PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Karen Grujicic Marcelja

De gordas a plus size

Mudanças na representação das mulheres consideradas acima do peso

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2018 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Karen Grujicic Marcelja

De gordas a plus size

Mudanças na representação das mulheres consideradas acima do peso

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, na área de concentração de Antropologia, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Celeste Mira

SÃO PAULO

2018 Banca Examinadora

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Profª. Drª Ana Lúcia de Castro Universidade Estadual Paulista - UNESP

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Prof. Dr. Jorge Leite Jr. Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

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Profª. Drª Mariza Martins Furquim Werneck Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

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Profª. Drª Rita de Cássia Alves Oliveira Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP Para meus pais, Vera e Wilim;

para meu marido e parceiro, Pedro;

para minha filha, Helena, com o desejo de que sua geração tenha referências positivas para se relacionar com o próprio corpo com prazer, liberdade e amor. AGRADECIMENTOS

Cheguei ao doutorado vinda de uma experiência muito gratificante no mestrado em Gerontologia, no qual estudei sobre corpo, mídia e consumo. Empolgada, logo me candidatei ao processo seletivo para o doutorado em Ciências Sociais. A intenção era estudar mais sobre corpo, dessa vez o gordo ao invés do velho, e o arcabouço teórico da Antropologia certamente era a melhor escolha para isso.

Naquela ocasião, era impossível prever o quanto a vida me levaria por rumos diferentes, embora muito desejados. Já aprovada no curso, conheci aquele que viria a ser meu marido e, pouco tempo depois, pai de minha filha. Tudo, então, ganhou nova posição em minha lista de prioridades e passou a ser visto com outro olhar, inclusive eu mesma. E, claro, isso teve impactos em minha pesquisa. Todos que estão aqui citados, de uma forma ou de outra, foram essenciais para que eu concluísse este trabalho. Alguns pelos conhecimento teórico; outros, pelas conversas e intensas trocas de ideias. Alguns, pela ajuda com tarefas do cotidiano e outros, ainda, pelo carinho e incentivo, duas coisas essenciais para qualquer pós-graduando.

Meus agradecimentos à Prof.ª Dr.ª Maria Celeste Mira pelo acolhimento inicial e, sobretudo, pela compreensão e carinho com que me recebeu ao longo das fases de pesquisa e vida pessoal pelas quais passei. Obrigada por entender minha “escrita jornalística” e por sempre apresentar soluções, leituras, olhares e interpretações que enriqueceram este trabalho.

Obrigada a Prof.ª Dr.ª Ana Lucia de Castro e a Prof.ª Dr.ª Mariza Werneck pelo carinho com que acolheram minha pesquisa e pelas importantes observações no exame de qualificação, além de terem aceitado o convite para compor a banca de defesa deste trabalho.

Aos amigos e colegas do Grupo de Pesquisa de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), conduzido pela orientadora Prof.ª Dr.ª Celeste. Agradeço o acolhimento, as oportunidades de apresentar minha produção e as sugestões que recebi para minha pesquisa.

A Katia e ao Rafael, que auxiliam, orientam e socorrem os alunos do curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais sempre que necessário. Aos funcionários da Divisão de Bolsas de Estudos pela atenção e disponibilidade em todos os momentos.

A minha sogra, Adelia Bezerra de Meneses, pelas conversas sobre a tese, pelo carinho em me indicar leituras e pelos preciosos momentos que passou com a Helena enquanto eu me dedicava à elaboração da tese. Isso não tem preço para nenhuma de nós três. A Ulpiano Bezerra de Meneses, meu “tio”, que não só se interessou pelo meu tema de pesquisa como procurou várias referências bibliográficas para me indicar. Obrigada por transmitir um pouquinho de todo o seu conhecimento!

A meu sogro, Willi Bolle, e sua esposa, Fátima Monteiro, por estarem sempre próximos e disponíveis, além das palavras de incentivo.

À querida amiga Merilyn Escobar de Oliveira, cuja amizade foi crescendo ao longo do curso e se estendeu para muitos aspectos além da vida acadêmica. Obrigada pelos conselhos, sugestões, indicações de leituras e eventos, parcerias em viagens e também pela disponibilidade que sempre teve comigo.

Aos meus queridos irmãos, Denis e Ivan, pelo carinho, incentivo e força que sempre me deram. Vocês são meus melhores amigos e as pessoas que mais admiro. Este trabalho, e tudo o que o envolveu, tem muito de vocês. Obrigada!

Aos meus pais, Vera e Wilim. Que falar dos pais? É um privilégio ser filha de vocês e poder ter a certeza de que sempre terei sua confiança, apoio, encorajamento e amor. Obrigada por sempre terem me incentivado nos estudos e nas escolhas que fiz até aqui. Obrigada também por mostrarem que distância não significa nada...

Ao meu marido, meu companheiro e meu amor Pedro Bolle, pelo interesse e pela parceria que sempre teve comigo durante o curso. Obrigada pelo incentivo quando nos casamos, quando me descobri grávida e depois que a Helena nasceu, quando você cuidou dela para que eu pudesse me dedicar aos livros e às muitas horas diante do computador. Tenho orgulho de ser sua esposa e de ter dado um pai tão carinhoso e dedicado para nossa filha. Amo você!

Ao meu amor, minha Helena. Você veio para deixar minha vida melhor e ser minha companheirinha nessa jornada da vida. É uma felicidade enorme ser sua mãe e ver que, a cada dia, você vai ganhando o mundo. Espero que eu consiga mostrar para você as coisas boas que existem nele. Espero, ainda, que as reflexões desta pesquisa cheguem até você na forma de muito amor, carinho e incentivo para que você cresça sabendo amar seu corpo do jeito que ele é – e ele é perfeito.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio financeiro concedido a este trabalho.

Por fim, à vida, sempre generosa comigo. RESUMO

Há séculos, os discursos sobre beleza envolvem o corpo feminino em delicadas relações de poder, além de transformá-lo em objeto de consumo e desejo em diferentes sociedades. Nas últimas décadas, o corpo ganhou ainda mais importância com a possibilidade de intervenções estéticas e cirúrgicas em prol da beleza e do rendimento físico. Por tudo isso, a figura do gordo, do barrigudo e do sedentário virou um indicativo de fracasso diante de tantas possibilidades de beleza, saúde e sucesso divulgadas pela publicidade e pela mídia e geral. No entanto, desde o início dos anos 2000 algo vem mudando nesse discurso. Blogs, redes sociais e outras mídias alternativas vêm divulgando uma mensagem mais otimista em relação à obesidade. Sem apologias à gordura, o que se vê na Internet são incentivos ao amor próprio e o fim do sofrimento causado por dietas inúteis e tratamentos para emagrecer. O que se vê nesses canais são jovens que supostamente aprenderam a gostar de si mesmas e a superar questões como preconceito, falta de acessibilidade e representatividade. Algumas blogueiras já somam centenas de milhares de seguidores e conseguiram bons contratos publicitários graças ao seu poder de influência nas redes sociais. Boa parte desse discurso positivo passa pela moda, que já enxerga nas pessoas consideradas acima do peso um filão importante para os negócios. A chamada moda plus size (tamanhos grandes, em inglês), como foi batizado o segmento, hoje movimenta a indústria da moda mais do que qualquer outro, e já conta com eventos, desfiles, estilistas e modelos próprios, todos cada vez mais requisitados. Mesmo diante desse novo cenário em relação à obesidade, é possível imaginar que as mudanças vieram para ficar? Este trabalho discute um pouco do histórico em relação ao corpo gordo e à construção de padrões de beleza, bem como os paradigmas que as redes sociais e a cultura de massas estão ajudando a quebrar ao propor a noção de que é possível ter quilos a mais e ser bonita e, sobretudo, feliz.

Palavras-chave: corpo, obesidade, discurso, moda, Internet. ABSTRACT

For centuries, discourses about beauty have involved the female body in delicate power relations, in addition to transforming it into the object of consumption and desire in different societies. In the last decades, the body has gained even more importance with the possibility of aesthetic and surgical interventions for beauty and physical performance. For all this, the figure of the fat, the potbellied and the sedentary became an indication of failure before so many possibilities of beauty, health and success released by advertising and the media and general. However, since the early 2000s something has been changing in this discourse. Blogs, social networks and other alternative media have been releasing a more optimistic message about obesity. Without apologies to fat, Internet encourages self-love and the end of suffering caused by useless diets and treatments to lose weight. These channels are lead by young women who are supposed to have learned to like themselves and to overcome issues such as prejudice, lack of accessibility and representativeness. Some bloggers already add up to hundreds of thousands of followers and have achieved good advertising contracts thanks to their power of influence on social networks. A good part of this positive discourse is fashion, which already sees in people considered to be overweight an important lode for business. The so-called fashion plus size, as the segment was named, today moves the fashion industry more than any other, and already has events, parades, stylists and own models, all increasingly sought after. Even in the face of this new scenario in relation to obesity, is it possible to imagine that the changes have come to stay? This paper discusses a bit of the history of the fat body and the building of beauty standards, as well as the paradigms that social networks and mass culture are helping to break down by proposing the notion that it is possible to have extra kilos and be beautiful and, above all, happy.

Keywords: Body, obesity, discourse, fashion, Internet. Sumário

Introdução ...... 3

Capítulo 1 - Corpo, beleza e saúde: da Antiguidade à contemporaneidade ...... 10

1.1 - Corpo, o centro das preocupações na atualidade...... 19

1.2 – Corpo, magreza e gênero: o dever da beleza feminina ...... 24

Capítulo 2 – Gordofobia...... 38

2.1 – Estigmatização e falta de representatividade na mídia ...... 41

2.2 - A (in)visibilidade do obeso ...... 45

Capítulo 3 - Mudanças no posicionamento do mercado em relação às mulheres consideradas gordas...... 55

3.1: Segmentação de mercado: a “inclusão” de gordos, velhos e outras minorias ...... 59

3.2 – “O corpo como ele é”: reação ou modismo? ...... 67

Capítulo 4 – Blogs: entretenimento ou informação? ...... 77

4.1 – Os blogs plus size ...... 83

4.2 - Moda e identidade plus size...... 87

4.3 - “Se eu fosse magra”: autoajuda em rede...... 94

4.4 - Obesidade e saúde nos blogs (ou: “dos meus exames entendo eu, OK?”) ... 99

4.4.1 - Quando o olhar médico também é uma barreira ...... 106

4.5 - Apologia e marketing da obesidade ...... 111

1

Capítulo 5 - Surge um novo padrão de beleza? ...... 119

5.1 – As chacretes e a beleza “popular” ...... 123

5.2 – Sensualidade: do fetiche ao caminho para a autoaceitação ...... 132

6 - Considerações finais ...... 139

7 – Referências bibliográficas ...... 144

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Introdução

Segundo estimativas, em 2025, cerca de 2,3 bilhões de adultos estarão com sobrepeso e mais de 700 milhões, obesos1. No Brasil os números já impressionam: indicadores apresentados pelo Ministério da Saúde mostram que, entre 2007 e 2017, a prevalência da obesidade no Brasil aumentou em 60%, passando de 11,8% em 2006 para 18,9% em 2016. O excesso de peso também subiu de 42,6% para 53,8% no período2. Impulsionados pela ascensão econômica, por formas sedentárias de lazer e pelas facilidades da vida moderna, os brasileiros estão consumindo cada vez mais alimentos de baixa qualidade nutricional, ricos em gordura e carboidratos. O impacto econômico e social da obesidade será alto, pois exigirá políticas públicas de saúde e de educação alimentar desde a infância. Apenas para o Sistema Único de Saúde (SUS), a obesidade e as doenças a ela associadas, como o diabetes, já custam cerca de R$ 488 milhões por ano3. Todo esse cenário faz da obesidade uma questão séria, que precisa ser amplamente discutida em suas múltiplas facetas.

É possível que, ao ler essas linhas, o leitor tenha imaginado uma reportagem de TV, semelhante as quais estamos habituados a ver todos os dias no noticiário. Seja qual for o tema, os gordos são mostrados andando nas ruas, sentados para comer ou andando com dificuldade. Raramente são entrevistados, o que costuma acontecer com médicos ou especialistas. Os gordos não têm rosto: são sempre filmados do pescoço para baixo: barriga, quadris, coxas grossas.

1 Disponível em: . Acesso em: 20 de julho de 2017.

2 Disponível em . Acesso em: 20 de abril de 2017. Cabe, aqui, a explicação de que o percentual de 51% refere-se a indivíduos com IMC (índice de massa corporal) acima de 25, considerado peso normal. Para calcular o IMC, basta dividir o peso em quilogramas pelo quadrado altura em metros (IMC = peso / altura x altura). Entre 25,0 e 29,9, considera- se sobrepeso; entre 30,0 e 34,9, obesidade grau I; o grau II é para os IMC que variam de 35,0 a 39,9; acima de 40, obesidade grave ou mórbida. O IMC é apenas um indicativo para descobrir se está no peso ideal. Outros fatores como sexo, idade e condicionamento físico devem ser levados em conta. 3 Disponível em < http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/sus-gasta-488-milhoes-por-ano-com- obesidade-7882054.html?zunnit-rec=7882054&z-case=165&origin_id=N:8331821>. Acesso em: 8 de maio de 2013.

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Mas quem é aquela mulher gorda que caminha apressada rumo ao trabalho? E o rapaz que acena para o ônibus e sobe nele com dificuldade? E a garota que inicia a quinta dieta de sua vida, dessa vez com a meta de caber no vestido de noiva dos seus sonhos?

Essas pessoas têm mostrado que têm rosto, sim. E voz. E vontades. Além de tudo, que são muitas. Tantas que são responsáveis por uma conquista importante que vem acontecendo nos últimos anos: sua visibilidade. Ao mesmo tempo em que proliferam métodos dos mais diversos e revolucionários para a perda de peso, nunca se falou dos gordos de forma tão branda, até mesmo positiva. Setores que nunca os consideraram como clientes ou público-alvo, como a cultura pop, o design e até mesmo a moda, hoje os incluem e criam produtos específicos. Se antes era preciso ser jovem, bonito e magro para ser admirado, hoje esta última qualidade não chega a ser uma exigência absoluta. Em alguns países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, essa visibilidade, que vem sendo tratada como movimento, foi batizada de fat pride (orgulho gordo). Como o nome sugere, o orgulho parte dos próprios obesos, que se unem em grupos de defesa, associações e outras formas de apoio mútuo. A mobilização em prol do reconhecimento de direitos sociais se dá juntamente com a de outras minorias, como no caso dos homossexuais, das pessoas com deficiência, dos negros etc. A movimentação é no sentido do “direito a ter direito”, o que não se limita apenas a conquistas legais e que tragam igualdade entre os indivíduos – o direito à diferença, aliás, é fundamental para a construção da base dessa nova noção de cidadania. Além disso, a frequente divulgação de casos de discriminação e até mesmo bullying (gordofobia, como vem sendo chamado) praticado em escolas ou ambiente de trabalho tem estimulado debates acerca da necessidade do respeito à diversidade.

A Internet tem participação fundamental para a (auto) aceitação do corpo gordo. Desde o início dos anos 2000, ela vem abrigando blogs, sites e perfis em diversas redes sociais que promovem o fat pride, o fim da escravidão das dietas e a proclamação da liberdade em relação a padrões estéticos rígidos, que priorizam a magreza. Ao contrário do que acontecia até então, o gordo vem se mostrando, aparecendo em fotos e ensaios – alguns até sensuais – e divulgando como “vida real” um estilo de vida que sempre foi criticado pelos excessos e descompromissos com a aparência.

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Esse tom mais amigável em relação ao corpo vem sendo incorporado pela mídia, que aos poucos abre espaços cada vez maiores aos obesos até mesmo onde antes eles não eram muito bem-vindos, como nos editoriais de moda das revistas femininas. Até pouco tempo atrás, o que se via no mundo da moda eram roupas de corte grosseiro, sem tendências juvenis, com estampas e modelagem que não valorizavam as formas das mulheres. Mesmo as jovens não tinham opção a não ser modelos geralmente desenhados para senhoras. Durante décadas, o público jovem que estava acima do peso sofreu com a indiferença do mercado de moda, que não tinha interesse em associar sua marca a um estilo de vida indesejado. Contudo, as reivindicações por mais representatividade das minorias contribuíram para que o mercado passasse a incluir pessoas com sobrepeso. O que contou mais, sem sombra de dúvida, foi o poder aquisitivo dessa população cada vez mais numerosa. Para incentivar o crescimento dessa nova categoria de mercado, ela foi batizada de plus size.

O conceito plus size vai muito além do que sugere sua tradução, “tamanhos grandes”. Trata-se sobretudo de uma nova atitude em relação ao próprio corpo, que convida mulheres que já não veem sentido em dietas milagrosas ou regimes restritivos a celebrar a beleza “real”, ou seja, o corpo como ele é. Na moda, isso se traduz em peças que valorizam as curvas, a cintura, os decotes ou alguma outra característica marcante do corpo. Com autoconfiança e a certeza de estar se sentindo bonita, a mulher assume uma postura mais ativa em sua profissão, seus papeis sociais e sobretudo na sedução. Agora, conhecendo melhor seu corpo, ela tem mais domínio sobre seus atributos e sabe tirar proveito deles, ao invés de tentar esconder ou cobrir o que sempre foi considerado uma “imperfeição”.

Seja a partir de uma abordagem voltada para o sensual, para a moda ou para a geração de novos empreendimentos, é notável que, aos poucos, o plus size vem deixando de ser tratado como nicho reduzido ou sem importância. Basta um passeio por qualquer rua de comércio popular para perceber que o termo já foi incorporado pelas confecções e que as próprias consumidoras já se sentem encorajadas a entrar nas lojas e pedir, no seu tamanho, os mesmos modelos que veem as celebridades vestindo.

Independentemente do que existe por trás das coberturas das revistas, da escalação de atrizes gordas para papeis de destaque em filmes e novelas (e não só o da amiga confidente da mocinha) e do tratamento mais amigável por parte da moda, a

5 obesidade representa um desafio para os meios de comunicação, que não sabem como abordar uma questão por tanto tempo vista apenas pelo viés da saúde ou da estética, quando não da economia. Resta, então, aos blogs e sites a missão de abrigar e produzir um conteúdo mais livre, capaz de se dirigir aos seus leitores com menos ou nenhum atrelamento a patrocinadores ou outro tipo de interesse.

Neste trabalho, pretendo analisar, a partir dessas constatações, alguns dos modelos, estereótipos e referenciais que esse tipo de mídia eletrônica ajuda a criar de, com e para as mulheres acima do peso.

O primeiro capítulo traz um histórico da obesidade e da luta para a perda de peso. Com o suporte de autores como Umberto Eco, Georges Vigarello, Louise Foxcroft e outros, tento demonstrar o quanto a obesidade esteve ligada intimamente a conceitos de beleza ou feiura em outras épocas e contextos culturais. A preocupação com a alimentação, as concepções de corpo, de gordura, de medidas ideais e o grande arsenal de tratamentos já experimentados para o emagrecimento.

O segundo capítulo, “Gordofobia”, trata da estigmatização que sofrem as pessoas consideradas acima do peso em vários aspectos cotidianos, como vida profissional e saúde, além da falta de representatividade na mídia de forma geral.

No capítulo seguinte, “Mudanças no posicionamento do mercado em relação às mulheres consideradas gordas”, veremos como esse grupo vem chamando a atenção da moda, da indústria e de outros setores, a ponto de ser considerado nicho de mercado promissor.

Em seguida, o capítulo “Blogs: entretenimento ou informação?” enfoca os blogs plus size que surgem com a popularização da Internet como meio de informação e entretenimento. Agora, todos podem ser “jornalistas” em potencial, criando e difundindo seu próprio conteúdo em blogs, sites ou redes sociais. Para conhecer e entender um pouco sobre os conteúdos e os discursos dos blogs voltados à temática plus size, selecionei três que já estão, de certa forma, consolidados no mercado brasileiro: Mulherão4, Entre Topetes e Vinis (atual Ju Romano5) e Grandes Mulheres6. O recorte

4 https://blogmulherao.com.br/

5 https://juromano.com/

6 temporal foi de janeiro de 2010, ano em que o termo plus size já alcançava certa visibilidade, a julho de 2017, prazo que estipulei como final para a pesquisa. Um dos critérios de escolha se deu em razão da popularidade e audiência deles, considerados referência no segmento. Em cada um, foram estudados padrões e referências que permitam identificar o discurso dirigido e relativo à mulher plus size. O conteúdo retirado dos blogs ajuda a exemplificar e corroborar o que aponta a teoria aqui apresentada.

O fato de os três blogs selecionados para este trabalho estarem entre os campeões em número de acessos no Brasil já os torna interessantes para quem estuda o tema. Aqui, eles também foram escolhidos por terem características muito marcantes e distintas. O Mulherão foi um dos pioneiros, criado no início dos anos 2000; aos poucos, sua autora, a jornalista Renata Poskus Vaz, foi se tornando empreendedora e hoje está à frente da organização do Fashion Weekend Plus Size, o maior evento de moda do segmento no país. Ela também criou uma grife de moda jovem plus size e vende ensaios fotográficos para mulheres interessadas em se tornar modelos profissionais. Seu blog, portanto, foi aos poucos refletindo esse caráter empreendedor, o que se vê em textos que reivindicam tecidos melhores nas confecções ou em comentários sobre o quanto o mercado nacional ainda precisa se profissionalizar para crescer. A página do Mulherão no Facebok tem mais de 87 mil curtidas e em torno de 86 mil seguidores7.

O Entre Topetes e Vinis começou como uma atividade paralela da jornalista Juliana Romano. Seu blog era uma coluna plus size dentro de um portal feminino da Editora Abril. Aos poucos, suas dicas de beleza e iniciativas como o “Gorda Pode?”, em que ela aparecia ao lado de uma mulher magra vestindo as mesmas roupas, alcançaram grande audiência, o que lhe rendeu vida própria no mundo virtual. Hoje, Juliana é uma das blogueiras mais conhecidas no mundo plus size brasileiro, sendo referência no meio e garota-propaganda de diversas confecções e marcas de cosméticos. Seu blog reflete com clareza o lado “descolado” de sua personalidade, sempre “antenada” com as últimas tendências em moda e beleza. O blog cresceu e rendeu tanta popularidade a sua

6 https://grandesmulheres.com.br/

7 Disponível em: . Acesso em: 24 de julho de 2017.

7 dona que em 2017 ela o rebatizou com seu próprio nome, Ju Romano. No Facebook, sua página tem mais de 100 mil curtidas e cerca de 99 mil seguidores8.

Por fim, o Grandes Mulheres chama a atenção pela forte carga emotiva. Sua criadora, a jornalista Paula Bastos, fala muito de moda e beleza, e com frequência o tema passa a ser alguma experiência pessoal. As leitoras costumam se identificar com seus relatos sobre relacionamentos amorosos fracassados, a baixa autoestima, a espiritualidade e a busca pelo autoconhecimento. A sinceridade com que a autora expõe suas fraquezas pode não atrair tanta publicidade como acontece nos outros dois blogs, mas ela é referência quando se fala em levantar bandeiras plus size ou reivindicar melhor tratamento aos gordos por parte das confecções, da mídia, do setor da saúde e outros. Tanto é que, dos três, é o que tem maior audiência: sua página no Facebook tem mais de 720 mil curtidas e 713 mil seguidores9.

Os perfis no Facebook, Instagram e outras redes sociais são como complementos do blog; muitas vezes, lá os seguidores encontram apenas fotos ou links para os posts do próprio blog, em que há mais conteúdo.

Cabe aqui a colocação de que o prazo de sete anos (janeiro 2010 - julho 2017) para análise dos blogs foi suficiente para que eles, a exemplo do que ocorreu com o próprio mercado plus size, passassem por transformações profundas. No caso de Juliana Romano, por exemplo, seu blog cresceu a ponto de seu próprio nome ser o título, e não mais Entre Topetes e Vinis. A blogueira passou a anunciar uma série de marcas de roupas e produtos de beleza, além de, como veremos adiante, ser capa de revista de moda. O Mulherão passou por transformação parecida; o blog de Renata Vaz serve como veículo para o anúncio de marcas de roupas e também de sua própria grife, a Maria Abacaxita, criada em 2015. Já o blog de Paula Bastos, embora divulgue marcas e eventos, parece não ter crescido a ponto de mudar suas características iniciais.

A observação dos blogs logo revelou que eles têm como temas principais Moda, Saúde e Autoestima, que abrigam boa parte dos textos publicados pelas autoras. Em cada uma deles, foram estudados padrões e referências que permitam identificar o discurso dirigido e relativo à mulher plus size. Coincidentemente, são temas que

8 Disponível em: .Acesso em: 24 de julho de 2017.

9 Disponível em: . Acesso em: 24 de julho de 2017.

8 aparecem na mídia tradicional com frequência quando são debatidas questões ligadas à obesidade. Nesta pesquisa, ilustro o referencial teórico com trechos retirados dos blogs, o que dá uma medida, ainda que breve, de como as blogueiras enxergam assuntos que muitas vezes foram considerados tabus para pessoas tidas como acima do peso. A observação de fotos e ilustrações que acompanham o post tem importância para o estudo, até por legitimar o que as palavras afirmam. Além disso, cabe a observação de que muitas vezes as próprias autoras dos blogs posam para fotos quando abordam moda ou beleza. Esta pesquisa, portanto, levará em consideração os códigos transmitidos pelas imagens: comportamento, sensualidade, autoestima etc. Para dar suporte teórico a essas indagações, recorro a autores como Claude Fischler e Jean-Pierre Poulain, entre outros.

Finalmente, em “Surge um novo padrão de beleza?”, a tese aborda a possibilidade de a nova visão sobre os indivíduos obesos contribuir para a criação de novos padrões de beleza e identidade. Nesse capítulo é intenso o uso de exemplos vistos na mídia, como modelos, blogueiras e outras personalidades que propõem um relacionamento novo, mais leve e prazeroso, com o próprio corpo. Autores como Joana Novaes e Denise Sant’Anna, entre outros, compõem o suporte teórico e ajudam a entender o quanto a revolução de padrões estéticos e reivindicação de direitos propostas pelo conceito plus size contribuem para as interpretações e expectativas em relação ao corpo feminino.

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Capítulo 1 - Corpo, beleza e saúde: da Antiguidade à contemporaneidade

Na Antiguidade, a dieta já era vista como o caminho para a boa ou má saúde, dependendo do comportamento de cada um. Alimentar-se era necessário apenas para o sustento do corpo, e todo excesso era visto como fraqueza moral e prejuízo físico. O indivíduo devia ter tanto o controle físico quanto mental, em um verdadeiro dever para consigo mesmo e, sobretudo, com a sociedade.

Isso condizia com a visão estoica de então, que, expressada de maneira simples, dizia que a virtude, a persistência e a autossuficiência conduziriam à verdade, à saúde e à felicidade. Moderação e equilíbrio eram essenciais em todas as coisas, inclusive na dieta, uma filosofia que situava na ordem moral a atividade corriqueira de comer (FOXCROFT, 2013:32).

Os princípios dietéticos de Galeno, que impunham a receita e modo de preparo dos pratos, proibiam certos tipos de carne, ditavam temperos e métodos de cozimento, entre outras regras, condicionaram a mesa das elites até a Renascença. Essa medicina só seria questionada com o surgimento da imprensa, que tornou possível uma divulgação mais ampla das obras gregas e latinas. O aprofundamento dos estudos sobre o corpo humano com cadáveres, que revelou a anatomia e órgãos até então desconhecidos, também foi crucial para o surgimento de uma nova concepção do corpo. Em 1628 descobriu-se, por exemplo, que a circulação do sangue não era centralizada no fígado, como ensinava a medicina galênica, e sim no coração (FOXCROFT, 2013:33). Aos poucos, a evolução da compreensão do processo digestivo foi derrubando as antigas teorias e dando espaço a um novo discurso científico, baseado na observação e na demonstração. Naturalmente, isso se refletiu em novos hábitos alimentares da elite, que agora não precisava deixar de lado alimentos outrora tidos como perigosos, como melões “perversos” ou pêssegos “insalubres” (QUELLIER, 2011:128). O enfraquecimento da antiga medicina teria aberto as portas para a liberação da gula. Sem a necessidade de se abster de certos alimentos, o homem agora comia para ter prazer. Desde então, não se procura corrigir um ou outro alimento com a mistura “correta” de temperos ou o cozimento “adequado”; ao invés disso, busca-se realçar o sabor e satisfazer os paladares (FLANDRIN, 1998:673).

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À medida que a Igreja se expandia, crescia a noção de que a tentação e a cobiça se mostravam inscritas no corpo na forma de gordura. O excesso era a representação do corpo mortal, frágil, pecaminoso. A gula, ora, era um pecado visível, muito mais do que os outros seis pecados capitais (luxúria, avareza, ira, soberba, vaidade e preguiça). A carne opulenta era sinal de uma alma distante de Deus (QUELLIER, 2011:23).

Havia ainda, na Idade Média, a noção de que as mulheres eram mais volúveis, fracas e suscetíveis a esse pecado; por isso, eram alvo quase que obsessivo da Igreja – no século XIII, por exemplo, foi excepcionalmente alto o número de jovens mortas devido à pouca ingestão de alimentos. Nos últimos séculos do período medieval, o discurso clerical já abordava a fraqueza feminina pela comida, em especial pelo sabor doce. As mulheres eram acusadas de se dedicar excessivamente aos confeitos, bolos, frutas cristalizadas e outras iguarias – uma imprudência que poderia trazer consequências para seus maridos. Os doces eram tão associados ao universo feminino que

seu consumo por um homem é coisa de efeminado, e, nos estereótipos anticlericais, o gosto dos monges pelo açúcar, o chocolate e as compotas permite associá-los ao mundo das mulheres” (QUELLIER, 2011:166).

Não é de admirar que a oferta de alimentos como bombons e chocolates à mulher amada seja uma assimilação cultural tão forte ainda nos dias de hoje, como vemos no dia dos Namorados e outras datas comemorativas.

Naturalmente, a apreciação feminina por doces é muito bem aproveitada por homens galanteadores. A arte da sedução inclui o oferecimento de alimentos como chocolates, bombons, compotas e outras guloseimas, e é frequente que, na poesia, o beijo e outros atos eróticos sejam comparados ao açúcar. Essa fraqueza feminina seria ainda mais notável na gravidez, período em que as mulheres ficariam a mercê de desejos alimentares descontrolados. Se não satisfeito o desejo, haveria o risco de a criança manifestar vestígios dele em seu corpo, sob a forma de manchas e marcas de nascença. Ainda nos dias de hoje a sabedoria popular associa alguns tipos de malformações congênitas da epiderme a essa razão, e muitas chegam a ser chamadas de

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“mancha de vinho” ou mesmo “inveja”. A literatura médica da França do século XVI chega a citar marcas de nascença que ora têm a forma de uma uva, ora de uma cereja, de um figo ou de um melão (QUELLIER, 2011:174).

A bibliografia disponível acerca da obesidade é mais rica em períodos a partir da Idade Média. Eram tempos em que a Humanidade enfrentava fome, restrições e falta de alimentos. Os séculos centrais da era medieval viram grandes períodos de escassez que se repetiam a intervalos de menos de cinco anos, por esgotamento dos solos, falta de armazenamento, lentidão e precariedade das redes de transporte e vulnerabilidade às intempéries. Não por acaso, é nesse período histórico que os homens passam a sonhar com “países da fartura” como a Cocanha, uma fábula amplamente divulgada no Ocidente no final da Idade Média e na Renascença. O país da Cocanha é, antes de mais nada, o país da fartura alimentar. Localizado na região que hoje abriga o norte da Itália, a Alemanha e os Países Baixos, trata-se de um universo fictício que seria um verdadeiro paraíso, repleto de fartura em pães, frutas, carnes, doces e especiarias, além de cerveja, vinho e outras bebidas. Tudo seria consumido à vontade em paisagens deslumbrantes. O país propunha uma contrassociedade utópica, na qual não apenas reina a igualdade diante do prazer da boa comida, mas, além disso, há uma abundante e generosa natureza, que convida os habitantes a se renderem à preguiça e à gula sem qualquer reprovação dietética, moralizadora ou religiosa. É interessante observar o quanto o mito se dedica aos prazeres terrestres, ou seja, deixa de lado a noção de culpa diante dos prazeres do corpo, incluindo a preguiça, a boa mesa e a sexualidade livre. Bem alimentado, vestido e despreocupado, o homem é guiado unicamente pelo seu prazer (QUELLIER, 2011:50).

O imaginário dos tempos medievais encantava-se com a acumulação. A saúde vinha da boa alimentação, assim como o vigor dependia da densidade das carnes. Num mundo então marcado pela escassez de gorduras e por uma dieta cotidiana magra, os sonhos de boa mesa passam, sobretudo, pelo desejo de pratos gordurosos. A gordura é sinal de poder social, fartura e bem-estar. Os homens corpulentos esbanjam boa saúde e vitalidade, assim como as pregas de gorduras dos bebês e crianças pequenas, tão desejadas pelas mães e amas-de-leite.

Diante desse contraste entre a realidade de privações e o sonho da fartura, o gordo era uma figura de prestígio. Não faltam exemplos na literatura e na arte medieval

12 que evocam a “força desmedida” dos homens ou a “beleza tenra e bela da mulher gorda” (VIGARELLO, 2012:22).

São raros os relatos dos séculos centrais da Idade Média em que o gordo é objeto de insulto ou escárnio. Apesar disso, inevitavelmente a aparência maciça trazia comparações com animais, e a própria voracidade do glutão era, por vezes, alvo de comentários pejorativos. A voracidade do glutão era a tradução perfeita da perda do controle do corpo e do distanciamento do que era tido como boas maneiras. A ânsia de comer chamava mais atenção do que o peso. Ou seja: o abuso, a transgressão da norma e a atitude em relação à comida eram mais graves do que as características físicas, o que nos leva a concluir que o aspecto moral do ato de comer superava aspectos ligados à aparência. O gordo não poderia chamar tanto a atenção, como ocorreria mais tarde, devido a essa ascendência da moralidade. Trata-se de

uma maneira bem específica, quase intuitiva, de ver o corpo, na qual os valores de comportamento são os dominantes e amplamente prioritários sobre quaisquer indicadores de forma ou de peso (VIGARELLO, 2012:28).

O prestígio do gordo da Idade Média, claro, tinha um limite – ele terminava quando o indivíduo era “muito” gordo, o que se definia como a inaptidão para tarefas e atividades cotidianas. Não havia medidas para o que era considerado normal ou fora disso; o excesso começava juntamente com a impossibilidade de montar a cavalo, a dificuldade de se mover ou realizar coisas que dependessem do físico. Mesmo assim, a gordura chegava a ser considerada útil pelos médicos, a ponto de seu desaparecimento ser tido como doença. A gordura beneficia a aparência, quando não em excesso. Neste caso, a recomendação era livrar-se do “demasiado” com métodos que supostamente desinflariam ou purgariam o corpo, drenando o que nele havia em demasia (VIGARELLO, 2012:109).

No entanto, aos poucos, a crítica à gordura comum vai aumentando, chegando ao início de um “cerco”. A princípio, com o clero, que prega o autocontrole e a contenção; em seguida, com os médicos, que difundiam os perigos da gordura; e, por fim, com as cortes medievais, que cultivavam o refinamento – algo contrastante com a corpulência

13 dos gordos. O recato e a moderação no comer e beber eram recomendações fortes para as mulheres florentinas desde sua infância até a velhice. O comportamento à mesa demonstrava toda a moral da mulher, desde os seus modos até a qualidade e quantidade do que comiam. Era altamente recomendado que comessem pouco e não tagarelassem à mesa (QUELLIER, 2011:184). No caso das noivas, o banquete de casamento era a ocasião ideal para mostrar publicamente que seriam boas esposas, honestas, reservadas e pudicas fugindo dos excessos na comida e na bebida.

À medida que as cidades se transformavam, nos séculos XII e XIII, a austeridade clerical deixava a confinação dos mosteiros e claustros. A circulação de pessoas, o surgimento de atividades e profissões decorrentes dessa urbanização mudou a sociabilidade. A mendicância, bastante expressiva, reforçava a visão de que abusos do estômago seriam pecado. Na Igreja, a prática da confissão incorpora essas mudanças e reforça a culpa, dando aos pecados um destaque que ainda não tinham. Um deles é a gula. O glutão passou a ser associado aos animais, como o porco, e a lama à gordura. O corpo volumoso agora conota gulodice e avidez (VIGARELLO, 2012:44).

Na Renascença, a crítica ao gordo se baseia na lentidão e na preguiça que passam a caracterizá-lo. O aumento do peso agora é sinônimo de lerdeza, o que contrasta com um mundo no qual a atividade vai adquirindo novo valor. O que antes era julgado como pecado capital já é tratado como atraso e ineficácia, uma decadência física que será cada vez mais condenada e estigmatizada. No século XVI, a desigualdade no desenvolvimento entre campo e cidade empurra para as zonas urbanas muitos miseráveis e indigentes, sobrecarregando estas, que veem por todos os lados mendigos e vagabundos em busca de alimento. Com isso, aspectos como a preguiça, o atraso e o ócio vão sendo cada vez mais condenados – e que figura os encarna melhor do que o lerdo e pouco produtivo gordo? Além disso, essa foi uma época marcada pela sociabilidade e forte introdução de códigos de “boas maneiras” nas cortes, o que acabou por valorizar a aparência. A leveza e a flexibilidade passaram a ter tanto valor quanto, antigamente, tinha a corpulência. Os exercícios já não visavam apenas o treinamento militar: agora, promoviam adequação, compostura e adesão às conveniências refinadas (VIGARELLO, 2014:70). A voracidade e a gula dos fartos banquetes das cortes já era vista como algo típico da falta de modo dos camponeses. “A ascensão do conceito de civilidade nas sociedades de corte marca o início da condenação dos excessos corporais valorizados na sociedade tradicional, dentre eles a embriaguez, a comilança,

14 a gordura. Começa a se delinear outro ideal de corpo, contido, refinado, esbelto” (ELIAS, 1990:4). Por toda a Europa, começa a estabelecer-se a importância da disciplina dos comportamentos individuais, sobretudo os relacionados à alimentação. Os novos padrões corporais atestam o triunfo do espírito. O exagero no comer favorecia a doença, diminuía as forças e deixava os homens inúteis para as atividades da sociedade, além de ser uma ofensa a preceitos religiosos e diminuir a capacidade para o matrimônio (ELIAS, 1990:515).

A crítica à gordura não implica, entretanto, o elogio à magreza. A obrigação era o equilíbrio, já que a magreza ainda lembrava a fome, a fraqueza, a peste, a velhice e a morte, além de emoções como tristeza e melancolia. O que ocorre, a partir dos séculos XVI e XVII, é que as observações médicas se aprofundam. A imagem da gordura não é profundamente afetada, mas o saber a seu respeito aumenta pouco a pouco, embora os tratamentos nem sempre alcancem a eficácia desejada.

Até o século XVIII, o que se entendia por dieta ainda estava centrado em ideias de alimentação e vida saudáveis, chegando a ser tema de discussões não só na medicina, mas também na filosofia e na política. Afinal, prezar pela própria saúde compreendia a moralidade, o autocontrole, o dever cívico, a consciência de si e o equilíbrio (FOXCROFT, 2014:53). Esse truísmo do período clássico, em que a dieta de um indivíduo tinha impacto em toda a sociedade, é algo relevante ainda hoje, época em que as dietas parecem estar mais associadas ao culto de celebridades – cuja vaidade e luxo eram objeto de advertência dos gregos – do que à saúde de fato (FOXCROFT, 2014:53).

Acreditando nos preceitos clássicos de que o destino de uma nação dependia de como seus habitantes se alimentavam, o francês Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755- 1826) escreveu A Fisiologia do Gosto, livro dietético sobre a arte de comer, a glutonaria e os grandes banquetes. A obra tinha pretensões científicas e chegava a indicar métodos para evitar ou se livrar da corpulência. Para isso, indicava o autor, era necessária a abstinência mais ou menos rigorosa de farináceos, amidos e açúcares. Em vez disso, era preciso consumir verduras, raízes, frutas e carne magra, além de beber muita água – recomendações muito próximas às que fazem os nutricionistas atuais. Brillat-Savarin tinha consciência de que seria considerado um “monstro” por privar as pessoas de seus doces, guloseimas e quitutes favoritos, e respondia lembrando-as de que a alternativa era ficar gordo e “feio, grosso e asmático, e por fim morrer na própria gordura derretida: eu estarei lá para ver” (FOXCROFT, 2014:74).

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A gordura ainda é um mistério para a medicina dos séculos XVI e XVII. Pouco se progride em relação aos conhecimentos sobre sua composição, suas causas e tratamentos. Em compensação, ela é cada vez mais observada. Trata-se de uma observação meticulosa, baseada em medições, pesos, cálculos e comparações – estamos, afinal, no Iluminismo. Pela primeira vez elaborou-se uma correspondência numérica entre estatura e peso, o que antes era feito apenas de forma intuitiva. Além disso, surgiu a noção de diversas gradações para uma mesma estatura, que indicava níveis mínimos, intermediários e máximos de gordura. Quatro patamares foram estabelecidos no final do século XVIII:

(...) o peso de um homem com altura de 5 pés e 6 polegadas (1,8m) deve ser de 160 a 180 libras (80 a 90kg). Ele é “já gordo”se pesar 200 libras (100kg), “gordo demais” se pesar 230 libras (125kg) e “muitíssimo espesso, enfim, se pesar 250 libras (125kg) ou mais” (VIGARELLO, 2012:149)

Não se afirmava exatamente qual deveria ser a quantidade ideal de gordura em relação ao peso do corpo, mas uma das consequências de sua medição e gradação foi a estigmatização mais aguda dos “excessos”. Mais do que isso: a visão científica que se instalava sugeria que o corpo do gordo era afetado por uma “fibra mole”, relaxada, que favorecia o acúmulo do tecido adiposo. Essa fibra mole seria a responsável por caracterizar o sujeito como indolente, inchado e pituitoso. Essa noção de fragilidade, diz Vigarello, faz com que a gordura seja classificada “em geral” na categoria das doenças. “É o que revela a inédita preferência pela palavra ‘obesidade’ em vez de ‘corpulência’ no século XVIII”, afirma Vigarello (2012:164).

Nas primeiras décadas do século XIX, a gordura era estigmatizada e associada à sujeira, avidez e preguiça, além de capacidades intelectuais reduzidas. Os inteligentes – ou os que assim se consideravam – não gostariam, evidentemente, de ser vistos como idiotas, de forma que se dispunham aos diversos e por vezes mirabolantes tratamentos para emagrecer que surgiam na época. Teorias das mais variadas (algumas insensatas) sobre dieta e gordura tornavam-se cada vez mais populares graças à divulgação em livros e panfletos. Havia textos diversos conforme a classe social ou nível cultural dos pacientes (VIGARELLO, 2012:284).

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Ao longo daquele século, a medicina foi se diversificando em especialidades, o que resultou em uma abordagem mais científica das dietas. À medida que se descobria mais sobre o funcionamento do aparelho digestivo ou do sistema endócrino, novos tratamentos contra a obesidade eram propostos.

Ao mesmo tempo, começava a surgir a admiração por celebridades magras. Uma das primeiras foi Elisabeth von Wittelsbach, imperatriz-consorte da Áustria, mais conhecida como Sissi. Dona de grande beleza, ela media 1,70m e não pesava mais de 47kg. Dizia-se que, caso sua cintura ultrapassasse os 50cm de circunferência, ela recusava-se a comer e passava dias à base de sopas ou então cinco ou seis laranjas. Por isso, sofria com anemia, exaustão física e ansiedade. Casos parecidos seriam hoje diagnosticados como anorexia nervosa, possivelmente (FOXCROFT, 2013:112).

A gordura e seu combate passaram a ser um bom negócio, de várias maneiras. Na virada para o século XX, já eram populares as revistas em que especialistas (raramente médicos) respondiam as dúvidas dos leitores sobre dieta e alimentação. Produtos e métodos para emagrecer surgiam a todo instante, desde sabonetes que reduziriam medidas em até quinze dias até a “dieta da mastigação”, em que cada bocado deveria ser mastigado por, no mínimo, cem vezes, a fim de defecar menos e melhor. “Na Inglaterra, dizia-se que pessoas famosas promoviam festas de mastigação e controlavam seus tempos mutuamente com cronômetros, a fim de garantir uns bons cinco minutos para cada garfada” (FOXCROFT, 2013:119). Produtos que simplesmente “transformavam” gordura em músculo, itens fabricados com arsênico ou sebo e chás variados eram outras promessas para a perda fácil dos quilos extras, sem falar nas roupas elásticas, eletricidade, massagens, banhos quentes...

A magreza já era, definitivamente, a marca do século XX. Revistas femininas apregoavam que o corpo do momento era o magro, com cada vez menos busto, menos quadris e cintura mais marcada. Ele deveria ser leve, esguio, flexível, afinal, a vida era muito mais agradável para as ativas e atléticas. A divulgação desse corpo como padrão de beleza fez com que muitos quisessem seguir modismos dietéticos e conselhos que, hoje, são sabidamente ineficazes. Mais do que isso: começava a surgir a internalização da ideia da vigilância de peso. Como lembra Foxcroft,

As dietas e a forma do corpo sempre foram questões políticas, tanto pessoais como públicas. O tema do peso nunca foi uma

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preocupação apenas individual e, durante esse período, tornou-se um fenômeno social num grau ainda mais elevado (FOXCROFT, 2013:137).

Já no período pós-Primeira Guerra Mundial, a indústria se valeu dessa autovigilância para anunciar seus produtos. Foi o caso do cigarro, que sempre aparecia como opção a um doce ou então nas mãos de pessoas jovens, bonitas e delgadas. Iniciou-se, então, a crença de que fumar ajudava a pessoa a manter-se magra, que só veio a cair por terra no final do século, mediante processos de ex-fumantes e escândalos envolvendo a indústria do tabaco pela adição de supressores de apetite e outras substâncias nocivas nos cigarros (FOXCROFT, 2013:139).

Nos anos 1920 e 1930, ser gordo era algo que chegava a ser pecaminoso, especialmente para os países recém-saídos da Guerra. Perder peso era uma indicação de força, tanto física quanto mental, já que exigia autocontrole, determinação e autovigilância. Tudo isso era muito valorizado em tempos de escassez, quando armazenar comida era visto como crime – armazenar no corpo era igualmente condenável. Tanto é que as crianças que viveram durante esses anos eram encorajadas a limpar o prato até o último pedaço ou gota de molho, hábito que marcou toda uma geração pela vida inteira (FOXCROFT, 2013:140).

Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o cinema e a mídia mostraram sua força na fabricação de ídolos, criação de modas e padrões de beleza. As adolescentes, em especial as americanas, sonhavam em ter um corpo estilo “ampulheta”, com seios e quadris fartos e cintura bem marcada. Para isso, rendiam-se às recomendações de especialistas e anúncios das revistas femininas, aos regimes mais mirabolantes e aos exercícios mais exaustivos. Louise Foxcroft lembra que uso de anfetaminas tornou-se banal, a ponto de ser considerado quase obrigatório em todo armarinho de banheiro de dona de casa americana (FOXCROFT, 2013:141).

As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo lançamento de modismos na área das dietas e exercícios. Médicos como Robert Atkins e Kenneth Cooper propunham alimentação e atividade física revolucionários, em métodos que se tornaram populares em todo o mundo. Os anos 1980, como veremos adiante, foram de muita exibição do corpo. Dietas, modalidades de ginástica e todo um figurino de cores vibrantes e tecidos flexíveis convidavam a cuidar do corpo e a vivê-lo em sua plenitude.

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Atualmente, os padrões são obrigatórios e voltados para o corpo todo: além da magreza, cresce a pressão para que o corpo seja alterado tecnologicamente. A pressão não se restringe mais à alimentação e à atividade física; agora, o corpo perfeito é aquele que traz silicone nos seios, que passou por lipoaspiração, lipoescultura e outros procedimentos para seu aperfeiçoamento.

O que vemos hoje é uma forte pressão disciplinadora para que o corpo seja constantemente transformado. Cuidar, modificar e aperfeiçoar a plástica é parte de um projeto referenciado não só à saúde, mas também e principalmente à felicidade e à realização pessoal. Nesse sentido, as publicações femininas são importantes disseminadoras de que a imagem precisa se ajustar às normas contemporâneas de saúde e beleza.

Ao longo das últimas décadas, os avanços na medicina e na tecnologia também se atrelaram à propaganda na busca pelo corpo ideal. Lições e métodos de emagrecimento deixaram os consultórios para, cada vez mais, ajudar a vender jornais e revistas. Veremos mais sobre mídia e corpo mais adiante.

1.1 - Corpo, o centro das preocupações na atualidade

O corpo ideal ocupa posição de destaque entre as questões que nos atingem neste início do século XXI. Saúde perfeita, aparência jovem, beleza conforme os padrões e, principalmente, a magreza são hoje desejo e objeto de consumo. Esses atributos são veiculados na mídia, prometidos pela medicina e vendidos por uma indústria cada vez mais influente e poderosa. Não por acaso, o corpo concentra discursos dos mais variados, que vão do estilo de vida às questões de gênero. Essa multiplicidade de temas, no entanto, é uma via de mão dupla: ao se submeter às mais diversas influências, o corpo também influencia a dinâmica geral da sociedade. A contemporaneidade, caracterizada pela fragmentação de ideologias e de relacionamentos, vive uma grande valorização da aparência e da postura corporal. Os modos de vestir e as práticas corporais sofrem influências como pressões de grupo, propaganda, recursos

19 socioeconômicos e outros fatores que promovem mais a padronização do que a diferença individual. De acordo com o contexto social e cultural em que o indivíduo se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual se constrói a relação com o mundo. Através do corpo, o sujeito apropria-se da substância da sua vida e a traduz para os outros. O corpo simboliza a sociedade e, em variadas proporções, reproduz os poderes e a estrutura que a compõem. Nos contextos de formações sociais mais complexas, em que há desigualdade entre as relações estabelecidas, o corpo acaba por tornar-se objeto de “adestramento” a fim de que adquira e expresse características impressas por grupos hegemônicos e seus interesses. A isso refere-se Michel Foucault quando fala das práticas disciplinares, métodos que terminam por automatizar movimentos, posturas, gestos etc, permitindo o controle das operações do corpo para otimizar seu rendimento, controlar suas vontades e submetê-lo politicamente conforme interesses. Observamos isso na prática no caso de operários que utilizam máquinas, por exemplo. Eles devem adequar seus corpos às exigências dessas máquinas e ao ritmo de produção desejado. Já em situações de lazer, como dança ou prática de algum esporte, a maneira como esse mesmo corpo é utilizado muda radicalmente.

É o que afirma Breton quando diz que, antes de qualquer coisa, a existência é corporal. “Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural” (BRETON, 2012:08). O autor comenta que, atualmente, o homem é “produto” do corpo, uma vez que estamos submetidos ao que ele descreve como supremacia de um imaginário biológico em que as diferenças sociais e culturais perdem importância para sinais físicos, como cor da pele, altura e peso. São estabelecidos padrões de beleza e saúde, e tidos como marginais os que não se encaixam neles.

Marcel Mauss, no pioneiro ensaio “As técnicas corporais”, lançou bases para reflexões aprofundadas sobre o corpo, buscando compreender como os seres humanos, em suas mais distintas sociedades, servem-se de seus corpos. O autor observou que cada formação social tem hábitos peculiares, o que significa uma imensa variedade de “técnicas corporais” - uma série de atos que fazem parte da constituição do indivíduo desde toda a sua educação até a sociedade da qual ele faz parte e o lugar que ele nela ocupa (MAUSS, 1974:218). É na transmissão dessas técnicas de geração para geração que o homem se distingue sobretudo dos animais, segundo Mauss; essa transmissão constitui um ato tradicional e eficaz, sendo feita principalmente por forma oral. Não se

20 trata de educação ou simples imitação, mas de um verdadeiro processo de adestramento e adaptações do corpo às variadas técnicas. Assim, podemos concluir que o uso que fazemos do corpo em diferentes atividades não é algo simplesmente natural ou espontâneo, mas principalmente cultural. Para o autor, o uso do corpo combina elementos biológicos, psicológicos e socioculturais, quase sempre sem que tenhamos consciência disso.

As técnicas corporais descritas por Mauss podem ser classificadas segundo o sexo, a idade, o papel social do indivíduo no grupo e outros critérios. O corpo também sofre, a todo instante, influências como o tipo de ocupação, a religião, a classe social, a estrutura familiar e outros fatores socioculturais.

A relação de consciência com o próprio corpo muda conforme a intensidade de seu uso, pensam os autores. Quanto mais esforço físico uma atividade envolver, menor será a consciência envolvida. Esse raciocínio é interessante para se pensar como as classes sociais usam e veem seus próprios corpos. Nas camadas superiores da hierarquia social, as atividades intelectuais superam as braçais, “com o que os indivíduos alteram o sistema de regras que regem as relações com os seus corpos, tornando-os mais conscientes do seu uso e dedicando a ele cuidados mais atentos e sofisticados” (QUEIROZ e OTTA, 2000:37). O aprimoramento ou manutenção da beleza, do tônus, da magreza e da forma física costumam ser preocupação mais observada nas classes mais abastadas, que inclusive usufruem de mais tempo para esses cuidados com o corpo. Logo, podemos concluir que podem existir interpretações diversas para o corpo, inclusive para pessoas que apresentarem as mesmas medidas – elas podem ser consideradas magras nas classes populares e gordas nas superiores, o que demonstra como a condição econômica e a estrutura de classes impõem suas regras ao corpo (QUEIROZ e OTTA, 2000:37). Além disso, é preciso pensar na influência que a mídia exerce sobre a forma como vemos e cuidamos de nossos corpos. Um bom exemplo é a academia de ginástica. O mero custo da mensalidade é um indicador de que algumas práticas que ajudam a atingir o corpo ideal estão voltadas para uma camada mais favorecida da população. Da mesma forma, o consumo de suplementos nutricionais, a contratação de personal trainers, a compra de roupas especiais para ginástica, muitas vezes de grife, e a própria disponibilidade de tempo para esses investimentos indicam a construção de um “corpo de classe”. Ou seja: o tempo, o dinheiro investido no corpo e o uso que se faz dele indicam a classe social a que o indivíduo pertence.

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É a partir do início do século XX que o corpo se torna o centro de uma série de discursos que vigoram até os dias de hoje. Para a cultura e a ciência ocidentais, o corpo é uma das peças principais de nossa civilização. As cirurgias plásticas, a clonagem, a manipulação genética e todas as possibilidades de mudar ou mesmo criar um corpo são indicativos do quanto essa civilização acredita estar avançando rumo à perfeição física.

Essa almejada perfeição reúne atributos como saúde, juventude eterna e beleza ideal. Se normalmente criticamos pessoas que passam por cirurgias plásticas excessivas ou sem necessidade, por exemplo, precisamos nos ater ao fato de que, julgamentos à parte, elas estão inseridas em uma cultura dominante, na qual as representações do humano, do corpo e do progresso da ciência estão inscritas. Neste início de século XXI, o corpo é representado como expressão perfeita da evolução – o corpo do homem é a imagem de sua cultura (NOVAES, 2010:20). Portanto, mesmo que o homem se conceba livre e autônomo, seu próprio corpo está inserido em uma rede de simbolismos relacionados aos mais diversos grupos, classes sociais e outros elementos (tempo, espaço, linguagem etc), de forma que ele não pode escapar dessa ordem de significações mais ampla. O corpo responderá a essas demandas da vida social por meio de gestos, sentimentos ou sensações. Para Novaes, “é essa subordinação relativa à ordem social que dá ao corpo a possibilidade de ser o suporte essencial à vida do sujeito, sem que a vontade deste seja, constantemente, convocada para todas as manifestações da vida cotidiana” (NOVAES, 2010:35). Podemos, ainda, pensar o corpo como uma construção social tal como a linguagem ou o pensamento, e sua elaboração depende da forma como vê e é visto na sociedade, ou seja, é resultado de um reflexo mútuo.

Na contemporaneidade, o corpo é alvo dos maiores e mais importantes investimentos feitos pelos indivíduos. A aparência tornou-se um capital e uma moeda de troca valiosa. É nele que são impressas as emoções, os afetos, a história, o sofrimento e tudo por que alguém passa. Essa noção vai mais longe para aqueles que encaram o corpo como uma vestimenta. Tal qual uma roupa com caimento perfeito, o corpo deve mostrar o que se pensa, o modo como se vive e qual o grupo a que o sujeito pertence. É a noção do corpo como tela de pintura: são as tintas, no caso tatuagens, escarificações, procedimentos estéticos variados etc, que o transformarão em obra de arte.

De acordo com Bauman (2008), a contemporaneidade se define pela sua liquidez, em que a tradição cultural, a virtude moral, a autoridade e o senso comum

22 estão fragmentados. Essa dissolução do terreno sólido traz um sentimento de estar à deriva, em que vários pilares do humano acabam sendo questionados: questões de gênero, papel da família, casamento, uso da tecnologia, radicalismos políticos, instituições, identidade nacional etc. Nesses contextos frágeis e de grandes indagações, o corpo torna-se uma mercadoria. Novaes sugere que a degradação desses pilares da vida em sociedade pode ser um dos fatores relacionados ao recurso da marcação do corpo como uma gravura de si (NOVAES, 2010:43). Seriam as marcas sociais autoinflingidas (tatuagens, automutilações, escarificações etc) favorecidas ou geradas pelos discursos dominantes? Afinal, o aumento dessas práticas nos últimos anos sugere que elas sejam indicadores subjetivos do discurso social contemporâneo.

A presença do corpo na modernidade favorece a criação de uma imagem totalizante, a partir de corpos ideais aos quais o sujeito moderno é chamado a se identificar. Aqui, dois aspectos específicos se apresentam: a crença de cada um em sua imagem e o cuidado em se identificar com uma imagem bem-sucedida de si (NOVAES, 2010:43).

A construção do corpo conforme padrões e desejos individuais enfatiza a possibilidade de identidades mutáveis. Temos, hoje, um mundo de opções abertas, o que faz o indivíduo ser responsável por ele mesmo. Por outro lado, essa liberdade pode ser também fonte de angústias, uma vez que nem sempre é fácil ou possível controlar os critérios que definem a aparência. De acordo com Castro, “o corpo torna-se elemento central na busca de sentidos e referências mais estáveis, talvez por constituir-se em único domínio ainda controlável pelos indivíduos” (2007:16). É nesse sentido que práticas corporais como tatuagens, cirurgias plásticas, musculação e outras promovem a inclusão social do sujeito, ao mesmo tempo em que representam um mecanismo de controle sobre seu corpo. Em resumo: na lógica da sociedade de consumo, em que o ser é definido pelo ter, o corpo pode estar associado a uma ou outra posição social. Para pertencer ao grupo desejado, é preciso ter o corpo associado a ele. A todo instante, vemos nos meios de comunicação, no cinema, na publicidade e na mídia em geral ideais subjetivos que associam esse corpo à aquisição de bem-estar e status – ou seja, à filiação à tribo desejada.

A relação entre consumo e corpo não é recente. Desde meados do século XX, a publicidade e o cinema se empenham em criar e manter corpos que sejam objeto de

23 desejo e, portanto, de consumo – geralmente, jovens, magros e sedutores. Trata-se da aplicação prática daquilo que Marcel Mauss (1974) chamou de “imitação prestigiosa”, ou seja, a reprodução de corpos e comportamentos considerados exitosos em cada cultura. Segundo o autor, o corpo é uma construção cultural, que varia conforme cada sociedade e cada época. Podemos dizer que modelos, atores, esportistas e, mais recentemente, blogueiros e youtubers se encaixam nesse conceito, uma vez que inspiram jovens mundo afora a seguir seus hábitos, roupas e estilo de vida. É a influência deles na construção de identidades e padrões estéticos corporais que estudaremos neste trabalho.

1.2 – Corpo, magreza e gênero: o dever da beleza feminina

A percepção cultural do corpo ideal é bastante complexa e não se restringe ao que aponta a balança ou determinam as ciências da saúde. No caso do corpo considerado acima do peso, alguns fatores se destacam na percepção feminina: a incapacidade de atrair sexualmente um homem; o descontrole aparente sobre o próprio corpo; a fantasia recorrente de como o corpo e a vida seriam melhores depois da perda de peso. Bourdieu aponta que os homens, geralmente, apresentam insatisfação com partes do corpo que consideram pequenas, ao passo que as mulheres criticam o que consideram grandes demais: seios, nádegas, quadris, coxas etc. Para ele, a “dominação masculina”, que faz das mulheres objetos simbólicos, tem por efeito colocá-las em um estado de perene insegurança com o próprio corpo. Elas existem para o outro, em primeiro lugar, como objetos receptivos, atraentes e disponíveis. Ou seja: espera-se que sejam femininas, o que significa serem bonitas, submissas, discretas e contidas. Nesse contexto, a magreza contribui fortemente para a concepção de feminilidade, uma vez que se traduz em fragilidade. Diz o autor:

Tendo necessidade do olhar do outro para se constituírem, elas [as mulheres] estão continuamente orientadas em sua prática pela avaliação antecipada do apreço que sua aparência corporal e sua maneira de portar o corpo e exibi-lo poderão receber (daí

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uma propensão, mais ou menos marcada, à autodepreciação e à incorporação do julgamento social sob forma de desagrado do próprio corpo ou de timidez). (BOURDIEU, 1999:83)

As mulheres acima do peso são frequentemente percebidas como menos femininas porque estariam distantes desse ideal de feminilidade que pressupõe que cuidar da aparência, do asseio e da silhueta sejam “coisas de mulher”. Esse ideal, tido como universal e atemporal, é um produto cultural reforçado por uma série de instituições, como a escola, a Igreja, a medicina, a moda e os meios de comunicação, entre outros, que atuam no sentido de tornar mais hegemônicas determinadas representações de “feminino” e de “masculino”. Assim, falar em ideal de feminilidade não implica tentar fixar os múltiplos significados da categoria “feminilidade”, mas sim acenar para um conjunto de representações em particular, que podem ser, a depender do contexto, mais ou menos predominantes.

No final do século XIX, como visto anteriormente, a prática de dietas e esportes com o fim de melhorar a aparência ganhou popularidade e os cuidados com o corpo passaram a ser obrigatórios no cotidiano, especialmente para as mulheres. Nunca antes o peso havia sido tema de tantas discussões nem os obesos haviam sofrido tanto preconceito. É preciso lembrar que essas preocupações estavam inseridas nos contextos sociais da revolução tecnológica que acontecia na Europa e nos Estados Unidos. Não só a indústria avançava, buscando mais eficiência e mecanização, mas também a medicina se debruçava sobre o metabolismo e as possíveis formas de controlar o peso corporal. Outro avanço importante do fim do século foi a água canalizada, que instituiu o uso do banheiro. Agora, aquele era o espaço “para si”, em que se podia ficar sem ser visto e se consagrar ao culto da beleza (VIGARELLO, 2006:135). Além disso, não menos importante, a fotografia se popularizava, o que acabou por eleger padrões de beleza, pois reproduzia fielmente a aparência, ao contrário do que acontecia com os retratos em pintura. Se até pouco tempo antes o corpo belo e sedutor era aquele mais farto e macio, agora ele era mais rijo e contido por espartilhos. Apesar das preocupações higienistas estimularem a gordura por séculos – engordavam-se as mulheres muito magras para evitar que ficassem anêmicas ou histéricas –, a obesidade começava a provocar reações negativas.

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A oposição gordura versus magreza arraigava-se definitivamente, enfim, como uma questão de beleza. Se nos séculos anteriores a beleza foi considerada dádiva divina, agora era não mais a revelação de Deus, mas de si mesmo. O indivíduo do século XX está interessado nas revelações sobre sua própria consciência. É o início do “triunfo do eu”, em que a beleza é feita sobretudo de inteligência – é preciso usufruir o avanço das indústrias e pesquisas na área de cosméticos. Não havia ainda um modelo fixo de beleza a ser seguido, mas já era preciso ser ou fazer-se belo.

Em um contexto em que a beleza e a forma física não são mais percebidas como "uma dádiva divina da natureza", mas sim como o resultado do esforço individual, as pessoas têm responsabilidade por sua aparência. Sant'Anna (1995) observa que na primeira metade do século XX, Natureza era escrita com letras maiúsculas e era considerado perigoso interferir no próprio corpo em nome de objetivos pessoais ou vontades incutidas pela moda.

A passagem do que era considerado boa aparência para padrão de beleza de fato se dá lentamente, nas primeiras décadas do século XX. O primeiro aspecto de beleza que desponta é a juventude. Se nos séculos anteriores as rugas por vezes eram tidas como sinal de maturidade e austeridade, a partir dos anos 1920 elas já não são mais desejáveis. A indústria de cosméticos a todo instante lança cremes, loções e outros produtos que prometem acabar com o problema. Com isso, ganha força o culto à juventude – e, como não se pode parar o tempo para que ela dure eternamente, deve-se ao menos fazer esforços para se parecer jovem (BERGER, 2006:79). Outra característica corporal considerada bela e associada à juventude é a magreza. Um corpo jovem e magro é leve, ágil e agora livre, já que dispensa o uso de espartilhos e modeladores. Como apontam Del Priore e Freire:

Desde o início do século, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam a atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. (...) Na Europa, de onde vinham todas as modas, a entrada da mulher no mundo do exercício físico, do exercício sobre bicicletas, nas quadras de tênis, nas piscinas e praias, trouxe também a aprovação dos corpos esbeltos, leves e delicados. (...) O estilo ‘tubo’ valorizava curvas graciosas e bem lançadas. Regime e musculação começavam a modelar as compleições esguias que passam a caracterizar a mulher

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moderna, desembaraçada do espartilho e ao mesmo tempo de sua gordura decorativa. (DEL PRIORE E FREIRE, 2005:221).

A feminilidade, outrora traduzida em trejeitos e vestimentas finas, agora ia além: era preciso que o próprio corpo acompanhasse essa delicadeza, sendo alvo, leve e fino. Os corpos que fugiam desse padrão eram alvo de exclusão, estimulado pela força que a publicidade e os meios de comunicação já começavam a ganhar. Sant’Anna lembra que a publicidade anterior aos anos 1950

não hesita em descrever detalhadamente os sofrimentos resultantes da falta de beleza. Vítima do acaso, uma ‘coitada’ alvo de todo tipo de chacota, a mulher considerada feia é uma figura extremamente importante para as didáticas ilustrações publicitárias do passado. Nelas, a imagem da feia serve como um contra-exemplo, como aquilo que se é antes do uso do produto anunciado. (SANT’ANNA, 2005:127)

A autora afirma, ainda, que a partir de meados do século XX a mulher feia era criticada por não saber cuidar bem de sua aparência. “Mas não se sabe ainda aquilo que nos anos 60 se descobre: desde então, se dirá que uma mulher é feia porque, no fundo, ela não se ama.” (2005: 128). Temos, portanto, mais um fator para corroborar a ideia de que a beleza ou a feiura são qualidades que dependem de merecimento, ou seja, do esforço individual – e isso contempla, principalmente, a vaidade e a autoestima. Agora, já não basta ser bela: é preciso também ser feliz, ou, ao menos, transparecer felicidade.

Esse imperativo deve-se muito à popularização de Hollywood e das revistas femininas. Sant’Anna (2005) cita a grande influência das musas do cinema dos anos 1950, como Elisabeth Taylor e Sophia Loren, além da brasileira Martha Rocha, como integrantes de uma constelação de belas aparências que desfilavam nas páginas de revistas criadas naqueles anos. No Brasil, títulos como Querida e Capricho traziam páginas e páginas sobre os conselhos de beleza das divas, sempre em tom de conversa íntima, revelando “segredos” e prometendo que não valia a pena sofrer por falta de beleza.

Revistas como Jornal das Moças ainda colaboravam com a identificação do que seria a essência feminina (casamento, maternidade e tarefas domésticas, basicamente) e

27 sua contrapartida, a masculina, baseando-se em uma ideia predeterminada de diferença de gênero. Isso era feito com a indicação de brinquedos “próprios” para meninas e meninos por especialistas, por exemplo, o que mostra como as publicações reproduziam a mentalidade da época e contribuíam para moldar o que se acreditava ser um simples destino. Porém, como afirma Carla Pinsky (2014), para além do que seriam as “determinações da natureza”, existem regras sociais e modelos que devem ser aceitos a fim de que esse “destino feminino” se cumpra adequadamente. O Jornal das Moças e outras revistas recomendavam que as mães preparassem suas filhas para que fossem boas mães e donas de casa exemplares, além de recatadas e bem comportadas. Já os meninos podiam crescer com mais liberdade, sendo incentivados em seus interesses por esportes e carros, vistos como “próprios” do sexo masculino. Assim, diz a autora, “os limites da masculinidade e da feminilidade reservam quase sempre imagens de força e iniciativa para o homem; doçura, passividade, ‘instinto maternal’ e sentimentalismo para a mulher” (PINSKY, 2014:51). Os considerados “incontestáveis papeis femininos” eram muito enfatizados, especialmente quando se referiam às jovens. O casamento era visto como a porta de entrada para a realização dos ideais de feminilidade, o que exigia que as moças fossem educadas de forma a não se desviarem desse caminho e não escaparem do futuro reservado à mulher.

A beleza é um capital na troca amorosa ou na conquista matrimonial, lembra Michelle Perrot (2013). Uma troca desigual em que o homem se reserva o papel de sedutor ativo, enquanto sua parceira deve contentar-se em ser o objeto da sedução. O primeiro mandamento das mulheres, diz a autora, é a beleza. A forma de explorar as qualidades do corpo foi variando conforme as épocas e o gosto10. Até o século XIX, perscruta-se a parte superior, o rosto, depois o busto; há pouco interesse pelas pernas. Depois o olhar desloca-se para a parte inferior, os vestidos se ajustam mais à cintura, as bainhas descobrem os tornozelos. No século XX, as pernas entram em cena, haja vista a valorização das pernas longilíneas nas peças publicitárias. “Progressivamente, a busca da esbeltez, a obsessão quase anoréxica pela magreza sucedem à atração das generosas formas arrendondadas da ‘bela mulher’ de 1900” (PERROT, 2013:50). A

10 Cabe aqui a ressalva de que os estudos de Perrot referem-se a mulheres francesas; devido à lacuna de pesquisas com enfoque nos trópicos, levaremos suas observações em consideração, mesmo porque a influência da moda, da literatura e das artes na Europa era muito marcante por aqui no período estudado (séculos XIX e XX).

28 autora continua dizendo que, então, as feias caem em desgraça, até que chega o resgate: todas as mulheres podem ser belas.

É uma questão de maquiagem e de cosméticos, dizem as revistas femininas. De vestuário também, daí a importância da moda, que, num misto de prazer e tirania, transforma modelando as aparências. Questão de vontade, segundo Marcelle Auclair da revista Marie Claire. Em suma, ninguém tem o direito de ser feia. A estética é uma ética (PERROT, 2013:50).

Dulcília Buitoni (2009) critica o que chama de “eterno feminino”: o senso comum de procurar virtudes clássicas e qualidades quase abstratas da mulher, como maternidade, beleza, suavidade, doçura e outras, num ser que é histórico. Justamente aí, diz, “está a falha que desvincula a mulher de sua época e seu contexto, que a transforma num ser à parte, independente de circunstâncias concretas” (2009:24). Essa separação entre qualidades ideais e realidade, que já é uma constante cultural, também está na imprensa feminina, que, segundo a pesquisadora, tem colaborado para que a separação permaneça e aumente. Percebemos isso facilmente ao comparar o jornalismo informativo com as revistas dirigidas ao público feminino: nestas, em primeiro lugar, o tratamento das matérias não favorece a criação do “mundo da mulher”. “Tenta-se criar um mundo da mulher para que ela fique só dentro dele e não saia”, diz a autora (2009:24). Outras características da imprensa feminina, como as ligações temporais fracas, seu caráter mais ideológico e a linguagem imperativa, favorecem a utilização da mulher como um mito nesses veículos. Buitoni nos remete a Roland Barthes, que em Mitologias (1972) traçou os contornos do mito contemporâneo:

O mito se deixa ler nos enunciados anônimos, na publicidade, nos objetos de consumo. (...) O mito é um “reflexo” social que inverte, pois transpõe a cultura em natureza, o social em cultural, o ideológico, o histórico, em “natural”. Um fato contingente, por exemplo, aparece como sempre tendo acontecido na sociedade. Apesar de formado pela cultura, apresenta-se como se fosse um fato da natureza. Ora, a imprensa feminina privilegia o ser mulher, propõe modelos culturais como sendo lógicos e naturais. “O eterno feminino sempre foi assim” (apud BUITONI, 2009:25).

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Sant’Anna lembra que, nessa nova abordagem das revistas dos anos 1950, “as regras de beleza prescritas pelos médicos e moralistas das décadas anteriores se tornam insuficientes, austeras e ultrapassadas” (SANT’ANNA, 2005:128). Desde então, a beleza passa a ser vista como uma conquista. Os produtos, antes confundidos ou mesmo tratados como remédios, agora adquirem outro poder, graças à publicidade. Cremes, loções e itens de maquiagem recebem uma roupagem que os torna capazes de influenciar o psiquismo das mulheres, deixando-as bonitas e satisfeitas com elas mesmas. A publicidade abandona a imagem da mulher sofredora e os anúncios passam a dar cada vez mais destaque às imagens do que ao texto. “O importante é ressaltar a imagem da mulher bela, que, desde então, ousa reinar sozinha, em fotografias coloridas, ocupando páginas inteiras de revistas, sem tristeza e, sobretudo, sem passado” (SANT’ANNA, 2005:129). Com tudo isso, parecia não haver mais segredos de beleza, já que tudo passava a ser acessível às mulheres. Não só as da elite tinham acesso a perfumes, cosméticos e outros produtos – agora, esses itens estavam ao alcance de secretárias, professoras, funcionárias públicas e donas de casa. Também não havia mais um momento específico para se tornar bela; era preciso fazê-lo cotidianamente, em um esforço frequente contra a feiura. Assim, em meados do século passado, recusar o embelezamento era uma negligência feminina, algo que deveria ser combatido.

Ao mesmo tempo, a ascensão dos esportes e da moda feminina fazem com que o corpo seja mais exposto, e, portanto, mais visado do que a roupa. Pouco a pouco, o que está ou não na moda é o próprio corpo, e não a vestimenta. Enquanto a moda se pluralizava em estilos e tendências, o corpo se fixava em um modelo único, o magro. Tal padrão foi se tornando cada vez mais exigente ao longo do século XX, década após década, o que se observou também nas artes plásticas e no design modernistas.

A silhueta magra conquista, então, um valor inovador, já que está ligada à inovação e descontração dos jovens, que queriam romper os padrões criados pelas gerações anteriores. Para Maria Celeste Mira, “ser gordo é identificado com o corpo do velho, próximo da morte, sem nenhum valor para uma sociedade que vive no eterno presente” (MIRA, 2004:15). Ao mesmo tempo, o dia-a-dia das mulheres comuns já começava a incorporar os cuidados com o peso. No Brasil, a partir de 1960, uma novidade começou a aparecer nas propagandas impressas e a marcar presença nas drogarias do país: a balança. Até então, saber o próprio peso era raridade, informação

30 que só se obtinha em hospitais ou consultas médicas, nas escolas e, no caso dos homens, no serviço militar. Conhecer o quanto se pesava virou algo natural, uma informação ligada à identidade de cada um. Também nessa época foram lançados os primeiros alimentos cientificamente preparados para o emagrecimento. Era o início de toda uma indústria que busca vender a dieta associada ao prazer de comer. Fora do país, os alimentos light e diet já ganhavam popularidade, tornando-se inclusive símbolos de distinção social.

Doravante, era preciso ser magra, juvenil, conhecer e gostar do próprio corpo. E mais: era necessário não apenas ser, mas “sentir-se bela” (SANT’ANNA, 2012:119). A magreza na moda teve como uma das pioneiras a britânica Twiggy, que apareceu nas páginas da Vogue em 1965, mesmo ano do lançamento da pílula anticoncepcional. Como muitos símbolos do mito da beleza, ela era ambígua, sugerindo às mulheres a liberação da obrigatoriedade da reprodução de gerações anteriores já que a gordura na mulher é categoricamente compreendida pelo subconsciente como uma sexualidade fértil (WOLF, 1992:244).

Naomi Wolf, autora do clássico feminista O Mito da Beleza, afirma que as dietas e a magreza são preocupações “criadas” a fim de reprimir as mulheres. Diz a autora: “quando as mulheres invadiram em massa as esferas masculinas [no período da Grande Guerra], esse prazer teve de ser sufocado por um urgente dispositivo social que transformaria os corpos femininos nas prisões que seus lares já não eram mais” (WOLF, 1992:244).

Toda essa preocupação (ou obrigação) com a beleza e o peso nos leva crer que, lembrando o conceito de biopoder e corpos docilizados de Michel Foucault, a balança é um dispositivo disciplinar da contemporaneidade. A noção de disciplina elaborada pelo autor é fundamental para o entendimento da questão aqui posta. Em Vigiar e Punir (1991), ele aponta que uma das características das sociedades modernas é o surgimento de técnicas disciplinares aplicadas diretamente sobre os corpos, além da descoberta do corpo como objeto e objetivo do poder. Os chamados dispositivos disciplinares, de caráter coercitivo e repetitivo, têm a missão de produzir corpos dóceis e obedientes que podem ser utilizados, transformados e aperfeiçoados conforme a necessidade e o contexto. Para Foucault, a eficácia desses dispositivos está em que eles não precisam ser necessariamente impostos por uma autoridade ou instituição, em uma relação vertical

31 descendente: ao contrário, já são incorporados pelo próprio indivíduo, que passava a exercer um controle e uma vigilância sobre si mesmo.

Partindo dessa noção de docilização dos corpos, práticas como dietas de emagrecimento, ginástica, cirurgias e tratamentos estéticos, além do uso de maquiagem, depilação e adornos corporais e das formas de expressão verbal e corporal seriam resultado de técnicas disciplinares que visam produzir um corpo que seja socialmente reconhecido como feminino, tanto na aparência quanto no gestual. Logo, essas práticas são disciplinares no sentido de que ensinam às mulheres que seus corpos podem ser mudados ou até transformados por elas mesmas. A disciplina consiste em inculcar no próprio indivíduo o autocontrole e vigilância permanentes.

Essas práticas que produzem corpos femininos são frequentemente consideradas banais; no entanto, passam longe disso. Na realidade, elas evidenciam o quanto é esperado que as mulheres se esforcem para parecerem bonitas e atraentes e mantenham uma aparência sempre jovem, livre de pelos, rugas ou marcas como cicatrizes, manchas, celulites e estrias. O corpo deve, sobretudo, ser firme e magro. Quando não corresponde a essas “obrigações”, a mulher é vista como negligente consigo mesma e como alguém que não cuida de si. Na contemporaneidade, o corpo é tido como propriedade do indivíduo, que, por isso, torna-se responsável por ele, o que justifica o dever de ser belo e legitima o julgamento de “gordo”, “feio” e assim por diante. Nesse sentido, os cuidados com o físico e a aparência são considerados formas de preparo para enfrentar esse julgamento e as expectativas da sociedade – ou seja, são investimentos que se faz de acordo com a visibilidade que se deseja ter.

Mira (2004) observa que os anos 1970 e 1980 trouxeram mais coerção sobre o corpo. A ditadura da magreza prevalece, mas não basta: é preciso que o corpo esteja em atividade. O mundo via o crescimento acelerado de práticas corporais como a onda aeróbica que se popularizou por meio de figuras como o Dr. Cooper e seu método e a atriz Jane Fonda, responsáveis por uma nova era da disciplina corporal. Vários países tiveram personalidades que adotaram esse estilo de vida – no Brasil, a atriz Yoná Magalhães foi a protagonista da ginástica aeróbica, enquanto Ala Szerman, professora de educação física e empresária foi pioneira em promover a atividade física na televisão, no programa TV Mulher (TV Globo, 1980-1986). A própria Ala comenta o boom de academias que o país viveu naqueles anos:

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Naquela época [anos 1960], as aulas de ginástica eram para a apresentação, e não para condicionamento físico. O máximo que se fazia no Brasil era ginástica rítmica. (...) Não havia ainda nas atividades físicas dos clubes a preocupação com o peso nem com as medidas harmoniosas do corpo. Dessa forma, quando abri a minha primeira academia, em 1967, a ideia era justamente trabalhar a parte estética para deixar as mulheres com corpo de miss, que era o referencial máximo de beleza da época (...). Depois de algum tempo, as mulheres que frequentavam a [minha] academia foram à praia e fizeram uma propaganda enorme com seus corpos muito bem estruturados, a academia deslanchou e o movimento começou a crescer. No início, o nome desse espaço era Lady Ginastic Center, mas alguns anos depois tive que mudar para Ginastic Center porque os homens, vendo o resultado que suas mulheres haviam conseguido, pediram para abrir horários também para eles. (...) Era o momento certo em termos de mercado. Em pouco tempo já havia seis unidades do Ginastic Center em São Paulo, movimentando mais de 12 mil clientes por mês (HERMANN, 2003:104).

Enquanto a década de 1970 foi marcada pela busca da performance, os anos 1980 experimentaram o culto exacerbado ao corpo, graças à proliferação das academias de ginástica. Foi nesses anos que surgiram as grandes redes de academia no Brasil. A ginástica passou a ser uma necessidade, especialmente nas metrópoles. As grandes cidades pareciam os lugares propícios para o desenvolvimento dessa atividade, devido à estrutura física e perfil de estilo de vida dos cidadãos Ademais, o número elevado da população, os poucos espaços públicos disponíveis, o alto índice de sedentarismo e, sobretudo, o apelo ao consumo, com campanhas de marketing intensivas, contribuíram para a sistematização da prática de atividade física em academias. Cabem aqui, naturalmente, as ressalvas de que as academias eram um luxo não acessível para boa parte da população de um país marcado por desigualdades sociais graves.

Nas duas décadas seguintes, o Brasil se tornaria o maior mercado de academias da América Latina e o segundo maior em número de estabelecimentos no mundo, com quatro mil unidades, sem contar as irregulares ou clandestinas (TOLEDO, 2010:21). Com a proliferação das academias e sua incorporação ao dia-a-dia, teve início uma nova relação dos indivíduos com seus corpos. Segundo Eliane de Toledo,

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A academia torna-se um lugar privilegiado para as construções possíveis do corpo ideal. Com seus métodos precisos, sua diversidade de aulas, seus aparelhos modeladores, e seus professores animados, ela pode oferecer diferentes formas para satisfazer os desejos mais íntimos e massificados.

A ginástica associa-se a um poder de virilidade, de beleza, de saúde, de autonomia. Está concedida pela ginástica, ou pelo corpo malhado, a autonomia da mulher para suas escolhas. O poder de ter e disponibilizar o outro. Em ambos os casos, se faz como uma opção consciente da apropriação deste “novo” corpo que tudo pode, porque lhe é permitido socialmente por meio da ginástica (TOLEDO, 2010:36).

Também a evolução da tecnologia contribuiu para a proliferação das academias e para a mudança na forma de ver o corpo. Isso se deu de forma especialmente notável na medicina, com a introdução de exames menos invasivos e de todo um arsenal de equipamentos digitais, rápidos e ágeis. Não só a cura para vários tipos de doenças já era possível, mas também a sua prevenção, no que a prática de atividades físicas ganha crucial importância. Nesse contexto, o indivíduo passa a ser cada vez mais responsável por sua saúde.

Ao lado da medicina, a publicidade também passa a afirmar a necessidade de o indivíduo cuidar de si. Ao longo dos anos 1980 e 1990, são lançados cremes, loções, vestimentas, aparelhos de ginástica para uso doméstico, adoçantes e uma infinidade de outros produtos que prometem o bem-estar e a saúde. Na mídia em geral, o corpo retratado já não é apenas o jovem e bonito, mas também o magro. Muitos anúncios de cosméticos e clínicas de estética prometem o corpo liso, livre de celulites e outras marcas, além das famosas promessas “perca 4kg em 7 dias” e coisas do gênero. O objetivo do emagrecimento era meramente estético, embora o discurso médico já enfatizasse os problemas de saúde acarretados pela obesidade (TOLEDO, 2010:78).

Em pouco tempo, modelos, bailarinas, atrizes e outras mulheres que trabalhavam com a aparência passaram a desenvolver distúrbios alimentares com frequência cada vez maior, além de problemas com a imagem do próprio corpo. Uma pesquisa da revista Glamour feita em 1984 revelou que 75% das mulheres entre 18 e 35 anos acreditavam

34 ser gordas, embora apenas 25% delas tivesse de fato excesso de peso do ponto de vista médico (WOLF, 1992:245).

A teoria de Wolf está baseada em uma construção de ódio a si mesma que foi imposta à condição feminina, da qual a necessidade permanente de perder peso é uma das bases. Em relação a essa pesquisa de 1984 da Glamour, Wolf comenta que o mais doloroso era ver que as participantes escolheram como seu objetivo mais desejado perder entre cinco e oito quilos em detrimento do sucesso no trabalho ou no amor. Esses famosos “sete quilos” são, segundo a autora, aproximadamente aquilo que se interpõe entre as mulheres que não são gordas, mas que pensam que são, e seu ideal. A natureza desses “sete quilos” seria política e teria o objetivo de gerar culpa nas mulheres quando comem “demais”. Prossegue a autora:

(...) a gordura na mulher é alvo de paixão pública, e as mulheres sentem culpa com relação à gordura, porque reconhecemos implicitamente que, sob o domínio do mito, os nossos corpos não pertencem a nós mas à sociedade, que a magreza não é uma questão de estética pessoal e que a fome é uma concessão social exigida pela comunidade. Uma fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina mas uma obsessão com a obediência feminina. (...) O hábito da dieta é o mais possante sedativo político na história feminina. Uma população tranquilamente alucinada é mais dócil (WOLF, 1992:248).

Parece que se sentir gorda é uma insegurança da qual a mulher nunca se livra, mesmo quando o peso dela é considerado normal. Mais de trinta anos depois da pesquisa de Wolf, outro estudo revela que pouco mudou no que se refere às mulheres e sua percepção de beleza:

A pesquisa [feita pela Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos] foi realizada com 1.800 mulheres com idade média de 59 anos. (...) Dois terços das mulheres disseram pensar em peso diariamente. Mais de 40% olham no espelho todos os dias com a intenção de ver se engordaram. A mesma parcela sobe na balança mais de uma vez por semana. Cerca de 3% relataram sofrer de compulsão alimentar, 8% usam laxantes. Nos últimos cinco anos, 36% das mulheres passaram metade do

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tempo fazendo dieta. Elas usam vários métodos pouco saudáveis na tentativa de perder peso: pílulas milagrosas (7,5%), excesso de atividade física (7%), diuréticos (2,5%), vômitos (1%). Esse comportamento foi relatado inclusive por mulheres de 75 anos ou mais.11

Buscar e manter a boa aparência, o vigor, a juventude e a magreza tornaram-se deveres pessoais. Lipovetsky aponta que, nos dias de hoje, a estética da magreza ocupa um lugar preponderante no que é considerado belo:

Que mulher, em nossos dias, não sonha ser magra? Mesmo as que não apresentam nenhum excesso de peso por vezes desejam emagrecer. (...) Vê-se uma proporção não desprezível de americanas afirmar que o que mais temem no mundo é engordar. (...) Já não se concebe a conquista da beleza sem a esbeltez, as restrições alimentares e os exercícios corporais (LIPOVETSKY, 2000: 133).

No imaginário contemporâneo, a gordura se apresenta como a forma mais representativa de feiura. Talvez por isso a preocupação com excessos de 2kg, 5kg, 10kg, 20kg ou mais tenha a mesma intensidade. É frequente o sentimento de inadequação e ridículo ao qual as pessoas gordas sentem-se expostas. No campo da moda, por exemplo, muitas vezes esse sentimento passa a ser realidade, já que ainda são poucas as marcas que se interessam em trabalhar com tamanhos maiores. A falta de opções com manequins específicos para o público obeso ou revistas com modelos gordas vestindo roupas sensuais e dentro das tendências acaba resultando em uma dessexualização das pessoas gordas, além, é claro, de uma segregação.

Neste processo no qual a responsabilidade sobre o corpo cabe a cada indivíduo, baseada no princípio da autonomia em construir-se, a mídia e sobretudo a publicidade desempenham papel fundamental. Antes limitada a chamar atenção para um determinado produto e exaltar suas virtudes, a publicidade hoje serve, principalmente, para promover o consumismo como estilo de vida. Ela criou um produto próprio: o

11 Disponível em: . Acesso em: 22 de junho de 2012.

36 consumidor, a quem interessa que esteja sempre inquieto e insatisfeito com sua aparência.

Se por muitos séculos as pessoas foram levadas a acreditar que seus corpos não lhe pertenciam, hoje são levadas a crer que o corpo é o objeto central da existência e dos afetos. Como afirma Baudrillard (1991), o culto da higiene, da dieta, da juventude, da virilidade, feminilidade e outros rituais relacionados ao corpo nos indicam o quanto ele passou a ser visto como objeto de salvação. Lipovetsky completa, comparando o culto ao corpo a uma verdadeira religião:

Como todos os cultos religiosos, a beleza tem seu sistema de doutrinação (a publicidade dos produtos cosméticos), seus textos sagrados (os métodos de emagrecimento), seus ciclos de purificação (os regimes), seus gurus (Jane Fonda), seus grupos rituais (Vigilantes do Peso), suas crenças na ressurreição (os cremes revitalizantes), seus anjos (produtos de beleza), seus salvadores (os cirurgiões plásticos) (LIPOVETSKY, 2000:140).

A “teologia da beleza”, como denomina o autor, contribui para manter as mulheres ocupadas e em uma situação de inferioridade psicológica e social, o que seria uma especie de “ópio do povo”. No entanto, parece paradoxal que as mensagens que chegam a essas mulheres sejam de estímulo ao domínio sobre o próprio corpo e suas formas, de luta contra os sinais do tempo ou contra a gordura. Quanto mais normas são impostas, mais esforço é dispendido para a responsabilidade individual e para a autovigilância; quanto mais rígidas são as prescrições sociais da beleza, mais interiorizado é o seu dever.

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Capítulo 2 – Gordofobia

Eu, por exemplo, não gosto de mulheres gordas. Elas me incomodam profundamente. Tenho repulsa, rejeição. Sempre batalhei para não ser uma velha gorda. Jamais compraria um quadro do Botero (pintor colombiano figurativista consagrado por pintar homens e mulheres roliços). (...) É que nem cabelo rastafári. Aquilo é um horror. A pessoa cai no mar e não lava, fica um cheiro terrível. Agora, me diz: por que eu tenho de ser boazinha com a gorda e o cabeludo rastafári? 12

As frases são da atriz Betty Faria, em entrevista para a revista online Glamurama, em setembro de 2015. Opiniões semelhantes em relação ao excesso de peso já foram ditas pela própria atriz e outras personalidades nos mais diferentes contextos, mas essas declarações, em especial, tiveram repercussão diferente. No mesmo dia em que a matéria foi ao ar, diversos blogs de temática plus size manifestaram repúdio à fala de Betty, acusando-a de preconceito e intolerância. Textos longos em redes sociais, mensagens em vídeo e comentários revoltados tomaram conta da Internet nos dias seguintes, exigindo que a atriz pedisse desculpas publicamente por ofender mulheres que lutam para manter a autoestima em alta diante de padrões de beleza considerados homogêneos e opressores. Devido aos protestos, ela teve de se explicar nos meios de comunicação. Há quem diga que se trata de exagero ou da moda do “politicamente correto”, mas é inegável o questionamento: suaa fala teria alcançado tamanha repercussão anos atrás?

Muitos outros episódios de preconceito contra pessoas obesas são relatados diariamente nos blogs e redes sociais. Hoje esse tipo de postura tem nome: gordofobia. Uma pequena parcela dos casos chega à mídia ou às redes sociais. São, geralmente: concursados impedidos de assumir seu cargo devido à condição supostamente iminente de alguma doença; passageiros discriminados por ocuparem “mais espaço do que o devido” nas poltronas de aviões ou ônibus; pacientes mal atendidos por médicos, que os julgam culpados pela própria enfermidade e muitos outros casos do tipo, fora os

12 Disponível em http://glamurama.uol.com.br/betty-faria-para-a-revista-j-p-sempre-batalhei-para- nao-ser-uma-velha-gorda/, acessado em 14 de setembro de 2015. 38 incontáveis relatos de mau atendimento em lojas de roupas e bullying em ambiente escolar ou de trabalho. Atitudes preconceituosas e estigmatizantes são (re)produzidas no ambiente familiar, na mídia, nos planos de assistência médica, nos relacionamentos amorosos, no ambiente de trabalho e na interação com amigos, colegas, professores, chefes e subordinados. Para muitos obesos, o preconceito é parte da vida cotidiana, o que se agravou nos últimos anos com a popularização das redes sociais – atitudes gordofóbicas são mais frequentes entre indivíduos que têm acesso a redes como Facebook, uma vez que elas permitem certo anonimato. Poucos casos chegam a ter alguma solução ou ser encaminhados para a Justiça. A imensa maioria acaba em silêncio, o que demonstra o quanto as questões sociais que envolvem a obesidade ainda são subestimadas.

Compreender o mecanismo do preconceito em relação ao outro quando ele está acima do peso considerado ideal é algo que envolve uma série de fatores. Ao que tudo indica, a obesidade incomoda mais a sociedade do que o próprio gordo. De acordo com Fischler,

os gordos são considerados transgressores; eles parecem violar constantemente as regras que governam o comer, o prazer, o trabalho e o esforço, a vontade e o controle de si. Dito de outro modo, o obeso (seu corpo o trai) passa por alguém que come muito mais do que os outros, mais do que o normal, numa palavra: mais do que a sua parte (FISCHLER, 2005:74).

Num passado não tão distante assim, a figura do obeso era admirada, por ser a gordura associada à prosperidade e à saúde. O corpo bem feito, forte, com uma rotundidade razoável, era preferido ao magro, que denotava escassez, fraqueza e doença. Hoje, a situação se inverteu. A gordura estimula tal repulsa na sociedade contemporânea que é possível dizer que se trata de um “monstro” moderno. Adotamos, aqui, a noção de que monstro é definido como algo que foge à norma e afronta, ou coloca em questão, a norma do humano. Landa, Leite Jr, Torrano afirmam que

A obesidade, do ponto de vista médico, se configura tanto como uma fonte de enfermidades e de riscos (incluindo a manifestação de disposições subjetivas de marginalização social), quanto

39

como ameaça somático-política que atenta contra a crença sanitário-empresarial da (auto)liderança individual e comunitária. A volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do corpo obeso se constituem em marcas somáticas que confessam, através do registro visual, a transgressão dos cidadãos biológicos, que se apresentam em sua condição de desvio radical entre os limites do humano/não humano. (LANDA, LEITE JR, TORRANO 2013: 94)

Os autores acreditam que o corpo obeso perturba tanto porque o monstro em questão é um “interior externalizado”, ou seja, é a alteridade absoluta do humano e faz parte do interior de cada um de nós. Toda sociedade precisa e busca bodes expiatórios em que descarregar suas frustrações, ódios e medos. Se nos séculos passados os perversos e pervertidos sexuais eram alguns dos inimigos a serem combatidos, hoje esse papel é das mulheres gordas e dos fumantes (LEITE JR, 2006:209). O cigarro e a gordura são os demônios da atualidade, que devem ser combatidos pelos esforços unidos da ciência, ética e estética. Toda a sociedade mostra-se engajada em “salvar” as vítimas desses males, tendo como bandeira principal a “saúde”. O cigarro passou de costume masculino ou de prostitutas para algo cheio de glamour graças ao cinema americano, que na primeira metade do século XX o associava à sensualidade e ousadia das mulheres. Aos poucos, o hábito de fumar foi sendo tratado como vício, e a composição do cigarro foi relacionada à origem de diversas doenças, em especial as pulmonares e ao câncer, sem mencionar os riscos aos fumantes passivos. Logo, quem hoje ousa acender um cigarro é um vilão, um pervertido ou, no mínimo, um irresponsável com a saúde alheia. Já no caso das mulheres gordas, a questão parece mais complexa. A obesidade é associada a classes mais baixas e de pouco capital cultural, enfim, a pessoas que não têm condições ou tempo para cuidar de si e que, além disso, são incapazes de distinguir os alimentos que compõem uma dieta balanceada (LEITE JR, 2006:210). Logo, todos os gordos correm sério risco de morte, afinal, gordura é doença. Há ainda a questão estética: ser gordo é estar fora de qualquer padrão de beleza. E, como se não bastasse, o indivíduo com excesso de peso é preguiçoso e desprovido de força de vontade e autoestima. Por isso, ser gordo é fato tolerado apenas como uma possibilidade no outro, jamais em si mesmo. Ser “como o outro”, diz Leite Jr., é motivo de medo e sinônimo de fracasso.

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Vista dessa maneira, a obesidade afeta a vida do indivíduo também em razão de questões emocionais, como a sensação de humilhação, desmoralização, vergonha ou deslocamento. A percepção social julga o corpo gordo como resultado da preguiça, do desleixo, da indisciplina, da improdutividade e da falta de amor próprio e como contrário a tudo o que se encaixe nos conceitos de saudável e “normal”. Frequentemente ocorre algo ainda mais grave: o obeso demonstrar olhar preconceituoso e estigmatizante a seu próprio respeito, utilizando termos e estereótipos em seu discurso. O conceito de estigmatização difundido nas ciências sociais foi elaborado por Erving Goffman (1963), que o definiu como um processo que tende a desvalorizar o indivíduo considerado “anormal” ou “desviante”. Sobre essas pessoas é atribuído uma espécie de carimbo que realça suas qualidades desviantes em relação aos outros indivíduos supostamente normais. Esse carimbo passa a justificar, então, uma série de discriminações sociais e exclusões mais ou menos severas. O indivíduo é reduzido à característica desviante, que se torna, portanto, um estigma, e suas outras qualidades sociais tornam-se secundárias. É o que acontece com os gordos: essa característica física prevalece sobre todas as outras, como altura, sexo, idade, tipo de cabelo etc.

2.1 – Estigmatização e falta de representatividade na mídia

Para Poulain, na obesidade a estigmatização se baseia em um sistema de representações e crenças que fazem dela um reflexo das qualidades morais do indivíduo – “Ele é assim porque come demais. Se come demais é porque não se controla. Se não se controla, é possível confiar nele?” (2013: 117). Julgamentos desse tipo se inscrevem nas crenças de que os comportamentos são controláveis, os indivíduos merecem o que têm e, sobretudo, que a condição de obeso é reversível: se ele realmente quiser, pode perder peso. Ou seja, entra em questão, também, a autoestima e o autocontrole necessários para a empreitada da perda de peso.

A estigmatização da obesidade afeta muito mais as mulheres do que os homens, pelo fato de que elas estão mais submetidas às normas da estética corporal. Muitas vezes, antes das preocupações com a saúde, são razões de ordem psicossocial e estética

41 que as fazem querer perder peso, como a vontade de agradar aos outros e a si própria, cuidar do seu grau de sex appeal ou sentir-se mais bonitas. Poulain lembra que, em números absolutos, diversas pesquisas demonstram que a quantidade de pessoas sem problemas com peso que se preocupam com sua corpulência e desejam emagrecer é praticamente a mesma de pessoas clinicamente obesas que precisam, de fato, perder peso (POULAIN, 2013:119). A luta contra a obesidade passa a ser a luta contra o sobrepeso, às vezes de alguns poucos quilos, o que pode caracterizar uma obsessão. Para um bom número de adolescentes ocidentais, aliás, fazer regime – seja qual for seu peso – faz parte do que se espera de uma mulher. Aderir a uma dieta restritiva é vista por muitas como um sinal de maturidade.

Para Claude Fischler (2005), a figura do gordo é profundamente ambivalente. Pela corpulência passam significados sociais muito profundos. Um dos mais importantes é que nossas proporções corporais demonstram o quanto de comida que nós nos atribuímos, ou seja, a parte que tomamos, legitimamente ou não, na distribuição da riqueza social. É o corpo que vai indicar nossa adesão ao vínculo social, nossa lealdade às regras da distribuição e a reciprocidade. Dessa forma, diz o autor, uma suspeita pesa sobre os gordos. Se não podem emagrecer, eles têm uma possibilidade de se redimir dessa suspeita: precisam proceder a uma espécie de restituição simbólica, aceitando desempenhar os papeis sociais que se espera deles.

Os gordos são considerados constantes violadores das regras que dizem respeito à comida, ao trabalho, ao prazer e ao autocontrole. Uma vez que a divisão da comida simboliza a essência do vínculo social, o gordo transgride as regras e consome mais do que sua parte, mais do que o devido. É natural, então, que a sociedade espere uma espécie de contrapartida disso que o gordo faz em excesso – uma compensação. Mas quais podem ser os termos de troca? Na falta de força, como no caso dos lutadores de sumô ou trabalhadores braçais, o gordo pode pagar seu débito com a sociedade sob a forma de espetáculo e zombaria, o que no mais das vezes ocorre, como é de se esperar, em seu próprio detrimento. É o caso de atores de circo, de teatro ou de luta livre. Outra solução seria apresentar a corpulência em atividades cômicas ou espetaculares, como os atores que constroem personagens baseados na forma física – Oliver Hardy, de O Gordo e o Magro, ou o Sr. Barriga, da turma do mexicano Chaves, para citar apenas dois exemplos. Curiosamente, esses personagens são sempre punidos de alguma forma nos

42 episódios, seja com baldes d´água, tijolos na cabeça, tortas na cara, pontapés no traseiro e outros infortúnios.

Na vida real, a “torta na cara” é o preço a se pagar para não ser rejeitado. Em um grupo no qual o gordo é a figura desviante, é comum que ele acabe desempenhando papel particular e representando certas funções bufas, enquanto lhe é negado o respeito devido aos membros de pleno direito. Sua figura é importante porque conecta os membros do grupo, mas ele não partilha todo o estatuto. Ele está no centro do grupo, mas não como líder, e sim como mascote, confidente, figura cômica etc. O preço a pagar para fazer parte é jamais tornar-se verdadeiramente um membro como os outros (FISCHLER, 2005:76).

Essa impressão de que o gordo não pode ir além das bordas foi tema de um post de Renata Vaz, no blog Mulherão. Ela critica o fato de que a modelo Fluvia Lacerda, uma das mais importantes no mercado plus size, tenha aparecido na Playboy apenas na chamada “edição de colecionador”, virtual, e não nas bancas, como costuma acontecer com demais modelos e personalidades que posam para a revista.

Quando Ju Romano, blogueira fodástica da gordolândia, anunciou que posaria para a Playboy, o mundo (dos magros e das gordas), tremeu. E lá estava ela, com um biquini super discreto, enorme, bem retrozão, estampando um lindo editorial no miolo da revista, mas ouvindo barbaridades como se estivesse de quatro, peladinha (mas se estivesse também, qual o problema?). Julgamento das que se dizem feministas reprovando sua ação, julgamento dos magros gordofóbicos, ofendendo-a e uma legião de gordas admiradas. A negativa de Maria Luiza Mendes [de posar para a Playboy], hoje Top internacional, e o trabalho de Ju Romano foram tão impactantes, que provavelmente levaram Fluvia Lacerda a aceitar estrelar a capa de uma Playboy. Pegou o caminho livre, o choque da gorda na Playboy já havia sido previamente discutido, mastigado e engolido por muitos. Após Ju Romano no miolo da revista, a capa com uma mulher acima dos 100 dígitos seria a consagração para milhares de gordas, inclusive eu. Esperávamos ansiosas pelo ensaio brejeiro, no melhor estilo Juma Marruá, de Flúvia. Mas queríamos a capa. A capa seria a nossa consagração. Mas, peralá. Flúvia estrela uma capa digital intitulada capa de colecionador. Nas bancas, a capa é com uma mulher magra, no melhor estilo musa fitness. Ou seja, usaram a causa plus size e o engajamento das fãs de Fluvia Lacerda para criar burburinho na

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mídia, mas na hora de vender a revista nas bancas, colocam a magra. MAGRA! Pufavô, né? Uma legítima cafajestagem. Isso reforça o que nós, mulheres gordas, estamos cansadas de saber. A gorda é para se ver escondida. A gorda é a amante, a que o cara só pode desejar, namorar e amar quando ninguém estiver por perto. Quanto mais discreto, quieto, escondido, melhor. Já a magra é aquela que ele desfila por aí, sem medo, sem vergonha, casa, apresenta para o chefe, para os amigos. A Playboy reforçou isso, todo esse preconceito. Não foi bonito. Foi escroto. 13

Figura 1: A modelo plus size Fluvia Lacerda, capa da “ Playboy Verão 2017”, de dezembro de 2016, uma edição especial para colecionadores. Fonte:

A representatividade do corpo gordo na mídia ainda é um tabu. Como vimos anteriormente, esse corpo, quando aparece, costuma ser coberto ou retratado em close. A foto de Fluvia Lacerda em uma revista que dá tanta ênfase ao corpo feminino é exemplo dessa vontade de inovar, porém ainda com muito receio.

13 Disponível em http://blogmulherao.com.br/28177/gorda-na-capa-da-playboy-e-uma-farsa-e-reforca-o- preconceito/, acessado em 1º de julho de 2017.

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2.2 - A (in)visibilidade do obeso

Até pouco tempo atrás, a distinção entre robustez e obesidade era mínima. Hoje, chegamos a ter várias denominações para quem tem excesso de peso, como magro, gordinho, robusto, gordo, obeso, obeso mórbido etc. Os nomes seguem critérios muitas vezes subjetivos, que variam conforme o apreço pela pessoa, a aparência, a idade e outros fatores. De qualquer forma, afirma Fischler, “era preciso sem dúvida, no passado, ser mais gordo do que hoje para ser julgado obeso e bem menos magro para ser considerado magro” (FISCHLER, 2005:79).

A julgar pelo que é veiculado na mídia, nosso dia-a-dia não é receptivo ao corpo gordo. Ele não cabe, é ultrajante e, contraditoriamente, visível e invisível. Apenas as pessoas esteticamente perfeitas são “aptas” a ter histórias de amor e relações sexuais satisfatórias. A moda, os esportes, o sucesso profissional e o reconhecimento público são geralmente reservados aos magros. São raras as ocasiões em que gordos, feios, pessoas com deficiência ou velhos aparecem nessas situações. Nosso imaginário não está habituado a ver os feios vivendo esse tipo de realização, o que nos leva a associar a magreza à beleza e a glorificar a “tríplice aliança” formada por magreza, sucesso e felicidade. Sem apresentar esses quesitos, a tendência é o indivíduo sofrer marginalização ou mesmo exclusão.

Desde cedo aprendemos que os corpos revelam suas posições nas diversas camadas da sociedade, de forma que eles são fundamentais para o estabelecimento da vida social e política. Nossas interações dependem das ações, reações e posicionamentos de nossos corpos. Alguns chegam a ser mais públicos e sujeitos à avaliação visual, como no caso de artistas e celebridades, enquanto outros estão sujeitos a olhares críticos de acordo com o sexo, a etnia, a idade, a classe social e outras variáveis. A gordura se apresenta, então, como um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que é indiscutivelmente visível, é também invisível devido à marginalização que sofre, especialmente no caso das mulheres.

As sociedades ocidentais relegam a mulher gorda a um espaço hiper(in)visível. Segundo Gailey (2014), esse fenômeno ocorre explicitamente nas instituições, como no caso em que apenas mulheres magras são designadas pelas empresas para terem contato com o público, e implicitamente no nosso dia-a-dia, quando vemos apenas corpos

45 magros e perfeitos nas revistas, no cinema e na mídia em geral. Para a autora, ser hiper(in)visível significa que algumas vezes a pessoa pode chamar muito ou nada de atenção, o que pode, estranhamente, ocorrer ao mesmo tempo. As mulheres gordas são hiperinvisíveis em suas necessidades e seus desejos e hipervisíveis na medida em que seus corpos ocupam mais espaço físico do que outros e são alvo de julgamentos sociais muitas vezes severos.

Visibilidade é palavra fortemente associada à relevância. Ser visto, portanto, significa ser importante e de fato existir. Uma das maneiras de nos darmos conta de como somos é observar atentamente como os outros nos veem através do prisma que a sociedade identifica como normal. Nós sabemos a onde pertencemos porque temos retorno sobre onde os outros nos posicionam na esfera da vida social. Assim, podemos dizer se um corpo é “normal” ou não analisando se ele é notado no meio da multidão, se os outros se viram para observá-lo ou se a pessoa espera muito ou pouco tempo para ser atendida em uma loja, por exemplo. A normalidade é concebida como um corpo sem deficiências, de pele clara, heterossexual, de tamanho padrão e classe média (GAILEY, 2014:09). Ser visível ou notado é sinal de que a pessoa existe, é claro; ao mesmo tempo, indica que ela é diferente e está sujeita a olhares e avaliações. Homossexuais, gordos, afrodescendentes e corpos com marcas, como tatuagens, cicatrizes e próteses, são considerados visíveis, porém nem sempre de forma positiva. São comuns os olhares de desaprovação e a sensação de serem julgados e ridicularizados a cada movimento. Já os corpos privilegiados como os normais acima descritos são invisíveis no cotidiano, já que não são vigiados ou repreendidos em seus comportamentos. As repercussões quando furam fila, falam alto ao celular ou tossem sem cobrir a boca são mínimas. Em outras palavras, os corpos privilegiados são visíveis quando a situação lhes é favorável. Com os corpos marginalizados ocorre o contrário: são visíveis em momentos inoportunos (GAILEY, 2014:11).

Gailey aponta para o que ocorre com os corpos marginalizados, que não são simplesmente invisíveis ou alvo de pouca atenção; muitas vezes, são completamente apagados ou descartados. Ela ilustra a ideia com entrevista feita com uma afrodescendente americana de 35 anos:

Durante a minha adolescência, quando eu não era tão gorda, as pessoas falavam comigo em público e eram legais. Dava para ter

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conversas amigáveis enquanto pagava algo no caixa ou com alguém que cruzasse pelo caminho. Já durante minha fase mais gorda, no final dos meus 20 anos, eu pensava: “sou a pessoa mais gorda aqui e ninguém está me vendo de verdade”. É como ser invisível, as pessoas olham através de você. Os caixas sequer olham para seus olhos quando falam com você. Agora, com o maior peso que já tive, é como ser descartada. Você é descartada antes mesmo que sua presença seja notada (2014:12). 14

Depoimento semelhante foi descrito por Novaes, que entrevistou uma mulher que havia passado por cirurgia bariátrica:

Três dias antes de operar tive uma crise e quase não operei. Liguei chorando para minha amiga Odete, que também operou com o P., e disse: Odete, pra que eu vou operar, só para os outros me tratarem melhor? Ou seja, vão me abrir, me mexer toda por dentro, vou me arriscar a morrer, para que os outros me tratem de uma maneira diferente? Será que isso vale a pena? O pior é que vale... Nada supera você virar uma pessoa a quem os outros consideram normal (2006:184).

A esperança de poder controlar o corpo e o destino por meio da alimentação está presente em outras sociedades, de uma ou outra forma. Num contexto de epidemia de obesidade e de obrigação com a própria saúde, que são características da nossa sociedade moderna, controlar a alimentação é tentar moldar a aparência e os riscos sociais que estão associados à gordura.

Como dito anteriormente, muitas vezes o próprio estigmatizado contribui para a sua condição, aceitando o julgamento imposto pelos outros. Segundo Goffman, o processo de estigmatização se desenvolve em cinco etapas:

- a etiqueta de “anormal” é atribuída a um indivíduo por outros, durante as interações sociais;

14 “During my teenage years when I was not as heavy, people spoke to me in public, they were nice. You could get friendly conversation out of a cashier or a passerby. During my heaviest and my late 20s, it was like, I know, I´m the biggest person in here yet nobody actually sees me. It´s almost like being invisible; people look right through you. Cashiers don’t even look you in your eyes when they speak to you. Now, at my heaviest, no; it´s like dismissive; you´re just dismissed before you can even make your presence known” (tradução livre)

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- o indivíduo vê-se então reduzido ao seu estigma e suas outras qualidades sociais tornam-se secundárias; - a etiqueta justifica uma série de discriminações sociais; - o estigmatizado interioriza a desvalorização; - o estigmatizado considera justificados os julgamentos que lhe são atribuídos e a armadilha se fecha sobre ele. (apud POULAIN, 2013: 117)

É nesse terreno de ideias, boa parte pré-concebidas, que a estigmatização desenvolve suas raízes. No ambiente de trabalho, por exemplo, os candidatos a uma vaga são vistos pelos empregadores como pessoas de baixo autocontrole, péssimo desempenho e produtividade, menor ambição e até mesmo má higiene. Caso que representa esse tipo de preconceito foi descrito pela revista IstoÉ:

Durante três anos, a fisioterapeuta paulistana Bruna Luiza dos Santos, 27 anos, peregrinou atrás de um emprego depois de graduada, sem sucesso. Ela não se encaixava no perfil das empresas. Uma situação aparentemente corriqueira entre recém- formados, mas nem tanto para Bruna. No caso dela, a palavra “perfil” poderia ser substituída por “silhueta”. Apesar de apresentar todas as qualificações para as vagas, ela tinha quase 90 quilos, uma barreira que impedia os recrutadores de enxergar suas qualidades profissionais. Em depressão, descontava na comida. Só quando atingiu os 116 quilos resolveu dar um basta e apelou para uma solução radical: a cirurgia bariátrica (de redução do estômago). “Não via saída, tive de me reconstruir”, conta. (...) “Agora, as pessoas abrem espaço para eu entrar no ônibus”, comenta Bruna Luiza, que hoje tem 60 quilos e o emprego que sonhou. Depois da cirurgia, ela nunca mais sofreu com o afastamento dos amigos, os olhares de desprezo ou pena e a vergonha de experimentar roupas em lojas.15

Se não tivesse optado pela cirurgia bariátrica, provavelmente Bruna se encaixaria em estatísticas segundo as quais os obesos, além da maior dificuldade de encontrar emprego, têm índice de acesso ao ensino superior mais baixo que os magros, renda pessoal média mais baixa e menos oportunidades de ascensão profissional, entre outras dificuldades cotidianas. Em função dessas consequências sociais negativas, é

15 Revista IstoÉ, edição 2153, 11 de fevereiro de 2011.

48 possível dizer que a obesidade pode ser considerada, nas sociedades ocidentais, uma verdadeira deficiência social. A autodesvalorização e o ostracismo social consequentes da estigmatização têm grande impacto sobre o sucesso ou o fracasso escolar e profissional do indivíduo. Eles afetam, também, a socialização alimentar e o estabelecimento de categorias cognitivas e de esquemas comportamentais utilizados durante toda a vida (POULAIN, 2013:119).

Nos blogs analisados, a questão profissional, quando abordada, é quase sempre pelo viés da moda. O blog que mais trata do assunto é o Mulherão; há muitos comentários sobre o mercado de trabalho plus size, ou seja, os textos se atêm ao nicho ao qual o blog se destina. Quando fala do mercado em geral, Renata Vaz é contundente em relação ao tratamento que os gordos recebem:

Apresentei 2 anos (sic) um quadro de moda na TV. Eu era consultora de moda plus size do programa. Além de mim havia outra consultora de moda, para as magrinhas. Aí me pergunto o porquê de uma consultora de moda magra poder falar para as gordas, mas nunca confiarem em uma consultora gorda para falar de moda para magras? Quando cobro pelo meu trabalho vejo pura indignação. Como assim essa gordinha quer que eu pague para ela me divulgar? É como se eu, por ser gorda, devesse erguer as mãos para o céu e agradecer todas as inutilidades que querem me dar em troca do meu trabalho16.

A percepção da estigmatização dos obesos recai ainda sobre as relações entre a obesidade e o estatuto socioeconômico, uma vez que as posições sociais poderiam ser, ao menos em parte, influenciadas por ela. Em resumo: a obesidade dificulta a ascensão social. É preciso lembrar que homens e mulheres sofrem com a obesidade de formas distintas, especialmente em quesitos como o nível de educação, a atividade profissional e o casamento. Entre os homens, o estudo e a carreira desempenham papel mais importante do que entre as mulheres. Já para elas, o casamento é consideravelmente mais importante. As mulheres magras fazem mais casamentos ascendentes (casam-se com homens de status social mais elevado) do que as gordas. “Sob a pressão do modelo

16 Disponível em: . Acesso em: 8 de novembro de 2017.

49 da estética da magreza, o casamento parece ser uma verdadeira ‘estação de triagem’, orientando as mulheres magras para cima da escala social e as gordas para a parte mais baixa”, diz Poulain (2013:122). Essa constatação se encaixa na descrição que Goldenberg faz do corpo como “capital”:

Na cultura brasileira contemporânea, determinado modelo de corpo é uma riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos das camadas médias urbanas e também das camadas mais pobres, que o percebem como um importante veículo de ascensão social. Nesse sentido, além de um capital físico, o corpo é um capital simbólico, um capital econômico e um capital social. Desde que seja um corpo sexy, jovem, magro e em boa forma, que caracteriza como superior aquele ou aquela que o possui, conquistado por meio de muito investimento financeiro, trabalho e sacrifício (GOLDENBERG, 2008:15).

A pouca possibilidade de mobilidade social para as mulheres gordas com o casamento foi comprovada em estudo do Hospital do Coração de São Paulo em 2010. Segundo a pesquisa, dos 600 entrevistados (300 homens e 300 mulheres entre 18 e 60 anos), 81% afirma que a obesidade interfere na ascensão profissional e 78% acreditam que o excesso de peso dificulta o relacionamento conjugal. O estudo ainda revelou o seguinte:

entre os entrevistados do sexo masculino, 54% afirmou não ter interesse em construir uma relação matrimonial com pessoas acima do peso. Para o sexo feminino essa conclusão é um pouco menor (em torno de 46%). No que diz respeito às classes sociais, 66% dos entrevistados que pertencem à classe A não assumiriam a união, contra 44% da classe B e 51% da classe C.17

Voltando ao mercado de trabalho, nas empresas é comum que os responsáveis pela seleção de candidatos desenvolvam avaliações negativas com mais frequência no caso dos obesos do que com os magros com a mesma qualificação, dificultando assim sua ascensão profissional. O efeito do peso corporal tanto sobre o salário quanto sobre a probabilidade de emprego assume uma relação significativa positiva para homens e um

17 Disponível em http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/bem-estar/19,0,3118385,Maioria-dos- homens-nao-se-casaria-com-parceiras-acima-do-peso.html, acessado em 23 de novembro de 2010.

50 impacto negativo para as mulheres. Para eles, estar em situação de obesidade está associado a um prêmio de probabilidade de emprego de 2,2 pontos percentuais, enquanto para elas a mesma condição está associada a uma penalidade na probabilidade de emprego de 4,3 pontos percentuais (TEIXEIRA E DIAS, 2011:206). Existe, assim, relação muito forte entre a corpulência e a dinâmica da renda pessoal, bem como entre a corpulência e o sentimento de melhoria ou de degradação da situação profissional.

Um estudo da Catho, uma das maiores empresas de recrutamento profissional do Brasil, revelou que a obesidade é a terceira causa de objeção do empregador na hora da contratação de um executivo, só perdendo para a inconstância nos cargos e para o tabagismo18. Em determinadas circunstâncias, o preconceito no ambiente corporativo pode ser escorado em motivos médicos, pois obesos têm maior propensão a doenças como diabetes e hipertensão. Essa é uma grande preocupação para as empresas, porque faz aumentar os períodos de licença, o índice de faltas ao trabalho e as despesas com tratamentos médicos. Não por acaso, muitas empresas têm investido em programas de emagrecimento entre seus colaboradores, que incluem desde palestras motivacionais a medidas de prevenção, como alimentação adequada e atividade física. Algumas chegam a oferecer benefícios como vale-academia.

Recentemente, uma companhia passou a vincular, em um de seus programas de recursos humanos, o cumprimento de metas de emagrecimento a um período adicional de férias. Esse tipo de ação, pode ter um efeito colateral indesejado, afinal, sabe-se que a gordura perdida pode voltar se a motivação do regime não for genuína ou se os hábitos alimentares não tiverem realmente mudado. Como fica, então, a vida do sujeito que volta a engordar? Vão achar ele fraco, desmotivado, pouco engajado?

No entanto, apesar dessas iniciativas que têm como objetivo melhorar a qualidade de vida dos colaboradores, prevenir doenças e assim reduzir os custos com faltas e planos de saúde, algumas empresas podem estar sendo mais invasivas do que protetoras. Além disso, ocorre que o trabalho, que já ocupa muitos momentos que deveriam ser reservados ao descanso e ao ócio em casa, agora pode trazer angústia a cada refeição – ou seja, são 24 horas em função dele.

De forma parecida, diversos planos de saúde premiam ou oferecem desconto para os clientes que perdem peso, como forma de evitar ou conter aumento de custos no

18 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0511201001.htm, acessado em 5 de novembro de 2010. 51 setor. Estudos mostram que, a cada 1% de redução no peso, na pressão arterial e nos níveis de glicose, há uma economia entre US$ 83 a US$ 103 em despesas médicas por pessoa19. Uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde e ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) revelou que a proporção de obesos entre usuários de planos de saúde chegou a 17% em 2015. No total, o índice de usuários que estão acima do peso ideal chega a 52,3%. Em 2017, quando a pesquisa foi divulgada, 47,5 milhões de brasileiros tinham plano de saúde. Havia, então, quase 1.500 programas de prevenção e promoção à saúde sendo ofertados no país, por 379 das operadoras - equivalente a 34% do total. Em 2010, eram apenas 82 programas nos mesmos moldes20. Alguns desses programas premiam com bônus, bolsas, ingressos de cinema e até notebooks os usuários que se comprometem a incorporar hábitos saudáveis no dia a dia, o que inclui também a maior frequência na realização de exames preventivos21.

Já no caso de usuários de planos de saúde que ganham peso, a situação é outra. Países como os Estados Unidos debatem se é justo que eles paguem mais em suas mensalidades ou sejam premiados quando emagrecem. Lá, empresas têm autonomia para decidir o que quiserem em relação ao seguro-saúde. A legislação americana permite que elas cobrem até 30% a mais dos trabalhadores que não se enquadram nas exigências do plano de saúde. Segundo pesquisa, penalizar funcionários que não cuidam da saúde é uma tendência na maioria das empresas norte-americanas: 60% planejam adotar essa medida.

A Michelin North America Inc. colocou-a em prática em 2014. Funcionários com pressão arterial elevada ou mais de 100 cm de cintura pagam até US$ 1 mil a mais por ano pelo seguro-saúde. Outras empresas, como a varejista Walmart, adotaram

19 Disponível em: . Acesso em: 19 de maio de 2015.

20 Disponível em: . Acesso em: 22 de fevereiro de 2017.

21 Disponível em: . Acesso em: 19 de maio de 2015.

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penalidade parecida aos funcionários fumantes-que têm que pagar US$ 2.000 a mais pelo plano de saúde22.

Para entidades de defesa dos direitos trabalhistas, penalizar funcionários por excesso de peso ou tabagismo é uma medida discriminatória e injusta, já que muitas pessoas precisam de ajuda para a mudança de hábitos. O ideal seria que essa cobrança, se feita, ocorresse depois da implementação de algum tipo de programa de prevenção desses males. O argumento dos executivos é de que os custos com saúde são cada vez mais altos (segundo levantamentos, 20% dos funcionários de uma empresa são responsáveis por 80% dos custos com saúde, especialmente no caso de doenças causadas pela obesidade, sedentarismo e tabagismo), e que sem algum prêmio ou penalidade é muito difícil que haja adesão e comprometimento dos funcionários.

Em relação à diferenciação de cargos e salários, o que já existe entre homens e mulheres fica ainda mais aprofundado quando se trata de obesos. As mulheres gordas são mais propensas a ocupar posições que enfatizam a atividade física, porém são as menos requisitadas quando o trabalho em questão exige mais interação com o público. Esse padrão não existe quando se trata de homens gordos. Há também uma grande defasagem salarial entre os cargos ocupados por mulheres, uma vez que aqueles que exigem mais força braçal costumam ser de menor remuneração. Além disso, se duas mulheres exercem funções em que lidam com clientes ou público em geral e uma delas for obesa, é quase certo que esta receberá menos do que sua colega magra. Situações desse tipo são corriqueiras no mundo do trabalho e revelam o quanto a discriminação ainda é presente na vida de mulheres acima do peso. Diversos estudos já comprovaram essa relação entre a obesidade e os salários mais baixos. O que ainda não está tão evidente é por que isso ocorre.

Duas hipóteses podem explicar essa relação. Segundo Jennifer Shinall (2015), pesquisadora da Vanderbilt Law School, nos Estados Unidos, a primeira é que os trabalhadores obesos parecem evitar certas ocupações que o excesso de peso torna difíceis. Por parte dos empregadores, isso exigiria compensações diversas para que o funcionário pudesse exercer suas atividades sem qualquer prejuízo. A segunda hipótese,

22 Disponível em: . Acesso em: 22 de fevereiro de 2017.

53 muito mais provável, é a de que o custo de um empregado obeso é mais alto para as empresas. A obesidade pode baixar a produtividade de um funcionário ou exigir que o empregador busque compensações para adaptar o ambiente e equipamentos ou outros benefícios, sem mencionar a maior frequência de faltas e licenças médicas.

Para Shinall, atribuir a remuneração mais baixa à menor produtividade dos obesos é algo complicado devido à diferença entre os gêneros: enquanto a obesidade parece não ter relação com atividades braçais ou de interação com o público para os homens, para as mulheres isso está evidente. Cabe então a teoria da atratividade física. Sem dúvida, um dos maiores impactos do excesso de peso recai sobre a aparência. Diversos estudos já relacionaram a boa aparência a uma maior capacidade de persuasão, entre outras características importantes para atividades que lidam com o público; assim, obesos seriam menos eficientes nelas. Mais uma vez, aqui não se consegue explicar por que as mulheres seriam menos produtivas do que os homens que ocupam a mesma função. Diante de tantos fatos sem explicação plausível, a pesquisadora acaba por acreditar na simples hipótese de que o público e os clientes veem a obesidade mais palatável para o sexo masculino. O mesmo acontece entre adolescentes, que acreditam que é “mais normal” para homens apresentar sobrepeso (SHINALL, 2015).

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Capítulo 3 - Mudanças no posicionamento do mercado em relação às mulheres consideradas gordas

Caso deseje ser bela e atraente, a mulher precisa, em primeiro lugar, estar dentro do peso ideal. Ou precisava: ao menos na ficção, cada vez mais, seriados, novelas e filmes trazem atrizes e modelos gordas como protagonistas ou em papeis de destaque, nos quais, assim como a heroína, podem viver romances e ter sucesso em suas atividades. No mundo real, revistas femininas já incluem com mais frequência tamanhos maiores em editoriais de moda e eventos como os concursos de beleza plus size sugerem que é possível ser bonita e sedutora também em trajes íntimos ou moda praia, tidos como tabu para mulheres acima do peso.

Se, por um lado, a pressão pelo corpo ideal é alimentada pela sociedade de consumo, por outro, é visível que algo vem mudando, como uma espécie de reação, no que diz respeito às pessoas consideradas acima do peso. Ao longo da última década, espaços que sempre fecharam as portas a esse público, como a mídia e a moda, já o veem com mais interesse.

Sem dúvida, o grande salto para a valorização e empoderamento das pessoas vistas como acima do peso passou pela moda e pela reformulação no conceito de tamanhos grandes, o que incluiu tratá-lo por um novo nome: plus size. Ser uma mulher plus size não é apenas estar acima do peso ou vestir manequim acima do 44. O termo envolve atributos como vaidade, sensualidade, alegria e orgulho de suas próprias formas. A ideia supõe que a mulher plus size sabe o tipo de roupa que lhe cai bem e valoriza detalhes como decotes e acessórios. Trata-se, portanto, de um conceito que diz mais respeito ao amor próprio do que ao físico em si.

Da mesma forma que acontece com termos como “obeso” e “acima do peso”, o plus size não pode ser medido em termos absolutos. Há, também, grande incoerência no uso do termo por parte das confecções e da indústria da moda em geral. Nas agências de modelos, o corpo plus size tampouco segue medidas estabelecidas, muito embora seja comum ver que mulheres aparentemente magras são encaixadas no segmento. Ou seja: o corpo dessas modelos é muito menor do que o corpo que circula pelas ruas e para o qual os fabricantes de roupas desse mercado produzem peças. A própria tabela de

55 tamanhos considerados plus size é bastante ampla, o que, além de dificultar a padronização, abre nichos dentro de um próprio nicho. Uma rede de lojas pode trabalhar do manequim 42 ao 48, enquanto outra vai do 44 ao 60, por exemplo.

Sempre houve confecções e lojas especializadas em tamanhos grandes e numerações difíceis de serem encontradas nas lojas comuns. Algumas marcas já são conhecidas no mercado, como a Camisaria Varca, criada nos anos 1950; a Kauê Modas, no final dos anos 1980, e ainda a Palank, em meados da década de 1990. As mais antigas geralmente seguiram o caminho mais tradicional no ramo: após algum tempo, perceberam a existência de um nicho ao qual poderiam se dedicar e obter mais lucros. Já a Palank foi uma das primeiras e nascer já com a intenção de focar no mercado feminino, carente de roupas modernas e alinhadas com tendências de moda. Antes de essas lojas se estabelecerem no mercado, quem precisava adquirir algo maior tinha à disposição, geralmente, pequenas lojas de bairro ou confecções que ofereciam as mesmas peças em grades mais amplas – ou seja, o mesmo corte, apenas maior. Não por acaso, falar em “tamanhos maiores” foi, por muito tempo, o mesmo que falar em roupas para idosos ou outros públicos que presumidamente não faziam questão de vestir estilos mais contemporâneos.

A pesquisadora Marcela Betti lembra que, apesar da existência discreta desse segmento, não havia até meados dos anos 2000, de maneira generalizada, todo um aparato mercadológico e midiático como acontece com a moda tradicional, que conta com propagandas, catálogos, desfiles, eventos, celebridades, editoriais em revistas e outros meios de divulgação. “(...) somente nos últimos anos que um conjunto de estruturas comerciais e publicitárias relacionadas a este segmento específico [plus size] vem tomando fôlego, tornando-se mais semelhantes às estruturas do mercado de moda mais geral” (BETTI, 2014:56). É difícil especificar em que momento exatamente a moda plus size começou a se expandir e ganhar visibilidade, mas alguns fatores explicam por que o fenômeno é recente. Em primeiro lugar, vem a participação importante da Internet, com redes sociais e blogs dedicados ao tema, como veremos adiante. Em seguida, o surgimento de eventos como o Fashion Weekend Plus Size, em 2010, que se firmou como uma vitrine do mercado. Por fim, a expansão do mercado consumidor no Brasil, o que está relacionado ao aumento de renda de parte importante da população brasileira, que passou a consumir mais (BETTI, 2014:58). Já segundo profissionais da moda plus size, as razões da expansão desse mercado envolvem

56 também o aumento da obesidade na população brasileira (mais da metade é considerada acima do peso, como visto anteriormente) e a maior exigência das consumidoras gordas em relação às roupas que consomem: querem mais qualidade nos tecidos, nos cortes, estampas etc. É isso o que chama a atenção do mercado: as mulheres tidas como acima do peso passaram a ser reconhecidas e transformadas em consumidoras que não querem apenas roupas para vestir, mas para se sentir na moda, bonitas e bem consigo mesmas.

Ao que tudo indica, a estratégia de ver os consumidores gordos com outros olhos tem dado bons resultados. Nos Estados Unidos, por exemplo, o aumento de peso da população foi apontado como uma das melhores apostas para revigorar negócios que estiveram em crise nos últimos anos. Apenas entre abril de 2009 e abril de 2010, por exemplo, o nicho plus size cresceu 1,4% no país, ao passo que a moda em geral baixou 0,8% no mesmo período23. No Brasil, o setor cresce em média 10% ao ano e só começou a ganhar força nos últimos cinco anos. Calcula-se que sejam cerca de 200 as confecções nacionais especializadas em tamanhos grandes24, que vendem seus produtos em cerca de 300 lojas físicas e aproximadamente 60 virtuais25. Apenas em roupas femininas, o segmento plus size brasileiro fechou o ano de 2015 com faturamento de mais de R$ 6 bilhões26. Em 2016, só na capital paulista, o segmento movimentou no varejo cerca de 200 milhões de reais, um aumento de aproximadamente 11% em relação ao ano anterior, um feito e tanto em momentos de crise. No país, o comércio de vestuário no geral evoluiu apenas 1,3% no mesmo período27.

O impacto que esses números têm causado no varejo é visível. As lojas que ofereciam alguns itens em numeração maior já não deixam essas araras tão escondidas e outras, que sequer pensavam no segmento plus size, hoje já são referência. É o que acontece com algumas lojas de departamento, como Marisa, Riachuelo e Renner – esta

23 Disponível em: . Acesso em: 20/06/2010.

24 Disponível em: .Acesso em: 30 de junho de 2012.

25 Disponível em: . Acesso em: 3 de agosto de 2017.

26 Disponível em: . Acesso em: 10 de julho de 2016.

27 Revista Veja São Paulo, ano 50, n.º 11, 15 de março de 2017.

57 com uma marca própria, Ashua, que comercializa peças exclusivamente online. Mesmo redes varejistas como Extra e Carrefour contam com estilistas em suas equipes, que captam tendências e desenham peças exclusivas para tamanhos maiores. Se no comércio mais popular o termo plus size já é bem conhecido, as marcas mais sofisticadas não ficam para trás. Muitas já deixaram de lado o próprio preconceito de atrelar sua imagem às pessoas gordas. A polêmica com a americana Abercrombie foi um marco nesse sentido – em 2014, o então CEO da marca, Mike Jeffries, declarou que queria que suas roupas só fossem usadas por “gente bonita”, de forma que sequer fabricavam peças nos tamanhos G ou GG28. A declaração gerou uma onda de protestos em vários países, além de boicote à marca por parte de artistas, celebridades e ativistas de movimentos antigordofobia. Agora, a percepção geral no mundo da moda é de que se trata de um mercado bastante promissor. Em 2016, a marca de itens esportivos Nike já havia surpreendido o público ao anunciar a venda de artigos para mulheres plus size. Camisetas, tops, leggings, shorts e blusões com tecidos tecnológicos voltados para diferentes práticas esportivas, que raramente iam além do tamanho M, agora estão disponíveis nos tamanhos G, GG e GGG. A nova linha vem sendo anunciada por algumas das blogueiras de moda plus size mais famosas do mundo29, o que rompe um paradigma que opunha esportes e pessoas gordas.

O ambiente das lojas e a experiência de compra também recebem investimentos a fim de atrair esse público. O famoso comentário “não temos roupas para seu tamanho”, tão temido pelos consumidores gordos, foi abandonado. Vendedores já são orientados a evitar olhar esse cliente com desprezo e zombaria. Muitas lojas, inclusive, preferem contratar vendedores eles próprios acima do peso, o que supostamente favorece a identificação com os clientes. Betti (2014:64) conta que percebeu, visitando algumas lojas especializadas na cidade de São Paulo, que o ambiente não é o mesmo que se via até pouco tempo atrás, com improvisos ou provadores desconfortáveis. Agora, o espaço costuma ser bem iluminado, com araras que permitem que os clientes olhem e toquem os produtos. Os provadores são maiores, com espelhos grandes e ar condicionado, o que deixa mais confortável a constante troca de roupas. Todas essas

28 Disponível em: . Acesso em 12 de julho de 2017.

29 Disponível em: . Acesso em: 12 de julho de 2017.

58 mudanças, acompanhadas de divulgação, campanhas de propaganda, eventos, desfiles e outros itens antes vistos apenas na moda convencional, já não são mais “adaptados” aos tamanhos maiores, e sim concebidos de forma a atender esse segmento de mercado. Isso já é visível e já ocasiona mudanças em alguns setores mais tradicionais, que agora reconhecem esse público como rentável ou merecedor de um pouco mais de atenção.

3.1: Segmentação de mercado: a “inclusão” de gordos, velhos e outras minorias

A criação de um segmento de mercado não é, de forma alguma, novidade na moda ou na mídia. Algumas teorias da comunicação ajudam a explicar como se dá esse mecanismo. A Teoria Crítica, formulada pela Escola de Frankfurt, faz observações severas em relação à dinâmica da sociedade capitalista. Para os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, a indústria cultural homogeneíza as possibilidades artísticas e criativas a ponto de eliminá-las, especialmente no campo da cultura (HOHLFELDT, 2011). Dentro do modelo de produção capitalista, tudo passa a ser padronizado, seguindo modelos industriais de produção em série, mercantilização e consequente criação de “standards”. Só é aceito pelo sistema aquilo que é incorporado de forma produtiva. De acordo com esse entendimento, a criação do conceito plus size seria uma forma de a indústria cultural incorporar um novo tipo de consumidor. Afinal, é interessante que todos estejam inseridos na sociedade de consumo, não por cidadania ou inclusão social, mas para, em primeiro lugar, trazer ganhos ao sistema capitalista.

Esses ganhos, em muitos casos, dependem da iniciativa rápida das empresas em relação ao momento sócio-cultural-econômico e ao seu público. Bons exemplos para esse raciocínio podem ser encontrados na história da imprensa no Brasil. A partir de meados dos anos 1980, ela passou por um intenso processo de segmentação, o que se via também no rádio e, de forma ainda incipiente, na TV, com a chegada dos canais pagos. Nos jornais, eram criados suplementos voltados a crianças, adolescentes, mulheres e a interesses variados, como jardinagem, informática, literatura etc. Já nas revistas, como afirma Maria Celeste Mira, esse processo foi ainda mais intenso. O grande marco foi a criação da Editora Azul, em meados dos anos 1980, que absorveu da Abril alguns títulos e criou outros a partir de estudos de nichos de mercado. Segundo

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Mira, a Azul era uma editora menor, que seguia uma lógica diferenciada das revistas segmentadas: menor tiragem, públicos e anunciantes específicos e mercado mais instável. Nas palavras da autora,

A criação da Editora Azul representou uma tentativa de adaptação à reorganização industrial característica, segundo David Harvey, do novo modo de regulação do capital, a “acumulação flexível”. Tendo como marco a crise do petróleo, 1973, o capitalismo mundial entraria numa nova fase desencadeada pela crise do fordismo, ocasionando transformações nos processos e no mercado de trabalho, bem como nos produtos e nos padrões de consumo (MIRA, 2001:148).

O mercado direcionava-se para uma organização direcionada à flexibilização. A estrutura fordista já era considerada lenta e incapaz de atender com agilidade demandas específicas. Para os empresários, flexibilizar a estrutura de suas organizações era a melhor maneira de descobrir e responder rapidamente ao que o mercado pedia. Foi a partir dessa nova ordem, que impactou os anunciantes e suas agê ncias, que as áreas de marketing e vendas foram ganhando cada vez mais importância nos organogramas (MIRA, 2001:149).

Os títulos que a Azul lançou em poucos anos conseguiu fazer dela a segunda maior editora do país em número de títulos. Nos seus dois primeiros anos de existência, ela incorporou dez novos títulos. Tudo isso só foi possível porque a editora conseguiu explorar variáveis importantes: a faixa etária e a classe socioeconômica do leitor. Muitos dos títulos eram voltados aos jovens, responsáveis por uma verdadeira explosão no mercado editorial em meados dos anos 1980-1990. Acompanhar de perto a transformação nos relacionamentos entre gerações e nos conceitos de masculinidade e feminilidade também conduziu a sucessos editoriais no período.

Atualmente, uma editora precisaria de ainda mais flexibilidade para sobreviver em um mercado tão instável e competitivo. Muitos títulos tradicionais já deixaram de circular ou se restringiram à versão virtual, como no caso de Capricho e Placar, da editora Abril. As revistas não são mais referência em informação quando há tantos outros meios para obtê-la. Nem mesmo a qualificação e o gabarito dos profissionais responsáveis por um veículo garante o seu sucesso. Além disso, o poder de influência da

60 mídia impressa em geral diminuiu diante das infinidades de possibilidades, abordagens, enfoques e personalidades do mundo virtual.

Segundo Dulcília Buitoni, as imagens na mídia estão diretamente relacionadas com a construção das identidades dos sujeitos no cenário contemporâneo. Até pouco tempo atrás, as identidades eram mais estáveis e pouco questionadas pelos indivíduos. Hoje, diz a autora, elas tornaram-se mais móveis, múltiplas e sujeitas a mudanças e inovações, recebendo influências das imagens em circulação nas mídias e nas redes sociais (BUITONI, 2016:72). Antigamente, as identidades eram construídas a partir do coletivo – hoje, isso ocorre em função da individualidade. “A identidade é uma construção a partir dos papéis e dos materiais sociais disponíveis. Por isso, na era do consumo, o sujeito tem sido cada vez mais vinculado à produção de uma imagem — a aparência vem ganhando mais e mais valorização”, prossegue a autora, para concluir: “a mídia tem grande poder nos dias atuais, insinuando que quem quiser aparecer, transformar-se em novo, ter sucesso, deverá dar atenção à imagem, à aparência, à moda” (BUITONI, 2016:72).

Neste início de século XXI, vivemos em um contexto sociocultural no qual a liberdade de escolha de ser quem se é torna-se uma busca e uma construção diária por um estilo de vida autêntico. Nesse sentido, a personalidade não se faz apenas de valores e princípios morais, mas ganha a extensão da imagem pública. Assim, roupas, bolsas, acessórios e comportamento não estão no plano material e da futilidade, mas fazem parte de uma espiritualidade construída. A busca pela própria identidade a partir das imagens reforça o poder simbólico da construção do “Eu” pela moda no contexto pós- moderno, ou seja, construir um estilo que signifique. Como afirma Lipovetsky (2009:18), “é preciso seguir a corrente e significar um gosto particular.”

A discussão se insere no âmbito do debate acalorado sobre a construção da identidade na pós-modernidade. Segundo Stuart Hall (2006), o período marcado pela modernidade produziu utopias e um sujeito unificado, racional e consciente de seu papel no mundo em relação às instituições tradicionais (a família, a religião e o trabalho). Todavia, este cenário entrou em colapso devido à mudança estrutural ocorrida no final do século XX. Giddens (1990) faz uma comparação entre os ambientes de confiança e risco nas culturas pré-modernas e modernas. Para o autor, os chamados ambientes de confiança, como relações como o parentesco, a comunidade, as cosmologias religiosas ou mesmo a tradição, considerada meio de conexão entre passado e futuro,

61 transformaram-se em algo mais descentralizado, baseado em pensamentos e relações que não têm, obrigatoriamente, conexão entre si. Relações pessoais de amizade ou intimidade sexual, por exemplo, são, na modernidade, meios de estabilizar laços sociais, função que outrora cabia à família. Já o ambientes de risco, para Giddens, na pré- modernidade cabiam às ameaças da natureza (desastres naturais, epidemias etc), às guerras e suas consequências (pilhagens, bandidos e afins) e a influências religiosas malignas. Na modernidade, as ameaças partem da violência humana derivada da industrialização da guerra e da falta de sentido pessoal, resultante da reflexividade da modernidade enquanto aplicada ao eu (GIDDENS, 1990).

Esse pensamento vai de encontro ao de Hall (2012), para quem as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais, agora encontram-se fragmentadas. Essas transformações impactaram também as identidades pessoais e a noção que tínhamos de nós mesmos como sujeitos integrados.

Essa "crise de identidade" implicou não só a revelação de dúvidas e incertezas, mas produziu um cenário sócio-político de lutas e reivindicações das diversas “minorias” que buscam se integrar e participar do novo cenário. Destacam-se os movimentos ecológicos, a defesa do gênero, das relações homoafetivas e de bandeiras étnicas, além de outros movimentos pulverizados em diferentes temáticas.

Existe, para Hall, uma instabilidade do homem em conhecer seu “eu”, o que resulta nessa crise. O autor distingue três concepções de identidades que integram as discussões dos teóricos sociais: o sujeito do Iluminismo, baseado em uma concepção individualista, de identidade centrada, unificada e contínua; a do sujeito sociológico, para quem a identidade é formada na interação entre o “eu” e a sociedade; e o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. Ele considera que as identidades são constituídas a partir de práticas de significação, produzidas em locais históricos e institucionais específicos. Não haveria, portanto, uma identidade plenamente unificada, completa e segura – isso seria uma fantasia. Ao invés disso, sustenta, “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente” (HALL, 2012:12).

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Algumas dessas identidades existentes em cada um de nós podem ser, inclusive, contraditórias, empurrando-nos em diferentes direções e deslocando continuamente nossas identificações. Não temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte – se alguns assim consideram, é meramente porque construíram uma narrativa confortadora de si. A identidade, diz Hall, é realmente algo formado ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Ela está sempre incompleta, em constante processo de formação. Diz ou autor: “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é 'preenchida' a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2012:24).

O processo de construção de identidades está, por conseguinte, sempre envolvido com a diferença, com aquilo que não é, com o outro – sou o que o outro não é. As identidades surgem a partir da marcação da diferença, que ocorre via sistemas simbólicos de representação ou por mecanismos de exclusão social. É essa marcação que dará origem a sistemas classificatórios, os quais, por sua vez, estão inseridos em contextos diversos de cultura e ideologia. Por isso, é essencial observar os processos de construção de identidades, pois elas são formadas por e de acordo com quem detém o poder.

Para Nicolau Netto, a valorização da diferença é uma das características de nossa época. Por isso, surgem vários tipos de discursos para dar conta de sua produção. Baseado em estudos sobre a diversidade cultural e étnica na música (a chamada “world music”), ele aponta três discursos recentes que disputam a concorrência na produção da diferença: a exceção cultural, o multiculturalismo e a diversidade cultural. No primeiro, a cultura é tratada de forma separada da economia e valoriza a diferença de identidades nacionais – “a cultura, afinal, formaria as mentes e os gostos das pessoas e, portanto, não poderia ser concentrada em apenas uma origem identitária, sob a perda das próprias identidades nacionais” (NICOLAU NETTO, 2017:50). Já o multiculturalismo aparece em meados dos anos 1990 em alguns países como modelo alternativo para se lidar com os direitos das minorias, como no caso de comunidades étnicas e religiosas que não eram vistas como legítimas na Europa ou nos Estados Unidos até poucas décadas atrás. No entanto, lembra o autor, a pluralidade de fluxos migratórios dificulta a percepção do multiculturalismo, tanto externa quanto internamente, pois há grupos

63 menores que não se sentem à vontade para serem assimilados por outros maiores, como no caso dos brasileiros e latinos que vivem nos Estados Unidos, por exemplo. Além disso, a produção da diferença nunca se estabiliza. Para cada signo produzido como diferente, agentes sociais o fragmentam e produzem novos, criando ciclos incessantes de produção da diferença. Isso se dá, segundo o autor, “porque classe não define o ser social, tampouco a etnia, e os indivíduos veem suas práticas atravessadas por múltiplos condicionamentos sociais, cujos impactos nessas práticas também são múltiplos” (NICOLAU NETTO, 2017:55).

Segundo o autor, os vários discursos não dão conta de um processo contemporâneo no qual a diferença é incessantemente produzida, tendo o mercado como espaço central dessa produção. A diferença é produzida sob signos que se formam por desigualdades; muitas vezes, aquilo que se valoriza como diferença é fruto de um processo histórico de dominação e opressão. Nicolau Netto pensa na questão sob a ótica étnica; não é difícil, porém, transpô-la para outros campos, como, no nosso caso, o do corpo gordo e sua recente valorização por meio do segmento plus size. A valorização da diferença no mercado simbólico, continua o autor, a faz ser mobilizada por interesses que vão além do econômico, mas que adotam a lógica econômica da produtividade da diferença. O discurso da diversidade abriga a possibilidade de que diferentes diferenças sejam produzidas conforme os agentes envolvidos em cada comunicação, no que se diferencia dos discursos da exceção cultural e do multiculturalismo (NICOLAU NETTO, 2017:57). É evidente que o valor que a diversidade alcançou nos dias de hoje confere um status mais elevado a produtos e serviços. O discurso da diversidade também abrange diferenças que não são apenas étnicas ou culturais, mas que podem ser sexuais, sociais ou de interesses variados, como no caso de movimentos que demandam questões sobre a política do corpo, a busca do corpo saudável e a contestação de padrões de beleza.

A diversidade nos dias contemporâneos é algo muito valorizado, quase como uma “bandeira” ou uma “marca” em um mundo tão competitivo e midiático. A possibilidade de construir sua identidade, seu estilo, seus princípios, seu corpo, sua imagem e suas particularidades precisa de autoafirmação. Assim, o compartilhamento de experiências através de sites, blogs, redes sociais, imagens e relatos acaba tornando- se um instrumento importante para o reconhecimento ou ainda para o descobrimento de novas identidades. Vemos isso, por exemplo, no casos de blogs que não são apenas plus

64 size, mas de mulheres gordas e negras. Ou gordas e lésbicas. Ou, ainda, gordas, negras e lésbicas, e assim por diante30.

Como lembra Mira (2001:184), falando sobre a imprensa, o mercado procura oferecer a diferentes segmentos produtos que venham ao encontro de suas necessidades – uma delas sendo a autoestima. No final dos anos 1990, por exemplo, os consumidores negros foram “descobertos”, pois formavam um mercado considerável no Brasil (cerca de 7 milhões dentro da classe média). Logo surgiram novidades na moda, beleza, música, locais de lazer etc, tudo pensado nos seus hábitos e interesses. O consumo de produtos específicos é sugerido como uma possibilidade de constituir uma identidade diferenciada, passando pela recuperação da autoestima, o que é essencial para grupos discriminados. Em relação às publicações segmentadas, a autora acrescenta:

Através das revistas, mas também de outros produtos, como por exemplo a boneca Barbie de cadeira de rodas ou o boneco gay de nome Bob, percebe-se que, embora não seja o criador desses segmentos, o mercado procura agir exatamente sobre este núcleo da questão da diferença que é a auto-estima, fornecendo aos grupos modelos que permitem a identificação e a auto- valorização (MIRA, 2001:185).

Foi o que aconteceu, no Brasil no fim dos anos 1990. Além de Barbara, dirigida a mulheres na faixa dos 40 anos, houve lançamentos de títulos para homossexuais masculinos e pessoas de terceira idade, entre outros, até então carentes de produtos específicos. Na segunda metade daquela década, em função da estabilidade econômica e dos ganhos efetivos que se seguiram ao Plano Real (1994), o mercado de revistas lançou diversos produtos voltados às mulheres de camadas mais pobres, como AnaMaria, Viva!Mais ou Minha Novela. Entre 1996 e 2002, o montante de exemplares vendidos no país passou de 300 para 600 milhões, para o que foi decisiva a contribuição dos periódicos de baixo custo (LUCA, 2012:462). Também observamos, desde então, uma miríade de propostas que tentam seguir a mudança no perfil da leitora desse novo Brasil: Marie Claire, para a mulher “inteligente”, “sofisticada” e com alto poder aquisitivo; Elle, que confere especial destaque à moda; ou TPM, para as mais “antenadas” e identificadas com estilos de vida alternativos, por exemplo.

30 Blogs como Gorda e Sapatão (www.gordaesapatao.com.br) vêm se tornando referência tanto no ativismo contra a gordofobia quanto o preconceito racial ou sexual (nota da autora).

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Posto que é mercadoria, a revista deve apresentar-se como algo capaz de interessar e satisfazer as necessidades de possíveis consumidores. Projeto gráfico, diagramação, dimensões, conteúdo, linguagem, capa, colunistas, periodicidade. Enfim, cada aspecto de sua produção deixou de ser fruto do trabalho do editor ou de ensaios ocasionais e passou a ancorar-se em resultados de pesquisas e sondagens, que definem o público e ajudam a convencer os anunciantes, que deverão se valer de suas páginas para atingir os consumidores desejados. Trata-se de tendência mundial observada na multiplicação de títulos licenciados no mercado brasileiro.

Desde meados dos anos 1990 os profissionais envolvidos na produção de revistas do Brasil têm de se dirigir constantemente a novos públicos, seja em termos etários ou socioculturais. Tania Regina de Luca observa que são mundos diversos que entram em contato por meio dessas publicações:

de um lado está a leitora – que se dirige à revista para compartilhar seus interesses, problemas, desejos, frustrações e visões de mundo – e, de outro, os/as responsáveis pela confecção da revista – que possuem suas próprias ideias a respeito dessa consumidora cuja vivência social difere bastante da deles (LUCA, 2012:463).

Para a autora, é justamente essa diferença, em seus vários aspectos, que merece atenção, pois novos segmentos passaram a compor o leque de preocupações dos editores: meninas muito jovens, de 9 ou 10 anos, por exemplo, e as mais pobres. Assim, algumas revistas trazem subtítulos, como “Viva!Mais – para a mulher que quer vencer” e se apresentam como instrumentos úteis para o cotidiano, trazendo, por exemplo, sugestões para garantir ou aumentar a renda, como a confecção de doces, salgados e produtos artesanais.

É nesse contexto dinâmico que se insere um novo segmento, formado por mulheres consideradas acima do peso. Sem se reconhecer nas demais revistas femininas, que retratam sempre corpos de beleza padronizada (jovens, magros, pele alva, cabelos claros e lisos), elas passaram décadas à margem do que era publicado nos editoriais de moda e beleza ou anunciado nas páginas das revistas que elas, apesar de tudo, também liam. É necessário enfatizar que a revista é um produto; os editores,

66 portanto, têm de seguir uma fórmula que funcione. Eles não têm a possibilidade de arriscar a fornecer o que muitas leitoras supostamente desejam: imagens que as representem, artigos que não imponham regras, análises de consumo confiáveis e produtos de acesso democrático. Muitos editores alegam que isso é impossível porque as leitoras ainda não querem essas características “o bastante”, ou seja, ainda não houve grandes reivindicações ou mostras de que um produto diferente teria mesmo boa receptividade.

3.2 – “O corpo como ele é”: reação ou modismo?

Naomi Wolf, no clássico feminista O Mito da Beleza, chegou a propor que se imaginasse uma revista feminina que mostrasse de forma positiva modelos rechonchudas, baixas, velhas – ou então não mostrasse nenhuma modelo, mas mulheres comuns. Que essa revista tivesse uma política de evitar a crueldade às mulheres, que eliminasse dietas-relâmpago, mantras para atingir o ódio a si mesma e artigos que promovessem a profissão que corta os corpos de mulheres saudáveis. Que ela publicasse artigos sobre a glória da idade, que trouxesse ensaios fotográficos com corpos de todos os formatos e proporções, que falasse do corpo pós-maternidade sem glamour e que desse receitas sem castigo ou culpa. “Ela iria à falência, perdendo a maior parte dos seus anunciantes”, acredita a autora (WOLF, 1992:110). Em sua opinião, os anunciantes que viabilizam a cultura feminina de massa dependem de as mulheres se sentirem tão mal com relação ao próprio rosto e ao próprio corpo a ponto de gastarem mais em produtos inócuos ou dolorosos do que gastariam se se sentissem belas por natureza. Logo, “como o ódio a si mesma infla artificialmente a procura e o preço, enquanto a reação do sistema permanecer intacta, a mensagem global para as mulheres deverá continuar negativa, não positiva”, conclui (WOLF, 1992:110).

Porém, à medida que o uso da Internet foi se popularizando, uma parcela do público feminino passou a divulgar e consumir mensagens mais positivas em relação ao relacionamento da mulher com seu corpo. Evidentemente, o mercado logo se apropriou

67 dessa tendência de comportamento e passou a lançar um olhar diferente para leitoras que até então eram invisíveis: gordas, maduras, negras, homossexuais etc.

Teve então início uma onda de “realidade” nas revistas, na publicidade e demais produtos midiáticos. O grande marco desse movimento foi, sem dúvida, a campanha da Unilever para a linha Dove, em 2004. Ao mostrar mulheres que desviam da magreza, juventude, cor de pele e cabelo tão padronizadas pela moda, a marca não só aumentou seu faturamento como se tornou referência no meio publicitário, recebendo uma infinidade de prêmios mundo afora31.

Desde então, tipos que fogem do padrão de beleza ocidental, como as negras, orientais e de meia-idade, têm sido cada vez mais vistos na mídia. No caso de cosméticos antiidade, por exemplo, a presença de modelos com mais de 40 anos nos comerciais é uma estratégia bem recebida pelas consumidoras. A tese é de que há mais identificação com a marca, o que favorece as vendas.

Para Lipovetsky, não vivemos apenas tempos de produção e consumo de massa dos produtos de beleza, mas também um novo sistema de comunicação e de promoção das normas estéticas, do qual a imprensa feminina é parte essencial. Se por décadas ela foi vista como máquina destruidora das diferenças individuais e étnicas, detentora de poder de uniformização e conformismo e instrumento de sujeição das mulheres às normas de aparência e sedução por impor a supremacia dos cânones estéticos ocidentais, atualmente ela passa por uma reformulação de forma e conteúdo (LIPOVETSKY, 2000:165). Depois da fase em que abandonaram a frivolidade e apregoaram slogans como o de Marie Claire, que dizia que “chique é ser inteligente” para se aproximar de uma leitora mais ativa, crítica e inserida no mercado de trabalho, as revistas femininas vêm apostando na estratégia de divulgar outros tipos de beleza. Na opinião do autor,

a época triunfante da autoglorificação estética ocidental ficou para trás: o pluralismo estético representa mais o futuro da imprensa feminina do que a erradicação das diferenças e a homogeneização da beleza (LIPOVETSKY, 2000:167).

31 Disponível em: . Acesso em: 18 de junho de 2017.

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De fato, nos últimos anos, diversas publicações têm se preocupado em fugir de padrões estéticos. Em 2009, a revista americana Glamour publicou a foto de uma modelo nua com a barriga saliente32. A imagem ganhou repercussão internacional positiva, o que levou a revista a preparar uma edição temática em cuja capa apareciam várias modelos plus size, todas igualmente nuas. Da mesma forma, a Vogue Italia, em junho de 2011, optou por uma edição especial com modelos mais gordas33. Em dezembro de 2016, foi a vez da Playboy brasileira dar sua primeira capa com uma modelo gorda, Fluvia Lacerda, conhecida como “Gisele Bündchen plus size” no mercado de moda34. Diante do bom retorno das leitoras e do mercado publicitário, diversas outras publicações passaram a incluir modelos plus size nos editoriais de moda ou indicar peças e acessórios de tamanhos maiores, na tentativa de ampliar o público- alvo e, consequentemente, a circulação.

32 Disponível em: . Acesso em: 15 de maio de 2017.

33 Disponível em: . Acesso em: 15 de maio de 2017.

34 A capa com a modelo Fluvia Lacerda não foi a da revista impressa, distribuída em bancas, e sim a de uma versão digital da mesma edição, sem chamadas ou código de barras e à venda exclusivamente pelo site de Playboy. Informação disponível em . Acesso em: 29 de julho de 2017.

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Figura 2: As modelos plus size Tara Lynn, Candice Huffine e na capa da Vogue Italia, em junho de 2011. Fonte: (último acesso: 17 de janeiro de 2018).

Além de revistas, o tema “corpo real” ganhou espaço em outros tipos de mídia, especialmente as redes sociais. Com apoio de atrizes de Hollywood, alguns manifestos acabaram por se tornar sites ou mesmo grupos de apoio e incentivo ao amor próprio. Um dos casos mais conhecidos é o da atriz britânica Kate Winslet, que já falou abertamente sobre a pressão pelo corpo perfeito no meio cinematográfico – ela chegou a ser criticada pelas formas que exibiu nua ao aparecer nos filmes “Titanic” (1997) e “O Leitor” (2008). Outro grande motivo de polêmica em seu discurso é a condenação de imagens alteradas em softwares a fim de eliminar imperfeições, o que, além de deixar o corpo irreal, às vezes o torna irreconhecível. Além de Winslet, outras atrizes, personalidades e até mesmo modelos vêm levantando a bandeira de corpos “naturais”, “reais” e, principalmente, “felizes”.

A artificialidade na aparência vem sendo questionada também na maquiagem. Produtos como base, corretivos, pós e afins cobrem marcas, realçam ou amenizam traços, muitas vezes transformando o aspecto do rosto. Por isso, muitas publicações vêm adotando a tendência do look natural, em que a maquiagem, quando usada, apenas cobre imperfeições e ainda assim de forma leve. Em meados de 2014, a revista Vanity Fair entrou na moda do look natural e publicou fotos de artistas como Brad Pitt, Scarlett

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Johansson e Oprah Winfrey sem maquiagem e sem retoques. No Brasil, a revista Glamour também mostrou famosos como Sabrina Sato e Valeska Popozuda do jeito que acordam e lançou campanha para que as leitoras publicassem fotos de rosto lavado. Há quem pense, no entanto, que tudo isso é algo passageiro:

O natural, porém, não deixa de ser modismo, segundo Andreia Mirón [professora do curso de moda da Faculdade Santa Marcelina]. Ela afirma que a moda sempre teve a diferenciação como pilar. "Nunca se teve tanto acesso a produtos e cores como hoje. Mas enquanto nas passarelas as modelos usam uma maquiagem leve e os mais antenados seguem o normcore' [termo recentemente criado que trata da tendência de valorizar roupas simples], vemos marcas populares apostando em muitas cores e bases com cobertura pesada." Para ela, as elites tentam se distanciar do look exagerado. "O visual com menos informação ganha status de sofisticação, e a mulher elegante passa a ser aquela que não precisa de artifícios para se fazer notar." 35

Passageira ou não, a valorização do “corpo como ele é” deslocou o discurso da moda para o corpo. Agora, não são as peças e acessórios que promoverão um estilo ou uma identidade, mas a maneira como se lida com as próprias formas. Um dos exemplos mais comemorados desse novo enfoque no corpo foi o da revista Elle Brasil, na edição de maio de 2015. Ao invés de uma modelo na capa, o que se via era um papel espelhado, com a chamada principal “Você na Capa”. A ideia era convidar a leitora a assumir seu rosto, seu corpo e sua idade com orgulho, a ponto de ser, por que não?, capa de revista.

A edição foi toda dedicada ao corpo “real”. Na matéria principal, intitulada “Love-se”, personalidades que desafiam os padrões de beleza nos quesitos peso, etnia e idade contam como aceitaram e assumiram a gestão de seus corpos, deixando de ser objeto de modismos ou fetiches para se tornar sujeito deles. Na matéria seguinte, “Bonito é ser diferente”, oito mulheres com belezas distintas falam que padrões podem ser quebrados. Há a jovem com sardas no rosto, a albina, a sem gênero, a que usa cabelo

35 Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2014.

71 rastafári, a de meia-idade, a mestiça de índios, a de traços exóticos e a gorda – esta, a única a posar seminua, coberta parcialmente por um sobretudo. Trata-se da blogueira Juliana Romano, cuja foto, aliás, foi capa da edição virtual da revista. Todo o conteúdo foi celebrado na imprensa feminina em geral e bastante comentado pela ousadia do protagonismo de corpos raramente vistos em editoriais de moda. Finda a leitura dos textos que exaltam os diferentes tipos de beleza, entretanto, fica a sensação de que esse posicionamento não passou de algo pontual na pauta de Elle. Nos anúncios – e revistas de moda trazem anúncios na maioria das páginas –, o que se vê é o repertório habitual: jovens na faixa dos 20 anos, magras, loiras, de cabelo liso, olhar sensual e lábios entreabertos anunciando roupas, perfumes, joias, acessórios e outros produtos de grifes nacionais e estrangeiras. A ousadia ficou restrita a um discurso que “inclui sem incluir”, ou pelo posicionamento editorial ou pela falta de interesse de anunciantes.

Figura 3: A jornalista e blogueira Juliana Romano, capa da edição de Elle (maio/2015), que celebra os diferentes tipos de beleza. Fonte:. (último acesso: 3 de agosto de 2017).

Antes dessa iniciativa, diversas outras revistas adotaram a tendência da diferença e diversidade como marketing, apostando no desejo das leitoras de verem “gente como a

72 gente” nas bancas. A mesma Elle, em sua versão francesa, publicou, em meados de 2009, capas com a atriz italiana Monica Bellucci e a modelo tcheca Eva Herzigova, ambas já na faixa dos 50 anos, sem maquiagem ou retoques digitais nas fotos. O Brasil reverberou essa tendência na revista feminina mais tradicional e de maior tiragem no país: Claudia, da Editora Abril36. Em agosto de 2010, a capa foi a modelo e atriz Luiza Brunet, que já havia posado diversas outras vezes para a revista. A novidade ficou por conta da legenda que a acompanhava: “Luiza Brunet, 48 [anos], sem Photoshop. Isso que é mulher de verdade”. A ênfase na ausência do Photoshop foi explicada e comemorada na apresentação da revista. Com o título “Nós, mulheres, e os retoques”, a então diretora de redação, Cynthia Greiner, conta que o ensaio fotográfico já havia sido feito quando os profissionais de arte gráfica deram-se conta de que a beleza de Brunet dispensava tratamento digital. Além disso,

a leitora de Claudia adoraria ver uma mulher de 48 anos em todo o seu esplendor. (...) Por que algumas revistas internacionais – no Brasil, Claudia é pioneira – começam a revelar o que há por trás de uma foto? Posso responder por mim: porque é maravilhoso, um banho na autoestima passar por uma transformação, ficar deslumbrante – e é uma delícia ter a coragem de se libertar de tudo isso37.

Com eufemismos, a revista deixa claro que os retoques só foram dispensados porque Brunet estava em forma, magra e aparentando menos idade. O curioso é notar que a exaltação da beleza natural não foi muito adiante. Nessa mesma edição, assim que se vira a capa surge a própria Brunet em um anúncio de coloração de cabelos. A foto mostra seu rosto em um close que ocupa toda a página. O cabelo, longo, é bem diferente do curto na capa; já as rugas e marcas de expressão desapareceram completamente. Ou seja: tudo o que foi comemorado pela publicação foi evitado pelo anunciante. Sabe-se que a linha editorial de um veículo acaba por ser influenciada, de uma forma ou de outra, pelos interesses da empresa a que pertence, dos leitores e dos anunciantes, estes com grande participação no faturamento. O embate de ideias e ideais pode tornar-se um

36 Segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2008 a tiragem média de Claudia foi de 412 mil exemplares mensais.

37 Revista Claudia, ano 49, edição n.º 8, agosto de 2010.

73 risco para qualquer publicação sob o ponto de vista financeiro, mesmo que a intenção seja oferecer um produto inovador.

Correr esse risco, ao que tudo indica, foi opção descartada por CLAUDIA. A edição seguinte, de setembro de 2010, trazia Claudia Raia na capa, outra celebridade com mais de 40 anos. Apesar do sucesso e dos elogios que as leitoras fizeram à capa de Brunet, dessa vez não houve qualquer menção à idade ou à aparência natural de Raia. Ficam então dúvidas e surgem hipóteses: a leitora quer mesmo ver a aparência real das pessoas que admira? As artistas e celebridades estão dispostas a se mostrar por inteiro? As revistas temem perder leitores? Que pensam os anunciantes?

Tais questões já foram feitas por muitos profissionais da imprensa feminina, como Regina Bucco, que foi diretora de redação da revista Barbara, lançada nos anos 1990 como a primeira no país a se dirigir a mulheres na faixa dos 40 anos. A publicação circulou por cinco anos, num total de 72 edições. A tiragem e o número de assinantes era sempre linear, com pouca oscilação dependendo da capa. Parecia que a própria mulher tinha muito preconceito em assumir sua idade, assim como as agências de propaganda, acredita Bucco. Relembrando os fatos, ela chegou à seguinte conclusão:

Por falta de anunciantes, tivemos de fechar a revista, pois ela ficou economicamente inviável. Que visão distorcida é essa que ignora a mulher madura? Tanto a mídia quanto o mercado acham que ela não existe. É como se erguessem um muro e dissessem: “fique aqui atrás que eu não quero ver você”. Nós só nos dirigíamos ao público de 20 a 30 anos. Para todas as categorias de produtos. Isso é um absurdo. Entre outras coisas, pelo fato de que a maioria das mulheres que fazem sucesso hoje tem mais de 40 anos (HERMANN, 2003:152).

Edições como essas da Elle e Claudia ainda não são comuns em nossa imprensa feminina e parecem restritas a edições temáticas ou de aniversário. Se a beleza vai além da aparência, como exaltam, ela ainda está presa às cifras. Pelo simples fato de a indústria de cosméticos e produtos de toalete ser a que mais anuncia nesta mídia impressa em comparação a outros segmentos, as publicações dirigidas às mulheres têm, inevitavelmente, uma espécie de relação de simbiose em sua linha editorial. Ao veicular anúncios de produtos de beleza, a revista deixa de ser independente em suas opiniões

74 sobre esse produto e seu fabricante, ou seja, passa a ser, em algum grau, censurada (MARCELJA, 2012:59).

Uma das formas mais marcantes dessa censura não é a simples ausência de mulheres mais velhas, gordas, negras etc, mas a forma como elas são mostradas quando aparecem. Comemora-se que mais mulheres gordas têm aparecido em revistas femininas. Porém, as fotos quase sempre são de close do rosto ou de algum ângulo que as “favorece”. Foi o que aconteceu com a atriz americana Melissa McCarthy, capa da Elle de novembro de 2013. A revista costuma trazer três opções de capa, prática que também já é adotada por publicações brasileiras. As atrizes Reese Whiterspoon e Shailane Woodley eram as outras opções para as leitoras. Enquanto estas apareciam com decote ousado, vestido justo ou maiô, McCarthy vestia um sobretudo folgado que a cobria do pescoço aos pés, sem revelar suas formas38. Algo parecido ocorreu com Gabourey Sidibe. Estrela do filme “Preciosa” (2009), a atriz é negra e obesa mórbida. Por conta do sucesso do filme, ela foi convidada, juntamente com outras três atrizes de sucesso, a estampar a capa da edição dos 25 anos de Elle, em meados de 2010. Enquanto Megan Fox aparecia de corpo inteiro em pose sensual, Gabourey ocupou toda a capa só com o rosto. A revista ainda foi acusada de ter supostamente clareado a pele da atriz com retoques digitais, o que gerou repercussão bastante negativa39.

Quase sempre, as rugas ou dobras de gordura são apagadas por programas de edição de imagens, o que faz as modelos parecerem mais jovens e mais magras. De acordo com Wolf, no caso das rugas, o efeito desses tratamentos digitais pode resultar em uma distorção tal que a leitora possivelmente encontrará dificuldade ao imaginar uma mulher de 60 anos na vida real, uma vez que todas as imagens dessa faixa etária na mídia raramente aparentam mais do que 45 anos (WOLF, 1992:108). Essa postura dos meios de comunicação acaba afetando não só o “imaginário” do envelhecimento como da obesidade e de tantas outras variáveis que atingem o corpo e a autoestima das mulheres.

38 Disponível em: . Acesso em: 22 de março de 2017.

39 Disponível em: . Acesso em: 22 de março de 2017.

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Muito se fala e se critica a respeito da “ditadura” do Photoshop. Na verdade, o software apenas deu mais luz a algo que já vinha sendo praticado há anos. Bem antes dos computadores se tornarem ferramentas essenciais dos estúdios de fotografia – o que ocorreu a partir dos anos 1980 –, os profissionais já lançavam mão de truques para aprimorar as imagens, como reduzir ou aumentar partes do corpo, uniformizar e/ou clarear o tom de pele, manchas, marcas e linhas de expressão, entre outras alterações possíveis. No estúdio, as modelos tinham de estar bem penteadas e maquiadas e expostas a luzes de efeito calculado, o que não deixa de ser uma espécie de filtro. Depois dos cliques feitos, muitas vezes havia retoques em cima da chapa ou do filme, feitos com pinceis ou lápis. Os protestos contra o Photoshop, usado no mais das vezes com o mesmo propósito de corrigir imperfeições, foram motivados por frequentes abusos que chegavam a distorcer proporções do corpo humano. Em 2009, uma modelo apareceu em anúncio da grife Ralph Lauren com a cabeça mais larga do que os quadris40. No Brasil, a cantora Preta Gil foi garota-propaganda de uma linha de roupas plus size da C&A em campanha bastante criticada. Na ação, que divulga uma linha própria da marca para mulheres de manequim entre 46 e 56, Preta aparece com a pele embranquecida e o corpo remodelado digitalmente – a forma da sua cintura, por exemplo, varia de uma foto para outra. Em nota, a empresa negou o uso do Photoshop e declarou que se tratava apenas de um ou outro ângulo da cantora que dava a impressão do uso excessivo de retoques41.

A moda, a publicidade e a mídia em geral têm responsabilidade no que tange à difusão e ao reforço de um padrão de beleza específico. No entanto, as imagens que circulam entre nós diariamente não são impostas, mas fruto de valores que já circulam socialmente. O que ocorre é que esses agentes atuam para reforçar essas imagens, tornando-as modelos a serem seguidos e admirados.

40 Disponível em: . Acesso em: 23 de outubro de 2009.

41 Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2017.

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Capítulo 4 – Blogs: entretenimento ou informação?

Desde o final da década de 1990, a mídia impressa internacional vive um período de crise generalizada, uma vez que grandes jornais e revistas vêm perdendo receita com a redução do número de assinantes e anunciantes. Uma das razões seria a concorrência com os meios digitais, mais ágeis, baratos e práticos diante da proclamada obsolescência do papel. A imprensa já viveu diversos períodos de crise, inclusive devido ao surgimento de novas tecnologias, como no caso da televisão. Mira recorda que após os anos 1960, a industrialização, a consolidação da sociedade de consumo e a penetração desse novo meio de comunicação tiveram forte impacto na imprensa tradicional em outros países, como a Itália, em especial nas publicações voltadas ao público feminino. No Brasil, veículos como revistas de rádio e fotonovelas, por exemplo, sucumbiram à TV, veículo que mais atingia o público popular. Nos anos 1970, a audiência e as tiragens caíram e muitas revistas deixaram de circular. Editoras tradicionais pediram concordata e revistas que antes eram recordistas de vendas perderam dois terços de sua tiragem em poucos anos, o que exigiu total reformulação de seu conteúdo e público-alvo, como no caso de Capricho (MIRA, 2001:37).

Com a Internet, a transformação não passa apenas pela mudança de tecnologia, mas também na linguagem. Maior meio de comunicação da atualidade, vem gerando mudanças na forma de interação dos sujeitos entre si e com o meio em que vivem. Muito dinâmica, ela abre espaço para a manifestação de todos os usuários, que podem tanto se expressar quanto produzir conteúdo de maneira rápida e eficaz, de qualquer parte do mundo e sem a necessidade de estúdios, redações ou grandes recursos. Muitas vezes, basta a câmera do celular.

O sucesso de sites e redes sociais também está ligado à possibilidade que esses formatos têm de ocupar lacunas e espaços criados à medida que as oportunidades surgem, permitindo, assim, uma variedade grande de temas e enfoques. Bom exemplo disso são os blogs, surgidos nos primeiros anos do século XXI. O nome “blog” vem do inglês “web + log”, ou seja, uma contração de “web” (rede, do original World Wide Web, sinônimo de Internet) com “log” (endereço ou registro). Ou seja, é um endereço na Internet em que é possível expor opiniões, sentimentos, experiências, notícias e uma variedade enorme de assuntos. A estrutura do blog permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes, em geral, têm temáticas

77 específicas e podem ser escritos por uma ou mais pessoas. Um blog típico combina texto, imagens e links para outros blogs, páginas da web e mídias relacionadas a seu tema. A capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir com o autor e outros leitores é uma parte importante de muitos blogs.

O progresso tecnológico e o desenvolvimento da rede mundial de computadores tornou a Internet um indispensável meio de comunicação e informação em tempo real. Na década de 2010, especialmente, os avanços da tecnologia acarretaram uma transformação não apenas profunda, mas também acelerada no âmbito sociocultural. No caso dos blogs, a comunicação entre as pessoas elevou-se exponencialmente; a participação social, a interatividade e a difusão de conteúdos permitiram maior fluxo de opiniões e pontos de vista acerca de determinada realidade. A facilidade de se criar um blog – há sites que já oferecem modelos prontos, muitas vezes gratuitamente – abriu portas para a expressão de ideias e de aspectos da vida cotidiana, que passaram a ser compartilhados entre os autores e seus leitores. A interação com os leitores, aliás, é considerada uma das finalidades principais dos blogs, sejam eles mantidos por usuários comuns ou por empresas de produtos, serviços etc. A relação entre os blogs e os leitores é, por isso, muito estreita; é possível pensar, inclusive, que um influencia ou outro, já que a repercussão dos leitores muitas vezes está relacionada ao que os blogs publicam na sequência e vice-versa.

A relação entre quem produz a informação e aqueles a quem ela é destinada já foi estudada por diversos teóricos da comunicação. Em poucas vezes, porém, os modelos traduziam os contextos e condições sociais em que emissor e receptor se encontram, o que influencia sobremaneira todo o percurso da informação. Segundo o pensamento de Pierre Bourdieu (1992), as trocas linguísticas são relações de comunicação que não podem ser vista apenas como tais. Ao desvinculá-las de suas condições sociais de produção, ignoramos que a eficácia simbólica da comunicação está no mundo social em que elas foram produzidas. Assim sendo, é possível afirmar que as relações de comunicação são como relações de poder.

Paula Sibilia (2016) atribui a cada vez maior popularidade de blogs (assim como outras redes sociais) ao uso de imagens. A autora afirma que as câmeras digitais, que permitem fazer fotos e vídeos de forma imediata e barata, sem a necessidade de revelação em papel, são responsáveis por um fenômeno que une visibilidade e conexão.

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Não por acaso, hoje chega a ser inconcebível que um tablet, notebook ou celular seja vendido sem câmera – que, muitas vezes, é projetada especialmente para selfies, os famosos autorretratos.

Hellen Tavares lembra que, apesar de serem conhecidos como “diários virtuais”, os blogs não devem ser considerados como tal. Existe, sim, forte personalização de seu conteúdo, mas o veículo serve, sobretudo, como forma de apropriação do ciberespaço como modo de expressão da identidade de seus autores. A maioria dos blogs são informais, sem formatação ou o que se chama na imprensa de “linha editorial”: são escritas livres, puramente autorais. Para a autora, “os blogs são compreendidos como um componente cultural, já que os textos e sua constituição são capazes de revelar as facetas do modo de vida cotidiano, ou seja, um certo ethos contemporâneo, assim como representações de seus corpos e identidades” (TAVARES, 2016:11).

O espaço cibernético pode funcionar como um modo de existência completo na contemporaneidade. A linguagem própria abriga culturas e utopias, dando vazão a um mundo imaginário de sentidos. Um mundo em que as fronteiras são misturadas, o corpo é invisível e pode-se ser quem se queira ser. “O espaço cibernético liberta o indivíduo das coerções da identidade, metamorfoseia-o provisoriamente no que ele quer ser, sem temer o desmedido do real. Sem rosto, não há mais que ter medo de não conseguir olhar para si mesmo; ele está livre de qualquer responsabilidade, já que sua identidade é volátil” (CAMPOS, FERREIRA, SEIXAS E WOLLZ, 2016:631).

É preciso fazer aqui uma ressalva: nem todos podem ser quem quiserem no ambiente virtual, uma vez que o acesso às tecnologias digitais ainda está longe do alcance de boa parte da população de países de Terceiro Mundo. No Brasil, segundo pesquisa TIC Domicílios 2016, divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), 54% das residências brasileiras estão conectadas à internet (36,7 milhões). O acesso à rede está mais presente em domicílios de áreas urbanas (59%) e nas classes A (98%) e B (91%)42. Entre a população situada na classe C, o percentual dos que

42 Disponível em: . Acesso em: 25 de novembro de 2017.

79 acessam a internet, seja pelo smartphone ou computador, chega a 69%43. As residências das classes D/E conectadas à internet são 23%, enquanto aquelas em áreas rurais chegam a 26%. No total, o Brasil conta com 107,9 milhões de usuários de Internet. As atividades realizadas na rede mais mencionadas foram o envio de mensagens instantâneas (89%) e uso de redes sociais (78%)44.

Ao falar de tantos recursos tecnológicos e de como eles influenciam os relacionamentos contemporâneos, fica a impressão de que todo um novo mundo “surgiu” junto com os computadores, os pixels e os bytes. Para Sibilia, não são os aparelhos que causam mudanças nos modos de ser, como se costuma afirmar;

ao contrário, parece evidente que os artefatos técnicos são resultado de processos históricos bem complexos, que envolvem uma infinidade de fatores socioculturais, políticos e econômicos. Nesse sentido, as tecnologias são inventadas para desempenhar funções que a sociedade de algum modo solicita e para as quais carece de ferramentas adequadas (SIBILIA, 2016:25).

Segundo a autora, vivemos uma época de transições e cortes na história. Viemos de uma formação histórica ancorada no capitalismo industrial e rumamos para outro tipo de organização social, em que estar no mundo parece uma experiência muito mais sofisticada, com implicações para a conformação dos corpos e subjetividades. Logo, em vez de serem vistos como a causa, os dispositivos tecnológicos são fruto de certas mudanças históricas. Inventados e utilizados pela população, esses dispositivos acabam reforçando essas transformações e suscitando outros efeitos no mundo (SIBILIA, 2016:25).

Uma das características dos blogs é a de explorar temas e nichos que são pouco encontrados na mídia tradicional. Além disso, sua versatilidade permite abordagens pouco comuns ou mesmo inéditas nos veículos de comunicação. Apenas o tema beleza,

43 Disponível em: . Acesso em: 16 de janeiro de 2018.

44 Disponível em: . Acesso em: 25 de novembro de 2017.

80 por exemplo, engloba tipos físicos, cortes de cabelos, maquiagem, moda, unhas, acessórios, sapatos, tons de pele, faixas etárias e uma infinidade de outros subtemas, que, igualmente, permitem uma infinidade de enfoques. Essa pluralidade de temas possíveis revelam os blogs como espaços para debates amplos e variados, além de propiciar visibilidade política e social. Além disso, eles não sofrem tanto com controle de informações. A virtualidade do ciberespaço permite a prática da liberdade de expressão e representação, sem que haja controle como nas demais mídias, como jornais, revistas, rádio ou televisão.

Essa “liberdade” é perceptível, muitas vezes, na própria forma em que o texto é escrito. De um modo geral, os textos que circulam pela Internet trazem um tipo de escrita típico, marcado por fortes traços de oralidade. É frequente que as palavras sejam escritas tal qual são pronunciadas, como nos exemplos “chatiada”, “catioro” ou “bonitínea”. Ora com intenção de divertir, ora com intenção de fugir da formalidade, os textos tampouco seguem regras de pontuação ou trazem vocabulário elaborado – parece que quanto mais coloquial, melhor. Os textos também costumam ser breves e trazer abreviaturas, como pfv (por favor), obg (obrigado) e assim por diante.

A abreviação das palavras parece ser sintomática: o importante em um texto de blog não é a reflexão, o ineditismo ou a interpretação dos fatos, e sim a rapidez. Os textos são bastante voláteis, feitos para atrair a atenção por alguns minutos e serem esquecidos em seguida, ou seja, combinam com a disposição atual para a leitura de forma geral. Sibilia lembra que Walter Benjamin já havia refletido, em 1933, sobre a rapidez e a urgência para tudo nos tempos modernos que teria acabado com o hábito de contar e de ouvir histórias:

“A voracidade industrialista teria atropelado as condições que permitiam a narratividade no mundo pré-moderno, um universo arrasado no frenesi das novidades, com uma enxurrada de dados que em sua rapidez incessante não se deixam digerir pela memória nem recriar pela lembrança. Toda essa agitação teria suscitado uma perda das possibilidades de refletir sobre o mundo” (SIBILIA, 2016:68).

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A falta de tempo, de disposição, de atenção, de foco, de disponibilidade, de hábito ou mesmo de vontade são motivos que levam as pessoas a, cada vez mais, preferir textos leves, curtos e superficiais, nos quais muitas vezes a reflexão não tem espaço. O baixo nível de exigência dos leitores acarreta também uma desvalorização da experiência dos mais velhos e do saber acumulado ao longo dos anos, que são considerados “analógicos” em meio a tanta tecnologia de última geração. Além disso, o hábito de ler ou se informar junto com outras pessoas ou membros da família vem perdendo espaço a cada lançamento de smartphone. Não há mais o costume de assistir a programas ao redor da televisão; às vezes, cada membro da família tem seu próprio aparelho no quarto. Os fones de ouvido, por sua vez, fizeram do hábito de ouvir rádio ou música algo particular. Os computadores, que antes eram de uso comum, agora já são particulares. Com isso, a produção de conteúdo também mudou; são muito mais estimulados os aspectos audiovisuais do que a leitura em si. “Enquanto um livro requer uma leitura cúmplice e responsável, uma leitura interpretativa, o filme ou a televisão mostram-nos as coisas já prontas”, explicava Umberto Eco em 2005, ainda no início da explosão do uso dos blogs e redes sociais (apud SIBILIA, 2016:72).

Também é característica comum dos blogs o caráter confessional. Muitos autores expõem experiências, emoções e outras vivências. Mesmo que o contato com os leitores seja apenas virtual, ele pode ser considerado parte importante e necessária ao processo de autoconhecimento e afirmação da própria identidade. A confissão coletiva contribui para a formação de uma identidade também coletiva, uma vez que se refere à realidade do dia-a-dia e à formação de aspectos subjetivos dos sujeitos. Essa ideia pode ser muito bem aplicada aos blogs temáticos, como aqueles mantidos por negros, deficientes físicos, idosos, transexuais etc. Segundo Tavares, o processo de construir uma autobiografia, feita nos moldes confessionais dos blogs, é uma espécie de exercício de poder na vivência corporal dos sujeitos (TAVARES, 2016:13).

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4.1 – Os blogs plus size

Até o final dos anos 2000, os blogs que tratavam do universo de tamanhos grandes eram quase sempre mantidos e visitados por pessoas consideradas acima do peso, como uma espécie de mundo à parte. A grande maioria está baseada em mensagens positivas, que incentivam a autoaceitação. Outra característica em comum é que muitos nasceram a partir da necessidade das autoras de se sentirem bem consigo mesmas e de compartilhar experiências. Os assuntos iam de beleza e dietas a sexo e relacionamentos, com textos que sugeriam que os obesos poderiam ser vistos como pessoas satisfeitas com sua própria condição física. A visibilidade veio um pouco mais tarde, no final da década, em articulação com o mundo da moda. Foi quando se popularizaram os lookbooks, tipo de blog em que jovens exibem as roupas e os acessórios que usam a cada dia. Com isso, um público ávido por consumir, porém marginalizado pelo mundo fashion, provou que também podia estar à frente de tendências de moda e comportamento. Não demorou para que grifes e grandes lojas norte-americanas e europeias se dessem conta de que estavam perdendo oportunidades de negócio e começassem a pensar em oferecer produtos para esses consumidores. Atualmente, marcas de roupas chegam a patrocinar premiações para esses blogs temáticos e grandes eventos, como feiras e desfiles, contam com eles para sua divulgação.

No caso do Brasil, o segmento também ganhou visibilidade com a Internet. Sites e blogs como Grandes Mulheres, Mulherão, Entre Topetes e Vinis e muitos outros que se propõem a valorizar corpos fora dos padrões de magreza formam um verdadeiro universo online e dão uma ideia do tamanho do potencial e da variedade desse mercado. Como veremos adiante, muitos têm a moda como foco principal e chegam a ser patrocinados por confecções plus size, que anunciam suas coleções em banners e pop- ups.

Sabe-se que tanto as imagens como os textos dos blogs fornecem elementos subjetivos que influenciam e instigam a escolha por determinados produtos ou serviços. O discurso, ou seja, o texto escrito do post, revela detalhes pessoais e íntimos das autoras, opinião, dúvidas, sugestões e questões próprias do universo feminino, que têm como função tecer o laço emotivo com o público-leitor.

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De acordo com Raquel Recuero (2009), os aspectos dinâmicos das redes contribuem para a percepção das alterações pelas quais ela passa diante dos contextos e das interações dos atores que a constituem. Para entender o fluxo de informações que circulam nelas, é preciso entender também os valores percebidos nos sites de redes sociais e as conexões estabelecidas entre os atores em cada um desses espaços. Segundo ela, o capital social pode influenciar a difusão da informação a partir do momento em que se considera que as redes sociais são constituídas de atores sociais, “com interesses, percepções, sentimentos e perspectivas” (RECUERO, 2009:117). Dessa forma, é feita uma conexão entre o conteúdo publicado na Internet e a forma como seus amigos, leitores e audiência em geral percebe essa informação. Diversas pesquisas já apontaram a relevância do conteúdo publicado por alguns blogueiros na decisão do que outros publicam. Da mesma forma, os comentários enviados pelos leitores costumam ser relevantes na escolha do que o autor coloca no ar. Ou seja, como conclui Recuero, parte da percepção de valor na atividade dos blogs pode estar na percepção dos comentários recebidos e do feedback de sua audiência.

Os atores são conscientes das impressões que desejam criar e dos valores e impressões que podem ser construídos nas redes sociais mediadas pelo computador. Por conta disso, é possível que as informações que escolhem divulgar e publicar sejam diretamente influenciadas pela percepção de valor que poderão gerar (RECUERO, 2009: 118).

Os blogs plus size são, provavelmente, os melhores indicadores do novo tratamento dado a esse público. Os conselhos de beleza, moda, saúde, comportamento e até sexo são, na maioria das vezes, dadas por jovens elas próprias tidas como acima do peso, o que facilita na identificação com a leitora. Alguns blogs, por exemplo, adotam o tom confessional – as autoras admitem que têm crises de autoestima e que demoraram a aceitar o próprio corpo. Em outros, elas posam para fotos com roupas decotadas e curtas, incentivando as leitoras a se libertarem de preconceitos. Há casos, inclusive, em que as autoras, atentas à audiência, fizeram do blog um negócio, anunciando marcas de roupas e produtos de beleza.

O sucesso dos blogs de moda, beleza e estilo pode dar a impressão de já ter chegado ao seu limite e parecer mais uma moda passageira. No entanto, uma pesquisa

84 feita pela Collective Bias, uma grande empresa americana de marketing digital, revelou o contrário. De acordo com os 14 mil adultos consultados por eles em março de 2016, apenas 3% responderam que comprariam produtos endossados por celebridades, enquanto 60% afirmaram que já foram influenciados por resenhas em blogs ou posts em redes sociais desses “digital influencers”. O estudo ainda mostrou como os meios tradicionais de publicidade estão passando por uma crise. Os participantes citaram as propagandas em televisão, mídia impressa e anúncios digitais como os menos efetivos na hora de suas compras, mas declararam que costumam consultar blogs em seus celulares e tablets dentro das lojas antes de adquirirem algum produto45.

Em geral, é possível dizer que a característica comum aos blogs plus size é o discurso motivacional. Contando a própria história ou de outras mulheres, mostrando lançamentos de moda ou comentando sobre algum item de maquiagem, os blogs tornaram-se referência para uma parcela da população que já consumia tudo isso, sem ter, porém, produtos especificamente desenvolvidos para ela. A identificação com as autoras e com as demais leitoras, que passam pelas mesmas situações, traz o sentimento de pertencimento e reforça o empoderamento. É justamente ao expressar sua opinião, expor fatos de sua vida, seus dramas e sua individualidade que as blogueiras conseguem a empatia e a admiração das leitoras. Paula Bastos, do Grandes Mulheres, é a que mais costuma expor seus sentimentos e usar o blog como ferramenta para o autoconhecimento. É frequente que ela o use para desabafos sobre dias em que se sente feia, solitária ou triste. Muitas leitoras escrevem, nos comentários, que os textos as ajudam a se aceitar como são, a encarar a vida e a se sentirem incluídas em uma sociedade que as julga pela aparência. Na sequência, Paula comenta a repercussão, o que faz seu blog ter uma característica de “bate-papo” mais marcante do que nos outros dois aqui estudados.

Essa abertura a aspectos sentimentais lembra muito um dos elementos essenciais da imprensa feminina: o correio sentimental. Embora os posts não sejam respostas a manifestações das leitoras, muitas vezes isso ocorre nos comentários, brevemente. Em alguns casos, os posts chegam a ser sugestões das leitoras. De qualquer forma, ocorre com os blogs aquilo que é uma das marcas da imprensa feminina desde seus primórdios:

45 Disponível em: . Acesso em: 16 de outubro de 2016.

85 a troca de confidências. Já nos anos 1930 essa fórmula foi sucesso estrondoso nas publicações voltadas às mulheres, como lembra Evelyne Sullerot:

… as pessoas são solitárias, principalmente as mulheres, solitárias em seus problemas... cada um está afogado em suas angústias e se acredita sozinho no seu caso: é preciso dar às mulheres seus próprios problemas, mas sob a forma mais tranquilizante para elas, quer dizer, apresentando-os como os problemas dos outros (apud MIRA, 2001:48).

A revista feminina incorpora esse aspecto de conselheira sentimental e torna-se companheira da mulher, como uma conselheira disposta a conversar sobre questões do cotidiano. Quando essas questões – no caso dos blogs plus size, geralmente relacionadas à autoestima – são personalizadas na figura da blogueira, a identificação é praticamente instantânea. Há casos em que as leitoras fazem perguntas banais sobre roupas e produtos de beleza, por exemplo, ou então sobre atitudes que as blogueiras tomariam em determinadas circunstâncias. Isso indica que, de fato, os blogs muitas vezes funcionam como um “guia” para aspectos práticos do dia a dia.

Muitas vezes os blogs mantêm diálogos e fazem referências uns aos outros, o que parece indicar uma rede não só de informação como de apoio. Outra característica comum é que as blogueiras são as próprias modelos das peças de roupa que divulgam. Juliana Romano, do Entre Topetes e Vinis, aparece também em sugestões de penteados e maquiagem. Os blogs, portanto, são centralizados nas figuras de suas próprias autoras, que compartilham não só o que vestem, mas também sua individualidade, experiências pessoais, profissionais, amorosas e emocionais.

Alguns blogs alcançaram tanto sucesso que se tornaram referências no segmento plus size. O Mulherão, por exemplo, foi o início de uma série de iniciativas empreendedoras de sua autora, que hoje organiza eventos, é dona de marca de roupas e consultora de moda em programa de TV.

Embora a temática seja a moda e seus usos, a distinção entre os blogs está na abordagem, no enquadramento, na construção do texto e no sentido da mensagem. A questão que se impõe para os estudiosos dos fenômenos da comunicação e da sociologia do consumo é compreender de que forma o discurso das blogueiras influencia leitoras e consumidoras. Além disso, tendo mais visibilidade, as plus sizes podem chamar a

86 atenção de diversos outros segmentos de mercado, ganhar espaço na mídia e até mesmo propor novos padrões de beleza. Assim sendo, de que modo tal discurso se relaciona com a construção de identidades?

Independentemente do perfil das blogueiras ou de como levantam – ou não – bandeiras em relação à obesidade, é evidente que seus blogs circulem em torno de temas inerentes à questão. Os mais frequentes são, em primeiro lugar, a moda; em seguida, autoestima, o que é natural em se tratando de um público sempre marginalizado. Saúde também aparece com regularidade, quase sempre no tom combativo de que “obesidade não é sinônimo de doença”. Outra discussão bastante comum é a gordofobia, apresentada como luta ou como relatos de vítima – às vezes, como vitimização.

A seguir, veremos mais detalhadamente como esses temas são entendidos e apresentados pelos blogs analisados.

4.2 - Moda e identidade plus size

Para as mulheres vistas como acima do peso, a relação com o mundo da moda foi, por muito tempo, alimentada pelos sentimentos de rejeição, exclusão e isolamento, já que são raras as marcas e confecções que fabricam peças em tamanhos maiores. Muitas acabavam deixando para segundo plano seu estilo e suas preferências devido à impossibilidade de se expressar no modo de se vestir.

Essa lacuna é uma das maiores queixas dos blogs analisados. O Mulherão frequentemente reclama das poucas marcas que de fato se dedicam ao mercado plus size. Para sua criadora, Renata Vaz, a moda não se restringe à aparência, mas abrange, principalmente, a personalidade:

Antigamente, não tínhamos o direito de ter uma identidade cultural, um estilo próprio, usávamos todas as mesmas roupas, como se todas as gordas do mundo tivessem um uniforme: camisetão e legging. Hoje, podemos definir como queremos nos vestir. Podemos definir como queremos ser enxergadas. Hoje

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conseguimos transformar em estilo, com muita graça e à primeira vista, aquilo que antes ficava escondido: a nossa essência.46

O recente acesso à moda pelas mulheres consideradas acima do peso lembra um pouco o processo pelo qual passou o próprio sistema de moda no início do século XIX e início do século XX. Naqueles anos, como afirma Diana Crane, eram produzidos estilos de roupa que expressavam a posição social das mulheres que as vestiam, ou aquela a qual aspirava (2006:272). O sistema de produção era centralizado e havia alto nível de consenso entre os criadores, sendo que os estilos evoluíam pouco e de forma consistente a cada estação. Havia sempre um acessório considerado correto para cada traje e ocasião, assim como cores e tipos de tecido. Tudo isso era aceito sem muitos questionamentos pelo público, até porque havia receio de exclusão devido à não- conformidade. Essa moda de classe foi substituída pela moda de consumo, que trouxe mais diversidade estilística. Agora, gostos e interesses de grupos sociais de vários níveis eram incorporados à moda. Mesmo a moda de luxo passou a trazer elementos da cultura de mídia, no sentido de que seus valores e sua atração pelo consumidor são, em muito, criação da publicidade, diz Crane (2006:274). Ao longo das décadas, portanto, o consumidor foi sendo estimulado a montar um look compatível com sua identidade e seu gosto pessoal. Essa identidade baseia-se em sua identificação com grupos sociais através dos bens de consumo, e não por medo de ser penalizado por não estar dentro de padrões. Os modelos de beleza e comportamento vêm da cultura de mídia, como as celebridades da televisão, cinema, música ou esportes (2006:274). É essa possibilidade de identificação com modelos da mídia a que têm acesso, hoje, as mulheres consideradas acima do peso, graças à maior representatividade de mulheres consideradas gordas nos meios de comunicação de massa.

Como foi observado anteriormente, o mercado plus size está em crescimento e mobiliza discursos, desfiles, eventos, empresas do mundo da moda e da beleza, modelos, diversas mídias, estilistas e produtos. Muito tem sido feito, elaborado e pensado sobre esse segmento. Todavia, pouco tem se falado sobre o poder simbólico que ele carrega.

46 Disponível em: . Acesso em: 20 de abril de 2014.

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A moda é um tema singular que centraliza diversas tensões da vida social. Ela é o resultado da necessidade de diferenciação das classes superiores e da necessidade de imitação de outras classes. Por estar no cerne das tensões da dinâmica social e por contribuir para a sua solução, a moda funciona como uma lente de aumento para os fatos sociais em vez de ser mero fenômeno superficial relacionado ao vestuário. Compreender a moda é, portanto, compreender a mudança social, uma vez que “a moda é elemento essencial na construção identitária dos indivíduos e dos grupos sociais” (GODART, 2010:33). Ao interagir com diversos outros campos culturais, a moda proporciona aos grupos e aos indivíduos instrumentos para que eles construam suas identidades. A moda e a aparência são dois fatos sociais muito próximos, porém distintos. Esta influencia muitos e diversos aspectos da vida dos indivíduos, inclusive determinando seu sucesso e fracasso independentemente dos contextos sociais, culturais e econômicos, mas pode ser modificada conforme os movimentos da moda e a mensagem que se deseja transmitir. Já a moda se manifesta no espaço intermediário entre o indivíduo e a sociedade. É a partir da escolha de roupas, acessórios e cortes de cabelo, por exemplo, que os indivíduos reafirmam constantemente sua inclusão ou exclusão em certos grupos sociais, religiosos, políticos e profissionais (GODART, 2010:36).

Embora já tenhamos visto o surgimento de subculturas dentro da moda, como os punks e as pin-ups, entre outros, ainda é cedo para afirmar que o segmento plus size tenha repertório particular. O que se percebe é que os indivíduos que fazem parte dele (especialmente aqueles que veiculam discursos afirmativos, como no caso das blogueiras) buscam pertencer a um grupo homogêneo, porém capaz de abrigar inúmeras subculturas. É diferente do que ocorre, por exemplo, com os góticos, que resolvem a tensão entre a individualidade e a inclusão coletiva por meio de uma personalização de seus gostos no interior de um conjunto limitado e regulado de opções de vestuário: peças pretas, adereços de couro, rasgos, maquiagem carregada etc. No caso do plus size, o que se busca é a simples oferta de peças em tamanhos maiores, que permitam que o indivíduo escolha e se vista de acordo com o grupo com o qual se identifica.

Os blogs plus size costumam explorar a moda como eixo principal. É geralmente a partir desse tema, e da consequente inclusão sentida com o aumento de confecções e marcas voltadas a tamanhos maiores, que surgem discussões a respeito de beleza, relacionamentos, afetividade, gordofobia e outras.

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Os blogs aqui analisados não são exclusivos de moda, mas a tem como pauta mais frequente. Os três possuem algumas características comuns como temas abordados por editoriais de moda, lançamentos e novidades em marcas e produtos, tendências, tutoriais e “look do dia”, quase sempre com as mesmas mensagens e conteúdo; o que vestir, o certo e o errado na moda, o que comer, qual a melhor atividade física, sugestão de dietas e produtos de beleza. As imagens ilustram o conteúdo da mensagem, com fotos em que as blogueiras aparecem vestindo as peças comentadas. O texto costuma trazer os créditos (nome, marca, preço) de cada item.

A difusão das informações e novidades do mundo fashion é imediata, visto que as atualizações das publicações são quase diárias e respondem e republicam o que está na pauta jornalística de moda. A linguagem é simples, direta e informal, e muitas vezes os posts contêm apenas imagens. Tudo isso facilita o acesso e também o descarte quase imediato da informação. Por outro lado, manifestar opinião ou produzir relatos sobre a vida pessoal faz com que o autor responda ao anseio emocional e afetivo dos leitores. Tal apelo mantém e dá vida aos blogs.

Um dos temas mais explorados pelo blog de Juliana Romano, o Entre Topetes e Vinis, é justamente a possibilidade de dizer não aos tabus que opõem as gordas à moda. A blogueira frequentemente recomenda o uso de peças com estampas grandes, listras, saias volumosas e outras combinações que sempre foram condenadas por estilistas por realçarem ainda mais o corpo roliço. Um exemplo é o link fixo “Bota para perna grossa”. Clicando nele, a leitora conhece as melhores formas de usar ankle boots, coturnos e outros modelos que não eram apenas condenados para quem tem pernas grossas – eram sequer fabricados. Diz a jornalista: “Na dúvida de como usar bota de cano alto para perna grossa ou não sabe onde comprar uma que passe pela batata da perna larga e ainda fique confortável? Acredite, você pode usar o que quiser!”47. O texto é ilustrado por fotos da própria blogueira usando botas que alcançam os joelhos. Além de links para modelos e lojas que vendem botas mais largas, o texto traz conselhos como:

Seja a de cano alto ou a over the knee (acima do joelho) procure bota para perna grossa que tenha a parte de trás de um tecido

47 Disponível em: . Acesso em: 29 de junho de 2017.

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elástico como o neoprene. Além de se ajustar a formatos diferentes de perna, também consegue expandir nas batatas mais grossas sem prender a circulação. 48

Outra dica é a de como usar os chokers, como são conhecidas as gargantilhas modernas. Juliana Romano reclama que, apesar do mercado plus size estar crescendo, ainda há desinteresse ou mesmo desconhecimento sobre a necessidade dos acessórios também serem maiores: “Por mais que tenhamos muito chão a percorrer, o mercado de moda plus size está cada vez mais sendo normalizado na sociedade, né? Mas já parou para pensar em outras coisas que deveriam – mas ainda não são – plus? Quem tem pescoço gordo, por exemplo, consegue usar uma choker de boa?” 49 O texto continua:

Como desencanar do pescoço gordo e usar gargantilha? Lauren [Souzza, blogueira e fashionista] conta que por muito tempo não gostava do seu pescoço gordinho: “Eu fazia pose para ficar mais magra nas fotos, mas pessoalmente continuava tudo igual e o meu papo estava ali. Aí eu percebi como tudo isso era uma mentira e resolvi desencanar”. Depois disso ela decidiu incluir a peça em suas produções. “Até dois anos atrás achava horrível. Tenho uma marca de acessórios e nunca imaginei um dia fazer choker para gorda e usar em meus looks. Fiz uma gargantilha branca com argola, coloquei e me senti maravilhosa”, conta, incentivando a mulher gorda a se amar acima de tudo. “Ame-se pelo espelho, ao vivo, não apenas pelas fotos. Ame a sua essência. Não existe regras para quem se sente bem e confortável. Nós podemos usar tudo!”, incentiva. 50

Como dito acima, a esfera virtual possibilita a percepção de reações a opiniões e comportamentos já cristalizados em relação à obesidade. Blogs e redes sociais são os veículos para a disseminação de mensagens positivas e de autoafirmação, que visam não só a interação com outros blogueiros como a criação de uma nova identidade. Muito mais do que o texto, são as imagens que ajudam a criar essa identidade, que explora aspectos que colocariam a mulher tida como gorda em condição de igualdade com as

48 Idem. 49 Disponível em: . Acesso em: 29 de junho de 2017. 50 Idem.

91 mulheres consideradas “normais”. Paula Bastos, do Grandes Mulheres, comemora justamente o fato de vestir um modelo de espartilho que também é usado por celebridades. A blogueira aparece em fotos com a peça e chega a elogiar a confecção pela iniciativa:

Depois do sutiã strappy, chegou a vez do espartilho brilhar e de forma talvez nem tão imaginada: por cima das roupas! A trend pegou quando as famosas Kim Kardashian e apareceram por aí, desfilando com o bonitão por cima de camisas e vestidos. Os looks ficaram bem legais, digo de passagem, e a moda pegou. Eu não tinha visto nada assim no plus size, até que a Inove me surpreendeu com este vestido preto com renda que tem um espartilho de couro sintético na parte frontal dele! (...) Eu gosto demais dessa marca, não só pela modelagem, mas a roupa é boa e eles fazem um excelente trabalho no quesito “trazer tendência para as gordas”. Isso é louvável. Ando cansada de ver mais do mesmo por aí. 51

Figura 4: Paula Bastos, do Grandes Mulheres, comemora o lançamento de acessórios plus size modernos e dentro das tendência. Fonte: . (último acesso: 25 de julho de 2017).

51 Disponível em: . Acesso em: 25 de julho de 2017.

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Segundo Bauman, “não há nada por descobrir na identidade, mas sim inventar com o intuito de atingir determinado objetivo, mesmo que se tenha que ocultar a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade” (BAUMAN: 2005, 22-38). Para ele, as identidades fixas e inegociáveis não são permitidas ou aceitas no mundo líquido moderno. “Em nosso mundo de ‘individualização’ em excesso, as identidades são bênçãos ambíguas”, variando entre o sonho e o pesadelo. É possível que essa relação ambivalente da sociedade líquido-moderna seja a mais comum e perturbadora, ocupando um lugar central nas discussões existenciais. O autor continua:

Em nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à frente, é um negócio arriscado. Identidades são para usar e exibir, não para armazenar e manter (BAUMAN, 2005:96).

Nas sociedades tradicionais, a identidade social dos indivíduos é definida e limitada pela tradição, pelo parentesco e pela localidade. Ao romper com todos os conceitos preestabelecidos, a modernidade enfatiza o cultivo das potencialidades individuais, oferecendo ao indivíduo uma identidade mutável. Diante disto, o indivíduo tem diante de si um mundo de diversidades, escolhas e possibilidades abertas. Na lógica da sociedade de consumo, em que o ser é definido pelo ter, um tipo de corpo pode estar associado a uma ou outra posição social. Para ser “alguém”, é preciso ter um corpo bem modelado, posses, status etc.

A modernidade tornou-se sinônimo de movimento como causa da incapacidade de atingir a satisfação. Neste cenário, a identidade surge como um projeto não- realizado. Na sociedade de consumidores, os símbolos relacionados à construção da identidade são considerados as moedas de troca e de venda, observados a partir da suposta expressão pública do self. A subjetividade dos consumidores é definida a partir das escolhas de compra. O que se define como a “materialização da verdade interior do self” não passa de uma “objetificação” material dessas escolhas, conclui Bauman (2008:24).

As estratégias de marketing e a propaganda transmitem ideais que relacionam a aquisição dos produtos à aquisição de bem-estar, padrões corporais e status, entre outras

93 coisas – ou seja, adquire-se a filiação à “tribo” desejada. O consumo em prol do corpo ideal é estimulado desde meados do século XX pela publicidade e principalmente pelo cinema, que criaram e mantêm padrões de beleza que valorizam a juventude, como corpos magros, saudáveis e sedutores.

Assim, a publicação de imagens com acessórios modernos, usados por celebridades, é uma forma de inclusão e de poder de competitividade, como se agora as gordas ocupassem lugar compatível com o das magras no que se refere à moda, à beleza e também à sensualidade. Como veremos adiante, muitos blogs plus size abordam com frequência temas ligados à sexualidade, inclusive com fotos. Aparecer em cliques ousados, portanto, seria uma forma de inclusão em um terreno que é um dos mais vetados para mulheres gordas: o da sedução.

4.3 - “Se eu fosse magra”: autoajuda em rede

Se eu fosse magra seria legal, seria desejável, seria popular, teria amigos, sairia para baladas, seria finalmente igual a todas as outras meninas. E foi assim que passei os 2 anos mais infelizes da minha vida. Anos aos quais eu não gostaria de voltar jamais52.

É com essas palavras que a blogueira Juliana Romano define o que sentia em sua adolescência, quando vivia em busca de dietas e métodos para emagrecer. Em seu blog, o Entre Topetes e Vinis, a mensagem que ela procura divulgar é a de que dá para se amar independentemente do peso, do manequim, das formas do corpo ou, principalmente, da pressão dos modelos de beleza tradicionalmente vistos na mídia, com mulheres altas e magras. Segundo ela, não se trata de lutar contra esse padrão, mas sim de abrir espaço para outras formas também serem consideradas belas. Mais do que isso: a beleza não deve ser martírio ou o único caminho para a mulher se sentir bonita, desejada ou incluída em determinado grupo.

52 Disponível em http://thinkolga.com/2013/11/27/mulheres-inspiradoras-juliana-romano/, acessado em 27 de novembro de 2013.

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O fato de terem a moda como tema principal evidencia que é a aparência o fator de exclusão do gordo na sociedade. Todos os blogs tratam a moda como algo que “ajuda” na autoestima, destacando que o principal é sentir-se bem com o corpo do jeito que ele é. Há incentivos à prática de exercícios, porém as privações típicas das dietas são encaradas como repressoras – algo típico de mulheres que, ao contrário das blogueiras, não amam o próprio corpo ou não se libertaram de padrões de beleza.

Frequentemente os blogs abrem espaço para desabafos sobre autoestima. Muitas vezes, a intenção parece a de expurgar traumas por meio do debate com as leitoras, que se manifestam nos comentários em mensagens de apoio e relatos de experiências semelhantes. É o que faz com frequência Paula Bastos:

Se tem uma tecla que eu bato sempre com vocês é sobre a importância da autoestima. Eu já me senti a mais inferior das criaturas um dia e já me vitimizei muito, mas enquanto tive esse comportamento nada mudou na minha vida, ao contrário, as coisas só pioravam porque eu me colocava em uma posição pior cada vez mais. (...) Não quero que você demore quase 30 anos como eu para descobrir que a sua aparência não determina um bocado de coisas na sua vida e que quando você se liberta disso tudo a forma como a vida te trata muda completamente. 53

Em outro texto, Paula novamente fala de suas experiências e convida as leitoras a fazerem as pazes com seus corpos:

(...) se eu consegui enxergar que a felicidade não estava na minha aparência e sim no meu conjunto, nas minhas decisões e nos meus momentos é porque você também consegue, basta querer. Você não está sozinha: me dê sua mão, grude na minha que iremos caminhar juntas porque o caminho é longo, mas é absolutamente maravilhoso e libertador! 54

53 Disponível em: . Acesso em: 20 de junho de 2017. 54 Disponível em: . Acesso em: 4 de maio de 2017.

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O tom usado, o convite e a linguagem direta, referindo-se à leitora como “você”, são típicas de um discurso de autoajuda. Tal gênero, hoje tão popular na lista dos livros mais vendidos, ganha notoriedade no contexto da Modernidade e a ascensão do individualismo, momento histórico em que as referências tradicionais são rompidas. A autoajuda pode ser descrita como um conjunto de práticas que partem do pressuposto de que todos os indivíduos possuem força interior capaz de solucionar os mais diversos problemas, os quais, apesar de muitas vezes terem causas sociais, são apresentados como se fossem de natureza pessoal. Para Rüdiger (apud AGUIAR, 2011:21), os textos que se definem como de autoajuda podem ser divididos em duas categorias: os destinados ao desenvolvimento de capacidades objetivas (como passar em concursos, ter sucesso nos negócios, falar bem em público etc) e os destinados ao desenvolvimento de capacidades subjetivas, como autoestima, envelhecer bem, superar algum vício etc. O gênero, portanto, pode projetar-se em todos os campos da vida.

A literatura de autoajuda tem sua fundamentação na visão de mundo anglo-saxã, cujas práticas consistem em fazer o indivíduo acreditar e descobrir os seus recursos interiores. Não por acaso, a cultura do self-made man é tão forte nos Estados Unidos.

Vigarello lembra que uma literatura psicológica da perseverança já começava a surgir no fim do século XIX, com grande estímulo ao cultivo da obstinação e da tenacidade. O público-alvo era aquele em vias de ascensão social, os assalariados administrativos e funcionários de escritórios que ambicionavam seguir nas profissões sempre mais escalonadas. O discurso os ensinava a ter confiança em si para ter sucesso em um mundo de competição e de igualdade, além de se tornar mais forte, abrir caminho na vida, se impor pela atitude física e outros conselhos. Essa literatura era essencialmente masculina e propunha uma psicologização de comportamentos que acabaria por se tornar uma total soberania de si (VIGARELLO, 2005: 163).

Parte importante da retórica de autoajuda é a identificação do orador com o auditório e vice-versa. Para isso, é fundamental que o orador traga em seu discurso a prudência, a virtude e a benevolência. Só assim ele receberá crédito e ganhará a confiança dos ouvintes. Também é essencial para o sucesso da comunicação que o orador construa sua própria imagem em função da imagem que ele faz do seu auditório. Assim, ele deve procurar captar o interesse do público e reproduzir, em alguma instância, suas atitudes ideológicas. Por isso, diz Aguiar, “o conhecimento dos princípios, dos valores e das ideias do auditório pelo orador é essencial para a eficácia

96 persuasiva e para a construção de um ethos que irá se adaptar àquele tipo de auditório” (AGUIAR, 2011:24).

É o que faz, essencialmente, a imprensa feminina. Não por acaso, o gênero de literatura, até então focado nos homens e suas carreiras, se renova com a explosão da terceirização das profissões em que as mulheres vão ingressando. Aos poucos, essa literatura psicológica se volta primordialmente para a estética e o embelezamento, uma mistura de investimentos na aparência e no ofício que se torna, para as mulheres, uma mescla confusa. É o que se vê, como exemplifica Vigarello, em um discurso da revista Marie Claire que, em 1937, tenta convencer suas leitoras de que a felicidade está nelas próprias:

“a cada manhã, antes mesmo dos cuidados de beleza, olhe-se no espelho, bem de frente, e mande seus olhos brilharem, animarem-se, iluminarem-se com a chama que você seguramente carrega por dentro. É um pequeno exercício de auto-sugestão infalível. (…) Se você praticar [o exercício] com regularidade, o seu eu interior se habituará a obedecer à ordem de sua vontade” (apud VIGARELLO, 2005:164).

Por sua vez, o saber prévio do auditório a respeito do orador é importante para a adesão e para a receptividade ao seu discurso. Algo comum no discurso de autoajuda é a exposição da própria vida do orador. Com isso, ele exemplifica e esclarece o raciocínio, além de prender a atenção do auditório, que, por sua vez, passará a analisar a própria vida. É a velha ideia do “se eu posso, vocês também podem”. Segundo o autor, ao lançar mão dessa estratégia,

o orador cria um ethos de responsável, determinado, de uma pessoa voltada para os seus objetivos, cumpridora de seus deveres, enfim, percebe-se que o orador cria para ele, através do exemplo de sua vida, uma imagem de quase perfeição, o que irá refletir diretamente na sua credibilidade junto ao auditório (AGUIAR, 2011:27).

Muito da popularidade dos blogs plus size está nesse discurso encorajador, ainda mais quando se sabe que as próprias autoras são mulheres consideradas acima do peso, com idades, experiências e repertório comuns aos das leitoras. Mesmo com todas as

97 semelhanças, o público ainda precisa de alguém que supostamente tenha “vencido” as questões que deseja superar para sentir-se encorajado a fazer o mesmo. É o que vemos em um post do blog Entre Topetes e Vinis:

Já não é nenhuma novidade que nós, mulheres, sofremos pressão estética desde que nos entendemos por gente. Sendo assim, você externar que está tudo bem com sua aparência pode causar um certo estranhamento. Principalmente quando se trata de mulheres gordas nessa sociedade gordofóbica, né? Mas é aquela coisa: se empoderar também é resistir! Gorda ou magra, a sua aparência é apenas uma parcela do que você é. Como diz a música “Triste, louca ou má”, da banda Francisco El Hombre: sua carne não te define, você é seu próprio lar! E aí, bora ser um mulherão da porra hoje e sempre? 55

O tema do preconceito que sofrem as mulheres obesas é imediatamente reconhecido pelas leitoras como uma causa a ser apoiada, defendida e vencida. Essa causa encaixa-se com perfeição no discurso de autoajuda, que tem a intenção de fascinar o público. Esse discurso se mostra mais eficaz à medida que consegue influenciar o estado de ânimo dos ouvintes, provocando-lhes emoções compatíveis com a sua argumentação. “Desse modo, a paixão torna-se um recurso persuasivo essencial” (AGUIAR, 2011:29). O trecho acima não é de autoria de Juliana Romano, mas de duas blogueiras convidadas por ela. O texto é acompanhado de um vídeo, no qual elas, de modo descontraído, expõem suas opiniões. Ambas são gordas, tatuadas, têm o cabelo tingido, usam piercings e demonstram muita autoconfiança, qualidades que reforçam visualmente todo o argumento exposto e despertam nas seguidoras do blog a admiração e vontade de “ser como elas”. Certamente, as palavras não teriam tanto efeito se a aparência de ambas fosse discreta e as atitudes, tímidas.

As imagens de modelos e mulheres vistas como acima do peso são exaltadas como um novo padrão de beleza a ser observado, elogiado e respeitado. A estética das novas formas ganham adjetivos, qualidades e personalidade, como propõe o irreverente termo “mulherão da porra”.

55 Disponível em: . Acesso em: 28 de julho de 2017.

98

Figura 5: Gostar-se demais pode ser sinal de arrogância?, perguntam as blogueiras convidadas no Entre Topetes e Vinis. Fonte:: .(último acesso: 28 de julho de 2017).

Em suas semelhanças e diferenças, os blogs plus size aqui estudados indicam que a Internet pode ser um meio para a construção de identidades e para a autoafirmação em um mundo que abarca tantas particularidades, mas, ainda assim, exerce pressão e controle sobre os corpos femininos.

4.4 - Obesidade e saúde nos blogs (ou: “dos meus exames entendo eu, OK?”)

A obesidade é tema que abrange diversos aspectos do cotidiano, não se restringindo apenas à prática médica. Tanto assim que ela é território de disputa entre profissionais da área da saúde e da mídia, constituindo-se em parte das lutas que abrangem campos científicos, sociais e simbólicos. Esse embate é visto com clareza nas revistas, especialmente as femininas, que contam com conselhos de especialistas de saúde para legitimar o discurso. Instaura-se, então, uma biopolítica que se articula com

99 outras formações disciplinares para obter controle aberto e contínuo, o que resulta no sancionamento de uma nova educação corporal e sanitária.

Neste regime, afirmam Landa, Leite e Torrano,

Os indivíduos não estão apenas submetidos a condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias, mas também pressionados a realizar automonitoramentos constantes através de saberes (conhecimentos científicos) que os orientam sobre como comer de modo saudável e manter-se ativo, ao mesmo tempo em que informam sobre a obesidade e seus riscos associados (2013:105).

O discurso das publicações voltadas ao público feminino, impregnado dessa biopedagogia, também reforça a autonomia que a leitora deve ter no cuidado com sua imagem e seu corpo. A partir do momento em que a informação sobre o que é possível fazer para cuidar do corpo é disseminada – e aqui as revistas femininas são apenas um exemplo de segmento entre muitos outros meios de comunicação –, cresce a visão de que a obesidade é sinal de fraqueza moral. O preconceito contra obesos é relativamente novo, tendo início com a ascensão do capitalismo. A lógica que se impunha era a econômica, uma vez que o corpo magro é sinônimo de agilidade, enquanto o gordo remete ao ócio e à improdutividade, características condenadas pelo capitalismo. É em meio a diversos interesses, ideias e conceitos relativos à obesidade que encontramos o maior embate: gordura X saúde.

No decorrer da história, por muito tempo se considerou que o que fugia da idéia de saúde, ou seja, a doença, consistia, basicamente, no excesso ou falta de excitação dos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal. Portanto, havia uma atribuição incondicional à intensidade dos fenômenos para diferenciar saúde - o “normal” - da doença (ESTANISLAU, 2014:54).

Georges Canguilhem lembra que o termo “normal” surgiu em meados do século XVIII, referindo-se àquilo que segue em linha reta, sempre com o mesmo nível e constância, sem inclinar-se para nenhum lado e sempre ajustado ao meio-termo. Segundo o autor, o desenvolvimento da fisiologia, no fim do século XII, permitiu a formulação de teorias científicas do ser vivo, iniciando um dos mais fortes postulados biomédicos: “os fenômenos patológicos nos organismos vivos nada mais são do que

100 variações quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos correspondentes” (2009:13). Assim, é no estado patológico (doença) que os estudiosos da saúde irão procurar as respostas para as questões que dizem respeito ao corpo e à vida. A partir daí, concepções do tipo tornam-se dogmas durante o século XIX, especialmente com a busca do racionalismo e do empirismo, representados por Auguste Comte e Claude Bernard, respectivamente.

Para Canguilhem, os dois estudiosos eram figuras importantes para a elaboração de conceitos que até hoje são a base do que entendemos por saúde e doença. Comte acreditava que a normalidade da vida acontecia quando não hava interferência interna ou externa, ou seja, quando tudo estava em equilíbrio. Como o normal tem relação intrínseca com a harmonia dos fenômenos, para Canguilhem os conceitos de normal ou de fisiológico se resumiram a um conceito qualitativo e passível de diversas interpretações, sendo, portanto, valorativo. Com isso, criam-se bases para que tais concepções sejam aceitas até os dias de hoje, uma vez que relacionam o conceito de normalidade intimamente a um ideal de perfeição (ESTANISLAU, 2014:54).

Já para Bernard, entre saúde e doença havia apenas a diferença de grau: a exageração, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado doentio. “Não há um único caso em que a doença tenha feito surgir condições novas, uma mudança completa de cena, produtos novos e especiais” (BERNARD, apud CANGUILHEM, 2009:26).

O uso do coneito de “normal” deriva da soma dos conhecimentos sociológicos e médicos, ambos interessados em medir, classificar e disciplinar os indivíduos de forma a moldá-los de acordo com o que se considerava como normalidade. Estanislau lembra que foi em meados do século XVIII que a saúde passou a ser tratada como direito social e se tornou uma problemática teórica; com isso, a medicina uniciou a construção de saberes científicos que logo se tornaram “verdades biomédicas”, substituindo o ideal de salvação instituído pelo discurso religioso (ESTANISLAU, 2014:56). Cabem aqui as referências aos estudos de Foucault, que, em O Nascimento da Clínica, descreve o início de um novo olhar médico, marcado a partir do interior de discussões da saúde pública.

A medicina, então, passa a seguir a noção de norma e normalidade do processo de industrialização e transformação capitalista, que via o corpo como realidade biopolítica. Era interesse da sociedade que a população fosse saudável, perfeita e 101 normal, o que indica uma ideologia mercantilista de produção. É o que Foucault, ao estudar a história da medicina, chamou de biopoder.

Para Fabiano Estanislau, esses movimentos e olhares novos para o corpo implicaram umaa espécie de homogeneização nos conceitos de anormal, distúrbio, desvio, desarmonia e desproporção. “O que, mais uma vez, nos leva a deduzir a imposição de valores e quem sabe a busca de uma saúde perfeita, de um sujeito perfeito e, consequentemente, de uma vida perfeita” (2014:57).

Muito da crítica ao excesso de peso baseia-se em questões de saúde, tal a força da associação de gordura com doença. No entanto, debates recentes afirmam que é possível estar acima do peso e com exames médicos em ordem, ao mesmo tempo em que indivíduos magros podem estar debilitados conforme o estilo de vida que adotam. Juliana Romano, em seu blog, prega a mensagem com frequência. Habituada a receber críticas por suposta apologia à obesidade quando afirma que gordos podem ser felizes ou bonitos, ela muitas vezes encerra seus textos já prevendo as críticas que virão, como neste caso:

Ah! Antes que digam qualquer coisa sobre ser saudável, sobre ser bonito, sobre ser qualquer coisa, quero deixar APENAS UM recado: O CORPO É MEU E EU FAÇO O QUE EU QUISER COM ELE E NINGUÉM TEM NADA COM ISSO! (não me leve a mal, é só para a patrulha gordofóbica entender que aqui não é lugar para comentários preconceituosos e que dos meus exames entendo eu, ok?)56

Preconceitos à parte, o que é, então, considerado saúde? A Organização Mundial de Saúde (OMS) a define como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afeções e enfermidades” 57. Essa definição desloca a noção de saúde sendo simples ausência de doença para algo mais amplo, que engloba fatores comportamentais, psicológicos e sociais. Inicialmente elogiada, a definição logo

56 Disponível em: . Acesso em: 12 de julho de 2017.

57 Disponível em: . Acesso em: 22 de junho de 2017.

102 recebeu críticas por não considerar o aumento da longevidade e das doenças crônicas e por envolver todos os aspectos da vida sob o manto da saúde e do bem-estar, o que, como era de se imaginar, teve impactos muito bem-vindos na indústria farmacêutica. Não é raro que o tratamento da obesidade inclua antidepressivos ou recomendação de exercícios leves, suficientes para trazer mais a sensação de bem-estar do que a queima de calorias. Tudo isso parece justificar a progressiva patologização da obesidade.

Ao assumirmos que saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, deixamos um grande número de indivíduos fora desse conceito. Qualquer pessoa que tenha, por exemplo, uma doença crônica ou uma deficiência é considerada excluída dessa definição, mesmo que o problema em questão esteja sob controle. Da mesma forma, alguém que use cadeira de rodas, que tenha transtorno de ansiedade ou passe por tratamento de desintoxicação... os gordos, obviamente, não se encaixam nessa noção de saúde, o que é “provado” não só pela sua aparência mas também pelo IMC (índice de massa corporal).

Como visto anteriormente, o IMC é, hoje, uma avaliação aceita mundialmente como o método mais eficaz para determinar o grau de obesidade de uma pessoa. Este índice é calculado dividindo-se o peso em quilos pela altura em metros ao quadrado. Métodos como esse permitem diferenciar os grupos normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim justificar a implementação de políticas de saúde e prevenção da obesidade. Naturalmente, há críticas a esse tipo de índice, uma vez que homogeneiza as categorias (magro, peso ideal, sobrepreso, obeso, obeso mórbido etc) e reduz sua complexidade, além de ignorar diferenças conceituais e neutralizar variações no interior das categorias recebidas.

Juliana Romano conta que recebe centenas de mensagens por dia por conta de textos publicados em seu blog. Boa parte delas são de leitores que desejam saber o quanto ela pesa. Fugindo de classificações que podem levar a julgamentos sobre sua saúde, ela diz:

O fato é que eu posso pesar 50kg, 75kg ou 100kg e isso continua não sendo da conta de ninguém e, para ser sincera, não me interessa muito esse número, não… Depois que eu fiz terapia e comecei a ter outra percepção do mundo, do que é beleza e descobri que quem tem que tomar conta do meu corpo sou eu,

103

simplesmente parei de subir na balança para controlar loucamente quanto eu peso. Comecei a ir ao consultório da minha médica e me pesar de costas, de forma que ela visse o peso e me dissesse o que eu precisava ou não fazer. (...) Fazer exercícios e manter uma alimentação equilibrada têm a ver com o resultado ótimo dos meus exames, mas éééééé. O que alguém tem a ver com isso mesmo? Pra ser sincera, o resultado dos meus exames e minha saúde cabem a mim, apenas a mim. (...)

Voltando à pergunta que sempre me fazem, entendo a curiosidade, mas como não tenho a resposta, então rebato com outras perguntas: por que você precisa saber o meu peso? Será que esse número não vai te fazer tirar conclusões muito precipitadas a respeito do MEU corpo e da MINHA saúde? Conclusões que não cabem a você e que só fariam você me olhar cheia de preconceitos? REFLITA.

A desculpa da preocupação com a minha saúde também não cola, sinto informar, já que circunferência abdominal e a frequência de exercícios físicos são outros, entre muitos, números tão importantes quanto o peso para a manutenção da saúde – se não forem ainda mais importantes – e ninguém NUNCA me pergunta isso. Então, vamos parar de ser hipócritas e nos esforçar para sair da ignorância com dignidade. 58

Em relação à saúde, o tom adotado por Juliana Romano é o “bateu, levou”. Em seu blog, são raras as vezes em que o tema é abordado, e, quando isso acontece, é quase sempre para rebater críticas ou comentários que ela julga serem gordofóbicos. Nesta pesquisa não foram encontrados textos que falam sobre atividade física, remédios, dietas ou outras tentativas de emagrecimento em seu blog. No geral, ela costuma afirmar que se sente bem com o corpo que tem e que cuida para que ele se mantenha saudável, sem especificar de que modo o faz.

Considerando os muitos aspectos gordofóbicos presentes no cotidiano dos indivíduos tidos como obesos, não é difícil imaginar que sua saúde mental também seja prejudicada. Sabemos que ela pode ter grandes impactos na saúde física, como ocorre nos casos de depressão e transtornos alimentares, entre outros problemas psíquicos. Tudo isso porque a saúde é sempre apresentada como algo que se “conquista” ou que se

58 Disponível em: . Acesso em: 12 de julho de 2017.

104

“mantém”, especialmente quando o assunto é o peso corporal. Todos acreditamos, desde crianças, que comer bem é “se cuidar”, e que se nos exercitarmos seremos fortes, saudáveis e longevos. Doenças inesperadas são, nesse caso, uma tragédia, pois são um desvio do caminho natural da vida longa. Ou seja: existe, apenas para os gordos, um julgamento moral nas questões que envolvem saúde X doença, como se uma ou outra dependessem de escolhas que não priorizam o físico.

Em um Ocidente cada vez mais neoliberal, a responsabilidade individual tornou- se a marca maior de políticas governamentais, posições filosóficas e visões de moralidade. Essa responsabilidade individual é caracterizada por aqueles que conseguem administrar suas vidas dentro de padrões de sucesso e bem-estar, estando empregados, tendo acesso à educação, casa própria, bons relacionamentos pessoais e saúde. Aqueles que não conseguem conquistar um ou mais desses itens sem razões aceitáveis são considerados fracassados, perdedores ou mesmo irresponsáveis.

A concepção do indivíduo como alguém empreendedor por si mesmo e dele mesmo é resultado de várias linhas de pensamento e da difusão de um modelo de gestão empresarial que aspira uma validade prática universal. A valorização do empreendedorismo e a ideia de que essa faculdade só pode se formar no meio mercantil são partes interessadas na redefinição do sujeito referencial da racionalidade neoliberal. Segundo Dardot e Laval, porém, trata-se menos da função específica do empreendedor no cenário econômico do que da faculdade empresarial em sua existência como sujeito, da capacidade de se tornar empreendedor nos diversos aspectos de sua vida ou até mesmo de ser o empreendedor de sua vida.

A princípio, todo indivíduo tem, de fato, algo de empreendedorístico dentro de si, e é característica da economia de mercado estimular essa qualidade do ser humano. Não se trata de um comportamento restrito à esfera econômica, isto é, que visa à maximização de lucros. Ele também comporta a dimensão “extraeconomizante” da atividade de descobrir e detectar oportunidades interessantes. Para Dardot e Laval, “a liberdade de ação é a possibilidade de testar suas faculdades, aprender, corrigir-se, adaptar-se. O mercado é um processo de formação de si” (DARDOT e LAVAL, 2016:145).

Alguns teóricos, como Lionel Robbins, pressupõem que o homem deve sempre maximizar suas vantagens para atingir uma série de objetivos que lhe são dados; já Von

105

Mises e Kirzner sustentam que, se quiser melhorar sua posição, o sujeito deve constituir os “quadros de fins e meios” em que deverá efetuar suas escolhas. Não se trata, então, de um maximizador passivo, mas de um construtor de situações proveitosas, que se descobre mediante vigilância e que poderá explorar (DARDOT e LAVAL, 2016:146).

O empreendedorismo é, até certo ponto, qualidade nata, mas é, sobretudo, algo que se aprende a ser. Para Dardot e Laval, o jogo do mercado educa os indivíduos a governar como empreendedores. Uma das implicações desse pensamento é a de que, se o mercado é visto como livre espaço para os empreendedores, todas as relações humanas podem ser afetadas, em maior ou menor escala, por essa dimensão empresarial (2015:146).

A saúde tornou-se o novo contrato social. As culturas neoliberais promovem a responsabilidade individual para a manutenção da saúde; assim, as pessoas têm, umas com as outras, a obrigação de serem saudáveis. O healthism (health, do inglês “saúde) é um termo novo, cunhado por Crawford (2008, apud LEE e PAUSÉ, 2016:5) para representar uma nova forma de tratar a problemática da saúde a partir de uma nova consciência e dos movimentos que abrangem o tema. O healthismo seria uma derivação de uma ideologia conservadora, segundo a qual se colhe aquilo que se planta. Seria, ainda, uma forma de opressão baseada em um status de saúde que se deseja alcançar. Como bem observou Callahan (1973), “o que não se pode mais fazer em nome da moralidade agora pode ser feito em nome da saúde” (apud LEE e PAUSÉ, 2016:5).

4.4.1 - Quando o olhar médico também é uma barreira

Seguindo a lógica da responsabilidade individual, cabe ao obeso buscar as soluções para seu problema. Elas se reduzem àquilo sobre o que ainda se pode ter controle imediato: atividade física e alimentação. Muitos recorrem ao auxílio médico ou nutricional; para surpresa, não é raro que o obeso também seja alvo de atitudes negativas por parte do corpo médico ou de outros profissionais dentro de instituições de saúde. Embora o meio médico seja o mais esclarecido nas questões que envolvem obesidade e saúde, ele ainda é permeável a alguns valores dominantes da sociedade,

106 como o ideal de magreza. As atitudes dos profissionais sofrem essa influência, de forma que eles têm uma função de “grandes estigmatizadores” (POULAIN, 2013:121).

A estigmatização dos obesos põe em sério risco sua saúde psicológica e física, além de repercutir na implementação de medidas efetivas para a prevenção da obesidade, partam elas do próprio indivíduo ou de profissionais e entidades da área da saúde. Como apontam Lee e Pausé (2016:6), estes percebem o sujeito gordo como cidadãos fracassados e com menos capacidade de aderir às recomendações médicas. Uma vez que os profissionais de saúde não acreditam muito que os pacientes obesos se preocupam com seu estado e não seguem as instruções dadas, eles terminam por vê-los como desinteressados ou desmotivados para tratamentos de prevenção.

Essa visão sobre os obesos representa uma grande barreira para que eles procurem atendimento médico adequado. Diversas pesquisas apontam que as atitudes negativas em relação a pacientes gordos resultam em consultas mais rápidas, nas quais são prescritos menos testes de prevenção e diagnóstico; os médicos costumam alegar que esses testes são sempre mais complicados em corpos obesos. Além disso, o gordo é menos respeitado no ambiente médico do que o magro, e muitos profissionais admitem que preferem não tratar esse tipo de paciente (LEE e PAUSÉ, 2016:6).

Luc Boltanski já havia descrito o relacionamento dos médicos com pacientes de classes sociais inferiores, como trabalhadores braçais ou agricultores. Segundo ele, os dois não falam a mesma língua – as explicações dadas aos pacientes variam conforme o seu nível social. Em geral, os médicos não dão detalhes àqueles que julgam não muito evoluídos para compreender sua condição ou o tratamento a ser seguido. Se eles querem fazer-se compreender, convém dar ordens sem comentários, em vez de conselhos argumentados (BOLTANSKI, 1984:45). Podemos facilmente imaginar resultados de pesquisa semelhante se ela fosse feita com indivíduos obesos. A confissão da modificação no comportamento do médico conforme a classe social ou corpulência do doente contradiz os princípios da ética médica, que pregam que os pacientes, despojados dos atributos sociais desde o instante em que entregam seus corpos para o exame, são todos iguais. Além disso, tanto a formação quanto a ideologia que cercam a área médica predispõem os profissionais de saúde a manifestarem mais interesse pelas diferenças psicológicas do que pelas diferenças sociais; assim, os médicos acabam por adaptar suas atitudes não às características sociais de seus doentes, mas à personalidade de cada um deles. Tudo se passa, então, como se a percepção do médico acerca de seu paciente não

107 fosse espontânea, mas direcionada a fim de enquadrá-los em categorias, como a do “psicopata”, a do “doente desprovido de inteligência” ou a do “doente demasiado inteligente que interpreta o que diz o médico”, por exemplo (BOLTANSKI, 1984:50).

Durante a consulta, prossegue Boltanski, o médico que atende classes populares tende a adotar uma série de atitudes bastante particulares, desde brincadeiras infantilizantes até um tratamento mais ríspido, que visam lembrar ao doente a especificidade da relação com o profissional de saúde e a superioridade deste. É o que vemos, por exemplo, na voz forte e vocabulário simples quando o médico se dirige ao paciente e na voz cochichada quando fala com um colega ou assistente.

Se o comportamento dos médicos muitas vezes não é receptivo, é preciso observar também a estrutura de consultórios, hospitais e centros de exame. Macas estreitas, aventais pequenos, medidores de pressão que não fecham nos braços, balanças que apontam apenas até certo peso etc são frequentes. Para os profissionais, é algo que sem dúvida interfere na qualidade do trabalho; para o paciente, o resultado pode ser vergonha, frustração e adiamento na procura por auxílio médico, quando não desistência. Outro fator que desestimula a busca por ajuda pode ser a ineficácia de tratamentos anteriores, caso em que o paciente costuma sentir-se culpado. Em muitos casos, essa culpa vem do fato dele ser diagnosticado apenas como “obeso” e receber a única recomendação de perder peso. “Muitas vezes falta um olhar mais atento para suas necessidades e tudo se resume à obesidade, sem que outras questões sejam ouvidas” (Lee e Pausé, 2016:6). Não é necessário apontar o quanto isso é especialmente grave para indivíduos que apresentam co-morbidades relacionadas ao excesso de peso. Paula Bastos, do Grandes Mulheres, fez um desabafo sobre essa questão:

Eu sempre fui gorda, sempre. Minha vida sempre foi cercada de endocrinologistas e eles sempre me tratavam como mais uma gorda comilona que não conseguia emagrecer porque não tinha vergonha na cara. Faziam algumas perguntas, pediam exames básicos, me davam uma dieta pronta de 1500 calorias e mandavam fazer exercício. Eu quase não emagrecia e aí, obviamente, a culpada era eu que devia comer escondido, não fazer exercícios etc. Foi agora, no fim do ano passado, que decidi fazer uma consulta particular com a endócrino de uma das minhas melhores amigas. (...) Ela pediu exames que eu nunca tinha feito na vida e parte desses exames fui fazer hoje de manhã.

108

O médico que me atendeu foi super simpático, mas perguntou, meio que de cara, se eu tinha vontade de fazer a bariátrica e eu disse que não. Ele quis saber o porquê. Eu expliquei. (...) Aí ele foi fazer o exame da tireoide e bingo, mais um problema: meu hipotireoidismo voltou. Faz ANOS que ninguém me pede um exame de tireoide. Ela também não favorece o meu quadro, obviamente, mas a surpresa mesmo veio em outro exame em que ele diagnosticou algo que vai precisar de cirurgia e tudo, mas eu não tinha sintoma algum. Por que eu tô te contando tudo isso? Porque negligência médica é um dos maiores exemplos de gordofobia que a gente vive. Eu tenho um convênio médico bom e vivo indo a médicos, mas ninguém nunca se deu ao trabalho de me examinar de verdade para ver o que acontecia comigo, simplesmente assumiam que eu era uma gorda comilona e relaxada. Não pediam exames detalhados, não me acompanhavam. Eu vou precisar de uma cirurgia e eu não tenho sintomas, eu não sinto nada. Se essa médica não fosse realmente humana e não tivesse me pedido tudo o que ela pediu, eu jamais saberia que estou com esse problema que precisa de cirurgia. Talvez fosse saber daqui anos quando a questão estivesse muito agravada. (...)59

A rejeição às pessoas gordas pode ser percebida não apenas em discursos moralizantes sobre o consumo excessivo de comida ou sobre saúde e beleza, mas também na recente definição de obesidade como doença. Longe de ajudar a dissolver o estigma, a medicalização da gordura acaba por ressignificá-la em termos morais. O reconhecimento de qualquer condição como doença normalmente exime de culpa aquele que dela sofre; no caso da obesidade, porém, não se percebe que a estigmatização ou a discriminação tenham diminuído. Ao invés disso, o discurso médico tem reforçado a noção de responsabilidade individual, o que alimenta e até legitima a gordofobia.

Em 2011, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) convocou uma consulta pública para proibir a comercialização de medicamentos contra a obesidade que funcionam diminuindo o apetite. Ao mesmo tempo, pacientes com diabetes melito e hipertensão arterial ganharam direito a receber alguns remédios de graça no Brasil. Em artigo para o jornal Folha de S.Paulo, o endocrinologista Alfredo Halpern, um dos mais conceituados nessa especialidade, apontava a incoerência dos fatos e também o preconceito que sofrem os profissionais que se dedicam a tratar a obesidade:

59 Disponível em: . Acesso em: 1º de fevereiro de 2017. 109

A que se deve essa incoerência entre prestigiar os remédios contra as consequências (hipertensão e diabetes melito) e condenar os remédios que combatem as causas? Basicamente, a meu ver, é o preconceito contra os obesos, contra os remédios que podem tratá-los e contra os médicos que os tratam. 60

A Anvisa argumentava que os anfetamínicos apresentam risco à saúde superior aos seus benefícios e que não há provas científicas de que os medicamentos são eficazes. A decisão foi alvo de polêmica, colocando, de um lado, a Vigilância Sanitária e parte dos médicos e, de outro, profissionais da saúde que tratam obesos, além dos próprios usuários dos remédios. Quem defendia a volta dos medicamentos argumentava que cresceram o uso de drogas aprovadas para outros fins, como emagrecedores, e as cirurgias de redução de estômago. Halpern prossegue:

Para a maioria das pessoas, inclusive as que participam das agências reguladoras, a obesidade não é doença, é quadro psiquiátrico, não precisa de medicamentos e o problema é resolvido simplesmente com dieta e atividade física. Pura falácia! (...) Para qualquer doença, de qualquer especialidade, a tolerância com os remédios é muito maior. Por quê? Porque essas doenças são consideradas importantes. E obesidade, para boa parte das agências reguladoras, não é. Ou é, mas não necessita de medicamentos. Enfim, militando há anos nessa área, sinto-me seguro em dizer que o obeso é discriminado e vítima de preconceitos, e que isso tem que mudar. 61

Em 2014, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado aprovou projeto que derrubou a resolução da Anvisa que proibia a comercialização das substâncias anfepramona, femproporex e mazindol (do grupo das anfetaminas e seus derivados), além de ter estabelecido regras mais rígidas para a venda da sibutramina62. A Anvisa, então, publicou nova norma autorizando a produção, comercialização e consumo desses remédios, desde que houvesse prescrição médica e fossem respeitadas

60 Disponível em: . Acesso em: 18 de março de 2011. 61 Disponível em: . Acesso em: 18 de março de 2011. 62 Disponível em: . Acesso em: 17 de julho de 2014.

110 limitações de quantidade. Os mecanismos de controle foram aumentados: para que o medicamento fosse vendido, a receita deveria ficar retida na farmácia e o médico deveria assinar termo de responsabilidade. Além disso, o paciente também deveria assinar documento em que reconheceria os riscos que as substâncias emagrecedoras podem causar. Em 2016, a Anvisa publicou novas diretrizes para o uso desses medicamentos. Já em 2017, a Câmara dos Deputados liberou a comercialização dessas substâncias63.

4.5 - Apologia e marketing da obesidade

Os blogs aqui analisados costumam enfatizar temas como moda e beleza. Se o assunto em questão é saúde, as polêmicas são quase certas, especialmente quando os leitores interpretam o estímulo à autoaceitação como apologia à obesidade. É comum que debates sobre a aparência sejam confundidos com saúde, como Renata Vaz diz em entrevista à revista VEJA:

Eu recebo e-mails de médicos dizendo exatamente isso. É um mito achar que todo gordo é doente. Todo mundo sabe que aquele que se sente obrigado a perder peso vai acabar gordo e infeliz. Se a mulher descobre a felicidade, ela sai do casulo, sai para passear, vai para a academia. A tendência é que ela emagreça. Essa dieta de comer só sopa durante sete dias deveria ser proibida. Isso sim é um absurdo64.

O Grandes Mulheres, de Paula Bastos, também recebe críticas quando o assunto é autoestima. Segundo ela, é só o texto mencionar a necessidade de se rever padrões estéticos que já chegam comentários dizendo “isso tudo é papo de gordo

63 Disponível em: . Acesso em: 20 de novembro de 2017.

64 Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2017. Nota da autora: embora a entrevista com a blogueira Renata Poskus Vaz seja sobre assuntos variados, a revista a publicou na editoria “Saúde”.

111 conformado”, “não devemos fazer apologia à obesidade por tratar-se de uma doença”65. Ela acrescenta:

A verdade é que, sim, há comprovação científica de que a obesidade pode aumentar o fator de risco para o desenvolvimento de algumas doenças, mas isso é apenas um dado estatístico que não pode e não deve ser considerado de maneira equivocada. (...) Mas se o gordo é saudável e está feliz com o seu tamanho, ora! Há que ser deixado em paz! Isso não é apologia à obesidade. Isso não é papo de gordo conformado. Isso é apenas o exercício máximo da autoestima, coisa que falta a muita gente obcecada pela estética e que por isso se submete a alternativas altamente contestáveis em busca do corpo perfeito que nunca terão!66.

É delicada a linha que separa a suposta apologia do discurso que reconhece que é preciso cuidar do corpo e da alimentação. Algumas vezes, quando o texto enfatiza essa necessidade, podem surgir comentários como “ué, você não fala pra gente ser feliz sendo gorda?”. Por isso, alguns posts já começam com um discurso na defensiva. É o caso de Renata Vaz, quando publica o relato de uma blogueira que emagreceu combinando remédios com dietas e exercícios:

Meu nome é Alinne Rosa, tenho 29 anos, 1,65m de altura e cheguei a pesar 96 kg. (…) Dois anos de casada e mais 12 kg! Aff, como eu pude fazer isso comigo? (…) Em dois meses, já tinha eliminado quase 10 kg e voltei a me reconhecer no espelho. Hoje, passados sete meses, lá se foram mais de 20 kg e com a ida deles recuperei a autoestima, a vontade de me maquiar, vestir bem, sair para ver o mundo e ser vista! (…) Não tenho dúvida que algumas “Grandes Mulheres” por aí vão dizer que traí o “movimento”, que não sou digna de me dizer plus size, falar sobre o tema ou participar de eventos do ramo. Por quê? Por que fui lutar pela minha saúde e autoestima com as armas disponíveis no momento? Vocês não dizem que o importante é ser feliz e se amar do jeito que somos? Então, foi atrás disso que eu fui! Foram vocês que me ensinaram a me

65 Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2017.

66 Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2017.

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amar e aceitar do jeito que eu sou, a ter objetivos reais, atingíveis, padrões de beleza compatíveis com o meu corpo.67

Entre os recursos médicos disponíveis para quem precisa perder peso, um costuma gerar certa polêmica: a cirurgia bariátrica. Mesmo que muitos se submetam a ela por indicação médica, há casos em que a motivação é baseada na estética. Dos blogs analisados, o Mulherão é o que se dedica a debater o tema. Para a blogueira, a cirurgia é válida desde haja real indicação e seja assumida pela paciente – algo que nem sempre ocorre, já que até mesmo para alguns obesos esse procedimento é visto como algo típico de pessoa preguiçosa, incapaz de se dedicar à combinação de alimentação saudável e atividade física. Afirma Renata:

Quando vejo ex-gordas que passaram por bariátrica mentindo que operaram rins, vesícula ou a unha do dedão do pé, e dizem que emagreceram 20kg, 40kg em 2 meses com reeducação alimentar, acho uma crueldade com outras mulheres. As seguidoras dessas ex-gordas famosas se sentem incompetentes por não conseguirem esses resultados surpreendentes também. Por outro lado, compreendo os conflitos que vivenciam essas ex- gordas. “Se antes eu dizia que me amava gorda, ao assumir que fiz bariátrica vão dizer que eu mentia antes”. Sim, alguns dirão, porque tem gente que não tem mesmo o que fazer. Mas a maioria compreende que somos seres pensantes, que vivem e aprendem e mudam de opinião. Você pode ser uma gorda saudável hoje e não ser mais amanhã. E se decidir emagrecer, não importa por que via, não importa por qual motivo, é um direito seu. Mas se for usar seu emagrecimento para autopromoção, seja sincera.68

Muitas celebridades costumam atribuir o corpo enxuto a dietas e à alimentação regrada, omitindo tratamentos estéticos e às vezes até cirúrgicos. Quando se trata de falar de emagrecimento com o público, porém, o que vale mais é a credibilidade, o que significa muitas vezes abrir a intimidade. Em 1988, a apresentadora de TV americana Oprah Winfrey iniciou seu programa puxando, em pleno palco, um trenó carregado com

67 Disponível em: . Acesso em: 29 de outubro de 2017.

68 Disponível em: . Acesso em: 8 de novembro de 2017.

113 mais de 30 quilos de gordura animal. O peso, e também o material, representavam o que ela havia perdido após meses de uma rigorosa dieta. Apesar de os Estados Unidos viverem em uma cultura obcecada pela magreza desde meados da década de 1970, foi a primeira vez que uma celebridade falou tão abertamente sobre sua luta contra a balança. O programa Oprah, que já era um dos líderes de audiência na época, ficou ainda mais famoso por ela ter adotado um tom próximo de seus telespectadores – algo no estilo “eu sou como vocês, também sofro com o peso”. Esse tipo de interação acabou por tornar-se uma das marcas de Oprah e seu programa, que durou até 2011.

Ao longo dos anos, Oprah Winfrey perdeu e ganhou peso diversas vezes. Seu emagrecimento foi sempre acompanhado pelo público, que, assim, conhecia as últimas tendências na medicina, na estética, na ginástica e em outras áreas da saúde voltadas à perda de peso. Aos poucos, ela foi tendo sua imagem associada às dietas, o que foi devidamente capitalizado: seu nome ajuda a vender suplementos, equipamentos de ginástica, alimentos dietéticos variados e, claro, promove os profissionais que a acompanham. A exploração midiática do processo de emagrecimento de (e por) celebridades recebeu o nome de fatsploitation (MOBLEY, 2014:141).

Figura 6: a apresentadora de TV americana Oprah Winfrey e a exposição de seu problema com o sobrepeso em dois momentos: 1988 e 2005. Fontes: (último acesso: 23 de novembro de 2017) e (último acesso: 23 de novembro de 2017).

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Parte importante da prática do fatsploitation consiste em vender “veracidade” como item adicional dos produtos. Assim, pessoas que obtiveram êxito em seu emagrecimento graças ao consumo de um ou outro item passaram a ser convidadas a dar seu testemunho, o que muitas vezes inclui as famosas comparações de fotos de “antes X depois”. Por todos os motivos já analisados, um corpo gordo é algo a que muitas celebridades não querem ser associadas. Isso não chega a ser um problema, afinal essa indústria pode criar suas próprias celebridades. Foi o que aconteceu com Jared Fogle e a rede de lanchonetes Subway. Em 1999, o então anônimo rapaz decidiu perder peso de uma forma bastante incomum: já que havia engordado comendo fast food, que emagrecesse da mesma forma. Ele passou a pedir, então, a opção mais saudável do menu da Subway. Quando os executivos da rede tomaram conhecimento do caso, após a perda de mais de 100 quilos, logo transformaram Fogle no garoto-propaganda da “Dieta Subway”, mostrando aos consumidores que os sanduíches não faziam tão mal assim à saúde – pelo contrário. O resultado dessa campanha de marketing foi excelente: as vendas de sanduíche mais que dobraram no período. Fogle representou a marca até 2009; aos poucos, sua imagem começou a perder força, até porque muitos dos que haviam seguido seu exemplo desde 1999 voltaram a ganhar peso (MOBLEY, 2014:147).

No Brasil, o emagrecimento não costuma ser algo que promova celebridades. O que ocorre com mais frequência é a associação de personalidades do esporte, como atletas e treinadores, a produtos para a perda de peso. É o que acontece com o educador físico Márcio Atala, sempre convidado para explicar questões ligadas à boa forma, e a apresentadora e professora de ginástica Solange Frazão, famosa por ter corpo “em forma” já depois dos 50 anos, apenas para citar os exemplos mais conhecidos. No geral, celebridades aparecem em matérias ou reportagens que informam que emagreceram e têm ótimo corpo, quando, na realidade, já eram magras. Essas matérias costumam servir mais para promover um novo tipo de alimento diet/light ou a modalidade de exercício do momento nas academias de ginástica:

Viver a dançarina Michele em Mister Brau está exigindo alguns sacrifícios da atriz Taís Araújo. Quando recebeu o convite para a série, ela ainda estava grávida. (...) a fórmula utilizada por ela para recuperar o corpaço já é bem conhecida: malhação e

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alimentação correta. Para aprimorar sua atuação na série, Taís também investiu em uma modalidade conhecida como ballet fitness, que mistura exercícios funcionais com movimentos de ballet. Isso também ajudou na definição muscular e na perda de peso.69

Todos se interessam pelo emagrecimento de uma pessoa conhecida. Mas e quando o que ocorre é o contrário, a engorda? Até isso pode render boas cifras se explorado corretamente. Um dos melhores exemplos é o da atriz americana Kirstie Alley. Famosa por protagonizar filmes como Olha quem Está Falando, ela resolveu abrir as portas de sua casa para um reality show em que mostrava como Hollywood é obcecada por corpos magros. Lançado em 2005, o programa, chamado Fat Actress (Atriz Gorda) focava em seus esforços para emagrecer. Nessa mesma época, o mundo vivia a febre de programas no estilo de The Biggest Loser (O Grande Perdedor, em tradução livre), em que vários obesos participam de uma competição para a perda de peso. A tática de Kirstie para fugir dessa concorrência, então, passou a ser outra. Deliberadamente, ela quis chocar os telespectadores; a própria abertura do programa a mostrava subindo em uma balança e tendo um desmaio na sequência, ao tomar conhecimento do peso. Ela também costumava aparecer de robe ou camisola, com cabelo despenteado, comendo com voracidade ou deixando a comida cair sensualmente em seu decote – tudo, é claro, muito bem captado pelas câmeras. Aspectos grotescos como comer hambúrguer com a boca aberta também eram frequentes, o que explorava a suposta falta de modos e o horror que o Ocidente tem dos efeitos da comida fast food sobre o corpo (MOBLEY, 2014:151).

Seja como for, a exposição fez bem a Kirstie Alley, que conseguiu revigorar sua carreira. As muitas vezes que engordou ou emagreceu foram conhecidas pelo público em suas aparições no programa de Oprah Winfrey. Em 2006, por exemplo, ela chegou a se exibir de biquíni para mostrar o sucesso de um dos tratamentos; um ano depois, porém, apareceu vestida com roupas grandes e folgadas, que enfatizavam todos os quilos que ela havia recuperado (MOBLEY, 2014:156). Mais uma vez, a autopromoção obteve resultados. Ela produziu mais uma série sobre ela mesma, Kirstie Alley's Big Life, em 2010, e logo foi convidada a participar de Dancing with the Stars. A

69 Disponível em: . Acesso em: 13 de novembro de 2017.

116 atriz voltou a perder peso e, com o sucesso, deu seu nome a uma série de produtos voltados para o emagrecimento.

No Brasil, um dos exemplos de que engordar ajuda a sair do ostracismo artístico foi o da atriz Cristiana Oliveira. Em 2011, depois de anos fora de grandes produções, ela engordou cerca de 15kg para viver uma presidiária em poucos capítulos da novela Insensato Coração, da Rede Globo. Com a exposição, ela recebeu convites para outros trabalhos e ganhou o “bônus” de ser vista como atriz corajosa, que aceita desafios em nome da arte70. Mexer com o corpo é algo tão respeitado pela indústria do entretenimento que os críticos de cinema costumam apostar suas fichas para o Oscar e outros prêmios em atores e atrizes que passaram por grande variação nos ponteiros da balança. Charlize Theron foi a vencedora por Monster (2003), em que ganhou 15kg; Tom Hanks, em Náufrago (2000), perdeu 20kg para viver o homem que viveu isolado em uma ilha por anos. Até Renée Zellweger, que engordou cerca de 10kg para viver a simpática Bridget Jones, foi elogiada. Isso sem contar as inúmeras produções que retratam o holocausto ou doenças e exigem emagrecimento dos atores. O brasileiro Daniel Oliveira perdeu 14kg para viver, no cinema, o cantor Cazuza já sofrendo com os efeitos da Aids, em filme de 2004. Exemplos, enfim, não faltam.

A maioria das celebridades que emagrecem ou vivem o efeito sanfona são “assombradas” pelo seu passado gordo. Ninguém gosta de ser lembrado por sua imagem com excesso de peso, muito menos quem vive sob os holofotes. No entanto, em tempos de Internet, é dificílimo deixar esse passado para trás, já que a todo momento fotos e imagens antigas vêm à tona. É o que acontece com o ator Leandro Hassum, que em 2015 submeteu-se a uma cirurgia bariátrica e chegou a perder quase 70kg. Muito conhecido por programas e filmes de humor, em que evidentemente seu corpo gordo fazia parte da composição dos personagens, ele passou a ser criticado nas redes sociais por ter “perdido a graça” junto com os quilos que se foram71. Algo parecido acontece com o ator e apresentador André Marques, que também passou por cirurgia bariátrica.

70 Disponível em: . Acesso em: 15 de novembro de 2017.

71 Disponível em: . Acesso em: 15 de novembro de 2017.

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Sua imagem de gordo em uma festa chegou a virar “meme”72, algo que provavelmente jamais o deixará, não importa quanto peso tenha perdido.

Figura 7: o ator Leandro Hassum, antes e depois de perder peso. Fonte: (último acesso: 23 de dezembro de 2017).

A crítica aos atores está inserida em um contexto no qual o individualismo se vincula ao corpo. No caso de Hassum, o ator, já magro, passou a se exibir com muita frequência nas redes sociais em situações e poses típicas de uma pessoa atlética – na praia, sem camisa, na academia etc. O que se vê, portanto, é um ator “novo”, dono de uma personalidade que aflorou juntamente com o corpo novo, como se ele tivesse ido à desforra depois de tanto tempo vivido como obeso. Se um corpo gordo gera a expectativa de que seu dono viva uma “identidade gorda”, a perda de peso acaba por estabelecer uma nova identidade para o indivíduo, ao menos aos olhos dos outros (MOBLEY, 2015:154).

72 O termo meme é sinônimo de “fenômeno da Internet”, ou seja, tudo que faz sucesso e propaga-se rapidamente na rede, especialmente quando se trata de fotos ou vídeos engraçados (nota da autora).

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Capítulo 5 - Surge um novo padrão de beleza?

É automático: falar em “padrão de beleza contemporâneo” já traz à mente a figura de uma mulher magra, jovem, loira, cabelos lisos e compridos, pele clara, sem pêlos ou qualquer tipo de marca – talvez, nesses tempos atuais, uma tatuagem ou piercing, no máximo. É o tipo de corpo que vemos nos meios de comunicação, no cinema, nas capas de revista, nos manequins de lojas e praticamente em todos os lugares, no mundo todo. Onde fica, então, o corpo que foge desse modelo? Nesses tempos tão globalizados, há espaço para a beleza típica de determinada região ou país? E mais: podemos falar em uma beleza brasileira? Diversos estudos antropológicos já se debruçaram sobre o tema; porém, para um resultado mais preciso, uma pesquisa teria de ser desenvolvida por décadas e à custa da coleta de um elevado número de informações que poderiam abranger de moda e fotografia à evolução da cirurgia plástica, por exemplo. Algo um tanto inviável, uma vez que não contempla a diversidade das mulheres brasileiras.

Uma das maneiras de buscar um resultado mais palpável foi proposta por Teófilo de Queiroz Júnior, no artigo “Beleza da mulher e a literatura brasileira” (2000). O objetivo foi buscar um padrão de beleza com base em personagens criados por grandes escritores, como Machado de Assis, José de Alencar e Érico Veríssimo. Ele estudou obras publicadas entre 1844 e 1958, nas quais a figura feminina, obrigatoriamente de ficção, aparece já no título (Clarissa, Iracema, Gabriela Cravo e Canela etc). Em conjunto, os onze livros selecionados para o trabalho73 mostram peculiaridades na maneira de os autores verem a beleza feminina, seja na diversidade do tipo físico ou caráter de suas heroínas ou na trama que as envolve. Uma das primeiras revelações foi a de que as mulheres-título nos romances do século XIX têm entre 15 e 18 anos. As do século XX, quando mais velhas, não vão muito além, ficando na faixa dos 20 anos. Eram tempos em que os homens casavam-se com mulheres bem jovens, que mal haviam chegado à adolescência. “Ao mesmo tempo, era uma maneira

73 São eles: A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo; Inocência (1872), de Visconde de Taunay; A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães; Senhora (1875), de José de Alencar; Iaiá Garcia (1875), de Machado de Assis; Clarissa (1933), de Érico Veríssimo; Prima Belina (1940), de Ribeiro Couto; Eurídice (1945), de José Lins do Rego; Presença de Anita (1948), de Mário Donato; Lélio e Lina (1956), de João Guimarães Rosa; e Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado.

119 de desfrutarem o efêmero frescor juvenil que as mulheres perdiam muito cedo, na obscura reclusão da rotina doméstica, bem como nos desgastantes encargos de gerar e criar muitos filhos” (QUEIROZ, 2000:143). Logo, pode-se concluir que a juventude era, para nossa literatura, condição primordial de beleza feminina. Já em relação aos traços físicos, o autor considerou aqueles que mais aparecem em cada livro. Muitos autores descrevem a cor da pele das personagens, mas, curiosamente, podiam ser belas tanto as muito claras, como Inocência, quanto as mais escuras, como a mulata Gabriela, de cor de canela. Os cabelos também são citados; nenhuma personagem é loira ou ruiva, havendo cabelos negros mesmo entre as personagens de pele clara. Os olhos são realçados não precisamente pela cor, mas principalmente pelo formato dos olhos e pelos distintos olhares que emitem. As moças de outrora enfrentavam vários impedimentos, além de demonstrar recato e etiqueta, e não podiam declarar seus interesses ou demonstrar abertamente as emoções que sentiam por seus pretendentes ou pretendidos. Sobrava-lhes o recurso dos olhares, que transmitia mensagens e sentimentos dos mais diversos. Explica o autor:

A vigência desse código de olhares, muito bem conhecido e amplamente utilizado, condiciona a composição da beleza das personagens de nossa ficção do século XIX (QUEIROZ, 2000:147).

De acordo com o autor, na época que abrange a publicação dos romances estudados a descrição dos traços físicos ia pouco além do rosto. Os seios eram quase nunca citados e, quando isso ocorria, era de forma comedida. A carga mais sensual começa a aparecer no século XX, em romances como Gabriela, Cravo e Canela e Presença de Anita. Esta, provocante ainda na adolescência, na vida adulta subjuga seu amante por se saber bonita e desejável, além de ter bom desempenho sexual. Já Clarissa é descrita como uma adolescente de pernas grossas e seios rijos, sendo atraente e cobiçada. O odor também aparece como quesito importante na composição de algumas personagens, deixando-as irresistíveis e sensuais. Outras características importantes para a definição da beleza são a simpatia, bondade e recato, o que era desejado pelos homens para as mulheres de então.

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Segundo Queiroz, os 114 anos que abrangem a publicação do primeiro e do último romances analisados no estudo demonstram, naturalmente, diferenças estilísticas. No entanto, diz, “elas não chegam a ocultar correspondência na maneira de descreverem mulheres belas, chamando a atenção para os dotes fisicos. E essa correspondência, presente em quase dois séculos, não pode ser acolhida apenas como coincidência” (QUEIROZ, 2000:150).

Como observado anteriormente, seria um trabalho hercúleo e provavelmente infrutífero o de tentar levantar a beleza feminina brasileira diante de variáveis como cultura, região, idade, etnia, tipo físico etc. Além disso, aquilo que os autores descrevem pode ser considerado muito mais um gosto pessoal, deles próprios, do que um padrão propriamente dito.

O que podemos tomar como “padrão” é aquilo que nos é divulgado pela mídia, o que não deixa de ser algo gerado pela própria sociedade. O histórico de nossas musas assim o demonstra. Quando ainda não havia implantes de silicone, botox ou outros recursos da estética, cabia aos concursos de beleza eleger a mulher mais bonita do Brasil. Assim foi, por exemplo, com a gaúcha Ieda Maria Vargas, que em 1963 ouviu seu nome como vencedora do concurso Miss Universo. O corpo perfeito, então, era o que cabia em um maiô sem decote e pouco cavado e que seguia as medidas de 90cm de busto, 60cm de cintura e 90cm de quadril (Ieda tinha 1,70m, o que é considerado pouco para as misses de hoje. Ou seja: as contemporâneas são mais altas, mas, para manter essas medidas 90-60-90, são, obrigatoriamente, mais magras).

Os anos 1960 conheceram estrelas do porte de Brigitte Bardot e Sophia Loren, que apresentaram ao mundo uma visão nova do desejo feminino e de um magnetismo que personificava a liberdade daqueles tempos. Foi também uma época em que os modelos de beleza foram massificados. As revistas, que se multiplicaram nesses anos, generalizaram a cultura da estética e dos cuidados com o corpo. A publicidade de moda e cosméticos chegava a ocupar entre 60% e 70% de uma revista feminina como Elle, por exemplo (VIGARELLO, 2005:173). Os enquadramentos das fotos realçavam rostos e determinadas partes do corpo, como quadris ou curvas, dando a ideia de um corpo sempre leve e flexível. Essa profusão de imagens das revistas impôs, ainda, um elemento de qualidades baseadas na fotogenia: o manequim.

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“Beleza mercadoria” ou “beleza publicitária”, substituindo a beleza atormentada da estrela, o manequim sistematizou o princípio de um corpo de “papel gelado'. Figura que agita as modas e as práticas do dia, ela caracteriza os momentos mais homogêneos nas mais difíceis situações (VIGARELLO, 2005:173).

Entre as consequências dessa massificação está a revolução nas aparências. Já que a informação sobre a beleza, os cosméticos e as práticas de embelezamento estão ao alcance de todas e ainda por cima baseiam-se em um mesmo modelo, a visibilidade das distâncias sociais foi ficando encoberta. O uso de cremes e maquiagens estava ao alcance de todas as bolsas, assim como seus efeitos sobre as aparências. Dessa forma, seguiram-se, em todo o mundo, modas como a do cabelo “louro platinado”, imitando as estrelas do cinema, ou então as receitas de regimes e dietas que as celebridades da época seguiam. Os meios de comunicação investiam em temas que fizessem as leitoras se aproximar das estrelas e as sentir familiares, embora soubessem que jamais seriam iguais.

Já houve, no Brasil, certa reação à beleza loura e alva imposta pelos modelos de beleza americanos e europeus. No final do século XIX, verificou-se, em parte, tentativa de neutralizar esse “albinismo”, através da valorização de belezas femininas morenas em romances e poesias. Nem por isso, no entanto, as modas de mulher deixaram de sofrer, na época da Império e no início da República, impacto considerável do que vinha do exterior. As referências só mudaram um pouco quando houve uma “redescoberta” de recursos naturais brasileiros na moda, no design e em outras áreas. Observou-se em meados dos anos 1970 maior uso de material ecologicamente correto na confecção de artigos de moda feminina, como o algodão e a cambraia – celebrados como femininos, confortáveis, arejados, práticos, simples de lavar e passar e perfeitos para climas quentes como o nosso (FREYRE, 2009:58). Esse contexto favoreceu a valorização de uma beleza feminina considerada típica brasileira, com pele morena, cabelos cacheados e coxas grossas. Aquilo que Gilberto Freyre chama de “triunfante reação melanizante” teve seu ponto culminante com a glorificação da beleza de Sônia Braga, que interpretava Gabriela na novela de mesmo nome (Rede Globo, 1975), baseada na obra de Jorge Amado - “sem que essa glorificação de uma beleza morena venha significando o desapreço por brasileiras louras, tão belas como Sônia Braga: o caso de Vera Fischer” (FREYRE, 2009:57).

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Na opinião de Klanovicz, a personagem Gabriela é tomada como referência de um discurso que tornou positivas as características sensuais da gestualidade e da aparência da personagem. Tais características poderiam passar despercebidas, porém a reprodução de sua imagem (o que ocorreu ao longo de três reapresentações da novela, ao passo que duas delas foram transmitidas nos anos 1980), ou seja, a sua recorrência, perpetuou uma aparência sensual e brasileira com traços bem definidos: um corpo moreno, de ancas largas, aberto ao amor: a perfeita amante. Esses foram atributos que contribuíram para a constituição de um desejo encarnado no corpo de Gabriela - um corpo que estava além da atriz Sônia Braga, mas que passaria a ser visto, muitas vezes, como a representação da "mulher do Brasil" (KLANOVICZ, 2010).

5.1 – As chacretes e a beleza “popular”

Corpos abundantes como o de Sônia Braga faziam sucesso pontualmente, apenas atrelados a personagens ou programas específicos, ao menos no caso da Rede Globo, que nos 1970 já vinha se consolidando na liderança de audiência no Brasil. Não se trata de mero acaso. Mulheres mais curvilíneas, assim como outras mais exóticas ou mesmo feias, eram vistas apenas em programas de auditório e humorísticos, ou seja, naqueles em que o tom popularesco era mais explícito. Raphael Bispo lembra que houve um movimento em prol da conquista de um público telespectador considerado realmente consumidor na Rede Globo de meados dos anos 1970. Para conquistar esse filão do mercado, o padrão de qualidade da programação tinha de ser condizente com um gosto superior; logo, a meta era afastar qualquer característica que remetesse à cultura popular. Era preciso que a programação fosse mais sofisticada e inteligente para que a emissora conseguisse conquistar esse público-alvo e explorar seu potencial. Assim, dificultava-se que, por exemplo, os corpos de dançarinas ou humoristas fossem vistos em outras atrações, como as telenovelas. A fartura de seus corpos poderia remeter à gordura e a um tipo de mulher vulgar e sem muitas qualificações. Já para a ficção, exigia-se das atrizes porte elegante, sobriedade e estilo sofisticado – qualidades que compunham perfeitamente o perfil de Regina Duarte, a “namoradinha do Brasil”. O limite máximo era uma sensualidade comedida, como a da já citada Sônia Braga.

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Seu erotismo era considerado sofisticado, ao contrário da vulgaridade das dançarinas do Chacrinha.

As chamadas “chacretes” eram cerca de seis ou sete garotas que faziam parte do Programa do Chacrinha como dançarinas e assistentes de palco. Voltada às classes populares, a atração era comandada por Abelardo Barbosa e foi ao ar nos anos 1960 e 1970 pela Rede Tupi, entre 1978 e 1982 pela Band e, finalmente, entre 1982 e 1988 pela Rede Globo. O programa contava com atrações musicais que faziam sucesso entre os jovens, além de um show de calouros. Em sua maioria, as chacretes eram jovens na faixa dos vinte anos, oriundas de camadas populares das cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo, que viam na dança uma primeira oportunidade de trabalho no mundo artístico. O sucesso que elas faziam era explicado nem tanto pela beleza, mas principalmente pelo interesse pela dança e sobretudo por suas formas abundantes. Elas não deviam apenas ter um tipo físico característico, mas evocar a todo instante, por meio de vestimentas e gestos, uma imagem de mulher superexcitada e sempre disponível, servindo-se de seus corpos para isso. “Desde o processo de seleção, os produtores já atentavam para gestos, trejeitos e estilos que evocassem tal imaginário. A estética e a corporalidade, portanto, eram essenciais para a atividade das dançarinas” (BISPO, 2015:242).

Figura 8: Abelardo Barbosa, o Chacrinha, e as chacretes. Fonte: (último acesso em: 23 de dezembro de 2017).

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Quais eram os atributos físicos considerados requisitos básicos para uma chacrete? Em relação à idade, as que beiravam os 30 anos já eram consideradas velhas, embora os processos de seleção raramente mencionassem a faixa etária ideal (BISPO, 2015:242). Em relação à cor da pele ou tipo de cabelo, havia a valorização de uma diversidade de etnias, com a presença de mulheres cujos tons de pele eram considerados os mais diferentes possíveis. Segundo Bispo, a proposta era agradar a maior quantidade de homens telespectadores e oferecer a eles um cardápio variado de tipos femininos brasileiros – desde que, é claro, as dançarinas apresentassem as dimensões corporais desejáveis. A altura não vinha ao caso. O próprio Leleco Barbosa, filho de Chacrinha e produtor do programa, comentou a exigência de a chacrete se enquadrar na categoria das “udas”, ou seja, tinha de ser boazuda, bunduda, peituda, coxuda e cadeiruda (apud BARBOSA E RITO, 1996:119). As câmeras raramente filmavam as meninas além da cintura ou focavam os seios; o rosto, então, só recebia destaque quando elas ajudavam o apresentador em algum momento. Desde então, programas semelhantes sempre contaram com dançarinas em seu elenco, variando pouco o figurino (maiôs ou biquínis quase sempre).

No final dos anos 1980 e início dos 1990, o corpo cultuado pela mídia já era mais longilíneo, representado por modelos que ganhavam cada vez mais status de celebridade, como Cindy Crawford, Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Linda Evangelista e Kate Moss, por exemplo. No Brasil, porém, a influência de movimentos musicais populares contribuiu para que esse corpo magro ficasse um pouco mais “reforçado”. O axé dos anos 1990 deu fama a figuras como Carla Perez e Scheila Carvalho, dançarinas de coxas grossas e traseiro abundante – o que, naturalmente, era bastante explorado nas letras das músicas, nas coreografias e no figurino do grupo É o Tchan. Não por acaso, essas celebridades contribuíram para a popularização das próteses de silicone, especialmente nos seios. A ordem era ter um corpo sensual.

O movimento da cultura funk no Rio de Janeiro, surgido a partir dos anos 2000, é um exemplo que contribuiu para que as mulheres mais corpulentas passassem a ser vistas de outra forma. Mesmo não sendo exatamente gordas, as “funkeiras” como Mulher Maçã, Mulher Melancia e Mulher Moranguinho, entre outras (as frutas remetem a partes abundantes do corpo de cada uma, como seios e nádegas, por exemplo), apresentaram a corpulência associada à sensualidade e ao poder em relação aos homens. A musculação pesada para adquirir coxas grossas, abdome definido e braços

125 musculosos fez do corpo “violão” um sucesso na mídia, e, o que é mais interessante, tornou-o desejado em diferentes classes sociais e níveis de instrução, e não apenas nos mais baixos, tidos como público-alvo do funk carioca. Programas como o Big Brother Brasil também contribuíram para a divulgação dos corpos “turbinados”, em alguns casos com a polêmica ajuda de anabolizantes e próteses de silicone. No Carnaval de 2009, a revista Veja publicou um texto sobre as musas das escolas de samba. Segundo a matéria, “rainha de bateria que se preze” deveria ter pelo menos “um metro de quadris”, seios “turbinados” e “nádegas que avançam como mísseis balísticos” (SANT'ANNA, 2014:178). Soma-se ao movimento funk a maior afirmação dos negros e mulatos, no que se inclui a valorização da “beleza brasileira” dos quadris fartos. Ao mesmo tempo, a beleza de cabelo louro e liso, pele alva, nariz fino e cintura reta, representada pelas tops Gisele Bündchen e Ana Hickmann desde meados dos anos 1990, foi cedendo espaço a outros tons de pele e cabelo, bem como a outras formas.

Figura 9: Viviane Araújo, atriz e rainha de bateria de escola de samba, e a funkeira” Mulher Melancia: corpos “turbinados” com dietas, exercícios e próteses de silicone. Fontes: (último acesso: 15 de janeiro de 2018) e (último acesso: 23 de dezembro de 2017), respectivamente.

Prova dessa preferência pelo corpo mais curvilíneo é a divulgação dos resultados de uma pesquisa feita em 2012 pelo Instituto Data Popular com 15 mil mulheres acima

126 de 16 anos, de todas as classes sociais do país. As entrevistadas receberam fotos de mulheres famosas sem a identificação de seus rostos, vestindo apenas lingerie. Para 72%, o corpo atraente era o mais curvilíneo. A maioria (59%) gostaria de ter aquela silhueta. As participantes não sabiam, mas escolheram Geisy Arruda, a moça que foi humilhada em uma universidade paulista por usar um vestido curto. Na pesquisa, Geisy superou a atriz Juliana Paes (32% queriam ser como ela) e a modelo Gisele Bündchen (apenas 8% queriam ser como ela). “O padrão de beleza deixou de ser o das passarelas. Ele é considerado pelas mulheres, e até pelos homens, pouco atraente, nada sensual e até feio”, diz Renato Meirelles, sócio diretor do Instituto Data Popular74.

A pesquisa indica que um corpo de curvas abundantes vem sendo mais admirado do que aquele reto e magro. Entre as possíveis explicações está a recente ascensão das classes C e D, que promoveu um novo olhar em relação a esse corpo. Segundo Sant'Anna,

a antiga imagem de que gordura é formosura, charme, generosidade e, sobretudo, alegria foi renovada. Em sites e blogs sobre o assunto, os gorduchos parecem mais divertidos e menos tensos que os magricelas. Como se estivessem naturalmente à vontade com a vida. As gordas sugerem uma lida pouco complicada com os problemas cotidianos, como se elas os despachassem para longe, com maior graça e folga do que as magras (SANT'ANNA, 2014:183).

Essa imagem, relacionada à busca pelo “look natural” citado anteriormente, parece estar durando: em 2017, artistas e cantoras acima do peso ganharam evidência que não deixa nada a dever em relação as suas colegas mais magras, pelo menos no ritmo sertanejo universitário. As duplas Maiara & Maraisa e Simone & Simaria e a cantora Marília Mendonça fazem sucesso com figurinos que revelam e realçam suas formas, mesmo estando quase todas acima do peso. Curiosamente, quando essas artistas aparecem em entrevistas na TV, revistas e outros meios, a questão “corpo” recebe pouca ênfase, ao contrário do que costuma acontecer com a maioria das mulheres que estão sob os holofotes. Em entrevista ao Jornal Extra, por exemplo, apenas uma entre 21

74 Revista Época, edição 737, 2 de julho de 2012.

127 questões feitas à dupla Maiara e Maraisa falava sobre a relação delas com o espelho. As respostas foram:

Maiara: Ah, me incomoda estar gordinha... Eu tinha que tomar vergonha na cara e emagrecer. Já coloquei balão no estômago duas vezes e não deu certo. Acabei de tirar um. Eu poderia fazer bariátrica, estou pensando nisso. Engordei 20 quilos em dois anos. Maraisa: A gente está sempre de dieta. No camarim, somos light à beça. Mas, depois do show, acabamos devorando fast food. Já fiz lipo, queria perder mais uns cinco quilos.

Outra abordagem curiosa a respeito das artistas sertanejas é a da revista Claudia, na edição de novembro de 2017. Um texto conta um pouco da trajetória de várias cantoras e dos sacrifícios que fazem em prol da carreira, como passar dias longe dos filhos ou a saudade que sentem da terra natal. Sobre corpo, dietas, modas ou temas afins, que são comuns em qualquer publicação feminina, nenhuma pergunta. O fato chama a atenção devido ao contraste com a capa da edição, que traz a atriz e apresentadora Regina Casé. Vítima do efeito sanfona há anos, dessa vez ela aparece magra. Não tardou para que leitores e público em geral se manifestassem nas redes sociais, “denunciando” o uso de Photoshop ou outros programas de manipulação de imagens nas fotos com ela. Parece, portanto, que a vigilância em relação ao corpo escolhe a dedo seus alvos.

É difícil afirmar a que se deve essa distinção de alvo a atacar quando o assunto é a forma física. Estamos acostumados a ver figuras como a cantora Preta Gil serem mal tratadas pelo público simplesmente por serem gordas, como se isso fosse uma ousadia além da conta para quem canta em trios elétricos no Carnaval. Algumas personalidades, de fato, sentem-se ousadas demais quando estão fora de forma e simplesmente saem de cena, voltando quando (e se) reassumem o corpo de antes – talvez por isso a escassez de exemplos para ilustrar esse raciocínio, especialmente entre mulheres. Um dos casos mais conhecidos é o da ex-modelo e atriz Susy Rêgo. Depois de muitos trabalhos nos anos 1990 e 2000, ela fez uma pausa na carreira para tentar engravidar. Foi preciso um

128 tratamento de fertilidade, o que a fez chegar aos 104 quilos75. Apesar de não ser condenada por isso (e aqui fica a hipótese de que a gordura originada por doenças ou tratamentos médicos é digna de pena ou mesmo respeito, e não de críticas), a atriz levou anos para conseguir chegar a um manequim considerado razoável. Ela só voltou à cena quando tirou partido de seu novo corpo: foi modelo plus size de uma grife paulistana e, na TV, participou da novela Morde e Assopra (Rede Globo, 2016), no papel de uma artista fora de forma que se internava em SPAs mas que sempre dava escapadinhas para comer pratos mais calóricos.

No caso das sertanejas, uma das hipóteses para ela estarem “imunes” a esses ataques gordofóbicos pode ser a origem nas classes populares, com a qual muitos fãs das classes C e D, seu público-alvo, se identificam. Como afirmado há pouco, para essas classes sócio-econômicas, o corpo magro e enxuto não é tão obrigatório como entre pessoas de renda ou grau de instrução elevados. Outra explicação possível é a força das redes sociais, em que os fãs se unem para manifestar repúdio a ataques ou gozações que seus ídolos sofrem. Há de se considerar também que, em sua música, as cantoras do sertanejo universitário exercem o papel de quem toma a iniciativa na conquista do sexo oposto. As letras falam de volta por cima, de amor que não foi devidamente valorizado pelo parceiro, autoestima em alta e temas afins. É possível que essa postura ativa, que não chega a ser inédita na música, porém é agora mais frequente, iniba demonstrações de gordofobia ou outros tipos de preconceito em relação ao corpo fora das medidas convencionais para artistas mulheres.

75 Disponível em https://vejasp.abril.com.br/cidades/suzi-rego-plus-size/, acessado em 12 de dezembro de 2017.

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Figura 10: em sentido horário, as cantoras sertanejas Marília Mendonça, Maiara e Maraisa e Simone e Simaria. Fontes: (último acesso: 15 de dezembro de 2017); (último acesso: 15 de dezembro de 2017) e (último acesso: 15 de dezembro de 2017), respectivamente.

Nas poucas vezes em que é abordado com essas artistas, o tema da gordura em excesso entra quase sempre de forma franca e direta nas entrevistas, ou então como brincadeira feita pelas próprias. Marília Mendonça, em seu Instagram, publicou a foto de uma barriga masculina e perguntou aos seguidores de quem seria, oferecendo “100 contos” a quem adivinhasse. Para o seguidor que respondeu que a barriga “obviamente era dela”, a cantora disse o seguinte: "Só não é minha porque a minha não tem cabelo (risos). Sem neura. O que 'nóis' tem de barriga, 'nóis' tem de dinheiro. Graças a Deus. Amém”76.

No geral, os comentários sobre a aparência das sertanejas são bastante leves – algumas vezes até pitorescos, como aconteceu com Simone e Simaria no Programa Silvio Santos. Na ocasião, o apresentador fez várias brincadeiras com o tipo físico de Simone, olhando sempre para suas pernas e traseiro. Em certa altura, chegou a dizer:

76 Disponível em https://extra.globo.com/famosos/marilia-mendonca-rebate-comentario-sobre-peso-que- nois-tem-de-barriga-tem-de-dinheiro-20632517.html, acessado em 11 de novembro de 2017.

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"estou desconfiado de que isso é um travesseiro". Em outro momento, o dono do SBT chamou a cantora de gordinha, no que foi prontamente rebatido por sua parceira Simaria: "mas ela não é gordinha. Ela é gostosa"77.

A associação entre curvas e sensualidade é forte, o que pode ser um dos motivos para essa nova valorização dos corpos mais fartos. Não é possível, porém, afirmar que um padrão de beleza culturalmente hegemônico apague a concorrência de outros. O fato de haver uma ou outra qualidade física tida como modelo de beleza não impede a existência de outros, tampouco a circulação de discursos ou ideais que os afirmam. O que ocorre, segundo a noção de hegemonia que Raymond Williams adota de Antonio Gramsci, não é uma dominância total, mas um processo de disputa política e cultural em que determinado(s) discurso(s) torna(m)-se mais ou menos predominante(s), sendo continuamente desafiado(s), renovado(s), defendido(s) e recriado(s). Assim, embora o ideal de magreza e juventude seja divulgado e reforçado pelos meios de comunicação como “o modelo” a ser seguido, não é correto supor que este padrão seja o único existente ou que ele tem a mesma relevância para todos os grupos ou classes sociais – “deve-se levar em conta outras construções, bem como as possíveis ressignificações e contestações produzidas” (BETTI, 2014:165). Do mesmo modo que as percepções e significados em torno da gordura não são unívocos, também não o são aqueles em torno da magreza.

Nem sempre um corpo magro, enxuto e livre de qualquer sinal de gordura é celebrado; embora esteja associado a uma ideia de autodisciplina e autodeterminação, ele também pode remeter a um corpo doente e frágil, além de chocante e impossível de ser conseguido. Diversas discussões na Internet já foram motivadas por sites e blogs de revistas que publicaram imagens de celebridades com o corpo considerado “perfeito”, ao passo que as leitoras argumentaram que essas imagens não traziam a ideia de corpo saudável ou possível de ser alcançado pela maioria das mulheres. Em muitos casos, tais imagens passam por retoques digitais a fim de mostrar mulheres ainda mais magras. Seja como for, o que se percebe é que o glamour do corpo magro e seu importante valor cultural dependem de certos critérios. Não é qualquer magreza que pode ser considerada positiva. Ela pode ser patologizada quando percebida como excessiva, nos casos em que

77 Disponível em http://f5.folha.uol.com.br/televisao/2017/05/silvio-santos-chama-simone-de-gordinha- e-simaria-o-corrige-ela-e-gostosa.shtml, acessado em 11 de novembro de 2017.

131 está ligada à anorexia ou a outros distúrbios alimentares. Um exemplo do quanto a magreza é celebrada sem critérios é o caso da blogueira Nara Almeida, que tem mais de 700 mil seguidores na rede Instagram. Ao postar fotos suas com pouca roupa ou biquíni, a jovem recebeu muitos elogios e perguntas sobre o que fazia para manter um corpo tão bonito. Para a surpresa de muitos, ela revelou que sofre com um câncer de estômago e respondeu com um desabafo:

Nas fotos parece que estou super saudável, magra, gostosa... mas a realidade é que estou muito abaixo do meu peso, me sinto cansada, estou com anemia e vários outros problemas, só eu sei o quanto estou debilitada. (…) Não consigo me alimentar mais, até a água que eu tomo coloco pra fora em questão de minutos, meu estômago não processa nada! Hoje o que me mantém viva é a sonda que faço alimentação via enteral. O preço que tô pagando pra ter esse corpo que vocês consideram dos ‘sonhos’ é muito alto. (…) enfim, parem de desejar os corpos alheios, fiquem felizes com a vida e o corpo de vocês.78

O grau de angústia demonstrado com o excesso de peso indica o quanto a mulher depende do olhar de aprovação do outro, tanto para sentir-se segura como para sentir-se feminina. As gordas não têm direito a isso; ao invés de desejo, provocam zombaria ao tentar exercer sua sexualidade. A gorda sensual é tida como exótica, bizarra, uma aberração da natureza ou objeto de fantasias.

5.2 – Sensualidade: do fetiche ao caminho para a autoaceitação

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, nas quais a gordura é vista como algo não desejável ou atraente, diz Kulick, é tanto cultural quanto psicanaliticamente previsível que deveria haver um “retorno do oprimido”, o que se daria na forma de

78 Disponível em https://vejasp.abril.com.br/blog/pop/o-desabafo-desta-jovem-vai-te-fazer-repensar-o- corpo-dos-sonhos/, acessado em 24 de outubro de 2017.

132 grupos de pessoas para quem silhuetas gordas são o foco da fantasia e da satisfação erótica (KULICK, 2012: 233).

Lembremos que existem categorias dentro da indústria pornô que abrangem mulheres extremamente obesas. Desde o início da pornografia, na virada do século XIX para o XX, aliás, existem mulheres gordas como atrizes. Da mesma forma que os anões, os deficientes e deformados que faziam parte dos antigos freak shows (espetáculo de aberrações), as gordas eram expostas para o espanto e escárnio da platéia (LEITE JR, 2006:210). Com a evolução da indústria pornográfica, a exposição da obesidade saiu da corrente principal para ser um “segmento”, tal qual ocorre com lésbicas, mulheres maduras, negras, grávidas e por aí afora. Isso abriu espaço para que se cultivasse um público formado por admiradores de mulheres gordas. Atualmente, existem dezenas de publicações que mostram relações sexuais com obesas; boa parte, ao contrário de explorar o aspecto freak, chega a questionar o padrão da estética magra, valorizando as modelos gordas como bonitas e sensuais.

É interessante notar que, dentro desse universo pornô, há duas categorias em especial nas quais o corpo gordo é especialmente valorizado. Uma delas é a de sexo sadomasoquista, em que não necessariamente ocorre a relação sexual. Nessa modalidade, objetos e partes do corpo que não são usualmente tidos como sexuais (coleiras, pratos de cachorro, pés etc.) tornam-se altamente erotizados. Assim, o prazer erótico é deslocado dos genitais, ressignificando o corpo prazeroso. Já no caso da categoria que abrange as mulheres muito gordas, com 200kg ou mais, o foco não recai nos genitais, seios e nádegas, como acontece nas demais categorias. Os genitais, aliás, nem chegam a ser expostos, e sim o estômago das atrizes. A representação da pornografia está no ato de mulheres muito gordas aparecerem, sozinhas ou com amigas, comendo alimentos gordurosos, como chantilly, massas, molhos, frituras, pizza etc. O ato pornográfico não é a exibição do pênis ou a penetração de algum objeto na vagina da mulher, mas a exibição da comida entrando em sua boca (KULICK, 2012:226).

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Figura 11: A modelo plus size Crystal Renn em ensaio para edição de 90 anos da Vogue francesa, em setembro de 2010. Fonte: (último acesso: 16 de dezembro de 2017).

O autor questiona de onde vem o interesse pelo que muitos consideram uma aberração. Citando Freud, ele lembra que uma das maneiras de assegurar que uma coisa se torne desejável é justamente proibi-la. É o que acontece quando comemos doces, bebemos álcool ou fumamos: são comportamentos nocivos e proibidos na vida cotidiana, mas que, talvez por isso, tornam-se atraentes e desejáveis. Diz ele:

(…) Perguntar-se por que a pornografia sobre gordura existe é perguntar-se sobre o óbvio, pelo menos se você acredita em Freud. Ele nos diria que ela existe apesar do fato de que causa repulsa a muitas pessoas, mas exatamente porque causa repulsa a muitas pessoas. E, portanto, atrai. (KULICK, 2012:234)

A existência de categorias pornôs que abrangem corpos gordos serem percebidas como fetiche ou bizarrice é mais uma das barreiras que a mulher obesa enfrenta em relação ao próprio corpo. Afinal, como viver a sexualidade de forma plena sem o fantasma de ser vista como objeto? Não por acaso, muitas questões que envolvem a autoestima das plus sizes estão relacionadas à sensualidade, sempre considerada um dos maiores obstáculos da mulher vista como acima do peso. Uma das formas mais comuns de discriminação e exclusão social infligida a ela é, justamente, a negação de seu poder de sedução. A imagem da mulher gorda é desvinculada da de beleza, e, portanto, do

134 poder de atratividade e incitação do desejo sexual masculino (NOVAES, 2006:66). Em pesquisa que entrevistou mulheres candidatas à cirurgia bariátrica, Novaes averiguou que muito das falas traziam certo ressentimento por essas mulheres não se considerarem atraentes o suficiente para atrair a atenção do sexo oposto. A autora tratou a questão como olhar social que dessexualiza as pessoas gordas. De acordo com ela, “encaradas como aversivas, por não serem esteticamente agradáveis, lhes atribuímos o papel de ridículos-palhaços, negando-lhes o direito a uma vida amorosa e sexualmente ativa” (2006:191).

Pesquisadores do campo dos estudos sobre obesidade veem no empoderamento feminino uma forma de resistência contra o estigma cultural da gordura. O autoconhecimento e a resistência aos discursos tradicionais sobre obesidade teriam o poder de encorajar os gordos a “saírem do armário” e fortalecer o orgulho pelo seu corpo. A exposição mais positiva do corpo gordo depende e é resultado desse sentimento, que no entanto não é nada fácil de acontecer.

Segundo artistas e profissionais do teatro, a performance física da gordura é uma das formas para chegar a essa liberação do corpo, uma vez que ajuda a revelá-lo e redefini-lo. Isso é muito evidente no trabalho das dançarinas burlescas, que exploram o aspecto sexual do corpo farto (CZERNIAWSKI, 2015:21). Para que essas performances tenham efeito duradouro, é preciso conduzi-las com cuidado para não realçar ainda mais a estética da magreza. Isso porque as mulheres gordas são guiadas o tempo todo pelo padrão magro e tendem a imitá-lo mesmo inconscientemente. Assim, vemos as mesmas poses e comportamentos em uma magra e uma gorda vestindo lingerie, por exemplo.

A sensualidade é um tema que recebe atenção especial nos blogs. Muitos estimulam a exploração de decotes ou peças mais ousadas. Quase sempre os textos trazem indicação de confecções dedicadas a modelos de renda, transparentes e com detalhes que não deixam nada a dever às marcas para mulheres magras. Em vários blogs, são populares as publicações de ensaios fotográficos sensuais, em que modelos exibem coleções de lingeries e mulheres comuns mostram aspectos até então pouco explorados de sua personalidade com roupas e posturas provocantes. Como vimos, a Internet já está povoada de imagens de mulheres gordas em poses sensuais, porém esse espaço sempre foi restrito aos sites pornográficos e tratado como fetiche. A diferença, agora, é que são as próprias mulheres que desejam se exibir de forma sensual para seus

135 namorados, maridos, pretendentes ou simplesmente para elas mesmas, como se estivessem afirmando que gostam de seu corpo e têm tanto poder de sedução quanto as modelos de medidas consideradas dentro do padrão.

No Mulherão, o sexo é tratado sem rodeios. Mesmo aspectos que costumam ser constrangedores, como posições sexuais para gordos ou vergonha das celulites, são tratados como algo natural e que merece ser discutido, já que fazem parte da vida de qualquer mulher tida como acima do peso. Dos três blogs estudados, este é o que mais estimula a exploração da sensualidade, inclusive como ferramenta para a autoestima. Para o dia dos namorados de 2016, por exemplo, o blog publicou um ensaio sensual com um casal de gordos. Ambos aparecem seminus e em poses excitantes, com destaque para decotes e calcinha fio-dental. Diz a blogueira:

Os modelos Edu Rodrigues e Thais Scarparo protagonizaram um ensaio sensual de tirar o fôlego. Eles juram que são bons amigos (sei, sei, sei) e que a inspiração para as fotos foi o Dia dos Namorados e a necessidade de casais gordos se sentirem representados na mídia. E eles têm razão. Aqui mesmo no Blog Mulherão pisamos muito na bola quando representamos casais. Falamos dos magros ou sarados com gordas e esquecemos dos gordinhos que são igualmente bonitos e sedutores. Eu era uma gorda gordofóbica, só ficava com caras sarados, até que me rendi aos encantos de um gordinho. A-DO-REI. Me perguntei: “porque não experimentei antes?”. hahaha… Bom, vamos parar de falar de mim e ir direto para o amor e a safadagem [seguem as fotos] 79

79 Disponível em http://blogmulherao.com.br/25959/aviso-de-sensualidade-explicita-ensaio-sensual-com-gordo-e-gorda/, acessado em 1º de julho de 2017.

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Figura 12: Ensaio sensual para comemorar o dia dos namorados no blog Mulherão: representatividade de casais gordos na mídia. Fonte: . (último acesso: 1º de julho de 2017).

Ainda é raro que imagens que mostram gordos em situações como essa, sempre relacionadas a pessoas magras, jovens, com corpo atlético. Os estereótipos morais ligados às pessoas gordas são muito fortes e muitas vezes as obrigam a exercer papeis secundários, nos quais é ressaltada sua figura. Sobre essa pouca representatividade, Novaes pensa que “se na cultura grega a feiura não deveria ser representada, na cultura atual o sentimento crescente de lipofobia afasta dos espaços públicos a feiura indesejada dos gordos, bem como do nosso imaginário a presença dos esteticamente imperfeitos” (NOVAES, 2010:74).

É o que acontece na mídia de forma geral. No cinema, nas novelas, nas revistas e demais meios de comunicação, é quase nula a presença de atores ou modelos gordos em papeis de destaque. Restam os personagens estereotipados, marcados por serem maus, feios, fracassados ou cômicos. No entanto, como vimos anteriormente, esse mesmo público deixado em segundo plano vem se tornando importante para vários setores da economia, no qual se inclui a indústria cultural. Como há uma busca por novos consumidores, o mercado cria nichos e busca formas de dialogar com eles de forma mais direta e convincente. Já se percebe uma ou outra iniciativa de inclusão dos gordos no cinema, novelas etc. O “ativismo” (aspas porque muitas vezes é involuntário) de figuras como a cantora Adele ou a modelo convida as mulheres jovens a darem uma atenção diferente ao seu corpo, olhando-o com mais carinho e buscando qualidades. A indústria já deu-se conta dessa tendência e lança campanhas de marketing com a mesma proposta. Aos poucos, a gordura, a gordofobia, a vergonha do próprio

137 corpo e o isolamento causado pela estigmatização vão cedendo espaço a mais representatividade e quebras de tabus em terrenos sempre “vetados” ao corpo gordo, como sexo e beleza. O que antes provocaria riso e zombaria já consegue ser encarado de forma mais natural. Exemplos recentes disso são ensaios de moda feitos por confecções de lingerie e moda praia, com gordas vestindo trajes sensuais e ousados, sem a preocupação de esconder o que até pouco tempo atrás era visto como imperfeição. A cantora Anitta, famosa por músicas, danças e figurinos sensuais, tem em sua equipe de dançarinas duas mulheres gordas, o que nunca se viu em nenhum palco. Ou seja: gordo ou não, o que importa ao corpo, agora, é a maneira como se lida com ele. A obesidade pode ser “compensada” pela atitude em relação às próprias formas. O corpo sempre será objeto de consumo, mas agora existem outros recursos para construí-lo de acordo com a identidade pessoal. O emagrecimento ainda é o predominante, mas há também a malhação, as tatuagens, os implantes de silicone, as cirurgias plásticas variadas etc. Parece que, ao mesmo tempo em que somos transformados em nichos dos mais variados, somos convidados a transformar e encarar nossos corpos ao sabor dos modismos, do humor, da faixa etária, dos hormônios ou de outros elementos que constituam nossas identidades.

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6 - Considerações finais

Foi por estar tão habituada a ver, na mídia voltada ao público feminino, o que “não” comer, o que “não” vestir ou o que “não” fazer com meu corpo que algo começou a chamar minha atenção, no início dos anos 2010: a frequência cada vez maior com que mulheres gordas eram mostradas. Revistas, catálogos de moda, novelas e filmes já não restringiam o corpo abundante a papeis secundários ou a figurinos de senhoras. Elas já apareciam sorridentes em sites e blogs, vestindo roupas da moda e até dando conselhos de beleza. Na televisão, personagens gordas chegavam a ser disputadas por dois homens. Como pode? O que motivou esse novo olhar em relação à obesidade? Como eu já vinha estudando temas ligados a mídia, consumo e corpo, no caso o de mulheres idosas, resolvi mudar um pouco o foco. Mudar para a minha vivência, para algo que fazia parte de minha vida, já que a preocupação com o peso me acompanha desde a infância. Passei a observar, então, a forma como a obesidade estava sendo mostrada pela mídia.

O primeiro impacto veio com os blogs. Espaços democráticos da Internet, em que supostamente se pode publicar o conteúdo que se queira, eles aos poucos deixaram de ser meros diários virtuais para assumir aspectos de veículos de comunicação. Alguns trazem editorias (moda, saúde, beleza, lazer etc) e contam com colunistas convidados, por exemplo. O novo uso dos blogs coincidiu com a maior visibilidade de movimentos antigordofobia e até mesmo com a nova postura da publicidade, que adotava a aparência natural e corpos “reais” (não magros como os de modelos, ao menos) em campanhas de produtos de beleza. Pouco a pouco, começou a despertar nas mulheres tidas como fora dos padrões de beleza a vontade de se expressar e de, principalmente, reivindicar representatividade. Para isso, os blogs eram perfeitos. As blogueiras passaram a se mostrar, posar para fotos com roupa de praia, em poses eróticas e outras atitudes impensadas para gordas até pouco tempo antes. Minissaias, listras horizontais, camisetas estilo regata e tops que deixam a barriga de fora passaram a ser, nesses espaços virtuais, tão comuns quanto qualquer outra peça da moda. Não havia mais tantas restrições quanto ao que vestir ou como se comportar.

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Esse burburinho que acontecia no mundo virtual passou a ter ecos também na mídia impressa feminina. Revistas tradicionais como Claudia, Marie Claire, Elle e TPM já incluem, com frequência, peças plus size em seus editoriais de moda. Em alguns casos, como em Nova, personalidades consideradas gordas como Preta Gil já foram até capa. Algo impensável até poucos anos antes.

Mas e quanto às mulheres comuns? O sentimento de libertação e o empoderamento chega até elas? Já circula pelas ruas, de fato, uma novo olhar em relação ao corpo gordo? Em vários momentos ao longo da pesquisa pude sentir otimismo. Um dos mais marcantes foi o evento Fashion Weekend Plus Size, em agosto de 2014. Fui como espectadora, com o objetivo de imersão no mercado plus size. Pensei em assistir ao desfile e ver as tendências de primavera/verão, mas na verdade o principal estava fora da passarela. Na plateia, jovens na faixa dos 20 anos, quase todas gordas, carregando câmeras, tablets e notebooks e escrevendo sobre o evento para seus blogs. O clima era bastante festivo, como se todas estivessem entre amigas – de fato, muitas blogueiras se conhecem e interagem em seus blogs. Nada daquela euforia arrefeceu, nem quando surgiram dois repórteres do antigo programa humorístico Pânico na TV (Rede TV!) vestindo roupas com enchimento, para parecerem obesos mórbidos. Ambos se sentaram na primeira fileira e assistiram aos desfiles fazendo comentários sobre celulites, estrias, barriga aparente e outras características do corpo gordo. Mais tarde, pude conferir na matéria que foi ao ar que, de fato, o programa se ateve muito mais às imperfeições do corpo das modelos do que a qualquer outra questão. O evento foi tratado como algo exótico e até mesmo cômico. Meu otimismo inicial não havia sobrevivido a tanto.

Meses depois, em outra edição do Fashion Weekend Plus Size, o tratamento da mídia foi diferente. Agora, os repórteres que circulavam por lá não eram de programas de humor, e sim jornalísticos. O mercado plus size já era visto como negócio em ascensão e setor promissor dentro da indústria de moda. Algumas blogueiras, como Renata Poskus Vaz (organizadora do evento) e Juliana Romano passaram a ser convidadas por entidades como o Sebrae para viajar pelo país e participar de palestras para lojistas interessados em trabalhar com o segmento. Assisti a uma dessas palestras e pude perceber o quanto ainda estamos em patamares iniciais quando se fala de moda para tamanhos grandes. Pouco se sabe sobre a abordagem correta do cliente, a modelagem adequada, a exposição das roupas ou mesmo o formato dos provadores. Por

140 outro lado, é bastante animador ver o interesse com que lojistas e empresários buscam informação sobre esse mercado. Ao longos dos meses, o plus size foi se tornando termo cada vez mais comum nos veículos de comunicação, em abordagens que iam desde comportamento até economia e saúde.

Atualmente há bazares, feiras, desfiles e outros eventos dedicados à moda e ao universo plus size. Blogueiras e ativistas ganharam mais espaço, inclusive na mídia tradicional, sendo frequentemente entrevistadas ou convidadas a serem colunistas. Essa movimentação, vista pelo viés acadêmico, possibilita compreender que o corpo é agenciado pela cultura e forjado de acordo com diversos fatores, como gênero. A partir de poderes exercidos sobre os corpos, formam-se hábitos de docilidade e regulação que passam a reger nosso dia a dia. Esses hábitos são tão incorporados que se tornam “verdades”. Os meios de comunicação, nesse aspecto, desempenham papel importante, pois é por meio deles que tomamos conhecimento e temos reforçados padrões de comportamento e beleza que mantêm a disciplina, sobretudo no caso das mulheres. Observando os fatos a partir de novas formas de normalização do corpo, é preciso enxergar a mídia e a comunicação como uma relação entre dois lados que se complementam: um que produz e emite a informação e outro que a recebe e reproduz. Logo, não são apenas os veículos de comunicação os responsáveis pela produção da informação – eles produzem e divulgam um conteúdo que será recebido e usado pelos receptores de maneiras diferentes. É assim que a informação se transforma e circula.

A análise da recepção de bens culturais, portanto, é importante quando se busca apreender um olhar mais profundo a respeito de determinada sociedade. Acredito que a análise dos blogs aqui apresentados, ainda que breve, tenha possibilitado a identificação de como a mulher tida como acima do peso vem sendo representada, bem como os discursos que acompanham essa nova representação. A influência das blogueiras, que acumulam milhares de seguidoras e anunciam produtos diversos, faz delas referências quando o assunto é corpo obeso, tanto pelo aspecto mercadológico quanto pelo cultural.

Mesmo com tantos estímulos a um olhar mais brando em relação à obesidade, continuamos vivendo em uma era na qual somos responsáveis pelo nosso corpo e pelo gerenciamento de tudo o que diz respeito a ele. A aparência é considerada um verdadeiro capital. A cultura dominante pressupõe que as mulheres consideradas gordas cometeram o pecado da omissão com o próprio corpo, ou seja, não cuidaram dele de

141 acordo com o que se espera de uma mulher. Ainda que o discurso plus size estimule a valorização de atributos que não apenas a beleza, mas o carisma e a sensualidade, por exemplo, é inegável que ele abriga algum grau de normatização e padronização. Também os blogs especificam ideais de beleza, feminilidade e comportamentos desejáveis para uma mulher toda como acima do peso. É desejável que o corpo seja do tipo “violão”, com quadris protuberantes, e não o tronco; é interessante que a mulher tenha pele, cabelos e unhas bem cuidados, que pratique exercícios e se alimente corretamente. Além disso, ela será uma mulher gorda “bem-sucedida” se seu manequim não ultrapassar o 48. Tal teoria é comprovada nos concursos de miss plus size e catálogos de moda, nos quais as modelos geralmente não vestem além do tamanho 44.

Portanto, embora o discurso dos blogs plus size seja o de questionar padrões de beleza que relacionam o corpo magro à perfeição física, eles muitas vezes acabam por reiterar a imagem feminina tradicional e a estetização da beleza. O corpo gordo é uma alternativa “aceitável”, porém com ressalvas. O que se pode concluir é que, se antes o corpo gordo era um outsider, ou seja, excluído do sistema, hoje ele se tornou parte dele, graças ao estímulo ao consumo.

Essas contradições nos discursos e práticas referentes ao universo plus size nos faz perguntar se de fato algo mudou nas representações femininas de forma geral. Há mesmo espaço para belezas plurais, que signifiquem mais do que apenas a aparência? Talvez não haja uma resposta, ou, pelo menos não uma única. Acredito que algumas horas diante da televisão ou da Internet já nos indicam alguns sinais de uma mudança que não parece passageira. Enquanto escrevo estas linhas, as paradas de sucesso trazem nas primeiras posições do ranking músicas de artistas mulheres, algumas acima do peso, como no caso de duplas sertanejas. Essas artistas se apresentam nos palcos e na televisão com trajes curtos, que não escondem seus corpos. Para elas, o importante é se gostar e se divertir e, na carreira, ter talento. Também estão nas paradas artistas que exploram diversidade de gênero e, com a exposição do próprio corpo, estimulam debates sobre a liberdade de assumi-lo do jeito que ele é. Não se sabe se tal postura é autêntica ou apenas uma maneira de chamar a atenção da mídia; seja lá como for, as questões circulam e despertam reflexões em uma sociedade que talvez já tenha se cansado da imposição de tantos padrões de beleza e comportamento. Ou seja: depois de tanto tempo sendo o principal alvo dos poderes disciplinares, chegou o momento do

142 corpo ser pensado e visto como uma possibilidade de resistência. Quanto mais livre a relação do sujeito com seu próprio corpo, mais autônomo ele será.

Por isso, é tão importante que celebridades e outras figuras se exponham e que os chamados influenciadores (blogueiros, jornalistas, escritores etc) proponham outros tipos de relacionamento com o corpo. Se isso é feito por meio de polêmicas, pelo figurino ousado, por letras de música feministas, pela sensualidade exagerada, via funk ou MPB, é sempre válido. A questão é a ressignificação do corpo feminino depois de décadas de submissão a padrões inalcançáveis de beleza, o que muitas vezes beira o ódio ao próprio corpo e às próprias origens étnicas.

A aparência, o comportamento e a silhueta indicam cada vez menos os vínculos e origens sociais e traduzem cada vez mais a personalidade e particularidades de uma pessoa. O indivíduo não tem mais a obrigação de representar um grupo ou meio social, como acontecia até pouco tempo atrás. Sua singularidade depende apenas dele mesmo. Como consequência, ele tem a sua aparência, as suas peculiaridade, o seu modo de viver e a sua identidade. Finalmente, esse discurso, sempre tão estimulado pela mídia, chega, via consumo, às pessoas consideradas obesas. É o momento de confrontar antigas ideias a respeito do corpo gordo e de deixar que o peso tenha tanta relevância para o sujeito e seu relacionamento com o mundo. É o momento de inclusão, de adaptação e de representatividade. É o momento de, enfim, habitar a própria imagem.

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7 – Referências bibliográficas

AGUIAR, André Effgen. O discurso de auto-ajuda em revistas femininas: aspectos retóricos e discursivos. PERcursos Linguísticos, Vitória (ES), 2011, v.3, n.1, p.19-39.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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