre algumas ressalvas. Essas obtemperações são no seguinte sentido: para a perspectiva do referido projeto de Código Penal, a eutanásia passiva deixa de ser considerada – em face de sua aprovação -, como uma conduta criminosa. Ao contrário, a eutanásia praticada de forma ativa (PEREIRA, 2000, p. 45), comporta um tratamento bastante similar ao que lhe conferiu ao legislador espanhol (art. 143.4 do Código Penal espanhol) em disciplina jurídica, a dizer, mantém-se com a natureza de delito, porém com penas bem abrandadas se comparadas àquelas cominadas ao homicídio simples (art.121, caput CP). É claro que por se tratar de um anteprojeto moderno, que desvenda temas tabus, suas expectativas de avanço são mais lentas e submetidas a permanentes críticas, seja pela vanguarda dos temas que aborda, seja pelas consideráveis impropriedades técnicas que carrega consigo. Questões relevantes... // 409

Por outro lado, enquanto o projeto se gesta, matura e se aperfeiçoa, outras instâncias regulamentadoras, que por sofrerem mais de perto as influências da faticidade ora exposta, passa a desenvolver sua própria disciplina acerca do assunto. É exatamente o que tem ocorrido com relação às normativas deontológicas que dirigem o exercício da profissão dos médicos. Em virtude das lacunas e omissões legislativas, a categoria dos médicos passou a autoregulamentar-se com relação a critérios de atuação que cingem à problemática da eutanásia. Aproximadamente pouco mais de cinco anos atrás, passou a vigorar o novo Código de Ética médica, mais exatamente em 13 de abril de 2010. É notório que semelhante disciplina não possui a mesma força de lei que uma legislação discutida, aprovada e sancionada em esfera Federal, pelos membros do poder legislativo e executivo nacional. Mas apesar disso, não se despreza o importante papel desempenhado por essa normativa do Conselho Federal de Medicina (CFM), no estabelecimento de parâmetros que determinem o agir dos médicos diante de uma paciente em estado terminal. A inovadora e oportuna previsão desse código foi a possibilidade facultada ao paciente de recusar determinado tratamento ou de rejeitar-se à submissão de alguma terapia. Trata-se, pois de um instrumento administrativo que reconhece e privilegia a autonomia da vontade pessoal do paciente10 (BARROSO, 2010, p. 63), reconhecendo-lhe capacidade para saber, por si mesmo, o que mais lhe interesse no tocante ao seu estado. Por outro lado, a mesma lex artis dispõe que em situações e quadros nos quais a omissão de tratamento repercuta em risco de morte ao enfermo, deve ao mesmo ser imposto os devidos cuidados médicos, ainda que contrariamente à sua vontade. A tratativa determina, também que ao médico incumbe o dever de oferecer cuidados paliativos ao doente, ou seja, lhe impõe a tarefa de aplicar terapias que alivie a dor do paciente. No entanto, não se descarta que a imposição desse tipo de expediente, resulte na dependência do paciente àquela química (BAJO FERNÁNDEZ, 1993, p. 718), o que gera indiretamente - a médio e longo prazo - sua inevitável morte. Abre-se, assim um pequeno e significativo espaço para uma regulamentação da eutanásia passiva (através de cuidados paliativos), mantendo-se, ao revés, sob a ocultação dos tabus as discussões ao redor da eutanásia ativa11 (FARRELL, 1983, p. 16). O grande perigo acerca da eutanásia e de sua legalização, mormente em países onde a saúde pública não cobre sequer as demandas de quem queira e necessite receber um tratamento se refere, pois à questão

10 Nesse sentido, vide as considerações de (BARROSO, 2010, p. 63), para quem “ No contexto da morte com intervenção deve prevalecer a ideia de dignidade como autonomia. Além do fundamento constitucional, que dá mais valor à liberdade individual do que às metas coletivas, ela se apoia também em um fundamento filosófico mais elevado: o reconhecimento do indivíduo como um ser moral, capaz de fazer escolhas e assumir responsabilidade por elas”. 11 Há quem trace um escorço importante acerca da inexistência de qualquer diferenciação conteudística desde o ponto de vista ético e moral ao redor da eutanásia ativa e da eutanásia passiva. Sobre isso, vide (FARRELL, 1983, p. 16). 410 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade econômica em torno dos sistemas de saúde. O fato é que o exercício regular da eutanásia pode encontrar outros fundamentos que não os fins perseguidos pelo próprio sujeito, ou seja, o paciente desacreditado de expectativas otimistas de cura. Dizendo de forma mais direta, o temor nesse sentido, alude-se, especificamente à possibilidade de a prática do homicídio piedoso se transformar em uma válvula de escape que “suavize” a fragilidade do sistema público de saúde dos Estado que passarem a admiti-la (COELHO, 2013, p. 301). Essa perspectiva poderia levar ao pensamento por parte dos gestores de saúde, administradores de hospitais e casas de cuidado que, em casos de pacientes desenganados pelas técnicas médicas, a antecipação do óbito reduziriam os gastos que acarretam para o Sistema Único de Saúde (SUS). Certamente esse é um dos argumentos mais plausíveis que sustentam o rechaço à legalização da eutanásia em países como o Brasil. A subversão dos fins colimados através da eutanásia, isto é, a atenuação do sofrimento do paciente para objetivos dessa ordem, não tem perspectiva de ocorrer apenas em países de um debilitado sistema de saúde coletiva. Novamente, invocam-se exemplos de outras realidades que descreve com propriedade o que ora se expõe. Um simbólico caso havido em uma cidade satélite de Madri denuncia essa situação. Naquela região, um médico da UTI de um determinado hospital habitou-se a administrar tratamentos paliativos (QUERALT JIMÉNEZ, 1998, p. 127-128) aos pacientes, já em idade avançada e em estados de inconsciência, baseando sua terapia na aplicação de elevadas doses de morfina, sem que para tanto, tivesse consultado os pacientes ou seus familiares. E se atuações dessa índole formam a experiência de culturas com serviços de saúde relativamente avançados – como é o caso da Espanha -, quiçá em países, cuja sistemática se define pela precariedade de seus aparatos clínicos, como é a hipótese do Brasil e de outros tantos países da América Latina. Se se propõe a aplicação da eutanásia com certas exigências de garantia, como a coleta do consentimento do paciente ou de seus familiares para seu exercício, talvez se consiga vedar (relativamente) a clandestinidade de sua prática. Ou seja, sua regulamentação pode servir a evitar (proibir) que o médico administre qualquer fármaco ao doente ou mesmo qualquer substância que lhe cause a morte, sem seu assentimento ou sem a consulta aos seus parentes. Uma outra maneira de se resguardar sobre a legalidade do procedimento se refere à necessidade de que todo o processo seja assistido por profissionais tecnicamente habilitados para a emissão de pareceres, cujos relatórios expressem debates profundos acerca das bases daquela decisão, que o é definitiva e irreversível para o enfermo. Essa equipe integraria, pois as comissões interdisciplinares, compostas por médicos, filósofos, juristas, psicólogos, etc que atuariam junto aos hospitais e casas de saúde habilidas ao exercício regular da eutanásia. Somado a isso, não se pode esquecer de que os laudos médicos que atestem a irrerversibilidade do quadro do paciante – a ser submetido ao processo -, conte, outrossim, com o Questões relevantes... // 411 diagnóstico de outros peritos, que conjuntamente avalize tratar-se de um caso que de fato impenda a realização da eutanásia. O pioneirismo legislativo acerca dessas questões ficou a cargo de três países, a dizer, a Holanda, a Belgica e a Suiça. Em particular, a legislação holandesa, sofrendo mudanças significativas nos anos 2000 e seguintes, passou a permitir a eutanásia ativa, admitindo-se, a administração de substâncias letais aos pacientes que justificassem12 (BOSCH BARRERA, 2005, p. 184 e ss.) pelos seus quadros a antecipação de sua morte. O que se presenciava até pouco antes dessa modificação era a possibilidade de prática da eutanásia passiva13 (NÚÑEZ PAZ, 2004, p. 329), por parte de alguns países da União Européia e de alguns estados dos Estados Unidos. Não há, assim nenhum outro caso senão o holandês que represente um salto significativo sobre essa questão, posto ter sido a Holanda o Estado que primeiro descriminalizou (MORA MOLINA, 2002, p. 537 e ss.) a eutanásia ativa. Essa alteração veio acompanhada de mudanças institucionais naquele país, sendo, a partir de então obrigatório o acompanhamento dos casos de eutanásia por parte do Ministério Público e de outros orgãos de fiscalização (VAN KALMTHOUT, 1995, p. 191 e ss.). O controle governamental teve de acompanhar de forma mais incisiva as práticas de eutanásia, fiscalizando-as, controlando-as e, por fim lhes dando os devidos registros. Conquanto essa gestão se dê de modo oficial, é natural que aumentem os números de casos conhecidos de eutanásia. Não se trata de pensar que sua legalização redunde no crescimento da prática, mas sim de que sua regulamentação resulte na formalização de todo o procedimento, que retira – assim -, da chamada cifra negra um sem-número de casos que poderiam ocorrer na clandestinidade. Diante de tudo, é esperado uma tendência natural, a saber, a de descriminalização da eutanásia nos mais diferentes contextos culturais. Discute-se muito acerca da descriminalização de outras formas de aborto não contempladas no CP brasileiro – situação na qual é impossível que o titular do bem jurídico (feto) possa emitir sua opinião -, do que a questão da eutanásia na qual em significativas vezes, o titular do interesse em apreço (vida) tem capacidade e condições de consentir acerca de sua disposição. Muito se levanta, também a problemática que gravita em torno das condições psicológicas do paciente - em quadros como os acima levantados -, para poder consentir com racionalidade acerca do fim de sua vida, através, pois da eutanásia. Naturalmente que em diferentes situações, o enfermo encontra-se acometido, paralelamente por uma permanente frustração, e paulatina falta de esperanças sobre sua cura, o que pode conduzi-lo a decisão fatal, ou acreditar sê-la tomada, a partir do seus estados de

12 Em realidade, há autores que estabelecem um repertório de causas que embasam a decisão de encerramento da vida, sendo enumeradas as seguintes: a dor ou o sofrimento do paciente, seu sentimento de inutilidade em face de estados vegetativos e a depressão decorrente desse quadro. Cf. (BOSCH BARRERA,2005, p. 184). 13 Para alguns a interrupção do tratamento em certos casos é um imperativo que se impõe, sob pena de reisificação do paciente. Cf. (NÚÑEZ PAZ, 2004, p. 329). 412 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade fragilidade emocional. Mas para tanto, é possível se trabalhar desde a perspectiva do chamado testamento vital (GONZALEZ ALCANTARA, 2008, p. 31 e ss.), instrumento – revogável a qualquer momento -, por meio do qual em períodos anteriores à essa realidade se possa colher o desiderato do paciente acerca daquela perspectiva que futuramente venha a se materializar.

21.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto acerca das questões levantadas pode-se inferir que: a) Os avanços tecnológicos da atualidade exigem do homem uma reconstrução de sua atuação diante dos diferentes fenômenos sociais que lhe apresentam o cotidiano; b) Algumas dessas novas técnologias estão associadas a uma intervenção direta na vida do homem, e a certos interesses seus, a exemplo da sua integridade física, vida e identidade genética; c) Em face de alguns perigos que a tecnologias, altamente avançadas e complexas podem acarretar aos bens jurídicos (individuais e coletivos) é que o direito como instrumento ético que o é precisa operar em paralelo a esses avanços, estabelecendo, pois limites plausíveis às consequências negativas que as mesmas possam acarretar àqueles direitos; d) Um particular e interessante aspecto disso refere-se, a forma como essas aprimoradas técnicas podem auxiliar as ciências médicas na manutenção artificial e controlada de uma vida humana já debilitada, prolongando-a por prazos (in)determinados; e) Esse quadrante resulta na necessidade de confrontar semelhantes fatos com as disposições individuais do paciente e/ou de seus familiares acerca na manutenção da vida naquele estado; f) Assim sendo, a antecipação da morte do enfermo terminal ou em estados de coma permanente - sem qualquer confiança de cura -, tem já há anos levantado posições que ora patrocinam um direito a morrer dignamente, ora que neguem a existência dessa prerrogativa como um direito do paciente. Essa inclusive, é uma temática, cujo clamor polariza adeptos de diferentes ideologias, que permeiam as discussões em voga da eutanásia sobre variáveis quadraduras; g) Buscou-se apresentar o atual estágio no qual se encontra a cultura jurídica nacional e estrangeira acerca do assunto, com vistas à suscitar uma discussão menos radical sobre a questão, se comparada aquelas vazadas por posturas mais ortodoxas que tem, também se ocupado dessa realidade.

21.5 REFERÊNCIAS

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416 // Os limites da tutela dos direitos da personalidade na contemporaneidade