revista Fronteiras – estudos midiáticos 14(2): 99-109 maio/agosto 2012 © 2012 by – doi: 10.4013/fem.2012.142.04

Políticas culturais, vídeo digital e política de representação: fatores para o desenvolvimento do cinema de periferia brasileiro

Cultural policy, digital video and representation politics: Factors for the development of Brazilian cinema in periphery

Gustavo Souza1

RESUMO Pretendemos debater neste artigo os fatores que permitem o surgimento da produção audiovisual nas periferias brasileiras. A ideia aqui defendida é de que três importantes pontos permitem o desenvolvimento de tal produção: as políticas culturas empreendidas nos últimos 10 anos, tanto no âmbito municipal quanto no federal; o desenvolvimento das tecnologias digitais, que se popularizou, facilitando o acesso aos meios de produção e, por fim, novas propostas de políticas de representação, que tentam se distanciar da ideia dos espaços periféricos como locais exclusivos de insegurança, perigo e violência.

Palavras-chave: cinema de periferia, políticas culturais, digital, representação.

ABSTRACT We intend to discuss in this article the factors that allow the emergence of the Brazilian audiovisual production in the periphery. The idea defended here is three important points that allow the development of this production: cultural politics undertaken in the last 10 years, both at the municipal and federal level, the development of digital technologies, which was popularized allowing easier access to the means of production and, finally, new politics proposals of representation, attempting to distance themselves from the idea of unique locations peripheral areas of insecurity, danger and violence.

Key words: periphery cinema, cultural politics, digital representation.

1 Bolsista Fapesp de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da UFSCar. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Graduado em Comunicação Social pela UFPE. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. Rodovia Washington Luís, Km 235, 13085-210, São Carlos, SP, Brasil. E-mail: [email protected] Gustavo Souza

Introdução numerosos, sustentam ideias contrárias às do maior número”. Assim, à margem das benesses desse exercício, diversos grupos minoritários – favelados, imigrantes nordestinos, negros, travestis, presidiários3 – reinventam No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, uma existência que pode ser sui generis ou resistente, enquanto o público, a crítica e os profissionais viam o tornando-se, portanto, “objeto de desejo” de vários docu- crescimento da produção de cinema no Brasil, moradores mentaristas. Aliás, filmes de ficção de grande repercussão de subúrbios, favelas e periferias começavam a experi- da primeira década do século XXI tinham como questão mentar outra forma de contar histórias: com filmes e central personagens ou situações vinculadas às periferias vídeos realizados em oficinas de cinema e audiovisual e favelas, assim como as temáticas comumente associadas espalhadas por diversas cidades brasileiras. Se antes o rap a esses espaços. e o funk eram os porta-vozes de uma significativa parcela Porém, antes de discutir o problema central de moradores dos espaços periféricos (Herschmann, deste texto, é importante apontar os meandros que os 2000), agora tais manifestações musicais dividem espaço cercam, como o próprio nome que se dá a essa produção. com a produção audiovisual, que cresce desde 2000. Num Os debates e conversas com diversos realizadores deste passado não muito distante, era imprescindível saber ler “cinema” revelam que não há uma nomenclatura fixa que e escrever; hoje, além disso, é preciso ter a clareza sobre o denomine o conjunto da produção audiovisual realizada potencial de uma imagem e saber utilizá-lo. Nesse cená- nas periferias. Desse modo, há referências como cinema rio, as classes populares2 passam de personagens, que por de periferia, cinema de quebrada, vídeo popular ou vídeo décadas causaram (e ainda causam, de certo modo) um de comunidade. Diante dessa diversidade, dirijo-me ao intenso fascínio entre documentaristas, a contadoras de conjunto de obras analisadas, majoritariamente, como sua própria história. produção documental periférica ou produção de documentá- Contudo, esse movimento não se dá por rupturas rios de periferia. A aparente assimetria em situar cinema que estabelecem nítidas separações entre “a periferia” e audiovisual na mesma seara não é de todo descabida. como personagem e “a periferia” como produtora. No Embora o digital seja o suporte utilizado por praticamen- período acima apontado, moradores de periferias tran- te todas as oficinas e coletivos, há, em menor número, sitaram entre esses dois polos, pois passar a realizar produções em película, o que garante a denominação de filmes não implica que eles, como personagens, tenham “cinema”, para o conjunto da produção e de “filme” para desaparecido das produções cinematográficas. As clas- o produto confeccionado4. Sendo assim, para facilitar o ses populares costumam ser vistas como “minorias” e, andamento da argumentação, quando me referir ao cinema nesse caso, a questão é cada vez mais qualitativa do que de periferia, isso inclui também os documentários feitos quantitativa, uma vez que se trata de uma categoria em digital. E mais importante: o uso desse termo deve que se configura sob exercício do poder, cujos efei- ser entendido também como uma referência à produção tos uma parcela significativa da população brasileira de documentários periféricos, embora saibamos que nesse ainda desconhece. Conforme aponta Soares (2009, tipo de cinema também se faz ficção. p. 3), “das relações de discriminação, exclusão e dominação Se tomamos os filmes dessa produção como um constituem-se as minorias, ou seja, aqueles que, menos modo de produzir e de compartilhar conhecimentos,

2 No sentido atribuído por Zaluar, esta expressão se refere à população de baixa renda, moradora de áreas menos privilegiadas, apontando para uma “construção de uma identidade social mais ampla do que a da classe operária” (2000, p. 50). Nessa direção, recorro a esse termo para me referir aos grupos menos abastados da população, a fim de evitar o emaranhado de expressões geralmente utilizadas para denominá-los – minorias, setores marginais, pobres, classes perigosas –, assim como suas respectivas armadilhas semânticas. 3 A produção documental brasileira dá fortes indicativos dessa presença. Seguindo a ordem da alteridade apresentada há exemplos como: Santa Marta, duas semanas no morro (, 1987) e Babilônia 2000 (Eduardo Coutinho, 1999); 2000 Nordestes (Vicente Amorim e David França Mendes, 2000); A negação do Brasil ( Joel Zito Araújo, 2000); Engenharia erótica (Hugo Denizart, 1999) e Julliu’s Bar (Consuelo Lins, 2001); O prisioneiro da grade de ferro (autorretratos) (Paulo Sacramento, 2003), Missionários (Cleisson Vidal e Andrea Prates, 2005) e O cárcere e a rua (Lilian Sulzbach, 2005). 4 Como indica Aguiar (2005, p. 14), sobre o enfoque do seu trabalho: “na cidade do convivem em torno de seis núcleos com produção regular em vídeo ou em película. Esse material, exibido em Mostras e Festivais Nacionais, constitui o universo analítico desta Monografia, composto por 50 títulos em curta e média-metragem cariocas confeccionados entre 1993 e 2004”.

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ao assisti-los surge a necessidade de se apreender que Políticas culturais aspectos permitem o desenvolvimento de tal produção, que muitas vezes são postos de lado diante da necessidade (ou preferência metodológica) de se deter diretamente O recorte cronológico estabelecido por este tra- os produtos finais, ou seja, os filmes. Não quero com balho vai de 2000 a 2010. Embora algumas iniciativas isso desmerecer a análise fílmica, pois foi exatamente o tivessem surgido nos anos 90 (como a Associação Imagem contato com um conjunto de filmes, de diversas oficinas, Comunitária, de Belo Horizonte, fundada em 1997), é a de várias partes do país, que me conduziu à reflexão aqui partir dos anos 2000 que periferias, favelas e subúrbios proposta. Faço esta ressalva porque o texto que segue brasileiros experimentam o boom de sua produção, em é resultado de uma visão panorâmica para este tipo de decorrência do aumento progressivo de entidades e nú- cinema, visão esta que desvia o foco das análises mais cleos independentes voltados para a realização de filmes localizadas para tentar assimilar tal cinematografia de ma- e vídeos. É nesse período que novas políticas culturais neira global. Com base nessa orientação, quero sinalizar entram em cena, ampliando as perspectivas para a pro- neste artigo que os fatores que permitem o surgimento da dução cultural brasileira, especialmente aquela que não produção audiovisual periférica estão ancorados em três encontra abertura nos centros culturais, nos museus, nas bibliotecas, nas salas de cinema do circuito comercial, importantes pontos: as políticas culturas empreendidas enfim, nos espaços culturais tidos como tradicionais. nos últimos 10 anos, tanto no âmbito municipal quanto Por política cultural, corroboro a definição que se refere federal; o desenvolvimento das tecnologias digitais, que a “suportes institucionais que canalizam tanto a criativi- se popularizou, permitindo mais facilmente o acesso aos dade estética como os estilos coletivos de vida”, geridos meios de produção e, por fim, novas propostas de políticas pelos poderes públicos federal, estadual ou municipal que de representação, que tentam se distanciar da ideia dos “solicitam, instruem, distribuem, financiam, descrevem e espaços periféricos como locais exclusivos de insegurança, rechaçam os atores e atividades que estão sob o signo do perigo e violência. artista ou da obra de arte mediante a implementação de A perspectiva aqui adotada é de que esses três políticas” (Miller e Yúdice, 2004, p. 12).5 aspectos se entrelaçam de forma contígua para construir No período acima comentado, ocorrem duas conhecimentos, imagens e discursos políticos. Não se importantes iniciativas que terão um impacto direto na trata de privilegiar nenhum dos ângulos do triângulo produção audiovisual periférica. Primeiramente, os Pon- tos de Cultura, implementados na gestão do Ministro da assim definido, mas de mostrar a peculiaridade da relação Cultura . O segundo, de caráter municipal, que cada um deles estabelece com o cinema realizado nas é o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais periferias brasileiras. Políticas culturais, tecnologia digital (VAI), destinado ao fomento de iniciativas artísticas e cul- e políticas de representação são planos irredutíveis, mas turais encabeçadas por moradores da cidade de São Paulo. que podem ser investigados segundo uma mesma estraté- Há outras iniciativas que também fornecem os subsídios gia: às instâncias da instauração cultural corresponderão, para a produção periférica6. No entanto, é impensável, mutuamente, às instâncias da tecnologia, e essas, por sua nos limites e principalmente nos objetivos desse trabalho, vez, às das representações. dissecar todas elas. Centro as atenções nessas duas porque

5 “La política cultural se refere a los soportes institucionales que canalizan tanto la creatividad estética como los estilos colectivos de vida. [...] las instituciones solicitan, instrueyn, distribuyen, financian, describen y rechazan a los actores y actividades que se hallan bajo el signo del artista o de la obra de arte mediante la implementación de políticas”. Além disso, deve-se destacar também seu funcionamento e agentes: “Assim, as políticas culturais devem ser desenvolvidas [...] buscando incorporar e articular um conjunto bastante variado de agentes culturais; estados nacionais; supranacionais (organismos multilaterais); sociedade civil; empresas; grupos sociais e culturais etc. Este desafio pode e deve ser enfrentado através da construção de efetivas políticas públicas de cultura, nas quais os diferentes agentes culturais sejam incluídos e tenham garantias de participação e deliberação” (Rubim, 2009, p. 109). 6 No âmbito federal, há o Programa Mais Cultura, voltado para a descentralização dos programas do Ministério da Cultura, e o Concurso de Apoio à Produção de Obras Audiovisuais Inéditas, destinado a pessoas físicas egressas de oficinas e projetos com foco na produção audiovisual. Já a prefeitura de São Paulo criou um fundo para copatrocínio para a produção de obras de realizadores iniciantes. Todos esses programas foram criados no ano de 2007.

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elas são importantes indicativos da implementação e grupos e instituições que se voltam para produções estímulo à realização de filmes nas periferias de diversas artístico-culturais. cidades brasileiras. Começo, então, pela primeira política Cabe frisar que esse programa não fomenta apenas cultural comentada. a produção audiovisual, muito embora desde o lançamento Em seu estudo sobre as políticas culturais no de seu primeiro edital, em 2004, o número de iniciativas governo Lula, Rubim identifica que “a assimilação da voltadas para essa área cresça ano a ano, conforme os noção larga [de cultura] permite que o ministério deixe dados fornecidos por Toledo (2010, p. 74): “considerando de estar circunscrito à cultura culta (erudita) e abra suas o período de 2005 a 2008, detectou-se que 66% dos Pon- fronteiras para outras modalidades de culturas: populares; tos de Cultura do país desenvolveram atividades na área afro-brasileiras; indígenas; de gênero; de orientações audiovisual”. Entre as entidades contempladas por esse sexuais; das periferias; da mídia audiovisual; das redes programa, destacam-se, por exemplo, Nós do Morro, do informáticas etc.” (Rubim, 2008, p. 195, grifo meu). O Rio de Janeiro; Projeto Olho Vivo, de Curitiba; Associa- retrospecto das políticas culturais no Brasil indica uma ção Cultural Faísca, que promove as Oficinas de Imagem oscilação entre “ausência, autoritarismo e instabilidade” Popular, em Brasília, e a Associação Cultural Kinoforum, (Rubim, 2008, p. 183-194) – circunstâncias fortemente experimentadas até o fim dos anos 90. Ao tomar a história que mantém as Oficinas Kinoforum, em São Paulo. do Brasil como eixo, esse autor detecta essas três carac- Outra política cultural que merece destaque é terísticas. A primeira se refere ao período que vai até o o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais início do século XX, a segunda, às ditaduras do Estado (VAI). Implementado pela prefeitura de São Paulo em Novo (1937-1945) e dos militares (1964-1985) e, por 2004, esse programa concede uma verba no valor de até fim, a terceira ao período que abarca os governos de José R$ 15 mil por ano, destinada à execução de iniciativas Sarney a Fernando Henrique Cardoso (1985-2002). A artístico-culturais encabeçadas por jovens de baixa renda, mudança empreendida pelo Ministério de Cultura resulta moradores de regiões da cidade em que os recursos e equi- na ampliação da noção de cultura, entendida para além de pamentos culturais são escassos ou inexistentes. O VAI sua produção e consumo como um bem restrito às elites, permite a inscrição de pessoas físicas. Isso possibilitou a assim como a minimização de seu possível potencial muitos coletivos e núcleos independentes de São Paulo discriminatório e separatista. Para se pôr em prática essa angariar recursos para seus projetos, entre eles o Filmagens premissa, a estratégia utilizada foi a “do acionamento da Periféricas, Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), sociedade civil e dos agentes culturais na conformação Arte na Periferia e Arroz, Feijão, Cinema e Vídeo. de políticas públicas e democráticas de cultura” (Rubim, Iniciativas como essas apontam para uma nova 2008, p. 196). configuração das políticas culturais, em que “o novo de- É dentro dessa perspectiva que surgem os Pontos safio”, como observou Rubim (2009, p. 110), sobre o seu de Cultura, principal ação do Programa Cultura Viva, papel na atualidade, “é inventar políticas culturais em um voltado para o financiamento de entidades reconhe- mundo em que as organizações culturais mais potentes são cidas pelo Ministério como aptas a desenvolver ações privadas e mesmo transnacionais, subordinadas, portanto, culturais. Os projetos aprovados por edital público à lógica da mercadoria e do lucro”. Além disso, programas recebem uma verba no valor de R$ 185 mil, em cinco como o VAI ou os Pontos de Cultura repaginam as polí- parcelas semestrais, para investir no projeto apresen- tado7. A novidade desse programa está no modo como ticas culturais ao deslocar o foco da consolidação de uma são vistas as manifestações culturais populares. Se, nos “identidade nacional” (forte preocupação nas décadas de anos 1980, prevaleceram as políticas públicas com a 1930 e 1940) para o estímulo e o fomento de projetos que intenção de ocupar os menos abastados (com o espor- se voltam às práticas cotidianas em suas variadas composi- te, por exemplo) para que eles não viessem a se tornar ções, em diversas partes do país. Assim, não parece casual um problema social (Zaluar, 1994), hoje tais políticas que uma infinidade de peças audiovisuais realizadas nas não pensam o investimento em cultura apenas como periferias brasileiras aborde alguma experiência, espaço uma questão de “inclusão”. Inversamente, se aposta na ou pessoa que lhe é próxima em detrimento de uma ideia capacidade de gerência e autonomia das comunidades, de Brasil único.

7 Valores disponíveis em Ministério da Cultura (2010)

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Popularização do digital ou da imagem ocorre porque as concepções de ruptura e progresso são logo difundidas, conforme o diagnóstico de Dubois. Para esse autor, pensar a novidade tecnológica nessa chave revela uma superficialidade que se reverte na O debate sobre as políticas culturais aponta um “recusa da história” (Dubois, 1999, p. 67). Esse movimento, duplo aspecto para o entendimento da emergência da quando levado às últimas consequências, “impede uma vi- produção audiovisual das periferias: o papel que as cul- são mais precisa do objeto sobre o qual debruçamos nosso turas periféricas vem ocupando com seus novos agentes instrumento analítico, fazendo com que caiamos em uma e protagonistas e a comercialização dos bens culturais na visão estritamente evolucionista” (Ramos, 1994, p. 29). globalização, em que pesam as mudanças promovidas As câmeras digitais, sem dúvida, interferem nos pela tecnologia digital. Logo, as transformações decor- métodos e processos de filmagem; mas, ao mesmo tempo, rentes das novas tecnologias da comunicação não podem forçam uma mudança no modo de produzir e consumir ser desprezadas. Os últimos dez anos experimentaram imagens. É nesse contexto que se pode mencionar o pro- também um significativo aumento em relação ao acesso jeto Coletores de Imagem, desenvolvido pela Escola Livre e à circulação de equipamentos digitais. Nesse horizonte, de Cinema de Nova Iguaçu, que disponibiliza câmeras concentro-me apenas naquilo que impacta diretamente digitais aos alunos de seus cursos para que eles façam o a produção audiovisual aqui em foco: as câmeras digitais registro do cotidiano, gerando, posteriormente, discussões cada vez mais leves e com diversas possibilidades de que vão desde as opções de linguagem às representações recursos; assim como computadores que permitem o que tais registros podem sugerir. Dessas imagens, não trabalho de edição – ambos com preço mais acessível a surgirão necessariamente filmes, mas o que interessa é cada ano que passa. aguçar novos olhares para práticas e vivências comuns aos Esse cenário desenhado pelas novas tecnologias alunos e a seus locais de moradia. Nesse caso, as câmeras não é, contudo, uma novidade na história do cinema. digitais funcionam como ferramentas que auxiliam na Só para citar um caso, para não nos dispersarmos, o cinema construção ou proposição de um olhar sobre si e para direto norte-americano e o cinema verdade francês estão entre as estéticas cinematográficas que se beneficiaram o que está próximo ou, como aponta Migliorin (2003, tenazmente das câmeras leves surgidas na década de p. 410), “a popularização permite que se pense em peque- 1960. O documentarista Robert Drew empreendeu uma nas produções que atendam a própria comunidade com pesquisa sobre novos equipamentos que permitissem pôr muito mais sucesso e qualidade do que víamos até então”. em prática certas estratégias de filmagens. Jean Rouch, por Ao considerar que o uso de uma determinada sua vez, estabeleceu um frequente diálogo com produtores tecnologia é mais importante que a tecnologia em si, a de câmeras, para também tornar as filmagens mais simples. produção audiovisual periférica, diretamente beneficia- Nota-se, assim, que na gênese da evolução técnica há da pela popularização do digital, põe em prática aquilo também uma participação criadora. Isso aponta para uma que Landesman (2008, p. 41) denomina de “estratégia discussão já antiga, que, diante da produção audiovisual estética”. Trata-se de duas importantes transformações periférica, aparece novamente: a relação entre tecnologia impulsionadas pela tecnologia digital: uma relacionada ao e estética e as decorrentes determinações entre essas duas fornecimento de uma “familiar noção de autenticidade” e searas, muito embora se deva pontuar “que o progresso de outra que solicita um engajamento por parte do espectador. uma não é necessariamente correlato à regressão da outra” Mas tudo isso depende, como apontado acima, da maneira (Dubois, 1999, p. 70). como se encara a relação com os novos equipamentos. Como ponto de partida dessa discussão, corroboro O digital reforça e expande a importância do do- a necessidade, levantada por vários estudiosos (Dubois, cumentário como um artefato cultural, favorecendo novos 1999; Ginsburg, 2006; Hight, 2008; Machado, 1993; ordenamentos para a sua práxis, como é o caso das oficinas Ramos, 1994; Renov, 1993, entre outros), de se aban- de vídeo com imagens capturadas por celular, oferecidas donar os determinismos tecnológicos que delegam às pelo Cinema Nosso, assim como os cursos de animação, novas tecnologias a tarefa de estabelecer verticalmente os área que vem se beneficiando intensamente do avanço de escopos culturais, sociais ou políticos, pois a questão passa novos equipamentos e softwares. Isso permite a aproxima- necessariamente pelo uso que fazemos delas, em vez de ção dos mais jovens com uma linguagem já tradicional, permanecermos à mercê de suas intenções ou imposições. possibilita o exercício de outros arranjos para as práticas e A celeuma diante de uma nova tecnologia da comunicação formatos documentais, além de favorecer o caráter coletivo

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das atividades. Além desse aspecto relativo à produção, o Imagens e imaginários das digital permite uma pós-produção e distribuição para a televisão e internet que, devido à própria composição do periferias na televisão e no artefato tecnológico, facilita a sua circulação. cinema A popularização da tecnologia digital funciona como um importante vetor para o desenvolvimento da produção audiovisual periférica, mas não é o único. A observação dos fatores condicionantes da pro- A presença do digital no cinema de periferia conduz dução audiovisual periférica remete também às constru- à necessidade de enxergar técnica e estética não como ções imagéticas e discursivas sobre periferias difundidas categorias rivais, mas complementares. Afirmar que tais pelos meios de comunicação de massa. Refiro-me, neste filmes só são possíveis em decorrência do acesso às novas momento, à produção televisiva e cinematográfica brasileira tecnologias seria reforçar uma postura de “deslumbre”, a partir da década de 1990 – período fortemente marcado que se reverte, por sua vez, numa “falácia”. Segundo Ra- pela presença dos espaços periféricos e de seus moradores mos, as novas tecnologias da imagem podem gerar essa em diversos produtos midiáticos, revelando diversas so- dupla perspectiva, em que o deslumbre seria uma “estreita ciabilidades e controversas modalidades representacionais. visão evolucionista da imagem que passa como um rolo Em décadas anteriores, o cinema brasileiro já compressor sobre os campos e tradições anteriores à ima- havia trazido para suas tramas espaços e personagens marginalizados: essa “tendência” volta a partir dos anos gem técnica” (1994, p. 29) e a falácia, “conceder um peso 90 em representações da pobreza e da violência de modo expressivo às potencialidades da forma digital, ainda mais até então não visto. Os trabalhos de Hamburger (2007) e quando analisadas como corrida na história em direção à Bentes (2007) traçam esse percurso na história do cinema última novidade tecnológica (1994, p. 31). O depoimento nacional. Por esse motivo, não pretendo parafrasear tal de David Alves, integrante do coletivo Arte na Periferia, trajeto, mas recorrer aos pontos apresentados por essas de São Paulo, sobre um possível contexto de dificuldade autoras naquilo com que iluminam a discussão que pre- de acesso aos equipamentos digitais, sugere que “sem o tendo encaminhar. digital, a gente iria atrás de uma câmera 8mm, 32mm O cinema realizado nas periferias urbanas não é velha lá na feira da Benedito Calixto. Ia marcar para foco de nenhum dos trabalhos citados, mas a conjuntura conseguir rolo, ia cortar na tesoura. Fotografias na latinha política, cultural e social em que esse tipo de produção para a composição dessas fotos. Seria bem mais difícil, começa a se desenrolar atravessa os dois textos de forma sem dúvida. Seria bem mais construtivo sem dúvida, de contínua. É exatamente nesse cenário que ressurge a uma forma ou de outra”8. produção cinematográfica brasileira, a partir dos anos A relação entre o audiovisual e as tecnologias 1990, que interessa aqui ter em mente, pois no final dessa digitais apresenta, portanto, uma extensiva e permanen- década começam as primeiras experiências em oficinas e te transformação de aspectos fundamentais da cultura cursos de cinema e audiovisual nas periferias brasileiras. cinematográfica. No caso da produção aqui em foco, A presença das classes populares em diversas produções nacionais desse período, tanto na ficção como trata-se de uma realização audiovisual de baixo custo e no documentário, bem com a notoriedade que muitos com boa qualidade, que faz uso das novas tecnologias desses filmes obtiveram, é um sintoma de que o debate como poderosas ferramentas que permitem apresentar sobre o frágil e precário estado em que se encontra o e defender posicionamentos, histórias, experiências, vi- escopo social brasileiro não poderia mais ser adiado. vências e culturas. Esse processo converte espectadores E este debate põe em cena também uma nova faceta que passivos em criadores, difusores e multiplicadores de é o cerne deste trabalho: grupos sociais antes apropriados, imagens e imaginários relativos às periferias e favelas. tomados como personagens de inúmeros filmes, passam Essa estratégia, contudo, não é aleatória, mas decorrente agora a produtores de imagens e discursos sobre si. de décadas de uma construção unilateral das camadas Nas décadas de 1960 e 1990, sertões e favelas populares fornecidas a partir da televisão e do cinema. aparecem na produção cinematográfica como o emble-

8 Depoimento em 15 de setembro de 2010.

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ma de um Brasil pouco preocupado com a distribuição cada vez mais frequência como personagens de diversas de renda. Porém, novas configurações entram em cena produções, uma questão inevitável se apresenta: como os para moldar o horizonte social, político e cultural a que o filmes apresentam esses espaços e como as pessoas são cinema passaria a se reportar. Olhar para a produção do tomadas como personagens? país e perceber como essa temática foi tratada torna-se, A própria produção de cinema dos anos 1990 em então, um profícuo ponto de partida. São inúmeros os diante fornece as chaves para o debate. Notícias de uma filmes do período capazes de impulsionar o debate, mas, guerra particular, Carandiru (Hector Babenco, 2003), para não me perder em meio a tantas possibilidades, O invasor (Beto Brant, 2001), O prisioneiro da grade de fer- concentro as atenções no documentário Notícias de uma ro (Paulo Sacramento, 2004), Cidade de Deus (Fernando guerra particular (1999), dirigido por João Moreira Salles Meirelles, 2002) e Falcão, meninos do tráfico (MV Bill e e Kátia Lund. O tráfico de drogas no Rio de Janeiro é o Celso Athayde, 2006) e Tropa de elite ( José Padilha, 2007) tema de Notícias... . Trata-se de um dos mais importantes levantaram o debate sobre a apropriação do cotidiano filmes realizados na década de 1990 por abordar o mo- das periferias e situações de marginalidade por cineastas mento de consolidação das atividades do narcotráfico no “de fora” e, principalmente, sobre as representações por Rio de Janeiro. O crime organizado e a violência urbana eles construídas. No momento em que se discutiam começam a se intensificar no final dos anos 1980 (Leeds, quais imagens e imaginários o cinema brasileiro estava 1999; Nascimento, 2003; Zaluar, 1999). O documentário construindo de favelas, subúrbios e periferias, moradores é realizado em 1997 e 1998, isto é, apenas dez anos após desses espaços estavam dando os primeiros passos rumo a o início desse movimento. Esse tempo, que pode ser visto uma construção de suas próprias imagens. Paralelamente, como ínfimo para se avaliar o grau e os efeitos dos acon- ainda que timidamente, as classes populares passavam tecimentos históricos, foi suficiente para que as facções de personagem a realizadoras, a contadoras de suas criminosas que comandam o tráfico de drogas na cidade próprias histórias. conquistassem uma solidez sem igual. Essa discussão não pode se concentrar apenas nas Ao diagnosticar o estado de urgência em que se representações via cinema, pois a televisão também en- encontrava a sociedade brasileira, com alarmantes índices grossou o coro dos espaços periféricos como uma espécie de morte por arma de fogo, bem como a significativa de catalisadores da periculosidade e da marginalidade. parcela de contribuição que o tráfico de drogas apresenta Muito embora o enquadramento das classes populares nesse cenário, Notícias... traça um percurso cronológico na chave do estereótipo ou do exotismo já estivesse pre- que explicita as origens dessa conjuntura. Por essa via, a sente na televisão brasileira desde os anos 1960 (Sodré fala do escritor Paulo Lins lança uma luz sobre a questão: e Paiva, 2002), é na década de 1990 que os canais da TV ele explica que a partir do momento em que as ações da aberta abordarão insistentemente o cotidiano violento de violência urbana, decorrentes do tráfico, passaram a invadir periferias e favelas. Nesse contexto, o programa policial os bairros nobres da cidade, a imprensa passou a noticiá-las vespertino Aqui agora se tornou emblemático. Com o com mais frequência. Não obstante, esse processo reforça a bordão “um telejornal que mostra a realidade como ela ideia de o morador do morro ser promovedor da violência, é”, o programa deslocou o foco da mídia televisiva para as tornando-o visível por meio de um estigma9. questões relacionadas à violência urbana, tragédias sociais Os fatores descritos até agora não são os únicos a ou pessoais – um feito inédito no jornalismo televisivo da serem observados como paradigmáticos na constituição de época, que prezava pela “higiene” temática e visual. imaginários e representações do cinema brasileiro dos anos Mas o que interessa frisar não são as composições 1960 para os 1990 (quando são retomados os cenários e narrativas ou imagéticas do telejornal, e sim as consequên- seus respectivos personagens), mas os subsídios fornecidos cias dessas opções para as comunidades em que Gil Gomes, por eles apresentam os componentes para a continuidade principal repórter do programa, fazia as suas reportagens. desta discussão, pois, ao contextualizar tal conjuntura em Um morador do Jardim São Luís, periferia da zona sul que grupos socialmente marginalizados aparecem com paulistana, em depoimento no documentário Não é o que

9 A ideia de estigma utilizada neste trabalho é cara às formulações de Soares (2009, p. 5): “os estigmas [...] ainda que pareçam sempre mais prejudiciais do que benéficos – justamente, [...], por estarem na base de estereótipos e preconceitos. Os estigmas incluem e ex- cluem, são dinâmicos e intercambiáveis – são multifacetados, [...], e não unilaterais, como as cristalizações presentes nos estereótipos e preconceitos, determinados por modelos prévios”.

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é (Oficinas Kinoforum, 2004) diz que o Aqui agora demo- ao enxergá-los apenas como construtores de imagens nizava os bairros da periferia em suas matérias de modo redutoras sobre favelas e periferias. Também no período a dificultar, inclusive, que os moradores de conseguissem em que tais imagens começavam a se consolidar no imagi- trabalho. Mas essa questão não é exclusiva ao Aqui agora. nário social, canais de televisão abertos e fechados exibiam No documentário Sou feia mas tô na moda (Denise Garcia, programas com foco na periferia, revelando outras facetas 2005), uma moça se queixa da dificuldade em conseguir para além da pobreza, da violência e o do tráfico de drogas. trabalho caso coloque em seu currículo que é moradora de Entre tais programas, destacam-se Turma do gueto Cidade de Deus, zona oeste do Rio. Muitas empresas recu- (Record, 2002-2004), uma série de cinco temporadas que sam profissionais que residam no bairro devido ao estigma se passava na periferia de São Paulo. O pano de fundo que iguala morar na Cidade de Deus a ter envolvimento eram as dificuldades de professores e alunos da Escola com a criminalidade. Esse tipo de atitude provavelmente Municipal Quilombo e o cotidiano da comunidade à sua decorre da grande exposição que o bairro teve nos meios volta, marcado tanto por histórias de amizade e amor de comunicação em decorrência do filme Cidade de Deus como pelo envolvimento com drogas. Central da periferia (, 2002). A mesma questão aparece em (Globo, 2006) deslocava as atenções para as experiências Moro na Tiradentes (Henri Gervaiseau, Cláudia Mesquita, culturais de diversas periferias brasileiras. O programa 2008), em que alguns moradores de Cidade Tiradentes, passou por Belém, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, zona leste de São Paulo, relatam a dificuldade de conseguir Salvador e São Paulo, revelando a produção cultural des- emprego pelo fato de morarem num bairro estigmatizado. ses espaços, que, posteriormente, seriam absorvidas pela O Aqui agora foi uma espécie de abre-alas para mídia massiva e pela indústria cultural, como é o caso que outros programas da mesma linha fossem exibidos do funk carioca, do arrocha baiano, do forró eletrônico na televisão brasileira, tais como o Cidade alerta (Record, cearense, do tecnobrega paraense ou da tchê music gaúcha. 1995-2005) e o Brasil urgente (Band, 2001-atual), que O Central da periferia inspirou o quadro Minha periferia, passaram a se destacar também pela performance de seus exibido no Fantástico, cujo enfoque é revelar experiências apresentadores, sempre num misto de julgamento das e vivências que geralmente não interessam aos meios de ações alheias com indignação. Com os sucessores do Aqui comunicação de massa. agora, as representações das periferias apenas como espa- Manos e minas (TV Cultura) centrava as atenções ços da violência e da barbárie continuariam a ser reforçadas na produção do movimento hip-hop em São Paulo, ao longo dos anos 2000. Tendo em vista que a televisão sempre divulgando novidades e uma agenda com os tem um poder de alcance amazonicamente superior ao eventos relacionados à cultura rapper. Também exibido do cinema, não é descabido apontar que programas como pela TV Cultura, o Pé na rua (2007-2008) não tinha a o Aqui agora e suas derivações tenham contribuído para periferia como foco específico, mas como suas pautas uma construção de um imaginário enviesado em relação costumavam retratar a produção cultural da cidade de a periferias, subúrbios e favelas, imaginário que a produ- São Paulo (especialmente literatura, teatro e cinema), ção documental periférica se esforça para minimizar por a periferia, em muitos casos, aparecia no programa em meio de diversos filmes. Nota-se, então, que os fatores que decorrência de sua produção artística. Conexões urbanas favorecem o surgimento do cinema de periferia não se (Multishow), apresentado por José Júnior, do AfroReg- limitam a investimentos (por meio de políticas culturais) gae, também não enfoca apenas as questões relativas às e equipamentos (câmeras digitais e programa de edição). periferias e favelas, mas, como o próprio título sugere, O contexto representacional midiático via cinema e TV as questões urbanas – daí, temas relacionados a esses fornece também os subsídios temáticos, discursivos e espaços serem ocasionalmente o assunto de muitos estéticos para a produção aqui em análise. programas, que mesclam a linguagem jornalística com Um olhar panorâmico sobre os primeiros anos a documental. da produção audiovisual periférica, que vai do final dos O que aproxima esses programas é a tentativa de anos 1990 ao início dos 2000, revela sua consciência e abordar espaços e experiências periféricos para além das conexão com tais imagens e imaginários que circulavam questões já bastante visíveis, tais como violência, pobreza, no cinema e nos meios de comunicação de massa e que tráfico de drogas e marginalidade. Não há, por parte deles, dia a dia se consolidava rumo a estigmas garantidores de a recusa de que esses aspectos não estejam inseridos no uma visibilidade sinistra. É preciso, apenas, estar atento, cotidiano das periferias, porém constata-se a necessidade também, para não demonizar os meios de comunicação de ir além dessas temáticas, de tornar público que, se, na

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periferia há criminalidade, nela também há criatividade, de produção dos filmes ressalta as especificidades entre produção artística e sociabilidades que merecem um es- teoria e objeto de estudo, salientando a importância de se paço, ainda que nas emissoras com pouco alcance10, para evitar uma transposição direta de uma categoria para outra. ser mostradas – e que isso sirva, principalmente, para uma Nesse horizonte, a produção audiovisual peri- revisão das imagens e discursos diariamente veiculados férica suscita uma relação com as tecnologias digitais pela mídia hegemônica. na perspectiva da continuidade e da transformação em detrimento da ruptura e do progresso, pois fazer docu- mentários não é simplesmente uma forma de manusear ou testar equipamentos, mas, principalmente, de compar- Conclusão tilhar conhecimentos e de propor imaginários. E, no caso da produção aqui em foco, há uma forma de manejar o cotidiano que se reverte numa estratégia, cujo objetivo é o A articulação entre esses três aspectos – políticas distanciamento de imagens e imaginários que enquadram culturais, popularização do digital e políticas de represen- as periferias apenas como locais de vulnerabilidade social tação – favorece a emergência da produção audiovisual e econômica. O acesso aos equipamentos digitais permite nas periferias brasileiras. No entanto, tão importante à produção documental das periferias, favelas e subúrbios quanto debatê-los é perceber seus possíveis desdobra- acionar políticas de representação que não encontram mentos conceituais, possibilitando, assim, a continuidade espaço na mídia hegemônica, além de levantar, como do debate para além de certos diagnósticos. Desse modo, detecta Ginsburg (2006, p. 133), “questões importantes as condições de produção anteriormente destacadas, sobre a política e a circulação do conhecimento em vários decorrentes das políticas culturais implementadas nos níveis”.11 últimos anos, permitem aos grupos, quando conquistam A produção audiovisual periférica abre as portas recursos do Estado para materializar ideias em ações, a para uma seara até então inexistente na produção cine- ativação da “subpolítica” (Beck in Giddens et al., 1997), matográfica brasileira: um cinema feito em comunidades ou seja, iniciativas da sociedade civil frente às ingerências de baixa renda, por seus próprios moradores. No entanto, ou deficiências dos Estados na promoção de direitos e interessa neste encaminhamento final da discussão cha- da cidadania. Esse movimento, porém, levanta a seguinte mar a atenção para a sua existência e ação, pois, de forma questão: embora seja importante reconhecer o potencial acentuada, esses “novos sujeitos do discurso”, para utilizar de mobilização dos coletivos e entidades à margem das os termos de Bentes, apropriam-se de imagens e discursos ações do poder público, é ele que, por meio de finan- para também “controlar os mecanismos de construção de ciamentos e políticas de participação, viabiliza muitos sua imagem” (Hamburger, 2007, p. 125) ou garantir o “co- dos projetos de realização audiovisual nas periferias e pyright sobre sua própria miséria e imagem” (Bentes, 2007, subúrbios do país. p. 224), – pois fazer imagens é uma forma de se inserir no Isso gera um entrave à autossuficiência dos grupos mundo, de (des)construir e mudar imaginários. Para isso realizadores devido à inexistência de um circuito exibi- é preciso produzir, e produzir e realizar filmes não deixa dor e ao fato de serem vistos como um “alvo” por parte de ser uma forma eficaz de se refutar um dos mais cruéis dos patrocinadores. Isso implica que a subpolítica não e nocivos processos de exclusão: a negação do acesso às é um movimento inteiramente autônomo. No contexto informações sobre o mundo e sobre si. da produção periférica, diversas entidades produzem Essa questão está diretamente atrelada às políti- devido às verbas de editais públicos. Quando os recursos cas de representação que os filmes periféricos acionam. se tornam escassos, preza a solidariedade entre seus inte- A identificação desse movimento evidencia uma disputa grantes, amigos, simpatizantes e também parcerias com em torno do que merece visibilidade, em que espaços, outros coletivos, mas esse modo improvisado tem prazo pessoas e experiências se tornam a matéria-prima para de validade, pois é inviável permanecer produzindo sem a confecção de conhecimento e representação. Se as recursos ou diante de uma estrutura insuficiente. Portanto, produções televisivas e cinematográficas hegemônicas o encontro entre os conceitos sociológicos e o contexto dependem da prevalência de representações socioculturais

10 A exceção fica por conta, evidentemente, dos programas exibidos pela Rede Globo. 11 No original: “They raise important questions about the politics and circulation of knowledge at a number of levels”.

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