Reverso • Belo Horizonte • Ano 39 • N
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Sarug Dagir Ribeiro & Fábio Roberto Rodrigues Belo Os 201 clitóris de Marie Bonaparte Sarug Dagir Ribeiro Fábio Roberto Rodrigues Belo Resumo Apresentamos um panorama da doutrina bonapartista em torno da sexualidade da mulher, por meio do qual damos destaque especial ao papel do clitóris no desenvolvimento da psicossexuali- dade da mulher e a subsequente tese da causa anatômica da frigidez. O pensamento bonapartista obedece a três veios principais de pensamento: o veio biologicista, o psicanalítico e o etnológico. O procedimento de análise sistemática dos textos nos possibilita demonstrar a importância atual que o pensamento bonapartista adquire na psicanálise. Palavras-chave: Clitóris, Frigidez, Mulher, Psicanálise. Introdução e abraçar a causa freudiana na sua difusão Para introduzir partimos de um importante e propagação, principalmente no território trecho da obra freudiana sobre a sexuali- francês. Seu protagonismo não implicou dade da mulher, em que ele afirma: somente a retirada do pai da psicanálise e de parte de sua família da Áustria nazista, A frigidez sexual das mulheres, cuja fre- nem em preservar e traduzir inúmeros quência parece confirmar esse descaso, textos da psicanálise.1 é um fenômeno ainda insuficientemente Em 1926 juntamente com outros compreendido. Às vezes, é psicogênico contribuiu com a fundação da Société e, nesse caso, acessível à influência; em Psychanalytique de Paris (BERTIN, 1989; outros casos, porém, sugere a hipótese de ROUDINESCO, 1994). A princesa Marie ser constitucionalmente determinada e, também financiou a criação da Revue até mesmo, de existir um fator anatômico Française de Psychanalyse, órgão oficial da coadjuvante (FREUD, [1933] 1976, p. 131). sociedade, e em 1934 é inaugurado o Ins- tituto de Formação, o então Instituto de Essa passagem nos elucida duas Psicanálise, órgão de ensino da sociedade, principais razões: primeiro, testemunha a localizado na época no Boulevard Saint- influência que o pensamento bonapartista Germain, graças à sua generosidade. teve no pensamento freudiano; segundo, Durante muitos anos a princesa constitui um verdadeiro resumo dos prin- Marie ensina no respectivo Instituto, e cipais pontos de vista bonapartista sobre a entre os principais temas abordados por frigidez feminina. Sabemos que a princesa ela se destacam a teoria dos instintos, a Marie fora analisada pelo fundador da frigidez feminina e sobre a interpretação psicanálise, o que resultou no surgimento dos sonhos. de uma grande amizade entre os dois Feita essa súmula biográfica, afian- (BERTIN, 1989), e, consequentemente, a çamos que o presente artigo tem como levou a assumir a carreira de psicanalista objetivo esclarecer o principal trabalho es- 1. Sabemos que, graças à princesa Marie, o texto do Projeto para uma psicologia científica (1889) foi preservado, assim como as correspondências de Freud a Fliess (BERTIN, 1989). E grande foi seu esforço em inúmeras traduções, como Uma lembrança de infância de Leonard de Vinci (1928), Minha vida e a psicanálise (1930), O futuro de uma ilusão (1932), Metapsicologia (1940), entre outros. Reverso • Belo Horizonte • ano 39 • n. 74 • p. 61 – 68 • dez. 2017 61 Os 201 clitóris de Marie Bonaparte crito por ela sobre a sexualidade da mulher passa a ser igual a qualquer outra prática (BONAPARTE, 1967), pois acreditamos que é social e para a fundamentação epistemo- relevante no cenário contemporâneo dos lógica da ciência social crítica (IÑIGUEZ, estudos feministas e de relações de gênero. 2005b), por exemplo, aquela empreendida Essa obra faz parte de um conjunto maior por Rorty. de estudos psicanalíticos da autora sobre o A psicanálise não ficou imune ao giro tema (NARJANI,2 1924; BONAPARTE, 1952a, linguístico, e Lacan (1998) se contrapõe 1952b, 1952c). ao caminho que a princesa Marie trilha A característica marcante no estilo para a psicanálise, ou seja, a aliança com dos trabalhos bonapartianos é a mistura a biologia. Então, ele abraça com tudo de termos e conceitos da biologia com os os estudos da linguística, principalmente conceitos da psicanálise. A autora constrói os realizados por Ferdinand de Saussure um verdadeiro aparato de termos anfíbios e Roman Jakobson, na sua releitura de que denotam a mistura dos dois campos Freud, como atestam seus seminários da de saber (AMOUROUX, 2012). década de 1950 e 1960, o que, anos mais Se remontarmos à época em que se tarde, culminou na invenção da ‘psicaná- concentra a maior parte da publicação dos lise lacaniana’. seus escritos sobre a sexualidade feminina, Laplanche (1992; 1999; 2008; 2015) somos levados a reconhecer que ela está também é outro exemplo de psicanalista na contramão do fenômeno chamado de importante na França que, sem sombra giro linguístico, ocorrido nas décadas de de dúvidas, faz duras críticas ao biolo- 1950 e 1960. gicismo em psicanálise, que ele nomeia O giro linguístico significou, entre como “desvio biologizante” (LAPLANCHE, outros aspectos, que a linguagem adquiriu 1999) e como o movimento ptolomaico importância cada vez maior nas ciências na chamada “revolução copernicana” em sociais e humanas como meio de constru- psicanálise (LAPLANCHE, 2008). ção de ferramentas para a realização de As críticas laplancheanas em grande pesquisa social, e um exemplo de cons- parte denunciam o uso mitológico da trução de uma ferramenta desse tipo é a biologia na obra freudiana, ponto de vista Análise do Discurso. que consideramos importante no nosso A partir de, então, ocorre uma quebra resgate histórico-epistemológico das obras na separação hierárquica entre a lingua- bonapartianas. O apego à biologia no pen- gem cotidiana e a linguagem científica samento psicanalítico bonapartiano pode (esta era até então considerada possuidora levar a um caminho onde tudo que é da de maior valor). ordem do simbólico ou do pulsional fica comprometido com o real do biológico. O giro linguístico foi um giro no sentido Não pretendemos neste artigo esgotar de ter sido uma mudança radical graças ao as múltiplas possibilidades de discussão seu questionamento se a linguagem coti- sobre esse tema, mas consideramos não diana é suficiente para explicar o mundo deixar esses fatos alheios a nossa discussão. e a vida real (IÑIGUEZ, 2005a, p. 55). Assim, a psicanálise e a biologia não são os únicos eixos de pensamento da princesa Portanto, esse giro abre caminho para Marie. O aspecto etnológico e antropoló- as dimensões em que o trabalho da ciência gico também é muito importante em suas pesquisas, pois ela sempre busca dados das 2. Narjani é o pseudônimo que a princesa Marie utilizou pesquisas antropológicas, e sabemos da sua na publicação desse artigo, em que demonstra o papel da distância entre a glande do clitóris e o meato urinário, e o forte ligação e interesse pelas pesquisas protagonismo desse fator anatômico no orgasmo feminino. do antropólogo Bronislaw Malinowski 62 Reverso • Belo Horizonte • ano 39 • n. 74 • p. 61 – 68 • dez. 2017 Sarug Dagir Ribeiro & Fábio Roberto Rodrigues Belo (BERTIN, 1989), principalmente nos seus excisão, mas em muitos casos esse procedi- estudos sobre os ritos em tribos primitivas mento não alcançara o objetivo almejado, de iniciação das jovens, que incluem a ou seja, cessar a masturbação na mulher. excisão do clitóris. Ela constata que a sensibilidade eróti- ca das mulheres não é totalmente afetada Panorama: sobre os 200 clitóris pela excisão e que não são observados mais No artigo de Narjani (1924) encontramos casos de frigidez nas mulheres primitivas, a polêmica pesquisa bonapartiana com egípcias ou mulçumanas excisadas do que 200 mulheres, tomadas aleatoriamente nas mulheres europeias não excisadas. Se- na população de Paris. Através de um gundo Amouroux (2012) provavelmente exame ginecológico minucioso ela mediu a princesa Marie foi uma das primeiras a distância entre o clitóris e o orifício mulheres ocidentais a poder assistir aos uretral e constatou uma variação de 1 a rituais de mutilação sexual praticadas em 4 cm. Então, com base no exame e nas Djibouti. entrevistas com essas mulheres em torno Segundo Bonaparte (1952b) e com do orgasmo, deduz que, quanto maior a base em Freud ([1905] 1976), podemos distância, maior a probabilidade de a mu- traçar a gênese do clitoridismo na mulher lher ser acometida de frigidez por causa e os tipos de frigidez. A frigidez pode ter anatômica. E a solução estaria na cirurgia origem psíquica, ou seja, ser produzida por de aproximação, conhecida como opera- uma educação moral rígida e repressora; ção Halban-Narjani. ou anatômica, isto é, quanto maior a Tomadas as devidas críticas e o dis- distância da glande do clitóris do orifício tanciamento necessário na análise da tese uretral, maior a probabilidade da insensi- bonapartista sobre a cirurgia da frigidez, bilidade. pretendemos nesta oportunidade esclare- Todos os estudos sobre a sexualidade cer que, embora cirurgia da frigidez tives- feminina serão condensados na sua obra se caído em desuso, a sua tese da causa sobre a sexualidade da mulher (BONAPAR- anatômica da frigidez é hoje reconhecida TE, 1967), onde desenvolve a tese da cientificamente por inúmeros trabalhos na bissexualidade dos seres humanos, prin- área da medicina e das ciências biológicas cipalmente como se manifesta na mulher. (WAllEN; LLOYD, 2008; 2011), assunto que Sobre a evolução da libido a autora retomaremos mais adiante. remonta às teses desenvolvimentistas No seu longo estudo entre 1929 e freudianas, em que a menina, depois de 1942, a princesa Marie se interessa par- uma fase comum passiva anal contra a ticularmente pelos trabalhos que descre- mãe, aborda uma fase ativa passageira vem práticas sexuais exóticas em povos fálica contra ela, depois uma segunda fase primitivos. Tendo como base os trabalhos passiva (cloacal) contra o pai. Em seguida antropológicos como os de Géza Róheim, há o período de latência, e a última fase Felix Bryk, Marcel Mauss, entre outros, passiva (genital, vaginal, púbere) com ela focaliza seu interesse sobre a excisão exclusão relativa durável do clitóris e a ou clitoridectomia em tribos primitivas e afirmação da vagina. passa a se interessar pela sexualidade e É nesse livro que ela retoma seu estu- pelo psiquismo das mulheres excisadas.