RAFAEL BATISTA DIAS

O cinema de e a temporalidade do afeto

Recife 2013

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RAFAEL BATISTA DIAS

O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE para obtenção do Título de Mestre

Área de concentração: Mídia e Estética

Orientador: Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho

Recife 2013

Catalogação na fonte Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

D541c Dias, Rafael Batista O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto / Rafael Batista Dias – Recife: O Autor, 2013.

129 f.: il.

Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Comunicação, 2013. Inclui referências.

1.Comunicação. 2. Van Sant, Gus - Crítica. 3. Cinema. 4. Afeto (Psicologia). 5. Geração beat. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da (Orientador). II.Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2013-100)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor do trabalho: Rafael Batista Dias Título: “O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto”

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do Professor Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Banca Examinadora:

______

Paulo Carneiro da Cunha Filho

______

Maria do Carmo de Siqueira Nino

______

Lourival Holanda

Recife, 30 de agosto de 2013 4

Agradecimentos

Ao orientador, prof. Paulo Cunha, por compreender a sensibilidade deste projeto no cuidado ao revisar e comentar meus textos, e também por me apoiar no tempo e nos caminhos necessários.

A Michelson Novaes, pela acolhida, pelos filmes, pelo papel de guia na Université Vincennes-Saint-Denis e pelos atalhos em que me fizeram redescobrir o afeto.

A Éricka de Sá, por tornar leve a etapa desta pesquisa em Londres.

Ao prof. Thiago Soares, da UFPB, pela indicação de livros acadêmicos que me tocaram profundamente.

À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco, pela bolsa de mestrado concedida no período de dois anos da prospecção, o que possibilitou a feitura deste texto.

Aos meus alunos da disciplina eletiva Autoria e estilo, por proporcionarem um ambiente de cinefilia e aprendizado mútuo durante a experiência de estágio-docência.

À profa. Ângela Prysthon, da UFPE, por me ouvir sobre este projeto e ter me indicado Fernando Mendonça, meu amigo vansantiano.

A Mariana Andrade, pelas leituras, conselhos e, sobretudo, por sempre estar junto nas revisões desta dissertação. E a Zé Carlos, da secretaria do Ppgcom/UFPE, pelo suporte.

A Schneider Carpeggiani e Talles Colatino, por terem sido meu esteio.

E à Força Superior, que está sobre as nuvens.

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Lista de figuras

Fig. 1: Frames de Mala Noche, de Van Sant e O Terceiro Homem, de Orson Welles...19 Fig. 2: Foto de estrada no deserto de Nevada (EUA) por Ansel Adams...... 22 Fig. 3: Foto do ator no filme ...... 23 Fig. 4: Foto da série Southern Suite, de William Eggleston...... 23 Fig. 5: Frames de Drugstore Cowboy com o rosto de Matt Dillon...... 30 Fig. 6: Close-up de Henry Hopper, em Inquietos...... 36 Fig. 7: Close-up de Dennis Hopper, por Andy Warhol……...... 36 Fig. 8: Close-up de Matt Damon, em Gênio indomável……...... 45 Fig. 9: Still de Até as vaqueiras ficam tristes...... 48 Fig. 10: Frame de nuvens em Mala Noche...... 50 Fig. 11: Frame de nuvens em Gerry...... 50 Fig. 12: Contra-plongée das nuvens em My Own Private Idaho...... 52 Fig. 13: Frame do filme Satantango, de Béla Tarr...... 64 Fig. 14: Foto da série Equivalents, de Alfred Stieglitz...... 77 Fig. 15: Frames de close-up em Elefante, de Van Sant...... 85 Fig. 16: Still com a técnica do travelling em Gerry...... 88 Fig. 17: Sobreposição de close-ups em Gerry...... 98 Fig. 18: Still de Casey Affleck e Matt Damon em Gerry...... 100 Fig. 19: Sequência de quatro frames de Gerry...... 101 Fig. 20: Contra-plongée de nuvens e das árvores em Elefante...... 104 Fig. 21: Frame do corredor da escola em Elefante...... 106 Fig. 22: Sequência de dez frames de Elefante...... 108 Fig. 23: Travelling sobre a personagem Elias em Elefante...... 109 Fig. 24: Frame desfocado da personagem Alex em Elefante...... 109 Fig. 25: Frame do parabrisa do carro em Últimos dias...... 113 Fig. 26: Frame da janela do quarto em Últimos dias...... 117 Fig. 27: Frame em zoom-out da janela em Últimos dias...... 117 Fig. 28: Frame do corpo de Blake em Últimos dias...... 119

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RESUMO

Para que servem cinemas de limiar estético? Sobre que fios de tempo delicados deitam- se imagens e narrativas contemporâneas densas? Compreendendo um esforço em recontar o cotidiano por meio de nosso tecido de afetos, esta dissertação usa o cinema de Gus Van Sant como escopo para uma bandeira teórica: a necessidade de uma nova “arqueologia” da memória (Didi-Huberman) que dê conta também de experiências “sublimes no banal” (Lopes). O corpus deste estudo centra-se na Trilogia da Morte (Gerry, Elefante e Últimos Dias), momento em que a obra vansantiana remete aos “cristais de tempo” (Deleuze) a partir do uso de nuvens como motif poético onipresente, mesmo que rarefeitas e insuspeitas sob a forma de reflexos (o duplo) e de névoa. Este texto também destaca, a efeito de introdução, os vínculos de Van Sant com outras experimentações estéticas que antecipariam suas preocupações atuais: a ligação com a Contracultura americana nas artes plásticas (Pop-art), no cinema (Cinema de Vanguarda e New Queer Cinema) e na literatura (Geração Beat).

Palavras-chave: Comunicação. Van Sant, Gus. Crítica. Cinema. Afeto. Geração Beat.

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ABSTRACT

What are border aesthetic cinemas for? How they could lean on smooth and thin loaves of time by considering contemporary images and narratives? Gus Van Sant’s cinema struggles against narrative as an attempting to re-historycize our daily life using the plenty of human affections. This dissertation gives a glimpse of the oeuvre from this American director to formulate a theoretical question: how possible it is to recreate a new “archeology” of time (Didi-Huberman) considering our “sublime moments on vulgar” (Lopes). The corpus of this research focuses on Death Trilogy’s Van Sant (Gerry, Elephant and Last Days), which reflects the conceptual moment of “Crystal- Image” (Deleuze) by using the image of clouds as ever-present poetic motif, even opaque and visually insuspected upon windows reflections (the double) or mist. This text also exposes prior aesthetic experimentations in Van Sant’s career, for e.e. his conection with the American Counterculture in visual arts (Pop-art), cinema (Avant- Garde Cinema and New Queer Cinema) and literature (Beat Generation).

Keywords: Communication. Van Sant, Gus. Criticize. Cinema. Affect. Beat Generation.

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Sumário

1. Introdução ...... 9

2. Gus Van Sant e o olhar offbeat ...... 15 2.1 Identidades, pastiche e uma estética do desvio ...... 18 2.1.1 Beatnik tardio e questões de adaptação...... 21 2.1.2 Cinemas deslocados: queer, de vanguarda e experimental...... 27 2.1.3 Andy Warhol, Pop-art e máscara...... 35

2.2 Temas à margem e motifs poéticos...... 39 2.2.1 Juventude e o uivo da rebeldia...... 41 2.2.2 A estrada e a mitologia como um rito...... 46 2.2.3 A nuvem e o afeto como sentimentos...... 49 3. A Imagem-Névoa...... 57 3.1 O afeto fílmico...... 60 3.1.1 A temporalidade do afeto e a Trilogia da Morte ...... 66 3.1.2 A inflexão da imagem-névoa...... 75 3.1.3 Corpo-cadáver e corpo-abismo...... 83

4. Névoa, corpo e desaparição ...... 94 4.1 Gerry e a névoa de recomposição...... 96 4.2 Elefante e a névoa de desfragmentação...... 103 4.3 Last Days e a névoa de decomposição...... 111

5. Considerações finais ...... 121

Referências ...... 123

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1. INTRODUÇÃO

[Arthur] Schopenhauer foi o primeiro escritor importante a falar sobre o tédio (em seu livro Essays) - classifica-o como "dor" um dos males duplos da vida (dor para os que não têm, tédio para os ricos - que é uma questão de afluência). As pessoas dizem ‘é chato’, como se isso fosse um padrão final de recurso, e nenhuma obra de arte tem o direito de nos aborrecer. Mas talvez a arte tenha que ser chata, agora. (O que, obviamente, não significa que a arte chata é necessariamente boa); tradução nossa. Susan Sontag

O amor é uma espera; e a dor, uma ruptura súbita e imprevisível dessa espera. J.-D. Nasio

América, eu te dei tudo e agora não sou nada. América, quando é que você será angelical? Quando você se olhará através do túmulo? América, por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas? Allen Ginsberg

O filme Paisagem na neblina (Topio stin omichli, 1988), do cineasta grego Theodoros Angelopoulos, contém uma cena emblemática que virtualiza a questão do olhar, cerne deste estudo. Ao caminharem sobre uma rua erma de Atenas, à noite, o jovem rapaz Orestis, acompanhado de duas crianças, Voula e Alexandros, acha um pedaço de celulóide, provavelmente um refugo fotográfico, com marcas de uso, e lhes mostra, pedindo que foquem o objeto com atenção. O negativo, todo escuro, é examinado pelos dois irmãos, que dizem não ver imagem alguma. O rapaz insiste, pede que observem novamente. Enquanto conversam, a câmera de Angelopoulos move-se lentamente, em direção à peça estranha e aparentemente estéril que se torna pivô de um jogo: opaca, cujo interior é invisível a olho nu, a atmosfera embaçada e refratária contida naquele recorte de filme desafia quem a vê. Nós, espectadores, somos atraídos, inadvertidamente, por uma imagem turva que se projeta em um infinito que rompe o 10

estatuto da cronologia tradicional, fazendo surgir a fenda de um labirinto à nossa frente. E, enfim, o que vemos não é um celulóide escuro, mas um pedaço de imagem sobre a qual transferimos afetos, sensações e desejos. A visão retiniana conjuga um sistema a partir de um espelho primário (o filme descartado) que reflete um olhar-espelho secundário (o movimento da câmera conjugado ao estoque da visão subjetiva do espectador). Essa troca de vetores incessante, um fluxo permanente de tentar enxergar algo e ter devolvida a (ir)resolução do ver em si rebatida ao infinito, rearticula o tempo como um espaço apreensível, sobre o qual repousamos a luz do nosso pensamento. Somos devolvidos à natureza do olhar cotidiano quando Orestis nos indica um ponto de escape: “Estão vendo? Atrás da neblina, uma árvore!”, imagem-conclusão que cristaliza o que as crianças irão viver adiante, o destino inescapável que os espreita, como se, ali, passado e futuro fossem indiscerníveis. É essa dualidade da imagem, problematizada tão fortemente por Angelopoulos, que parece ser o objeto de fruição estética de Gus Van Sant. Impregnada por incertezas em torno da verdade, da imagem e de valores contemporâneos, a obra do diretor norte- americano é pautada pelo olhar fraturado pelo tempo e espaço enquanto memória. Assim como a neblina que deixa entrever aspectos da realidade – ela, dialeticamente, nega a percepção imediata de longo alcance mas, como uma superfície refletora, formada por água, refrata luzes, sombras e novas figuras passíveis de um outro olhar -, pode-se dizer que o cinema vansantiano empreende uma busca pela visão de mundo atravessada pelas arestas do ordinário. Por isso, sua percepção fílmica vai ser marcada por intervalos (longos ou curtos, mas plenos, quase sem o corte seco), desvios (a sexualidade, as margens, o afeto), um naturalismo/realismo na forma de pensar a filmagem de forma low e contemplativa, e, sobretudo, por uma câmera assombrada e perseguida pelas nuvens. Sua câmera transmuta-se em nuvens na Terra: são uma névoa delicada e desfeita na imagem. Seja nas suas produções de pequeno orçamento, como Mala Noche (1985), seu primeiro longa-metragem que custou 22 mil dólares, ou na obra laureada Elefante (2003), vencedora do prêmio de melhor direção e melhor filme no Festival de Cannes, o elemento da água em estado gasoso figura em presença corpórea, tanto como objeto de fruição do enquadramento como uma fruição em si, esta última, especialmente, em uma determinada fase da carreira. Tomada, muitas vezes, de baixo para cima (contra- plongée), e, em alguns casos, em close-up como um rosto sensual, sem horizonte 11

definido (“a fucked-up face”, como diz o anti-herói beat Mike, em My own private Idaho, ao perceber seu estar-no-mundo, a estrada, emoldurada pela nuvem que lhe sorri), a névoa se espraia no encadeamento fílmico de tal maneira que se torna simultaneamente matéria e tempo. A tensão entre belo e sublime se espraia pelas camadas mais simples da vida, criando uma visão alegórica que ganha corpo no gesto do diretor. O cinema de Van Sant tenta embalsamar o tempo, captado, particularmente, com um olhar peculiar sobre o contemporâneo (a violência, o tédio e o niilismo) em um invólucro suave. A estética por um afeto da névoa, de nuvens que se condensam para mostrar a face urgente do mundo, adoção de uma linha estética que propõe a ambiguidade ao espectador para que ele pense por si próprio, expõe a fagulha sobre a qual a inflexão do olhar vansantiano se lança a partir da Trilogia da Morte (Death Trilogy) – Gerry (2002), Elefante (2003) e Últimos Dias (2005). É sobre isso que este texto irá tratar. Veremos como o tempo e a imagem revelam um paradoxo que não se dissolve na narrativa desses três filmes: ambos estão condicionados à própria dinâmica de um contexto atual em que a fluidez é parte de um problema e de sua gravidade enquanto natureza. Se, em um primeiro momento, as nuvens irão transmitir a ideia de transcendência, de sublimação do luto pela vida, como afirma Freud1, a derivação de Van Sant vai tocar em temas que permutam a consciência moderna sobre o homem fragmentado. O ser perde a sua solidez para vida líquida, segundo Bauman2, sobre um tempo que retira a autonomia humana. Tal mudança, a de uma ênfase propositiva (e não apenas iconoclasta), dá-se de maneira ampla e sem reservas, um comprometimento profundo sobre o qual Van Sant irá se debruçar na tentativa de filiar-se a um cinema visionário, compartilhado em uma nova onda transnacional destas primeiras décadas dos anos 2000, com Hou Hsiao-hsien (Taiwan), Claire Denis (França), (México), só para citar alguns. Constataremos que o diretor americano, no momento que decidiu produzir a Death Trilogy, havia-se imbuído de um sentimento de mise en scène não-original mas renovado: um ritmo de narrativa dilatada, uma condução de cena in-progress que mimetiza o afeto em Alfred Hitchcock, o rosto em Andy Warhol, a profundidade de campo em Orson Welles e os longos planos-sequência de Béla Tarr e Chantal Akerman,

1 Ver FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, (1917) 2012. 2 Ver BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 12

constituindo um cristal em que o caos e a nuvem transfiguram-se. Um mundo estranho, cruel e suave, que desvela um ambiente que é caro a Van Sant: a América cheia de cicatrizes, os Estados Unidos como a nação em seu auge e também falha em si mesma. Temas como o terror, a juventude, a inocência perdida, a sexualidade particular e o suicídio enfeixam uma decupagem da realidade por um estado bruto da vida. E, enfim, opta por uma terceira margem, pelo silêncio das superfícies gasosas. Com base em uma metodologia mista, o presente estudo aciona autores transdisciplinares, porém se ampara fundamentalmente nas teorias de Gilles Deleuze sobre “imagem-cristal”. A proposta é concatenar uma fase em especial na obra vansantiana que demarca uma transubstanciação do real via imagem. Não se coloca, portanto, a preemência de uma revisão de outras fases da filmografia do cineasta. É evidente que, por razões de recorrência estética e temas que perpassam preocupações perenes, tocaremos em aspectos do seu período como um dos artífices do New Queer Cinema, de 1985 até pelo menos 1993, com Even Cowgirls Get The Blues. Também tangenciaremos o momento anterior à Trilogia da Morte, de produções como Psicose (1998), remake de Hitchcock, e obras abertamente comerciais como Gênio Indomável (1996), que serão citadas a título de exemplificação desta pré-fase. Eventualmente, iremos desembocar em obras mais recentes. Paranoid Park (2006), uma espécie de filho-temporão da Trilogia da Morte, teria legitimidade para ser destrinchada como parte analítica, porém, por questões de delimitação de um corpus mais enxuto, convencionamos nos deter nos três filmes dessa fase singular. Reitera-se que, apesar desse recorte consciente, permanece uma inquietação que se revela pela metáfora da nuvem, a qual atravessa continuamente os filmes de Van Sant, em quase três décadas, trajetória inicialmente carregada de influências da literatura beatnik, da pintura e da fotografia modernas. A ligação pessoal com escritores como William S. Burroughs e Allen Ginsberg, nesse percurso, também não é acidental; com eles irá produzir curta- metragens e até álbuns musicais. Com Burroughs, um dos fundadores da Beat Generation, por exemplo, Van Sant lançou, em 1985 (mesmo ano de Mala Noche), o EP The Elvis of Letters, com textos do poeta beat. O mesmo elemento figurativo da nuvem, seu motif obsedante, reaparecia anos depois em novo trabalho musical de Van Sant: um single em 1992, intitulado Bursting Clouds (Nuvens Explosivas), produzido por Tim Kerr, em Portland. 13

É esse artista de lugar particular, de nome francês, mas nascido no interior dos Estados Unidos (Louisville, estado de Kentucky); um pintor que se tornou cineasta referendado pelo panteão da crítica fílmica mundial, a Cahiers du Cinéma; um ente situado entre a baixa e a alta cultura; um gay nascido na classe média norte-americana que se aproxima dos rejeitados do Novo Continente; é esse trajeto avesso a taxonomias que estará inscrito, ainda que subliminarmente, nesta análise essencialmente imagética - aqui defendida sob a materialização de uma “imagem-névoa”, a expressão máxima daquilo que Gus Van Sant parece ter tentado atingir durante toda a sua vida ao se valer do ecrã, enxertando nuvens surrealistas que sorriem ou se movem sobre um mundo em degringolamento melancólico, de horror ou de anestesia diante do excesso. Sua linguagem, que amadurece a partir da Trilogia, aponta um algo “para menos”, para um interior sem arestas. E tal construção de vida, que reflete na sua evolução fílmica, corre em paralelo, mas não sem custo de uma suposta pureza das imagens, para a afirmação de uma nova visão de mundo diante das crises que se impõem em níveis ideológico, artístico, social e, de certa forma, político. Assim, este estudo sobre o tempo e as nuvens na Trilogia da Morte será dividido em três capítulos. O primeiro, “Gus Van Sant e o olhar offbeat”, traz uma apresentação da relação afetuosa de Van Sant com as margens sociais e a estética do desvio dos beatniks, da Pop-art, do Cinema de Vanguarda norte-americano e do Cinema Experimental. No segundo capítulo, “A Imagem-névoa”, abordaremos as conjunções entre imaterialidade e materialidade diante de uma presença etérea da câmera e dos personagens. O terceiro capítulo, “Névoa, corpo e desaparição”, enfoca a análise da Trilogia da Morte e as particularidades que cada filme evoca. Vale acrescentar, neste último tópico, os estudos de frame e dos devires de imagem-duração empreendidos por Suzana Kilpp, como uma ferramenta metodológica complementar a essa observação. Não poderia deixar de citar, por último, mas não menos importante, o sopro decisivo para a realização deste estudo: uma pesquisa em bibliotecas e livrarias em Paris, na França, feita no transcorrer desta pesquisa, com o apoio de Michelson Novaes, Manoel Junior, Samyr Lira e Michelle Redondo, que tornaram a minha busca diletante de alguma maneira mais rica e acolhedora – o que, permitiu, por exemplo, o meu acesso, como estudante e pesquisador estrangeiro, ao acervo da Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis – além de me proporcionarem companhia e leveza nos intervalos. Também foi fundamental a forma como fui recebido na Cinématèque 14

Française, de onde prospectei um dos livros mais prolíficos para esta dissertação, um livro azul da Revue Du Cinéma, número 41, edição dedicada inteiramente a Gus Van Sant, que me encheu os olhos e me encorajou a seguir no meu percurso. Agradeço, ainda, a ajuda incontestável do casal Éricka de Sá e Murilo Lubambo, que me auxiliaram na etapa da pesquisa em Londres, indicando livrarias-sebo e lojas especializadas, em especial a Gays The Word Bookshop, minha fonte de vários livros sobre Beat Cinema e Queer Cinema. Lugares, afetos e memórias que desembocam nesta dissertação como um trajeto revivido, restaurado. Assim como diz o subtítulo de My Own Private Idaho, que capta a essência desta travessia, it´s not where you go, but how you get there.

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2. GUS VAN SANT E O OLHAR OFFBEAT

Estou esperando que meu caso venha à tona e estou esperando um renascimento do maravilhoso e estou esperando que alguém realmente descubra a América e se lamente [...]

Lawrence Ferlinguetti

Por que escrever sobre alguém? O que faz uma obra ser tão importante a ponto de precisar ser destrinchada? Seria ela um artefato em si, com camadas que escondem uma chave interpretativa, ou apenas um elemento de desejo que convém arroubos pessoais? Pensar sobre essas questões em torno de Gus Van Sant levou a uma pergunta crucial: afinal, que estranheza é essa que o olhar vansantiano deixa como resíduo? A resposta, a priori, já estava dada, antes de se percorrer um caminho não menos livre de dúvidas: como Susan Sontag3 dissera, não se trata de revelar o conteúdo daquilo que afeta a alguém, mas, sim, a apreensão sensorial que dele, como forma de arte, depreende-se. Trata-se de uma experiência do sensível acerca do campo da estética e da ética. Assim, neste estudo, o ponto de partida não será julgar o mérito da face sob o véu, a atitude subliminar deste cineasta estadunidense em questão – seus códigos, segredos ou fruições ocultas. A subnarrativa pode até ser desvendada (ou trazer retalhos de um tecido cognitivo mais amplo). Mas o interesse final, sentimento que se avolumou à medida que esta pesquisa avançava, desvia-se para algo externo, mas delicado: a teia de relações, afetos e sensações (o tal resíduo inquietante) com o qual Van Sant se emaranha em um gesto particular, uma idiossincrasia ao fazer filmes. Tessitura visível, mas sutil. Coisa que só ele tem, mas que é partilhada, de alguma forma, com outros diretores, atores e cinematógrafos. Uma característica que o torna humano como qualquer outro – não é algo extraordinário, pelo contrário, é um aspecto comum. O rastro vansantiano traz, em seu bojo, um olhar atravessado, que corta afetivamente

3 Sontag critica o utilitarismo na interpretação da arte e advoga por um “erotismo” do olhar. “A finalidade de todo comentário sobre arte seria fazer obras de arte – e, por analogia, nossa própria experiência – mais reais, e não menos, para nós. A função da crítica deveria ser mostrar como isto é o que é, ou mesmo que isto é o que é, do que mostrar o que isto significa”. Tradução nossa. Ver SONTAG, Susan. Contra la interpretación y otros ensayos. Barcelona: Seix Barral, 1984, p. 12. 16

paisagens, pessoas e domínios artísticos. Atravessa e se deixa atravessar, afeta e se deixa afetar, compondo uma reserva de sentimentos no conjunto das relações do dia-a- dia. Em uma cultura contemporânea baseada no “excesso, na superprodução e [...] na abundância material [...] que embotam nossas faculdades sensoriais”4, parece obsceno falar de sutileza, do silêncio e do cotidiano. No entanto, é isto que permanece, ou que tenta permanecer: a urgência de um olhar offbeat5. Tal viés vansantiano desvela um cuidado especial sobre aqueles que estão fora da margem, ou à margem da sociedade. Como uma estética em função da essência (mais uma vez, o tal resíduo), Van Sant cultiva empatia pelos sociopatas, isto é, pessoas que, de uma forma ou de outra, foram alijadas do american dream. Ganham sua atenção, apartada de julgamento (sociopolítico, étnico, econômico, ideológico etc), os arquétipos de uma camada situada abaixo aos operários, no demi-monde6; eis eles: toxicômanos que aparecem no filme Drugstore Cowboy (1989); imigrantes ilegais, em Mala Noche (1985); indigentes, loucos, em Paranoid Park (2007); suicidas, em Últimos Dias (Last Days, 2005); homossexuais e prostitutos, em Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991), Até As Vaqueiras Ficam Tristes (Even Cowgirls Get The Blues, 1993) e Milk – A Voz da Igualdade (Milk, 2008), entre outros estratos e grupos que, em função da invisibilidade ou do senso comum distorcido, vivem sob o signo da violência ou, até em alguns casos, à sombra da indiferença, seja ela midiática ou exercida pelo cidadão. O recorte desses personagens, por sua vez, reflete na abordagem dos temas, que convergem questões atuais, como o bullying, as drogas, a sexualidade particular e a tolerância. Poderia caber, no seu projeto fílmico, um discurso flamejante ou panfletário sobre as camadas suboperárias, porém o enfrentamento vansantiano resvala mais por uma espécie de “poética de reinserção”, uma suave trincheira desprovida de cartilhas neomarxistas. Homossexual revelado à luz de seus primeiros filmes de temática queer7 nos anos 1980, sua postura é mais propriamente a de um “gay pacifista” (PARISH,

4 Ibidem, p. 14\15. 5 Offbeat, termo inglês, aqui, emprestado do biógrafo James Parish, que assim define Gus Van Sant: “Há sempre aquele ponto de vista característico de Van Sant: offbeat, oblíquo, e desafiador para a percepção única das coisas” (PARISH, 2001, p. 12). Tradução nossa. 6 “O mundo da penumbra, como era chamado no Século 20”. Ver o documentário Before Stonewall, de Greta Schiller. 7 “Na acepção original, queer significa estrangeiro, bizarro, anormal ou mesmo doente. Aos poucos, o termo passou a ser aplicado a toda forma de sexualidade que não se encaixa nas normas sociais [...] A partir dos anos 1980, queer passou a ser um conceito mais teórico, utilizado notadamente não apenas para as identidades gay e lésbica tradicionais mas também transexuais, bissexuais e ainda todas as variações da sexualidade”. ROTH-BETTONI, Didier. L’Homossexualité au cinema. Paris: La Musardine, 2007, p. 24. Tradução nossa. 17

2001, p. 175) e de alguém “raramente político e um não-ativista por natureza” (Ibidem, p. 12). Pertence ao período de pós-militância do cinema de identidade gay, mais precisamente nos anos da visibilidade “depois dos anos 1980, de banalização da presença homossexual8 no ecrã” (ROTH-BETTONI, 2007, p. 329). Contudo, o olhar vansantiano vai na contramão de um possível excesso, trabalhando com representações identitárias e a elevação dos excluídos ao topo do modelo midiático. Seu apreço, basicamente, será a de se filiar às margens em seus diferentes aspectos, rostos e níveis de alijamento. Há, porém, uma diferença crítica. Distinta, sua origem é a de um cidadão de classe média, filho de um comerciante bem-sucedido e de uma professora de escola básica, nascido em 1952 na casta branca do sul dos Estados Unidos (em Louisville, estado de Kentucky), com todas as benesses agregadas a esse tipo de condição social em que cresceu9. Com a exceção de ser homossexual, Van Sant não é um deles. Vale destacar que o presente estudo não tem o interesse em destrinchar a vida de Gus Van Sant, fazendo-se valer do uso do biografismo. Em vez de recorrer a dados biográficos para proceder à análise, o sentido desta escrita tem como guia as recorrências estilísticas que irão culminar no projeto de uma estética pura com a sua Trilogia da Morte (Death Trilogy), como veremos adiante. Já existe uma biografia, publicada em inglês nos Estados Unidos, assinada pelo jornalista norte-americano James Robert Parish, que dá conta de pormenores da trajetória de Van Sant10. Naturalmente, alguns dados desse livro revelam-se úteis, na medida em que depõem sobre passagens que sinalizam o olhar atravessado de Van Sant que queremos abordar aqui. Como, por exemplo, além dos temas e personagens offbeat, as paisagens a Oeste dos Estados Unidos marcam um aspecto fundamental na sua diegese. A paisagem, sobretudo, também será uma materialização do seu afeto. O livro de Parish (2001)

8 O termo “homossexualidade” foi descrito pela primeira vez pelo escritor húngaro Károly Mária Kertbeny em 1869 como um pedido ao então Ministro de Justiça da Prússia para abolir crimes contra lei por “atos não-naturais”. Marcou o início dos movimentos de militância gay, mas também o recrudescimento do discurso homofóbico, inclusive na medicina, com a “especificação” da homossexualidade, segundo Michel Foucault. Ver Aldrich, Robert (ed.). Gay Life and Culture – A World History. Londres: Thames &Hudson, 2006, p. 167. 9As relações entre política e estética são extremamente cruciais hoje em dia, e no caso de Van Sant, atribuir um sentido político à sua obra torna-se ainda mais impreciso. Em 1989, ao lançar “Drugstore Cowboy”, o diretor explicitou ser avesso a uma arte-panfleto: “É uma verdade provável que o filme faça um drogado sair de casa e roubar drogas, mas isto não é uma afirmação política sobre drogas. Acho que espero algum tipo de estremecimento” (PARISH, 2001, p. 87). Seria mais apropriado, portanto, atribuir a Van Sant o engajamento por uma arte que faça o espectador pensar. 10 Biografia já desatualizada; dados somente até a produção do filme Encontrando Forrester (2000), sem uma nova reedição. Vale salientar que se trata de uma biografia não-autorizada; as informações sobre a vida de Van Sant, quando controversas, terão evidentemente a fonte citada, não cabendo a responsabilidade a outrem. 18

descreve que Gus Van Sant teve, em virtude das mudanças de emprego do pai, então executivo de grandes corporações do ramo de confecção, de migrar de Louisville para várias cidades - Denver (Colorado), Darien (Connecticut) e Portland (Oregon)11, escolhendo esta última, próxima a Seattle (no extremo noroeste estadunidense), como cenário de visibilidade de uma cultura fora do eixo cosmopolita de Nova Iorque e também dos estúdios de Los Angeles. O desvio, a fenda e a fratura são peças primárias que abrem para seu nomadismo social e tornam fidedigno seu sentimento por uma América descentrada: Ao se examinar a rica vida em camadas de Gus Van Sant, tanto como cineasta quanto indivíduo, é fácil dizer que este introspectivo, homem reflexivo com profundos olhos penetrantes, voz monótona e expressão imóvel seria um completo cínico, um ser pessimista e preso à sua idiossincrasia. Mas, assim que este talento do sul prova ser um narrador engraçado e uma pessoa que se põe aberta ao novo e ao inesperado, então Van Sant se revela um homem de extremo otimismo (PARISH, 2001, p. 15).

Afastado dos grandes centros, o olhar afetuoso às margens (geográficas, sociais, estéticas) de Van Sant situa-se em um “lugar misterioso no interior de um ciclone” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 13), predisposição por uma “calmaria e um silêncio que prevalecem enquanto o mundo todo se desfaz” (Ibidem). Mas como explicar esse estado de espírito inquebrantável e pacifista de Van Sant? Que mistério é esse em que ele se situa? A quem (aos quais) ele recorre para fincar seu estar-no-mundo em que medos, violências e incertezas, aparentemente, dissipam-se? Por que em seus filmes, em especial na Trilogia da Morte, há reflexões sobre a finitude? Resíduos que se acumulam, inquietam e movem esta pesquisa. E que nos fazem prosseguir.

2.1 Identidades, pastiche e uma estética do desvio

Gus Van Sant possui referências estéticas conhecidas por estudiosos dos studies. Algumas são notórias pela imitação. São muitas. Compõem um “tecido de citações”, como afirmava Barthes12. Algumas delas são pastiches13 em pequeno grau, como por exemplo, cenas em que ele presta homenagem a outro cineasta (é possível

11 Ver PARISH, 2001, p. 12. 12 Ver http://www.eca.usp.br/ciencias.linguagem/L3BarthesAutor.pdf 13 O conceito moderno de pastiche (pasticcio) evoluiu para a ideia de “imitação em arte” (DYER, 2007, p. 21), superando a definição primária de “combinação” (Ibidem). Trata-se de um gesto estético deliberado e consciente, embora nem sempre revelado ou textualmente assinalado. Difere da cópia exata e do plágio. 19

verificar em Mala Noche, seu primeiro filme, menções estilísticas a O Terceiro Homem, de Orson Welles, em uma das tomadas de perseguição noturna do branco americano Walt em busca do mexicano Johnny Alonso). Há, no entanto, pastiches mais ambiciosos, como o projeto do remake shot-by-shot de Psicose, de Alfred Hitchcock, expondo uma faceta sua puramente artística em torno da elaboração de um palimpsesto14. Experimentos, em distintos momentos da sua filmografia (o primeiro nos anos 1980, o outro dez anos depois), que denunciam um ponto de fuga do cinema e apontam um detalhe proeminente: sua formação na Rhode Island School of Design (RISD), nos anos 1970, o que irá credenciá-lo a ser um artista aberto à experimentação na arte contemporânea.

FIGURA 1: Pastiche em Mala Noche (frames à direita) sobre O Terceiro Homem, de Welles (à esq.)

FONTE: http://strangewood.tumblr.com/post/49235683053/gus-van-sant-paying-homage-to-the-third- man-in. Acesso em: 28/08/2013

14 “Manuscrito no qual um texto foi escrito sobre o outro (ou mesmo vários em sucessão); com o tempo, textos mais recentes podem mostrar as tentativas de apagar ou escrever sobre eles, e essa noção de um texto refletir-se através do outro (...)” (Ibidem, p. 49). 20

A predisposição a esse tipo de licença como uma homenagem ou diálogo com artistas ou outros gêneros (a exemplo, novamente, de Mala Noche, filme neo-noir de 1985, que presta reverência às produções noir15 dos anos 1940 e 1950) cria um hibridismo estético. Essa presença pastichizante em Van Sant não será devedora somente do cinema; ela também decorre de fontes de estilo nos mais diversos campos, da fotografia à literatura, passando pela pintura. Em comum a todas essas áreas, sua referência mater é o retorno à Contracultura dos anos 1950 e 1960, de autores como Jonas Mekas, considerado o pai do cinema de vanguarda norte-americano, e Andy Warhol, cineasta e ícone da Pop-art. As incursões do cinema vansantiano também nascem do blend de elementos da cultura underground norte-americana, de Stan Brakhage, mentor do Cinema Experimental, à tradição do western de Howard Hawks e John Ford, e ainda uma reapropriação da cultura queer de John Waters e Jean Genet entre os anos 1950/70. Forjando uma identidade múltipla, aleatória, difusa, que interroga “qual a origem de um artista americano?” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 57), seu lugar parece ser menos a formação de um retrato enviesado da América que uma sondagem empírica. A certeza dá-se por uma filiação ao desvio16, um interesse pelos outsiders, os losers, sobretudo por aqueles ilustrados pela Beat Generation dos 1950, resgatada em termos de condição de um grupo excluído das grandes narrativas. Como um esteta em si - e não apenas cineasta, pintor, fotógrafo ou artista plástico, Van Sant, cronologicamente um pós-beat, iria manter ligações por décadas com os poetas beatniks Allen Ginsberg e William Seward Burroughs. Pelo menos, seus quatro primeiros filmes (Mala Noche, Drugstore Cowboy, Garotos de Programa e Até as Vaqueiras Ficam Tristes) poderiam ser enquadrados como filhos-temporão do Beat Cinema. A identidade flutuante entre diversos gêneros (cinema noir, western, queer) e campos artísticos faz Gus Van Sant agir em outras áreas do conhecimento e das artes. Publicou, em uma série de retratos intitulada 108 Portraits, com fotos em polaroid de , Robin Williams e ; lançou, em 1997, o livro satírico Pink, um romance que ironiza as feições mercantis de Hollywood, além de integrar bandas

15 “As ficções policiais americanas da década de 1930 – romances e filmes – caracterizaram-se por sua violência e por sua visão amarga, e até mesmo desiludida, da sociedade liberal da Era da Depressão” (AUMONT et MARIE, 2010, p. 212). 16 O desvio pode tanto ser assinalado no campo das ciências sociais, como “entre outras coisas, uma conseqüência das reações de outros ao ato de uma pessoa” (BECKER, 2005, p. 22), como também uma potência do ato de deambulação visto por Deleuze no livro Conversações. 21

(Kill All Blondes) e produzir videoclipes de David Bowie, Elton John e Red Hot Chilli Peppers. Atuou, ainda, em galerias, com exposições de fotocolagens (no museu de arte contemporânea de Portland, o PDX Contemporary Art, em 201017) e de pinturas exibidas juntamente com sobras das filmagens do filme My Own Private Idaho (na Gagosian Gallery, em Los Angeles, em 2011), entre outros trabalhos. Desvios, marcados pela polivalência, que abrem arestas para um retorno ao passado, questões de adaptação do cinema e o seu diálogo com outras artes.

2.1.1 Beatnik tardio e questões de adaptação

O contato de Van Sant com os beatniks18 é da ordem de um idílio espiritual. Não somente irá filmá-los, nas suas essências, como irá filmar com eles, em especial William S. Burroughs e Allen Ginsberg, seus ídolos de adolescência. Segundo Parish (2001), aos 17 anos de idade e morando ainda em Darien, Gus interessava-se por visitas ao Museu de Arte Moderna de Manhattan e por cinemas underground/experimental, ao passo que era “atraído pelo ethos dos hippies” e da Geração Beat (PARISH, 2001, p. 13). Espécie de bíblia dos loucos de Nova Iorque, o livro Pé na Estrada (On The Road, 1957), de Jack Kerouac, foi uma das suas leituras à época – livro creditado como o gérmen da cartografia visual dos seus primeiros filmes:

Seus filmes Mala Noche (1985), Drugstore Cowboy (1989), My Own Private Idaho (1991) e Even Cowgirls Get The Blues (1993) revelam um interesse pela América – e a vastidão da paisagem norte-americana – que é similar à manifestada pela escrita de Kerouac. Como Kerouac, Van Sant reconhece o lado sedutor e ao mesmo tempo vertiginoso da literatura de viagem; e seus personagens estão sempre motivados pela necessidade de viajar pela/na América (através do Noroeste Pacífico em Drugstore Cowboy, de Portland para Idaho – e até a Itália – em My Own Private Idaho, e até Dakota em Even Cowgirls Get The Blues). A cinematografia em cada um desses filmes enfatiza a beleza do interior rural dos Estados Unidos, especificamente o Norte e o Meio-Oeste (SARGEANT, 2008, p. 223, tradução nossa).

O registro de grandes montanhas, as paisagens de horizonte distante, extensas regiões áridas, assemelham-se às fotografias de Ansel Adams, uma acuidade visual

17 Ver http://pdxcontemporaryart.com/van-sant#o. 18 “Beat significa a falta de ambição direcionada a obter dinheiro. Praticamente, todas as pessoas gastam seus dias com a ideia fixa de ganhar Dinheiro. Aqueles poucos que ignoram essa tendência recebem uma graça especial, a liberdade na mente que os torna capazes de Criar e ter Prazer” (RICE apud SARGEANT, 2008, p. 10). O termo beatniks ou Beat Beneration caracteriza o grupo literário e artístico de Nova Iorque dos anos 1950, cena que depois se expandiu para San Francisco e Portland. 22

descritiva da exuberância de um Velho Oeste saqueado pelos colonos ingleses; ou às fotos de William Eggleston, com suas representações de estradas e vilas americanas em cores vivas. O vazio, o elogio à natureza e um retorno a um passado pré-civilizatório, na tentativa de recontar a história e resgatar cenários puros, irão fazer com que seu cinema aponte para elementos pictóricos de força expressiva. O olhar vansantiano é devedor mais propriamente do Cinema Beat, ao fazer uso, em sua mise en scène, de imagens que são reminiscentes do cinema de vanguarda de Jonas Mekas e do surrealismo de André Breton. Cenas como a da casa que cai na estrada em My Own Private Idaho e enxertos de home videos que costuram passado afetivo e plot de tempo presente – tudo isso constitui “fragmentos que atuam como momentos que chamam atenção para as várias convenções e contemplações de filme e câmera em um sentido análogo à ênfase beat nas várias possibilidades da palavra escrita” (Ibidem, p. 225). O que há em comum entre escritores beatniks e os cineastas/pintores/fotógrafos da Geração Beat (entre eles, diretores como Harry Smith e Ron Rice; o fotógrafo Robert Frank e o artista visual Alfred Leslie), na Nova Iorque dos anos 1950, é um “senso de estar fora do vasto grosso da sociedade americana” e de “compartilhar o desejo de articular e celebrar o sentimento do outro, em criar manifestações artísticas que sejam espontâneas, pessoais e visionárias” (Ibidem, p. 12).

FIGURA 2: Estrada no deserto de Nevada (EUA) nos anos 1960. Foto de Ansel Adams.

FONTE: http://www.escreveretriste.com/wp-content/uploads/2013/01/ansel-adams-road-nevada-desert- 1960.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

23

FIGURA 3: River Phoenix no filme My own private Idaho (1991).

FONTE: http://www.reverseshot.com/files/images/ my_own_private_idaho_1.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

FIGURA 4: Foto da série Southern Suite (1981), de William Eggleston

. FONTE: http://whatwelikenyc.files.wordpress.com/2013/03/2- _untitled_mississippi_eggleston.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

É evidente que, por uma diferença cronológica de menos de duas décadas, Gus Van Sant não viveu a época dos beats. Leitor e apreciador de livros seminais do movimento, em particular Uivo e outros poemas (Howl and Other Poems, 1956), de Allen Ginsberg, e Almoço Nu (Naked Lunch, 1959), relato lisérgico sobre o consumo de drogas de William S. Burroughs, ele só iria ter o primeiro contato pessoal com Burroughs em 1975. Gus descobrira que o escritor estava, assim como ele, morando em Nova Iorque, e o telefonou após ter acesso ao seu número em uma lista telefônica. Expressando ao seu guru o desejo de filmar o conto Discipline of DE (Do Easy), eles 24

mantiveram alguns encontros, até um acordo ser assinado para a produção de uma adaptação cinematográfica. Na época, Van Sant era um recém-formado da RISD e trabalhava para agências de publicidade em Nova Iorque. Após isso, somente uma década depois, voltariam a se ver; durante esse hiato, trocaram cartas, e Gus dizia que Burroughs era “um grande apoiador e um amigo” (PARISH, 2011, p. 26). Ao se reapropriar imageticamente de um texto beatnik que ironiza a disciplina e o auto- controle, o diretor sublinha questões contemporâneas, como repetição, banalidade e o trabalho como construção processual – tópicos que refletem sua coerência enquanto artista. Em Discipline of DE (1982), Van Sant dá visibilidade a uma cartilha do bem- fazer, com uma série de regras sobre como conquistar a autonomia pessoal em atividades prosaicas (levantar um copo sem deixá-lo cair, passar por um cômodo apertado e não tropeçar em uma cadeira etc.). O vídeo, em preto e branco, começa com a história de um coronel aposentado que vive uma vida pródiga a executar tarefas do cotidiano de forma meticulosa. Um homem que criou seu próprio calendário de “dez meses e com 26 dias para cada mês” e que resolveu gastar “seu tempo no presente”. A missão deste senhor de meia idade será a de estudar a disciplina do “do easy”, ou seja, fazer o que se quer fazer da maneira mais fácil e mais relaxada que se possa fazer, o que inclui dobrar toalhas e cobertores sem deixar pontas aparentes ou levantar-se da cadeira sem tocar na mesa, calculando o espaço entre elas. Na segunda parte do curta, um estudante jovem e desajeitado tenta desenvolver a técnica. Analisando este vídeo, pode- se apreender, a partir deste gesto de Van Sant, uma adesão ao teor bem-humorado do texto de Burroughs. No entanto, este pequeno filme se agiganta a partir do momento em que se observa a filmografia vansantiana. Percebemos, aqui, como um ato paciente em torno do presente banal a desvelar uma prerrogativa que marcaria seus futuros longa- metragens: um agir não como condição inata, mas como consciência da relação consigo mesmo e com o outro. Seu cinema demarca uma ruptura mediada da práxis (com produções alternadas entre não-atores e artistas de Hollywood, uso prescindido de script, autoria de cenas e diálogos compartilhada entre os atores que “pensam” os diálogos etc.) para fundar um tipo de predisposição desinteressada em prol de uma obra consciente do acaso inerente ao meio. “Movimentos imprevisíveis” que estão nos “primórdios do cinema, reinando absoluto desde os irmãos Lumière” (BURCH, 2011, p. 135). 25

Em Mala Noche, outro filme que fora adaptado de um texto originalmente beat, o acaso é um elemento norteador desta produção de baixo orçamento (22,5 mil dólares). Nos extras do DVD lançado pela MK2 Diffusion, em 2008, há o documentário No cutting, no stars, no script, de 2007. Nele, Gus explica, ao ser entrevistado, que a maioria das locações, situadas na periferia de Portland, eram prospectadas no mesmo dia de gravação da cena. E completou que os atores eram transeuntes e personagens reais das ruas, a exemplo do rapaz que faz um dos mexicanos no filme, o ator amador Ray Monge, um jovem que frequentava boates na cidade e foi convidado a atuar pela primeira vez. O filme é baseado na novela homônima de Walt Curtis, poeta beatnik de Portland, e tem uma hora e quatorze minutos de duração, com cenas intercaladas de pouco ou quase diálogo algum, e trilha sonora de Violeta Parra (Gracias a la Vida), além de temas mariachis. Apesar de sua maneira de filmar solta, sem roteiro, Gus deixa entrever em Mala Noche suas preocupações estéticas, ao optar por ângulos tortos à la Orson Welles; por uma fotografia escura e granulada, que se encaixa poeticamente com o texto de Curtis; e cenas com edição acelerada de plano e contra-plano (geralmente fechadas no rosto). Bouquet e Lallane (2009), ao comentarem este primeiro filme de Van Sant sobre o amor obsessivo de um branco norte-americano de classe média por um clandestino mexicano, julgam aproximá-lo de um dos ícones do Beat Cinema, John Cassavettes e o seu “cinema espontâneo”:

Se o estilo se refere a Welles como um videoclipe, a maneira de contar, a relação com o corpo (filmado muito próximo) e o estabelecimento de uma relação constante de proximidade com os personagens funcionam como uma forma diferente de Nouvelle Vague – um pouco francesa, mas nova-iorquina sobretudo. Em seu desejo de iniciar uma síncope próxima do free-jazz, mais também pela aproximação do sujeito (o amor interracial), Mala Noche guarda muita semelhança com Shadows, de Cassavettes (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 23) Essa inquietude política em torno dos marginalizados, quase sempre revestida pelo invólucro estético, somente veio à tona, em roupagem ativista, em dois momentos em que Van Sant emprestou sua plataforma para o discurso crítico de seus amigos beatniks. Em 1991, Burroughs – dois anos após uma participação em Drugstore Cowboy, em que fez o papel de um padre ex-viciado que aconselha o ladrão de farmácias Bob (Matt Dillon) – aparece no curta Thanksgiving Prayer (título secundário Thank You America), no qual declama um texto virulento contra a América em meio a fusões de imagens oníricas e de arquivo. Seis anos depois, Allen Ginsberg também destinaria palavras inflamadas ao governo norte-americano e sua política belicista em 26

Ballad of the Skeletons. “No fundo, Gus é um hippie. Ele é um tanto romântico, um tanto sentimental” (COOPER apud BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 102). A amizade com Burroughs e Ginsberg seria algo sempre acionado na obra vansantiana até a morte deles, no mesmo ano, em 199719. Como um beatnik tardio, existem questões pertinentes do ponto de vista de uma aproximação teórica, estética e estilística que pode ser fidelizada, mas não suplantada de forma integral. Uma das reflexões diz respeito a quanto de inspirações artísticas da Geração Beat, de intelectuais outsiders a exemplo de Louis-Ferdinand Celine, Walt Whitman, William Blake, Henri David Thoreau, podem, de alguma forma, estar presentes no trabalho de Van Sant, ainda que de forma indireta. Van Sant não deve ter bebido diretamente na fonte, já que, ao se referir a Burroughs como um intelectual de bancada, alega não ter sido um estudante meticuloso (PARISH, 2001, p. 26). No entanto, se “o be-bop, gênero do jazz marcado pela liberdade de improviso que conquistaria espaço na década de 1950 com músicos como Charlie Parker, teve importância na escrita de Kerouac e dos beats em geral” (COHN, 2012, p. 8), para a expressão artística vansantiana também será seminal outra vertente livre da música, ainda que como plano de fundo. “Frank Zappa, Velvet Underground e as ‘bandas de pintores’ tiveram uma grande influência na cena da RISD nos anos 1970” (VAN SANT apud FULLER, 1993, p. 14). Como estudante contemporâneo a David Byrne, Chris Frantz e Tina Weymouth, do grupo Talking Heads, Gus deixou-se infectar pelo surgimento do ambiente pós-punk e do rock experimental nos Estados Unidos. Um sentimento de ruptura que irá ecoar no seu modo em ver a cultura underground para uma formulação mais libertária do cinema, inclusive no modo como seus filmes estão imbrincados com a música, como no uso do minimalismo de Arvo Pärt em Gerry. Outra questão que se pode ponderar sobre Van Sant em relação à Geração Beat é que, por não ser um membro original do movimento, sua relação com a literatura recai sobre o recurso da adaptação cinematográfica. Ora, ainda que seus primeiros quatro filmes sejam, em essência, beats, e ainda que somente fosse esquadrinhado e avaliado por essa produção primária, Gus não se encaixa nem cronologicamente nem esteticamente no Beat Cinema. Sua filiação é de ordem espiritual, com o uso efetivo de empréstimos. O roteiro de My Own Private Idaho é resultado, por exemplo, de uma

19 Os dois escritores foram homenageados nos créditos finais do filme Gênio Indomável (Good Will Hunting), lançado em 1998 e vencedor dos Oscar de Roteiro Original e Melhor Ator Coadjuvante (Robin Williams). 27

apropriação de rastros de City of Night, livro sem tradução para o português, de conteúdo homossexual, escrito pelo americano John Rechy; do filme Chimes at Midnight, de Orson Welles e de passagens de Henry IV e Henry V, de William Shakespeare. Assim como Mala Noche carrega influências na sua cinematografia de e Stanley Kubrick (FULLER, 1993, p. 21) e também de Jean Genet (Un Chant d’Amour, 1950). Um tipo de diálogo de estética beat com outros autores literários que deram um novo sentido aos filmes dessa fase de influência literária – e coerente com a liberdade be-bop que pregava o movimento. E que, em contrapartida, devolve novas camadas à Geração Beat, como já dizia André Bazin (1991), décadas antes, em 1940, na defesa por um “cinema impuro”. Ao invés de ser um demérito, como a crítica da época enxergava sobre a literatura ou o teatro que, transposto para as telas, estariam condenados a perder seus aspectos inerentes, o empréstimo pode ser oportuno para qualquer uma das artes, inclusive em um movimento de troca ou retorno. “Se a crítica deplora frequentemente os empréstimos que o cinema faz à literatura, a existência da influência inversa é geralmente tida tanto por legítima quanto por evidente” (BAZIN, 1991, p. 88).

2.1.2 Cinemas deslocados: queer, de vanguarda e experimental

A passagem de Gus Van Sant pela Rhode Island School of Design (RISD), nos anos 1970, foi fundamental não somente para que ele decidisse seguir pelo caminho de cineasta, e não a de pintor (embora não tenha abandonado totalmente, com a série de colagens que expôs em 2010, em uma galeria em Portland), mas também para um aprofundamento de sua cinefilia. Na entrevista concedida ao crítico de cinema Graham Fuller, em junho de 1993, ele explica que, durante a formação universitária, “foi fundamentalmente influenciado por cineastas experimentais dos anos 1960 que eram também pintores, entre eles Stan Brakhage, [Andy] Warhol, Ron Rice, Taylor Mead e Jordan Belson, um pintor de São Francisco” (VAN SANT apud FULLER, 1993, p. 15). Jonas Mekas também é citado entre suas maiores influências no começo da carreira. Porém, em termos de apropriação identitária, Gus alega que não houve “uma influência direta, a não ser em tentar emular diretores de comerciais e assimilar o drama nos filmes” (Ibidem). Entretanto, em um dos seus primeiros curtas, intitulado Late Morning 28

Start e produzido como trabalho de conclusão na RISD, ele faz uso, mais uma vez, do pastiche, desta vez sobre a estética de Jean-Luc Godard. Segundo o próprio Van Sant, trata-se de um vídeo no formato de 16 mm, colorido, “com tino experimental, mas que tentava incorporar um pouco do estilo de Hollywood” (PARISH, 2001, p.21). É interessante notar que alguns dos lemas de Stan Brakhage, mentor do Cinema Experimental nos Estados Unidos, ressoam em determinadas obras vansantianas, sobretudo nos primeiros filmes de influência beat. No livro Métaphores et vision, de 1963, Brakhage afiava-se à “imaginação de um Mundo antes de ‘no princípio, era a palavra” (BRAKHAGE, 1998, p. 19) e a uma visão além da visão ordinária que pudesse “permitir a chamada alucinação para entrar no domínio da percepção” (Ibidem). Assim como Maya Deren, cineasta e coreógrafa do Século 20 que repensou a imagem em movimento em relação ao corpo e à dança, Brakhage propunha um retorno da visão humana ao olho infantil, desprovido de pré-requisitos da composição lógica. No entanto, já previra que seria impossível voltar ao passado, simplesmente esquecer a perda original. O desafio – pensou ele – seria desenvolver uma nova mente óptica, capaz de dar conta de “todo tipo de influência visual” (Ibidem, p. 20), seja ela real ou onírica. Tomando por empréstimo conceitos do Expressionismo abstrato e do Surrealismo, Brakhage tencionava radicalizar uma visão subjetiva no cinema, na qual sonho e realidade, corpo e mente, razão e afeto não estivessem dissociados. Na prática, seus filmes exploravam os umbrais perceptivos, sejam eles originados na ilusão ótica ou na visão fidedigna da realidade, por meio de superposição de imagens; narrativas não- lineares ou situações dramáticas que levassem a uma relação metafórica entre as imagens; e miragens e exposições fortes ou brandas à luz. Outras técnicas também incluíam distorções espaciais com o uso de lentes anamórficas, ângulos enviesados, falta de sincronia do som com a imagem em movimento e close-ups de foco suave. Em Reflections on a Black (1955), ele reproduz o efeito de um homem cego que caminha na rua até chegar em casa e traduz isso em qualidade expressiva do próprio meio: sinaliza a cegueira “cortando” os olhos dele e “suturando” com negativos cinematográficos. Já em Prelude: Dog Star Man (1959), a câmera se aproxima dos pelos de um animal, que se supõe ser de um cão ou um gato. A rarefação de foco, no entanto, abre a possibilidade para se pensar não sobre a textura ou a origem do animal, mas sobre sua condição de domesticado. A busca parece ir além do horizonte perceptivo material para se lançar em 29

questões sensoriais e da ordem do espírito, esta última como uma peregrinação pelo divino ou um Ser superior:

Esqueça ideologia – para um filme bruto que ainda não tem um idioma e fala como um aborígene – retórica monótona. Abandone a estética – a imagem em movimento sem fundamentos religiosos, deixe sozinha a Catedral, a forma de arte, e comece a sua própria busca de Deus aceitando apenas como perigo a herança arquitetônica dos ‘sete’, outras artes e seus pecados, e fechando seu círculo, seu círculo estilístico, e, portanto, zero (BRAKHAGE, 1998, p. 21) Perante tal vontade em demarcar uma imagem cinemática livre, sem vínculo com a palavra, mas presa somente ao desígnio da percepção e do domínio sensorial, parece conveniente destacar uma consonância entre Brakhage e o discurso de André Breton e o seu Manifesto Surrealista de 192420. Breton afirmava que nenhuma arte surrealista podia ser julgada por questões morais, a não ser, talvez, levando-se em consideração o mérito dos sonhos e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud. É nesse sentido que recorrências surrealistas no cinema provocam reações adversas – elas quebram um jogo de disposição automática, mas não excluem a possibilidade de provocar percepções variadas que divergem da intenção original do cineasta. O espectador cria, de algum modo, novas interpretações sobre uma determinada obra que brinca com a imaginação e o universo onírico. Um dos casos clássicos do cinema surrealista é o filme Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1928), de Luís Buñuel e Salvador Dalí, que levou parte da plateia a desmaios em virtude da cena que simula o corte de um globo ocular com uma navalha. Trata-se de um dos primeiros enquadramentos do filme, com a participação do próprio Buñuel. Esta cena, dramática e impactante, funciona como uma introdução para o que virá depois, uma sucessão de ambiências que dinamitam a percepção humana sobre realidade, interpretação e lógica. Há também, neste filme, outra cena em que o homem, ao tentar assediar sexualmente uma moça indefesa, é impelido ao ter o corpo atado a cordas presas a um piano, dois padres e duas cabeças de bezerros mortos. Em outro momento, saem formigas da sua mão, como se fosse um formigueiro. Várias situações em que o absurdo e a imaginação solta de Buñuel e Dalí confrontam o real. À época, a obra foi associada simbolicamente a tensões sexuais de ordem de repressão religiosa. Porém, Buñuel alegou que não houve um sentido premeditado quando ele e Dalí pensaram essas cenas; segundo ele, as cenas nasceram como um rompante.

20 Ver o manifesto, de domínio público, disponível em http://www.culturabrasil.org/zip/breton.pdf. 30

FIGURA 5: Frames de Drugstore Cowboy, com o efeito surrealista para a alucinação de Bob Hughes.

FONTE: http://24.media.tumblr.com/tumblr_ m71i6dQYHK1r5deu6o1_400.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Em Drugstore Cowboy, também é usado o recurso estilístico emprestado do Surrealismo. Bob Hughes, toxicômano interpretado por Matt Dillon, rouba farmácias na companhia de uma gangue para ter acesso a drogas sintéticas. Depois de se drogar com metadona, seu rosto aparece sob efeito de perda de consciência e submetido às alucinações. Para explorar as propriedades do meio, Gus Van Sant utiliza uma técnica similar àquela empregada por Brakhage: a superposição (colagem) de animais e objetos no céu, com o protagonista também impresso nele – recurso que aponta para fagulhas de sonho, a um devaneio induzido, tentando transmitir a mesma sensação da personagem para o ecrã. Nesse sentido, em termos de experimentalismo, cinema e imagens, é natural que Jonas Mekas seja outra referência basilar para Van Sant. O cineasta e poeta lituano, radicado em Nova Iorque, e padrinho do Cinema de Vanguarda dos Estados Unidos, esteve ligado a Allen Ginsberg, aos cineastas beats, a Andy Warhol e continua servindo 31

de inspiração para cineastas contemporâneos, tais quais Jim Jarmusch e Harmony Korine. Seus filmes captam a atmosfera da vida cotidiana livre da narrativa linear, de preceitos do drama teatral clássico e do compromisso em dar cabo moral a uma história. Seu estilo é chamado comumente de “filme diário” (diary film), por conter mais impressões e reflexões pessoais neles; raras vezes, ele opta por métodos esquemáticos. Combatente político do cinema underground, Mekas usa seu discurso crítico a favor de um cinema artesanal. Em 1997, na ocasião dos festejos em torno do centenário do cinema, ele foi convidado a participar de uma exposição sobre o cinema independente americano na Cinémathèque Française, em Paris. O evento ocorreu em maio daquele ano e resultou, além de palestras e entrevistas, em um manifesto, escrito por ele, denominado Manifesto Anti-100 anos do cinema. O material de áudio foi transcrito e impresso no livro Déclaration de Paris/Statements from Paris, edição bilíngue da Editions Paris Expérimental. Já naquele ano, Mekas retrucara contra aqueles que acreditavam na morte do cinema. Afirmara que o cinema de vanguarda era ignorado por Hollywood e pela indústria. Para ele, a efeméride evidenciava um racha entre o mainstream e os independentes. “Eu quero celebrar as formas pequenas de cinema, as formas líricas, o poema, a aquarela, o cartão postal, o estudo, o desenho, o cartão-postal, o arabesco, o triolet, a bagatelle e as minicanções em 8mm” (MEKAS, 2001, p. 11). O legado de Jonas Mekas também foi importante do ponto de vista de um agregador cultural para os cineastas underground dos anos 1950, que dispunham de poucos recursos. Além de criar o Anthology Film Archives, sediado em Nova Iorque, instituição expoente no Mundo para o resguardo de filmes experimentais, ele editou o jornal Film Culture, publicação fundada em 1955 e responsável pela articulação da cena de escritores e diretores de filmes beatniks daquela década. Como uma espécie de Cahiers du Cinéma americano, o jornal “inicialmente se focava na vanguarda europeia, mas depois passou a documentar filmes underground americanos” (SARGEANT, 2008, p. 13). O Film Culture deu origem ainda ao Independent Film Award, festival de cinema independente americano, cuja primeira edição, em 1959, premiou Shadows, de John Cassavettes. A ligação íntima ao espírito beatnik fez com que Allen Ginsberg, ao ver o filme Guns of The Trees (1961), dirigido pelo próprio Mekas em parceria com Eduard de Laurot – uma obra essencialmente narrativa que mostra a vida de dois casais que compartilham a amizade e o receio diante da ameaça de uma bomba atômica –, 32

descreveu que o longa tem uma narração poética que “funde noções beat de pacificismo, Existencialismo e Zen” (Ibidem, 2008, p. 112). A importância de Mekas é, nesse sentido, a de ser, de modo aguerrido, a mola propulsora da cadeia econômica dos filmes experimentais americanos no Século 20. Em 1962, criou a Film-Makers’ Cooperative, “maior distribuidora de filmes de vanguarda nos Estados Unidos” (Ibidem, 2008, p. 113). Exibiu algumas produções do catálogo da distribuidora, incluindo obras de Stan Brakhage, Jack Smith, Ken Jacobs, entre outros, em teatros nova-iorquinos durante os anos 1960. As pequenas mostras dos Film Makers’ tornaram-se, anos depois, uma instituição, a The Film Makers’ Cinemateque. Eventualmente, as sessões eram canceladas por não terem licença de exibição e por mostrarem obras consideradas de conteúdo obsceno. Além de escrever para o jornal Film Culture, Jonas Mekas colaborava para a coluna Movie Journal do Village Voice, revista especializada em cinema sediada em Nova Iorque, que ganhou circulação pelo território estadunidense no começo dos anos 1960. E, durante esse tempo, ele sempre esteve no convívio da comunidade boêmia de artistas, escritores, músicos e performers. Em 1968, lançou o filme Diaries, Notes & Sketches (também conhecido como Walden), que revela parte desse seu livre trânsito pela intelectualidade americana. Contém depoimentos e impressões, colhidos entre os anos de 1964 e 1968, de Carl Theodore Dreyer, Andy Warhol, Allen Ginsberg, Yoko Ono e John Lennon, músicos do The Velvet Undergroung, sem citar Brakhage e outros artistas de seu círculo de amizade. Na forma de um quasi-documentário, ele capta o cotidiano dessas pessoas em sua intimidade, visitando amigos, celebrando e em situações de foro privado. Esse aspecto de banalidade foi registrado pela câmera espontânea de Mekas, guiada por movimentos erráticos (estilo câmera na mão), efeitos de transição de um frame para outro, e técnicas de home video que prescindem da narrativa dramática convencional. Por essa estética descompromissada com a regra fílmica, algo que Van Sant vai absorver, sobretudo de forma indireta por meio da obra de Andy Warhol, é que irá tornar crucial a influência de Mekas também em termos estéticos. Van Sant integra, ainda, outra faceta deslocada do cinema norte-americano, o gênero queer21. No contexto global hostil ao aparecimento de grupos em defesa da

21 O Cinema Queer está ligado aos “anos militantes (1960-1979)” de luta pela afirmação gay e contra a heteronormatividade (ROTH-BETTONI, 2007, p. 297), cuja mão puramente cinematográfica é essencialmente importante para a definição de uma identidade homossexual. “No Cinema Queer, a 33

identidade gay, surgiram, durante os anos 1960, não somente em Nova Iorque, mas também em San Francisco, na Califórnia, cineastas que reivindicam um olhar cinematográfico comprometido com aspectos e curiosidades inerentes às minorias sexuais, que, por sua vez, começavam a se descobrir fora do demi-monde. O grupo do New York Film Makers Cooperative, de Jonas Mekas, foi um notável catalisador de autores com esse intuito em documentar sexualidades particulares:

Em continuidade a Kenneth Anger e Gregory J. Markopoulos, muitos cineastas experimentais que vão inventar novas formas, novas normas e novas maneiras de se aproximar da questão da homossexualidade encontrarão um lugar eminente. Jack Smith, Andy Warhol, Paul Morrissey, Barbara Hammer e John Waters estarão entre os mais influentes desses criadores. Á parte do cinema vanguardista que será mais queer que gay, deve ser adicionada outra face fantasmagórica, a celebração homoerótica tornando-se uma questão desse mesmo tema, a exemplo do filme mais famoso desse tipo, o Pink Narcissus, de Jim Bigood (1971). (ROTH-BETTONI, 2007, p. 297, tradução nossa). Entre as influências de Van Sant, deste período ativista primário do Cinema Queer, pode-se citar John Waters. O primeiro contato com as obras Mondo Trasho (1969) e Pink Flamingos (1972) aconteceu quando ainda estudava na RISD. Causou-lhe impacto a maneira iconoclasta e anti-tradicional de fazer cinema, com um “senso alegre de ofensividade que tocava na sua vontade não-conformista” (PARISH, p. 18). A partir da experiência em se deparar com filmes de temática e gênero queer, Gus percebeu, no final dos anos 1970, que “seu estilo de vida faria dele sempre um outsider” (Ibidem). Porém, mais do que considerar sua condição como uma diferença, decidiu abarcar o fato de ser gay tanto na vida pessoal quanto na sua forma de trabalho.

Esquadrinhado dentro do subgênero do New Queer Cinema, que engloba cineastas dos anos de visibilidade gay nos anos 1980 no mainstream, entre os quais Todd Haynes, Gregg Araki e Su Friedrich, Gus Van Sant dizia, à época, que não se dedicava a produzir filmes de abordagem gay, embora declarasse não se incomodar com a pecha de um autor “abertamente homossexual”. Com Mala Noche, obra de estética neo-noir que se filiava à Nouveau Hollywood em virtude do uso de fotografia em preto e branco – junto a O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983), de Francis Ford Coppola, Estranhos no Paraíso (Stranger Than Paradise, 1984), de Jim Jarmusch, e Touro Indomável (Raging Bull, 1980), de – ele ganhou o prêmio de “Melhor Filme Independente Experimental”, da Los Angeles Critics Association

premissa é uma nova forma de cinema gay: o que se sabe é que surgiu como algo essencialmente provocador de um registro mais ou menos militante, reivindicativo de protesto” (Ibidem, 2007, p. 350). 34

(LAFCA), em 1987. Embora essa honraria trouxesse legitimação para um amplo público, este low-budget ficou restrito ao ciclo do New Queer Cinema, aclamado como um dos precursores deste subgênero. Em função de sua importância na filmografia vansantiana, o longa-metragem foi relançado, em 2006, no Festival de Cannes em cópia restaurada, pela MK2 Diffusion. O tabu quebrado por Van Sant, mesmo não assumindo o rótulo de cineasta queer, foi o de ser um dos primeiros diretores que abordassem a temática gay a não ser relegado à penumbra do universo underground. É claro que, antes dele, houve diretores “abertamente gays ou bissexuais” que trabalhassem em estúdios de Hollywood. Tal informação, contudo, “circulava somente como fato consumado entre os indivíduos do círculo pessoal ou parceiros, e como algo suspeito ou entendido por outro círculo de conhecidos, empregados de produção de um filme e executivos de estúdios” (PARISH, 2001, p. 114). Entre os cineastas da época de ouro do cinema hollywoodiano que eram “abertamente” gays ou bissexuais, estavam George Cukor, Edmund Goulding e James Whale. Gus não apenas adquiriu um espaço proeminente na indústria, principalmente a partir do filme Drugstore Cowboy (vencedor de quatro prêmios no Independent Spirit Award, incluindo o de melhor roteiro escrito por ele junto com Daniel Yost), como também iria trazer temas homoeróticos, até então restritos ao circuito pornô, para o mainstream. E a esse “coming out” (gesto de se autoafirmar publicamente gay) no cinema dos anos 1980 deve-se, em parte maciça, ao ativismo gay nos anos 1970. Existem outras evidências da interação de Van Sant com a cultura queer. Udo Kier, ator alemão descoberto pelo diretor Reiner Werner Fassbinder (ícone do cinema queer na Alemanha, de filmes como Querelle, de 1982), é o imigrante Hans em My Own Private Idaho. Dustin Lance Black, cineasta, produtor de TV, gay assumido e ativista da causa LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), foi convidado por Van Sant para ser o roteirista do filme Milk, adaptação do tópico biográfico do primeiro prefeito gay dos Estados Unidos Harvey Milk – pelo qual ganhou um Oscar. A trilha sonora de Até as Vaqueiras Ficam Tristes foi inteiramente produzida por K.d. Lang, cantora canadense lésbica, entre outros fatos que revelam o apoio de Van Sant, ainda que reservado, à visibilidade gay. Na filmografia vansantiana, além dos primeiros filmes notadamente beat, com referências ao lugar às margens ocupado pela sexualidade particular (as lésbicas que vivem em um rancho isolado no Meio-Oeste americano em Até as vaqueiras ficam 35

tristes; o jovem gay Mike, órfão de mãe, prostituto e vítima de narcolepsia, em Garotos de Programa; e o poeta homossexual Walt, que vive no subúrbio de Portland, em Mala Noche), há outros momentos de homoeroticidade (cena em que os criminosos de Elefante, Alex e Eric, beijam-se no banheiro; ou dos músicos Luke e Scott, em Últimos Dias, que fazem sexo em um dos cômodos da casa de Blake). Podem-se inferir outras licenças de homoafetividade (a relação dúbia entre as personagens de Matt Damon e Casey Affleck, em Gerry; ou a amizade carinhosa que ultrapassa a relação formal entre o psicanalista Sean Maguire e o jovem Will Hunting, em Gênio Indomável). Questões sobre identidades e rupturas que estão refletidas na forma como Van Sant se espelha em Andy Warhol, como veremos no próximo item.

2.1.3 Andy Warhol, Pop-art e máscara

As questões identitárias configuram um dos pontos de convergência entre Andy Warhol, o papa da Pop-art, e Gus Van Sant. Em termos de criação em torno das potencialidades da imagem, a ideia da composição do retrato estabelece um elo entre os dois artistas contemporâneos, com manejos artísticos semelhantes (ambos trabalharam com artes visuais e cinema, embora bem-sucedidos em vetores inversos) e um interesse compartilhado pela utopia da cultura da celebridade. Tal aproximação, em um espaço- tempo sociológico idêntico (a Nova Iorque dos comerciais de TV e das revistas de fofoca dos anos 1970 e 1980), revela-se em outra citação pastichizante assumida por Van Sant. O contato inicial com obras de Warhol deu-se no Museum of Modern Art, em Manhattan (Nova Iorque) e, depois, mediante a leitura do livro An Introduction to The American Underground Film, de Sheldon Renan, publicado em 1967. “Como Van Sant admitiria, especialmente com o trabalho fílmico de Warhol, ler sobre este artista icônico foi sempre mais tocante do que, na prática, ver o trabalho experimental em tela, o qual provava ser muito artístico e hermético” (PARISH, 2001, p. 10). Tal conexão espiritual, estabelecida de maneira imediata quando comparada a outros cineastas experimentais que ele conheceu na mesma época (Cassavettes, Mekas etc,), aponta para um temperamento e sensibilidade artísticos que lhes são comuns. Em 1992, a crítica Amy Taubin, da revista britânica Sight & Sound, observou que “assim como Warhol, Van 36

Sant tem a carismática presença ausente de um voyeur obsessivo. Ele também possui os ombros levemente arqueados, os braços cruzados, a posição autoprotetora de um ‘mestre pálido’ e a reputação do silêncio, não obstante um dom para a eloquência” (TAUBIN apud PARISH, 2001, p. 19). O instinto voyeur une ambos em um estudo obsessivo sobre o rosto. Alguns dos experimentos que Warhol fazia na The Factory são reproduzidos mimeticamente por Van Sant, em especial os exercícios de close-up e o fascínio pelo retrato. Em Inquietos (Restless, 2011), Gus usa, de excessivo modo, o plano americano no ator Henry Hopper, quando não, algumas vezes, planos fechados no rosto. No longa, Henry faz o papel de Enoch, um jovem que frequenta velórios e, num deles, conhece Annabel, uma paciente com câncer terminal, vivida por Mia Wasikowska, com quem irá desenvolver uma amizade e depois um namoro. Não por coincidência, Henry é filho de Dennis Hopper, ator, diretor de filmes (Easy Rider, baseado em On The Road, de Kerouac) e um dos rostos icônicos dos screen tests de Warhol. Outra referência warholiana neste filme está na trilha sonora, cuja cena final é embalada por The Fairest of The Seasons (1967), de Nico, uma das musas de Warhol e ex-integrante do The Velvet Underground.

FIGURA 6: Henry Hopper, em Inquietos (2011), de Van Sant.

FONTE: http://henryhopperfan.com/gallery/albums/movies%20and%20tv/2011%20- %20Restless/screencaps/Restless_avi0109.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

FIGURA 7: Screen test – Dennis Hopper (1964), de Warhol.

FONTE: http://dailyserving.com/wp-content/uploads/2010/08/Warhol_Hopper_Screen_Test1- 600x401.jpg. Acesso em: 28/08/2013. 37

Nos screen tests de Warhol, o procedimento consistia em filmar o rosto em silêncio com um plano de fundo preto, sobre o qual a câmera estancava, “até que a imagem negativa aderisse à retina mesmo depois do filme acabar e a imagem de Hopper desaparecesse no branco” (SUTTON, 2009, p. 189). No filme de Van Sant, a técnica é totalmente diferente, com o uso de cores e sem a ideia da desaparição e do jogo de memória que Warhol queria incutir. No entanto, persiste o interesse pelo retrato, a necessidade de registrar algo que Fabris (2004) chama de a “ausência do sujeito”.

O que as imagens de Warhol evidenciam é pura e simplesmente ‘uma superfície de aparição, de figuração’, uma superfície virtual graças à qual ‘o mundo impõe sua descontinuidade, sua fragmentação, sua ampliação, seu artificial instantâneo’. Roteirista de ‘uma figuração perfeita’, perante a qual todos são iguais, Warhol busca na imagem a realização da ilusão, entusiasma-se com sua insignificância, transformando o mundo num conjunto de objetos a serem fotografados (FABRIS, 2004, p. 76)

O que Fabris deseja dizer, ao destacar essa relação quase imperceptível entre o objeto e o aparato, entre a pessoa fotografada (no caso, filmada numa mesma pose) e o detentor das imagens, entre a aparência e a técnica, é realçar a questão da máscara, aquilo que Jean Baudrillard tenta demandar à fotografia: “não tanto ‘procurar a identidade por trás das aparências’ quanto ‘por trás da identidade, fazer surgir a máscara, a figura’ daquilo que assombra o ser humano” (Ibidem). A partir do momento que se retira o caráter do sujeito, formas arquetípicas tomam o lugar do imaginário de quem vê – tudo não passa de um jogo de superfície. Desse modo, ao pensar conceitualmente o retrato contemporâneo, Warhol dialogava com a lógica do consumo e, automaticamente, aderia-se a ela, numa posição ambígua. Situação semelhante em que Van Sant enfatiza o rosto de Henry Hopper, numa construção também arquetípica, destituída de significados simbólicos. A face está ali novamente para o usufruto do olhar voyeurístico. Quem quer que, o que quer que, o retrato “transforma-se em um ícone artificial e intercambiável” (Ibidem, p. 85). Com Henry Hopper, Van Sant enseja uma encenação narcísica, em que a interpretação, fora dos padrões da teatralidade convencional, abre espaço para a gestualidade banal, a ação espontânea. Inexperiente, sem retoques, a transfiguração de Enoch torna-se estanque na própria etapa epidérmica de Hopper. Warhol também, em 1970, fez uma série de fotos em polaroid com o modelo Ethel Scull em uma cabine automática, em que o rapaz era orientado a sorrir, falar e assumir gestualidades diferentes. Baudrillard, citado por Fabris, define essa intenção como uma 38

irreversibilidade da técnica, em que o instantâneo passa a ser o objetivo maior em detrimento de uma idealização da imagem (Ibidem, 2004, p. 87). O uso dos polaroids também é caro a Van Sant, que tem por hábito fotografar os atores em testes para fazer seleção de elenco. Pessoas escolhidas a esmo na rua, atores profissionais, toxicômanos etc. já estiveram sob a lente do diretor em um ritual warholiano mimético. Armazenado, o material foi depois reaproveitado, numa espécie de reavaliação de found footage pessoal, para o livro 108 Portraits e para a exposição de colagens da galeria PDX Contemporary em Portland. A emulação, aqui, é fidedigna à essência das práticas na The Factory nova-iorquina. Outro dado importante que o biógrafo James Robert Parish revela é que Van Sant já havia experienciado a técnica do silk-screen na pré-adolescência. São testes semelhantes às pinturas em serigrafia que Andy Warhol fazia no auge da Pop-art, como no emblemático quadro iterativo de Marilyn Monroe e também nas imagens de Elizabeth Taylor, Mao Tsé-Tung e Debbie Harry. A reprodução desse tipo de técnica remonta ao período em que Van Sant tinha aos 12 anos de idade, durante as aulas de um professor de arte da escola, Robert Levine, que lhe ensinara outras técnicas de pintura, de colagens e materiais mistos de acrílico, lenço de papel e tinta. Levine foi uma inspiração nos primeiros anos de vida em virtude da relação moderna com a pintura e de um estilo “parecido com o de Greenwich Village, alguma coisa gay, porque esse professor era um professor gay aberto em 1963” (VAN SANT apud PARISH, 2001, p. 7). Essas experiências iriam ser maturadas mais tarde durante as aulas da RISD, época em que teria contato com os ready-mades de Marcel Duchamp e workshops em Roma, na Itália. Para tanto, os silk screens e suas repetições seriais “enfatizam o estar para ser na imagem” (SUTTON, 2009, p. 191) e transformam a identificação da celebridade ou da estrela em um signo ainda mais perene pela força da beleza e da juventude que ficam retidos na imagem. O rosto é, assim, desterritorializado pela abstração da máquina que coleta seu fragmento superficial. Nessa relação, que fica imperceptível pela manipulação do aparato, Warhol colocava-se como o operador invisível. As ordens, no entanto, eram arbitrárias. Dentre as regras, estavam não piscar, não se levantar da cadeira etc. As intervenções posteriores no retrato, com uso de cores, criavam uma “grade” warholiana que só enfatizava a função da objetiva e a ausência do elemento 39

fotografado. “Tentando se tornar máquina abstrata, (Warhol) continuava a ser o devir- imperceptível” (Ibidem). Um dos projetos de Gus Van Sant teria sido uma cinebiografia de Warhol, mas, em função da morte precoce do ator River Phoenix, aos 23 anos de idade, por overdose de drogas, o roteiro foi engavetado. Phoenix faria o papel do pintor na fase mais jovem. Em março de 1991, durante as gravações de My Own Private Idaho, o ator entrevistaria Van Sant para a Interview Magazine, revista fundada por Andy Warhol. Questionado por River qual era seu artista favorito, Gus responderia: “Acho que teria de ser (Andy) Warhol. Ele foi como que o (Frank) Capra do movimento da Pop-art”22 (PARISH, 2001, p. 167).

2.2 Temas à margem e motifs poéticos

A “impureza” da obra vansantiana, perante citações, pastiches e palimpsestos, não exime que parte de sua preocupação, ao tomar como lastro um cinema eminentemente pessoal, seja a de tentar efetuar um olhar puro na narrativa contemporânea. Nesse sentido, vale salientar que não nos aprofundaremos em questões sobre autoria em Gus Van Sant. Pelo menos, não aqui. Tal reflexão resultaria em novos desdobramentos em relação até o que Roland Barthes fala em morte do autor23, o despojamento máximo da posse idiossincrática sobre uma determinada obra coletiva. Haveria, nessas circunstâncias, que se ponderar sobre estatutos de assinatura no mainstream, sobre a quem interessa a constituição e a defesa de um cinema de , aspectos históricos etc. Além do mais, na filmografia construída por Van Sant até os anos 2010, há mais impureza em termos de riscos tomados no limite entre a indústria e um cinema dito independente que uma definição segura e cômoda em torno da ideia de um cineasta autoral. Como já vimos, Gus é um artista - não somente cineasta, mas pintor e fotógrafo eventual - que trafega entre outras áreas, domínios e expressões. Se o discurso sobre uma poética é inescapável a ela própria, porque ela, em si, é uma “arte do possível” pela

22 Cf. http://www.aleka.org/phoenix/zines/phoeni28.htm. 23 Cf. STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003, p. 102. 40

definição aristotélica24, mais prudente, portanto, seria caracterizar Gus Van Sant, não como um poeta, um copista ou um editor de imagens. Mais apropriado seria, sim, dirigir as interpretações aos seus filmes e às suas relações com o contexto sociocultural em que se formaram. Ou seja, seria melhor dizer que Van Sant, do ponto de vista de sua lógica artística e de seu estilo impuro, está mais para um cineasta cujo olhar poético atravessa os vários campos (a fotografia, a pintura, literatura etc) e se adapta, de forma mimética, em cada obra, gerando efeitos estéticos que “podem” romper com a diegese. Mas o que seria essa “impureza” que busca o “puro”, sobre a qual falamos no início? É possível tal contradição? Autor do artigo La route, em somme (A estrada, em suma; tradução nossa), publicado na edição número 41 da revista Eclipses, da Revue de Cinéma, em 2007, o pesquisador francês David Vasse é certeiro ao definir que a pedra- de-toque de Van Sant é a busca da origem (l’a origine) das coisas. Uma procura que irá se situar na apreensão dos fatos no plano eidético, isto é, no nível da visão de uma essência25. Ao analisar o projeto fílmico, Vasse (2007) afirma que o fio condutor dessa jornada será a estrada, elemento recorrente na poética vansantiana e emprestado do gênero western26 e dos road-movies27. E conclui que a capacidade de deslocamento de Van Sant, seja entre os itens da sua filmografia ou no interior dos seus filmes, dá-se de forma dialeticamente inseparável a partir de uma atração por um ponto zero, em que a caminhada das personagens prossegue e se anula no ponto final.

Do primeiro ao último filme, serpenteia a mesma angústia: como se mover, mantendo-se no meio de ondas do mesmo lugar primário, de onde se sai e retorna-se devido ao medo? O lugar primordial é o fundo variavelmente

24 “Poética é a arte da imitação, e imitar é natural ao homem, desde a infância. Ela se limita ao discurso do possível, a partir da imitação de caracteres humanos pela palavra, como a imitação das cores pela pintura e a imitação dos sons pela música” (ARISTÓTELES, s/d, p. 22) 25 Vasse enxerga a questão da essência vansantiana como uma expressão fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty. Parafraseia que o corpo e o movimento dos filmes constituem não uma matéria, mas um elemento primordial. Ver MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Galimard, 1964, p. 165. 26 Western ou faroeste é o “gênero mais antigo” do cinema e uma “arte totalmente americana” (BERGAN, 2007, p. 174), pois remonta, antes do cinema, aos shows populares de “Bufallo Bill”, de 1895, ao romance The Virginian (1902), de Owen Wister, e aos contos baratos sobre os irmãos James e Billy The Kid, entre outros. O primeiro filme faroeste, ambientado no Meio-Oeste durante a corrida de ouro da Califórnia, a Guerra Civil Americana e a construção da ferrovia transcontinental (1950-90), foi O grande roubo de trem (1903), de Edward S. Porter. Entrou em declínio, como gênero histórico, a partir dos anos 1960, mas se mantém nostalgicamente em faroeste revisionistas. 27 Road-movies são um tipo de gênero fílmico que atravessa épocas e estilos e que costuma culminar em mudanças espirituais. Steven Cohan e Ina Rae Hark geram uma definição do ponto de vista da cultura norte-americana, que, aqui, nos interessa: “Forjando uma narrativa de viagem dentro de uma conjunção particular de enredo e cenário que permite uma liberação da estrada contra a opressão de formas hegemônicas, os road-movies projetam a mitologia do Oeste da América numa paisagem cortada e divisada por estradas federais de alta velocidade” (COHAN et HARK, 2001, p. 1). Tradução nossa. 41

declinável (fundação, consolidação) a partir do qual se eleva e evapora qualquer traço humano (VASSE, 2007, p. 44).

A busca sôfrega pela matriz, ainda que seja por meio de uma estética polifônica, vai assumir um caráter iconográfico na obra vansantiana. Neste caso, Vasse (2007) refere-se especialmente ao filme My Own Private Idaho, corpus de seu artigo. Uma das cenas que ele não cita, mas que está no começo do longa, é emblemática do ponto de vista dessa condição do “lugar primordial”, a ser constatada pela personagem de River Phoenix. Perdido no deserto de Idaho, Mike conversa com um coelho. Ao ver o animal correr para longe da estrada e se refugiar na vegetação árida, pergunta: “Para onde você vai, hein? Estamos todos presos aqui (‘Where’re you gonna go, huh? We’re all stuck here together’)”. Antes disso, ele já vaticinara sua presença no mundo por meio de uma sondagem da memória: “Você sempre pode adivinhar onde está ao olhar para a estrada. É como se eu já soubesse que estive aqui (‘You can always tell where you are by the way the road looks. Like I just know I’ve been to this place before’)” (VAN SANT apud FULLER, 1993, p. 109). As licenças dadas a um tipo de mergulho interior estarão presentes, assim, na obra vansantiana desde os primeiros filmes. Ainda que Van Sant não se pronuncie abertamente sobre charadas filosóficas, seus filmes abrem para chaves poéticas em torno do status de uma imagem originária, ou, então, de uma ausência proteica a partir da qual as ideias de um cinema, de uma arte sensível e de uma vida afetuosa tencionam brotar. De modo indistinto, a personificação de sua iconografia poética compõe-se de motifs (motivos) que estarão atrelados à borda tanto como um lugar social como um cinema de limiar estético. Dividimos, a efeito didático, em três tópicos, que antecederão questões mais à frente sobre sua relação com o tempo e o afeto fílmicos: a juventude ou a temática adolescente (a origem da pré-vida adulta); a estrada e o deslocamento (a origem mitológica americana) e as nuvens como metáfora afetiva (o “lieu primordial” a que se refere Vasse).

2.2.1 Juventude e o uivo da rebeldia

Segundo Timothy Shary (2005), professor da Clark University, de Massachusetts (Estados Unidos), os estudos sobre a adolescência são recentes e concomitantes com o aparecimento do cinema no final do Século 19. O primeiro estudo 42

referencial na área data de 1904 e foi escrito por G. Stanley Hall sob o título Adolescence: Its Psychology, and Its Relations to Physiology, Anthropology, Sociology, Sex, Crime, Religion and Education. Embora o cinema e a adolescência como conceito sejam contemporâneos e, de certa forma, imbrincados por uma relação cultural primária – muitos filmes iriam influenciar novas formas de comportamento, valores, emoções e representações sociais tanto em termos sinceros quanto em formas estereotipadas –, os teen movies como uma categoria de gênero no cinema norte-americano tiveram suas bases formadas durante os anos 1930 e somente adquiriram consistência na indústria após a 2ª Guerra Mundial. É evidente que a passagem da infância para a idade adulta sempre existiu, como ressalta Shary, mas a percepção das nuances que esse tipo de transição provocaria na formação de um indivíduo é que irá culminar, de um lado, em novos estudos acadêmicos e, de outro, em uma maior projeção dos jovens no cinema. Tal emergência generalizada do jovem só será efetiva em função de um apelo comercial, um tipo de cinema moldado por adultos que recorrem às suas memórias adolescentes, e não por meio de uma tradição de um cinema feito por adolescentes:

Os estúdios de Hollywood perceberam que eles precisavam recorrer ao público adolescente, primeiro por meio de sessões de matinê que funcionavam bem entre crianças, acompanhadas ou não pelos seus pais. E também promovendo moralmente, com respeito, estrelas jovens do cinema, o que correspondia às expectativas da maioria adulta. Essa fórmula provou-se adequada até os anos 1950, quando a televisão rapidamente começou a roubar a audiência do cinema, e Hollywood respondeu fazendo filmes voltados diretamente à juventude (SHARY, 2005, p. 2). Para Van Sant, que despontou na indústria do cinema norte-americano durante os anos 1980, década do New Queer Cinema e da descoberta do vírus da Aids, foi oportuno o momento de “renascimento dos teen movies em abundância” (Ibidem, p. 53). O movimento punk do final dos anos 1970, que migrou do Reino Unido levando adeptos aos Estados Unidos, e o descontentamento com a crise do american dream nas médias e grandes cidades durante o governo de Ronald Reagan levaram a juventude americana a “desesperadamente, experimentar drogas e sexo, e a ser embalada para expressar seus anseios políticos via consumo” (Ibidem, p. 54). Já o historiador e crítico de cinema Ronald Bergan (2007) avalia que os anos 1950 traduziram-se em uma fase em que “os produtores começaram a identificar um mercado crescente que estourou 30 anos mais tarde” (BERGAN, 2007, p. 166). Filmes como Juventude Transviada (1955), com o ícone adolescente James Dean, e O selvagem (1954), com o ator Marlon Brando, seriam apenas uma extensão da atitude inconsequente e da chamada rebeldia sem causa. 43

Essa representação juvenil seria perpetuada de forma ridicularizada em produções dos anos 1930 e 1940, a exemplo da série Andy Hardy, com Mickey Rooney. Os heróis juvenis em Gus Van Sant “nunca são completamente inocentes” (MARQUES, 2007, p. 21). A observação da crítica francesa Sandrine Marques é pertinente, sobretudo quando ela trata, em seu artigo, de Paranoid Park (2006). O filme narra a história do estudante Alex (Gabe Nevins), de 16 anos, que comete um assassinato involuntário ao sair à noite para se encontrar com skatistas adultos num subúrbio de Portland – seu ato ilícito é revelador da transição brusca da infância para adolescência, da passagem da ingenuidade à violência. Assim, os jovens em Van Sant mostram uma personalidade de camadas mais profundas que os astros rebeldes oriundos dos filmes dos anos 1950. A melancolia icônica de James Dean, eminentemente romântica, é metamorfoseada em personagens amorais, envolvidos com crimes nos mais diferentes graus, mas que vivem geralmente à margem. Pode-se citar o drug dealer Bob Hughes (Matt Dillon), de Drugstore Cowboy; ou, ainda, o prostituto Mike (River Phoenix), que comete roubos e pequenos golpes ao lado do amigo Scott (Keanu Reeves) em My Own Private Idaho. A insatisfação masculina também tem sua versão feminina, capitaneada pela jovem Sissy Hankshaw (Uma Thurman), protagonista de Até as vaqueiras ficam tristes. Natural de Richmond, no estado de Virginia, Sissy nasceu com uma deformação congênita nos polegares; e, ao descobrir o dom de como agir com eles, passa a viver de caronas nas estradas. Em um plot que mistura o underground e elementos mágicos, a personagem interpela como uma nômade por Nova Iorque, Dakota, até chegar a um rancho no estado de Oregon, habitado por cowgirls rebeldes, entre elas a líder Bonanza Jellybean (Rain Phoenix). Outro exemplo de juventude desajustada em Van Sant é o de Suzanne Stone (Nicole Kidman), de Um sonho sem limites (To Die For, 1995), uma jornalista que trabalha como “garota do tempo” em um canal de TV e deseja se tornar famosa, mesmo que, para isso, tenha de se tornar uma assassina. Crimes condenáveis, mas que não são julgados pelos seus atos, pelo menos não pelas lentes de Van Sant. “As personagens situam-se em um lugar sob o selo do crime sem castigo (pelo menos terrestre). Gus Van Sant mostra o fracasso da civilização que altera a natureza bárbara por essência” (Ibidem). Sejam heróis erráticos, nômades por natureza e filiados à literatura beat de Burroughs ou Kerouac (a exemplo de Sissy, cuja história foi adaptada do livro homônimo de , amigo pessoal de Ginsberg); ou anti-heróis marcados pelo 44

erro e pela imperfeição moral (Suzanne Stone é personagem do livro de Joyce Maynard, que, por sua vez, foi inspirada no caso real de Pamela Smart, de New Hampshire, no nordeste dos Estados Unidos, que, aos 23 anos de idade, seduziu um garoto de 15 anos com o intuito de matar o marido), os jovens vansantianos trazem a amálgama da essência misteriosa. Por isso, as personagens apontam por uma interrogação em torno de um elemento matricial, já que a “cosmologia vansantiana é geralmente resumida a uma questão dupla: a origem e a identidade” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 79). Em entrevista concedida, em 2012, ao fotógrafo Ryan McGinley28, artista cujo interesse particular é examinar, de maneira semelhante, as relações entre juventude, liberdade e normas sexuais, Van Sant revelou ter uma predileção por um elenco na faixa etária entre os 16 e 25 anos. É importante ressaltar, todavia, que a juventude, na forma como ele pensa e na maneira como ela é exteriorizada na obra, prescinde de delimitações fixas e considerações absolutas sobre idade. Questionado se ele se sentia em um “desenvolvimento preso” (arrested development) a esse grupo, Gus justifica, na entrevista a McGinley: Em parte, acho que é isso, mas acredito que o desenvolvimento preso, de fato, parte também de ser jovem na maneira de pensar. Eu sempre me lembro de os irmãos Marx dizerem que se sentiam como se tivessem 14 anos de idade. E acho que eles tinham de se sentir daquela maneira, ou então nunca teriam sido capazes de serem os Irmãos Marx. Como um artista, você tenta ter uma mente lúdica. Para mim, as personagens jovens são a parte mais interessante da vida (VAN SANT, CULTURE Talks – In Conversation: Ryan McGinley and Gus Van Sant, Another Magazine, julho, 2012).

Por essa definição flutuante de arestas abertas, a questão identitária vansantiana deixa pairar sobre ela um manto de dúvidas. Para Van Sant, a adolescência enquanto elemento originário presta-se mais como uma essência. Importaria, assim, questionar-se sobre como esse espírito é sondado, para onde ele vai e quem ele é. Tal abordagem entra em consonância com os novos estudos sobre juventude, que já superaram a visão estanque sobre o assunto:

Concorda-se com diversos autores que defendem que pesquisar a juventude é se colocar o desafio de desconstruí-la enquanto categoria homogênea, reconhecendo que não há uniformidade e linearidade em etapas de transição para a vida adulta. As transições são múltiplas, distintas e diferentemente vividas pelos jovens a partir de descontinuidades e rupturas, seja nas vertentes conjugal, profissional, entre outras. Nesse sentido, os pesquisadores sobre o tema não consideram mais a representação por faixa etária como a única para designar a juventude. Como os processos de transição são heterogêneos é preciso considerar também o meio social, o pertencimento de classe, o sexo, a raça, os costumes. (BAUMWORCEL, 2010, p. 4).

28 Ver http://www.anothermag.com/current/view/2083/Ryan_McGinley_and_Gus_Van_Sant. 45

No entanto, o espírito juvenil entronizado no olhar de Van Sant ganha materialidade por um viés voyeurista que remete aos retratos de Warhol. O elogio à juventude é efetivo, numa tentativa de quebrar estereótipos, mas o mesmo ato estético transmuta-se em um “apagamento do sujeito em favor de uma proeminência do objeto” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 26). A representação é, portanto, arquetípica e é dirigida tanto para personagens de inspiração beatnik, tais quais os adolescentes mexicanos Johnny e Papas, em Mala Noche, quanto para uma juventude sem rumo, a exemplo do faxineiro Will Hunting (Matt Damon), de Gênio Indomável. Tal intenção ganha forma a partir do uso excessivo de close-ups29. Dessa maneira, Van Sant confere visibilidade a esses jovens, marginalizados ou em conflito, o que caracteriza um avanço do ponto de vista da abertura do demi-monde ou de aspectos de visibilidade da rebeldia criativa no mainstream. Porém, o esforço é concessivo e pode ser limitado por uma abordagem vazia sob o signo do consumo, “objeto iconizado, que pré-existe na plenitude do olhar, e que é condenado a uma única postura de contemplação – o desaparecimento gradual do assunto e a suposição deste objeto icônico” (Ibidem).

FIGURA 8: Close-up de Will Hunting (Matt Damon), em Gênio Indomável (1997)

FONTE: http://24.media.tumblr.com/948c5fc6741d8ad864334415ab866827/ tumblr_mq48xm0nQN1qzoslyo1_1280.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

O investimento no rosto dos personagens, é preciso reiterar, constitui-se ambíguo. Quando analisarmos a imagem na Death Trilogy, o recurso terá outro sentido: estará profundamente conectado aos travellings e aos movimentos de câmera em prol de uma estética da névoa, como veremos ainda. Em Gerry, por exemplo, o rosto de Matt

29 Gilles Deleuze, no capítulo sobre “Imagem-afecção, rosto e primeiro plano”, do livro “A imagem- movimento”, também vai dedicar especial atenção aos traços de rosticidade como uma estrutura coalescente de imobilidade superficial e os micromovimentos de senso nervoso, que é ao mesmo tempo refletida e refletora. 46

Damon aponta para um sentimento distinto a favor de uma identidade que transcende o enquadramento warholiano da beleza jovem e eternamente mumificada. Por outro lado, tal disposição contraditória (o elogio ao rosto versus apologia à rebeldia) abre mais um precedente, desta vez sobre questões da libido. A obsessão pelo primeiro plano permite uma fresta para que se possa aventar ligações de Van Sant com teorias psicanalíticas sobre a sublimação30. O interesse costumeiro pela juventude é palpável como o sinal de um desejo de satisfação que “parte de um vazio que não pode senão ser representado por outra coisa” (CASTIEL, 2007, p. 110). Os retratos de jovens nos filmes de Van Sant podem assumir a elevação de um desejo como um ato pulsional, identificado com o outro pela “relação narcísica com um objeto frustrante que marca a estrutura da melancolia” (FREUD, 2012, p.17). Esta é uma discussão ampla, e não se pretende aprofundá-la agora. Seria preciso pensar em várias questões acerca da relação de afeto e desejo no contemporâneo, um campo vasto de estudo. De qualquer maneira, sabe-se que esse investimento desejante gira em torno de um manejo de câmera que “sempre volta ao campo da visão” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 30). O travelling subjetivo de seus filmes marca uma tentativa de encontrar uma figura, que, muitas vezes, ancora-se no rosto. Movimento que se repete na representação da estrada e das nuvens, seus principais motifs poéticos.

2.2.2 A estrada e a mitologia como um rito

A filmografia vansantiana vive no coração de personagens desajustados. Em uma dimensão macro, converte-se, da mesma forma, em um registro da paisagem. É assim, num olhar conjugado entre dois planos simbólicos, que estabelece a sua visão de mundo. A presença do cenário projeta-se ativamente nos filmes e, como tal, toma leito gradualmente de modo que, com o tempo, sofre uma inflexão: de plano de fundo passará a estar no nível tanto quanto da personagem. Se, num primeiro momento, as

30 A sublimação é um processo psíquico postulado por Freud pelo qual se explicam atividades humanas no campo da cultura e da sociedade, que não têm, aparentemente, nenhuma relação com a sexualidade, mas que encontram sua mola propulsora na pulsão sexual. Há momentos distintos da teorização do processo sublimatório em Freud; um primeiro momento como um sintoma de dessexualização pulsional, em que o objeto passaria de sexual para não-sexual; um segundo momento, definido pela sublimação como um dos quatro destinos pulsionais; e por último, à ideia de que, paralelamente à mudança da meta da sublimação, haveria também uma mudança do objeto. Ver CASTIEL, Sissi Vigil. Sublimação: clínica e metapsico-logia. São Paulo: Escuta, 2007, p. 12. 47

personagens estão sempre motivadas pela necessidade de viajar pela/na América, a estrada (particularmente, as rotas de asfalto pelo deserto) será um elemento naturalmente acionado. Da mesma maneira que, ao escolher uma filiação aos beatniks e às suas mitologias relativas à experimentação narrativa (poética), das drogas (viagens a paraísos artificiais) e ao misticismo do Extremo-oriente (adesão ao Budismo e ao Zen), será natural a condução ao encontro com o road-movie, gênero consagrado ao cinema norte-americano, como uma “expressão cinematográfica do road-novel, característico do movimento literário beat” (DELEUZE, Fanny; LÉCOLE-SOLNYCHKINE, Sophie; SOULADIÉ, Vincent, 2007, p. 51). Tal paisagem, tomada em planos visuais idílicos de enquadramentos e cinematografia com beleza devedora a uma peça publicitária, inscreve-se na mitologia dos westerns da primeira metade do Século 20. Alude ao contexto narrado pelo escritor John Steinbeck diante de um Meio-Oeste saqueado e devastado pelo marco civilizatório da modernidade cega no continente da América do Norte31. O olhar estereotipado sobre os justiceiros e as vilas habitadas por homens e mulheres sem-lei, que constituiu a imagem mítica do faroeste como um gênero fílmico por décadas, aqui passa por uma metamorfose, tornando-se, em Van Sant, um “produto novo com o velho” (Ibidem, p. 52). Adere-se, duplamente, como “uma ruptura e também uma herança em relação aos estereótipos westernianos, mantendo-se subserviente a uma série de códigos temáticos, narrativos e fílmicos que lhe são próprios” (Ibidem). Em alguns filmes vansantianos, as citações ao western são literais. Em Mala Noche, os mexicanos clandestinos viajam de trem pela paisagem da Califórnia e, ao chegarem a Portland, um deles, Johnny, brinca de usar um chapéu de cowboy na rua. Em My Own Private Idaho, o prostituto Mike visita seu irmão Richard em um trailer à beira da estrada, e este conta a história de a mãe ter-lhes matado o pai durante uma sessão de Rio Bravo, de Howard Hawks, em um cinema drive-in. E, é claro, também são notáveis as referências-homenagem nos próprios títulos (Drugstore Cowboy e Até as vaqueiras ficam tristes). Imageticamente, podemos falar, ainda, em uma alusão aos

31 "Já pensei muito sobre a selvageria e a insensatez com que nossos primeiros colonos chegaram a este rico continente. Vieram como se ele fosse um inimigo, o que era mesmo. Queimaram as florestas e mudaram as chuvas; varreram os búfalos das planícies, explodiram os rios, puseram fogo no capim e passaram uma foice impiedosa na madeira virgem e nobre. Talvez sentissem que o continente era ilimitado e jamais poderia se exaurir, e que um homem poderia mudar-se para novas maravilhas infinitamente. Com certeza há muitos exemplos do contrário, mas em boa parte os primeiros a chegar pilharam o país como se o odiassem, como se o mantivessem apenas por algum tempo e pudessem ser expulsos a qualquer instante”. STEINBECK, John. A América e os americanos – e outros textos. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 433. 48

vales de John Ford, na maneira como Van Sant capta as montanhas à distância, com o céu à espreita, compondo um visual que impacta pela grandiosidade. Um cenário que, por exemplo, será perscrutado ao extremo em Gerry. O road-movie, que nasce como uma reação à cultura faroeste, também não deixará de ser infectado pelo ethos do Meio-Oeste americano. É possível pensar na questão da “camaradagem masculina, na cena da fogueira no campo [em My Own Private Idaho, entre os prostitutos Mike e Scott], a travessia frenética de grandes espaços e do papel identitário da paisagem natal” (Ibidem). Pensar o deslocamento em Van Sant faz-nos dar conta de uma descoberta de mundo desatrelada da recompensa plena, em virtude do esforço físico empreendido pelas personagens. Ao se lançarem em um destino errante, eles cumprem itinerários cíclicos, sem um fim evidente. Geralmente, o objetivo concreto, palpável, da migração temporária não é alcançado, e seus rumos e desatinos seguem meandros elípticos. “Seus planos erráticos ilustram a antítese do road-movie, a figura inapropriada de um cinema de movimento” (Ibidem).

FIGURA 9: Still de Até as vaqueiras ficam tristes (1993).

FONTE: http://cineplex.media.baselineresearch.com/ images/346491/346491_large.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Tal discurso que contemporiza o romance de estrada remete a filmes como Paris, Texas (idem, 1984), de , no qual a transformação interior põe-se em uma questão dialética. O professor da Universidade de Brasília (UnB) Julio Cabrera (2006) atribui ao filme do diretor alemão uma visão hegeliana em torno do protagonista Travis, que foge da casa onde morava com o filho após o abandono da esposa. Na busca pelo paradeiro da mulher que ama, o homem torna-se um nômade compulsivo que anda 49

sem parar por quatro anos. Quando a reencontra, finalmente, em uma casa de peep- show, decide, porém, partir novamente sem rumo, longe da família que constituíra e quisera refazer. Para Cabrera, essa tomada de consciência, ainda que negativa, é que torna a viagem ser o que ela é, pois adquire outro sentido pela negação enriquecedora. O objeto, fruto do investimento desejante, também muda de valor: é negado, aceito, incluído e incorporado, sem excluir tudo de maneira peremptória. “O fim da história é, segundo Hegel, o pleno autoconhecimento do espírito através de sua história racional” (CABRERA, 2006, p. 216). Nesse sentido, os filmes de Van Sant, mesmo que sejam o símbolo do fracasso de outsiders que vagam por uma América falida e sem sentimento, superam a dor ao advogar por um empiricismo (que causa dor e não garante um percurso feliz), mas que de alguma forma restaura o próprio valor de uma historicidade.

[...] viajar para simplesmente ‘conhecer lugares novos’ é o espírito meramente ‘turístico’ que a filosofia de Hegel tenta superar. O radicalmente ‘novo’ de uma viagem bem-feita, de uma autêntica viagem espiritual, é sempre um mesmo, um mesmo enriquecido, transformado, negado, e novamente negado. (Um viajante nunca se perguntaria: ‘Como será Paris? Que haverá em Paris para ver?, mas ‘Como serei eu em Paris? Em que me transformarei em Paris?). (CABRERA, 2006, p. 222).

Em certa medida, os filmes de Van Sant percorrem a via-crúcis da resignação. Jacques Pasquet (2007), professor da Université Rennes II, fala em uma estrada “bifurcada” no plano visual vansantiano. Destaca que a montagem fílmica não-linear molda sequências que criam uma cisão entre passado e futuro. “[São] saídas falsas, tempos mortos, que a câmera registra em planos demorados durante o deslocamento do personagem, agora inútil” (PASQUET, 2007, p. 113). E completa dizendo que todas as bifurcações - de novo a dialética hegeliana - são um limiar e uma cruz sem retorno. “A bifurcação consiste em afirmar que ‘nada disso não é diferente’, consiste em ‘aceitar seu lugar’ e ‘aceitar o teste existencial de experimentar, em si mesmo, uma mudança de ponto de vista’” (Ibidem).

2.2.3 A nuvem e o afeto como sentimentos

Chegamos ao ponto nevrálgico da obra vansantiana. Provavelmente, a maior metáfora de sua obra. Talvez porque seja uma imagem persistente, uma presença etérea ou um modo de filmar. A nuvem é a somatização do olhar sensível do cinema de Gus 50

Van Sant. Não é a estrada, ela é um meio. Também não é o deserto norte-americano e sua paisagem mítica, embora ele sirva de moldura. A nuvem é um estado, uma presença. As nuvens constituem um motif32 poético de Van Sant, pois instauram um cinema profundamente (climatérique) climatérico (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 38), no qual o tempo se sobrepõe ao espaço via imagens que equivalem a uma transubstanciação do real. As digressões – que dizem respeito não somente a nuvens que cortam o céu, matéria leve, mas a outros fenômenos visíveis aos nossos olhos, como o sol ao cair no entardecer, variações da luz sobre uma estrada, a noite que cai – compõem um esforço imagético em capturar intersecções do tempo, ato levado a efeito (ou tencionado) tecnicamente a partir do uso de recursos como slowmotion, time-lapse e planos-sequências dilatados. O ecrã vansantiano, em alguns casos, segue um fluxo de imagens em que o sobrenarrativo, isto é, aquilo que está acima da cabeça das personagens, é tão importante quanto o que é captado na tessitura das relações humanas: um reflete o outro numa relação de duplo versus ausência.

FIGURA 10: Frame de nuvens em Mala Noche (1985)

FONTE: imagem extraída do filme

FIGURA 11: Frame de nuvens desfocadas em Gerry (2002)

FONTE: http://www.flickr.com/photos/30467127@N00/1994521754/in/photolist-43frQ7-43fs4G- 43fsuh-43fCkq-43fCuJ-43fDnY-43fDKY-43fE9A-4ikhQw-4Fq7RS-5CuXg2-5YDaSN-63ydP8- 6MAhBp-6Um3Dk-dA6zbY-aX67Dr-a2hmcw-7Tvkuu-87XTtC-8Fjqca-7JLKn3-a7ndWB-9i9Uxu. Acesso em: 28/08/2013.

32 O uso do termo motif (“motivo”, em francês) afasta a imprecisão em situar a fala em questões de tendência ou gênero, seguindo a mesma terminologia usada por Bouquet e Lalanne. Concordamos com os autores, no sentido de que as nuvens enfeixam menos uma recorrência estilística ou uma consciência de um gesto criador em Van Sant que uma sensibilidade da imagem. 51

A ocorrência das nuvens nos filmes de Van Sant traduz, assim, a passagem do tempo na célula fílmica. Podem surgir na intersecção de um falso raccord entre os planos, uma costura que não indica causalidade, mas uma indicialidade entre frações de tempo entre uma ação à outra. Sua presença também pode irromper na tela por microssegundos, como na refilmagem da cena do chuveiro de Psicose, imperceptível a um olhar menos atento e suscetível a um piscar de olhos. Ou a ocorrência da nuvem pode durar vinte segundos, a exemplo das cenas externas de Mala Noche, no momento seguinte em que o americano Walt, em narração off, tece uma teoria melancólica sobre a experiência da noite anterior com o mexicano Papas e sua condição de outsider. A nebulosidade constitui-se, portanto, em uma banda imagética sutil, uma subcamada sentimental que espelha uma intenção direta de Van Sant. É comum também elas estarem atreladas a momentos dramáticos, ora na ocasião de uma tragédia/crime (Psicose) ora de uma desilusão/desamor (Mala Noche), numa cartela de sensações e emoções que vai de um polo a outro. A justaposição de planos díspares (a tensão do plot em confronto com as imagens sublimes das nuvens) enseja uma técnica comum no cinema e usada por diretores tais quais Hitchcock, os formalistas russos ou os cineastas da Nouvelle Vague: o efeito Kuleshov. Tal montagem, concebida no início dos anos 1920 por Lev Kuleshov, consiste em criar uma sequência no tempo fílmico, exibindo materiais visuais distintos lado a lado, com o objetivo de produzir efeitos emocionais no público. “Era a técnica cinematográfica, e não a ‘realidade’, portanto, que ocasionava a emoção espectatorial” (STAM, 2010, p. 55). Ora, fica evidente que esse recurso usado por Van Sant tenta convocar o espectador a tomar parte, efetivamente e afetivamente, das histórias que ele transpõe. Trata-se de uma montagem mental, mas eminentemente emotiva, que toca no olho externo quase que como uma referência subliminar. Na maioria das vezes, um ato delicado, acionável porém inoculado, que deixa transparecer sua forma de pensar como artista. Mesmo com a duração de uma fração de um minuto, dimensão longa demais para olhares saturados com uma imagem banal, a decupagem das nuvens funciona como um detalhe a se perder no todo. Uma intervenção fílmica que desafia a diegese e gera controvérsias. Para o crítico Jérôme Lauté (2007), os flashes subliminares de Van Sant em Psicose são “um retorno do reprimido, um efeito de assinatura destinado a assinalar uma presença, em uma sequência crucial, do realizador atrás da câmera, e não de um 52

copista vulgar” (LAUTÉ, 2007, P. 105). Diz, continua ele, que, ao fazer deste modo, “Van Sant não está à procura de ultrapassar o modelo, algo impossível. Ele parece mais buscar um efeito surpresa, mas, ao fazer isso, pelo contrário, deixa a impressão de querer prejudicar a legibilidade” (Ibidem). As nuvens são enquadradas por Van Sant mediante a aplicação de um zoom in no horizonte, simulando a experiência de uma câmera aberta (para produzir time-lapse). Neste caso, a imagem pode ter a noção espacial quebrada, fazendo-se um registro quase abstrato do céu; ou, então, registrá-las mantendo a linha do horizonte, com as montanhas, cometas e outros elementos indiciais. Outro método muito usado por ele é o contra plongée, ou seja, mediante a escolha de um plano de câmera posicionado de baixo para cima, que destaca figuras da realidade adornadas pelas nuvens. Como veremos adiante, as nuvens irão se transmutar em um sintoma radical da construção fílmica em favor de uma nova arqueologia do cinema. Assim como a paisagem, que tomava um lugar de coadjuvante, as nuvens passarão a ser decisivas na temporalidade narrativa.

FIGURA 12: Contra-plongée com as nuvens ao fundo em My Own Private Idaho (1991)

FONTE:3.bp.blogspot.com/_WkKZJVG5wTk/TAng8ocVMpI/AAAAAAACkjE/lizE1d37uPQ/s1600/M ovieQuiz_829-003.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Puramente uma sensibilidade estilística, motif visual que desvanece e recrudesce ao sabor de sua própria consistência gasosa, as nuvens revelam uma zona de suspensão ao caos e aos conflitos num lugar que é impiedoso com os desajustados. Como um horizonte poético, externalizam as referências de Van Sant em relação aos versos de Burroughs (e à poesia beatnik em geral, com suas metáforas sobre evanescências, vapores de indústria, fumaças de trem, nevoeiros da modernidade), à fotografia moderna norte-americana (que revelam a solidão e o vazio das pastagens) e sua paixão por 53

Portland, sua morada, cenário dos filmes e símbolo de uma outra América, de um outro olhar. A paisagem nublada demarca, desse modo, um sentimento que transpassa a camada turva para chegar até o espectador: o afeto. Sintoma de virtualização de um desejo terno e delicado, ela espelha uma dor que é compartilhada no ato da autoconsciência da condição e da existência de um outro que é semelhante na sua diferença. Para o senso comum, o afeto é compreendido como um jeito de afeiçoar-se a algo ou alguém, uma maneira de mostrar inclinação por meio de laços de simpatia. Seria uma diferenciação de um amor sincero entre iguais. Não é nesse sentido que o afeto vansantiano se expressa, ou seja, pela diferença de iguais, mas pela igualdade dos diferentes entre si. Diante da dor alheia, Van Sant tenta se afinar a ela, e até vibrar, porque, “antes de tudo, a dor é um afeto, o derradeiro afeto, a última muralha antes da loucura e da morte” (NASIO, 2007, p. 23). De outro modo também, o afeto em Van Sant não é condescendente, nem minimiza os efeitos de realidade. Seus personagens atravessam ritos de passagem, encaram o sentido dialético de negar e aceitar o que lhes apresenta no embate com a estrada, até perderem-se nesse deslocamento. Em suma, sofrem demasiado em termos físicos, psicológicos e de ausência afetiva. Porém, esse enfrentamento está ligado a uma dor que traz a subitaneidade de uma ruptura, a travessia súbita de um limite que, ao ser ultrapassado, subverte quem passa por ele, sem desestruturar o seu estar-no-mundo. Tal processo constante de autoanálise será uma prerrogativa em seus filmes, inclusive com citações abertas à psicanálise, a exemplo de Gênio indomável, a partir da revelação do passado familiar traumático de Will Hunting. Pode-se aventar, ainda, uma questão edipiana33 em relação ao órfão prostituto Mike, de My Own Private Idaho, em virtude de suas visões oníricas no colo da mãe, além da dificuldade em fazer programa com mulheres mais velhas, já que a possibilidade do ato sexual dispara nele memórias remotas. A crueza do abandono e da humilhação em situações desse tipo poderia depor contra a delicadeza da nuvem vansantiana, mas elas, ao contrário, elidem formas de narrativa grotesca. A nebulosidade entremeada nos filmes nunca expõe uma tomenta; ela é sempre registrada em sua constituição esparsa e inofensiva. É sempre um

33 Ver NASIO, Juan David. Édipo – o complexo do qual nenhuma criança escapa. Tradução por André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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contraponto, um efeito Kuleshov que desperta (ou que tenta despertar) a sensação de otimismo, como na tomada de ares surrealistas de My own private Idaho, em que Van Sant desenha um sorriso numa nuvem. O afeto vansantiano, em suma, é uma dor de amar e um dispositivo dialético que faz enriquecer diante das experiências vividas:

[...] digamos que é o afeto que exprime na consciência a percepção pelo eu – percepção orientada para o interior – do estado de choque, do estado de trauma provocado pelo arrombamento não do invólucro corporal do eu, como no caso da dor física, mas pela ruptura súbita do laço que nos liga ao outro eleito. (Ibidem, p. 33). Controverso, tal sentimento de afeição em torno dos estratos sociais à margem, que normalmente não seria apropriada a um branco norte-americano, põe Gus Van Sant em um território particular dentro da indústria de Hollywood. A proximidade com certos grupos expatriados e separados por fronteiras morais acompanha sua trajetória desde o começo. Em 1989, enquanto fazia preparação de elenco do filme Drugstore Cowboy, ele aventou a possibilidade de contratar a ex-atriz pornô Traci Lord para fazer o papel de co-protagonista ao lado de Matt Dillon. O contato com a indústria pornográfica, restrita ao demi-monde, iria se repetir mais vezes numa tentativa de borrar os limites entre os grandes estúdios e o segmento adulto. Para o filme Milk, em 2008, Gus escalou, entre os figurantes, o ator pornô gay Brent Corrigan. E, em 2012, o próprio Van Sant atuou ao lado de James Deen, ator de filmes adultos, no filme The Canyons (idem, 2013), de Paul Schrader, no papel de um psicanalista. A expressão livre de afeto, devedora da cultura hippie dos anos 1970, é outra faceta que, ainda hoje, é posta sob suspeição. Agregada a isso a filiação ao beatnik, Van Sant e sua equipe de filmagens costumavam ser associados, sobretudo nos anos 1980/90, ao círculo de drogas e orgias. O biógrafo James Parish revela que, em 1990, enquanto preparava o elenco para My Own Private Idaho, Gus Van Sant teria sido acusado de postergar a produção de um filme em função do uso excessivo de tóxicos por parte dos atores, além de permitir que eles se prostituíssem (PARISH, 2001, p. 141). Indagado em seguida, o diretor esclareceria que River Phoenix e Keanu Reeves, de fato, conviveram por algumas semanas com prostitutos de Portland, para fazerem uma espécie de workshop para o filme, porém garante que eles não foram expostos a programas com clientes. Na mesma época, e também nos anos seguintes, haveria mais questionamentos sobre as idas e vindas na casa de Van Sant em Portland, cenário de festas e trânsito constante de atores, além de possíveis excessos cometidos nos sets de filmagem. Durante as filmagens de My Own Private Idaho, ainda naquele ano, membros 55

da equipe alegaram que o próprio diretor teria deixado a sua casa por achar que a agitação das gravações estaria atrapalhando sua concentração, e, então, se alojado temporariamente em um imóvel velho em Portland para desfrutar momentos de solidão. “Gus é uma pessoa enigmática. Ele não julga. Ele é mais um voyeur. Ele não participava – mas também nunca falava. Ele nunca diria a alguém como viver a vida” (GOLDSMITH apud PARISH, 2001, p. 141). Em virtude de sua postura tímida e reservada, Van Sant é alvo de acusações de outras naturezas, sem que tenham sido confirmadas. Em virtude da obsessão pelas personagens jovens, e por esquadrinhá-los em idades cada vez mais precoces no ecrã, sua imagem é associada a uma tendência pedófila, principalmente por filmá-los em close-up e, algumas vezes, sem roupa. Em muitos de seus filmes, a nudez é tratada de forma natural, e o corpo masculino ganha evidência. Foi assim com os atores River Phoenix e Keanu Reeves, que protagonizam cenas de sexo juntos, mas também com Ray Monge e Tim Streeter, em Mala Noche. Um fato oficial foi a atração afetuosa extra-câmeras entre Van Sant e Phoenix. Ambos se conheceram durante o casting de My Own Private Idaho, e Gus queria que o ator, destacado após a indicação ao Oscar de melhor coadjuvante por O peso de um passado (Running on Empty, 1988), fizesse o papel do prostituto gay Mike Waters. Convicto da decisão, Gus enviou o roteiro a River, que, inseguro em aceitar um papel polêmico, demorou a dar uma resposta. Segundo Parish (2001), o cineasta teria viajado de Portland até a Flórida para convencer pessoalmente o jovem ídolo teen, ainda novo no stardom, a integrar o projeto. Já nas filmagens, Phoenix desenvolveu uma amizade muito próxima a Van Sant – eles chegaram a conversar várias vezes por telefone. “Durante Idaho, o emocionalmente delicado Phoenix procurava o apoio de Van Sant – como um diretor, como um amigo, e, talvez, de alguma forma, como a figura de um pai” (PARISH, 2001, p. 147). Gus, mais tarde, revelaria:

River sempre estava fazendo coisas como se dissesse ‘eu simplesmente te amo’, e tentando me abraçar. Eu congelava, talvez porque meu pai costumasse agarrar meu joelho de uma forma semelhante à que ele fazia. River não gostava da minha reação, então ele me abraçava de novo, e eu congelava, até que ele gritava comigo (VAN SANT apud PARISH, 2001, p. 148). Tradução nossa. Com o sucesso comercial do filme, River ganharia o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza. Na época, o ator creditava o mérito da atuação a Van Sant e, ainda, tecia elogios sobre a “personalidade bonita” do diretor (ROBB, 1995, p. 116). Com a 56

morte de River, Gus ficou emocionalmente devastado e dedicou o filme Até as vaqueiras ficam tristes em memória ao ator. Em 1997, Van Sant publicaria um romance, Pink, como uma forma de expurgar o luto da perda. A ligação espiritual se manteria anos depois, na relação com a família de Phoenix: a irmã Rain protagonizaria Até as vaqueiras ficam tristes, e o irmão caçula Joaquín participaria do filme Um sonho sem limites. As relações de afetuosidade com atores não seriam restritas a River. Com Matt Damon, Gus desenvolveu uma amizade que rendeu colaborações em Gênio Indomável (além de atuação, Damon assina o roteiro premiado no Oscar e escrito em parceria com Ben Affleck) e Gerry, além de Terra Prometida (Promise Land, 2012), projeto que, originalmente, seria a estreia de Damon na direção, mas que, a pedido dele próprio, foi delegado a Van Sant. A poetisa e atriz Gracie Zabriskie, de O Império dos sonhos (Inland Empire, 2006), de David Lynch, também é amiga e um rosto constante em filmes vansantianos, entre eles Drugstore Cowboy, My Own Private Idaho e Even Cowgirls Get The Blues.

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3. A IMAGEM-NÉVOA

Assim como vejo minha alma refletida na natureza... Como se através de uma névoa com indizível plenitude e beleza e saúde vejo...

Walt Whitman

Se a nuvem cobre o céu e corta a paisagem ao fundo, a névoa é um estado de suspensão aquosa que desce às zonas ínferas e se mistura ao campo visual. Trata-se de um vapor (condição climatérica) que embaça o olhar, desafiando mecanismos de percepção. No plano fílmico, a névoa é uma metaficção34 clichê, mas nem sempre constatada, que remonta desde o cinema silencioso da transição do fim do Século 19 para o começo do Século passado. Anteriormente, citamos o filme Um cão andaluz, de Buñuel e Dalí, e a cena do corte do globo ocular de uma mulher a partir de uma navalha. Antes desse gesto radical e cru, enquadrado em primeiro plano, mostra-se uma nuvem estreita e alongada que corta a Lua, estabelecendo um jogo poético entre a visão ordinária e as possibilidades infinitas deste novo meio. A nuvem de Buñuel que se transforma em objeto cortante e, portanto numa metáfora do próprio cinema, questiona expectativas ilusórias (depois, soube-se que o instrumento secciona o olho de um boi morto), lançando uma sondagem ontológica em torno da imagem e do tempo fílmico. É possível enxergar outra modalidade metafórica da névoa no cinema que não seja uma atmosfera embaçada, mas uma poeira branca dotada de luz própria que restitui a visão em meio à escuridão, como na cena do refugo do negativo fotográfico em Paisagem na neblina, de Angelopoulos, também já detalhada na introdução deste texto. A névoa é, desta forma, uma transfiguração da nuvem e uma das peças elucidativas acerca da gênese do cinema e de um olhar moderno sobre ele. A partir deste segundo

34 A metaficção, segundo Gustavo Bernardo, “trata-se de um fenômeno estético autorreferente através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma”. Continua ele: “esse fenômeno aparece em especial naquelas obras artísticas que nos acostumamos a considerar as melhores – como um romance de Machado de Assis, um quadro de René Magritte, um filme de Alfred Hitchcock ou uma foto de Chema Madoz. A metaficção é a irmã mais nova da metalinguagem, mas ambas são netas da metafísica”. BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta negra, 2010, p. 9. 58

capítulo, iremos explicar como esse elemento da natureza evanescente, impalpável, quase um espírito, vai dialogar com um tipo de imagem muito presente no cinema de Gus Van Sant, sobretudo na Trilogia da Morte (Death Trilogy). Denominaremos de “imagem-névoa” este fenômeno entendido como esboço de algo particular e intransferível em respeito a uma sensibilidade técnica (aspecto interior), mas também como um afeto fílmico (aspecto exterior) inscrito em um tipo de cinema contemporâneo que suplanta fronteiras nacionais e diferenças, contrapondo elementos do cotidiano (sempre uma matéria humanizante e simples) a um tipo de corte mais temporal que espacial. O corpus de análise, a Trilogia da Morte, dá-se por um critério simples de marco cronológico, porém também por um lastro teórico-conceitual, pois é a partir de Gerry (2002), primeiro título da Trilogia, que se opera uma mudança brusca, quase uma guinada em espiral, ao fundo da epistemologia representacional no cinema de Van Sant. Tal percepção se estende não apenas ao encadeamento dos quadros como também dentro do próprio plano. O regime de Gerry, e aí se aplica também aos dois filmes posteriores, Elefante (2003) e Últimos Dias (2005), constituindo um propósito claramente e, a priori, puramente estético, guia-se por uma câmera fluida que recorta o espaço-tempo em uma montagem alternada: o tempo comum, ou o da percepção ordinária, concorre com um tempo cíclico, que retoma elementos do futuro e do passado, forçando o expectador a lidar com um tempo simultâneo que ocorre enquanto o filme se processa. O cruzamento do cotidiano com a percepção de um “sobretempo” é o que vai fazer Van Sant se vincular muito intrinsecamente a pressupostos de Gilles Deleuze sobre a temporalidade no cinema e à ideia de “imagem-cristal”, como detalharemos adiante. Em suma, a Trilogia da Morte aprofunda códigos de ruptura anterior a ponto tal de se aproximar de um cinema de limiar visual, poético e narrativo, algo esboçado timidamente nos primeiros filmes de Van Sant. A rigor, Paranoid Park (2007), que sucede Últimos Dias, poderia caber no grupo da Trilogia35, por conservar elementos em comum (além do plano temático da questão da morte, um diálogo estético) – experimentação que não se repete em filmes posteriores, como Milk - A Voz da Igualdade (2008) e Inquietos (2010), de natureza mais convencional. Entretanto, a título de concisão analítica, optou-se por aprofundar nesses três filmes. O procedimento

35 Críticos dos Cahiers du Cinéma referem-se a uma "Tetralogia da Morte", incluindo, cronologicamente e esteticamente, Paranoid Park, mas a definição não é consensual entre outros críticos. Ver BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 9. 59

de observação será feito isoladamente para cada filme, por se entender que, embora estejam sob um mesmo guarda-chuva teórico da “imagem-névoa”, cada um deles resguarda particularidades e aspectos importantes que precisam ser comentados em pormenor, e não condensados em um único arcabouço. A Trilogia da Morte também tem uma peculiaridade econômica: ter cumprido o papel em renovar o olhar crítico em torno da obra vansantiana, especialmente junto à academia francesa. A partir de 2003, ano em que Van Sant projetou-se mundialmente ao ganhar a Palma de Ouro de melhor filme e o Prêmio de Melhor Direção por Elefante em Cannes, inaugurou-se um revisionismo acerca da denominação de um estilo do diretor norte-americano. Em outubro de 2007, La Cinématèque Française fez uma mostra retrospectiva36 com uma programação especial que incluía a publicação de artigos de periódicos, dossiês (de imagens e textos), cartazes, resenhas críticas, entre outros. Dois anos depois, os Cahiers du Cinéma editaram uma publicação, assinada pelos críticos de cinema Stéphane Bouquet e Jean-Marc Lalanne, que escrutina as recorrências e referências artísticas de Van Sant, com base em treze títulos, separados por capítulos individuais, da filmografia de Mala Noche até Milk – A Voz da Igualdade. Em cada um dos três filmes, será analisada a maneira como Van Sant trabalha a névoa como espectro da realidade, às vezes como um ultrapassamento desta, outras como um duplo fantasmagórico. Densas, as histórias sublinham perdas, violências e desencontros em ambientes microscópicos (com exceção de Gerry, que se passa em um deserto): o terror de topologia labiríntica em Elefante, filme que reconstitui, em micronarrativas, o massacre da Escola de Columbine37; a alienação metaficcional em Últimos Dias, longa que faz um decupagem livre dos dias que antecederam o suicídio de Kurt Cobain, encontrado morto em oito de abril de 1994, em sua casa em Seattle, nos

36 Ver http://www.cinematheque.fr/fr/dans-salles/hommages-retrospectives/fiche-cycle/retrospective-gus- van-sant,137.html. 37 Em 20 de abril de 1999, Eric Harris e Dylan Klebold, estudantes da escola secundária de Columbine, no Colorado, armados com facas, metralhadoras e bombas, mataram 12 alunos e um professor, deixando 23 pessoas feridas, antes de cometerem suicídio. O fato estarreceu a sociedade norte-americana, gerando um amplo debate público sobre a violência. Dados divulgados, anos mais tarde, pelo jornal The Denver Post, com base em documentos pessoais apreendidos nas casas dos estudantes pela polícia, revelaram mensagens de ódio dirigidas aos ex-companheiros de colégio, além de textos de conteúdo nazista, planos detalhados do crime, cartas de amor, poemas e diários pessoais. A tragédia também chocou pelo fato de os assassinos não terem histórico violento. Ainda de acordo com dados levantados pela polícia, Klebold tinha problemas de rendimento escolar. Harris, de inclinação possivelmente mais intelectual, gostava de filósofos alemães e se comparava a Calibã, personagem da peça A tempestade, de Shakespeare. Ver MASSACRE de Columbine foi motivado pelo ódio, segundo documentos. Portal Terra, São Paulo, julho, 2006. Disponível em: . 60

Estados Unidos; e a desterritorialização do homem tecnológico em Gerry, filme sobre dois amigos, de mesmo nome, Gerry, que seguem uma trilha sem rumo por um deserto nos Estados Unidos até inadvertidamente se perderem. O percurso sobre "negatividades" (a morte, o abandono, o tempo resoluto, o nada) como um mecanismo hegeliano por uma historicidade do pensamento e da condição humana circunscreve esta fase do cinema vansantiano em uma investigação aplicada a um fim espiritual. Mas, como o jogo arbitrário de imagens puras, baseado na autorreflexividade racional, pode ser leito fértil para a fluidez de um cinema consciente? O que faz com que possamos atribuir a Gus Van Sant, cujo temperamento se arregimentou por dispositivos e motifs póeticos (o road movie de viés adolescente, a estrada, as nuvens), um lastro de entrega tão imensamente profundo a ponto de se transfigurar em uma estética da ontologia do ser? Para tentar chegar à razão desse percurso, é preciso refazer as teias do tempo, dos novos modelos de memória e tecnologia com os quais se estabelecem pontos de tensão/afrouxamento. Qual é esse momento em que ocorre uma inversão epistemológica da morte, de cadáver a matéria- prima?

3.1. O afeto fílmico

O afeto em Gus Van Sant é um sentimento da dor pelo outro. Diferentes entre si, na origem, realizador e sujeito aproximam-se mediante uma câmera sensível, mas também política em termos de uma visibilidade da margem. A identidade de seu cinema forjou-se na era da virada cultural (cultural turn) e dos estudos de gênero que marcaram as teses pós-estruturalistas e culturalistas dos anos 1980, como uma espécie de reserva de um cinema de gênero, o New Queer Cinema. Já nos anos 2000, o mote persiste (a borda enquanto categoria), mas parece se impor mais como propósito que deflagra um projeto ontológico da imagem. Do afeto sentimental pelo demi-monde, a obra vansantiana interpela para o afeto como uma abordagem fílmica offbeat, materializada pela reflexão especular e metaficcional (a de ver o outro rebatido, invertido e depois devolvido ao olhar, como um espelho), na busca por um “lugar primordial” no horizonte estético. Tal inclinação dialoga com uma conjuntura de cinema contemporâneo, 61

marcada por um novo horizonte, o da virada afetiva38. Neste momento, ao aludir às suas referências, Van Sant menciona, verbalmente, não mais a seara beatnik a qual se filiou por tanto tempo, mas outros cineastas que irão lhe ajudar a moldar uma nova estética híbrida, permeada por olhares estrangeiros e transnacionais. Com a Trilogia da Morte, Van Sant passa a empregar uma narratalogia muito presente no cinema da Europa Oriental, particularmente àquela produzida entre os anos 1970 e 1990. De maneira empírica, a partir do acesso a filmes e visitas a mostras retrospectivas em Nova Iorque, ele irá se propor a uma mimesis do húngaro Béla Tarr, especialmente com base nos filmes As harmonias de Werckmeister (Werckmeister Harmonies, 2000) e Satantango (Satan’s Tango, 1994), além da belga Chantal Akerman e o seu filme Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce 1080 Bruxelles (idem, 1975). Quanto a Elefante, acrescenta-se ainda mais uma nota estilística na composição fílmica com a inspiração no epônimo Elefante (Elephant, 1989), do inglês Alan Clarke. Ao dialogar com um cinema vinculado à margem fílmica europeia, de tempos mortos e de apelos mais sensoriais que a palavra escrita, esta fase do cinema vansantiano permuta-se em uma experiência estética completamente distinta. Ainda que fale a priori em “mudança da gramática” e de “efeito da indústria”39, Gus sinaliza, no seu discurso verbal, não um interesse puramente linguístico, mas a um retorno a uma arqueologia e a uma imagem matricial, mesmo que esta seja estática e repetitiva.

38 O professor da Escola de Comunicação da UFRJ Denilson Lopes pontua que, nos anos 1960 e 1970, houve uma virada linguística (linguistic turn) com base em estudos centrados na linguagem, no texto e no discurso - uma bandeira defendida pelo estruturalismo francês de Christian Metz. Já nos anos 1980 e 1990, afirma que o cultural turn trouxe a questão política de volta a partir de textos que enfatizavam os campos dos cultural studies, pós-coloniais, étnicos e de gênero. E, para alguns estudiosos, o novo milênio marcaria a virada afetiva. “Claramente, estas viradas, como a recente virada especulativa (speculative turn), são estratégias de promoção de intelectuais na universidade norte-americana. Mas para além de simples marketing, acredito também que a virada afetiva não deve ser pensada com um conceito, mas a delimitação de um campo de discussões para o qual a publicação de Affect Theory Reader contribui para o mapeamento para as diferentes abordagens teóricas existentes em relação ao afeto [...] Ou seja, a virada afetiva seria menos interessante por ser um conceito forte e mais por cristalizar, fazer emergir questões que talvez sem essa nomenclatura ficariam silenciadas ou pouco visíveis” (LOPES, 2013, p. 2). 39 Em 2001, Gus Van Sant escreveu o texto A Câmera é uma Máquina (The Camera is a Machine), publicado no catálogo editado pelo MoMA (The Museum of Modern Art), vinculado à mostra retrospectiva da obra de Béla Tarr, ocasião em que ele pode ver filmes como Satantango e As Harmonias de Werckmeister. No artigo, Van Sant mostra-se entusiasta pelo cineasta húngaro e por uma forma de fazer cinema que prescinde da gramática teatral clássica adotada pelo cinema comercial, em que “close- up, montagem e narrativa paralela fragmentam a continuidade do formato prévio do proscênio e do quadro-estático (static-frame) de planos abertos” do cinema primitivo. Completa ele: “As obras de Béla Tarr são orgânicas e contemplativas mais do que curtas e contemporâneas. Eles (os filmes) contemplam a vida numa forma que é quase impossível de se ver em um filme moderno”. Ver http://blogs.walkerart.org/ filmvideo/2008/03/17/gus-van-sant-light-bela-tarr. 62

Denilson Lopes (2012) reflete sobre um cinema do cotidiano comum, encenado pelo homem ordinário, em que o ecrã se torna uma experiência do dia-a-dia. Minimalista, o olhar contemporâneo engendra um quadro marcado pelos fluxos da globalização e da transculturalidade. Podemos, a partir dessa prerrogativa, traçar um paralelo com o contexto desta pesquisa: a possibilidade de que o sentimento latente que Van Sant nutria pelos desajustados sociais será ampliado, neste momento, para cinemas à margem da indústria na Europa e por personagens fragilizados em suas faculdades subjetivas e afetivas: Como seria viver a vida? Compartilhar? O que seria este personagem comum, não pensado nem em contraponto à cultura midiática, nem como resistência aos meios de comunicação de massa? Quaisquer que sejam as respostas, eu as pensei de dentro dos filmes, nos corações das coisas, objetos e seres para quem as mídias, como já defendi em outro momento, não são só mercadoria, mas afeto e memórias, matéria concreta. Neste quadro é que nos encontramos com os personagens comuns (esse é meu posicionamento no mundo), mas também com a busca de uma estética centrada no neutro, como discutia Roland Barthes – marcada pela rarefação e contenção, ela seria traduzida em uma encenação minimalista, em uma preocupação com o enquadramento, com a luz, com a montagem, com a construção do espaço e do tempo (LOPES, 2012, p. 16) O cinema atual, refundado em novos discursos e contextos a partir da modernidade, já assistiu a experimentações desse gênero que põem o tempo e o homem comum como cerne da diegese, seja em narratologias advindas do celeiro eurocêntrico de Alain Resnais e Jean-Luc Godard, seja em polos transnacionais mais recentes, com Lucrecia Martel, Walter Salles e Fernando Solanas, como representantes na América Latina, e Apichatpong Weerasethakul e Hou Hsiao-hsien, na Ásia. A reconfiguração espaço-temporal também foi levada a extremos nunca vistos no cinema da antiga-URSS com e Aleksandr Sokúrov, verdadeiros "pintores" da imagem. Entre aqueles que se preocupam não com a tridimensionalidade e o simulacro da representação da realidade, mas com um cinema puramente desvinculado do universo ôntico, podemos incluir também artefatos do cinema norte-americano, a exemplo de John Cassavettes e David Lynch. A mundialização desse tipo de fazer cinematográfico, que transpõe fronteiras imaginárias ou topográficas, conflui um sentimento comum entre cineastas de origens distintas, sejam de países imperialistas ou pós-coloniais, no sentido de não exatamente rivalizar com modos de produção de cinemas industriais ou de apelo mais comercial, nem de uma atitude belicista contra o avanço tecnológico e suas benesses. O propósito soa mais como um fluxo alternativo, uma terceira via, porém ainda sob a égide de uma 63

lógica mainstream, incluindo filmes com participação em festivais, distribuição em DVDs etc. No entanto, diante de um cotidiano levado a cabo como matéria-prima de consumo midiático (reality-shows, mockumentaries etc), a velocidade dos meios dispara uma série de questionamentos sobre como fazer emergir uma estética contemplativa que se interponha em meio ao excesso de usos e abordagens contemporâneos. Para Denilson (2007), uma das saídas seria aderir ao sublime enquanto categoria analítica. A ideia em torno de uma experiência entre horror e prazer, de fascínio diante de uma paisagem, pessoa ou obra de arte (Ibidem, 2007, p. 39) é o que permite que pensemos em um tipo de cinema que seja nem tanto à terra nem tanto ao céu, mas que se satisfaça e encontre o paraíso perdido em uma plataforma mediana. A isso se chega ao esboço de uma experiência “sublime no banal” (Ibidem, p. 42), algo que está no meio do caminho entre o belo - aquilo que encanta, entorpece, mas não é intrigante - e o sublime, “o inomeável, o inenarrável”, “desejo indeterminado e imenso”, “evidência de algo que não podemos ver nem definir, mas que nos arrebata” (PEIXOTO apud LOPES, 2007, p. 39). O sublime “vulgar” é um mote em Béla Tarr. “A acentuação não-diegética consiste em derivas e sopros de temas que flutuam no significado de uma música ambiente [...]” (BORDWELL, 2006, p. 1), observa o pesquisador norte-americano David Bordwell acerca do jogo fílmico interposto por Béla Tarr em Satantango. O filme, inspirado no livro homônimo do húngaro László Krasznahorkai que narra a decadência de uma vila rural na Hungria, durante os anos 1990, mergulhada em uma profunda crise de valores morais e humanos, “tem um andamento muito consistente em sua solenidade, acentuado por uma trilha sonora que é repetidamente maníaca” e “uma deliberada atenção aos detalhes que sobrecarregam a ação em uma história minimalista” (Ibidem). Cruzando esse olhar fraturado pela contemplação, o movimento de câmera em Satantango desvia do caráter efêmero do ambiente em franca implosão para enxergar o sublime em elementos ordinários mínimos. Uma cena é emblemática nesse sentido: a garota Estike (Erika Bók), depois de torturar e matar um gato como uma maneira de estirpar a dor sofrida da violência psicológica da mãe, resolve fugir com o animal morto embaixo do braço pela floresta; a caminhada estóica, que vai culminar no suicídio da menina, é filmado por Tarr em um longo plano-sequência, de três minutos e quarenta segundos de duração, dilapidado com apenas um único corte de zoom-out. O detalhe que permanece, ou pelo menos as pequenas frestas de luz que se abrem de um rosto mortificado (o olhar fixo da personagem flerta com uma imagem de gênero de terror), é 64

a boca que ligeiramente projeta o queixo para baixo, sufocando um choro; ou os tropeços hesitantes da menina ao caminhar na lama, rompendo com o movimento sincopado de sua resignação; desejos contidos e reprimidos que adornam uma manhã de outono chuvosa, em que os ruídos de vento e dos passos perfazem um silêncio acessível para que adentremos em sintonia afetiva com a personagem. Impassível e resoluto com o ambiente com o qual lida, o filme mantém esse estado de suspensão durante sete horas e meia, tempo no qual a trama se desenrola. “[...] Em minha própria conta, são 172 tomadas (incluindo os títulos dos capítulos), ao longo de 434 minutos (sem contar os créditos finais)” (Ibidem). Bordwell (2006) conclui que Tarr, ao usar a trilha minimalista de Philip Glass e Steve Reich, esticando a repetição do som ao limite, nega o senso de momentaneidade e sugere que a ação possa pairar em um tipo de pulsação em êxtase. “Tudo isso cria uma média de tomada geral de dois minutos e meio. [...] The Hunters, de Angelopoulos, alcança três minutos por tomada” (Ibidem).

FIGURA 13: Frame do filme Satantango, de Béla Tarr

FONTE: http://www.jonathanrosenbaum.com/wp-content/ uploads/2011/05/satantangogirlcat.jpg. Acesso em 28/08/2013.

Em Jeanne Dielman, outro filme que influencia Van Sant, as tomadas em plano- sequência tornam-se mais radicais na medida em que filtram um cotidiano estático de uma dona-de-casa na Bélgica. O longa-metragem discorre sobre um tempo dilatado proporcionalmente menor (tem três horas e vinte minutos de duração), porém com a mesma alma metódica em destrinchar a vida de Jeanne Dielman (Delphine Seyrig), uma viúva de meia idade que cuida de seu filho e mantém uma vida paralela como prostituta em sua própria casa. A diretora Chantal Akerman revela esse insuspeito ambiente 65

doméstico, alheio a questões morais, do mesmo modo paciente: filmando em câmera aberta, numa disposição voyeurística, vemos a senhora de classe média preparando o jantar, tomando banho na banheira, fazendo o suéter de crochê para o filho já adolescente, fazendo faxina, entre outros afazeres comuns. O olhar é quase sempre intestino, raramente mostram-se cenas fora de casa, e, quando os faz, Akerman detém-se na protagonista, que é seguida em visitas a uma sapataria ou a um restaurante. O olhar desinteressado, porém, é mais preciso ao captar as sutilezas de um dia-a-dia lobotomizado (ou as fendas que dele brotam), como, por exemplo, o momento em que a mãe escova o cabelo em frente ao espelho e parece, por alguns minutos, desafiar o ritual inabalável da própria rotina. Prostrada em frente a uma penteadeira, Jeanne passa um batom vermelho nos lábios e, delicadamente, retira o excesso do cosmético com o gesto de beijar um lenço branco, tocando em uma pureza que sinaliza aquilo que teria deixado para trás. A relação com o filho amargurado pela ausência do pai ganha o mesmo tom solene: os diálogos são firmes, monocórdicos e sucintos, mas deixam transparecer um amor resignado da mãe que tudo aceita: a solidão, o amor não-correspondido do filho único e a violência silenciosa em ter de se submeter ao sexo pago. Seja em micromovimentos domésticos ou em marcações de detalhes por paisagens míticas, o olhar sublime sobre o banal toma, portanto, este lugar do foco de uma luz. Denilson Lopes (2007) compara esse movimento a um estado de percepção diferente do Expressionismo, em que o sublime vai em direção ao infinito do espírito do mal, e, sim, mais similar a uma tradição impressionista, “não o mar romântico, nostálgico, mas o mar material concreto, passando por La mer, de Debussy, As ondas, de Virginia Woolf, e Wavelength, de Michael Snow” (LOPES, 2007, p. 63). O movimento fluido a que se refere permite que, aqui, se possa pensar em um estado equivalente – não o líquido que investe contra o sólido, porém o gasoso que resvala dentro de si mesmo, mais leve e impalpável, como as nuvens de Van Sant na Trilogia da Morte, o meio do caminho. A névoa fílmica, assim, ao invés de apontar apenas uma ausência e um componente de matéria inexistente, tensifica a própria existência de uma inquietação que se situa em um plano espiritual:

A escrita da imagem no cinema é a escrita do tempo, do pensamento e da sensação (COSTA, 2001, p. 190), em que a imagem, a partir de Blanchot, não é um substitutivo representacional do objeto tanto quanto um traço material ou resíduo do fracasso do objeto em desaparecer totalmente (SHAVIRO, 2000, p. 17); a imagem não como sintoma de falta, mas “estranho e excessivo resíduo que subsiste quando tudo está faltando”, “não o índice de algo que está faltando, mas a insistência de algo que se recusa a 66

desaparecer”, “banalmente auto-evidente e autocontida, mas sua superficialidade e obviedade são também um estranho espaço em branco, uma resistência ao fechamento da definição ou a qualquer imposição de sentido” [...] (LOPES, 2007, p. 64)

3.1.1 A temporalidade do afeto e a Trilogia da Morte

O estado de nuvens vansantiano é uma chave interpretativa que abre para o campo da percepção. Torna-se um interstício, uma membrana, entre o corpo do filme e o corpo do espectador, constituindo-se matéria. Mas também pode ser, como vimos acima, um espírito, um rastro de uma ausência, uma lembrança. Um afeto do presente e do passado. Algo que transcorre no processo fílmico, no seu interior, pelos espaços que percorre dentro do plano, porém que se resvala, de igual maneira, por fios de tempo, pela memória, pela ação externa. Portanto, trata-se de um fenômeno da percepção e das ideias. Com uma espinha narrativa fraturada, pontuada por fluxos labirínticos, tempos mortos e imagens que pressupõem uma duplicidade temporal, Gus Van Sant inaugura, no conjunto da sua Trilogia da Morte, uma experimentação que se assemelha à defesa deleuziana da “imagem-tempo” aplicada à potência de um cinema totalmente desvinculado do esquema sensório-motor. Tal rompimento com a narratologia e a teatralidade clássica de Charles Dickens e William Shakespeare, historicamente, contudo, foi negociado, e muitas vezes, até reprocessado como influência estética40. Ao optar por “situações puramente óticas e sonoras” e por um “cinema vidente, o qual permite a exploração espaço-tempo pelo espectador, representando o tempo diretamente” (LIMA et ALVARENGA, 2012, p. 32), o cinema vansantiano desta fase adquire um escopo ontológico da imagem.

40 Em 2004, na ocasião do lançamento do filme Elefante, Van Sant concedeu uma entrevista ao jornal francês Le Monde, reproduzida no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em que comenta a sua relação com a teatralidade convencional: “Gerry (2002) e Elefante são uma tentativa de subverter a utilização habitual das técnicas cinematográficas. Desde que surgiu, o cinema emprestou sua forma narrativa do teatro. Meu desejo é me desligar do modelo teatral com a câmera”. Em outro momento, completa: “Meus filmes até Gerry são muito tradicionais. Talvez se possa encontrar traços de minha pesquisa atual em Mala Noche [sua estreia na direção, em 1985; nota da reportagem]. Garotos de programa (1991) era mais audacioso na forma, mas se inspirava em Shakespeare, o que vem de encontro ao que eu dizia em relação ao teatro. Já Psicose (1998) foi menos tradicional”. Ver COLOMBANI, Florence. “Meu filme é uma subversão das regras, diz Gus Van Sant”. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. E4, 2 de abril de 2004. 67

Nesse aspecto, Gilles Deleuze formula os conceitos de "imagem-movimento" e "imagem-tempo" a partir da ideia da "duração" bergsoniana41 (tempo como intervalo) para se constituir como um antípoda do tempo cronológico, esquemático e monolítico das sociedades modernas. As duas células de imagem, ambas concebidas como unidades originais do cinema, teriam comportamentos distintos: a primeira se ocupa da ação e reação, é "matéria fluida formada de imagens em movimento separadas por um hiato ou devir universal" (VASCONCELLOS, 2006, p. 84); já a segunda é a forma pura e transcendental do tempo, um regime de apresentação temporal direta da experiência, mas contaminada por momentos do falso. Os conceitos de imagem atual e imagem virtual comportam-se como enfrentamento ao esquema sensório-motor do mundo físico. Ainda que não verbalize o interesse em criar uma “imagem-tempo”, Gus Van Sant normatiza um discurso em torno do registro do “presente”, de uma “autenticidade de um mundo em estado bruto” contra o “artifício que conduz à uniformização” e de uma vontade artística em apreender “as coisas como são, e não por sua representação” (VAN SANT apud COLOMBANI, 2004, p. E4). No entanto, é muito clara também sua posição a favor de um cinema do pensamento, como quando, ao escrever sobre o cinema de Béla Tarr para o MoMA, cita a resposta de Hitchcock na célebre entrevista a François Truffaut que diz “que a mudança estilística de um filme pode acontecer por meio de um personagem, talvez, mas aqui está uma mudança principal por meio de ideias” (VAN SANT apud JONES, 2008, p. 1). Ora, a defesa por um cinema de ideias é, em essência, aquilo a que Deleuze (2005) aludia por um cinema moderno não preocupado com a narrativa e com o todo, mas, sim, em produzir reflexões, gerar pensamentos, com base em uma dada realidade. É nesse sentido que vale dizer que subsiste, aqui, uma tentativa de cinema por uma “imagem mental”, a partir de um esforço em traduzir percepções, afetos e ações em um

41 Deleuze (1983) atribui um sentido filosófico ao cinema a partir do resgate dos postulados de Henri Bergson (1859-1941) sobre matéria e tempo. Para Bergson, o mundo material era feito de imagens; o corpo era tanto matéria quanto imagem. Isso pressupõe que não haveria mais categorias de grau no horizonte da percepção: a ação do corpo reflete sobre os objetos e tem sua imagem devolvida. Essa relação, portanto, não seria mais opaca, e sim de afetação mútua. A partir disso, Bergson entende que percepção e espírito estarão diretamente vinculados um ao outro. O conceito de “duração” bergsoniano consiste, assim, numa junção intercambiante e ativa entre presente e passado, troca incessante entre corpo enquanto imagem (e ao mesmo tempo matéria) e a lembrança, resultando em um devir-imagem, um futuro. “O movimento reporta os objetos, entre os quais se estabelece, ao todo cambiante que ele exprime, e vice-versa. Pelo movimento, o todo se divide nos objetos, e os objetos se reúnem no todo: e, justamente, entre os dois, ‘tudo’ muda. Podemos considerar os objetos ou partes de um conjunto como cortes imóveis; mas o movimento se estabelece entre esses cortes e reporta os objetos ou partes a duração de um todo que muda, ele exprime portanto a mudança do todo com relação aos objetos e é, ele mesmo, um corte móvel da duração” (DELEUZE, 1983, p. 17). 68

grande raciocínio. Hitchcock e seu cinema de suspense com subcamadas psicológicas é a referência mater desse tipo de alegorização que torna a relação explícita com o objeto.

[Trata-se de] uma imagem que toma como objeto de pensamento objetos que têm uma existência própria fora do pensamento, como os objetos da percepção têm uma existência fora da percepção. É uma imagem que toma como objeto relações, atos simbólicos, sentimentos intelectuais [...] Imagem mental é imagem-relação, cadeia de relações, mais do que trama de ações (MACHADO, 2009, p. 268) É preciso esclarecer que o cinema de função mental é descrito por Deleuze (1983) como um fenômeno atrelado à “imagem-movimento”, e não à “imagem-tempo”. Seria uma condição relacionada à passagem de um objeto para outro. Uma transição que transparece tanto um movimento físico, ou uma translação; como também uma mudança interior do objeto, exprimindo o conceito de duração de Bergson. A função mental se estabelece nesse jogo em que “as ações são tomadas num tecido de relações, que as eleva ao estado mental” (Ibidem, p. 269). De tal maneira, as faculdades qualitativas do cinema são ampliadas, como um corte móvel sobre a coisa e o tempo, ambos de forma complementares. O uso da mise en scène e dos movimentos de câmera são decisivos nessa prerrogativa. Exemplo de uma “situação de vidência” (Ibidem) está no filme A sombra de uma dúvida (Shadow of a doubt, 1942). Na cena em que a jovem Charlie (Teresa Wright) vai à biblioteca à noite e é captada por uma câmera plongée que aos poucos se afasta, o movimento de câmera é revelador de um momento dramático em que a garota descobre que seu tio é um assassino. Subjetivo, o enquadramento próximo que passa por uma mudança qualitativa de profundidade de campo (vemos uma biblioteca vazia e penumbrosa) indica uma alteração de estado, um descolamento da realidade, uma epifania que a personagem acaba de viver – e algo com o qual o espectador lida de maneira tão íntima, como se fosse, assim como o diretor, uma figura onisciente. Hitchcock situa-se no cinema de ação, mas figura no limiar de ruptura do próprio cinema mais convencional. De maneira semelhante, Gus Van Sant opera, na Trilogia da Morte, micromovimentos de ação, dimensão de atos particulares que são fecundos em microcosmos do real (como as atividades prosaicas dos estudantes no colégio em Elefante, ou os gestos mínimos e até silenciosos do protagonista Blake, em Últimos Dias). Não deixa de ser algo do ponto de vista deleuziano de uma “imagem- movimento”: a de um cotidiano elementar decupado por uma câmera que se move, produzindo sentidos, sentimentos e raciocínios. Mas também, em uma dimensão macro, 69

a Trilogia comporta-se como algo semelhante com uma grande névoa, um “cristal de tempo”, um encontro entre o passado e presente que corre para o infinito. Assim, em sua busca por um cinema presentificado na Trilogia da Morte, Van Sant recai em uma questão de tempo puro. Deliberadamente ou não, ele, como artista, irá permitir fendas entreabertas nesse presente aparentemente inofensivo. Em termos práticos, evocará não apenas símbolos (a nuvem, o corpo, o deserto, a estrada), mas também movimentos – o corte móvel – mas com uma diferença: a de um movimento sobre outro movimento, este último operado pelas personagens. Nesse sentido, podemos dizer que seus filmes desta fase passam a ser movimento genuíno, libertação além da abstração. O movimento sobre o movimento resultará em um corte estático, mise en scène que conjuga manejo de câmera colado ao rosto ou ao corpo das personagens e um olhar que não dá costas ao sujeito, nem toma o seu lugar, mas que o segue. É diferente, por exemplo, dos irmãos Jean-Luc e Pierre Dardenne, que costumam filmar em ângulo posicionado centímetros atrás da nuca das personagens, na mesma posição; em Van Sant, tal enquadramento, em geral, aproxima-se lateralmente, às vezes girando em torno do eixo do sujeito em foco. O território, desta forma, torna-se compartilhado, os dois (o dispositivo e os seres que habitam a imagem) juntos se coabitam, exibindo gestos semelhantes. Duplicado e anulado, em uma relação que justapõe espectador e personagens pela câmera intersticial e afetiva vansantiana, o movimento adquire uma instância temporal por meio das imagens, reconstruindo um passo-a-passo de instantes quaisquer que remetem à duração bergsoniana. Temos, então, em Van Sant, dois estatutos de imagem, que coexistem e se complementam: a imagem-névoa e a imagem dupla de movimento. Nesse movimento específico, o do movimento duplo, Van Sant reapropria-se de um diálogo pastichizante com Elefante, de Alan Clarke, um média- metragem de 39 minutos que reconstitui os assassinatos na Irlanda do Norte e a época dos conflitos étnicos e nacionalistas em Belfast, prolongado por décadas, desde os anos 1960, como uma guerra civil e cotidiana. A mesma técnica usada por Clarke estará refletida em Gerry, Últimos Dias e, especialmente, no homônimo Elefante, de Van Sant: o uso de steadycam, ou seja, de uma câmera presa ao operador da máquina, com amortecedores que impedem a trepidação da imagem, e que percorre detidamente o transcurso espaço-temporal da personagem. E não só isso, há também o intercruzamento de Clarke e Van Sant no horizonte estético, por meio de uma abordagem minimalista, 70

marcada pela contenção e rarefação dramática, potencializada exclusivamente no gesto da caminhada e na sequência em que os crimes são cometidos. O movimento, portanto, também é tempo, e por si só, heterogêneo. Partindo da ideia de que qualquer gesto da câmera e do personagem são únicos e singulares, acompanhamos com o olhar muito próximo, muitas vezes em close-up; ações banais, como, por exemplo, os dois Gerrys apostando corrida na trilha pelo deserto. Ao extrair da imagem o choque entre dois jovens perdidos na América, Gus opera um corte móvel, afetivo, sensível, inscrito em um tempo aberto. Em Elefante, a temporalidade ganha status profundamente corpóreo, deixa de ser um valor fixo, cronologia estanque, para se permeada por contatos, aproximações, gestos, olhares, rostos e rastros. Antes da tragédia, os alunos comunicam suas afecções, em um tempo que se desfragmenta ao ser fragmentado não mais pelo corte imóvel da câmera ou do tempo objetivo, mas em função da relação que "um se faz através do outro" (DELEUZE, 1983, p. 31). Como veremos depois, o corpo também será tempo, quando ele se tornar rarefeito. A percepção do tempo na Trilogia da Morte, partindo dessa premissa, amplia-se. Ela não se restringe a uma manipulação pelo dispositivo. A reconfiguração espaço- temporal também se efetua dentro dos planos, não apenas no encadeamento dos filmes, mas em sua ação interna. Por isso, emerge a presença corpórea da névoa: ela se faz presente a todo instante. Está na mise en scène, em forma figurativa, como nas nuvens densas que parecem perseguir fantasmagoricamente os Gerry; e na montagem no plano das ideias, ao intercalar cenas de nuvens após algum ato que rompe uma aparente normalidade, como o suicídio de Blake em Últimos Dias. A névoa surge ainda como uma condição do olhar e do movimento das personagens, adquirindo uma pele diáfana, invisível, mas de densidade pesada, tornando a ação dos personagens lenta, ritmada, abnegada. A nuvem, é portanto, a epítome temporal vansantiana. De presença espiritual, ela torna-se corpórea e densamente leve tanto quanto as personagens, que também sofrem processo semelhante às avessas. Se elas vagueavam em passos tímidos pelos céus de Mala Noche, serviam de plano de fundo surrealista em Drugstore Cowboy e prefiguravam a estrada e o nomadismo em My Own Private Idaho, aqui as nuvens chegam à completa personificação afetuosa, repetitiva e corporificada em Gerry, Elefante e Últimos dias. É interessante observar como Van Sant, nesse último momento de abstração da imagem pura, joga a nuvem em um campo multiespecular, que marca 71

tempo, duração e passagens de tragédia em um invólucro de serenidade. Bouquet e Lalanne (2009) captam a essência da proposta vansantiana ao usar o termo suavidade (douceur), algo que remete a uma câmera leve como uma presença etérea que registra delicadamente a presença do outro:

A suavidade é também certa proximidade, uma maneira de pensar sobre o cinema como uma abordagem paciente da arte, um sonho de sociedade voltada para si e para o outro, mais do que a amizade, menos do que o amor, mais como uma tentativa de definir um termo inteiramente novo. Ele [Van Sant] nada faz, apenas segue o objeto do olhar; quando faz, avança nas cores ou afunda-se num deserto, se aproximando mais perto de seu pescoço, sem assustá-lo. Não espere muito mais do que o milagre simples da copresença, um estar-aí-e-com, que é o propósito do cinema de acordo com Gus (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 13). Tradução nossa. O afeto da “imagem-tempo” em Van Sant está epitomizado na nuvem enquanto elemento abstrato, ou seja, a algo que não se explica em uma relação de causa e efeito. O registro de câmera é leve, porque as nuvens assim são, e não necessariamente tal estrutura delicada vai nos indicar um pensamento ou dedução imediata. Desta forma, a Trilogia da Morte trabalha com um tipo de temporalidade que está profundamente inscrita na ideia de afeto defendida por Deleuze (2005). Não se trata de um conceito relativo à afecção, isto é, em respeito à questão de uma ordem da percepção. O afeto também não se põe somente como um pensamento intelectual, sobretudo não em termos racionais que demandem um significado representacional; as nuvens não são um juízo. Elas, as nuvens como afeto, antes de tudo, ensejam uma “onda de choque” (DELEUZE, 2005, p. 190). O conceito deleuziano de afeto vem de Baruch Spinoza e das formulações sobre afeição e afeto, sendo este último uma representação do nada. O afeto está mais no sentido do verbo querer. E o fato de querer nos faz sobrecair em algo, entretanto, o “fato isolado de querer não se coloca como ideia, e sim como afeto; sendo assim, o afeto implica uma ideia, mas são modos diferentes de pensamento” (LIMA et ALVARENGA, 2012, p. 33). Assim, Van Sant, ao defender um tipo de cinema de ideias, filia-se ao pressuposto deleuziano do momento afetivo da imagem-tempo, em que o choque é o elemento mediador entre a montagem e a imagem, dois processos que coexistem. Eis, portanto, que a potência ou a capacidade do cinema revelava não passar de pura e simples possibilidade lógica. Pelo menos o possível ganhava nisso uma forma, mesmo se ainda faltava o povo, mesmo se o pensamento ainda estava por vir. Algo se fazia, numa concepção sublime do cinema [grifo do autor]. Com efeito, o que constitui o sublime é que a imaginação sofre um choque que a leva para seu limite, e força o pensamento a pensar o todo enquanto totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação (DELEUZE, 2005, p. 191). 72

Forjada em uma temporalidade totalmente suspensa, que resvala entre o passado e o futuro, negando narrativa, dramaticidade e causalidade, a Trilogia da Morte aponta, em sua constituição de “imagem-tempo”, para um cinema que se constitui de "imagem- cristal", como definiu Deleuze (2005). Trata-se de um modelo de imagem, destituído de movimento evidente, mas que carrega, em si, a coalescência de experiências e memórias. Para Cabrera (2006), o cinema que se propõe a repensar o tempo, reconstruído na teia de imagens, até mesmo com movimento externo nulo, adquire um status revigorante: Há alguns filmes que não são estritamente filmes de transformações dialéticas, mas parecem feitos de tempo, nos quais a historicidade do real se mostra de maneira plena. Certamente o cinema já é, per se, inevitavelmente um mundo feito de tempo, de sequencialidade, de momentos; é a arte temporal por excelência, onde até o estático, paradoxalmente, em movimento. O cinema vive da própria historicidade do espectador, de seu olho, da própria dinâmica da vida. (CABRERA, 2006, p. 227)

Partindo do bergsonismo de um passado-presente dialético, Deleuze chega à coalescência desses dois tipos de imagem: a imagem-cristal, estrutura bifacial, indiscernível, que revela e esconde os fiapos do tempo. A contração dos acontecimentos em uma única cena, e não apenas uma imagem, também pode ser entendida como um substrato de bergsonismo, duração que não se legitima por um tempo puramente abstrato mas espacializável. Vemos essa situação na disposição labiríntica dos corredores do colégio em Elefante, ou na casa do músico Blake em Últimos Dias, e também em algumas cenas, em que movimento de câmera e personagem se anulam e coexistem, como veremos adiante. Conclui-se que o jogo de tensão temporal na Trilogia da Morte aponta para uma ontologia do ser, e, que, por sua vez, remete aos conceitos deleuziano da imagem. Como observa Courville, a Trilogia sela a fusão de presente, passado e futuro em um presente antidiegético: A disjunção - os saltos - do tempo, não só proíbe qualquer explicação psicológica dos trágicos acontecimentos que irão ocorrer, como rompe a cadeia causal de qualquer ficção clássica. Aparece, por meio do universo fechado verdadeiramente infinito e de longos travellings, como um passo para trás no tempo. Gus Van Sant mostra o que aconteceu antes da tragédia ter lugar, este em ambos concentrado e disperso (COURVILLE, 2009, p. 130). Tradução nossa. Se na imagem virtualizada, em oposição à atual, já temos um "acontecimento" contraído, minimalizado, o regime cristalino deleuziano instaura uma versão extrema de um momento único e, ao mesmo tempo, de um duplo: como um perfeito relicário, nele passam fluxos do passado sob um registro efetuado no presente. Tem-se, então, um 73

presente sempre contínuo ("present-ever-present"), que expressa o aqui e o agora. Esse instante particular e corpóreo foi metaforizado por Deleuze (2005) pela estrutura do "Aion", que seria a meta ideal, sobre o qual um evento tenta tocar em um "ponto arbitrário ou aleatório de um passado próximo e futuro imanente" (SUTTON, 2009, p. 74). Tal presente vivo, vertiginoso, que condensa o futuro e atualiza o passado, cria um efeito incontrolável e incessante de "devir-louco" ("the becoming-mad of depth" ou "depths"), em que a imagem é devolvida e projetada de volta mais uma vez, criando um jogo infinito, como dois espelhos que refletem um ao outro. Sutton (2009), ao analisar a teoria deleuziana da contração da memória em relação "ao caos do presente", defende esse dispositivo para criação de identidades e de organização do armazenamento do passado e da imaginação: Então nós temos três elementos que produzem tempo para a nossa própria identidade: duração como mudança contínua, memória como nossa consciência da duração (imagem de duração) e do tempo, e o senso de passado, presente e futuro a partir dos quais nossa consciência é criada. Eles estão em constante movimento e interação, apesar de nós dependermos totalmente do tempo como algo confiável e das nossas identidades como construções imutáveis. (SUTTON, 2009, p. 36). Tradução nossa. Essa relação parece ser suscitada quando nos voltamos para a teia tecnológica e de instrumentação múltipla que se abre à humanidade contemporânea. Passamos, cada vez mais, a nos tornar entes em contato revelador com outros entes pela mediação de imagens, sejam fixas (fotografia), móveis (cinema) ou de arquivo. Essas coletas redimensionam a memória e a experiência, e, por conseguinte, a nossa relação com o tempo, que ganha camadas mais intrínsecas. Como atesta Kilbourn (2010), falar em uma arqueologia do tempo deixou de ser apenas utilitária e unitária para se transmutar em um fenômeno de "funções cognitivas e uma constelação de metáforas conectadas", formatando um novo discurso social:

Eu chamo de 'modernidade' mais tematicamente, em termos de uma certa metaforicidade tecnológica, o que Martin Jay definiu como 'era moderna, descrita várias vezes como o apogeu do perspectivismo cartesiano, a idade da imagem globalizada, e a sociedade do espetáculo e do monitoramento'. (...) Filosoficamente falando, então, esse senso de modernidade é determinado pelo que Jay (citando Levinas) classifica como "a tradicional preocupação filosófica com uma ontologia baseada na eterna ordem da visão presente, exemplificada, no Século 20, pelo cinema (KILBOURN, 2010, p. 3). Tradução nossa. Vivemos, assim, em um tempo expressivo, mas fragmentário, repartilhado pela experiência em seus diversos aparatos físicos; podemos, então, pensar em várias memórias institucionalizadas pessoais ou coletivas que, a cada dia, acumulam-se em caixas-pretas ("black boxes") como o álbum, o arquivo etc. Tal peças, paradoxalmente, 74

formam um todo homogêneo em virtude de contingências político-sócio-econômicas; amorfas, armazenadas e arbitrariamente acionadas, elas somente "acordam" mediante interesses. Sutton expõe essa metáfora ao afirmar que "a história da modernidade e a resposta da arte a ela (particularmente por meio do cinema e da fotografia) é uma unificação do tempo e do espaço. Modernidade é a criação de um regime unificado de tempo que é codependente do capital - tempo como caixa-preta" (SUTTON, 2009, p. 16). Diante de um presente fragmentado, Gus Van Sant parece se ater à ideia de que viver é estar sempre em “choque”, ou seja, em processo necessário de devir em prol de um novo presente. Porém, mais que isso, sua negação de um modelo de racionalização esquemática do Século 20, no cinema, nas artes e na história, dificilmente não o associa, ainda que não tenha uma postura política declarada, a um ataque contra um olhar atomizado da sociedade contemporânea e contra a própria indústria, com a qual ele sempre negocia, como um ente crítico entre a cultura underground e a de massas. Mais do que o ser ontológico em si, sua disputa angustiada aponta para a necessidade de uma nova narrativa. Essa aceitação humilde da condição como cineasta em processo de constante mudança do olhar e do ato de narrar, perante o sublime do "grande cinema", é exemplificado por Slavoj Zizek, ao citar a utopia revolucionária do livro Hyperion, de György Lukács, em que o personagem Hölderlin representa esse vazio existencial entre um ideário superado (no caso de Lucáks, o pensamento marxista; no de Van Sant, um pré-cinema griffithiano) e a política/estética dominante: O ponto de partida de Hölderlin é o mesmo de Hegel: como superar a lacuna entre (o retorno impossível à) unidade orgânica tradicional e liberdade reflexiva moderna? Sua resposta é o que ele chama de "caminho excêntrico": a intuição de como a própria oscilação interminável entre os dois polos, a própria impossibilidade e o repetido fracasso de atingir a paz final é a própria coisa, isto é, esse caminho eterno é o destino do homem. (...) A solução de Hyperion é a de uma narrativa: o que não pode ser conciliado na realidade é conciliado depois, por meio de sua reconstrução narrativa (ZIZEK, 2008, p. 212-213) Partindo da introdução da temporalidade na historicidade do pensamento, a teoria hegeliana instaura a dialética, não no sentido marxista de produzir uma síntese, mas a de gerar "uma negação determinada, relativa ao objeto negado, uma negação enriquecedora que, ao mesmo tempo que nega, inclui, aceita, incorpora, enriquece" (CABRERA, 2006, p. 217). Negar, portanto, seria uma ação "necessária", e não contingente e eventual, para a dinâmica do desenvolvimento do ser para si. A concepção filosófica hegeliana de uma "morte necessária", ou de um processo de dor e riqueza, 75

assemelha-se à dialética do regime cristalino deleuziano: o choque entre tempo (ciência) e corpo (matéria) provoca um devir-ser (outro transformado). Porém, a aplicação plena da dialética se faz presente quando este ser autoconsciente produz um conhecimento sobre sua existência no mundo. A morte da Trilogia de Gus Van Sant seria uma etapa para a constituição desse saber doloroso, concreto, mas necessário. Como fio condutor para a memória, o corpo passa a ser historicidade pura. É matéria dinâmica e constantemente superada por novos conceitos. A tragédia e o trauma da morte, como são tratados pelo Ocidente, ganham, assim, contornos de transcendência com a proposta narrativa de Van Sant. O tempo fragmentário e afetuoso que lança o cadáver-abismo contra si mesmo sugere uma dialética em que a matéria não deve se deixar oprimir pela tecnologia e pela fatalidade. Como arremata Sahm (citando Payot e Nietzsche), o movimento de "solução negativa" pode ser uma epifania por meio do pensamento racional:

Conhecer é, antes de tudo, transferir ou transportar, circular continuamente, passar incessantemente de uma imagem a outra, sem que jamais este percurso se fixe sobre uma figura que seria a geradora não mimética de todas as outras. Todo começo já é resultado de uma comparação: ele já é reflexo ou analogia, da mesma forma que todo objeto só é apreensível sobre o fundo das relações múltiplas nas quais ele se esgota. Vivemos assim em uma explosão de diferenças, a qual só pode responder uma "explosão de intuições metafóricas"; apreender o mundo é, portanto, deslocar sem fim, produzir equivalências, deixar-se enredar em um desencadeamento ou desatino de aproximações: nós vivemos na separação. (SAHM, 2011, p. 91)

3.1.2 A inflexão da imagem-névoa

A imagem-névoa constitui-se de matéria e tempo; é uma bruma. Prefigura uma imagem matricial no cinema e até na fotografia. Podemos remontar seus primórdios ao cinema silencioso, que surgiu no Século 19 como a primeira contemplação da imagem em movimento, evocando uma experiência ilusória. O progresso técnico (que também chegava via fotografia décadas antes) assombrava a sociedade e os campos do conhecimento ao assumir a função de cópia exata, espelhada e atrelada à representação verossímil do real. Diante da nova tecnologia, os textos críticos da época relatavam um ensimesmamento, "um discurso de fascinação, uma espécie de reverência religiosa pela pura magia da mimese" (STAM, 2010, p. 38). Essa concepção, que viria acompanhar 76

também a arte fotográfica como um meio essencialmente figurativo, desafia discursos sobre o seu uso e teorias em torno das suas habilidades enquanto um meio de imagens. Jean-Claude Carrière (2006), ao teorizar a práxis cinematográfica a partir de seus trabalhos com Luis Buñuel e , compara a linguagem do cinema a uma "névoa da palavra", que, segundo ele, oculta a verdadeira realidade. Para ele, o cinema vincula-se ao recurso da máscara, levada ao extremo em virtude do artifício, sendo as imagens, em si, inerentemente falsas, mas aptas a conduzir a uma realidade superior. Assim, ele contemporiza o conceito de verdade, problema ontológico do cinema perpassado em todas as fases (do Neorrealismo italiano ao digital) e emenda com uma advertência metafórica sobre o problema da saturação de imagens na modernidade: "O Século XX acrescentou a bruma acumulada sobre a bruma" (CARRIÈRE, 2006, p. 196). A associação do cinema à ideia macro de névoa, a uma atmosfera embaçada, por onde fluem os acontecimentos, ora desvelados ora fechados à razão, constitui um escopo interessante. Na doxa dos estudos de cinema, há a corrente do mito da caverna de Platão, frequentemente utilizada como parábola do cinema (autores como Slavoj Zizek, Arlindo Machado42, entre outros, resgatam esse conceito), na qual se destaca a existência da potência da luz fora da escuridão, e que dentro dela estaríamos protegidos da cegueira da verdade - como se o Mundo exterior estivesse acima do nosso entendimento (o horizonte kantiano de que nossa percepção é limitada). É evidente que, na abordagem de Carrière, formula-se uma criação lírica que se forja no empirismo puro: ele defende que, além das falhas de um cinema moderno de indústria, supratecnológico, longe da feitura romântica do cinema mudo de Carl Theodor Dreyer, David Wark Griffith e Georges Meliès, há alguma luz dentro do seu sistema aparentemente mecanicista (a luz não estaria mais fora). Ainda que não desenvolva uma equivalência filosófica entre cinema e a literatura, a névoa de Carrière nos deixa um ponto de partida que permite colocá-lo em diálogo com alguns postulados - entre eles os de Alfred Stieglitz (estéticos) e de Zygmunt Bauman (teóricos). A série Equivalências, de 1923, do fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz, foi a primeira obra fotográfica a ser exposta em um museu43. Pretendia segregar a

42 Ver MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 2011 e ZIZEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008. 43 Precursor do movimento pictorialista do Século 19, que empunha à fotografia o estatuto de arte a partir da mimese de elementos pictóricos da pintura, Alfred Stieglitz levou a fotografia artística ao museu em 1898, quando a Secessão de Munique fez uma exposição de obras fotográficas ao lado de quadros. Antes 77

imagem do significante, por isso captou nuvens em diversos formatos, algumas apenas fragmentos do céu sem horizonte, para tornar a visualidade tão fortemente abstrata a ponto de parecer uma Sinfonia de Nuvens, de Ernst Bloch. Associar a proposta de Carrière, a de um estado de evaporação da realidade pragmática, às fotografias de nuvens de Stieglitz cria um diálogo de dimensões representativas diferentes, embora ambos compartilhem a mesma finalidade, a de uma arte imagética que transcende a imanência da luz imperfeita, a feitura artística que supera a imitação divina. No caso de Stieglitz, tal fim se dá de maneira mais radical, como uma descida das nuvens à Terra, em que todos os referenciais (indiciais, causais etc.) são abalados pelo deslocamento do olhar rumo a matéria leve, gasosa, que vem ao nosso encontro como névoa, como analisa Dubois: A nuvem é, antes de mais nada, uma substância corpuscular sem contorno, sem forma definida, sem corpo próprio, uma espécie de véu, de cortina, um lençol de vapores, um condensado de auras - e sobretudo algo que não existe por si só. (...) Ela própria, incolor, é aquilo que, pela graça da reflexão, proporciona matéria à luz, a atualiza, a torna visível: como assinala Aristóteles, as nuvens têm a propriedade que faz com que elas funcionem em sua massa 'como espelhos, mas como espelhos que só devolvem cores' - o efeito pôr-do-sol, se quisermos (DUBOIS, 2004, p. 201)

FIGURA 14: Foto da série Equivalents (1923), de Alfred Stieglitz.

FONTE: http://ernstlalleman.files.wordpress.com/2010/05/untitled-53.jpg. Acesso em 28/08/2013.

Bauman (2000), ao pensar o contemporâneo, atribui metáfora diferente, ainda que sob a reflexão de um estado aquoso. O sociólogo polonês organiza a ideia de um "presenteísmo" que avança sobre a vida social, o indivíduo e a arte, com base na alegoria da mudança de estado das coisas - da modernidade sólida para uma disso, desde 1893, instituições museológicas como a Academia real de Berlim, a Kuntshalle de Hamburgo e o Museu Nacional dos Estados Unidos adquirem fotografias para seus acervos (FABRIS, 2011, p. 41). 78

"modernidade líquida", uma "segunda modernidade" ou uma "sobremodernidade". Tal acepção, a de um império do dinamismo, efetua-se, sobretudo, décadas após as duas Guerras Mundiais, como combustível para uma cultura contemporânea do efêmero, mais particularmente a partir da cultura de massa dos anos1950/60. Michel Maffesoli (2010) estende o conceito presenteísta de Bauman como um estado de esgotamento em si mesmo, um "presente falso": em função de uma promessa por um passado post- mortem ou de um futuro que, em sua essência, já é passado. Para ele, estamos, portanto, nos tornando, inadvertidamente, a presença pálida de nós mesmos (ou a névoa da nossa própria imagem): A modernidade que se esgota "desenervou", em sentido estrito, o corpo social. O higienismo, a securização, a racionalização da existência, as proibições de todo os tipos, tudo isso tinha retirado do corpo individual ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias a sua sobrevivência. Pareceria, para retomar uma expressão de Georg Simmel, que se assiste, com a pós-modernidade, a uma "intensificação da vida nos nervos" (MAFFESOLI, 2010, p. 35) As relações contemporâneas, sendo, assim, fluidas, pressupõem que os laços humanos também se tornem escorregadios e enfraquecidos: "precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, são a característica mais difundida das condições de vida contemporâneas" (BAUMAN, 2000, p. 184). Para o estudioso polonês, a nova ordem da modernidade irá repercutir em uma sociedade consumista, e, para tanto, solitária, individualista e subjugada nas relações de trabalho pela autoperpetuação da falta de confiança e do desenvolvimento compulsivo e obsessivo. Ora, trata-se de uma fala contundente, que expõe um fenômeno macropolítico e socioeconômico atroz, com o qual o sujeito atual precisa lidar cotidianamente. Enfoca uma preocupação crucial do homem moderno frente a um cenário em constante mudança da revolução técnica - ideal esquerdista que remonta aos pressupostos marxistas da Teoria Crítica, com reflexos ainda visíveis sobre aquilo que foi dito há quase cem anos. No entanto, experimentos como o de Stieglitz fazem um movimento contrário ao completo pessimismo. Ora, as críticas de Bauman sobre a sociedade contemporânea disparam questões de ordem metafórica na obra vansantiana. O diálogo entre os dois corre em paralelo: Gus Van Sant trata de temas de natureza perceptiva e ontológica; Bauman, situa-se num engajamento político-social de bandeira notadamente esquerdista. No entanto, a Trilogia da Morte, ao propor um caminho estético pelas margens, redireciona o horizonte político para a ausência afetiva, a precariedade dos laços da modernidade; para uma névoa, o espelho do outro. É, nesse sentido, que Van Sant supera uma 79

dicotomia para se instaurar um discurso do gasoso que se investe acima do líquido, como ultrapassamento deste, mas sem se desvincular de preocupações originárias de inconformidade. Já em relação a Stieglitz, a imagem-névoa encontra seu primo mais velho, embora seja preciso demarcar diferenças. As canções visuais de Stieglitz evocam o motif poético mais caro a Gus Van Sant, as nuvens do Oeste norte-americano. Stieglitz e Van Sant compartilham o mergulho poético, a imersão idêntica sobre a imanência da imagem. Ambos quebram ideais sólidos, refutam o padrão de indicialidade da imagem acumulada, ao mesmo tempo em que reafirmam a mudança do estado como um fenômeno eminentemente moderno. Ainda que separados por quase duas gerações, têm em comum um olhar peculiar sobre o padrão gasoso de visão do mundo, como uma resposta a qualquer materialidade de certezas e inseguranças que se põem à frente. É, nesse sentido, que a névoa abre-se, aqui, como uma fagulha, uma fenda para se compreender o contemporâneo. A névoa é uma chave interpretativa, epítome poético que dialoga em um escopo de abstração, remetendo aqui a uma questão conceitual. Ela advém diretamente do elemento “nuvem”, massa gasosa, mas também pode ser entendido como superfície invisível e etérea. Algo que nos cega, interrompe nossa visão, revelando algo posterior em sua imagem atual. Na literatura, tomamos como partida a metáfora da “névoa da palavra” do poeta pérsio Mowlânâ, citado por Carrière (2006):

As imagens filmadas (justamente porque o cinema parece tão perfeito, pois não parece uma máscara) talvez sejam as mais ilusórias de todas as máscaras que colocamos sobre o rosto da realidade. E, ainda assim, quando um filme nos toma por completo, as imagens que sabemos falsas podem nos levar a uma realidade superior, mais forte, mais penetrante, e decisivamente mais real do que a própria realidade (CARRIÈRE, 2006, p.196). O cinema pode ser um portal para a epifania. Assim, podemos chegar ao conceito da imagem-névoa, aquela que se reveste da bruma para fazer-se enxergar, elucidar nosso pensamento em meio ao nevoeiro da razão, condensando o tempo presente da imagem em constante mudança (a nuvem, o movimento) com aquilo que ela traz de atualização, passado ou futuro (o tempo congelado, acelerado, duplicado e múltiplo). Com efeito, a imagem-névoa manifesta-se no espaço circunscrito de uma moldura, um “devir-janela” (KILPP, 2009, p. 13), o que nos remete à imagem reflexiva 80

e à ideia de contemplação. Os pressupostos de Suzanna Kilpp44 em torno da imagem como um quadro são úteis para apreendermos as relações entre o tempo do filme e o tempo que circunda o objeto de nossa fruição do olhar, problematizado pela delicada – e quase imperceptível - intervenção vansantiana. Tal mise en scène, cuja essência é identificada pela imagem-névoa, opta, além dos planos-sequência arrastados e de frames repetidos, pela refração de luzes. É, nesse sentido, que o diálogo de Stieglitz com Van Sant torna-se efetivo e operatório. Em muitas cenas, como iremos ver adiante, as nuvens são substituídas pelo movimento da copa das árvores, por exemplo – a rarefação torna- se tão extrema que será abstração de nuvens pura, sem horizonte nem perspectiva. A energia da natureza, como Van Sant registra pelo modo do duplo especular, flui por outro reflexo, o do céu emoldurado pelos galhos, mais próximo às nossas cabeças. Antes de proceder à imagem-névoa e suas particularidades, é preciso fazer uma ressalva. Este texto não pretende defender uma aplicabilidade da metodologia de Kilpp. O que nos interessa nela é o olhar específico sobre uma realidade aparentemente banal, ou descartável pelo seu fator corriqueiro, inclusive em práticas fotográficas. Tencionaremos converter a sensibilidade de Kilpp, cuja especialidade é tratar das molduras em análises televisivas, ao nosso modo de ver as “molduras de névoa” de Van Sant. A efetividade de seu método dá-se mais numa esfera apreensiva de sua essência que no uso mecânico e meramente residual. Somente para efeito de mais um adendo, também será importante para este arcabouço teórico, já que estamos evocando aqui a fotografia em si como conceito, trazer à luz algumas formulações de Annateresa Fabris sobre identidades visuais e a temporalidade da imagem técnica dentro do campo artístico geral. É fundamental, por exemplo, para avançar na reflexão, pensar a incidência de Warhol e sua desaparição do sujeito, em Últimos Dias. Decerto, o fato de Gus Van Sant ser fotógrafo, além de pintor, contribui também para entender um pouco tal flerte obsessivo com a imagem estática. Também não se trata, aqui, de enfocar a névoa como chave-conceito. Tal verbete não caracteriza um cinema de gênero. Aumont e outros autores do léxico cinematográfico não se referem a esse termo - fala-se em cinema de afeto, talvez a

44 No artigo Imagens-média do tempo acontecimento, Kilpp afirma que a imagem-duração é uma “natureza precípua” da TV, suporte no qual se debruça em sua análise como pesquisadora. Ela diz que o fluxo de tempo real da televisão e a montagem superficial de molduras informativas criam uma estética única e, segundo ela, distinta do cinema e do vídeo, por produzirem apenas imagens de tempo. Discordamos da autora neste ponto, na medida em que o cinema e o audiovisual também podem criar molduras e diálogos com um tempo sublime no mesmo ecrã. 81

categorização mais próxima, como falamos anteriormente de Denilson Lopes (2013), mas ele, igualmente, descarta o afeto como conceito. Ainda que não exista como categorização artística ou expressiva, não é difícil associar esse estado de suspensão e aspecto puro de textura, luz e forma a filmes como os de Andrei Tarkovsky, Aleksandr Sokúrov, Alain Resnais e de outros diretores que resvalavam pelo sentido onírico da realidade; ela os perpassa e, portanto, é a somatização da imagem por si própria (seja ela em movimento, ou, como na maioria das vezes, quase estática, quase um frame parado, associada à fotografia), remetendo nosso olhar ao conceito de “imagem-cristal” deleuziano. Podemos, assim, falar em uma recorrência estética, uma preponderância estilística e suavemente materializada como um elemento "delicado" (a inocência perdida, o tempo lento, os planos muito próximos ao rosto, além de outras formas assumidas no ecrã), que constitui uma interpretação coerente em relação à de construção Van Sant como artista essencialmente imagético. A nuvem, mais do que uma metáfora em colisão enviesada com a sociedade contemporânea vista por Bauman, marcará uma mudança de paradigma do olhar vansantiano. É possível atribuir à névoa o papel de vetor por um modo de fazer cinema, de afetividade e de estar no mundo, mesmo que como um ser diáfano, adquirindo materialidade por imagens. Como um fio condutor por excelência, essa tendência de estado gasoso, solto em baixa densidade atmosférica e de descompressão a vácuo, desempenha um papel importante. Assim, a nuvem em Gus Van Sant é corte (ato operacional), mas também devir (ato final). Trata-se de imagem-névoa extraída de uma atmosfera celeste, ou, em muitos casos, tomando por base os reflexos. Esses últimos, imagens secundárias e mediadas, não se formam unicamente de imagens devolvidas de espelhos, objeto-clichê, convertido em fios de tempo de memória, como já fizeram Andrei Tarkovsky (O Espelho), Luccino Visconti (Morte em Veneza) e Alain Resnais (O ano passado em Marienbad). No entanto, a Trilogia de Morte explora uma abordagem distinta desse grupo, ainda que bastante incidente no cinema contemporâneo: enfatizar o elemento estético do reflexo a partir de outras superfícies especulares, como o vidro. O diretor taiwanês Hou Hsiao-hsien é outro cineasta que tem um apreço por esse recurso; é comum o espectro do vidro no filme A viagem do balão vermelho, de 2007, com suas refrações de luz de cafés e bares parisienses. A imagem nasce, assim, do corte, ou seja, do enquadramento fílmico de um fenômeno quase intangível. 82

A questão do corte é destacada pelo pesquisador Philippe Dubois (apud FABRIS, 2011, p. 69) no pictorialismo fotográfico, vertente artística do fim do Século 19. E, por coincidência, ele recorre à nuvem como tema, fazendo uma análise poética no livro O ato fotográfico e Outros Ensaios. O modo como ele fala de fotógrafos daquela época, que tentam compor ao modo de um pintor, nos aponta confluências entre Gus Van Sant e os trabalhos dos fotógrafos Paul Strand e Alfred Stieglitz. Este último, como já dissemos, criando um dialogismo mais próximo com o diretor norte-americano, pelo fato de ter produzido a série Equivalências (1923-1932), que retratava nuvens transfiguradas em aspectos totalmente abstratos, sem horizonte e com percepção aberta ao mergulho inconsciente. A aproximação Van Sant e Stieglitz não se dá apenas no plano temático: o golpe (o corte) da imagem também se radicaliza na tentativa de configurar uma nova visualidade. De certa forma, Stieglitz e Van Sant são menos adeptos da tentativa de abarcar a realidade em sua completude do que da cisão. Originam-se, assim, perfilados em torno de um estado de evanescência, daquilo que lhes escapa à imagem. Está aí um fruto do corte: o extracampo, a ideia de algo que está fora do enquadramento e é preenchido por espaço e tempo imaginários, torna-se uma peça comum entre eles. Stieglitz compôs fotos de nuvens que levavam ao completo delírio, corte tão radical que propõe, segundo Dubois, uma “transformação radical da realidade e estrutura um espaço autônomo que, pela falta de linha do horizonte, destrói todo sentido de orientação” (DUBOIS apud FABRIS, 2011, p. 70). Por sua vez, em Últimos Dias, Van Sant não opera o corte no falso raccord (falsa ligação) entre os planos, e sim, dentro deles, na relação interna da imagem. A radicalização reside, assim, de outra maneira, no paradoxo da imagem em movimento. Se por um lado a sequência de frames é repetida exaustivamente, por outro a narrativa é readequada ao tempo real, como um reality show às avessas, não mais em função de uma filmagem do passado, mas de um estado in-progress. Esse olhar tem a particularidade de se focar a uma distância mínima do objeto e de efetuar uma sondagem meticulosa da ação, cumprida pela captura de uma vida que flui em seu tempo cronológico. Em termos práticos, o cotidiano, filmado em tempo estendido, cria uma relação com a névoa, a bruma que desconcerta pelo excesso de imagem reflexiva ou pelo tempo de exposição. O corte, assim, aparece dentro da imagem, no frame em si, por meio da delimitação de gestos, refutações e expressões faciais, em situações corriqueiras etc. No entanto, há ainda o não-corte, o encadeamento fílmico que compõe uma camada por 83

cima: o tempo é dilatado, avança, recua, estanca. Todos esses movimentos ondulatórios, sem uma cronologia fundadora, cruzam-se nesse imenso cristal da imagem-névoa: a solidão do interior das personagens atualizada pelo vazio imanente exterior. Fabris, ao descrever os métodos pictorialistas de Strand e Stieglitz, prega uma objetividade que se assemelha àquela defendida por Van Sant em seu cinema, pontuado por closes-up e recortes da realidade via câmera para atingir uma visão subjetiva da névoa.

A objetividade defendida por Strand implica uma manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, sem que isso signifique uma distorção da realidade. Interessado em buscar seus temas no mundo real, o fotógrafo usa recursos de iluminação, escolhe novos ângulos de visão, aproxima-se do objeto de modo a obter close-ups, com o objetivo de propor um realismo inerente ao aparato e sintonizado com os alcances da arte moderna, sobretudo cubismo e precisionismo. Essas mesmas qualidades são detectadas nas imagens de Stieglitz, que usa a câmara como um instrumento de conhecimento intuitivo, conseguindo resultados que não são oferecidos por outros meios (FABRIS, 2011, p. 57) É importante deixar claro que a relação de Van Sant com o pictorialismo não é automática, tampouco é assumida pelo diretor. A equivalência integral dá-se no plano impossível, porque nos referimos a suportes e meios estéticos diferentes, entre fotografia e o cinema. No entanto, o cineasta norte-americano, como um pesquisador teórico, fala, sim, em um retorno ao cinema silencioso de Griffith, fazendo alusão a um tipo de produção de imagens associada a valores pictóricos, como no texto que ele escreve sobre Béla Tarr.

3.1.3 Corpo-cadáver e corpo-abismo

Ao se lançar em um cinema revestido de tempo, que habita entre o fluxo temporal reconfigurado e a névoa como ato técnico e afetivo de câmera, Gus Van Sant justapõe espaço e tempo, abertos à abstração suspensa do real a outro elemento, matéria humana, identitária e puramente imagética: o corpo. Falar em corporeidade na Trilogia da Morte vansantiana referenda o status do ser em relação ao sujeito, do universal diante do particular, evocando questões éticas e estéticas. Portanto, distante de ser uma negação, a questão do corpo não se coloca aqui como uma antítese entre tempo (ou mesmo da névoa) e matéria bruta, mas como a ideia de um corpo transcendental, o ultrapassamento de um corpo imanente. 84

Se o tempo desconexo, partido e reconfigurado pela memória faz frente à cronologia pós-moderna, o corpo vai ter um papel decisivo na Trilogia da Morte como uma unidade de materialização/desmaterialização da sensibilidade. O corpo é, portanto, tanto uma matéria quanto uma imagem, carne e desaparição (espírito). É a partir do reconhecimento da sua feição trágica e mítica que Van Sant vai se voltar ao belo como categoria. A imagem cristalizada de corpos físicos que avançam, escorrem, marcham, atritam-se - voam até como seres diáfanos, evocando a prefiguração da morte anunciada-, é enfatizada em um ambiente labiríntico. Courville (2009) é certeiro ao observar o movimento em Gerry, Elefante e Últimos Dias como uma "deambulação trágica" (“déambulation tragique”), pois, pelo encadeamento cinematográfico, os corpos físicos são acionados em um ritmo lento, atitudes errantes que guardam aproximação semântica às epopeias da Ilíada ou Eneida. Tal retorno ao classicismo grego reforça-se com o olhar detido, quase obsessivo, sobre o corpo, mais precisamente, a beleza do corpo, tão tematizada pela civilização clássica em esculturas. Podemos dizer que o terceiro ato que o olhar vansantiano efetua, após a reconfiguração do espaço e depois o tempo, é de uma exegese dos corpos - ação que o inscreve em um cinema de ruptura particular, de pós-vanguarda de "gênero". Cada vez mais visível nos meios de massa, esse tipo de produção intelectual e poética, que surge no Pós-Guerra de 1945 como "new waves", dialoga com uma narratividade que prescinde do tempo cronológico, do passado estanque - muitas vezes apenas nostálgico - e do futuro idealizado para reconstruir novas iconografias em uma sociedade cuja memória passa a se constituir pelo aparato tecnológico: solta, livre, redesenhada e difusa. Nesse sentido, urge reconstituir, novamente, um olhar dialético. O interesse de Gus Van Sant pela representação do corpo, isto é, não apenas atrelado à sua própria personificação mortificada, não é nova, pois remonta desde as primeiras obras de influência beatnik. Em termos de construção fílmica, os close-ups, excessivamente próximos, delineiam essa intenção em captar traços do rosto, cicatrizes e os olhos como uma máscara warholiana. A essência desse corpo à deriva é reatualizada na Trilogia da Morte: há a construção de uma corporeidade instável e excluída, em alguns estágios até nomadista; além de marcas corpóreas vinculadas às margens (sempre acionadas por jovens, traço comum em todas as fases do cinema vansantiano) pela sua imaturidade ou desacerto: são corpos limítrofes, perdidos, em choque constante com sua própria matéria e com as normas sociais. 85

FIGURA 15: Sequência em close-up de Elefante (2003), de Van Sant.

FONTE: http://4.bp.blogspot.com/_7INDccPViqw/TDIMAbWGzhI/AAAAAAAACOs/ rEKICIUrbQU/s640/elephant+(1).jpg. Acesso em 28/08/2013.

Na Trilogia da Morte, o corpo perde algumas marcas identitárias (deixa de pertencer a uma minoria social) para vislumbrar uma passagem para um corpo-cadáver, arquetípico, destituído da própria densidade óssea e de pele, e, então, se resvalar no abismo ontológico. Aqui, temos uma noção de corporeidade que buscará uma transcendência profunda na sua relação com o tempo. A poética vansantiana, que antes se baseava na linearidade da estrada (route), matéria pesada, adquire consistência leve e volátil: ela passa, de cena para cena, local a local, luz e escuro, pela "experiência de outro corpo físico" (COURVILLE, 2009, p. 129). Assim, basicamente, a Trilogia da Morte se efetua por extensos travellings: em Gerry, a câmera que deambula e quase toca o corpo dos dois rapazes que se perdem no deserto; em Elefante, a ação dos estudantes anterior ao massacre de Columbine é percorrida em microeventos, pequenas digressões (nuvens que fogem do plano) e close-ups; e em Últimos Dias, tomadas que 86

se rastejam acompanhando o torpor de um rockstar em crise, seja pelo jardim, por um rio ou, estáticas, enquanto o personagem compõe músicas no quarto. Podemos falar, aqui, de um cinema de monitoramento. A adesão a uma antinarrativa, diante do caos contemporâneo, o "fragmentar o fragmentado", a que se refere Malpas (2003), vai, ao que parece, guiar Van Sant na sua Trilogia da Morte. A ruptura epistemológica vai se efetuar em duas linhas-mestras: 1) na temática banal, cotidiana, em que a figura do homem comum passa a ser o centro, marcando um distanciamento dos sociopatas e entes marginalizados do seu cinema mais precoce (mesmo em Últimos Dias, cuja inspiração livre se dá em Kurt Cobain, o foco é o degringolamento de um músico quase sem rosto, anônimo); 2) no encadeamento fílmico solto, com a adoção de longos planos-sequência, colada ao movimento das personagens, como se a lógica de um cinema de voyeurismo de George Albert Smith ou Émile Reynaud se invertesse, colocando o espectador bisbilhoteiro dentro da própria cena45. Essa postura antimoderna, por assim dizer, contrasta com a lógica da indústria do cinema. Não à toa, a grande influência de Van Sant, nesse período, como dissemos, será a estética orgânica e contemplativa do húngaro Bela Tárr. Estamos lidando, então, com um cineasta que retoma as bases de um cinema essencialmente romântico, analisam assim Bouquet e Lalanne (2009): "Gus Van Sant defende a volta ao Rosebud antes de Griffith, a um tempo em que não havia o vocabulário industrial de corte e trituração" (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 128). Ao lançar mão de uma estética contemporânea, Gus Van Sant parece superar a nostalgia de que faz uso, apontando para um "new cinema" visionário, cujo fio condutor havia se perdido após a chegada da indústria cinematográfica moderna. Um "novo vanguardismo", ou melhor, um velho vanguardismo ressignificado, que tenta reaver o laço cortado da experiência humana e da memória estilhaçados. O que se vai perceber adiante, principalmente com a Trilogia da Morte de Van Sant, é que sua obra permanece a reverenciar uma nostalgia do belo. A diferença é que ele passa a fazer jus, mais precisamente, a uma nostalgia estética, ou, para dizer melhor, a "nostalgias estéticas", alinhando-se em torno da ideia de uma estética (ainda) não definida. Se antes as apropriações se davam no patamar de uma cultura mítica western norte-americana de Steinbeck, da fotografia de William Eggleston, a iconografia da Pop-art e de uma identidade gay, os filmes da fase minimalista vansantiana dialogam

45 Ver MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 2011. 87

com o pensamento de um "novo esteticismo". Como Malpas (2003) observou, essa "tendência regressiva" de pós-esteticismo, que experienciamos nas primeiras décadas do Século 21, rechaça o legado dos Estudos Culturais e se volta à especificidade do fenômeno estético em si. O retorno ao belo é contemporizado: Van Sant mantém a quebra da normatividade herdada da modernidade, mas separa o fenômeno estético da realidade diante de um outro, independente de aportes ideológicos, políticos e históricos. Essa postura vem de encontro ao ceticismo em relação a teorias anteriores sobre o contemporâneo. Com a fragmentação da cultura contemporânea, as grandes narrativas são substituídas pelas metanarrativas, pois as primeiras já não dão conta da complexa teia de eventos e singularidades desta nova fase capitalista, fluida, presenteísta e nostálgica:

De acordo com (Jean-Luc) Nancy, nosso tempo é o tempo em que a (grande narrativa) é suspensa: guerra total, genocídios, a rivalidade de poder nuclear, tecnologia implacável, fome e absoluta miséria, todos esses são, no mínimo, sinais de autodestruição da humanidade, de auto-aniquilação da história, sem possibilidade alguma de dialética negativa. (...) Para Nancy, a pluralidade contemporânea apresenta a realidade como um espaço da radical falta de sentido, ou, antes, um espaço em que a ausência se tornou o próprio senso (MALPAS, 2003, p. 90) Assim, a Trilogia da Morte marca a posição do corpo e sua relação com o espaço, a paisagem e suas origens. Trata-se de um devir ontológico, um "vir-a-ser já sendo" de uma materialidade que se presume finita e tensa, mas que, por meio do movimento, projeta a si própria contra a fatalidade do fim. O drama físico, ou a via- crúcis do ser, é apresentado de maneira diferente em cada filme, porém sob mesmo tratamento estético: em Gerry, no (des)encontro dantesco de dois adolescentes homônimos, dois Gerry que se perdem no deserto; a reconstituição multiespecular e labiríntica do massacre de Columbine, de 1999, em Elefante; e, em Últimos Dias, que evidencia o colapso do corpo de Blake, astro de rock livremente inspirado no músico grunge Kurt Cobain, dias enclausurado com quatro amigos em uma mansão até cometer suicídio. Nos três exemplos, vemos uma matéria orgânica, viva, sensual, em conflito com o destino da morte, trágica na maioria das vezes.

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FIGURA 16: Still com a técnica do travelling em Gerry (2002)

FONTE: http://www.filmologia.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Gerry.jpg. Acesso em 28/08/2013.

O registro da agonia lenta, que para alguns deles só se consome no ato final, como no caso de Elefante, perpassa por um ritmo de duração bruta, com planos que quase se tornam como uma extensão corpórea. O tempo, assim como o sol em Gerry, que queima o solo e os oprime fazendo com que olhem para baixo, converte-se pelas lentes de Van Sant em uma abstração tênue que tenta acompanhar o ritmo da caminhada, da batida do coração e outros elementos táteis e puramente carnais. Esse status suspenso de "monitoramento", operado por meio de travellings e steadycam, repete-se nos outros dois filmes: o que vemos é o tempo corporificado. Por sua vez, as personagens deambulam, cumprem sua sina, correm, ou se livram, constituindo movimentos de um corpo-trivial, um corpo-cadáver. Segundo Moëllic (2009), ao analisar Gerry, essa massa rítmica se torna uma "coreografia dos corpos no deserto":

Se Gus Van Sant queria captar a duração bruta, a tensão de um lado para outro, sem maquiagem, ele conseguiu capturar, em seus planos cheios de afeto sensual, o ritmo exato de uma amizade que se consome sob o sol. Capta com precisão a complexidade e a intimidade do ritmo da fala (a discussão em frente à fogueira, o diálogo surreal da cena sobre a rocha...), bem como a de seus passos ao final da jornada, até onde a fusão em que este Gerry mortal é absorvido em um outro. (MOËLLIC, 2009, p. 124) Nesse momento, em que corpo e tempo parecem agir um sobre outro, marcando um novo lugar do cinema, a narratividade parte para outro patamar. Numa sociedade transformada pela tecnologia e pelo desdobramento de múltiplas formas de apreensão do passado em formato físico, do celuloide e agora no digital, a constituição de uma memória prostética ganha relevância em um cinema que cumpre o papel de (re)operar 89

historicidades coletivas e pessoais. A “imagem-tempo” proporciona um processo de reorganização de lembranças, afetos, sonhos e imaginário em uma "memória palimpséstica, conceito sobre uma reescritura da memória, natural ou artificial, que é apagada" e tem a chance de ser renovada (KILBOURN, 2010, p. 36). Vale relembrar Pasquet (2007), que diz que quem assiste a Gerry assume "um caráter de participação na experiência, a exigência de uma presença corpórea" (PASQUET, 2007, p. 117) em virtude da câmera que segue a deambulação das personagens. Nesse sentido, não dá para não pensar que esse estágio da obra vansantiana estabeleça algum tipo de adesão ao conceito de imagem comodificada de Jameson, ou seja, a uma crítica ao consumo, à euforia tecnológica e à cultura expandida do mercado. Em certa medida, ao se contrapor à ideia do corpo passivo na pós- modernidade, o corpo na Trilogia da Morte busca um idealismo heroico na tentativa de romper qualquer perspectiva fatalista. Mas há de se convir que a imagem em Van Sant, ainda seja a personificação do corpo explorado em suas possibilidades de afeto, desejo e sensibilidade, ainda será, acima de tudo, uma expressão do tempo. Ao mesmo tempo em que esse corpo ativo, evanescente e extracorpóreo se reatualiza perante a imagem, ele mantém-se preso à densidade da morte, do sublime e da materialidade. Quando, por exemplo, um dos personagens Gerry, encarnado por Casey Afleck, morre, o outro, interpretado por Matt Damon, alcança a estrada e volta ao curso normal da vida; ou então quando Blake (na pele do ator Michael Pitt), ao morrer, vai para o céu ao invés do inferno moralista - estas são inferências dialéticas de que o conflito e o seu sintoma de desespero são parte constituinte da existência humana. Por outro lado, a preocupação de Van Sant parece ser de ordem metafísica, e isso não só em relação ao corpo físico, mas a uma gramática do cinema desligada do automatismo, a favor de uma espontaneidade e de uma sensibilidade desatreladas dos modelos teatrais tradicionais. Assim como o tempo passa por uma transformação profunda nos modelos de produção de memória e no cinema, a mise en scène do corpo surge como potencial reflexo da mudança do olhar. Não somente essa alteração de paradigma se efetua nele como a partir dele se enreda uma jornada particular por camadas de uma nova historicidade. Essa experiência do devir-morte dá-se por marcas cinematográficas: a fadiga dos Gerry que marcham resolutos enfrentando tempestades de vento em uma narrativa arrastada; a música repetitiva de Alex, que toca Für Elise, de Beethoven, ao 90

piano, no exato instante anterior à chacina em Elefante; e a mutabilidade progressiva do corpo de Blake em Últimos Dias. No caso de Gerry, temos um embate corpo-a-corpo do duplo por excelência, e câmera evidencia isso pela tomada quase justaposta dos rostos em close-ups. Como lembra Kilbourn (2010), essa relação de memória versus a morte já foi objeto de valor da literatura e da narrativa clássica. Aludindo às epopeias gregas de Homero, ou, pelos desdobramentos mais recentes, às narrativas modernistas de Franz Kafka diante dos intricados porões sociais, esses três filmes parecem empreender um esforço de katabasis, uma descida às zonas mais profundas para se obter o conhecimento de um outro mundo. "Para Tarkovsky, a psico-katabasis ("jornada mental") é a instância visual da memória como epistemologia: não há o "si mesmo" fora da memória" (KILBOURN, 2010, p. 73). A morte na trilogia vansantiana é, então, estendida, destrinchada e decodificada como redenção do tempo, metáfora para salvação da condição dos corpos ali colocados de forma casual, mas peremptoriamente condenados ao fim. O corpo mortificado ganha seu ponto de deriva, seu alterego de um corpo-abismo, que cumpre uma caminhada pelo vale de negatividades em busca da sua própria imanência. Assim, corpo e tempo, matéria e memória, natural e artificial permutam-se entre si em um mise en abyme, expondo um "labirinto de pontos de vista que são recompostos e cada um deles é cristalizado antes de serem transformado no outro" (SUTTON, 2009, p. 114). Essa posição ambígua, sem julgamento moral do olhar é percebida em Elefante com as diferentes versões para cada história dos estudantes, tanto a partir da ótica daqueles que foram assassinados quanto dos jovens metralhadores. Assim, podemos dizer que a imagem-tempo chega ao auge do regime cristalino, em que afetos, sonhos e lembranças se fragmentam para depois formar um novo outro, coalescente e indiscernível. Courville (2007) compõe uma interessante metáfora para entender a ontologia na Trilogia da Morte. Partindo da perspectiva da dança e da pantomina da obra Sur le théâtre de marionnettes, de Heinrich von Kleist, observa-se que a emergência dos corpos no contemporâneo é um produto fenomenológico da gravidade natural e da dualidade entre a "marionete", aqui sob a epistemologia de um corpo afetado, e a matéria humana. O corpo é um ser preso ao devir-colapso, enquanto que o fantoche mimético seria uma articulação de superioridade estética que resiste ao centro de gravidade de movimento: ele é célere, leve, fluido e idiossincrático. O cinema, em sua finalidade ética, filosófica, poética, seria esse fantoche: propõe uma interação dos 91

corpos com o espaço, o tempo, o outro como morte e matéria opaca, produzindo uma experiência e uma intimidade imediata:

A morte não ocorre fora da tela, ela se materializa, mesmo antes do desastre criminoso. Tem lugar na narrativa por uma encenação que situa o corpo entre a inexistência e a realidade, a transformação da vertigem entre o ser e o não- ser; entre o peso do corpo, que de repente se tornou inércia, já condenado antes a morrer na imobilidade mortal, e a graça arejada dos corpos boiando, a imaterialidade do corpo - ambas impulsionadas por uma centelha de vida e o "déjà morts", etéreos como um espectro pré-póstumo. (COURVILLE, 2009, p. 135) É interessante notar que o olhar sobre o tempo e a ontologia cinematográfica empreendidos por Van Sant, através do corpo, colocam-se como um questionamento da representação positivista, embasada no cinema do enigma e da ação; e também uma crítica, nos campos de análise, a conceitos estruturalistas, cognitivistas e antiesteticistas. É quase um retorno à metafísica romântica, à dialética ideal hegeliana, mas, desta vez, atrelada a uma profunda questão da imagem enquanto nova peça para apreensão do conhecimento. Não se instaura, de forma alguma, aliás, como vemos desde o começo, uma concepção totalmente nova, ainda que tomasse emprestado algum conceito teórico preliminar como ponto de partida. Também não é novo o interesse dele por essa quebra, por essa fuga da teatralidade de Dickens. Seu cinema mais rudimentar é marcado essencialmente por derivas. Pasquet (2009), ao analisar a montagem labiríntica de Gerry, que por vezes escapa aos corpos dos personagens, instaurando um modo de figuração rítmica subjetiva e de espaços irreais, lembra que "essas imagens mentais convocam as visões psicodélicas de Drugstore Cowboy, as visões narcolépticas de My Own Private Idaho e aquelas (visões) que o cineasta atribui, em Psicose, às duas vítimas de Norman Bates" (p. 116). A vertigem da razão adquire, com a Trilogia da Morte, seu estágio mais puro, que pode ser interpretada como uma tentativa de se chegar ao mais próximo da abstração ou de um contato mais primitivo com o humano. Primeiro, Van Sant parece instituir um imenso cristal de tempo deleuziano, aquele em que a imagem atual se condensa, se contrai e se virtualiza em uma única imagem, minimalista, indiscernível e coalescente. É assim, em Gerry, o deserto funcionando como uma metáfora perfeita da sua radicalidade formal ao querer comunicar algo sem frestas ou enfeites, além de ser um território dialético da contemporaneidade. A paisagem árida, explorada em sua virtuosidade do prazer estético pela fotografia de Harry Savides, lembra a atmosfera já usada por Bernardo Bertolucci, em O Céu Que Nos Protege, e Nacer Khemir, em 92

Andarilhos do Deserto. Mas, na imagem contraída vansantiana, o deserto aponta um avanço sobre o significado de um retorno à natureza perdida para adquirir o status de uma imagem dupla de instâncias temporais: a memória de um Oeste saqueado que perdeu seu verde para os colonos, em contraste com a presença de dois homens contemporâneos, citadinos, alheios à historicidade daquele lugar - dois elementos díspares que se opõem num encontro em que o presente atualiza o passado e um transforma o outro. O regime cristalino em que tudo é suspenso em um tipo de alegoria dialética é aplicado novamente em Elefante, no qual a escola secundária se torna um imenso cristal que se abre em pequenos feixes de tempo e espaço: o corredor, as salas, os corpos, lastros de materialidade em série que se repetem ao longo dos planos virtualizados. Neste caso, temos uma situação em que a temporalidade é experienciada em seu estado mais puro, por meio de uma coleta direta do tempo, que leva a uma abstração completa do evento em si, o referente real do massacre da Escola de Columbine em 1999. Mas há um traço que rompe com essa derivação pura, a partir do momento em que Van Sant decide restituir os atores e os figurinos em seu aspecto de realidade, ao permitir que não-atores, no caso, alunos adolescentes, com suas próprias fardas, refizessem a história de forma livre. Quando se fala em belo vansantiano, essa construção dá-se, como já vimos, por uma revisão epistemológica: as "belas artes" aparecem reconfiguradas em uma nova iconografia, uma tentativa de reconstrução arquetípica, como o deserto de sal em Gerry (no lugar da paisagem árida do Texas e dos canyons) ou as árvores de amarelo-outono em Elefante (em substituição ao verde dos subúrbios norte-americanos). Aparentemente, constituem-se como esforços por uma imagem cinética pura, ou seja, aquela desligada do encadeamento racional. Mas, do ponto de vista de uma imagem estática, que via de regra surge também pela repetição dos fotogramas, é possível também falar em uma impureza da imagem em Van Sant, sobretudo quando ela se aproxima dialogicamente da fotografia. Didi-Huberman (2008) concebeu um conceito aplicável a esse paradoxo em torno da imagem, que, também reformulado epistemologicamente, vai nos fazer chegar à questão do "anacronismo". Na verdade, trata-se de uma derivação da imagem-tempo de Deleuze, que será chamada por Didi- Huberman como um "destempo" que interfere no tempo cronológico da visualidade, envolvendo o novo sujeito pós-moderno em uma nova chance de historicizar: via 93

memória. Ora, a semelhança das propostas de Van Sant e Didi-Huberman não são meramente casuais, pois estamos diante de uma sociedade que lida com novas formas de estratificação do saber pela tecnologia. A partir do momento em que imagem e tempo estão intrinsecamente entrelaçados, faz-se urgente a apresentação de categorias visuais e de historicização que se ocupem de novos modelos arqueológicos e antropológicos da imagem. Elefante é, talvez, o emblema maior de Van Sant em refundar um novo sentido histórico, sociológico e afetivo sobre a chacina de Columbine, reconstruindo arquétipos, desconstruindo relações de causa-efeito, interpondo tempos individuais e implodindo o caráter cronológico e historiográfico do episódio. Por meio de tempos heterogêneos, e unicamente por eles, como se a imagem em si não tivesse efeito prático, a imagem convencional é transpassada e destruída naquilo que lhe constituía de "eucronia", ou seja, em valores do presente. Assim, a imagem, seja pelo cinema, fotografia ou artes visuais, pode assumir uma posição fundamental por uma nova historicidade além do presenteísmo de Bauman (2001). Por esse ponto de vista, Didi-Huberman combate a discussão sobre um "fim da história" e propõe uma revelação heurística, que autonomiza o indivíduo a buscar a verdade:

Uma epistemologia do anacronismo não se concebe sem a 'arqueologia' discursiva de que falei antes. É estranho que olhemos criticamente em nossa especialidade: muitas vezes rechaçamos questionar a história estratificada, nem sempre gloriosa, de palavras, categorias ou gêneros literários que empregamos cotidianamente para produzir nosso saber histórico. (...) Nada mais preciso que esta observação de Michel Foucault: 'Saber, inclusive na ordem histórica, não significa recobrar, muito menos recordar. A história será efetiva na medida em que introduza o descontínuo em nosso próprio ser' (DIDI-HUBERMAN, 2008, 47) Posto isso, fica mais fácil entender por que Gus Van Sant assume a identidade de um cineasta movido por certo empirismo no contato com obras de Tárr e também de Akerman em relação ao seu estoque teórico como estudante de pintura da Rhode Island School of Arts. Partindo da ideia de que o conhecimento histórico, da arte ou da experiência humana, é um processo contra a ordem cronológica e, portanto, pontuado por fluxos, a estética vansantiana deixa-se flutuar por essa contra-margem, esse contratempo instaurado no patamar do indizível, do incalculável, do acaso e da negativa dialética. No entanto, vale ressaltar que essa nova montagem, ou desmontagem mental por uma remontagem do tempo, vai acionar uma série de mecanismos da psique, do sensível e do afeto, que ganham contornos estéticos. O corpo, ou melhor, a materialidade da desmistificação do presente vai ser um dos elementos-chave para entender a nova arqueologia e antropologia vansantiana. 94

4. NÉVOA, CORPO E DESAPARIÇÃO

Por uma razão qualquer, você foi procurar a palavra “polegar” num dicionário. Lá estava: “o curto, o grosso, primeiro ou mais pré-axial dedo da mão humana, diferenciando-se dos demais por possuir duas falanges e uma maior liberdade de movimentos”. Disso você gostou: “maior liberdade de movimentos”.

Tom Robbins

Discorremos, até agora, sobre conceitos abstratos (corpo, névoa, tempo) e a maneira como eles se impõem na obra vansantiana. Neste capítulo, iremos proceder à análise, com base nas imagens estáticas (evocando as molduras de Kilpp e o dialogismo com a fotografia) ou em movimento (o cinema propriamente dito), para entender melhor como esses elementos são acionados e articulados na Trilogia da Morte. De antemão, é preciso reiterar que não nos debruçaremos sobre a natureza sígnica presente no corpus, a não ser quando os gestos simbólicos e indiciais estiverem a serviço do escopo conceitual da imagem-névoa. Refere-se, aqui, a coisas que escapam da névoa, cuja atmosfera diáfana, quase sempre branca, é interrompida, em diversos momentos durante o encadeamento fílmico, por uma paleta de cores que também exerce uma função importante na Trilogia, que é a questão do detalhe, o “punctum” do qual Barthes46 fala ou os “sentidos envolvidos” de Truffaut47. Por outro lado, como já explicitamos, compreendemos que o universo de elementos visuais assinalados por Van Sant não deve (ou pelo menos, não em termos estritos) ser destrinchado em seu significado oculto; como veremos adiante, irão surgir figuras de estrelas, búfalos, cores verdes ou amareladas em excesso, como entremeio narrativo que aponta menos para uma intenção hermética que uma fagulha surrealista que contrasta com o minimalismo da mise en

46 Ver BARTHES, Roland. A câmara clara – nota sobre a fotografia. Tradução por Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 47 François Truffaut, ao analisar Gritos e Sussurros, de , diz que “enquanto se assiste a um filme de Bergman, nossos sensos ficam fortemente envolvidos”. O cineasta e crítico francês da Nouvelle Vague chama atenção para um detalhe que transforma este filme em específico: as paredes em vermelho vivo no set, criando uma atmosfera essencialmente imagética e de forte carga sígnica. Ver http://bergmanorama.webs.com/films/cries_and_whispers_truffaut.htm. 95

scène. Talvez pudéssemos falar em outro tipo de afeto denominado por Lopes (2013) como “afeto pictórico”, nesse caso de uma relação de “fricção” entre pintura e o cinema, o detalhe como uma problematização entre esses dois campos. Porém, queremos focar, aqui, o afeto da névoa, num sentido mais macro. E, sobretudo, pensar no estatuto imagético em relação ao corpo no contemporâneo: a maneira como ele é entendido não como um corpo físico ou imaginário, mas um “afeto como forças corpóreas pré- individuais que aumentam ou diminuem a capacidade do corpo em agir” (CLOUGH apud LOPES, 2013, p. 2). Assim, o afeto não é somente um sentimento ou emoção, como havia previamente na filmografia vansantiana. A partir da Trilogia da Morte, ele transmuta-se em devir, em potência de mudança, que se estabelece entre pessoas, paisagens e objetos. Trata-se, portanto, de um tipo de cinema fundamentalmente sensorial, e não cognitivo ou de experimentação linguística:

O conteúdo simbólico da obra, no campo intelectivo, passa a ser uma questão de segunda ordem. Não se trata, no entanto, de afirmar simplesmente o primado da sensibilidade em detrimento das funções narrativas do filme. O que se reivindica é o reconhecimento, no âmbito da teoria do cinema, de um sentido sensível que, não é superior ao sentido lógico, a este é anterior (BEZERRA, 2010, p.2)

A partir disso, a prefiguração da Trilogia é a constituição de um corpo híbrido, um corpo que provavelmente possa se situar na representação do olhar de Van Sant na sondagem dos deslocamentos das personagens e na predisposição prévia dos objetos no ecrã. No entanto, esse mesmo fenômeno aparentemente particular também marca, na história da teoria do cinema, a transição de um corpo inerte para um corpo expressivo, a exemplo de uma transnacionalidade estética em comum, uma nova onda formada pelos cineastas Claire Denis, Tsai Ming-liang, Lucrecia Martel, entre outros. Tal mudança de paradigma de corpo o reposiciona para além do desejo corpóreo, que praticamente se anula, e de um corpo tecnológico ou editado por meio de imagens. O que passaremos a ver é um corpo como sujeito da narrativa, “como reflexo, como metáfora, como lugar experimental de representação” (Ibidem). Nas páginas seguintes, veremos como o corpo será um reflexo da névoa. Tanto ele irá se tornar um duplo, quanto um fragmento restituído à própria natureza, num esforço de desfragmentação para um resgate eidético. Na maioria das vezes, será protagonista de uma desaparição, destituído momentaneamente de matéria física para ganhar forma e textura de luz, imiscuindo-se na nova configuração espaço-temporal. Além disso, também será uma peça ativa em um jogo de repetição. Em todos esses 96

modos ou estados, a estrutura corpórea irá compor o afeto de uma imagem-névoa, leve na sua palpabilidade e densa nas possibilidades no horizonte perceptivo e espiritual. Como Gerry, Elefante e Últimos Dias tratam da morte, o prenúncio desse corpo livre gira em torno da finitude, da capacidade que a imagem pode lhe fazer transferir do domínio ordinário para o afeto, do corpo-cadáver para o corpo-abismo.

4.1 Gerry e a névoa de recomposição

Resumo minimalista da iconografia vansantiana, Gerry não apenas funde todos os motifs poéticos (o road movie, a estrada mítica norte-americana e as nuvens), de forma simultânea, como os converte em abstração pura, elevada à categoria de apresentação principal. O filme remete a uma tradição de filmes ambientados no deserto, grupo que poderíamos incluir a Trilogia do Deserto – Andarilhos do deserto (El-haimoune, 1986), O colar perdido da pomba (Tawk al-Hamama al-Mafkoud,1992) e Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma (Bab'Aziz: le prince qui contemplait son ame, 2005), de Nacer Khemir; e A cicatriz interior (La cicatrice intérieure, 1972), de Philippe Garrel. Paisagem por excelência, a região desértica, per si, fomenta teses e usos de narrativas, dentro ou fora do cinema, em torno de seu aspecto imanente e vazio: a fluidez espacial. No entanto, ao considerarmos o cinema de fluxo em que se inscreve Van Sant com a Trilogia da Morte, passaremos a defender o deserto como instância temporal. E a isso se deve a dois motivos. Primeiro, porque o padrão de indicialidade do lugar é quebrado deliberadamente pelo diretor. Ao optar por filmar Gerry em três locações distintas – o deserto de sal em Salta, na ; nas regiões áridas do estado de Utah e o Vale da Morte, no Deserto de Mojave, na Califórnia – a pulverização da referencialidade do lugar aponta para uma desterritorialização da imagem: importa menos a identidade, e sim a face icônica de um deserto lançado à imaginação banal. A segunda razão é a de que o deserto não é somente um espaço por onde os atores Casey Affleck e Matt Damon (cujos nomes das personagens são desconhecidos, já que se chamam um ao outro pelo apelido Gerry) irão percorrer a pé, num percurso delirante; tal clichê é também um vetor para o preenchimento visual de nuvens e de um tempo dilatado, que manterá um diálogo intrínseco com a jornada angustiante dos dois jovens perdidos. A paisagem árida, por vezes, vai se imiscuir ao céu (quando, num rompante quase surrealista, eles caminham em um plano-sequência de sete minutos por um 97

deserto de sal, marcando a transição de um amanhecer totalmente escuro para um ambiente de luz). Portanto, podemos pensar, em Gerry, o deserto enquanto categoria puramente imagética.

Na imagem, assim como no deserto, o tempo e o espaço vêm configurar uma espécie de falta, de algo a ser completado pelo que o Movimento traz de essencial, de mundano e orgânico. Se [Maurice] Blanchot identifica uma ‘existência móvel’ para aqueles que habitam no deserto – o que não podemos deixar de associar à própria existência do cinematográfico –, é porque o ‘não- tempo’ e o ‘não-espaço’ que originam a região desértica opõem-se diretamente a qualquer tipo de estabilidade ou fixação das formas. (MENDONÇA, 2011, p.3)

É nesse sentido que a paisagem mítica norte-americana, antes plenamente figurativa nos filmes de Van Sant, vai deixar a questão representacional para trás e aderir à abstração de uma matéria leve. Por isso, discordamos de Luiz Carlos Oliveira Jr. (2010) em sua análise sobre Gerry, quando ele relaciona os passos trôpegos e cansados das personagens às rochas gigantes do deserto, atribuindo a qualidade de uma mise en scène sólida. “[...] Gerry faz da lentidão uma figura de estilo que permite a Gus Van Sant testar até a exaustão a hipótese de uma mineralidade do corpo e da imagem” (OLIVEIRA JR., 2010, p. 136). O crítico e pesquisador completa dizendo que se trata de uma “estética Stonehenge”, em virtude de a montagem ser “uma justaposição de grandes rochas de espaço-tempo indivisíveis” (Ibidem). Ora, é uma imprecisão dupla de tal fala situar o corpo na solidez, já que este é questionado em sua materialidade em vários momentos pela rarefação da imagem; outro aspecto é que o tempo do filme é um fluxo indeterminado (passado e presente se misturam na antidiegese de Gerry). A rigor, Gerry projeta-se pela leveza. Desde o início do filme, há o convite ao invólucro sereno de um tempo suspenso. A primeira cena é de um travelling com os dois Gerry dentro do carro. Os rostos são iluminados pelo lusco-fusco, e o que vemos é o interior do automóvel mergulhar na penumbra aos poucos. Somos, assim, apresentados à passagem do tempo, ao som da trilha de Arvo Pärt, o “sublime do banal”. Depois, iremos nos dar conta de que o veículo será o elemento de retorno da imagem de afeto, quando somente um deles conseguirá sair do deserto e pegar carona na estrada de volta para casa. Mas, antes de se perderem, os Gerry são incautos. Correm em busca de, segundo eles, “uma coisa” (“a thing”); exploram a trilha de aventura; apostam corrida; tudo isso acompanhado por uma câmera que perscruta todos os movimentos. É interessante a maneira como o foco da câmera muda à medida que os 98

dois amigos se perdem e entram em colapso nervoso. O close-up e a desaparição passam, então, a ser elementos-chave.

FIGURA 17: Sobreposição das faces e a imagem-névoa em Gerry (2001), de Van Sant

FONTE: http://www.flickr.com/photos/darknessmoves/ 1994522542/sizes/o/in/photostream. Acesso em: 28/08/2013.

A desterritorialização do deserto repete-se nos planos. O que se vê é o vazio da paisagem que será replicado na face dos Gerry – da felicidade inicial da jornada, a expressão emudece. A partir de então, começa-se o processo: impera a desaparição do sujeito e um tempo vagaroso. Os dois rapazes, ao se descobrirem perdidos, receberão investimento afetivo da câmera, recolhidos na subitaneidade de um ambiente que passará a ser um labirinto temporal. Como assinala Fabris (2004), citando Baudrillard, a relação do dispositivo com o retrato aponta inevitavelmente para uma superfície virtual, em que a identidade do sujeito é inferior à “máscara que torna o indivíduo singular, que o transforma em ‘coisa entre coisas’” (FABRIS, 2004, p. 14). Ou seja, é nesse encontro efêmero entre câmera, pose e olhar que nasce o imponderável. Ao investigar detidamente a fisionomia dos Gerry, Van Sant amplia as possibilidades do simulacro, do artifício e da ficcionalização. O real é negado diante de um movimento de câmera que os segue, compondo um enquadramento estático. Nesse gesto, supervalorizam-se a imagem e a estrutura do “rosto morto” (Ibidem). Porém, diferente das abordagens anteriores de Van Sant essencialmente voyeurísticas, de um olhar sob o signo do consumo semelhante à Warhol, teremos o exemplo de um retrato que é ressignificado em Gerry. Na figura 17, vemos a reduplicação dos Gerry, um sobreposto ao outro. Cabisbaixos, cumprindo a sina da caminhada e já sem rumo, os jovens compõem, diante do corte singular, uma fusão de rostos que ora avançam ora recuam. O vislumbre de duas faces, que seguem contra o fluxo normal do filme (a convenção fílmica é de que os 99

objetos movimentam-se da esquerda para a direita) sinaliza um caminho inverso, a busca por uma identidade, algo parecido como o encontro de rostos de Bibi Andersson e Liv Ullmann, em Quando duas mulherem pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman. Vemos a fratura facial, que se rompe no duplo. Sabemos, a priori, que os rapazes têm o mesmo “nome”, e, embora também tenhamos consciência de que se tratam de pessoas diferentes, elementos heterogêneos, tal imagem especular, a da imagem sobre a imagem, faz explicitar o código do cinema retomando a questão original da identidade (Ibidem, p. 68). O enquadramento facial dos Gerry, que dura três minutos e 18 segundos, abre o questionamento sobre uma ontologia da imagem e do ser: seria esta uma fabulação sobre uma única pessoa em crise de identidade? Se não, qual então a relação entre os dois jovens, além do anonimato que se põe? Seriam eles irmãos, companheiros? São passado ou presente? – perguntas que se sobressaem acerca não mais de uma diferença, de um rosto pré-iconizado e distinto, mas de uma semelhança, de uma identidade convergente. Nesta tomada, Van Sant parece superar o olhar da grade warholiano para questionar a repetição e a simbolização na arte. Aqui abre-se uma fenda para uma profunda busca do “eu”. A contenção dramática desta cena também aponta para o extracampo, que se insinua como uma pré-figuração da imagem-névoa. Todo gesto é minimalizado e sintetizado no vazio, no banal: Casey Affleck, o rosto em primeiro plano e aparentemente o mais tenso, coça o nariz duas vezes, vigia o horizonte; já Matt Damon, com a testa franzida, quase uma esfinge, age sob a abnegação da marcha, enxugando o rosto com a camisa. Os micromovimentos deixam como resíduo apenas o som de passos que raspam o chão; e, ao fundo, apenas uma atmosfera branca. Intuímos que se trata de uma paisagem do deserto de sal. No entanto, a tomada longa cria uma estranheza, uma sinestesia em torno da ideia de que eles não estão sozinhos; dá a sensação de que eles estão sob espreita. Assim, diante do close-up vansantiano ressignificado, dirimi-se a dúvida: estamos diante de rostos que flutuam no abismo. A questão do abismo deflagra um parâmetro existencial e nos faz retomar a ideia do mito e da origem das coisas em Van Sant. Como Kilbourn (2010) observa, esse tipo de narrativa comunica-se com os épicos de Virgílio e Dante, em que “a memória como labirinto ou ‘cidade da morte’ (necrópole), através do qual o protagonista deve passar, como a katabasis de um clássico” é reprocessada, nestes tempos modernos, “pela irônica e metafórica jornada às profundezas do mundo por heróis novelísticos” (KILBOURN, 2010, p. 30). A ideia, portanto, de uma narratologia em torno da 100

katabasis, de uma “ida para baixo” cuja origem remonta ao Classicismo Grego e à literatura de heróis, é operatória em Gerry neste ato infrene de descida às zonas ínferas para se chegar ao conhecimento de outro mundo. Encontra ressonância com a versão secularizada e psicologizada de literatura moderna de “Beckett reescrevendo Dante, assim como Proust e Kafka expandindo o motif da ‘Peregrinação judaica’ em paisagens áridas” (Ibidem). O olhar vansantiano que se conjuga, aqui, no entanto, é quase de uma katabasis invertida: não de uma descida, mas de uma subida dolorosa, dialética. Não se trata de uma jornada clássica, nem de uma jornada mental, mas de uma jornada afetiva. Um percurso revelador e leve.

FIGURA 18: Corpo-abismo em Gerry (2002).

FONTE: http://cdn5.movieclips.com/miramax-films/ g/gerry-2002/0190718_30137_MC_Tx360.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Nesse movimento pendular de aparição/desaparição do sujeito, Van Sant leva a katabasis ao extremo, questionando a existência do corpo, da paisagem e do tempo. Em Gerry, esse sentido metafísico de uma transcendência corpórea efetua-se não somente perante uma paisagem desértica branca que se transmuta em nuvens (matéria árida para superfície vaporosa), como vemos também, em lapsos fílmicos, microcenas de alguns segundos, a transfiguração dos jovens em sombras, almas que divagam em meio ao sublime, como podemos ver na figura 18. Em outros momentos, mais prolongados, Van Sant coloca as personagens em tamanho micro diante de um enquadramento acachapante da paisagem do deserto, emoldurado por montanhas gigantescas. Solto, etéreo, desvinculado de presilhas, o corpo-abismo não é a total desfiguração do sujeito, mas a sua assertiva material, o rastro de um limiar que está prestes a se submeter ao 101

encontro abissal que possa restituí-lo enquanto ser. É tanto uma miragem do gesto de Van Sant quanto um corpo afetivizado.

Em primeiro lugar, a matéria projetada na tela muda de condição: o pó colorido aqui é substituído pela própria luz. O que tem principalmente como consequência limitar o cromatismo a um jogo puro de branco e preto, imaterializar essa própria matéria, que se tornou toda impalpável, e igualmente deixá-la propagar-se por ela própria, por autoirradiação: a sombra é ‘natural’, o ‘sopro’ do homem como origem motriz da projeção não é mais necessária. Por outro lado, o próprio processo de surgimento da sombra é instantâneo, ocorre por inteiro de uma só vez sob o impulso luminoso (enquanto a projeção de pó era progressiva e fazia-se parte dela). (DUBOIS, 2012, p. 118)

Diante de um corpo minimalista, que se torna luz, a mise en scène de Gerry fulgura o tempo puro. O que antes era uma tentativa de registrar o tempo direto, aqui o fluxo cinético sintetiza a intenção de transformar tudo em devir. A imagem icônica do primeiro Gerry vira índice e passa a ser atualizada pelo referente, o outro Gerry. Uma imagem flou, deformada, mas que não resvala unicamente na mudança contínua da desaparição. No studium, a leitura perceptiva do código, como afirmava Barthes, obtém- se a fenda disso: a estrela de amarelo desenhada na camisa do outro Gerry (um gesto de Van Sant) funciona como o punctum, o detalhe que “aponta o espectador”, “a emanação real do passado” (Ibidem, p. 87). Na figura 16, esse elemento figurativo pode ser visto.

FIGURA 19: Frames e a imagem-cristal em Gerry (2002).

FONTE: http://31.media.tumblr.com/tumblr_ lny1vupRud1qzbykto1_r1_500.png. Acesso em: 28/08/2013. 102

Gerry é um cinema feito de nuvens, abstração pura, mas também um clichê. A simplicidade da obra vansantiana está nessa essência imagética, indeterminada, que, por outro lado, é potência. Kilpp (2009), citando Bergson, fala sobre esse atrito entre espaço e tempo que gera uma mudança real, um movimento dos virtuais (memória pura) em direção aos atuais (matéria). O tempo, inapreensível, escorre na duração que se encontra no meio, e não na formulação de instantes fictícios. Por isso, é na atualização de “algo que acontece, enquanto perdura uma virtualidade que não cessa de fluir” (KILPP, 2009, p. 2) que se apreende um tempo que é acontecimento puro. Gerry é um grande relicário de tempo, um âmbar com seu interior gasoso, matéria evanescente, por onde passam, pela sua superfície, os dois Gerry. A imagem-cristal fundamenta-se nisto: passado e presente se misturam, a ponto de ficarem confusos, mas o que permanece é sempre um presente virtualizado, uma superfície que não para de se transformar em virtude de uma troca incessante com sua subcamada. Na figura 19, vemos uma sequência de frames de Gerry, instantes fotográficos de um todo que não muda muito. Com exceção da cena inicial da chegada do carro, o restante são imagens de um deserto ora espacializável ora nuvem. No entanto, no terceiro frame, que mostra a cena final em que um dos Gerry abrevia a morte do outro, ao vê-lo agonizando, vemos a imagem-névoa cristalizada: o corpo ao fundo é o passado de um instante que ainda é presente neste Gerry que continua a marchar sozinho. Ao redor, impera um grande deserto de sal (uma névoa?), que funciona como moldura do tempo em devir, o tempo dos acontecimentos. Dentro do plano, estão o presente (o Gerry que se levanta e sai andando) colado ao seu passado, alterego já morto (o Gerry caído). Tal cena sacramenta um acontecimento duplo, a partida em um plano menor adornada pelo tempo macro, atmosfera vidente que depois será reveladora de uma saída que estava mais próxima do que eles pensavam. Após o assassinato, metros adiante, o Gerry que sobrevive avista a estrada que lhe devolverá o tempo ordinário, não mais a duração como um fluxo. A simbiose desse tempo perscrutado ao extremo, cuja duração corresponde à extensão dos planos, e o registro suspenso das camadas abissais do outro afetivo, irá causar um efeito. As imagens em Gerry produzem um estado de hipnose, em que sonho e realidade organicamente tornam-se uma amálgama. A câmera engendra, então, um movimento que amplifica a tensão entre o corpo e a morte como seu duplo. A percepção confusa amplia a intensificação do processo de katabasis e lança a certeza de que, mesmo a partir de uma matéria-prima aparentemente morta (o deserto), é possível 103

extrair um substrato enriquecedor. A experiência da câmera aberta, por exemplo, corresponde a uma maneira de compor uma narratividade que, em outros momentos de vanguarda modernista, como a Pop-art, mostrou-se eficaz em apreender uma experiência do tempo. Bergson e Deleuze trouxeram, em seguida, o horizonte ético- filosófico para defender uma arte que se preocupasse com as vicissitudes temporais. No entanto, pensar a temporalidade em si apenas não basta; ela também se relaciona com a historicidade do pensamento. Para isso, a filosofia hegeliana projetou o indivíduo como um ser ontológico capaz de concatenar e rever sua posição no mundo, apropriando-se da sua ideia de sujeito. Para Hegel, o ser humano não deveria enxergar somente o que se passa em seu interior; é sua função, ou pelo menos deveria ser, buscar um "sentido espiritual" para atingir a autodeterminação no mundo. Gerry seria uma conjunção metafórica de “deserto, desejo, desastre” (“désert, désir, désastre”), um “desejo pela origem” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 134). A recomposição do corpo e do tempo esfacelados, o ato de recompor dois rostos em um e a busca por uma sondagem do vazio, preenchido por pequenas granadas perceptivas e espirituais - é tudo isso que move este aprofundamento no olhar de Van Sant:

Pautado por uma poética do esvaziamento, o filme de Van Sant encontra seu potencial dramático justamente no exarcebar da ausência, da falta não suprida. [...] A plenitude pelo vazio aí proposta, longe de corresponder-se a um projeto desintegrador, niilista ou meramente conceitual, aproxima-se muito mais de uma arguição filosófica, na maneira como ela pode ser nutrida pela juventude contemporânea (MENDONÇA, 2011, vol. 2, p. 175)

4.2 Elefante e a névoa de desfragmentação

Susan Sontag (2003), ao refletir sobre o ataque ao World Trade Center, em Nova Iorque, ressaltou a tema da banalização da catástrofe por Hollywood do ponto de vista da recepção das massas. O 11 de setembro, lembra ela, foi “classificado de ‘irreal’, ‘surreal’, ‘como um filme’, em muitos dos primeiros depoimentos das pessoas que escaparam das torres ou viram o desastre de perto” (SONTAG, 2003, p. 23). Dessa forma, a velocidade do fluxo de imagens48, pelos meios tecnológicos atuais, expõe uma

48 O olhar de Susan Sontag não era totalmente pessimista. Mesmo ao discorrer sobre a “morte da cinefilia”, a ensaísta norte-americana observava exemplos de filmes que nadavam na margem do fluxo incessante de imagens (Satantango, de Béla Tarr, é um deles), restabelecendo sua fé, ainda que numa negação do estatuto da própria arte do cinema e aproximação dialógica com a imagem parada e a fotografia. Ver http://www.thewhitereview.org/features/the-prosaic-sublime-of-bela-tarr. 104

problematização em torno do excesso e da maneira como a memória e a sensibilidade passam por uma crise de representação epistemológica.

O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui nosso meio circundante, mas, quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma citação ou um provérbio (Ibidem)

Não vem ao caso, aqui, estabelecer diferenciações entre cinema e fotografia, dois campos que se entrecruzam mediante imagens, tampouco construir maniqueísmos entre suportes de mídia mais novos e mais antigos. Interessa, sim, apontar um tipo de cinema que se inscreve na “virada afetiva”, na margem de um contrafluxo estético. Um tipo de construção fílmica que advoga pela pausa. Uma fronteira entre o registro fotográfico e o encadeamento de imagens. A cena inicial de Elefante rompe com essa expectativa prévia de filme-tragédia. A tomada, um timelapse de um minuto, dirige o olhar para um céu de nuvens esparsas, de cor azulada, mas numa tonalidade estranha. Não de um azul-anil ou azul-celeste, mas a cromaticidade de um ocaso, o crepúsculo de um dia ensolarado. O filme abre com o motif vansantiano e, ao fundo, o som ambiente de um diálogo entre jovens, além do sopro de uma ventania. A partir desse momento, o contrato que Van Sant tenta estabelecer é de um estado de suspensão das faculdades perceptivas. O céu escurece, e a próxima cena é um contra-plongée durante o dia, que foca uma alameda de árvores de outono em movimento. Em seguida, a câmera, em plongée, segue um carro pela rua de um subúrbio norte-americano. Três tomadas que instauram um sentido ontológico da névoa. A primeira, a nuvem como objeto de fruição do olhar; a segunda, a natureza que sofre desaparição pela técnica do dispositivo; e a terceira, o real visto segundo a nuvem. FIGURA 20: Contra-plongée de nuvens escuras e das árvores em Elefante (2003).

FONTE: http://theartofmemory.blogspot.com.br/2007/09/ elephant-some-things-just-stick-in-your.html. Acesso em: 28/08/2013.

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A terceira tomada inicial de Elefante, a do tipo plongée, é um tipo que descreve uma névoa dessublimada: poderia ser associada a um ângulo de nuvem baixa, que, personificada, observa de maneira suavemente superior os entes que estão lá embaixo, antecipando, pelo ato do olhar sublime, o horror que irá se desencadear adiante. Toda a ação se torna repetitiva, arrastada, exaurida, a partir da cena em que o jovem John é guiado por um pai bêbado ao volante - o ato será trôpego, desconcertado até o ato final da tragédia. A névoa assume, assim, papel de contraponto, que flui a potência dos personagens, ao mesmo tempo que os oprime, obscurece, apequena e castiga com sua forma que se modula, varia e desfaz, num papel semelhante ao tempo no sentido bergsoniano de uma duração transmutável. Ao que a câmera de Van Sant indica, ao intuir essas imprecisões, a única certeza é que tudo se move, e que o acaso não é uma pedra instransponível, mas uma condição. Nesse sentido, Holmes (2010), em seu Manifesto Afetivista, nos dá o escopo em prol de uma imagem puramente afetiva, cuja nova trilha do possível seria percorrer regiões e ambientes do afeto: "O mais importante, desde o ponto de vista afetivo, é o caráter de crítica a esta sociedade, sua insistência no piloto automático, sua governância cibernética" (HOLMES, 2010, p. 2). O que virá, então, a seguir é uma narrativa de esvaziamento dramático, porém, diferentemente de Gerry, a ausência será pautada pela questão do fragmento como elemento a ser reconstruído em sua organicidade. Remontando, de forma ficcional, os pedaços factuais que compuseram o episódio do tiroteio na Escola de Columbine, em 20 de abril de 1999, Van Sant coleta cada uma das peças desse microcosmo para, então, esticá-los em seus momentos individuais até a instantaneidade fatal. É isto: Elefante comporta-se como uma grande “imagem-cristal”, formada por pequenos instantes que, em sua devolução atual, são restituídos à virtualização. Nesse projeto puramente conceitual, o filme resgata o percurso espaço-temporal das personagens a partir de uma revivência que é estendida e recontada no tempo comprimido do filme (uma hora e 18 minutos de duração, ao todo). É claro que os rostos que habitam o ecrã são outros, não são reais – não se trata de um documentário, a exemplo de Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), de Michael Moore, que trata do mesmo tema – não há dúvidas de que estamos diante de uma ficção. Mas há um padrão de indicialidade com o episódio, intenção que se corrobora com a decisão de Van Sant em estabelecer uma mise en scène realista, com atores novatos/amadores (estudantes que interpretam personagens com os seus próprios nomes), locação de uma escola secundária 106

semelhante (em Portland, e não num estúdio) e a inspiração na estética de Alan Clarke. Embora a predominância das cores seja distinta – em Elefante, de Van Sant, incide um amarelo solar, pela fotografia de Harry Savides, enquanto Elefante, de Clarke, carrega mais em tons sombrios da Irlanda do Norte – o manejo de câmera é idêntico. Mediante longos planos-sequência, que sondam a personagem como uma co-presença, os jovens alunos são esquadrinhados em suas atividades rotineiras, num universo arquetípico de colégio estadunidense, com a prática de futebol americano, basquete, idas ao refeitório etc. A diferença é que, no filme de Clarke, os assassinatos em série são mostrados sem repetição e jogo de tempo com o passado; são apenas comprimidos no tempo fílmico de 18 minutos. Já em Elefante, de Van Sant, a mesma cena pode ser mostrada duas ou três vezes, por ângulos diferentes, por enquadramentos igualmente distintos e com gestuais que abrem fendas por serem milimetricamente desiguais de um take para outro similar. É nesse aspecto, a da pulverização repetitiva de um acontecimento, que a mise en scène vansantiana atinge um grau inquietante.

FIGURA 21: Frame do corredor, em um dos ângulos, de Elefante (2003).

FONTE: http://www.filmhafizasi.com/media/images/elephant.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

É evidente que, ao fatiar as cenas em função de o olhar variado e múltiplo da co- presença, Van Sant aponta para uma intenção consciente em desvelar uma estranheza que está no cotidiano, uma anormalidade já banalizada. Sua câmera se volta à sutileza daquilo que não é percebido no dia-a-dia, como, por exemplo, na figura 21, em que 107

filma, tripticamente, a cena em que três estudantes – John (de camisa amarela), o fotógrafo Elias e Michelle – prenunciam um encontro fatal, o último momento em que se vêem antes do início dos assassinatos. Tal situação, pensada por Van Sant sem um compromisso de fidedignidade, é emblemática do ponto de vista da constituição de uma memória, da fixação de algo que congela, em meio à enxurrada de informação, como assinalava Sontag (2003). Nesta cena, o jovem Elias pede para fotografar John, e, enquanto este faz uma pose estritamente superficial, a máscara de um jovem alegre que, ironicamente, simula um gesto engraçado (naquele mesmo dia, John chora ao chegar atrasado ao colégio, porque seu pai, bêbado, quase provoca um acidente de carro), Michelle, uma nerd vítima de bullying que não frequenta as aulas de basquete por ter vergonha em vestir shorts, corre em direção à biblioteca, passando pelos dois, sem cumprimentá-los nem olhá-los. A cena é mostrada três vezes, cada um sob o ângulo subjetivo, em montagem alternada com outros eventos, de tempo distinto. É interessante como, em virtude da presença de um fotógrafo dentro do quadro, a estranheza se aprofunda ainda mais, na medida em que a nota mental adjacente parece a de ser ‘olhe com mais calma’ ou ‘olhe de novo’. É como se Van Sant pedisse que o espectador fixasse algum detalhe que passou despercebido ali. Uma observação mais acurada sobre algo que está por trás das personagens, não mais nas suas máscaras, nos arquétipos que cada um assume, mas na identidade, nos medos e nos dramas geracionais que compartilham. Sutton (2010) resgata o conceito romântico de “uncanny”, formulado por Freud, e denominado originalmente no alemão de “Unheimlich”, em torno de algo que é estranhamente familiar e inquietante ao mesmo tempo:

Uncanny denomina aquilo que é não-familiar sobre aquilo que é mais familiar e ou ‘doméstico’: a estranheza daquilo que é mais próximo para nós, o mais íntimo; o exotismo do cotidiano [...] O modelo em Freud do inquietante é o Duplo: em modernos (pós-românticos) termos literários, é por definição diferente do ‘original’ (SUTTON, 2010, p. 110)

O papel do fotógrafo Elias, nesta cena, revela a indexabilidade de uma ausência que Van Sant tenta demonstrar pela fragmentação do mesmo acontecimento. Sutton (2010), citando Derrida, fala do “perigo sempre presente de reduzir ou assimilar o outro como você (mesmo) – em oposição a uma relação mais ética e dialógica” (Ibidem, p. 112) ou do luto “pela alteridade do outro (a), pela estranheza, desconhecimento, não- representatividade: o aspecto do (agora ausente) outro que está sempre além ou fora da memória” (Ibidem). 108

A fragmentação das cenas em Elefante concorre para trazer à tona essas impossibilidades inquietantes que não encontram vazão na teia social contemporânea. No entanto, em um painel de investimento maior, a ação é contrária. Ao invés de simplesmente repartir os trajetos individuais, Van Sant os desfragmenta, os une, como uma grande colmeia de tempo, que se costura e se enreda múltipla, interpenetrante, confusa e complexa.

FIGURA 22: Vários espectros de tempo e co-presença em Elefante (2003).

FONTE: http://prestigiousblogsir.files.wordpress.com/2011/10/elephant.png. Acesso em: 28/08/2013.

A poética do corredor é o fio condutor dessa desfragmentação, ambiente escolar vasculhado em toda sua riqueza de texturas e formas. A câmera vagueia, quase planando, na sina de testemunhar os movimentos dos estudantes. Dependendo da incidência de luz natural, o percurso será mais visível, um tipo de predisposição que estará atrelada à proximidade do evento trágico: quanto mais o tempo avança, mais os ambientes ficam escuros e asfixiantes, atribuindo um sintoma psicologizante de suspense, uma função mental. Já no tratamento das personagens, o status de co-presença fílmico é imutável. Seja com Eric e Alex, os alunos que irão cometer a chacina, ou com Nathan (o jogador de futebol) e sua namorada Carrie, quanto com as patricinhas Britanny, Jordan e Nicole, o movimento de câmera é uniforme: gira ou repousa sobre seus rostos, capta suas instantaneidades fatais etc, como se eles não tivessem consciência de que estão sendo perscrutados de forma íntima. Talvez Eric e Alex recebam um investimento diferenciado, não em termos de natureza, mas em grau, por representarem o elemento mais misterioso do massacre. Além de terem a rotina sondada no colégio, os dois amigos são mostrados em atividades na casa de um deles, tocando música, jogando videogame e usando a internet. Apesar do mergulho no pormenor, na coleção de pequenos instantâneos da vida dos alunos, o olhar vansantiano não se desvincula da influência warholiana da máscara: o close-up tem um caráter ambíguo, além de imperar a construção arquetípica das personagens (a nerd, a cheerleader, o 109

jogador popular etc). Van Sant também deixa patente a marca de seu discurso pregresso sobre a juventude e as margens sociais, ao filmar uma cena em que Alex e Eric tomam banho juntos, retomando questões sobre heteronormatividade e, num plano mais polêmico, aventando uma possível afetividade entre os dois criminosos.

FIGURA 23: Travelling sobre a personagem Elias.

FONTE: http://farm2.static.flickr.com/1282/1324366616_45c815bb64_o.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

FIGURA 24: Corpo-abismo da personagem Alex, com a arma em punho.

FONTE: http://apaladewalsh.files.wordpress.com/2012/10/elephant -elefante-2003-de-gus-van-sant-6.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Tal câmera deambulante enseja a evocação daquilo que Fernão Pessoa Ramos (2012) chama de “o sujeito-da-câmera”, o surgimento virtual de uma posição espectatorial que se dá pela fruição de uma circunstância de tomada e de câmera. “Devemos realçar a presença da câmera em interação direta com o mundo que a cerca e 110

a maneira particular pelo qual ela se abre à sua presença” (RAMOS, 2012, p. 74). É nesse sentido que a câmera, embora haja a trucagem ficcional em mantê-la oculta, ganha também um estatuto corpóreo. O dispositivo torna-se tão matéria quanto os objetos, a paisagem e as personagens. Deste modo, ao realçar o objeto físico da câmera, o olhar vansantiano confunde-se com a presença efetiva das tomadas diretas de home videos, câmera digitais, de segurança, de celular e de internet. De certa maneira, emula- se, aqui, o comportamento em relação à presença banal da câmera no dia-a-dia, em que a reação à proximidade da máquina é semelhante à maneira como todos “reagem diante de pedras, troncos, cadeiras, cachorros ou outros seres humanos, para neles não trombar” (Ibidem). O que faz com que pensemos numa solenidade no contato com a câmera em Elefante, assumindo a farsa do invisível, é a maneira como a câmera é poupada do ato de transfixiamento, de ser rasgada ao meio ou “atropelada” no decurso dos movimentos. Portanto, ainda que no plano da personagem esta presença esteja implícita, para o espectador este contrato, muitas vezes, é reafirmado. Nesse grande painel múltiplo de câmera e co-presença, Gus Van Sant joga o filme inteiro em um mise en abyme, um “labirinto de pontos de vista que são passíveis de serem um compósito e que são cristalizados, um por vez, abrindo caminho para o outro” (SUTTON, 2009, p. 114). Tempo e imagem passam a ser células interpretativas de uma ruptura da cronologia que funda uma nova unidade temporal. A tragédia de Elefante não é mais entendida de acordo com o seu referente, narrado por relatos fragmentados e isolados entre si. A separação entre a vivência espacializável e um continuum de interação e contato entre objetos é o que vai fazer Van Sant se aderir à imagem-tempo. A existência de cada drama individual é descentralizada para configurar uma não-subjetividade, em que “qualquer tragédia” se tornará “toda tragédia”. Tal natureza de imagem dialoga com o conceito de mônada do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz: O universo da mônada é uma estrutura sem centros na qual há somente um continuuum de dobras e ondulações. [...] Dividir o continuum é dividir uma mônada em uma série de mônadas até um patamar invisível. Esta é a estrutura da multiplicidade na unidade, a aparência da mônada no concetto como o topo do cone, uma visão que compreende totalmente a relação entre o qualquer e o todo (Ibidem, p. 102)

A desaparição do espaço e dos objetos a favor do tempo, por outro lado, cria o efeito imagético que se prolonga em todos os filmes da Trilogia da Morte: o apontamento para a ausência e a fulguração da sombra. Em alguns instantes, essa 111

superfície fantasmagórica é um rastro de luz que se exacerba na tela, como uma superexposição da câmera aos raios solares que vêm da janela (figura 23). Não como um detalhe, mas como um fenômeno óptico técnico, resultado de uma falta de foco intencional, também vemos figuras esguias que desafiam a percepção, a exemplo da cena em que Alex atravessa um corredor já escuro e tomado de sangue, com uma metralhadora em punho, sendo já o prenúncio de uma quasi-morte (figura 24). O corpo de Alex, assim como o dos outros estudantes que irão sucumbir ao ataque, flutuavam em meio a uma imagem-névoa, que agora lhes é abismo. De corpo-cadáver, presos no intervalo entre a morte iminente e a condição de mortandade súbita de um corpo frágil e leve, todos os estudantes passam a se transmutar em sombras e luz, constituindo um corpo-abismo entregue à multiplicidade de tempos subjetivos e pontos de vista. Embora não de uma totalidade pura, a desfragmentação religa perdas e memórias esquecidas no baú do fluxo incessante de imagens.

4.3 Last Days e a névoa de decomposição

Últimos dias é um filme sobre a desaparição do sujeito pelo reflexo. Um apagamento em função de uma crise existencial profunda. A obra mostra situações em que o músico Blake, interpretado pelo ator Michael Pitt, ensaia ou sucumbe a crises, com cenas que se repetem sob dois ou mais pontos de vista, marcando uma narrativa circular e labiríntica. As nuvens, junto à quase anulação narrativa, contrapõem-se como um sublime fotográfico ao simples registro da morte da matéria. Neste caso, a nuvem se faz imagem-névoa a partir de superfícies refletoras e da desaparição do próprio ente gasoso. Ela, feita de luz, vira o movimento em si. Quase destituído de ação, formado apenas por blocos sensoriais, o longa capta, em uma sequência de cenas de um cotidiano comum, o degringolamento de um músico, inspirado livremente em Kurt Cobain, ícone do movimento grunge. Em termos técnicos, a colagem antinarrativa é feita mediante planos longos (numericamente, isso significa 71 planos em uma hora e 32 minutos de filme). A câmera segue um curso vertiginoso, com várias paradas e hesitações em entremeio, algumas muito longas, com até cinco minutos de duração de uma única tomada, levando o espectador ao estado de hipnose pela repetição de som e imagem. As cenas não guardam uma relação de causa-efeito: os ensaios exaustivos de Blake com a 112

guitarra elétrica ou com a bateria são costurados com planos afetivos em objetos e pessoas ao redor: mostra-se o clipe do grupo de r&b Boys II Men que veicula sem parar na TV; o barulho do entra-e-sai de amigos; as visitas de estranhos etc. Fluxo que torna ainda mais sufocante a ambiência de uma casa que funciona como um grande cristal. Atualizados pela matéria dos corpos que ali habitam, tempos múltiplos em sua multiplicidade culminam no último ato, este, sim, cravado no tempo cronológico conhecido, em que Blake se mata com um tiro de espingarda. Há, nesse jogo, um interesse na reapropriação de elementos do belo na fotografia do cinema. E, nesse sentido, ele vai se cercar do cinematógrafo Harry Savides, encarregado de destacar as cores e compor um painel de puro deleite visual. A cor verde dos arbustos e das árvores ao redor da casa de Blake (diferente do azul e do branco que predominam em Gerry) ganha uma tonalidade viva, mesmo dentro dos cômodos, diante do reflexo dos jardins que entra pela janela. A camisa suja do protagonista também adquire uma cor verde-musgo, dando à atmosfera de Últimos Dias a ideia de um filtro, de uma máscara. A bruma do excesso de verde refratará a luz do início até a morte de Blake. Uma cena resume a transmutação de Stieglitz, relação fotográfica que citamos anteriormente, em Últimos Dias. Em crise existencial, já deflagrada nos minutos iniciais do filme, Blake vaga pelos jardins à procura de algo que o espectador desconhece, porque o protagonista não fala, apenas balbucia palavras sem nexo, possivelmente tomado pelo efeito das drogas e remédios. Cambaleante e cabisbaixo, ele caminha até um quarto de vidro nos fundos do imóvel. Todo seu percurso anterior até entrar no quarto é marcado pelo som de badalos de sino. A trilha incidental se exaspera, ganha um volume quase ensurdecedor, quando Blake entra nesse recinto. Depois, à medida que o filme avança, ou estanca em círculos de tempo e espaço, iremos descobrir que ali será o lugar onde ele cometerá o suicídio. Naquele espaço, uma espécie de redoma de vidro, especular, adornada pelas imagens de reflexo das folhas e da luz, um lugar que parece raptar a nossa visão pelo excesso de imagens reflexivas, é ali que o filme e o músico terão um desfecho. A câmera, posicionada do lado de fora, nos leva a deslocar o olhar para a bruma sobre a bruma, do vidro sobre o vidro, do verde do filtro da câmera sobre o verde das árvores refletidas. Nessa cena, vemos, antecipada, a ausência futura do corpo de Blake.

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FIGURA 25: Frame do parabrisa do carro em Últimos Dias

FONTE: imagem extraída do filme

O devir da imagem-névoa enfeixa esse olhar estetificado do corte móvel em Van Sant. Tal consciência temporal efetiva-se em função do movimento das nuvens e dos reflexos a partir dos quais são apreendidas novas camadas de tempo. Vemos, por exemplo, na figura 25, uma composição de duplo pela ausência. Há duas pessoas dentro do carro, o empresário da gravadora e um detetive particular, travando um diálogo sobre o isolamento de Blake. No entanto, um céu branco, formado por nebulosidades - ou pelo menos assim fazendo surtir pelo seu efeito indicial projetado sobre o parabrisa - apaga a nossa visão objetiva e se coloca diante de nós à medida que o veículo avança pela estrada. Esta tomada dura alguns minutos, com variações de visibilidade do condutor e do passageiro do veículo, mas sempre numa perspectiva espectral. Temos, portanto, por alguns segundos, quando há a completa desaparição pelas nuvens, a efemeridade de um tempo do sublime, o céu confrontado com os olhos humanos no ecrã cheio. Espaço que se transforma em tempo e que se desmaterializa, algo que é posto também em traços de matéria desfeita de horizonte e percepção em virtude do corte, como na figura 14, uma das fotografias de Stieglitz. As abordagens artísticas de Stieglitz e Van Sant tratam de uma concepção temporal do espaço, uma temporalização da matéria, e, no caso do segundo Últimos Dias, ela opõe-se diametralmente ao cinema de ação desde o cinema falado a partir dos anos 1920 até os dias atuais. E, se voltarmos ao ponto de partida da fotografia, que estabelecemos neste texto, a estética vansantiana guarda pontos de distanciamento do fotodinamismo do início do Século 20, outra corrente que pregava o idealismo do movimento. A continuidade dinâmica não parece se impor como causa primeira para Van Sant, já que a repetição dos elementos é parte importante para se entender a 114

desmaterialização dos corpos; os gestos não lhe interessam, e, sim, a desaparição dos corpos. Umberto Boccioni e os irmãos Anton Giulio e Arturo Bragaglia, pioneiros do fotodinamismo, queriam definir uma trajetória contínua das ações no espaço em uma forma única. A decomposição, a divisão e o corte são princípios que se afastam da análise futurista que eles faziam (FABRIS, 2011, p. 112). Porém, em comum, os irmãos Bragaglia e Van Sant defendem a prefiguração da obra de arte. Com ou sem corte, com ou sem gesto, trajetória física ou desmaterializada, estamos falando aqui de artistas que tentam captar a possibilidade de uma metafísica do movimento. Tal percepção visual, a de uma realidade sem compromisso com a mimese, é o que enseja a tentativa de se estabelecer pontos de contato entre Van Sant com o pictorialismo e o fotodinamismo: é que eles falam da reconfiguração do tempo. Boccioni será influenciado diretamente pelo pensamento de Bergson, pela ideia do tempo homogêneo como uma quarta dimensão do espaço. A arte, para ele, seria a afirmação da existência do entendimento de um puro fluxo de duração. Portanto, a fotografia artística desses movimentos de vanguarda escapa à definição da imagem como uma testemunha do passado. Assim como o filme de Van Sant, que pela repetição do frame e da narrativa arrastada, em algumas vezes, assemelha-se ao instante fotográfico, o tempo nessas formas imagéticas dá-se pela convergência de acontecimentos (em função dos reflexos, do corte ou do dinamismo) e aquilo que se vê como fenômeno óptico. A fenda na imagem, que deixa de ser estanque, é o que vai instaurar nosso estoque de vivência e memórias afetivas. A névoa comporta-se como uma nuvem descida à Terra. Embaça a vista, torna o ambiente turvo. O olhar perde-se. De outro modo, a imagem-névoa é a multiplicação e repetição desse olhar perdido. Ela rebate, devolve, congela, libera e reduz a velocidade perceptiva de quem a vê e está dentro dela. Trata-se de um simulacro, que explicita o próprio código do cinema. A representação de Gus Van Sant em Últimos Dias tem, assim, um caráter profundo da imagem pela imagem. Fabris (2004), no livro Identidades Visuais - Uma leitura do retrato fotográfico, comenta as observações do pesquisador italiano Paolo Bertetto acerca desse tipo de predisposição artística que testa os limites imagéticos. A imagem que domina o horizonte metropolitano nunca é uma presença pura, e sim uma reduplicação, multiplicação, sobreposição de elementos heterogêneos, códigos, estratificações e reproduções de imagens. A imagem da imagem é uma mensagem que explicita imediatamente o próprio código, que sublinha a semelhança em detrimento da originalidade, impõe a repetição enfatizada de si, ou melhor a reprodução permanente e a auto-reprodução (FABRIS, 2004, p. 68) 115

A semelhança no caso vansantiano exacerba-se pela repetição dos gestos de Blake: ou ele está perambulando pelos jardins, movido pela resignação, ou detém-se em ensaios exaustivos no sótão do casarão, mergulhado em uma crise criativa. Mas, como lembra Fabris (2004) citando Bertetto, o artista pode romper tal indiferença da homogeneização da imagem por dois modos de simbolização – a multiplicação ou a anulação da imagem da imagem. Van Sant parece engrenar a primeira opção, à medida que abandona a função representativa para enveredar pelas possibilidades múltiplas das nuvens e seus reflexos. A imagem-névoa vansantiana, dessa forma, tem um escopo da diferença pela repetição prolongada. A indiferença passa a ser a diferença quando o filme conduz a uma suspensão radical e impassível do tempo. A duração e a mudança espiritual das coisas movem a câmera a um ponto de fuga moroso, posto que Van Sant simplesmente opta por uma narrativa excessivamente vazia. Dispositivo e personagens seguem em uma ciranda anacrônica, em que o acontecimento é secundário ou quase nulo. A nuvem é, assim, contraditória: reflete a mise en scène dilatada em sua forma, mas também é movimento, luz condensada em corpos que caminham.

Kilpp (2009) entende o conceito de duração de Bergson na sua análise do fenômeno do Big Brother Brasil, a estética de um reality show, de maneira análoga a como podemos enxergar Últimos Dias. O experimento vansantiano não deixa de engendrar uma espécie de reality show, na medida em que tenta registrar a vida de Blake em “tempo real, termo que se difundiu – e contaminou nossa mirada – em grande parte pelo que se chama assim na TV: a programação ao vivo” (KILPP, 2009, p. 2). Seguimos o curso dos derradeiros dias do músico de maneira detida e voyeurística. Vemos o que ele come, com quem ele conversa, onde toma banho, as roupas femininas que veste, as pausas de reflexão e silêncio etc. Os “últimos dias” do protagonista não são definidos em termos de contagem cronológica. Não sabemos quanto tempo se passa, o que é flashback ou flash forward, porque a narrativa gira em círculos, de forma a anestesiar nossa consciência. Não sabemos se o tempo passa, porque a narrativa transcorre-se no presente, como observa Kilpp sobre Bergson.

É na matéria, na forma – e no pensamento – que o tempo se torna apreensível e divisível. Entretanto, esse tempo é especializado, é uma figura do tempo, um incompossível realizado na série histórica. A esses tempos apreendidos chamamos de instantes, e eles são, para Bergson, fictícios, porquanto a duração se encontra no meio, escorrendo entre tudo que imobilizamos pelo pensamento, escapando a toda simbolização (Ibidem). 116

O tempo presente em Últimos Dias é, então, também um passado que não cessa de fluir. A isso Deleuze chama de devir, acontecimento puro que se dá na mudança, no movimento da memória (imagem virtual) à matéria (imagem atual), este sim, uma preconfiguração de realidade. Kilpp (2009) destrincha essa chave filosófica, que é plena abertura para se entender o emaranhado de tempo no filme vansantiano. Há, no entanto, um ponto de discordância deste artigo em relação aos posicionamentos da pesquisadora, quando ela diz que não existe imagem do tempo duração no cinema. Kilpp parte do pressuposto de que a TV trabalha com imagens produzidas de forma linear e que sofrem interferências da montagem artificial de molduras simultâneas na tela, que assim chama de molduras televisivas, criando a coalescência de tempos-duração. Porém, entendemos que é puramente discernível, embora de maneira distinta aos processos da TV, essa intervenção de um tempo externo na imagem vansantiana. Ora, estamos falando de um tempo passado que é reproduzido como presente na vida de Blake. Esse decurso cênico é amparado pela suspensão das nuvens, que compreende uma macroestrutura estética com microfios de tempo: ela é movimento de câmera e, ao mesmo tempo, reflexo simultâneo na imagem. Um exemplo da existência da imagem-duração em Últimos Dias é o momento em que Blake decide ensaiar mais uma vez no sótão. A diferença, desta vez, é que Van Sant decide filmar a cena de fora para dentro, tomando a perspectiva da janela. Ele faz essa tomada em uma das cenas mais arrastadas, em um único plano-sequência, portanto sem corte, com duração de cinco minutos e 34 segundos. O único movimento de câmera é operado em um lento zoom out, tendo como ponto de partida a janela do lado de fora em direção a uma visão macro da casa, com uma árvore frondosa ao lado da janela. A composição final do último enquadramento revela um dia ensolarado, possivelmente em um horário próximo ao meio-dia. Nesta cena, há um duplo compósito de tempo. Vemos, na figura 26, a construção de duas molduras de percepção visual dentro da janela, esta uma moldura-mor. A primeira, acima, é o espectro névoa, com o fluxo puro do tempo único. Ali, escorre uma enxurrada calma e silenciosa de um tempo-máter, aquele que origina e refunda. A representação simbólica que vimos compõe-se de galhos verdes, refletidos no vidro da janela. Símbolo da árvore vizinha à parede da casa, a imagem permite a leitura indicial das nuvens, já que por trás da copa está o céu de cor branca. O movimento dos galhos se assemelha a uma massa gasosa no céu, que some e desvanece em um dado momento, e em outro ela se refaz, condensa, sendo, assim, transformação 117

constante. A névoa faz-se presente, sobretudo na desaparição. Logo abaixo a essa moldura, há outra, ainda dentro da mesma janela, com o acontecimento da pré-morte de Blake, o desvario e o tempo caótico do jovem rapaz. Este é o primeiro compósito, puramente fotográfico. Na figura 27, podemos vislumbrar a segunda situação, desta vez empreendida pelo cinema em sua natureza particular, que é o movimento de afastamento lento da câmera. O espectador, até então limitado visualmente pelas molduras, terá o horizonte ampliado em virtude do prolongamento das bordas do quadro do filme. O cenário revela-se, a árvore torna-se matéria, outra janela aparece, e o ruído cresce. FIGURA 26: Frame da janela do quarto em Últimos Dias

FONTE: imagem extraída do filme

FIGURA 27: Frame em zoom-out de Últimos Dias, de Van Sant

FONTE: imagem extraída do filme

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A imagem-névoa é este distanciamento: visão objetiva, que investe o olhar sobre o objeto, conjugando cristais de tempo, a imagem cristal como a virtualização perfeita do futuro que já o pertence e o passado que ainda não o deixou de ser, atualizados no presente pelo olhar (DELEUZE, 2005, p. 88). Não apenas imagem, essa composição heterogênea de tempos, sutil condensação de nuvens, também é sonora: escutamos a voz de Blake e a música, passado e futuro implodidos em suas definições lineares e convertidos em fios de memória. Enquanto há essa preocupação de uma metafísica do corpo e da imagem em Últimos Dias, concorre outro esforço de Van Sant em desfigurar a identidade por uma essência do sujeito. Na forma como o diretor estabelece as filmagens, cria-se um despojamento do modelo na atuação dos atores. Trata-se, em suma, de uma arte da desaparição. Michael Pitt, em cenas comuns, apartadas da imagem-névoa, é sondado por uma câmera que não se preocupa em desvendar o aspecto mítico ou de gênio que o levou a não suportar mais a vida. Pelo contrário, suas ações são documentadas pelo o que há de mais banal. Outros personagens que habitam a casa, os amigos de Blake e os estranhos que circulam por ela, passam pelo mesmo processo, em que a empatia e a interação com a câmera colocam-se em primeiro plano. Eles são filmados conversando amenidades, fazendo sexo e assumindo gestos de uma marca identitária da juventude, a ideia de uma máscara que não é revelada em seu conteúdo, mas em sua aparência simples. Andy Warhol, mestre da desaparição da imagem na Pop art, é um dos pilares de influência para Van Sant, e tem essa estética refletida no filme. E o que Warhol fazia era supervalorizar a imagem sob o signo do consumo, suas imagens evidenciavam “uma superfície de aparição, de figuração, uma superfície virtual graças à qual o mundo impõe sua descontinuidade” (FABRIS, 2004, p. 76). O corpo nu de Blake é evidenciado em várias cenas, incluindo a de abertura, um longo plano-sequência na floresta em que o protagonista urina em um lago, de costas para o espectador, configurando uma encenação narcísica do corpo e do belo. A nudez repete-se na última tomada do filme, quando, ao morrer, o espírito do rapaz desencarna e sobe em direção ao céu. Novamente, os reflexos se multiplicam, a câmera se posiciona atrás da redoma de vidro e a luz se refrata. Mas, aqui, na figura 28, o corpo nu encenado não se aproxima de um corpo sensual e dessublimado, e sim, aponta para uma elevação da alma, com a matéria semelhante a um holograma. O desfecho parece indicar uma busca de Van Sant pela redenção. Após o corpo, ele dá vazão a coisas do 119

espírito. A imagem-névoa, então, perfaz o caminho da decomposição. O corpo se exaure e se autodestrói em um percurso em que não há solução.

FIGURA 28: Corpos de Blake morto e o desencarnado em Últimos Dias

FONTE: imagem extraída do filme

A imagem-névoa é a materialização estética de uma construção do tempo fílmico de Gus Van Sant, que parece expressar uma vontade de aprisionar a realidade pelas imagens. Ela pode ser presença material, árvores frondosas refletidas na janela. Também pode ser etérea, cosmogonia de uma ausência, a desaparição de quem está por trás do parabrisa de um carro. O que importa são a imagem e o tempo puros. Imagem por uma imagem frívola, comodificada, de desaparição não apenas da matéria mas também da identidade e do sujeito. A imagem-névoa, como o fetiche de um clichê, é também máscara. É rosto decupado visualmente para o bel-prazer da memória imagética, o alívio para a quase morte. Tentar captar o passado por imagens é um ato nebuloso, de nuvens cúmulo- nimbos. Van Sant aponta, em Últimos Dias, que o espectro da nuvem é também o que o aprisiona. Parece uma faina proustiana, como explica Susan Sontag acerca de uma memória que é acionada involuntariamente, as migalhas visuais em vez do gosto das madeleines: A estratégia do realismo de Proust presume a distância daquilo que é normalmente experimentado como real, o presente, a fim de reanimar aquilo que em geral se pode alcançar apenas de forma remota e nebulosa, o passado 120

– que é onde o presente se torna real no sentido de Proust, ou seja, algo que pode ser possuído (SONTAG, 2004, p. 180) Van Sant tensifica a sua relação com o cinema nessa tentativa de narrar algo, mas solto em um campo enunciativo. A imagem pela imagem deixa entrever outro caminho, a fluidez de uma mise en scène que é a própria névoa em si: leve, gasosa, delicada. Opta pela corporificação do fenômeno imagético, o corte transformado em devir-janela, que resulta na desmaterialização (e morte simbólica) de Blake, o tempo que é cristal suspenso no ar. Matéria que é revestida de névoa, de tempo que corta o céu, inescapável às mãos e ilusoriamente revivida.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cinema de Gus Van Sant, como se quis explicitar nestas páginas, é uma expressão da delicadeza. Sentimento que se converte no ecrã de forma tênue. Uma sutileza conceitual que se espraia por cinemas transnacionais. Não é um estar-no-mundo singular nem solitário. Condiz com um tipo de ruptura que enfeixa não o novo cinema (no sentido de um futuro positivista), mas algo que ficou lá atrás esquecido, o Rosebud perdido, o cinema silencioso, uma estética devedora da imagem poética amparada pela leveza. “A delicadeza não é, portanto, só um tema, uma forma mas uma opção ética e política, traduzida em recolhimento e desejo de discrição em meio à saturação de informações” (LOPES, 2007, p. 18). A nuvem perfaz, como um elemento indicial e intersticial, a vontade inata de Van Sant por uma arte que seja ao mesmo tempo imagética e suave. Que seja o ponto de fuga do ser preso à sua própria condição, a possibilidade de uma transcendência, o alívio de uma dor crônica ou momentânea, a dilatação de tempos comprimidos ou acelerados, a chance de contemplação, a fagulha de um devaneio onírico, o desinteresse etc; ou simplesmente nada. Como uma metáfora fílmica, figurativa, vapor que avança sobre o céu, ela pode representar o nada. É isto que a nuvem se caracteriza: pode ser tudo ou nada. Ela é pura apresentação. Se a nuvem é um estado do ser, uma presença, um motif poético vansantiano, a imagem-névoa é um processo. Trata-se de um devir fílmico, por isso achamos pertinente evocá-la junto aos pensamentos de Deleuze na tarefa de circunscrever a fase da Trilogia da Morte. Mesmo que não se posicione como um cineasta-filósofo, é muito claro que Van Sant pretende incitar um desconforto, deixar um resíduo inquietante, abrir a mente dos espectadores para algo que está defronte à visão, mas, que por algum motivo, esconde-se na invisibilidade ou na indiferença. O afeto vansantiano é afeto deleuziano porque “funciona como uma ‘onda de choque’ para o pensamento que, reflexivamente, leva a pessoa a ver, ouvir ou a sentir coisas que antes não via, ouvia ou sentia – ‘ver com outros olhos’ ou a ‘pensar de outro jeito’ a mesma coisa” (LIMA et ALVARENGA, 2012, p. 35). Tal enfrentamento é passível de uma crítica paradoxal, a do antídoto que ataca a si mesmo: ao propor uma saída puramente imagética, Van Sant poderia altercar com o mundo da saturação. Imagens delicadas, assim, podem nem ser lidas, diante de uma 122

tessitura imperceptível: serão apenas mais imagens perante o volume incontável de dados nos dias atuais. Segundo Sontag (2003), mostrar o sofrimento alheio, o afeto da dor pelo outro (o outro afeto, no sentido de sentir o diferente), tornou-se algo moralmente errado. “As imagens têm sido criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distância, como se existisse algum outro modo de ver. Porém, ver de perto – sem a mediação de uma imagem – ainda é apenas ver” (SONTAG, 2003, p. 98). Aqui, a fala originalmente refere-se à fotografia, mas é perfeitamente aplicável ao caso da Trilogia da Morte, que toca em tragédias reais e as reconta ficcionalmente a partir de um dispositivo que mantém o foco (muito) próximo. Elefante é a desfragmentação narrativa das notícias sobre o massacre de Columbine, enquanto Últimos Dias acompanha o definhamento de um músico de rock até o ato do suicídio. E Gerry é inspirado em um recorte de jornal sobre o caso verídico de dois rapazes que se perderam no deserto. Mas, como a própria Susan Sontag dissera, o problema não é que essas imagens vêm se somar à prevalência da tristeza, ou que a arte esteja invariavelmente chata, a questão é que as imagens devem existir. “Nada há de errado em pôr-se à parte e pensar” (Ibidem). A imagem-névoa conflui, portanto, este momento na filmografia vansantiana em que o afeto como sentimento transforma-se em afeto do pensamento do cotidiano, sem negar ou aceitar de forma peremptória um ou outro. Denominamos este conceito e atribuímos ele a Van Sant por unir dialeticamente corpo e mente, sentimento e razão, realidade e dispositivo, imagem e matéria dentro da formação que é a nuvem. Esta, ente gasoso e estado onipresente, passa a desafiar a visão com a Trilogia da Morte, criando choques, quebrando monolitos de tempo, restabelecendo sentidos e abrindo margem para novas interpretações. E, ao fim do processo, conclui-se que não há um desfecho único, mas uma transformação constante, de um vir-a-ser já sendo. Então, se a imagem- névoa é um interstício, que abre fendas e estabelece novas relações, estamos falando de um cinema que é leveza na forma, mas pensamento pelo prisma estético. “É o interstício que é primeiro com relação à associação, ou é diferença irredutível que permite escalonar semelhanças... É o método do ENTRE, ‘entre duas imagens’, que conjura todo o cinema do UM” (MACHADO, 2009, p. 296). Ou como Béla Tarr descreve ao ver seu próprio cinema: “Eu tenho de reconhecer que é algo cósmico [...] Não é apenas social, não é apenas ontológico, é algo maior. E é por isso que expandimos [o tempo]” (TARR apud MCLAREN, 2013, p. 1). 123

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