Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação Diversity of ethnobotanical uses of the azorean native flora. Woods, games, symbolism and ornamentation Diversité des utilisations ethnobotaniques de la flore indigene des açores. Bois, jeux, symbolisme et ornementation Diversidad de usos etnobotanicos de flora nativa de las azores. Maderas, juegos, simbolismos y ornamentación

Mauro Ponte* Eduardo Dias*

Recebido em 25/01/2016; revisado e aprovado em 30/03/2016; aceito em 27/04/2016 DOI: http://dx.doi.org/10.20435/1984-042X-2016-v.17-n.4(03)

Resumo: Este estudo teve como finalidade a recolha e sistematização de dados etnobotânicos referentes às relações desenvolvidas entre o povo insular Açoriano e a flora nativa. O método de recolha de informação assentou em dois modelos de entrevistas, a entrevista informal e a entrevista estruturada. Algumas das plantas citadas pelos entrevistados já ostentavam utilizações descritas na literatura. Todavia verificou-se que, em 54 utilizações referidas, distribuídas por 4 classes de uso, 25 são citações novas, das quais sete são atuais e 18 pertencentes a um passado recente, abrangendo um total de 13 espécies. Palavras-chave: etnobotânica; flora; usos. Abstract: The study was aimed at the collection and systematization of ethnobotanical data on relationships developed between the Azorean islands people and the native flora. The information collection method was based on two models of interviews, i.e., informal interview and a structured interview. Some of the mentioned, already bore uses described in literature. However, it was found that of the 54 mentioned uses, distributed by 4usage classes, 25 are new quotes, of which, 7 are current and 18 belong to a recent past, covering a total of 13 species. Key words: ethnobotany; flora; uses. Résumé: L’étude a visé la collecte et la systématisation des données ethnobotaniques sur les relations développées entre les habitants des ‘îles des Açores et la flore indigène. La méthode de collecte de l’information a était basée sur deux modèles d’entretiens, à savoir, entretien informel et l’entrevue structurée. Certaines plantes mentionnées, portaient déjà utilisations décrites dans la littérature. Cependant, il a été constaté que, des 54 utilisations citées, distribués par 4 classes d’utilisation, 25 sont de nouvelles citations, dont 7 sont en cours et 18 appartiennent à un passé récent, couvrant un total de 13 espèces. Mots-clés: ethnobotanique; flora; utilisations. Resumen: El estudio tuvo como objetivo la recopilación y sistematización de los datos etnobotá- nicos en las relaciones desarrolladas entre los habitantes de las islas de Azores y la flora nativa. El método de recogida de información se ha basado en dos modelos de entrevistas, es decir, la entrevista informal y una entrevista estructurada. Algunas de las plantas mencionadas, ya llevaban usos descritos en la literatura. Sin embargo, se encontró que, de las 54 utilizaciones mencionadas, distribuidas en 4 clases de uso, 25 son nuevas citas, de las cuales, 7 son actuales y 18 pertenecen a un pasado reciente, que abarca un total de 13 especies. Palabras clave: etnobotánica; flora; aplicaciones.

* Universidade dos Açores, Angra do Heroísmo, Açores, Portugal.

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1 INTRODUÇÃO 2007). É na floresta que o povo consegue encontrar um pouco de todos os recursos, O termo etnobotânica foi utilizado, elementos que são essenciais na constru- pela primeira vez em 1896, pelo botânico ção da paisagem. Provavelmente, por essa americano William Harshberger (1996), razão, o povo açoriano foi construindo para designar o estudo da relação que símbolos e ícones que ajudaram a perpe- surgia entre os seres humanos e as plantas tuar e a valorizar a cordial relação com a utilizadas por eles. Desde então, a defi- floresta natural (DIAS, 2007). A relação nição dessa ciência tem sido submetida das pessoas com a floresta, como fornece- a diversas alterações com o objetivo de dor de serviços e recursos sustentáveis, é encontrar, tal como em outras disciplinas, muito forte, no sentido em que expressa o uma teoria unificadora. Por ser aquela que encontro de duas distintas realidades mas se considera a mais adequada à natureza inseparáveis, num ciclo que, certamente, da investigação, utilizou-se a definição ainda não se finalizou. A floresta é talvez, proposta por Wickens (2001), que define de acordo com Dias (2007), o ecossistema a etnobotânica como uma ciência multi- que maior relação cultural estabeleceu disciplinar que aborda as mútuas relações com o ser humano, determinando padrões desenvolvidas entre as culturas humanas de sociedades e vivências regionais. e as plantas autóctones, quer no passado, Reconheceram-se assim, muitas quer no presente (WICKENS, 2001). Na das potencialidades da vegetação e a sua definição, Wickens inclui a concepção utilidade de algumas plantas da floresta. de Nabhan (1985), segundo a qual as plan- Apesar da reduzida literatura existente, tas nativas de uma determinada região alguns autores (RAMOS, 1871; RIBEIRO, são aquelas que foram domesticadas em 1964; MARTINS, 1992; FRUTUOSO, 1998; tempos pré-históricos, e que apresentam DIAS, 2007) destacam várias plantas características morfológicas e fisiológicas com propriedades notáveis, no que diz adaptadas ao solo e ao clima da região. respeito ao seu emprego na indústria, na O primeiro encontro do ser huma- agricultura e na arte. no europeu quatrocentista com as ilhas A etnobotânica da flora nativa dos Açorianas desabitadas foi uma surpresa, açores é uma área científica que se encon- transmitida, essencialmente, pela forte tra pouco explorada na região. A carência densidade de cobertura vegetal que as de estudos dessa natureza é uma realida- envolvia (DIAS, 2007). A sobre-exploração de, e a reduzida bibliografia demonstra antropogénica devastou parte significati- esse mesmo fenómeno. A literatura, nor- va desse coberto constituído por um nú- malmente, aborda as relações que ocorrem mero relativamente limitado de espécies entre o povo e as plantas num contexto (GASPAR, 1993). generalizado, e geralmente referente a um Ao longo de vários anos, muitas passado distante. Porém as descrições e as pessoas ficaram dependentes dos recursos investigações realizadas não se limitam naturais presentes nas ilhas. Os principais apenas às espécies naturais. De acordo recursos explorados eram as madeiras, com os levantamentos e registos biblio- com um papel fundamental na construção gráficos assumidos como etnobotânicos, as de casas, reparação naval, alfaias1 (grades, espécies nativas e exóticas são analisadas e arados, timões, cangas e canzis), produção tratadas de igual modo, sendo este aspeto de combustível (lenhas e carvão) e, mais causador da falta de especificidade no que tarde, na construção de móveis (DIAS, respeita à etnobotânica natural. Desse modo, surge a necessidade de se realizar 1 Instrumentos e ferramentas rudimentares de estudos etnobotânicos direcionados, ex- apoio às atividades agrícolas. clusivamente, à flora natural.

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 579 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação

2 OBJETIVOS ­administrativos, envolviam pequenos enclaves ou remanescentes de vegetação O estudo tem como principais obje- natural. tivos a recolha e a sistematização de infor- mação, em termos gerais, respeitante às Tabela 1 – Lista de freguesias representa- relações que surgem entre o povo insular das pelos informantes entrevistados. e a flora da vegetação natural dos Açores, Freguesia Ilha quer num passado recente, quer também Terra-chã no presente. Pretende-se, de igual modo, Conceição através da sua ordenação, salvaguardar São Mateus esse saber tradicional, transpondo-o para Cinco Ribeiras Terceira os tempos atuais, e contribuir, simultane- Doze Ribeiras amente, para o aumento do conhecimento São Bartolomeu científico que compõe o património etno- Posto Santo Madalena Pico botânico da região.

A localização dos informantes foi 3 MATERIAL E MÉTODOS realizada através de contactos prévios com trabalhadores da administração local, Para a elaboração de um estudo Igrejas, Juntas de Freguesia, organizações etnobotânico nos Açores, e perante a ca- de Solidariedade e desenvolvimento rência de trabalhos nessa área científica, Social quer também por contactos pesso- foi necessário efetuar uma pesquisa bi- ais, tal como refere Carvalho (2006). Foi bliográfica cuidada sobre a teoria da etno- mantida uma atenção especial relativa- botânica, devido, fundamentalmente, ao mente ao surgimento de redes informati- cariz multidisciplinar que essa ciência de vas secundárias provenientes de contatos domínio qualitativo comporta (BALICK; iniciais estabelecidos, sendo estas, por COX, 1996). Foi essencial integrar um con- vezes, portadoras de informação poten- junto de instrumentos de análise comuns cialmente credível. a outras áreas do conhecimento científico Outro critério considerado foi a como a botânica, ecologia e antropologia. idade dos informantes, que devia ser ≥ 60 anos ou, em alguns casos, idade inferior, 3.1 Caraterização dos informantes e particularmente, quando a informação área de estudo lhes tivesse sido transmitida pelos pais, avós ou até mesmo por pessoas idosas O início da investigação consistiu, mais chegadas. Foram escolhidos, estra- em primeiro lugar, na seleção de locais tegicamente, aqueles que mantinham ou estratégicos, adequados ao desenvolvi- mantiveram uma estreita relação com as mento do estudo. O estudo ocorreu na características representativas dos siste- ilha Terceira, com exceção de um caso mas de vida do passado. A investigação na ilha do Pico, nas freguesias (Tabela deu-se no período compreendido entre 1) que, num contexto histórico e atual, maio e julho de 2012. A amostra foi com- incluíam pessoas com sistemas de vida posta por um conjunto de dez informan- que, direta ou indiretamente, estavam tes, sendo nove de género masculino e relacionados com a utilização de recursos uma pessoa do género feminino. A idade provenientes da floresta natural. Foi igual- mais baixa registada foi de 44 anos, por mente tido em consideração, sempre que outro lado, a mais elevada foi de 84 anos. possível as freguesias que, devido à sua Sete dos entrevistados exercem ou exerce- localização geográfica e aos seus limites ram profissões diretamente relacionadas

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. 580 Mauro Ponte; Eduardo Dias com o uso das plantas (agricultor, jardi- momento ideal para estabelecer empatia, neiro, carpinteiro, restaurador e pastor), sendo privilegiada a discussão de temas mas também surgem na amostra uma mais comuns e consensuais, referindo doméstica, um padre e um presidente de frequentemente e claramente quais os junta de freguesia. objetivos e as motivações do trabalho. O investigador estava orientado para uma 3.2 Coleta de Dados atitude mais modesta, livre de precon- ceitos e, simultaneamente, consciente de O método de recolha de dados as- que o entrevistado era detentor da infor- sentou, essencialmente, em dois modelos mação e, como tal, mais sabedor do tema. de entrevistas com questões previamente Contudo, como refere Alexiades (1996), concebidas, nomeadamente, a entrevista foi mantida uma especial atenção perante informal e, posteriormente, entrevista assuntos mais sensíveis, estando o inves- estruturada. A informação gerada foi tigador consciente da delicada sensatez registada com auxílio de um gravador que separa a curiosidade do respeito pelos multimídia, tendo em atenção a seguran- assuntos abordados. ça emocional e o conforto do informante em relação ao emprego dessa tecnologia. 3.4 Entrevista estruturada Caso fossem reveladas perturbações no decorrer da entrevista, relacionadas com Na preparação da entrevista estru- a utilização do aparelho, este seria, ime- turada, foi elaborado um conjunto de diatamente, suspenso prevenindo assim, questões filtradas (originadas da entre- a perda de qualidade na informação e a vista informal), compostas por perguntas rutura da empatia inicialmente estabe- diretas e fechadas, fundamentais para o lecida. Sempre que possível e de acordo âmbito do estudo. Esse modelo de entre- com a natureza da comunicação, foram vista permite um maior controle da dire- realizadas turnês guiadas pelo campo na ção tomada pelo fluxo informativo para companhia do informante com a finalida- que se obtenha uma maior objetividade; de de validar os dados cedidos no decurso daí a sua vulnerabilidade, pois pode per- das entrevistas. mitir a introdução de erros devido ao uso de questões inapropriadas por parte do 3.3 Entrevista informal investigador (CARVALHO, 2006).

A entrevista informal é um processo 3.5 Questões dinâmico, cujo valor científico dependerá do contexto em que se desenvolve e da Na sua construção e enunciação, as perícia do investigador. Desse modo, fo- questões foram desprovidas de elevado ram adotadas determinadas regras sociais grau de complexidade (Tabela 2). Na rea- imprescindíveis, para que a presença do lização das perguntas, houve o cuidado de investigador fosse aceite e valorizada pe- não transmitir ao entrevistado, a percep- los locais (ALEXIADES, 1996). O contacto ção de que se espera ansiosamente pelas com os informantes principiou com uma respostas, pois esse grave erro pode levar breve apresentação pessoal, seguida de a que o entrevistado, por impulso, forneça uma explicação dos objetivos pretendidos informações distorcidas ou até mesmo e, finalmente, de que modo o entrevistado erradas sobre a natureza das utilizações poderia ajudar a alcançá-los. Este foi o (BERNARD, 1988; ALEXIADES, 1996).

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 581 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação

Tabela 2 – Exemplos de questões colocadas aos informantes, consoante a tipologia de entrevista aplicada. Adaptado de Mendiola (2005) e Carvalho (2006).

Tipos de questões estabelecidas para Tipos de questões estabelecidas para entrevista informal entrevista estruturada Que plantas utiliza na sua alimentação, ou Época de recolha? que tenha utilizado? Já colheu frutos ou plantas da floresta Quantidade recolhida? natural? Recorda-se de algum remédio tradicional Como reconhece a planta? para a saúde? Utiliza algum? Como se conserva após a colheita? Conhece algum conto ou historia, relacionado com as plantas? Quais os seus nomes vernáculos? Recorda-se de alguma brincadeira, jogos de Quem, quando, onde recolhe? crianças/adultos, que envolva plantas? Já preparou bebidas derivadas de plantas da Uso tradicional, quem utiliza, como se floresta natural? utiliza, onde se utiliza? Lembra-se de como ou de que materiais se construíam as habitações no passado? Se a planta é uma cultivar existe algum protocolo para o seu cultivo e colheita (hora Que outro tipo de utilização material dava do dia, ciclo lunar, estação do ano)? as plantas? Que plantas utilizava ou utiliza para No uso medicinal, órgão da planta alimentar os animais da quinta ou empregado, quantidade utilizada, domésticos? processamento, armazenamento, doença tratada/efeitos, administração (interna, Que tipo de combustível utilizava em sua externa etc.), terapias complementares, nome casa? local da doença, outros aspetos?

As questões colocadas não pode- convicção de que a cultura urbana e os riam conter, de forma direta ou indireta, seus ­representantes questionam as tradi- a própria resposta, pois essa ação, pro- ções rurais com um elevado número de vavelmente, conduziria o informante preconceitos (ALEXIADES, 1996). a confirmar e a determinar a hipótese, viciando e inquinando os resultados da 3.6 Organização dos dados entrevista. Durante as repostas fornecidas, o informante nunca foi interrompido, Os dados que apresentaram utiliza- pois como Whyte (1982) refere, supõe-se ções não descritas na literatura investiga- que a intermissão é uma manifestação da foram assumidos como novos usos e de impaciência latente e, portanto, uma organizados sob dois aspetos do contexto circunstância jamais justificável numa temporal, ou seja, os atuais e os que se refe- entrevista de cariz etnobotânico. rem a um passado recente. Foram conside- Por último, no decorrer das entre- radas utilizações atuais, aquelas que ainda vistas, o investigador não manifestou a eram exercidas pelo informante ou as que sua desaprovação ou qualquer outro tipo praticou no seu passado. Os dados rela- de julgamento perante o informante ou tivos ao passado recente correspondem pela informação fornecida. Essa situação àqueles que foram citados pelos entrevis- foi, particularmente, adequada, pois é tados ou transmitidos por seus ascenden- comum verificar-se, nas áreas rurais, a tes, mas que não apresentam utilizações

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. 582 Mauro Ponte; Eduardo Dias atuais. Optou-se por ordenar as plantas utilizações, surge o grupo dos Símbolos utilizadas e mencionadas pelos entrevis- e, finalmente, os dois restantes grupos, tados em quatro classes de uso: Madeira; ambos, com 10% das citações (Figura1). Jogos; Simbolismo e Ornamentação. Essa escolha centraliza-se, essencialmente, no 37 caráter análogo que as diversas utilizações 40 35 demonstraram possuir. 30 25 20 15 7 5 5 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 10 5 0 Das entrevistas realizadas, contabi- lizou-se um total 54 utilizações (Tabela 3) distribuídas por quatro classes de uso. A classe das Madeiras com 67% das referên- Figura 1 – Total de utilizações citadas cias destaca-se, substancialmente, das ou- pelos entrevistados, distribuídas por 4 tras etnocategorias. Seguida, com 13% das classes de uso.

Tabela 3 – Utilizações etnobotânicas citadas pelos informantes, no decorrer das en- trevistas, de plantas pertencentes à flora natural dos Açores. Os nomes científicos das espécies estão de acordo com a lista de referência realizada por Dias et al. (2010).

Informantes Espécie Nome comum Órgão da planta Utilizações (Seub.) Braços de Violas; Restauro de Cedro-do-mato Tronco e ramos Antoine. cadeiras e mesas; Cavernas de barcos A Grades de arados; Timões; Maços de Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Troncos e ramos madeira (Seub.) Franco. Loureiro Troncos e ramos Timões; Cangas Juniperus brevifolia (Seub.) Tronco, restos de Estrutura dos telhados (tirantes); Cedro-do-mato Antoine. madeira Carrocinhas Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Ramos Piões Morella faya Ait Faia-da-terra Tronco Estrutura dos telhados (tirantes). Arte pictórica; Símbolo de estatuto Dracaena draco (L.) L. Dragoeiro Seiva da planta B social Símbolo de longevidade e fidelidade; Hedera azorica Carr. Hera Planta e folhas Ornamentação e decoração Angelica spp. Angélica Planta Citada na bíblia Polypodium azoricum Crenças terapêuticas de Polipódio Frondes (Vasconcellos) R. Fern. desintoxicação Morella faya Ait. Faia-da-terra Ramos Brincadeiras de criança Hedera azorica Carr. Hera Folhas e umbelas Decoração e ornamentação C Decoração na época natalícia; Laurus azorica (Seub.) Franco Loureiro Ramos e folhas Combustível Calluna vulgaris (L.) Hull Queiró Tronco e ramos Combustível (lenha) D Hochst. Vassoura Tronco e ramos Combustível (lenha) Construção de habitações; Eixo do Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Tronco e ramos carro de bois; Atafonas; Fabrico de móveis Estrutura de suporte dos tetos; Pipas Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Tronco e ramos de vinho; Potes de vinho; Calçado Antoine (galochas); Móveis; Carvão E Morella faya Ait. Faia-da-terra Tronco e ramos Estrutura de suporte dos tetos. Peças de mobiliário; Torneados; Frangula azorica V. Grubow Sanguinho Tronco e ramos Cangas; Alfaias Espécies plantadas em Espécies arbóreas naturais vértices de campos Todos os órgãos Alfaias agrícolas

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 583 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação

Informantes Espécie Nome comum Órgão da planta Utilizações Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Tronco e Ramos Oratório; Galochas Antoine Laurus azorica (Seub.) Franco Louro Ramos Combustível (lenha) azorica F Erica azorica Hochst. Urze Tronco e ramos Combustível (lenha) Daucus azoricus (Franco) Rivas Caule, folhas e Ornamentação (arranjos florais em Mart., Lousã, Fern. Prieto, E. Cenoura-burra Inflorescências jarras) Días, J.C. Costa & C. Aguiar Umbilicus spp. Coucelos Folhas Brincadeiras de Crianças Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Tronco e ramos Galochas; Pipas e jarros vinho Antoine Calluna vulgaris (L.) Hull Rapa Tronco e ramos Combustível (lenha) Erica azorica Hochst. Vassoura Tronco Carvão G Laurus azorica (Seub.) Franco Louro Tronco e ramos Alfaias agrícolas. Morella faya Ait. Faia-da-terra Tronco Construção de tetos Frangula azorica V. Grubow Sanguinho Tronco e ramos Alfaias agrícolas Área natural dos mistérios Antigo curral, com história religiosa negros associada Laurus azorica (Seub.) Franco Louro Ramos Cabos para utensílios agrícolas Galochas; Cadeiras; Alfaias Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Tronco e ramos agrícolas; Potes; Selhas; Baldes e Antoine Lenha H Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Troncos Bola do tradicional jogo do Emboca. Morella faya Ait. Faia-da-terra Planta Sebes (abrigos) Lenha; Tinchão (suporte em formato Erica azorica Hochst. Urze Troncos e ramos de forquilha utilizado para elevar as videiras do solo); Carvão Laurus azorica (Seub.) Franco Louro Raiz Carvão Ilex azorica Gandoger Azevinho Ramos e folhas Lenha Cavernas; Galochas; Potes; Pipas de Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Tronco e ramos vinho; Selhas; Banheiras; Antoine I Recipientes para o gado beber água Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Ramos Canzis Erica azorica Hochst. Urze Troncos e ramos Canzis; Carvão para os ferreiros Hypericum foliosum Ait. Maltrage ou Maltraje Planta Símbolo de maldição J Frangula azorica V. Grubow. Sanguinho Ramos Bucheiros (Pesca); Cantadeiras Juniperus brevifolia (Seub.) Cedro-do-mato Troncos e ramos Galochas; Cavernas; Miniaturas Antoine. Picconia azorica (Tutin) Knobl. Pau-branco Troncos Fuso (Lagar) Morella faya Ait. Faia-da-terra Troncos e ramos Tirantes; Traves (tetos) Tingimento de armadilhas de pesca treleasei Gand. Folhado Casca para as camuflar; Fabrico de chalupas (pequeno barco à vela) Laurus azorica (Seub.) Franco. Loureiro Planta S/ raízes Festejos de São João

No decorrer das entrevistas, foram respetivamente, 16% e 12% das aplicações, citadas pelos informantes 13 espécies enquanto todas as espécies dispõem ape- vegetais com usos não referidos nas prin- nas de uma aplicação. cipais e pertinentes referências bibliográ- No contexto temporal, foram iden- ficas analisadas. A classe das Madeiras tificadas 7 utilizações atuais, sendo a é aquela que possui mais referências, espécie Laurus azorica a mais citada com somando 44% das utilizações, sendo a duas utilizações, seguindo-se as restantes espécie Juniperus brevifolia a mais citada plantas apenas com uma aplicação cada com três usos. A Piconia azorica, junto com uma. Foram registadas ainda 18 utiliza- a Frangula azorica, são as menos referidas ções pertencentes a um passado recente do grupo, ambas com uma aplicação destacando-se, significativamente, do va- apenas. As restantes espécies apresentam lor assinalado para os usos atuais. A espé- dois empregos cada uma. Seguidamente, cie Juniperus brevifolia aparece em primeiro com 28%, surge a classe dos Símbolos, lugar com três referências. Seguidamente, em que a espécie Hypericum foliosum se surgem três espécies, nomeadamente, a destaca ligeiramente das restantes, com 2 Piconia azorica, Laurus azorica e Viburnum utilizações. As outras duas categorias, ou treleasei. Finalmente, e com apenas uma seja, Jogos e Ornamentação, representam, referência, ocorrem as restantes espécies.

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Tabela 4 – Classes de usos citados pelos entrevistados em dois contextos temporais e que não se encontram referenciados na literatura.

Contexto Temporal Espécies Madeira Símbolos Jogos Ornamentação Utilizações Passadas Utilizações Atuais recentes

Miniaturas em Braços de viola; Oratório; Juniperus brevifolia 3 1 1 3 madeira Carrocinhas Piconia Azorica 1 1 Bola emboca; Pião 2

Paus para espetadas; Carvão a partir das raízes; Laurus azorica 2 1 1 Festejos São João 2 Decoração época natalícia 2

Frangula azorica 1 Elaboração de bucheiros 1 Erica azorica 2 Tinchão 1 Chamuscar suínos 1 Viburnum treleasei 2 Chalupa; Fertilizante 2 Dracaena draco 1 Estatuto social 1

Hedera azorica 1 1 Decoração 1 Longevidade e fidelidade 1

Polypodium Crença terapêutica 1 1 azoricum (desintoxicação)

Nova designação Hypericum foliosum 2 para nome comum 1 Maldição 1

Área natural dos 1 Culto Espírito Santo 1 mistérios negros Morella faya 1 Bonecas 1 Umbilicus spp. 1 Desenhos ornamentais 1

Decoração Daucus azoricus 1 1 (Habitações, igrejas)

Total 11 7 4 3 7 8

Os informantes inseridos nas dinâ- 5 MADEIRAS micas urbanas demonstraram-se, tenden- cionalmente, “contaminados” pelo saber Segundo os informantes, as espécies académico. Esse aspeto foi colocado em lenhosas (arbóreas e arbustivas) eram particular evidência pelos próprios en- aquelas que detinham mais utilizações no trevistados no decorrer das entrevistas, passado devido, em parte, à boa qualidade nomeadamente, através de constantes que as madeiras dessas espécies apresen- citações bibliográficas ou de comentários tavam, mas também, por serem recursos suportados pela informação disponível naturais que estariam mais disponíveis na internet. às populações locais. Atualmente, o uso Por outro lado, os informantes enqua- dessas madeiras, e de acordo com os drados nos sistemas de vida rurais foram dados provenientes dessa amostragem, aqueles que se apresentaram menos in- é praticamente inexistente, exceto raras fluenciados pelo conhecimento acadêmico. exceções, como veremos adiante. Em boa verdade, confirma-se que é, nessa A espécie Juniperus brevifolia, no esfera, que podemos encontrar potenciais passado era usada para fabricar braços amostras da tipologia da informação que se de violas, cavernas de barcos, armação pretende no âmbito da etnobotânica. dos telhados, carvão, oratórios, janelas,

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 585 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação selhas2, baldes, banheiras, alfaias, lenha identificada apenas uma utilização atual: e galochas3. Essa madeira também servia os ramos, fortemente aromáticos, que cons- para restaurar mobiliário como arcas, tituem essa planta são usados para fazer mesas e cadeiras, sendo, igualmente, espetos nos churrascos, atribuindo um utilizada na indústria vitivinícola, nome- sabor particularmente distinto à comida. adamente, na elaboração de pipas, potes e A madeira da espécie Morella faya, jarros de vinho. Destaca-se uma utilização conhecida vulgarmente por Faia-da-terra, recente relacionada com o emprego da era, segundo os entrevistados, utilizada sua madeira, tendo-se verificado que uma apenas para elaborar a estrutura de supor- das pessoas entrevistadas dispõe de uma te dos tetos que compõem as habitações, impressionante coleção de miniaturas que mais precisamente, no fabrico de tirantes4. replicam detalhadamente alfaias e instru- A Frangula azorica, vernaculamente mentos agrícolas tradicionais. O reconhe- designada por Sanguinho, exibia um uso cimento deste trabalho está representado semelhante ao do Louro, sendo igualmen- e inserido no roteiro turístico artesanal da te usada para criar a cantadeira do antigo freguesia de Santo Amaro na Ilha do Pico. carro de bois. No entanto, ainda surgem A madeira da Picconia azorica era outros usos associados como, por exem- utilizada no passado para construir al- plo, o fabrico de algumas alfaias, cabos faias agrícolas, atafonas, fusos de lagar, de bucheiros (pesca), peças de mobiliário móveis, peças de carros de bois e alguns e torneados. aspetos da construção de residências. A madeira derivada das espécies Porém essa planta ostentava um emprego Calluna vulgaris e Erica azorica servia para particularmente interessante, isto é, servia alimentar energeticamente os antigos para fabricar a bola do tradicional jogo fornos, principalmente, através da sua do emboca, praticado na Ilha Terceira. lenha, mas também por meio de carvão Atualmente, essa espécie ocorre com previamente elaborado. Os ramos dessas pouca abundância na ilha, e por essa ra- espécies, junto com a sua folhagem, de- zão, a matéria-prima usada para fabricar pois de incendiados, eram utilizados para o esférico foi substituída pela madeira chamuscar os pelos do corpo de suínos na do Metrosidero excelsa, que é uma espécie tradicional matança. introduzida e naturalizada. Com pequenos ramos, provenientes No passado recorria-se à madeira de dessas espécies, em formato de forquilha, Laurus azorica para fabricar alfaias como, constrói-se um suporte que se dá pelo por exemplo, os arados, os timões e as can- nome de tinchão e que serve, essencial- gas, sendo, igualmente, uma planta muito mente, para manter as videiras mais ele- boa para produzir cabos de utensílios vadas do solo, proporcionando à planta agrícolas, sobretudo, devido à suavidade uma eficaz ventilação sendo um processo que a madeira exibe. Esta servia também determinante para garantir a redução de para produzir carvão, mas apenas a partir fungos patogênicos. A utilização deste das suas raízes. Outra utilização era a ela- artefacto implica, simultaneamente, um boração da cantadeira dos antigos carros melhoramento da incidência luminosa so- de bois, que originava o tradicional e ca- bre cachos de uvas. Esse processo permite, racterístico chiar que esses carros emitiam. em conjugação com a natureza basáltica De acordo com as entrevistas efetuadas, foi das rochas locais, um adequado amadu- recimento dos frutos, conferindo-lhes um

2 Vaso de madeira em formato circular com as sabor discriminadamente único. bordas baixas. 3 Calçado (o mesmo que tamancos) rudimentar 4 Viga comprida em madeira que serve para elaborado a partir de madeira. suportar o telhado de habitações rurais tradicionais.

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. 586 Mauro Ponte; Eduardo Dias

De todas as utilizações referidas quando correlacionamos essa informação no que respeita ao emprego da madeira, com a literatura antiga (e.g. quinhentista), destaca-se uma, carateristicamente curio- que existe uma considerável concordância sa, ou seja, o emprego do tronco da espécie com os dados cedidos pelos representan- arbustiva Viburnum treleasei na construção tes desta amostra. de uma chalupa (embarcação à vela de re- Atualmente, o emprego dessas ma- duzidas dimensões), que perpetua ainda deiras é praticamente inexistente, salvo os na atualidade em posse de um privado. raros casos anteriormente enumerados. Segundo o informante, o tronco media, Essa circunstância parece estar fortemente aproximadamente 0,7m de diâmetro e relacionada com a reduzida quantidade podia variar entre os 4m e 5m de altura, que essas espécies vegetais exibem na mais adianta que a planta gerava elevada região, situação que, por um lado, evo- impressão perante os locais, devido à sua luiu da intensa e desajustada exploração sensacional dimensão. que se deu no passado e, por outro lado, Uma causa apontada pelo informan- da progressiva alteração do uso do solo te e que podia estar na origem desse cres- através da implementação de sistemas de cimento anormal seriam os estímulos pro- produção agrícola e florestal, enquanto se vocados pelas insistentes podas efetuadas verificava em simultâneo o desenvolvi- à copa que, posteriormente, serviam como mento dos diversos núcleos urbanos, tal fertilizante ou combustível. Nos Açores, como refere Dias (2007). Outros fatores essa espécie de arbusto está associada a importantes que influenciaram possivel- manchas de vegetação natural (florestas mente a redução dessas utilizações foi a laurifólias e matos colonizadores), onde chegada das novas tecnologias à região não é comum observar-se indivíduos com (combustíveis, técnicas atuais de cons- porte acima dos 2m de altura e com o diâ- trução, mecanização etc.), bem como o metro de tronco superior a 0,2m; contudo surgimento de instrumentos de regulação Shäfer (2005) refere que esses indivíduos, legal que deram origem a estatutos de pro- em condições ambientais favoráveis, teção e a várias medidas de conservação poderão atingir os 4m. Apesar de atual- (DIAS, 2007). mente não se verificarem no campo indi- víduos com a dimensão apontada pelo 6 JOGOS informante, não podemos negligenciar a possibilidade de ter ocorrido no passado Foram identificadas cinco espécies plantas dessa espécie com características de plantas associadas à flora natural que fenotípicas distintas. eram utilizadas em brincadeiras ou para As pessoas entrevistadas demons- produzir brinquedos. Os ramos de maior traram que praticamente todas essas diâmetro pertencentes à espécie Picconia plantas, no que diz respeito à utilização de azorica serviam para fazer piões que eram madeiras, tinham igual uso no passado, utilizados em jogos pelas crianças. Essa sendo já descritas por diversos autores ao planta também tinha uma aplicação bas- longo dos tempos. Dessa forma, obtemos tante peculiar, a madeira era usada para mais corroborações que acrescentam e fabricar as bolas do tradicional e quase fortalecem o conhecimento da relação extinto jogo do Emboca. Os carpinteiros, desenvolvida entre o povo insular e os re- a pedido dos jogadores, coletavam essa cursos disponibilizados pela flora nativa. madeira e, nas suas oficinas, talhavam Nota-se que esse conhecimento progrediu os troncos mais largos até atingirem uma ao longo dos tempos, até aos dias de hoje, forma esférica. Esse jogo foi bastante pra- através de várias gerações, e, por essa ticado (na freguesia das Doze Ribeiras) até razão, é lógico ponderar, especialmente a um passado bem recente, tendo perdido

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 587 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação o seu costume devido ao envelhecimento e, de seguida, pela sua transmissão às dos jogadores e, simultaneamente, ao de- gerações vindouras perpetuando assim, sinteresse das gerações mais novas. o valor não só físico, mas também imate- Os carpinteiros, após o emprego da rial da flora da região. De facto, a maio- madeira proveniente do Juniperus brevifo- ria dos contos, lendas, crenças, mitos e lia nas mais diversas aplicações, recicla- superstições, acabam por estar, de forma vam o material restante (reduzidas réstias direta ou indireta, ligadas às plantas, por de madeira) construindo carrocinhas que exemplo, da floresta. Um claro exemplo posteriormente eram vendidas ou ofereci- desse fenómeno são os contos produzidos das. Essas carroças que se destinavam às pela grande indústria cinematográfica da crianças, serviam não só para entretê-las Walt Disney. mas também para as sensibilizar para a A planta conhecida vulgarmente vida do campo. por Dragoeiro (Dracaena draco), segundo Os ramos da Morella faya, segundo um dos informantes, era simbólica de um o informante C, eram utilizados para determinado status social, fundamental- simular meninas que, levadas pela mão, mente, por estar associado a uma riqueza iam para escola. As bonecas eram elabo- rural e urbana. Na realidade, quem fosse radas a partir de um conjunto de ramos proprietário de alguns indivíduos dessa invertidos que seriam as “saias”; a cabeça espécie sabia, desde logo, que estava na era formada no ápice do ramo mais largo posse de uma riqueza, mais que não seja por um agrupado de panos amarrados a venda da sua seiva para as diversas in- com um cordel. dústrias como, por exemplo, a tinturaria As crianças usavam a página in- ou arte pictórica. ferior das folhas pertencentes às plantas O gênero Angelica, de acordo com o herbáceas do género Umbilicus (Coucelos) informante B, vem referenciado na Bíblia, para desenhar. Com recurso a um fino e e terá sido o arcanjo Rafael e/ou Miguel aguçado ramo qualquer, picotavam as (existe alguma dificuldade na identifica- folhas até esboçarem o desenho preten- ção do arcanjo) quem deu a conhecer ao dido e, de seguida, em tom de partilha, ser humano as suas virtudes, que foram trocavam os desenhos entre si. Esta é uma enaltecidas pelos antigos e considera- evidência de como as crianças, em grupo, das outrora miraculosas. Segundo essa podiam desenvolver interações e aptidões crença, a Angelica era recomendada pelo sociais numa época marcada pela elevada informante (padre) para afastar a peste, dificuldade que comportava a vida rural. neutralizar o efeito de venenos e pro- longar a vida do indivíduo. Vale a pena 7 SIMBOLISMO ressaltar que Cameron (1883), Mac Coitir e Langrishe (2006) referem, nas suas obras, De acordo com os entrevistados, utilizações tradicionais idênticas na cultu- algumas plantas revelaram possuir sim- ra escocesa e irlandesa. bologias, crenças e até superstições asso- A Hedera azorica era uma planta que ciadas ao imaginário do povo local. Foram estava conectada ao povo através de uma identificadas 7 plantas que transmitem, na relação imaterial benigna. O povo tercei- esfera emotiva, relações que procuram dar rense atribui-lhe qualidades simbólicas uma explicação racional através de símbo- como a longevidade e a fidelidade. Essa los, crenças e superstições que quebram interação parece advir de uma ligação as barreiras do real, gerando, no plano de proximidade que existia entre ambos imaterial, um riquíssimo património ima- (planta e povo). A mútua convivência per- ginativo. A valorização dessa dimensão mitiu que o povo tomasse conhecimento passa em primeiro lugar pelo seu registo do prolongado ciclo biológico que a planta

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. 588 Mauro Ponte; Eduardo Dias possui, portanto, essa particularidade que secas. Posteriormente, a copa era incen- era entendida como um bom presságio diada dando origem a uma fogueira de acabou por ser associada mais tarde ao considerável dimensão, que tinha como conceito de fidelidade. intuito a celebração do santo popular. A Antigamente, o povo dispunha copa ostenta a particularidade notável, de, sobre o abdómen dos bebés, frondes da no ato da queima, a madeira do Loureiro espécie Polypodium azoricum, manifestan- emitir estalos com elevada frequência e do uma convicção ou crença de que os intensidade. Dessa forma, os habitantes parasitas intestinais seriam expulsos do inseridos neste sistema popular reforça- organismo. Contudo as pessoas tiveram vam o seu festejo relativo a São João. que basear essa crença em algum pressu- Outra crença mencionada que não posto, e, como refere o informante B, as está relacionada com a flora em si, mas substâncias aromáticas volatizantes pode- sim com a geomorfologia local e seu riam, de algum modo, estar relacionadas coberto vegetal natural, isto é, o relato com essa aplicação. de uma pequena, mas surpreendente, A planta da espécie Hypericum história popular que envolve uma área ­foliosum (Maltrage ou Maltraje) apresenta- natural designada por Mistérios Negros. va uma curiosa superstição. No passado, Outrora, nesse local onde estava estabe- os indivíduos que recolhiam madeiras lecido um curral que servia para reunir o da floresta, sempre que enchiam o carro- gado, conta-se que, durante uma ocasião, -de-bois com madeira proveniente dessa sem razão aparente, originou-se um fogo planta, este acabava por tombar e, por essa que consumiu não só a vegetação natural razão, diziam que a madeira estava amal- daquela zona, mas também todos os ani- diçoada. Segundo relatos na ilha do Pico, mais com exceção de um, isto é, aquele essa planta também é conhecida vulgar- que estava destinado a ser sacrificado no mente por Malfurada ou Chocalhos-do- culto do Espírito Santo. diabo sendo, frequentemente, associada a poderes ocultos malignos. Se dividirmos a 8 ORNAMENTAÇÃO palavra em duas, assumindo que o nome comum dessa planta é Maltraje, obtemos, A Hera (Hedera spp.) foi utlizada, Mal e Traje. Traje, significa roupa, vestuá- até muito recentemente em épocas de rio ou simplesmente o ato de vestir, con- festividades, sobretudo na decoração tudo alguns dicionários referem que essa de salas onde o catecismo era instruído, palavra, em determinadas circunstâncias, nomeadamente, através das suas inflo- pode significar disfarce, sobretudo, em rescências (no caso da H. azorica), folhas épocas de festividades como o Carnaval. e caules. Essa utilização demonstra não Hipoteticamente, esse nome poderá só um interesse pela beleza natural que a significar “Mal disfarçado”, no entanto planta contém, mas também sua ligação ficam ainda por efetuar estudos de cariz com a doutrina religiosa. etimológico para confirmar a lenda. A planta da espécie Laurus azorica No dia de São João, era comum (Louro) apresenta, igualmente, uma apli- colher uma copa inteira da espécie arbo- cação relativamente recente. Os ramos e rescente Laurus azorica, junto com o seu as folhas dessa espécie eram utilizados, na tronco, embora cortado, mas o suficiente época natalícia, para elaborar elementos para se destacar da copa. O caule era fixa- decorativos e contextualizados na tempo- do ao solo para que a copa se mantivesse rada. Para além da sua beleza reluzente, estavelmente ereta, sendo de seguida pre- as folhas são simultaneamente coriáceas; enchida nos espaços vazios, que surgem uma característica muito apreciada, não entre a ramagem, com gramíneas (palha) só por conservar por mais tempo a sua

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. Diversidade de usos etnobotânicos da flora nativa açoriana. 589 Madeiras, jogos, simbolismo e ornamentação coloração, mas também por se manterem BALICK, Michael J.; COX, Paul A. Plants, fixas aos ramos durante a totalidade do people and culture – the science of período festivo. ethnobotany. Scientific American Library, A espécie Daucus azoricus é usada W. H. New York: Freeman Publishers, 1996. nos dias de hoje, com alguma frequência, BERNARD, Russel H. Research Methods in na decoração, conforme menciona o infor- Cultural Anthropology. California, Newbury mante F, pois a planta é muito usada na Park: Sage, 1988. ornamentação de igrejas e habitações. A CAMERON, John. The Gaelic Names of Plants. presença do seu comprido e vistoso esca- Edinburgh: William Blackwood and Sons, pe floral, capaz de se manter num estado 1883. de vitalidade por um período significativo CARVALHO, Luís. M. Estudos de de tempo, confere-lhe, sobretudo depois etnobotânica e botânica económica no de colocado em jarras, um admirável mo- Alentejo. 2006. Dissertação (Doutorado tivo decorativo. em Biologia, Sistemática e Morfologia) - Faculdade de Ciências e Tecnologia da 9 CONCLUSÃO Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. DIAS, Eduardo. Açores. In: Árvores e florestas Conclui-se que os dados coletados de Portugal. A chegada dos portugueses às mostraram-se adequados e eficientes no ilhas – o antes e o depois. Lisboa: Fundação levantamento de informação relativa à Luso Americana para o Desenvolvimento e etnobotânica Açoriana. Com o implemen- Liga para a Protecção da Natureza, 2007. p. 137-164. to das entrevistas, conseguiu-se extrair um significativo volume de dados numa DIAS, Eduardo; MENDES, Cândida; amostragem relativamente reduzida. MELO, Cecília; BETTENCOURT, Maria. J. Assim, foi possível confirmar que, das 52 BARCELOS, Paulo. Lista de Referência da flora dos açores. Editor: Herbário da Universidade utilizações totais registadas distribuídas dos Açores (AZU). Departamento de Ciências por quatro classes de uso, 25 são citações Agrárias. Angra do Heroísmo: AZU, 2010. novas. Em boa verdade, verificou-se que esses novos registos estão localizados no FRUTUOSO, Gaspar. Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, seio dos informantes pertencentes aos sis- 1998. (Livro VI). temas de vida rurais. Porém esse conjunto de pessoas com idade igual ou superior GASPAR, Jorge. As regiões Portuguesas. a 60 anos caminha, inevitavelmente, para Lisboa: Direcção-Geral do Desenvolvimento Regional, 1993. a finalização do seu ciclo de vida trans- portando consigo os saberes tradicionais HARSHBERGER, William. The purposes em direção à extinção. Essa circunstância of ethno-botany: the american antiquarian. é um indicador de alerta e o motor pro- In: BALICK, Michael J.; COX, Paul A. Plants, people and culture – the science of pulsor para a urgente recuperação desse ethnobotany. Scientific American Library. património de natureza etnobotânica. New York: W. H. Freeman Publishers, 1996. MAC COITIR, Niall; LANGRISHE, Grania. REFERÊNCIAS Irish wild plants – myths, legends and folklore. Ireland: [s.l.], 2006. ALEXIADES, Miguel N. Collecting MARTINS, Francisco E. Ambientes açorianos ethnobotanical data: an introduction to basic da época dos descobrimentos à das viagens e concepts and techniques. In: ALEXIADES, emigração. Ponta Delgada: Signo, 1992. Miguel N. (Ed.) Selected Guidelines for ethnobotanical research: a field manual [53-94]. MENDIOLA, Maria A. Etnobotânica. E.T.S.I.A. New York: New York Botanical Gardens Universidade Politécnica de Madrid, 2005. Press, 1996. (Apresentação em Power Point).

INTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 17, n. 4, p. 577-590, out./dez. 2016. 590 Mauro Ponte; Eduardo Dias

NABHAN, Gary P. Gathering the Desert. guide. 2. ed. ampl. Weikersheim: Margraf Tucson: University of Arizona Press, 1985. Publishers, 2005. RAMOS, Accurcio G. Archipelago dos Açores - WHYTE, William F. Interviewing in Field História Natural. 2. ed. rev. Lisboa: Typografia Research. In: BURGESS, Robert G. (Ed.). Field Universal, 1871. research: a sourcebook and field manual. London: George Allen & Unwin, 1982. p. ­111-122. RIBEIRO, Luís S. Subsídios para um ensaio sobre a açorianidade. Angra do Heroísmo: Instituto WICKENS, Gerald E. Economic Botany Açoriano de Cultura, 1964. - Principles and Practices. Dordrecht Nederland: Kluwer Academic Press, 2001. SHÄFER, Hanno. Flora of the azores: a field

Sobre os autores:

Mauro Ponte: Universidade dos Açores. Departamento de Ciências Agrárias. Grupo de Ecologia Vegetal Aplicada. E-mail: [email protected] Eduardo Dias: Universidade dos Açores. Centro de Biotecnologia dos Açores (CBA). E-mail: [email protected]

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